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março/2015
Temática
O discurso histérico e a garrafa de Klein

MAIS AINDA Ligia Gomes Victora

SOBRE A A garrafa de Klein aparece muitas vezes na obra de Lacan com diferentes
finalidades e usos. Mas gostaria de ressaltar aqui dois momentos que
TOPOLOGIA considero cruciais: o da apresentação da garrafa como estrutura do
significante e o da escritura própria da histeria – e dois passos intermediários,
DOS que têm a ver com a virada que Lacan deu, passando da histeria como

DISCURSOS “estrutura clínica” para a histeria como “discurso”. Esta virada foi acontecendo
pouco a pouco ao longo do ensino de Lacan, mas há, no meu entendimento,
um ponto de não retorno: foi no seminário O avesso da Psicanálise (1969-70)
em que Lacan lançou os quatro discursos.

Breve histórico da garrafa de Klein na Topologia


Sumário Temática
Descrita pela primeira vez em 1882 na Alemanha, pelo matemático Felix Klein
(1849-1925), a chamada “garrafa de Klein” é uma variedade unilátera fechada,
não-orientável. Com característica de Euler igual a zero, ela não separa
interior e exterior. Seu esquema topológico é parecido com o de uma cinta de
Notícias
Möbius. (Fig.1) [1]

Vejam que na banda unilátera (esquema da esquerda) uma borda fica aberta.
Já para a garrafa de Klein (esquema da direita), esta borda (b) deve ser
costurada em “X”. Para isto ser possível deveria existir um tecido que se
autotrespassasse, como no plano-projetivo.

A garrafa de Klein (Fig.2) não pode ser construída no espaço euclideano, pois
não é possível fazer esta operação de autoatravessamento em superfícies
tridimensionais sem haver descontinuidade de seus pontos vizinhos. Porém,
pode-se tentar representá-la em D4, a partir de um cilindro de tela ou material
flexível, introduzindo uma ponta no meio do tubo, e unindo as duas pontas.
(Figura 3)

A garrafa de Klein possui um gargalo e aparentemente também uma boca,


mas esta não é como as outras, porque não perfaz uma borda – vejam que a
entrada da garrafa é fofa, não tem uma aresta. Isto faz com que não haja um
interior e um exterior: dentro e fora estão em continuidade. Se fizermos uma
tomografia longitudinal na garrafa de Klein, veremos que ela é a união de
duas cintas de Möbius, uma torcida para o lado direito e outra para o
esquerdo, postas em continuidade, isto é, coladas sem emendas. (Figura 4)

Embora tentemos demonstrar com materiais concretos, estas considerações


são bastante teóricas, pois nossa compreensão de figuras abstratas como o
plano-projetivo e a garrafa de Klein é limitada, dadas as dificuldades de se
manipular a imersão em quatro dimensões espaço-temporais de estruturas
uniláteras. Porém, estes são os objetos matematizáveis que mais se prestam
para formalizar as formações do inconsciente, bem como os processos
mentais e da linguagem humana, por sua plasticidade e resiliência.

A garrafa de Klein na obra de Lacan

1. Apresentação da Garrafa

Lacan apresenta a garrafa de Klein, na lição de 16 de dezembro de 1964 do


seminário Problemas Cruciais da Psicanálise, para explicar a função do
sentido e do significado na formação do significante na fala (Lacan, 1964-65,
p.1818).

Lembrando que alguns anos antes, em A instância da letra no inconsciente ou


a razão desde Freud, Lacan (1957, p.3403) utilizara a topologia saussureana
da folha de papel – com dois lados, como duas faces de uma moeda. Com a
apresentação do que chama de “algoritmo”: (S / s) (Significante sobre
significado), ele diz que a barra separa suas duas etapas. Segundo ele, o
Significante “entra” no significado, precipitando o sentido. É um uso particular
de uma razão matemática que ele faz, tentando fundar uma topologia – à qual
ele também não tinha acesso na época – para explicar uma relação que na
verdade é moebiana. Completa a explicação citando nominalmente o Curso
de Linguística Geral: “O signo escrito assim merece ser atribuído a Ferdinand
de Saussure, ainda que não se reduza estritamente a esta forma em nenhum
de seus numerosos esquemas... Por isso é legítimo que se lhe renda
homenagem por esta formalização”. (Lacan, 1957, p.3405) [2]

Enfim, no seminário Problemas Cruciais da Psicanálise, Lacan faz uma


grande virada – literalmente –, além de se distanciar de Frege, de Saussure e
de outros linguistas que tratam do tema. Com a proposta da garrafa de Klein
como estrutura para o significante, torce-a tal qual uma banda de Möbius. Ele
não tem mais dois lados, direito nem avesso, nem dois tempos: significante e
significado agora deslizam juntos sobre uma superfície unilátera, para formar
o sentido.

