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TEXTOS FILOSÓFICOS

II
DIÁLOGOS EM TÚSCULO

Marco Túlio Cícero

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


TEXTOS FILOSÓFICOS

II

DIÁLOGOS EM TÚSCULO
Marco Ttílio Cícero
TEXTOS FILOSÓFICOS

II
DIÁLOGOS EM TÚSCULO

Marco Túlio Cícero

Traduçüo do latim. i11troduçcio e notas


de
J . A. S EGURADO E CAMPOS

FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN


Rese rvados todos os direitos de harmonia co m a lei
Edição da
FUNDAÇÃO CALOUSTE GU LB EN KIAN
Av. de Berna I Lisboa
2014

Depósito Legal n. º 352 418/12


ISBN: 978-972-31-1528-4
Quando procuramos determinar quais
são os pilares em que assenta a formação
das consciências no mundo ocidental, há
uma obra que nunca pode faltar, e essa é o
conjunto dos tratados filosófi cos de Cícero.
[... ]Eles são fundamentais , quer pela impor-
tância perman ente dos temas versados, quer
pela forma atraente por que são expostos ,
quer ainda , e sobretudo, pelo elo insubstituí-
vel que representam entre a filosofia grega,
que continuam , e a sapientia romana , que
começam a moldar.

Mari a He lena da Rocha Pe reira

[IXJ
INTRODUÇÃO

[1] O plano filosófico de Cícero


No tratado De diuinatione , redi g ido nos meses que
precede ram os Idos de M arço de 44 , C íce ro e xpõe a arqui -
tectura a que obedece o seu projecto de dotar a literatura
latin a de um corpus de tex tos de natureza fi losó fi ca. gé ne-
ro ' lite rá ri o ' até então não representado e m Roma por
obras de rea l valor. Se tal plano foi estabelec id o a priori ,
isto é , antes da redacção de qualque r urna das obras que o
co mpõem , ou, pelo contrário , ape nas fo i posto por escrito
no mo me nto e m que o autor j á tinh a publicado vári os
tex tos pe rtinentes , é para a presente introdução po uco re le-
va nte . O certo é que C ícero inculca no le ito r que as suas
obras se organi zam co rno um todo que prete nde cobri r
as di ve rsas áreas e m que as vá ri as esco las di vide m as
di sc iplinas fil osó fic as 1 •

[2] Hortênsio. Os livros Académicos


O edifício filo só fi co con cebido pelo Arpinate ini cia-se
co m um pró logo , o Hortênsio, ao mes mo te mpo ini c ia-
ção e e xortação à práti ca da fil oso fia , um ve rd adeiro
J1QO'tQEn:n xóç 2 à maneira de A ri stóte les3.

1
V. Cícero. De di 11i11ario11e. li . 1-2.
2 n goTQEmtxóç (),óyoç) " d iscu rso pe rsuas ivo".
1
V. Aristote les. Prorreprikos. Hú,jiihm11g ~11r Phi/osophie. Rekonstru ie rt.

IX I!
Ao Hortênsio segue-se a co mpos ição dos Académicos,
a lgo atribulada. já que se iniciou com uma ve rsão em doi s
li vros de que se co nservou apenas o seg undo. intitulado
L11c11/o . e c ulmin o u numa ve rsão em quatro li vros. de que
c hego u até nós o primeiro. incompl eto , e po ucos e diminu-
tos fragmentos dos o utros três . Com a redacção dos
AcadéJ11icos . Cícero introd uz o le itor na prob lemáti ca das
pa rtes da filosofia : desde a Academ ia platónica formou -se
a tendê nc ia para di v idir a filosofia e m três grandes áreas : a
lógica. ou dial éc tica . que tem por objecto o prob lema do
co nheci mento (O que é co nhece r? O que podemos nós
con hece r? Como distinguir o co nhecime nto verdadeiro do
co nhec imento falso ?); a éti ca , á rea fundamenta l da filoso -
fia. re Aexão so bre os limites do be m e do mal. sobre a
ide ntifi cação do verdade iro ' bem· para o homem, o 's umo
bem · equiparado por a lg um as co rre ntes à v irtude , por
ou tras ao praze r: e a fís ica, c ujo objecto de estudo é a
estru tura do un iverso , a sua origem , a ex istê nc ia, ou não ,
de um princípio di vino res ponsáve l pelo eq uilíbri o e ha r-
mo ni a dos co rpos celestes.
Com os Académicos Cícero e ntra directame nte na
práti ca da fi losofia. por um lado ao afro ntar um proble ma
prév io a toda a in vestigação , isto é, o problema do co nhe-
c imento. e por o utro ao estabe lece r a sua pró pri a pos ição
como fi lósofo: desde os Académicos, Cícero defi ne-se
co mo segu idor do ceptici smo da Nova Acade mia ele

übersetzt und kommentie rt von Gerhan Sc hneeweiB . Darm stadt. Wi sse nsch a-
ftli c he Buchgesel lschaft (Texte z ur Forschung). 2005. - O peque no texto co m
que ini ciámos a tradução deste conjunto de obras de Cícero. os Paradoxo.,· dos
Es1úicos. não é me ncionado pelo aut or neste contexto. ou porq ue não lhe atri buía
grande va lor fi losófico. o u por e nt ende r que não se integ rava na arquitec tura
projectada .

!XIII
acordo com a tendê nc ia que à Esco la foi dad a pelo seu
anti go professo r Fílon de Larissa.

[3] As últimas fronteira s do bem e do mal


Após a redacção destes li vros passa Cícero a ocupar-se
da questão central da éti ca, sobre a qual escreve os cinco
li vros do De _finibus bonorum et malorum , o u, na nossa
versão, As últimas .fronteiras do bem e do mal, o bra em
que passa em rev ista a pos ição sobre o sumo be m , ou o
úl timo fim do homem , assumida , respect ivamente, pela
esco la de Epicuro (li vros I e II), pe los Estóicos (li vros III
e IV ) e pelos Peripatéticos (li vro V).
Ambas as obras têm duas característi cas que as apro-
xima m: por um lado, que r os Académicos q uer As últimas
jj'onteiras 4 cingem-se a um , e apenas um , tipo de problema
(o conheci mento , o sumo bem), por outro lado , cada uma
delas s itua-se no ponto de vista da teo ria , sem se oc upar da
ve rtente prática q ue as questões e m estudo oferecem.

[4] Os Diálogos em Túsculo


Seg ue-se, na enumeração das suas obras feita por
Cícero , a referê ncia aos Diálogos em Túsculo 5 , também
e m c inco li vros, de que não estão ause ntes tam bém certas
questões de natureza ét ica. Há , por co nseg uinte , uma
saliente afinidade entre estas duas obras , o De finibus e as
T. D .: e nqu anto a primeira defi ne a essê nci a do sumo bem
para o homem (seg undo as diversas esco las fi losóficas) do
ponto de vista teórico , as T. D . ana li sa m a mesma questão

4
Abrev iada me nte. e m lat im. De_/i11i/ms.
' Em abrev iatu ra T. D. (= Tusc11/w111e Disp11rario11es), ex pressão fem inina
e m latim. cio que resulta a re fe rê ncia às (Tu sc ul anas) e não aos ( Diál ogos) .

IX III]
- quai s as co ndi ções necessárias e suficie ntes para qu e o
home m a lcan ce esse bem supremo , ou , por outras pala-
vras, quai s as condi ções que pe rmite m a " vida fel iz'', a
fe licidade, mas vistas agora do ponto de vista prático . e
anali sadas de uma forma " negati va", o u seja , não tanto as
co ndi ções posi ti vas necessá ria s, mas antes as co ndi ções
c uja prese nça to rn a impossível a obte nção da fe li c idade .

[5] As obras metafísico-teológicas


Após as T. D .. Cícero e mpree nde a redacção de um
co njunto de três obras c ujo te ma é o q ue os Anti gos des ig-
nava m como a.física, o estudo da natureza6 , de qu e faz ia
parte in tegra nte o q ue chamavam teologia . São e las:
A nature-::,a dos deuses7, e m três livros, qu e a nali sam o pro-
ble ma da existência e das ca racte rísti cas dos de uses, e m si
mes mos e nas suas re lações co m o ho me m , sucess ivamen te
segund o os Epicuri stas. os Estó icos e os Peripatéticos;
A adivinhação 8 , e m doi s li vros, sobre a poss ibi lidade de
co nhece r o futuro , obras e m parte j á redi g idas e o Tratado
sobre o destin o 9 , ainda em projec to , num só li vro , q ue
c hego u até nós mutilado. A julgar pe los te mas indi cados ,
Cícero está mai s inte ressado nas questões metafísicas do
qu e nos pro blemas próprios da c iê nc ia da nat ureza 1° .

