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INSTITUTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA COMPARADA
Rio de Janeiro
2017
Leandro Couto Carreira Ricon
Rio de Janeiro
2017
CIP - Catalogação na Publicação
___________________________________________________
Professor Doutor José Costa D’Assunção Barros
Orientador
___________________________________________________
Professor Doutora Maria das Graças dos Reis José (UFRJ)
___________________________________________________
Professor Doutor Karl Schurster Verissimo de Souza Leão (UPE)
___________________________________________________
Professor Doutor Dilton Cândido Santos Maynard (UFS-UFRJ)
___________________________________________________
Professor Doutor Victor Almeida de Melo (UFRJ)
Rio de Janeiro
2017
7
Agradecer é sempre uma tarefa prazerosa. Árdua, sem sombra de dúvida, mas
prazerosa. (Re)lembrar aqueles que compuseram nossa jornada, durante a construção
deste trabalho ou durante a construção de nossa essência é se encontrar com felicidades
e tristeza. É se encontrar. Assim, sabendo das falhas da memória – pecado mortal para
um historiador – tento lembrar daqueles que marcaram a relação entre o que eu sou e o
que este trabalho, iniciado há tantos anos, o é.
Primeiramente devo agradecimentos à Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo financiamento dessa pesquisa, sem o qual não
seria possível.
Devo um especial agradecimento, também, ao Programa de Pós-Graduação em
História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(PPGHC-IH-UFRJ), centro de excelência e atenção em pesquisas históricas, que tão
bem me acolheu durante essa longa jornada. Vale, aqui, uma menção especial a Márcia,
secretária atenciosa do Programa, sempre disposta a ajudar todos os alunos e sempre
sorrindo.
Este trabalho não seria possível sem o auxílio de meu orientador, Professor
Doutor José Costa D’Assunção Barros, incrível figura reconhecida por sua competência,
mescla de genialidade, companheirismo e vontade de ajudar. D’Assunção ultrapassou
há muito o limite da orientação, se transformando em figura humana extremamente
querida.
Devo agradecimentos ainda aos colegas que passaram em minha vida escolar em
Petrópolis. Sempre me pego relembrando como a felicidade podia ser encontrada mais
nas insuportáveis aulas de matemática e de química, ou até mesmo de história do que no
tumultuado ‘mundo adulto’. Dentro deste ambiente escolar, contudo, além dos colegas
de classe, notadamente Pedro e Rodrigo, gostaria, também, de destacar dois indivíduos
que, desde cedo, me fizeram ter sede de aprender: os professores Valério Winter e
Bianca Della Nina.
Ainda cedo comecei a aprender piano. Inicialmente por conta própria – por
incrível que pareça, ler uma pauta é mais simples do que as pessoas imaginam e, as
crianças, sabiamente, não tem medo de errar quando resolvem descobrir novos mundos.
Quando mais velho, conheci três músicos que modificaram minha compreensão não
apenas desta arte como do mundo em que vivo. A eles, o compositor Sergio Di Sabbato,
a pianista Roberta Jordão e o maestro Antônio Carlos Leal Gastão, devo também
profundos agradecimentos.
Devo um especial agradecimento ao Professor Doutor André Botelho do
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais que jamais imaginará o quanto sou grato por ter
me apresentado o pensar ao me presentear com O Estrangeiro de Albert Camus lá no
ano de 2002.
A minha família. Não apenas a ‘de sangue’ – logicamente a essa também – mas
a família que pude encontrar pela vida: Ester, Raimundo, Daniel, Nathália: espero que
perdoem tanto tampo de ausência.
A Leticia dos Santos Vicari, por todo o apoio sempre demonstrado, em todos os
momentos, em todas as formas possíveis.
A meus amigos da Universidade Católica de Petrópolis, lugar de formação
inicial e que, até hoje, contribuem para minha formação, notadamente a Fabiana
Eckhardt. Também devo um agradecimento a Carlos Eduardo Rebuá – única pessoa que
conseguiu realmente me acalmar no momento de conclusão deste trabalho.
Ao Professor Doutor Karl Schurster, amigo querido. Não tenho como colocar em
palavras a ajuda e o crédito que Karl me passou nesses anos de amizade. Sua presença é
fundamental. Sempre.
Ao Professor Doutor Dilton Maynard que me mostrou, já na qualificação a
necessidade de demonstrar o conhecimento acerca da obra de Wagner e utilizar Ranke
como possibilidade antitética. E mais, que demonstrou, em conjunto a Karl, a
necessidade de buscar por categorias comparativas sem a necessidade de uma erudição
solta, ou mesmo o medo de um pensador falar mais do que outro.
Ao Professor Doutor Leandro Duarte Rust, o tio, alguém que nunca imaginará o
quanto é admirado por mim, humana e intelectualmente. Um dos poucos que me
provou, pelas sucessivas visitas na Páscoa ou no Natal, que amizades continuam
crescendo mesmo que distante. Mesmo que se falando poucas vezes ao ano pelo
telefone.
Aos Professores Victor Andrade e Graça Alan por toda a presença, ainda que
distante e pela vontade de colaborar com o crescimento de um aluno.
A Isabela Sattler, a Bela, que me mostrou o que é uma amizade, e o que é nunca
desistir. Além de tudo, mostrou a leveza do sorrir.
A Leonardo Malgeri, amigo sincero que abriu tantas portas e dividiu tantos
trabalhos e aprendizados. Ainda há tanto a dividir.
No mais, gostaria de agradecer à Daniela Galheigo e sua família, responsáveis
por aliviar o peso da escrita em agradáveis sábados ao redor da churrasqueira conduzida
pelo tio Renato.
A Lara e a um futuro pleno e lindo, com todas as cores possíveis.
A Tallita por toda a grama verde que me mostrou em uma noite que poderia ser
completamente insignificante em um posto vazio.
A João Fúrio e Isabela Grossi, casal incrível que tanto me aturou.
A Brenda, companhia certa para esquecer o trabalho do dia.
A Gilmara que, certamente, me aturou mais que qualquer um nos últimos
tempos. Pena que não se percebe como os outros a percebem.
A Thales Xavier pela festa perdida: em grande parte por falta minha da noite e,
também, por esta tese.
Ainda, aos amigos da academia, que tanto me ensinaram e ensinam e com os
quais ainda espero aprender tanto: Celso Ramalho, Francisco Carlos Teixeira da Silva,
Leonardo Perin Vichi, Lia Bott, Janaína Perrayon, Maria das Graças Duvanel
Rodrigues, Pedro Paulo Aiello e Bruno Tamancoldi e tantos outros, que transformariam
esse curto texto de agradecimentos em infinito.
A Ingrid, Paulo e Léo, pelo auxílio na tradução dos textos do alemão, francês e
italiano, respectivamente.
Por último, aos alunos que já tive e ainda terei – que lutem diariamente pela
construção de um mundo melhor, livre, igualitário e fraterno.
Por todos os meios, nós temos um campo de música que nos pertence por
direito, – e que é a música instrumental; – mas uma Ópera Alemã
nós não temos, e por essa mesma razão não temos um Drama nacional.
Richard Wagner, A opera alemã
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................... 15
1.1 Por uma História Comparada dos intelectuais .................................................. 15
1.1.1 Indivíduo e Sociedade: um problema sócio-historiográfico ........................... 15
1.1.2 A História Comparada das trajetórias intelectuais ......................................... 20
1.1.3 Uma história cercada de vidas: Leopold von Ranke, Richard Wagner e a
possibilidade comparativa ..................................................................................... 24
1.2 Organização da tese ......................................................................................... 29
2. INTERPRETAÇÕES PLURAIS: HISTORICISMOS E ROMANTISMOS NA
FORMAÇÃO DA ALEMANHA .............................................................................. 37
2.1 Historiografias germânicas e a crítica a modelos externos: os historicismos ..... 38
2.2 Romantismos em disputa ou o que se fazer com o cadáver de Beethoven......... 49
2.3 Música romântica e historicismo comparados no caso do mundo germânico .... 61
2.4 Considerações de conjunto: duas interpretações, uma meta comum ................. 65
3. NOVOS TEMPOS, NOVAS FORMAS: AS MANIFESTAÇÕES DA
PROFISSIONALIZAÇÃO DO MÚSICO OPERISTA E DO HISTORIADOR
DURANTE O SÉCULO XIX: AS CONTRIBUIÇÕES DE LEOPOLD VON RANKE
E RICHARD WAGNER ........................................................................................... 68
3.1 A divulgação da produção e das idéias: o crescimento das revistas específicas de
História e de Música na formação Alemanha: os casos de Leopold von Ranke e
Richard Wagner .................................................................................................... 70
3.2 Métodos, estilos e contribuições conceituais como forma de autonomia criativa
na configuração da profissionalização intelectual .................................................. 81
3.3 Considerações de conjunto: as bases intelectuais plurais para a variedade de
interpretações do nacionalismo .............................................................................. 99
4. INTERPRETAÇÕES POLÍTICAS OU AS IDEIAS GANHAM FORMA: A
LEITURA DA REVOLUÇÃO E DOS PERSONAGENS ....................................... 102
4.1 A questão da revolução e suas possibilidades interpretativas .......................... 103
4.2 O indivíduo político como ator central no pensamento de Richard Wagner e
Leopold von Ranke ............................................................................................. 119
4.3 As possibilidades políticas para a configuração de um Estado nacional unificado:
a visão do processo em Richard Wagner e Leopold von Ranke ............................ 144
4.4 Considerações de conjunto: Política, Nação, Estado ...................................... 154
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 156
REFERÊNCIAS...................................................... 16Error! Bookmark not defined.
ANEXOS ................................................................................................................ 184
Anexo A: Leopold von Ranke: Carta ao Rei Maximiliano II da Baviera .............. 185
Anexo B: Leopold von Ranke: Carta a Oto, seu filho .......................................... 188
Anexo C: Leopold von Ranke: Sobre as afinidades e diferenças existentes entre a
Política e a História ............................................................................................. 190
Anexo D: Richard Wagner: A revolução ............................................................. 198
Anexo E: Richard Wagner: Wieland, o ferreiro ................................................... 202
Anexo F: Richard Wagner: Libreto de Rienzi, o último tribuno ........................... 205
Anexo G: Richard Wagner: Libreto de Lohengrin ............................................... 229
APÊNDICES .......................................................................................................... 257
Apêndice A: História e Política: uma revisão conceitual ...................................... 258
Apêndice B: Música e Política: uma revisão teórico-metodológica ...................... 295
LISTA DE IMAGENS
15
nosso tempo presente. Essa discussão tornou-se comum principalmente após a década
de 1970, época de renovação das disciplinas sociais, demonstrando que, mais uma vez,
os indivíduos passaram a interessar às análises, porém, agora, de forma nova, expondo
problemáticas antes esquecidas.
O indivíduo, desde o seu nascimento, passa por um processo de socialização
que dialogará com formas de comportamento e atitudes sociais, porém devemos ter em
mente que não apenas esses fatores são levados em conta nas escolhas das atitudes
sociais, existindo, também, o fator personalidade que escapa, em certa medida, das
formações sociais 1. Dessa forma, percebemos que “estar localizado na sociedade
significa estar no ponto de intersecção de forças sociais específicas”2. Sobre a relação
entre o indivíduo e a sociedade, Norbert Elias certa vez resumiu a questão em sua obra
A sociedade dos indivíduos3 com as seguintes palavras: “[Com esta obra eu] tentava
mostrar que uma sociedade se compõe, é claro, de indivíduos, mas que o nível social
possui regras que lhes são próprias e que não se pode explicar somente em função dos
indivíduos”4. Logo, passamos a compreender que o indivíduo e a sociedade apenas
existem um com a presença do outro5. Com esse todo denso e dinâmico formado pela
relação entre a sociedade e os indivíduos, passamos a identificar a cultura como uma
das possíveis formas de socialização geradas por forças sociais.
A cultura, como forma de socialização, pode ser pensada como um “todo
complexo que inclui conhecimento, crença, arte, moral, lei, costume e quaisquer
aptidões adquiridas pelo homem como membro da sociedade”6. Segundo este conceito
ampliado de cultura podemos identificar seus principais componentes agrupados em
três grandes categorias: as instituições, as ideias e os produtos ou artefatos materiais
que os próprios indivíduos produzem e usam no curso de sua existência social. Assim
sendo, percebemos, também, que o conhecimento e as artes fazem uma clara
intersecção entre as ideias e os produtos humanos, sendo originadas como ideias e
1
INKELES, Alex. O que é sociologia? Uma introdução à disciplina e à profissão. São Paulo:
Livraria Pioneira Editora, 1967, p.172-209. ______. National character and modern political systems.
In: HSU, Francis (org). Psychological Antropology. Homewood: Dorsey, 1961.
2
BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 3ed. Petrópolis: Vozes, 1976,
p.79.
3
ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994.
4
ELIAS, Norbert. Introdução à Sociologia. Lisboa: Edições 70, 1980, p.73. Conferir esta obra,
também, para a noção de configuração social deste autor.
5
CARR, Edward Hallet. A sociedade e o indivíduo. In: ______. Que é história? 3ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1982, p.67.
6
CHINOY, Eli. Sociologia: uma introdução à sociologia. 8ed. São Paulo: Cultrix, 1982, p.56.
16
alcançando um nível social de produto7. Esse todo complexo, no qual a cultura se
enquadra, responsável também pela socialização dos indivíduos, demonstra que “a
sociedade é externa a nós [e que] estamos na sociedade localizados em setores
específicos do sistema social”8. Uma vez que a cultura está inserida na historicidade,
notamos que os sistemas de significados desta cultura possuem uma estruturação que
pode mudar de acordo com determinadas relações sociais9. Logo, os indivíduos
incorporam a cultura social a sua própria realidade adaptando-a, o que cria uma
pluralidade sócio-cultural dos sujeitos10.
Essa pluralidade de pensamentos individuais coletivizados marca as
contradições dentro de determinada sociedade em dada época, o que gera a
necessidade de se compreender o pensamento de alguns indivíduos que formem e
demonstrem as contradições e modelagens sócio-políticas de certo momento11.
Desta forma, se o protagonismo dos indivíduos é condicionado pela sociedade e
pelas relações interiores a ela, como podemos localizar os intelectuais?
Por todo o século XIX e grande parte do século XX os intelectuais foram
estudados pelo simples fato de serem produtores de obras relevantes perante o conceito
de conhecimento do momento, pouco importando se possuíam um lugar específico na
sociedade ou mesmo se tinham uma atuação política como muitos. O único objeto que
bastava ao pesquisador e ao leitor era, portanto, conhecer a vida destes produtores e a
base de suas ideias. Separou-se, desta forma, o indivíduo do intelectual, aquele que
obrigatoriamente possuía uma postura social pelo simples fato de existir em dada
realidade pública, tentando-se encaixar o último no primeiro, anulando, assim, todas as
contradições que marcam a vida humana. Isto ocorreu devido ao fato dos
pesquisadores ainda acreditarem na independência das atividades intelectuais frente à
existência social. Era o momento no qual as ideias, em quaisquer níveis, foram vistas
apenas como dom humano, excluindo as estruturas nas quais são criada,
desenvolvidas, mantidas e, principalmente, consumidas e apropriadas.
A partir de meados do século XX, com o estabelecimento de uma História
Social das Ideias, que identificava na produção individual as ideias provenientes do
convívio social, os estudos acerca dos intelectuais e de suas produções passaram a ter
7
Idem, p.59.
8
BERGER, Peter. Op. Cit., p.105.
9
Idem, p.76.
10
BENEDICT, Ruth. Padrões de cultura. Petrópolis: Vozes, 2015.
11
LE GOFF, Jacques. São Luís: biografia. Rio de Janeiro: São Paulo: Record, 1999.
17
forte relevância nos núcleos acadêmicos. Desta forma, a produção intelectual dos
indivíduos passou a ser analisada no “cruzamento das histórias política, social e
cultural”12.
O conceito de intelectual é complexo, polissêmico, tendo sido definido por uma
gama de autores das mais variadas perspectivas teóricas, sociais e políticas13. Assim
sendo, até hoje ocorre nos núcleos acadêmicos um intenso debate acerca da natureza
desses indivíduos e de sua função. Segundo Sidney Finkelstein14, o intelectual é aquele
que forma um todo coerente teórico ou prático aplicável à pluralidade de eventos, ou
seja, nesse sentido o pensador está ligado diretamente à análise da existência.
Entretanto essa característica não abarca toda a explicação sobre este conceito.
Podemos lembrar, por exemplo, que Norberto Bobbio, diferenciando os intelectuais
em ideólogos e expertos, os caracteriza pelo exercício do ‘poder ideológico’ no interior
das sociedades. O Professor Doutor André Botelho nos oferece uma clara análise deste
conceito na obra de Bobbio:
18
e culturais nas quais são produzidas, distribuídas e conservadas; percebe que o
intelectual é a figura pessoal que interfere criticamente no espaço público da forma
mais ampla possível16. Dado que ocorre esta função social dos intelectuais,
percebemos a validade dos estudos das trajetórias destes indivíduos que se ligam
diretamente ao espaço público de suas realidades através de suas ideias. O historiador
francês Jean-François Sirinelli, especialista em política e cultura, afirmar-nos-á que “as
trajetórias pedem naturalmente esclarecimento e balizamento, mas também e,
sobretudo, interpretação. O estudo dos itinerários só pode ser um instrumento de
investigação histórica se pagar este preço”17. É necessário, dessa forma,
16
CHAUÍ, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção? In: NOVAES, Adauto. O silêncio
dos intelectuais. São Paul o: Companhia das Letras, 2006, p.28-29.
17
SIRINELLI, Jean-François. Op. Cit., p.247.
18
Idem, p.258-259.
19
JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como um ato socialmente simbólico. São
Paulo: Ática, 1992.
19
comparativamente, procurando estabelecer similitudes e singularidades? A
historiografia contemporânea oferecerá uma variada e densa possibilidade de respostas
para esta questão.
20
Compreendemos teoria como "um corpo coerente de princípios, hipóteses e conceitos que passam a
constituir uma determinada visão científica do mundo". Método, por sua vez, é definido como um
caminho através do qual se pretende atingir determinado resultado e, também, um conjunto de
procedimentos que são sistematizados com vista à resolução de determinado problema. Cf.: BARROS,
José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História. Petrópolis: Vozes, 2010; ______. Teoria da
história: princípios e conceitos fundamentais (volume 1). Petrópolis: Vozes, 2011; ______. História
Comparada. Petrópolis: Vozes, 2014.
21
KULA, Witold. Problemas y métodos de la história económica. Barcelona: Ediciones Península,
1973.
22
HERÓDOTO. História. Brasília: EDUNB, 1988. TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso.
4ed. Brasília: EDUNB, 2001. POLÍBIO. História. 2ed. Brasília: EDUNB, 1996.
20
transformaria em sua característica mais marcante, aquela responsável pelo
enriquecimento do método.
Neste contexto de início de século – mais especificamente durante as décadas
de 1920 e 1930 – alguns autores propuseram a aproximação entre a História e as
Ciências Sociais 23. Desta forma, surge um primeiro e intenso debate nos núcleos
historiográficos da Europa, debate esse que contribuiria, posteriormente, para a fama
de um historiador: Marc Bloch. A perspectiva de Bloch24 vem diretamente da
abordagem comparativa nas Ciências Sociais propostas por Émile Durkheim. O
comparativismo para este sociólogo francês serve para analisar fatores que levam cada
sociedade ou grupo social a possuir uma forma determinada25. Partindo dessa visão,
Bloch faz, acima de tudo, uma ‘História Comparada Problema’ 26. Esta realidade de
comparação proposta inicialmente por Marc Bloch prevalece até hoje na grande
maioria dos estudos, inclusive nos que se propõe a comparar questões díspares27, o que
modificou, contudo, foi o recorte – anos mais tarde a Micro-História começa a dialogar
diretamente com essa abordagem, focando no cotidiano de uma pequena localidade.
Dentro deste modelo de Micro-História surgiriam as comparações, mesmo que
indiretas, das comunidades e dos indivíduos.
Após estes debates que permearam os historiadores na primeira metade do
século XX e após o relativo crescimento das abordagens comparativas durante as
23
O sociólogo alemão Max Weber originalmente já se utilizava de abordagens comparativas das
instituições e de seus referenciais, como a burocracia. Assim sendo, propôs um “método tipológico e
procurou comparar fenômenos sociais complexos a partir de modelos ideais”, cf.: RUST, Leandro
Duarte; LIMA, Marcelo Pereira. Ares Pós-Modernos, Pulmões Iluministas: para uma epistemologia da
História Comparada. Revista de história comparada (UFRJ), v. 03, 2008, p.14. Em Weber, contudo, a
análise comparativa não opera na busca daquilo que seja comum a várias ou a todas as configurações
históricas ou pessoais mas, pelo contrário, permite trazer à tona o que é peculiar a cada uma delas. Logo,
buscando encontrar fatores que estavam ausentes em outros momentos históricos, grupos ou culturas, o
sociólogo praticou uma comparação sem a preocupação do correr temporal, tão característico da
História enquanto disciplina analítica, ver WEBER, Max. The city. New York: Paperback, 1966;
RINGER, Fritz. A metodologia de Max Weber: unificação das ciências culturais e sociais. São
Paulo: EDUSP, 2004.
24
Para mais informações acerca do método comparativo na obra de Marc Bloch, ver: SEWELL,
William. Marc Bloch and the logic of comparative history. History and Theory, v.6, n.2, 1976, p.208-
218. Para os textos do próprio historiador, cf.: BLOCH, Marc. Comparação. In: BLOCH, Etienne (org).
História e historiadores. Lisboa, Teorema, 1998, p.111-118. ______. Por uma História Comparada das
Sociedades Européias. In: BLOCH, Etienne (org). História e Historiadores. Lisboa: Teorema, 1998,
p.119-150
25
DURKHEIM, Émile. As regras do método sociológico. 6ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1974.
26
BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História. Revista
de História Comparada. v.1, n.1, 2007, p.6.
27
Para uma melhor discussão acerca deste caráter comparativo proposto por Marc Bloch e para uma
discussão acerca da relação entre a História Comparada e as críticas epistemológicas surgidas no século
XX, ver: RUST, Leandro Duarte; LIMA, Marcelo Pereira. Op. Cit.
21
décadas de 1970 e 1980; que ampliaram as possibilidades metodológicas das
comparações, a História Comparada ainda receberia uma profunda modificação. Esta
nova proposta de mudança viria na voz do belga Marcel Detienne, especialista em
mundo grego. Detienne parte da crítica ao modelo proposto por Marc Bloch, que
procura explicar semelhanças e diferenças em séries análogas. Bloch, portanto,
segundo o helenista, procura fazer um modelo mais seguro de comparações buscando e
defendendo uma cientificidade específica – demasiadamente rígida na visão de
Detienne. Desta forma, o autor propõe uma análise a qual se compare o incomparável,
daí mesmo o título da obra 28. Detienne, que sugere a aproximação entre os
historiadores e os antropólogos uma vez que estes últimos já estão acostumados com
modelos comparativistas de caráter não-hierarquizante, prega por uma prática de
pesquisa em grupo sem a necessidade de que cada membro abra mão de sua formação
específica, o que enriqueceria a análise.
O historiador alemão Jürgen Kocka, defendendo um novo tipo de história que
empregasse métodos e teorias das ciências sociais, a chamada Historische
Sozialwissenschaft 29, diferenciou em seu célebre texto Comparação e Além quatro
propósitos para a História Comparada: os propósitos heurísticos, que permitem
identificar pontos que seriam perdidos sem as comparações; os descritivos, que
esclarecem determinadas singularidades perante os contrastes; os analíticos, facilitando
a localização e a resposta de questionamentos; e os paradigmáticos, que facilitariam o
afastamento do historiador ante seu objeto30. Por sua vez, o historiador britânico John
Tosh ainda afirmaria que a História Comparada, em qualquer nível comparativo, é “um
meio essencial de aprofundar nossa compreensão do passado”31. Podemos, partindo
destas lógicas, pensarmos na pluralidade de dimensões comparáveis, o que gera
inúmeras possibilidades analíticas. Assim, passa a ser possível, desde a comparação
macro, como as propostas por Arnold Toynbee, até as análises micro, como as
demonstradas por Tosh.
28
DETIENNE, Marcel. Comparar o incomparável. Aparecida: Idéias & Letras, 2004.
29
FONTANA, Josep. A história dos homens. Bauru: EDUSC, 2004, p.368.
30
KOCKA, Jürgen. Comparision and Beyond [tradução de Maria Elisa da Cunha Bustamante]. History
and Theory. 42, p.39-44.
31
TOSH, John. A busca da história: objetivos, métodos e as tendências no estudo da história
moderna. Petrópolis: Vozes, 2011, p.171.
22
Nos últimos anos, a História Comparada se abriu a uma nova abordagem, a
História Cruzada32. Nesta modalidade historiográfica os pontos analisados são vistos
como unos ocorrendo, assim, uma influência mútua de determinado aspecto em ambas
as realidades pesquisadas. Jürgen Kocka defende que os comparativistas se utilizem
também da História Cruzada, uma vez que,
32
Histoire Croisée ou Verflechtungsgeschichte [História Entrelaçada]
33
KOCKA, Jürgen, Op. Cit., p.4.
34
Ibidem
35
HAUPT, Heinz-Gerhard. O lento surgimento de uma História Comparada. In: BOUTIER, J., JULIA,
D. (org.) Passados recompostos: campos e canteiros da História. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ /
Editora da FGV, 1998. p. 205-216. HANNICK, Jean-Marie Breve história da História Comparada. In:
JUCQUOIS, G; VILLE, Chr. (eds.). O comparatismo nas Ciências do Homem. Abordagens
pluridisciplinares. 2000, p.301-327.
23
História Comparada conforme um campo historiográfico próprio, como: um duplo ou
múltiplo campo de observação, mesmo que o foco central da análise seja um dos
objetos que estão sendo comparativamente analisados; a utilização de metodologias
comparativas; uma escala de inscrição; uma perspectiva de análise; e uma articulação
intradisciplinar com outras modalidades históricas 36. Resta-nos, agora, advogar em
favor de uma análise comparativa das trajetórias intelectuais individuais como fonte
para a análise social, política e cultural nos quais estas realidades de vida estão
circunscritas.
1.1.3 Uma história cercada de vidas: Leopold von Ranke, Richard Wagner e a
possibilidade comparativa
36
BARROS, José D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História. Revista
de História Comparada. v.1, n.1, 2007, p.26.
37
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. KERSHAW, Ian. Hitler. São Paulo: Companhia
das Letras, 2010.
24
de atores específicos, torna-se possível perceber as características que marcam
determinado período e certo processo38.
A partir de então podemos, também, comparar duas visões de mundo para
compreendermos mais plenamente uma realidade unitária: dois sujeitos circunscritos
no mesmo quadro social, pouco importando qual posição ocupam em suas realidades,
podendo ser próximos ou distantes, criam interpretações sociais singulares. Neste
sentido, esses dois indivíduos podem oferecer material relevante para a melhor
compreensão de seus determinados quadros. E mais, se os indivíduos comparados
forem intelectuais, o estudo passa a oferecer uma nova possibilidade de abordagem,
muito mais ampla, uma vez que, o indivíduo, além de estar inserido em um
condicionamento social oferecendo possibilidades de análise através de sua existência
em si, passa a ser também um produtor, assim, deixa-nos obras imersas de vida social,
econômica, política e cultural.
Esses são o caso do historiador Leopold von Ranke e do compositor Richard
Wagner. Estes dois indivíduos viveram, pensaram e criaram durante o processo de
Unificação do Estado Alemão, ocorrido na segunda metade do século XIX, e acabaram
se apresentando como fundamentais dentro de seus períodos devido a suas
interpretações específicas deste fenômeno político-cultural. Assim, passa a ser possível
problematizá-los caso desejemos compreender o processo como um todo já que, como
afirmou Norbert Elias,
38
KOFES, Suely. Uma trajetória em narrativas. Campinas: Mercado das Letras, 2001.
39
ELIAS, Norbert. Norbert Elias por ele mesmo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001, p.70.
40
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. 3ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
25
conforme afirmou o sociólogo austro-americano Peter Berger, as ocupações escolhidas
pelos indivíduos os subordinam diretamente a uma série de controles e interpretações
sociais41. Assim, os talentos especiais, como a composição operística de Richard
Wagner, a narrativa historiográfica de Leopold von Ranke e as análises políticas
presentes em ambos, acabam se tornando pontos de determinação e reconhecimento
social42.
Aproximamo-nos, portanto, a partir destes dois atores, de uma História Social
das Ideias historiográficas, artísticas e, certamente, políticas. O historiador francês
Emmanuel Le Roy Ladurie nos fala acerca da História das Ideias:
41
BERGER, Peter. Op. Cit.
42
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995.
43
LADURIE, Emmanuel Le Roy. Op. Cit., p.59.
44
SIRINELLI, Jean. Génération intellectuelle: Khâgneux et normaliens dans l’entre-deux-guerres.
Paris: Fayard, 1988. SIRINELLI, Jean. Les elites culturelles. In: RIOUX, Jean-Pierre; SIRINELLI Jean-
François. Pour une histoire culturelle. Par is: Seuil, 1997. DOSSE, François. História e Ciências
Sociais. Bauru: EDUSC, 2004.
26
intelectual solitário, totalmente livre de pressões exteriores, como nos diz Mathias
Schreiber, são plenas ilusões analíticas45, o que também se apresenta como central a
partir do momento no qual estes autores estão insertos em determinadas dinâmicas
criativas, como é o caso do historicismo rankeano e do romantismo wagneriano.
No mais, pensamos aqui, de que forma podemos, a partir de um rigor
metodológico, comparar estes autores para compreendermos estruturas maiores
inseridas na mesma realidade. Para isto, partimos da noção de que nas análises dos
intelectuais podemos colocar em paralelo a estrutura social que caracteriza a produção,
o esquema político no qual esta realidade social está inserida e é praticada, a cultura
que forma a produção e a própria produção individual marcada pelas interpretações do
autor de seu mundo46. Assim sendo, a leitura desses indivíduos deixa de lado as
curiosidades das biografias dos tempos passados e passa a interagir com ramos de
conhecimentos sociais. Logo, elencamos Richard Wagner e Leopold von Ranke por
acreditarmos que nestes autores localizamos aquilo que o historiador francês Jacques
Le Goff chamou de ‘sujeitos globalizantes’47. Ou seja, aqueles sujeitos nos quais se
encontram características de um mundo que queremos compreender. Neste sentido,
Wagner e Ranke nos apresentam uma possibilidade ímpar: produziram
intelectualmente em variados estilos, analisaram a dinâmica política, social e cultural
de seus momentos e tomaram partido em significativas movimentações sociais e
intelectuais.
O que se pretende, portanto, nas páginas que se seguem desta tese doutoral, é
uma análise de caráter comparativo. Entretanto, a comparação se faz a partir da eleição
de uma categoria interpretativa para a sua condução. Desta forma, pensaremos nos
mecanismos de interpretação política do nacionalismo propostos variadamente por
Wagner e Ranke para a Unificação do Estado Alemão. Neste tom, poderemos perceber
que Leopold von Ranke, inserido no reino da Prússia como funcionário, defenderia
uma noção de kleindeutsch (pequena Alemanha), tal qual a monarquia a que se
submetia; enquanto que Richard Wagner defenderia uma noção mais abstrata
45
SCHREIBER, Mathias. Los solitarios colectivizados. Sobre la situación cultural del escritor en la
sociedad actual. In: SILBERMANN, Alphons; KÖNIG, René (orgs). Los artistas y la sociedad.
Barcelona: Editorial Alfa, 1983, p.9-28.
46
LINTON, Ralph. The cultural background of personality. New York: Appleton, 1945.
47
LE GOFF, Jacques. Op. Cit. Muitas vezes a referência se encontra com o conceito de ‘sujeitos
totalizantes’.
27
politicamente e mais ampla culturalmente, a großdeutsch (grande Alemanha), tal qual
pensado pela Áustria e pelo reino da Baviera, no qual produzia.
Visto que a nossa problemática se insere na interpretação de Ranke e de
Wagner acerca do fenômeno da Unificação do Estado alemão e, como estes
intelectuais o representam direta ou indiretamente em suas obras como uma forma de
manifestação da necessidade do nacionalismo, lançamos mão do método comparativo
para a análise, nos parâmetros demonstrados anteriormente. Entretanto, como
afirmado, o método comparativo acaba se transformando no fio condutor de uma
pluralidade metodológica. Assim, buscaremos, também, a análise metodológica da
historiografia e da música.
A História da historiografia ganhou notável ampliação de debates em território
brasileiro a partir dos anos 2000, principalmente, pela inserção de pesquisadores
nacionais nos debates germânicos propostos por autores como Reinhart Koselleck e
Jörn Rüsen. Todavia, esses estudos, não apenas no Brasil, centraram-se notadamente
nas características internas do texto historiográfico esquecendo-se, assim, de seus
respectivos locais de fala e impulsos político-sociais referentes as suas criações48.
Logo, passa a ser relevante olharmos, também, para os locais institucionais e pessoais
da produção historiográfica, analisando os textos a partir de seus relacionamentos
internos. Seguindo a mesma lógica, a História da música praticada em território
brasileiro ainda se apresenta presa a estruturas acadêmicas antigas, não tendo
acompanhado a necessidade de problematização historiográfica. Com isso, percebemos
uma prática acadêmica ainda centrada em grandes personagens, bem como a presença
de uma narrativa finalista, que conduz o personagem a uma vida de glória e produção
intelectual relevante excluindo-se, assim, toda a rede de sociabilidade e existência
política e cultural que formam o indivíduo enquanto artista em prol de uma
característica quase que espiritual do indivíduo. E mais, no caso da música ainda se
encontra o problema técnico da análise: significativas abordagens focam suas análises
apenas na figura da letra da música – excluindo, portando as músicas instrumentais –
ou na figura do produtor, obliterando a música em si.
Para a análise da percepção destes intelectuais acerca do processo de
unificação, elegemos duas obras centrais, retiradas da coletânea de obras completas
dos autores. Neste sentido, de Leopold von Ranke, selecionamos o volume Povos e
48
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A escrita da história. 2ed. Rio de
Janeiro : Forense Universitária, 2002.
28
Estados49, coletânea de textos políticos organizada pelo historiador durante a década
de 1870. Nesta obra, síntese de seu pensamento político expresso durante toda a sua
produção, podemos localizar a visão de Ranke acerca da unidade cultural dos povos
germânicos, fundamentadora de uma Alemanha restrita e unificada (kleindeutsch) a
partir do poder do Reino da Prússia – do qual o intelectual era um funcionário.
De Richard Wagner, selecionamos o trecho chamado Política50 da coleção de
obras completas do músico, também organizada por este, em 1882, um ano antes de
sua morte. Nestas, localizamos as percepções políticas de unificação nacional do autor
em prol de uma Alemanha ampliada (großdeutsch) – contando com a presença da
Áustria. Com isso, comparativamente, passa a ser possível percebermos a pluralidade
de possibilidades interpretativas acerca da unificação nacional do Estado alemão. Ou
seja, a partir destes autores, podemos perceber a intensa movimentação da
intelectualidade germânica acerca de temas específicos, como as revoluções, a
monarquia, a república e a função de personagens individuais específicos.
Muitos estudos já foram realizados sobre a produção de Leopold von Ranke e
de Richard Wagner. Em certa medida, até mesmo já se pensou nas características
políticas destes autores. Todavia, não ocorrem estudos acerca do pensamento destes
autores e de como suas produções se inserem no ambiente intelectual da unificação
alemã a partir do prisma comparativista o que, certamente, se apresenta como uma
possibilidade nova para a compreensão deste fenômeno e de como a fundamentação de
uma cultura específica cria e recria laços nacionais a partir de uma noção de passado
comum e língua específica.
49
RANKE, Leopold von. Völker und Staaten in der neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen
Rentsch Verlag, 1945.
50
WAGNER, Richard; FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und
Briefe. Directmedia: Berlin, 2004. [edição digital dos textos completos de Richard Wagner].
29
Graduação em História Comparada do Instituto de História da Universidade Federal do
Rio de Janeiro, encontra-se dividida em três capítulos. Por se apresentar como uma
análise comparativa, escolhemos por interligar aspectos similares e diferentes dos dois
autores aqui selecionados, o historiador Leopold von Ranke e o compositor Richard
Wagner, ao longo de todo o texto. Esta opção foi feita por acreditarmos que transforma
o trabalho em mais original além de teórico-metodologicamente mais consistente o
que, certamente, ressalta problematizações que logicamente não se esgotam aqui. Na
mesma medida, já que analisamos o pensamento de dois indivíduos, optamos por tecer
uma trama narrativa feita por idas e vindas, inserindo-os aos poucos em suas
historicidades – afinal, como afirma Pierre Bourdieu, a análise das trajetórias de vidas
só pode ser feita se respeitar a não-linearidade da existência do homem no tempo, sob
pena de se perder em meras ilusões biográficas51.
Em nosso primeiro capítulo, Interpretações Plurais: historicismos e
romantismos na formação da Alemanha, buscamos analisar a movimentação
intelectual que percorreu o território germânico ao longo do século XIX. Neste sentido,
apresentamos o historicismo como uma abordagem filosófico-historiográfica que,
procedendo da crítica direta ao positivismo francês, estabelece uma nova epistemologia
– teórica e metodológica – para a análise das especificidades históricas às quais os
povos se vinculam. Mais do que isso, o historicismo, modalidade interpretativa a qual
Leopold von Ranke se vincula diretamente, passa a ser pensado de forma ampliada:
transitando entre o realismo histórico, preocupado com a descrição efetiva de um
passado – como é o caso do próprio Ranke –; e o relativismo histórico, focado não
apenas na narrativa científica como também no lugar de fala e subjetividade do
historiador. Em seguida, apresentamos a interpretação artístico-composicional na qual
Richard Wagner se insere, o romantismo. Este também passa a ser compreendido
como uma reação perante os modelos e formas musicais de outros territórios e tempos.
Logo, a grande questão passou a ser qual forma musical seria a mais válida para os
germânicos após a contribuição fundante de Ludwig van Beethoven. Tal qual o
historicismo, o romantismo também possuiu interpretações plurais: alguns afirmando o
limite da música atingido por Beethoven; outros, apontando a contribuição do
compositor de Bonn como o início de uma nova era musical – dentre estes últimos,
51
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaína
(orgs). Usos e Abusos da História Oral. 8ed. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas,
2008, p.182-191.
30
localizamos Richard Wagner. Assim sendo, neste capítulo perceberemos a
interpretação historiográfica rankeana como tradicionalista perante a relativização da
objetividade histórica enquanto que a interpretação musical wagneriana se apresentava
como moderna ao ser comparada com a tradição. O ponto central passa a ser, portanto,
o embate desta intelligentsia germânica, romântica e historicista, para a configuração
da ‘real’ cultura germânica.
Para a elaboração de nosso primeiro capítulo, utilizamos uma discussão
bibliográfica que debate diretamente os fenômenos do romantismo e do historicismo.
Duas interpretações de mundo comuns na Germânia do século XIX e que acabaram
por se vincular com a necessidade nacionalista ofertadas pelas possibilidades políticas
de unificação do Estado. De Leopold von Ranke especificamente para este capítulo,
utilizamos o Vorlesungseinleitungen [Palestras introdutórias], no qual rebateu as
apostas da historiografia positivista em prol da relativização do conceito de progresso;
Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514 [História
dos povos romanos e germânicos de 1494 até 1514] e Völker und Staaten [Povos e
Estados] nas quais discute a sua visão histórica – indo além da reducionista
interpretação ainda vigente de que ‘cabe à História e à prática historiográfica
apresentar o passado tal qual ocorreu’. De Richard Wagner, e seu ideal de música
romântica, selecionamos dois textos: Beethoven e Eine Pilgerfahrt zu Beethoven [Uma
peregrinação a Beethoven]. Nestes textos, partindo de traços biográficos do compositor
de Bonn, Wagner demonstra a necessidade de vinculação do romantismo ao crescente
nacionalismo germânico, afastando-se, portanto, de autores como Robert Schumann e
Johannes Brahms.
O capítulo seguinte, Novos tempos, novas formas: as manifestações da
profissionalização do músico operista e do historiador durante o século XIX: as
contribuições de Leopold von Ranke e Richard Wagner, abordaremos inicialmente a
criação de duas revistas específicas responsáveis pela divulgação do pensamento de
Leopold von Ranke e de Richard Wagner, a Historisch-Politische Zeitschrift e a
Bayreuther Blätter, respectivamente. Estas publicações periódicas se apresentam como
relevantes já que esboçaram sistemicamente o pensamento de seus diretores acerca do
processo de unificação nacional, manifestando suas ideias e interpretações sobre o
momento político, através do resgate do passado e da análise da cultura artística. Mais
do que isso, estas publicações demonstram, também, o lento processo de liberdade
31
intelectual pelo qual os intelectuais passavam no século XIX. Em seguida, e ainda
problematizando a liberdade intelectual, passamos a analisar como Ranke e Wagner
estabeleceram novos procedimentos metodológicos de trabalho. Desta forma, notamos
a formação da metodologia histórica de Leopold von Ranke e sua noção de
afastamento do objeto interpretado a partir de sua busca documental diplomática
primária, bem como a total inserção de Richard Wagner na produção de suas óperas:
desde a busca pelo tema até a escolha dos músicos, passando pela construção total do
libreto – algo inédito até então. Este estabelecimento de metodologias de pesquisa
próprias acabou possibilitando com que os autores criassem estilos próprios de
narrativa, tanto histórica quando operística e mais, possibilitou que ambos erigissem
um arcabouço conceitual – direta ou indiretamente. Neste sentido, analisaremos os
conceitos wagnerianos de leitmotiv, o motivo condutor utilizado para personagens,
temas e momentos específicos, plenamente configurado pelo compositor germânico;
de drama musical, enquanto reformulação da ópera que passaria a unir integralmente
todos os aspectos cênicos; e de Obra-de-Arte Total, enquanto uma obra para o futuro.
No mesmo aspecto, buscamos ler os conceitos rankeanos de passado real, responsável
pela leitura integrada dos vários Estados europeus existentes ou em formação; bem
como o conceito de passado essencial, responsável por eleger determinado Estado ou
povo – grupo nacional no pensamento de Ranke – e colocá-lo em diálogo com seu
próprio passado e com o passado dos Estados ou povos próximos.
Para este capítulo, utilizamos – além das duas revistas editadas direta ou
indiretamente por Ranke e Wagner, a Historisch-Politische Zeitschrift e a Bayreuther
Blätter –, de Leopold von Ranke, as obras Geschichten der romanischen und
germanischen Völker von 1494 bis 1514 [História dos Povos Romanos e Germânicos
de 1494 até 1514], na qual o historiador demonstra suas inovações metodológicas de
pesquisa; Zur Kritik neuer Geschichtsschreiber [Para a Crítica da Contemporânea
Historiografia], na qual apresenta erros historiográficos cometidos até então e as
possibilidades de superação destes equívocos; e Die römischen Päpste [História dos
Papas], uma das primeiras obras na qual o historiador buscou aplicar seu novo
arcabouço teórico-metodológico de um historicismo realista. De Richard Wagner
utilizamos, na elaboração deste capítulo, o texto Was ist deutsch? [O que é germânico],
no qual o autor demonstra, a partir da publicação na revista que era editor-chefe, as
possibilidades de se analisar uma cultura germânica e como esta se vincula com a
32
formação territorial da Alemanha; além desta, utilizamos a obra Opera und Drama
[Ópera e Drama], na qual o autor demonstra seus conceitos artísticos iniciais para a
modificação da produção e escrita operística em prol de uma arte nova e unificadora,
possível de gerar uma música total; por último, utilizamos o texto Das Kunstwerk der
Zukunft [A Obra-de-Arte do Futuro], obra na qual, partindo do Ópera e Drama,
Richard Wagner apresenta a possibilidade de criação de uma arte que pudesse fundir
todos os aspectos estéticos necessários para a reafirmação de uma nacionalidade
germânica. Por último, devemos lembrar que além destes textos teóricos do
compositor, utilizamos, também, sua autobiografia Mein Leben [Minha Vida] na qual
expões parte significativa acerca dos textos analisados.
O último capítulo, Interpretações políticas ou as ideias ganham forma: a
leitura da revolução e dos personagens, busca analisar as interpretações políticas de
dois fenômenos na obra de Leopold von Ranke e Richard Wagner. Desta forma,
elegemos, como possibilidades problematizadoras, a interpretação que estes autores
possuem acerca das manifestações revolucionárias e a atuação dos indivíduos enquanto
seres políticos. O século XIX certamente ficou, concomitantemente, conhecido como
sendo um período marcado por movimentações revolucionárias. Neste sentido,
intelectuais, como os aqui analisados, pensaram nas revoluções e mais, como estas
poderiam se apresentar politicamente, a favor ou contra, os processos de unificação
política dos Estados alemães. Ou seja, a revolução, nestes, se identificava com
questões nacionais. Assim, Ranke analisou a Revolução Francesa de seu lócus
conservador, demonstrando o perigo que esta levou ao Estado francês; encontrando,
entretanto, as origens da fragilidade política e da necessidade social desta
movimentação. Wagner também pensou a revolução. De outras formas porém. O
compositor, além de ativo nas Revoluções Nacionalistas de 1848, escreveu textos
inflamatórios e adaptou-os às suas composições operísticas – acreditava, como
veremos, na força de suas óperas para a revolução nacionalista. O Século XIX ficou
conhecido, também, pela aceleração do processo de individualização social. Isto é, o
indivíduo ganhou relevância perante o grupo social e político ao qual estava inserido.
Esta interpretação, já percebida em autores como Philippe Ariès e Michelle Perrot
também pode ser identificada na produção intelectual de nossos atores. Em Ranke e
Wagner esta individualidade encontraria a figura do herói político. Neste tom,
analisaremos como o historiador demonstrou a força política de personagens
33
específicos, como Henrique IV da França, Ignácio de Loyola e o Papa Paulo III.
Assim, reconstruindo personagens e anulando, muitas vezes, suas falhas, exaltou os
personagens políticos da história, reafirmando o poder conciliador dos poderes
centralizadores em um Estado fragmentado que buscava unidade. O operista, por sua
vez, também identificou em personagens heróicos, míticos ou reais – mesmo que
recriados –, a possibilidade de unidade nacional e política. Para tal, analisaremos como
o compositor recriou a história de Cola de Rienzi, responsável por tentar estabelecer
um panorama de igualdade social em Roma – igualdade esta tão buscada nas
manifestações de 1848; e recontou a lenda de Lohengrin, um dos cavaleiros protetores
do Graal, o inserindo em disputas políticas em prol da defesa unitária dos germânicos
– defesa também necessária em uma conjuntura de possíveis conflitos com outros
Estados. Ao término do capítulo, a partir do histórico da Unificação Alemã,
pretendemos aprofundar as interpretações políticas de Leopold von Ranke e de
Richard Wagner, analisando as possibilidades de Alemanha unificada pensada por
cada um destes autores. Ou seja, qual seria a melhor opção para a unificação: uma
Grande Alemanha, tal qual desejada pelo compositor, ou uma Pequena Alemanha, de
menor dimensão e poder mais centralizado, tal qual a proposta do historiador
prussiano.
Para a elaboração deste capítulo, utilizamos, de Leopold von Ranke, Die
großen Mächte [As Grandes Potências], mais especificamente a parte referente à
Revolução Francesa, Französiche Revolution, na qual o historiador apresenta sua visão
acerca deste fenômeno; Heirich IV, na qual demonstra as ações políticas e a vinculação
com a religiosidade do rei francês Henrique IV; e Die römischen Päpste [História dos
Papas], mais especificamente as partes referentes a Ignácio de Loyola e ao Papa Paulo
III. Nestes textos, o historiador procurou demonstrar as possibilidades de concentração
de poder em atores específicos lidos heroicamente e do jogo político perante contextos
de crise social e política – tal qual ocorria nos territórios germânicos ao longo do
século XIX. De Richard Wagner, utilizamos o libreto da Tetralogia do Anel52, o qual
buscamos comparar diretamente com o texto Die Revolution [A Revolução], obra na
qual o compositor faz um elogio direto às manifestações revolucionárias de 1848-
1849, conhecidas como Primavera dos Povos, as quais o próprio compositor foi um
entusiasta. Além disso, analisamos, a partir da autobiografia do compositor, Mein
52
DURÃES, Lúcia Schiffer. Richard Wagner: O Anel do Nibelungo. Brasília : MusiMed, 2008.
34
Leben [Minha Vida], a escrita e as maniferstações políticas presentes em duas de suas
óperas: Rienzi, der letzte der Tribunen [Rienzi, o último tribuno] e Lohengrin. Nestas
óperas, o compositor demonstrará a pluralidade interpretativa de seu pensamento
político: desde certo republicanismo na primeira, até a possibilidade de poder político
concentrado na segunda além, é claro, de demonstrar a pluralidade revolucionária e a
interpretação da figura dos homens centrais específicos como motores possíveis da
dinâmica social.
Com isso, pretendemos demonstrar a pluralidade de pensamento político no
interior dos territórios germânicos em seu momento de unificação. Wagner e Ranke
foram relidos durante o século XX, muitas vezes de forma equivocada: o historiador,
assimilado ao positivismo; o compositor, ao nacional-socialismo. Certamente, porém,
suas contribuições políticas para a unidade político-nacional ultrapassam essas
simplificações.
Ao término da tese, apresentamos, como anexo, alguns documentos escritos
pelos autores analisados durante o texto. Estes textos colaboram com a compreensão
dos respectivos pontos de vista de Leopold von Ranke e Richard Wagner. Assim, de
Ranke, apresentamos uma Carta ao Rei Maximiliano II da Baviera, na qual o autor
demonstra sua ideia historiográfica de objetividade e seu temor revolucionário; em
seguida, ainda demonstrando seu ideal historiográfico, além de sua profunda
religiosidade, apresentamos a tradução de uma Carta de Ranke a seu filho Oto – de
1873; por último, ainda do historiador prussiano, temos sua análise do relacionamento
entre Sobre as afinidades e diferenças entre a Política e a História, central no
pensamento rankeano53.
De Richard Wagner, também apresentamos algumas traduções. Em primeiro, a
do texto A revolução, escrito em 1849, durante as revoltas de Dresden, um dos últimos
fôlegos das Revoluções de 1848, no qual o compositor demonstra seus ideais
revolucionários. Em seguida, apresentamos o texto Wieland, parte final do texto A
obra de arte do futuro no qual o compositor compara o povo alemão em busca de sua
unidade ao herói da mitologia germânica responsável por desafiar os poderes
contrários. Por último, apresentamos a tradução de dois libretos operísticos do
53
As originais destes textos, utilizadas nas traduções, podem ser encontradas em: RANKE, Leopold
von. Völker und Staaten in der neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945,
p.500-516.
35
compositor, ambos utilizados para a elaboração da tese: Rienzi, o último tribuno e
Lohengrin54.
Vale ressaltarmos que os textos em língua alemã possuem uma estrutura
gramatical diferenciada do português – em certa medida, devido às declinações. Além
deste fator, Leopold von Ranke e Richard Wagner conseguem aliar, em seus textos,
complexidade de escrita e uma análise significativamente densa. Em nossa tradução
tentamos manter o texto o mais próximo do original sem abrir mão, todavia, das
adaptações necessárias.
Após os anexos documentais traduzidos, encontram-se dois textos como
apêndices, produzidos durante a pesquisa. Estes foram pensados como ensaios
historiográficos complementares à discussão travada na tese: o embate entre a política,
a história e a música. Neste sentido, o primeiro destes textos, História e Política: uma
revisão conceitual, de caráter de revisão historiográfica, busca discutir pontos acerca
da relação entre a política e a própria prática historiográfica. Desta forma, partindo de
uma revisão histórica acerca de como as manifestações da política se estabeleceram
enquanto objeto e fonte para a prática histórica, procuramos atingir as análises acerca
dos (ab)usos políticos da produção historiográfica, como é comum no caso das defesas
nacionalistas empreendidas nos últimos séculos, notadamente por Leopold von Ranke,
em nosso caso, até a configuração daquilo que convencionou-se chamar consciência
histórica.
Nosso segundo apêndice, Música e Política: uma revisão teórico-
metodológica, procura demonstrar, paralelamente ao ensaio anterior, a partir de uma
discussão teórico-metodológica, como a política se fez presente no interior da música
ocidental, notadamente a operística, mesmo que, muitas vezes, de forma indireta ou
mesmo inconsciente, para utilizarmos uma referência teórica contemporânea. A partir
disto, demonstramos, também, os usos políticos da produção musical que acabaram
por fundamentar variadas possibilidades propagandísticas e ideológicas das políticas
desde panoramas antigos, até o tempo presente, como no caso do próprio nacionalismo
romântico de Richard Wagner.
54
As originais destes textos, utilizadas nas traduções, podem ser encontradas em: WAGNER, Richard;
FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia:
Berlin, 2004.
36
2. INTERPRETAÇÕES PLURAIS: HISTORICISMOS E ROMANTISMOS NA
FORMAÇÃO DA ALEMANHA
Decerto não existiu Alemanha até a década de 1870. Entretanto, existia sim
uma Germânia: uma territorialidade política ampla e independente internamente,
ligada pelos mais variados vínculos culturais que, estabelecida a partir do Sacro
Império Romano das Nações Germânicas 1, formou um complexo mosaico político,
administrado por uma ampla rede de poderes e que se estendeu até o início do século
XIX, tendo fim em 1806, durante o período das invasões napoleônicas. O que ligava a
população neste específico vínculo cultural enquanto ocorria a inexistência de um
Estado definido e territorialmente localizado se estende aos mais variados fatores.
Neste sentido, interpretações de uma liberdade religiosa cristã no interior das
localidades que viram emergir a reforma luterana; de personagens relevantes internos e
externos; de um passado comum remetido aos bárbaros e ao medievo; das
manifestações artístico-intelectuais; estabeleceram-se, ao longo dos séculos, como
alguns dos fatores que levariam os germânicos a se sentirem pertencentes a um grupo
específico, definidor de um inicial processo de reconhecimento nacional, apesar das
perceptíveis pluralidades sociais internas.
Durante o século XIX, notadamente após a derrota de Napoleão Bonaparte e
consequente instauração do Congresso de Viena (1814 e 1815), o qual foi responsável
pelo início dos processos de Restaurações, ratificou-se uma nova unidade política aos
povos germânicos: a Confederação Germânica2. Tornou-se visível e emergencial a
discussão que anteriormente era realizada apenas de forma indireta: a amplitude de
configurações políticas possíveis ao se tratar do fenômeno de unificação nacional de
um realizável Estado germânico. Neste sentido, enquanto politicamente se discutia esta
ampla interpretação política, sistematizada razoavelmente em dois grandes eixos
analíticos, a klein- e a grossdeutsch3 defendidas, respectivamente, pelo Reino da
Prússia e pelo Reino da Áustria4, ocorriam disputas sobre outras áreas de sombra
1
Em alemão, idioma falado no território, o Sacro Império Romano era nomeado por Heiliges Römisches
Reich. Por outro lado, em latim, idioma corrente em documentações oficiais, era chamado por Sacrum
Romanum Imperium.
2
Em alemão: Deutscher Bund.
3
Pequena e Grande Alemanha, respectivamente.
4
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Projeto Prussiano de Império Alemão. In: ______;
CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J. Impérios na História. Rio de Janeiro : Elsevier, 2009,
p.223-234.
37
cultural que delimitariam novas visões do mundo germânico. Dentro das necessidades
destas novas interpretações, duas áreas inseriam-se na disputa por essa possível
germanidade: a prática histórica e a música operística. Notadamente, historiografia,
música e outras áreas da produção intelectual foram se consolidando como áreas
específicas influenciadas também pela maior liberdade de produção dos autores,
nitidamente ocorrida já a partir de meados do século XVIII.
A historiografia germânica do século XIX se aproximou daquilo que ficou
sistematizado posteriormente como historicismo; a música como um todo, e
logicamente também a operística, inseriram-se, por excelência, na configuração do
romantismo. No entanto, estas áreas culturais em disputas internas identificadas no
historicismo e no romantismo não apresentaram uma nítida unidade interpretativa, ou
seja, os autores vinculados a estes fenômenos possuíam diversificada interpretação do
próprio momento histórico e de suas produções intelectuais. Com isso, historiografia
historicista, tais como a de Leopold von Ranke e Johann Gustav Droysen; e música
operística romântica, como a de Robert Schumann e Richard Wagner; mais do que
disputadas pela necessidade social, estabeleceram-se, internamente, como áreas de
interpretações plurais. Desta forma, seria mais correto se pensar em historicismos,
interpretados entre as possibilidades do realismo e do relativismo e romantismos,
localizados entre a manutenção da tradição e a busca pela modernidade que se
apresentava.
5
AURELL, Jaume. A escrita da História: dos positivismos aos pós-modernismos. São Paulo :
Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio, 2010. O autor demonstra, nesta obra, como
ambas correntes estabelecem uma noção de que há um plena possibilidade de compreensão histórica, o
38
simplificação anulou também a amplitude interna de cada um desses movimentos,
principalmente o historicismo. Desta forma, seria mais acertado tratarmos o
historicismo como uma manifestação interna plural, ou seja, seria mais preciso pensar
em historicismos. Ambas as possibilidades, positivismo e historicismo, entretanto,
tiveram um nome central vinculado: o historiador prussiano Leopold von Ranke.
Contudo, é certo que ocorrem alguns equívocos: vincular o positivismo e o
historicismo como correntes interpretativas iguais, e mais, vincular o historiador
prussiano ao positivismo ou mesmo ao historicismo como um todo unificado são
apenas algumas destas confusões que se estabeleceram e mantiveram por leituras
reducionistas até nosso tempo presente6.
Tanto as amplas interpretações dos positivismos quanto dos historicismos,
enquanto primeiros paradigmas claramente estabelecidos de uma teoria da História,
possuem vinculação com esta razoável concepção de coerência e linearidade histórica.
Esta característica, a marca por uma noção metodológica cientificista específica e,
muitas vezes, próxima a das outras práticas científicas do século XIX então em franco
crescimento, marcam esses modelos enquanto formas de transição entre as
interpretações filosóficas da História e as próprias análises teóricas da disciplina.
Logo, esses fenômenos intelectuais se apresentaram como teorias, indo além das
Filosofias da História, comuns e dominantes até os séculos anteriores7.
Até meados do século XVIII, as preocupações intelectuais acerca da prática
histórica focavam-se em uma maior carga especulativa. Ou seja, enquanto realizações
pessoais de pensadores específicos, os pensamentos filosóficos possuíam uma
preocupação primordial com o próprio sentido da História. Por outro lado, as
possibilidades ofertadas pelos teóricos da História localizavam a relevância em
preocupações diretas com as práticas metodológicas e com as realidades históricas
que ocorre devido a uma sequência lógica temporal. Este fenômeno, conforme o próprio autor
demonstra, atendeu plenamente às necessidades sociais do século XIX, momento do auge destas
abordagens historiográficas que necessitavam de uma plena vinculação com outros ramos do
conhecimento humano, notadamente as Ciências Naturais.
6
Esta confusão se apresenta, inclusive, em autores relevantes da historiografia contemporânea, como a
obra de Adam Schaff (1913 – 2006), que aproximará profundamente os dois modelos analíticos e,
reduzindo o historicismo realista e especificista, insere Leopold von Ranke nas abordagens positivistas
comteana. Para a obra mencionada, conferir: SCHAFF, Adam. História e Verdade. São Paulo: Martins
Fontes, 1995.
7
Para este panorama histórico, bem como a interação entre as filosofias da história e as teorias da
história, ver: BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: Princípios e conceitos fundamentais.
Petrópolis: Vozes, 2011.
39
percebidas através das fontes analisáveis além, é claro, de configurarem espaços
coletivos de construção e discussão.
Para a compreensão da historiografia germânica historicista, vigente ao longo
do século XIX, estabelecem-se dois pares opostos, mas em constante diálogo: em
primeiro o embate entre os dois paradigmas iniciais da disciplina citados, o positivismo
e o historicismo e, em segundo lugar, a própria amplitude do historicismo, entre o
historicismo realista e o historicismo relativista, este último próximo às questões
hermenêuticas que seriam desenvolvidas ao longo do século XX. Estas duas questões
diretamente configurariam a instauração dos historicismo como abordagem intelectual
germânica no século XIX.
O positivismo herdou seus traços adaptativamente dos pressupostos do
iluminismo e de autores específicos do renascimento. Deste movimento intelectual
veio, portanto, sua necessidade objetivista de localização de leis gerais do progresso
histórico das sociedades e do homem que poderiam ser ocultadas pela ampla
diversidade de culturas espalhadas pelo mundo8. Especificamente, o iluminismo
resgatou e aprofundou noções de progresso histórico e as fundiu a uma consciência
histórica que determinava a possibilidade de se aprender fatores sociais a partir das
percepções do passado, herança da percepção antiga da História como mestra da vida,
a Historia Magistra Vitae de Cícero.
O positivismo, por sua vez, sistematizou a prática do Iluminismo nas mais
variadas formas analíticas do viver humano, como a História, a Sociologia, a
Antropologia e a Economia. Neste tom, os positivistas acreditaram que todas as
comunidades humanas, independentemente das culturas manifestas, estavam
vinculadas a determinadas leis gerais que as faziam progredir e, a partir da
compreensão histórica destas leis, seria possível estabelecer parâmetros para a vivência
futura. Daí a noção de afastamento das culturas específicas que funcionariam
razoavelmente como formas de embaçar e escurecer as análises propostas. Com isso,
havia se estabelecido uma visão um tanto quanto mecanicista da dinâmica do mundo
social, o que aproximou esta forma interpretativa daquelas propostas pelas Ciências
Naturais dos períodos anteriores e do próprio XIX.
8
Esta característica já poderia ser localizada em autores do início da Idade Moderna, como é o caso de
Francis Bacon. Para mais informações sobre esta interpretação em bacon, ver: RICON, Leandro Couto
Carreira. Da dedução à indução ou como quebrar os ídolos e erigir uma 'Casa de Salomão' para a
ciência histórica. Revista Poder e Cultura. , v.1, p.28 - 45, 2015.
40
Portanto, caberia aos analistas, incluindo historiadores, desvelar o sentido
oculto do progresso manifesto de forma desordenada. Nascia aí, a célebre interpretação
que a ordem, social e metodológica, geraria um progresso perceptível, analisável e
impulsionável. Era a formatação da célebre noção de ordem e progresso tão difundida
por Auguste Comte e que encontrou, na interpretação político-social brasileira do
século XIX, local de destaque – permanecendo até hoje no ideário político nacional do
século XXI.
Auguste Comte, um dos principais nomes ao se pensar na formação da
Sociologia do século XIX, seria o principal sistematizador e divulgador de uma análise
cientificamente orientada que se consolidaria como positivismo. Alguns equívocos,
entretanto, se estabeleceram ao se debater o pensamento de Comte – notadamente a
noção de que este autor anulou totalmente os pressupostos da subjetividade. O que há,
de fato, é que este autor colocou a necessidade de que a cada vez que a interpretação
subjetiva aflorar, deve-se colocá-la em confronto com dados objetivos, buscando
anular o excesso de presença do indivíduo, responsável pela análise, focando, portanto,
na objetividade das leis gerais de caráter universalista.
A noção interpretativa da lei geral de Comte pode ser localizada, por exemplo,
na sua proposição da Lei dos três estados. Nesta, baseada na leitura de autores do
período do renascimento inglês como Francis Bacon9 e do iluminismo como
Condorcet10 e Turgot11, o autor identifica fases universais evolutivas em dinâmicas
sociais plurais que se encaminhariam para o equilíbrio social e desenvolvimento
intelectual, aquilo que o autor chamou de fase positiva12. Essa interpretação, no
entanto, mesmo partindo da dinâmica revolucionária do iluminismo, acabou
desembocando em uma interpretação conservadora que buscou apenas a conciliação
entre as classes sociais em um contexto de Restaurações Monárquicas após o período
da Revolução Francesa e das Invasões Napoleônicas, que desestruturariam o Sacro
Império Romano e abalaram as estruturas sociais e políticas das monarquias europeias,
estabelecidas há séculos.
9
BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da
natureza e Nova Atlântida. São Paulo: Nova Cultural, 2005. ______. Del adelanto y progreso de la
ciencia divina y humana. Buenos Aires: Lautaro, 1947.
10
CONDORCET, Marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano.
Campinas: UNICAMP, 1993.
11
TURGOT, Anne-Robert-Jacques. Formation et distribution des richeses. Paris : Flammarion, 1997.
12
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso
preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Seleção de textos de José Arthur
Gianotti. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
41
Evidentemente, conseguimos perceber que a aposta do positivismo ocorreu
inicialmente na França, partindo nas mais amplas direções geográficas, incluindo
Inglaterra e os territórios que formariam a Alemanha, antigas divergências políticas do
Estado francês. Nestes territórios, essa interpretação seria problematizada e, no caso da
Alemanha, acabaria se transformando em outro modelo interpretativo, o historicismo,
em suas mais variadas formas. Logo, o historicismo se apresenta muito mais como
uma proposta crítica de superação frente ao positivismo do que como um continuador
pleno destas propostas13.
As relações entre a França e o Sacro Império Romano foram, ao longo dos
séculos, amplamente conturbadas. A Guerra dos Trinta Anos (1618 – 1648),
inicialmente de caráter religioso e, posteriormente, político, marca bem este fator. A
sequência de invasões promovidas pelo governo de Napoleão Bonaparte, a partir de
1803, também são, neste tom, relevantes14. Entretanto, não apenas ocorriam querelas
políticas. Uma série de embates intelectuais foram se formando e se consolidando em
território germânico em oposição às possibilidades francesas. No caso da
historiografia, ao positivismo francês se apresentou, portanto, como paradigma reativo,
o historicismo germânico.
O termo historicismo aparece, neste sentido, na década de 1870 para se referir,
especificamente, ao pensamento de Giambattista Vico, pensador da transição do século
XVII para o XVIII, afastado das problematizações por anos e retirado do ostracismo
intelectual principalmente por Johann Gottfried von Herder 15. A partir da utilização de
Vico, bem como a de Gottfried Wilhelm Leibniz, filósofo alemão da transição do
século XVII para o XVIII, a produção historiográfica germânica rompia com as
possibilidades e questionamentos de um cartesianismo puro.
De Leibniz, Herder retirou a lógica da multiplicidade e individualidade dos
objetos – ou seja, os objetos históricos passíveis de serem analisados devem ser
pensados a partir da percepção de que são únicos perante uma série infinita de outras
13
Certamente o historicismo teve seu fôlego inicial independente das propostas francesas. Todavia, o
que aqui argumentamos é a aceleração crítica do historicismo germânico ante as propostas do
positivismo. Cf.: BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: Os primeiros paradigmas:
positivismo e historicismo (Volume 2). Petrópolis: Vozes, 2011.
14
Enquanto que uma guerra contra a França de Napoleão Bonaparte fragmentaria o Sacro Império
Romano, o I Reich, outra, mais a frente, contra Napoleão III, sobrinho do general e imperador francês,
unificaria o Estado Alemão, o II Reich.
15
Apesar de ser resgatado do esquecimento acadêmico por Herder, a obra de Giambattista Vico,
fundamental para as interpretações historicistas, apenas seria amplamente discutida através da produção
de outro italiano Benedetto Croce durante a transição do século XIX para o XX.
42
unidades, também passíveis de interpretação. Já de Vico, a ideia de que apenas
podemos conhecer aquilo que nós próprios criamos, o famoso verum factum [o
verdadeiro equivale ao feito], precursor de uma epistemologia construtivista e que se
apresenta como uma fundamentação histórica às variadas análises possíveis dos
homens – isto é, nenhuma coisa pode ser tão densamente conhecida quanto aquilo que
foi criado pelos próprios homens, uma vez que os próprios homens são os responsáveis
pelo fenômeno e por sua análise. Estas duas características, a singularidade e o
conhecimento proposto apenas dentro da interpretação humana marcariam o mote
central do próprio conceito de historicismo do século XIX, retomado no século XX por
uma extensa produção intelectual, notadamente a de Hans-Georg Gadamer e Paul
Ricoeur, alguns dos principais nomes ao se pensar no reflorescimento do historicismo
hermenêutico que estruturariam parte de suas obras a partir da crítica à constituição da
realidade histórica na hermenêutica de Wilhelm Dilthey16.
A partir da compreensão de que positivismo e historicismo se apresentam como
interpretações antitéticas, é possível localizar, comparativamente, suas singularidades
analíticas – todavia, é possível lembrarmos que ambas correntes migram de uma noção
de revolução iluminista, localizada por exemplo na Revolução Francesa, para um
conservadorismo, no período das Restaurações, buscando certa conciliação de classes.