2. As transformações na estrutura do Sujeito estão dadas nos cortes no


toro

Voltando, para se compreender como se chegou a essa virada, em Função e


campo da fala e da linguagem em Psicanálise, Lacan (1956, p. 3309) lançara
a topologia de um anel oco, também conhecido como toro: “Este esquema
satisfaz a circularidade infinita do processo dialético que se produz quando o
sujeito realiza sua solidão, seja na ambiguidade vital de seu desejo, seja na
assunção de seu ser para a morte”. (Lacan, 1956, p.3339)

A constituição do sujeito do desejo passa, então, pela possibilidade de


transformação de uma estrutura tórica original, de onde surge do silêncio ou
da morte anterior às palavras, para uma estrutura moebiana, que não tem
direito nem avesso, e onde o inconsciente e o consciente se comunicam.

Porém, no seminário A Identificação (1961-62) – onde Lacan apresenta toda a


teoria do nascimento do sujeito através da topologia, ele ainda não fala na
garrafa de Klein, a qual só será citada dois anos depois, no seminário
Problemas Cruciais da Psicanálise (1964-65). A passagem do toro à banda de
Möbius é dada no seminário A Identificação através de certos cortes em torno
da superfície de uma boia. Lacan procura uma estrutura para a subjetivação
que passe de uma variedade bilátera a uma unilátera. Mas esta passagem
não se dá diretamente: teria que cortar de uma maneira específica – duas
voltas em oito-interior – e depois ainda colar de forma que daí resulte numa
banda unilátera.

Mais adiante, de maneira não explícita, Lacan se daria conta de que, com a
garrafa, a operação era bem mais simples, pois esta é uma superfície que
comporta em si mesma esta passagem, ou seja, a garrafa de Klein é um toro
revirado sobre si mesmo. Então, bastaria cortar o toro e “montá-lo” de outro
jeito. (Figura 5)

Mas a garrafa de Klein seria uma grande virada não apenas na concepção do
que é o sentido na fala, mas também na lógica de Lacan a respeito da
histeria.

3. A histeria como fenômeno de linguagem.

No seminário O avesso da Psicanálise, lição de 26 de novembro de 1969,


Lacan passa a abordar a histeria não mais como estrutura clínica ou
sintomática, mas como uma modalidade de discurso. Observa-se uma
mudança em sua forma freudiana de tratar a histeria como síndrome para
tratá-la como estrutura de linguagem. Neste seminário, Lacan diferencia fala
de discurso - sendo este último a escritura real da fala, um “algorítmo” - como
ele gosta de dizer - que se repete, além de puro fenômeno linguístico, que
pode ser identificado e aplicado sempre que se desejar.

Abordando a histeria como uma função, em que o sujeito – já atravessado


pelas leis do significante – é o agente, movido por seu desejo (no lugar da
verdade inconsciente), Lacan se dá conta de que todo tratamento psicanalítico
passa necessariamente por este tipo de discurso. Ou seja: que todo
analisante, em algum momento, passa a falar através do discurso histérico
durante sua psicanálise. Neste discurso (Figura 6) chamado de Histérico ou
da Histérica, o agente é o sujeito queixoso da falta, que interpela o analista
colocando-o no lugar do outro mestre, e que produz um significante notado
(S2). Neste caso, S2 deve ser lido como um saber: trata-se de um saber sobre
o próprio corpo, sobre o gozo, e mais ainda, um saber sobre o corpo da mãe –
gozo interditado, mortífero. (Lacan, 1970-71, lição de 17/3/1971, p.2534)
Vejam como cada fórmula exige interpretação própria, para ser compreendida.

Fica aqui oficialmente formalizada a histeria a partir somente de relações de


linguagem: mais que uma estrutura ou uma síndrome, haveria um discurso
histérico, que seria não o avesso, mas como que uma torção no discurso do
Mestre. (Lacan, 1969-1970, lição de 17/12/1969, p.2426)

4. A garrafa como topologia da histérica.

Na lição de 9 de junho, do seminário Um discurso que não fosse semblante


(Lacan, 1970-1971, p.2550), Lacan propõe a garrafa de Klein como estrutura
própria da histérica. Algumas vezes, como o termo em francês é o mesmo
(l’hysterique) para o paciente homem ou mulher, ele faz questão que
acrescentar: l’hysterique, elle... (a histérica, ela...). Por que isso, se sabemos
que a histeria não escolhe o gênero? Talvez porque o discurso histérico
potencialize o desejo da mulher – que se caracteriza por ser sempre
insatisfeito – no lugar da verdade que dá sustentação ao discurso?

