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Portuguesa: Poética
Material Teórico
Trovadorismo
Revisão Textual:
Profa. Ms. Silvia Augusta Barros Albert
Trovadorismo
• O Trovadorismo (1198?-1418)
Para que você possa apreender de modo adequado o conteúdo dessa disciplina, é muito importante
realizar o seguinte percurso:
a. Leitura da contextualização;
b. Leitura do material teórico (esta leitura deve ser feita várias vezes destacando-se os principais
conceitos ou as definições contidas no texto, bem como procurando compreendê-las por meio
dos exemplos);
c. Realização da atividade de sistematização;
d. Realização da atividade de aprofundamento;
e. Consulta ao material complementar fornecido e/ou visita aos sites sugeridos;
f. Leitura da bibliografia da unidade, especialmente a que se encontra na biblioteca virtual da
universidade; e
g. Contato com o professor tutor para esclarecer dúvidas ou mesmo expor suas ideias a respeito
do assunto.
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Unidade: Trovadorismo
Contextualização
A literatura portuguesa é quase tão antiga quanto Portugal. O primeiro período literário dessa
cultura, o Trovadorismo, compreende os séculos XII a XV, e ocorre aproximadamente entre
1198 e 1412. A primeira manifestação, a Cantiga da Ribeirinha, é um texto poético o que talvez
já prenuncie em certo sentido a vocação lírica dos lusitanos.
Devemos estudar e compreender esse período literário em relação ao contexto histórico e social
da região e às especificidades que adquiriu em terras portuguesas a importação do fenômeno
trovadoresco que floresceu em praticamente toda a Europa. Devemos, ainda, considerar o
reflexo dessa poesia até os dias de hoje. Muito dos temas e procedimentos persistem hoje em
dia: a visão da mulher idealizada, a simbiose entre sujeito e natureza, a sátira aos costumes, o
aspecto ritualístico e lúdico dessa forma de arte, entre outros. Por isso, frequentemente, ao se
estudar a literatura posterior, recorremos a conceitos da lírica trovadoresca.
Vamos conhecer mais sobre esse importante período literário, o trovadorismo?
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O Trovadorismo (1198?-1418)
O Trovadorismo foi a época do florescimento das cantigas, poemas feitos para serem
cantados ao som da flauta, da viola, do alaúde e de outros instrumentos. O termo é derivado
de trouver (no norte da França, o poeta era designado trouvère, do radical trouver, achar). Daí,
podemos inferir que os poetas deveriam ser capazes de compor, achar sua canção ou poema,
para exprimir os sentimentos.
Para compreender a poesia trovadoresca, é necessário entender as condições sociais do
período. Por isso, é fundamental que você leia atentamente o texto a seguir, que trata das
condições de vida em Portugal durante a Idade Média.
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Unidade: Trovadorismo
Teoricamente, ao clero estavam interditas ocupações mundanas que o afastassem dos deveres
para com Deus. Na prática, o alto clero aderia aos divertimentos da nobreza e o baixo clero
participava dos do povo. Havia formas de distração tipicamente eclesiásticas, como os mistérios
religiosos e o canto de igreja, nos quais os fiéis tomavam também parte ativa.
A Nobreza constituía um grupo social possuidor de grandes domínios e que se dedicava
essencialmente à defesa. Era uma casta definida pelo nascimento. Via de regra, só o filho do
nobre era nobre, embora tenha havido casos em que os reis fizeram nobres.
A função da nobreza consistiam em exercícios militares com a finalidade de se acostumarem às
armas e serem capazes de defender o território. Havia graus na nobreza: os ricos-homens eram
grandes nobres que exerciam influências sobre regiões mais ou menos extensas; os infanções
eram considerados de alta estirpe, de boa filiação; os cavaleiros eram homens nascidos na
nobreza, mas muitas vezes sem fortuna, que não tinham mais que o cavalo e o corpo para ir à
guerra. O ponto em comum entre os nobres é que eles não trabalhavam, viviam na posse da
terra com a sua criação, aqueles que habitavam a propriedade.
