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Henrik Ibsen - Espectros
Henrik Ibsen - Espectros
Espectros
Gengangere – 1881
Henrik Ibsen
ESPECTROS
Drama doméstico em três atos
PERSONAGENS
ATO 1
Uma sala grande que dá para o jardim, com uma porta na parede da esquerda e duas
na da direita. No centro da sala há uma mesa redonda com cadeiras. Sobre a mesa há
livros, jornais e revistas. Na esquerda baixa, diante de uma janela, um sofá e uma
mesinha de costura. No fundo, um hall envidraçado que dá para o jardim de inverno. À
esquerda deste hall, uma porta leva ao jardim. Através da vidraça pode-se ver o triste
fiorde, sempre encoberto por um constante véu de chuva.
REGINA (Baixando tom da voz) O que é que você quer aqui? Fique onde
está, você está pingando!
ENGSTRAND Minha nossa, que jeito de falar, Regina. (Dá um ou dois passos
mancando, para dentro da sala) Mas o que eu queria falar com
você –
REGINA Cuidado com esse barulho que você faz. O patrãozinho ainda está
dormindo.
REGINA Tá bem, tá bem, mas vamos logo. Eu não tenho o dia inteiro pra
ficar de rendez-vous com você.
REGINA Não quero que vejam você aqui. Anda, vamos, saia logo.
ENGSTRAND (Aproximando-se) Não saio daqui sem dar uma palavra com você.
Vou terminar o trabalho hoje à tarde lá no orfanato, volto para a
cidade no vapor da noite.
REGINA Hah!
ENGSTRAND E além disso, vai ter gente importante. Até o pastor Manders deve
vir da cidade
ENGSTRAND Pois então, é como eu disse. Não quero dar a ele a chance de falar
uma vírgula de mim.
ENGSTRAND Shh! Ficou maluca? Pra que que eu ia querer tapear o Pastor? Ele
que tem sido um homem tão bom pra mim. Mas o que eu queria
falar pra você é que estou indo de volta, amanhã à noite –
REGINA Vamos ver sim! O que? Eu? Depois de ter sido educada por uma
“lady” como a Sra Alving – tratada praticamente como se fosse da
família? Quer que eu volte com você pr’um lugar como aquele?
Tch!
ENGSTRAND Mas que inferno...! Tem sempre que contradizer seu pai, sua
vagabunda?
REGINA (Sem fôlego, sem olhar para ele) Sempre disse que eu não era sua.
REGINA Ugh!
ENGSTRAND ...ou quando sua mãe, começava a fazer uma cena, e eu tinha que
descontar. Sempre tão cheia de pose. (Imitando-a) Me deixa, me
larga, Jacob! Há anos que estou com os Alvings em Rosenvald, e
agora que ele foi condecorado pelo rei! (Rindo) Meu Deus, ele ter
sido condecorado pelo rei enquanto ela trabalhava lá, nunca saía
da cabeça dela.
REGINA Coitada da minha mãe, você com certeza, mandou ela pra cova
mais rápido.
REGINA (Sem fôlego, de costas para ele) E esta sua perna – ugh!
REGINA Estou.
REGINA (Após um instante) Pra que que você quer que eu vá pra cidade?
ENGSTRAND E precisa perguntar a um viúvo solitário pra que que ele precisa
de sua única filha?
REGINA Não me venha com histórias. Pra que que você me quer?
ENGSTRAND Não, mas desta vez, vai ver só, que o diabo me carregue se...
ENGSTRAND Sh! Sh! Tudo bem, menina, tudo bem. Mas escute só: Consegui
juntar um dinheirinho com esse trabalho aqui no orfanato.
REGINA E daí?
ENGSTRAND Daí que pensei em usar esse dinheiro pra abrir uma pensão pra
marujos.
REGINA Ugh!
ENGSTRAND Mas uma pensão de nível, sabe – não um chiqueiro imundo pra
marinheiros subalternos. Não, nada disso, mas um lugar de classe
só pros comandantes e capitães de navio, sabe como é.
REGINA Ah? É?
ENGSTRAND Sim, pois teríamos que ter outras meninas – sem dúvida. Pra
alegrar o ambiente à noite, música, dança, etc. Lembre-se que
vamos hospedar homens carentes de atenção, navegadores dos
Espectros – Henrik Ibsen 6
ENGSTRAND Se vier para a cidade comigo, vai ter todos os vestidos que quiser.
ENGSTRAND Mas estaria tão melhor guiando seu pobre pai, Regina. Sabe, eu vi
uma casinha numa ruela perto do cais; não estão pedindo muito, e
com muito pouco podemos transformar ela numa segunda casa
para os homens do mar.
REGINA Mas não quero ir com você. Não quero nada com você. E vá
embora agora!
ENGSTRAND Mas não ficaria comigo muito tempo, minha querida – minha
sorte não seria tanta – se souber jogar direitinho suas cartas. Veja
como estes últimos anos fizeram de você uma moça tão bonita.
REGINA E daí?
REGINA Não vou me casar com esse tipo de homem. Marinheiros não têm
o menor savoir vivre.
Espectros – Henrik Ibsen 7
REGINA Não sei o que eles têm. Não vou me casar com um marinheiro.
REGINA Experimente falar de novo assim da minha mãe. Vai ver como
você apanha. Saia daqui. Já disse! (Ela o conduz para a porta do
jardim) E não faça barulho, o patrãozinho...
ENGSTRAND ...Está dormindo, já sei! Tão estranho o jeito como fala do menino
Alving. (Suavemente) Aha! não vai me dizer que é ele, vai?
ENGSTRAND (Dirigindo-se para a direita) Tudo bem, tudo bem! Fale com ele
quando ele chegar, ele vai dizer o dever de uma filha pro seu pai.
Porque eu sou seu pai, você sabe; está registrado no cartório.
Ele sai pela porta que REGINA abriu para ele. Ela se olha no
reflexo da vidraça. Abana-se com o lenço e ajeita o vestido,
depois se põe a ajeitar as flores.
O PASTOR MANDERS, usando capa, guarda-chuva, e trazendo
uma pequena bolsa de viagem, entra pela porta do jardim.
Ela sai com as coisas dele. PASTOR MANDERS coloca sua bolsa
e seu chapéu sobre uma cadeira. REGINA volta.
MANDERS Como é bom estar num lugar seco! Tudo bem por aqui?
MANDERS Muito trabalho, deve ter, pra deixar tudo pronto para amanhã.
REGINA Ah sim, ela acabou de subir com uma xícara de chocolate para o
patrãozinho.
MANDERS Está ótimo, obrigado. (Olhando para ela) Sabe Srta Engstrand,
acho que cresceu um bocado desde a última vez que a vi.
Pequena Pausa.
MANDERS Oh, não há pressa, menina, obrigado. Mas, diga-me Regina, seu
pai tem se dado bem, por aqui?
REGINA Ah, foi? Ele fica tão contente quando tem a chance de conversar
com o senhor.
MANDERS E você, como boa filha, vai sempre vê-lo e conversar com ele?
MANDERS Sabe que seu pai tem lá suas fraquezas, precisa de uma alma que
o guie.
MANDERS Ele se sente mais seguro quando tem alguém por perto em quem
possa se apoiar. Foi ele mesmo quem admitiu isso, nesta ultima
vez que estivemos juntos.
REGINA Ele me falou qualquer coisa a esse respeito. Mas não sei se a Sra
Alving estaria disposta a abrir mão de mim; ainda mais agora com
a inauguração do orfanato. Eu também sentiria muito em deixar a
Sra Alving, ela foi sempre tão boa para mim.
MANDERS Mas a obrigação de uma filha, minha criança – Claro, que sem o
consentimento de sua patroa...
REGINA E não sei se ficaria bem para mim, na minha idade, cuidar de um
homem solteiro.
REGINA É, pode ser, mas mesmo assim – Se pelo menos ele fosse um
cavalheiro de verdade, numa boa casa e –
REGINA Aí sim eu iria de boa vontade para a cidade. Sinto-me tão sozinha
aqui; ninguém sabe melhor que o senhor o como dói ser sozinho
no mundo. Disposição e vontade não me faltam, lhe garanto. O
senhor por acaso não sabe de nenhum lugar?
REGINA É, porque aí –
MANDERS Poderia fazer o favor de avisar a Sra Alving que estou aqui?
SRA ALVING (Estendendo-lhe a mão) Ah, pastor, fico tão contente que tenha
vindo.
SRA ALVING Não sei como lhe agradecer por ter chegado tão cedo, pois assim,
podemos discutir os negócios antes mesmo do almoço. Mas onde
está sua bagagem?