No tangente às diferenciações, percebemos, em primeiro, que o positivismo, e isso é
evidente no pensamento comteano, busca uma interpretação da universalidade humana
através da procura e estabelecimento de leis gerais analíticas a todas as sociedade
humanas; enquanto que no historicismo não ocorre uma interpretação de que os
homens possuem uma história de caráter universalista através de uma possível lei geral
analítica. Esse fator pode ser concebido melhor ao se pensar na dualidade objetividade-
subjetividade do historiador: enquanto que as análises positivistas pressupõem uma
neutralidade objetiva e quase total do historiador, anulando aparatos interpretativos-
culturais; o historicismo percebe que a subjetividade sempre ocorrerá uma vez que os
historiadores também se apresentam como seres históricos e, portanto,
interpretativamente delimitados. Logo, enquanto o positivismo buscou a
universalidade, o historicismo buscou a particularidade histórica. Ou seja, enquanto a
16
ZAGNI, Rodrigo Medina. Hermenêutica e História: A crítica de Gadamer e de Ricoeur à constituição
da realidade histórica na hermenêutica de Dilthey. Jus Humanum - Revista Eletrônica de Ciências
Jurídicas e Sociais da Universidade Cruzeiro do Sul, v. 2, p. 8-37, 2012.
43
primeira corrente procurava o comum a todos os grupos humanos, a segunda
procurava a especificidade de cada.
Outro ponto patente de diferenciação, e que interage diretamente com o par
oposto universalidade-particularidade, é a aposta metodológica de cada paradigma. O
positivismo estabeleceu uma identidade de métodos entre as possibilidades científicas
de seu período, não estabelecendo, assim, uma especificidade epistemológica para cada
área do conhecimento. Com isso, buscou uma aproximação entre as Ciências Naturais
e as Humanas e Sociais buscando, desta forma, atingir o mesmo nível de resultados. Já
o historicismo, partindo do pressuposto particularizante de relatividade de cada objeto
histórico, propôs uma distinção metodológica. Essa ausência de generalizações
historicistas em conjunto com a singularização da Ciência Histórica em um panorama
intelectual no qual cabia às ciências a busca por dados plenamente empíricos,
objetivos, comprovados e previsíveis, estabeleceu-se como a possibilidade de crítica
central dos positivistas ao pensamento historicista inicial 17.
Por último, vale retomar a lógica de que o positivismo ainda se encontrava com
uma noção nítida de progresso, estabelecida plenamente no renascimento moderno,
enquanto que o historicismo, apesar de manter certo mote do conceito de progresso,
particularizava-o. Ou seja, as correntes, mesmo possuindo pontos de contato, uma vez
que ambas tiveram suas gêneses na necessidade da época de encaminhar os processos
de modernização política em prol do desenvolvimento industrial e nacional buscados
pela burguesia, foram se configurando enquanto sistemas interpretativos da realidade
histórica de forma específica, atendendo as realidades sociais das regiões nas quais
estavam vinculadas.
Em síntese, o historicismo passaria a ser uma das primeiras possibilidades
historiográficas a buscar um afastamento metodológico das Ciências Naturais para
compreender as dinâmicas sócio-históricas, tendendo à instauração de um método
específico. Era o início da plena difusão de certa epistemologia das Ciências Sociais,
no sentido que damos contemporaneamente. Para tal, se fundamentaria através da
percepção de que existe uma subjetividade do historiador enquanto ser historicamente
delimitado – um lugar e tempo de fala –, uma distinção metodológica entre as
interpretações científicas e uma aceitação da relatividade heurística do objeto histórico,
17
Para uma reação de crítica positivista aos historicistas do próprio XIX, ver: BUCKLE, T. History of
civilization in England. London : Ballou, 1857.
44
afastando-se da busca por leis gerais proposta por outros modelos interpretativos,
notadamente o positivismo.
Não houve, contudo, um historicismo unificado. Ocorreram, sim, interpretações
plurais deste fenômeno: notadamente o historicismo realista e o historicismo
relativista. Esta pluralidade de historicismos leva alguns analistas a não bem
perceberem as críticas estabelecidas a uma ou a outra modalidade epistemológica o
que ocorre, evidentemente, por exemplo, ao se pensar nas problematizações de Karl
Popper, relevante pensador no que concerne à teoria das ciências no século XX. Este
diretamente diferencia o historicismo de Herder e Dilthey daquele de Oswald Spengler
e Arnold J. Toynbee, criticando estes últimos e não a todos como geralmente se pensa
e difunde em certos meios acadêmicos18.
O historicismo inicial, nitidamente possui um caráter realista, buscando uma
profundidade teórica e metodológica – uma escola metódica, amplamente confundida
com as apostas positivistas, como referenciou o historiador brasileiro José Carlos
Reis19 – através da pesquisa documental para o estabelecimento de uma verdade
daquilo que o fenômeno histórico teria sido; o segundo, de caráter relativista se
aproximou das interpretações pessoais, abrindo-se mais à subjetividade do problema,
da fonte e, principalmente, do pesquisador, por isso mesmo – por essa necessidade
interpretativa – também foi chamado de hermenêutico.
Günter Scholtz, professor alemão e autor de significativa obra acerca do
conceito de historicismo, demonstraria cinco interpretações básicas a respeito do
historicismo. Segundo este autor, o embate de significado gira em torno dos seguintes
tópicos interpretativos sobre este fenômeno: primeiramente, historicismo pode se
referir a um modelo que localiza uma interpretação histórica universal do mundo
humano; em segundo, a uma filosofia da história, de caráter metafísico, que tende a
ordenar as modificações das vivências humanas; em seguida, pode ser uma
possibilidade tradicionalista de glorificar o passado criticando diretamente o presente;
em quarto lugar, refere-se a uma prática científica com específico rigor metodológico;
e, por último, pode se referir a uma ampla relativização de valores. Em síntese,
partindo da compreensão de Wilhelm Dilthey e Gustav Droysen20 no século XIX e de
18
POPPER, Karl. A miséria do historicismo. São Paulo: Cultrix, 1980.
19
REIS, José Carlos. A escola metódica, dita “positivista”. In: ______. A História entre a Filosofia e a
Ciência. 4ed. Belo Horizonte : Autêntica, 2011, p.21-38.
20
Gustav Droysen, fundamentalmente se estabeleceu como um dos historicistas de caráter relativista, ou
seja, demonstra a própria pluralidade do termo que, apesar de possuir elementos comuns, possui uma
45
Hans Georg Gadamer e Paul Ricoeur no XX, intérpretes da parte do historicismo
hermenêutico, concordamos com o historiador germano-americano Georg Iggers
acerca do paradigma. Este nos dirá que “o historicismo, em seu sentido geral, pode ser
caracterizado como uma posição que torna a história um princípio (...) ele existe como
oposição ao pensamento a-histórico e procura introduzir a abordagem histórica em
todos os campos da cultura”21.
Apesar das notáveis diferenças entre o positivismo e o historicismo enquanto
práticas historiográficas e da pluralidade de interpretações historicistas, um nome
surgiu, equivocadamente, como área central em todas estas possibilidades: Leopold
von Ranke. Este historiador prussiano, tratado quase que de forma caricata, seria
pensado, por relevante parte da historiografia contemporânea, de forma reducionista:
ora como positivista, pensamento ao qual sua lógica histórica amplamente se afasta,
ora como historicista, anulando, portanto, o embate entre a pluralidade epistemológica
deste último ambiente paradigmático.
Leopold von Ranke afastou-se das propostas positivistas, notadamente no que
concerne à universalidade humana. Foi inclusive o primeiro dos críticos deste modelo
a receber reconhecimento mundial. Esse fator pode ser exemplificado por sua própria
fala:
gama significativa de interpretações. Sobre esta pluralidade e sobre o próprio Droysen, ver: CALDAS,
Pedro Spinola Pereira, Johann Gustav Droysen (1808-1884): história e compreensão. In: PARADA,
Maurício (org). Os historiadores clássicos da história: de Tocqueville a Thompson. Rio de Janeiro:
Petrópolis: Editora PUC-Rio: Editora Vozes, 2013, p.36-55. BARROS, José D’Assunção. Droysen: os
desdobramentos relativistas do Historicismo. In: ______. Teoria da História: acordes
historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.97-
128.
21
IGGERS, G. The German conception of history. 2ed. Middletown: Wesleyan University Press,
1981.
22
RANKE, Leopold von. Vorlesungseinleitungen. München: Oldenbourg, 1975, p.256-257.
46
caso da Confederação Germânica, ratificada após o Congresso de Viena e que agrupou
significativa parte dos Estados do Sacro Império em 39 unidades, eram, no geral,
funcionários públicos e Ranke não fugia a essa regra. A proposta de Ranke, que logo
receberia a partícula ‘von’ em seu nome, um distintivo para os reinos germânicos, de
Er Will bloss zeigen wie es eigentlich gewesen [demonstrar as coisas tal e como
ocorreram] foi, portanto, interpretada de forma deslocada da totalidade de sua obra e
pensamento23. O próprio Ranke demonstrou o equívoco desta interpretação afirmando
sua crença de que compreender os fatos e explicá-los é mais relevante do que
simplesmente reuni-los, buscá-los e narrá-los, acrescentando, inclusive o caráter
artístico da própria narrativa histórica 24. Ou seja, Ranke possuía preocupações
profundas além do apresentado ainda hoje e, em certa medida, antecipou uma ampla
gama de discussões de Teoria da História atuais, notadamente a divisão entre o
caminho narrativo e o científico.
A Alemanha que formou intelectualmente estes historiadores possuía dois
problemas fundamentais que influenciariam plenamente a orientação ideológica destes
atores: a vontade de efetivar a unificação política a partir do mosaico político
representado pelas diversas unidades que compunham a Confederação e, também, o
desejo de empreender os caminhos da modernização sem os riscos revolucionários e de
crises sociais, conforme estabelecido em outros territórios. Desta arte, a historiografia
praticada no território que formaria a Alemanha ganharia moldes próprios de
singularidade analítica, um cientificismo problematizador específico afastado da
universalização, no mesmo instante em que o poder político se assenhora do discurso
histórico de uma realidade particular como forma de se autolegitimar. Com esse fator,
a escola histórica científica alemã, historicista, acaba se transformando em uma
modelagem resistente às possibilidades do materialismo histórico e dialético – apesar
de possuírem, tal qual com o positivismo francês, pontos teóricos comuns –, bem como
dos partidos e agrupamentos socialistas e anarquistas presentes no momento,
recusando, portanto, a possibilidade de historiadores enquanto críticos sociais – o
próprio Ranke focou suas análises na possibilidade documental, interpretativa e
narrativa do mundo, afastando as críticas sociais.
23
RANKE, Leopold von. Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis
1514. Leipzig: Berlim: Reimer, 1824.
24
RANKE, Leopold von. Völker und Staaten in der neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen
Rentsch Verlag, 1945, passim.
47
Essa modelagem político-historiográfica original e especificamente produzida
na Alemanha através de um caráter cientificista e reproduzida no mundo inteiro foi
amplamente elaborada nos centros universitários por pesquisadores que eram
funcionários de Estado. Ou seja, é possível notar um caráter conservador na produção
historiográfica, uma vez que o historicismo foi sistematizado por historiadores que
trabalhavam para o governo e que ao próprio governo, detentor dos aparelhos
burocráticos responsáveis pelo financiamento dos projetos historiográficos, convinha
incentivar o caráter unificador da cultura nacional germânica através de uma ampliação
industrial e de incentivo à burguesia sem os riscos revolucionários.
Ocorria na Confederação, entretanto, uma dinâmica cultural, epistemológica e
de produção intelectual plural, o que pode ser percebido na heterogeneidade do próprio
movimento historicista25. Leopold von Ranke, neste sentido, apresentar-se-ia como um
historicista realista, seus continuadores, inclusive muitos de seus primeiros críticos, no
entanto, se inseririam na proposta relativista por excelência26. Isso se deve, em certa
medida, à própria inserção histórico-política do autor: Ranke, nascido no final do
século XVIII, em 1795, viveu a emergência do Estado alemão com todas as suas
contradições, diferentemente de seus companheiros de ofício posteriores. Seu
momento político buscava um historicismo que fosse conservador política e
epistemologicamente. Assim sendo, Ranke construiu sua obra buscando neutralizar
suas subjetividades interpretativas focando, com isto, nas possibilidades da unidade
cultural tão necessária.
Historicistas como Ranke, de qualquer que fossem suas orientações, negavam-
se a aceitar as leis históricas acima das realidades estabelecidas nos territórios
nacionais. O positivismo pode ser discutido a partir da possibilidade de reconfiguração
conservadora da prática historiográfica estabelecida no Iluminismo. Os historicismos,
por sua vez, devem ser compreendidos a partir de sua relação direta com o próprio
contexto de afirmações dos Estados Nacionais e da unificação tardia da Alemanha no
século XIX. Estes historicistas seriam, também, os criadores de métodos de pesquisa
que acabariam se difundindo através de parcela significativa da produção
historiográfica dos séculos XIX e XX até, muitas vezes, se estabelecerem enquanto
25
BENTIVOGLIO, Júlio César. Cultura política e historiografia alemã no século XIX: a Escola
Histórica Prussiana e a Historische Zeitschrift. Revista de Teoria da História, v. 3, p. 20-58, 2010.
26
Sobre a amplitude do historicismo e, principalmente, sobre a relação de Leopold von Ranke com estas
possibilidades, ver: WEHLING, Arno. A invenção da História: Estudos sobre o historicismo. 2ed.
Rio de Janeiro : Editora Gama Filho, 2001.
48
normas científicas especificamente criadas para darem à historiografia uma
metodologia interpretativa própria e afastada dos métodos de investigação das ciências
da natureza27.
As teorias da História, tal qual as possibilidades das anteriores filosofias da
História, se apresentaram a partir da afirmação ou contraposição umas das outras, o
que é patente ao se tratar a ambiguidade positivismo-historicismo ou mesmo a
pluralidade dos historicismos, entre o realismo e o relativismo. Os teóricos se
apresentaram, via de regra, como críticos da filosofia histórica de caráter especulativo,
afastados das problematizações das fontes, como é perceptível no claro embate entre as
interpretações de Hegel e de Ranke28. Todavia, apesar de áreas que foram se
estabelecendo como concorrentes, nítida é a interação das possibilidades entre estas
arenas historiográficas29.
Na mesma medida em que a historiografia se transformou em uma viável arena
política por manifestar as possibilidades de interpretação social para a configuração de
um novo Estado, a música seguiu caminho similar. A música, romântica por
excelência, encontrou, porém, um embate travado de forma mais direta entre seus
representantes.
27
FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru : EDUSC, 2004, p.231.
28
REIS, José Carlos. Op. Cit.
29
BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: Princípios e conceitos fundamentais. Petrópolis:
Vozes, 2011.
30
FURST, Lilian R. European romanticism: self definition: an anthology. New York: Methuen &
Co., 1980. ______. Romanticism. 2ed. New York: Methuen & Co., 1982.
49
A estrutura política dos Estados que formariam a Alemanha no início do século
XIX era extremamente dividida e descentralizada. Assim, esta localidade,
originalmente chamada de Sacro Império Romano da Nação Germânica reuniu, desde
o século XV, uma grande quantidade de cidades autônomas, principados e cidades
administradas pela Igreja, em mais de 300 territórios. Essa complexa estrutura acabou
por permitir grandes diferenciações sociais, políticas e econômicas que diretamente
influenciaram na configuração do romantismo alemão enquanto forma cultural–
artística. Este romantismo, originado em toda a Europa com o acentuado crescimento
da classe burguesa e da pobreza que culminaria na Revolução Francesa estruturou-se
na Alemanha a partir do movimento literário Sturm und Drang31, que preconizava “os
sentimentos em detrimento da razão, a volta ao primitivo, a ruptura com a rigidez dos
gêneros proposta pelos clássicos, a liberdade de criação”32, além, é claro, as atitudes
escapistas nas mais variadas formas, a idealização do herói e do amor .
Apesar de saber que a estruturação de modelos culturais–artísticos demandam
tempo social, isto é, tempo de significância interpretativa, percebemos que o
romantismo, na música germânica originou-se a partir das inovações composicionais
propostas por Ludwig van Beethoven durante a transição entre os séculos XVIII e
XIX, período da Revolução Francesa, da qual o compositor foi um entusiasta 33. Ou
seja, se enquanto literatura as origens do romantismo estão voltadas ao interior dos
homens, àquelas características interpretadas como essenciais; enquanto música o
romantismo se apresentou enquanto um encaminhamento direto ao político.
Assim, o romantismo não se estabeleceu através de percepções unificadas.
Mesmo tendo características comuns, notadamente em relação ao classicismo, modelo
31
Tempestade e Ímpeto. Este é o título da peça de Friedrich M. Klinger, de 1776, que acabou por se
transformar na nomenclatura do período e do estilo (KLINGER, Friedrich Maximilian. Tempestade e
Ímpeto. São Paulo: Editora Cone Sul, 1997). Um outro fôlego, para falarmos do estabelecimento de um
romantismo germânico, já que o Sturm und Drang se manifesta como momento prévio, pode ser
localizado nas obras de Johann Wolfgang von Goethe, principalmente Die Leiden des jungen Werthers
(Os sofrimentos do jovem Werther), publicada em 1774 e responsável por causar grande comoção
sentimental por toda a Europa – o próprio fenômeno de ‘comoção social’ seria comum durante todo o
transcorrer do período, inclusive.
32
OLIVEIRA, Clenir Bellezi de. Arte literária: Portugal – Brasil. São Paulo: Moderna, 1999, p.139.
33
Podemos lembrar que a sequência de obras escritas por Ludwig van Beethoven a partir do início do
século XIX era percebida por seus contemporâneos como diferente estruturalmente das propostas do
século anterior representado, par excellence, pelas obras de Joseph Haydn, de quem Beethoven foi aluno
e Wolfgang Amadeus Mozart. Neste sentido, os músicos germânicos do século XIX percebiam, no
compositor de Bonn, um novo fôlego artístico.
50
musical praticado anteriormente34, cada agrupamento nacional interpretou o termo
atendendo às demandas de seus respectivos territórios e sociedades. Esta pluralidade
de interpretações, muitas vezes contraditórias, pode ser localizada, por exemplo, entre
a reforma da tradição do passado imediato, que muitas vezes se colocaria contra
qualquer possibilidade de modernidade, e a total inovação, passando a aceitar
determinadas características que surgem com a modernidade corrente35.
Os românticos são um caso específico ao se pensar em uma auto-percepção. O
filósofo do primeiro romantismo alemão Georg Philipp Fiedrich von Hardenberg, mais
conhecido pelo seu pseudônimo Novalis, já afirmava na transição do século XVIII
para o XIX que “‘o mundo precisa ser romantizado’”36. Contudo, percebe-se no
romantismo uma pluralidade contraditória em seu interior que, abarcando uma
pluralidade de percepções filosóficas, mantém certa unidade. Assim, o que ocorre é
muito mais uma sequência distinta de romantismos do que uma percepção plenamente
unitária. Uma forma de notarmos a contradição das percepções românticas é, por
exemplo, lembrarmos que apesar de criticar determinadas condutas chamadas de
modernas, os autores não abrem mão, na maior parte das vezes, de suas inovações
estilísticas.
A partir do desenvolvimento do novo modelo de produção artística na Europa,
o romantismo na música iniciou-se com certa unidade e, no mais, as pequenas
diferenças estilísticas individuais acabavam não sendo perceptíveis, principalmente,
para aquele público mais leigo que começava a lotar os teatros e salas de concerto em
busca do consumo artístico. Contudo, esse ambiente logo se transformaria em um
território de discussões mais acaloradas. Na Alemanha, já na segunda metade do
século XIX, dois grupos, conservadores e progressistas, reuniram-se interpretando a
produção artístico-musical de forma díspar, configurando um cisma na produção
teórica ou, para usar um termo já consolidado na produção musicológico-
historiográfica, uma querela (ou guerra) dos românticos.
34
Dentro destas características comuns dos variados modelos românticos em relação ao classicismo,
podemos citar a liberdade harmônica, que romperia com os esquemas usualmente estabelecidos; a
relevância da melodia cantável e a não-manutenção dos rígidos esquemas composicionais do período
anterior. ROSEN, Charles. A Geração Romântica. São Paulo: EDUSP, 2000
35
Cf.: LÖWY, Michel; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia: o romantismo na contramão da
modernidade. Petrópolis: Editora Vozes, 1995.
36
NOVALIS, apud FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971,
p.77.
51
Os progressistas estavam baseados em Weimar e giravam em torno do pianista
húngaro Franz Liszt, responsável pela maior ampliação de possibilidades pianísticas
desde o surgimento do instrumento, e do compositor alemão Richard Wagner, que se
estabeleceria prontamente como um dos mais relevantes músicos da Europa. Este
grupo passaria a ser chamado de Nova Escola Germânica, uma vez que propunha
novos limites criativos para a tradicional escrita musical germânica. Os conservadores,
por sua vez, baseados em Berlim, giravam em torno da figura de Johannes Brahms e
de Clara Wieck, viúva de Robert Schumann. O ponto fundamental de compreensão da
complexidade desta querela é a utilização da obra de Beethoven pelos dois grupos:
para os conservadores, o modelo composicional criado por Beethoven teria alcançado
um ponto máximo, já para os progressistas, Beethoven teria aberto as portas para uma
nova música.
Um dos problemas centrais da metade do século XIX era a utilização e a
relevância da forma sonata, modelo de escrita musical de fórmula previamente
estabelecida e utilizada como base para a composição de sonatas, concertos, sinfonias,
quartetos e trios. Autores conservadores como Brahms permaneceram fiéis ao modelo
composicional fechado, ou seja, buscaram a manutenção da forma sonata aperfeiçoada
por Beethoven; outros, progressistas, preferiram inovar. Este grupo inovador procurou,
com uma série de argumentos formais, levar os modelos clássicos ao término,
propondo, para isso, novas abordagens musicais, como os limites do cromatismo, a
música de programa ou os poemas sinfônicos propostos, principalmente por Liszt 37.
Desta forma, compreender o poema sinfônico, a música de programa lisztiana, como
representação de uma realidade, é simplificar por demais a proposta pretendida pelo
compositor húngaro 38. Percebe-se, assim, a relevância que Franz Liszt possui para este
núcleo progressista. Este personagem alcançou tanto respeito internacional e passou a
ser tão relevante a partir de certo momento que determinado grupo, encabeçado pelo
maestro Hans von Büllow e pelo crítico musical e musicólogo Franz Brendel, tentou
37
O cromatismo é uma forma composicional que expande a possibilidade de utilização melódica e
harmônica para além da escala diatônica e suas modulações. Música programática, por sua vez, se
refere a uma obra que tem por objetivo central a evocação de idéias e imagens extra-musicais no
ouvinte, representando musicalmente seu objeto. Por último, poema sinfônico se apresenta como uma
obra musical baseada em algum poema ou texto literário escrita geralmente em apenas um movimento
ou ato. Em Liszt, o cromatismo se apresentou como a possibilidade de ampliação musical que definiria o
século XX. Estes surgem, então, como antecipadores desta. O poema sinfônico para estes compositores
se mostra, por sua vez, como o resultado da inspiração que as outras artes podem proporcionar no
compositor.
38
Wagner expos seus pontos de vista acerca desse modelo composicional de Liszt em um texto do ano
de 1857: Über Franz Liszts Symphonische Dichtungen [Sobre os Poemas Sinfônicos de Franz Liszt].
52
formar várias vezes uma sociedade musical em torno deste compositor, o que apenas
ocorreu em 1861, entre Weimar e Leipzig, com a constituição da Allgemeine Deutsche
Musikverein (Associação Geral Alemã de Música), que contou com o apoio do próprio
compositor.
Outro compositor reconhecido por suas inovações composicionais que merece
destaque neste cenário é Richard Wagner. Este não parte da constituição de uma novo
gênero musical, preferindo reinterpretar uma já existente: a ópera39. Com suas novas
interpretações, Wagner se afastou de autores, como Robert Schumann e Johannes
Brahms, que ainda praticavam os modelos rígidos deixados pelo Classicismo
beethoveniano – na verdade não apenas na ópera mas sim em todos os gêneros
musicais. Devemos, contudo, marcar que, apesar de tentar ultrapassar a proposta de
Beethoven, os autores progressistas ainda mantém uma vinculação criativa com o
compositor de Bonn: Wagner, por exemplo, regeu a Nona Sinfonia no lançamento da
pedra fundamental de seu Teatro de Festival em Bayreuth no ano de 1872. Logo após,
escreveu, também, um texto analítico acerca da execução desta sinfonia, o Sobre a
interpretação da Nona Sinfonia de Beethoven40. Wagner chegou a afirmar certa vez
que a Nona Sinfonia é o ponto máximo da música e que deste ponto em diante, deveria
ocorrer uma união entre a música e a poesia. Logo, essa obra acabaria se
transformando em um “‘evangelho humano da arte do futuro’”41.
Outros autores também ficaram conhecidos no cenário artístico europeu por
suas inovações, mas passaram a preferir se isolar não se posicionando perante a obra
de outros compositores na época deste cisma romântico, como é o caso do francês
39
A ópera se formou, com Claudio Monteverdi, com uma fusão de gênero e forma. Isto é: Monteverdi,
um dos principais responsáveis pelo estabelecimento da ópera, a identificou simultaneamente como uma
forma de composição e um gênero tipológico-musical. A partir do século XIX, principalmente com
autores como Richard Wagner, este gênero foi se abrindo a novas interpretações de forma, chegando à
anulação praticamente total do modelo formal pensado por Monteverdi. A partir disto, a ópera passou a
se apresentar quase que exclusivamente enquanto um gênero musical.
40
Cf.: WAGNER, Richard. Zum Vortrag der neunten Symphonie Beethovens. In: FRIEDRICH, Sven.
Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004 [edição integral e digital
das obras de Richard Wagner disponibilizada pelo governo alemão – esta coletânea de textos
wagnerianos não possui paginação em sua versão original]. Beethoven e mais ainda, a Nona Sinfonia,
desempenham um papel fundamental na obra wagneriana. Podemos automaticamente lembrar os textos
que Wagner dedicou ao compositor, tais como: Beethoven (WAGNER, Richard. Beethoven. Rio de
Janeiro: Zahar, 2010) e o Eine Pilgerfahrt zu Beethoven (Cf.: WAGNER, Richard. Eine Pilgerfahrt zu
Beethoven [Uma peregrinação a Beethoven]. In: FRIEDRICH, Sven. Richard Wagner: Werke,
Schriften und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004)
41
GREY, Thomas S. O legado de Beethoven. In: MILLINGTON, Barry (org). Wagner: um comêndio:
guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p.
171. Sobre a significativa influência de Ludwig van Beethoven na produção musical do romantismo do
século XIX, ver: LOCKWOOD, Lewis. Beethoven: the music and the life. W. W. Norton & Company,
2005.
53
Hector Berlioz, um profundo admirador de Beethoven – vale lembrarmos, contudo,
que esses autores que buscaram um isolamento maior possuíam uma posição, se não
declarada, no mínimo exposta em seus estilos, como é o caso deste compositor e
maestro francês. O caso de Schumann, neste contexto, representa, além de ponto
central, uma singularidade: foi parte fundamental na querela dos românticos, mesmo
tendo falecido em 1856 – período no qual as disputas artísticas na Germânia se
intensificavam vertiginosamente.
A relevância de Robert Schumann para os dois lados do debate é central.
Apesar de se afastar do modelo composicional proposto por Franz Liszt e Richard
Wagner, Schumann variou constantemente entre críticas e elogios a ambos os
compositores. Contudo, prestou variegados elogios a Johannes Brahms42. Um último
caso presto deve, além do de Berlioz e do de Schumann, ser mencionado, o do
violinista József [Joseph] Joachim.
Após fazer sucesso tocando em Londres, no ano de 1844, o Concerto para
Violino e Orquestra em Ré Maior (Op. 61) de Beethoven sob a regência de Felix
Mendelssohn, Joachim, então com 13 anos, tornou-se conhecido em todo o meio
musical europeu, o que faria com que Liszt, diretor da Orquestra de Weimar,
convidasse-o para ser spalla de sua orquestra quando o jovem violinista já tinha
conquistado sucesso mais concreto e permanente. Logo, o jovem músico de 19 anos
poderia finalmente trabalhar com um músico renomado a quem admirava. Todavia, o
trabalho com Liszt se mostrou infrutífero para o jovem músico que, com o passar do
tempo, começou a não gostar do método de condução do trabalho orquestral de Liszt 43
e também das composições do húngaro. Com o tempo e com um maior contato com
Brahms e Clara Schumann, recém-viúva, o violinista rompeu com Liszt por carta, em
27 de Agosto de 1857. Nesta, lê-se:
42
Para o artigo elogioso escrito para Johannes Brahms por Robert Schumann, cf.: Neue Zeitschrift für
Musik, de 28 de Outubro de 1853.
43
Acerca da forma de condução orquestral de Liszt, cf.: LAGO, Sylvio. A arte da regência: história,
técnica e maestros. São Paulo: Algol, 2008.
54
amar e honrar nas criações deles, as suas composições não chegariam
para preencher nem um recanto sequer nesse enorme vazio44.
44
COELHO, Lauro Machado. O cigano visionário: vida e obra de Franz Liszt. São Paulo: Algol
Editora, 2009, p.177.
45
O primeiro número desta Nova Revista de Música foi publicado em 3 de Abril de 1834.
55
Nem Liszt e, logicamente, nem Schumann foram responsáveis por essas
modificações impostas por Brendel à revista a partir de 1845. O pianista húngaro não
conseguiu que Brendel parasse com as críticas e Schumann, sentindo-se traído, passou
a se afastar de Liszt e a rechaçar totalmente a produção de Brendel – até então os três
eram próximos. Franz Liszt ainda visitaria a família Schumann em 1848, momento no
qual os dois compositores romperiam46. Anos mais tarde, em 1856, Schumann
morreria. Após a morte de Schumann, seu colega e protegido Johannes Brahms
assumiria as críticas contra a nova Neue Zeitschrift für Musik e a Nova Escola
Germânica. As críticas, desta forma, focariam principalmente contra Wagner e Liszt,
que jamais executariam qualquer peça de Brahms, o protegido de Robert e Clara
Schumann.
As hostilidades, a partir de então, partiram de ambos os lados: Brendel
organizou uma comemoração em homenagem ao Neue Zeitzschrift na cidade de
nascimento de Schumann, Zwickau, sem, no entanto, convidar Clara, a viúva do
fundador do periódico. Por outro lado, defendendo a obra de Schumann e atacando a
obra de Liszt, considerada muito inovadora no momento, Ferdinand David, do
Conservatório de Leipzig se negou, por sua vez, a executar peças de Liszt em seu
conservatório.
Logo, uma série de autores tomam uma medida extrema, a de publicar um
manifesto contra a parcialidade da nova Neue Zeitschrift für Musik. Entretanto, antes
mesmo que todos pudessem assinar o texto manifesto, uma cópia vazou exatamente
para o periódico criticado, o Neue Zeitschrift für Musik. Dessa forma, o jornal de
Brendel resolveu ironizar o manifesto original publicando, em 4 de Maio de 1860, em
sua edição 19 daquele ano, uma paródia, escrita pelo músico e teórico Carl Friedrich
Weitzmann. Nesta paródia, que contém uma irônica introdução explicativa, o texto dos
conservadores aparece modificado, questionando a habilidade artística dos próprios:
46
COELHO, Lauro Machado. Op. Cit., p.175-180.
56
muitas pessoas altruístas, traços cujos nomes, todavia, a história da
arte mais recente foi incapaz de encontrar. No entanto, no caso de a
avalanche de assinaturas for capaz de ampliar-se a um ponto grande
o suficiente, a tempestade, de repente, se romperá. Embora o
nascedouro destes fins músico-trágicos acabe intimando os
selecionados para o maior sigilo, eu consegui, no entanto, examinar o
original e tenho o prazer de ser capaz de passar para você o seguinte,
temido senhor editor, o documento oficial.
Seu devoto
Fegweg
Protesto Público
47
NEUE ZEITSCHRIFT FÜR MUSIK, v.52, 1966, p.169-170; FRISCH, Walter. KARNES, Kevin (ed).
Brahms and his world. USA: Princeton University Press, 2009, p.112. Tradução nossa.
57
Johannes Brahms, Joseph Joachim, Jul. Otto Grimm, Bernh.
Scholz.48
48
BATKA, Richard. NAGEL, Wilibald. Geschichte der Musik. Band 3: Geschichte der musik des
19. Jahrhunderts. Stuttgart: Verlag von Carl Grüninger (Klett & Hartmann). s/d., p.108.
58
como Johannes Brahms e Joseph Joachim. Esse embate acabou se formando como
possível a partir das possibilidades ofertadas por Beethoven anos antes: os
progressistas viam neste, o início de uma nova música germânica; os conservadores, o
ápice de germanidade musical. Essa contenda foi travada através das composições, e o
respeito e a fama dos autores envolvidos estavam em jogo. Devemos, contudo, lembrar
que nenhum dos lados possuíam uma visão unificada da arte, logo os rompimentos
ocorreram muito mais no sentido individual, basta percebermos que Liszt se
interessava cada vez mais pela obra de Giacomo Meyerbeer, autor amplamente
rechaçado por Wagner – que chegou a nomeá-lo criticamente em seu texto Das
Judenthum in der Musik (O judaísmo na música)49 – e por outros membros da Nova
Escola Germânica; enquanto Mendelssohn, compositor que chegou, no início de sua
carreira, a criar com certa inovação, não se prendendo a qualquer modelo estabelecido,
tanto de inovação quanto de tradição, passou a adotar uma postura mais rígida a partir
do momento em que assumiu o posto de regente titular da Gewandhaus e de diretor do
Conservatório, ambos em 1843.
Os românticos percebiam-se desta forma. Uma forma plural. Assim, não é
possível localizar um romantismo específico, sendo mais correto falarmos em
romantismos. Para este grupo, o(s) romantismo(s) era(m) um fenômeno real de
manifestação de um sentimento nacional. Todavia, devemos lembrar que a forma
através da qual esses indivíduos se auto-conceituavam demonstrava determinado
mundo social – lembremos que o auto-reconhecimento conceitual não se faz de forma
autônoma, relacionando-se sempre a realidade sociais dinâmicas 50. O romantismo,
aqui, deve ser, portanto, compreendido como um movimento estético contraditório em
seu interior – abarcando percepções filosóficas plurais mesmo mantendo certa unidade
– que critica direta ou indiretamente o estabelecimento de uma sociedade moderna nos
modelos capitalistas instaurados até então, criticando, assim também, a sociedade e a
política conturbada do momento. Dessa forma, o conceito de romantismo não pode ser
compreendido sem a ideia das revoltas, combates e revoluções tão presentes no século
XIX. Essa ambivalência, criada e motivada pelos próprios autores, levou o século XX
49
Vale ressaltar que a crítica de Wagner a autores como Meyerbeer e Mendelssohn se encontra plena de
antissemitismo o que subjetiva etnocentricamente sua visão artística. Desta forma, percebemos que
Wagner não percebe validade na obra dos outros dois compositores mais por uma postura
preconceituosa do que por uma pura análise artístico-composicional.
50
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro: Contraponto: Editora PUC-Rio, 2006.
59
a ler as atitudes românticas apenas como filosoficamente relevantes, esquecendo as
origens político-sociais desse momento. Com esta visão embaçada do fenômeno, os
românticos passaram a ser vistos sem seu motivador político-social, sendo pensados
como a primeira classe artística que romperia com a política. Essa característica
equivocada, entretanto, ainda impera em significativa parte dos livros de análise e
alguns poucos pensadores, como o acadêmico galês Raymond Williams, demonstram
que o que realmente ocorre com o romantismo é uma nova forma de leitura da
realidade, leitura essa que ainda privilegiava, mais do que as anteriores inclusive, as
atitudes políticas e sociais 51.
Esse debate estético entre os dois grupos demonstra, no final das contas, um
debate filosófico, cultural, político e, acima de tudo, social profundo do valor da arte.
Percebemos que, apesar de manter certa unidade, os românticos procuram formas
plurais de atingir seus públicos e seus ideais. O século XX aprendeu a fazer uma
leitura no mínimo equivocada do romantismo musical presente no século XIX, unindo
todos os atores: Schumann, Brahms, Wagner, Liszt e quaisquer outros no mesmo
grupo, esquecendo suas diferenciações pessoais. Em certa medida, as divisões na
música durante o século passado foram tão profundas que acabam transformando essa
pluralidade de interpretações do romantismo em certa característica unitária, o que
acaba esvaziando e relativizando a possibilidade dos objetos.
Mais do que compreender a música como fenômeno do espírito humano como
a maioria dos pensadores do XIX e XX quiseram, é plenamente possível compreender
as manifestações artísticas como fenômenos ligados diretamente às representações
sociais, dessa forma, a arte – no nosso caso, a música – passa a possuir uma
estruturação social52, bem como uma função social53 mesmo que inconsciente54.
Cremos, assim, que a abertura de novos ramos como a História Social da Música ou as
pesquisas que tentam relacionar a História e a Estética possuem questões fundamentais
que colaborarão com a pesquisa historiográfica geral.
51
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis: Vozes, 2011.
52
Sobre a estrutura social da música, conferir: SILBERMANN, Alphons. Estructura Social de la
Música. Madrid: Taurus Ediciones, 1962.
53
Uma ampla variedade de autores vem definindo as possibilidades de função social da arte, todavia,
Ernst Fischer ainda se mantem como um dos principais representantes desta discussão. Cf.: FISCHER,
Ernst. A necessidade da arte. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1971.
54
JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São
Paulo: Ática, 1992.
60
2.3 Música romântica e historicismo comparados no caso do mundo germânico
55
RICON, Leandro Couto Carreira. Por uma ópera alemã: Richard Wagner e o início de seu
nacionalismo musical. Rio de Janeiro : Multifoco, 2012.
56
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
61
divisão entre artesão e artista. Para Elias, o artesão é o indivíduo que trabalha de
forma razoavelmente ‘anônima’, sendo subordinado a um molde de formas artísticas
pré-estabelecidas pelos reconhecidos compradores de seu produto, geralmente,
pertencentes a uma classe sócio-econômica superior a sua – é um empregado assim
como fora Joseph Haydn. O artista, por sua vez, se apresenta como o indivíduo que
romperia com o modelo anterior. Destarte, ele não trabalharia subordinado estética e
intelectualmente a um comprador nomeadamente conhecido, passando a poder
produzir seu material de acordo com sua própria percepção estética. Logo, a figura do
comprador nomeadamente conhecido passa a ser substituída por uma série de
compradores desconhecidos da mesma classe sócio-econômica do produtor – Elias
identifica, com certa relutância, essa classe como burguesia emergente
revolucionariamente a partir do século XVIII – deixando de ser um empregado, assim
como um Franz Liszt, um Johannes Brahms, um Robert Schumann ou mesmo um
Richard Wagner: este é o momento característico da transição entre a arte do XVIII e
do XIX. Esse fenômeno – a transformação do artesão em artista – acompanhou, como
se nota, a própria transição do modelo artístico-criativo da música: do Clássico para o
Romântico.
Os historiadores vinculados ao historicismo, enquanto abordagem
historiográfica do século XIX, por sua vez, não participaram nitidamente desta
emancipação produtiva do intelectual nos mesmos moldes do que ocorreu com os
músicos românticos. Enquanto os músicos conseguiram sua autonomia a partir da
interação com classes sócio-econômicas específicas, os historiadores ainda
mantiveram-se vinculados ao poder político estabelecido. Esse fator influenciava as
práticas historiográficas em dois níveis. Em primeiro, a divulgação das ideias
historiográficas ocorria principalmente em ambientes vinculados às monarquias
estabelecidas, tais como universidades, que dependiam de chancelas governamentais
para suas existências; e periódicos, que necessitavam de aprovação de conselhos de
censura para suas distribuições. Esse fenômeno afastava as problematizações políticas
diretamente e cerceava o debate historiográfico a um modelo pré-estabelecido – ou
seja, ainda se buscava a manutenção dos modelos historiográficos narrativistas
propostos nos séculos anteriores 57. Em segundo lugar, a própria pesquisa histórica
57
Logicamente, mesmo procurando estes modelos historiográficos antigos, as monarquias do século
XIX, notadamente na Confederação Germânica, abriam-se à necessidade de inserir, através de seus
62
estava epistemologicamente vinculada às documentações produzidas pelo Estado. Isto
é, em uma interpretação de que à História cabia a análise do Estado, dos conflitos nos
quais esteve envolvido e, notadamente, das relações diplomáticas entre as monarquias
reinantes, restava ao historiador contar com o apoio político para o acesso a
documentação necessária à pesquisa para a consequente elaboração de seus textos.
Assim sendo, a possibilidade institucional lacrava o historiador em um lugar de fala58
específico e de difícil rompimento – sob pena de ostracismo intelectual ou mesmo
penas mais severas propostas pelos mesmos conselhos de censura. E mais, para um
modelo cientificista estruturado institucionalmente nestes moldes – de pesquisa em
documentações ditas oficiais – como era social, política e culturalmente necessário, os
historiadores amadores não possuíam condições de se estabelecerem enquanto
intelectuais.
Mesmo com essa pluralidade interna dos movimentos, direta ou indiretamente,
tanto historicistas quanto músicos românticos se vinculavam. Com uma origem
comum identificada em autores como Johann Gottfried von Herder 59, filósofo defensor
do caráter natural e dinâmico das culturas, estas duas manifestações intelectuais
responsáveis pela valorização analítica do particularismo cultural foram amplamente
favorecidas pelo contexto de afirmação tardia do Estado nacional germânico durante o
século XIX. Neste sentido, o historicismo, vinculado às políticas do período, foi um
dos responsáveis pelo resgate e criação interpretativa de um passado comum
germânico, fundamental para a unidade do Estado, bem como pela análise do contexto
territorial necessário para a afirmação territorial de um novo Estado no coração da
Europa60, como no caso de Leopold von Ranke. Este historiador buscou abertamente
analisar o passado germânico inserindo-o em um contexto de política continental a
partir da singularidade cultural da própria germanidade para fundamentar uma ideia de
unidade política interna, como é notável em seu resgate da Idade Média, e na análise
historiadores, as discussões nacionalistas que tanto eram necessárias para a formação da unidade política
tão almejada.
58
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: ______. A escrita da história. 2ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2002, p.65-119.
59
Neste sentido, Herder já antecipara a perspectiva particularizante do Historicismo e do Romantismo
em 1774 em seu Também uma filosofia da história para a formação da humanidade (Lisboa: Ed.
Antígona, 1995), para uma análise da presença do pensamento de Herder nestes fenômenos
interpretativos, ver: SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo: Estação
Liberdade, 2010.
60
Para análises específicas acerca da relação entre o historicismo e a política, ver: MEINECKE,
Friedrich. El historicismo y su Genesis. México: Fondo de Cultura Econômica, 1983 e CARRERAS,
Juan José. Razón de historia. Madrid: Marcial Pons, 2000.
63
quase simbiótica da relação entre os povos romanos e germânicos 61. O romantismo
musical, por sua vez, esteve vinculado a possibilidades mais amplas: em nível popular,
conforme atestou Norbert Elias62, contando com plena interação com o público
ouvinte, desejoso de um processo de unificação, integrou os debates pelo nacionalismo
através de suas manifestações artísticas de busca por uma cultura germânica, muitas
vezes baseada em um próprio sentido de passado mítico em comum – daí a própria
relevância da História para o romantismo, expressa em peças de autores
significativamente diferentes, como Robert Schumann e Richard Wagner. Em nível
político, vale ressaltar a nítida associação de vários artistas a poderes monárquicos
determinados63 – o que também pode ser facilmente encontrado em Franz Liszt e
Richard Wagner, dois dos músicos que mais circularam nos núcleos nobiliárquicos do
período.
Ocorreram, certamente, vários historicismos e vários romantismos, uma vez
que suas formações se estabeleceram a partir de elementos dispersos e amplos.
Notadamente o romantismo musical, em sua antitética entre o tradicionalismo e a
modernidade, iniciou-se com as possibilidades de continuidade a partir da produção de
Ludwig van Beethoven: para alguns, o compositor de Bonn teria elevado a música ao
seu limite, para outros, teria iniciado uma forma totalmente nova de moldes
composicionais; o historicismo, através de embate entre o realismo e o relativismo,
apresentou-se como uma possibilidade de enfrentamento ante o crescente positivismo
francês64. Porém, o que acaba sendo uma marca fundamental destes intelectuais –
músicos e historiadores – é a consciência de seu tempo que manifestam. Em um
conturbado cenário de questões político-culturais, estes atores se apresentaram como
indivíduos que, apesar das variegadas relações com o poder central, possuíam plena
consciência do papel social que desempenhavam no tangente à compreensão de um
passado e de uma cultura comum, era o início de uma nova consciência histórica. Não
que estes personagens funcionem como marcos específicos para a formação da
61
RANKE, Leopold von. Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis
1514. Leipzig: Berlim: Reimer, 1824.
62
ELIAS, Op. Cit.
63
Para análises específicas acerca da relação entre o romantismo, o público e a política, ver:
SAFRANSKI, Rüdiger. Op. Cit. São Paulo: Estação Liberdade, 2010. BERLIN, Isaiah. As raízes do
romantismo. São Paulo: Três Estrelas, 2015. TALMON, J. L. Romantismo e Revolta: Europa 1815-
1848. Lisboa: Editorial Verbo, 1967.
64
GUINSBURG, J. Romantismo, Historicismo e História. In: ______. O romantismo. São Paulo:
Editora Perspectiva, 1978.
64
consciência histórica contemporânea 65. Entretanto, o próprio século XIX dinamizou as
interpretações do homem no mundo, levando-o a pensar sobre sua historicidade. Esta
consciência histórica, perceptível na narrativa de Ranke e de Wagner66, é mais ampla
do que aquela que foi inicialmente pensada por Hegel e Dilthey. Assim, o historiador e
o músico conseguiram, cada um a seu modo, ampliar as buscas por certo quem somos
nós?, central para o estabelecimento de respostas à pergunta central do nacionalismo
germânico: qual unidade queremos?.
65
Para um denso e interessante debate inicial sobre o panorama da consciência histórica, cf.: CERRI,
Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma discussão
contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2011.
66
Mesmo que de forma inconsciente, cf.: JAMESON, Fredric. Op. Cit.
67
GUINSBURG, Jacob. (org). O romantismo. São Paulo : Editora Perspectiva, 1978.
68
REIS, José Carlos. Dilthey e o historicismo, a redescoberta da história. In: ___. História & teoria:
historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006,
p.207-246.
69
GUINSBURG, Jacob. Romantismo, historicismo e história. In: ______. (org). O romantismo. São
Paulo : Editora Perspectiva, 1978, 13-21. Esta seria a mesma conclusão de BOWRA, C. M. La
Imaginacion Romantica. Madrid: Taurus, 1972.
65
ocorrentes até em nosso tempo presente, como é o caso do novo historicismo e dos
romantismo tardio e pós-romantismo.
Essa ampliação analítica dos movimentos possibilita, portanto, a junção de
autores e pensamentos variados em uma corrente comparativista, já que essa própria
dinâmica plural é que cria as possibilidades analíticas que as vinculam das formas mais
amplas à política. Assim, estes fenômenos se estabelecem como ricos exatamente por
suas amplitudes argumentativas – entre o tradicionalismo e a modernização artística do
romantismo e entre o realismo e a relativização interpretativa do historicismo – que,
acabam demonstrando as manifestações das próprias dinâmicas sociais e políticas dos
territórios nos quais essas possibilidades intelectuais surgem e se estabeleceram ao
longo do século XIX.
Romantismo musical e historiografia historicista, neste esquema interpretativo
proposto, iniciados como críticas aos esquemas intelectuais apresentados
anteriormente, o classicismo artístico-musical e o positivismo historiográfico,
respectivamente, encontraram, nos territórios que formariam a Alemanha em um
futuro próximo, uma possibilidade complementar: estabelecendo-se, também, através
de influências mútuas para a reafirmação das singularidades culturais em um contexto
maior – de cultura ocidental centrada na Europa. Assim, estas duas manifestações
intelectuais, apesar de suas pluralidades interpretativas, possuem vinculações comuns,
como no nítido caso do particularismo interpretativo. Ou seja, enquanto os
romantismos possuíram a possibilidade comum de interpretarem e demonstrarem a
individualidade do ‘espírito de um povo’ (Volksgeist)70, anterior e superior à criação
do Estado na ótica germânica; os historicismos, como um todo, buscaram demonstrar
as especificidades das leis históricas relacionadas às existências dos Estados e das
nações particulares a partir do acréscimo da cultura individual e específica enquanto
fator analítico.
Irmãos culturais germânicos, romantismo e historicismo, apesar de suas
amplitudes internas, manifestaram como um dos pontos centrais de seu tempo o
nacionalismo, pensado a partir da elaboração de um sentimento de pertencimento a um
70
‘Espírito do Povo’, ou ainda ‘Espírito da Nação’ [Volkgeist] foi uma das expressões mais comuns
entre a intelectualidade germânica durante a transição dos séculos XVIII para o XIX. Sistematizada por
autores como Johann Gottlieb Fichte e Johann Gottfried von Herder, buscava, diretamente se referenciar
a amplitude do fenômeno nacionalista que percorria a Europa do período. Para mais informações acerca
do conceito de Volkgeist, como a sua dinâmica criacional e a sua aplicabilidade no período, ver:
BERLIN, Isaiah. Vico y Herder, Madrid: Cátedra, 2000.
66
grupo cultural baseado em determinada representação e afetividade a uma
territorialidade específica71, o que é perceptível, por exemplo, em autores como o
historiador historicista Leopold von Ranke e o compositor romântico Richard Wagner,
centrais ao se pensar nestes dois fenômenos explicativos dos homens. Todavia, tanto
os autores quanto estes movimentos ainda se apresentam de forma caricata ou
plenamente resumidas o que, também, não atende às demandas analíticas
contemporâneas. Daí mesmo a emergência de se analisar comparativamente os
próprios movimentos aos quais se filiaram, uma vez que as classificações em grupos
intelectuais bastam, neste sentido, apenas como ponto de partida, principalmente em
modelagens interpretativas que, naturalmente, possuem complexas dinâmicas
analíticas internas.
71
Além dos já clássicos, HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. 3ed. Rio de Janeiro:
Zahar Editores, 2002; e ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem
e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, conferir acerca das questões
nacionalistas como base para o Estado os textos: GUIBERNAU I BEDRUM, Montserrat.
Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editores, 1997; KEDOURIE, Elie. Nacionalismo. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1985; e
SMITH, Anthony. La Identidad Nacional. Madrid: Trama, 1997. Acerca da vinculação nacional às
possibilidades ofertadas pela questão espacial da territorialidade, ver: SACK, Robert. Territorialidade:
sua teoria e história. Cambridge University Press, 1986. TUAN, Yi-Fu, Topofilia. São Paulo: DIFEL,
1980, obras significativas como possibilidade de interação entre a geografia humana, a geografia física e
a historiografia.
67
3. NOVOS TEMPOS, NOVAS FORMAS: AS MANIFESTAÇÕES DA
PROFISSIONALIZAÇÃO DO MÚSICO OPERISTA E DO HISTORIADOR
DURANTE O SÉCULO XIX: AS CONTRIBUIÇÕES DE LEOPOLD VON
RANKE E RICHARD WAGNER
1
ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger (orgs). História da vida privada: da Renascença ao Século
das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
2
RICON, Leandro Couto Carreira. Os Artistas e as Sociedades nos Estudos de História Comparada ou
as Vidas Paralelas. Revista Eletrônica História em Reflexão (UFGD). , v.6, p.1 - 24, 2012.
3
ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger (orgs). Op. Cit.
68
guinada relevante e a maior parte das obras já possuem um nítido autor identificado
que marca sua presença na obra através da assinatura4.
Com o passar dos séculos iniciou-se um processo de especificação nas
produções. Uma especificação maior na verdade. Maior e coincidente com a
diversificação das possibilidades econômicas ocorrida entre a transição dos séculos
XVIII e XIX. A Revolução Industrial e a Revolução Francesa e as expansões dos
ideais representados por estas movimentações, em certa medida, demonstram e
ampliam o processo de diversificação das ocupações intelectuais. Neste momento,
acompanhando as dinâmicas políticas, econômicas e culturais do período, passa a
existir, por exemplo, a especificidade dos intelectuais, dos burgueses e, inclusive, das
mulheres5.
Se, durante os períodos anteriores os historiadores eram, em sua grande
maioria, também contistas e filósofos, no século XIX ocorre um nítido processo de
profissionalização deste intelectual6. Profissionalização esta que coincidiu com as
necessidades sociais do próprio momento, como é nítido em Leopold von Ranke. No
mesmo instante deste estabelecimento do historiador identificável enquanto ator social,
ocorreu o estabelecimento do músico enquanto artista7. Se antes, o músico esteve
vinculado às necessidades de outras classes, trabalhando de forma ampla em várias
possibilidades musicais, o período do romantismo é o da independência, mas não
apenas econômica. Se em momentos anteriores cabia ao compositor trabalhar em cima
de todos os gêneros musicais de seu momento, a partir do romantismo o músico podia
escolher sua área de especificidade se assim lhe interessasse, como é o caso de Richard
Wagner que, claramente, escolherá as possibilidades ofertadas pela produção musical-
operística.
Percebe-se, portanto, certa autonomia tanto em historiadores quanto em
músicos. Mesmo que esta autonomia não fosse total, como pode parecer de início, já
que as vinculações com a política do momento persistem, é inegável uma maior
independência em relação a esses intelectuais de períodos anteriores. Esta maior
liberdade pode ser identificada em determinados fatores, que vão se tornando comuns
4
MELO FRANCO, Afonso Arinos de. (et alli). O Renascimento. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora,
1978.
5
Para uma análise mais profunda acerca do processo de especificidade individualizadora no contexto
social, ver: FURET, François (dir). O homem romântico. Lisboa : Editorial Presença, 1995.
6
FONTANA, Josep. A História dos Homens. Bauru : EDUSC, 2004.
7
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1995.
69
no período em questão. Notamos, por exemplo, uma individualização de estilos e,
enquanto a música e a historiografia do século XVIII possuem características mais
unitárias, no XIX há uma pluralidade de estilos muito maior. Outro exemplo é o
grande crescimento de revistas, que criam um novo espaço de discussão intelectual
para a produção historiográfica e musical, até então inédito. Estas revistas, muitas
vezes vinculadas aos centros acadêmicos então em formação na Europa, oferecem um
diálogo intelectual público que demonstra cada vez mais a individualização
interpretativa destes fenômenos. Um último exemplo ainda pode ser acionado: a
individualidade e a especificidade são tão densamente marcadas neste período que
notamos uma ampliação nas interpretações teóricas, incluindo as possibilidades
historiográficas e musicais. Nestes fatores, a profissionalização do historiador e do
músico, o crescimento das revistas e a criação de novas interpretações conceituais,
localizamos específicas contribuições de Leopold von Ranke e Richard Wagner.
Hoje nos parece própria a lógica de que as revistas e jornais científicos são
ferramentas fundamentais na divulgação científica, bem como na pesquisa. Inovações
aparecem, originalmente, nas publicações dinâmicas e as revistas se apresentam como
esta possibilidade – principalmente em um mundo dominado pela acelerada dinâmica
de comunicação representada em ferramentas como a internet de nosso tempo
presente. Esse fator, entretanto, não surgiu no mundo contemporâneo, apenas se
acelerou devido às novas ferramentas, e se hoje as revistas possuem estas
características, no século XIX a divulgação e mais, as acaloradas discussões, conforme
demonstramos em momento anterior, eram nítidas. Este fator deve-se à própria lógica
interna de pensamento: o século do romantismo e do historicismo configurou a
problematização do conhecimento a partir da desconstrução do que já havia sido
proposto.
70
As revistas, em território germânico, possuíam, no entanto, outra
especificidade: direta ou indiretamente acabavam por se vincular aos debates
nacionalistas que percorriam o território no momento. Isso se exemplifica, por
exemplo, a partir das discussões travadas internamente nestes ambientes intelectuais de
divulgação. Mas não apenas. Mais do que focar nas possibilidades internas das
próprias possibilidades nacionalistas, revistas específicas também se dedicavam,
muitas vezes com afinco, a criticar as possibilidades nacionais de outros territórios.
Assim, passa-se a ter, novamente, uma reafirmação das possibilidades culturais
internas em comparação às externas – assim como ocorreu com a configuração do
historicismo da Escola Histórica Alemã enquanto crítica direta ao positivismo,
praticado na França, antiga divergência política dos estados da Confederação, a partir
das contribuições de Auguste Comte.
O crescimento destas publicações seriadas, marca direta e específica da
transformação do músico e do historiador em intelectual profissional, pode ser
observada em determinados personagens, como Leopold von Ranke e Richard
Wagner. Neste sentido, duas publicações nos interessam diretamente. Em primeiro, a
Historisch-Politische Zeitschrift (Revista Histórico-Política), relevante publicação
historiográfica da década de 1830; em segundo, a Bayreuther Blätter (Folhas de
Bayreuth), fundada em 1878, especializada no pensamento conservador dos
frequentadores do Bayreuth Festspielhaus – o teatro de ópera fundado por Richard
Wagner no norte da Baviera.
A Historisch-politische Zeitschrift foi uma publicação que teve em Leopold
von Ranke seu principal representante. Esta foi publicada entre 1832 e 1836 sendo
uma das precursoras das modernas revistas científicas da prática historiográfica. Sua
relevância pode, inclusive, ser encontrada no pensamento de autores diversos à lógica
germânica de historiografia, como Gabriel Monod que, partindo da leitura de revistas
germânicas, tais como a própria Historisch-politische Zeitschrift, conciliou a ‘história
científica alemã’ com a sua própria admiração por Michelet, historiador e filósofo do
nacionalismo francês contemporâneo a Ranke8.
A Historisch-politische Zeitschrift, fundada e editada por Ranke, teve como
grande incentivador Friedrich Christoph Perthes, além do pleno apoio do ministro
8
BURKE, Peter. O antigo regime na historiografia e seus críticos. pp: 10-15. In. ____A Revolução
Francesa da historiografia: a Escola dos Annales 1929-1989. Trad. Nilo Odália. – São Paulo: Editora
Universidade Estadual Paulista, 1991, p.13.
71
prussiano de relações exteriores, Conde Albrecht von Bernstorff. O objetivo central
para a criação deste periódico, que teve curta duração, foi, segundo o historiador
alemão Hans-Ulrich Wehler, o de criar um “órgão representativo pronto para defender
a política e iluminar a burocracia prussiana contra a liberal crítica da esquerda” 9. A
escolha de Leopold von Ranke para a editoração da revista atendeu, logicamente, a
necessidade de examinar o contexto político através de um método historiográfico
novo – afinal, a História estava se transformando em uma ciência específica e, como
tal, deveria atender as demandas da verdade e da necessidade político-social do
momento, já que a publicação era financiada pelo próprio governo prussiano, um dos
governos mais interessados no processo da Unificação. Mais que isso, o historiador
prussiano não apenas editava e, diretamente, controlava as possibilidades de
publicações como, também, era amplamente responsável pela elaboração de grande
maioria dos artigos publicados. Com isso, Ranke conseguiria o esperado espaço de
diálogo necessário para a exemplificação de suas ideias e conceitos. Se, com os livros,
recebeu notoriedade intelectual, com este periódico, Ranke pode discutir questões
relevantes para a política de seu tempo de forma dinâmica com o mais amplo público
alemão.
O perfil desta publicação teve variação entre a propaganda política e uma
revista histórica propriamente dita. Este fator parece mais claro se levarmos em conta o
período conturbado da publicação, a década de 1830, período de críticas diretas às
monarquias germânicas tão bem representado pelas sequências de Revoluções do
período. O foco desta publicação se estabeleceu, no geral, em assuntos referentes à
história política – modalidade na qual o editor, Ranke, se consolidava plenamente no
panorama historiográfico europeu. Todavia, surgiria uma novidade: as análises das
fontes primárias e mais, as possibilidades de análises diplomáticas. Assim, voltada
para o público interessado em política bem como para os interesses pessoais do editor,
a Historisch-politische Zeitschrift apresentou as bases para uma análise
epistemologicamente orientada das relações internacionais a partir das documentações
produzidas pelos próprios Estados. Neste sentido, a revista se estabeleceu como
aparato para a configuração de certa publicidade de um possível Estado-nacional
alemão. Logicamente, entretanto, o periódico acabou apresentando muito mais uma
9
Hans-Ulrich Wehler (Hrsg.): Deutsche Historiker. Band I, Vandenhoeck & Ruprecht, Göttingen
1971, S. 7.
72
visão pessoal rankeana sobre a pesquisa histórica e a política do período do que uma
leitura propriamente científica e política dos períodos analisados.
A revista, todavia, possuiu apenas dois volumes publicados: um primeiro em
1832 dividido em quatro partes e o segundo, mais amplo e espaçado, entre 1833 e
1836. Desta forma, mais do que uma publicação que buscou se formar em uma
cientificidade crítica, a Historisch-politische Zeitschrift acabou se transformando em
um diário das crises políticas de seu tempo – já que toda história se estabelece como
presentificada10. Porém, em curto tempo a revista rankeana acabaria por se transformar
na precursora de outras publicações do período, como a Zeitschrift für
Geschichtswissenschaft 11, publicada entre 1844 e 1848 e a Historischen Zeitschrift 12,
publicada desde 1859. Ou seja, se como possibilidade científica a Historisch-politische
Zeitschrift não atingiu seus objetivos, enquanto máquina política teve pleno sucesso. E
mais, acabou por estabelecer as normas metodológicas de publicação em periódicos,
tais como as conhecemos ainda hoje13.
Mais do que uma publicação de caráter plenamente historiográfico, a
Historisch-politische Zeitschrift demonstra uma modificação nítida no ofício do
historiador: se, anteriormente, mesmo que interessado no mundo político, cabia aos
historiadores certo afastamento tido como salutar, em Leopold von Ranke, a presença
nas disputas por áreas de fala política já se manifestam. Por outro lado, com a
transformação desta personagem em responsável direto pela prática de escrita histórica
de determinada orientação interpretativa, nitidamente percebe-se o início de um
processo de profissionalização do historiador – figura que, antes de terminar o século,
já estaria estabelecida, mesmo que, muitas vezes, ainda presa a determinados mandos
políticos perante uma monarquia que ainda centralizava poder.
Não apenas a história ganharia espaço de discussão, publicações em outras
áreas também começam a se manifestar neste período. Assim, áreas intelectuais vão se
apresentando através destas novas formas de divulgação do conhecimento, tais como a
sociologia, a antopologia e a psicologia. Nestes termos, a música também acabou
apresentando suas possibilidades e, se anteriormente os músicos se preocupavam
10
CROCCE, Benedetto. História, pensamento e ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.
11
Revista de Ciência Histórica
12
Revista Histórica
13
Para uma discussão mais aprofundada acerca da presença e da influência das revistas de história no
ambiente germânico do século XIX, cf: BENTIVOGLIO, Julio Cesar. A Historische Zeitschrift e a
historiografia alemã do século XIX. História da Historiografia, v. 6, p. 81-101, 2011.
73
apenas com a produção artística, como é evidente até o século XVIII, agora, passariam
a divulgar de forma mais ampla sua produção e seus interpretações de mundo de forma
razoavelmente sistematizada, o que abriria possibilidades, como mencionado aos
debates intelectuais acerca dos mais variados temas, incluindo o nacionalismo.
Raras no século XVIII e principalmente produzidas sem a própria presença de
músicos – no geral o que ocorria eram análises sobre as interpretações e composições
realizadas por críticos – as revistas especializadas em música sofreram um vertiginoso
crescimento no século XIX no território germânico: o início do século XVIII, por
exemplo, não chega a contabilizar publicações de nenhum tipo acerca do tema; a
segunda metade do mesmo período já contabiliza, ao menos, 25 periódicos; o século
XIX, por sua vez, possuía mais de 70 periódicos de ampla circulação e que se
mantiveram por razoável tempo 14.
Periódicos como o Neue Zeitschrift für Musik, fundado em 1834 por Robert
Schumann; o Allgemeine musikalische Zeitung, fundado em 1798 e que teve Johann
Christian Lobe como um de seus mais influentes editores; o Allgemeine Wiener Musik-
Zeitung fundado em 1841 por August Schmidt; o Niederrheinische Musik-Zeitung für
Kunstfreunde und Künstler, existente entre 1853 e 1867; e o Zeitung für die elegante
Welt, criado em 1801 por Johann Gottlieb Karl Spazier; atingiram um significativo
público. Entretanto, estas publicações, apesar de serem responsáveis pela divulgação
da obra e do pensamento destes atores sociais, no geral não são levadas em conta
enquanto fonte para a análise sócio-cultural pela historiografia contemporânea, mesmo
com as amplas possibilidades de análise e mesmo da expansão historiográfica ocorrida
na segunda metade do século XX15.
14
Logicamente estas publicações muitas vezes acabavam circulando em núcleos específicos todavia, o
que queremos demonstrar é que o fenômeno de ampliação destes periódicos deve-se mais a uma atitude
social do que a mera ampliação da produção de jornais. Notamos este fenômeno de circulação quando
comparamos o século XIX com o século XX. Neste último, houve um decréscimo dos debates
intelectuais acerca da música, evidenciado na publicação periódica escassa do período e na pouca
procura por parte do público por estas publicações. E mais, notamos também que grande parte dos
próprios periódicos do século XX se originaram em meados do XIX. Para uma maior pesquisa acerca
destes periódicos e uma contabilização nomeada, ver: FREYSTÄTTER, Wilhelm. Die Musikalischen
Zeitschriften seit ihrer Entstehung bis zur Gegenwart [As revistas musicais desde a sua criação até o
presente]. München: Literarisch-artistische Anstalt Theodor Riedel, 1884. KROME, Ferdinand. Die
Anfänge des musikalischen Journalismus in Deutschland [Os primórdios do jornalismo musical na
Alemanha]. Leipzig: Pöschel und Trepte, 1897.
15
DE LUCA, Tania Regina. Fontes impressas: história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY,
Carla Bassanezi (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2010. BARROS, José D’Assunção. A
expansão da história. Petrópolis: Vozes, 2013.
74
Um dos periódicos que possuiu a música como mote central sem, no entanto,
fugir das outras possibilidades argumentativas, foi o Bayreuther Blätter, idealizado por
Richard Wagner e com a primeira publicação sendo de 1878. Neste momento o
compositor já havia escrito grande parte de sua obra musical, todavia, sua produção
literária se ampliava e adensava cada vez mais e a fama, tão difícil de ser atingida em
um século que facilitou o acesso à produção artística aumentando a concorrência
artístico-intelectual, encontrava-se cada vez mais forte neste compositor. Este sucesso
deveu-se, em certa medida, à construção da Bayreuth Festspielhaus, a casa de ópera
projetada por Richard Wagner para a sua autopromoção e financiada por amigos e fãs
do compositor por toda a Europa além, é claro, de contar com o apoio da Coroa da
Baviera através do jovem rei Ludwig II. Fundamentou-se, assim, aquilo que ficou
conhecido como uma sociedade de patronos, um Patronatsverein, focada na
divulgação nacionalista da produção do compositor.
Inaugurada entre 13 e 17 de agosto de 1876 com a apresentação da tetralogia
do anel, ciclo composto pelas óperas O ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e
Crepúsculo dos Deuses, esta edificação acabou se inserindo não apenas nos debates
artísticos como também se transformando em verdadeiro local de peregrinação
daqueles que, como o compositor, pensavam a interação entre mundo artístico-musical
e política-nacionalista. Neste sentido, Wagner se firmava cada vez mais no cenário
político e acabava sendo pensado como um líder cultural durante o processo de
unificação iniciado anos antes16.
Fundamentado o centro físico de divulgação do pensamento e da obra
wagneriana, em torno do autor se reuniu um grupo, o Círculo de Bayreuth, “uma
pequena roda seleta de discípulos de Wagner que, invariavelmente, interpretavam sua
obra sob um ângulo völkisch17”18. Este grupo, contudo, não encontrou plena unidade o
que, a grande maioria das vezes, transforma as informações deixadas em imprecisas.
Logo, o que encontramos como legado entre esta sociedade é a própria contradição
acerca da interpretação do pensamento wagneriano – pensamento tão complexo que,
muitas vezes, colocou o próprio autor no interior de amplas discussões, inclusive com
seus aliados mais importantes. No mais, este foi o agrupamento responsável pela
16
DAHLHAUS, Carl; DEATHRIDGE, John. Wagner. São Paulo: LPM, 1988 [Série The New Grove].
17
Interpretação popular germânica realizada de forma romântica acerca da própria cultura popular.
18
LARGE, David C. O legado de Bayreuth. In: MILLINGTON, Barry (org). Wagner: um compêndio:
guia complete da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995,
p.459.
75
fundação daquela que seria uma das principais obras acerca do pensamento
wagneriano e que contaria com a colaboração do próprio homenageado, o periódico
Bayreuther Blätter.