" Reco rde m-se a propós ito o poe ma de Lu créc io. con tempo râneo de Cíce-
ro . intitul ado Sohre a Nm ure:a (De rerui// 11ar11ra) . e os estudos de Séneca .já no
séc. 1 d . C. . com o títul o de Na1 urales Q11aes1io11es.
7
Em latim De 11a1urci deoru111 (abre vi adame nte N. D .) .
x Em latim De di11i11cuio11e .
9
Em latim De fa10 .
10
Seg ui dame nte Cícero me nciona toda uma sé rie de obras já red ig idas e
pub li cada s antes de te r ini c iado este se u plano de estudos propri a me nte fi losó-
fi cos. e c uja inc lu são nel e s6 foi fe it a a pos1eriori: são e las os se is li vros De re
p111J/ica , a Co11solaçc7o a si mes mo pe la mort e da filha. o e nsaio Sohre a ,•e/h ice.

IXIYI
[6] O plano filosófico em esquema
o plano global dos seus textos fi losóficos, Cícero
atribui um lugar ao mes mo tempo importante e peculi ar
às T. D., as quais , na qualidade de tex to de filosofia práti -
ca 11 fo rmam, por assim di zer, um a ponte entre doi s conjun-
tos de textos teóricos e subordinados a uma temática de
ordem geral, e nquan to as T. D. analisam di versos proble-
mas po ntu ai s, conquanto todos integrados no tema geral
da " fe li cidade" . Em esq uema , a pos ição das T. D . é a
seguinte:

Textos teóricos l , já reali zados:


Academici libri - tema: o conheci mento
De jinibus - tema: o su mo bem

T.D .: várias questões pontuai s re lacionadas com o tema


do sumo bem , do autodomín io e da liberdade/
/felic idade do homem 12 ; especia l re lacionação
com o De finibus.

o E11cô111io de Catâo (perdido. mas que deu lu ga r a urna resposta. também per-
dida. por paI1e de Júlio Césa r. o A111icatrio). e ainda os estudos no domín io da
retóri ca: Sobre o orador (De orarore). O orador ideal (Oraror) e o Brwus. em
que estuda a hi stóri a da eloquência em Roma.
11
Empregamos a ex pressão •'fil osofia práti ca" no senti do ma is amplo . v.
icgorski 20 12. p. 8.
11
A circunstância de as T.D . trat arem de múltiplas questões pontu ais . de
pormenor (u. g .. as ·pai xões da alma' ) tem levado vá ri os eruditos a atribu írem à
obra falt a de unidade temáti ca (c f . Hi rze l 1883. p. 342).

IXY]
Textos teóricos II , rea li zados e m parte
De natura deorn111 - te ma: a natu reza di vina ( 1)
De d iuinatione - te ma : o conhecime nto do futuro (2)
De fat o - te ma: destino e li berdade (3)

( 1) jâ comple tado
(2) em cu rso de rea lização
(3) ai nd a ape nas em projecto

Atendendo a esta situ ação particu lar das T. D . acabá-


mos por dec idir isolar este tex to. tanto dos q ue o precede m
- os Textos teóricos I do esque ma sup ra , co mo daqu e les
qu e irão seg uir-se- lhe - os Textos teóricos II . As T. D ., no
e ntanto , aprese ntam , pelo número de li vros já co mpl eta-
dos, um a forte li gação ' ex te ri o r ' ao De .finibus e ao co nj un -
to dos Tex tos II.
A ligação ' inte ri o r ' ao De fi nibus não é me nos estre ita,
dado qu e o probl ema do "sum o be m" e do "sum o mal"
(tema teó rico do De.fi n .) se re lac io na forte me nte com o da
" virtude" e o da "fe lic idade" .

[7] Conteúdo filosófico dos Diálogos em Túsculo


O s c inco di álogos que formam as T. D . anali sa m os
di versos facto res impediti vos da uita beata , da fe li c idade:
- livro I: o rde m metafísica : a finitud e do ho me m ;
- li vro II : orde m psicológica e o rde m física : a poss i-
bilidade da dor;
- li vros III e IV: orde m psicológica: as perturbações
mentai s;
- li vro V: o rde m ética: a relac io nação e ntre a virtude
e a fe licidade .

[XVI ]
[8] Forma e conteúdo dos 'diálogos' de Cícero
Diálogos e111 Túsculo: antes de aprofundarmos a ques-
tão da estrutura e composição das T. D. há que explicitar
qual o valor exacto do termo latino - disputation es - que
traduzimos aqui por "d iálogos'·. O que é, efectivamente.
uma disputatio? Comecemos pela co nsulta de alguns
dicionários.
Se procurarmos no Quicherat-Châtelain qual a melhor
maneira de verter para latim a palavra diálogo (francês
dialogue) encontramos, para o va lor de entretien, ou seja,
conversa, conversação, troca de palavras, o termo latino
sermo (sem falar de dialogus, que não passa da tran scrição
do termo grego ôLáÀoyoç), o preferido de autores como
Cícero ou Yarrão . Com ap licação particular aos diálogos
da comédia, encon tramos ainda colloquia personarum ,
expressão usada por Cícero, e diuerbia, mas este último é
já um termo técnico para designar as partes da co média
dialogadas , por opos ição às partes cantadas , ou cantica.
No mesmo dicionário , no entanto, encontramos o termo
disputatio , como equi va lente de discussion (portu guês
" discussão"), ex pli cado como action de discuter, de
débattre, ou ainda no sentido de examen approfondi, e não
co mo co rrespondente a diálogo.
Uma ráp ida vista de olhos a outros dicionários co nfir-
ma que, se disputa tio é um diálogo , é-o com caracte ríst icas
peculi ares, já que o procedimento co nsiste em exam iner
une question dans ses différents points , en pesant le pour
et le contre (Gaffiot) ; é an argument, a debate, a dispute
(Lewis-Short) , o seu objecti vo não é dialogar por dialogar,
é um diálogo , sim, mas que se ocupa em analisar os funda-
men tos das várias opini ões, co m a fina lidade última ele

!XVII]
in vestigar e esclarece r a questão e m d ispu ta - die
Unterredung mit Gründen über eine streitige Materie,
die Abhandlung, Un tersuchung , Erorterung 13 (K . E. G eor-
ges). Subjacente a estas defi ni ções está a boa fé dos inte r-
locuto res, em vez do press uposto de que a solução do
proble ma já está e nco ntrada à partid a , co mo se verifica
tantas vezes nas c irc un stânc ias co rre ntes da vida real.
Nestas cond ições o di álogo pode te rmin ar numa aporia,
numa di fic uld ade inultrapassáve l, co mo tantas vezes se
ve rifica nos d iálogos chamados aporéticos 14 de Pl atão, e m
que a co nc lusão a que a lógica condu z os inte rl oc utores se
veri fica ser co ntrári a à logica .

[9] Os modelos de Cícero: Aristóteles


Não é, contudo , o di álogo pl ató nico que serviu de mo-
delo aos diálogos cice roni anos, inde pe nde nte me nte das
matéri as tratadas, quer se trate de questões re tó ri cas 15 , po-
líticas1 6 ou fil osófic as 17, mas sim , ao que pa rece , um outro
modelo de di á logo , dito o ' mode lo ari stotélico ' , que se
caracte ri za por abandonar o método di alécti co de Sóc rates
e concede r a supre mac ia ao di sc urso ex te nso a cargo
de uma fi gura do min ante , conforme Cícero observa
num a das cartas a Áti co : "Nos meus últimos textos tenho
seguido o modelo 'aristotélico' 18 , segundo o qual as

13
··uma conve rsa fu ndam'.:ntada ace rca de uma matéria controversa.
di sse rt ação . investi gação. debate."·
" Do grego àJtoQ(a '•situ ação se m saída··.
15
Cícero De oratore. Bru1us. Topica .
16
Cícero De re publica. De legihus.
17
Cícero Acade111ici /ihri, Dejinihus , T. D. , De nmum deo r11111. etc.
18
Em grego no tex to: ÀQLO,oi:t ),ELOV. Parece ter sido o mode lo usado
por Aristóteles nos se us Dicílogos , hoje redu zidos a fra gmentos ele cada um dos
dezo ito títulos conhecidos.