MANDERS Não, não, agradeço muito, Sra Alving, mas... é tão prático ficar lá
embaixo, especialmente para pegar o barco.
SRA ALVING Bem, o senhor faz como preferir. De qualquer forma, um casal de
velhos como nós...
MANDERS Ora Sra Alving, o que é isso! Bem, mas pelo menos vejo que a
senhora está de ótimo humor hoje. Também, não é pra menos,
com a festa de amanhã, e Oswald de volta.
SRA ALVING Então, não é mesmo uma grande sorte para mim? Já faz mais de
dois anos que ele esteve em casa pela última vez. E agora,
prometeu ficar o inverno inteiro comigo.
Espectros – Henrik Ibsen 11
SRA ALVING Pode ser, mas aqui ele tem a mim. E meu menino – ainda tem no
coração um lugarzinho para sua velha mãe.
MANDERS Teria sido lamentável se por ter deixado sua casa e ter-se dedicado
exclusivamente à arte, seus sentimentos tivessem se
embrutecidos.
SRA ALVING Ah, claro, mas quanto a isso não há o que temer. Vai ser curioso
ver se o senhor o reconhece. Ele já vai descer, está só
descansando um pouco no sofá, lá de cima. Mas sente-se por
favor, meu querido pastor.
MANDERS Ótimo. Bom, Deixe-me lhe mostrar – (Vai até a cadeira onde está
sua bolsa e tira um maço de papéis. Senta-se à mesa e tenta
encontrar um local para dispor os documentos) Bem, antes de
mais nada, precisamos... (Interrompendo-se) Sra Alving, como
estes livros vieram parar aqui?
SRA ALVING Eles de certa forma explicam, ou confirmam – muitas coisas que
eu tenho pensado; e o que é mais incrível, pastor, é que não há
nada verdadeiramente novo nestes livros, nada que a maioria das
pessoas já não saiba. A questão é que quase ninguém se dá conta
da existência destas coisas, ou então, fingem que elas não
existem.
MANDERS Mas não aqui neste país. Não aqui entre nós.
SRA ALVING Afinal, pastor, o que o senhor tem contra estes livros?
MANDERS O que tenho contra? Ora a senhora acha que eu gasto meu tempo
lendo isto?
SRA ALVING Está dizendo então que não conhece o que condena?
MANDERS Minha cara senhora, muitas vezes temos que confiar na opinião
dos outros. Assim é a vida, e é assim que deve ser. Do contrário,
como a sociedade continuaria a existir?
MANDERS De qualquer forma, não ignoro que deva haver um certo fascínio
por esses trabalhos. E não posso culpar a senhora por querer
conhecer estas correntes de pensamento que predominam
atualmente no estrangeiro – por onde a senhora tem permitido que
seu filho ande, já há algum tempo. Mas...
MANDERS (Baixando o tom de voz) Contanto que não se fale por aí.
Ninguém é obrigado a prestar contas do que pensa, ou do que lê
dentro de suas quatro paredes.
SRA ALVING Estou de inteiro acordo com o senhor, pastor. Mas era mesmo
sobre o orfanato que –
SRA ALVING Muito obrigada, mas para mim, seria mais conveniente que o
senhor continuasse a se ocupar desta parte.
SRA ALVING O senhor, conhece todas estas coisas melhor do que ninguém,
pastor Manders.
MANDERS Pode ficar descansada, vou manter meus olhos sempre bem
abertos em relação a isso. Mas ainda há uma coisa que já há
algum tempo venho pensando em discutir com a senhora,
MANDERS Mas antes, acho que precisamos analisar melhor este assunto.
SRA ALVING Sempre fiz seguro dos meus bens – propriedades, mobiliário, o
rebanho, as colheitas.
Espectros – Henrik Ibsen 14
MANDERS Sim mas estes são seus próprios bens, também faço o mesmo com
os meus. Mas no caso do orfanato, a situação é diferente: é algo
que se destina a um propósito de ordem superior.
SRA ALVING O que quer dizer exatamente com pessoas de fato influentes?
MANDERS Bem, estou pensando naquelas pessoas daqui, que ocupam cargos
importantes e que certamente não pode-se deixar de considerar o
peso de suas opiniões.
MANDERS Pois é, Sra Alving. A cidade também está cheia de gente que
reagiria da mesma forma. Todos os meus colegas, por exemplo.
Começariam logo a dizer que nem eu nem a senhora confiamos
na providência divina.
SRA ALVING Mas meu caro pastor, o senhor mesmo deve saber –
MANDERS E sem falar nos ataques que certos jornais e publicações fariam –
MANDERS Não, infelizmente isso é a única coisa que se pode fazer. Não
podemos nos expor a interpretações errôneas e nem temos o
direito de ofender a opinião pública.
MANDERS Realmente acredito, que uma instituição como esta, será guiada
pela sorte e que poderá contar sempre com a proteção do Senhor.
SRA ALVING Estranho o senhor ter mencionado este assunto, justamente hoje –
MANDERS Verdade?
SRA ALVING Foi uma coisa à toa. Serragens pegaram fogo, na carpintaria.
Espectros – Henrik Ibsen 16
MANDERS Ele mesmo. E de fato não se pode negar que ele trabalha bem.
MANDERS Pois é, este o seu problema. Mas ele me disse que bebe por culpa
do defeito que tem na perna. Da última vez que foi me ver na
cidade, fiquei realmente comovido. Ele me agradeceu tão
sinceramente por eu ter-lhe arranjado este trabalho aqui no
orfanato, por estar tão perto de Regina.
MANDERS Mas ele me disse que fala com ela todos os dias.
MANDERS Disse-me que precisa muito de alguém que chame sua atenção no
momento em que a tentação se aproxima. O que acho que Jacob
Engstrand tem de melhor, é sua capacidade de reconhecer e
condenar suas próprias fraquezas. Na última vez que
conversamos... Sra Alving, se fosse realmente necessário que
Regina voltasse a viver com ele –
SRA ALVING Claro que impediria. Além do mais, Regina já faz parte do quadro
de funcionários do orfanato.
SRA ALVING Sei exatamente que tipo de pai ele tem sido. Não, eu não posso
admitir que ela volte a viver com ele.
SRA ALVING (Mais controlada) Seja como for. Eu trouxe Regina para esta casa
e é aqui que ela deve ficar. (Ouvindo alguma coisa) Ssh! Não
Espectros – Henrik Ibsen 17
SRA ALVING Ainda agora, Oswald estava se lembrando da época que o senhor
era absolutamente contra a idéia dele ser pintor.
MANDERS Ótimo. Mas não quero que pense que condeno a vida artística em
geral. Tenho certeza que existem pessoas que mantém suas almas
íntegras mesmo nestes ambientes. Como em qualquer outra
profissão.
SRA ALVING (Muito feliz) Pois eu conheço alguém que mantém a alma, e o
corpo, perfeitamente imaculados. Basta olhar para ele, pastor.
OSWALD (Andando pela sala) Está bem, está bem, minha mãe, mas vamos
parar de falar nisso!
MANDERS Com certeza, a fim de repor suas energias para uma nova e
grandiosa fase em sua carreira.
SRA ALVING Nó máximo uma meia hora. Ainda bem que apetite não lhe falta.
MANDERS Quando Oswald entrou por aquela porta, fumando esse cachimbo,
eu poderia jurar que estava diante de seu pai, em carne e osso.
OSWALD Verdade?
MANDERS Sim, mas há qualquer coisa nos cantos de sua boca, talvez os
lábios, que me lembram perfeitamente de Alving. Ainda mais
agora fumando o cachimbo.
SRA ALVING Não, eu não acho. Oswald tem uma boca eclesiástica.
SRA ALVING Apague este cachimbo, meu filho. Não gosto que se fume aqui na
sala.
OSWALD Sim, eu era bem pequeno. lembro de uma noite que fui até o
quarto do papai e ele estava de ótimo humor –
OSWALD Não, não foi sonho não, mãe. A senhora não lembra que entrou
correndo me tirou dali e me levou pro quarto dos brinquedos, e
foi aí que eu passei realmente mal. Depois ouvi a senhora
chorando. O papai sempre fazia esse tipo de brincadeira?
MANDERS Quando jovem, seu pai era um homem tão cheio de alegria.
OSWALD O que não lhe impediu de fazer tantas coisas importantes no seu
curto tempo de vida. Ele morreu tão novo.
SRA ALVING E o melhor de tudo é que ele vai ficar comigo por tanto tempo.
MANDERS Pois então, vai mesmo passar o inverno todo por aqui?
OSWALD Não sei ainda quanto tempo vou ficar, pastor. Só sei que é tão
bom estar de volta em minha casa.