Pouco tempo após a primeira execução no Bayreuth Festspielhaus, Richard
Wagner decidiu criar um periódico acerca de suas próprias realizações e dos ideais
nacionalistas que cruzavam a Alemanha da época – pensando, principalmente, nas
possibilidades de manifestação artístico-musical destes próprios ideais. Para a
colaboração em tal empresa, convidou o Barão Hans von Wolzogen, que já havia
chamado a atenção do compositor entre os anos de 1868 e 1870 enquanto estudante de
filosofia em Berlim. Assim sendo, o compositor e o jovem intelectual se reuniram em
Bayreuth em outubro de 1877. Em aproximadamente três meses, foi lançado o novo
plano wagneriano, o periódico. Von Wolzogen permaneceria como editor deste
periódico mensal dedicado ao compositor até falecer, 60 anos depois, colaborando,
assim, com divulgação do pensamento do Círculo de Bayreuth ao qual ele mesmo se
juntou19.
Percebendo o Bayreuther Blätter como fruto da produção intelectual do Círculo
de Bayreuth e localizando uma não unidade intelectual neste grupo notamos esta
publicação como sendo quase ilegível do ponto de vista de uma configuração teórica
mínima mantida. E mais, a complexidade dos textos transita entre problematizações
equivocadas, conceitos imprecisos, datações e fontes errôneas e análises que ora se
fazem amplamente superficiais e ora se fecham em intransponíveis herméticas. Todas
estas características, no entanto, se vinculavam a certa percepção do autor: a de que o
nacionalismo era, como um todo, um fenômeno complexo e contraditório, que
dependia muito mais da interpretação presente do que da exatidão analítica. Podemos
também, lembrar a dificuldade que os autores enfrentavam para publicarem seus textos
neste periódico que, segundo o musicólogo David Large,
19
A aproximação entre von Wolzogen e o compositor foi tão grande que o barão acabou sendo
reconhecido como um dos maiores especialistas no pensamento wagneriano na primeira metade do
século XX além de ser o responsável pela edição de várias obras do compositor, como o último volume
de seus escritos completos – publicado postumamente – e variadas coletâneas de cartas.
76
jamais tenham aparecido nas folhas deste periódico20. Aliás, nenhum
outro escritor alemão de primeira linha o fez, à exceção de Theodor
Fontane21.
20
Devemos, no entanto, lembrarmos que a amizade de Nietzsche e Wagner se esfriava já há algum
tempo e o filósofo acabou dirigindo críticas ao compositor em outros meios viáveis.
21
LARGE, David C. Op. Cit., p.456.
22
Esta própria referência era um dos motivos da crítica wagneriana, que considerava que a sociedade
industrial, com seu materialismo, destruía aquilo de mais puro existente na nação alemã: sua cultura.
Para um estudo aprofundado sobre este texto, bem como sua tradução, ver: RICON, Leandro Couto
Carreira; VICHI, Leonardo Perin. Para o despertar de uma natureza germânica: o texto 'was ist deutsch?'
de Richard Wagner. Veredas da História, v. 1, p. 1-33, 2011.
23
Idem.
77
Neste periódico, notamos, por exemplo, a aproximação de Wagner de um
esoterismo específico, além da nítida influência das leituras feitas da obra do filósofo
Arthur Schopenhauer, possuidor de um pensamento filosófico que agradava ao
compositor e que pode ser encontrado em parte de suas óperas. Assim, textos como
Religion und Kunst (Religião e Arte) e a Zur Einführung der Arbeit des Grafen
Gobineau “Ein Urteil über die jetzige Weltlage” (Introdução ao trabalho do Conde
Gobineau “Um juízo acerca da situação atual do mundo”) 24, ambos publicados neste
jornal, foram recebidos de forma extremada na Alemanha: enquanto que grande
parcela da população recebeu de modo caloroso, concordando com os argumentos do
autor, o Estado germânico se colocou com total cuidado perante as obras. No mais,
podemos perceber que esta publicação serviu ao compositor para sua própria
propaganda política: nela, publicou, no ano de 1878, amplos trechos de seus diários
contendo análises políticas e sociais da Alemanha recentemente unificada.
Wagner foi responsável por apresentar a primeira edição do Bayreuther Blätter
em janeiro de 1878. Na apresentação, o autor se colocou, acima de tudo, como um
compositor e mesmo um autor, mas, percebendo a fragilidade do momento histórico,
se lançou à organização do primeiro volume do periódico voltado a seus amigos.
Afirmou que, para conhecer seu pensamento, bastava procurar sua obra intelectual,
transformando o Bayreuther Blätter, assim, em mero complemento a tudo aquilo que
já escrevera e dissera. Neste prefácio notamos, nitidamente, o surgimento do
nacionalismo vinculado ao periódico e à produção wagneriana. Richard Wagner nos
afirmaria em tom de certeza:
24
RICON, Leandro Couto Carreira. O anti-semitismo de Wagner e Gobineau interpretado através
do texto de Wagner Introdução ao artigo do Conde Gobineau Um juízo sobre a situação atual do
mundo In: Anais da I Semana Internacional do CTH: Os desafios da cultura moderna e contemporânea
à metafísica. Petrópolis: Universidade Católica de Petrópolis, 2010. p.94 - 106
25
WAGNER, Richard. Zur Einführung (Bayreuther Blätter, Erstes Stück). In: FRIEDRICH, Sven
(hrsg). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004.
78
Ou seja, a arte alemã possui a coragem de poder – termo filosófico comum à
época em uma sociedade que não compreendia, ou compreendia com muita
dificuldade, a dinâmica política. Mas esta coragem deve ser repensada na medida em
que é necessário manter e conservar um estilo artístico alemão próprio. Daí a
necessidade de formação de artistas perfeitos e completos e da crítica contra as escolas
artísticas já existentes em território alemão que, muitas vezes se aproximavam de
abordagens estéticas francesas e/ou italianas – o profissionalismo artístico-musical na
Alemanha, portanto, se vinculava lentamente à autonomia nacional da produção
artística. O periódico surge assim, segundo Wagner, para demonstrar a fragilidade com
a qual a cultura artística germânica estava sendo levada e não apenas como um
intermediário entre os membros que formavam o Círculo de Bayreuth.
Ponto central deste pequeno trecho é a peculiar interpretação que o compositor
oferece às pequenas cidades e regiões do território alemão tão esquecidas pelo poder
central da monarquia que industrializava o território em acelerado ritmo. Para tal,
realizando sua autopromoção, afirma que sabe de sua relevância nas pequenas cidades
e sabe do crescimento de seu público nestas. Este público, segundo o autor, seria o
responsável pela manutenção daquilo de mais autêntico e unificador da Alemanha: a
cultura antiga e pura. Desta forma, o compositor acredita que o ideal nacionalista
alemão é constituído nas pequenas localidades e não nas grandes capitais, preocupadas
demais com o processo de assimilação cultural para fundamentar seu crescimento
econômico impulsionado pela Revolução Industrial. Assim, segundo o compositor, as
grandes cidades se esqueceram da nação germânica, apenas se lembrando do capital26.
Neste tom, afirmou que “é nos pequenos lugares da pátria alemã que reconheço os
mais ardentes e mais fortes estímulos a minha obra; nas grandes cidades, pelo
contrário, capitais políticas ou cidades comerciais, se perde a maior parte do tempo” 27.
Wagner, sabia da pequena circulação de seu periódico mensal editado por von
Wolzogen. Entretanto, acreditava na propagação de seus ideais nacionalistas. A
história mostrou que essas propagandas, ressignificadas ou não, atingiriam a política, a
cultura e a sociedade germânica ao longo do tempo, basta se lembrar das décadas de
1930 e 1940. Sua influência na sociedade e na cultura germânica foi tão significativa
26
Podemos lembrar a contraditória relação entre os artistas românticos e a implementação do
capitalismo industrial na Europa do século XIX. LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e
melancolia: o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis, Editora Vozes, 1995.
27
Idem.
79
que o compositor, muitas vezes, deixou de ter biógrafos ou analistas e passou a ter
praticamente hagiógrafos, mais preocupados com uma mitologização política e cultural
do que com uma narrativa histórico-científica. Todavia, o pensamento wagneriano
expresso, grande parte das vezes através dos periódicos musicais, notadamente o
Bayreuther Blätter, ainda se constitui fonte de ampla possibilidade interpretativa para o
nosso tempo presente.
Os periódicos tiveram significativa circulação na Alemanha no contexto em
torno das unificações. Cada qual difundindo suas especificidades analíticas,
Historisch-Politische Zeitschrift e o Bayreuther Blätter se vincularam aos
nacionalismos defendendo seus ideais. Uma unidade cultural, todavia, era o que se
pensava como central nos ambientes intelectuais germânicos do período. Esta possível
unidade cultural, expressa tão bem na utilização de uma linguagem comum divulgada
nos periódicos, seria a base para a sustentação do nacionalismo germânico que, por sua
vez, definiria a possibilidade de formação do Estado. Com isso, Ranke defendia em
seus textos uma unidade cultural histórico-cientificista, baseada na ancestralidade dos
povos germânicos, enquanto que Wagner defendia uma unidade baseada nas
possibilidades artístico-culturais. Estas defesas, demonstradas nos textos manifestos
nas revistas mencionadas, contudo, apresentaram uma novidade: a elaboração de novos
e específicos termos analíticos. E se, a própria prática de maior liberdade de escrita e
publicização desta já demarca certa individualidade profissional, a elaboração de um
arcabouço conceitual e de estilo definiria ainda mais as possibilidades de
profissionalização destes atores28.
28
Durante o século XIX os historiadores e músicos, localizando nos jornais uma ampla possibilidade de
divulgação independente, se vincularam diretamente a questões políticas, sobre estas questões, ver:
BENTIVOGLIO, Julio Cesar. Cultura política e historiografia alemã no século XIX: a Escola Histórica
Prussiana e a Historische Zeitschrift. Revista de Teoria da História, v. 3, p. 20-58, 2010. RICON,
Leandro Couto Carreira. A pluralidade de interpretações acerca do fenômeno da criação musical durante
o romantismo alemão ou a querela dos românticos. Pesquisa e Música, v.12/13, p.9 - 22, 2013.
80
3.2 Métodos, estilos e contribuições conceituais como forma de autonomia criativa
na configuração da profissionalização intelectual
29
FURET, François (dir). Op. Cit.
30
ELIAS, Norbert. Op. Cit.
31
As insuficiências semânticas neste sentido se referem às limitações de termos preexistentes que
conduzem a necessidade de novas configurações de significados e mesmo criação de nova gama de
palavras que atendam as demandas.
81
linguagem, expressa através da configuração de novos termos conceituais e semânticas
diferenciadas, acabou sendo divulgada, inclusive, nos periódicos aos quais estes atores
se vincularam, demonstrando, assim, uma ampliação do processo de independência
intelectual que se faz como parte fundamental para o fortalecimento das características
de profissionalização destes ramos intelectuais: a prática histórica e a arte-musical
operística.
O processo de pesquisa e de construção da narrativa de Leopold von Ranke
inovaram as possibilidades historiográficas em prol de sua obstinada busca pela
‘verdade histórica’. Isto é, o autor acabou estabelecendo um novo método de pesquisa
a partir de sua prática individual que se ampliaria a uma ampla miríade de
historiadores a partir do século XIX. Este historiador entraria para a história da
historiografia na esteira de uma citação específica: wie es eigentlich gewesen. Neste
sentido, o complexo pensamento metodológico de Ranke foi reduzido à interpretação
de que cabia à narrativa historiográfica narrar os acontencimentos ‘tal qual realmente
aconteceram’32. Esta citação, entretanto, apenas mostra uma faceta específica do autor:
seu realismo historiográfico, inclusive podendo ser interpretada como uma noção de
modéstia acadêmica33. E, portanto, seria demasiadamente reducionista aportar toda a
possibilidade de análise sobre esta frase, que não demonstra nada além da crença
epistemológica do autor em uma história cientificamente orientada, tal qual era
pensada no século XIX.
Assim, focando em uma cientificidade historiográfica, Ranke acabou se
afastando das análises filosóficas. Esse afastamento, em prol da solidificação de uma
metodologia própria à História, contudo, não ocorreu de forma total. Tal afastamento
ocorreu perante o pensamento hegeliano e sua noção de motor histórico progressivo –
nos mesmos moldes que Richard Wagner se afastaria – contudo, o pensamento
transcendental de Immanuel Kant, o construtivismo de Johann Fichte e o intuicionismo
de Friedrich Schelling são notáveis marcas no pensamento rankeano 34. Desta forma,
Ranke pode ser percebido como um dos formadores do paradigma da nova
32
RÜSEN, Jörn. Retórica e estética da história: Leopold von Ranke. In: MALERBA, Jurandir. História
& Narrativa: a ciência e a arte da escrita histórica. Petrópolis: Vozes, 2016, p.85-104.
33
GOMBRICH, E. H; STERN, Fritz. New York Rewiew of books, p.49, 24 de Fevereiro de 2000.
34
MARTINS, Estevão de Rezende; CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Leopold von Ranke (1795 –
1886). In: BENTIVOGLIO, Julio; LOPES, Marcos Antônio (orgs). A constituição da história como
ciência: de Ranke a Braudel. Petrópolis: Editora Vozes, 2013, p.13-32. Ranke rechaçou na história
hegeliana a mesma coisa que na iluminista: a idéia de progresso que encerram suas consequências. Além
de que estes autores excluiram as fontes contraditórias de suas análises sendo, por demais, subjetivos em
suas análises.
82
historiografia crítica desenvolvida na Alemanha do século XIX, principalmente, por
operar uma ruptura com a historiografia setecentista, marcada pela erudição e
abordagem filosófica densa35. Neste sentido, permaneceu fiel a uma mínima história de
caráter filosófico. Com esta possibilidade histórica, baseada minimamente na filosofia,
lançou sua busca metodológica, criticando os excessos de interpretação de
historiadores contemporâneos seus36, mas reconhecendo, ao mesmo tempo, a
dificuldade da anulação total do intelectual perante sua fonte, uma vez que o passado
vivido se transforma em passado narrado através da presença ativa do historiador.
O método rankeano, nestes termos, busca uma nova forma de prática
historiográfica a partir de certos fatores, notadamente a revisão dos clássicos em vista
de se produzir um conhecimento mais aprumado, novo e autônomo perante as outras
ciências e a recuperação de documentação, principalmente medieval, em seu caso, em
conjunto com o desenvolvimento de novos métodos analíticos. Para o historiador
prussiano, a leitura de historiadores anteriores a si e que produziram conhecimentos
sobre temas similares aos seus é de fundamental importância. Estes autores seriam os
responsáveis por indicações de documentações e de interpretações passadas acerca de
determinados eventos. Desta forma, pensando a história enquanto processo, Ranke não
pode se furtar destes outros autores. Entretanto, certamente sua problematização mais
relevante nos remete ao segundo fator: a recuperação das fontes e a nova possibilidade
metodológica de pesquisa. Assim, percebemos que Leopold von Ranke sistematiza a
crítica documental e não foca apenas na produção de narrativas partindo de outras
anteriores.
Ranke parte de um pressuposto mínimo: o documento é uma representação
assimilatória do fato histórico em si. Assim, o documento, dependendo de como é
acionado, oferece-nos respostas para perguntas específicas, que demonstram a
dinâmica de outro momento na história humana. Desta forma, começou a estabelecer
sua crítica documental específica, mas, para tal, assumiu um trabalho de erudição. Esta
erudição pode ser notada em sua coleção pessoal que continha, no momento de sua
morte, aproximadamente 50 mil documentos e 24 mil livros, hoje pertencentes à
Biblioteca Pública de Berlim e à Biblioteca da Universidade de Syracuse, nos Estados
Unidos, respectivamente.
35
ARÓSTEGUI, Julio. A pesquisa histórica: teoria e método. Bauru: EDUSC, 2006, p.100.
36
RANKE, Leopold von. Zur Kritik neuer Geschichtsschreiber. Berlin: Leipzig, 1824.
83
A prática de pesquisa historiográfica de Leopold von Ranke se estabelece de
forma complexa a partir do sequenciamento de regras de método historiográfico 37.
Dedicando-se a ir a arquivos, como notadamente o de Veneza e Frankfurt, localizou
documentos para suas pesquisas38. Lançava-se, então, a aplicação de seu método que
consistia, basicamente, das seguintes etapas: (1) definição de autoria; (2) sinceridade
autoral; (3) exatidão das informações; (4) coerência perante outros documentos; (5)
circunstâncias documental; (6) crítica da integralidade documental; (7) análise da
proveniência; (8) forma de transmissão do documento até nossos tempos; e (9)
características da informação contida no documento39.
Ou seja, primeiramente Ranke buscava informações sobre a autoria do texto.
Saber quem é o responsável pelo texto é fundamental para então definir se o texto foi
escrito de forma sincera, relatando efetivamente o evento ou demonstrando realmente
o pensamento, principalmente político, de uma época. Em seguida buscava a exatidão
das informações, principalmente comparando documentos e outras análises para
definir se as informações contidas no documento eram possíveis de serem analisadas
ou não, e mais, buscava o lugar de fala do autor, averiguando a posição, inclusive
social e institucional, que o leva a criar determinado documento transformado em fonte
pelo historiador – estas etapas efetivavam o máximo cientificista rankeano: a análise
documental em si. Com estes panoramas, definia se o documento era autêntico e se a
informação apresentada era posta de forma voluntária ou não. Por último, o autor
buscava analisar a transmissão do documento até seu tempo, procurando por possíveis
interferências e modificações que dificultariam o ofício historiográfico. Ranke, então,
procurava localizar as lacunas do documento. Se estas ocorressem, o autor procurava
completá-las com outra possível gama documental ou abria-se a explicações racionais
acerca destas – o próprio Ranke em si afastou suas possibilidades teóricas de suas
37
A busca por regras metodologicamente orientadas para as ciências humanas acabaram se
transformando em uma tônica que percorreu uma ampla variedade de autores das mais plurais
manifestações intelectuais.
38
BURKE, Peter. Ranke the reactionary. Volume 9 I. 1 Syracuse Scholar, ar. 5, 1988.
39
BARROS, José D’Assunção. Ranke: possibilidades de um realismo historicista. In: ______, Teoria
da História: Acordes historiográficos: uma nova proposta para a teoria da história. Petrópolis:
Vozes, 2011, p.69-96..
84
narrativas40, sistematizando, contudo, uma feroz luta contra os anacronismos
historiográficos41.
O processo criativo, o método de trabalho, de Richard Wagner, tal qual o de
Leopold von Ranke se estabeleceu de forma individual e nova, como era característica
comum durante significativa parte do século XIX – ou seja, neste período, cada autor
criava seu método de trabalho específico, sem seguir as determinações dos manuais
composicionais, como era comum nos períodos anteriores, notadamente no barroco e
no classicismo. Nestes termos, localizamos nitidamente em Wagner um processo
criativo desenvolvido em sete etapas: (1) a pesquisa bibliográfica; (2) um breve esboço
em prosa; (3) um rascunho em prosa; (4) um rascunho em verso; (5) uma cópia final
do poema; (6) o rascunho da obra musical; e (7) a cópia final da obra completa.
Richard Wagner escrevia seus libretos – textos que serviriam como base para a
elaboração das óperas – diferentemente da grande maioria dos compositores do século
XIX que terceirizavam a escrita desta parte. Estes textos eram pensados e elaborados
de forma complexa. Tendo uma formação intelectual não acadêmica, porém densa,
tendo se dedicado desde jovem a estudar línguas antigas, como o latim e o grego
clássico42 e ao estudo da literatura e do passado – real e mitológico – germânico, o
compositor possuía ampla intimidade com a mais variada bibliografia. Essa
característica de estudo aprofundado é localizável em seu método de trabalho que,
necessariamente, passava por um profundo mergulho em textos para a elaboração de
suas histórias. Destarte, o compositor criou suas óperas partindo de uma erudição
praticada, ou seja, suas treze óperas são erigidas a partir de obras prévias, não tendo
criado, portanto, nenhum argumento operístico totalmente original. Logo, sua primeira
etapa era exatamente se debruçar sobre aquele que seria o argumento central de sua
peça.
Após realizar suas anotações sobre o argumento temático da peça pensada, o
autor se lançava à criação de seu primeiro esboço de texto. Neste, feito em prosa,
esquematizava sucintamente a ação dramática, ou seja, estabelecia a adaptação da
40
KRIEGER, Leonard. Ranke: the meaning of history. Chicago: Chicago University Press, 1977,
p.107-115.
41
IGEERS, G. G; POWELL, J. M. Leopold von Ranke and the shaping of the historical disciplina.
Syracuse: Syracuse University Press, 1990.
42
O compositor, em sua juventude, inclusive se dedicou a traduzir para o alemão grandes trechos de
obras como a Odisséia e a Ilíada, de Homero influenciado por sua família, notadamente seu tio, Adolf,
conforme afirmou em sua autobiografia (cf.: WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven
(Ed). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004 [Original de 1851]).
85
pesquisa à necessidade de sua criação: definindo personagens e selecionando os
trechos que seriam utilizados na condução de sua releitura do tema original. A
pesquisa e a possibilidade de releituras são, desta forma, fundamentais para a
compreensão do método de trabalho do compositor que, efetivamente, transitou entre
as mais plurais possibilidades de releituras para criar todas as suas treze óperas:
partindo da literatura, utilizou a peça Medida por Medida, de William Shakespeare,
para a criação de sua Das Lebensverbot; partindo de pesquisas pessoais de caráter
histórico escreveu suas óperas Os Mestres Cantores de Nürenberg e Tannhäuser e o
torneio de trovadores de Wartburg; partindo de textos medievais sobre a mitologia
germânica escreveu sua As Fadas, O navio fantasma, Lohengrin, A tetralogia do anel
(O ouro do Reno, As Valquírias, Siegfried e O crepúsculo dos deuses), Tristão e Isolda
e Parsifal; partindo de pesquisas históricas, mitológicas e do romance histórico Rienzi
de Sir Edward Bulwer-Lytton, escreveu sua ópera homônima.
Em seguida, o compositor procurava encorpar o sucinto esquema em prosa
feito anteriormente, elaborando a sua história até chegar a todos os mínimos detalhes
necessários para a criação do enredo operístico. Neste momento, e ainda em forma de
prosa, o autor procurava criar as intenções de diálogos. Ou seja, estabelecia a dinâmica
geral da peça, sistematizando as falas necessárias para o transcorrer da futura
representação teatral. Esta etapa, segundo o próprio Wagner, apresentava-se como a
mais complexa da produção, levando algumas vezes meses ou anos para se
consolidar43. Após isto, o libreto estava pronto44.
Iniciava-se, então, a parte plenamente artística do procedimento composicional:
a versificação. Acerca da dificuldade encontrada nesta etapa pelo compositor, o
musicólogo americano Warren Darcy, especialista no processo composicional
wagneriano, afirmará que:
43
WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven (Ed). Richard Wagner: Werke, Schriften
und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004 [Original de 1851].
44
SPENCER, Stewart. Wagner como libretista. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: Um compêndio:
Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995,
p.296-302.
86
imediatamente mas, com bastante freqüência, um verso necessitava
de extensa revisão antes que ele se desse por satisfeito. 45
Wagner chegava, então, à cópia final do poema. Aquele que seria a base para a
criação da música, uma vez que havendo se estabelecido a métrica do texto, poderia se
dedicar à prosódia: pensar em uma melodia que encaixe a tônica da música com a
tônica da letra. Concomitante à elaboração desta cópia final do poema, o compositor
habitualmente criava preliminares esboços musicais anotando as ideias temático-
melódicas na medida em que lhe ocorriam, independentemente de que pertencessem à
ópera cuja composição estava naquele momento em andamento.
Partindo da base criada, tanto do texto quanto dos temas musicais mínimos,
Wagner se lançava à composição da peça como um todo. Neste quesito e
diferentemente de outros autores de óperas, criou um sistema específico: pensar nos
atos e cenas de forma unificada. Explicamos: usualmente ao se compor óperas, os
autores, incluindo aqueles do romantismo, fragmentam a peça – os atos e as cenas – e
pensam as partes em separado. Richard Wagner não seguia este modelo. Para este, a
ópera deve ser pensada de forma contínua, logo, escreve as peças por inteiro, sem
cisões marcantes, como até então era comum – este quesito, inclusive se transformará,
a partir de sua conceituação, em uma característica determinante para o estilo
wagneriano de música operística. Após está sistematização da obra como um todo, o
compositor
45
DARCY, Warren. Manuscritos autógrafos. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: um compêndio. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, p.228.
46
Idem, p.238 – grifos do autor.
87
Com Wagner a ópera se consolidava em espetáculo 47. Esse estilo, demasiadamente
específico, pode, com isso, ser analisado e problematizado a partir de suas lógicas
específicas internas.
Wagner certamente inovou dentro da própria escrita musical, apesar de não
possuir uma linguagem artística unificada. Para este, a linguagem musical instrumental
deveria caminhar em conjunto com a falada, daí a relevância da ópera que conseguiria
a perfeita comunhão, entre a língua e a música nacional, uma vez que a voz passa a ser
tratada instrumentalmente. Herdeiro da tradição de Carl Maria von Weber e Heinrich
Marschner em sua primeira ópera As Fadas (Die Feen) e de Vicenzo Bellini e Daniel
Auber em sua segunda O Amor Proibido (Das Liebesverbot), Wagner vai moldando
sua própria escrita ainda jovem. Dentre estas, uma se destaca no campo puramente
musical: as inovações harmônicas propostas pelo compositor. Diferentemente da
maioria dos outros operistas europeus do século XIX, Wagner não partia da melodia
para a construção musical, mas sim da construção harmônica para a identificação
melódica: criando uma série de acordes, localizava uma linha cantável. Mais do que
isso, o compositor inovou ampliando as possibilidades atonais e cromáticas: tentando
superar os compositores anteriores que ainda se vinculavam a uma escrita plenamente
tonal e possivelmente previsível, reafirmando o atonalismo como uma forma de
composição na qual se busca o afastamento do centro tonal e o cromatismo como a
utilização de toda a escala musical existente. Estas inovações tinham como função
adiar a resolução tonal das dissonâncias, ampliando as possibilidades de modulação e
de interpretação das obras.
Iniciando sua vida artística pública como maestro orquestral, este compositor
acabou modificando o uso de seu instrumento primeiro de trabalho: a orquestra, se
transformando em um dos responsáveis pela criação e consolidação do fosso orquestral
invisível48. Este modelo de fosso, hoje o mais comum nas casas de ópera ao redor do
mundo, tem como função principal fazer com que o público não consiga identificar a
orquestra apenas ouvindo o seu som podendo, assim, dedicar toda a sua atenção ao
palco, onde está sendo encenada a peça. Dentro ainda da figura da orquestração,
47
BLANNING, Tim. Richard Wagner e a apoteose da música. In: ______. O triunfo da música: a
ascensão dos compositores, dos músicos e de sua arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
48
Originalmente as óperas eram representadas com a orquestra próxima à primeira fileira do público,
Wagner é um dos responsáveis por criar um local específico para as orquestras operísticas, o fosso.
Hoje, no geral, como herança wagneriana, o fosso é praticamente todo coberto, se localizando entre o
público e a parte inferior do palco.
88
podemos lembrar que Wagner é o responsável pela instrumentação de óperas que
exigiam orquestras de grandes proporções, como é o caso de sua Tetralogia do Anel e
sua orquestração que necessitava de aproximadamente 90 instrumentos, buscando com
isso o caráter heróico da peça e reafirmando a transformação da ópera em espetáculo.
Além disso, também inovou na área instrumental, buscando seu estilo próprio, como é
o caso da trompa wagneriana, instrumento intermediário entre o trombone e a trompa
criado sob encomenda, por C. W. Moritz e Adolphe Sax, especificamente para a
exibição da Tetralogia do Anel.
O estilo na escrita histórica, por sua vez, tem sido levado em conta há pouco
tempo. Entretanto, nos parece claro, hoje, que o “estilo é a arte da ciência do
historiador”49. O estilo de escrita de Ranke, tal qual a música de Richard Wagner,
também se apresentou como inovador, como variados intérpretes marcaram 50. Para o
historiador prussiano a história é concomitantemente uma ciência e uma arte,
sintetizando o conhecimento científico com o retórico narrativo permeado por uma
filosofia analítica e não-especulativa – afinal de contas Leopold von Ranke, como
historicista, não acredita em leis gerais mas em tendências, o que seus textos,
claramente, demonstram.
Neste sentido, alguns pontos da narrativa rankeana são interessantes. Em
primeiro, podemos destacar a sua percepção da obra de autores como Sir Walter Scott.
O autor de Ivanhoé certamente também influenciou Wagner, como ele mesmo atestou
em suas narrativas biográficas, entretanto, em Ranke a presença é central. Ainda cedo
o historiador entrou em contato com a obra do autor escocês e decidiu dedicar-se à
narrativa literária sobre o passado, o romance histórico do qual Sir Scott é um dos
fundadores. No entanto, Ranke não se contentou com os romances históricos
medievais ao perceber que a própria história medieval ofertava uma variedade de
enredos densamente mais complexos e o melhor: reais. Todas as narrativas estavam
nos arquivos e nas outras obras historiográficas, prontas a serem desveladas. Desta
forma, utilizando-se de uma narrativa romancesca, lançou-se à criação de sua
interpretação de paradigma historiográfico.
49
GAY, Peter. O estilo na história: Gibbon, Ranke, Macaulay, Burckhardt. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990, p.196.
50
GAY, Peter. Op. Cit. White, Hayden. Ranke: o realismo histórico como comédia. In: ______. Meta-
história: a imaginação histórica do século XIX. São Paulo: EDUSP, 1995, p.175-202.
89
Ranke, portanto, se preocupou com a forma. Sua escrita está repleta de recursos
literários, a ausência da primeira pessoa como forma de se afastar do texto, buscando
maior objetividade e neutralidade, densa caracterização de personagens heróicos, ritmo
marcado através das pontuações e utilização de clímax romancescos para criar certas
auras de suspense. Outras características poderiam ser também mencionadas, mas o
ponto central é que Ranke evidencia uma preocupação em garantir ao leitor prazer com
a leitura de suas obras históricas, conforme demonstrou o historiador germânico Peter
Gay51. Outro ponto relevante ao se pensar o estilo de Wagner e Ranke é a presença da
população em suas obras.
Toda esta presença de Richard Wagner em sua obra, os estudos de história e
mitologia germânica, a elaboração dos próprios textos e as criações estilísticas
específicas marcam outro traço extremamente importante no estilo wagneriano: a sua
relação com o seu público. Wagner foi um autor que buscou, em sua produção, o
relacionamento com a população germânica, criando uma verdadeira gama de
seguidores entre as mais variadas classes. Assim sendo, um outro ponto relevante da
forma de escrita de Wagner é a presença de grandes multidões em suas obras. Destarte
ser característica comum em óperas, principalmente no romantismo, na escrita
wagneriana o coletivo tem sempre importância. Esta característica, originária de suas
percepções coletivas e sociais, não deve, contudo, ser pensada apenas sobre o palco. O
público, enquanto massa, também deve ser levado em conta 52. O filósofo alemão
Friedrich Nietzsche, que manteve contato próximo com o compositor, afirmou certa
vez num ataque a Richard Wagner e a seu projeto de construção de um teatro próprio
para as representações de suas peças na cidade de Bayreuth:
51
GAY, Peter, Ranke: o crítico respeitoso. ______. Op. Cit., p.63-94.
52
WHITALL, Arnold. Estilo musical: a linguagem musical. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: Um
compêndio: Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1995, p.277-293.
53
NIETZSCHE, Friedrich. Nietzsche contra Wagner. In: ______. O caso Wagner: um problema para
músicos e Nietzsche contra Wagner: dossiê de um psicólogo. São Paulo: Companhia das Letras,
1999, p.54.
90
O filósofo, outrora amigo do compositor, que sempre percebeu a relação entre a
obra wagneriana e a política-nacionalista germânica, com isso demonstra os perigos
que a estética e as formas de trabalho de Richard Wagner assumem a partir do
momento que passam a ter uma função além da artística54. A multidão encenada nas
óperas passa, portanto, a representar a multidão do público – uma multidão que
ansiava por modificações sociais, políticas e reafirmações culturais e que, por isto
mesmo, ajudava no processo de sacralização da música wagneriana, objetivo próprio
do compositor55.
54
Friedrich Nietzsche e Richard Wagner mantiveram intensa correspondência até a ruptura, ocorrida em
1876. Alguns traços marcam esse afastamento: em primeiro lugar, o ideal ascético conflitante; em
segundo lugar, a vinculação entre o pensamento wagneriano e o de Arthur Schopenhauer, filósofo que
Nietzsche afiramaria negar a vida, a caluniando; em terceiro, podemos lembrar as fortes posições deste
filósofo contra o anti-semitismo wagneriano (cf.: NIETZSCHE, Friedrich. Correspondência com
Wagner. Lisboa: Guimarães Editores, 1990).
55
BLANNING, Tim. Richard Wagner e a apoteose do músico. In: ______. O triunfo da música: a
ascensão dos compositores, dos músicos e de sua arte. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
COELHO, Lauro Machado. Op. Cit. p.239-241.
56
Ilustração divulgada pela França no momento da primeira execução de Tannhäuser em Paris, ocorrida
em 13 de Maio de 1861. Cf.: MILLINGTON, Barry. Op. Cit.
91
Leopold von Ranke também se utilizou da noção de público em sua produção
historiográfica ao contrário do que leitores desatentos podem pensar. Em sua obra o
povo e a individualidade têm, se não o mesmo, um peso interpretativo muito próximo.
Assim, o historiador intentou constantemente demonstrar este fenômeno. Sua
predileção, seu foco, entretanto, notadamente se acenta sobre a individualidade
heróica, tal qual Richard Wagner. Porém, esta individualidade deve ser compreendida
como uma possibilidade social. Ou seja, o indivíduo se localiza em um local específico
porque uma série social e institucional o insere neste ponto. Em sua obra História dos
Povos Romanos e Germânicos entre 1494 e 151457, o historiador prussiano já
demonstrava a preocupação com o povo, demonstrando o processo de vinculação
cultural ocorrida entre germânicos e latinos desde o processo de invasões bárbaras e
como estes constituíram povos próximos durante a transição do século XV para o XVI.
Esta interpretação também pode ser facilmente encontrada em sua obra História dos
Papas58. Nesta, o contraste entre Inácio de Loyola e o Papa Paulo III, ambos
relacionados com a criação e aprovação da Companhia de Jesus pela Igreja Católica é
evidente. Inácio é o sujeito histórico ‘ativo’, pois sua vida ultrapassa a existência
simples humana; o Papa Paulo III, por sua vez, apenas tentou adaptar-se ao modelo
social, cultural e político até então existente59. Wagner e Ranke, também acabaram,
devido a essa certa liberdade criativa, estabelecendo novos conceitos interpretativos
para suas próprias áreas intelectuais.
57
RANKE, Leopold von. Geschichten der romanischen und germanischen Völker von 1494 bis 1514.
In: ______. Völker und Staaten in der neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch
Verlag, 1945.
58
RANKE, Leopold von. Die römischen Päpste. In: ______. Völker und Staaten in der neueren
Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945.
59
BERDING, H. Leopold von Ranke. In: WEHLER, Hans-Ulrich (org.). Deutsche Historiker.
Göttingen: Vandenhock/Ruprecht, 1971.
92
Imagem 2: Capa da primeira obra de grande circulação de
Leopold von Ranke, Os papas romanos nos últimos quatro séculos,
usualmente chamado apenas de História dos Papas60
60
Esta obra, escrita originalmente em três volumes, entre 1834 e 1836, certamente foi a primeira
contribuição de Leopold von Ranke a receber amplos olhares pelas variadas partes da sociedade
germânica. Neste sentido, principalmente a monarquia prussiana, buscando sua reafirmação religiosa
perante um dinâmico e questionado cristianismo, se lançou à analise. Certamente, também, esta obra
lançou o historiador ao patamar de analista da cultura e da política internacional germânica.
61
GREY, Thomas S. Um glossário wagneriano. In: MILLINGTON, Barry. Wagner: Um compêndio:
Guia completo da música e da vida de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995,
p.254-270.
93
harmônico, passou a se utilizar da técnica de composição chamada de
Durchkomposition, ou seja, o autor se utilizou da música como um todo, criando uma
melodia contínua responsável por interligar os atos e cenas do espetáculo. Ou seja,
pensando as cenas e atos como um bloco total, o compositor buscou equilibrar texto e
música evitando quaisquer quebras no encadeamento de ambos. A partir disto, e para
manter a lógica da peça, o compositor se utilizou do artifício da unendliche Melodia, a
Melodia Infinita, que possibilita, através de cromatismo, o surgimento de novos temas
musicais e diálogos dramáticos.
Partindo deste ponto, Wagner começa a se utilizar daquilo que se transformaria
em seu conceito mais conhecido pelo grande público ao se pensar no possível
‘glossário wagneriano’: o Leitmotiv [Motivo Condutor]. Este se apresenta como a
utilização de uma ideia musical – geralmente melódica, mas podendo ser também
harmônica ou rítmica – identificada com determinada personagem, atitude ou
sentimento durante toda a obra. Desta forma, a função dos variados motivos
condutores no interior de cada obra era clara: sempre que cada motivo é ouvido, a
audiência é inconscientemente transportada para as aspirações cênicas do compositor,
criando uma constância dramática.
Entretanto seria um equívoco afirmarmos que este compositor foi o primeiro a
se utilizar desta técnica composicional. Essa característica de escrita pode ser
facilmente encontrada em outros autores, como Wolfgang Amadeus Mozart e Carl
Maria von Weber – compositores que Wagner admirava e, em certa medida, o
influenciaram no estabelecimento de sua singularidade estilística. A inovação que
Richard Wagner acrescentou à lógica do motivo condutor é que leva importância a esta
possibilidade: os motivos de Wagner vão se modificando, através de novas
interpretações rítmicas, harmônicas ou melódicas, a cada nova aparição de acordo com
as demandas da peça.
94
Imagem 3: Motivos condutores centrais da obra
Tristão e Isolda de Richard Wagner62
62
Nesta tabela de Motivos Condutores da obra Tristão e Isolda, encontramos, também, a dinâmica do
enredo de toda a obra. O enredo, conduzido por estes motivos, se daria da seguinte forma: No início
temos (A) o desejo de (B) Isolda por Tristão. Entretanto, o (C) destino guarda para o casal um futuro
(D) misterioso. Pressentindo o futuro, Isolda lança sobre Tristão seu (E) olhar e seu (F) amor. Todavia o
amor atinge ambos os personagens profundamente. Logo, sendo distantes, o amor assume-se como
possibilidade da (G) morte de (H) Tristão e Isolda por seus (I) desejos de amantes.
Os nomes dados por Richard Wagner aos motivos encontram-se grifados. Cf.: BAILEY,
Robert. A Norton Critical Scores: Prelude and Transfiguration from Tristan and Isolda. New
York: W.W.Norton & Company, sd.
95
Com a participação em todo o processo criativo e com a manutenção de uma
música constante, Wagner conseguiu aquilo que vinha sendo tentado desde o italiano
Claudio Monteverdi, formulador da ópera enquanto gênero musical: juntou texto e
música mantendo a última como responsável pela narrativa. Wagner tinha conseguido
o que sempre quisera, modificou as estruturas da ópera, formando aquilo que, desde o
compositor da Tetralogia, se usou chamar de Drama Musical. Neste tom, o compositor
afirmaria acerca de sua própria produção:
Não mais escreverei óperas; mas, como não pretendo inventar nomes
arbitrários para estas obras, vou chamá-las simplesmente de dramas,
pois isso, ao menos, representa uma indicação do ponto de vista pelo
qual devam ser compreendidas63
63
WAGNER, Richard. Eine Mittheilung an meine Freunde [Uma comunicação a meus amigos]. In:
FRIEDRICH, Sven (Ed). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004
[Original de 1851].
64
ZAMACOIS, Joaquin. Curso de Formas Musicales. Barcelona : Ed. Labor, 1979.
65
WAGNER, Richard. Opera und Drama [Ópera e Drama]. In: FRIEDRICH, Sven (Ed). Richard
Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Berlin: Directmedia, 2004 [Original de 1851].
96
artes transformar-se-iam em interdependentes66. Esta necessidade de fusão de artes é
uma tentativa de resgate de uma leitura grega da arte que Wagner, bem como outros
intelectuais do período, realizava. Este identificava a supremacia cultural grega
exatamente com o encaminhamento em conjunto de todas as artes. E mais, o
compositor, além de buscar o Drama como Obra-de-Arte Total, identifica a
necessidade deste Drama atender, também, as demandas sociais e políticas germânicas
do momento criando, a partir disto, um Nationaldrama. Este Drama Nacional além de
ser, segundo Wagner, um amplo exemplo da perfeição do espírito humano, funcionaria
como um aparato artístico facilitador da identificação dos germânicos como um povo
culturalmente unificado 67.
Em síntese, o processo criativo do compositor pode ser resumido da seguinte
forma: após a pesquisa bibliográfica buscando temas, Wagner escrevia longas análises
em prosa nas quais debatia todas as possibilidades de expressão dramática do texto.
Após este estudo e estruturação do enredo, o compositor criava o libreto atendendo,
sempre, às necessidades de equilíbrio entre música e língua. Em seguida, com o libreto
e os temas harmônicos e melódicos já definidos e criados, o compositor lançava-se à
criação da partitura orquestral que conduziria toda a obra. Porém, após este término –
momento no qual os compositores geralmente se afastavam da produção – Wagner
continuava, colaborando com as escolhas dos cantores, da regência, dos músicos e, até
mesmo, dos cenários que suas peças teriam durante a exibição – além de compositor se
fazia também, portanto, diretor artístico – efetivamente, nestes termos, as criações
wagnerianas se apresentam mais como trabalhos individuais do que como trabalhos
coletivos, como é usual. Este fato, o pleno mergulho em todas as possibilidades de
intervenção na própria ópera é, sem dúvida, a principal característica do estilo de
Richard Wagner de composição que, para sua afirmação necessitou buscar um
arcabouço teórico específico.
Leopold von Ranke também acabou conhecido pelo estabelecimento de
conceitos específicos. Certamente não se utilizou de uma criação tão ampla quanto
Richard Wagner. Entretanto, sua interpretação conceitual acerca da prática
historiográfica se apresenta como relevantes até nosso tempo presente. Basicamente o
66
FUBINI, Enrico. La Estetica Musical Del Siglo XIX a Nuestros Dias. Barcelona: Barral Editores,
1971.
67
Acerca da Obra-de-Arte do Futuro, enquanto termo wagneriano, e da união desta com as
possibilidades nacionalistas da Germânia do século XIX, ver: WAGNER, Richard. A Obra de Arte do
Futuro. Lisboa: Antígona, 2003.
97
historiador analisou a história a partir de duas interpretações: primeiramente, pensou
naquilo que convencionou-se – já que o próprio historiador não chegou efetivamente a
nomear estes termos – chamar de passado real; em segundo lugar, o passado
essencial68.
Metodologicamente orientado, buscando fontes documentais em suas origens e
as analisando e empreendendo a releitura de obras historiográficas anteriores, Leopold
von Ranke acreditava que encontraria um panorama geral da historicidade analisada.
Esta historicidade geral se apresentaria, neste sentido, como uma história continental,
guiada pelas possibilidades ofertadas pelas análises nacionais, na qual apareceriam, a
maior parte das vezes, a dinâmica política do continente europeu. Uma vez que essa
dinâmica se apresentasse, surgiria, também, a interação do velho mundo com todas as
outras regiões conhecidas. Isto é, em Ranke, o passado real se aproximaria
amplamente de uma história universal – este sim o termo preferido pelo historiador
prussiano. Acerca disto, o historiador afirmaria que
68
ARAÚJO, André de Melo. Leopold von Ranke (1795-1886). In: PARADA, Maurício (org). Os
historiadores clássicos da história: de Tocqueville a Thompson. Petrópolis: Editora Vozes: Editora
PUC-Rio, 2013, p.73-94.
69
RANKE, Leopold von. Werk und Nachlass. Vol. 4: Vorlesungseinleitungen. Münch: Oldenbourg,
1975.
70
ARAÚJO, André de Melo. Op. Cit.
71
Idem.
98
3.3 Considerações de conjunto: as bases intelectuais plurais para a variedade de
interpretações do nacionalismo
99
germânico, estabeleceu a História enquanto disciplina acadêmica 72. Nesta
Universidade, claramente erigida em oposição às francesas, Ranke pode praticar sua
metodologia e interpretação historiográfica de forma tranqüila, sistematizando, entre
outras possibilidades, uma prática de História Oral e de História do Tempo Presente,
raras em seu momento73; características fundamentais para a difusão do autor como o
‘criador da história científica e dos seminários históricos’, principalmente nos Estados
Unidos da América74.
No caso de Richard Wagner podemos elencar a aproximação de seu estilo
individual com o poder central ao pensarmos a construção de seu teatro operístico
financiado pela corte da Baviera, o Bayreuth Festspielhaus. E mais, podemos perceber,
também, a ampla divulgação da interpretação artística wagneriana como modelo a ser
seguido dentro do círculo artístico-musical germânico75.
Estes autores, além de sua individualidade metodológica, criaram conceitos
próprios que acabaram sendo amplamente divulgados em seus tempos. E é exatamente
neste ponto que as percepções individuais que possibilitaram as profissionalizações
encontram as marcas da nacionalidade. Ou seja, Ranke e Wagner optaram pela
edificação de padrões epistemológicos e artísticos específicos em prol da divulgação
de uma germanidade criada, o que acabou lançando-os como líderes intelectuais do
processo de Unificação, reconhecidos pelo público e pela aristocracia controladora da
burocracia monárquica.
Prática intelectual livre que permitia aos pensadores criarem conceitos,
sistematização de métodos de trabalho individual e divulgação de seus pensamentos e
obras para a sociedade através de suas revistas e obras foram fundamentais na
Confederação Germânica. Estas acabavam se estabelecendo como necessárias para a
elaboração de um nacionalismo próprio que, em certa medida, assumia a
72
Neste sentido a única História com validação real passava a ser a praticada em ambientes acadêmicos.
LIEBESCHÜTZ, H. Ranke. London: George Philip & Son, 1954. SU, Shih-Chieh (Jay). Modern
nationalism and the makinf of a professional historian: the life and work of Leopold von Ranke.
Providence: Rhode Island: Brown University, 2012 [Tese de Doutorado].
73
Nos referimos aqui, à obra, História da Sérvia que acabou sendo esquecida muitas vezes dentro da
obra de Leopold von Ranke. Esta obra foi, certamente, uma das que Ranke mais prezou, a reeditando
quatro vezes ao longo da vida. Cf.: MOREIRA, Viviane Venancio. Leopold von Ranke e a Questão
Oriental: O Caso d’A Revolução Sérvia (1829-1879). São Paulo: USP, 2014 [Dissertação de
Mestrado].
74
SMITH, Bonnie G. Gender and the Practices of Scientific History: The Seminar and Archival
Research in the Nineteenth Century. The American Historical Review, Vol. 100, no. 4 (Oct., 1995),
pp.1150-1176.
75
LARGE, David C. Op. Cit.
100
responsabilidade de criar um sentimento de pertencimento a um grupo culturalmente
delimitado. Porém, não seria possível pensar na contribuição de intelectuais como
Leopold von Ranke e Richard Wagner sem pensarmos na pluralidade interpretativa da
política, enquanto possível manifestação do nacionalismo. Afinal, seria necessário
definir a política germânica futura para, então, poderem se debruçar sobre o processo
de afirmação nacional e territorial de um novo Estado, a Alemanha.
101
4. INTERPRETAÇÕES POLÍTICAS OU AS IDEIAS GANHAM FORMA: A
LEITURA DA REVOLUÇÃO E DOS PERSONAGENS
1
PERROT, Michelle (org). História da vida privada: da Revolução Francesa à Primeira Guerra.
102
personagens, mesmo quando coletivos, eram tratados a partir de características que os
demonstravam como singulares, individuais. Leopold von Ranke e Richard Wagner
não se furtaram a esta característica. Em suas interpretações, os indivíduos têm um
papel político central e, muitas vezes, heróico. A heroicização dos personagens,
característica comum tanto da historiografia quanto da música operística do século
XIX, nestes intelectuais ganham outros contornos. Através desta interpretação, Ranke
e Wagner acabaram demonstrando a força necessária para se estabelecerem
politicamente em um processo de unificação nacional. Ou seja, a unificação, apesar de
necessitar da população, deveria ser guiada por um indivíduo específico.
São Paulo: Companhia das Letras, 1991 [Coleção História da vida privada, dirigida por Philippe Ariès e
Georges Duby].
2
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789 – 1848. 6ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988.
3
HOBSBAWM, Eric. A Era do Capital: 1848 – 1871. 4ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1982. _____.
A Era dos Impérios: 1871-1914. 4ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1982.
4
LÖWY, Michel. Ideologia e Ciências Social. São Paulo: Cortez Editora, 1995.
103
europeu5. Neste sentido, intelectuais como Leopold von Ranke e Richard Wagner são
melhor compreendidos através da problematização das revoltas sociais de seu período
e de como estes fenômenos se inseriram em suas produções.
Leopold von Ranke tratou de forma indireta os processos revolucionários de
seu tempo. Ou seja, apesar de em sua obra historiográfica não ocorrerem menções
diretas aos ciclos revolucionários de 1830 e de 1848, o autor analisou o fenômeno
revoltoso a partir da Revolução Francesa, iniciada seis anos antes de seu nascimento.
Esta característica de análise indireta pode ser percebida, também, na não participação
do autor nas movimentações revoltosas que cruzaram a Europa durante o século XIX.
Neste tom, o projeto historiográfico de Ranke, tal qual o de outros historicistas
realistas do período, vinculou-se ao conservadorismo político crítico das revoluções.
Este conservadorismo era exigido pelo poder centralizador alemão principalmente o
prussiano, responsável direto pelo financiamento de suas pesquisas historiográficas e
interessado em estabelecer uma nova legitimidade às instituições políticas após a
Revolução Francesa e as Invasões Napoleônicas subseqüentes – afinal, este se
apresentava como período das Restaurações Monárquicas6.
Em Ranke, o processo revolucionário é o ápice de uma perda acentuada de
poder político em panorama continental. Desta forma, perceberá que a monarquia
francesa perdeu, ao longo do século XVIII, sua força política em um contexto europeu,
tendo sido forçada, por exemplo, a assistir a partilha da Polônia sem ao menos ser
consultada pelos Estados interessados no território. Além disso, teve que se submeter
às fiscalizações inglesas em sua frota naval, como resultado de sua derrota na Guerra
dos Sete Anos e consequente assinatura do Tratado de Paris, em 1763 7.
Neste mesmo cenário, o protagonismo político continental passou a ser
manifesto por outros territórios além da França, tais como a Inglaterra, antiga
desavença francesa; e a Prússia, um dos vários estados do então Sacro Império
Romano Germânico. Desta forma, a população estabeleceu uma espécie de saudosismo
político, representado na idealização da ‘riqueza’ do Estado francês à época de Luís
5
TALMON, J. L. Romantismo e Revolta: Europa 1815-1848. Lisboa: Editorial Verbo, 1967.
GUINSBURG, J. Romantismo, Historicismo e História. In: ______. O romantismo. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1978.
6
MAYER, Arno J. A Força da Tradição: a persistência do Antigo Regime (1848-1914). São Paulo:
Companhia das Letras, 1990.
7
RANKE, Leopold von. Die großen Mächte. In: ______. Völker und Staaten in der neueren
Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945, p.44-88.
104
XIV – mesmo com esta não sendo uma prosperidade material que atingisse toda a
população do Estado francês. Sobre isto, o historiador nos afirmaria que
8
RANKE, Leopold von. Die großen Mächte. In: ______. Völker und Staaten in der neueren
Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945, p.70.
9
Sobre a dinâmica conceitual e aplicação social da prática histórica, ver o Apêndice A. Neste, de forma
resumida, apresentamos as interpretações e usos da História na política e na sociedade desde a
Antiguidade Clássica até algumas das mais novas modalidades.
10
Idem, p.72.
105
Fica claro nas palavras do autor, portanto, seu posicionamento sobre o
movimento revolucionário francês. Mesmo concordando parcialmente com os motivos
que levaram a tal desenlace, sendo notório o desagrado do povo frente a nova posição
de relativa subalternidade frente às novas e enérgicas potências europeias e a situação
de paridade em relação as antigas nações as quais lhe delegavam influência política,
percebe que os cidadãos exigiam medidas por vezes um tanto drásticas que geravam
cada vez mais instabilidade interna. Localizava, assim, a necessidade revolucionária:
uma vez que “a opinião pública achou que a honra nacional foi manchada de modo tão
grave e brutal, [...] seriam necessários rios de sangue para lavá-la”11. Não sendo
bastante todo o sentimento de revolta pelo que de fato estava acontecendo
internamente, o povo começou a imaginar que algo ainda pior pudesse estar ocorrendo:
11
Ibidem
12
Idem, p.73.
106
próprio poder e autoridade em uma sociedade de corte estática, não havendo nelas –
tanto na coroa quanto na classe nobiliárquica – forças suficientes que seriam
necessárias para retirar o país da condição em que se encontrava. Sobre isto, o autor
afirmaria: “A verdade, porém, é que aquele poder já entrara em decadência. A tal
ponto que, quando o governo tentou as reformas julgadas necessárias, não tinha mais
força para executá-las”13.
Neste sentido, para conseguir a ajuda necessária para a manutenção da unidade
nacional em torno da coroa, o governo acabou recorrendo a uma fração da sociedade
que não fazia parte dos Estados privilegiados, o Terceiro Estado: o próprio centro das
ideias democráticas e liberais. Este grupo, no entanto, revelou-se como um aliado
demasiadamente exigente: já que outrora fora cerceado, agora possuía o suficiente
poder para despojar o regime, deslegitimando o clero e destronando o rei,
estabelecendo, assim, uma nova ordem:
13
Ibidem. As reformas a que o historiador se refere estão sintetizadas na possibilidade de minoração do
poder da sociedade de corte em prol das necessidades econômicas representadas pelo ideário liberal da
burguesia em ascensão. Estas medidas, notadamente tomadas já no final do governo de Luís XVI,
surgiram, entretanto, tardiamente, no momento em que a França já se apresentava em ebulição
revolucionária.
14
Idem, p.74.
15
DOSSE, François; DELACROIX, Christian; GARCIA, Patrick. Correntes históricas na França:
séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
16
RANKE, Leopold von. Op. Cit., p.74.
107
Localizamos, portanto, a percepção antitética do autor frente o movimento
revolucionário: mais do que percebê-lo como um mero opositor ante estas
manifestações, Leopold von Ranke pode ser lido como um dos intelectuais que buscou
afastar as atividades revolucionárias do interior dos Estados Germânicos buscando
compreender a sua possível legitimidade interna enquanto movimento social.
Afirmaria, acerca disto, que
17
Idem, p.75. Neste sentido, podemos perceber, também, a interpretação da própria prática
historiográfica proposta pelo autor, ou seja, nesta análise do processo revolucionário francês Ranke tenta
aplicar sua teoria de afastamento das fontes buscando, assim, analisar os acontecimentos em suas
totalidades mesmo.
18
Para uma leitura acerca das possibilidades de relacionamento da política com a análise musical,
notadamente a operística, conferir Apêndice B.
19
Principalmente através de seu tio Adolf Wagner e de seu padrasto, Ludwig Geyer, conforme atesta o
compositor em sua autobiografia. WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven
(Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição
108
compositor presenciou um evento que modificaria as possibilidades sociais da
Confederação Germânica – nova forma administrativa dos Estados germânicos
dissolvidos em 1806 e ratificada em 1815 durante o Congresso de Viena: as
Revoluções de 1830. Este ciclo revolucionário, iniciado em julho de 1830 em Paris,
levou inquietação a todo o restante da Europa20. Nas regiões que formariam a
Alemanha, que acumulavam uma gama imensa de crises sociais, políticas e
econômicas; revoltosos tentaram derrubar o modelo monárquico da Confederação
Germânica para a aceleração da economia identificada na Segunda Revolução
Industrial, sem sucesso, no entanto. Este acontecimento transformou profundamente a
percepção de vida do jovem compositor e sua influência seria totalmente notada em
pouco tempo: em apenas 18 anos Richard Wagner ficaria disposto ao serviço
revolucionário.
Após as revoluções de 1830 e como consequência destas, em 1834, 18 Estados
da Confederação Germânica unificaram sua alfândega, seus padrões de medidas e suas
moedas, através da União do Uso Geral da Alemanha 21, buscando um maior
crescimento econômico que atendesse às camadas populares que proporcionaram as
revoltas. Com isto, a Prússia, líder do grupo, procurou evitar possíveis manifestações
futuras. A Áustria, segunda maior potência da Confederação, no entanto, não fez parte
desta União. A ausência deste Estado, uma das potências, em tal União Aduaneira
ocorreu devido ao distanciamento político que esta mantinha com a Prússia, além de
sua ossificação econômica. Tal ausência austríaca em conjunto com o acentuado
crescimento econômico e industrial da Prússia determinaria, em curto prazo, a
hegemonia desta última, levando tal Estado a ser o mais forte dentre os confederados –
aquele que realizaria futuramente a unificação a partir do poder central e não das
manifestações populares, como outrora pareceu que ocorreria 22.
109
As revoltas de 1830, porém, acabaram levantando novamente uma
reivindicação popular anterior: as questões democráticas. Estas questões, presentes
desde a década de 1810 de forma intensa, atingiram seu ápice em 1848, momento no
qual grande parte da sociedade não está mais disposta a conviver com o
tradicionalismo político que dominava a região. Logo, iniciando na França, assim
como outrora em 1830, a revolução se instauraria e rapidamente se espalharia pela
continente europeu. Inicialmente triunfante em Viena e Berlim, as duas cidades mais
importantes da Confederação, essa Primavera dos Povos23, instaurou-se em toda a
Confederação Germânica com um nítido caráter nacionalista e unificador, agrupando
as mais variadas camadas sociais.
Inicialmente os revoltosos conseguiram instaurar governos reformistas e
realizar eleições para aquilo que seria uma Assembleia Nacional. Esta Assembleia se
reuniu em 18 de maio de 1848 em Frankfurt am Main no interior da Igreja de São
Paulo e elaborou uma constituição democrática visando afastar a monarquia presente.
Conforme atesta o historiador Konrad Bund:
Richard Wagner e o início de seu nacionalismo musical. Rio de Janeiro: Multifoco, 2012.
23
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789 - 1848. 24ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2009. Para uma das mais profundas análises acerca deste período revolucionário, ver: RAPPORT, Mike.
1848: year of revolution. New York: Basic Books, 2008.
24
Notemos aqui a necessidade de divisão do conceito de burguesia. A burguesia rica que o autor
identifica aqui é a parte proprietária de indústrias e do grande capital para investimento
25
BUND, Konrad. Op. Cit., p.54.
110
extremamente ativa principalmente na confecção de bombas e vigia de inimigos. Após
um tempo, acabou por militar ao lado do revolucionário anarquista russo Mikhail
Bakunin como atesta em sua autobiografia:
26
WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Op. Cit.
27
Die Revolution. Ver: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Die Revolution. In: Richard Wagner:
Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos de
Richard Wagner]. Para a nossa tradução, conferir Anexo D.
28
O compositor escreveu outro texto de interesse revolucionário para este mesmo periódico: O Homem
e a Sociedade Estabelecida [Der Mensch und die bestehende Gesellschaft]. Para a nossa tradução deste
outro texto, ver: RICON, Leandro Couto Carreira. O homem e a sociedade estabelecida. Revista
Brasileira de História e Ciências Sociais. V.3, N.5, Julho de 2011.
29
August Röckel, que também era compositor e regente, permaneceu preso até 1862. Durante este
período manteve correspondência com Richard Wagner na qual demonstram suas interpretações
políticas, sociais, econômicas e, principalmente, artísticas. Cf.: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben).
Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004
111
Imagem 4: Publicação nos jornais de Dresden
sobre as atividades revolucionárias de Richard Wagner. 30
30
Texto publicado no Dresden Anzeiger de 19 de Maio de 1849. No cartaz lê-se: “Procurado. Mestre-de-
Capela Richard Wagner daqui é convocado por sua participação essencial nesta cidade no movimento
insurgente. Dresden, 16 de Maio de 1849. Delegacia de polícia da cidade. Oppell. Wagner tem entre 37 e
38 anos de idade, estatura mediana, cabelos castanhos e usa óculos” [Tradução nossa]. Uma outra
publicação de mesmo teor também aparece nas fontes acerca do compositor. Nesta, podemos ler:
“Wagner tem entre 37 e 38 anos; de estatura mediana, tem cabelos e sobrancelhas castalhos, fronte
ampla; olhos cinza-azulados, nariz e boca bem proporcionados; queixo redondo, usa óculos. Sinais
particulares: rapidez de movimentos e de fala. Vestimenta: sobretudo de pele de gamo verde-escuro,
calças negras, colete de veludo, lenço de seda, chapéu de feltro comum e botas.” Cf. HAREWOOD
(Ed). Kobbé: o livro completo da ópera. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997, p.148.
31
Der Ring des Nibelungen
32
A tetralogia O Anel do Nibelungo, é composta pelas seguintes óperas (em ordem de enredo): (1) Das
Rheingold – O Ouro do Reno; (2) Die Walküre – As Valquírias; (3) Siegfried; e (4) Götterdämmerung –
O Crepúsculo dos Deuses.
112
Tanto na história da recepção bem como na história da interpretação de Richard
Wagner, percebe-se que existe uma tradição anticapitalista33. Essa tradição é
certamente baseada em leituras das obras wagnerianas, especialmente a Tetralogia do
Anel. Neste sentido, é possível investigar em que medida e de que forma as atitudes
revolucionárias e anticapitalistas podem estar presentes neste conjunto operístico.
Assim, podemos notar a vinculação das problematizações expressas tanto no texto A
Revolução, escrito durante as revoltas em Dresden, quanto nesta sequência operística
definida na mesma conjuntura. O ideal humanista de liberdade individual e, mais
especificamente, a liberdade de escolha é de importância central tanto no texto quanto
na ópera. Assim, um confronto temático entre ambos é claramente possível. Logo,
segue-se um trecho de comparação realizável entre ambos:
(1) Que seja a própria vontade o senhor dos homens, seu próprio
desejo sua única lei, sua força seu todo poder, porque a única
santidade é a liberdade do homem e nada é maior que ele34
(2) Wotan35:
Apenas um poderia fazer o que eu não posso: um herói em cujo
auxílio eu nunca me tivesse encaminhado. Um estranho ao deus,
isento de seu favor, desconhecido, não designado, senhor das
próprias necessidades, com suas próprias defesas realizaria o ato que
sou fadado a temer, o qual jamais sugerir-lhe-ia o meu conselho,
ainda que tal seja a única coisa que minha vontade quer.36
33
Podemos citar: SHAW, Bernard. The perfect wagnerite: a commentary on the nibelung’s ring.
Fairfield: Stworldlibrary, 2004. HERZ, Joachim. Und Figaro Lasst sich Scheiden: Oper als Idee und
Interpretation. Munchen: Piper, 1985. HEINRICH, Rudolf. In verständlichen Bildern’ In: Das
Rheingold libretto, Leipzig, 1973. CARNEGY, Patrick. Wagner and the art of the theatre. New
Haven: Yale University Press, 2006. Recomendamos também as leituras de Patrice Chéreau e Richard
Peduzzi para as encenações das óperas produzidas em Bayreuth no ano de 1976.
34
Trecho de A Revolução, de Richard Wagner, para nossa tradução completa, cf. Anexo D.
35
Conhecido mais comumente pelo nome de Odin, é o Chefe dos Deuses Aesir, governante das terras de
Asgard, e que, nas óperas de Richard Wagner, simboliza a sede de riqueza e poder, responsáveis pelas
mazelas do mundo.
36
Trecho da Tetralogia do Anel. Cf.: DURÃES, Lúcia Schiffer. Richard Wagner: O Anel do
Nibelungo. Brasília : MusiMed, 2008, s/p.
113
schopenhauerianas, também seria responsável por seu afastamento do filósofo alemão.
Podemos comparar, também, as sentenças anteriores com a conversa entre as 3 Ninfas
do Reno37 do Prólogo de Crepúsculo dos Deuses, última obra da Tetralogia:
Da mesma forma que Siegfried pode ser visto como um ser humano livre, que
age em nome da Revolução personalizada, Brünnhilde pode ser vista como a
personificação da própria Revolução. É de grande importância, também, que
Brünnhilde seja a filha de Wotan, o deus do poder e da guerra, e de Erda, deusa da
terra e da sabedoria. As qualidades combinadas de ambos podem ser facilmente
identificadas com a Revolução, como idealizada por Richard Wagner e seus
contemporâneos. Pode não ser possível confirmar que isso é o que o compositor
desejara ilustrar, mas comparando-se mais um trecho de Die Revolution com um
37
Ninfas do Reno ou Nornas eram deusas nórdicas que tinham a função de controlar a sorte, o azar e a
providência. São três as ninfas utilizadas na ópera: Woglinde, Wellgunde (que são jovens e
irresponsáveis) e Flosshilde (que é mais velha, responsável e calma que as outras duas).
38
DURÃES, Lúcia Schiffer. Op. Cit.
39
Durante o romantismo germânico, a figura do movimento revolucionário foi amplamente humanizado
e percebido como um conceito movente próprio, configurando um espírito de tempo progressivo que
abarcava a população europeia. Cf.: SALIBA, Elias Thomé. As utopias românticas. São Paulo: Estação
Liberdade, 2003.
40
Trecho de Die Revolution. Cf. Anexo D.
114
trecho da Cena 4 do Ato 2 da ópera As Valquírias, segunda integrante do ciclo da
Tetralogia do Anel, no qual Brünnhilde procura Siegfried para anunciar que ele irá
morrer, percebe-se o seguinte:
(2) Siegmund:
“Quem é você, diga, que tão bela e austera me surges?
[...]
É nobre, e sagrada, eu contemplo a filha de Wotan.
[...]
Tão jovem e bela tu me pareces, mas quão fria e dura te percebe o
meu coração!”42
41
A Revolução, de Richard Wagner, cf. Anexo D
42
DURÃES, Lúcia Schiffer. Op. Cit.
115
Imagem 5: Brunhild de Gaston Bussière, de 189743
43
Imagem retirada de http://www.artnet.com/artists/gaston-bussi%c3%a8re/past-auction-results Acesso
em 15 de julho de 2016.
44
DURÃES, Lúcia Schiffer. Op. Cit.
116
Brünnhilde:
Adeus, luminoso mundo de Valhala. Reduza-se a pó teu soberbo
castelo! Adeus, refulgente e esplendor dos deuses. Finda-te feliz,
estirpe imortal! Rompei, ó Nornas, o cordão rúnico! Crepúsculo dos
deuses, ergue-te sombrio! Noite do aniquilamento, adentra com tua
névoa! Sobre mim agora reluz a estrela de Siegfried. Ele é
eternamente meu, meu sempre, herança e posse, um só e todos: amor
luminoso, morte sorridente!
Siegfried:
Rindo despertas para mim bem amada: Brünnhilde vive, Brünnhilde
ri! Salve o dia que nos ilumina! Salve o Sol que brilha para nós!
Salve a luz, que afasta a noite! Salve o mundo, onde vive
Brünnhilde! Ela despertou, ela vive, ela ri à minha frente. Fulgarante
brilha para mim a estrela de Brünnhilde! Ela é eternamente minha,
minha para sempre, herança e posse, uma só e todas: amor luminoso,
morte sorridente!45
Wotan:
A beatífica sala do fausto, com portas e portais a guardar-me: honra
do homem e poder eterno erguem-se à infinita glória!
(...)
É concluído o eterno trabalho: no cume da montanha, o castelo dos
deuses, mostra-se, esplêndida, a fulgurante construção! Como a vi
em sonho, como a minha vontade a ideou, forte e bela, ergue-se ante
a visão, o mais augusto, o mais magnífico edifício!
(...)
lá construíram-me o castelo, por meio de um tratado, eu aplaquei, sua
estirpe arrogante (...)47
45
Idem.
46
Das Rheingold
47
DURÃES, Lúcia Schiffer. Op. Cit.
48
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1971.
117
Desta forma, estas movimentações revolucionárias e reacionárias se iniciaram com
“uma revolta pequeno-burguesa contra o classicismo da nobreza, contra as normas e os
padrões, contra a forma aristocrática e contra um conteúdo que excluía todas as
soluções ‘comuns’”49 – esta fala de Fischer se aplica ao romantismo, mas,
notadamente, também se aplica ao historicismo 50.
Neste sentido, as revoltas são uma das possíveis chaves interpretativas para a
compreensão do próprio significado das manifestações intelectuais. No mais, deve-se
levar em conta que a própria interpretação do que é a revolta para o período deve ser
ampliada. No contexto, as revoltas não se estabelecem especificamente como
movimentos sociais de combate, fundamentando-se, também, como atitudes
plenamente filosóficas.
