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A Filosofia no berço da poesia

1. Mito, inspiração e verdade

Mito: do grego mýthos: significado: narrativa, discurso, palavra. Chamamos mito a um tipo de
narrativa que, inspirada pelas deusas da memória (as Musas), versa sobre o passado e explica
a origem de um grupo social, de um costume ou rito ou, de modo mais amplo, a origem dos
deuses e do cosmos (o mundo). Referindo-se, de modo geral, a um passado distante, ao qual
não temos acesso, o mito conta como algo veio à existência e por que possui as características
que tem. É característico do mito relacionar a origem de tudo a uma ação divina em um
passado distante. O mito se constitui, no presente, como uma compreensão da realidade
compartilhada e repetida por um grupo, o que acaba por formar um conjunto de crenças que
se concretizam em costumes e ritos que manifestam um tipo de pensamento, de organização
política e social de um povo.

Uma vez que o discurso mítico é fruto da inspiração divina, ele não está submetido à
comprovação ou à verificação, mas, ainda assim, ele tem valor de verdade. Seu poder,
portanto, é capaz de garantir não só a coesão de um grupo, como também a sua tranqüilidade
e confiança frente aos fatos mais aterrorizantes, possibilitando, às vezes, a única justificativa
possível para determinados acontecimentos como, por exemplo, a morte, o nascimento, a
fatalidade, o sofrimento e a felicidade. Preenchendo com rituais momentos fundamentais da
existência humana, o mito perpetua a força do passado sobre o presente, gerando conforto
quando o passado se harmoniza com o presente ou gerando desconforto quando se dá o
contrário.

A cultura grega, em eral, é profundamente marcada pela poesia mítica de Homero e de


Hesíodo. Na Ilíada, Homero mostra exatamente o desconforto (a cólera) de Aquiles frente
às decisões do general Agamenon, fazendo ressoar a luta entre alguém que detêm o máximo
poder de comando, o general Agamenon, contra aquele que tem o maior valor enquanto
guerreiro, Aquiles. Em outro poema, a Odisseia, o herói Odisseu mostra-se perspicaz,
autônomo, corajoso e inteligente o suficiente para vencer inimigos mais fortes e de origem
divina. Aquiles e Odisseu são modelos extremamente populares que fizeram com que o poeta
Homero fosse considerado, durante muitos séculos, o grande educador da Grécia.

O modo como os gregos assimilaram e aprenderam com os seus mitos favoreceu, em nossa
opinião, uma certa pré-disposição para o pensamento autônomo e crítico denominado de
lógos. O culto à palavra escrita e oral, o gosto pelas narrativas, o confronto constante com
outras culturas e costumes, o sucesso econômico e vitórias emblemáticas no campo da guerra
fizeram com que o nascimento da filosofia, entre os Gregos, fosse menos um milagre e mais
um processo que associa, compara e confronta, em suas origens, mýthos e lógos, poesia e
filosofia, divindades e natureza.

1.1. Características do mito grego


a) A narrativa mítica grega é inspirada pelas deusas ou Musas. As Musas são deusas filhas de
Zeus e de Memória, razão de elas possuírem o conhecimento do passado, do presente e do
futuro, e deter todo o saber e a verdade. As musas inspiram o poeta. “Possuídos” pelas
Musas o poeta é considerado um ser sagrado, capaz de revelar, pela poesia, coisas divinas aos
mortais. O poeta inspirado, porém, deve encontrar a forma perfeita para transmitir este
“conteúdo” oferecido pelas musas, motivo pelo qual a narrativa obedece, em geral, ao apelo