SRA ALVING Não, de jeito nenhum! A melhor coisa para um rapaz jovem e
saudável, especialmente se for filho único, é ir viver um pouco
longe do pai e da mãe, pra não virar um desses insuportáveis
meninos mimados.
MANDERS Bem, não sei se concordo com a senhora, mas para mim, pais e
filhos não devem ficar afastados.
Espectros – Henrik Ibsen 20
MANDERS Olhe bem para seu filho, acho que podemos falar isso diante dele,
qual a vantagem dele ter vivido tanto tempo fora de casa? Com
vinte seis ou vinte e sete anos, não teve ainda a oportunidade de
saber exatamente como é a vida em família.
OSWALD Ah, me perdoe, pastor, mas quanto a isso o senhor está totalmente
enganado.
OSWALD Sim.
MANDERS Pois então. Acredito que a maioria destes jovens não tenha
condições de montar uma casa e sustentar uma família.
OSWALD A maioria deles não teria dinheiro nem pra se casar, Pastor.
OSWALD Ainda assim, pode-se ter uma casa. E muitos têm – às vezes até
bem agradáveis e com algum conforto.
OSWALD Então?
OSWALD Não vejo nada de ilícito no fato dessas pessoas viverem juntas.
OSWALD E qual seria o remédio? Um jovem artista, uma moça sem posses
– casamentos custam fortunas hoje em dia. O que deveriam fazer?
MANDERS O que deveriam fazer? Pois muito bem, Sr Alving vou lhe dizer o
que deveriam fazer. Em primeiro lugar deveriam ser capazes de se
manter afastados um do outro, isso é o que deveriam fazer.
OSWALD Este seu conselho não serviria muito para um casal de jovens
ardentemente apaixonados.
OSWALD Deixe-me lhe dizer uma coisa, pastor. Eu costumava passar meus
domingos num desses “lares ilícitos”.
OSWALD Não é o dia que temos para nós mesmos? Pois jamais ouvi uma
palavra condenável, jamais presenciei qualquer ato que se
pudesse chamar de imoral. E quer saber quando estive em contato
direto com a imoralidade no meio artístico?
MANDERS Pois estejam certos que muitos deles são verdadeiros “doutores”
no assunto. (Com as mãos na cabeça) Não suporto ouvir esses
hipócritas falando mal da livre e fantástica vida que se leva lá
fora.
SRA ALVING Não deve se exaltar com isso, Oswald. Não lhe faz nada bem.
OSWALD Sim, mãe. Não me faz bem. Eu sei. É que se não fosse este...
maldito cansaço. Vou sair para dar uma volta antes do almoço. Me
desculpe, pastor, mas sei que nunca vamos concordar em certos
assuntos. Eu tinha que falar. (Sai pela porta à direita).
MANDERS É, tem razão. Foi nisso o que deu. (SRA ALVING olha para ele
sem dizer nada. Ele caminha pela sala) Ainda o chamei de filho
pródigo... tenho pena dele. Muita pena! (SRA ALVING continua a
olhá-lo). O que é que a senhora tem a dizer agora?
SRA ALVING Foi vivendo tanto tempo aqui isolada que cheguei a ter os
mesmos tipos de pensamentos. Só que nunca tive coragem de
transformá-los em palavras. Mas graças a Deus, meu filho pode
agora falar por mim.
MANDERS Tenho pena da senhora. Lamento, Sra Alving, mas temos que ter
uma conversa muito séria. Peço-lhe que agora, não olhe para mim
como o homem de seus negócios, nem como seu conselheiro, ou
como o melhor amigo de seu marido. Quero falar-lhe como padre,
exatamente. Aquele que esteve presente no momento mais difícil
de sua vida.
MANDERS Antes de mais nada, deixe-me refrescar sua memória. Alias não
poderia haver momento mais adequado – amanhã será o décimo
aniversário da morte de seu marido. Amanhã um monumento será
inaugurado em sua honra. Amanhã eu terei que fazer um discurso
para toda a comunidade. Mas hoje, é com a senhora que eu
preciso falar.
SRA ALVING E o senhor não se lembra do inferno que foi este nosso primeiro
ano de casamento?
SRA ALVING Ora, o senhor sabe perfeitamente bem o tipo de vida que meu
marido levava naquela época, os excessos que cometia.
MANDERS Sei apenas dos rumores que corriam por aí – e se tais coisas
fossem verdade, eu seria o primeiro a condenar este tipo de
conduta num jovem. Mas não cabe à mulher julgar seu marido.
Quando um poder maior, deita o peso de sua cruz sobre dois seres
humanos, seu dever deveria ter sido suportar com paciência este
peso. Mas ao invés disso não, a senhora se rebelou contra a cruz
deste poder, abandonando o pecador no momento em que ele mais
precisava de sua ajuda. Fugiu, arriscando a honra de seu próprio
nome, e o que é pior, envolvendo a reputação de outras pessoas
no mesmo emaranhado.
SRA ALVING Como assim, outras pessoas? O senhor quer dizer, outra pessoa.
MANDERS Em sua vida inteira, a senhora sempre foi guiada por sua extrema
vontade própria. Toda sua energia era direcionada à indisciplina e
irreverência. Nunca tolerou a menor restrição aos seus atos. Sem
o menor escrúpulo a senhora se evadia de tudo que fosse difícil –
como se livrasse de um fardo pesado que pudesse tirar dos
ombros quando tivesse vontade. Quando não lhe servia mais ser
esposa, resolveu abandonar seu marido. Quando achou que
começava a ficar tedioso ser mãe, mandou seu filho viver entre
estranhos.
MANDERS É sim. Basta olhar bem para o jeito como ele voltou. Pense bem,
Sra Alving, no grande mal que fez a seu marido – aquele
monumento lá embaixo é a prova disso. Admita também o mal
que fez a seu filho. Talvez ainda tenha tempo de desviá-lo do
pecado. Junte os cacos de sua vida e tente salvar em Oswald, o
que ainda resta ser salvo. Porque na verdade, Sra Alving,
(Levantando o dedo) a senhora falhou como mãe, e sinto ser meu
dever dizer isso à senhora.
Pausa.
SRA ALVING (Lentamente, com absoluto controle) O senhor disse o que quis,
pastor Manders, e amanhã vai fazer um discurso em memória de
meu marido.. Embora eu não pretenda fazer discurso algum,
gostaria de falar com o senhor exatamente da mesma forma como
acabou de falar comigo.
SRA ALVING Tudo que falou a meu respeito, e a respeito de meu marido, e
sobre nossa vida juntos, depois que me fez voltar para aquilo que
o senhor chama de caminho do dever – na verdade não sabe
absolutamente nada sobre os anos que se seguiram. Desde aquele
dia, o senhor que tinha sido nosso melhor amigo, parou de por os
pés em nossa casa.
Espectros – Henrik Ibsen 25
SRA ALVING Sim, mas enquanto meu marido esteve vivo, o senhor nem por
uma única vez veio até aqui nos ver. Foi só quando passou a
cuidar das finanças do orfanato que foi obrigado a vir me visitar.
SRA ALVING No respeito que devo à roupa que está usando, não é isso? Sou
uma esposa que fugiu, não se deve lá muito respeito a mulheres
levianas assim...
SRA ALVING Talvez seja, mas o que eu queria dizer, é que quando julga minha
vida de casada, baseia-se apenas em fatos que ouviu dizer.
SRA ALVING Agora, Sr Manders, o senhor vai ouvir a verdade. Prometi a mim
mesma um dia contar para o senhor, apenas para o senhor.
SRA ALVING A verdade é que meu marido continuou a ser o mesmo homem
dissoluto que sempre foi. Até seus últimos dias.
SRA ALVING Após dezenove anos de casamento ele continuava tão promíscuo,
pelo menos em seus desejos, quanto no dia em que o senhor nos
casou.
MANDERS Estou me sentindo meio tonto. Quer dizer que toda sua vida de
casada – todos os anos ao lado de seu marido não eram mais que
um véu sobre um abismo?
SRA ALVING Esta foi minha luta diária. depois que Oswald nasceu, achei que
talvez ele se regenerasse, um pouco, mas não durou. Então foi
preciso lutar em dobro – uma batalha desesperada para que
ninguém pudesse supor que tipo de homem era o pai do meu
filho. O senhor conhecia bem o charme que Alving tinha –
ninguém podia supor que por trás de toda aquela simpatia,
daquele constante sorriso... Mas finalmente, meu caro pastor,
aconteceu algo abominável, que o senhor precisa agora saber.