Pois a garrafa de Klein, esta topologia “para uso familiar” (Lacan, 1970-71,
p.2546), carrega em si esta capacidade de se revirar do avesso, que
transforma o lado de dentro em lado de fora, sem transpor nenhuma borda ou
aresta. O que ressalta Lacan na garrafa de Klein foi o que ele chama de
“ponto de reviramento” (point de rébroussement). Este conceito, usado na
geometria, corresponde ao ponto de inflexão – o ápice em que a curva se
volta, para mudar sua trajetória. Um ponto de não-retorno, presente na garrafa
de Klein, materializa aquilo que ela representa na abordagem da histeria por
Lacan.

Porém, quando lemos com atenção este seminário, vemos que o “ponto de
reviramento”, para Lacan, não se refere à curva em si (Figura 7, ponto 1), mas
ao momento em que o pescoço da garrafa atravessa seu corpo em direção a
seu interior, ou seja, à introdução do gargalo na garrafa (Figura 7, ponto 2) o
que seria um momento de reflexão, em todos os sentidos. Como um ponto de
capitoné, uma amarração que faz buraco.

Um momento de reflexão – é o mesmo que se pode pensar da função do


discurso histérico para a obra de Lacan. Pois ele (Lacan, 1970-71, p.2549)
aponta para este ponto de reviramento como sendo um ponto que, mesmo
não sendo impossível de ser encontrado no corpo, tem, contudo, uma
“figuração topológica completamente incorreta do gozo em uma mulher”: não
porque não exista, mas porque pode estar em qualquer lugar. De fato, este
pode deslizar pelo corpo todo, como um ponto numa banda de Möbius -
localmente bilátero, mas no todo, unilátero, sem direito nem avesso.

Discurso histérico e garrafa de Klein

Neste mesmo seminário (Lacan, 1970-71, p.2547) este discurso ganha corpo:
a garrafa de Klein. O esquema do discurso histérico lembra as torções da
garrafa. (Figura 8).

A garrafa, como a banda de Möbius, é uma variedade unilátera, pontualmente


bidimensional – isto é, se pinçarmos um ponto, ele se separa do seu antípoda,
do outro lado, mas se corrermos o dedo pela superfície, passamos de um
falso lado ao outro sem transpor nenhum bordo. Lacan insiste que este ponto
de reviramento pode existir, “ao menos um”. Lembrando que estamos falando
de uma estrutura, logo estas operações devem ser pensadas mais que sobre
o corpo, também sobre a escritura do discurso. Como um algoritmo – diz
Lacan – há uma fórmula real, que pode ser aplicada e repetida.

Esse “menos um” a que Lacan se refere pode ser pensado como um ponto
(-1) subtraído da rede de significantes, que fica faltando. Pode-se pensar aqui
em dois tipos de operações de subtração:

1) da ordem do recalcamento, quando um significante de um significado é


recalcado da consciência do sujeito e retorna. O sintoma é o preço a pagar
para se ingressar no universo do simbólico. [3]

2) da ordem da denegação, quando um significante falta mas deixa um lugar


marcado – como um livro que falta na prateleira. Cria-se um espaço vazio
entre seus vizinhos, mas um resto – mesmo denegado – é deixado em
garantia.

A subtração de um único ponto (-1) faz uma diferença, embora permita, no


conjunto, uma unidade imaginária ao corpo, porém com aquele reviramento
moebiano que o torna traumático. Um que falta e pronto: abre espaço para a
torção e os significantes se desorganizam – uns pulam pra fora, revestindo a
pele, fazendo sintomas.

Referências Bibliográficas

LACAN, J.-M. Obras completas e Escritos em CD-R da Associación Freudiana


de Buenos Aires. Ia edição. Buenos Aires. Sem data.

______. (1956). Função e campo da fala e da linguagem em Psicanálise.

______. (1957). A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud.

______. (1961-62). Seminário 9: A Identificação.

______. (1964-65). Seminário 12: Problemas Cruciais para a Psicanálise.

______. (1969-70). Seminário 17: O avesso da Psicanálise.

______. (1970-71). Seminário 18: Um discurso que não fosse semblante.

VICTORA, L. (2013). Topologia e clínica psicanalítica. Porto Alegre: Ed.


Redes.

Autor: Ligia Gomes Victora

* Seminário de Topologia na APPOA, dia 12/09/14.

[1] As figuras foram retiradas de VICTORA, L. (2013).

[2] As citações de Lacan foram traduzidas pela autora.

[3] “El síntoma es aquí el significante de un significado reprimido de la


conciencia del sujeto. Símbolo escrito sobre la arena de la carne y sobre el
velo de Maya, participa del lenguaje por la ambigüedad semántica que hemos
señalado ya en su constitución”. [Lacan. 1956. Função e Campo da fala e da
linguagem. P.3325]

março de 2015 - Correio APPOA

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