Leopold von Ranke e Richard Wagner, cada um a seu modo, certamente leram
as revoluções de seu tempo. O primeiro manifestou sua interpretação política do
fenômeno através de sua obra historiográfica; o segundo, através de seus artigos
políticos e, indiretamente, através de suas obras operísticas. Ranke, apoiando e apoiado
pelo Estado prussiano, do qual era funcionário, atacou o liberalismo revolucionário
enquanto que Wagner, como compositor independente, firmemente defendeu as
apostas liberais. No final das contas, ambos, de formas diferenciadas, buscavam o
estabelecimento de um Estado alemão nacionalmente unido, o que devolveria a seu
território o protagonismo político buscado por séculos e metaforizado em suas
interpretações.
Ao passo que o historiador prussiano nitidamente temeu os processos
revolucionários por acreditar que estes seriam responsáveis por relativizar o
protagonismo político de determinados Estados, preferindo a tendência, herdada do
período do despotismo esclarecido, de fazer reformas limitadas visando a prevenção
contra as grandes revoltas sociais e encaminhando a modernização sem maiores riscos
revolucionários, desta forma sustentando a estrutura monárquica, justificando no
passado as permanências feudais ainda persistentes em seu tempo presente51; Richard
49
Idem.
50
GUINSBURG, Jacob. Romantismo, historicismo e história. In: ______. (org). O romantismo. São
Paulo : Editora Perspectiva, 1978, 13-21.
51
IGGERS, George. New Directions in European Historiography. London: Methuen, 1988. O
historiador prussiano afirmaria, sobre as revoluções de 1830 que “naquele momento eu adotei uma
atitude que não foi nem revolucionário nem reacionária. Procurei um caminho próprio entre estas
posições em minhas argumentações públicas e privadas. A tarefa estava além do meu poder.” Cf.:
RANKE, Leopold. Sämtliche Werke, vol. 53-54: Zur eigenen Lebensgeschichte, p.50
118
Wagner não apenas apoiou as movimentações revolucionárias como se apresentou de
forma ativa no interior dos grupos revoltosos. Mais do que isso, o operista conduziu
durante toda a sua vida intelectualmente ativa, as análises revolucionárias, tanto em
textos de teor político, quanto através de metáforas artístico-musicais.
Não apenas as movimentações revolucionárias se apresentaram na obra destes
dois intelectuais. A própria legitimidade dos regimes monárquicos germânicos também
se apresentou indiretamente, portanto, como ponto central em suas obras. Este
fenômeno se apresenta como lógico a partir do momento em que as revoluções se
formaram a partir da crítica e da crise das coroas reinantes. Cada um também
problematizou as monarquias e seus atores de forma plural: Ranke em seus textos
históricos e Wagner em seus artigos e óperas que, como um todo, demonstram estas
possibilidades de governo.
52
PERROT, Michelle (org). Op. Cit.
119
personagens transitam entre as personagens históricas e mitológicas e as apropriações
ressignificadas feitas pelas narrativas dos autores. Entretanto, estes indivíduos,
enquanto atores, sempre possuem um heroísmo político fortemente marcado. Logo, se
mostram como figuras humanas que representam determinados modelos a serem
seguidos ou rechaçados. Neste sentido,
Nota-se, assim, que os personagens do século XIX são heróicos por excelência.
Esta eleição de heróis de um passado real ou fictício é experimentada na Alemanha
bem como no restante da Europa como uma das possibilidades de vinculação
nacionalistas – como é o caso da Joana D’Arc de Jules Michelet 54.
Na mesma medida, percebe-se que no continente europeu do século XIX, o
encantamento das ideias iluministas no ordenado e lógico progresso do futuro vai
sendo substituído gradual e lentamente pelo resgate de um passado feito possivelmente
pela classe média que se adensava. Sobre este processo, o sociólogo alemão Norbert
Elias, em sua obra acerca da germanidade, afirmaria:
53
FEIJÓ, Martin Cezar. O que é herói. São Paulo: Brasiliense, 1995
54
MICHELET, Jules. Joana D’Arc. São Paulo: Editora Imaginário; Editora Polis, 1995. O autor, se
preocupou com o personagem heróico e com a noção de povo de forma complementar. Uma vez que, tal
qual os Estados Germânicos, a França também se localiza neste momento de discussões nacionalistas
durante o século XIX. Ver: ______. O povo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
55
ELIAS, Norbert. Os alemães: a luta pelo poder e a evolução do hábitus nos séculos XIX e XX. Rio
de Janeiro: Jorge Zahar, 1997, p.129.
120
nações, em vias de formação, necessitavam aportar suas projeções de autonomia em
uma tradição de representações de si mesmas. Destarte, ocorreu uma leitura utópica do
passado, e de seus personagens, como sendo o local no qual se encontrariam as puras
raízes nacionais necessárias ao público. Assim sendo, restou aos intelectuais conciliar
o gosto histórico do público burguês em ascensão com as possibilidades da realidade
histórica e dos textos míticos.
Notamos, assim, a importância da construção do herói nacional nas mais
variadas formas interpretativas. Neste tom, o herói, notadamente em Leopold von
Ranke e Richard Wagner, pode ser localizado em um monarca, aristocrata ou burguês
específico ou, até mesmo, no povo, possibilidade que se ampliava em um ambiente de
tão profundas críticas e crises políticas 56. Este personagem heróico se faz presente na
música do romantismo – não apenas nas óperas de Wagner, como também em toda
gama de formas musicais dos mais variados compositores –, nos textos históricos de
Ranke, Jules Michelet e Thomas Carlyle e, principalmente, na política, na qual os
indivíduos, por uma notável necessidade social, se apresentavam como líderes
heróicos, como é o caso de Otto von Bismarck, Guilherme I, Luís II e Napoleão
Bonaparte, apenas para citar alguns personagens tidos como vultos de heroísmo no
próprio século XIX.
Entretanto, não apenas os personagens individuais eram tratados de forma
heróica. As instituições muitas vezes também se apresentavam desta forma. Mais do
que isso, o que as instituições representavam eram centrais. Neste sentido, uma das
instituições centrais nesta discussão era a Igreja. Todavia, não eram as igrejas enquanto
espaços institucionais que eram debatidas, mas sim a crença cristã. Desta forma, a
crença em uma razão mística se vinculava diretamente aos requisitos mínimos de
legitimidade política.
O historiador Leopold von Ranke e o compositor Richard Wagner pensaram
sobre estes heróis, construindo-os; na mesma lógica, escreveram sobre a religiosidade
cristã germânica, interpretando-a e resgatando-a de uma criação mítica medieval. Esse
par indissociável, heroicidade-religiosidade, em suas obras, apresenta-se nos mais
variados níveis. Assim, identificamos em ambos a presença de uma unidade religiosa e
heróica que diretamente se vincula à lógica política e intelectual da Germânia do
56
Contudo, este povo deve ser concebido como uma massa conduzida por uma elite. Como é evidente
em A história dos papas de Ranke e na ópera Rienzi de Wagner.
121
século XIX. Neste sentido, é possível pensarmos a produção destes indivíduos como
pares de complementação analítica.
Ranke escreveu uma sequência de biografias ao longo de seus anos em
atividade. Cada uma, certamente, passível de ser analisada. Entretanto, o texto
biográfico que dedicou à Henrique IV da França (1553 – 1610) se apresenta não
apenas como ponto central para nossa possibilidade analítica, bem como uma das
curtas biografias políticas mais celebradas do historiador prussiano.
O Henrique IV construído por Leopold von Ranke se apresenta como um rei
que deveria ser utilizado como modelo em sua época. Algo como um tipo de rei
esperado por uma população fragilizada: disposto e capaz de negociar com a política
continental, combater as ameaças de possíveis invasores, unificar seus súditos. Em
suma, tomar decisões em prol do crescimento da França como potência europeia frente
à Inglaterra, Espanha e Holanda – reinos que ameaçavam o Estado e a unidade
francesa entre o final do século XVI e início do XVII.
Ranke, entretanto, possui uma narrativa acerca do rei focada em aspectos
religiosos ao compararmos sua história com relatos biográficos. Neste sentido, o ponto
mais perceptível encontra-se na origem religiosa do monarca: a formação huguenote.
Após a morte de seu pai, Antônio, Duque de Vendôme, em 1562, Henrique
permaneceu presente ao lado de sua mãe, Joana III de Navarra, como uma das figuras
representativas de unidade dos protestantes huguenotes. Ocupou esta posição enquanto
pode até que, por necessidade política de autopreservação da legitimidade, absteve-se
do encorajamento huguenote57. Acerca do par catolicismo-protestantismo de Henrique
IV, o historiador afirmaria que:
57
RANKE, Leopold von. Heinrichs IV 1594-1610. In: ______. Völker und Staaten in der neueren
Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945, p.410
58
Ibidem.
122
administração institucional da França. Após renunciar sua origem huguenote e
declarar-se abertamente católico, conseguiu um clima favorável para o entendimento
entre a nobreza e o clero, acabando por ser aceito como governante de um Estado que,
apesar de ser declaradamente católico, possuía uma forte presença protestante, o que
dividia a sociedade francesa. Neste tom, o Henrique IV de Ranke é um conciliador: sua
renúncia huguenote se estabeleceu, desta forma, no preciso momento de divergências
políticas. Assim, o rei conseguiu subordinar a população protestante por sua origem
huguenote e a católica, por sua conversão e apoio clerical.
Ranke, construindo seu herói-monarca, em um período de intensa
movimentação revolucionária e intelectual contra e a favor da monarquia, 1852,
preocupou-se em descrever o caráter e o potencial guerreiro de Henrique IV, o qual é
constantemente reverenciado por sua astúcia e perspicácia em combate 59. Segundo o
autor, o ‘Bom Rei Henrique’ nasceu apto para o combate, como um enviado dos céus,
e se preparou como um guerreiro. Daí seu sucesso em todos seus intentos. Entretanto,
outra faceta do rei pode ser esmiuçada neste viés: a de um soberano que, mesmo bem
sucedido na guerra, não a admira:
Entretanto, assim que a luta findava, desejava nada mais saber sobre
o conflito. Quando, após a batalha de Ivry, lhe trouxeram uma espada
banhada em sangue e rachada de tantos golpes com o inimigo,
desviou dela seu olhar num claro movimento de desdém por atos que
lhe impunham a profissão e a necessidade política.60
123
Apesar de sua concentração de poder, manteve uma forma de governar que
agradara tanto a plebe quanto aos nobres. Sabia mantê-los adequadamente por perto,
sendo admirado por ambos, habilidade essa que é referendada, também, na obra
rankeana. O historiador afirmaria que “Henrique sabia impor-se com toda a majestade,
a ponto de fazer os mais poderosos tremerem, mas na mesma hora era capaz de
colocar-se em pé de igualdade com os súditos mais simples”61. A habilidade política,
entretanto, não estava apenas diretamente ligada ao trato com seus súditos, o rei por
vezes demonstrou sabedoria para manter coeso o conselho de delegados e
representantes que o ajudava a governar, levando consigo até mesmo antigos desafetos
da Liga Católica, como Villerroy, secretário de Estado, que outrora fora seu inimigo no
campo de batalha:
61
Idem, p.411
62
Idem, p.410
124
que, ainda durante seu período de reinado, produziram telas
riquíssimas e belíssimas.63
63
Idem, p.412
64
Vale lembrar que, durante este período, o autor dedicava poucas laudas a cada personagem analisado,
criando um texto muito mais informativo do que de densidade analítica..
125
intuições e deu corpo a suas convicções religiosas. Uma Companhia
que não levou à prática seu plano de cruzada, mas que empreendeu
as missões mais fecundas e, acima de tudo, uma Companhia que
buscou a cura das almas, mais do que suspeitaria que,
simultaneamente, obedecia a vez religiosa e militar.65
Alexandre Farnesio, o Papa Paulo III, é outro dos personagens tratados por
Ranke em seus textos – em par direto com Ignácio de Loyola. Este personagem,
contemporâneo de Ignácio de Loyola e responsável pela autorização da Companhia de
Jesus enquanto ordem católica combativa da contrarreforma, é apresentado com
características também heróicas: a coragem de enfrentar o Império que se desvinculava
cultural e religiosamente da Santa Sé. Entretanto, nesta personagem, o autor demonstra
certa passividade humana. Neste sentido, o Papa é demonstrado como um indivíduo
que tentou adaptar-se às dinâmicas sociais e políticas, enfrentando-as apenas de forma
indireta – através da própria Companhia de Jesus, por exemplo. O autor afirmaria
acerca de Paulo III:
65
RANKE, Leopold von. Die römischen Päpste. In:______. Völker und Staaten in der neueren
Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945, p.125.
66
Idem, p.137-138.
126
Imagem 6: Ignácio de Loyola, de Alonso Sanchez Coello (sem data oficial)
e Papa Paulo III, de Ticciano (1542)67
67
Imagens ilustrativas utilizadas na primeira edição da obra História dos papas, de 1834. Na época da
publicação, as imagens não eram impressas coloridas.
68
As Fadas
69
A Proibição de Amar
70
Die Feen, por exemplo, apenas foi executada na íntegra no ano de 1888, ou seja, cinco anos após a
morte do próprio compositor, sendo, ainda hoje, rara de ser executada.
127
novelista, dramaturgo e influente político britânico 71. Esta obra contava a história de
Cola de Rienzi, tribuno e notário papal que derrotou a classe nobiliárquica ampliando
os direitos políticos da população terminando, contudo, traído por esta mesma
população e pela Igreja que auxiliaram o tribuno contra a aristocracia anteriormente.
Partindo desta leitura, o autor começou a elaborar a obra colocando, nesta, sua
crença de que iria atingir o sucesso que já buscava há algum tempo por toda a Europa,
principalmente na própria Germânia e na França 72. Influenciado pelas ideias da Jovem
Alemanha73 e buscando cruzar essa perspectiva com as possibilidades do texto de
Bulwer-Lytton, lançou-se ao esboço em prosa que ficaria pronto rapidamente em julho
de 1837. Feito este esboço em prosa começou, então, a parte mais complexa e
demorada – uma vez que Wagner cuidava de todas as partes da produção sozinho: a
elaboração do texto operístico. Este ficaria pronto em 6 de agosto de 1838.
Após a elaboração dos textos, e se dedicando aos estudos orquestrais, Wagner
iniciou a escrita da ópera. A escrita orquestral ocorreu entre 7 de agosto de 1838 e 19
de novembro de 1840 – posteriormente o compositor faria variadas revisões das quais
as que mais se destacam são as que ocorreram entre 1843 e 1844 e a revisão de 1847.
Esta última, no geral, transformar-se-ia na versão executada contemporaneamente.
Com a ópera pronta, Wagner tentou a sua exibição em Paris sem, contudo,
obter sucesso. Mesmo sem este sucesso alcançado naquele que era considerado o
principal palco da Europa, e o com o público mais refinado, o compositor de Leipzig
continuava certo de que Rienzi era a obra que o traria fama e através da qual
conseguiria demonstrar seus ideais para uma cultura-nacional germânica. Wagner
71
O romance que Wagner se utilizou para escrever seu libretto foi publicado pela primeira vez com o
título Rienzi, the last of the tribunes (Rienzi, o último dos tribunos) e, a partir da segunda edição, com o
título de Rienzi, the last of the roman tribunes (Rienzi, o último dos tribunos romanos).
72
A Germânia significava o sucesso nacional enquanto a França era a demonstração de um sucesso
mundial já que os palcos franceses eram considerados, no momento, os principais salões artísticos
conhecidos, rivalizando, operísticamente, de forma direta com os palcos italianos, dominados pela ópera
de Giuseppe Verdi.
73
No alemão, junge Deutschland. Foi um movimento literário existente entre, aproximadamente, as
décadas de 30 e 50 do século XIX, integrado por personalidades como o escritor, crítico e diretor de
teatros alemão Heinrich Laube (1806 – 1884) e os irmãos Heine, Ferdinand (1798 – 1872) e Heinrich
(1797 – 1856), amigos do composito. Esse nome o coloca em paralelo com movimentos de outros países
europeus como é o caso da “Jovem Italia”. No entanto, apesar de ter uma forte vocação de compromisso
político exerceu uma influência muito menor sobre a vida pública na Alemanha. Sua aparência lembrava
o movimento Sturm und Drang [Tempestade e Ímpeto] do século anterior, já que expressavam antipatias
comuns no plano social. Além do mais, os dois se manifestavam conscientemente como geração
mantendo um valor intrínseco do conceito “juventude”. Os homens da "Jovem Alemanha" eram como
cosmopolitas e abjuraram o nacionalismo doentio que demonstraram seus precursores. Isto é, talvez, o
que feria Wagner levando-o a se afastar, uma vez que estava cada vez mais inserido no mundo do
alegado “espírito alemão”.
128
afirmou em sua autobiografia: “Rienzi [grifo nosso], cuja composição eu havia
concluído pouco tempo antes de chegar em Riga, deveria me conduzir a um mundo
grandioso com o qual, há tempos, eu sonhava” 74.
A primeira exibição da ópera, em 20 de outubro de 1842, teve, contudo, um
imprevisto não pensado nem percebido nos ensaios que, no geral, não eram realizados
na íntegra: a duração. A ópera encenada levou mais de seis horas para ser concluída e,
apesar de o público não ter feito qualquer tipo de manifestação contrária, o fato da
peça ter começado em um dia e terminado em outro desagradou ao compositor. Após
isto, Wagner cogitou dividir a ópera em duas partes para serem executadas em dias
seguidos, uma primeira chamada A grandeza de Rienzi e a segunda chamada de A
queda de Rienzi. Acabou, porém, contentando-se com alguns cortes que facilitaram as
próximas apresentações da peça, reduzindo sua duração.
Mesmo com todas as dificuldades encontradas em Paris para a elaboração, e
com todos os imprevistos da execução da obra culminando com a duração extremada,
Rienzi conseguiu levar Wagner àquilo que ele tanto ansiava e que as duas obras
anteriores não tinham conseguido: o sucesso. Todavia, este sucesso não foi imediato.
Foi sendo construindo durante toda a década de 1840 quando, cada vez mais, passou a
ser perceptível as características nacionalistas da obra, o que atendia plenamente as
demandas políticas deste contexto.
Ambientada na Roma do século XIV durante a transferência do papado desta
cidade para Avignon na França, a obra trata da vida do tribuno e notário papal Cola de
Rienzi, personagem que lutara pela ampliação dos direitos populares e contra as
imposições da classe nobiliárquica da região no momento de ausência de poderes mais
centralizadores.
O primeiro ato da ópera se inicia com a aparição de uma rua de Roma pela
noite, na presença dos Orsini, família aristocrática, na frente da casa de Rienzi. Paolo
Orsini, junto com seus seguidores tentam invadir os aposentos de Irene, irmã de
Rienzi, pela janela, no intento de sequestrá-la. A jovem grita por socorro até o
momento em que surgem os Colonna, outra família aristocrática. As casas
nobiliárquicas Orsini e Colonna estão em conflito aberto, principalmente, após a saída
do papado que era a forma de centralização política possível à época. As famílias
74
WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner:
Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos de
Richard Wagner].
129
iniciam-se na contenda e o jovem Adriano Colonna defende Irene. A partir disto, a
disputa vai ganhando cada vez mais volume e a própria população já participa
ativamente. Surge, então, o cardeal Raimondo, legado papal, que tenta parar o conflito
utilizando seu poder eclesiástico. Sem sucesso, no entanto. Apenas após a chegada de
Rienzi e seus dois companheiros, Baroncelli e Cecco Del Vecchio, a ordem é
reestabelecida – para isto, basta a presença de Rienzi. Este repreende os nobres e seus
seguidores declarando, por fim, sua intenção de conduzir Roma à glória através de sua
unificação política-social. Neste momento, as famílias nobres deixam a parte urbana da
cidade para continuarem o conflito e Rienzi proíbe o retorno destes, ordenando o
fechamento dos portões da cidade. Adriano Colonna, no entanto, permanece. Após a
saída dos nobres, o núncio oferece o apoio eclesiástico a Rienzi na incitação que este
provoca na população na luta contra as famílias aristocráticas. Rienzi abraça a irmã e
pergunta o que lhe fizeram, ao que esta explica que tentaram raptá-la, mas que sua
honra foi preservada por Adriano. Rienzi manifesta, então, sua surpresa a Adriano pelo
fato de um membro da família Colonna ter protegido sua irmã. O jovem, no entanto,
não concorda em utilizar a força para deter os conflitos aristocráticos que tanto
prejudicaram a população, mudando de ideia apenas quando Rienzi o lembra que a
casa dos Colonna matou seu irmão deixando, de seu sangue, apenas Irene. Com a
notícia, Adriano pergunta o que pode fazer para compensar o crime, passando a seguir
Rienzi em seus intentos.
As hesitações deixam de existir a partir do momento em que o notário afirma
que, sob seu comando, os romanos poderão se tornar livres. Com a ajuda a Rienzi e a
redenção que Adriano proporcionou à própria casa, o tribuno confia sua irmã aos
cuidados deste jovem. Surge, nisto, a figura do amor redentor, tão comum nas obras
wagnerianas e no romantismo como um todo. Embora Adriano respeite Rienzi e confie
neste, adverte, temeroso, sobre as possibilidades do plano de combater o poder das
casas patrícias terminar em tragédia, trazendo desgraça à existência da própria Roma.
A sós, Adriano e Irene, reafirmam seu amor contra todos os infortúnios. O jovem,
mesmo fiel ao cunhado, prevê que suas ideias não resistirão e que o próprio povo que
parece tendencioso a seu lado o trairá, possibilitando que os nobres o punam. A
população vai ao encontro da movimentação e, após se ajoelhar diante da força do som
do órgão da Igreja, um coro entoa certo cântico sobre a necessidade de se defender a
cidade. Neste momento ressurge Rienzi com vestimentas apropriadas para o conflito.
130
Esta mesma população o saúda e com influência de Cecco, o reconhece como seu rei.
O tribuno, no entanto, não aceita tal título, pois ambiciona que o povo atinja plena
liberdade. Sugere, então, que o reconheçam como um tribuno, um representante do
povo, título com o qual é prontamente aclamado. É então afirmado que Roma será
renovada, passando a possuir liberdade e lei. Ao final deste primeiro ato toca-se o
trompete e, lembrando a tradição política romana, Rienzi e o cardeal Raimondo
convocam toda a população para o embate que se aproxima.
O segundo ato inicia-se no Capitólio, no qual Rienzi entra com toda a
cerimônia, seguido por Baroncelli e Cecco. Neste instante, os mensageiros trazem as
notícias de que toda a Roma está pacificada. Todos os aristocratas juram fidelidade ao
tribuno, falsamente, entretanto. Todavia Rienzi não demonstra preocupação com sua
glória, mas sim com a persistência da lei criada outrora por ele e por seus seguidores.
Esta legislação obrigaria todos os cidadãos a serem iguais, incluindo os pertencentes à
casa Orsini e Colonna. Indignados, Colonna e Orsini, sendo ouvidos pelos outros
nobres, conspiram contra Rienzi em quem identificam apenas demagogia discursiva. O
medo destes se localiza no fato do pleno apoio que Rienzi tem da massa agora armada.
Adriano entra e acaba escutando a conspiração em prol do assassinato do tribuno que
se forma no ambiente. Sem poder acreditar no que ouve, o jovem manifesta sua
indignação contra a possível traição e assassinato: é o momento de ruptura entre
Adriano e seu pai. O jovem, no entanto, entra em conflito consigo: teme a morte de
Rienzi, mas também teme a punição que seu pai poderá receber. Inicia-se a cerimônia
festiva e Rienzi saúda todos os seus convidados. Neste instante Adriano adverte o
tribuno acerca da conspiração tramada anteriormente pelas duas famílias mais
influentes. Começa a apresentação festiva, que na peça é representada com o balé
sobre o tema ‘O Sequestro de Lucrécia’.
Durante a apresentação, Orsini se aproxima de Rienzi e tenta matá-lo com uma
punhalada sem obter sucesso, já que o tribuno estava com uma densa cota de malha. O
povo, percebendo a artimanha, enfurece-se contra os traidores ao passo que Adriano
pede por clemência, uma vez que seu pai, Stefano, está entre os denunciados. O povo,
já tendo automaticamente condenado os traidores, é contido por Rienzi que explica a
importância do perdão – característica plenamente cristã dentro da interpretação
wagneriana –, libertando os conspiradores. Enquanto Irene e Adriano agradecem a
131
piedade, Baronceli e Cecco se colocam contra esta anistia. No mais, os traidores juram
novamente vingança ao tribuno.
O terceiro ato se inicia na frente do antigo Fórum, local no qual o povo e
Rienzi lançam-se às armas para combater os nobres que, anteriormente, já haviam sido
perdoados. Rienzi, então, faz um apelo patriótico e a população responde com um hino
guerreiro. Este é momento do clímax de indecisão de Adriano, no qual deve optar se
defenderá Rienzi, irmão de sua amada, ou os Colonna, a própria família. Após a
preparação para o conflito, a população, liderada pelo tribuno, marcha em direção à
guerra, deixando Adriano para trás, sozinho com Irene. Rapidamente Rienzi retorna e
anuncia a vitória do povo de Roma, trazendo o corpo de Orsini e Colonna para a cena.
Todavia, o lado da população também teve pesadas baixas e, mesmo vitoriosos,
Baroncelli percebe que este fato poderá gerar a queda do modelo político
implementado pelo tribuno. Ao perceber que seu pai está morto, Adriano amaldiçoa
Rienzi, jurando vingança. Este, por sua vez, sai da cena triunfante.
O quarto ato se passa diante da Basílica de São João de Latrão, onde ocorre um
encontro entre Baroncelli e outros cidadãos, no qual o antigo colega informa que
Rienzi conduziu tão mal Roma que o próprio Papa, bem como o Imperador,
colocaram-se contra o regime. Com a chegada de Cecco, o cenário da revolta contra
Rienzi fica definitivamente instalado. Baroncelli afirma que Rienzi fez um pacto com
os nobres e Adriano, o primeiro a se identificar na multidão, confirma este fato,
75
Ilustração da entrada de Rienzi da estreia de Paris, no Théâtre Lyrique, em 6 de Abril de 1869. A obra
foi encontrada nos arquivos de Augustin Vizentini (1810-1890) e a autoria da ilustração, como era
comum neste tipo de obra durante o século XIX, é desconhecida. Repare na multidão em cena:
característica temática e composicional da ópera wagneriana.
132
procurando vingar a morte de seu pai. Assim Rienzi, que buscou a melhoria política e
social para o povo, passa a ser identificado como traidor. Surge, então, o cardeal
Raimondo com seu séquito em direção à igreja. Logo após, Rienzi entra em cena com
sua irmã e, com o discurso preparado, começa a convencer a população de seus feitos
na administração e libertação de Roma. Neste momento, de dentro da igreja, começa a
música de caráter sinistro que assusta tanto Rienzi quanto todos da cena. O tribuno
intenta entrar na basílica porém é impedido por Raimondo que afirma que o notário
fora excomungado. Desta forma, com o afastamento da legitimação religiosa, tão
necessária no contexto, Rienzi perde os poucos seguidores que ainda possuía. Adriano
tenta convencer Irene a se afastar do irmão, sem sucesso. O jovem, então, percebe que
esta união entre os irmãos acabará com a vida de Irene, já que a população está
totalmente revoltada contra as perdas do conflito e, consequentemente, contra o
próprio notário.
O quinto e último ato ocorre no Capitolio Romano. Inicialmente a ação se
desenrola no interior do prédio, no qual Rienzi reza a Deus por proteção. Ao se
aproximar da irmã, Rienzi afirma que todos, exceto ela, abandonaram-no. Após isto, o
tribuno se retira para preparar suas armas. Adriano, entrando no ambiente sem ser
percebido, tenta convencer Irene a fugir com ele. Quando percebe que esta abordagem
não surte efeito, tenta levar a amada à força, o que também não funciona. A partir daí,
a ação se desenvolve por fora do Capitólio, onde a multidão, furiosa, espera para atear
fogo no prédio. Neste momento, Rienzi surge tentando apaziguar a população, sem
efeito contudo, já que Baroncelli a inflama cada vez mais, afirmando que Rienzi é um
traidor – a massa ficou cega. Começam, então, a atear fogo no prédio com Rienzi e sua
irmã dentro. Os irmãos permanecem abraçados esperando o fogo que os consumirá. É
o momento em que Adriano invade o prédio para salvar sua amada, sem resultado, já
que o prédio desmorona com os três em seu interior. A peça termina com o retorno dos
aristocratas que chegam a tempo de assistir a importante construção se despedaçando
em fogo76.
Durante a escrita de Rienzi, duas formas operísticas estavam em voga na
Europa: o modelo italiano, de Rossini, Donizetti, Bellini e Verdi; e o modelo francês,
de Berlioz, Gounod, Offenbach e Berlioz. Neste momento, interessa-nos o modelo
francês, a grand opéra.
76
Para nossa tradução do libreto completo desta peça, conferir Anexo F.
133
A grand opéra é um modelo operístico comum na França do século XIX
principalmente entre os anos de 1835 e 1860, geralmente estruturada em quatro atos e
com a presença de grande orquestra, elenco e coro. Giacomo Meyerbeer (1791-1864),
adversário musical de Wagner 77, foi um dos principais representantes deste modelo
que cruzou a Europa como sinônimo daquilo que era mais sofisticado neste terreno
artístico.
Conhecendo esta possibilidade, Richard Wagner inicia esta ópera buscando ser
aceito entre o público francês. A partir do momento em que os palcos franceses não
oferecem boa recepção ao compositor, este vai, frustrado, fechando-se cada vez mais
dentro da produção operística alemã e, consequentemente, reafirmando seu
nacionalismo musical latente. Rienzi, a grand opéra de Wagner se insere na tradição
de óperas heróicas, herdeiras do Der Freischütz de Christoph Willibald Gluck e surge
como a tentativa de um jovem compositor alcançar Meyerbeer e Fromental Halévy
(1799-1862). Contudo, mesmo utilizando este modelo de escrita nesta ópera, Wagner o
atacou em seu texto Oper und Drama [Ópera e Drama] 78. Algumas diferenças entre o
modelo proposto pelos franceses desta forma, como o próprio Meyerbeer e Hector
Berlioz, no entanto, já são diversos daqueles apresentados pelo compositor alemão.
Wagner, por exemplo, não alterna constantemente a métrica da obra, permanecendo,
significativa parte da música, no mesmo compasso.
Esta ópera, politicamente simpatizante com a classe média e contrária à
nobreza, é dividida em cinco atos: o primeiro e o quinto com quatro cenas cada um, o
segundo e o terceiro com três cenas cada e o quarto dividido em duas cenas O
compositor localizava vantagens nas óperas italianas, francesas e, mesmo sendo
musicalmente inconsistentes até então, nas óperas da Alemanha. Assim sendo, Rienzi
surge como uma ópera eclética cosmopolita, pretendendo fundir “o apelo sensual da
melodia belliniana com a vitalidade e a grandiosidadedos gêneros franceses e a
‘seriedade’ inata da tradição alemã” 79.
As cenas de multidão também marcam bem esta peça. As multidões presentes
no palco, além de marcarem o caráter nacionalista da peça, auxiliam na reafirmação da
77
WAGNER, Richard. Das Judenthum in der Musik. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard
Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos
de Richard Wagner]
78
Cf.: WAGNER, Richard. Oper und Drama. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard
Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos
de Richard Wagner].
79
GREY, Thomas. Op. Cit. p.79.
134
ópera enquanto grand opéra. Essas multidões em cena marcaram tão bem a obra que
acabariam se transformando, no século XX, em um dos fatores que levariam Adolf
Hitler a se identificar com a peça e dela possuir um autógrafo 80.
Após iniciar a escrita da obra, com o texto em prosa na metade de 1837,
Wagner parou em sua empresa em abril de 1839, com os dois primeiros atos
completos, apenas retornando em fevereiro de 1840 e, apesar desta pausa de meses ser
relativamente curta, o estilo foi significativamente modificado. Wagner conheceu
Meyerbeer em Paris neste intervalo e, enquanto os dois primeiros atos são uma mescla
de ópera italiana com modelo operístico francês, a partir do terceiro se delineia um
estilo pessoal nitidamente tendencioso ao modelo de Meyerbeer. Entretanto, apesar da
ópera seguir amplamente este modelo francês de composição tão famoso e executado,
a obra não conseguiu apoio para ser realizada na capital francesa 81.
Durante a abertura da peça, de caráter brilhante, aparecem cinco temas
musicais que serão reutilizados durante a peça com importâncias variadas. A primeira
destas aparições são três notas longas no trompete que serão transformadas em um
sinal para que a população se levante contra os nobres, lutando contra a opressão
proporcionada por estes. Aparece, também nesta abertura, aquilo que, no quinto ato,
será transformado na oração de Rienzi; o tema associado ao povo; o hino da guerra; e,
por último, aparece, exposto na abertura, a marcha do segundo ato – uma nítida
tentativa inicial de afirmação dos motivos condutores.
Um último ponto musical relevante para a análise de Rienzi é a música de balé
presente no segundo ato. Composta em Riga, é a única peça deste gênero além da
presente em Tannhäuser, criada pouco tempo depois. Na maioria das grand opéra o
balé funciona como uma distração ao público. Dessa forma, buscando ampliar as
possibilidades representativas, Wagner deu grande importância a esta composição. O
balé encenado conta a história de Tarquínio, rei de Roma, que tenta desonrar Lucrécia.
Assim, o trecho é nitidamente uma aproximação do início da ópera e o que acontece
com Irene na mão dos Orsini quando, também, da violação da aristocracia contra a
80
Hitler afirmaria, após assistir a execução de Rienzi logo no início do século XX, In jener Stunde
begann es (Naquele momento tudo começou). Cf.: MILLINGTON, Barry. Op. Cit. p.312.
81
É relevante marcarmos que após a negativa de apresentação nos palcos franceses a relação de Wagner
com a música de Meyerbeer se modificou profundamente e, após alguns anos, não encontrando motivo
na música especificamente, o compositor alemão começou a atacar a cultura judaica de Meyerbeer.
WAGNER, Richard. Das Judenthum in der Musik. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard
Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos
de Richard Wagner]
135
população que Rienzi defende 82. Estes temas políticos não se encerrariam, entretanto,
em Rienzi. Lohengrin, o Cavaleiro do Graal, também seria acionado pelo compositor
com densa significação política.
Lohengrin, por sua vez, foi idealizada por Richard Wagner quando teve acesso,
entre os anos de 1841 e 1842, a textos da Sociedade Germânica de Königsberg, uma
associação dedicada ao estudo e preservação da língua e da cultura alemã, nos quais
existiam o relato desta antiga lenda. Esses estudos, somados àqueles que Wagner
empreendeu por toda sua juventude marcam a relevância das duas principais temáticas
de escrita wagneriana: a Idade Média e a mitologia nórdica, conforme o próprio
compositor atestou em sua autobiografia:
82
Nas exibições contemporâneas este trecho sofre grandes cortes, já que na partitura original é uma das
cenas mais demoradas, influenciando de forma significativa na longa duração da peça.
83
WAGNER, Richard. Mein Leben. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner:
Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos de
Richard Wagner].
84
Vale lembrarmos que, nesta ópera, o compositor mudou sua forma de escrita, também, de outra
maneira: esta ópera foi rascunhada na íntegra e não em partes como era de costume até então.
136
participou do Levante de Maio em Dresden. Procurado, acabou tendo que sair da
Confederação Germânica, passando os próximos anos entre a França e a Suíça. Do
exílio, Wagner escreveu a Franz Liszt, em 21 de abril de 1850, pedindo que este o
ajudasse na execução da obra e, caso fosse possível, a regesse em Weimar, corte na
qual Liszt mantinha um importante cargo musical.
Extremamente influente no cenário artístico-musical europeu, Liszt mobilizou
suas forças e sua influência para a execução da obra do amigo, conseguindo que esta
tivesse sua primeira exibição, no Grossherzogliches Hoftheater de Weimar, em 28 de
agosto de 1850 sem, no entanto, contar com a presença do compositor, que apenas a
ouviria no dia 15 de maio de 1861, em Viena. A primeira apresentação não foi,
entretanto, como Wagner e Liszt esperaram, mesmo contando com a regência deste
último: de início, a música soou estranha ao público e, apesar de contar com bons
solistas85, Liszt não possuía os recursos que Wagner desejou quando escrevera a peça,
contando com cerca de 40 músicos e não com os mais de 80 pensados originalmente
pelo compositor.
A história se passa em uma planície próxima ao rio Escalda, na Antuérpia. O
primeiro ato se inicia com a chegada do rei Heinrich der Vogler [Henrique, o
passarinheiro] que veio a este território convocar os brabantinos a defenderem a
Germânia contra a possível e provável invasão dos húngaros. Um dos brabantinos, no
entanto, o conde Friedrich von Telramund, juntamente com sua esposa, Ortrud, acusa
Elsa pelo assassinato do próprio irmão, Gottfried, herdeiro legítimo do trono de
Brabante. Assim, Heinrich percebe a grande divisão política encontrada no território e
percebe a dificuldade de união deste povo: a população não se decide se Friedrich pode
ou não ser herdeiro do trono no lugar de Gottfried. Friedrich tenta, então, convencer o
rei que era o desejo do antigo nobre de Brabante, já falecido, de que ele, Friedrich,
assumisse o trono. O rei Heinrich, então, decide que a solução está em um combate
entre Friedrich e o cavaleiro que se apresentar para defender Elsa. Assim sendo, o
arauto convoca Elsa à presença do ilustre rei germânico. Após a aparição de Elsa, o
público perceberá que Ortrud possui os poderes mágicos das antigas religiões nórdicas
e que busca eliminar Elsa na tentativa de frear a expansão do cristianismo: daí o medo
de Elsa quando na presença de Ortrud. Elsa explica que o cavaleiro que irá defendê-la
85
A primeira exibição teve em cena o tenor Karl Beck como Lohengrin; Rosa von Milde-Agthe,
soprano, como Elsa; Josephine Fastlinger, mezzo, como Ortrud; Hans von Milde, barítono, como
Friedrich; August Höfer, baixo, como Heinrich.
137
é aquele que guarda a verdade e que ela apenas o conhece de seus sonhos. Após as
preces de Elsa e o toque dos trombeteiros, percebe-se que, ao longe, um cavaleiro vem
pelo rio, em pé dentro de um barco, puxado por um cisne. Ortrud e Friedrich temem
com a chegada do cavaleiro nunca antes visto. Ao sair do barco, Lohengrin, o
cavaleiro, se despede do cisne que prontamente se vai. Ao se aproximar de Elsa, o
cavaleiro, portando elmo e escudo com os símbolos do cisne, promete defender-lha e
casar-se com ela, protegendo seu reino para sempre, desde que esta jamais pergunte
quem ele é ou de onde ele veio. Com o consentimento de Elsa, Lohengrin pede ao rei
para ser o cavaleiro que duelará em prol da jovem. Inicia-se o duelo e Lohengrin vence
Friedrich apenas com um golpe. O cavaleiro misterioso, contudo, não mata o
pretendente ao trono, percebendo que este é manipulado por Ortrud. Após o confronto,
Elsa é entregue pelo rei Heinrich aos cuidados de Lohengrin e todos o saúdam como
sendo o salvador da jovem e da verdade.
O segundo ato se passa na noite após o conflito e o exílio de Ortrud e Friedrich.
Estes, tendo que deixar a fortaleza, acabam ficando escondidos no entorno, tramando
como fariam para Elsa se afastar do cavaleiro desconhecido. Ortrud se aproxima da
sacada de Elsa e, quando esta aparece, consegue ter com ela. No amanhecer, a
população está reunida esperando as festas de núpcias. Ortrud se encontra
sorrateiramente inserida no meio do povo, inflamando as questões acerca da ocultação
das origens de Lohengrin. Logo após, Friedrich surge com as mesmas insinuações
acerca do cavaleiro do cisne. As dúvidas colocadas surtem efeito e Elsa começa a
mesclar seus sentimentos: amor, gratidão, dúvida, medo.
O terceiro ato inicia-se e rapidamente Lohengrin e Elsa são deixados, pela
primeira vez, sozinhos em cena. Lohengrin chama Elsa pelo nome e ela percebe que
nunca fará o mesmo, porém, acredita que um dia o amado confiará a ela este segredo.
Assim, o cavaleiro percebe que Elsa foi envenenada pelas mentiras de Ortrud. Elsa,
aterrorizada com a visão do cisne voltando para buscar seu amado, começa uma série
de questionamentos acerca de Lohengrin. No mesmo lugar em que chegou, Lohengrin
resolve responder às questões da amada. Conta que veio de Montsalvat e é, juntamente
com seu pai, Parsifal, um dos guardiões do Graal 86. O cavaleiro deve voltar porque é
uma exigência dos poderes do Graal que o bem seja feito, mas que a origem desse bem
86
Esta temática percorreu grande parte da produção de Richard Wagner sendo originada por sua
curiosidade e suas pesquisas realizadas desde a adolescência acerca do tema. Podemos lembrar que
Wagner também escreveu uma peça sobre Parsifal.
138
seja ocultada. Após as revelações, o cisne retorna para buscar Lohengrin. Ortrud
confessa, então, que o cisne é, na verdade, Gottfried, irmão de Elsa, que foi
transformado pelo poder dos antigos deuses. Lohengrin reza e um pombo desce dos
céus transformando o cisne em Gottfried. Elsa, após a transformação e vendo o amado
partindo, tomba morta nos braços do irmão 87.
Lohengrin encerra o ciclo de óperas de caráter puramente romântico de Richard
Wagner. E mais, nas divisões feitas na tradicional História da Música, Lohengrin é a
ópera que encerra o ciclo romântico da escrita operística alemã. Este ciclo, em Wagner
iniciado indiretamente com Rienzi, contou, também, com as óperas Der Fliegende
Holländer88 e Tannhäuser und der Sängerkrieg auf Wartburg89. Como ópera
romântica ainda existem partes parecidas com árias, duetos e recitativos. Todavia,
nesta peça já se encontram as características que farão Wagner converter a ópera em
Drama. Já ocorrem a lógica da melodia infinita, da orquestra como artefato narrativo e
do uso antecipado do leitmotiv, como no caso do cisne e da pergunta proibida feita por
Elsa a Lohengrin.
Lohengrin, destarte suas inovações, ainda possui o modelo de grand opéra
parisiense e acaba sendo uma síntese das possibilidades germânicas e francesas – o
puro germanismo estilístico, na ópera wagneriana, seria alcançado anos mais tarde.
Assim sendo, o autor mesclou o conhecimento musical amplo com as possibilidades
nacionalistas germânicas. A composição se deu rapidamente e, de início, a música foi
estranhada devido a suas inovações. A peça também se utiliza, várias vezes, das cenas
de multidão, notadamente na quarta cena do segundo ato na qual ocorre a procissão de
Elsa em direção à igreja com a intromissão de Ortrud.
Nesta peça, Wagner inova com a utilização das associações tonais: Lohengrin e
o Graal são, assim, representados pelo mesmo tom: lá maior. Este tom também é o de
início e de término da peça sendo o mais utilizado durante toda a obra. As contradições
na ópera são representadas, por tons próximos, como lá bemol maior, como é, muitas
vezes, representada Elsa, o que cria uma dificuldade de manutenção composicional que
Wagner acaba resolvendo nas cenas dramáticas 90. O compositor utiliza o tom relativo
da representação de Lohengrin para representar Ortrud, ou seja, fá sustenido menor,
87
Para a nossa tradução do libreto, ver Anexo G.
88
O Holandês Voador
89
Tannhäuser e o torneio de trovadores de Wartburg
90
Esta dificuldade origina-se no fato de que tons muito próximos nas escalas diatônicas estão
extremamente afastados na configuração de vizinhança.
139
criando uma movimentação harmônica que serve como narrativa emotiva do conflito
entre o bem, representado em Lohengrin; e o mal, representado em Ortrud. A
orquestração é cheia de significados: os metais acompanham o rei, as madeiras,
extremamente emotivas, Elsa; o sombrio clarinete baixo encomendado especialmente
por Wagner, Ortrud; e os violinos, com características brilhantes, Lohengrin.
O compositor não fez nenhuma grande revisão nesta ópera. A única que merece
destaque é, portanto, aquela que o próprio compositor encomendou a Liszt após a
estreia, no trecho conhecido como A Narração de Lohengrin 91. A Marcha Nupcial
também merece destaque sendo, até hoje, utilizada em cerimônias de matrimônio.
Junto com Parsifal esta é a peça mais lírica de Wagner, na qual o compositor
perfeitamente equilibrou textura, harmonia e melodia.
Rienzi, uma das mais discutidas dentre as óperas de Richard Wagner é um claro
exemplo da percepção política e nacional do compositor germânico. Logo no início do
enredo, em uma afirmação do tribuno durante o primeiro ato, percebemos que a
aristocracia existente na cidade de Roma, representada pelas famílias Orsini e
Colonna, foi a responsável por transformar esta cidade em um ‘covil de ladrões’. Estes
aristocratas, no fundo, apenas se preocupam com a manutenção de seu status quo e
com a defesa de suas honras individuais, esquecendo-se da glória da própria cidade e
das necessidades de sua população – principais preocupações de Rienzi. Aqui já
percebemos, claramente, a posição política do compositor germânico. Ou seja, Wagner
demonstra sua aversão inicial a qualquer forma de concentração de poder na mão de
camadas aristocráticas, defendendo, portanto, a distribuição de poder para todos, assim
como o grupo republicano defendia na Confederação Germânica após a assinatura do
Tratado de Viena e o reestabelecimento de determinadas monarquias em continente
europeu.
Ainda no primeiro ato percebemos que Rienzi consegue a confiança do povo de
Roma através do apelo que estes faziam por representatividade política. Porém, o
tribuno se afastará da representatividade concentrada de poder ao negar a possibilidade
ofertada de se transformar em monarca de Roma. Seguindo este fato, Rienzi promete à
população acordar Roma de seu sonho desde que estes jurem proteger a honra e a
liberdade da Cidade Eterna, transformando-se, então, em Tribuno do Povo. O
compositor consegue, assim, demonstrar um reconhecimento identitário nos seguintes
91
Cf.: MILLINGTON, Barry. Op. Cit. p.325.
140
termos: a partir de um momento em que diferentes núcleos sociais combatem um mal
maior opressor em conjunto, é possível a obtenção do sucesso com maior facilidade,
transformando uma população fragmentada em una, assim como ocorre na ópera.
Para afirmar a necessidade de unidade como emanação da própria população,
Richard Wagner se utiliza, na terceira cena do segundo ato, de um clamor popular que
pede a união total. Essa união, a partir do momento em que ocorre, é responsável,
enfim, por apaziguar as divergências políticas internas e a subordinação da maioria
popular à minoria aristocrática. Porém, os aristocratas, na visão do compositor,
estariam sempre dispostos a tudo para manterem-se no poder e isso fica evidente na
medida em que estes juram obediência ao Tribuno logo após tramando a morte deste.
Soma-se a este fator a inconstância revolucionária da população: mesmo com as
vitórias conseguidas, a população não está disposta a lutar e a colocar sua vida em
risco por um bem maior e geral. A partir do momento em que os aristocratas são
perdoados e já tramam a conspiração contra Rienzi – conspiração esta que triunfará até
o final da ópera – podemos perceber a postura revolucionária de Wagner e mais, uma
clara comparação pode ser feita com as monarquias europeias reestabelecidas após o
Tratado de Viena. Assim, o perdão popular passa a ser encarado como mais uma
possibilidade de golpe nobiliárquico.
A ausência de coragem da população é percebida, finalmente, como sendo a
forma de traição final. A partir da qual o próprio libertador é colocado à morte. Uma
vez que o povo não está disposto a lutar e a ter baixas ao lado de seu representante,
passa a ser prontamente influenciado pelo antigo poder existente no território. O líder
revolucionário também perde seus amigos e o apoio crucial da Igreja, representado na
figura do cardeal Raimondo, chegando a ser excomungado. Assim, todo o aparato de
manutenção da liberdade popular de Roma se transforma no maquinário da restauração
aristocrática.
Rienzi é, ao mesmo tempo, aquele líder que combate a aristocracia e, também,
o indivíduo que apazigua os conflitos sociais tentando devolver a glória a Roma 92. Este
herói é nitidamente solitário – tendo o apoio total apenas de sua irmã, Irene. Ele
escolhe a solidão para ser capaz de executar seus ideais de igualdade. Assim, Rienzi
demonstra o pensamento político de Wagner, principalmente, as atitudes
antimonárquicas, tão comuns nas revoltas ocorridas entre 1848 e 1849. A peça chega a
92
ARBLASTER, Anthony. Viva la Libertà! Politics in Opera. London: New York: Verso, 2000.
141
demonstrar, também, o pessimismo político de Wagner, basta lembrarmos o final da
peça, quando o personagem central morre após todas as traições possíveis: amigos,
Igreja e, finalmente, o povo que outrora defendera. A lógica pessimista é, contudo,
modificada ao longo do tempo e o compositor coloca uma gota de otimismo ao fazer o
personagem que intitula a obra afirmar na quarta cena do último ato: “Escutem minhas
últimas palavras: enquanto existir as Sete Colinas de Roma, enquanto a Cidade Eterna
não perecer, verão Rienzi regressar!”93.
Outra ópera de Wagner que, como um todo, representa as aspirações
nacionalistas de seu povo, Lohengrin, passando-se no contexto das invasões húngaras,
também demonstra as expectativas de unificação nacional do compositor.
Neste contexto, o Rei Heinrich, o passarinheiro, é proclamado Imperador de
todos os germânicos. Esta característica de enredo já marca uma interpretação das mais
relevantes da compreensão de unidade proposta por Wagner. Se durante a época de
composição de Rienzi o compositor apenas enxergava a possibilidade de unificação
sob uma égide republicana e popular, conforme atestam seus escritos94; em Lohengrin,
o compositor passa a perceber que uma unidade é plenamente alcançável com um
apoio nobiliárquico. Esta característica é singular já que o compositor, em pouco
tempo, começaria a trabalhar diretamente com o poder monárquico, na figura do jovem
Ludwig II da Baviera, recebendo total apoio e apaziguando as divergências surgidas
durante a década de 1840 e as revoltas deste momento.
Um outro tema relevante que surge na ópera é a figura do antagonismo. O
antagonismo é representado pelas tentativas de usurpações do trono de Elsa por parte
de Ortrud e Friedrich. Desta forma, na ópera, assim como no ambiente político
revolucionário de seu tempo, Wagner, escrevendo os próprios librettos, demonstra que
a mentira e a traição são comuns. Logo, apenas um herói – ou população – corajoso e
que defenda a verdade pode erguer-se do nada para resgatar e criar a vida político-
social desejada. Como são corajosos e defensores da verdade, a própria divindade
apoiará a causa. Logo, assim que todos lutarem pela verdade política – manter quem é
93
No original: So höret nun mein letztes Wort: so lang die sieben Hügel Romas stehn, so lang die ew'ge
Stadt nicht soll vergehn, sollt ihr Rienzi wiederkehren sehn!Em tradução nossa: Escutem minhas últimas
palavras: enquanto existir as Sete Colinas de Roma, enquanto a Cidade Eterna não perecer, verão Rienzi
regressar!
94
FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia:
Berlin, 2004 [edição digital dos textos completos de Richard Wagner], passim.
142
de direito no poder –, todos serão identificados como protetores e salvadores,
conforme atesta Elsa já na terceira cena do primeiro ato.
Como último ponto, podemos lembrar que a usurpação proposta por Ortrud é
fundamentada em sua aproximação com as religiões e deuses antigos. A personagem
confessa, no segundo ato da ópera, que é uma bruxa e que como tal, terá o poder para
eliminar seus adversários. Aqui Wagner faz uma nítida interação entre a cultura antiga
germânica que deve ser compreendida e respeitada por ser tradicional; e a cultura
cristã, que, no território que viu nascer a reforma luterana, era o principal pólo de
religiosidade da população.
Assim sendo, mais do que um compositor afastado de sua realidade social,
Wagner deve ser compreendido como um indivíduo que buscou se inserir na política
do contexto, sugerindo a constituição de uma nacionalidade germânica através das
possibilidades artísticas. Essa nacionalidade, portanto, apenas poderia ser criada
plenamente e mantida a partir de uma unificação política. Neste sentido, arte musical e
anseios políticos devem ser compreendidos como uma via de mão-dupla no
pensamento do compositor de Rienzi e Lohengrin.
Ranke e Wagner releram e, consequentemente, (re)criaram heróis em suas
produções. Seus heróis, cada qual em sua medida, apresentaram-se como fortes e
necessários em determinado contexto. Todos, entretanto, possuíam uma força
necessária igual: tanto o Henrique IV, o Ignácio de Loyola e o Papa Paulo III de
Ranke; quanto o Rienzi e o Lohengrin de Wagner, são personagens unificadores.
Unificam a população de seus territórios em prol de uma maior estabilidade. Assim,
ambos, Ranke e Wagner, acabam demonstrando uma crença política específica – cada
qual a sua maneira: a unidade nacional, sustentáculo para a manutenção de uma
política de Estado unificado, segundo a visão dos autores, é exercida de melhor forma
a partir de homens tidos como superiores.
Estes ‘grandes homens’ que tanto a historiografia e a ópera saudaram ao longo
do século XIX, entretanto, no pensamento dos autores, devem apoiar os anseios
populares. Este apoio faz-se necessário uma vez que a população acaba sendo a grande
responsável pela difusão do nacionalismo enquanto uma experimentação de um
sentimento de pertencimento a um grupo cultural e territorialmente estabelecido 95.
95
GUIBERNAU I BEDRUM, Montserrat. Nacionalismo: o Estado Nacional e o nacionalismo no
século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997.
143
4.3 As possibilidades políticas para a configuração de um Estado nacional
unificado: a visão do processo em Richard Wagner e Leopold von Ranke
96
MILLINGTON, Barry. Op. Cit., p.50.
144
Em 1862, Otto von Bismarck tornou-se primeiro-ministro do reino da Prússia,
que já se consolidava como o território economicamente mais influente da
Confederação Germânica. Neste contexto, Áustria e Prússia, sob influência dos ideais
de unificação bismarckianos, iniciaram uma guerra contra a Dinamarca: a Guerra dos
Ducados, pela posse dos ducados de Schleswig e Holstein. Estes dois ducados se
uniram pessoalmente à coroa da Dinamarca ainda no século XV e, apesar de possuírem
maior parte da população dinamarquesa, notadamente no caso de Schleswig, os dois
membros fortes da Confederação Germânica exigiam sua posse. No fundo a
beligerância ocorreria pelo ideal expansionista que permeava tanto Prússia quanto
Áustria, temerosas de que processos revolucionários em prol da unificação, tal qual
ocorrera em 1848, diminuíssem ainda mais seus territórios e relativizassem sua
influência política continental.
Com a vitória germânica afirmada no Tratado de Viena, e consequente
consolidação da influência bismarckiana dentro da Confederação, Áustria e Prússia
assumiram a administração de Holstein e Schleswig, respectivamente, a partir da
Convenção de Gastein. Entretanto, a influência prussiana em Holstein, administrada
diretamente pela Áustria, geraria, em um curto espaço de tempo, dois anos, mais um
conflito: a Guerra Austro-Prussiana97.
Em 1866, Áustria e Prússia ainda permaneciam como os dois principais centros
de poder político no interior da Confederação. A interferência prussiana em Holstein,
entretanto, levou a Áustria a uma ofensiva militar contra a Prússia, visando sanar os
permanentes embates acerca da supremacia militar, política e econômica na Germânia.
Mais do que isso, o que estava em jogo era qual modelo de unificação possível seria
realizado: a großdeutsch, defendida pela Áustria; e a kleindeutsch, defendida pela
Prússia através de seu primeiro-ministro98. Após o conflito, a Prússia dissolveu a
Confederação Germânica através do Tratado de Praga e formou sua própria união de
territórios: A Confederação Germânica do Norte99, firmando uma série de tratados,
principalmente econômicos, com os territórios ao sul. Neste sentido, a Áustria,
enfraquecida, perdeu o apoio dos antigos membros da Confederação, realizando sua
unificação de forma forçada e conseguindo garantir, apenas com muita dificuldade,
97
EMBREE, Michael. Bismarck's First War: The Campaign of Schleswig and Jutland, 1864.
Helion and Company, 2005.
98
BOND, Brian. "The Austro-Prussian War, 1866," History Today. Ano: 16. V.8, 1966, pp 538–546.
99
Norddeutscher Bund. Cf.: HOZIER, H. M. The Seven Weeks' War: the Austro-Prussian Conflict
of 1866. LEONAUR, 2012.
145
outros territórios conquistados100. Com isto, Otto von Bismarck se consolidava
enquanto estrategista político e militar em panorama continental.
Após estes momentos de crise militar e política interna, a Guerra dos Ducados e
a Guerra Austro-Prussiana, chegaria o momento decisivo na constituição de uma
Alemanha unificada: a Guerra Franco-Prussiana. Em 1868 a rainha Isabel II abdicara
em virtude de uma série revolucionária retirando sua descendência da lista sucessória
do trono espanhol. Sem parentescos próximos, o parlamento espanhol ofereceu o trono
ao príncipe Leopold von Hohenzollern, primo do rei Wilhelm I da Prússia. Este fator
levou à Europa um amplo mal-estar, afinal a Prússia estava conseguindo cada vez mais
estabelecer seu ideal expansionista bismarckiano. Mais que isso: a França ficaria
cercada de reinos germânicos e isto levaria fragilidade comercial e dependência direta
ao Estado francês, administrado por Napoleão III101.
Bismarck estava interessado em um conflito direto contra a França – os
territórios ao sul da Prússia, ainda não totalmente integrados na Confederação do
Norte, nutriam um sentimento antifrancês desde as invasões napoleônicas 102. Assim, o
reino da Prússia recusa a exigência francesa de rompimento político com a Espanha,
solicitado pelo governo de Napoleão III, o que leva este a declarar guerra contra o
território germânico. Com a situação política e militar interna já resolvida e com a
instabilidade interna da França, a Prússia conseguiu vencer rapidamente os franceses,
proclamando, com isso, seu rei, Imperador, em janeiro de 1871, fundando assim, o II
Reich103. Porém, essa nova formação Imperial neste momento diferia da anterior, agora
a Alemanha era uma grande potência com aproximadamente 40 milhões de habitantes,
que crescera economica e industrialmente e que conseguira articular a pluralidade de
ideários políticos, além de se salvar de toda sorte de conflitos sociais.
Vinte e cinco principados e cidades livres formaram o novo império alemão sob
presidência do rei prussiano como Imperador hereditário e Bismarck como primeiro-
ministro, em 1871. O chanceler tentou ao máximo, sendo bem sucedido a maior parte
100
A Áustria perdeu o Ducado disputado de Holstein para Prússia e a região da Venécia (atuais Vêneto,
Údine, Pordenone, Gorizia e Trieste) para a Itália, aliada indireta da Prússia. Assim, conseguiu manter
apenas os territórios da Hungria. Cf.: WAWRO, G. The Austro-Prussian War: Austria's War with
Prussia and Italy in 1866. Cambridge: CUP, 1997.
101
CROMPTON, Samuel Willard. A Guerra Franco-Prussiana (1870-1871). In: ______. 100 guerras
que mudaram a história do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p.167, 2005.
102
WAWRO, G. The Franco–Prussian War: The German Conquest of France in 1870–1871.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
O I Reich durou de 843 até 1806, o II Reich durou de 1871 até 1818 e o terceiro, coincidente
103
146
das vezes, manter a Alemanha inserida na economia mundial, firmando alianças com
países vizinhos como Rússia e Inglaterra. Neste ínterim, a Alemanha se tornou uma
das maiores sufocadoras de revoltas nos países vizinhos, uma vez que temia que tais
revoltas alcançassem seus territórios e incentivasse seu povo às mesmas
manifestações. Porém, a especificidade do nacionalismo germânico colaborou para a
criação da nação alemã. Fala e costumes, além de identificação histórica, facilitaram o
reconhecimento individual no povo alemão, o que diminuiu o número de conflitos
internos após a unificação, já que os habitantes julgavam-se pertencentes ao mesmo
grupo nacional104.
A Prússia manifestava, assim, sua vontade de potência. Assim,
104
SHOWALTER, Dennis. The Wars of German Unification. New York: Bloomsbury Academic,
2004.
105
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. A Permanência da Ideia de Império na Época Moderna. In:
______; CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J. Impérios na História. Rio de Janeiro :
Elsevier, 2009, p.137-143, p.139.
147
todos o são – Ranke e Wagner puxaram suas interpretações políticas para as realidades
de seus contextos políticos.
Leopold von Ranke percebeu a política nacionalista do ponto de vista
prussiano. Entre o período que se estende entre as Revoluções de 1830 e o momento
imediatamente posterior à unificação, o historiador ampliou sua participação política
no território germânico: no início da década de 1840, foi nomeado para o cargo de
historiador real da corte prussiana, produzindo constantemente sobre as origens
monárquicas germânicas e seu relacionamento com outros Estados; em 1865, tendo já
produzido vários volumes acerca da história do território, recebeu da mesma corte o
título de Barão, acrescentando, retroativamente, a partícula ‘von’ a seu nome,
distintivo de nobreza na Germânia; e, no início da década de 1880, já com uma
Alemanha unificada sob a presidência da Prússia, tornou-se membro do Conselho
Prussiano – espécie de gabinete ministerial responsável por auxiliar a monarquia von
Hohenzollern, responsável pela unificação, na tomada de decisões políticas.
A percepção de política nacional deste historiador, neste sentido, pode ser
amplamente compreendida através de seu relacionamento com a corte dominante de
seu cenário. A Prússia, durante o século XIX, aprofundou sua influência interna, no
seio da Confederação Germânica, se apresentando como a região econômica e
militarmente mais substancial. Desta forma, a Áustria, antiga aliada, foi sendo
esvaziada de poder. Este esvaziamento de poder austríaco demonstrou, em certa
medida, a nova dinâmica monárquica pós-Restaurações. O esvaziamento de poder que
levou o projeto austríaco de unificação – afinal a Áustria era o centro da possibilidade
de uma Grande Alemanha – a se estagnar, contudo, pode ser melhor compreendido se
for visto de forma ampliada: a Áustria perdeu, simultaneamente, poder econômico,
militar e político.
Napoleão Bonaparte eliminou a força política e militar austríaca, enquanto
liderança do Sacro Império, representada por Francisco II da Áustria após a Batalha de
Austerlitz, em 1805. Entretanto, o exército francês perderia sua força em menos de
uma década. Com isso, o governo austríaco de Francisco I106, representado pela
atuação política do príncipe Klemens von Metternich, a primeira vista pode ser
interpretado como forte ao se pensar no Congresso de Viena – afinal a Áustria foi a
106
Os títulos de Francisco II e I se referem ao mesmo monarca. Enquanto último Imperador do Sacro
Império, governando entre 1792 e 1806, utilizou o título de Francisco II. Entre 1804 e 1835, enquanto
Imperador da Áustria, utilizou o título de Francisco I.
148
responsável pela própria organização do evento que colocou fim a sequência de
guerras que assolaram a Europa por mais de uma década.
Essa reunião de restaurações monárquicas, todavia, acabou ampliando o poder
de outras regiões. Neste sentido, Inglaterra, Rússia e Prússia, conseguiram ampliar sua
influência política e, a partir disto, criar novos vínculos econômicos entre si. A própria
França conseguiu reavivar sua monarquia, destituída com a Revolução Francesa, e se
restabelecer, fortalecendo, também, sua economia. Assim, o projeto austríaco de
Metternich acabou originando mais um sistema político-econômico multipolar baseado
na ancestralidade das monarquias plurais européias e na ampliação industrial de outros
territórios107.
Frente ao governo prussiano os investimentos austríacos no processo de
industrialização foram frágeis108. Assim, permanecendo essencialmente agrícola no
início do século XIX, a Áustria entrou em um profundo processo de desvalorização
monetária, responsável por uma crise de legitimidade perante a sociedade 109. Em curto
prazo, a solução foi ampliar seu território, estabelecendo, em 1867, uma monarquia
dual com a Hungria, um território já sob influência política e cultural do território
germânico – uma das formas de tentar se recuperar política e economicamente da
Guerra Austro-Prussiana ocorrida pouco tempo antes.
Perder a possibilidade de investimentos na possibilidade de industrialização
mantendo os investimentos agrários levou a aristocracia austríaca a sofrer uma série de
críticas sociais, o que acabou por estabelecer um profundo panorama de crise
institucional. Isto é, a Áustria não conseguiu estabelecer mecanismos de supressão de
manifestações sociais. Destarte, cada vez mais, a monarquia dos Habsburgo perdia sua
legitimidade política. No mesmo momento, a Prússia, adversária interna, se
apresentava em um movimento inversamente proporcional: entre 1815 e 1850 a
monarquia prussiana não apenas investiu fortemente no processo de industrialização
como foi, lentamente, se firmando como uma das maiores controladoras de revoltas
populares na Confederação Germânica, influenciando a dinâmica política de todos os
107
SKED, Alan. Declínio e queda do Império Habsburgo (1815-1918). Lisboa : Edições 70, 2008.
108
A Áustria iniciou seu processo de industrialização na década de 1770, no mesmo momento que o
Reino da Prússia. Entretanto, após as invasões napoleônicas, retornou a seu modelo econômico agrário,
buscando reafirmar seus vínculos monárquicos em detrimento da burguesia crescente. Cf.: BRION,
Marcel. Viena no tempo de Mozart e Schubert. São Paulo : Companhia das Letras, 1991.
109
BRION, Marcel. Op. Cit.
149
membros do grupo110. Neste sentido, os Hohenzollern conseguiram regular, inclusive,
as manifestações nacionalistas, como as de 1848, suprimidas rapidamente em seus
territórios.
Leopold von Ranke, inserido neste cenário, defendeu o projeto prussiano de
unificação alemã. Após o Congresso de Viena e a instabilidade austríaca, em uma
Confederação recentemente ratificada, o Reino da Prússia conseguiu se reerguer
militarmente111. Mais do que isso, a Prússia conseguiu ampliar sua legitimidade
política frente à sociedade a partir de uma série de investimentos no processo de
industrialização112. Estes investimentos acabariam ampliando a rede comercial do
reino com os Estados próximos, inclusive a França que, estando em um momento pós-
revolucionário, necessitava de uma série de bens produzidos no território germânico 113.
Mais do que isso, estes investimentos estabeleceram uma burguesia que foi se
acomodando aos interesses da aristocracia. Assim, as revoltas, a partir de 1840, com o
Zollverein já estabelecido, passaram a ter características nacionalistas.
As revoltas nacionalistas, contudo, não ofereceriam grandes riscos ao poder
monárquico prussiano, um dos mais especializados em combatê-las. Ranke mesmo
afirmaria que as revoltas populares seriam a principal característica a ser afastada das
regiões germânicas: “A única coisa que devemos, efetivamente, pedir a Deus é que nos
proteja e guarde de todas as revoluções sociais” 114. Neste sentido, a Prússia pode ser
entendida como um território próximo a uma unificação de Estado com a presença de
outras regiões. Ocorria, assim, uma vontade de potência, identificada com a expansão
física.
Ranke identificou no Império Austríaco um mosaico político e cultural –
notadamente a partir da presença húngara 115. Mais foi além, percebeu na Áustria uma
adversária a seu ideal conservador monárquico. Não que a Áustria estivesse aberta a
110
HOBSBAWM, Eric. A Era das Revoluções: 1789 – 1848. 6ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988.
111
CLARK, Christopher. Iron Kingdom: The Rise and Downfall of Prussia, 1600–1947. Cambridge :
Belknap Press, 2009.
112
BRION, Marcel. Op. Cit.
113
CLARK, Christopher. Op. Cit.
114
Cf.: Anexo A. Vale notarmos, também, que o historiador se refere a possibilidade religiosa como uma
das formas de se evitar os processos revolucionários: Leopold von Ranke certamente foi um protestante
luterano convicto – apesar de seus também constantes elogios a Igreja Romana e sua centralização de
poder baseada na antiguidade do papado, conforme demonstrou em seu livro específico. Sobre a
interação entre a religiosidade do historiador prussiano e a interpretação da verdade historiográfica, ver
Anexo B.
115
RANKE, Leopold von. Die großen Mächte. In: ______. Völker und Staaten in der neueren
Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945, p.44-88.