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da compreensão humana e seu gosto pela coerência, pela beleza e ordenação dos fatos e das
explicações.
b) Os poemas de Homero (Ilíada e Odisséia) e de Hesíodo (Teogonia e Os Trabalhos e os dias) são
versificados, rimados e atendem a um objetivo importante: a revelação da origem (arkhé) dos
acontecimentos, pressupondo assim que há uma conexão entre causa e conseqüência e que
este processo pode ser conhecido e contado aos outros mortais (homens). A origem (arkhé)
é pensada como a própria divindade, isto é, a origem é divina.
c) No campo religioso, os deuses descritos por Homero, na sua mitologia, fazem parte de
uma nova ordem, a saber, são olímpicos (belos, luminosos, antropomórficos), isto é, são os
deuses que venceram, em uma guerra de gigantes, as divindades bizarras e disformes de um
passado muito distante que não mais existe.
d) Além da beleza, a glória e o saber são exigências bastante freqüentes nos mitos contados
por Homero. A glória é o meio pelo qual o ser mortal alcança a maior proximidade possível
com os deuses (imortais), através da memória e fama que não morrem. A obsessão com os
grandes feitos heroicos, com os grandes acontecimentos, é uma forma de culto à memória –
uma tentativa de não ser esquecido e, pois, de superar a condição de tudo que é mortal.
e) Já o culto ao saber é tarefa tanto divina, quanto humana. A transmissão das armas de
Aquiles, a importância de Hefestos e Atena, e a caracterização do herói Odisseu, não deixam
dúvidas: o mito grego funda a crença de que a inteligência e o saber são um poder privilegiado
capaz de transformar o fraco em forte, ao possibilitar que a persuasão vença a violência. O
saber é um poder capaz de dar àquele que o possui a ousadia de desafiar o mais forte, a
exemplo do mito de Prometeu ou do diálogo entre Odisseu e Posseidon (deus do mar) em
que o herói gaba-se de ter penetrado as muralhas de Tróia, erguidas pelo próprio deus.

1.2. Autores de narrativas míticas e poéticas:


a) Homero: Poeta épico, autor de Ilíada e Odisséia (datadas entre os séculos IX e VII
a. C.)
Citação 1: Ilíada, Canto 1, abertura.
Canta-me a cólera – ó Deusa! – funesta de Aquiles, filho de Peleu
causa que foi de os Aquivos sofrerem trabalhos sem conta
e de baixarem para o Hades as almas de heróis numerosos
e esclarecidos, ficando eles próprios aos cães atirados
e como pasto de aves. Cumpriu-se de Zeus o desígnio
desde o princípio em que os dois, em discórdia, ficaram cindidos,
o de Atreu filho (Agamêmnon), senhor de guerreiros, e Aquiles divino.
(Obs.: A Ilíada é o primeiro texto escrito do ocidente que chegou até nós de forma integral)

b) Hesíodo: Poeta épico, século VIII-VII a. C., autor de Teogonia (Origem dos
deuses) e Os trabalhos e os dias.
Citação 1: Teogonia, vv. 115-122 – A origem dos deuses.
Trecho: “Os deuses primordias”
Sim bem primeiro nasceu Caos, depois também
Terra de amplo seio, de todos sede segura sempre,
dos imortais que têm a cabeça do Olimpo nevado,
e Tártaro nevoento no fundo do chão de amplas vias,
e Eros: o mais belo entre Deuses imortais,
solta-membros, dos Deuses todos e dos homens todos
ele doma no peito o espírito e a prudente vontade.
Citação 2: Hesíodo: Teogonia, vv. 24-28
Este discurso (mýthos) primeiro disseram-me as Deusas
Musas do Olimpo, virgens de Zeus porta-égide:

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“Pastores agrestes, vis infâmias e ventres só,


sabemos muitas Mentiras (Pseudos) dizer semelhantes à realidade
e sabemos, se queremos, dar a ouvir a Verdade

QUESTIONAMENTOS/SÍNTESE
Sobre o Sábio:
1. O escolhido pelo deus é o sophós, isto é, o sábio. Ele sabe algo que deve ser contado aos
outros. O Saber e o Sábio são sagrados (reconhecidos como dádiva divina – em HOMERO).
2. O próprio deus garante a “verdade” do discurso feito pelo sábio. Mas a partir de
Hesíodo, o deus – quando quer – pode mentir e confundir a realidade com a
falsidade.
3. A inspiração pelas Musas institui uma verdade que não é contestada, mas em uma época
de laicização a palavra do poeta começa a ser questionada.
4. Novos sábios começam a surgir a convencer acerca do seu próprio saber que não é mais
inspirado. Esses novos sábios não esperam do deuses a revelação da verdade, mas buscam a
verdade por meio de investigações e raciocínios que os poetas simplesmente ignoram. Quem
são esse novos sábios?

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