[XVIII ]
falas dos outros interlocutores não impede que seja eu o
protagonista. " 19

[10] Os discursos in utramque partem


O essencia l do mode lo , co ntudo , está numa téc ni ca
que Cícero caracteri za co mo sendo a aprese ntação dos
pontos de vista opostos sob os quais um a questão qualquer
pode ser encarada: na term in o logia do Arpinate , a compo-
sição de discursos in utrarnque partem , de di sc ursos e m
que são ex postas as opiniões contrárias sobre um a questão.
Esta é a téc nica usada por Cícero nos se us tex tos fi losófi -
cos , tai s co mo os Academici libri , ou os li vros do De fini-
bus, em que no li vro l é ex posta a teo ri a epi curi sta sobre o
sumo bem , e m seg uida refu tada no li vro II , e o mes mo se
passa nos li vros UI (ex pos ição) e IV (refutação da do utrin a
es tó ica sobre o mesmo te ma) , e no li vro V, di vidido e ntre
a defesa e a refutação da teoria dos Pe ripatéti cos. Este tipo
de diálogo é o mais adequ ado à posição filosófica de Cícero,
o acade mi smo céptico da esco la de Fílo n de Larissa , qu e
recusa a ve le id ade de julgar-se ca paz de a lca nça r a verdade,
co nte ntando-se apenas co m atin gir um res ultado que seja
veros ímil o u mes mo pro váve l2º.

'" Cícero. Ep. Ad A11 .. XII I. 19 . 4. As carac terísti cas gerais do mode lo aris-
to té li co são: 1) todas as questões são d iscu tidas a partir ele pontos de vista co ntrá-
rios: 2) as partes di alogadas são precedidas de um pró logo e nunciado pe lo au tor:
3) a cond ução do diálogo pe rtence ao auto r. o qual toma nele parte co m os seu;
cont e mporâ neos: 4 ) os diúlogos cons iste111 principa lme nte de di sc ursos longos. e
não de pergu nt as e respostas curtas (R . Janko.20 11 ).
"º Q ue este tipo de d iálogo se to rno u corre nte e m Roma. comprova-o o
facto de Varrão o ter usado ta111bérn no h arado de Agric11/wro: por exemp lo. no
livro 1. depo is de um proémio e m que é enunc iado o te rna do diálogo. o ce nári o
e m qu e e le se processa e quai s os res pec ti vos interven ientes. a 111 atéria é exposta
e m doi s di scu rsos. u111 a cargo de Tre111é li o Escro fa (1. Ili. 1 - 1. XXXVII. 3)

!XIXI
[11] Estrutura dos diálogos
Os c inco li vros das T.D. são, do ponto de vis ta formal ,
o utro s tantos di álogos com os traços distintivos s inteti za-
dos por Janko 21 : cada questão é ana li sada a partir de dois
pontos de vista diferentes (ponto 1), a condução do debate
está a cargo do autor, segundo moldes que ve re mos e m
seguida (po nto 3), e as inte rve nções dos interloc utores
são do tipo ' di sc urso' e não do tipo ' pergunta-resposta '
(po nto 4)2 2 . Há, poré m , uma questão prév ia q ue importa
esc la recer.

[12] O papel do auditório


No Górgias de Platão é feita alusão a um procedi -
me nto caro a es te sofista , e ta mbé m , dece rto , aos de mai s,
que consistia e m Górg ias propor a qua lqu e r membro da
assistência que lhe pusesse um prob le ma sobre que gosta-
ria qu e o sofista di sse rtasse:
SOCRATES - Será que [Górgias] está disposto a dia-
logar connosco? É que eu gostaria que ele me esclareces-
se sobre a.finalidade da arte <que ele pratica, ou seja,>,
qual é de fa cto a matéria que ele expõe e cujo ensino
ministra .

e o utro proferido por Licínio Stó lo n (!.XXXV II. 4 - I. LXIX. 1). aqui e a lé m
e ntrecortaclo por observações pontuai s cios out ros partic ipa ntes . Uma forma ma is
rece nte a ind a deste tipo de diálogo é aque le que iremos enco nt rar e m Sé neca: o
interloc utor desapa rece. sendo substituído por obse rvações poss íve is à tese ci o
narrado r conjecturaclas por este para contra ri a r a tese qu e está a expo r. É a prá-
ti ca a que costuma c hamar-se "cio in terlocutor fict ício". - A pos ição cio filósofo
C ícero sobre o problema ela ve rdade e a sua e laboração cio conce ito ele probabile
··merecedor ele aceitação .. se rá di sc utida noutra oportuni dade.
1
' Sup ra.nota 19.
·n O ponto 2 será encarado adi ante.

lX X]
CÁLICLES - Não há nada melhor do que lhe pergun-
wres, Sócrates . Mas isso parece ser uma forma de ele
expor as suas ideias. Ainda há pouco propôs às pessoas
que esta vam na sala que lhe perguntassem o que quises-
sem , que ele depois responderia a tudo 23 .
A co nvenção deste tipo de "confe rê nc ia" praticada
po r Górg ias postul ava ass im a e nun ciação de um te ma ,
proposto por alg ué m da assistê nc ia , a que se seg uiri a o
dese nvo lvimento desse tema, e m forma de palestra . por
parte do sofis ta. se m que. no entanto , ho uvesse lu ga r a
interrupções o u pedidos de esc larec imento por parte do
propo ne nte. Em suma , não hav ia di á logo, não ha via inves-
ti gação acerca do te ma proposto: um espectador curioso
leva ntava uma questão , o enc ic lopéd ico so fi sta ex punha a
sua o pini ão aba lizada sobre o assunto: terminada a pa lestra,
o público ap laudi a, depo is do que a ass istê nc ia se dis-
persava.

[13] Os interlocutores das T. D .


Co m este procedime nto à mane ira de Górg ias tê m
alguma se melhança os ' diálogos em Túsc ulo ' de Cíce ro .
O orador reúne-se com um grupo de am igos na sua vil a
tu sc ul ana e di spõem-se todos a gastar al g um te mpo na
discu ssão de um te ma de o rde m fi losófica, mas aq uil o qu e
o inte rl oc uto r de 'Cícero ' 24 fa z não é co locar-l he uma
questão , mas sim sinteti zar numa fra se um a ideia de cuj a
verd ade e le está pe rsuad ido, por exe mpl o, a ide ia de que

,.1 Platão . Gúrgias. 447 b-c.


'
4
•Cícero·. entre co111as. é o nome próprio de u111a personage111 de u111 tex to
produzi do (escri to) por M. Túl io Cícero . orador romano assassinado em 43 a. C.

[XXII
a morte é um ma/25. O interlocutor não é, por conseguin te,
um mero compa rsa, por completo pass ivo , que se limita a
ouvir sem reacção, pelo contrário , depoi s de enunc iar o
tema, e à medi da que 'C ícero' vai argumen tando contra
esse tema, ele va i pondo as suas objecções, vai fazendo
perguntas, vai discordando de le, embora nem sempre seja
capaz de encontrar argumentos que sustentem a sua
posição .

[14] Os diálogos de Platão


Mas deixemos o con teúdo fi losófico dos debates e
observemos como se estrutu ra textualmente a situação de
diálogo .
Na obra de Platão encontramos algun s diá logos , por
exe mplo os dois Hípias, o Êutifron, o Críton, e vários ou-
tros, estruturados co mo se de peças de teatro se tratasse,
isto é, o diálogo é preced ido da en umeração das perso-
nagens que nele tomam parte; seguem-se as fa las dos
interlocutores, em di scurso directo , preced idas do nome da
personagem , por ex tenso, ou abrev iado. Tud o qu an to
di z respeito à encenação - o loca l onde decorre o di álogo,
a prese nça de pessoas não intervenientes, as circu ns-
tânc ias temporai s em que se processa, etc. -, é dado atra-
vés das falas das personagens, sem recurso a elemen tos
narrati vos.
Outros casos há em que o di álogo não é representado ,
mas sim narrado por alguém a um ouvinte, identi ficado ou
não, como é o caso do Cánn ides , narrado por Sócrates a
alguém cuja identidade desconhecemos . Na parte ci o

~; Esta é a tese que •C ícero· procura refut a r durante o primeiro destes


diá logos.

!XX III
diálogo que é narrada , multipli ca m-se as ex pressões do
tipo: e então ele disse ... , X. perguntou .. ., .. . respondeu ... ,
. . . observou ... , embora as fala s ocorram e m di scurso
directo. um diálogo como o Fédon juntam-se as duas
forma s: de começo encontramos representado um di álogo
entre Equécrates e Fédon , em que o prime iro pede ao
segundo que lhe narre os aco ntec ime ntos do último dia de
vida de Sócrates, o que Fédon faz na parte fundamenta l
do diálogo.