150
um republicanismo mas, sim, pela sua falta de legitimidade perante a população
insatisfeita com o regime monárquico. Daí mesmo a defesa do historiador da
possibilidade de uma Alemanha menor, a kleindeutsch prussiana. Essa possibilidade,
vincularia-se, inclusive, ao relacionamento germânico entre a prática política e a leitura
histórico-filosófica, conforme o autor demonstrou em seu texto Sobre as afinidade e
diferenças existentes entre a Política e a História, ao afirmar que o próprio
conhecimento do passado e do presente devem se retroalimentar 116. Sobre o fenômeno
desta unidade, chegou a afirmar, acerca da formação dos Estados-nacionais de seu
tempo que “a mistura de todos estes povos arruinaria a essência de cada um
individualmente. A verdadeira harmonização apenas pode surgir a partir da separação
e da autenticidade de cada povo.”117
Richard Wagner trilhou um caminho inverso ao de Leopold von Ranke. Este
caminho também se identifica com o seu local de fala: enquanto Ranke se estabeleceu
na Prússia, Wagner, na Baviera. Porém a dinâmica política wagneriana é mais
complexa do que a do historiador prussiano: ao passo que Ranke se manteve como um
autor conservador, mesmo que em certos pontos compreendendo, a partir de seu
interior, a movimentação revolucionária europeia – embora não a desejando em seu
território –, Wagner transitou entre as mais variadas possibilidades político-
interpretativas.
O compositor de Lohengrin e Rienzi foi ativo no interior das Revoluções
Nacionalistas de 1848. Esta participação revolucionária lhe rendeu o exílio que se
estenderia por doze anos, entre Weimar, Paris e Zurich e que foi responsável por certo
ostracismo artístico. Este afastamento das possibilidades musicais, no entanto, acabou
sendo o responsável pela ampliação e densificação de sua produção teórica, seja ela
política, social ou mesmo de crítica artística – basta lembrarmos que durante este
período o compositor escreveu mais de 30 obras, entre ensaios, artigos, comentários
jornalísticos e livros e sequer completou três óperas.
Em 1864 a vida do compositor mudaria completamente, o que, certamente,
também atingiria sua percepção política. Neste ano, Maximiliano II118, rei da Baviera,
morreu deixando o trono para o seu filho de 18 anos, Ludwig II. Este jovem, um
116
Conferir a nossa tradução do referido texto no Anexo C.
117
Idem, p.88.
118
O mesmo a quem Ranke escreveu demonstrando sua percepção historiográfica e seu temor
revolucionário. Cf.: Anexo A.
151
admirador da ópera, especialmente a wagneriana, convidou o compositor para fazer
parte de sua corte, o que já era possível, uma vez que a anistia plena pela participação
no Levante de 1849 em Dresden já atingira o compositor totalmente alguns meses
antes. Assim, este se mudou para a corte bávara, começando a trabalhar diretamente
para o rei. Desta forma, encontrando estabilidade financeira, Wagner pode se dedicar
amplamente ao trabalho e retomar projetos musicais e teóricos anteriores, obliterados
pelo exílio. A relação com o restante da corte, no entanto, não era das mais amistosas:
o rei oferecia quantias demasiadamente altas ao compositor em um momento em que o
sul da Confederação Germânica passava por profundos problemas econômicos. Com
isso, Wagner acabou saindo da corte retornando pouco tempo após. Em seu retorno,
propôs a criação do teatro de festivais de Bayreuth, um teatro no qual, construído com
ajuda econômica de indivíduos ao redor do mundo, além da contribuição da corte da
Baviera, suas peças seriam executadas.
A Baviera, contudo, não era um território qualquer. Governada por um príncipe
jovem e sem preparo político, Ludwig II, buscava o início de um tímido processo de
industrialização. Em consonância a isto, procurava ampliar suas áreas agrícolas – uma
das mais relevantes do panorama da Confederação. Além deste fator, enquanto Prússia
e Áustria disputavam a força econômica e política na Confederação, os bávaros
mantinham-se atrelados a ambas potências, seguindo, assim, possibilidades antitéticas
o que, certamente, dificultava sua estabilidade social119.
Esta ambiguidade econômica e política, somada a fragilidade do governo de
Ludwig II, fez com que, após a Guerra Austro-Prussiana, o Reino da Baviera fosse
afastado da nova configuração política dominada pela Prússia: a Norddeutscher Bund.
Ou seja, na mesma medida em que o Reino da Prússia concentrava poder e a Áustria
recriava suas possibilidades políticas com a aproximação da Hungria, a Baviera acabou
se estabelecendo como território passível de influência dos territórios de sua volta,
inclusive não-germânicos120.
Neste tom, Wagner começou a defender a corte bávara, responsável pela maior
parte do financiamento de seus projetos intelectuais. Assim, enquanto que em 1848 o
compositor se apresentou como um defensor do republicanismo revolucionário; entre
1864 e 1866, no aprofundamento do processo de unificação, voltou-se à monarquia
119
WAWRO, G. The Austro-Prussian War: Austria's War with Prussia and Italy in 1866.
Cambridge: CUP, 1997.
120
SHOWALTER, Dennis. Op. Cit.
152
centralizada e centralizadora. Esta guinada wagneriana não mostra apenas um
compositor que serviu aos dois lados da barricada de acordo com suas necessidades
econômicas, mas sim, a releitura de um projeto antigo: a edificação de uma Alemanha
unificada por vínculos culturais maiores do que aqueles ofertados pela política
econômica de um território específico, a Prússia.
A partir do momento em que o compositor começou a trabalhar na corte, em
1864, começou a identificar uma nova reconfiguração política para ampliar sua
influência em prol de uma großdeutsch – afinal, sempre acreditou na possibilidade de
uma Alemanha ampliada. Neste sentido, Wagner procurou difundir sua interpretação
de uma cultura e língua unificada para um novo Estado europeu, detentor de influência
significativa: afinal de contas, esta Grande Alemanha seria detentora de um processo
inicial de industrialização, ao norte, de uma relevante produção agrícola, ao sul, e de
zonas de influência extra-germânicas: como seria o caso da Hungria e dos ducados
dinamarqueses de Holstein e Schleswig, além, é claro, do tradicionalismo das
monarquias Hohenzollern e Habsburgo.
A Guerra Austro-Prussiana eliminou esta possibilidade de uma Alemanha tão
ampliada, tal qual pretendeu Richard Wagner. Eliminou, também, a presença da
Baviera em uma kleindeutsch, tal qual pretendeu Leopold von Ranke. Neste sentido,
restou ao território bávaro ceder à pressão política, militar e econômico-industrial da
Prússia e se encaminhar à unificação com esta durante a guerra contra a França de
Napoleão III121.
Em um de seus textos sobre a necessidade de uma unificação ampliada, escrito
próximo a seu retorno à Baviera, Richard Wagner compararia os povos germânicos,
apesar da não-percepção, por parte do compositor, de suas singularidades que se
apresentavam como impedimento para um projeto total, a Wieland, o herói da
mitologia nórdica, chegando a afirmar: “Ó povo único e glorioso! É isso, que você
mesmo cantou esta canção. Tu és este Wieland! Forja tuas asas, levante-te em vôo
alto!”122. O projeto vencedor de Unificação da Alemanha foi uma ampliação do projeto
de Leopold von Ranke, baseado em uma interpretação política que elevava a Prússia a
título de potência única dentro da Confederação, e uma diminuição do projeto de
Richard Wagner, que pensou na possibilidade idealista de uma ‘vontade de potência’
121
WAWRO, G. The Franco–Prussian War: The German Conquest of France in 1870–1871.
Cambridge: Cambridge University Press, 2003.
122
Conferir Anexo E.
153
coletiva em prol de uma agenda comum, não responsável pela imposição política de
nenhum território perante outro.
123
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Projeto Prussiano de Império Alemão. In: ______;
CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J. Impérios na História. Rio de Janeiro : Elsevier, 2009,
p.223-234.
154
determinados personagens: de resgate histórico. como em Ranke; ou míticos, como em
Wagner. Assim, substituíam a total participação popular no processo da unificação
pela simbólica atuação dos líderes políticos do contexto político. Esta percepção,
claramente, demonstra a historicidade de nossos dois personagens: Ranke e Wagner,
enquanto homens do século XIX, viviam a percepção de individuação extrema,
representada por seus personagens e pela própria sociedade germânica burguesa do
período124.
Ambos autores, partindo de sua percepção de individualidade e reconhecimento
social e político de seus trabalhos, buscaram pensar, portanto, em uma manifestação
política. Esta era interpretada de forma variada por cada um. Porém, buscou-se uma
política que estivesse ligada diretamente à reafirmação das demandas nacionalistas em
voga para, então, proceder à unificação do Estado.
124
FURET, François. O homem romântico. Lisboa: Editorial Presença, 1999.
155
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
156
estabeleceram, notadamente, como indivíduos que interferiram da forma mais ampla
possível no espaço público a partir de suas criações e interpretações do mundo cultural,
político e social alemão 4.
Soma-se à busca pela narrativa das trajetórias de vida, a procura pela criação
intelectual. Procura-se, assim, localizar o lugar social dos indivíduos e suas atuações.
Concomitantemente, aprofundou-se uma seara metodológica nova para os
historiadores, na qual tanto a história das trajetórias de vida quanto a história dos
intelectuais e das ideias poderiam facilmente se encaixar: a história comparada. Ou
seja, passamos a perceber que dois sujeitos, tais como o historiador Leopold von
Ranke e o compositor Richard Wagner, circunscritos no mesmo quadro sócio-político
– a Confederação Germânica – criam interpretações singulares de seu mundo. Essa
singularidade interpretativa pode, portanto, ser interpretada à luz da formação de suas
trajetórias de vida: suas abordagens interpretativas, seus métodos singulares, seus
estilos e criações conceituais. Todos estes elementos passam a ser, portanto, relevantes
para a compreensão destes atores e de suas atuações.
Assim, comparativamente, acreditamos que estes autores demonstram a
variabilidade de mecanismos de interpretação política do nacionalismo para a
Unificação do Estado Alemão. Outros autores poderiam ser acionados para a
discussão: certamente o historiador Gustav Droysen e o compositor Robert Schumann
também debateram profundamente a questão – sendo citados, inclusive, no decorrer de
nosso texto. Assim, nossa escolha se fez mais pelos equívocos interpretativos
contemporâneos acerca do pensamento de Ranke – muitas vezes ainda lido com uma
característica quase positivista – e de Wagner – ainda vinculado a um ideal relido pelo
nacional-socialismo da década de 1930 – do que por qualquer outra razão.
Além deste fator, o equívoco interpretativo acerca do pensamento destes
personagens, podemos lembrar a significativa recepção destes autores em ambiente
político e popular: enquanto que outros historiadores se estabeleceram como
significativos nos ambientes acadêmicos, como Droysen e Burckhardt; e outros
compositores, na Germânia, no ambiente popular, como Schumann e Brahms; Ranke e
Wagner se aproximaram demasiadamente tanto da academia e da população quanto,
4
CHAUÍ, Marilena. Intelectual engajado: uma figura em extinção? In: NOVAES, Adauto. O silêncio
dos intelectuais. São Paul o: Companhia das Letras, 2006, p.28-29.
157
notadamente, dos governos reinantes5. Assim, a composição operística de Richard
Wagner e a narrativa historiográfica de Leopold von Ranke – além, é claro, das
análises políticas presentes em ambos, acabaram se tornando pontos de determinação e
reconhecimento social simbólico.
Logicamente também, conforme já demonstrado por uma gama de historiadores
teóricos especializados nesta metodologia comparativa 6, não é plenamente possível
colocar todos nossos atores, interpretações, conjunturas e estruturas no mesmo nível de
fala interpretativa. Uma vez que cada fenômeno se estabelece em formas materiais
divergentes e com propostas, muitas vezes, afastadas – porém este fator não anula o
comparativismo. O que passa a ser possível, portanto, é localizar a base de suas
leituras. Em nosso caso, comparando estes autores, localizar a interpretação do
fenômeno da Unificação Alemã.
Desta forma, o texto que se apresentou, buscou demonstrar uma possibilidade
comparativa entre as percepções variadas destes autores no que tange a unidade
nacional para a configuração de um Estado continentalmente forte, capaz de eliminar
as possíveis instabilidades e fragmentações internas. Um Estado que manifestasse
materialmente sua vontade de potência, já que dificilmente ocorreu uma política alemã
no transcorrer do século XIX sem a noção de Unificação Nacional 7.
Ranke e Wagner demonstram, assim, uma interação entre um passado-presente-
futuro. Explicamos: suas obras, historiográficas ou musicais, buscam no passado a
fundamentação de seus anseios presentes, algo como um espaço de experiência, um
passado no presente. Na mesma medida, tentam estabelecer possibilidades para o
5
BENTIVOGLIO, Júlio César. Cultura política e historiografia alemã no século XIX: a Escola Histórica
Prussiana e a Historische Zeitschrift. Revista de Teoria da História, v. 3, p. 20-58, 2010. ______. A
Historische Zeitschrift e a historiografia alemã do século XIX. História da Historiografia, v. 6, p. 81-
101, 2011. LARGE, David; WHITTALL, Arnold; FURNESS, Raymond; et. alli. A receptividade à obra
de Richard Wagner. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.
6
TOSH, John. A busca da história: objetivos, métodos e as tendências no estudo da história
moderna. Petrópolis: Vozes, 2011, BUSTAMANTE, R. M. da C. ; THEML, N. História comparada:
olhares plurais. Estudos Ibero-Americanos, Porto Alegre, v. 29, n. 2, p. 7-22, 2003. BARROS, José
D’Assunção. História Comparada: um novo modo de ver e fazer a História. Revista de História
Comparada. v.1, n.1, 2007. KOCKA, Jürgen. Comparision and Beyond [tradução de Maria Elisa da
Cunha Bustamante]. History and Theory. 42, p.39-44.
7
TEIXEIRA DA SILVA, Francisco Carlos. O Projeto Prussiano de Império Alemão. In: ______;
CABRAL, Ricardo Pereira; MUNHOZ, Sidnei J. Impérios na História. Rio de Janeiro : Elsevier, 2009,
p.223-234.
158
futuro germânico unificado, cada um a sua maneira, um horizonte de expectativas, um
futuro no presente, para utilizarmos a célebre interpretação de Reinhart Koselleck 8.
Este texto doutoral encontrou-se dividido em três capítulos. Os dois primeiros
demonstrando a localização social e intelectual destes autores, o que se fez necessário
para compreender seus posicionamentos; o terceiro, sua visão política da unificação
através de certas categorias. Para todos os capítulos, utilizamos, como obras centrais os
textos Povos e Estados9 de Leopold von Ranke e o trecho Política10 de Richard
Wagner. Outras obras, entretanto, foram, como se pôde observar, somando-se à
análise. Esta, por sua vez, atravessou a seguinte lógica narrativa:
Em nosso primeiro capítulo buscamos compreender a dinâmica das
movimentações intelectuais que corriam a Germânia no contexto, bem como suas
ambiguidades. Nestes termos, apresentamos o historicismo, enquanto possibilidade
historiográfica a qual Leopold von Ranke se vinculou e o romantismo, enquanto
manifestação artístico-musical de Richard Wagner. Mais que isso, buscamos
demonstrar como estas manifestações, mesmo inseridas nas discussões nacionalistas,
apresentam uma pluralidade interna que densifica sua compreensão. Assim, pensamos
na possibilidade do historicismo de caráter realista, tal qual o proposto por Ranke, em
comparação ao relativista, proposto por seus continuadores a partir de inovações
hermenêuticas; e no romantismo, em seu embate entre as possibilidades do
tradicionalismo e das inovações composicionais, ambas lidas como possíveis
descendências da obra de Ludwig van Beethoven.
Após a análise destas formas intelectuais de percepção, em nosso segundo
capítulo procuramos demonstrar como a criação de revistas específicas na área de
história e de música contribuiu para a divulgação das ideias de nossos personagens,
bem como ofertou-lhes a possibilidade de maior liberdade interpretativa da política.
Ainda pensando nesta liberdade, pensamos na sistematização de processos
metodológicos de trabalho erigidos de forma individual o que influenciou, diretamente,
tanto no ofício do historiador profissional quanto do compositor de óperas. Essa
metodologia individual se transformaria em uma das marcas dos estilos destes
8
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias
históricas. In: ______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro : Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, 305-328.
9
RANKE, Leopold von. Völker und Staaten in der neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen
Rentsch Verlag, 1945.
10
WAGNER, Richard; FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben). Richard Wagner: Werke, Schriften und
Briefe. Directmedia: Berlin, 2004.
159
personagens. Estilos estes configurados pelo pleno estabelecimento de conceitos novos
responsáveis, em certa medida, pela própria reafirmação intelectual destes atores.
Em nosso último capítulo, buscamos analisar a interpretação política da
revolução proposta por Ranke e Wagner. Para o primeiro a revolução ofereceria mais
riscos às necessidades e possibilidades de unificação do que vantagens, apesar de não
negar os questionamentos sociais que estabeleceriam o fenômeno. Para Wagner, o
movimento se faz inversamente: enquanto originalmente apoiou as manifestações
revoltosas de 1848, acabou se transformando em um reformista na medida em que se
aproximou das monarquias governantes da Confederação Germânica, notadamente a
da Baviera. Outro ponto importante passado neste capítulo é a interpretação que ambos
trazem aos personagens heroicizados: tanto Ranke quanto Wagner percebem a
necessidade de uma população guiada por um líder lúcido que lute em prol de todos e,
principalmente, em prol da unidade nacional. No final deste capítulo analisamos a
própria dinâmica de unificação do Estado alemão, percebendo as duas possibilidades
concorrentes: a Grande Alemanha defendida por Richard Wagner e a Pequena
Alemanha defendida por Leopold von Ranke. O projeto prussiano de Bismarck,
apoiado por Ranke, certamente se apresentou como o vencedor das disputas, que
muitas vezes levaram a beligerâncias, todavia, o projeto wagneriano deve ser
compreendido mais como uma possibilidade de ampliação cultural do que
exclusivamente uma política de Estado.
Autores que transitam entre similitudes e diferenças, Ranke e Wagner
identificaram tanto nas suas práticas intelectuais quanto na sociedade do momento uma
possibilidade de complementação de política nacionalista, utilizando, para tal, o
simbolismo da história, real ou criada, da narrativa, historiográfica ou musical,
adaptadas às necessidades culturais. Nestes autores, as produções acabaram afirmando
seu poder político na medida em que colaboraram para a emancipação e consolidação
de um Estado novo e nacionalmente estruturado. A modernidade ocidental acabou por
separar a racionalidade historiográfica e a racionalidade artística das possibilidades de
compreensão política. Na mesma medida em que ocorreu essa separação, o
relacionamento entre todas estas áreas passou a ser local sombrio, de difícil acesso
analítico. O que separa prática histórica da política, em Ranke; e prática musical da
política, em Wagner é também aquilo que as une: todas, historiografia, arte e política,
se apresentam, nestes autores, como modos de se fazer emergir o possível das
160
sociedades. Assim, nestes autores, a questão mais importante deixou de ser apenas a
qualidade interna da obra – sem negar, no entanto esta característica – e passou a ser
qual aparato intelectual poderia fundamentar com maior propriedade o nacionalismo
enquanto um sentimento de pertencimento a um grupo cultural estabelecido e em vias
de unificação territorial, como era o caso da Confederação Germânica da metade do
novecentos.
161
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183
ANEXOS
ANEXO A
185
cabe formular uma opinião baseada em motivos mais ou menos pessoais e, portanto
mesmo, subjetivos. Eu, pessoalmente, não penso que isso ocorrerá. Penso enxergar nos
povos da Europa tantos elementos de vida e aspirações tão completas de grandeza que,
ainda admitindo a possibilidade de que cheguem a decair algumas manifestações de
vida ou mesmo alguns dos povos europeus, não creio que seja possível a decadência
ou mesmo a ruína total da Europa em seu conjunto integral. Eu sou daqueles
indivíduos que acreditam que a mesma força entre as tendências conservadoras e
liberais, no mundo atual, encerra mais vida do que perigos. A única coisa que
devemos, efetivamente, pedir a Deus é que nos proteja e guarde de todas as revoluções
sociais.
Acerca do problema de Luís XVI ter podido evitar a revolução ocorrida na
França de sua época, existe um excelente livro de Froz, que estou seguro de que se
encontra na Biblioteca Real de Munique. É uma história dos últimos anos anteriores à
revolução e do desenvolvimento da primeira etapa desta1.
As observações possíveis sobre Frederico II são tão extensas e amplas, tão
dignas de aplauso, por um lado, e por outro, tão cheias de colocações prontas à
refutação, que vale a pena tomá-las como tema de sérias e densas considerações e não
de um juízo que se faça muito ligeiro, o qual tenderia a ser, necessariamente, um pouco
negativo.
A mim parece que é um princípio extraordinariamente perigoso o de que
alguém possa arrogar-se o direito a cometer uma injustiça em prejuízo de terceiros para
poder cumprir com uma missão imposta pela história universal. Não creio que isso se
diferencia grandemente daquela noção de que ‘os fins justificam os meios’ ou de que
‘tudo é licito ad majorem dei glorium’.
Até agora, nas nações ocidentais se tem mantido sempre o progresso espiritual,
desafiando inclusive os maiores obstáculos e as mais repelentes ingerências. Por que
não se segue sendo assim sucessivamente? A meta se distancia muito de ser alcançada
por agora, e o mais provável é que o percurso espiritual seja infinito 2.
1
O próprio historiador escreveria uma análise acerca da Revolução Francesa, como demonstramos em
nosso terceiro capítulo.
2
Neste sentido, o historiador prussiano acaba manifestando sua crença de evolução espiritual da Europa.
Indo em um sentido diverso, porém, do proposto por autores como Hegel: Ranke efetivamente pensa em
um progresso europeu com ideários cristãos, marca efetiva de sua religiosidade.
186
Escrevo a Vossa Majestade com a mesma liberdade que se tivesse o prazer de
estar sentado ou passeando com Vossa Majestade, e sei que minha palavras do mesmo
modo serão recebidas...
187
ANEXO B
Frederico não te escreve, reconheceria sua letra. Seu irmão se limita hoje,
domingo pela tarde, a escrever o que eu, seu pai, dita, já que meu secretário está
adoentado. Como em todos os domingos, te envio minhas saudações com todo o
carinho possível.
Muito me alegrou o cordial recebimento que me dispensou à correspondência.
Para apreciar este livro, faz falta uma compreensão interior que apenas pode ser
encontrada no sentimento. Esteja seguro de que não haveria te escrito se desejasse
aumentar sua opinião ou ter aplausos. Não é isso que proponho, entretanto. A ciência e
a exposição histórica são uma missão que apenas se pode comparar com as do
sacerdote, por mais terrena que sejam os temas sobre os quais se escreve. As correntes
de hoje se esforçam sempre em se impor ao passado e em interpretá-lo com seu
próprio sentido. A missão do historiador consiste em compreender e fazer com que os
outros compreendam o sentido de cada época por ela mesma. Tem que se esforçar, por
mais trabalhoso que isso seja, em captar, com toda imparcialidade, o objeto mesmo de
suas investigações, e nada além. Localizar, sobretudo, a ordem divina das coisas:
certamente é difícil de demonstrar, porém sempre que se intuir se deve fazer. Dentro
desta ordem divina, idêntica à sucessão dos tempos, ocupam seu posto os indivíduos
importantes: assim é como tem concebido os historiadores. O método histórico, que
apenas busca o autêntico e verdadeiro, entra assim em contato direto com o mais alto
dos problemas do gênero humano.
Vejo que pensa em fazer uma viagem, quando as coisas se acertarem, mas, para
onde? Não sei se realmente sentirá um impulso irresistível em viajar para a Inglaterra.
Se não for assim, te aconselharia que fosse conhecer os Santos Lugares do Oriente.
Nos primeiros anos de casados tivemos, sua mãe e eu, a ideia de fazer esta viagem. E
provavelmente teríamos chegado a realizá-la se sua mãe não tivesse engravidado e
188
tivesse piorado de saúde. Possuía eu, então, a intenção de escrever uma vida de Jesus
com sua coloração local, como o que tanto lugar ocupa na de Renan, mas em outro
sentido. Não sem sua fantasia. Essa fantasia que se esforça em captar o inverossímil
como verdade poética e religiosa. Não é que te aconselhe que você mantenha essa
meta, a qual provavelmente não haveria sido capaz de realizar, já que minha missão
não era, certamente, deste mundo. Porém, essa viagem te produziria, certamente, uma
grande satisfação e daria uma espécie de fundo local a teus sentimentos religiosos.
Ajudaria-te a compreender um pouco melhor o Evangelho. De regresso, passaria
algum tempo comigo, para se encaminhar, depois, para onde a Providência divina
levar.
[Esta missiva de Ranke a seu filho não foi datada com precisão, todavia, acredita-se,
fazer parte de uma série de cartas escritas no ano de 1873, de Berlim. Nesta aparece,
com claridade, o ideário de Ranke e a percepção que possuía da função do historiador.
Para a original da carta, ver: RANKE, Leopold von. Völker und Staaten in der
neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen Rentsch Verlag, 1945, p.509-510]
189
ANEXO C
São muitos aqueles que negam que os conselhos da história possam ou devam
ser levados em conta para organização dos estados. Já que, por acaso a história, como
se diz, cuja missão consiste em nos transmitir o conhecimento do passado, tem algo a
ver com melhoramento dos estados presentes? Não, a criação e a melhoria das
constituições dos estados pede uma ciência totalmente distinta. A história vem a
desculpar, em certo modo, os males já arraigados ao demonstrar suas origens, porem a
cura destes males deve ser buscada nos preceitos de uma nova ciência, nascida em
nossos dias: a política. A humanidade progride incessantemente e que o se deve
perguntar não é o que os outros fizeram em seu tempo, mas sim o que nós devemos
fazer hoje. Quem não se atreve a confiar em suas próprias forças, a trilhar novos
caminhos, ainda não pisados, até a conquista de coisas novas e melhores, acabará
vendo nas relações humanas a triste imagem de águas paradas ou de pântanos sujos, ao
invés de ver nelas a estampa alegre e otimista de um rio que corre.
Devemos reconhecer, de verdade, já que é inegável, que o recorrer a conselhos
da história para governar os estados apresenta grandes dificuldades não apenas pelas
razões que já citamos, mas sim principalmente porque a história jamais nos transmite
preceitos tão seguros, que ninguém possa duvidar de sua verdade. Por acaso não se
abriu caminho à mesma história esse afã de inovações? Houve e surgem todos os dias
escritores que apenas buscam e encontram na história aquilo que encaixa dentro de
suas próprias doutrinas políticas. Vemos refletir com não menos violência nos relatos e
nas indagações dos acontecimentos as mesmas discrepâncias de opiniões que afastam
os estados em parcialidade. Os historiadores focam em disputas sobre a natureza e o
caráter da idade média, sobre os usos e costumes primitivos das nações germânicas,
sobre as virtudes dos homens famosos da antiguidade, sobre as origens e o ponto de
190
partida do gênero humano. A história, distante de melhorar a política apenas deve ser
encontrada por esta.
O que devemos então pensar? Será verdade o que dizem alguns: que na ciência
humana apenas existe o que pode dar-se por absolutamente seguro e certo?
Conhecemos os acontecimentos antigos e sua história, ou não o conhecemos? Não é
dado chegar a penetrar com exatidão em sua natureza e em sua essência, ou estamos
condenados a ignorá-los por toda a eternidade?
Não é possível por acaso descobrir algum critério que nos sirva pra distinguir
os bons dos maus estados, a organização de Tarento da de Roma, para discernir entre a
virtude e o vício? Seria horrível, se assim fosse: o homem desceria ao reino animal e
tudo, em sua vida, permaneceria entregue ao capricho da fortuna. Não, ninguém pode
negar que a natureza e providência divina de consumo nos permitem alcançar as causas
da sorte e do azar e distinguir entre as leis boas e os costumes maus. Ninguém afirmará
que estamos condenados a uma cegueira e a um sombreamento da inteligência tão
grande e capaz de nos transformar totalmente incapazes de conhecer o que caracteriza
a nossa época e a distingue de outras.
Eu, ao menos, não consigo acreditar que ninguém que pense com precisão se
atreva a sustentar que o conhecimento do passado não sirva pra ser aplicado com
proveito no presente e no porvir, que não exista nenhuma estreita relação, nenhuma
afinidade entre a história e a política. Não é possível duvidar que existe. A única coisa
que se pode discutir é qual relação é essa. Talvez nos encontremos perante um
problema que não seja possível resolver, nos dias em que vivemos, sem se expor ao
perigo de tropeçar com os obstáculos da ignorância. Porem, não importa. Se não estou
muito equivocado, é tão necessário e tão útil, sua resolução, que não temo abordar,
apesar de todos os seus perigos. Examinemos então as relações de afinidades
existentes entre a história e a política e nos esforcemos em demonstrar quais são as
fronteiras entre essas duas ciências, seus pontos de contato e as diferenças que as
separam.
Partiremos, para isso, da história, por ser a parte mais conhecida das duas.
Começaremos afirmando que sua missão não consiste tanto em reunir feitos quanto em
compreendê-los e explicá-los. A história não é, como alguns pensam, obra exclusiva
da memória, mas sim um exercício que requer agudeza e claridade de inteligência. Não
colocará em dúvida quem perceba quão difícil é distinguir o verdadeiro do falso e
191
escolher entre muitas referências aquela que possa ser considerada a melhor, ou quem
conheça ainda aquela parte da crítica na qual se baseia a historiografia.
E, sem mais, devemos reconhecer que esta não é mais que uma parte da missão
do historiador, outra mais grandiosa ainda e incomparavelmente mais difícil, é a que
consiste em observar as causas do sucesso e suas premissas, assim como seus
resultados e efeitos, em diferenciar claramente os planos dos homens, como uns
fracassam e a habilidade e a sabedoria com que outros triunfam e se empoem, em
conhecer porque uns afundam e outros vencem, porque uns estados se fortalecem e uns
se acampam; em uma palavra, em compreender a fundo e com as mesmas minúcias as
causas ocultas dos acontecimentos e suas manifestações externas.
Isso é precisamente o que a história se propõe. Ocorre com a história
exatamente o mesmo que ocorre com as ciências da natureza, que não se contentam em
estudar cuidadosamente as formas do seres naturais, mas que aspira algo maior,
conhecer as leis eternas que regem o universo e as diversas partes que o formam
remontando a completude da natureza da qual tudo brota: por mais que a história se
esforce em demonstrar a sucessão dos acontecimentos com a maior claridade e
precisão possível, restituindo a cada um deles sua cor e sua forma primitiva, e ainda
conceda a isto o máximo valor, não se detém nisso, mas segue avançando até a
investigação dos mesmo começos, procurando penetrar nas mais profundas aspirações
da vida da humanidade.
Alguns crêem poder alçar tal vôo, porem se enganam e, em muitas vezes,
abraçam uma nuvem enquanto acreditam ter em seus braços a deusa Juno, nos
oferecem fórmulas vagas a título de verdade. Outros, ao invés, conscientes por um
pressentimento obscuro da precariedade de suas opiniões, vão refugiar-se nos campos
da filosofia ou da teologia e acoplam a estas doutrinas seus escritos históricos. Porem,
porque eles encontram nestes um fim proposto que não existe no mundo. Estes
historiadores não alcançam a meta do que é história, mas a meta existe. Não atingem
vitória, mas aparecerá um dia que, para dizer com as palavras de Horácio, retorne à
pátria empunhando com sentimento celestial o troféu conquistado em Elis. No mais,
estes marcharão e chegarão à meta, se não se equivocar, por um caminho muito
distinto do que aqueles seguiram.
Em efeito, como a história, por sua mesma natureza, se vê obrigada a rechaçar
tudo que seja invenção da fantasia ou sombras fantasmagóricas, para admitir apenas o
192
absoluto e certo, necessita tanto de mesura como de audácia do espírito, o qual deverá,
por uma parte, investigar o detalhe com o maior cuidado e procurando
conscientemente os erros, por outra parte, se dissipe na variedade multiforme das
coisas e perdas de vista a meta final, da qual os olhos não devem se afastar.
E, ainda que este método venha rigorosamente tratar de abarcar toda primeira
intenção, oferece o historiador, em cada lugar, prazer infinito. O que pode haver de
mais agradável e mais grato para o espírito humano do que penetrar em si mesmo, no
mais profundo segredo dos acontecimentos e observar neste ou em outro povo como se
colocam os fundamentos das coisas humanas, como nascem, crescem e prosperam as
forças da história? E não digamos, quando se procura pouco a pouco intuir com segura
confiança chegar a conhecer perfeitamente, graças à sagacidade do olhar, aguçada
força de ver, até onde marcha a humanidade em cada uma de suas épocas, o que aspira,
e como alcança a realidade. Não é isso, em certa maneira uma parte da sabedoria
divina? Nela, precisamente pretendemos penetrar com a ajuda da história, e essa
ambição é a que constitui o próprio norte das aspirações da ciência histórica. A
ninguém ocorreu se perguntar se isto é ou não útil. Basta saber que nenhuma outra
classe da sabedoria possa contribuir tanto como esta para a perfeição do espírito
humano.
Vejamos agora a que se refere à política. Não resta dúvida de que esta, seja
arte ou ciência, consiste na governabilidade dos estados, razão pela qual devemos falar
algo acerca dos mesmos. Nos estados se acusa por excelência, se não me engano, essa
continuidade da vida que atribuímos à espécie humana. Os homens morrem e as
épocas se sucedem umas após as outras; os estados, cuja duração de vida excede em
muito a dos indivíduos mortais, goza de uma dilatada e uniforme existência. Temos o
exemplo de Veneza. Desde que essa cidade foi fundada, a vemos perseverar pelo
mesmo caminho por mais de um milênio, desposar com o mar, intentar, ora por
inteligência, ora por violência, a conquista dos países limítrofes, criar um poder secreto
dentro do estado, favorecer o povo, oprimir a nobreza, crescer, fortalecer, florescer,
decair pouco a pouco e, por fim, desaparecer, de tal modo que quem repassa a história
de Neveza se imagina contemplando a mesma duração e sucessão maravilhosa de uma
vida humana através de suas diversas idades.
O historiador romano Floro distingue, habilidosamente, diferentes idades no
estado romano. Claro está que, com o tempo, tão os estados sucumbem e morrem; não
193
apenas aqueles que se vêem, obrigados a se submeter à lei e à soberania de um
vencedor, mas também, coisa mais surpreendente os que saem vencedores, e impõe
seu julgo a outros. Assim, o estado romano não pode manter sua velha fisionomia de
cidade-Estado nem sua estrutura própria desde que a cidade de Roma começou a
dominar e governar o mundo. Quer, em efeito, a natureza das coisas humanas que a
parte mais vigorosa, já saída vencedora ou obrigada a abandonar o campo, vencida, vá
se impondo pouco a pouco e acabe destruindo a peculiar fisionomia da parte menos
forte. E isto precisamente é o que faz que a vida não se destrua por completo, que siga
por caminhos distintos. Parece se extinguir, mas não é assim: o que ocorre é a
incorporação a uma comunidade mais perfeita, fundindo-se, engendrando deste modo
uma nova vida e uma série distinta de acontecimentos intimamente relacionados com a
vida anterior e retroativamente alimentados.
Agora, se nos perguntarmos o que é aquilo que deste modo dá vida a um
estado, vemos que ocorre aqui como no homem cuja vida se encerra em seu espírito e
em seu corpo, porem de tal modo que do espírito, como da parte mais importante
depende todo o resto. E ainda que não nos seja dado ver a luz, desnudar e apontar com
nomes adequados a alma e suas funções, a fonte e o rio da vida, podemos observar o
que aparece diante de nossos olhos e descobrir a luz, por meio do reflexo, o mistério
das causas mais remotas. O espírito não pode ser tocado com as mãos nem
contemplado com os olhos: deve-se conhecer seus efeitos e resultados.
Demasiadamente tolos teríamos que ser para acreditar que a Deus se pode ver com os
olhos da face humana. E a ninguém ocorrerá a dúvida de que existe e de que tudo
nasce e emana de sua existência.
Chegamos assim àquilo que propusemos demonstrar. Vemos como os estados e
os povos, já se movem dentro de marcos amplos ou estreitos, vivem e florescem
segundo seus próprios costumes, os quais não compartilham com outros povos, com
suas leis peculiares e com as suas instituições próprias e especiais. É evidente, então,
que cada um deles tem seu caráter próprio e específico, distinto dos outros, e uma vida
peculiar, produto de tudo o que esse povo possui e faz. E, sendo assim, não é difícil
compreender quais são o dever e a missão de quem governa tais estados.
Poderão governar bem um estado, cumprir bem com sua missão de
governantes, quem, preso ao prejuízo que certas opiniões tentadoras colocam em seu
espírito, tendem a considerar como antiquado e já inaplicável todo o anterior, o
194
desprezam, e tratam de deixá-lo a um lado por inútil, por sistema, ante às formas e leis
consagradas pela tradição para se deixar levar apenas de novo e tratam, em uma
palavra, de transformar um estado que não conhecem? Parece-me que tais governantes
não podem cumprir com seu dever que são mais aptos para destruir do que para
construir. Escutemos um homem muito experiente na vida política. "Todo povo – disse
Cícero –, toda comunidade instruída pelo povo, todo estado, que é coisa do povo
(república), tem, se quiser permanecer, que ser governado seguindo um determinado
plano". Assim se compreende como este critério coincide com o nosso. A vida, por lei
da natureza, teme sempre a morte e busca conservação. Por isso, temos que considerar
como o summum da sabedoria política que quem tem como missão gerar os cargos
públicos e governar esta ou aquela parte do estado cuidem deste, o conservem e
trabalhem todo dia para seu fortalecimento e perfeição. E o próprio Cícero nos diz, na
mesma passagem, o que para ele deve ocorrer: "este plano deve se remontar sempre à
causa fundamental a que deve seu nascimento o estado". Nesta causa fundamental
residem, em efeito, a fonte e origem dessa vida interior de que falamos. E assim como
o timoneiro de um barco deve conhecer a diferença que existe entre um navio de
guerra e um de carga, não deverá conduzir o timão de um estado ninguém que não
conheça a perfeição, deve conhecer também as condições do mar no qual navega e
toda natureza do estado que rege; quem a ignora, o melhor que pode fazer é soltar o
governo para que outro o faça. Se continuar em seu posto, apenas conseguirá, qualquer
que seja sua vontade, destruir as instituições pela quais sua conservação teve que zelar
e fazer irreparável no qual o estado vive. Mais ainda, e com isso cremos expressar
claramente nosso pensamento: para se desenvolver na política é necessário ser
compenetrado com a essência mesma do estado que se governa.
Até aqui, temos examinado separadamente as funções da história e da política,
as fronteiras que separam entre si estes campos de estudo. Feito isso, não será difícil
chegar a estabelecer as relações entre ambos, quais são suas afinitudes e diferenças.
É evidente que ambos têm um fundamento em comum. De fato, não existindo,
como não existe mais política do que a que se baseia no conhecimento perfeito e
minucioso do estado que se trata de governar - qual conhecimento seria mais
inconcebível em épocas anteriores - e sendo precisamente a história da ciência que
oferece ou, ao menos, aspira oferecer esse conhecimento, é evidente que exista entre
ambas as atividades, neste ponto, a mais estreita afinidade. Não pretendamos sustentar
195
que a política exija um perfeito conhecimento da história, já que a inteligência humana
se encontra dotada, as vezes, de um sentido de sagacidade que a permite penetrar na
natureza das coisas como que por uma inspiração divina. Não é tão pouco nosso
propósito preconizar o método especial de educação par aos homens que irão governar
os estados.
O que aqui fazemos é investigar a essência das coisas sem nos preocuparmos
de que uma cultura cuidadosamente adquirida ou uma espécie de intuição profética
possam ser caminhos mais adequados para atingir aquela altura a que nos referimos. E
assim, nos damos conta de que a missão da história consiste em colocar de maneira
manifesta e fazer compreender a natureza do estado à luz dos acontecimentos do
passado, e a da política em desenvolver e aperfeiçoar, depois de conhecer e
compreender bem. O conhecimento do passado é sempre imperfeito sem o do presente;
do mesmo modo que é impossível entender bem o presente sem conhecer o passado.
Uma e outra coisa se dão a mão, sem que nenhuma das duas possa existir ou pelo
menos chegar a ser perfeita, sem a outra.
Não creia que eu sou daqueles que pensam não poder haver nada novo sob o
sol. Sabemos por experiência que, por ser a natureza humana propensa ao erro, as
coisas humanas tendem facilmente a piorar e a melhorar. Vemos que, para que a vida
progrida e se mantenha constantemente em marcha, é necessário abordar diariamente
novas empresas e ter que se produzir, de vez em quando, tormentas e comoções. A
sabedoria política, no nosso modo de ver, não consiste tanto em manter as coisas tal e
como estão, mas sim em fazer que cresçam e marcham em diante. A humanidade se
distancia entretanto muito, de haver chegado à perfeição. E se o homem não seguir
aspirando chegar a esse mais alto ponto, poderíamos dizer que a história alcançou já
seu último limite e sua eterna meta final.
Tais são as afinidades e diferenças entre a história e a política, tal como nós a
concebemos. Ambas encerram um par ciência-arte. Como ciências, guardam entre si a
mais íntima relação, porém de tal modo que a uma versa melhor sobre o passado e à
outra recai perfeitamente sobre o presente e o futuro. Muito maiores são as diferenças
que as separam, consideradas enquanto artes. A história forma parte da literatura, pois
sua missão consiste em fazer ver de novo como ocorreram os sucessos e como eram os
homens do passado, guardando suas memórias para todos os tempos. A política, é em
todo e por todo ação, já que aspira manter os homens unidos por meio dos nexos do
196
Estado, ao preservar a paz entre eles mediante a sabedoria das leis, a uní-los entre si
por obra da obediência, em síntese, fazer com que se comportem bem e retamente,
tanto na vida pública, quanto na vida privada. Entre a história e a política ocorre quase
a mesma diferença que a filosofia teórica e a filosofia prática: a primeira recai sobre
escolas, sobre homens desinteressados; a segunda sobre a área pública e seus litígios.
Uma se melhor pratica à sombra, outra à luz do dia; aquela se contenta com conservar,
esta não apenas conserva, mas também cria.
Parece-me escutar vozes que me fazem, como objeção, que existem aspectos na
política que não tem relação com a história. Nesta se discute as leis naturais dos
Estados, não apenas o trato da riqueza natural, mas também o melhor modo de ganhar
e gastar dinheiro, a administração das cidades e da justiça, a elaboração e a aplicação
das leis. Nada mais distante de nosso ânimo que desdenhar de uma ciência como esta,
tão rica em verdade e em utilidade. Classificamos a história como uma ciência tão
importante para o Estado, como a medicina para o homem. Também a sociedade
humana tem, de certa maneira, seu corpo.
[Ranke escreveu este texto para explicar a complementação entre suas áreas
intelectuais: a história e a política. Este texto circulou, primeiramente, nos círculos
internos da monarquia prussiana (entre 1869 e 1873). Após este período, o texto
rankeano foi amplamente divulgado em periódicos acadêmicos, bem como em
instituições de ensino prussianas. Para a original deste texto, ver: RANKE, Leopold
von. Völker und Staaten in der neueren Geschichte. Erlenbach: Zürich: Eugen
Rentsch Verlag, 1945, p.509-513]
197
ANEXO D
A revolução
Richard Wagner
198
Vida nova em suas veias. Tudo o que existe deve cair: tal é a eterna lei da Natureza,
enquanto condição da Vida, e eu, a eterna destruidora, cumprirei a lei e moldarei a
sempre nova vida. Desde a raiz vou destruir a ordem das coisas que vivem, pois brotou
do pecado, sua flor é a miséria e seu fruto, o crime, mas a colheita está madura e eu
sou a ceifadora. Eu quero destruir cada ilusão da violência sobre os homens. Eu quero
destruir o domínio de um sobre o outro, dos mortos sobre os vivos, da matéria sobre o
espírito. Vou quebrar o poder dos poderosos, da lei e da propriedade. Que seja a
própria vontade o senhor dos homens, seu próprio desejo sua única lei, sua força seu
todo poder, porque a única santidade é a liberdade do homem e nada é maior que ele.
Anulando a fantasia que dá poder a um sobre milhões, que faz de milhões de
indivíduos, sujeitos da vontade de um, a doutrina de que um tem poder para abençoar
todos. O igual não pode dominar o igual, uma vez que não tem mais força que seus
iguais, e, como todos são iguais, vou destruir todos os governos de um sobre o outro.
Anulada seja a fantasia que dá à Morte poder sobre a Vida, ao Passado sobre o
Futuro. A lei é seu próprio direito, que compartilha a sua sorte e morre com eles, ela
não deve governar a Vida. A Vida é a lei em si. E, desde que a Lei é para os vivos, e
não para os mortos, e estais vivendo, nada é concebível sobre vós, vós sois a lei, a sua
livre e espontânea vontade é a lei única e maior, e eu vou destruir todo o domínio da
Morte sobre a Vida.
Anulada seja a fantaisia que faz do homem um escravo de seu trabalho, para a
propriedade. O maior bem humano é sua força moldadora, a fonte de onde nasce toda a
sua felicidade para sempre, e não na criação, no ato de criação em si, no exercício de
seu poder reside sua maior alegria verdadeira. O trabalho do homem é sem vida, e a
vida não deve vincular-se ao que é inanimado e, também, não deve se tornar escrava
para tal. Por isso destruir o fantasma que aparece, que para a força livre, que cria a
propriedade fora do homem e o transforma em um escravo de sua própria obra.
Olhem, desventurados, esses benditos campos que agora cruzam como
escravos, como estrangeiros. Devem vagar livres por eles, livres do julgo dos vivos,
livre das amarras dos mortos. O que a Natureza fez, o que os homens têm mobilizado e
transformado em um jardim frutífero pertence aos homens, aos necessitados, e
ninguém pode chegar e dizer: ‘a mim sozinho pertence tudo isto, os outros são
convidados mas eu os tolero desde que me paguem tributos. Me pertence o que a
natureza fez, o que o homem tem feito e as necessidades da vida”. Que seja posta de
199
lado tal mentira. Vejam as casas nas cidades, e tudo o que dá prazer ao homem, que no
passado foi tido como estranho. A mente a a força humana fez isso, e, por isso,
pertence aos homens, aos vivos. E um homem não pode chegar e dizer: ‘A mim
pertence tudo o que os homens trabalhadores fizeram. Eu sozinho tenho direito a tal, e
os outros utilizam o que e como eu quiser’. Destruída seja essa lei, com as outras, para
que a força do que os homens fazem pertença à humanidade para seu uso irrestrito,
como tudo na Terra.
Vou destruir a ordem existente das coisas, as partes que dividem a humanidade
em nações rivais, em poderosos e fracos, privilegiados e marginalizados, ricos e
pobres, pois isso faz os homens infelizes como um todo. Eu vou destruir a ordem das
coisas que transforma milhões em escravos de alguns, e estes alguns, escravos de seu
próprio poder e riqueza. Vou destruir a ordem das coisas que separa o prazer do
trabalho, que transforma o trabalho em fardo e o prazer em vício, que converte um
homem em miserável por excesso e outros por defeitos. Eu vou destruir a ordem das
coisas que desperdiça o poder do homem em serviço da matéria morta, que mantém a
metade da humanidade na inatividade ou no trabalho inútil, que força milhares a
entregarem sua robusta juventude à lucrativa ociosidade de soldado, de funcionário do
Estado, de especulador e de “fabricante de dinheiro” para a manutenção destas
depravadas condições, enquanto a outra metade tem que sustentar da vergonha com o
esforço excessivo de sua força e renúncia a todo desfrute da vida. Que seja destruído o
que pesa sobre vós e vos faz sofrer, e, das ruínas do mundo antigo, cresça um novo
instinto, com inimaginável felicidade! Nem ódio, nem rancor, inveja nem inimizade,
seja encontrada entre vós doravante. Como irmãos devem reconhecer todos que vivem,
e livres, livres em querer, livres em fazer, livres em desfrutar, devem descobrir o valor
da vida. Então, avante povos da Terra! Avante, vós enlutados, oprimidos e pobres! E
avante também os outros que se esforçam em vão para encobrir a desolação interior de
seus corações com o brilho vaidoso do poder e da riqueza! Avante, sigam meus passos,
pois não faço distinções entre os que me seguem. A partir de agora apenas existiram
sois povos: o que me segue e o que está contra mim. Ao primeiro mostrarei a
felicidade, o segundo eu destruirei, pois eu sou a Revolução, eu sou a vida sempre
nova, eu sou o único Deus, ao qual toda criatura testemunha, que se estende e dá vida e
felicidade a todos!”
200
E eis... as legiões nas colinas, sem voz elas caem aos seus pés e escutam em
transporte mudo, e, como o solo abrasado pelo sol absorve as refrescantes gotas de
água que a chuva traz, assim vós reconheceis em vosso coração endurecido pelo pranto
abrasador o som da tempestade que ruge, e nova vida flui por vossas veias. Mais e
mais tempestades nas asas da Revolução, os corações dos devotos à vida se abrem e a
Revolução penetra vitoriosa em seus cérebros, em seus ossos e em sua carne e os
inunda por completo. Em divino entusiasmo se elevam da terra, o pobre, o faminto, o
abatido pela miséria. Orgulhosa se eleva sua figura, seu rosto enobrecido irradia
entusiasmo, de seus olhos emana um brilho deslumbrante, e ao grito de “eu sou um ser
humano!”, que comove o céu, a Revolução encarna e Deus torna-se o Homem,
descendo ao vale e proclamando a todo o mundo o novo Evangelho da Felicidade.
201
ANEXO E
Wieland, o ferreiro1
Richard Wagner
Wieland o ferreiro, produzia seu trabalho com alegria, forjando astúcias para si e
armas afiadas. Certo dia, ao se banhar, viu uma virgem-cisne que vinha voando com
suas irmãs pelo ar e, despindo-se das vestes de cisne, mergulhou no mar. Inflamado de
repentino amor, ele correu para as águas mais profundas. Lutou e ganhou o amor da
mulher maravilhosa. O amor também quebrou seu orgulho no cuidadoso carinho de um
por outro, viviam em união feliz.
Ela deu a Wieland um anel: que ela nunca mais deveria receber de volta; por seu
grandioso amor por ele, tinha saudade de sua antiga liberdade, por sua passagem voada
para sua feliz ilha chamada de lar; e o anel dava-lhe esse poder – de voar. Então
Wieland forjou uma série de anéis iguais ao que sua mulher-cisne o deu e os pendurou
em sua casa: entre todos estes ela certamente não deveria reconhecer o seu próprio anel
entregue.
Ele certa vez regressou de uma viagem. Doeu! Sua casa estava destruída; sua
mulher havia ido embora, voando para longes terras!
Existia um rei, de nome Neiding, que muito tinha ouvido falar das habilidades de
Wieland; ele quis capturar o ferreiro, para que, daquele momento em diante, somente
trabalhasse para ele. Ele achou, ao menos, um pretexto razoavelmente válido para
tamanho ato de violência: os veios de ouro que Wieland utilizava para confeccionar
seus adornos pertenciam aos territórios de Neiding; desta forma, a arte de Wieland se
apresentava como um roubo ao rei e suas possessões. Invadiu a ferragem subitamente e
capturou o ferreiro, acorrentando-o e carregando-o consigo para seus caminhos.
Na corte de Neiding, Wieland foi obrigado a forjar para o Rei toda a sorte de
objetos, úteis, fortes e duráveis: arreios, ferramentas, armas e armaduras, utilizados pelo
rei para alargar seus próprios domínios. Mas desde o momento em que Neiding deveria
libertar as mãos do ferreiro para o seu trabalho, deveria cuidar para que, seu corpo livre
de movimentos, não escapasse: com isso, o Rei decidiu por cortar os pés do pobre
1
Parte final do texto A Obra de Arte do Futuro na qual o compositor compara o povo alemão a Wieland,
o ferreiro, personagem heróico-mitológico da literatura germânica.
202
Wieland. Assim manteve as mãos, fundamentais para o trabalho do ferreiro e não os
pés, insignificantes para seu labor.
Desta forma, o rico artista Wieland, o alegre e perfeito ferreiro, mantinha-se
agora sentado e paralisado, lamentando a sua desgraça, ao lado da forja na qual era
obrigado a trabalhar para aumentar as riquezas de seu senhor; mancava e encontrava-se
disforme quando se encontrava ereto! Ninguém poderia avaliar sua desgraça quando
este se recordava de sua liberdade, a sua arte, - a sua bela mulher! Tamnha irá contra
este rei que lançara contra ele toda a vergonha!
Pela sua forja, lançava seu desejo ao céu azul, o mesmo que o trouxe sua cisne-
mulher; Os ares deste céu eram os mesmos por onde ela caminhava em deleite pela
liberdade, enquanto ele respirava obrigatoriamente os vapores da forja que serviam ao
rei Neiding! O homem envergonhado e preso em si, jamais poderia voltar a encontrar
sua mulher outra vez!
Ai! Desde que ele foi condenado para sempre à miséria, desde que nunca mais
encontraria alegria ou mesmo uma flor de consolo a sim, - se ele ainda pode ganhar, ao
menos, uma única coisa: vingança, vingança em cima de Neiding, que trouxe para ele
esta tristeza sem fim para sua própria utilidade! Se fosse possível varrer essa miséria e
toda a sua ninhada sobre a terra! -
Esquemas terríveis de vingança cruzavam-lhe o pensamento; dia a dia
aumentando a sua miséria; e dia a dia crescia o desejo desesperado por vingança. – mas
como ele, o aleijado e coxo, poderia se preparar para a batalha que deveria terminar em
destroçar seu carrasco? Um venturoso passo a frente; e ele cairia desonrado ao chão,
para o deleite de seu inimigo!
“Tu, querida esposa distante! Se eu tivesse tuas asas! Se eu tivesse tuas asas para
atingir minha vingança, e ir embora desta vergonha pelo alto!” –
Então, o sentimento de privação baixou suas asas sobre o peito do torturado
Wieland, e soprou-lhe o entusiasmo sobre sua testa pensativa. Do sentimento de falta,
da terrível privação, todo poderoso, o artista agrilhoado aprendeu a moldar o que a
mente de ninguém havia concebido. Wieland descobriu; descobriu como forjar suas
asas. Asas para se lançar ao ar e vingar-se de seu algoz, asas, para voar através da
distância dos céus para a abençoada ilha de sua mulher! –
E ele fez: ele terminou a tarefa inspirada por seu desejo. Suportado pelo trabalho
de sua própria arte, ele voou no ar; fez chover suas flechas mortais no coração do rei
203
Neiding; - ele se balançou em um vôo bem-aventurado e glorioso até o local no qual
encontrou sua mulher. –
Ó povo único e glorioso! É isso, que você mesmo cantou esta canção. Tu és este
Wieland! Forja tuas asas, levante-te em vôo alto!
[Richard Wagner escreveu o texto Wieland como uma possível conclusão para a obra
Ópera e Drama, entre os anos de 1850 e 1851. O texto acabou se transformando em
bandeira pró-unificação do Estado nacional por apresentar o povo germânico como
Wieland, o herói que, mesmo humilhado, consegue alçar seu vôo mais alto. Para o
original do texto, ver: WAGNER, Richard. In: FRIEDRICH, Sven (Herausgegeben).
Richard Wagner: Werke, Schriften und Briefe. Directmedia: Berlin, 2004, sem
página]
204
ANEXO F
Richard Wagner
Personagens
ATO I IRENE
Bárbaros! Como se atrevem a cometer
Abertura este ultraje?
A garota mais linda de Roma será (aparece Colonna com seus homens)
minha, estou certo de que você
concorda comigo. COLONNA
É Orsini! Saquem as armas pelos
IRENE Colonna!
Socorro! Socorro! Oh, Deus!
ORSINI
NOBRES Ah, os capangas de Colonna! Saquem
Ah, que sequestro mais divertido na as armas pelos Orsini!
casa de um plebeu!
OS COLONNA
205
Viva os Colonna! POVO
Morra Colonna! Morra Orsini!
OS ORSINI
Viva os Orsini! (Chega Raimondo com um grupo de
pessoas)
COLONNA
Soltem esta mulher! RAIMONDO
Que ousadia! Desejam lutar! Eu, o
ORSINI Legado, ordeno que parem.
Não a soltarei!
COLONNA
(Lutam. Aparece Adriano com alguns Senhor cardeal, volte para a igreja e
capangas armados) deixe a rua livre para nós!
ADRIANO RAIMONDO
Por que você luta? Viva os Colonna! O Que insolência!
que vejo? Meu Deus! É Irene! Soltem-
na! Eu protegerei essa mulher! ORSINI
Vá rezar a missa! Fora daqui!
(Rapidamente abre caminho até Irene e
a liberta) RAIMONDO
Insolente! Eu sou o legado do Papa!
COLONNA
Parabéns, meu filho! É tua! COLONNA
Fora, seu grande charlatão!
ADRIANO
Não a toque! Meu sangue por ela! POVO
Escute os ímpios!
ORSINI
Que bela apresentação do herói NOBRES
virtuoso! Mas desta vez ela será minha! Isto não é da sua conta! Vá embora!
206
agora quer desonrar as nossas irmãs! O COLONNA
que ainda deve ser feito pelo assassino? Zombem!
Roma antiga, a rainha do mundo, foi
transformada em um covil de ladrões, ORSINI
ofenderam até mesmo a igreja. O trono Estou certo que vem de uma casa nobre.
de Pedro teve que fugir para longe até
Avignon; nenhum peregrino se atreve a COLONNA
caminhar por Roma para assistir a Completamente certo!
celebração popular da piedade, pois
foram impedidos. Deserta, pobre e NOBRES
derrotada, a orgulhosa Roma, o que te Honre o grande senhor, sem dúvida lhe
resta são os pobres, que te roubam. falta poder, mesmo que queira esse
Irrompem, os mesmo ladrões, em suas sabor!
tendas, golpeiam os homens, desonram
as mulheres. Olhe ao seu redor e veja BARONCELLI, CECCO, POVO
até onde os conduziu! Olhe aquele Ouve a zombaria daqueles insolentes?
templo, aquelas colunas dizem: É a Com um só golpe acabaremos com eles!
velha, livre, a grande Roma, que uma
vez dominou o mundo, cujos cidadãos RIENZI
eram chamados reis dos reis! Para trás! Lembre-se de seu juramento!
Assassinos, oh, me respondam, ainda há
algum romano? ORSINI
Bom, acabe com a brincadeira! A
POVO disputa terminou empatada, a
Rienzi! Rienzi! Viva Rienzi! resolveremos com as armas.
NOBRES COLONNA
Que audácia! Você ouviu? Não na rua em frente aos plebeus, ao
amanhecer, às portas da cidade.
ORSINI
E vocês? Arranquem a língua! ORSINI
Apresentarei-me com todo meu
COLONNA exército.
(Parando o ataque dos Nobres)
Deixem que fale! São palavras tolas! COLONNA
Os lanceiros na vanguarda, homem com
ORSINI homem! Para a batalha pelos Colonna!
Plebeu!
ORSINI
COLONNA Para a batalha pelos Orsini!
Venha amanhã ao meu palácio, senhor
notário, e receberá dinheiro por seu belo NOBRES
e estudado discurso! Para a batalha, pelos Colonna / pelos
Orsini!
NOBRES
Ha, ha! Zombem de ti! (Se distanciam os nobres com um
grande estrondo)
ORSINI
Zombem! RIENZI
207
Por Roma! Se vão às portas da cidade; Juramos obedecer fielmente e tão logo,
pois bem, eu as fecharei! Roma será livre novamente! Bem-
vindos ao grande dia em que
RAIMONDO vingaremos nossa vergonha!
Mas quando levará a sério, Rienzi, e
romperá com o poderoso orgulho? (todos se dispersam menos Adriano,
Rienzi e Irene)
BARONCELLI
Rienzi, quando chegará o dia em que Segunda Cena
será saudado e aclamado?
RIENZI
CECCO (a Irene)
Quando virá a paz, a lei e a proteção Oh irmã, diga! O que te aconteceu, o
ante qualquer insolência? que lhe fizeram esses desalmados?
POVO IRENE
Rienzi, vê, somos fiéis! Oh romano! Estou a salvo. E foi ele quem me
Quando nos libertará? libertou de suas mãos.
RIENZI RIENZI
(a Raimondo) Você, Adriano! Como um Colonna
Senhor cardeal, reflita sobre o que pede! protege uma jovem da desonra?
Posso confiar sempre na Santa Igreja?
ADRIANO
RAIMONDO Meu sangue, minha vida pelos
Tenha sempre presente ao final e a todo inocentes! Mas Rienzi, não me
tempo em que confiar será abençoado! conhece? Quem antes me chamou de
ladrão?
RIENZI
Bem, então, que assim seja! Os nobres RIENZI
logo abandonarão a cidade! Chegou a O que você faz aqui, Adriano? Não irá
hora! Amigos, voltem tranquilos a suas lutar pelos Colonna?
casas e comecem a rezar por sua
liberdade! Mas quando ouvirem o ADRIANO
ressoar da trombeta, em tons sustenidos, Ai de mim, porque compreendo suas
então, acordem, rapidamente, pois eu palavras e sei o que escondes, pois
anunciarei a liberdade dos filhos de posso sentir quem é. Entretanto, não
Roma! Então orgulhosos, sem violência, quero ser seu inimigo! O que você
dirão a todos que são romanos! Bem- propõe? Vejo seu ímpeto, por que
vindos ao dia em que serão vingados de precisa de violência?
sua vergonha!
RIENZI
RAIMONDO Pois bem, para tornar Roma grande e
Eu participarei desta jornada, santa e livre vou acordá-la de seu sono; todo
digna de todas as bênçãos! Bem-vindos aquele que você vê no chão,
ao grande dia em que vingaremos nossa transformarei em livre cidadão de
vergonha! Roma.
208
Que atroz, por meio de nosso sangue! tanta alegria, desaparece toda a dor!
Rienzi, não fizemos nada de errado! Com o supremo laço do amor meu
coração tende a ti, na terra livre dos
(Queria se afastar, mas seu olhar se romanos me saúdam a felicidade e o
deteve em Irene) amor!
RIENZI IRENE
Adriano é um dos meus, é romano! Herói da minha honra, da minha vida,
eu confio em ti, meu bem maior?
ADRIANO
Um romano? Deixe-me ser romano! ADRIANO
Bem sabes que sou um Colonna, e não
IRENE foge de mim, de toda minha família,
Ainda bate em seu peito um livre como se fosse uma maldição para ti e
coração romano. Diante do prazer e de teu irmão?
209
IRENE (Todos os morados deixam suas casas
Oh, por que você menciona sua família? para completar a cena)
Ter medo de você, do meu salvador?
Penso naqueles orgulhosos que não POVO
perdoam aquele que salvou da desonra Bem-vindos, sejam bem-vindos ao
uma menina do povo. grande dia! A hora se aproxima! Já
bastam de ultrajes!
ADRIANO
Oh, não me lembre agora da miséria (No interior de São João de Latrão, é
com a qual Roma nos ameaça! Teu ouvido o som do órgão. A multidão se
irmão, que espírito! Mas, infelizmente ajoelha)
vejo que perecerá! O mesmo povo o
trairá, o nobre o açoitará. E ti, Irene, CORO LATERANENSE
qual será seu destino? Mas, infelizmente Acordem os que dormem aqui e lá e
tua desgraça será minha libertação. E escutem as boas novas. A estrela de
todo o impedimento desaparecerá! Por Roma, apagada pelo ultraje adquire, do
você, minha vida e meus bens! céu, uma nova luz. Veja como
resplandece, é igual ao sol, irrompe
IRENE triunfante na posteridade distante. A luz
E se eu for feliz? resplandecente marca o enfrentamento
da angústia na noite, a luz da liberdade
ADRIANO ascende para o dia de júbilo!
Oh, cale-se! Estremeço em sua
felicidade! Viriam a noite e a morte e eu (As portas da igreja se abrem e aparece
seria eternamente seu! Rienzi totalmente armado)
IRENE RIENZI
Que som é esse? A liberdade de Roma tem de ser a lei a
que devem se submeter todos os
ADRIANO romanos. Serão castigados duramente, a
Horror! violência e o roubo, e serão inimigos de
Roma, todos os ladrões. Que
(A trombeta é ouvida ainda mais perto) permaneçam fechados, como estão
agora, os altos portões de Roma. Sejam
O que significa isso? Não é uma bem-vindos que tragam a paz, que
chamada de guerra dos Colonna. jurem obediência à lei. Os inimigos
encontrarão nosso ódio, destruída será a
Quarta Cena horda assassina, para que o peregrino
210
caminhe alegre e livre e o pastor
custodie seu rebanho! Juro, romanos
livres, está aliança. ATO II
POVO
Libertador, salvador, herói supremo! Primeira Cena
Rienzi, escute nosso juramento!
Juramos-te que Roma será tão grande e (Grande sala do Capitólio)
livre como era antes. Da opressão e da
tirania a protegeremos até nossa última MENSAGEIROS DA PAZ
gota de sangue! Juramos morte e Romanos, escutem a mensagem
destruição ao mal que atente contra a agradável da paz! Ao santo solo de
honra de Roma! Ressurge um novo Roma conduzem alegremente todos os
povo, tão grande e augusto quanto os caminhos! Nos sombrosos barrancos
seus antepassados! rochosos penetram os raios dourados do
sol. Nas seguras baias do mar são içadas
CECCO velas brancas. Para que a paz tenha
Romanos, falem agora que são livres! vindo e que tenha alcançado a luz da
Quem foi que tornou isto possível? liberdade. Alegrai-vos, vales!
Quem foi aquele que nos ensinou o que Regozijai-vos, montanhas! Alegrai-vos,
é Roma agora e o que era antes? Ele nos montanhas! Regozijai-vos, vales!
constituiu em um povo, por isso
escutem-me e concordem comigo: Que RIENZI
há um povo e um rei: Ele! Você, mensageiro da paz, cumpriu sua
missão? Caminhou por toda a pátria dos
POVO romanos levando-lhes a paz e as
Viva Rienzi! O Rei dos romanos! Viva! bênçãos?
211
RIENZI ORSINI
Ide, mensageiros da paz, caminhem por Colonna, tem ouvido essas palavras
todas as ruas de Roma levando sua impertinentes? Estamos condenados a
mensagem a todos os romanos! suportar tal ultraje?
212
Quatrocentos lanceiros trarei comigo. COLONNA
Ocuparemos rapidamente o Capitólio e (para Adriano)
Roma nos pertencerá novamente. Sabe que hoje neste lugar morrerá o
Tribuno em nossas mãos. Agora você
ORSINI, NOBRES sabe! Saia! Delate-me, eu, seu pai!
Assim seja!
ADRIANO
ADRIANO Que horror! Imprudente! Ouça a ordem
Assassinos! Falem, o que propõem? O suprema da honra! Escute o lamento de
que pretendem? seu filho! Contemple com esta
necessidade mortal. A dúvida me
ORSINI oprime! Fique, meu pai! Olhe!
Colonna, diga-me, estamos traindo? Contemple minha angustia, escute
minha súplica! Seja clemente! Tenha
COLONNA misericórdia de mim!
Quem é você? É o meu filho? Ah, ou é
quem me trai? ORSINI, NOBRES
Por consequência! Temos jurado matá-
ADRIANO lo! Cumpriremos para vingar o ultraje!
O filho de um pai cavaleiro, que amou a Nesta sala, tingida em vermelho sangue,
honra até sua velhice, contrário a toda deve acabar a vida do plebeu! Vamos,
má ação, inimigo de Orsini e sua gente. não escute!
ORSINI (sai.)
Ouça o traidor...! Então você, Colonna,
não soube educar seu filho? Terceira Cena
213
(Entra o cortejo dos senadores e o povo
romano) (movimentos convulsivos entre os
legados da Boêmia e Baviera)
POVO
Ressoam sons festivos! Entoam cantos ORSINI
de jubilo! A ele honram os cânticos, (para Colonna)
porque obteve nossa liberdade! Insolente! Está louco?
RIENZI Introdução
E Deus me move para ir ainda mais
longe! Em nome do povo de Roma e em (Desfile de soldados vestidos como
virtude do poder a mim concedido, legionários romanos)
gostaria de instar os príncipes alemães,
antes de ser eleito um novo imperador, Dança Guerreira
que ofereçam aos romanos o direito de
eleger seu próprio rei. Roma elegerá em Luta de Gladiadores
breve, pois Roma é livre e prosperará
eternamente! Entrada das Virgens
214
Quem nega? Sua hora também se
Dança Solene aproxima!
RIENZI ADRIANO
(Aos senadores) Ah, não! Repense, tribuno, eu te
Viram, senhores, o crime; tudo advirto, eu traí meu pai! Transformei-
aconteceu diante de vossos olhos. me num assassino?
BARONCELLI RIENZI
Mais ainda! Os lanceiros dos Colonna Pense que é um romano e não o filho de
derrubaram os portões da cidade e um grande traidor!
tentam agora, com toda pressa, tomar o
Capitólio que mandou proteger ADRIANO
previamente. Quer sacrificar laços naturais para que
resplandeça a liberdade? Oh, maldita
RIENZI seja, maldito seja tu, tribuno!
Nobres, irão negar?