Quando Portugal nasceu, século XII, já surgiam dificuldades entre a nobreza, pois a terra
dividia-se e tornava-se menor de geração a geração por causa das sucessões. A criação, leia-se os
trabalhadores, fugia para terras mais livres, a vida aumentava de custo, os nobres necessitavam
cada vez mais de coisas que a terra não produzia. O trabalho dos homens livres encontrava-se
na base da produção e era preciso ser pago. O nobre, que se considerava com direito natural
sobre o vilão, entenda-se o camponês, odiava-o profundamente por ter de pagá-lo. Houve uma
luta de classes que durou séculos.
A função do povo era de lavrar a terra, cuidar dos animais, ajudar na batalha e sustentar a
nobreza e o clero, pagando os impostos. Executava o que se chamava corveia, trabalho gratuito
prestado ao senhor durante um número de dias. O termo vilão designava o habitante de vila ou casa
de campo. O vilão tinha como característica o fato de ter de trabalhar para viver. Contudo, o vilão
era livre, podia trabalhar onde quisesse, e nesse ponto eram superiores aos semisservos. Havia no
campo os vilãos ricos e os vilãos pobres. Havia também os vilãos da cidade, chamados cidadãos,
que também podiam ser ricos. Havia os chamados burgueses, ou pobres, a chamada gente miúda.
Em função dos rendimentos, os vilãos podiam ser classificados como cavaleiros ou peões.
Os cavaleiros vilãos eram homens da classe do povo, que podiam comprar e manter um cavalo
e armas para entrarem na guerra, ao lado dos nobres, mas apenas mandavam nos peões que
serviam a pé. Eles eram, provavelmente, descendentes dos que tinham chegado primeiro,
enriquecido e se apoderado da administração dos municípios e impunham seu poder aos
miúdos, que descendiam dos que tinham chegado depois.
Os semisservos eram descendentes dos que estavam nas terras na época da reconquista
delas pelos cristãos e ali permaneceram, pois os árabes haviam invadido a Península Ibérica no
século VIII. O nobre que tomava a terra, ou a quem o rei dava, ficava senhor dela e da criação,
as pessoas que ali estavam. Os semisservos garantiam a produção da terra. Não podiam ser
vendidos, mas faziam parte da propriedade, que valia pouco sem eles.
Essa classe social encontra-se nos séculos XII e XIII em rápida evolução e conta com leis
que os apoiam caso queiram mudar de casal, propriedade que correspondia à quantidade de
terra que um homem podia cultivar durante um ano. Há uma lei de 1211 que garante o direito
dos semisservos de trabalharem onde quiserem e, caso os nobres os impedissem, podiam ser
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multados. Os semisservos que abandonavam as propriedades e migravam para o vale da Beira
cultivar uma gleba, área de terra sem cultivo, passavam a ser vizinhos, ou seja, transformavam-
se em vilões.
Os escravos não eram uma classe, mas uma condição. Geralmente, eram mouros capturados
na guerra. Havia expedições por terras de mouros para capturar escravos que trabalhavam no
lugar de homens livres que abandonavam as propriedades.
Mapa da formação de Portugal na Idade Média, durante a Reconquista Cristã, período em que os cristãos retomaram a
Península que havia sido invadida pelos Árabes no século VIII.
Fonte: http://geohistoriaarquitectopedrogumiel.blogspot.com.br/2012_02_01_archive.html, acessado em 27/12/2013.
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Unidade: Trovadorismo
Península Ibérica entre 1270-1492 – Ver região da Galiza (Galícia) ao Norte de Portugal
Fonte: http://portaldoprofessor.mec.gov.br/storage/discovirtual/galerias/imagem, acessado em 27/12/2013.
Na primeira fase, vamos encontrar a poesia trovadoresca dividida em dois grupos ou gêneros:
a poesia lírico-amorosa e a satírica. No primeiro grupo, vamos encontrar as cantigas de amor e
de amigo; no segundo grupo, as de escárnio (mais indireta e irônica) e maldizer (mais agressiva
e abertamente sarcástica).
Escárnio: Aquilo que é dito ou feito para caçoar de alguém ou de alguma coisa;
caçoada; troça; zombaria.