[15] Os diálogos de Cícero


Se passarmos para as obras de Cícero ve mos que o
que predomin a é o tipo do diál ogo narrado, com a ocor-
rênci a freque nte de expressões como inquam , inquit, tum
Scipio, at ille ... "di sse eu", '"di sse e le", "então Cipi ão (di s-
se)" , " mas e le (disse)", e muitas o utras simil ares. Quanto
às personagens , são em geral menc ionadas pelo narrado r,
como sucede nos di álogos De oratore, De re publica ,
Academici libri , De .finibus, etc . Já o De legibus é um
di á logo representado, pe lo que os editores modernos fa -
zem preceder a fa la de cada interveniente pelo respecti vo
nome, por exte nso -ATTICVS , QVINTYS , MARCYS =
Ático , o amigo, Quinto , o irmão , de Marco (C ícero)2 6 , o u
pela inic ia l, A , Q e M 27, res pecti va mente .

[16] Estrutura das disputationes em Túsculo


Vejamos agora co rno se apresentam os cin co Diálogos
em Túsculo qu e preenche m cada um dos cinco li vros.

'
6
Assim fazem G . de Plin va l. 1953. na edição das Be lles Lettres. e Re iner
Ni cke l. 2002. na Samrnlun g Tu scul um .
n Powe ll 2006 . na edição dos Ox/árd Classica/ Texls.

!XX IIII
Cad a di álogo. qu e é o mes mo q ue dizer cada li vro ,
co mporta um certo número de secções. q ue exe mpli fica-
mos co m o caso do livro l:

1. Um prefác io e m q ue Cícero-A uto r ex põe ao dedi -


catári o das T.D.~8 a lg um as co nsiderações ace rca
dos moti vos qu e o levaram a e ntrega r-se à produ -
ção de tex tos de matr iz fi losó fi ca (§§ 1-7);
2. Ex pos ição de co mo surg iu a ide ia de reali zar na sua
vil a de Tú sc ulo estes e nco nt ros com um peque no
grupo de jove ns ami gos. e qu a l o e nquadramento es-
pácio-temporal e m que e les se reali zava m (§§ 7-8 );
3. Um do s presentes dá início ao debate enunc iando
uma proposição - uma tese - que reflecte o seu pen -
samento a respeito de um determinado problema ;
4. De imediato ' Cícero ' 29 inici a a contestação da tese
proposta ;
5. Segue-se uma bre ve troca de palavras entre os doi s
interlocutores em estilo de pergunta e resposta
(§§9- 17) ;
6 . ' Cícero ' passa e m seguida a debitar uma exposição
em di scurso contínuo desde o § 18 até ao fim do
livro ; tal exposição é en trecortada por vários passos
em estilo pergun ta-resposta, uns algo exten sos, ou-
tros muito breves:§§ 23-26; 39; 55; 76-78 ; 81 ; 112 ;
o di á logo termina com uma brevíss ima troca de

8
' Adian te ide nti fica re mos esse decl icatá ri o. e qu ais as razões po r q ue o é.
9
' No texto não fig ura ne nhum a exp ressão q ue ide nt ifique com Cícero a
pe rsonagem que vai contestar a tese do propo nen te. na q uali dade ele au to r mate-
ri al deste esc rito que corre sob o tít ul o de Tusrn/111111e Dispu1111io11es. Mas nada
ocorre tam bé m que impliqu e um a d istinção e ntre o EU q ue assume na primeira
pessoa a responsab ilidade pe lo prefác io e o EU q ue ini cia e se respo nsa bili za
pe la refu tação da tese proposta.

[XX IV]
palavras, uma fala para cada um dos interlocutores
no§ 11 9.

Neste primeiro Diálogo em Túsculo , de entre um


grupo composto pelo anfitrião e um número indetermi-
nado de amigos 30 , destacam-se dois intervenientes:

- o propo ne nte da tese que vai ser em seguid a di sc uti-


da; devemos s upô-lo um jovem, ainda inexpe riente
em questões de fi losofia, um pouco à semelhança
daqueles adolescentes que figuram em outros diálo-
gos de Cícero, e se limitam a esc utar os mai s ve lhos
e a com eles aprender, como é o caso de C. Cota e
P. Sulpíc io no De oratore , I, 25 ss. , Ci pião Emi lia no
e C. Lélio no De senecrure, C. Fânio e Q. Múcio
Cévola, ambos genros do C. Lélio que dá o se u
nome ao De amiciria;
- um homem mais experiente e con hecedor das maté-
rias em discussão que poderemos identificar com o
anfitrião, Cícero , nos termos do que dissemos nas
notas 24 e 29 .

[17] As marcas formais do diálogo


De uma forma não sistemática , os manu sc ritos das
T.D. usam certos signes de lecture 31 :
- travessões (mss. R 3~);
- siglas g regas Me~ (mss. G, nos livros l. II e V);
- sig las g regas Me~ (ms s. K, li vro I)

30
T. O .. I. 7: i11 T11., c11/a110. c11111 esse111 co111p/11res 111ec11111 .fi1111iliares.
·" Expressão de J . Andri e u (v. infra. nota 33).
·" Sobre a identificação. o va lor e as sig las respect ivas dos manu sc ritos das
T. O .. v. a ed. de Pohl e nz . p. V ss.

IXXVJ
- s ig las lati nas M e A, em geral , nos mss . do
Renasci me nto 33 .

Para efeitos da presente trad ução apenas nos inte-


ressa m as s ig las, qu e r as g regas (M e~), qu e r as re nasce n-
ti stas M e A.

[18] O uso de Cícero


É natu ra l que Cícero , q uando muito , usasse qu alque r
sinal diac rít ico, co mo o travessão, ou co mo um a es pécie
de aste ri sco que oco rre às vezes nos papi ros, ou ainda de i-
xasse um espaço e m bra nco no início da linha pa ra ind ica r
a muda nça de inte rl ocuto r. Esta última solução, sugerid a
por Andri eu34 , apo ia-se num conhec ido teste munho e pi -
gráfi co: a Tabula Lugdunensis35 , que regista o d isc urso do
Imperador C láudi o no Senado propo ndo o acesso de c ida-
dãos ga ul eses a este órgão. Co mo o erudito Impe rado r se
alargasse nas suas cons iderações sobre a hi stóri a anti ga
de Roma, evocando exe mpl os de povos submetidos que
pouco de po is obti vera m a c idadani a ro mana, algum
Senador, ta lvez aborrec ido com a ex te nsão dos di sc urso,
te ri a inte rpelado o Príncipe, pe rgunta ndo- lhe: Não é j á
tempo, Tibério César Germânico , de nos explicares aonde
queres chegar com esse teu discurso? Sucede que a insc ri -
ção de marca os parágrafos da oratio impe rial com a
introdu ção de um c urto es paço no início da linha, e faz o
mes mo co m esta inte rrupção : um peque no espaço in ic ial,

33
V. Andrie u, 1954 , p. 297 .
34
Andri eu. o. 1. . p. 303.
35 Ano 48 d. C., cf. Tác ito. Anais, XL 24. V. o tex to em C. / . L.. X III . p. 232.

n.0 1668: F. I.R A .. 1968 , 2 .' ed .. l, pp. 28 1-285: E. Mary Small wood. D ocu111e111s,
1967 , pp. 97-99.

[XXVI]
mas nenhuma indicação de que se mudou de orador, pelo
que a frase ci tada pode mui to bem ser e ntendida como
uma auto-observação fei ta pelo próprio C láud io, e não,
fo rçosa me nte , como uma interru pção proferida por algum
Senador. Signi fica isto, portanto, que caberá ao lei tor a
identificação do in terlocutor que está no uso da palavra no
começo de cada parágrafo , o que ne m sem pre será perfe i-
tamen te claro 36 .

[19] As siglas manuscritas


Para fac ili tar a tarefa do lei tor um fun cionário bi zanti -
no do séc ul o VI da nossa era , lunilius Africanus, teri a
in trodu zido no tex to as siglas gregas, para destrin çar co m
clareza as fa las do mestre e as do di scípulo 37 , M e ~ .
inte rpretáveis talvez como M a0rii:riç ' di scípulo' , e
~LôáoxaÀ.oç ' mestre' .
Quanto às siglas latin as, se para a sigla A a inte rpreta-
ção única que se lhe dá é Alumnus "aluno, di scípulo", para
a sigla M já tê m sido sugerid as du as interpretações : ou
M = Magíster " mestre" , ou M = Marcus, prenome de
Cícero, o que parece pouco prováve l: seri a mais natu ral, se
C ícero quisesse dar a si mesmo o papel de mestre, que
identifi casse qu al o inte rl oc utor que escolhera para
di scípulo.