RIENZI
COLONNA
215
Louco! Não foi ferida criminalmente a Morte aos nobres! Morte aos traidores!
natureza, mas sim o próprio Deus! Que a eles chegue a morte! Que
Perjúrio e morte! Morra Colonna! morram!
ADRIANO RIENZI
Ah, como se atreve, servo sangrento da (ao povo)
liberdade! Entrega-me o sangue de Ouçam-me! Os nobres se conjuraram
minha família para vingá-la! para me matar...
RIENZI POVO
Desgraçado! Por que me ameaça? Morram por isso!
MONGES CECCO
Misereat dominum vestrorum Tribuno, está delirando!
peccatorum!
POVO
ADRIANO Nunca, Rienzi! Morte aos traidores!
Horror! Que canto mais lúgubre! Que morram!
POVO RIENZI
Morte aos traidores! Romanos, essa ação os fará grandes e
livres! Conservem a paz! Evitem o
RIENZI sangue! Sejam clementes, vos suplica o
Ouve esse grito? Ele diz a mim. Oh, tribuno!
minha graça se tornaria um crime!
POVO
POVO A você, a nosso salvador e libertador,
Morte aos traidores! ameaçaram de morte por suas próprias
mãos!
ADRIANO, IRENE
(ajoelham-se aos pés de Rienzi) RIENZI
Aos teus pés suplicamos: Se piedoso, Perdoai-os e fazei com que novamente
salva ao meu/seu pai! jurem a lei. Que não a quebrarão
jamais! Nobres, podem jurar?
RIENZI
Pois bem, veja a decisão de Rienzi! COLONNA, ORSINI, NOBRES
Juramos!
POVO
216
CECCO BARONCELLI, CECCO
Arrepender-se-á! Novamente juram lealdade esta raça
orgulhosa de ladrões! Quem confia em
RIENZI sua fidelidade? Só nos convencerá seu
Deixe que a graça da luz celestial sangue!
penetre de novo no coração! Quem os
perdoa, os promete fidelidade e sente COLONNA, ORSINI, NOBRES
também a aflição de uma dor amarga! Ah, esta graça ultrajante oprime meu
Mas se pela terceira vez descumprirem orgulhoso coração! Logo chegará o dia
este juramento, nunca se perdoará aos em que vingará está afronta sangrando!
maus e serão amaldiçoados para
sempre! POVO
Rienzi, que seja louvado o teu nome e
ADRIANO, IRENE para sempre reverenciado: te adornem
Como o sol que penetra através das com coroas de louros. Bendita seja sua
nuvens, assim a graça dilui todo linhagem. Sempre que existir Roma, até
padecimento. Sim, a doçura da luz o fim do mundo, jamais será esquecido
celestial penetra abençoando seu seu nome. Herói supremo da paz!
coração arrependido!
RIENZI BARONCELLI
Nobres que este povo perdoou, sejam Romanos, viram como temos sido
livres e os melhores cidadãos de Roma! enganados! Os detratores da paz
fugiram!
ADRIANO, IRENE
Rienzi, que seja louvado o teu nome e POVO
para sempre reverenciado: adornem-te Onde está Rienzi?
com coroas de louros. Bendita seja sua
linhagem. Sempre que existir Roma, até BARONCELLI
o fim do mundo, jamais será esquecido Estamos à mercê de sua traição.
seu nome. Herói supremo da paz! Teríamos acabado com eles em um só
golpe. Ele os concedeu a graça e os
217
deixou em liberdade! Que estupidez! Isso esteve contigo, você poderia ter
Quem paga agora por sua fidelidade? feito quando não era preciso o nosso
sangue.
POVO
Rienzi, busquem o Tribuno! POVO
Quer castigá-los com nosso sangue?
CECCO
Tudo tem sido um sonho! Os nobres se RIENZI
armaram e se aproximam da cidade Temos uma lei perfeita, a graça os
ameaçadoramente! Ah, que compaixão fazem mais puníveis, destruiremos
mais inoportuna! Nós a pagaremos com agora os ímpios e todo o mundo dirá
nosso sangue. que somos justos!
218
ao meu? Que me ajudará a derrotar, o grande vitória dos romanos livres!
obscuro poder? Rienzi, que sorte trouxe Assim ressoa no hino de guerra que será
sobre esta cabeça miserável! Onde volto o terror dos inimigos! Santo Spirito
meus passos equivocados? Onde cavaliere!
depositarei minha espada, adorno do
cavaleiro? A voltarei contra você, irmão CORO
de Irene? A volto contra meu pai? De À frente, romanos, à frente, pelas rezas
seu sangue provém minha vida, se e os altares! Maldição ao traidor da
fundamenta nela minha condição de honra dos romanos! Que nunca na terra
cavaleiro: perdida está toda esperança, seja perdoado seu ultraje, morte a sua
Jamais adornarão minha cabeça nem alma, não há Deus para ele. Ressoem as
felicidade, nem fama. Profunda aflição trombetas, retumbem os tambores
me aflige, apenas reluziu minha estrela anunciando a vitória dos romanos, seus
nos primeiros fulgores da sua juventude. cavalos relincham, suas espadas
O amor mais bonito brilha apenas no ressoam com força. Hoje é o dia que
coração. Onde estou? Onde estava? O contemplarão vitórias! Tremulam
sino, Deus, será muito tarde! Eles bandeiras, reluzem lanças!
começaram? Fugirei com meu pai!
Talvez a reconciliação, fará feliz seu RIENZI, SACERDOTES, MONGES
filho! Deve me ouvir, pois desejo Santo Spirito cavaliere!
alegremente abraçar seus joelhos! O
tribuno também será benevolente; quero TODOS
trocar por paz o ódio ardente! Santo Spirito cavaliere!
RIENZI RIENZI
É chegado o dia, se aproxima a hora de Infeliz menino, não foste tu que moveu
purgar milhares de afrontas! aquela clemência que faz correr agora o
Contemplar a queda dos bárbaros e a
219
sangue romano? Cale-se! A fidelidade é
estranha a esses ímpios! ADRIANO
Adeus Irene! Devo partir.
ADRIANO Misericordiosa é a espada do pai!
Tribuno, reflita sobre o que fará! Não
derrame mais sangue e me envie! Tome IRENE
minha vida como um presente pela (segurando-o)
fidelidade eterna desta nova aliança! Infeliz! Permaneça aqui! Não rasgue
seus sentimentos!
RIENZI
Romanos, à frente! Não o escuto! ADRIANO
Exigem batalha, então... para a batalha! Deixe-me partir! A morte me chama!
Irene, oh, seus mesmos abraços... Devo
ADRIANO partir, a morte me chama!
De joelhos eu te juro: Ainda há tempo!
IRENE
RIENZI Infiel, não tem compaixão com sua
Antes que novamente me comova terá miséria, com a de Irene? Não te tirarei
de afundar o mundo! dos meus braços, Deus mesmo me exige
este dever!
ADRIANO
Rienzi, veja, aqui estou. Se quer (à distância é ouvido o rugido da
vingança, tome minha cabeça! batalha)
RIENZI ADRIANO
Menino delirante! Levante-se e deixe Ouve? É o rugido da morte! Rienzi
que o destino trace seu caminho! extermina toda minha família.
220
IRENE MULHERES, SACERDOTES,
Veja, abraçando teu pescoço, te entrego MONGES
minha vida! Bem-vindos, vitoriosos filhos de Roma!
Saúdo a vós, glória a vossas armas!
ADRIANO Viva, espalhem flores! Ressoam sons
Dupla pena: de morte e de amor! Oh, jubilosos por vós e seu heroísmo!
céus, ponha fim ao meu sofrimento!
RIENZI
(Irene faz com que Adriano se ajoelhe Viva Roma! Seu inimigo foi vencido,
com ela) destruído está o exército inimigo.
221
inimigo ainda mais cruel que fora POVO
Tarquino em sua época! Morte, eterna Estava encapuzado, não o
para ele! Que não tenha descanso jamais reconhecemos.
na terra sagrada! Mas os outros se
alegrem! Ressoem todos os sinos! BARONCELLI
Toquem as trombetas! A vitória que Sabem que os legados germânicos
conquistamos não é inferior à façanha abandonaram Roma para sempre?
heróica de Bruto. Vamos em triunfo ao
Capitólio! Adornaremos a frente com POVO
louros! Tanto odeia Roma o novo imperador?
222
E ele prometeu proteger a Igreja quando Escutem! Indigno é seu poder, o tribuno
chegar ao poder. os traiu. Romanos, estejam alerta! O
imperador ameaça!
CECCO
E o que disse o Papa em sua morte? BARONCELLI, CECCO, POVO
Ah, o traidor a quem servimos, cuja
BARONCELLI ganância entregamos nosso sangue, nos
Isso é o de menos! Mas o que lança à destruição! Vingança!
exclamaram quando seus irmãos
morreram? ADRIANO
Sim, Vingança! Eu mesmo a realizarei!
POVO
Horrível perda de sangue! BARONCELLI, CECCO, POVO
Ah! Vingança! Que pague o mau com
BARONCELLI sua morte!
Crê que foi a clemência de Rienzi que o
enviou a graça? Eu vejo claramente, foi CECCO
uma traição. Mas olhe, amanhece. Decidam:
lançamo-nos em insurreição geral?
POVO
Traição? Como prová-la? BARONCELLI
O tribuno busca com a pompa da festa
BARONCELLI calar nossa miséria. Celebrará hoje um
Buscava a união com os nobres, bem solene Te Deum, em ação de graças pela
sabe que Irene ama o filho de Colonna. sangrenta vitória.
Pois bem, como o perdoou esperava que
Colonna permitisse essa união! ADRIANO
Irei à festa e hoje mesmo o castigarei!
CECCO, POVO
E por isso foi derramado nosso sangue? BARONCELLI, CECCO, POVO
Ai dele, se provar que isso é verdade! Que leve o feito a vista de todos!
Apresente-nos testemunhas, Baroncelli!
(Quando os conspiradores se propõem
ADRIANO a partir, aparece Raimondo com um
Sou testemunhas de que diz a verdade! cortejo de sacerdotes que se dirigem à
igreja)
CECCO, POVOO
E quem é você? BARONCELLI
Veja, um cortejo!
ADRIANO
(Descobre-se) POVO
O filho de Colonna! Devo lembrá-lo O cardeal!
quando ameaçou me amaldiçoar até a
morte? Este braço não descansará até CECCO
que chegue seu destino! Eu sou o filho Como retornou?
de Colonna!
BARONCELLI
(Se mistura entre eles) Oficiará ele mesmo o Te Deum?
POVO
223
A Igreja está a favor de Rienzi! Venceram, não me faz crer que
desaparecerá a glória que a vitória os
CECCO concede! Confiem firmemente em mim,
Não poderemos fazer nada, a Igreja o o tribuno! Deus, até agora me guiou.
protege com todo seu poder! Deus está comigo. Ele nunca me
abandonará.
ADRIANO
Tão logo desaparecerá, miserável, vossa OS CONJURADOS
ira é justa? Nos degraus do altar (se afastam respeitosamente e deixam
sucumbirá pelo meu braço. passar o cortejo)
Longa vida ao tribuno!
CECCO
O cortejo se aproxima, unam-se a mim! ADRIANO
Tranquilos, esperemos para ver o que (para si)
acontece! Ah, escravos covardes! Devo ir só...?
Devo ir só à frente de Irene...?
Segunda Cena
SACERDOTES. EM SÃO JOÃO DE
(uma solene comitiva aparece, LATRÃO
dirigindo-se até a igreja. Aparece Vae, vae tibi maledicto!
Rienzi em traje de gala levando pela Jam te justus ense stricto
mão Irene) vindex manet angelus.
RIENZI RIENZI
(aos conjurados) Que horror! Que tipo de Te Deum é
Não participarão da festa? Consideram esse?
que a vitória não é digna de
agradecimento? SACERDOTES. EM SÃO JOÃO DE
LATRÃO
ADRIANO Vae, spem nullam maledictus
Oh, Deus! Irene está a seu lado! Ele foveat. Genennae rictus
protege um anjo. Como poder fazer jamjam hiscit flammens!
isto?
POVO
RIENZI Estes cânticos nos enchem de medo!
Como! Por acaso perdera o valor que
demonstrou quando viu soltos seus (Rienzi se recupera da surpresa e faz
irmãos? Não haviam sido aniquilados um sinal para que o cortejo se ponha
aqueles que então, quando viviam em movimento, novamente, até a igreja.
felizes, golpearam friamente vossos pais Quando Rienzi alcança a metade da
e filhos e desonraram suas mulheres? escadaria, aparece no grande portão
Oh, que desanimado era o motivo para Raimondo, rodeado de sacerdotes e
condenar à morte os romanos! Mas monges)
vocês os aniquilaram por sua honra e
fama, por sua santa liberdade! RAIMONDO
Para trás! A Igreja só acolhe aos puros!
(Os conjurados estão cheios de Você está excomungado e também os
vergonha e confusos; ninguém se atreve que a ti são fiéis!
a levantar o olhar)
(todos correm horrorizados de Rienzi)
224
Louca! Perece com ele!
POVO
Afastem-se! Está maldito! RIENZI
(junto a Irene, permanecendo
(Raimondo e os religiosos desaparecem abraçados)
no interior do templo. As portas se Irene, tu? Logo existe Roma!
fecham rapidamente, sobre elas se pode
ler a bula de excomunhão. Rienzi MONGES
permanece aturdido, só Irene está a seu (do interior do templo)
lado. Toda a cena se esvaziou. Adriano Vae, vae tibi maledicto!
é o único que não abandonou seu lugar) Jam te justus ense stricto
vindex manet angelus.
MONGES
(do interior da igreja) QUINTO ATO
Vae, vae tibi maledicto!
Jam te justus ense stricto Introdução Orquestral
vindex manet angelus.
Vae, spem nullam maledictus (Em uma sala no Capitólio)
foveat, Gehennae rictus
jamjam hiscit flammeus! Primeira Cena
225
RIENZI
RIENZI Compreende minha dor, agora que devo
A Igreja me abandonou, por cuja honra renunciar a esse amor!
eu comecei minha jornada. Também me
abandonou o povo, a quem levantei por IRENE
teu nome. Abandona-me aquele amigo Rienzi, oh, meu grande irmão, olhe em
que me proporcionou tanta felicidade, meus olhos sem lágrimas, veja meu
mas só duas coisas me permanecem profundo pesar, capta o que este
eternamente fiéis: O céu e minha irmã! coração prega e diga-me: Roma foi
infiel a você?
IRENE
Meu irmão, sim, ainda recordo dos RIENZI
ensinamentos que me disse. Irene, infelizmente, tua fidelidade me
Transformou-me em uma romana! parte o coração. O que vai fazer? Eu
Então olhe, se tenho seguido fielmente estou excomungado; excomungada
os ensinamentos! Jamais renunciarei ser estará a meu lado, e também minha
romana, seja isso o preço da felicidade, obra. Pressinto que tudo acabará logo!
da vida ou do amor! Diga-me, Rienzi, Eu sou a vítima. Não pensa em
Tenho sido forte? Adriano? Ele só odeia a mim e se
sentirá satisfeito quando eu perecer.
RIENZI Fique com ele!
Irene, minha irmã e heroína!
IRENE
IRENE Rienzi! O que eu ouço? Assim fala com
Sabes o que significa renunciar o amor? sua irmã?
Oh, tu que nunca amou!
RIENZI
RIENZI Já não existe Roma, você é uma mulher!
Em verdade eu também já amei! Oh,
Irene! Não conhece meu amor? Amei IRENE
ardentemente a minha suprema noiva Sou a última romana!
desde que pude pensar e sentir, desde
que pude captar sua grandeza refletida RIENZI
na magnificência de suas ruínas. Amei Não aumente minha dor!
com dor a minha excelsa noiva, porque
a vi profundamente humilhada, tratada IRENE
com deformada vergonha, maltratada, A irmã de Rienzi combate até a morte!
desonrada, ultrajada e burlada! Ah, sua Matem-me...! Jamais te abandonarei!
contemplação inflamava minha ira!
Infelizmente, sua miséria me outorgava RIENZI
a fortaleza do meu amor! A ti consagrei Venha ao meu peito, virgem orgulhosa!
por inteiro minha vida, minha juventude
e minha virilidade. Então quis ver a AMBOS
minha excelsa noiva, coroada como Em nossa fiel união neste peito casto
rainha do mundo... Pois, sabes que vive Roma até agora em que se torna
minha noiva se chama Roma! consciente de sua grandeza. Veja nossos
olhos firmes e decide se Roma pereceu.
IRENE Com o nosso último suspiro Deus se
Noiva infiel! Eu a desprezo! dirige a seu objetivo.
226
RIENZI o que aqui se encontra está amaldiçoado
Seja! Uma vez mais pegarei em armas, e a morte do assassino será um serviço.
uma vez mais ressoará o chamado que Em minha mão se agita o raio que
desperta Roma de seu sono! aniquilará seu irmão; ele morrerá por
minhas mãos. Você é minha! Diga-me,
(Rienzi sai e entra Adriano) sou fiel? Estou prostrado a teus pés,
contemple meu amor, minha fidelidade!
Terceira Cena
IRENE
(começa a escurecer. Se ouve o (Afastando-se dele)
balbucio exterior do povo que pouco a Louco! O inferno se agita diante de ti!
pouco vai se aproximando. Adriano Nada tenho em comum contigo! Aqui
encapuzado e excitado até a loucura estou eu, uma romana! Só será teu meu
aparece na porta de Irene com a espada cadáver!
desembainhada)
(Se ouve um estrondo cada vez maior.
ADRIANO Alguns cristais se quebram com as
Você aqui, Irene? Ainda te encontro pedradas do povo)
nesta casa cheia de maldições?
ADRIANO
IRENE Já vem! As chamas resplandecem! Que
Malvado, ainda se atreve a pisar em seu horror! Que loucura! Vamos, Irene!
umbral imaculado? Saia daqui!
IRENE
ADRIANO Deixe-me! Sinto uma força maior; Deus
Louca, insiste nisso? Infelizmente, me ajuda a combater.
segue ignorando sua miséria! Mas eu te
salvarei... Foge, vem comigo! ADRIANO
Não, não deve morrer, tua morte me
IRENE alcançaria! Venha, eu te levarei para
Aqui, com os últimos para quem o fora!
nome romano é um orgulho, esta é
minha casa! É infiel, vil! Saia, já não há (tenta levar Irene a força)
amor!
IRENE
ADRIANO Parece louco! Eu sou livre!
Ah, meu amor, sinto muito, não é amor,
é ira! Irene, venha de joelhos em tempo (Irene foge e Adriano se desequilibra)
me jurou fidelidade eterna, não caia em
perjúrio! Eu lembro muito bem meu ADRIANO
juramento. Jurei: a morte e a destruição (como louco)
serão minha salvação para acabar com Oh, você é minha! Através das chamas
toda aliança, toda barreira! Este foi meu encontrarei o caminho!
juramento, que agora mantenho. A
morte e a destruição estão aqui. Teu (sai)
irmão foi amaldiçoado por Deus,
amaldiçoado por mim e por todo o Quarta Cena
mundo. O povo enfurecido conhece a
traição. Logo não existirá nada neste (Praça do Capitólio, cuja fachada
Capitólio, que será presa do fogo. Tudo coincide com a grande escadaria do
227
Fórum. Numerosos grupos de pessoas
com tochas fluem por todos os pontos) BARONCELLI
Não o ouçam! Quer seduzi-los!
POVO
Por aqui! Por aqui! Venham conosco! POVO
Tragam pedras! Tragam fogo! Está Comecem! Tragam o fogo! Lancem
amaldiçoado, foi excomungado! fogo ao Capitólio!
Destruição e morte a ele! Rápido,
honrem a ordem suprema da Igreja! (por todas as partes o povo lança
tochas ao Capitólio)
(Rienzi totalmente armado, mas com a
cabeça descoberta aparece na varanda RIENZI
superior do Capitólio) Terrível ironia! Como? Esta é Roma?
Querem destruir-me? Escutem minhas
É ele! Veja como resiste esse maldito! últimas palavras! Em tanto que existam
Rápido, matem-no! as Sete Colinas de Roma! Em tanto que
não pereça a Cidade Eterna, verão o
RIENZI regresso de Rienzi!
O tribuno os exige calma.
(O Capitólio está totalmente em
BARONCELLI, POVO chamas. Rienzi e Irene abraçados e
Não o escutem! rodeados de chamas sobre a varanda.
O povo lança pedras)
RIENZI
Degenerados! Digam: Os ensina isso o POVO
orgulho romano? Vamos, honrem a ordem suprema da
Igreja! Destruição e morte para ele!
CECCO
Tragam pedras! (Adriano extenuado aparece na cena
com os nobres que, uns à cavalo e
POVO outros à pé arremetem violentamente
Vamos matá-lo! contra o povo que foge apavorado)
RIENZI ADRIANO
Reflitam, quem os fez grandes e livres? Irene, Irene! Por cima das chamas!
Não se recordam do júbilo com o qual
me receberam quando os entreguei a (quando Adriano chega ao Capitólio, a
liberdade e a paz? Por vosso bem os torre onde estavam Irene e Rienzi
rogo: Pensem em vosso juramento de desmorona sobre eles, sepultando-os)
romanos!
228
ANEXO G
LOHENGRIN
Richard Wagner
Personagens
229
ameaçador. Já é tempo de salvarmos a Ortrud, da linhagem de Radbod, da
honra do Império. Assim no leste como Frísia
no oeste, somos todos incumbidos disto!
Que todas as terras germânicas aportem (avançando lentamente com grande
forças para o combate. Então nada solenidade)
ousará vilipendiar o Império
Germânico! Aqui e agora eu acuso a Elsa de
Brabante. A acuso de assassinar seu
SAXÕES, TURÍNGIOS irmão. Reclamo meu direito sobre estas
Adiante, com Deus e pelo Império terras, pois por sangue sou o parente
Germânico! mais próximo ao Duque e minha esposa
pertence à linhagem que anteriormente
O REI ofertou príncipes a este povo.
(novamente sentado) Majestade, ouviste a acusação! Que se
Agora que me dirijo a vós, povo de faça justiça!
Brabante, para que se unam a meu
exército, vejo que estão divididos e sem HOMENS
um príncipe! OS vejo na confusão e Oh! O crime acusado é grave.
discórdia. Por isso vim, Frederico de Horrorizados escutamos sua acusação
Telramund. Conheço-te como um
modelo de virtude. Fale, para que possa O REI
saber a razão dos problemas! Que acusação horrível acabas de
formular! É possível conceber um crime
FREDERICO tão atroz?
O saúdo, Majestade, por vir estabelecer
a justiça! Contarei a verdade, pois a FREDERICO
mentira me é estranha. Ao morrer, o Oh, senhor. A jovem que
Duque de Brabante me confiou a guarda arrogantemente me negou a mão não fez
de seus filhos: Elsa e Godofredo. Com se não sonhar. Porém eu a acuso de ter
verdadeiro zelo cuidei da juventude de um amante secreto. Seguramente penso
Godofredo. Sua vida era o tesouro mais que se desfazendo de seu irmão,
apreciado de minha honra. Compreenda poderia, então, como Senhora de
então, Majestade, a imensa dor minha Brabante, ter direito a entregar sua mão
quando esta jóia me foi tirada! Um dia a um vassalo e se entregar inteiramente
Elsa levou o jovem para passear no a um amor secreto.
bosque, porém, regressou sem ele, pois,
por azar, se separaram. Mais tarde, já O REI
não encontrei seu rastro. Em vão fomos (interrompendo Frederico com um
em sua busca. Porém, quando com gesto rígido)
ameaças inquiri Elsa, sua palidez nos Chame a acusada! Que comece o
revelaram sua culpa monstruosa. Me julgamento! Que Deus me dê sabedoria!
senti aterrorizado ante aquela jovem.
Repudiei o direito a sua mão, que seu O ARAUTO
pai me entregou e tomei como esposa (avançando ao centro)
uma mulher que agrada meu coração. Se fará justiça de acordo com nossa lei?
230
Que este escudo não volte a me proteger
até que dite uma sentença justa e (Elsa faz um gesto de “nada!”)
severa!
Então reconheces seu delito?
HOMENS
(desenbanhando as espadas: os saxões ELSA
e os turíngios as cravam na terra diante (olhando com tristeza por um breve
de si, os brabantinos as apóiam no espaço de tempo)
chão) Meu pobre irmão!
Não se guarde novamente a espada até
que se tenha uma sentença justa! HOMENS
Que estranho! Que comportamento
O ARAUTO diferente!
Lá, onde está o escudo do rei, se fará
um julgamento justo! Por isto clamo O REI
alto e claro: Elsa, compareça aqui! Fale Elsa! O que tens a me dizer?
O REI O REI
Tu és Elsa de Brabante? (como se quisera acordar Elsa)
Elsa, defenda-se perante o tribunal!
(Elsa afirma com a cabeça)
(O rosto de Elsa se transforma
Reconhece-me como seu juiz? progressivamente de um sonho a uma
elevada transfiguração)
(Elsa olhando de frente o rei, concorda
com um gesto que revela sua confiança) ELSA
Com sua armadura, me apareceu um
Responda-me: conhece a grave cavaleiro. Jamais o havia visto um com
acusação que pesa sobre ti? tanta virtude. Em seu cinto, um corno
de ouro. Com sua espada se aproximou
(Elsa olha Frederico e Ortrud, com de mim o valoroso herói que, com doces
medo. Inclina afirmativamente a palavras, me encheu de consolo. A esse
cabeça) cavaleiro aguardo. Ele vencerá!
231
Que a graça dos céus nos permita ver E agora te pergunto, Elsa de Brabante:
claramente que é o culpado! Aceitas que alguém te defenda, sob o
juízo de Deus, em um combate de vida
O REI ou morte?
Frederico, tu és um homem de honra: és
consciente de quem acusas? ELSA
(com olhar baixo)
FREDERICO Sim!
Seu semblante sonhador não me engana.
Ouvi! Está sonhando com seu amante! O REI
Minha acusação se fundamenta em Quem escolhes para combater?
fortes razões. Seu delito está provado a
mim, porém tenho que acabar com FREDERICO
vossas dúvidas mediante um teste, algo Agora conheceremos o nome de seu
que surge no mais fundo do meu amante!
orgulho! Aqui estou! Aqui está minha
espada! Quem de vós se atreve a duelar OS BRABANTINOS
contra o preço de minha honra? Atenção!
OS BRABANTINOS ELSA
Nenhum de nós! Apenas lutamos junto (mantem sua mesma expressão e sua
a ti! posição. Todas as observam com
ansiedade)
FREDERICO
E vós, majestade, esqueceu de meus Aguardo o cavaleiro que será meu
serviços, quando lutamos no campo de campeão!
batalha?
(sem olhar para aqueles que a rodeiam)
O REI
Não é necessário que recorde! Escute a recompensa que ofereço ao
Alegremente reconheço que és enviado de Deus: carregará a coroa nas
merecedor do prêmio a mais alta terras de meu pai. Se aceitar meus bens,
virtude. Sob nenhum outro braço será feliz... e se quiser, me terá como
desejaria eu que recaísse a proteção esposa.
destas terras. Porém somente Deus
decidirá esta contenda. HOMENS
(para si mesmos)
HOMENS Uma magnífica recompensa, se a mão
Ao juízo de Deus! Adiante! de Deus o ajuda. Quem por ela
combater se arriscará em uma dura
O REI aposta.
A ti pergunto, Frederico, Conde de
Telramund: Aceitas manter tua O REI
acusação, sob o juízo de Deus, em um O sol anuncia já o meio-dia: portanto, é
combate de vida ou morte? tempo de começar
232
olhando para os quatro pontos (Elsa se põe rezando piedosamente. As
cardeais, toquem a chamada) mulheres, preocupadas com sua
senhora, se aproximam)
ARAUTO
Quem venha aqui para combater, sob ELSA
juízo de Deus, a favor de Elsa de Tu levastes minhas súplicas. Por sua
Brabante, que se apresente! vontade se apresentou ante mim o
cavaleiro que virá em meu socorro.
(Longo silêncio. Elsa, que até o
momento se mostrou tranqüila, começa MULHERES
a se agitar) Senhor! Proteja-a! Deus nosso!
Escutamos!
HOMENS
Ninguém responde ao chamado! ELSA
Permita que, como em meu sonho,
FREDERICO venha me socorrer. Ordena que venha!
(apontando para Elsa)
Vê como não a acusei em falso? (Os homens, próximos ao rio, são os
primeiros a perceberem a chegada de
HOMENS Lohengrin. Este aparece longe sobre
Em que azar ela se encontra! um barco puxado por um cisne. Os
homens mais distantes ficam curiosos,
FREDERICO pergunto aos que estão mais próximos.
A justiça está de meu lado! Finalmente, abandonam suas posições
para poder ver a chegada)
ELSA
(aproximando-se do Rei) HOMENS
Amado Rei, te rogo que haja um novo Vejam! Que estranho milagre! Como? É
chamado a meu cavaleiro. Seguramente um cisne? Um cisne arrastando um
ele está distante. barco! Um cavaleiro está em pé neste!
Como sua armadura brilha! Olhem, já
O REI se aproxima! Uma corrente de ouro
(dirigindo-se ao Arauto) prende o cisne!
Chame outra vez!
(os últimos homens estão agora perto
(A um sinal do Arauto, os trombeteiros do fundo. Em primeiro plano apenas
marcham novamente aos quatro pontos) com o Rei, Elsa, Frederico, Ortrud e as
mulheres. O Rei observa a cena de sua
ARAUTO posição elevada. Frederico e Ortrud
Quem vem aqui para combater, sob o estão espantados e cheios de medo.
juízo de Deus, em favor de Elsa de Elsa que tem acompanhado de perto os
Brabante, que se apresente! gritos dos homens, permanece no centro
do palco, sem se atrever a olhar ao
(Se repete de novo um longo e tenso redor. Finalmente, os homens, voltam
silêncio) rapidamente ao primeiro plano)
MULHERES
233
Nós vos agradecemos, Senhor Deus que (inclinando-se ao Rei)
ampara os fracos! Salve, Rei Henrique! Que Deus bendiga
vossa espada! Teu nome grande e
ELSA glorioso jamais desaparecerá destas
(Se vira e lança uma exclamação ao ver terras!
Lohengrin)
Ah! O REI
Graças te sejam dadas! Creio conhecer
Terceira Cena o poder que te trouxe: fora enviado por
Deus?
HOMENS, MULHERES
Salve, enviado por Deus! LOHENGRIN
Fui enviado para combater por uma
(O barco puxado pelo cisne é colocado donzela gravemente acusada. Agora me
ao longo do rio, ao fundo da cena. permita ver se poderei defendê-la com
Lohengrin, que carregando uma justiça.
armadura de prata brilhando, usando o
capacete na cabeça, o escudo na parte (se virando a Elsa)
de trás e um pequeno corno de ouro na
cintura, permanece de pé, inclinando-se Fale, Elsa de Brabante, se sou eleito
sobre sua espada. Frederico parece como alguém que vale por ti, quererá
assustado ao ver Lohengrin. Ortrud, confir-me proteção sem temor nem
que durante o julgamento tinha receio algum?
permanecido impassível e altiva, é
aterrorizada com a chegada do cisne. ELSA
Enquanto Lohengrin desce do barco, (imóvel desde a chegada de Lohengrin,
todos estão em silêncio e espera) cai de joelhos a seus pés, como se as
palavras daquele a despertassem de um
LOHENGRIN sonho)
(inclinando-se ao cisne) Meu herói, meu protetor! Aceite-me,
Graças te sejam dadas, amado cisne. me entrego a ti de corpo e alma!
Volte, atravessando as ondas, até as
terras de onde me trouxestes, e apenas LOHENGRIN
volte para a nossa felicidade. Cumpriu Se vencer, me tomas como esposo?
fielmente tua missão. Adeus, amado
cisne! ELSA
Como agora estou posta a teus pés,
(O cisne rodeia lentamente o barco e assim me entrego a ti por inteira.
segue rio abaixo. Lohengrin o vê partir
com tristeza) LOHENGRIN
Elsa, se serei teu esposo e defenderei
HOMENS, MULHERES tuas terras e teu povo, se nada deve me
Doce temor se apodera de nós! Que separar de ti, deves fazer um juramento:
nobre poder nos cativa! Que belo é a nunca me perguntarás de onde venho,
quem um milagre trouxe a nossas terras! nem qual é meu nome ou minha
linhagem.
(Lohengrin avança solenemente até o
primeiro plano da cena) ELSA
(semiconsciente)
LOHENGRIN Jamais, senhor, farei tais perguntas!
234
trazido aqui, estrangeiro, nunca me
LOHENGRIN assustaram tuas ameaças já que não
Elsa! Compreende? Nunca deverá menti! Por isso, aceito combater-te e
perguntar-me de onde venho, ou qual o espero vencer amparado na justiça.
meu nome ou qual a minha linhagem!
LOHENGRIN
ELSA Então, Majestade, ordene o começo do
(olhando- o com fervor) combate!
Meu protetor! Meu anjo! Meu salvador!
Você que crê em minha inocência! (Todos voltam a formar o círculo da
Como poderia existir uma dúvida que justiça)
me fizesse perder a fé em ti? Assim
como você me protege das dúvidas, O REI
assim seguirei fielmente seus desejos. ¡Que se apresentem, então, três
testemunhas para cada combatente e
LOHENGRIN marquem com retidão o campo da luta!
(aproximando-se, com grande emoção)
Elsa, te amo! (Em favor de Lohengrin se apresentam
três nobres saxões. Em favor de
(Ambos permanecem quietos perante o Frederico, três nobres brabantinos.
asombro geral) Apenas medem o espaço formam um
círculo com suas lanças)
HOMENS, MULHERES
Que milagre contemplamos? Nosso O ARAUTO
coração se espanta ao ver homem tão (no centro do círculo)
sublime! Agora, escutem-me com atenção! Nada
poderá atrapalhar o combate!
LOHENGRIN Permaneçam fora do espaço da luta, sob
(se aproxima do Rei, a quem confia a pena de perder sua mão, caso seja
proteção de Elsa. Avança ao centro) homem livre ou sua cabeça, se for um
Agora escutem! Perante todos, povo e servo!
nobres, eu proclamo: Elsa de Brabante é
inocente de todas as acusações! Perante HOMENS
o juízo de Deus se demonstrará a O homem livre pagará com a mão! O
falsidade de sua acusação, Conde de servo, com a cabeça!
Telramund!
O ARAUTO
NOBRES BRABANTINOS (a Lohengrin e Frederico)
(alguns poucos aconselham Frederico) Ouçam combatentes: cumpram as leis
Desista da luta! Se lutar, perderá! Se do combate! Não utilizem magia
realmente ele tiver uma força superior o maléfica! Deus resolverá com justiça!
protegendo, de que servirá tua espada? Confiem nele, e não na força!
Desista! Escute nossos conselhos leais!
Amargará uma derrota profunda! LOHENGRIN, FREDERICO
(os dois em pé observam-se fora do
FREDERICO círculo)
(até o momento não perdera Lohengrin Deus me julgará com justiça. Confio
de vista) nele e não em minha força!
¡É melhor morrer que ser covarde!
Qualquer que seja o motivo que tenha te O REI
235
(situando-se solenemente no centro do armas. O Rei toma sua espada e com
círculo) ela golpeia o escudo três vezes. Ao
Deus e Senhor! A ti suplico... primeiro golpe, Lohengrin e Frederico
se aprontam. Ao segundo, tomam as
(todos descobrem suas cabeças) armas. Ao terceiro, se inicia a luta.
Lohengrin ataca primeiro. Depois de
que se faça presente na luta! Dita tua vários lances violentos, derruba
sentença através da vitória da espada, Frederico. Este trata de colocar-se em
revelando a mentira e a verdade! pé, recua e tomba. Neste momento, os
Entregue força de herói ao puro! Nos saxões e turíngios retiram suas espadas
ajude, Deus, pois nossa sabedoria é da terra, enquanto os brabantinos
apenas confusão! pegam suas espadas)
AS MULHERES ELSA
Abençoe-o, meu Senhor e Deus, dê Tua Oh, se eu pudesse encontrar cantos
benção! jubilosos e dignos de tua glória, devo
perder-me em ti. Para encontrar
(Todos retornam a seus lugares e felicidade, aceite-me completa como
esperam em silêncio e solenidade. As sou!
seis testemunhas do combate já
formaram com as lanças o círculo da (O Rei leva Elsa até Lohengrin)
justiça. Os demais homens permanecem
afastados, porém não muito. Elsa e as O REI, HOMENS
mulheres, em primeiro plano, se Resoe, hino vitorioso, para aumentar a
encontram junto ao Rei. O Arauto força do herói! Glória foi sua viagem!
ordena e os trombeteiros tocam. Honra, tua chegada! Salve tua
Lohengrin e Frederico preparam suas linhagem, protetor da inocência!
236
Combateu pelo direito dos inocentes! brabantinos fazem o mesmo com Elsa
São para ti nossos cânticos! Nunca sobre o escudo do Rei. Ambos são
surgirá alguém comparável a ti nestas levados com gritos de triunfo e júbilo)
terras!
ORTRUD ATO II
(presencia com ira a derrota de
Frederico, e olha fixamente Lohengrin)
Quem é este que o venceu e eliminou (Castelo da Antuérpia. No fundo, na
meu poder? parte central, o Palas, a residência dos
cavaleiros. À esquerda, em primeiro
O REI plano, a Kemenate, residência das
Honra a tua chegada! Salve sua damas. À direita, a entrada da catedral.
linhagem! Ao fundo, à direita, uma porta com
torres. É noite. As janelas do Palas
LOHENGRIN estão iluminadas. Delas se escuta
(para Elsa) música festiva: trompas e trompetes
Graças a sua inocência, venci. A partir soam alegres)
de agora seus sofrimentos serão
recompensados. Primeira Cena
237
heroísmo encaminhou a desonra! Minha
espada foi despedaçada. A terra de FREDERICO
meus pais está manchada! Para qualquer E assim fez de mim um abominável
lugar que vá, serei um fugitivo, um cúmplice de tuas mentiras, sendo, antes,
maldito. Até os ladrões me evitam para meu nome reverenciado e minha vida
que eu não os desonre! Perdi por tua um exemplo de virtude!
causa... Ah, se eu ouvesse escolhido o
caminho da morte, sendo tão miserável ORTRUD
como sou! Perdi minha honra. Minha Quem mentiu?
honra se acabou.
FREDERICO
(Se levanta. Música é ouvida) Você! Deus me derrotou por ele como
juízo?
ORTRUD
(sempre com a mesma postura, ORTRUD
enquanto Frederico se levanta) Deus?
Por que te perdes em tantas lamentações
desesperadas? FREDERICO
Que espanto! Que terrível soa esse
FREDERICO nome em sua boca!
Porque me privaram inclusive...
ORTRUD
(em um gesto violento contra Ortrud) Ah! Chamas Deus ante tua covardia?
238
Você, selvagem advinha! Porém, espera
seduzir novamente meu espírito com ORTRUD
seus mistérios? Escute! Primeiro, não devemos fugir.
Pense! Para despertar nela as suspeitas,
ORTRUD acuse-o de servir à magia, graças a qual
(mostrando o Palas, onde as luzes vão conseguiu te vencer.
se apagando)
Depois de se saciar no banquete, FREDERICO
repousam em um sonho tranqüilo! Ah! Truques e enganos com magia.
Sente-se a meu lado! Chegou a hora de
que meus olhos proféticos iluminem seu ORTRUD
caminho! Se não for suficiente, perderá força!
239
(Frederico se senta junto a Ortrud na Refresquem-me agora, que estou quente
escadaria) de amor! De amor!
ORTRUD ORTRUD
É ela! “Mulher desgraçada!” Não te faltam
razões para me chamar assim! Na
FREDERICO distante solidão do bosque, onde vivia
Elsa! em paz e tranqüilidade, que te disse? O
que eu te disse? Desgraçada, tão apenas
ELSA estava chorando a desgraça que há
Vós, que o protegeram das selvagens tempo persegue minha estirpe; O que eu
tempestades do mar. te disse?
ORTRUD ELSA
Maldigam cada um dos instantes em Por Deus, de que me acusas? Sou eu
que meus olhos a olhem! que te trago a desgraça?
ELSA ORTRUD
Com frequência procurei-vos para secar Como pude ter com aquele que me
minhas lágrimas! Refresquem-me tomou por esposa?
agora, que estou quente de amor!
ELSA
ORTRUD Deus misericordioso! O que falas?
(a Frederico)
Fora! ORTRUD
Se um erro o levou a te acusar de um
FREDERICO crime, mulher inocente, seu coração se
Por quê? desgarra em aflição e pagas uma terrível
penitência.
ORTRUD
Ela é minha... A ti pertence o herói! ELSA
Deus da justiça!
ELSA
240
ORTRUD Dou-te graças por tanta bondade!
Depois de um breve sofrimento, agora a
vida te sorri. Com sorte pode se separar ELSA
de mim, me enviando para a estrela da A quem amanhã será meu esposo,
morte, para que minha desgraça não rogarei, por seu espírito generoso, que
pertube sua felicidade! outorgue a Frederico seu perdão!
ELSA ORTRUD
Recompensaria tua bondade, Deus, que Prende-me a ti com laços de gratidão!
me fez tão feliz, apenas afaste a
desgraça que se apresentou ao povo! ELSA
Oh, nunca, Ortrud! Espere-me! Eu Pela manhã venha me ver, com boas
mesma te abrirei caminhos! roupas. Juntas iremos à catedral. Ali
aguardarei meu herói para ser sua
(Elsa volta ao Kemenate) esposa perante Deus! Sua esposa!
ORTRUD ORTRUD
(se levanta das escadas com incontável De que modo poderia agradecer-te tanto
alegria) favor? Ainda se estivesse próxima, seria
Deuses ultrajados! Me ajudem em uma pobre perto de ti!
minha vingança! Castiguem a afronta
que fizeram! Me dêem forças para (aproximando Elsa)
servir a vossa sagrada causa! Wotan! A
ti, suprema força, invoco! Freia, me Apenas me resta um poder, que
ouça! Ajudem minhas mentiras para que nenhuma força poderia me tirar. Com
minha vingança tenha êxito! ele talvez possa salvar tua vida, a
preservando das penitências!
ELSA
(ao lado de fora) ELSA
Ortrud, onde estás? O que quer dizer?
241
felicidade que não necessita de NOBRES, HOMENS
arrependimento! A chamada nos convoca rapidamente!
Quem realizou tanto, poderá realizar
ORTRUD mais!
(para si)
Seu orgulho mostra onde posso atacar (O Arauto sai do Palas, se colocando
sua fidelidade! Quero voltar minhas em um lugar elevado próximo à porta.
armas contra ele! Seu orgulho se tornará Os quatro trombeteiros o seguem.
arrependimento! Novamente tocam. Todos observam)
ELSA O ARAUTO
Deixa que te mostre a doçura que Os faço saber a vontade do Rei:
entrega a fidelidade mais pura! escutem, pois, com atenção o que se
manifesta por minha boca! Frederico de
(Ortrud, guiada por Elsa, atravessa a Telramund é declarado deserdado, por
pequena porta, fingindo duvidar. As haver combatido em juízo de Deus e
servas as seguem e, uma vez dentro, as amparado a mentira. Aquele que o
portas se fecham) ajudar ou acompanhar, sofrerá a mesma
pena, assim é a Lei do Império!
FREDERICO
(aparecendo do fundo) HOMENS
Assim entra a desgraça em casa! Maldito seja o homem pérfido
Consiga, mulher, aquilo que tua astúcia condenado por Deus!
tramou. Pressinto que ninguém poderá
ser capaz de deter sua obra! A maldição O ARAUTO
começou com minha queda. Caiam O Rei também manda dizer que honrou
agora vocês, os que a ela me o estrangeiro enviado por Deus e o
conduziram! Apenas uma coisa me elege como esposo de Elsa, com as
mantem em pé: aqueles que retiraram terras e a coroa do Brabante. Porém, o
minha honra devem padecer! herói não quer ser chamado por duque.
Será conhecido como Protetor do
Terceira Cena Brabante!
242
com audácia a seu lado, terá glória. Ele anunciou o combate, vai ser acusado
foi enviado por Deus para a honra de por mim de enganar Deus!
Brabante!
OS QUATRO NOBRES
(Enquanto o povo se alegra, aparecem O que ouço? Insensato! O que propõe?
quatro nobres, antigos aliados de Que será de ti! Se o povo te ouvir,
Frederico) estará perdido!
243
Ah! Como me enganou tua hipocrisia
(Elsa caminha lentamente atravessando quando esta noite veio a mim? Como te
o espaço aberto pelos homens) atreve a se colocar, orgulhosa, ante
mim, você, a esposa de um condenado
Salve, plena de virtudes! Salve, Elsa de por Deus?
Brabante! Em triunfo avança!
ORTRUD
MULHERES (mostrando-se ofendida)
Salve! Meu marido era conhecido como um
exemplo de virtude, e sua espada era
(Além dos pajens, as mulheres que temida e respeitada. Ninguém era capaz
encabeçam a procissão chegam à de pronunciar seu nome sem respeito!
escadaria da catedral, na qual se
situam para deixar passagem para Elsa. HOMENS
Entre os que seguem, encontra-se O que esta mulher está dizendo? Ah! A
Ortrud, magnificamente vestida. As que está se referindo?
mulheres que caminham com ela se
espantam. Seus rostos denotam um MULHERES, PAJENS
crescente ódio. Quando Elsa está a Está blasfemando!
ponto de subir as escadas, entre os
gritos alegres do povo, Ortrud se HOMENS
separa do grupo e se encontra com Que se cale!
Elsa, no mesmo local onde outrora se
encontraram) ORTRUD
Pode nos dar seu nome? Pode
ORTRUD assegurar-nos que sua estirpe e sua
Elsa! Não quero seguir suportando ter linhagem são dignas? De onde veio?
que caminhar atrás de ti como uma Quando partirá? Por estas razões o
serva. Deveria reclinar-se perante mim, austero herói te proibiu de fazer
em sinal de humildade! perguntas!
244
(dirigindo-se ao povo) Meu senhor!
HOMENS O REI
Apenas ele! Apenas seu herói! Quem ousa perturbar a entrada da
igreja?
MULHERES, PAJENS
Apenas teu herói! O CORTEJO REAL
O que ocorre?
ORTRUD
Penso o quanto a pureza de seu herói LOHENGRIN
seria manchada caso soubéssemos como (olhando para Ortrud)
exerce seu poder! Se você não O que estou vendo? Esta mulher
perguntar... você mesma ficará desgraçada junto de ti?
atormentada!
ELSA
MULHERES Meu salvador! Proteja-me desta mulher!
(apoiando Elsa) Repreenda-me se te desobedeci! A vi
Protejamos do ódio desta mulher! chorando ante esta porta, a retirei de sua
desgraça a levando comigo, e veja como
(se abrem as portas do Palas e recompensou minha bondade.
aparecem quatro trombeteiros, tocam a
chamada) LOHENGRIN
(olhando fixamente para Ortrud, que
Quinta Cena permanece imóvel como se estivesse
petrificada)
HOMENS Você, infame mulher! Se afaste! Jamais
(olhando ao fundo) sairá vitoriosa!
Se aproxima o Rei!
(olhando para Elsa)
(O Rei, Lohengrin, os condes e os
nobres saxões saem do Palas e formam Diga-me, Elsa, ela envenenou seu
solenemente um cortejo, porém coração?
reparam na confusão)
(Elsa chora no peito de Lohengrin. Este
OS BRABANTINOS se levanta e aponta para a catedral)
Viva o Rei!
Venha, deixe que tuas lágrimas corram
(o Rei e Lohengrin se apressam em alegremente lá!
avançar entre o tumulto)
(Lohengrin, Elsa e o Rei se dirigem à
Viva o protetor do Brabante! catedral. Todos os seguem de forma
ordenada)
O REI
Por que a disputa? FREDERICO
(surge na escadaria da catedral. As
ELSA mulheres e os pajens, ao reconhecê-lo,
(se aproximando de Lohengrin) se espantam)
245
Majestade! Detenham-no! (aqueles que avançavam se assustam
com sua voz)
O REI
O que este homem procura? Que o alento divino destrua o poder
proveniente da magia! Erraram me
HOMENS privando da honra em juízo de Deus ao
O que este homem procura? Maldito! não interrogá-lo quando se apresentou
Fora! ao combate! Não podem agora me
proibir de perguntar!
FREDERICO
Escutem! (altivo)
FREDERICO LOHENGRIN
(tentando ser ouvido, olha a Lohengrin, Sim, também posso negar ao Rei e à
sem perceber que avançam sobre ele) Assembleia de príncipes! A eles a
Este que está diante de mim: acuso de dúvida não deve preocupar! Todos
feiticaria! presenciaram minha nobre conduta!
Apenas a Elsa devo a resposta!
246
(se detem ao ver Elsa, que tem o olhar ORTRUD, FREDERICO
fixo e que demonstra uma luta em seu A contemplo meditando
interior) profundamente!
LOHENGRIN O REI
Por acaso ela teria sucumbido às Oh, herói, responda com firmeza este
investidas do ódio? infiel! É nobre o suficiente para ter
medo de suas acusações!
ELSA
(ausente de tudo, como perdida, olha NOBRES SAXÕES, BRABANTINOS
para frente) (aproximando-se de Lohengrin)
Que ingrata eu seria se o obrigasse a Estamos de seu lado! Reconhecemos,
revelar, logo ele, que me salvou! em ti, a essência do herói! Acreditamos
fielmente na nobreza de teu nome,
MULHERES, PAJENS embora não o conheçamos!
Se isso trará desgraça, que sua boca
guarde fielmente! LOHENGRIN
Não se arrependerão desta fé, mesmo
O REI que nunca conheçam meu nome nem
Se isso trará desgraça, que sua boca minha linhagem!
guarde fielmente!
(Enquanto Lohengrin cumprimenta os
LOHENGRIN homens que o cercam, Frederico, sem
A contemplo meditando ser visto, se aproxima de Elsa, que
profundamente! permanece só, lutando em seu interior)
247
FREDERICO LOHENGRIN
(inclinando-se a Elsa) Salve, Elsa! Vamos juntos até Deus!
Confie em mim! Deixe que te mostre
como sair da dúvida. HOMENS
Olhem, é um enviado de Deus!
ELSA
(assustada, fala em voz baixa) MULHERES, PAJENS
Afaste-se de mim! Salve, salve, salve!
248
virtude siga! Exemplo de juventude!
Abandonem as festas e entreguem-se Permaneçam aqui, na fidelidade, onde o
aos prazeres do coração! amor os protegerá! A valentia e o
triunfo do amor os une felizmente em
(As portas do fundo se abrem. Entram par.
as mulheres que acompanham Elsa e o
Rei e os homens que acompanham Segunda Cena
Lohengrin. Todos são guiados por
pajens) (Uma vez que todos se retiram da cena,
Elsa apoia sua cabeça no peito de
Que este local perfumado, adornado Lohengrin, entregando-se à felicidade.
para o amor, os acolha agora e os Lohengrin se senta e aproxima Elsa de
esconda da luz. A valentia vitoriosa e o si)
triunfo do amor os une finalmente em
par. LOHENGRIN
Nos abandonam os cânticos. Estamos
(as mulheres que acompanham Elsa a sós, sozinhos desde a primeira vez que
conduzem a Lohengrin. Estes se nos vimos. Agora nos esqueceremos do
abraçam de emoção. Os pajens levam o mundo, para que nada possa destruir a
manto de Lohengrin e sua espada os felicidade de nossos corações. Elsa,
colocado sobre um apoio. As mulheres minha esposa! Minha doce esposa
retiram de Elsa seu manto pesado e inocente! Confie em mim!
rico)
ELSA
MULHERES Que insensível seria se apenas falasse
(depois de circularem Elsa uma vez) que sou feliz. Possuo todos os prazeres
Assim como Deus te alegra, nós celestes! Sinto que meu coração se
ficamos felizes com sua alegria. esquenta docemente junto ao seu,
respiro delícias que apenas Deus pode
(ainda circulando) ofertar.
249
ELSA (esconde a vergonha contra o corpo de
Já havia te visto antes. Em um Lohengrin)
encantador sonho se aproximou de mim. Se sou digna de ti não me diminua com
Quando despertei te vi e compreendi sua presença. Se eu puder servir-te! Eu
que viria pela vontade de Deus. Neste posso sofrer por ti! Assim como você
momento havia desejado sumir em seu me viu seriamente acusada! Se eu te
olhar. É nisso que consiste o amor? Que visse em apuros! Se eu soubesse de
nome devo dar a esta palavra tão cara... algum trauma! Qual é o segredo que teu
Ah, teu nome, aquele que nunca lábio esconde de todos? Seria
conhecerei. Nunca poderei te nomear, desgraçado se fosse conhecido por
bem supremo? todos? Nada te afastará de mim: antes
disso me mataria!
LOHENGRIN
Elsa! LOHENGRIN
Querida!
ELSA
Quão agradável é ouvir meu nome em ELSA
teus lábios! Não me dará o prazer da Faça com que eu seja digna de tua
doce melodia do seu? Apenas quando confiança, para que não se torne
nos encontremos no repouso do amor indigno! Entregue-me seu segredo! Para
deve permitir que meus lábios o que veja quem é!
pronunciem.
LOHENGRIN
LOHENGRIN Ah, quieta Elsa!
Minha doce esposa!
ELSA
ELSA Entrega a minha fidelidade o valor de
Solitários, quando ninguém nos sua nobreza! Diga-me, sem medo, de
observa. Nunca chegará a ouvido de onde vem e confie na força de meu
outros! silêncio!
LOHENGRIN LOHENGRIN
(abraçando-a com felicidade e (se afasta com um gesto sério)
apontando o jardim através da janela A mais alta confiança te demonstro, já
aberta) que creio totalmente em seu juramento.
Não sente comigo as doces fragâncias? Se não vacilar diante do que peço, serás
Embriagam os sentidos! Atravessam o para mim a maior das mulheres!
ar com seus mistérios, e sem fazer
perguntas sucumbo a sua magia. Assim (rapidamente torna a ser amoroso com
também é o encanto que trouxe para ti. Elsa)
Não precisei conhecer sua linhagem:
meus olhos te contemplaram e meu Venha a meu peito, doce e pura! Venha
coração te compreendeu. Tal qual estes a este coração que queima, que teus
aromas chegam a meu sentido olhos me iluminam com afeto. Teus
atravessando a misteriosa noite, assim olhos refletem minha felicidade! Deixe-
me cativa sua pureza, mesmo quando me apertar-te contra meu peito para
sob suspeita de um horrível crime. sermos felizes! Teu amor compensa
tudo o que abandonei. Nenhum destino,
ELSA no mundo de Deus, é mais nobre que o
meu. Ainda que o Rei me desse sua
250
coroa, eu a negaria. Contemplar seu LOHENGRIN
amor é o que basta meu sacrifício! Elsa, para! Não enlouqueça!
Afaste, por ele, qualquer dúvida! Que
seu amor seja a minha garantia! Venho ELSA
do esplendor e da glória! Nada me devolverá a calma, nem
aplacará minha loucura... nada que não
ELSA me custe a vida: saber quem você é!
Deus protetor, o que ouço! O que ouço
de teus lábios! Quer me confundir... LOHENGRIN
Agora vejo claramente minha desgraça! Elsa, o que quer?
O que abandonou era a suprema
felicidade. Como posso crer que minha ELSA
felicidade é o suficiente para ti? Um dia Nobre homem, escute a pergunta que
te afastará, arrependido por me amar! faço: qual o seu nome?
LOHENGRIN LOHENGRIN
Não se atormente! Pare
ELSA ELSA
Você que me atormenta! Devo contar os De onde veio?
dias que permanecerá a meu lado?
Preocupada com sua partida? Então me LOHENGRIN
abandonará! Cale-se!
LOHENGRIN ELSA
Nunca acabará o encanto, basta afastar Qual sua linhagem?
todas as dúvidas!
LOHENGRIN
ELSA Pobre de nós! O que fez?
Como realmente eu poderia me prender
a ti? Um milagre te trouxe. Como ELSA
evitarei que se vá? (permanece de pé em frente a
Lohengrin, que se encosta na porta, e
(nervosa, Elsa percebe algo) contempla como Frederico e quatro
homens entram no quarto pela outra
Não ouviu nada? Não sente que alguém porta, com espadas em punho)
se aproxima?
Defenda-se! Tome sua espada!
LOHENGRIN
Elsa! (rapidamente Lohengrin levanta sua
espada. E mata Frederico com apenas
ELSA um golpe. Os outros nobres, assustados,
Ah, não! deixam suas espadas caírem e se
ajoelham aos pés de Lohengrin. Elsa
(apontando) desmaia)
251
(inclinando-se a Elsa, a levanta e a Salve, Rey Henrique!
deixa amorasamente encostada)
O REI
ELSA Obrigado, estimados brabantinos! Sinto
(abrindo os olhos) orgulho no coração a contemplar tão
Deus eterno, me perdoe! poderoso exército! Que venham os
inimigos do Império. Os receberemos
(começa a amanhecer. As velas se com coragem e nunca mais nos
apagam. Após Lohengrin indicar, os atacarão! A espada alemã para o solo
nobres ficam de pé) alemão! Assim é a força do Império!
LOHENGRIN HOMENS
Levem o cadáver ao Rei! A espada alemã para o solo alemão!
Assim é a força do Império!
(os nobres pegam o corpo de Frederico
e saem pela porta dos fundos. O REI
Lohengrin toca um sino. Entram quatro Onde está o enviado de Deus para a
mulheres) glória do Brabante?
252
(Elsa olha o Rei, mas não consegue O REI, HOMENS
falar. Ao fundo, vozes) (apontando o cadáver)
Como sua mão feriu a Terra, Deus o
HOMENS castigou!
Deixem passar o herói do Brabante!
LOHENGRIN
(Lohengrin, com as mesmas armas do Porém, deve ouvir minha acusação. Em
início anda solitário e solene, até voz alta proclamo perante todos que a
chegar à frente) mulher que Deus me confiou se deixou
enganar!
Salve, herói do Brabante!
HOMENS
O REI Elsa! Como?
(novamente sentado)
Bem-vindo, querido herói! Os que O REI
convocou ao combate aguardam teu Elsa! Como?
chamado à vitória.
MULHERES
HOMENS (olhando Elsa com reprovação)
Aguardamos ansiosos o combate e a Desgraça, Elsa!
vitória.
LOHENGRIN
LOHENGRIN Todos escutaram como ela me prometeu
Meu Rei e senhor, devo comunicar que que jamais me perguntaria quem sou.
não poderei conduzir ao combate estes Agora esqueceu de seu sagrado
valorosos heróis que estão aqui juramento e aceitou conselhos
reunidos! traiçoeiros!
253
O REI abandonar por seu coração inocente. Por
O que descobrirei? Se pudesse evitar que arrancou meu segredo? Agora devo
esta revelação! me separar de ti!
254
tanto quanto a ti! Devemos nos separar.
Este é o castigo! LOHENGRIN
O Graal o enviou para me buscar!
(Elsa grita)
(sob o olhar dos demais, Lohengrin se
O REI, HOMENS aproxima da margem e se dirige ao
(cercando Lohengrin) cisne com melancolia)
Não se afaste! Os homens confiam em
seu general! Fique! Meu querido cisne! Esta é a última e
triste viagem! Dentro de um ano,
LOHENGRIN quando concluir o prazo de teus
Escute Majestade: não posso serviços, liberado pelo poder do Graal,
acompanhá-los! Se um cavaleiro do te veria de outra maneira!
Graal que tenha sido reconhecido
permanecer combatendo com vocês, (volta ao centro e com dor se dirige a
desobedecendo, seria privado de sua Elsa)
força! Mas, Majestade, deixe-me
anunciar: a vocês, homens inocentes, Elsa, desejei permanecer apenas um ano
está reservada uma grande vitória! junto a ti como testemunho de sua
Nunca mais serão vitoriosos, em felicidade! Então teu irmão, que
território alemão, os estrangeiros! acredita estar morto, retornaria
juntamente com a escolta do Graal!
(Todos se comovem. Atravessando o
rio, se aproxima o cisne, arrastando o (todos se surpeendem. Lohengrin
barco vazio, como na primeira entrega sua trompa, sua espada e seu
aparição) anel a Elsa)
255
barca! Pela pequena corrente com que em seu lugar sai um jovem com
eu mesma coloquei. O cisne é o armadura prateada. É Godofredo)
herdeiro do Brabante!
LOHENGRIN
TODOS Aqui está o Duque do Brabante!
Ah!
(Ortrud, ao ver Godofredo, caí.
ORTRUD Lohengrin entra na barca, que passa a
(dirigindo-se a Elsa) ser arrastada pela pomba. Elsa olha,
Obrigada por expulsar o cavaleiro! O assustada, a Godofredo que, se
cisne o acompanhará em seu regresso. dirigindo ao Rei, inclina-se. Todos se
Se o herói ficasse aqui, libertaria seu assustam. Os brabantinos se
irmão! aproximam. Godofredo abraça Elsa)
HOMENS ELSA
Mulher repugnante! Com tamanha (depois de um instante de prazer, olha a
ironia confessa o crime! margem, de onde Lohengrin já
desapareceu)
MULHERES Meu esposo!
Mulher repugnante!
(Ao fundo aparece a figura de
ORTRUD Lohengrin, em pé na barca, cabeça
Esta é a vingança dos deuses antigos baixa, apoiado no escudo)
por acabarem com seus cultos!
Ah!
(permanece em pé, presa em êxtase.
Lohengrin, na margem, escutou O REI, HOMENS, MULHERES
atentamente Ortrud. Se ajoelha e reza Que desgraça
em silêncio. Todos o olham com
expectativa. A pomba do Graal surge (Elsa cai lentamente ao chão entre os
sobre a barca. Ao vê-la, Lohengrin se braços de Godofredo. Lohengrin se
mostra agradecido e solta a corrente afasta)
que rodeia o cisne. Este afunda no rio e
256
APÊNDICE
APÊNDICE A
258
historiográficas através de noções como consciência histórica e cultura histórica, tão
usuais na prática historiográfica contemporânea.
Logicamente, esta divisão, focada em aportes teórico-conceituais, funciona
como uma possibilidade interpretativa e não como uma verdade final. Ou seja, anulou-
se a circulação, as influências mútuas, entre prática política e prática historiográfica
propositalmente em prol da melhor compreensão dos conceitos propostos e das
possibilidades teóricas que se manifestam a partir destas aproximações que
possibilitarão a melhor compreensão desta tese.
2
Estes autores acabaram se fundamentando, também, como relevantes nomes quando se pensa a relação
entre a Filosofia e a História. Cf.: CHÂTELET, François. A Filosofia e a História: de 1780 a 1880. 2ed.
Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1973.
3
SCHOPENHAUER, Arthur. A vontade de amar. São Paulo : EDIMAX, sd. ______. O mundo como
vontade e representação. São Paulo : Ed. UNESP, 2005.
260
indivíduo e percebe a angústia como característica fundamental da condição humana em
relação ao mundo e o desespero com relação a si. Com isso, o autor, nascido em 1813 e
morto em 1855, vai se aproximando das possibilidades de discussão filosófica acerca da
memória. A principal menção na obra do autor sobre a memória e suas variantes
encontra-se em O Banquete (In vino veritas) 4, trecho de Estádios no Caminho da Vida
nitidamente inspirado na obra platônica, a perceber o próprio título. No início da obra o
autor tratará do não-esquecimento e das diferenças entre as possibilidades de recordar e
de lembrar:
A recordação não tem apenas que ser exacta; tem que ser também
feliz; é preciso que o aroma do vivido esteja preservado, antes de
selar-se a garrafa da recordação. Tal como a uva não deve ser
pisada em qualquer altura, tal como o tempo que faz no momento
de esmagá-la tem grande influência no vinho, também o que foi
vivido não está em qualquer momento ou em qualquer
circunstância pronto para ser recordado ou pronto para dar entrada
na interioridade da recordação. Recordar não é de modo algum o
mesmo que lembrar. Por exemplo, alguém pode lembrar-se muito
bem de um acontecimento, até ao mais ínfimo pormenor, sem
contudo dele ter propriamente recordação. A memória é apenas
uma condição transitória da recordação. Por intermédio da
memória o vivido apresenta-se à consagração da recordação. A
diferença é reconhecível logo nas diferentes idades da vida. O
ancião perde a memória, que aliás é a primeira capacidade a
perder-se. Contudo, o ancião tem em si algo de poético; de acordo
com a representação popular ele é profeta, é divinamente inspirado.
A recordação é afinal também a sua melhor força, a sua
consolação: consola-o com esse alcance da visão poética. A
infância, pelo contrário, possui em grau elevado a memória e a
facilidade de apreensão, mas não tem o dom da recordação. Em vez
de dizer-se "a idade não esquece o que a juventude aprende",
poder-se-ia talvez dizer: "o que a criança retém na memória,
recorda-se o ancião". Os óculos do velho são feitos para ver ao
perto. Se na juventude é preciso usar óculos, as lentes servem para
ver ao longe, pois que à juventude falta a força da recordação, que
consiste em afastar, em pôr à distância. Mas a recordação feliz da
velhice tanto quanto a feliz capacidade de apreensão da criança são
dom da natureza, uma graça que concede a sua preferência aos dois
períodos mais desprotegidos da vida, que contudo, em certo
sentido, são também os mais felizes. Mas é também por isso que a
recordação, tal como a memória, é por vezes apenas detentora de
casualidades. Apesar de se distinguirem por grande diferença, a
recordação e a memória são por vezes tomadas uma pela outra. A
recordação é efetivamente idealidade, mas como tal, implica uma
4
KIERKEGAARD, Soren. O Banquete (In vino veritas). 5ed. Lisboa : Guimarães Editores, 2002.
261
responsabilidade muito maior do que a memória, que é indiferente
ao ideal. A recordação tem por fim evitar as soluções de
continuidade na vida humana e dar ao homem a certeza de que a
sua passagem pela terra efetua uno tenore, num só traço, e pode
exprimir-se na unidade5.
5
Idem, p.32
6
NIETZSCHE, Friedrich. Segunda Consideração Intempestiva: Da Utilidade e do Inconveniente da
História para a Vida. São Paulo : Editora Escala, 2008. São Paulo : Paulus, 2005, p.16. Para um
apanhado geral das obras do autor sobre a História, cf.: ______. Escritos sobre História. Rio de Janeiro :
Editora PUC-Rio; São Paulo : Loyola, 2005.
7
Nesta obra, Friedrich Nietzsche percebe três pontos de vista acerca da produção histórica:
Primeiramente, nota a ocorrência de certa história monumental, aquela praticada por quem procura no
passado modelos e mestres; em segundo, localiza a história antiquaria, produzida por aqueles que
entendem o passado como fundamento da vida presente, conservando seus valores constitutivos básicos
como um todo; e, por último, analisa a história crítica, modelo erigido por quem olha o passado sob o
ponto de vista do juiz que abate e condena todos os elementos que obstaculizam a realização dos próprios
valores. Cf.: REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia: de Nietzsche à Escola de
Frankfurt (Coleção História da Filosofia, Volume 6).
262
piquete do momento, não manifesta melancolia nem
aborrecimento. O homem se entristece ao ver semelhante coisa,
porque se dá ares de importância diante do animal e, no entanto,
inveja a felicidade deste. De fato, é isso o que quer: não
experimentar, como o animal, nem desgosto nem sofrimento e, no
entanto, ele o quer de outro modo, porque não pode querer como o
animal. Talvez tenha um dia ocorrido ao homem a vontade de
perguntar ao animal: ‘Por que não me falas de tua felicidade e por
que não fazes oura coisa senão me olhar?’ E o animal quis
responder e dizer: ‘Isso acontece porque esqueço sempre o que
pretendo responder.’ Ora, enquanto o animal preparava a resposta,
já a tinha esquecido e se calou, de modo que o homem ficou
surpreso.
8
Idem, p.19.
9
BRAGA, Antonio C. Nietzsche: o filósofo do niilismo e do eterno retorno. São Paulo : Lafonte, 2011.
10
BERGSON, Henri. Matéria e Memória. Ensaio sobre a relação do corpo com o espírito. São Paulo:
Martins Fontes, 1990.
263
[...] uma fixada no organismo, não se é senão o conjunto de
mecanismos inteligentemente montados que assegurem uma réplica
conveniente às diversas interpelações possíveis. Ela faz com que
nos adaptemos à situação presente, e que as ações sofridas por nós
(...) antes hábito, do que memória, ela desempenha nossa
experiência passada, mas não evoca sua imagem. A outra é a
memória verdadeira. Coextensiva à consciência, ela retém e alinha
uns após todos os nossos estados à medida que eles se produzem,
dando a cada fato seu lugar [...] 11.
11
Idem, p.124.
12
Idem, p.187.
13
Vale ressaltar que a obra de Bergson, propondo a desconstrução do pensamento tradicional sobre a
memória através da superação da dicotomia realismo-idealismo, recai muitas vezes no próprio idealismo.