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Antes de estudar os diferentes tipos de cantigas, é conveniente esclarecer alguns termos
específicos e bastante utilizados nesse período literário:
• Trovador: era o compositor, e não o executante da cantiga, dada a sua categoria social
mais elevada. Ele era social e intelectualmente superior ao jogral (ver definição a seguir),
pois compunha não só a letra poética, mas também a melodia. Não é ainda o poeta, que
só vai aparecer no século XV, quando a poesia começa a se dissociar da música e as duas
artes tornam-se autônomas. O poeta surgirá a partir do Cancioneiro Geral (1516).
• Segrel: Trovador profissional, não eclesiástico (referente ou pertencente à Igreja ou a
seus sacerdotes), que ia de corte em corte a cavalo, acompanhado de seu jogral. Parece
que a distinção entre o segrel e o jogral era que o primeiro era da classe dos cavaleiros
vilãos (cavaleiros vilãos eram os que moravam na vila, ou seja, fora do castelo), e o
jogral recrutado entre os peões (peões eram os que andavam a pé, não tinham cavalo e
por isso eram o oposto aos cavaleiros). O segrel seria uma classe intermediária entre o
jogral e o trovador e devia saber cantar, não só as canções alheias, mas também as de
sua própria autoria. Distingue-se do trovador porque recebe pagamento pelo ofício, e do
jogral porque é fidalgo e compõe profissionalmente, não acidentalmente como os jograis.
Parece ser uma figura exclusiva do lirismo luso-galego, pois não foi encontrada nenhuma
alusão a essa classe nos textos castelhanos e provençais.
• Jogral: aqueles que ganhavam a vida atuando perante um público para diverti-lo
com a música, ou com a literatura, ou com jogos de mão, de acrobatismo, de mímica,
etc. Embora social e intelectualmente inferior ao trovador, o jogral podia subir para a
categoria de trovador e vice-versa. Às vezes, o jogral podia ter suas próprias composições,
mas geralmente recorria ao trovador para que este lhe desse uma canção para ganhar
a vida. Os jograis que tentavam mudar de classe social eram duramente criticados pelos
trovadores. A partir da segunda metade do século XIV, a jogralia palaciana começa a
decair e o jogral, que abandonava agora o ofício poético da execução e da composição,
deriva para a simples condição de músico ou de bobo da corte (espécie de palhaço que
divertia a nobreza).
Essas categorias nos levam a concluir que as rígidas estruturas sociais da Idade Média
projetavam-se também no universo das artes, conforme veremos na análise dos textos.
Com relação às composições, devem-se conhecer os seguintes termos:
Verso sem rima, que não se articula pela rima com nenhum outro verso da
Palavra perduda
estrofe (cobra)
Cantiga sem refrão, feita com maestria, ou seja, com arte. A estrutura mais
Cantiga de maestria
frequente é a de sete versos por cobra
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Unidade: Trovadorismo
Agora sim, mais preparados, podemos conhecer os tipos de cantigas trovadorescas. Vamos lá?
Cantigas de Amor
As cantigas de amor eram inspiradas nas poesias provençais. Provença, como vimos
anteriormente, é uma região que fica ao sul da França. O homem expressa o seu amor pela (o)
“senhor” (substantivo invariável para os dois gêneros), de acordo com o código do amor cortês
da poesia provençal. Esse código era denominado também “fin’amors”. Segundo Spina, esse
tipo de serviço amoroso.
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No caso da França, que é de onde se originaram as cantigas de amor portuguesas, o amor
cortês torna-se uma espécie de religião do trovador, consiste em um culto à mulher que prevê
um ritual complexo, tornou-se um serviço. Os amantes comportam-se diante do amor como um
vassalo diante de seu senhor. O serviço do amor era equivalente ao serviço da cavalaria, numa
clara transposição do esquema social criado pelo feudalismo. Os amantes devem cumprir os
menores caprichos da pessoa amada, pois ser amoroso é comprometer-se por um juramento,
como um cavaleiro. A agente da vassalagem amorosa era a mulher casada, pois a mulher
solteira não gozava, no sul da França, de significação social. O amor reveste-se de um caráter
adulterino até certo ponto difícil de compreender se não levarmos em conta que no sul da
França não havia a rigidez do norte. Também se pode considerar a heresia dos albigenses, ou
cátaros, como base desse lirismo.