6
-' Andrieu. o.!.. pp. 298-9.Cf. a mes ma opinião em Foh len-Humbert.2011.
1, p.X IX .
-'
7
Estranha a expli cação das siglas dada por Foh le n-Humber1 , ibidem: .. (il )
dés igna le ma1t re (Magister) par M . le di sc ip le par (~LÕáoxaÀoç) ... Para além
do facto de ~LÕáoxaÀoç signifi car '·mestre''. e não "di sc ípulo .. ('). parece um
tanto esdrúx ul o da parte de lun iliu s African us empregar um vocábulo grego e
outro lat ino para designar as pe rsonagens do diálogo. em vez de designá-las a
ambas, ou por doi s termos gregos. ou por dois latinos.

[XXVII ]
Resta dec idi r o q ue fazer co m as s ig las. gregas o u
latin as. é indife re nte.
Uma solução seria int rodu zi-las a penas naqu e les po n-
tos e m qu e os ma nu sc ritos as introdu ze m ; in viáve l, contu -
do, porq ue não há co inc idê nc ia tota l nos pontos e m que os
vá ri os códi ces as colocam . Outra solução será introdu zi-las
se mpre (sob a fo rm a latin a, M e A), seg uindo o exe mpl o
dos mss. re nasce nti stas. Out ra ainda co nsistiri a e m nun ca
as escreve r, que é a so lução ada ptada po r Pohl e nz, Fo hl e n-
-Humbe rt e Lucia Z. C le ri ci.
Pesados os prós e os contras dec idimos usar as s ig las
latin as sempre, na inte nção, es pe re mos qu e lo uváve l, de
fac ilitar ao le itor a inte rpretação de vá ri os passos qu e, se m
elas, pode ri a m apresenta r-se co nfu sos. Seguimos ni sto o
exe mpl o do edito r da Loeb Classica/ Library, qu e e mprega
se mpre M e A , que r no tex to qu e r na tradu ção ing lesa, e o
da Sammlung Tu sc ulum , que, e mbora as o mita no texto
latin o. as introdu z na tradu ção al e mã (sob a fo rm a A e 8 ).

(20] O dedicatário das T. D.: M. Júnio Bruto


o se u conjunto , e em cad a um dos livros que as co m-
põe m , as T. D. tê m por dedicatári o Marco Júni o Bruto
(8 5-42), fi gura de re levo dos últimos te mpos da Re públi ca ,
co nhec ido sobretud o como um dos conjurados que em
15 de Março de 44 assass inaram Júli o César na C11ria
Pompeia, anexa ao teatro de Pompe io, onde iria re unir-se o
Se nado' 8 . A a mi zade entre os doi s home ns dese nvol veu-se,
sobretud o . por vo lta de 51 , g raças não só à inte rvenção de

.,x lnge mar Kõn ig. Cap111 Mu11di . Ro111 - Wel!s1ad1 der Amike. Darmstadt.
Wisse nsc haft liche Bu c hgese ll sc haft. 2009. pp. 109- 111

IXXYIIII
Ático 39 • co mo també m à situação po lítica que então e vi-
via. quando o poder de César já atingira um g rau suficiente
para fazer so mbra a Pompeio . pelo que o republicanismo
de ambos, Cícero e Bruto , não poderia deixar de os
aproximar. Tanto que, após o assassínio de César, Bruto,
seg undo as palavras de Marco António 40 , "erguendo ao
oiro o punhal ensanguentado , pronunciou claramente o
nome de 'Cícero ', e congratulou-se com ele pela recon-
quista da liberdade " .

[21 ] Afinidades entre autor e dedicatário:


a oratória
Afin id ade po lítica, mas també m afinidade cultu ra l,
tanto no domíni o da oratória como no da fi losofia .
o domínio da oratória , um a ce rta communis opinio
advoga a ideia de que teria existido entre Cícero e Bruto
uma funda divergência, dada a preferência do primeiro por
uma eloq uênc ia de tipo asiânico, enquanto Bruto preferia
a oratória aticista 41 • Esta a opinião expressa no clássico
es tudo de G. Boi ssier: "Depois da morte de César, quando
havia muitas mais coisas em jogo para além de controvér-
sias literárias, Bruto enviou ao seu amigo <Cícero> o dis-
curso que acabara de pronunciar no Capitólio ( .. .)

'" G. Bo iss ier. Cicéro11 er ses amis. Pari s . Hachette. s.d .. pp . 322 e ss.
'º Reprodu zi das por Cícero na /1 Fi/ípirn , 28.
" As duas te ndências di verg iam na medida em que os as iani stas preferiam
uma oratória mai s e mpo lada e grandil oq uente. enqu anto os aticistas favorec iam
uma ma io r simpli c idade e conten são do di sc urso. Os mode los gregos preferi -
dos e ra m . respectiva mente . Demóste nes e Lís ias: a supe ri orid ade do primeiro
fa7ia-se se ntir pe lo fac to de e le . se o qui sesse. ser capa7 de usa r um estil o mai s
conc iso. e nquant o Lísias nun ca conseg uiria aproximar-se da arrebatadora g ran -
diloquê ncia de Dem óste nes. Sobre este ponto veja-se o breve ensaio de Cícero
in titulado De opri1110 ge11e re omwm111.

iXX IXI
O discurso pareceu a Cícero [. . .] muito belo, tanto que
escreveu a Ático dizendo que seria impossível encontrar
outro que.fosse mais elegante e bem escrito . ' No entanto',
acrescentava, 'se fosse eu a ter de o fazer, teria usado um
estil o mai s apaixonado '. [Bruto, por sua parte ,] tinha
relutância em empregar aquelas grandes tiradas, aquele
estilo patético e inflamado sem o qual não se consegue
arrebatar a multidão42 ." Que houvesse algumas di vergên-
cias de gosto e se nsibi lidade literária entre Cícero e Bruto
é perfeitamente natural ; que essas divergências fossem tão
profundas como Boi ssier e outros pretendem , parece
exagerado , sobretudo se pensarmos qu e a gravidade dos
acontecimentos que se passavam então em Roma ex igia
acima de tudo moderação no comportamento e na lingua-
ge m , o que pode explicar sem mai s a contensão esti lística
de Bruto no se u discurso 43 •

[22] Afinidades entre autor e dedicatário: poesia


Para além da afinidade no campo da retórica, o perfil
intelectual de Bruto não podia, de um modo geral, deixar
de ser do agrado de Cícero.
Não é possível extrair nenhuma conclusão relevante
da produção poética de Bruto , pois dela apenas sabemos
que existiu , e que inclusive o seu exemplo era chamado
à colação por autores posteriores , por exemplo, por
Plínio-o-Moço , como justificação autorizada para , também

42
Boiss ier. o. c .. p . 329.
43
Sem conhecer o texto do di sc urso. que não chegou ao nosso tempo. tal -
vez possa mos ter uma ideia da eloquência reservada da perso nage m através de
um documento literário moderno de gra nde qualidade retórica: a oração de Bru-
to ao povo de Roma na cena II do acto Ili da tragédia de Shakespeare , Julius
Caesar.

[XXX]
eles , cultivarem nas horas vagas a poesia, em especial a
co mposição de poemas curtos e li ge iros, muitas vezes de
cunho erótico 44 • O mesmo diremos de outras facetas da sua
actividade literária , em especial como hi storiador4 5 .

[23] Os discursos de Bruto


Mais importantes são as referências que se conservam
das intervenções de Bruto como orador. Da li sta estabele-
cida por Grabarek 46 fazem parte os seguintes discursos:
1. 'Sobre a ditadura de Cn . Pompeio': referência em
Quintiliano , IX . 3. 95 , que cita um fragmento desta oração:
"É preferível viver sem dar ordens a ninguém
do que estar subordin ado a alguém; no primeiro caso
é possível a qualquer um viver honestamente, no
segundo, as condições de vida são inaceitáveis! "

.., Plínio. Epístolas. V. 3 , 5: "Deverei eu recear que não me venha a ficar


bem a mim uma coisa (= esc rever versos li ge iros) que ficou bem a M . Ttílio
(= Cícero), C. Calvo (= orador), Asfnio Polião (hi storiador). M. Messa/a
(= ge neral ). Q. Hortênsio(= o orador amigo de Cícero). M. Bruto(= o conspi -
rador) . L. Sula (= po lítico). Q. Cáwlo (= po lítico), Q. Cérnla e Sérvio Sulpício
(= juristas) . Varrão (= erudito). Torquato , ou melhor. a vários Torquatos
(= políticos) , C. Mémio (= militar), Lê111u/o Gettílico (= po líti co). Aneu Séneca
(= fil ósofo ). ao meu contemporâneo Vergí11io Rujó (= po lítico). e, caso não
cheguem os exemplos de particulares. ao divino Júlio(= Júli o César. ditador). ao
divino Augusto. ao divino Nerrn. a Tibério César (= imperadores)?""
5
• Duas breves re ferênci as na correspondênc ia de Cíce ro a doi s --epítomes ..
das Histórias de doi s anti gos hi storiadores . C. Fânio (C ícero. Ep. Ad Arric11111,
XI I , 5. 3) e Cé li o Antípatro (Cícero. Ep. Ad A//icwn, X III. 8). No primei ro caso
C ícero mostra-se confu so com uma informação originária da obra de Fân io resu -
mida por Bruto (mas a leitura do passo oferece alguma dúvida): no seg undo cago
Cícero limita-se a pedir ao ami go que lhe empreste um exe mplar do Epfrome
fei to por Bruto da obra de Cé li o. Um passo de Plut arco (Bruro. 4 . 4 ) atesta a
ex istência de mai s um ·epítome·. desta vez das His1rírias de Políbi o.
6
• Grabarek 20 10. pp. 193 - 195.