SRA ALVING Decidi que ia aceitar tudo, embora soubesse da vida desregrada
que ele levava fora de casa... Mas quando o escândalo se instalou,
aqui dentro destas paredes –
SRA ALVING É, aqui dentro desta própria casa. (Ela aponta para a porta de dá
para a sala de jantar) Foi ali, na sala de jantar, onde aconteceu
pela primeira vez. Eu estava fazendo qualquer coisa por aqui, a
porta entreaberta. Eu ouvi nossa empregada entrar do jardim, com
o regador vazio, ela tinha ido molhar as flores.
MANDERS Sim?
SRA ALVING Alguns minutos depois ouvi meu marido entrar também. Ouvi ele
falar alguma coisa baixinho para ela, depois eu ouvi (um pequeno
sorriso) ouço ainda como se fosse ontem, foi tão horrível, e ao
mesmo tempo tão ridículo – ouvir minha própria criada dizendo –
“me largue, senhor, me solte!”
MANDERS Não deve ter passado de uma brincadeira leviana, Sra Alving.
Apenas uma brincadeira, acredite em mim.
SRA ALVING Sei exatamente no que devo acreditar, pastor. Meu marido seduziu
nossa empregada, e sua brincadeira leviana, teve sérias
conseqüências.
MANDERS (Como que petrificado) E tudo aqui dentro, dentro desta casa?
SRA ALVING Suportei muita coisa aqui dentro. Pra fazer com que ele ficasse
em casa a noite e de madrugada, tive que me forçar a acompanhá-
lo em suas solitárias bebedeiras, fingir que não ouvia as orgias em
seu quarto. Fui obrigada a me sentar com ele e brindar e beber, e
ouvir sua conversa estúpida e monótona. Tínhamos que lutar
corpo a corpo até que eu o conseguisse colocar na cama.
Espectros – Henrik Ibsen 27
SRA ALVING E suportei tudo pelo meu filho... até que... com minha criada foi
humilhante demais. Então disse para mim mesma, “chega”!
Tomei o controle da casa – controle absoluto, sobre ele e todo o
resto. Ele não tinha a menor chance, já que eu tinha uma arma em
meu favor. Foi aí que mandei Oswald viajar. Na época ainda com
sete anos, já começava a ouvir coisas, a fazer perguntas como
toda criança. Achei que se permanecesse na atmosfera doente
desta casa, acabaria também envenenado... e isso, pastor, eu não
iria admitir. Foi por isso que o mandei para longe. Espero que
agora o senhor entenda porque nunca permiti que voltasse
enquanto seu pai estivesse vivo. Ninguém é capaz de imaginar o
que isto me custou.
SRA ALVING Não teria sobrevivido se não tivesse meu trabalho. por isso
trabalhei tanto. Todas as melhorias na propriedade, todos os
equipamentos modernos pelos quais ele recebia tantos elogios – o
senhor acha que ele tinha alguma energia de levantar um dedo
para fazer qualquer coisa? – passava o dia inteiro deitado no sofá
lendo almanaques. Não pastor, era eu quem tentava despertar nele
alguma força de vontade, quando não estava bêbado. Eu
carregava tudo nas costas quando ele mergulhava, como de
hábito, no marasmo e na desordem.
SRA ALVING Para o senhor ver do que é capaz uma consciência culpada.
SRA ALVING Sempre achei que a verdade, pudesse um dia vir à tona. E talvez
todos acreditassem nela. Por isso o orfanato serviria para encobrir
e acabar de uma vez por todas com qualquer dúvida.
SRA ALVING Mas ainda há outro motivo. Eu não queria que Oswald herdasse
coisa alguma de seu pai.
SRA ALVING Foi por este preço que me vendi. Não quero que este dinheiro
fique para Oswald. O que quer meu filho venha a herdar deverá
vir de mim, e de mais ninguém.
OSWALD É. O que se pode fazer lá fora, com esta chuva que não pára
nunca? Espero que o almoço já esteja pronto – isto sim, seria
ótimo!
MANDERS É–
REGINA Bien, muito bem, senhor Oswald. (Sai para a sala de jantar).
MANDERS (Fala baixo para não ser ouvido na sala de jantar) Claro, não
podemos provocar um escândalo.
SRA ALVING Depois esta enorme farsa vai terminar. De amanhã em diante vou
me sentir livre, como se meu marido jamais tivesse vivido aqui
nesta casa. Não vai existir mais ninguém aqui, além do meu filho
e de sua mãe.
Espectros – Henrik Ibsen 29
SRA ALVING Sim, pastor. Agora vamos, nem mais uma palavra. (Toma o pastor
pelo braço e vai conduzindo-o, insegura para a sala de jantar).
Cai o pano.
ATO 2
Espectros – Henrik Ibsen 30
OSWALD (De fora) Não, acho que vou dar uma volta.
SRA ALVING Vá sim, o tempo parece estar melhorando. (Ela fecha a porta da
sala de jantar, depois vai até o hall e chama) Regina!
SRA ALVING Vá até a lavanderia ver se não estão precisando de ajuda com os
preparativos.
MANDERS Tem certeza que ele não vai ouvir nossa conversa aqui?
SRA ALVING Com a porta fechada não. E depois, ele acabou de descer.
MANDERS Ainda estou abalado. Nem sei como consegui engolir o almoço.
SRA ALVING (Andando de um lado para o outro, sem conseguir controlar sua
agitação) Nem eu, mas o que podemos fazer?
MANDERS Pois é, o que podemos fazer. Realmente não sei. Nunca passei por
uma situação dessa.
MANDERS Que o céu nos proteja. Ainda assim é uma situação terrivelmente
embaraçosa.
SRA ALVING Ora deve ser apenas uma diversão para Oswald.
MANDERS Como disse, não tenho experiência com essas coisas. Mas o que
eu acho...
SRA ALVING Ela tem que sair desta casa – imediatamente. Isso é definitivo.
MANDERS Para o seu – mas Engstrand não é – ? Meu Deus, Sra Alving, não
é possível! A senhora não pode estar certa.
SRA ALVING Mandamos logo Joana embora com um bom dinheiro pra que não
abrisse a boca. Quando chegou à cidade, ela se arranjou sozinha.
Voltou a procurar Engstrand com quem tinha namorado no
passado – mostrou-lhe o dinheiro, disse que tinha conseguido com
um estrangeiro qualquer que havia atracado no porto, com seu
iate, naquele verão. Então os dois se casaram. Pois não foi você
mesmo quem fez o casamento.
MANDERS Uma miséria de trezentos dólares pra se casar com uma mulher
perdida.
SRA ALVING O que diz então de mim, pastor. Casada com um homem perdido.
MANDERS Pelo amor de Deus, Sra Alving, o que quer dizer com homem
perdido?
SRA ALVING Ou o senhor acha que quando subi ao altar com Alving ele era
menos sujo que Joana ao se casar com Engstrand?
SRA ALVING Não, pastor, a diferença não era tão grande assim. Claro que o
preço... a miséria de trezentos dólares e uma enorme fortuna.
MANDERS Não pode comparar os dois casos – a senhora seguia o que seu
coração mandava, tinha a aprovação de sua família.
SRA ALVING (Sem olhá-lo) Achava que você sabia para onde meu coração
queria ir.
SRA ALVING De qualquer forma, não agi conforme meu coração mandava.
SRA ALVING É foram elas que arranjaram tudo. Deixaram bem claro para mim
a completa loucura que seria recusar uma oferta como aquela que
o Capitão Alving fazia. Se minha mãe pudesse me ver agora, ver
no que aquelas promessas douradas se transformaram.
SRA ALVING (Na janela) Ora a lei e a ordem! Sabe que às vezes fico pensando,
será que não são elas as culpadas pelas desgraças do mundo?
SRA ALVING Talvez. Mas a verdade é que estou farta de tantas mentiras e
constrangimentos. Preciso de alguma forma encontrar um meio de
me libertar disso.
SRA ALVING (Batendo no vidro) Não deveria ter escondido a verdade sobre a
vida de meu marido. Mas naquela época não tinha coragem para
outra coisa. Eu era covarde demais.
MANDERS Covarde?
SRA ALVING – e depois deveria ter contado a ele tudo o que acabei de contar ao
senhor, palavra por palavra.
SRA ALVING Eu sei, eu sei exatamente como está se sentindo – quando penso
nisso, fico chocada comigo mesma. (Saindo da janela) Como
posso ser tão covarde!
SRA ALVING Sim mas não devemos generalizar as coisas, pastor. A questão é se
Oswald deveria amar e honrar o Capitão Alving.
MANDERS Em seu coração, Sra Alving não há algo que lhe impeça de
destruir os ideais de seu filho?
MANDERS Não despreze os ideais, Sra Alving. Eles podem se vingar de uma
forma cruel. Veja o caso de Oswald, por exemplo. Tenho medo
que seus ideais não sejam tão sólidos, mas percebo que seu pai se
transformou numa espécie de ideal para ele.