O ritual possuía modelos que deviam ser seguidos cuidadosamente, Segundo Spina(1991):
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Unidade: Trovadorismo
Para Pensar
É importante perceber que na poesia trovadoresca de Portugal esses estágios sofrerão
modificações. Talvez em função da maior rigidez social, as poesias de amor irão apresentar
apenas a figura do fenhedor e do precador. Já a figura do namorado ou amigo, irá aparecer na
cantiga de amigo, mas o sujeito lírico será feminino, como veremos. A condição de amante ou
drudo só irá aparecer nas cantigas de escárnio ou maldizer, mas aí em um contexto totalmente
diferente daquele que instaurou a vassalagem.
Cantigas de Amigo
As cantigas de amigo são escritas por homens, mas o sujeito lírico é feminino: são mulheres
frequentemente das camadas populares, que se dirigem ao seu amigo ou a sua mãe, irmã,
amigas, ou a algum elemento da natureza. São obras dos mesmos poetas das canções de amor
e, portanto, o “eu lírico” feminino é fingimento poético.
Esse tipo de cantiga aproxima-se da poesia folclórica. Nas cantigas em que a amiga se dirige à
natureza, os elementos são apresentados de forma simbólica. A expressão pungente da ausência
do amado e o contato com a natureza emprestam a essas composições uma emotividade mais
intensa do que aquela que se observa na cantiga de amor, pois embora ambas sejam produtos
de convenções, nota-se que nestas o caráter telúrico do sujeito, ou seja, a ligação dele com a
terra, bem como o eco da saudade apresentam-se de forma mais intensa.
Talvez o efeito de maior intensidade emotiva das cantigas de amigo venha, ainda, do fato de
esse tipo de composição ser mais realista do que a canção de amor, que é mais idealista. Nesse
caso, a cantiga de amigo parece traduzir um sentimento espontâneo, natural e primitivo por
parte da mulher e um sentimento egoísta por parte do homem.
Com relação à posição da mulher nos diferentes gêneros, cantigas de amor e de amigo, o
trovador parece viver uma dualidade amorosa: em espírito dirige-se à dama aristocrática; com
os sentidos dirige-se à camponesa ou à pastora.
O cantar de amigo galego-português pode ser dividido, ainda, pela temática:
a) cantar de amigo exclusivamente amoroso: a donzela narra a separação do
namorado e as circunstâncias acessórias dessa partida;
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b) cantar de romaria: a donzela convida companheiras, a mãe ou a irmã para romarias
a locais sagrados;
c) alba ou alva: o tema típico é a separação dos amantes ao amanhecer, depois de um
relacionamento amoroso durante a noite;
d) pastorela: narra encontros entre cavaleiros e pastoras que são por eles galanteadas e
pretendidas para o amor;
e) bailadas: traduzem manifestações coreográficas das populações primitivas, versando
sobre os temas da dança e das circunstâncias sentimentais que ela pode suscitar;
f) marinhas ou barcarolas: temas de amor envolvidos por sugestões e circunstâncias da
vida no mar.
Cantigas de Escárnio e Maldizer
São cantigas satíricas (picantes, maliciosas) que expressam o modo de vida dos ambientes
dissolutos (ambientes libertinos, licenciosos) e documentam a vida boêmia do ambiente
trovadoresco. A linguagem admite expressões licenciosas e chulas (de baixo calão, palavrões)
e documenta os meios populares daquele tempo, quando havia os jograis de má vida e o
acompanhamento de soldadeiras (mulheres a soldo, prostitutas) que são retratadas. Desse
mundo marginal participam muitos fidalgos e até reis.
A linguagem não apresenta eufemismos e há referências explícitas à anatomia e às relações
sexuais, o que quebra as regras do amor cortês ou do serviço amoroso. A prostituta que se
sobressai é Maria Balteira, amante de jograis, fidalgos. Há muitas referências a alcoolismo,
doenças venéreas e homossexualismo.