[XXXI]
O discurso de Bruto teria s ido proferido por ocasião
da co nt rovérsia gerada em Ro ma em 52 a. C. pelas dificul-
dades ca usadas pela agitação soc ial diri gida pe las facções
opostas de Milão e de Clóclio, que levo u os partidári os de
Pompeio a proporem a el evação cio seu ge neral à ditadura.
A s ituação acabo u por reso lver-se mediante a proposta de
alg un s se nad ores ele e leger Pom pe io consu/ sine collega, o
que oferecia a va ntagem de não reco rrer a uma magistratu-
ra ex traordin ária por defini ção, e manter a legalidade repu-
blicana confiando o poder a um cô nsul te mporalme nte úni -
ca, mas com a promessa de Po mpe io de que , mal a ag itação
aca lmasse, e le mes mo propori a a escolha de um outro
cônsul, co mo de facto ve io a verificar-se. A esco lha de
Pompe io recaiu sobre Q . Mete lo Cipião , cuj a filha o ge ne-
ra l desposa ra neste mesmo ano 47 . O fragmento mostra bem
a posição ele Bruto nesta co ntin gê ncia : em qualquer s itua-
ção, po r maiores qu e sejam as difi culdades, a o pção pe la
lega lidade republi cana é a úni ca poss ível.

[24] 2 . 'Defesa de Milão': co mo exe rcíci o literário,


Bruto compôs uma ' defesa ele Milão ' sobre o mes mo caso
que fora tratado por Cícero , em 52, durante o ag itado
período que referimos ac ima, ou seja, os conflitos ele
facções que levaram ao assassíni o de Clódio pe los homen s
de T. Ânio Mi lão. Quintiliano não c ita nenhum frag mento ,
mas apo nta os pontos de vi sta diversos escolhidos
por Cícero , no discurso primitivo, e por Bruto , na oração
qu e compôs exercitationis gratia 48 : Cícero defendi a

7
-1 Sobre a impossib ilidade de rea l izar as eleições para o consulado de 52
em co ndi ções normai s. a proposta de nomear Pompeio ditador e a dec isão de
o eleger como cô nsul úni co (cônsul si11e cole1;a) v. Gruen 1974 (repr. 1995).
pp. 150-155 .
.is ··co mo form a de exerci tar-se.··

lXXXlll
que C lódi o fora morto co m justi ça, co mo agitador se m es-
crúpulos que era , e mbora não ti vesse partido de Mil ão a
orde m para o c rime; Bruto, pelo co ntrári o , ass umi a que
Mil ão se vanglo ri ava de ter e liminado um c id adão pe rni -
c ioso para a República49 .
3 . 'Defesa de Ápio Cláudio '. Ápio Cláudio Pulcro ,
sog ro de Bruto, foi no ano 50 ac usado de fraude eleitora l;
a defesa fo i assumid a em co laboração pelo orador
Q. Hortênsio, que viri a a fa lecer nes te mesmo ano, e pelo
genro do ac usado . No di á logo Brutus, em que traça um
panorama gera l da e loquê nc ia e m Ro ma , Cícero faz duas
breves refe rênc ias a este processo e à cooperação dos do is
o radores 50 .

(25] 4 . 'Defesa do rei Dejótaro '. Este Dejótaro,


tetrarca de uma tribo celta da Galácia (Ásia Menor), foi
apoiante de Po mpeio durante a ca mpanh a que este cond u-
ziu co ntra Mi trid ates, re i do Ponto , e vo lto u a sê- lo durante
a g uerra c ivil que o opôs a Césa r. Após a vitó ri a de Farsá li a ,
César reduziu bastante o te rritóri o de Dejótaro. Em 47 ,
Bruto , em Niceia , tentou pers uadir César a co nfiar na lea l-
dade de Dejóta ro para co m Ro ma , se m sucesso, apesa r da
exce lência do discurso que com esse fim pronunciou , e
que Cícero e log ia com en tu sias mo num passo do Brurus:
A nossa conversa começou , Pompónio 51 , porque
eu referira como tinha ouvido di-::,er que Bruro ha via

49
Quintil ia no . Ili . 6. 93. O retor vo lta a menc ionar esta mesma oração ele
Bruto nos mesmos termos: exerciw1io11i.1· causa. mas sem adia nt ar mais ne nh um
porme no r. em X . 1. 23 e X. 5. 20.
5
° Cícero. Bn1111s. 230 e 324. Na co lectânea elas epísto las ele Cícero
Adfa111iliares. o li vro 111 é preench ido por treLe cartas do orador a este se u ami go.
51
Tito Po mpó ni o Áti co . ami go ínt imo ele Cícero. e destinatário elas Epis111 -
lae ad A11icu111.

[XXX lll l
pronunciado um discurso de grande beleza e eloquência
em defesa de Dejótaro , esse rei tão fiel e tão amigo do
povo romano 52 .
S . 'Elogio de Ápio Cláudio ' . Registado este discurso
em Dio medes, por motivos de ordem gramatical53 .
6 . Grabarek anota ainda no seu estudo a ex istênc ia de
um tex to de Bruto enco miástico da figura de Catão, a que
Cícero faz alusão em doi s passos das Epistulae ad Atticum
(XII . 21 . 1 e XIII . 46 . 2), mas se m outra informação rel e-
vante salvo a circunstância de ser posterior ao elogio com-
posto pelo próprio Cícero.

[26] 7 . Mai s inte ressante é o di sc urso que Bruto pro-


nunciou no Capitólio no dia imediato ao assassínio de
César, ao qual já fizemos referênc ia54 • A impressão com
que Cícero ficou desse discurso , encontramo-la nas Ep. ad
Atticum, XV, la ,2, e ainda XV, 3.2 e XV, 4 .3 . a hi stória
das guerras civis , Apiano 55 , não só refere o facto de Bruto
ter pronunc iado esse di sc urso , co mo reprodu z o texto do
mesmo : teria o hi storiador tido oportunidade de o ler56 ?
Sinteti zo u as idei as fundamentai s do mes mo? Tê- lo-ia

'" Cícero . Brutus. 2 1. Reg iste-se que cerca de dois anos mais tarde o pró-
pri o Cícero disc ursou di ante de César pro ref!,e Deioraro "e m defesa do re i De-
jótaro". também , ao que parece. se m grande sucesso. Este di sc urso. juntamente
com as orações "em defesa de Marcelo" e "e m defesa de Li gári o" faz pan e do
conjunto dos cham ados "discursos cesa rianas·• de Cícero .
" Di omedes . G . L . K .. l. 367 . 26-7. Este paneg íri co fo i proferido depois da
mon e de Ápi o . em 48. As c ircunstâncias da morte. ocorrida na sequênc ia de uma
visit a de Ápi o ao santu ário de De lfos para ten tar saber a sua so rte na guerra civi l
iminente entre cesari anas e pompe ianos. são refe ridas em Lucano. Guerra civil,
V. 188- 197 . e em Valéri o Máx imo. 1. 8. 10 .
54
V. supra § 2 1.
55
Guerras civis, li , 137- 14 1.
56
Que o mesmo foi publi cado. sabemo- lo por Cícero. ad Arricu111 , XV. 3.2.
Mas se rá que no tempo de Api ano o tex to ainda era de fác il consulta?

[XXXIV]
eventualmente traduzido para grego ? enhuma destas
práticas era habitual entre os hi storiadores antigos, que ,
e mbora não di storcessem as palavras realmente pronun-
c iadas pelos oradores cuja actuação estão a narrar, costu-
mam com por e les mesmos os disc ursos de aco rdo com a
sua perso nalid ade lite rári a 57 .
8 . Num passo dos Anais, Tácito a lude a várias con-
rion es58 de Bruto co m ac usações tão fa lsas quanto insul -
tu osas , e numa lin guagem em extre mo azeda , dirigidas a
Aug usto, se m que, no e ntanto, tivesse hav ido da parte
deste qu a lque r perseguição ao orador59 .