SRA ALVING Sim, graças a meu compromisso com o dever, venho mentindo
para o meu filho há anos. Covarde. Como tenho sido covarde.
MANDERS Foi capaz de criar na mente de seu filho uma bela ilusão, Sra
Alving, deveria ter orgulho disso.
SRA ALVING Será que é mesmo assim tão bela? De qualquer forma não vou
deixar que nada de mal aconteça a Regina. Não quero que Oswald
venha a arruinar a vida dessa menina.
Espectros – Henrik Ibsen 34
SRA ALVING A menos que tivesse certeza de seus sentimentos, se lhe trouxesse
felicidade –
SRA ALVING Mas acho que não, não acho que Regina seja a mulher ideal.
SRA ALVING Se não fosse tão covarde eu mesma diria a ele: “Case-se com ela,
ou faça como quiser, contanto que não haja mais mentiras.”
MANDERS Deve estar pensando nos casos em que – sim, eu sei que em
muitas famílias a vida não é tão pura como deveria ser. A senhora
só pode estar se referindo a situações nas quais não se tem
certeza. Mas neste nosso caso, como mãe, deveria ser a primeira a
impedir que seu filho –
SRA ALVING Mas não vou permitir, por nada nesse mundo – é justamente isso
que estou querendo dizer.
MANDERS Não vai permitir por covardia, é o que quer dizer. Se não fosse
covarde – Meu Deus, uma união revoltante!
SRA ALVING Mas não é de uniões deste tipo que todos nós descendemos,
afinal? E depois, pastor Manders, quem foi que arrumou o mundo
desta maneira?
SRA ALVING Vou lhe dizer o que sinto, pastor. Sinto-me frágil e ameaçada por
fantasmas que me acompanham, dos quais não consigo me livrar.
SRA ALVING Espectros! Quando ouvi Regina e Oswald lá dentro, era como se
estivesse vendo fantasmas. Tenho pensado em todos nós como
espectros, pastor Manders. Não é apenas o que herdamos de
nossos pais que vive dentro de nós, mas toda uma série de velhas
idéias mortas, de crenças mortas, coisas assim. Que na verdade
estão mais enraizadas do que vivas dentro da gente. E nunca
podemos nos livrar destas raízes. Quando começo a ler um jornal,
tenho a impressão de ver espectros brilhando entre as linhas.
Nossos campos, estão coalhados de espectros – milhares, como
grãos de areia. E todos nós, tão desgraçadamente condenados a ter
medo da luz.
MANDERS Pois estes são os frutos de suas leituras – belos frutos, Sra Alving!
Livros abomináveis, subversivos, o tal do livre pensamento.
SRA ALVING Não pastor, na verdade foi o senhor quem me levou a pensar
assim, e sinto-me extremamente grata.
MANDERS Eu?
SRA ALVING Sim. Quando me fez voltar para aquilo que chama de caminho da
obediência e do dever, quando me apontava como certo e limpo,
justamente aquilo contra o que minha alma se revoltava com um
nojo indescritível – bem, foi quando comecei a examinar melhor o
conteúdo dos seus ensinamentos. Não foi fácil desfazer o primeiro
ponto, mas quando consegui, a costura inteira se abriu e percebi
que tudo não passava de um simples alinhavo.
MANDERS Não, Helena. Esta foi minha maior vitória. Um triunfo sobre mim
mesmo.
MANDERS Quando você fugiu e veio chorando pra mim: “Aqui estou, fique
comigo” e eu disse: “Volte pra casa mulher, para seu legítimo
marido” – chama isso de crime?
MANDERS Eu jamais – nem nos meus sonhos mais íntimos – pensei em você
a não ser como mulher de outro homem.
Espectros – Henrik Ibsen 36
MANDERS Helena!
SRA ALVING (Mudando de assunto) Bem, bem, bem, não falemos mais sobre
os velhos tempos. O senhor vive com seus compromissos e seus
comitês, e eu vivo com meus fantasmas, dentro e fora de mim.
MANDERS Acho que pelo menos posso ajudá-la a se livrar dos que a
rodeiam. Afinal, depois de tudo que ouvi, não posso, em sã
consciência, permitir que uma jovem inexperiente continue a
viver nesta casa.
MANDERS Sim, claro, esta seria a melhor opção, sob qualquer ponto de vista.
Regina já está na idade em que – não entendo bem esse tipo de
coisas mas...
Batidas na porta.
ENGSTRAND – bem, como não tinha nenhuma criada para abrir a porta, eu
tomei a liberdade de bater.
ENGSTRAND Não senhora, desculpe, mas é com o Pastor que eu queria ter uma
palavrinha.
MANDERS Você?
ENGSTRAND Sim mas só de vez em quando... uma simples oração. Mas como
um homem comum, sei que não tenho o dom da coisa. Aí pensei
que, já que o pastor Manders está aqui...
MANDERS Engstrand, tenho uma pergunta a lhe fazer primeiro. Você acha
que está em condições perfeitas para essa reunião? Está com sua
consciência limpa?
MANDERS É justamente sobre ela que devemos falar. Por favor responda a
minha pergunta.
MANDERS Esperamos que não. Mas quero saber é de sua posição em relação
a Regina. Você é tido como o pai dela. Então?
ENGSTRAND (Incerto) Bem, o senhor sabe, Pastor.... o que houve entre mim e a
pobre coitada da Joana.
MANDERS Pare de distorcer a verdade. Sua falecida esposa contou tudo a Sra
Alving antes de deixar a casa.
ENGSTRAND Não exatamente, pois não tínhamos uma, mas ela jurou por Deus.
MANDERS E todos estes anos você tem me escondido a verdade. Logo a mim
que sempre depositei em você toda confiança.
ENGSTRAND Mas como eu ia saber que ela iria contar tudo. Se o senhor se
colocar no lugar de Joana –
MANDERS Eu?
Espectros – Henrik Ibsen 39
MANDERS Naturalmente.
ENGSTRAND E ele não deve se manter fiel a sua palavra e a sua honra?
ENGSTRAND Sabe que não sou do tipo que sai por aí contando vantagens, mas
o que eu queria dizer, pastor, é que quando ela chegou e me
confessou chorando, arruinada, me pedindo ajuda, eu não tive
como resistir.
ENGSTRAND Aí eu disse pra ela: “Esse americano sumiu mar adentro, e você
Joana, cometeu um pecado, é uma mulher condenada”. Foi, eu
disse, “mas aqui está Jacob Engstrand, de braços e pernas fortes
pra lhe amparar”. Eu disse assim em linguagem figurada, o senhor
me entende, não é pastor?
ENGSTRAND Foi assim que consegui salvá-la e fazer dela uma mulher decente,
e nunca ninguém suspeitou o que aconteceu entre ela e o
estrangeiro.
Espectros – Henrik Ibsen 40
MANDERS Isso tudo me parece muito louvável. O que não aprovo é o fato de
ter aceitado o dinheiro.
ENGSTRAND Ah, sim espere – agora me lembro. Joana tinha sim algum
dinheiro, mas eu nem quis ver. Eu disse assim pra ela: “Nem me
mostre esse dinheiro imundo, esse salário do teu pecado. Vamos
jogar essas porcarias dessas notas – ou eram moedas, não lembro
direito – na cara desse tal americano”. Foi isso mesmo que eu
disse. Mas naquela altura, pastor, ele já tinha zarpado, já estava
longe.
MANDERS Será que já estava mesmo assim tão longe, meu amigo?
ENGSTRAND Estava sim. Então Joana e eu decidimos que íamos usar o dinheiro
na educação da menina, e foi o que fizemos. Posso prestar contas
de cada centavo.
ENGSTRAND Eduquei essa menina e fui um bom marido para a pobre Joana.
Construí e sustentei um lar para elas, como manda a bíblia
sagrada. Mas nunca pensei em chegar pro senhor e me vangloriar
pelas coisas honradas que fiz na vida. Não, quando uma coisa
assim acontece com Jacob Engstrand – não que aconteça todo dia
– ele simplesmente se cala. Não Pastor, quando lhe procuro é para
confessar minhas fraquezas e minha loucura. Pois como lhe disse
ainda agora, a consciência de um homem pode ficar às vezes meio
nublada.
MANDERS Não, Engstrand, quem lhe deve pedir perdão sou eu.
Espectros – Henrik Ibsen 41
MANDERS Sim, sou eu. E o faço do fundo do coração. Perdoe-me por tê-lo
julgado mal. Gostaria que houvesse algo que eu pudesse fazer,
para demonstrar o meu sincero arrependimento e minha boa
vontade.