A canção de escárnio é aquela em que a sátira se constrói indiretamente, por meio de ironia
e sarcasmo, usando palavras encobertas, de duplo sentido. A de maldizer é aquela em que a
sátira é feita abertamente, com agressividade, sem palavras de duplo entendimento, contudo,
essa fronteira não é muito rígida.
Todos os conceitos que vimos até agora têm por objetivo respaldar nossas análises literárias
de textos dessa época. Vamos ver algumas delas a seguir?
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Unidade: Trovadorismo
A Cantiga da Ribeirinha
No mundo non me sei parelha a
mentre me for como me vay, b
ca ja moiro por vos e ay! b
Mia senhor branca e vermelha, a Atafinda: final de uma palavra(verso)
queredes que vos retraya c ligada diretamente a outra sem inter-
quando vus eu vi en saya. c rupção de ritmo ou de sentido.
Mao dia me levantey d
que vus enton non vi fea! e
Esta cantiga é de Paio Soares Taveirós. A biografia do poeta pode ser encontrada em http://
cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=116 (acesso em 14/9/2013).
Formalmente, o texto é uma cantiga de maestria em cobras singulares (pois o esquema de
rimas não se repete). Temos duas cobras com oito palavras cada. Trata-se de uma cantiga
que possui atafinda e palavra perduda. A classificação é incerta, pois, por um lado, não se
trata de uma cantiga de amor, uma vez que viola certas regras de vassalagem, como a de não
revelar a identidade da dama, por exemplo. O trovador cita o nome do pai da Ribeirinha: Don
Paay Moniz. Por outro lado, podemos aproximá-la daquele quarto estágio da lírica trovadoresca
provençal, em que o trovador se considerava amante ou drudo e merecedor de um dom por
parte da dama, o qual reclama não ter recebido.
Quanto ao sentido, é possível parafrasear o texto, preenchendo certas lacunas, do seguinte
modo: Não há no mundo homem tão infeliz como eu, enquanto as coisas estiverem como
estão agora, pois morro por sua causa. E você, senhora branca e rosada, quer que a represente
como estava quando a vi sem manto e percebi que seu corpo era bem feito. Infeliz foi tal dia
[quando viu a mulher em trajes íntimos], pois a vi tão formosa! Desde então, muito mal me
aconteceu, mas você, filha de D. Paay Moniz, acha certo que eu lhe ofereça uma guarvaia (um
traje precioso), quando de você nunca recebi coisa que valha sequer uma correia.
As palavras ou versos finais da cantiga podem ser entendidos da seguinte forma: “minha
senhora, quereis que vos represente sob o arminho e a púrpura quando vos vi em traje caseiro”
ou “achais natural que eu tenha para vós um suntuoso manto real, eu que, como prova de
afeição, nunca de vós tive nem tenho a valia de uma correia”.
Em suma, já que a dama quer que o poeta a represente vestida de uma guarvaia, traje
luxuoso da corte, assim o trovador faria, se ela o recompensasse devidamente. Contudo, diante
do desprezo que ela demonstra por ele, o sujeito faz questão de lembrar as origens modestas da
mulher, que estão em contraste com a atual prosperidade.
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Há dúvidas sobre a autoria desta cantiga, considerada o primeiro texto da literatura portuguesa,
simultaneamente de amor e de escárnio. Não se sabe se o autor é Pai Soares ou Martim Soares.
Teria sido feita para D. Maria Pais Ribeiro, a ribeirinha, mulher favorita de D. Sancho I.
Na hipótese de Massaud Moisés, o trovador, teria sido beneficiado com os favores da dama, e
agora sofre por despeito, quem sabe resultante de desprezá-lo agora, visto ter sido promovida à
categoria de favorita do rei, cortesã,e com isso, era merecedora do manto da corte. Ressentido,
ele revolta-se contra a circunstância de ela querer a “guarvaia” por vaidade e por petulância,
ou para, com a vestimenta, apagar a memória das antigas concessões (ou seja, ter se deixado
ver ‘en saia’ pelo trovador). Reclama o trovador, ainda, porque jamais recebera presente algum
d’A Ribeirinha. Nessa corrente interpretativa, podemos considerar a “guarvaia” como uma
metonímia do luxo da corte a que a dama tem acesso depois que passou a ser amante do rei.