[27] Afinidades entre autor e dedicatário: a escrita


filosófica
Maior signi ficado, contudo , já é possível atribuir à
produção esc rita de Bruto no ca mpo da fi losofia.
Conhecem-se três títulos de obras de Bruto nesta área,
remetendo todos e les para o domínio da éti ca, e mbora
igno re mos co mo se classificariam esses seus tex tos do

57
Cf. a propósit o o procedimento de Tác ito relati va mente ao discurso de
Cl áudio no Senado sobre o acesso a este órgão para persona lid ades de re levo
oriundas das Gálias (Tácito. Anais. XI. 24). cujo ori gin al se conhece e está
publi cado no C. / . L. , XIII. 1668 . V. sobre este caso Julián Gonzá lez . Tácito
_,. las Ji1e111es docu111e111a/es. Universidad de Sevil la- Fundación El Monte . Se-
vilh a. 2002. - O di scurso de Bruto re produ zido (ou ree laborado) por Ap ia no
oferece a inda um pormenor curioso mas que nos é impossíve l desenvo lver neste
momento: vários passos do tex to traze m-nos de imediato à me nte passos simi -
lares da oração de Brut o na tragédia de Sh akespeare acima recordada (supra.
nota 40).
58
Discursos pronunciados perante a assemble ia do povo ou dos so ld ados.
di scursos públ icos.
59 T ác ito . Anais, IV, 34 . - m boa verdade . qu ando Bruto •·falava em
público de uma fo rm a insultuosa·· a vítima dos seus in sultos era o então ainda
jove m Oc táv io, muito lon ge de se ter tornado imperador e de ter rece bido o
título honorífico de ·Au gusto '. O modo como T ác ito se refere ao caso é. por-
tanto. anacró ni co.

[XXXV]
ponto de vista forma l: diálogos do género dos de Cícero?
Diálogos fictícios como serão , cerca de um séc ulo depoi s,
os de Sé neca, que em termos modernos merecem mai s se-
rem considerados e nsaios? Teriam revestido a forma de
epístolas, do tipo das de Epicuro, o u, uma vez mai s, das
que Séneca enviava ao seu amigo Lucílio?

[28] Pelo gramático Diomedes60 sabemos que um des-


ses trabalhos versava o tema da 'capacidade de aguenta r os
go lpes da Fortuna ', 'a resi stência à dor ' 61 : tema idên-
ti co , portanto , ao que Cícero desenvolve no livro II das
T. D. Dado não se conhecer mai s nenhuma informação
sobre este ponto não podemos saber se o texto de Bruto foi
an terio r ou posterior ao de Cícero , nem , como é óbvio, se
algum dos dois autores influenciou o outro , e em que grau .
De qualquer forma , atendendo a que Bruto era sobrinho de
Catão de Útica , seg uidor rigoroso das doutrinas estóicas,
e nqu anto Cícero perfilhava o cepticismo neo-acadé mi co,
é presumíve l que este De patientia , se de facto existiu,
partia de um ponto de vista diverso do adaptado pelo autor
da s T. D .
Pomos , todavia , em dúvida a existência desta obra,
por dois moti vos.
Por um lado porque Cícero , apreciador como era das
qualidades filosóficas de Bruto , em nada inferiores às dos
Gregos 62 , co mo se dedu z do grande número de obras suas

60
G. L. K .. 1. 383-8
61
Título em latim De parie111ia ·sobre a resi stência ao sofriment o·. Sobre
o conteúdo do traba lh o . Di omedes. como gramáti co. nada de re levan te nos
inform a. pois apenas lhe int eressam as questões lin guísti cas (Grabarek. 20 10.
p. 193).
6
~ Cícero. De.fi11ihus. 1. 8.

[XXXVI]
que lhe são dedi cadas , ne m nos se us esc ritos ne m nas car-
tas a lude a este títul o . A lé m do que . a ex istir a obra de
Bruto , seri a natu ra l q ue e m a lgum dos passos e m q ue usa
o termo patientia 63 viesse à me mó ri a de Cícero o esc rito do
ami go . Por outro lado , po rque Sé neca, que me nc io na nas
Cartas a Lucílio, 95. 4Y'4, ali ás e m to m a lgo c ríti co, o
o púsc ulo de Bruto Sobre os deveres, e me nc io na, na
Consolação a Hélvia 6 5, o tratado De uirtute ded icado a
C íce ro, e que . co mo seguido r do Esto ic ismo , te m muitas
o portunidades na sua obra de a ludir ao tó pi co da ' res istên-
c ia à dor ', não fa z qu a lque r referê nc ia ao De patientia de
M . Bruto 66 .

[29] Este títul o, o tratado De uirtute , é sobretud o


impo rtante po rque pode ser e nte ndido co mo o in c itame nto
ma i sig ni fica ti vo fe ito a C ícero para dedi ca r-se aos estu -
dos fi losófi cos . No início das T. D . esc reve Cícero a frase
seguinte: rettuli me, Brute, te hortante ,na.rime ad ea
studia, quae retenta animo, remissa temporibus , longo
interual/o intermissa reuocaui 67 • O sintag ma (ab lati vo
abso luto) te hortante " g raças aos te us co nse lhos, g raças
aos te us inc ita me ntos", te m sido interpretado pe la ge nera-
lid ade dos tradutores como signifi ca nd o que Cíce ro co nsa-
g rou o seu te mpo livre ao traba lho inte lectu al sobretudo
(max ime) dev ido ao aconselh ame nto de Bruto ; a interpre-
tação qu e seg uimos é um tanto di fe re nte, po is li ga mos o
ad vé rbio 111axi111e, não a te hortante, co mo é habitua!. mas

63
T.D .. 11 .33: 11. 65: 111. 67.
64
Sé neca. Carros a Lucílio . edi ção Fundação C. G ulbe nki an . pp . 516-7.
65
Sé neca . Ad He/11im11 111mre111 de cm1.10/mio11e (' Con so lação a Hé lvia ').
I X .4 .
66
É urn argume nto ex sile111io. q ue. só por si. carece de grande va lor pro ba-
tó ri o . De q ua lq uer modo é um ind íc io.
1,1 T. D .. I. 1.

[XXX V III
sim a ad ea studia " àq ue las oc upações intelectuai s", ou
seja, de entre as diversas ocupações intelectuais que podia
escolher, Cícero opto u acima de tudo (maxime) pela
filosofia. Por outras palavras, Cícero não se dedicou à filo-
sofia sobretudo porque Bruto o incitou a dedicar-se à
fi losofia ; Cícero, na sequência do aconselhame nto de
Bruto que sugeria que ocupasse o tempo em actividades
intelectuais, opto u por dedicar-se acima de tudo à filoso-
fia (e não à história, ou à poesia) 68 .

[30] A libertas republicana e a experiência das T. D.


É um facto bem estabe lec ido qu e os Ro man os consi-
deravam a sua constituição 69 co mo a mai s pe1feita de que
tinham co nhec imento. Deve-se ini c ialme nte esta co nstata-
ção ao hi storiador grego Po líbio 70 , o prime iro intelectual
a fo rmul ar por esc rito a tese da excelênc ia constitu c io nal
do sistema romano : uma constitui ção mi sta, em que se
combin am os traços di stinti vos mais impo rtantes dos

68
Esta interpretação deve mo- la a Gildenhard 2007 (v. infra a no ta 2 ao
texto).
69
Não ex istia e m Roma uma co nstitui ção políti ca no sentido que a ex -
pressão tem hoje: um texto siste matica me nte organizado com expl ic itação dos
ó rgãos do Estado . assembl e ias e magistraturas. estrutura judi cial. direitos e de-
ve res dos c idadãos. etc .. todas estas maté rias expressas num número va riá ve l de
ai1igos. texto esse democraticamente aprovado. e susceptíve l de ser consultado
por quantos o pre te nderem . desde que a essa consulta tenh am direito. O simpl es
facto. po ré m. de ser possível aos especialistas traçare m. pel o me nos nas suas
linhas fundamentais. a estrutu ra da co nstitui ção ro mana a partir das inform ações
tran smitidas sobre cada uma das suas compo ne ntes de mon stra que Roma tinh a
uma constituição.
70
Historiador grego do séc. 11 a. C. De portado para Ro ma e m co nsequê n-
cia ela batalha de Pidna ( 168 ) que co locou a Macedó nia sob o domínio romano.
tornou -se ami go de Cipião Emi liano e teve um papel imponante no c hamado
·'c írcul o cios Cipiões··. graças sobretudo à sua adm iração pelo sistema políti co
romano.