14
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. In: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1976.
264
explicar a memória desde seus primeiros escritos15. Segundo Freud, a memória
possibilita a atualização de informações do passado – vivenciadas ou fantasiadas –
auxiliando na construção de novas representações. Neste sentido, se percebeu a
capacidade de reorganização das representações que formam o eu, interativo da
memória. Logo, a memória possui a subjetividade da representação e uma parte
exercida de forma irrepresentável, fora das simbolizações – a materialização. A
memória passa a ser, assim, seletiva, rearranjando e reorganizando os traços mnêmicos
a partir da complexificação da análise.
Percebe-se que as questões de memória, comuns durante o século XIX, foram
encontrando pontos de apoio centrais no início do século XX. Siegmund Freud e Henri
Bergson foram contemporâneos destas questões que cruzaram disciplinas como a
filosofia, a neurologia, a psicologia e a literatura. Bergson se referiu a Freud no segundo
capítulo de sua obra Matéria e Memória 16; Freud também se referiu a Bergson em seu
texto O chiste e sua relação com o inconsciente17. Esses dois autores se aproximaram,
também, ao perceberem que a relação entre os processos fisiológicos dos processos
nervosos e os processos mentais não é estabelecida como uma relação de causa-efeito.
Contudo, esses autores não encontraram uma sistematização total entre seus
pensamentos: Bergson criticou a teoria da representação proposta por Freud, enquanto
esse se distanciou do pensador francês ao propor uma Naturwissenschaften (ciência da
natureza) afastada das problematizações filosóficas. Essas teorizações propostas na
transição do século XIX para o XX atingiram, durante o próprio século XX, diretamente
as ciências do homem. Com isso, a Ciência Política, a História e a Sociologia passaram
a utilizar e a adaptar conceituações e a efetuar análises acerca da memória.
Provavelmente Maurice Halbwachs (1877 – 1945) foi o primeiro autor que
claramente conseguiu teorizar as necessidades de análise conectada entre a memória,
amplamente pensada a partir dos prismas filosóficos até o seu momento, e a sociedade.
Sociólogo de orientação durkheimiana elaborou algo como uma sociologia da memória
15
O autor partiu da interpretação de que qualquer teoria psicológica relevante deveria analisar a memória.
Cf.: FREUD, Siegmund. (1996d). Carta 52. (Edições Estandart Brasileira das Obras Psicológicas
Completas de Sigmund Freud, Vol. 1). Rio de Janeiro: Imago, p.351. (Originalmente publicado em 1950).
O autor foi além e introduziu a noção de Errinnerungarbeit [trabalho da memória] plenamente
consonante com a noção de ‘trabalho de luto’ e ‘melancolia histórica’. Sobre o conceito de trabalho da
memória, cf.: Freud, S.: Erinnern, Wiederholen, Durch-arbeiten. Studienausgabe Ergänzungsband:
Behandlungstechnik, S. 205-215. Frankfurt/M.: Fischer 1914.
16
Op. Cit.
17
FREUD, Siegmund (1905/1993). O Chiste e sua Relação com o Inconsciente. In: Obras Completas, 2ª
edição, 5ª re-impresão, Buenos Aires: AE, tomo VIII, 1993.
265
coletiva. Nesta, a capacidade de lembrar se localizava como possibilidade de
manifestação do grupo sobre o indivíduo possibilitando a análise sociologicamente
orientada ultrapassando as características psicologizantes da memória, tal qual era feito
anteriormente. Duas obras suas se destacaram neste quesito: Les cadres sociaux de la
mémoire18, de 1925 e sua obra póstuma A Memória Coletiva19, publicada em várias
reimpressões desde a década de 1950.
Estas obras acabaram se transformando em uma espécie de porto, no qual
praticamente todos autores posteriores se ancoram, seja para concordar, seja para
refutar20. A tese de Halbwachs pode ser resumida nos seguintes termos: partindo do
pressuposto de que existe uma interação entre o indivíduo e o grupo, percebe-se que a
memória manifestada no interior do ser, chamada de memória individual, também
interage com uma memória coletiva. E mais, passa-se a ser possível perceber que a
memória individual existe sempre a partir de uma memória coletiva, posto que todas as
lembranças são constituídas no interior de um grupo, dos mais diferenciados tamanhos,
o que, automaticamente, garante ao próprio grupo a coesão e a unidade coletiva
necessária a sua manutenção e reafirmação 21 – nítida possibilidade de utilização na
defesa de possibilidades nacionalistas, se for pensada a necessidade que estas possuem
de autoidentificação. Aponta, com isso, que as lembranças podem, partindo da interação
indivíduo-coletividade, ser reconstituídas, simuladas ou esquecidas independentemente
das possibilidades individuais. Ou seja, o grupo se sobrepõe, mesmo que indiretamente,
às memórias dos sujeitos.
Outros autores se somaram à discussão acerca da memória, especificando o seu
relacionamento social e com a História enquanto prática intelectual. Este é o caso,
também, do historiador francês Jacques Le Goff (1924 – 2014). Badalado medievalista
Le Goff possuiu uma obra plenamente debatida, defendida e acusada ainda em vida.
Todavia, lançou-se além das análises concretas, muitas vezes criando artefatos e
análises conceituais. Este é o caso, por exemplo, de seu texto História e Memória, de
198822. Reunindo textos escritos entre 1977 e 1982, Le Goff buscou reconstituir os
18
HALBWACHS, Maurice. Les cadres sociaux de la mémoire. Paris : PUF/Albin Michel, 1997.
19
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Ed. Centauro, 2004.
20
Como referência a esse fator, pode-se lembrar das obras: NORA, Pierra. Les Lieux de Mémoire. Paris
: Gallimard, 1996 (original de 1984); e POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos
históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n. 3, 1989, p3-15 (original de 1989).
21
Idem, PP. 51-52
22
LE GOFF, Jacques. História e Memória. 3ed. Campinas : Editora da UNICAMP, 1994.
266
conceitos de história/História através das problematizações usuais dentro da corrente
dos Annales. Assim sendo, para exemplificar esta dinâmica conceitual, analisou
dualidades antitéticas, como antigo/moderno, passado/presente, progresso/reação e
não-antitéticas, como documento/monumento. Além destes binômios, contudo, analisou
conceituações específicas, como idades míticas, escatologia, decadência, calendário e,
por fim, memória.
Em sua obra partiu de certa civilização da memória, apropriação pertinente, caso
se leve em conta a aproximação deste autor com a Antropologia e a Sociologia. Com
isto, a memória passou a ser encarada como uma representação do passado, histórica e
social. Partindo disto, percebe-se a disputa pela ‘propriedade’ da memória tida e
chamada, muitas vezes, de oficial. Como medievalista, analisou o fenômeno da
memória, recordação, pensando o estabelecimento do culto aos mortos, o 2 de
Novembro, o dia de finados, ocorrido durante a Idade Média – sociedade conhecida pela
veneração ante as possibilidades da memorabilia. Essa complexidade da memória
socialmente pensada pode ser notada, por exemplo, na transição dos vínculos de
memória oral para a memória escrita. Neste sentido, o autor identificou a relevância
deste fenômeno para determinado grupo sócio-cultural problematizando a própria
imaginação presente no ato de lembrar que, muitas vezes, necessita de uma
sistematização racionalizável identificada, automaticamente, com a produção
historiográfica.
Seria, no entanto, outro pensador francês, não um historiador, mas sim um
filósofo, que demonstraria a plena interação entre História e memória inserindo as
discussões acerca da temporalidade (história) e da narratividade (estória) – temas tão
caros aos historiadores do tempo presente. Paul Ricoeur (1913 – 2005) se estabeleceu,
após a Segunda Guerra, como um dos nomes mais completos ao se pensar a filosofia do
século XX. Responsável por organizar o encontro entre o historicismo, a hermenêutica,
o existencialismo, notadamente o cristão, e a fenomenologia23, escreveu três das mais
importantes obras da parte interativa entre Filosofia-História-narrativa-memória:
23
BARROS, José D’Assunção. Teoria da História: Acordes historiográficos: uma nova proposta
para a teoria da história. Petrópolis : Editora Vozes, 2011.
267
História e Verdade (1955), Tempo e Narrativa (em três volumes, escritos entre 1983 e
1985) e A memória, a história, o esquecimento (2000)24.
A organização sugerida no título, A memória, a história, o esquecimento, cria a
lógica central da obra: em primeiro o ato de lembrar, a memória enquanto tal; então a
História enquanto prática de narratividade humana; por fim, o esquecimento como
dimensão da condição histórica humana. Originalmente as manifestações da memória
foram vistas como matrizes para a prática da História. Nesta mesma medida, a
historiografia desenvolveu seu próprio percurso, buscando novas possibilidades de fonte
até a operacionalização das explicações chegando à elaboração do próprio documento
histórico como obra literária narrativa. Já no século XX, em uma época de incerteza
epistemológica, que atingia a História, e instabilidade social, que se chocava com a
memória, Ricoeur pensou nesta além da possibilidade de se estabelecer como base à
História, indo além, e propondo uma reapropriação.
O fenômeno da escrita histórica acabou afastando a proximidade entre
História/memória, segundo Ricoeur. Com isso, a memória deixou na História, pensada e
problematizada por uma prática cientificamente orientada, exatamente a sua ausência de
concretude verdadeira, verificabilidade epistemológica pela falta. A História Cultural,
substituindo a desacreditada possibilidade ofertada pela análise das mentalidades, teve
como uma de suas pretensões reunificar esse par. Todavia, uma modificação profunda
se estabeleceu nesse quesito: se antes a memória surgia como uma matriz da História,
agora, já era seu objeto analisável. Porém, esta mesma memória acaba tendo um caráter
plenamente seletivo, o que não escapou a Ricoeur.
Muitas vezes, a memória e a História, por mais próximas que fossem,
independentemente do período, buscavam, por parte dos atores sociais envolvidos em
processos temporais, afastar-se. Com isso, notam-se questões acerca deste
relacionamento: o mal-entendido promovido por historiadores e ‘advogados’ da
memória; o dever social e/ou individual da memória; os usos e abusos da ausência da
memória, o esquecimento. Estas questões, vinculadas direta ou indiretamente à
percepção de alteridade do autor, acabaram demonstrando a necessidade da produção
historiográfica, pensada a partir das possibilidades da memória, ser conduzida com
princípios da eticidade – ponto tão relevante e denso no pensamento de Ricoeur, que
24
RICOEUR, Paul. História e Verdade. Rio de Janeiro : Companhia Editora Forense, 1955; ______.
Tempo e Narrativa. São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2010 (em 3 volumes); ______. A
memória, a história, o esquecimento. Campinas : Editora da Unicamp, 2007.
268
percebia, como função do par História/memória, justiça às vítimas através do não-
esquecimento.
As questões analisadas por Paul Ricoeur ao longo de seu caminho intelectual
foram, antes mesmo da publicação de suas propostas, pensadas por outros autores.
Assim, e sem nenhum demérito, Ricoeur se firmou muito mais como um intérprete que
percebeu seu mundo intelectual do que um teorizador de sistemas interpretativos. O
sociólogo e teólogo austro-americano Peter Berger (n.1929) já percebia a interação entre
a memória e a adaptabilidade à presentividade em seu Perspectivas Sociológicas
(1963)25. Em partes específicas desta obra o autor demonstra o constante processo de
significação e ressignificação da memória, sugerindo que a relevância temática e as
possibilidades interpretativas são muito mais exemplificadas pelas características do
presente do sujeito que interpreta do que pelo fenômeno em si, ocorrido no passado.
Outros autores das mais variadas correntes e disciplinas se juntariam aos já
mencionados nessas análises acerca das manifestações históricas da memória. Louis
Mink (1921 – 1983), Pierre Vidal-Naquet (1930 – 2006), Krzysztof Pomian (n.1934),
Jean-Pierre Rioux (n.1939), Tzvetan Todorv (n.1939), François Dosse (n.1950) e Henry
Rousso (n.1954)26 são notáveis nesse sentido e demonstram, a amplitude das discussões
entre os séculos XX e XXI. Mais do que simples lembrança, a memória, durante os
séculos passados foi teorizada, questionada, esquecida e racionalizada. Ainda assim, ao
se falar de memória, fala-se daquela centelha inicial da produção historiográfica. A
memória, assim, passa a ser aquilo que, originalmente, ligou a história à História, o
passado vivido à análise presente. E mais, partindo destas noções acerca da memória, o
tempo humano foi se autointerpretando e criando artefatos sociais, tal qual a política,
25
BERGER, Peter. Perspectivas sociológicas: uma visão humanística. 3ed. Petrópolis: Vozes de
Petrópolis, 1976.
26
MINK, Louis. Knowledge of the past: A Critique of Epistemological Theories With Respect to
Their Consequences for Knowledge of the Past. [dissertação de doutorado]. Yale University, 1952.
Infelizmente, em território brasileiro este pensador, um dos responsáveis pela guinada lingüística da
Filosofia da História, ainda aparece como praticamente desconhecido. VIDAL-NAQUET, Pierre. Leas
assassins de la mémoire. Paris : La Découverte, 1987. POMIAN, Krzysztof. De l'histoire, partie de la
mémoire, à la mémoire, objet de l'histoire. Revue de métaphysique et de morale, n.1, mars, 1998.
RIOUX, Jean-Pierre. A memória coletiva. In: ______. SIRINELLI, Jean-François (orgs). Para uma
história cultural. Lisboa : Estampa, 1997. TODOROV, Tzvetan. Les abus de la mémoire. Paris : Arléa,
1995. DOSSE, François. A história. São Paulo : Editora UNESP, 2012. ______. História e Ciências
Sociais. Bauru : EDUSC, 2004. ROUSSO, Henry. Le syndrome de Vichy. Paris : Seuil, 1987. ______;
CONAN, Eric. Vichy, un passé qui ne passe pas. Paris : Fayard, 1994. ______. La hantise du passé.
Paris : Textual, 1998. ______. Vichy, Crimes contra a Humanidade e Julgamento por Memória
[tradução de Leandro Couto Carreira Ricon]. Rio de Janeiro: Tempo Presente, 2009.
269
que iria se transformando, aos poucos, desde o início do processo de escritura da
história, em uma das principais matérias-prima da prática historiográfica.
27
Percebe-se, também a partir desta interpretação, que desde o momento no qual a produção
historiográfica se fundamenta, está vinculada às demandas do próprio presente que escreve. Aquilo que
Benedetto Crocce escreveu em História, pensamento e ação, “toda história é contemporânea”, já aparece
como verdade na formação da própria historiografia. Cf: CROCCE, Benedetto. História, pensamento e
ação. Rio de Janeiro: Zahar, 1964.
270
no início da Antiguidade, foram se estabelecendo a partir de relacionamentos mútuos e
necessários entre si28.
Os primeiros povos, não detentores de sistemas de escrita, possuíram narrativas
oralizadas. Estas parecem ter servido para demonstrar a união dos homens com algo
além: deuses, natureza ou quaisquer outros fenômenos inexplicáveis para aqueles
indivíduos. Além disso, nota-se uma característica de função genealógica coletiva, ou
seja, os homens buscaram pensar de onde vieram, lembrar suas origens. Com isso,
narrar o passado passou a servir para mostrar a união humana ao mundo natural,
legitimando-se como existente. Com a dinâmica social se acelerando e ocorrendo maior
hierarquização social, essa legitimação perante a natureza foi, aos poucos, se
transformando em legitimação político-social. Aqui as sociedades já possuem nome e
conhecida organização administrativa, como é o caso dos egípcios, dos sumérios, dos
babilônios. Acerca desses grupamentos humanos com uma razoável definição de
política, Josep Fontana afirmará:
28
Essa interação já ficou evidenciada em textos célebres da historiografia, como FONTANA, Josep. A
História dos Homens. Bauru : EDUSC, 2004.
29
Idem, p.23.
271
literário, tal qual a comédia e a tragédia, mas se utilizando da memorabilia e, aos
poucos, se convertendo em narrativa do real – característica sine qua non de qualquer
corrente historiográfica até o tempo presente. Essa, a historiografia grega, formada, em
torno do século V a.C. por uma transição entre as explicações mitológicas e as
históricas, se afasta das orientais por não focar na mera transmissão de informações sem
análises mínimas. Logicamente o contexto no qual surgiram as narrativas históricas
gregas é bem diferente do que ocorre no meio oriental, notadamente o mundo grego
possuiu uma presença maior das atividades sociais o que acabou relativizando a
necessidade das explicações genealógicas baseadas em mitologias politicizantes que
buscassem legitimações especificamente religiosas. A História passava a ser ponto
fundamental da vida dos gregos30.
Chamado de ‘pai da História’, Heródoto de Halicarnasso (484a.C. – 425a.C.) em
certa medida foi um continuador de Hecateu de Mileto. Sua obra Historias mesclam
uma pluralidade de temas baseada, geralmente, em fontes orais. Ou seja, os gregos
como um todo e Heródoto em particular, perceberam a necessidade de se escrever o
oral, transferindo as possibilidades da verdade do próprio oral para o escrito. Com temas
acerca da política e da beligerância, Heródoto foi importante na criação de um sentido
de coletividade que passou aos gregos uma vontade de resistência perante os invasores
através da demonstração da estabilidade das instituições conhecidas.
Se Heródoto é o pai da História, Tucídides (460a.C. – 400a.C.) é algo como o
fundador de uma possível metodologia histórica 31. Buscando a verdade, característica
notável do pensamento antigo grego, estabeleceu parâmetros racionais para a pesquisa
histórica tentando, cada vez mais, afastar as mitologias das narrativas. Seu tema central
se estabeleceu em torno da História político-militar e buscou a explicação básica das
guerras, principalmente a Guerra do Peloponeso (431a.C. – 404a.C.)32, que, inclusive,
30
A produção histórica no ambiente cultural grego foi tão significativa que o historiador Felix Jacoby
conseguiu contar a produção de mais de 800 historiadores gregos, incluindo autores que se aproximavam
das narrativas mitológicas e os logógrafos que, como Hacateu de Mileto, apenas recolhiam dados e
narravam sem verificações de validação. Cf.: JACOBY, Felix. Die Fragmente der griechischen
Historiker. Berlin : Weidmann, 1923.
31
Nesta época, é comum as obras gregas terem três partes: uma primeira que funciona como justificativa
e demonstra a importância do tema; uma segunda, próxima a uma metodologia na qual se explica como se
obteve as informações; por último, a própria articulação da obra. Cf: LÓPEZ EIRE, Antonio;
SCHRADER, Carlos. Los orígenes de la oratoria y la historiografía en la Grecia clásica.
Departamento de Ciências da Antiguidade da Universidade de Saragoça, 1994.
32
Tucídides já afirmava que ‘a ação humana ou é política ou é nada’ apud MOMIGLIANO, Arnaldo.
The classical foundation of modern historiography. Berkley: University of California Press, 1990,
p.41.
272
daria título a sua principal obra33, analisando suas origens e seu desenrolar34. Percebe-
se, em Tucídides, dessa forma, uma preocupação com o presentismo histórico35, ou seja,
concentrou-se em seu próprio tempo presente e nos assuntos internos que ocorriam no
mundo grego36.
A partir do século IIa.C. percebe-se um crescimento da historiografia romana,
decorrente, em certa medida, pelo amplo processo de helenização cultural ocorrida em
Roma neste período. Essa nova possibilidade se consolidaria no processo de transição
da República para o Império no primeiro século antes de Cristo. Destarte, Políbio
(203a.C. – 120a.C.), historiador grego, seria relevante para a compreensão desta
transição uma vez que foi um de seus maiores influenciadores. Políbio escreveu para os
gregos sobre os romanos demonstrando os motivos que fizeram Roma se estabelecer
como um dos maiores pólos políticos e militares do período através de análises políticas
e de temas acessórios37.
Com esse pequeno panorama acerca da produção dos gregos percebe-se a
formação inicial da historiografia ocidental que, em seu início, foi amplamente política,
característica que se manteria direta ou indiretamente até a atualidade. Roma manteria
as principais características da historiografia grega, resultado possível da interação com
historiadores gregos como Políbio e Dionísio de Halicarnasso 38: uma produção
significativa acerca da política com visas à legitimação política. Ademais, em Roma se
estabeleceu com clareza a noção de que a História serve para ensinar tanto atitudes
quanto possibilidades morais àqueles que a estudam.
Historiadores gregos e romanos percebiam que suas análises, muitas vezes,
focava-se no presente ou no passado recente, por isso a oralidade passa a ter relevância
específica. Todavia, os romanos, pensando em um afastamento temporal maior passam
33
TUCÍDIDES. História da Guerra do Peloponeso. 4ed. Brasília : EDUNB, 2001.
34
MOMIGLIANO, Arnaldo. La historiografía griega. Barcelona : Crítica, 1984.
35
A História dos gregos está amplamente vinculada ao tempo em que se vive sendo, muitas vezes,
‘biógrafos de seus próprios tempos’, cf.: COLLINGWOOD, Robin. The Idea of History. New York :
Oxford University Press, 1994.
36
Neste sentido, Aristóteles (384a.C. – 322a.C.) foi um dos únicos autores a pensar nas classes sociais
demonstrando interesse pelas menos favorecidas. Cf: GRANT, Michael. Historiadores de Grecia y
Roma: información y desinformación. Madrid : Alianza Editorial, 2003.
37
ROUSSEL, Denis. Los historiadores griegos. Buenos Aires : Siglo XXI, 1975.
38
Os historiadores aprendem latim para ter acesso a outras fontes, deixando suas características e
demandas de pesquisa histórica em Roma, consequentemente influenciando este território. Cf: LÓPEZ
LÓPEZ, Matías. La historiografía en Grecia y Roma: Conceptos y autores. Universitat de Barcelona:
Lleida, 1991.
273
a dar mais importância à fonte escrita sem, contudo, o devido tratamento rigoroso 39.
Essa ausência de rigor, porém, não afetava a função da produção: notadamente a
História para os romanos era um artefato pedagógico com a função de construção de
modelos em prol de uma moralidade comum. A História era, agora, um manual e Marco
Túlio Cícero (106a.C. – 43a.C.), orador e político romano, buscando eliminar
deficiências na produção e propondo uma historiografia mais densa, seria fundamental
neste quesito40: era a formação de uma Historia Magistra Vitae.
Cícero afirmaria, em seu De Oratore (II, 36) que “A História é a testemunha dos
tempos, a luz da verdade, a vida da memória, a mestre da vida, a mensageira da velhice,
por cuja voz nada é recomendado senão a imortalidade do orador”41. Vinculando a
História à memória sistematizada, Cícero demonstrou que a História teria por função
principal ensinar aos homens o que deveria ser feito, partindo dos exemplos do passado.
A interpretação acerca da dinâmica do tempo teve papel fundamental nesse fator: para
os romanos, assim como para os gregos, o tempo é cíclico. Logo, as questões e atuações
sociais, políticas e individuais tenderiam se repetir ou, pelo menos, a se reaproximarem,
o que leva a uma necessidade clara de se resgatar o passado para as atuações do
presente42.
O historiador francês contemporâneo François Hartog (n.1946), especialista em
História Antiga e com relevante produção na área de Teoria e Filosofia da História,
afirmaria em certa ocasião acerca deste modelo de produção historiográfico proposto
em Roma por Cícero:
39
Além do problema da fonte, essas produções historiográficas ainda possuem problemas como erros
cronológicos e de datações, recusa de qualquer possibilidade de objetividade e um pleno ‘etnocentrismo’,
que os coloca como o centro de cultura do mundo conhecido. Cf: CHÂTELET, François. El nacimiento
de la Historia: la formación del pensamiento historiador en Grecia. Madrid : Siglo XXI, 1978.
40
Cícero não atingiu essa crítica historiográfica através de uma produção mas sim através do comentário
e da crítica à produção de outros autores
41
No original “Historia vero testis temporum, lux veritatis, vita memoriae, magistra vitae, nuntia
vetustatis, qua voce alia nisi oratoris immortalitati commendatur.” CICERO, Marcus Tullius. On oratory
and orators. Tradução de J. S. Watson, New York : Harper & Brothers, 1860.
42
Pode-se pensar, por exemplo, no crescimento da produção biográfica como exemplificadoras de
atitudes a serem ou não seguidas após o estabelecimento da interpretação de Historia magistra vitae: o
grego Plutarco (46 – 120) escreveu as suas biografias em par Vidas Paralelas com nítidas características
de elogio, se pensarmos na biografia dupla de Alexandre e César; o romano Suetônio (69 – 141), por sua
vez escreveu o seu A Vida dos Doze Césares com nítidas características de crítica. Ou seja, a História,
enquanto mestra da vida, serviria tanto para demonstrar atitudes positivas e que deveriam ser
reproduzidas na medida do possível, quanto negativas, que deveriam ser anuladas ou, ao menos,
afastadas.
274
Coletânea de exemplo, ela é a ‘mestra da vida’ (magistra vitae).
Visando formar o cidadão e esclarecer o político, ela deve também
ser capaz de servir para a instrução do ser humano individual.
Narrativa das inconstâncias da Fortuna, ela deve ajudar a suportar
as reviravoltas de situação, propondo exemplos para imitar ou
evitar. Transformando-se, desde então, de bom grado, em história
de vidas, ela se mostra atenta a tudo o que não se vê
imediatamente, a todos os indícios que Plutarco designa
especificamente como os ‘sinais de alma’. Ela serve-se do
encadeamento: admiração, emulação e imitação. História
filosófica, ou seja, moral, ela é o espelho em que cada um, através
dos retratos esboçados e do relato de episódios secundários, pode
observar-se com o objetivo de agir em melhores condições e se
tornar melhor.43
43
HARTOG, François. Evidência da história: o que os historiadores veem. Belo Horizonte : Autêntica
Editora, 2011.
44
KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em
movimento. In: ______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro : Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p,42.
45
MOMIGLIANO, Arnaldo. Op. Cit., ROUSSEL, Denis. Op. Cit.
275
tempo: no período posterior, a Idade Média, a História ainda reinaria como sendo
mestra da vida através de novas propostas e objetos.
Já no medievo, período que a historiografia mais tradicional localiza entre a
queda do Império Romano do Ocidente e a tomada de Constantinopla46, houve uma
tendência a se afastar a História ‘profana’ em prol das análises vinculadas à fé: seria a
época de hegemonia do cristianismo. Diferentemente da fase final da Antiguidade
Clássica, a historiografia medieval vinculada ao cristianismo buscou explicações em
causas externas à sociedade, ideia essa desenvolvida desde Agostinho de Hipona (354 –
430) em obras como A Cidade de Deus e Confissões. As explicações históricas deste
período, utilizando a Bíblia como fonte, retornam até a criação do mundo e indagam o
futuro humano reinterpretando profecias, buscando cruzar questões históricas,
filosóficas e teológicas em um mosaico de convencimento social da cultura pregada que
visava legitimar a primazia da Igreja através das afirmações da fé 47. Logo,
46
Essas divisões servem apenas como um marco temporal sem valor prático para a historiografia. A
discussão sobre a datação deste período pode ser melhor compreendida em DAVIES, Norman. Europe:
A History. Oxford : Oxford University Press, 1996.
47
MOMIGLIANO, Arnaldo. The classical foundation of modern historiography. Berkley: University
of California Press, 1990.
48
FONTANA, Op. Cit., p.69.
49
Sobre esse tema, cf.: RUST, Leandro Duarte. Mitos papais: política e imaginação na história.
Petrópolis : Vozes, 2015.
50
FONTANA, Op. Cit. p.73.
276
A igreja e a nobreza estabeleceram a teoria das três ordens ou
estados – os cavaleiros, os clérigos e os que trabalham – para
justificar, com a pretensão de “divisão social” das
responsabilidades coletivas, uma situação de privilégio. A visão de
mundo, elaborada conjuntamente, tinha fundamento na
interpretação da história escrita nos mosteiros e nas cortes.51
51
Idem, p.80.
52
LeGOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Paul. Dicionário Temático do Ocidente Medieval. Bauru :
EDUSC, 2006.
53
BASCHET, Jérôme. A Civilização Feudal: Do Ano 1000 à Colonização da América. São Paulo:
Globo, 2006.
54
Pode-se lembrar que durante o feudalismo a historiografia cavalheiresca, os anais e as crônicas
políticas, úteis aos micropoderes, se afastaram dos monastérios para serem acessíveis a uma população
que não conhecia o latim e que era pouco letrada.
55
Para se compreender o quanto a noção de relevância do lembrar se mantém na Idade Média pode-se
perceber a ampla quantidade de encomendas de obras históricas feitas por nobres e homens com posses
suficientes para tal: era importante deixar registrada a própria vida quando se julgava importante e, no
mundo cristão, um pleno seguidor dos exemplos do Cristo. Cf.: CAIRE-JABINET, Marie-Paule.
Introdução à Historiografia. Bauru : EDUSC, 2003.
277
Foi, entretanto, na península Itálica que surgiriam inovações culturais adaptadas
no trânsito das propostas da Antiguidade e do medievo que, mais uma vez,
reestruturariam a produção e o pensamento histórico ocidental. Na península em que
coexistiam monarquias e repúblicas ocorreria o início do Renascimento, um processo
que modificaria os sistemas propostos até então, partindo de uma nova interpretação de
mundo e de homem e, consequentemente, da História, que ganharia ou, ao menos,
fortaleceria novas possibilidades metodológicas internas, através de novos temas, como
a História da arte56, e formas de pesquisa, como as buscas bibliográficas; e externas,
através do estabelecimento de outras ciências que auxiliariam as pesquisas históricas,
tais como a arqueologia e a genealogia, que tiveram seu início de sistematização durante
a Idade Média. Nesse contexto, a legitimação política ofertada pela História e os
resgates de personagens necessários vão se manifestando em novos corpos.
Uma das possibilidades de datação do início da Idade Moderna, o Renascimento
trouxe novas possibilidades para a História: uma nova consciência política se
manifestaria, rapidamente, na escrita histórica, notável, por exemplo, pelo amplo resgate
das Histórias não-eclesiásticas. Reapropriando-se da Antiguidade clássica, o
Renascimento manteve a noção de entrelaçamento entre a História e a política, tal qual
proposto por Tito Lívio 57. Com isso, retórica e política coexistiam nessa produção
historiográfica, notadamente oferecendo provas e argumentos àqueles que buscavam a
consolidação política. Por isso mesmo, os historiadores antiquaristas que a praticavam
não criaram possibilidades plenas para a crítica documental58.
Uma das mais contundentes críticas propostas pelos renascentistas estava na
significativa vinculação entre a Igreja e a atividade política. Se essa realidade era válida
e indiscutível para a interpretação medieval, não se mantinha de forma clara para a
realidade de um novo mundo que se modificava a passos rápidos e que acompanhava o
resgate, adaptado ao medievo anterior, da Antiguidade. A possibilidade de fusão entre
política e Igreja, enquanto representadora de administração territorial europeia, estava
certamente apoiada na Doação de Constantino, um documento no qual o imperador
56
A arte, característica fundamental do Renascimento e sem a qual este seria menos discutido sem
dúvidas, entrou para as possibilidades históricas de análise neste próprio período, como nos atesta a obra
de autores como Giorgio Vasari (1511 – 1574), um dos responsáveis por essa transformação das
produções artísticas em fonte histórica passível de análise.
57
COCHRANE, Erich. Historians and historiography in the Italian Renaissance. Chicago : London :
The University of Chicago Press, 1981.
58
FALCON, Francisco. História e Poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion Santana, VAINFAS, Ronaldo
(orgs). Domínios da Historia: ensaios de teoria e metodologia. 4ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 1997.
278
Constantino I teria doado ao Papa Silvestre I terras do Império Romano formando algo
como um original Patrimônio de São Pedro. Essa crença, necessária ao poderio da Igreja
foi questionada desde a Idade Média sem grande força, todavia – temia-se o amplo
poder da instituição. Porém Lorenzo Valla (1407 – 1457) conseguiu demonstrar a
falsidade do documento em 1440 com a obra De falso credita et ementita Constantini
donatione. O texto de Lorenzo Valla não era exatamente aquilo que usualmente se
chama de crítica histórica, sendo muito mais um texto de uso político e religioso que se
estabeleceu a partir de críticas documentais para demonstrar as conseqüências que a
Doação de Constantino acarretaram à Europa59.
Outros autores se somaram a Valla no desenvolvimento de uma nova
historiografia que direta ou indiretamente manteria as noções de legitimidade e um
caráter moralizante. Assim, homens como Maquiavel (1469 – 1527) e Guicciardini
(1483 – 1540), vinculados à política da época, começam a estudar a história em prol de
suas existências sociais. O primeiro deles, Nicolau Maquiavel, se tornou famoso e
odiado por suas reflexões políticas contidas n’O Príncipe (1513)60, livro que, separando
os artefatos éticos, componentes da vida privada, da política, presente na vida pública,
foi colocado pela Igreja no Índice de livros de leitura proibida. Republicano, conforma
atestam os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio61, Maquiavel, um dos
fundadores daquilo que passaria a ser chamado de Ciência Política, se vinculou a certo
realismo político inicial do Renascimento. Associando história e política de maneira
pragmática, se utilizou de uma identificação entre a sua Florença e a Roma republicana
para elaborar uma história que servisse de base a uma reflexão sobre a sociedade
relacionando, então, filosofia e política62. Ou seja, utilizou a história para explicar o
presente, o que o afastou dos humanistas retóricos de sua época63.
Os textos do Renascimento, Maquiavel é prova disso, resgatam ainda a
característica histórica fundamental para o período que a Antiguidade cunhou e o
medievo consolidou: ainda são obras que focam no topos Historia magistra vitae. Seu
O Príncipe e os Discorsi são provas irrefutáveis disto e se apresentam como uma série
59
Para uma melhor compreensão do pensamento e da obra de Lorenzo Valla, cf.: VITORINO, Mônica
Valéria Costa. Lorenzo Valla (1407 – 1457). In: PARADA, Maurício. Os Historiadores Clássicos da
História: de Heródoto a Humboldt. Petrópolis : Vozes, 2012, p.127-149.
60
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
61
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Martins Fontes, 2007.
62
FONTANA, Op. Cit., p.90.
63
Idem, p.93.
279
de considerações e recomendações sobre aquilo que o governante deve fazer e aquilo
que deve evitar em prol da manutenção de seu poder contra uma existência governada
pela Fortuna.
Amigo pessoal de Maquiavel apesar de suas divergências políticas, Francesco
Guicciardini (1483 – 1540) teve outro relevante papel na configuração desta nova
abordagem historiográfica. Não abordando as motivações dos problemas sociais como
era razoavelmente comum em seu tempo, Guicciardini escreveu uma História da
Itália64, publicada postumamente no ano de 1561 por seus descendentes e que
prontamente se converteu em uma possibilidade para os historiadores responsáveis por
buscar a união nacional das monarquias ocidentais que passavam por seu processo de
formação. Influenciou assim, pelas mais variadas formas, direta e indiretamente, as mais
variadas escolas historiográficas do período posterior, marcado pelo recrudescimento
das possibilidades absolutistas65.
Dois autores são relevantes ao se pensar o processo de teorização histórica do
poder monárquico absolutista visando a autolegitimação, dois autores que, tal qual
Maquiavel, aparecem mais constantemente nos livros de Ciências Políticas mas que,
indubitavelmente, contribuíram, de uma forma ou de outra à História: Thomas Hobbes
(1588 – 1679) e Jacques Bossuet (1627 – 1704). O primeiro, Thomas Hobbes,
buscando a unidade do reino, utilizou indiretamente a história humana para fundamentar
seu Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil (1651)66,
obra na qual demonstrou que o contrato social estabelecido pelos homens deve ser
submetido a um amplo e absoluto poder centralizador – característica fundamental para
um Estado que passava por problemas estruturais tais como a Reforma Anglicana
proposta por Henrique VIII anos antes, que não conseguiu estabilizar a problemática da
coexistência religiosa, e as crises políticas, sociais e econômicas comuns no século
XVII que se encaminhariam até a Revolução Puritana e a Revolução Gloriosa.
Enquanto Hobbes defendia a lógica absolutista por sua tese contratualista, o
bispo francês Jacques Bossuet pensou na possibilidade do direito divino para a
legitimação da monarquia, o que o fez relevante na corte de Luís XIV. Em sua obra
64
GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Milano : Garzanti, 1988.
65
TEIXEIRA, Felipe Charbel. Francesco Guicciardini (1483 – 1540). In: PARADA, Maurício. Os
Historiadores Clássicos da História: de Heródoto a Humboldt. Petrópolis : Vozes, 2012, p.150-170.
66
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. São
Paulo : Editora Abril Cultural, 1984.
280
Discurso sobre a história universal (1681)67, uma teologia da história, desvalorizou as
mudanças históricas, focando apenas nas permanências o que, notadamente, era
necessário a um governo que se apresentava como enviado e representante de Deus na
terra. Com isso, acabou se transformando em um intérprete de uma nova possibilidade
de secularização do poder temporal e demonstrou a seus leitores a necessidade de se
seguir o estabelecido. Percebe-se, portanto, que já nesse início da Idade Moderna a
História se apresenta como a História nacional, aquela que já ensaia unificar social,
política e culturalmente os indivíduos, característica que, partindo de novos prismas e
gamas interpretativas, se ampliaria anos mais tarde através de uma nova possibilidade
sócio-cultural formadora de outra consciência.
Em meados do século XVII, entretanto, as monarquias absolutistas começaram a
ser questionadas por um grupo que usou-se denominar iluminista. Este grupo, apoiado
na possível ‘luz da razão’ atacou a presença das teses legitimadores de Thomas Hobbes
acerca da necessidade da centralização de poder para efetivação do contrato social e
Jacques Bossuet a respeito do poder emanado por direito divino, invertendo sua lógica
argumentativa.
Na crítica ao pensamento hobbesiano é relevante o pensamento de Charles-Louis
de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu (1689 – 1755), mais conhecido por
esse seu último título, e Jean-Jacques Rousseau (1712 – 1778). Montesquieu é
reconhecidamente um dos fundadores do modelo de divisão de poderes, usual nas
repúblicas contemporâneas, a partir de sua obra O Espírito das Leis68. Nesta,
Montesquieu, partindo da Antiguidade Clássica, Roma, faz suas propostas de
diminuição do poder centralizado das monarquias sem anulá-las.
Rousseau, por seu turno, buscou uma nova interpretação acerca da possibilidade
do contrato social anteriormente já formulada por Thomas Hobbes – contrato social,
inclusive, seria o título de uma de suas obras mais significativas ao se pensar as relações
sociais69. Se em Hobbes, os homens existem em estado natural com formações más, em
Rousseau, o homem se apresenta como bom originalmente, sendo corrompido pela
67
BOSSUET, Jacques. Discours sur l’Histoire Universelle. Paris : Flammarion, s/d.
68
MONTESQUIEU. Do Espírito das leis. São Paulo : Martin Claret, 2007.
69
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a economia política e Do contrato social. Petrópolis :
Vozes, 1996. Cf. também: Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os
homens. São Paulo : Cultrix, s.d
281
sociedade. Para a fundamentação desta análise, logicamente, o retorno ao passado
histórico é necessário.
A crítica mais incisiva às propostas de Bossuet e à própria Igreja foi feita por
François Marie Arout, Voltaire (1694 – 1778). Reconhecido pela ironia presente em
seus textos, criticou a possibilidade de fusão política entre Igreja e Estado e mais,
criticou a presença da possibilidade da legitimidade divina da monarquia, notadamente a
francesa. Possuindo uma concepção filosófica da História, formou o início desta
modalidade de problematização já em seu verbete História escrito para a Encyclopédie,
editada por Jean le Rond d’Alembert (1717 – 1783) e Denis Diderot (1713 – 1784) em
1772 e em sua primeira obra propriamente histórica, História de Carlos XII, Rei da
Suécia, de 1731. Suas obras de maior interesse histórico, no entanto, permanecem sendo
os Ensaios sobre os Costumes e o Espírito das Nações de 1741 e O Século de Luís XIV
de 1751. Nestas obras, percebe-se um questionamento indireto à legitimação
monárquica baseada na hereditariedade e no direito divino, que desembocariam na
busca pela tolerância político-religiosa, um dos motes centrais da defesa humanista de
Voltaire, e o questionamento da fórmula Historia magistra vitae a partir das noções de
linearidade temporal progressiva e não-escatológica, tal qual o projeto eclesiástico 70.
O momento iniciado na parte final do Iluminismo guarda relevância significativa
para o pensamento historiográfico: a disciplina histórica iniciava mais um processo de
reconfiguração ao mesmo tempo em que o mundo se modificava. A Revolução
Industrial e a Revolução Francesa, acompanhadas de suas novas possibilidades e
interpretações, seriam marcos neste sentido. A História mudaria, serviria não mais para
legitimações de poderes monárquicos, sua função orientadora moralizante também
escorregaria ante as novas formas analíticas. Tal qual Montesquieu, Mably (1709 –
1785), escrevendo sobre a história, seria lido pelos revolucionários franceses como um
dos teóricos de uma nova possibilidade de republicanismo por defender a análise
histórica dos mecanismos sociais 71. Diderot seria retomado por compreender a História
como ferramenta útil à conscientização política72. Iniciavam-se as guerras pelas
70
Uma significativa coletânea dos textos mencionados de Voltaire pode ser encontrada em: VOLTAIRE.
A filosofia da história. São Paulo : Martins Fontes, 2007.
71
FONTANA, Op. Cit., p.129.
72
Idem, p.139.
282
narrativas do passado, que encontrariam, no século XIX germânico e francês seu palco
mais acalorado73.
Esse momento imediatamente posterior ao período do Iluminismo viu o debate
primeiro sobre o espólio da História inicialmente nos territórios germânicos. Immanuel
Kant (1724 – 1804) e Johann Gottfried von Herder (1744 – 1803) são exemplos
notáveis nesse cenário. Este último, partindo de Rousseau, pensador mais lido à época
nos territórios germânicos do que na França e influência também em Johann Christoph
Friedrich von Schiller (1759 – 1805)74, criticou o ultra-racionalismo iluminista por suas
características globalizantes em obras como Também uma filosofia da história para a
formação da humanidade (1774) e Ideias para a filosofia da história da humanidade
(1784 – 1791)75. Kant, por sua vez, propôs certa retomada da noção de progresso em seu
Ideias para uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784)76. A
historiografia alemã se curvaria mais a Herder do que a Kant mas o embate não seria de
fácil solução77.
A retomada de forma aprofundada e problematizada da noção de progresso
histórico, perceptível desde o início da Idade Moderna em autores como Francis Bacon
(1561 – 1626)78 e Giambattista Vico (1668 – 1744)79, coincidiria, nesse tom, com a
73
Logicamente esta noção proposta originalmente pelos iluministas também foi criticada teoricamente
por conduzir certa visão abstrata, mecânica e universalista dos homens. Sobre esse assunto, cf.:
ADORNO, Teodoro W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento. J. Zahar : Rio de Janeiro,
1988.
74
Vale ressaltar que, para os germânicos do romantismo, Rousseau foi considerado indiretamente um dos
fundadores do movimento.
75
HERDER, Johann Gottfried von. Também uma filosofia da história para a formação da
humanidade. Lisboa: Ed. Antígona, 1995. ______. Ideen zur Philosophie der Geschichte der
Menschheit. Wiesbaden: Fourier, 1985.
76
KANT, Immanuel. Idéias para uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. São Paulo
: Martins Fontes, 2003. Cf. também: ______. O texto Resposta à Pergunta: Que é Esclarecimento? In:
textos seletos. Petrópolis: Vozes, 1974. ______. Crítica da Razão Pura. Lisboa: Ed. Fundação Calouste
Gulbenkian, 2001. ______. Rezension zu Johann Gottfried Herders Ideen zur Philosophie der
Geschichte der Menschheit. In: Schriften zur Anthropologie, Geschichtsphilosophie, Politik und
Pädagogik. Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1977, vol. 2.
77
Para mais informações acerca do pensamento de Bossuet e sua teologia da história, Montesquieu e sua
doutrina histórico-social, Voltaire e sua crítica história e eclesiástica, Rousseau e seu pensamento social,
Herder e sua metafísica romântica e a Filosofia da História de Kant Cf.:DUJOVNE, León. La Filosofia
de La Historia desde El Renacimiento hasta El siglo XVIII. Buenos Aires : Ediciones Galatea, 1959.
Para aprofundamentos mais específicos, cf.: LÖWITH, Karl. El Sentido de La Historia. Madrid :
Aguilar, 1958.
78
Para uma leitura da relação da percepção baconiana de progresso com o tempo e com a produção
historiográfica, cf.: RICON, Leandro Couto Carreira. Da dedução à indução ou como quebrar os ídolos
e erigir uma 'Casa de Salomão' para a ciência histórica. Revista Poder e Cultura. , v.1, p.28 - 45,
2015.
79
PEREIRA FILHO, Antonio José. Giambattista Vico (1668 – 1744). In: PARADA, Maurício, Op. Cit.,
p.192-216.
283
relativização do topos Historia magistra vitae. Assim, a História modificaria seus
aparelhos legitimadores e perderia uma capacidade de exemplificação moral total dos
homens. Mas algo emergiria em uma sociedade conflituosa que busca, ainda no
passado, formas para seu existir: uma consciência histórica.
O século XIX viu emergir uma nova necessidade de prática histórica para
fundamentação da vida política. Enquanto anteriormente a História servia para a
manutenção de um binômio legitimidade e exemplificação, no século da História
passou a ser um aparato de legitimidade e cientificidade. Reflexo das novas
possibilidades humanas, essa nova formulação historiográfica se atrelou,
veementemente, às revoluções da época, notadamente a industrial e a francesa. Essas
revoluções, se não despertaram, afloraram uma nova interpretação da vida nos homens
de seu tempo. Na medida em que se percebeu a falibilidade de uma História mestra da
vida, acreditou-se que o tempo humano era progressivo.
Diferentemente do tempo cíclico proposto pela Antiguidade e da condução
progressiva-escatológica do pensado no medievo, o início da Idade Moderna, acreditou
no progresso. Assim, Francis Bacon, tido como, se não o, um dos fundadores do
procedimento científico 80, através de seu novo aporte teórico, base do empirismo
comum à época, acredita na percepção do conhecimento em somatório. Ou seja, para
este autor, toda a produção do intelecto humano não deveria ser considerada em
separado, mas sim como partes constitutivas de um todo indissociável. A partir disso,
seria possível uma sistematização das possibilidades do progresso intelectual, leia-se
científico, humano. Em Bacon, portanto, a História assume um caráter científico e,
como conseqüência, utilitário 81.
80
RUSSEL, Bertrand. História da Filosofia Moderna (4 volumes). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1967.
81
BACON, Francis. Novum Organum ou verdadeiras indicações acerca da interpretação da
natureza e Nova Atlântida. São Paulo: Nova Cultural, 2005. ______. Del adelanto y progreso de la
ciencia divina y humana. Buenos Aires: Lautaro, 1947.
284
Outro representante anterior ao XIX mas plenamente influente neste que
também modificaria conceitos de progresso e, assim, relativizaria a noção de Historia
magistra vitae foi Giambattista Vico. Reagindo contra o cartesianismo de sua época,
duas percepções de Vico são relevantes ao se pensar na História enquanto prática
cientificamente orientada – aquilo que seria tão necessário aos homens do século XIX.
Em primeiro, localiza-se a doutrina dos corsi e ricorsi. Segundo o autor, as sociedades
humanas possuem um curso (corsi), que as forçaria a passar por três etapas, a partir do
momento que esse ciclo evolutivo se completa, cada cultura efetuaria uma retorno
(ricorsi) à fase primeira em nível mais elevado. Com esta noção, Vico problematizou o
tempo cíclico igualitário e imutável dos antigos, a linearidade escatológica dos
medievais e o progresso absoluto baconiano.
A segunda percepção de Vico, estabelecida na teoria do conhecimento, pode ser
resumida de forma simples: os homens apenas podem conhecer verdadeiramente aquilo
que os próprios homens criam. É a doutrina do verum factum convertuntur – o
verdadeiro equivale ao feito. Desta forma, acima de tudo, o homem pode conhecer a sua
história e problematizá-la. Essas duas interpretações de Vico, presentes no Ciência
Nova82, somadas às possibilidades de autores como Francis Bacon seriam a base das
disputas acerca da noção de progresso, responsáveis pelo golpe de misericórdia nas
possibilidades de orientação exemplificativa da História. Ou seja, a proposta de um
novo conceito de progresso histórico, começou a se consolidar ainda no início da Idade
Moderna, conforme atestam as obras destes pensadores, atingindo seu máximo no
século XIX e definindo a nova forma de interpretar a História 83.
A nova noção de progresso estaria plena no século XIX, o século da História, ou
melhor, o século da crença no progresso da História. Autores como Hegel, Marx e
Comte oferecem, cada um a sua maneira, uma nova possibilidade para o melhor
entendimento da dinâmica desse conceito que formaria a base da consciência história
contemporânea e que, por sua vez, também seria relativizado no século XX, em um
mundo que passou a perceber um pleno aceleramento das dinâmicas conceituais.
82
VICO, Giambattista. Ciência Nova. Rio de Janeiro : Record, 1999.
83
Logicamente esse processo foi lento e teve outros nomes relevantes entre o início da Idade Moderna e o
início da formação dessa nova consciência histórica, pode-se lembrar, por exemplo, de Anne Robert
Turgot (1727-1781) e sua noção de ‘longa marcha do progresso’, mescla de todas as possibilidades
analíticas e do Marquês de Condorcet. Cf.: TURGOT, Anne-Robert-Jacques. Formation et distribution
des richeses. Paris : Flammarion, 1997; CONDORCER, Marquês de. Esboço de um quadro histórico
dos progressos do espírito humano. Campinas: UNICAMP, 1993.
285
Sucessor direto e contemporâneo de pensadores como Johann Gottlieb Fichte
(1762 – 1814) e Friedrich von Schelling (1775 – 1854), Georg Wilhelm Friedrich Hegel
(1770 – 1831) é nome fundamental em diversas tendências historiográficas do século
XIX. Seu pensamento, expresso em obras como Filosofia da História84, surgiu como
uma possibilidade de síntese dialógica entre a História teológica e a iluminista, duas
possibilidades amplamente afastadas pelas interpretações de mundo de seus respectivos
autores. Em Hegel, a percepção de Deus, característica da produção medieval, e a noção
de progresso histórico, visível no iluminismo, se unificam. Ou seja, a orientação do
progresso é feita de forma racional, uma racionalidade com característica universal.
Através dessa noção de progresso racional é possível estabelecer um sentido, uma razão,
de seqüenciamento humano no mundo. Com isso, “apenas para o filósofo há um sentido
na história, pois somente ele compreende que a racionalidade do realizado corresponde
à efetividade racional”85. Estava formado algo como um filósofo-historiador que seria
capaz de escrutinar os caminhos humanos. Tal noção de progresso racionalmente
acabaria influenciando autores como Comte e Marx que, com suas obras, ampliariam e
modificariam as possibilidades conceituais do progresso histórico até uma nova
possibilidade de consciência 86.
Na esteira da problematização do progresso humano histórico uma nova
disciplina germinaria. Estruturada pelo Conde de Saint-Simon (1760 – 1825) e,
principalmente, por Auguste Comte (1798 – 1857), seu secretário, a Sociologia se
ocuparia, em seu momento de formação, em pensar as possibilidades de progresso que
perpassariam todas as sociedades humanas. Com isso, a análise histórica deixaria uma
vez por todas, ao se pensar em suas possibilidades epistemológicas, as características
propedêuticas de mestra da vida.
84
HEGEL, G. W. F. Filosofia da história. UNB: Brasília, 2005.
85
KERVÉGAN, Jean-François. Hegel e o hegelianismo. Edições Loyola: São Paulo, 2008, p.109.
86
Apesar de pouco e superficialmente discutido nos cursos de História, o pensamento de Hegel,
notadamente influente para a disciplina, pode ser melhor e mais profundamente analisado em:
HYPPOLITE, Jean. Introdução à filosofia da história de Hegel. Lisboa : Edições 70, 1983; BEISER,
Frederick. O historicismo de Hegel. In. ______ (org). Hegel. São Paulo : Editora Idéias e Letras, 2014,
p.317-352; ARANTES, P. E. Hegel: a ordem do tempo. São Paulo: Editora Polis, 1981; KONDER, L.
Hegel: A Razão Quase Enlouquecida. Rio de Janeiro: Editora Campus, 1991; e TAYLOR, C. Reason
and History. In: Hegel. Cambridge University Press, 1975. p.389-427. MANIERI, Dagmar. Teoria da
História: a gênese dos conceitos. Petrópolis: Vozes, 2013.
286
Em Comte, a análise histórico-social é feita pensando-se em um progresso direto
e linear, para tal, o autor formulou sua Lei dos Três Estados87. Profundamente
influenciado por autores como Bacon, Descartes, Diderot, Condorcet e Turgot, Auguste
Comte fundamentou que todos os grupamentos sociais passariam por três etapas de
evolução intelectual. No primeiro momento, chamado de teológico ou fictício, os fatos
naturais e humanos são explicados e ganham sentido pela vontade sobrenatural que
arbitrariamente comanda a realidade; no momento seguinte, nomeado de metafísico ou
abstrato, os fenômenos passam a ser explicados por leis e fenômenos ocultos que,
apesar de não plenamente compreensíveis pelos homens, substituem a vontade pessoal
arbitrária e sobrenatural da primeira fase; no último momento, chamado de científico ou
positivo, os fenômenos, sejam eles naturais ou humanos, são analisados pela
racionalidade, deixando-se de lado as procuras pelas causas absolutas e pelas finalidades
últimas e se preocupando, apenas, em analisar como os fenômenos se encadeiam
diretamente88. Percebe-se, portanto, que a ideia de progresso histórico vai se
estabelecendo na medida em que o topos magistra vitae vai se relativizando, o que é
perceptível desde o início da modernidade. A noção de progresso histórico em sentido
tradicional, fruto direto daquilo exposto por Francis Bacon, por exemplo, daria lugar a
uma noção mais específica, uma noção de processo histórico, tal qual em Karl Marx.
Em Marx progresso e processo histórico se permeiam de sentidos. Autor
inescapável ao se tratar o pensamento social do século XIX, foi o sistematizador de uma
noção histórica dialética e materialista. Dialética porque, em Marx, a luta de classes
entre os diferentes se estabelece como uma ‘lógica de conflitos’ que move o
direcionamento histórico e materialista por se afastar da possibilidade de percepção
histórica consciente dos idealistas, tal qual postulada por Hegel – em Marx, a economia,
base de uma infra-estrutura, seria ponto central na formação da sociedade, envolta por
um meio de produção determinado. Esses fatores, a dialética e o materialismo,
fundamentam diretamente sua análise histórica estabelecida em prol de mudanças
sociais. Neste sentido, o progresso em Marx é notável na escalada natural da
humanidade para o comunismo através das sínteses dialéticas do mundo material.
Todavia, esse progresso apenas pode ser compreendido a partir da percepção de
87
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso
preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Seleção de textos de José Arthur
Gianotti. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
88
MANIERI, Dagmar. Op. Cit.
287
processo histórico pelo qual as diversas sociedades caminham. Ou seja, Marx, apesar de
estabelecer um ponto final nas relações de produção humana, o comunismo, nota a
individualidade processual de cada grupo89.
Marx, todavia, possui uma relevância mais complexa do que a recriação e
sistematização de interações conceituais: ele é um dos autores do século XIX a
plenamente demonstrar uma nova especificidade de consciência humana ante a história
movente. Após a Revolução Industrial e Francesa, uma ampla gama de autores começa
a se debruçar sobre a condição social dos homens, notadamente os trabalhadores. Estes
autores acabaram, muitas vezes, criando análises deslocadas da realidade do trabalho e
da vivência humana. Marx, por sua vez, demonstrou, incansavelmente, o caráter
alienador do trabalho e as possibilidades da ideologia. Esses dois novos termos, comuns
nas análises do autor, alienação e ideologia, demonstram, cada um a sua maneira, a
nova consciência possível de ser atingida. Em síntese, o conceito de alienação na obra
de Karl Marx se refere a um “estado no qual o indivíduo ou o grupo social torna-se
alheio ou estranho aos resultados ou produtos de sua própria atividade (ou, ainda, o
alheamento relativo à própria atividade em si mesma)”90. Ou seja, o próprio indivíduo
não reconhece sua posição de produtor material dentro do grupo social a que pertence.
Por outro lado, o conceito de ideologia é por demais amplo 91.
Enquanto que, no início do século XIX, Ideologia se apresentou como uma
possibilidade analítica acerca das ideias, Marx a utilizou enquanto “um conjunto de
crenças ou de concepções referentes à sociedade, ao lugar do indivíduo na sociedade, à
organização da sociedade e ao controle político da mesma” 92, responsáveis pelo
“falseamento da realidade”93. Com isso, percebe-se um sistema duplo no qual alienação
e ideologia existem como pares indissociáveis no controle social, muitas vezes
legitimados por classes sociais dominantes e específicas pela produção historiográfica 94.
89
É fundamental, no entanto, lembrar que as leituras vulgares da obra de Karl Marx, que apenas
subordinam o mundo real e socialmente construído da super-estrutura à infra-estrutura econômica do
modo de produção vem sendo relativizadas desde meados do século XX, notadamente com autores da
Escola de Frankfurt que conseguiram fundir o pensamento deste autor a novas percepções
epistemológicas sem anular suas problematizações.
90
BARROS, José D’Assunção. O projeto de pesquisa em História: da escolha do tema ao quadro
teórico. 6ed. Petrópolis : Vozes, 2010, p.191.
91
Para uma análise sobre a pluralidade de significados do conceito de ideologia, cf.: EAGLETON, Terry.
Ideologia. São Paulo : Editora Boitempo, 1997.
92
BARROS, José D’Assunção. Op. Cit., p.208
93
Idem
94
Para alguns textos referenciais de Karl Marx sobre o tema, cf.: MARX, Karl. Manuscritos econômico-
filosóficos. São Paulo : Nova Cultural, 1991; ______. Contribuição à critica da econômica política.
288
Partindo dessa nova possibilidade analítica, tal qual expressa com o conceito de
ideologia e alienação e através das possibilidades teóricas e metodológicas do
materialismo histórico e da dialética, Marx se apresentou como um dos notáveis nomes
que perceberam uma tomada de consciência social [de classe]. Todavia essa
consciência de classe, uma vez fundamentada na História, tornou-se, possivelmente,
uma das primeiras análises de uma consciência histórica.
Conceito denso e amplamente discutido no século XX, a consciência histórica
apresenta-se, hoje, como uma das mais largas possibilidades teóricas e interpretativas da
Teoria da História. A expressão consciência histórica aparece cedo na filosofia alemã,
como em Hegel e Wilhelm Dilthey (1833 – 1911), mas os debates acerca dessa nova
perspectiva tiveram sua gênese na segunda metade do século XX, sem grande
repercussão com autores como Hans-Georg Gadamer (1900 – 2002) e Agnes Heller
(n.1929) que de início percebem basicamente que os fatos históricos possuem
interpretações diferentes dependendo da ótica dos personagens envolvidos na trama.
Nesse sentido, buscava-se a resposta à pergunta quem somos nós? Este conceito, no
entanto, acabaria ganhando espaço e relevância no campo das ciências humanas apenas
no final da década de 1970, mesmo período de valorização da memória enquanto
categoria analítica, da crise das metanarrativas históricas tão bem representada pelos
debates pós-estruturalistas e de certo ressurgimento da História política, pensada a partir
de novas fontes, metodologias e olhares teóricos perceptíveis na Fraça após a retomada
de leituras da obra do sociólogo alemão Max Weber (1864 – 1920)95. Gadamer e Heller
percebem a consciência histórica como um fenômeno representacional que determinado
grupo possui devido a seu desenvolvimento no tempo 96. No entanto, este é o limite de
São Paulo : Flama, 1946; ______; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo : Hucitec, 2002.
Para uma análise sintética entre os conceitos de ideologia e alienação e seu relacionamento com a
História, ver: LÖWY, Michael. Ideologia e ciência social. São Paulo: Cortez, 1985; e BARROS, José
D'Assunção. O conceito de Alienação no jovem Marx. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP,
v.23, n. 1, p.223-245. MANIERI, Dagmar. Op. Cit.
95
Vale ressaltar que o interdito da História política ocorreu especificamente na historiografia francesa,
sem ocupar, contudo, todas as possibilidades teóricas e analíticas deste país. Ou seja, o que se buscou, na
própria França, foi tentar anular a História política atrelada à noção factual (événementielle), tão usual no
século XIX e parte do XX. Sobre os debates acerca da História política, seu ‘afastamento’ e sua
‘retomada’ especificamente no caso francês, cf.: RÉMOND, René (org). Por uma história política. 2ed.
Rio de Janeiro : FGV, 2003. DELACROIX, Christian; DOSSE, François, GARCIA, Patrick. Correntes
históricas na França: séculos XIX e XX. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2012.
96
Outros autores também se lançariam nesse debate acerca do conceito de consciência histórica, como é o
caso de Raymond Aron (1905 – 1983) para quem “a consciência do passado é constitutiva da existência
histórica. O homem tem realmente um passado a que ele tem consciência, pois só esta consciência
introduz a possibilidade do diálogo e da escolha. Caso contrário, os indivíduos e as sociedades trariam
289
entendimento entre estes autores que não chegariam a uma visão concordante acerca do
das características e fundamentações do conhecimento histórico.
Gadamer, celebrado filósofo germânico que se dedicou com interesse às análises
das Ciências Humanas, definiu, em uma de suas conferências, o fenômeno da
consciência histórica como sendo “o privilégio do homem moderno de ter plena
consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião”97. Com
isso, o autor defendeu a tese de que somente a visão contemporânea sobre o passado e
sua análise pode ser percebida como uma consciência histórica não existindo, com isso,
estágios anteriores pré-conscientes ou mesmo outras modalidades de consciência. Essa
consciência, ocidental e contemporânea, se apresentaria em todas as atividades
humanas, notadamente na prática intelectual das humanidades. Uma vez que se
fundamenta como possibilidade intelecto-temporal possibilita uma inserção do
indivíduo no seu tempo, localizando as permanências e rupturas perante o passado
anulando, assim, um anacronismo individual e gerando um senso histórico com a ideia
de processo contínuo que seria definido pelo autor nos seguintes termos:
consigo um passado que eles ignoram, que eles se submetem passivamente. Então eles não teriam
consciência do que eles são e do que foram, eles não compreenderiam a dimensão da própria história”
(ARON, Raymond. Dimensions de la conscience historique, Paris, Plon, 1964, p. 5).
97
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. 3ed. Rio de Janeiro : Editora FGV,
2006, p.17.
98
Idem, p.18.
290
transcende o mundo, neste estágio, os instintos humanos são naturalmente substituídos
por normas internas à coexistência do grupo. Tais normas, passam a ter a possibilidade
de serem relativizadas com a de outro grupo. Em segundo lugar, percebe-se que a
humanidade não evolui nem se encaminha diretamente para o progresso, este, portanto,
se estabelece como mito sócio-histórico. Em último lugar, passa-se a questionar a
própria racionalidade. Com isso, o futuro é missão de cada indivíduo no mesmo nível
que é missão do todo99.
Jörn Rüsen (n.1938), historiador e filósofo alemão, se somaria à percepção de
Agnes Heller. Para estes autores, a consciência histórica não é uma meta do
pensamento, mas sim uma de suas condições de existência, já que o pensamento
humano deve ser temporalmente localizado. Logo, a consciência histórica não pode
estar restrita a uma região do planeta, como o ocidente; a classes ou indivíduos
específicos, como os intelectuais; ou mesmo a um tempo específico, como o homem
moderno, tal qual argumentou Gadamer, indiretamente muitas vezes a favor de sua
percepção de que a consciência histórica é um fenômeno intelectual da modernidade
ocidental100. Assim, Heller e Rüsen localizam a consciência histórica como um
universal antropológico, posição que não implica assumir que todos os indivíduos e
grupos possuem um mesmo momento de percepção de mundo 101. Neste sentido, a
História não pode ser
99
HELLER, Agnes. Uma teoria da história. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1993; ______.
FEHÉR, Ferenc. A condição política pós-moderna. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 1998.
100
Em Gadamer, contudo, a consciência histórica é possível apenas em determinado tempo já que ela
mesma é um fator de nossa interpretação temporalmente localizada e não existe o conceito de História
(como o definimos hoje) em outro momento histórico que não a modernidade ocidental. Todavia o autor
se esquece das possíveis harmonizações teóricas entre o passado e a interpretação histórica do próprio
passado em si.
101
Para uma discussão bibliográfica do autor acerca da consciência histórica, cf.: RÜSEN, Jörn. Razão
histórica: Teoria da História: os fundamentos da ciência histórica. Brasília : Editora da Universidade
de Brasília, 2010. ______. Reconstrução do passado: Teoria da História II: os princípios da pesquisa
histórica. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 2010; ______. História viva: Teoria da
História: formas e funções do conhecimento histórico. Brasília: Editora da Universidade de Brasília,
2010; ______. Cultura faz sentido: orientações entre o ontem e o amanhã. Petrópolis : Editora Vozes,
2014.
291
grupos humanos, por maiores que sejam as suas diferenças
culturais.102
Com isso, percebe-se que, para Heller e Rüsen, a ação humana intelectual, uma
necessidade da própria existência, só pode ocorrer se o homem interpretar o seu mundo
e a si mesmo de acordo com suas intenções. Desta forma, o momento de consciência
histórica surgido no século XIX ultrapassa as interpretações de tempo cíclico ou
escatológico e as questões moralizantes e de ensinamento da Antiguidade e do medievo,
bem como a noção de progresso de parte da Idade Moderna, noções tão fundamentais ao
se pensar nas legitimações sociais e políticas, e atinge uma percepção de que o processo
histórico existe enquanto uma orientação ao agir 103.
A consciência histórica, entretanto, não se resume ao passado e à memória,
apesar de as envolver, mas também às projeções que se faz o próprio futuro. É a
conclusão entre o espaço de experiência e o horizonte de expectativas de Koselleck104.
Quem se acredita ser, de quem ou de que se crê dependentes. Esta é uma arena de
combates de agentes sociais plurais. A luta aqui, vai além da política, é uma luta pela
legitimidade da existência coletiva e individual. Tal interpretação, guia teórico desta
tese, desemboca, diretamente, na cultura histórica, interpretada aqui como “um conjunto
de fenômenos histórico – culturais representativos do modo como uma sociedade ou
determinados grupos lidam com a temporalidade (passado-presente-futuro) ou
promovem usos do passado”105, o que articula os próprios processos históricos e a
produção, transmissão, recepção e circulação do conhecimento histórico 106.
A História se originou da memória. Originou-se desse ato humano de lembrar do
passado, história, e sistematizá-lo em narrativas: uma memória artificializada pela
escrituração. No início, essa memória foi utilizada para a constituição da vida política
102
CERRI, Luís Fernando. Ensino de história e consciência histórica: implicações didáticas de uma
discussão contemporânea. Rio de Janeiro : Editora FGV, 2011, p.27-28
103
É a possibilidade de se interpretar fenômenos históricos a partir de questões que mesclem os fatores
indivíduo, sociedade, vontade interna psicológica e vontade social. Com isso, por exemplo, o fenômeno
do nacionalismo pode ser pensado como uma consciência nacional e o fenômeno do socialismo como
uma consciência social, ambos historicamente localizados. Cf.: MANNONI, Pierre. Les représentations
sociales, Paris, P.U.F. Col. Que sais-je? 1998; COUPAL, Jean-Paulo. Psychologie Collective et
Conscience Historique. Montréal, 2010; GRÉGOIRE, F. Les grandes doctrines morales, Paris, P.U.F.,
Col. Que sais-je?, 1955.
104
KOSELLECK, Reinhart. “Espaço de experiência” e “horizonte de expectativa”: duas categorias
históricas. In: ______. Op. Cit. Rio de Janeiro : Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p.305-327.
105
ABREU, Martha; SOIHET, Rachal; GONTIJO, Rebeca. Cultura política e leituras do passado:
historiografia e leituras do passado. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira, 2007, p.15.
106
FLORES, Elio Chaves. Dos feitos e dos ditos: história e cultura histórica. Saeculum – Revista de
História, João Pessoa, n.16, p.83-102, 2007.
292
coletiva através de um imaginário construído socialmente e reafirmado pela autoridade
do tempo107. Com esta função de legitimadora política, a História inicial se formou,
criando uma aura do mundo, representando o agir político 108 e estabelecendo um jogo
com as temporalidades humanas.
Com o tempo certas interpretações foram se fundamentando, todas com o intuito
de estabelecer certo poder e ação política. Assim, a noção de tempo cíclico e o topos
mestra da vida reafirmaram o mundo antigo como ele era e criaram uma sensação de
ser-no-tempo. A esses fatores se somou a legitimação histórica da Igreja durante a Idade
Média, com o seu progresso escatológico que ainda se vinculava, mesmo que
indiretamente, à noção de uma História que ensina aos homens. Nesses modelos, o
topos e a memória ensinavam e legitimavam. Mas tais interpretações foram se
relativizando a parir do momento em que
107
BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. In: ROMANO, Ruggiero (Org.). Enciclopédia EINAUDI.