Para saber mais sobre esta cantiga acesse o portal Cantigas Medievais Galego-portuguesas, mais
especificamente a página: http://cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=124&pv=sim#refs,
acesso em 14/09/2013.
Vamos seguir com outras análises de texto? Vamos fazê-lo separando alguns tipos de cantigas.
Começamos pelas cantigas de amor:
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Unidade: Trovadorismo
Essa cantiga também é de Paio Soares Taveirós. Trata-se de uma cantiga de refrão que possui
cobras singulares, pois o esquema de rimas não se repete nelas (abbac/deedc/cffcc/gaagc).
Esta é uma canção típica de amor não correspondido. A dama, além de não conceder
mercê, favores, eufemisticamente não ‘fazer ben’ ao trovador, ainda é levada por alguém que
não a merece. Deus fez o poeta ver que foi morto por pesar por causa dela. Encontramos neste
texto o conceito de sandece, a perda do contentamento, a insônia e a morte por amor. Trata-se
de uma coita de amor (sofrimento amoroso, morte por amor) agravada pelo fato de o poeta ter
visto quem não tinha merecimento levar a sua dona.
Podemos dizer que o trovador encontra-se aqui no segundo estágio da vassalagem amorosa,
o de suplicante ou precador, já que ousa relatar à dama suas penas. Isso é perceptível pelo
vocativo que constrói o refrão: “ai, minha senhor...”.
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Trata-se de um homem dizendo a uma mulher de corpo delgado, elegante,
charmoso, que o dia em que ele nasceu foi ruim, pois ele ama a mulher, a quem
se dirige, sem nenhuma perspectiva de correspondência amorosa. Ele também diz
que a ama contra a vontade, pois não tem como controlar o sentimento e isso é
ruim tanto para ele quanto para a mulher.
A cantiga anterior é de Pero da Ponte, cuja biografia pode ser encontrada em http://cantigas.
fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=121 (acesso em 14/9/2013). Trata-se de uma cantiga de
refrão, cobras uníssonas (todas possuem o mesmo esquema de rimas: aaabab).
Neste texto, o poeta lamenta a sua sorte: desde que viu a dona, nunca mais viveu em paz;
ama-a contra vontade, pois desejaria libertar-se de uma situação que, não lhe traz benefício,
além de ser motivo de contrariedade para ambos (senhor, por vos e por mi!). Segundo Spina
(1991), o poeta execra a vida por causa de um amor irrealizado: (En forte pont’ eu fuy nado
= eu nasci num dia aziago, mal afortunado). A expressão sen meu grado, contra a minha
vontade, choca-se com a declaração de que a ama desde o dia em que a viu. Trata-se de um
serviço amoroso sem perspectiva de correspondência por parte da mulher: servi senpr’ endõado
ond’ un ben nunca prendi = servi sem razões a alguém que nunca me proporcionou uma
demonstração de recompensa.
Note, ainda, que além de trazer à tona a questão da coita amorosa, este poema apresenta
um retrato, ainda que discreto e vago, do corpo da mulher: senhor de corpo delgado, o que dá
uma ideia da beleza física da dona.
O Trovador encontra-se no estágio do suplicante ou precador, pois ousa dirigir-se à mulher:
Senhor de corpo delgado. Esta, por sua vez, mostra-se impassível.
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Unidade: Trovadorismo
Cantiga metalinguística de D. Dinis, que ensina as regras para se fazer uma Cantiga de Amor.
Veja que ele ensina como se deve elogiar uma mulher.
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Continuamos nossas análises, partindo agora para as cantigas de amigo:
A mulher pergunta às ondas do Mar de Vigo (Região do Norte de Portugal), pelo amado e
pergunta-lhes se ele voltará cedo.
Essa cantiga de amigo é de Martin Codax, cuja biografia pode ser acessada no endereço:
http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=92&pv=sim (acesso em: 07/01/2014).
