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TEOLOGIA

ESTRUTURA
COMPLEXA
Desenvolvimento histórico do estudo literário do livro do Apocalipse

Alberto Tasso Barros


Apocalipse é um livro de difícil in-

O terpretação. O desafio não está


apenas em decifrar seus códigos
proféticos, mas também em en-
tender como ele foi construído. Entre os
passos exegéticos, identificar a macroes-
trutura é fundamental, pois nos previne
de interpretar uma passagem ou seção
isoladamente do restante do livro.1
Foto:

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Há um consenso acadêmico de que João Ambos romperam com a recapitulação de Lund em 1942,10 mas foi Elisabeth Fio-
não estruturou seu livro de forma aleató- Vitorino e propuseram uma estrutura pro- renza que causou um profundo impacto
ria. Pelo contrário, o Apocalipse é conside- gressiva para o Apocalipse, com cumpri- ao propor um paralelismo mais amplo.11
rado “a obra mais artística e bem elaborada mentos históricos literais desde a morte Ela parte de três princípios de análise: (1)
de todas as outras do mesmo gênero na li- de Cristo até o escathon.6 o número sete; (2) as duas visões relacio-
teratura hebraica e cristã”.2 Além disso, o Já o criticismo literário do século 19 nadas aos pergaminhos fechado e aberto
investigador mais atento perceberá como fracionou o Apocalipse em uma com- (5:1-2 e 10:2); e (3) o princípio de intercalação.
a macroestrutura por si só nos revela a es- posição de diferentes fontes e autores. Este último consiste na técnica de unir dife-
sência de sua mensagem. O primeiro a fazê-lo foi K. Von Wizsäcker, rentes visões através da técnica ABA’, com
O passo preliminar para essa análise é em 1882, e outros, como Daniel Völter, o método sanduíche utilizado nos evange-
descobrir se as diferentes visões estão re- vieram depois dele. Mas, uma reviravol- lhos. O resultado seria um grande quiasmo
lacionadas entre si de maneira cronológica, ta interessante aconteceu no final do de sete partes , com um centro bem marca-
temática ou ambas. As principais linhas de século 19, quando autores do método do na visão dos capítulos 10:1 a 15:4.12
debate giram em torno se Apocalipse 4:1 crítico-histórico reconheceram uma uni- Em linhas gerais, há pelo menos quatro
a 22:6 representa um esquema sequen- dade indivisível no Apocalipse e a obra de princípios entre os autores que adotaram
cial de eventos ou se alguns seguimentos um só autor ou editor.7 Desde então, essa a recapitulação: (1) os paralelos dentro da
se sobrepõem temporal e tematicamente.3 unidade literária é consensual. estrutura estão centralizados nas séries
Portanto, uma forma de sistematizar O conceito de recapitulação retomou de sete, com exceção da série das igrejas
esse estudo é por meio da análise e com- sua força no início do século 20, com os (2:1–3:22) que é tida como introdutória; (2)
paração dos autores que identificaram uma dois comentários relevantes de H. B. Swe- a repetição de frases e termos como “re-
estrutura com paralelos. O primeiro modo, te e E. B. Allo. Desde então, surgiram várias lâmpagos, trovões e vozes” (4:5, 8:5, 11:19
recapitulação, identifica paralelos no texto formas de entender a recapitulação, sen- e 16:18-21) e “vi” e “ouvi” (7:1, 4) são mar-
em que visões ou temas subsequentes re- do as principais: (1) o modelo septenário e cadores estruturais; (3) o centro do livro,
tomam os anteriores, ampliando o que já (2) o modelo quiasmático. em geral, gravita em torno do capítulo 12 e
foi mencionado. O segundo propõe que os Adela Collins argumenta que o número suas visões adjacentes; e (4) a recapitulação
blocos de visões estão relacionados através 7 tem a função de marcar e identificar as não é apenas uma repetição, mas funciona
de uma sucessão de eventos ou temas que principais seções do Apocalipse. A relação como uma ampliação do que foi mostrado.
caminham linearmente até o clímax final. entre essas seções se dá por recapitula-
ção, e esta excluiria a série das sete igrejas Ênfase na progressão cronológica
Ênfase na recapitulação e estaria presente nos paralelos entre os A ideia básica entre os autores que não
No 6º século, Vitorino de Pettau escre- sete selos, as sete trombetas, as sete pra- aceitaram a recapitulação é que os sete
veu o mais antigo comentário completo do gas e outras duas séries de visões sétu- selos, trombetas e pragas seriam eventos
Apocalipse, lançando as bases para a no- plas não numeradas (12:1–15:14; 20:4–22:5).8 sucessivos, partindo da entronização de
ção de recapitulação. Esse autor foi o pri- Essa repetição de temas seria a ferramen- Cristo até o fim escatológico. Autores de
meiro a propor uma organização integrada ta utilizada para retomar, ampliar e enfati- escolas futuristas como R. Mounce argu-
ao oferecer uma exposição unificada do li- zar assuntos já apresentados. mentam que os eventos dos capítulos 4 a
vro de João. Ele mencionou que as sete ta- A relação entre as seções seria tam- 11 cobririam esse período desde a ressur-
ças (16:1-21) não são novos eventos, mas bém integrada pelo que foi denominada reição de Cristo até Seu retorno. Os capítu-
uma repetição ampliada das sete trombe- de “técnica do intertravamento”. Esta se- los 8:2 a 22:5, especialmente, se refeririam
tas (8:7–9:21).4 ria a forma que João unificou a sequência apenas à tribulação final.13
Esse modo de ver o arranjo literário das visões ligando o sétimo elemento com Uma variação importante desse pensa-
do Apocalipse como uma série de repe- o que vem a seguir. Por exemplo, a visão mento é a teoria telescópica, proposta por
tições e ampliações foi posteriormente do anjo com o incensário antes do toque R. J. Loenertz e ampliada por G. Ladd e R. L.
denominado por Ticonio de teoria da re- das trombetas (8:3-5) retoma o quinto selo, Thomas. Ela defende que o sétimo elemen-
capitulação, sendo utilizado como con- com as almas clamando embaixo do altar to de cada uma das séries sétuplas, com
Foto: Thomas Mucha / Adobe Stock