ENGSTRAND Por que preciso que o senhor me ajude. Com o pouco dinheiro
que economizei aqui, estou pensando em fundar um abrigo para
marinheiros na cidade.
MANDERS Sim, claro, acho que podemos conversar mais sobre isso. Seu
plano me interessa muito. Mas agora, meu caro Engstrand, quero
que desça até o orfanato, ascenda as velas e deixe o lugar bem
iluminado, eu vou em seguida e passaremos uma boa hora juntos,
dando graças ao enobrecimento de nossas almas - sim, eu agora
acho que você está em perfeitas condições para isso.
ENGSTRAND Acho que estou sim. Então, até logo, senhora, e muito obrigado.
Tome conta de Regina por mim. (Ele enxuga uma lágrima) A
filhinha da minha pobre Joana. Engraçado é como ela cresceu tão
apegada a mim. (Ele cumprimenta e sai pelo hall).
MANDERS Então o que acha dele agora, Sra Alving? A explicação que nos
deu foi bastante diferente.
MANDERS Isso nos mostra o cuidado que devemos ter ao julgar um ser
humano. Mas é tão bom descobrir que estivemos errados! O que a
senhora diz?
Espectros – Henrik Ibsen 42
MANDERS Eu?
SRA ALVING (Colocando as mãos nos ombros dele) E que gostaria de poder lhe
dar um longo abraço.
MANDERS (Rapidamente recolhendo-se) Não, não, por Deus, não faça isso!
SRA ALVING (Dá um suspiro, olha pela janela, dá uma rápida arrumada na
sala, vai para a sala de jantar, mas pára na porta com um grito
abafado) Oswald! você ainda está aí?
OSWALD Hum.
SRA ALVING (Preocupada) Oswald querido, tome cuidado com este licor. Ele
é bastante forte.
SRA ALVING Por que não vem para cá, para perto de mim?
OSWALD Então está bem, estou indo. Só mais um gole... pronto! (Entra
com um charuto aceso, fechando a porta. Um pequeno silêncio).
Para onde foi o pastor?
OSWALD Ah é, disse.
OSWALD (Uma das mãos para trás com o charuto) Mas é tão bom, mãe.
(Acariciando-a) Não imagina como é bom estar de volta, e ficar
sentado na mesa de minha mãe, na sala de minha mãe, comendo a
deliciosa comida de minha mãe.
OSWALD Com este tempo horrível... nem um único raio de sol. (Continua
andando) É horrível não conseguir trabalhar.
SRA ALVING Talvez não tenha sido uma boa idéia você ter vindo pra casa.
SRA ALVING Não me arrependeria nem um pouco de abrir mão do prazer de ter
você aqui comigo, se isso –
SRA ALVING Oswald! Como tem coragem de dizer uma coisa dessas para sua
mãe?
SRA ALVING (Dando lugar para ele) Venha, meu menino, sente-se aqui.
OSWALD (Olhando em frente) Bem é uma coisa que não consigo mais
omitir.
OSWALD (Como antes) Foi uma coisa que não consegui escrever pra
senhora, contando, mas desde que cheguei –
OSWALD Desde ontem, e hoje o dia inteiro, por mais que eu tente não
pensar nisso – não consigo.
SRA ALVING (Pálida e trêmula) Oswald, olhe para mim! Não, não, isso não é
verdade.
SRA ALVING Meu pobre filho! Como isso foi acontecer com você?
Espectros – Henrik Ibsen 45
SRA ALVING Mas você vai melhorar, meu menino, meu querido. Isso tudo é só
porque você esteve trabalhando demais – mas vai passar, você vai
ver.
OSWALD Logo depois da última vez que estive em casa. Tinha acabado de
chegar em Paris, quando comecei a sentir dores de cabeça
violentíssimas – aqui atrás, na nuca. Como se eu tivesse um aro
de ferro me apertando lentamente.
OSWALD Pensei que eram as velhas dores de cabeça que eu sentia quando
era pequeno.
OSWALD Mas não eram, logo eu percebi. Eu não conseguia mais trabalhar.
Eu tinha vontade de começar um quadro novo, mas era como se a
minha capacidade de me concentrar me abandonasse, minha força
se esvaísse. Eu não consegui formar imagens definidas, as coisas
flutuavam ao meu redor – e giravam, giravam. Ah era uma
sensação horrível. Aí fui a um médico – e ele me disse a verdade.
SRA ALVING (Sem fôlego) E o que ele quis dizer com isso?
SRA ALVING (Indo para o outro lado da sala) Os pecados dos pais...
OSWALD Bem, aí ele teve que admitir que estava indo pelo caminho errado.
Foi então que soube a verdade: eu nunca devia ter me deixado
levar por aquela vida de alegrias com meus companheiros; eu fui
além do que podia suportar. A culpa tinha sido inteiramente
minha.
OSWALD Segundo ele, não havia outra explicação possível. E o que é pior,
minha vida inteira arruinada – irreparavelmente arruinada – e tudo
por causa de minha leviandade. Tudo que eu tinha sonhado pra
mim... não podia pensar em mais nada. Não posso pensar em mais
nada. Ah, se eu pudesse voltar e começar outra vez, do início.
(Esconde o rosto no sofá. SRA ALVING torce as mãos e anda de
um lado para o outro, em silêncio, lutando contra si mesma.
Depois de um tempo, OSWALD levanta o rosto e apóia-se num
dos cotovelos) Se pelo menos fosse algo que tivesse herdado –
alguma coisa da qual eu não tivesse culpa... mas não! É tão
vergonhoso ter jogado fora minha saúde e minha felicidade – tudo
o que eu tinha – de uma forma tão banal, tão inconseqüente...
Todo o meu futuro e minha própria vida!
Espectros – Henrik Ibsen 47
SRA ALVING Não meu filhinho, não, isso não pode ser possível! (Curvando-se
sobre ele) Não é assim tão terrível quando você pensa.
SRA ALVING Oswald, você é a única coisa que importa para mim. Meu único
filho – a única pessoa que tenho no mundo.
OSWALD Oh, qualquer coisa. Será que tem alguma coisa forte e gelada?
OSWALD Por favor, mãe, não me recuse isso. Seja boazinha comigo e traga
alguma coisa que me ajude a esquecer esses pensamentos
horríveis. (A SRA ALVING toca a campainha) E essa chuva que
não pára! Parece que vão ser semanas de chuva constante, meses
a fio sem um mínimo raio de sol! Não lembro de jamais ter visto
o sol em nenhuma das vezes que vim pra casa.
OSWALD Estou sendo, mãe. (Indo até a mesa) Já lhe contei tudo.
SRA ALVING Oswald, meu querido, como posso lhe recusar qualquer coisa?
OSWALD Ssh!
REGINA (Entra com uma bandeja com meia garrafa de champanhe e dois
copos que coloca sobre a mesa) Quer que eu abra a garrafa?
REGINA sai.
OSWALD Não quer? Então tomo eu. (Enche a taça, bebe, torna a enchê-la,
senta-se)
OSWALD Não?
Espectros – Henrik Ibsen 49
SRA ALVING Acho que Regina ficou tempo demais na casa de seus pais.
Devíamos tê-la trazido para cá mais cedo.
OSWALD Sim, mas a senhora não acha que ela está encantadora? (Torna a
encher a taça)
SRA ALVING Mas mesmo assim, eu gosto muito dela, e sinto-me responsável
por ela. Não deixaria que nada de mau lhe acontecesse.
SRA ALVING Mas eu estou aqui, meu filho, pronta para lhe ajudar.
OSWALD Foi o que pensei. Por isso voltei para casa. Mas vi que não vai
adiantar, eu sei que não vai. Eu não suportaria viver aqui.
OSWALD Preciso de uma vida diferente, mãe. Por isso tenho que ir embora
– não quero que a senhora assista –
SRA ALVING Meu pobre filho! Mas Oswald, enquanto você estiver doente –
OSWALD Se fosse só pela doença, eu ficaria aqui com a senhora, pode ter
certeza disso – afinal a senhora é a melhor amiga que tenho no
mundo.
OSWALD Por favor não me pergunte. Eu não sei. Não consigo explicar.
SRA ALVING Quero que se sinta feliz, meu filho, é tudo o que eu quero. Chega
de ficar se lamentando. (Para REGINA que aparece na porta)
Mais champanhe – uma garrafa grande.
REGINA sai.
OSWALD Mãe!
SRA ALVING Acha que não sabemos viver aqui nesta casa?
OSWALD Sim, uma coisa boba, uma promessa inocente. Foi quando estive
aqui em casa, a última vez.
OSWALD Ela vivia me perguntando sobre Paris, e eu lhe contava como era.