Trata-se de uma barcarola ou marinha paralelística. É chamada assim porque não há
praticamente variação na expressão dos sentimentos. Os versos repetem-se com pequenas
variações de rima, mas não alteram o significado geral do poema. Essa característica
empresta o tom monocórdico à cantiga. Existe nesta cantiga a leixa-pren, ou seja, o trovador
retoma o segundo verso de uma estrofe e com ele inicia outra, como você pode observar
esquematizado no texto.
A terceira estrofe inicia-se com a retomada do segundo verso da primeira estrofe, a
quarta estrofe inicia-se com o segundo verso da primeira estrofe. A cantiga é composta em
cobras dobras, ou seja, o esquemas de rimas se repete a cada duas cobras ou estrofes: aab,
ccb, aab, ccb.
Quanto ao tema, encontramos uma mulher, não uma nobre, mas uma vilã, que pede às
ondas do mar de Vigo notícias de seu amigo que está embarcado. Como se percebe, as ondas
do mar estão encapeladas, bravas. É como se a aflição da mulher se projetasse na natureza,
pois também ela está revoltada com a partida do amigo, por isso clama a Deus exclamando se
o homem voltará logo. Nesse aspecto, as cantigas de amigo revelam um forte ponto de contato
entre o sujeito poético e a natureza, aquele aspecto telúrico de que falamos.
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Unidade: Trovadorismo
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Para Pensar
O sujeito poético reclama que o amigo, desde que voltaram as manhãs frias, já não a
procura de madrugada. Quando ele vinha, bem podia ela dizer: “leda m’and’eu”, ou seja, “eu estava
contente”. Então, diz ela, naquele tempo, todas as aves cantavam. Agora, a ausência dele tirou às
aves os ramos em que pousavam, as fontes em que bebiam e se banhavam, pois deixaram de se
fazer ouvir. Ela continua, no entanto, a repetir o mesmo refrão. O secar das fontes e o tolher dos
ramos insinuam o término do romance entre o par de namorados.
Temos aqui uma cantiga de refrão, também paralelística. Trata-se de uma alba ou alva,
porque o tema se desenvolve ao amanhecer.
É interessante notar, neste poema, o reflexo do estado de espírito do sujeito poético na
natureza. Quando ela estava feliz, a natureza estava aprazível. Agora que está triste, a natureza
encontra-se devastada.
Repare que nesta cantiga existe também a leixa-pren: o segundo verso da primeira cobra
repete-se no primeiro verso da terceira cobra; o segundo verso da segunda cobra repete-se
no primeiro verso da terceira cobra; o segundo verso da quarta cobra repete-se no primeiro
verso da sexta cobra; o segundo verso da quinta cobra repete-se no primeiro verso da sétima
cobra; o segundo verso da sexta cobra repete-se no primeiro verso da oitava cobra. Neste caso
específico, o recurso da leixa-pren sugere o encadeamento de coisas ruins que aconteceram
depois que o amado foi embora.
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Unidade: Trovadorismo
Essa cantiga é de Martim Soares. Trata-se de uma cantiga de maldizer de refrão, cujo esquema
de rimas é aaabcb/dddbdb, formada por cobras singulares, pois o esquema de rimas não se
repete. A cantiga é feita abertamente, isto é, sem que se possa ter duplo entendimento do que
é dito. O sujeito ridiculariza o jogral Lopo dizendo que um infanção (antigo título de nobreza,
inferior a rico-homem), homem nobre em casa de quem Lopo foi cantar, mandou dar-lhe três
coices na garganta como pagamento pela cantoria. O sarcasmo do sujeito poético está no fato
de achar que o anfitrião foi mesquinho, porque o pagamento foi escasso: deveria ter dado mais
do que três coices na garganta do “jograron”, forma depreciativa de nomear o jogral, uma vez
que ele canta muito mal.