senso por, praticamente, toda a tradição (6:9-11). Assim, as duas visões estariam de exceção das sete igrejas, inclui tudo o que
latina. A ruptura veio com Alexandre Mi- certa forma entrelaçadas em paralelo.9 vem depois, como um antigo telescópio re-
norita e o influente Nicolau de Lira, segui- O pioneiro em identificar uma estrutu- trátil,14 de tal forma que o sétimo selo ou
dores do historicismo de Joaquim de Fiori.5 ra quiasmática para o Apocalipse foi Nils sétima trombeta, por exemplo, incluiriam

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estruturalmente tudo o que vem depois, Entre os estudos literários do Apocalip- mais teológico ao buscar, além do cumpri-
até o capítulo 22. se, a contribuição dos adventistas do séti- mento profético, o significado espiritual das
Essa argumentação se baseia no modo mo dia merece destaque. Não apenas pelo profecias. Já a terceira teve uma ênfase mais
que o Apocalipse apresentaria o sétimo peso que o livro tem dentro desse movi- exegética de análise do texto e de seus pa-
elemento das séries por meio de uma lin- mento profético, mas porque os autores ralelos com o Antigo Testamento.
guagem vaga ou mesmo sem conteúdo da denominação proveram a esse estudo Os estudos sobre a estrutura progredi-
próprio, como no caso do sétimo selo (8:1). uma contribuição muito particular. Em ge- ram no último período com as publicações
Assim, o sétimo elemento de cada uma das ral, os adventistas adotaram a recapitula- de Kenneth A. Strand. Até então, a análi-
séries estaria ligado tanto o que veio antes ção, mas foram muito além em sua análise se da macroestrutura estava mais relacio-
como ao que viria depois, formando uma estrutural. nada com a divisão das visões em seções
clara unidade literária.15 e estabelecer o relacionamento delas por
Em resumo, a proposta de macroestru- Contribuição adventista recapitulação. Ele foi o primeiro a propor
tura linear está em oposição aos autores No adventismo há três fases distintas um sistema integrado para a macroestru-
que adotaram a recapitulação. Ao contrá- na interpretação do Apocalipse: (1) o perío- tura por meio de um quiasmo composto
rio da tendência entre os recapituladores do de Thoughts on Daniel and Revelation por prólogo, epílogo e mais oito visões.17
de dividir o livro ao redor do capítulo 12, os (1862–1944); (2) o período do Comentário Essas visões estão divididas em duas
progressistas, em geral, colocam um mar- Bíblico Adventista (1944–1970); e (3) período seções. As primeiras quatro visões se
co divisório ao final do capítulo 3, iniciando de múltiplas ênfases (1970– ).16 Na primei- referem à série histórica (1:12–14:20), e
a sucessão de eventos a partir da visão ra, por influência de Uriah Smith, a tendên- as outras quatro, à série escatológica
do trono, no capítulo 4. cia foi enfatizar o cumprimento profético (15:1–22:5). As oito visões básicas do Apo-
Vale ressaltar que a análise de muitos na história. A segunda teve um enfoque calipse seriam:
autores é muito mais literária que inter-
pretativa. Eles estão mais preocupados
em identificar a estrutura do que em in- A. Prólogo (1:1-11)
terpretar os símbolos e as visões. Tam- B. Igreja militante (1:12–3:22)
Histórica