Lisboa: Imprensa Nacional; Casa da Moeda, 1985
108
Para aprofundamento na mitologização política da história e sobre a representação historiográfica do
agir político, cf.: GIRARDET, Raol. Mitos e mitologia política. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HARTOG, François; REVEL, Jacques (Org.). Les usages politiques du passe. Paris: EHESS, 2001.
109
KOSELLECK, Reinhart. Historia Magistra Vitae: sobre a dissolução do topos na história moderna em
movimento. In: ______. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de
Janeiro : Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2006, p.51.
110
Como é o caso de Francis Fukuyama que, buscando a legitimação do modelo democrático-liberal
representativo dos Estados Unidos da América no final da Guerra Fria, escreveu seu O fim da história e
293
A partir de meados do século XVIII surgiria uma nova possibilidade, erigida
sobre o além das noções de que a História é a mestra da vida e de que ocorre um
progresso histórico analisável e previsível111. A História passou-se, portanto, a orientar
o presente pelo passado, um fenômeno que, neste modelo, ocorreu especificamente no
pensamento contemporâneo ocidental112.
A orientação do presente, proposta pela prática historiográfica, uma vez
vinculada à possibilidade de utilização do aparato de memorabilia como fundamentação
das legitimidades de grupos sociais, tipos econômicos ou mesmo formas políticas,
contudo, se apresenta, no tempo presente, como problemática. Ocorre, hoje, um
combate pela história, enquanto tempo experimentado, demonstrado na História,
enquanto tempo narrado.
As disputas pelo poder, portanto, intensificam, variadamente, a necessidade
historiográfica, fazendo com que esta prática permanece entrincheirada nas mais amplas
modalidades. Nesse sentido, o revisionismo, proposto por certos grupos de
historiadores, ingleses e franceses, em sua maioria herdeiros de determinados debates
chamados, usualmente, de pós-modernos, e sua visão de releitura do passado através das
guinadas lingüísticas e representacionais e as disputas entre a memória, a anistia e a
amnésia sócio-histórica, tão bem representadas em obras de autores como as do
britânico Tony Judt (1948 – 2010)113, demonstram que o passado e sua orientação
através da consciência histórica ainda interferem no posicionamento contemporâneo
ante o mundo político. Entretanto, esse processo dinâmico, fundamental para uma
cidadania ativa ainda possui uma articulação pouco explorada. Cabe aos novos
historiadores, então, a solução deste problema contemporâneo: a integração de fatores
como memória, passado e legitimidades políticas.
o último homem (Rio de Janeiro : Rocco, 1992), obra na qual parte da noção de progresso em moldes
hegelianos. Esta obra, no entanto, feita com interpretações teleológicas, possui uma amplitude de erros
teóricos, principalmente ao tratar o próprio conceito de razão histórica hegeliano, que levaram o filósofo
a se transformar em caricatura nos ambientes acadêmicos internacionais, inclusive americanos.
111
JASMIN, Marcelo Gantus. Alex de Tocqueville: a historiografia como ciência da política. 2ed.
Belo Horizonte: Editora da UFMG : IUPERJ, 2005. RÜSEN, Jörn. Op. Cit.
112
LOWENTHAL, David. The past is a foreign country. Cambridge : Cambridge University Press,
1985. Com isso, ocorre, notadamente uma interação sintética entre as propostas de Hans-Georg Gadamer,
Agnes Heller e Jörn Rüsen
113
Sobre este tema, cf.: JUDT, Tony. Passado imperfeito: um olhar crítico sobre a intelectualidade
francesa no pós-guerra. Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 2007.
294
APÊNDICE B
295
mais das possibilidades conceituais da História das Ideias e dos Intelectuais. Um último
ponto fundamental nesta análise é a eleição de qual característica será analisada na
interação entre música e política. Ou seja, deve-se pensar a partir de quais conceitos
serão feitas as interações entre política e música.
Aqui, busca-se demonstrar, partindo de explicações históricas, metodológicas e
teóricas, uma possibilidade de análise. Neste tom, inicia-se procurando estabelecer uma
fundamentação histórica do relacionamento entre música, mais especificamente a ópera,
objeto desta tese, com a política para, então, se estabelecer uma possibilidade
metodológica de análise operística. Por último, elege-se um dos conceitos centrais à
compreensão deste trabalho, que possibilite um melhor entendimento da relação entre
música e política.
2.1 Da interação histórica entre política e música: o caso da ópera entre sua
formação e o romantismo
1
Prefere-se, aqui, utilizar a ideia conceitual de práticas artísticas propostas por Jean Duvignaud uma vez
que este conceito abarca uma pluralidade de interpretações sociológicas que facilitam a localização das
personagens bem como das fontes ante o panorama historiográfico. Cf.: DUVIGNAUD, Jean. Sociologia
da arte. Rio de Janeiro: São Paulo: Forense, 1970. ______. Problemas de sociologia da arte. In:
VELHO, Gilberto (org). Sociologia da Arte (volume 1). 2ed. [Textos básicos de ciências sociais]. Rio de
Janeiro: Zahar editores, 1971, p.23-36.
296
Este é o momento no qual surge a figura do mecenas 2, patrono detentor de poder
político e/ou econômico que financiava intelectuais e artistas no início da Idade
Moderna buscando a superioridade de seus territórios em detrimento de outros com os
quais, simbólica e indiretamente, na maior parte das vezes, competia, sem a qual a
produção do Renascimento e, em certa medida, do barroco seguiria rumos socialmente
diferenciados – rumos estes que definiram a vida artística europeia até o início do século
XX. Destarte, pode-se notar que a descentralização política da península italiana deve
ser levada em conta e mais, é a própria chave para se compreender as características de
apoio às mais diversas formas artísticas3, incluindo, aí, a musical.
A música possuía posição singular neste panorama. Enquanto outras formas
artísticas como a pintura e a produção de obras literárias encontravam posição social de
prestígio, os compositores ocupavam as partes mais inferiores na hierarquia social, à
exceção dos músicos que também ocupavam lugar de destaque no clero ou em famílias
abastadas do período4. Logo, surgem dois questionamentos: em primeiro lugar deve-se
perceber que, neste caso, a prática musical possui posição específica ou, para se utilizar
o termo de Alphons Silbermann (1909 – 2000), a música possui uma estrutura social
bem delimitada5; em segundo lugar, nota-se que os produtores artísticos deste momento
produzem suas obras de forma anônima seguindo os modelos estéticos pré-
determinados por seus superiores hierárquicos, dentro de características econômicas,
pouco se impondo perante o modelo artístico.
Neste panorama, a transição entre o Renascimento e o Barroco, é inventado um
modelo artístico capaz de condensar a interpretação teatral com as formas musicais
vigentes no momento: a ópera6. Este gênero estaria plenamente estabelecido após
2
O termo mecenas deriva do nome de Caio Mecenas, figura política da Roma Antiga que auxiliou e
manteve relevante número de intelectuais e artistas. Para mais informações acerca do mecenato, ver:
GOMBRICH, Ernst. História da Arte. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.
3
Vale ressaltar que eram parte das relações do mecenato o próprio patrono, aqui chamado de mecenas,
financiador e, muitas vezes, idealizador, das produções, o artista ou artesão, produtor da obra e a própria
sociedade enquanto receptora periférica da obra, já que o principal receptor, neste contexto, é exatamente
o próprio mecenas.
4
REGINA, Roberto de. A Música no Renascimento. In: MELO FRANCO, Afonso Arinos; et alli. O
Renascimento. Rio de Janeiro: Agir, 1978.
5
Cf.: SILBERMANN, Alphons. Estructura Social de la Musica. Madrid : Taurus, 1961.
6
Vale lembrar que é preferível a utilização da noção de invenção deste gênero musical uma vez que as
modificações nas criações musicais ocorriam de forma lenta já que esta prática artística ainda estava atada
às funções sociais e religiosas. Com a ópera o fenômeno ocorre razoavelmente em ritmo mais acelerado e
em menos de 20 anos o modelo operístico, como se conhece hoje, estava plenamente delimitado. A ópera,
portanto, deve ser compreendida como o modelo artístico-musical necessário para a sociedade italiana
deste período, atendendo a claras funções sociais e tendo, por isso, uma estrutura cognitiva plenamente
definida. Cf.: CASOY, Sergio. A invenção da ópera: a história de um engano florentino. São Paulo:
ALGOL, 2008. COELHO, Lauro Machado. A ópera barroca italiana. São Paulo: Perspectiva, 2003.
297
Claudio Monteverdi (1567 – 1643) – é com este compositor que a ópera encontra a
necessidade de retratar aquilo que é plenamente humano, as características mais
profundas da alma como então era percebido, diferentemente das produções similares
feitas anteriormente7.
A ópera, quando já estabelecida, sofreu uma série de influências que facilitaram
sua divulgação, notadamente a influência da imprensa recém-criada e os embates
religiosos entre os Católicos e os Reformistas que atravessavam a Europa do momento.
A partir de 1637 é inaugurada a primeira ópera com bilheteria da história e o público já
podia freqüentar estas exibições. Este público constitui-se, no geral, de um grande
número e a ópera, surgida nos centros aristocráticos, rapidamente já atingia uma massa.
A ópera já era espetáculo. Após certo tempo Veneza passou a ser a maior produtora
deste gênero, terminando o século XVII com seis teatros estáveis para as exibições
abertas.
O período posterior, o Classicismo, buscando o equilíbrio e perfeição estética, vê
se consolidar a característica que, até hoje, mais marcaria a ópera: a afirmação da
melodia como ponto central da obra musical. A partir do momento no qual a melodia
está firmada como parte superior da música, o gênero operístico ganha total liberdade.
Juntando-se a este fator uma maior variação nas possibilidades dinâmicas – afinal a
técnica vocal e os próprios instrumentos foram se aperfeiçoando ao longo dos anos – a
ópera foi se tornando cada vez mais popular deixando, por exemplo, os temas místicos
de lado e buscando os temas do cotidiano e dos personagens palpáveis, incluindo, nisto,
os temas políticos, mesmo que, muitas vezes, de forma metafórica. Palpáveis como o
público que já lotava os teatros de exibição. Infelizmente, no entanto, poucos
compositores conseguiram manter a fama após o passar dos séculos e, hoje, quando se
pensa em ópera clássica o nome de Wolfgang Amadeus Mozart (1756 – 1791) é um dos
únicos que surge à mente – isso se deve, entre outros, a um fator singular: este
compositor austríaco é um dos mais significativos indivíduos a fazer a transição entre os
modelos de produção da escrita musical.
O caso de Mozart, o ‘gênio de Salzburgo e Viena’, como chamado na época, é
relevante, não apenas para o contexto de sua produção operística bem como de toda a
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. 3ed. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1971. RAYNOR, Henry.
História Social da Música: da Idade Média a Beethoven. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1981.
7
RICON, Leandro Couto Carreira Ricon. Missivas de um Orfeu: Claudio Monteverdi, o mecenato
italiano e a invenção da ópera In: VII Semana de História Política - IV Seminário Nacional de História:
Política, Cultura e Sociedade, 2012, Rio de Janeiro. Anais da VII Semana de História Política / IV
Seminário Nacional de História: Cultura & Sociedade. Rio de Janeiro: UERJ, 2012. p.1025 – 1032.
298
sua obra, já que este é o autor que transita entre o modelo de composição artesanal e o
modelo artístico. O sociólogo Norbert Elias, em seu celebrado texto acerca da vida,
obra e contexto deste compositor8 oferece uma clara divisão entre os modelos citados.
Para Elias, o artesão é o indivíduo que trabalha de maneira ‘anônima’ subordinado a um
modelo de formas pré-estabelecidas pelos conhecidos compradores de seu produto que
pertencem a uma classe sócio-econômica superior a sua – é um empregado assim como
Joseph Haydn (1732 – 1809) que produzia sua obra para a rica dinastia dos Eszterházy;
o artista, por sua vez, é o indivíduo que rompe com o modelo anterior: ele não trabalha
subordinado estética e intelectualmente a um comprador nomeadamente conhecido e
passa a poder produzir seu material de acordo com sua própria percepção estética, logo,
a figura do comprador nomeadamente conhecido é substituída por uma série de
compradores desconhecidos da mesma classe sócio-econômica do produtor – Elias
identifica, com certa relutância, essa classe como sendo a burguesia em ascensão
durante os séculos XVIII e XIX9 –, deixando, desta forma, de ser um empregado, assim
como ocorreu com Frédéric Chopin (1810 – 1849), Robert Schumann (1810 – 1856) ou
qualquer outro representante desta modificação. Este é o momento característico da
transição entre a arte do XVIII e do XIX. Esse fenômeno – a transformação do artesão
em artista – acompanhou, em certa medida, a transição do modelo artístico-criativo
saindo do Clássico e atingindo o Romântico.
Analisando as modificações semânticas ocorridas na Europa, percebe-se que o
contexto de transição entre o século XVIII, marcado pelo Classicismo, para o século
XIX, Romântico por excelência, assistiu a transformação da própria palavra arte:
8
ELIAS, Norbert. Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995.
9
Elias, contudo, mantém algumas questões relativamente abertas a pesquisas, mesmo fazendo pequenas
análises acerca delas, uma vez que seu modelo se preocupa com Mozart enquanto forma de transição. As
questões seriam: ‘Quais são as razões para a mudança na situação social dos artistas?’ e ‘Por que a
transição de arte de artesão para a arte de artista não aconteceu simultaneamente em todos os campos
artísticos? Ou em todos os lugares do mundo?’ Neste modelo, indivíduos como Leonardo da Vinci,
Michelangelo ou qualquer outro submetido ao esquema de mecenato na Itália renascentista, por exemplo,
acabam sendo afastados das possibilidades conceituais do artista, ficando restritos, assim, às
características artesanais. Um dos outros problemas da análise proposta pelo autor, a partir destas
conceituações, é a negação da presença da percepção individual do produtor dentro de sua obra como
característica de afronte ao comprador, característica essa tão comum no próprio Renascimento. Outro
ponto esquecido é a possibilidade de aplicação deste modelo ao século XX. Neste, vários artistas no
sentido lato vieram de classes sócio-econômicas inferiores às de seus compradores e acabaram
enriquecendo e, portanto, mudando de classe após venderem suas obras. Surgiria então uma pergunta:
esses indivíduos ficariam em qual classificação? Há, então, a possibilidade de um mesmo indivíduo
existir simultaneamente nas duas concepções teóricas? Seriam artesãos, artistas ou algo transitório,
indefinido pelo autor? Mais do que uma conceituação ampla, Elias oferece um claro projeto para as
análises da música deste período específico – concedente com a transição classicismo–romantismo, mas
não para antes ou depois dos problemas propostos, por isso nossa escolha por esta percepção teórica.
ELIAS, Op. Cit. p.135-136.
299
originalmente arte era um atributo humano no sentido de habilidade, passando a
significar um grupo específico de habilidades criativas. Arte passou a ser considerada
uma “verdade imaginativa”. Além disso, o termo estética, passa a significar a descrição
e avaliação da produção artística neste momento.10
Chega-se, então, ao momento do Romantismo, no qual o compositor encontraria,
além de sua maior liberdade sócio-econômica, uma maior possibilidade de criação. Os
românticos, enquanto grupo moderadamente próximo, no tangente à percepção de
mundo, percebem a sua diferença aos modelos estabelecidos anteriormente. A busca por
se afastar deste passado próximo marca as suas obras. Seguindo a lógica de Ernst
Fischer (1899 – 1972), compreende-se romantismo como um movimento estético
contraditório em seu interior – abarcando percepções filosóficas plurais mesmo
mantendo certa unidade – que debate direta ou indiretamente o estabelecimento de uma
sociedade moderna nos modelos capitalistas instaurados até então, criticando, assim, a
sociedade e a política conturbada do momento11.
O conceito de romantismo, dessa forma, não pode ser compreendido sem a idéia
das revoltas e revoluções tão presentes no século XIX. Porém, essa idéia de revolta deve
ser problematizada. O século XIX assistiu a uma interação de dois tipos básicos de
atitudes revoltosas – logo, o conceito de revolta deve ser ampliado. Uma primeira
atitude revoltosa é caracterizada pelas inúmeras manifestações revolucionárias e de
conflitos reais entre grupos sociais e forças políticas, assim como as revoltas liberais de
1830 e as nacionais de 1848, a Primavera dos Povos12. Contudo, falando de
caracterizações românticas, é necessário lembrar que os românticos – se percebendo
assim – utilizam-se de outras formas de revoltas, a mais marcada sendo as atitudes
escapistas ou evasivas: este é o momento no qual os indivíduos, insatisfeitos com sua
realidade e não dispostos a participarem de movimentos revolucionários, abandonam a
realidade que os cerca. Esse escapismo ocorreria, entretanto, através de duas maneiras
distintas: primeiramente, por meio das formas escapistas reais, na qual os indivíduos
retiram-se de sua realidade fisicamente, como é o caso de Chopin e sua estadia em
Maiorca, de Franz Liszt (1811 – 1886) e seu ingresso na igreja ao final de sua vida ou a
visita de Eugene Delacroix (1798 – 1863) ao Marrocos; em segundo lugar, por
10
WILLIAMS, Raymond. Cultura e Sociedade: de Coleridge a Orwell. Petrópolis: Editora Vozes,
2011, p.17-18.
11
FISCHER, Ernst. Op. Cit.
12
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: 1789 – 1848. 6ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1988;
______. A era do capital: 1848 – 1871. 4ed. Rio de Janeiro : Paz e Terra, 1982.
300
intermédio das formas de escapismo na própria criação artística, na qual os autores
buscam refúgio ante a realidade vivida em outros tempos, outros locais e culturas, na
morte, na loucura e no sonho – característica tão visível na literatura, mas que também
atingiu a produção musical. Fugia-se de um mundo político-social e individual que não
agradava.
Essa característica ambivalente da revolta influenciou de forma direta ou indireta
a produção artística e intelectual da época, conforme atestam as músicas de um Ludwig
van Beethoven (1770 – 1827), as pinturas de um Francisco Goya (1746 – 1828), e os
textos de um Victor Hugo (1802 – 1885) ou mesmo as obras de um Johann Gottfried
von Herder (1744 – 1803) ou de um Friedrich Schiller (1759 – 1805). Neste sentido, a
ambivalência, criada e motivada pelos próprios autores, levou o século XX a ler as
atitudes românticas apenas como filosófica ou artisticamente relevantes, esquecendo as
origens político-sociais de sua essência. Assim, os românticos passaram a ser vistos sem
seu motivador social, sendo a primeira classe que romperia com a política. Essa
característica equivocada ainda impera nos livros de análise e alguns poucos
pensadores, como Raymond Williams (1921 – 1988)13, demonstram que o que
realmente ocorre com o romantismo é uma nova forma de leitura da realidade. Leitura
essa que privilegia, na verdade, como nenhuma outra anteriormente, as atitudes políticas
e sociais.
A emancipação proporcionada aos compositores permitiu que cada um dos
indivíduos se localizassem sócio-politicamente. Esta auto-localização fez com que a
maior parcela destes percebessem a necessidade nacional que, então, cruzava a Europa.
No caso dos compositores operistas, passaram, posteriormente, a ser agrupados no que
se chama de Escolas Nacionais, ou seja, os compositores foram inseridos de acordo
com suas percepções nacionalistas14. Estes sujeitos, tais como Hector Berlioz (1803 –
1869), Mikhail Glinka (1804 – 1857), Carl Maria von Weber (1786 – 1826) e Giuseppe
Verdi (1813 – 1901), entre outros, perceberam que a música cênica mais do que
qualquer outra forma artística se deixa impregnar por princípios nacionais 15. Desta
forma, começaram a moldar sua produção buscando uma unidade para se vincular a
13
WILLIAMS, Raymond. Op. Cit.
14
Chama-se aqui de Escolas Nacionais o agrupamento real ou criado a posteriori de artistas, autores,
compositores e pintores que devem ser compreendidos a partir do fenômeno do nacionalismo em seus
respectivos territórios no século XIX.
15
ADORNO, Theodor Wiesegrund. Idéias para a sociologia da música. São Paulo: Abril Cultural, 1980
(Coleção Os Pensadores). ______. Introdução à sociologia da música. São Paulo: Editora UNESP,
2011.
301
estas características nacionalistas16 e as obras passaram a ser utilizadas como força
criadora de sentimentos comunitários.
A nação, partindo desta lógica, é mais imaginária do que real. Logo, as
metáforas usadas para fundamentá-las e mantê-las, como as óperas no século XIX,
possuem grande força:
16
Compreende-se nação como sendo a detentora da possibilidade de criar sentimentos de igualdade nas
comunidades às quais se insere. Cf.: GUIBERNAU I BEDRUM, Montserrat. Nacionalismo: o Estado
Nacional e o nacionalismo no século XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1997. Para um maior
debate acerca do nacionalismo, cf.: HOBSBAWM, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780. 3ed. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 2002. ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a
origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
17
RAYNOR, Op. Cit. p.23
302
problematizações possíveis, uma verdadeira expansão da História 18. Esta, acabou por
criar núcleos diversificados de análise desta ciência. Dentre estas novas propostas, um
âmbito surgiu relativamente pouco explorado devido, principalmente, à complexidade
de interpretação que os historiadores possuem acerca deste: a música. Relacionar a
música com a História se fez difícil labor, uma vez que este tipo artístico possui uma
linguagem por demais específica à qual os historiadores, em sua maioria, não possuem
acesso. Todavia, negar a inserção desta prática artística nos estudos históricos é,
diretamente, reduzir as possibilidades analíticas de compreensão da realidade cultural,
social, política e até mesmo econômica de determinada realidade temporal.
Primeiramente, antes mesmo de entrar em classificações e análises
metodológicas, uma definição tipológica se faz necessária: trata-se de diferenciar as
variadas possibilidades analíticas no relacionamento entre a História, enquanto
possibilidade temporal-interpretativa e a música, enquanto sua fonte.
A maior parcela de historiadores que tenta se envolver com a música enquanto
objeto de pesquisa ainda não possui em sua formação a clara distinção entre os
possíveis modelos de pesquisa. Desta forma, um bom número de pesquisadores que
enfrentam o desafio da feitura de uma História da Música, bem como os músicos que se
colocam na pesquisa de determinada Musicologia Histórica de caráter socialmente
orientado ainda persistem elaborando uma narrativa tradicionalista, privilegiando
indivíduos e obras e anulando, mesmo que de forma inconsciente, as características
mais gerais que possibilitam a existência destes sujeitos e obras em seus contextos.
Em primeiro lugar, deve-se situar o que é comumente chamado de História da
Música em sua forma tradicional. Apesar de sua relevância para a pesquisa, por recolher
grande número de informações e documentos, ainda domina o cenário historiográfico
contemporâneo fruto, muitas vezes de pesquisas históricas conduzidas ora por curiosos
e amantes da música ora por historiadores sem preparo teórico e metodológico
específico. Pode-se lembrar que durante o século XIX, os historiadores que focavam na
arte vinculavam a criação artística com a lógica de alta cultura, ou cultura letrada, sem
problematizar socialmente a produção. Assim sendo, a arte era tida como uma
manifestação do espírito humano. Neste contexto, raros eram os textos específicos
relacionados à música e estes, quando existiam, focavam principalmente nas análises
biográficas sendo escritos, em geral, por sujeitos próximos aos biografados, como é o
18
BARROS, José D’Assunção. A expansão da História. Petrópolis : Vozes, 2013.
303
caso da biografia que o compositor, pianista e maestro Franz Liszt dedicou a Frederic
Chopin, seu amigo próximo ou a biografia de Ludwig van Beethoven escrita por seu
secretário e também amigo Anton Felix Schindler (1795 – 1864)19.
Fazia-se, portanto, uma História voltada à fundamentação e manutenção de
determinado gosto hierarquizado. Desta forma, conseguia-se disfarçar os parâmetros
sociais e econômicos utilizados para a hierarquização no período. O historiador da arte –
e da música – era um perito que, no geral, apenas agrupava as obras artísticas em
estilos. Estes estilos, apesar de possuírem determinada validade analítica, ainda reúnem
os sujeitos exclusivamente por características similares ou próximas, não bastando para
a compreensão da produção artística integral. Com isso, historicamente passou a ser
comum se chamar de História da Arte aquela descrição dos estilos e suas modificações
ancoradas, em geral, na vida dos compositores, ou seja, sem relacionamento direto com
o meio social do contexto vivido 20. Esta história, conjectural e simplificadora buscou,
então, a sucessão de formas e estilos, afastando as preocupações com as devidas
problematizações estruturais, apenas possíveis através das análises das dinâmicas
sociais.
Muitos questionamentos possíveis, obras artísticas e personagens, a partir desta
lógica exclusivamente narrativa proposta pelo século XIX, foram postos de lado em
favor das chamadas personagens centrais, o que gerou a anulação das influências nas
práticas sócio-culturais de variados momentos. Pode-se lembrar, como característica
prática dentro da historiografia da música, a ausência de significativos estudos acerca
dos descendentes de Johann Sebastian Bach (1685 – 1750). Dentre estes descendentes,
pode-se marcar Wilhelm Friedemann Bach (1710 – 1784) que influenciou o modelo de
escrita tecladístico no século XIX, Carl Philipp Emanuel Bach (1714 – 1788) que
acabou por fundamentar as técnicas composicionais do classicismo e Johann Christian
Bach (1735 – 1782), o Bach inglês, grande divulgador da sinfonia enquanto forma
composicional que dominaria todo o cenário musical europeu. Estes indivíduos tiveram,
no final das contas, relevantes influências nas concepções musicológicas de seus tempos
e territórios, porém, a partir do momento em que Johann Sebastian se transformou em
centro, seus herdeiros acabaram sendo postos de lado. A fórmula encontrada para este
19
LISZT, Franz. F. Chopin. Paris : Éditions Corrêa, 1941; SCHINDLER, Anton. Biographie von
Ludwig van Beethoven. Münstler, 1840.
20
RAYNOR, Henry. Op. Cit., p.9.
304
evento foi simples: anulou-se as problematizações possíveis dos descendentes para se
preservar o ‘gênio’ do compositor do cravo bem-temperado.
O século XX não foi suficiente em reformular as necessidades de uma
historiografia da música. Nota-se que os textos deste momento, apesar de buscarem
inovações teóricas e metodológicas, ainda se fundamentam na anedotização,
mitologização e romantização de determinados atores – os que se firmaram como
compositores centrais ao longo do tempo, ou seja, aqueles que conseguiram fama
duradoura devido a qualquer quesito – e nem sempre a sua obra ou à inserção desta em
seu contexto. Neste sentido, percebe-se que, apesar de se chamar Uma nova história da
música, o texto do ensaísta Otto Maria Carpeaux (1900 – 1978)21 ainda é um perfeito
representante daquilo que é mais antigo dentro da historiografia da música: os grandes
feitos, as grandes obras, as pequenas análises problematizadoras da relação entre o
indivíduo e o seu mundo e a ideia de História quase total de determinado tema – o autor
vienense oferece uma análise que vai desde a música renascentista até a música
eletrônica em um livro de poucas páginas22.
Em segundo lugar, localiza-se o que é a Musicologia, principalmente aquela de
caráter histórico. A Musicologia ainda é uma disciplina demasiadamente jovem e, por
isso, até agora carrega uma ampla gama de significados. Este fato gera uma confusão
acerca de seu escopo conforme atestam variados autores23. O próprio termo musicologia
é datado, no Oxford English Dictionary, como tendo sido utilizado pela primeira vez na
década de 1910. Logo, o fato deste termo ser recente e inespecífico faz com que muitos
ainda se coloquem contra a sua utilização.
Originalmente o termo musicologia foi empregado como sendo o conhecimento
mais pleno possível das mais diversas áreas da música, ou seja, o significado era lato.
Contudo, devido principalmente à hiperespecialização que os ramos de conhecimento
sofreram através do XX, hoje o sentido é mais restrito e Musicologia passou a
significar, em uma das possibilidades, o estudo da História da Música enquanto arte –
formando-se, assim, a Musicologia Histórica. Os indivíduos que se dedicam a esta área,
portanto, trabalham com temas que vão desde a confecção de resenhas musicais para
21
CARPEAUX, Otto Maria. Uma nova história da música. 4d. Rio de Janeiro: Alhambra, 1977.
22
Este modelo de obras, no entanto, atenderam a uma exigência do mercado editorial e da própria
sociedade em pleno século XX, uma época na qual a própria vida humana passou a ser consumível em
escala industrial através das mais variadas mídias.
23
Cf.: CHIMÈNES, Myriam. Musicologia e História. Fronteira ou ‘Terra de ninguém’ entre duas
disciplinas? Revista de História 157 (2º semestre de 2007), p.15-29. KERMAN, Joseph. Musicologia.
Sâo Paulo : Martins Fontes, 1987. LESURE, François. Musicologie. In: Encyclopédie de la musique.
Paris: Fasquelle, 1961. ______. Musicologia et sociologie. La revue musicale, n.221, 1953, p.4-11.
305
jornais, revistas e programas de concertos até mesmo a palestras e pesquisas
acadêmicas.
A partir do momento em que a Musicologia como área de conhecimento foi se
consolidando e se auto-reconhecendo acabou por se aproximar da História. Contudo,
por falta de contato entre as disciplinas, aproximou-se daquele modelo histórico
tradicionalista que marca a transição do século XIX para o século XX. Assim sendo,
esse estudo acabou por ser factual, documental, verificável e amplamente personalista,
ou seja, a percepção macro da estética e da estilística além do cunho sócio-político da
análise acabaram por ser afastados.
Os musicólogos foram se aproximando dos comportamentos arqueológicos e
filológicos, buscando o resgate de repertórios antigos e decodificando as notações
musicais que já não eram utilizadas buscando, com isto, que as músicas antigas fossem
executadas hoje em dia com as características interpretativas de outrora24. Mesmo
chegando a possuir pontos em comum com a historiografia, a Musicologia acabou não
comungando das características daquela ciência que buscava se afastar das narrativas
ditas neutras. Esse aspecto gerou um hiato entre ambas as disciplinas que permanece até
hoje, guardando suas especificidades. Todavia, deve-se levar em conta que o
afastamento não ocorreu apenas pelo fato de cada disciplina seguir um caminho
diferente, a questão não foi apenas de caráter interno: um dos principais fatores para a
persistência deste hiato é o desconhecimento da música enquanto prática artística por
parte dos historiadores e da metodologia histórica por parte dos musicólogos. Desta
forma, a Musicologia ainda permanece com as características do tradicionalismo
histórico no sentido mais original do termo aplicado à Teoria da História.
A noção de Musicologia ainda hoje não encontrou sua lógica própria e a
concepção lato da disciplina é ampla por demais, adentrando nas mais variadas áreas da
prática musical, como a Teoria da Música, a Crítica e a própria História deste ramo; por
outro lado, a concepção estrita de Musicologia é tão restrita que é praticamente
coincidente com a História da Música praticada anteriormente e, até hoje, presente na
maioria das produções. Desta forma, ainda são raros os casos no qual ocorre uma
Musicologia orientada para a crítica e mais, para uma crítica historicamente localizada,
assim como sugere o musicólogo americano Joseph Kerman (1924 – 2014)25.
24
CHIMENES, Op. Cit.
25
KERMAN, Op. Cit.
306
Vale lembrar, contudo, que, apesar de jovem, esta disciplina conseguiu se
ampliar criando tópicos relevantes de análise. Desta forma, no interior da Musicologia,
surgiu, em paralelo, uma nova possibilidade, a Etnomusicologia. Surgindo dentro do
espaço deste modelo de estudos, essa nova subespecialidade focou nas manifestações
musicais de determinado grupo comunitário desde que estas manifestações atendessem
às demandas sócio-culturais da comunidade não sendo, então, voltada estrita e
originalmente ao consumo capitalista massificado iniciado nos últimos tempos. Em
suma, a Etnomusicologia propôs “o estudo da música na cultura”26 se aproximando,
assim, da Antropologia. Logo, este novo pesquisador, o etnomusicólogo, acabou
focando sua análise em comunidades que produziam músicas singulares, folclóricas,
tais como as comunidades indígenas, os povos subsaarianos e as comunidades do
oriente mais distante. Formando complexas descrições técnicas, o etnomusicólogo
acabou localizando as funções da música dentro de cada grupo criador.
Em terceiro e último lugar, deve-se ter uma nítida ideia daquilo que usualmente
se chama de História Social da Música27. A História da Música é tratada, quase sempre,
como uma dimensão da História Cultural, ficando muitas vezes limitada às análises
estilísticas que fazem parte de um consumo comum. Ou seja, esse modelo não carrega,
no geral, as possibilidades de percepção política e/ou sociais que as obras possuem em
seu interior28. Os compositores e as obras, desta forma, foram isolados em uma torre de
marfim, sendo uma das funções da nova historiografia, que surge a partir das décadas de
1970 e 1980, resgatar essa produção artística com suas características mais amplas.
Percebe-se, então, que a História da Música é tradicionalista tanto em seu ramo
historiográfico quanto no musicológico conduzindo, assim, ao surgimento de uma
História Social da Música, atendendo a todas as demandas. Aqui, leva-se em conta que
a História Social da Música nada mais é do que uma subespecialidade multidisciplinar,
tendo sua fronteira estabelecida entre a História e a Música enquanto disciplinas 29.
Já é uma constatação desde o próprio século XIX, principalmente com a obra de
Karl Marx (1818 – 1883), que a produção de um contexto, incluindo as ideias e a
26
MERRIAM, Alan P. The Anthropology of Music. Evanston: Northwestern University Press, 1964,
p.358
27
Nos momentos em que se cita a História Social das Artes deve-se levar em conta que, em sentido
estrito, a referência é feita à Música enquanto prática artística.
28
BARROS, José D’Assunção. O Campo da História: Especialidades e Abordagens. 7ed. Petrópolis :
Vozes, 2010, p. 148.
29
Essas duas característica, a criação de espacialidades e a limitação de voláteis fronteiras, são atributos
gerais das mais variadas ciências ao longo do século XX.
307
própria arte, está intimamente relacionada com o “modo de vida” do período 30. Deve-se,
também, levar em conta que “a música surge, em parte, das atitudes de espírito que o
compositor partilha com seus contemporâneos, ou de sua reação contrária a ele” 31.
Logo, ocorre uma clara vinculação da História da Arte com a História das Ideias 32, uma
vez que ambas são produções socialmente orientadas. Como afirma Henry Raynor
(1917 – 1989):
Assim sendo, deve-se buscar uma História Social da Música não apenas como
fruto de uma História Cultural que anseie, inicialmente, examinar unicamente em estilo
determinado objeto de pesquisa, desvinculando-se da sociedade que os produz. Findada
esta lógica introdutória da História Social da Música enquanto forma de conhecimento,
necessita-se perceber como ocorre a vinculação da produção artística com o meio social
no qual é produzida.
Aceitando que existe uma interação entre a sociedade e o artista, nota-se que a
produção é a responsável pela ponte existente entre estas duas margens, além, é claro,
do fato de o artista, enquanto indivíduo, já fazer parte da sociedade enquanto membro.
Hoje, pensar em uma História Social da Arte requer a inserção da sociedade enquanto
consumidora do modelo artístico criado e já não são poucos os autores que inserem esta
relação produção-público em suas análises34. Para tal, leva-se em conta que o modelo
musical de determinado autor é subordinado às percepções coletivas ocorrendo, a partir
disto, uma interação entre gosto individual e gosto coletivo – de forma convergente ou
divergente. O musicólogo francês Joël-Marie Fauquet já afirmou que “a música é uma
30
WILLIAMS, Raymond. Op. Cit., p.154.
31
RAYNOR, Op. Cit. p.19.
32
O historiador americano Robert Darnton distinguiu, em célebre texto, a História das Idéias, a História
Intelectual e a História Social das Idéias. A primeira é voltada para o pensamento clássico, como as obras
filosóficas escritas ao longo da história; a segunda, se preocupou com o pensamento geral de determinada
época, bem como o estudo das opiniões; a terceira, por sua vez, buscou o estudo da difusão das idéias,
bem como das ideologias. Desta forma, pode-se perceber que a História Cultural foca no estudo da
cultura em sentido antropológico. Cf.: DARNTON, Robert. História Intelectual e Cultural. In:______. O
beijo de Lamourette. São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
33
RAYNOR, Henry. Op. Cit. p.14
34
Como exemplo na música, cf.: RAYNOR, Henry. Op. Cit.
308
linguagem coletiva. Como as outras artes, ela elabora os signos sensíveis pelos quais os
homens de um momento do mundo revelam sua vontade e esperança” 35. E mais, o
antropólogo argentino Néstor Garcia Canclini (n.1939) também afirmara acerca da
importância da inserção do artista em seu momento sócio-cultural:
35
FAUQUET, Joël-Marie. La musique et le pouvoir. Paris: Aux Amateurs de Livres, 1987, p.15.
36
CANCLINI, Néstor García. A socialização da arte: teoria e prática na América Latina. 2ed. São
Paulo: Cultrix, 1984, p.27.
37
FISCHER, Ernst. Op. Cit.
38
ADORNO, Theodor Wiesegrund. Op. Cit.
309
determinada produção, uma vez que o autor está, também, inserido em um contexto
macro.
A História Social da Música, dessa forma, enquanto um novo campo possível
para a análise, deve ser pensada a partir da lógica de um sujeito coletivo de composição.
Assim, o compositor escreve aquilo que encontra determinada circulação social ou
aquilo que, direta ou indiretamente, critica a própria possibilidade de circulação. Hoje,
este campo ainda inexplorado, a despeito de seus problemas e dificuldades analíticas,
oferece aos pesquisadores uma nova seara a ser desvelada. Seara esta que amplia o
próprio olhar do historiador, uma vez que não pode existir História da Arte separada de
quaisquer outros tipos de práticas historiográficas. Por último, deve-se lembrar que,
além de possuir um espaço pífio na historiografia contemporânea, a História Social da
Música – principalmente aquela chamada de clássica ou erudita39 – apresenta-se como
um complemento às novas possibilidades de objetos da História, uma vez que, outros
modelos fontísticos não só já encontraram o seu espaço bem como hoje são alguns dos
modelos mais debatidos e produzidos além, é claro, de já terem se constituído teórico-
metodologicamente, como é o caso das análises das produções fotográficas e, mais
notadamente, da literatura e do cinema 40.
Vale ressaltar, contudo, que a divisão feita neste trabalho entre estas três áreas –
a História da Música, a Musicologia Histórica e a História Social da Música – atende às
expectativas deste próprio texto, não sendo, contudo, um modelo de interpretação único.
Lembre-se, por exemplo, que outros autores, como o professor Marcos Napolitano 41,
dividem as pesquisas de forma diferente:
39
Não é o objetivo deste trabalho, no entanto, entrar nas discussões acerca destes termos.
40
Para as discussões acerca da utilização destas novas possibilidades, cf.: PINSKY, Carla Bassanezi.
LUCA, Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011; CARDOSO,
Ciro Flamarion. VAINFAS, Ronaldo (org). Domínios da História. Rio de Janeiro: Campus, 1997;
______. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.
41
NAPOLITANO, Marco. A história depois do papel. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p.235-290.
42
Idem, p.254. No entanto, discorda-se, aqui, deste autor e daqueles que seguem esta proposição, uma vez
que não é analisada a possibilidade de se inserir os aparatos metodológicos na área da Música Erudita.
Desta forma, estes inserem a Música Erudita dentro da Musicologia Histórica, disciplina esta que possui
os problemas de análise demonstrados anteriormente – e mais, no caso citado, o próprio autor, simplifica
310
O centro da questão, pelo que se percebe, reside na ausência de claras
conceituações acerca da possibilidade de se utilizar a música enquanto fonte e uma
metodologia própria que possibilite essa análise. Aos historiadores do novo tempo que
se apresenta cabe a solução desta questão. Esta, no entanto, não pode ser pensada como
artefato único afinal, falar em escolhas metodológicas é sempre falar na maior
possibilidade e variabilidade de possibilidades.
Pode-se lembrar que cada modelo de fonte requer uma avaliação cautelosa a
partir do momento no qual se precise criar uma tipologia metodológica para a sua
análise. A música, enquanto objeto de estudo historiográfico não foi, ainda, colocada no
centro das discussões acerca de suas possibilidades e características metodológicas.
Como Adorno já afirmara, não deve existir separação entre o método e o objeto uma vez
que cada fonte possui determinada peculiaridade que a define 43. Mas ficam algumas
questões: o que é aquilo que se chama de metodologia e qual a sua função na análise
historiográfica?
Entende-se, aqui, metodologia como a sequência procedimental criada para se
resolver determinado problema ou atingir certo resultado. Desta forma, o método é o
‘como fazer’ a pesquisa. A constituição de um método específico para cada pesquisa é
de extrema relevância uma vez que os objetos, contextos sociais e tempos históricos não
serão iguais. Partindo disto, a repetição de métodos como fórmulas matemáticas fixas
deve ser problematizada no interior das ciências humanas e sociais. Portanto, o método,
sempre pensado e problematizado, é importante para não se reduzir as fontes ao óbvio
uma vez que os documentos não falam sozinhos, como alguns historiadores,
notadamente os positivistas, pensavam no passado, apenas respondendo as perguntas
que lhes são colocadas.
No caso da História Social, os modelos metodológicos se ampliam em demasia
uma vez que não existe limitação clara para as fontes nesta subespecialidade enquanto
dimensão historiográfica. Não ocorrem tais limitações uma vez que qualquer produção
humana, individual ou coletiva, consciente ou inconsciente, é socialmente orientada
estando, assim, inserida em redes de cultura, política e economia. Logo, a escolha das
fontes vai se orientando pelos problemas e hipóteses surgidos durante a pesquisa.
esta possibilidade disciplinar como sendo, apenas, o “estudo da vida e obra dos compositores e das
formas eruditas” (Idem, p.255)
43
ADORNO, Op. Cit. (1980).
311
A partir desta perspectiva teórico-metodológica, os fatos sociais passam a estar
nas mais diversificadas partes da estrutura humana de vivência. Neste tom, deve
ocorrer, obrigatoriamente, certa ampliação da percepção daquilo que se identifica como
documento histórico 44. Assim sendo,
44
BARROS, Op. Cit. p,40.
45
Idem, p.41
46
Este termo foi, originalmente, empregado pelo medievalista francês Jacques Le Goff a partir do
momento em que este autor reconhece que a escolha de um sujeito para uma análise deve ser orientada
pela presença de características macros (cultura, sociedade, política e economia) neste microcosmos que
constitui a vida de um indivíduo. Assim sendo, Le Goff traz a possibilidade da análise de trajetórias de
vidas (biografias) para o cerne da escrita da história (LE GOFF, Jacques. São Luís: biografia. Rio de
Janeiro: São Paulo: Record, 1999). Outros autores, inclusive os que divergem do pensamento de Le Goff,
como é o caso de François Dosse, já demonstraram a necessidade da percepção individual como
característica possível e necessária para a historiografia contemporânea (DOSSE, François. O desafio
biográfico: escrever uma vida. São Paulo: EDUSP, 2009).
312
levar em conta, para a afirmação da obra como fonte histórica, a autoria, as condições
sociais, políticas, econômicas e culturais de produção, a historicidade, as representações
simbólicas, bem como a recepção e a circulação deste fenômeno artístico. Também deve
ser claro que o trabalho não será capaz de finalizar todas as possibilidades de análise de
determinada peça, difícil trabalho para os historiadores que muitas vezes ainda tendem a
certa megalomania analítica 47 – principalmente num mundo no qual a História se
apresenta como portadora de uma verdade hermenêutica, interpretativa e, por isso
mesmo, subjetiva.
A música, assim como qualquer outra produção artística, possui uma função
historicamente determinada e, em alguns momentos, a sua função acabou por encontrar
a necessidade política e social afastando-se, assim, das características que o idealismo
propôs: a elevação per se do espírito humano em uma produção intelectualmente
superior e global. Destarte, faz-se necessário localizar a relação entre a arte musical e a
vontade política atingindo, assim, as características macro da estrutura da existência
incluindo, nesta estrutura, a própria população ouvinte das obras. Logo, deve-se
problematizar não apenas a música ou o compositor ou mesmo o músico mas, também,
a vida musical do período, ou seja, o ouvinte, aqui compreendido como receptor. No
mais, vale mencionar que os autores muitas vezes inserem em suas obras características
de percepção social e/ou política de forma indireta ou mesmo inconsciente, conforme já
atestou Fredric Jameson (n.1934)48.
A linguagem estética, mesmo que não seja o centro da análise proposta, também
deve ser pensada. Para exemplificar esse relacionamento entre História, Estilo e
Estética, pode-se lembrar da classificação dos indivíduos, feita a posteriori, em Escolas
Artísticas, como o classicismo, o romantismo ou o barroco, o que reduz a unidade de
percepção já que o sujeito acaba sendo moldado (leia-se: modificado) para ser inserido
nestas classificações, que acabam por funcionar como tipos ideais49. Dentre as
características de estilos e percepções de beleza, marca-se que a utilização de
determinados instrumentos musicais, formações de grupos, harmonias e possibilidades
melódicas carregam, em si, as inovações técnicas sem, contudo, anular as características
47
NAPOLITANO, Marco. Op. Cit.
48
JAMESON, Fredric. O inconsciente político: a narrativa como ato socialmente simbólico. São
Paulo: Ática, 1992.
49
Henry Raynor (Op. Cit.) inovou neste sentido propondo este cruzamento entre a História, o Estilo e as
modificações estéticas. Todavia, o texto do musicólogo inglês possui, ainda, aquilo que para a
historiografia se configura como juízo de valor e de metodologia: as constantes adjetivações de
personagens tidos como centrais na História da Música. Estes adjetivos iludem o leitor e o ouvinte
modernos acerca da realidade histórica, social e cultural de determinada obra.
313
de percepções pessoais. Logo, a interação entre possibilidade técnica historicizada e
percepção pessoal deve ser levada em conta. Analisar o conteúdo e a forma é
fundamental: assim ocorre com o modelo de cantatas de Johann Sebastian Bach no
barroco alemão dominado pela religiosidade da Reforma iniciada pouco tempo antes
que ideologiza, mesmo que de forma indireta, determinado sujeito ou classe,
inclinando-os a certa atitude.
Todavia, percebe-se que o método, no caso de uma História da Música com
caráter de problematização social deve ser criado pelo pesquisador através da inserção
de métodos da própria disciplina histórica com outras possibilidades, principalmente
com aqueles aparatos metodológicos vindos originalmente da Musicologia, da
Antropologia e da Sociologia buscando atender suas demandas50. Desta forma, “a tarefa
do historiador da arte [passa a ser] trazer à luz as ligações entre uma dada obra de arte e
as estruturas sociais e processos históricos aos quais ela foi criada” 51. Contudo, como
qualquer fonte base, ou seja, como qualquer fonte eleita para ser a base dos
questionamentos historiográficos em determinado trabalho, a música possui vantgens e
problemas metodológicos. Dentre as suas virtudes, destaca-se que este modelo de fonte
possibilita ao historiador mergulhar no modelo de percepção estética e estilística de
determinado período, bem como as suas críticas. Por outro lado, como fraqueza, a
música deve ser cercada de outras fontes, aqui compreendidas como acessórias, de
caráter plural evitando-se, assim, que a pesquisa se encerre em uma descrição da
produção artística de determinado período e localidade, o que constitui equívoco
metodológico e científico.
Dentre as fontes complementares muitas vezes esquecidas, para citar algumas
além das ditas oficiais com as quais os historiadores já trabalham desde o século XIX,
pode-se lembrar imediatamente das cartas, falas públicas, diários pessoais, textos
autobiográficos, bem como quaisquer outros documentos produzidos pelo sujeito. As
cartas demonstram fragmentos da existência social e a complexidade das relações
humanas. As falas públicas, tais como discursos e pronunciamentos, quando existirem,
também demonstram características do pensamento dos atores. A utilização destes dois
modelos: cartas e falas públicas é complementar, ocorrendo um trânsito entre a
exposição de ideias de forma privada e de forma pública. Também não se pode deixar
50
ADORNO. Op. Cit. CHIMENES. Op Cit.
51
TOSH, John. A busca da História: objetivos, métodos e as tendências no estudo da história
moderna. Petrópolis: Editora Vozes, 2011, p.243.
314
de levar em conta, quando existirem, a escrita de diários pessoais que mostram a
internalização de pensamentos e a autobiografia que demonstra a vontade de publicizar
o que o próprio sujeito julgou relevante em sua existência privada e coletiva, bem como
definir aquilo que buscou esquecer. O uso desta pluralidade de fontes complementares
utilizadas para cercar as obras centrais que estão sendo analisadas na empresa
historiográfica marca a complexidade da vida humana. Pode-se lembrar que aquilo que
determinado indivíduo demonstra em uma carta pode ser diferente daquilo que exprime
em seu diário pessoal ou mesmo em cartas para outros, uma vez que apenas se conhece
determinado lado do sujeito pesquisado52.
Acredita-se aqui, portanto, que a análise social da música não deve subordinar as
características individuais, nem mesmo o oposto pode ocorrer. O que deve existir é uma
interação entre micro e macro cosmos, entre indivíduo e coletivo. Não se deve, também,
superestimar o contexto histórico nem o pensamento da época já que estes dois
caminham em direção à construção das obras.
No geral, graças às falhas metodológicas dos historiadores ao longo do século
XIX e XX, a música acabou se transformando em ilustradora de determinado momento
ou, no mínimo, em ‘fonte secundária’. Todavia, esta forma artística, metodologicamente
problematizada e devidamente questionada não deve ser encarada apenas como
complemento podendo, sim, ser o centro de determinados trabalhos historiográficos
além da comum e sempre encarada História Cultural.
A forma, no caso da Música chamada erudita marca a sua especificidade e,
dentro desta especificidade, a ópera se destaca como o modelo que mais aproxima o
autor de seu contexto e do próprio público, uma vez que a representação ocorre,
também, nas formas orais e visuais, além da musical, fator este que, no geral, facilita a
compreensão da obra e das ideias do compositor. Por esta característica, a ópera deve,
também, ser problematizada e compreendida como possibilidade de fonte para a escrita
da História. Esta escrita, porém, encontra uma série de dificuldades (e possibilidades)
metodológicas.
52
Para maiores informações acerca destes modelos fontísticos, e como estes se inserem nas pesquisas
Cf.:MALATIAN, Teresa. Cartas: narrador, registro e arquivo. In: PINSKY, Carla Bassanezi. Tania
Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.195-222. ALBUQUERQUE
JÚNIOR, Durval Muniz de. Discursos e pronunciamentos: A dimensão retórica da historiografia. In:
PINSKY, Carla Bassanezi. Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
2011, p.223-251. CUNHA, Maria Teresa. Diários pessoais: territórios abertos para a História. PINSKY,
Carla Bassanezi. Tania Regina de (org). O historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto, 2011, p.251-
280.
315
A música foi uma das últimas formas artísticas a entrar nas análises sociológicas
e históricas e ainda na década de 1980 raros eram estes estudos. Tratada como fonte
histórica a música, por excelência, e isso não é uma característica apenas da ópera
enquanto gênero, mescla o conteúdo objetivo com o subjetivo e esta característica, a
localização da fronteira entre subjetivo e objetivo, entre conteúdo e forma, é uma das
principais dificuldades desta escrita 53. Apesar de outras formas artísticas também
mesclarem o objetivo com o subjetivo, a música, especificamente a ópera, encontra uma
subjetividade demasiadamente complexa no tangente à análise: no geral, apenas se
analisa letra, conteúdo verbal, e poucas vezes ocorre uma reflexão acerca da melodia,
harmonia e forma54. O problema central destas análises reducionistas é que as
características gerais da música são sempre inseparáveis.
É regra na pesquisa da ciência histórica o historiador conhecer a linguagem de
seu material trabalhado e no caso da ópera evidentemente percebe-se os problemas que
devem ser resolvidos antes da empreitada historiográfica. Em primeiro lugar encontram-
se as características idiomáticas: nesta, pode-se perceber que a ópera deve ser
compreensível ao historiador. Enquanto música com texto cantado, o pesquisador deve,
além de conhecer o idioma da peça, caso não seja o seu, conhecer os termos da época e
a estrutura poética do momento no qual o compositor viveu. Outro problema relevante é
o acesso à especificidade da partitura operística, muitas vezes mais complexa do que a
partitura de outras obras eruditas: mesmo com os historiadores muitas vezes se
interessando por pesquisas musicais, eles tendem a evitar a ópera devido à
complexidade de acesso a esta linguagem:
53
FISCHER, Op. Cit. p.205.
54
Deve-se marcar que, além da ópera, a produção de música instrumental também encontra amplas
dificuldades de análise e mais, sem dúvidas este modelo ainda é muito pouco pesquisado e os trabalhos
que utilizam este material como fonte são, no geral, de pouca relevância ou profundidade analítica.
55
CONTIER, Arnaldo. Brasil novo: música, nação, modernidade. Tese de livre-docência, São Paulo,
História/USP, 1986.
316
Desta forma, deve ser pensado com as possibilidades artísticas-culturais do contexto
existente. O historiador deve, portanto, levar em conta a ópera como um todo, incluindo
as características composicionais às quais apenas aqueles que já se dedicaram a este
estudo terão acesso. Nas palavras de Marcos Napolitano pode-se perceber a importância
de fazer interagir a constituição da música e da letra: “na música, a textura, ou
colocação de uma voz, os timbres e o equilíbrio entre os instrumentos, o andamento e as
divisões de rítmicas e melódicas, são estruturas que interferem no sentido conceitual,
corpóreo e emocional de uma letra”56.
A criação operística inclui a elaboração de um texto – chamado de libretto. Este,
geralmente distribuído ao público, contém os diálogos e as principais informações
acerca da dinâmica cênica que a ópera possui. É mais comum, todavia, que este texto
não seja elaborado pelo compositor e, quando disso, deve-se levar em conta a figura do
indivíduo responsável pelo texto, o libretista. Desta forma, localizar a relação deste com
o seu próprio mundo, sua percepção social, política e artístico-cultural, seu
relacionamento com o compositor e com os financiadores da ópera que ambos estão
produzindo é fundamental. Outro ponto referente ao libretto, material primário sobre o
qual a música será escrita, é a análise da função que cada personagem criado representa
na trama. Algumas óperas, apesar de terem o mesmo tema, muitas vezes até com os
mesmos personagens, possuem modificações no tangente à função que o personagem
exerce na peça. Isto ocorre pelas mudanças nas percepções da relevância de
determinado papel que se modifica de acordo com as necessidades e percepções sócio-
culturais.
Outro ponto que as análises operísticas devem levar em conta é a especificidade
das figuras dos financiadores e dos compradores da produção. A análise da ópera, mais
do que a de outros gêneros musicais, incluindo aí as sinfonias e sonatas, necessita desta
percepção já que estas personagens possuem específicas características que modificam a
análise. Isto se deve ao próprio gênero da ópera em si: uma vez que a peça é escrita para
ser representada em determinado momento, deve-se lembrar que ela utilizará, além dos
músicos instrumentistas, cantores, cenógrafos, funcionários dos teatros e, acima de tudo,
um modelo de teatro específico que possibilitará a interação entre estes personagens: a
casa de ópera. Desta forma, e percebendo-se que o compositor, até o século XX, não
56
NAPOLITANO, Op. Cit. p.267. Apesar deste texto estar se referindo diretamente à análise das músicas
populares contemporâneas, é plenamente aplicável às produções operísticas a partir do momento de sua
popularização, principalmente após o século XIX.
317
está inserido nesta possibilidade econômica, deve-se problematizar quem são os
financiadores, quem são os indivíduos que fazem as encomendas e quem é o público, os
compradores, que possibilitam a manutenção de todos estes. Logo, passa a ser
necessário levar em conta a figura da recepção e de circulação das ideias colocadas
neste aparato artístico mesmo que este não seja o cerne do trabalho – herança que a
historiografia recebeu diretamente de áreas como os Estudos Literários e a Sociologia.
Apesar desta herança ser necessária, também criou uma zona de conforto dificultando
que os historiadores criassem, para a análise operística, um método próprio para a
interpretação mais geral, buscando uma possibilidade holística. No mais, lembra-se,
também, a necessidade de se levar em conta o local de representação, uma vez que a
ópera é escrita para um lugar específico. A relação entre este lugar, representante do
poder econômico, a produção e a audiência faz-se, portanto, mister.
Seguindo o exposto, percebe-se que o texto operístico – libretto e música – deve
ser analisado metodologicamente a partir de um mescla entre o texto em si e seus
aparatos representativos e a sua percepção social, ou seja, a apropriação e a circulação
do produto estético. Em primeiro lugar, buscando uma análise holística, deve-se, como
uma das possibilidades, analisar os elementos em separado: letra, timbres e harmonias
para só depois, a obra como um todo. Destarte, representações e
circularidade/apropriação ficam para uma analise posterior, mais densa e profunda. A
ópera possui uma facilidade em relação à música popular contemporânea: a partitura. A
partitura demonstrará as variações de timbre, melodias e harmonias, que possibilitam,
também, a melhor compreensão de personagens e ideais contidos na peça – daí a
importância do historiador ter conhecimento de teoria e análise musical. No mais, a
ópera, enquanto aliança entre literatura e música, deve ser vista e ouvida variadas vezes
e em variadas apresentações para criar a possibilidade heurística deste objeto, ou seja,
apenas com a inserção do historiador no seu objeto ele conseguirá fazer sua análise
científica.
O musicólogo Henry Raynor afirmou que:
57
RAYNOR, Op. Cit. p.25
318
Não basta, desta forma, pensar apenas a obra em si, com suas características
estilísticas, mas sim, a obra como produto de determinado quadro social que possibilite
a sua feitura, execução, representação, apropriação e circulação, além, é claro, de ser o
aparato econômico da relação entre o compositor e seus ouvintes, sem importar em
quais classes sociais estes estão.
Não apenas a ópera mas toda a produção musical possui, dependendo do prisma
analítico, possibilidades de interpretações políticas, a partir do momento no qual
percebe-se que a existência do compositor está delimitada por uma existência-social. Ou
seja, o autor, vivendo em um grupo social, sofre uma série de possibilidades interativas
e, portanto, políticas, que, em outro contexto, seguiriam caminhos distintos. Cabe ao
historiador preocupado em transformar a música em fonte primeira de seu trabalho,
destarte, eleger o que será pesquisado. Partindo disso, em vista da execução do trabalho,
o historiador deve pensar na figura do autor, na sociedade na qual esta personagem se
insere e a obra composta em sua integridade, entre alternativas epistemológicas plurais.
Uma das possibilidades para tal é a construção científica através de interpretações
teórico-conceituais. Nesse sentido, o historiador pode, partindo de uma eleger conceitos
como a propaganda política.
Notando que a música, e no caso da ópera isso é mais patente ainda, pode e deve
ser utilizada como fonte principal para a escrita de uma História Social percebe-se a
necessidade da configuração e problematização de uma abordagem metodológica que
possibilite esta empreitada. Ramo ainda inexplorado devido, principalmente, à
dificuldade de acesso a essa linguagem, a música, na historiografia contemporânea,
briga por seu espaço na produção da História enquanto ciência.
319
interagir com o gosto público. A interação, nesse sentido, deve ser tratada nos mais
diversos sentidos, já que, muitas vezes, o incômodo pode se estabelecer como bom em
cenários sociais específicos – notadamente aqueles nos quais uma nova possibilidade de
existência político-social vai se delimitando.
O gosto específico por determinada obra musical, aqui, é pensado enquanto
característica social. Ou seja, o indivíduo, enquanto parte existente e indissociável da
coletividade, passa a ouvir determinada obra artístico-musical através de um senso
estético criado. Essa humanização do gosto é, portanto, social. Marx e Engels já
afirmararam que
Com isso, vinculando o gosto à existência material do sujeito, o gosto passa a ser
compreendido como um esquema construído socialmente que orienta percepções,
escolhas e respostas, formando um ‘estilo humano’ que corresponde, diretamente, à
posição ocupada pelo indivíduo no grupo social59. A partir desta compreensão
necessária acerca do gosto60, pode-se pensar em como a escolha de determinada obra
musical se consolida enquanto possibilidade de propaganda política.
Durante o século XX, o conceito de propaganda ganhou novas possibilidades
interpretativas: mesclando-se, por exemplo, com o conceito de ideologia política 61.
Enquanto, anteriormente, o conceito se vinculou às possibilidades plenamente
econômico-comerciais, agora, a propaganda buscava uma orientação específica ao agir
político. Desta forma,
320
individuais e coletivas, orientando as atuações sociais. Para isso,
apresenta uma noção da realidade, [...] na qual algo deve ser
mantido, reafirmando um status quo, ou algo deve ser modificado.
Essas ideologias, grande parte das vezes, não demonstram suas
origens e muitas vezes, também, ocorrem, no emissor, de forma
inconsciente62.
62
GARCIA, Nelson Jahr. Op. Cit., p.10-11.
321
através da ‘difusão’, que procura atingir o mais rapidamente
possível um maior número de pessoas 63
63
Idem, p.28-29
64
RICON, Leandro Couto Carreira. 'Um sobrevivente de Varsóvia': um compositor e uma música.
Boletim tempo presente (UFRJ). , v.1, p.1, 2011. ______. O menino e os sortilégios: apontamentos
sobre a presença da Primeira Guerra na obra de Maurice Ravel (1914 – 1930). História: Debates e
Tendências. , v.14, p.380 - 394, 2014.
65
Para uma melhor compreensão da música medieval, inclusive de suas possibilidades políticas, conferir:
CHAILLEY, Jacques. La Musique Médiévale. Paris : Éditions Du Courier, 1951.
322
contemporânea, bem como os modos menos conhecidos (dórico, frígio, lídio, mixolídio
e lócrio)66.
Outra presença que se estabeleceu na possibilidade musical contemporânea
como herdeira da interação entre política religiosa e prática artístico-musical é a
notação. Guido D’Arezzo (992 – 1050), sacerdote católico italiano, ampliando estudos
antigos criou a base do atual sistema de notação musical designando, inclusive, o nome
das notas, tais como são hoje conhecidas, utilizando, para tal, o texto de um hino em
louvor a São João Batista67.
A hegemonia da Igreja Católica e de sua possibilidade propagandística
apresentada através da música, contudo, seria questionada. A Reforma Protestante
Luterana, nesse sentido se apresenta como uma das primeiras grandes forças a
questionar a Igreja Católica. A música, nessa crítica, também se fez relevante e a crítica
aconteceu exatamente pela manifestação oposta ao canto gregoriano, a polifonia, tão
bem representada na obra de Johann Sebastian Bach.
Nascido em uma família de longa jornada musical, Johann Sebastian se
estabeleceu como o membro mais famoso da família. Apesar de relativamente esquecida
no século XVIII e início do XIX, sua obra se transformou em repertório obrigatório dos
mais variados tipos de músicos, de instrumentistas a maestros. Tido como um dos mais
férteis compositores da história da música ocidental, grande parte de sua obra se
vinculou à divulgação da religiosidade protestante. Nesse sentido, suas cantatas 68
religiosas se apresentam como centrais. Em um mundo de embates religiosos, Bach
apresentou sua produção como possível divulgadora de uma nova interpretação religiosa
o que, certamente, expandiu as viabilidades do luteranismo em um território de
dinamismo social, cultural e político tão denso quanto os Estados do Sacro Império
Romano das Nações Germânicas69. Outro nome fortemente ligado à música enquanto
possibilidade de propaganda política, porém de forma que ultrapassa a religiosidade, é
Ludwig van Beethoven.
66
CHAILLEY, Jacques. Précis de Musicologie. Paris : Presses Universitaires de France, 1958.
RAYNOR, Henry. Op. Cit.
67
Anteriormente as notas musicais eram designadas pelas sete primeiras letras do alfabeto latino (esse
modelo ainda é o usual em países anglo-germânicos). Guido D’Arezzo estabelece o atual nome das notas
como UT, RE, MI, FA, SOL, LA e SI, utilizando a seguinte sentença: ‘Ut queant laxis Resonare fibris
Mira gestorum Famuli tuorum Solve polluti Labii reatum Sancte Ioannes’ [Para que teus servos, possam
ressoar claramente a maravilha dos teus feitos, limpe nossos lábios impuros, ó São João]. Posteriormente
a nota UT, foi transformada em DÓ.
68
Composição vocal para uma ou mais vozes com acompanhamento instrumental e coro contendo vários
movimentos separados, unificados pelo tema.
69
RAYNOR, Henry. Op. Cit.
323
Beethoven foi, certamente, um entusiasta da Revolução Francesa. Sua percepção
de mundo social e político definiu sua obra artística. Essa obra, dotada de percepções
políticas, também pode ser analisada partindo de noções de propaganda. Duas obras,
entre tantas outras, interessam nesse sentido: a terceira sinfonia, dita Eroica e a ópera
Fidélio.
A Eroica foi a obra com a qual Beethoven modificou os parâmetros da
sinfonia70. Obra inspirada em compositores franceses do pós-revolução, possui nítida
vinculação à Revolução Francesa e à figura de Napoleão Bonaparte. A intenção original
do compositor era dedicar a peça a Bonaparte, cujos ideais republicanos admirava,
transformando-a em obra de divulgação napoleônica. Entretanto, no momento em que
Napoleão se autoproclamou imperador, o compositor desistiu de seu intento71. A
dedicatória original ‘a Bonaparte’ fora, então, substituída pela célebre ‘Sinfonia Eroica
per festeggiare il sovvenire di um grand Uomo’ [Sinfonia Eroica para celebrar a
memória de um grande homem]. Com isso, a obra, originalmente composta de forma
elogiosa, se transformou em mote de luta contra o novo imperador sendo,
imediatamente, aclamada pela resistência, notadamente a germânica 72. O compositor, no
entanto ainda aprofundaria suas críticas ao general francês utilizando a ópera como
forma de manifestação.
No ano de 1799, Beethoven percebeu a sua surdez. Em seu testamento, escrito
na cidade de Heilingenstadt em 6 de outubro de 1802, preparado a partir de seu drama
pessoal da surdez, afirmou a crença de que os objetivos humanos apenas podem ser
atingidos com grande esforço individual. Essa fusão de fatores, o desespero causado
pela surdez e a crença no esforço individual para se atingir méritos, levaram o
compositor a se identificar com figuras heróicas73. Neste cenário, Fidélio, a ópera
metafórica sobre as reviravoltas políticas do período de transição entre o século XVIII e
o XIX, surge e se consagra. O sucesso desta obra, claramente se vincularia à associação
alegórica com a vitória da Europa sobre Napoleão Bonaparte. Nesta obra, se percebe,
portanto, a difusão da idéia de luta contra um mal que usurpa o poder legitimo,
duramente conquistado. Com essas composições, resumidamente analisadas, o
70
TYSON, A. Beethoven’s Heroic Phase. The Musical Times 110, 1969, p.139-141.
71
WEGELER, F. G. Remembering Beethoven. Arlington, 1987.
72
COOPER, Barry (ORG). Beethoven: um compêndio. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1996.
SIMPSON, Robert. La sinfonia: de Haydn a Dvorak. Madrid : Taurus, 1987. PAULY, Reinhard G. La
musica em El período clasico. Buenos Aires : Editorial Victor Leru, 1974.
73
Para uma documentação pessoal de Ludwig van Beethoven na qual, muitas vezes, se encontram as
críticas à Napoleão Bonaparte, ver: BEETHOVEN, Ludwig van. Beethoven’s letters. New York : Dover
Publications, 1972.
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compositor demonstrou a vinculação de sua música à divulgação de idéias de liberdade
política, assim como a Revolução Francesa original objetivou e à qual Beethoven
apoiou diretamente74.
Apesar de muitas vezes se apresentar ao público, equivocadamente, como
afastada da realidade social e política, vinculada apenas às questões da existência
sentimental, a prática artístico-musical, notadamente a ópera e suas possibilidades
próximas, como a opereta e as cantatas, se apresenta como uma ampla possibilidade
analítica ao historiador contemporâneo. Neste sentido, cabe a este, a elaboração de uma
metodologia específica para a análise deste fenômeno sócio-cultural em sua integridade
interna que possibilite o trabalho científico, bem como a construção de uma
possibilidade teórico-conceitual que, em primeiro, permita um olhar mais aprumado de
seu objeto de pesquisa a partir de novas óticas e, em segundo, apresente uma
possibilidade de pesquisa a partir da organização de problemas e hipóteses
historiográficas.
74
ARBLASTER, Anthony. Viva la Libertà! Politics in Opera. London: New York : Verso, 2000.
HAREWOOD, Conde de. Kobbé: o livro completo da ópera. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1997.
Para uma leitura acerca de outra possibilidade analítica da obra de Beethoven ainda se pensando na
interação com a política, ver: BUCH, Esteban. Música e Política: a Nona de Beethoven. Bauru :
EDUSC, 2001.
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