Essa cantiga ilustra bem como a estrutura de classes sociais estratificadas se transferia para
o campo da arte. Sendo o jogral aquele que se encontra na parte mais inferior da estrutura
trovadoresca, ele não tinha o direito de tentar ser trovador. Provavelmente Lopo tentou quebrar
essa regra e Martim Soares, que devia ser de uma família nobre, gostou do fato de ele ter se
dado mal. Você encontra a biografia de Martim Soares no endereço http://cantigas.fcsh.unl.pt/
autor.asp?pv=sim&cdaut=98 (acesso em 14/9/2013).
Vamos analisar mais uma cantiga de escárnio e maldizer? Leia com atenção:
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e faz-[s’] en seu cantar morte prender, (c)
des i ar vive: vedes que poder (c)
que lhi Deus deu, mais que non cuidaria. (b)
Nessa cantiga, o sujeito poético faz chacota ao tema convencional do lirismo, o morrer de
amor. O sujeito faz chacota de Rui Queimado, outro trovador cuja biografia pode ser encontrada
em http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?pv=sim&cdaut=149 acesso em 14/9/2013.
O trovador acusa especialmente Rui Queimado de ter dito que morreria de amor pela
dama e depois ter voltado a viver, ressuscitando ao terceiro dia, ironizando-o como um
Cristo às avessas.
Além disso, o trovador acusa o colega de achar que faz maestria e de que nos cantares que
faz há sabor, ou seja, acusa o colega de não ter talento.
O texto apresenta, ainda, uma fiinda, última cobra com estrutura própria, mas vinculada ao
corpo da cantiga pela rima, que traz o fecho irônico: se Deus me desse tal poder, de morrer e
viver, eu nunca temeria a morte.
Essa é uma cantiga de maldizer feita por Pero Garcia Bugalês, cuja biografia você encontra
em http://cantigas.fcsh.unl.pt/autor.asp?cdaut=127&pv=sim, acesso em 14/9/2013.
Trata-se de uma cantiga de maestria, pois não tem refrão. O esquema de rimas das cobras é
uníssono, todas as elas têm as rimas dispostas em abbacca, exceto a última que se chama fiinda,
por ser de menor extensão e arrematar o poema e se ligar a ele pelo esquema de rimas cca.
Provavelmente, esta cantiga foi feita para satirizar uma outra de Rui Queimado, em que
ele diz que iria morrer de amor pela dama, mas desiste. Leia a seguir a cantiga, extraída de http://
cantigas.fcsh.unl.pt/cantiga.asp?cdcant=249&tr=6&nl=0&pv=sim, acesso em 14/9/2013.
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Unidade: Trovadorismo
O Trovador diz que desejava morrer pela mulher, mas pensou melhor e achou que se morresse
nunca mais poderia vê-la e por isso decidiu não morrer.
Você deve perceber, apesar de o Trovadorismo ter entrado em decadência como movimento
cultural específico, que os temas das cantigas não são muito diferentes dos temas das poesias ao
longo de toda a literatura portuguesa e também das letras de música de nossos dias, inclusive
no Brasil, que herdou muito da cultura portuguesa. Muitas dessas poesias atuais falam de
amores não correspondidos (como as cantigas de amor), de saudade do amado, da natureza,
da religiosidade e da terra natal (como as cantigas de amigo) e outras registram costumes e fatos
do dia a dia das pessoas às vezes de forma cáustica, às vezes com bom humor (como as cantigas
de escárnio e maldizer).
Além disso, você deve ter percebido que havia um sofisticado sistema de procedimentos
poéticos a que o Trovador deveria obedecer e que está documentado no Cancioneiro da
Biblioteca Nacional, num pequeno tratado em prosa sobre a arte galego-portuguesa, de autoria
desconhecida que você poderá ler em “A Arte de Trovar”, no endereço eletrônico http://cantigas.
fcsh.unl.pt/artedetrovar.asp, acessado em 27/12/2013. Isso revela uma sociedade bastante
evoluída do ponto de vista cultural.
Também é importante verificar como as estruturas sociais projetam-se nas Cantigas, tanto
pela posição do sujeito em relação à dama quanto pela organização rígida que agrupava as
diferentes funções: dos Trovadores, dos jograis e dos segréis.
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Material Complementar
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Unidade: Trovadorismo
Referências
A Literatura Portuguesa através dos textos. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 1981.
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Anotações
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