bém deve-se mencionar que não existe C. Obra salvífica de Deus em progresso (4:1–8:1)
Serie

necessariamente uma relação direta en- Da. Advertência das trombetas (8:2–11:18)
tre o método interpretativo (idealismo, Db. Agressão pelas forças do mal (11:19–14:20)
historicismo, preterismo e futurismo) e a 1
Escatológica

análise literária em que autores idealis- Da’ Juízo das pragas (15:1–16:21)
tas e historicistas adotam a recapitula- Db’ Juízo das forças do mal (17:1–18:24)
Serie

ção e os futuristas a linearidade. Mas essa C’ A obra de salvação de Deus completa (19:1–21:4)
não é uma regra fixa. Há muitas exceções. B’ Igreja triunfante (21:5–22:5)
A’ Epílogo (22:6-21)18

Visões da parte histórica Visões da parte escatológica


I II II IV V VI VII VIII
Cena vitoriosa de introdução com cenário do templo Cena vitoriosa de introdução com cenário do templo
A A
Ap 1:10b-20 4–5 8:2-6 11:19 Ap 15:1–16:1 16:18–17:3a 19:1-10 21:5-11a
Descrição profética básica na história Descrição profética básica no juízo final
B B
Ap 2–3 6 8:7–9:21 12–13 Ap 16:2-14, 16 17:3b–18:3 19:11–20:5 21:11b–22:5
Interlúdio: destaque nos eventos finais Interlúdio: exortação e apelo
C C
Ap 7 10:1–11:13 14:1-13 Ap 16:15 18:4-8, 20 20:6
2
Culminação escatológica: clímax da história Culminação escatológica: juízo final
D D
Ap 8:1 11:14-18 14:14-20 Ap 16:17 18:9-19, 21-24 20:7–21:4
Foto:

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Strand foi além e encontrou uma estru- Apocalipse dentro da denominação. Os ad- Minoritax Expositio in Apocalypsim, Quellen zur
Geistesgeschichte des Mittelalters, v. 1 (Weimar:
tura interna semelhante à das grandes vi- ventistas, em linhas gerais, aceitam a reca- Hermann Böhlaus, 1955; reimpressão, Munique:
sões. Cada uma delas seria inaugurada por pitulação, mas são praticamente os únicos MGH, 1983).
uma cena de vitória no santuário celestial, recapitulacionistas que relacionam, em pa- 6
William C. Weinrich, Greek Commentaries on
seguida por uma descrição profética bá- ralelo, a visão das sete igrejas com os selos Revelation: Oecumenius, Andrew of Caesarea,
(Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2011).
sica, um interlúdio e uma culminação es- e trombetas, além de colocar as pragas na 7
Uggo Vanni, La Struttura Letteraria dell’Apocalisse
catológica. O quadro 2 na página anterior parte escatológica. (Brescia: Morcelliana, 1980), p. 17, 18.
deixa isso mais claro. 8
Adela Yarbro Collins, The Combat Mith in the Book
A proposta de Strand estabeleceu o pa- Conclusão of Revelation (Missoula, MT: Scholars Press, 1976),
p. 15.
drão a ser seguido dentro do adventismo. Identificar a estrutura do Apocalipse tem
9
Collins, p. 16-19, 49.
Anos mais tarde, Jon Paulien publicou uma desafiado os mais hábeis eruditos, com pou-
10
Nils Wilhelm Lund, Chiasmus in the New Testament:
modificação na estrutura de Strand, redu- co consenso entre eles. De fato, as contribui-
A Study in Formgeschichte (Peabody, MA:
zindo o quiasmo de oito, para sete visões. ções para o estudo literário do Apocalipse Hendrickson Publishers, 1992; Chapel Hill, NC: UNC
Enduring Edition, 2012), p. 321-411.
Paulien argumenta que não é possível ver são tão numerosas quanto seus intérpre-
uma cena do santuário em 16:1 a 17:3a. As- tes.23 No entanto, é possível classificá-los
11
Elisabeth Schüssler Fiorenza, Revelation: Vision of
a Just World (Mineápolis, MN: Fortress Press, 1991),
sim, o quiasmo teria um clímax bem mar- entre os que utilizaram a recapitulação ou a p. 35, 36.
cado nos capítulos 11:19 a 15:4: progressão cronológica para identificar essa 12
Fiorenza, p. 35, 36.
estrutura. Os estudos adventistas merecem 13
Robert H. Mounce, The Book of Revelation (Grand
Prólogo (1:1-8) destaque por serem os mais profundos e Rapids: Eerdmans, 1977), p. 46, 47, 151, 163.