Aí lembro que um dia, perguntei se ela não gostaria de ir a Paris.
OSWALD Aí eu percebi que ela tinha levado minha promessa a sério. Todo
esse tempo e ela não esqueceu. Inclusive começou a estudar
francês –
Espectros – Henrik Ibsen 51
OSWALD – Vi que ela era a minha salvação. Tamanha era a alegria de viver
que emanava dela.
OSWALD Sim, mas traga uma para você, Regina. (REGINA leva um susto
e dá um olhar tímido para a SRA ALVING) Então, o que está
esperando?
OSWALD (Seguindo-a com o olhar) Viu só como ela anda? Tão leve e
segura.
OSWALD Já está tudo certo, mãe. Não há mais o que discutir. (Regina volta
com uma taça de champanhe vazia que fica segurando) Sente-se,
Regina.
SRA ALVING Sente-se. (REGINA senta-se numa cadeira perto da sala de jantar
ainda segurando a taça vazia) Oswald, mas o que queria dizer
com alegria de viver?
OSWALD A alegria de viver, minha mãe – é uma coisa da qual não se tem
noção nesse país. Nunca senti por aqui.
OSWALD Nem quando estou em casa. Mas acho que não entenderia o que
eu quero dizer.
SRA ALVING Um abismo, é – e nós fazemos de tudo para que ele se torne cada
vez mais profundo.
SRA ALVING (Olhando-o com firmeza) É isso que acha que pode acontecer?
OSWALD Tenho certeza. Por mais que se tente, a vida que se leva aqui
jamais será igual a que se leva lá fora.
SRA ALVING (Que ouviu com interesse, levanta-se, com os olhos brilhando
pela conclusão) Agora vejo com clareza a seqüência das coisas.
SRA ALVING Estou vendo pela primeira vez e sinto-me capaz de falar.
SRA ALVING Não, fique. Agora eu posso falar – agora você vai ouvir tudo, e
então vai poder fazer sua escolha. Oswald! Regina!
MANDERS (Vindo do hall) Bem, que hora mais edificante a que acabamos de
passar lá no orfanato.
MANDERS (Só agora percebendo a presença dela) Ora – você está aí! Com
uma taça na mão?
SRA ALVING Isso não vai acontecer. Porque agora eu posso contar a verdade.
OSWALD (Indo para outra janela) O que é isso, que clarão é esse?
OSWALD Meu chapéu, onde está? O que importa! O orfanato de papai! (Ele
sai correndo para o jardim).
MANDERS Que horror! Sra Alving, esse incêndio é um castigo a este lar
corrompido.
MANDERS (Juntando as mãos) E não tinha seguro. (Ele vai atrás delas).
Cai o pano.
Espectros – Henrik Ibsen 55
ATO 3
A mesma sala. Todas as portas abertas; o lampião continua aceso sobre a mesa. Está
escuro lá fora, exceto por uma pequena claridade no fundo à esquerda.
SRA ALVING, usando um grande xale sobre a cabeça, está no hall envidraçado
olhando para fora. REGINA, também de xale, olhando para fora
um pouco atrás dela.
SRA ALVING Por que Oswald não volta? Não há mais nada a salvar.
SRA ALVING Pode deixar. Ele já devia ter voltado. Vou até lá ver se o encontro.
(Ela sai pelo jardim).
MANDERS Acho que esta deve ser a pior noite que já passei na vida.
MANDERS Não me pergunte, Srta Engstrand. Como quer que eu saiba? Acha
também que... Já não chega o que seu pai...
ENGSTRAND Vim, que Deus me perdoe, mas vim... Meu senhor, que coisa
horrível, pastor!
Espectros – Henrik Ibsen 56
MANDERS (Parado de pé) Sim, você já disse isso. Mas tenho certeza, que
não peguei em vela nenhuma.
ENGSTRAND Mas eu vi, muito bem, o senhor apagar uma vela entre os dedos e
jogar a brasa na serragem.
MANDERS Não; é justamente nisso que estou pensando. Essa é a pior parte
da desgraça... as insinuações maliciosas, os ataques. É terrível
pensar nisso!
SRA ALVING (Num tom mais baixo) É melhor que tenha sido assim. O orfanato
não faria bem a ninguém.
SRA ALVING Se importaria em levar toda a papelada com o senhor? Não quero
ouvir nem mais uma palavra sobre isso – Tenho outras coisas em
que pensar.
SRA ALVING Vou lhe mandar uma procuração para fazer o que achar melhor.
MANDERS Acho que em primeiro lugar, devo fazer com que a porção da
propriedade passe para a custódia da paróquia. Aquele terreno
certamente tem algum valor – não será difícil encontrar um bom
uso para ele. E quanto ao montante de juros sobre o capital que
restou no banco – eu poderia destiná-lo a alguma ação que fosse
do interesse da cidade.
MANDERS Verdade, que boa sugestão. Muito bem, é algo em que vou pensar.
MANDERS (Com um suspiro) Infelizmente eu não sei quanto tempo vou ter –
a opinião pública pode me forçar a abandonar tudo. Vai depender
do resultado da investigação do incêndio.
ENGSTRAND (Aproximando-se dele) Ah, mas pra que serve ter Jakob Engstrand
por perto?
MANDERS Mas...?
ENGSTRAND Ah poderia sim. Conheço alguém que uma vez levou a culpa por
outro.
ENGSTRAND (Na porta da sala de jantar fala baixo para REGINA) Vem
comigo menina – vai ficar mais protegida que a gema do ovo!
REGINA (Atirando a cabeça para trás com desdém) Merci! (Sai para o
hall para pegar o casaco do pastor).
MANDERS Adeus, Sra Alving. Faço votos que o espírito da ordem e da lei
voltem logo a ocupar essa casa.
SRA ALVING Adeus, pastor Manders. (Ela sai para o hall envidraçado ao ver
que OSWALD está voltando pelo jardim).
Espectros – Henrik Ibsen 59
MANDERS (Na porta) Hm... Vamos então, meu caro Engstrand. Adeus,
adeus. (Ele e ENGSTRAND saem pelo hall).
OSWALD (Indo para a mesa) Que casa é essa que ele falou?
SRA ALVING É uma espécie de “lar” que ele o pastor Manders estão pensando
em abrir.
OSWALD Tudo vai queimar, até que não sobre nada que lembre meu pai.
Inclusive eu, que já me sinto queimando também.
SRA ALVING Oswald, meu menino, não devia ter ficado tanto tempo lá fora.
SRA ALVING Você está todo molhado, Oswald – deixe-me enxugar seu rosto.
(Ela enxuga o rosto dele com seu lenço).
SRA ALVING Não está cansado, Oswald? Por que não vai dormir?
SRA ALVING (Olhando-o com apreensão) Meu filho querido, você está mesmo
doente!
REGINA obedece e fica parada na porta do hall. SRA ALVING tira o xale,
REGINA também. SRA ALVING leva uma cadeira para perto de
OSWALD e senta-se.
OSWALD Faça isso. E Regina deve ficar aqui também – Regina deve ficar
para sempre comigo. Você vai me ajudar, não vai, Regina?
SRA ALVING Mas Oswald, você não tem sua mãe para lhe ajudar?
OSWALD Você? (Sorrindo) Não, mãe, você jamais me daria a ajuda que
estou falando. (Com um triste sorriso) Ha! Você não! (Olhando
para ela com sinceridade) Mas, afinal, quem mais, além de você
me ajudaria? (Impetuosamente) Regina, por que você é sempre
tão formal comigo? Por que não me chama de Oswald?
SRA ALVING Logo você terá esse direito. Agora venha e sente-se aqui conosco.
E agora, meu triste menino, vou tirar um peso dos seus ombros...
SRA ALVING Posso sim, Oswald, agora eu posso. Quando você falou na alegria
de viver foi como se de repente eu visse minha própria vida, tudo
que me aconteceu, sob uma luz diferente.
SRA ALVING Gostaria que tivesse conhecido seu pai quando ele não passava de
um jovenzinho subalterno. Ele tinha essa alegria de viver.
OSWALD Eu sei.
Espectros – Henrik Ibsen 61
SRA ALVING Seu entusiasmo e sua inesgotável energia faziam bem a alma de
quem simplesmente o observasse.
SRA ALVING Então esse garoto, tão cheio de alegria e vitalidade, porque
naquela época ele era um garoto – teve que vir para essa cidade de
segunda, vazia de prazeres e repleta de dissimulações. Ele não
tinha objetivo na vida, só uma posição oficial. Ele não tinha um
trabalho ao qual se entregasse de corpo e alma, tinha uma rotina a
cumprir. Nem um de seus amigos jamais suspeitou o que é ter
alegria de viver – eram todos preguiçosos e bêbados...
OSWALD Mãe!
OSWALD O inevitável?
SRA ALVING Você mesmo disse o que lhe aconteceria se permanecesse nessa
casa.
SRA ALVING Seu pobre pai não tinha onde extravasar a enorme alegria que
existia dentro dele. Nem eu fui capaz de dar-lhe um ínfimo raio
de sol.
SRA ALVING Só agora, que consigo enxergar isso como uma coisa que eu possa
falar para você – que é filho dele.
SRA ALVING (Lentamente) Antes eu só via uma coisa: que seu pai já era um
homem arruinado antes de você nascer.
OSWALD Regina...!
OSWALD (Indo para ela) Ir embora agora? Quando o seu lugar é aqui?
REGINA Merci, Sr Alving... bem, acho que agora posso lhe chamar de
Oswald – se bem que não era assim que eu esperava.
REGINA Não, certamente que não. Uma garota pobre tem que tirar todo
proveito de sua juventude, antes que seja tarde e eu seja jogada
fora. Eu também tenho a alegria de viver, madame.
REGINA Ah sim, mas o que é tem? Se Oswald puxou a seu pai por que eu
não posso ter puxado a minha mãe? Posso lhe perguntar uma
coisa? O pastor Manders sabe sobre mim, madame?
REGINA Devia ter me criado como filha do patrão – teria sido mais justo.
(Joga a cabeça com desdém) Mas agora, pra mim tanto faz!
(Com um olhar amargo para a garrafa ainda fechada) Ainda vou
beber muita champanhe com gente fina.
SRA ALVING Se algum dia precisar de um lar, Regina, pode contar comigo.
REGINA Não, madame, obrigada; pastor Manders vai cuidar muito bem de
mim. E se o pior acontecer, sei de uma casa onde serei sempre
bem vinda.
SRA ALVING Regina, você está indo pro abismo, sei que está.
REGINA Tss! Adieu. (Ela faz uma reverência e sai pelo hall).
SRA ALVING (Vindo por trás dele e colocando as mãos em seu ombro) Oswald
querido, isso o deixou muito triste?
OSWALD (Virando-se para olhar para ela) Quer dizer, isso tudo sobre meu
pai?
SRA ALVING Sobre o coitado do seu pai sim, tenho tanto medo que isso possa
ter sido demais pra você.
OSWALD Por que acha isso? Claro que me deixou chocado, mas afinal, não
vejo porque possa ser tão importante assim para mim.
SRA ALVING (Tirando as mãos) Não acha importante? Que seu pai tenha sido
tão desesperadamente infeliz?
OSWALD Claro que sinto pena dele – sentiria por qualquer um – mas...
OSWALD Ora, meu pai – meu pai! Nunca soube nada sobre meu pai. A
única coisa que lembro dele, é de me fazer sentir terrivelmente
enjoado.
SRA ALVING Este é um pensamento ruim! Não importa o que aconteça, toda
criança deve sentir algum afeto por seu pai.
OSWALD Mesmo quando essa criança não tiver nada o que agradecer a ele,
mesmo quando ele for pra ela um completo estranho? Você ainda
acredita nessas velhas superstições ? Você que é tão inteligente.
OSWALD Claro, será que a senhora não vê, mãe? Essas idéias ultrapassadas
e mortas em que o mundo se agarra e –
SRA ALVING (Violentamente) Quer dizer então que também não me ama,
Oswald?
SRA ALVING Sim eu posso, Oswald. Oh, eu posso quase dizer que agradeço por
essa sua doença ter-lhe obrigado a voltar para casa, pois agora
percebo que você ainda não é realmente meu – eu vou ter que
conquistá-lo.
OSWALD (Impacientemente) Sim, sim, sim, isso tudo são apenas palavras!
Não se esqueça, minha mãe que eu sou um homem doente. Não
me sobra muito espaço para me preocupar com os outros – já
tenho muito o que fazer e o que pensar sobre mim mesmo.
SRA ALVING Sim, meu pequeno, você tem razão. (Indo até ele) Mas será que
tirei dos seus ombros o peso do remorso e da auto censura?
OSWALD (Andando pela sala) Regina seria capaz, com uma única e simples
palavra.
SRA ALVING Não entendo... Que medo é esse? Por que Regina?
OSWALD Isso me deixa feliz. Ou talvez tenham muitas coisas que me façam
feliz – que me façam viver...
SRA ALVING Meu menino, logo você vai ser capaz de trabalhar novamente.
Sem ter mais que se deixar abater por aqueles pensamentos
sombrios.
SRA ALVING Sim, por que não? (Ela puxa uma poltrona para junto do sofá e
senta-se perto dele).
OSWALD Então o sol vai se erguer. E você vai saber – e eu nunca mais vou
ter medo.
OSWALDO (Sem ouvi-la) Mãe, no início da noite você disse que faria
qualquer coisa por mim, se eu pedisse?
SRA ALVING Pode confiar em mim, meu menininho; não tenho mais nada por
que viver nesse mundo a não ser você.
OSWALD Muito bem, mãe, vou lhe dizer. Agora vejo sua coragem – por isso
quero que enquanto eu fale a senhora fique calma.
OSWALD Ouça, mãe, por favor não grite – prometa-me que não vai gritar.
Que vamos conversar calmamente aqui sentados. Você me
promete, mãe?
OSWALD Bem, precisa entender que esse meu cansaço, e essa incapacidade
de me concentrar no trabalho – são só vestígios da verdadeira
doença...
OSWALD Essa doença que herdei – (Aponta para a sua testa e continua
muito suavemente) – está presa aqui dentro.
OSWALD Não grite. Eu não iria agüentar. Ela está presa aqui, e espera. E
um dia qualquer, de uma hora pra outra, ela escapa.
OSWALD Tive um ataque há pouco tempo. Logo passou; mas quando soube
do que se tratava comecei a me sentir perseguido por este medo
absurdo, então resolvi voltar imediatamente para casa.
SRA ALVING Meu menino terá sua mãezinha para cuidar dele.
OSWALD (Levanta-se e anda pela sala) E agora, você tirou Regina de mim.
Se pelo menos eu a tivesse – sei que ela seria capaz de me ajudar..
SRA ALVING (Indo até ele) Meu filho, querido – o que quer dizer? Acha que eu
não sou capaz de lhe dar toda a ajuda que precise?
OSWALD Morfina.
SRA ALVING (Dando um bote para pegar) Dê-me isso aqui, Oswald!
SRA ALVING Regina não seria capaz – ela nunca faria isso.
OSWALD Regina faria sim. Ela era uma criatura tão incrivelmente livre – e
logo se cansaria de ficar tomando conta de um inválido como eu.
SRA ALVING Então agradeço ao céus que ela não esteja mais aqui.
OSWALD Pois então será você quem vai me dar ajuda, mãe.
OSWALD Isso foi algo que nunca lhe pedi. E depois que vida foi essa que a
senhora me deu? Não obrigado, pode levar de volta.
SRA ALVING (No hall) Buscar um médico para você, Oswald. Deixe-me ir.
OSWALD (Também no hall) Não vai a lugar nenhum! Não vai buscar
ninguém.
SRA ALVING Caso seja preciso. Mas não vais ser preciso... não, não é possível.
OSWALD Bem... vamos torcer que não seja. Para que possamos viver juntos
por muitos anos. Obrigado, minha mãe.
Ele senta-se na poltrona que SRA ALVING havia deslocado para perto do sofá.
O dia está nascendo. O lampião continua aceso sobre a mesa.
Espectros – Henrik Ibsen 69
OSWALD Estou.
SRA ALVING Isso foi um terrível delírio, Oswald, apenas um delírio. Toda essa
agitação foi demais para você, mas agora deve descansar – na sua
casa, perto de sua mãe, meu querido. Você vai ter tudo o que
quiser, exatamente como quando você era um garotinho. Pronto!
Agora tudo passou. Viu só como foi fácil – eu sabia que seria. E
olhe Oswald, vamos ter um lindo dia – um dia claro de sol. E
você vai poder ver a sua casa!
Ela vai até a mesa e apaga o lampião. O sol se levanta; as geleiras e os picos
cobertos de neve se iluminam ao longe com a luz da manhã.
SRA ALVING (Ainda perto da mesa, olhando-o assustada) O que foi que disse?
SRA ALVING (Tremendo de medo) O que é isso? (Num forte grito) Oswald – o
que está acontecendo? (Caindo de joelhos) Oswald! Oswald, olhe
para mim – você me conhece?
Ela fica a um ou dois passos dele, segurando a cabeça com as mãos, olhando
para ele aterrorizada.