A. As sete igrejas (1:9–3:22) fundamentados, especialmente, na identi- 14


Raymond-Joseph Loenertz, The Apocalypse of Saint
John (Nova York: Sheed & Ward, 1947), p. xiii.
B. Os sete selos (4:1–8:1) ficação de uma estrutura interna nas visões,
15
Jan Lambrecht, “A Structuration of Revelation”, em
C. As sete trombetas (8:2–11:18) inauguradas pelo santuário.
L’Apocalypse Johannique et l’Apocalyptique Dans
D. A crise final (11:19–15:4)19 Sem dúvida, o Apocalipse é resultado da le Nouveau Testament (Leuven: Leuven University
C’. As sete pragas (15:5–18:24) inspiração divina, pois uma estrutura tão Press, 1980), p. 80-88.

B’. O milênio (19:1–20:15) profunda e bem elaborada não poderia ser


16
Gluder Quispe, The Apocalypse in the Seventh-day
Adventist Interpretation (Lima: Universidad Peruana
A’. A Nova Jerusalém (21:1–22:5) fruto da inteligência humana. É encantador Unión, 2013), p. 2-16.
Epílogo (22:6-21)20 perceber que a estrutura em si é uma re- 17
Kenneth A. Strand, “The Eight Basic Visions in the
velação dos desdobramentos do plano da Book of Revelation”, Andrews University Seminary
Studies 21, no 3 (1983), p. 107-109.
O método de análise de Paulien identi- redenção, culminando com o fim do gran-
18
Kenneth A Strand, “Chiastic Structure and Some
ficou que João utilizou quatro estratégias de conflito. Compreender a macroestrutu-
Motifs in the Book of Revelation”, Andrews
diferentes para estruturar o Apocalipse: ra do Apocalipse é fundamental para todo University Seminary Studies 16, no 2, (1978), p. 401.
(1) estruturas repetitivas; (2) “duodirecio- aquele que busca interpretar suas visões 19
Jon Paulien, Seven Keys: Unlocking the Secrets of
nalidade”, um método semelhante ao que corretamente. Revelation (Nampa, ID: Pacific Press, 2009), p. 42, 43.

Collins chamou de técnica do intertrava-


20
Jon Paulien, The Deep Things of God: An Insider’s Guide
Referências to the Book of Revelation (Hagerstown, MD: Review
mento; (3) paralelos quiasmáticos; e (4) o and Herald, 2004), p. 123; Paulien, Seven Keys, p. 41.
1
Carlos Olivares, “Análisis estructural de Apocalipsis
uso do santuário como dispositivo estru- 21
Paulien, The Deep Things of God, p. 112.
12 y 13: en busca de un esqueleto estructural”,
tural.21 Paulien também foi além de Strand Theologika 20, no 1 (2005): 35. 22
Jon Paulien, “The Role of the Hebrew Cults,
ao identificar que as cenas introdutórias 2
J. Massyngberde Ford, Revelation: A New Translation Sanctuary, and Temple in the Plot and Structure of
with Introduction, Notes and Commentary, (New Revelation”, Andrews University Seminary Studies
do templo seguem a mesma sequência do
Haven & Londres: Yale University Press, 2008), 33, no 2 (1995), p. 255.
plano da redenção executado no santuário v. 38, p. 46. 23
Wayne Richard Kempson, “Theology in the
celestial, isto é, inauguração (4–5), interces- 3
G. K. Beale, The Book of Revelation: A Commentary Revelation of John as a Possible Key to its Structure
são (8:2-6), juízo (11:19), cessação (15:5-8) e on the Greek Text , (Grand Rapids, MI; Carlisle, and Interpretation” (tese de doutorado, Southern
Cumbria: W. B. Eerdmans; Paternoster Press, 1999), Baptist Theological Seminary, 1982), p. 38.
ausência (19:1-10).22
v. 39, p. 108.
Os estudos sobre a macroestrutura 4
William C. Weinrich, Latin Commentaries on
encontraram um lugar especial entre os Revelation: Victorinus of Petovium, Apringius of Beja,
eruditos adventistas, e Strand foi o mais Caesarius of Arles, Bede the Venerable (Downers ALBERTO TASSO
BARROS
Foto: Gentileza do autor

Grove, IL: InterVarsity Press, 2011), p. 12.


relevante deles. No entanto, a adaptação pastor em São José
5
Philip Krey, “Nicholas of Lyra: Apocalypse
feita por Paulien se tornou o modo mais Commentator, Historian and Critic”, Franciscan
do Rio Preto, SP
comum de olhar o esquema literário do Studies 52 (1992). Alois Wachtel (org.), Alexander

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