[XXXVIJI]
chamados três regimes simples 7 1, a monarquia , represen-
tada pelo poder execu ti vo dos cônsu les, a aristocracia ,
expressa nas acções legis lati vas do Senado , e a democra-
cia, prese nte nas e leições pe lo povo romano dos vários
magistrados reconhec idos pe la lei72 .
A palavra-chave da co ncepção co nstitucional romana
é libertas " libe rdade" , de acordo co m a definição de
Wirszu bski:
"Libertas denota sobretudo o estatuto do 'homem
li vre', ou seja , todo aquele que não é escravo; este con-
ceito compreende quer a negação de todas as limitações
impostas pelo estatuto de escravo , quer a afirmação das
regalias derivadas da liberdade ." 73
Conforme bem sublinh a este autor 74 , a libertas roma-
na poss uía um carácter esse ncialmente cívico , como se
pode deduzir da circunstância de o estado romano apenas
reconhecer a qualidade de cidadão àqueles estran ge iros
que já gozavam do estatuto de cidadania nos estados li ga-
dos a Roma por tratados estabelecidos em dev ida forma. e
ta mbém ao facto de aos escravos manumitidos ser automa-
ticamente atribuído, em simultâneo co m a concessão da
liberdade, o estatuto de cidadão romano de pleno direito .
Daqui se pode deduzir també m que a condição livre não é
algo de natural ao ser humano , mas sim um direito civii
que se adquire através da lei 75 .

71
Ari stóte les. Polirica. 1279 a 25 ss.
71
Políbi o . Hisrrírias , VI. 5. 11 - 18 . - Sobre a importânci a da tese de Po líbi o
em co mparação com as ideias de Cícero no De republica v. L. Ho mo 1950.
pp . 137 ss.
·' C. Wirszubski 1968. p . 1.
7

74 0. 1. . p. 3.
75
A defin ição de libertas que pode ler-se nos Digesra 1.5.4 .pr.: ·•Libe rt as
é a faculdade natural do ho me m a que m é permitido agir como quiser. a menos

[XXXIX]
Se libertas é a característi ca bás ica do reg ime repu-
blicano. o seu oposto se rá regnu111, com a implicação de
tratar-se de um regime de monarquia absoluta 76, regime
que im pli cava a memória od iada dos últimos rei s da dinas-
tia etrusca, em que o monarca se co nfund e com a lei.
Por ou tro lado liberras não sign ifica a capac idade sem
limites de cada um faze r tudo quanto lhe ven ha à ideia:
tal ca pacidade co rresponde ao que se chama em latim a
licenria , te rmo que pode mos trad uzir por licenciosidade.
o u liberri11age111 , no sentido mais amp lo poss íve l, e com
todas as conotações negati vas que acompa nh am qualquer
um destes vocábul os. A restrição natura l que a le i impõe à
libertas de cada cidadão está bem co ntida na sen tença de
Cícero: " Os 111agistrados sc7o os conservadores das leis.
os juí:es sc7o os intérpretes das leis , e todos nós so mos os
escra 1•os das leis para podermos ser homens li vres." 77
Não podemos, toda via. co nfundir a libertas política
co m a libertas fi losófica . Quando Cícero definia libertas
co mo a fac uldade de cada qual fazer o q ue qui ser:
''O que é entc7o a liberdade ? A capacidade de se viver
[como se deseja " 78 ,

que de ta l seja impedido. ou à força. o u pe lo dire ito . A se rvidão é um estatuto


prov indo do direi to da s ge ntes que pe rmite a suje ição antin atural de um homem
ao domínio de um ou tro ... é produto de um ju ri sta já do pe ríodo impe ri a l (tal -
vez do te mpo de Marco Auréli o. ou ainda posterior. v. Kunke l 2001. p. 217.
O fragmento. a li ás . conclui-,e com uma ex pli cação etimo lóg ica do te rmo ser1111.,
··o.,-
--esc ravo .. : e.1cra1·0.1 (se rui ) süo a.,si111 chamados porq11e o., imperadores
p1111hn111 à \'e11da os prisún1eiros Je guerro. o que era um modo de os conserva r
(se ruare) l'irns. e111 ,·e~ de 0 .1 111w1dar e.rec11wr. ·· Ernou t-Me ill e t. e mbora admi-
tindo que possa have r um nexo entre o ve rbo seruare e o no me seruus. no sen tido
primiti vo de .. g uarda . vigia ... cons ide ra m que para um romano as duas pala vras
nada ti nham a ver uma com a ou tra.
76
\V irszubski . o. 1.. p. 5.
77
C ícero. Pro C/11e111io ormio. 146.
7
s Cícero. Os parado.w ., do., Estôico.1. 34 (= Te.rtosji/osrificos.2012. p. 22):
c f. no mes mo se ntido Cícero. De o/Jicii.,. 1. 70.

[XL]
estava a falar como filósofo, e não como cidadão de Roma .
Melhor dizendo, estava a explicitar o ponto de vista dos
Estóicos, que explicam a oposição entre o sábio e o
homem comum. por definição ' insensato ', em termos do
contraste entre o homem livre e o escravo, usando uma
terminologia semelhante àquela que , cerca de um século
mais tarde, será usada pelo ex-escravo Epicteto:
- Porventura será a liberdade outra coisa além da
capacidade de cada um viver como lhe aprouver?
- Claro que não! 79 ,
ou, noutro passo:
- Homem livre é aquele que vive como lh e apetece, é
o homem não coagido , impedido , ou forçado, aquele Cl(jas
tendências não são contrariadas, cujos desejos são sacia-
dos , Cl(jas aversões não são contrariadas 80 .
Como ainda Wirszubski recorda , a igualdade perante
a lei não implica de modo algum que Cícero defenda qual-
quer fo rma de igualitari smo , porque este, a ser admitido ,
significari a entrar em colisão co m um outro va lor muito
importante para este autor: a dignitas , que podemos de
momento julgar equivalente a ' mérito' .

(31] A libertas e o poder pessoal nos últimos anos


da república: otium cum dignitate
Para se entender os comportamentos de Cícero nos
anos 50 do século Ia. C. é necessário recordar alguns acon-
tecimentos relevantes em que o orador se viu, directa ou
indirectamente , afectado .

79
Ep icteto. Paleslras. li. 1. 2J.
'º Idem. IV. 1. 1.

[XLII
O ano 60 tinha assistido à celebração de uma aliança
política, não oficial, en tre os três homens mais poderosos
de Roma nesta altura: Pompeio Magno , Júlio César e
M . Licínio Crasso, cognominado Diues "o Ri co" . Trata-se
do chamado Prime iro Triunvirato , e nos termos desse
pacto cada um dos participantes co mprometi a-se a tud o
fazer quanto estivesse ao seu alcance para satisfazer as
pretensões dos aliados.
Cícero , no rescaldo ainda do exercício do consulado
marcado pe la vitória sobre a revolta de Catilina em 63 ,
via-se marginali zado pelos triún viros , mas com lucidez
deu-se de imediato conta de que, mai s do que ele, Cícero,
o qu e estava em causa na aliança dos três homen s era a
intenção de desmantelar a estrutura do regime republicano
que vigorava em Roma desde a expul são dos Tarquínios
em 51 O. Assim é qu e ve mos Cícero lamentar-se em carta a
Ático 8 1 de que a república romana tota periit " ficou por
completo desmantelada" , enquanto e le próprio se viu
privado da sua auctoritas 82 , da sua dignitas 83 , se m j á falar
da perda da libertas loquendi " liberdade de ex pressão".
Poucos anos mai s tarde, numa outra carta , desta vez diri gi-
da a P. Lêntulo 84 , de novo Cícero deplora o estado a que
chegou a situação política, em que no Senado j á não são

81
Ep . Ad Arlicum . 11. 2 1. I (datada de Ju lho de 59).
82
Aucroritas, que podemos tradu zir po r "autoridade··. denota, não tanto o
poder di sc ri c ionári o que alg uém tem e exerce sobre os seu s concidadãos. mas
sim a superi o ridade que todos lhe reco nhece m e aceitam a níve l pessoa l. pe las
suas qu ali dades ex cepci onais tanto intelec tuai s, como . sobretudo . morai s e éti -
cas.
83
Digniras. 'ºdi gnidade··. é o direito que um políti co tem de ve r reconhec i-
da e respe itada a sua pessoa em consequência do exercíci o impolut o . efi c iente e
honroso, para si mesmo e para a co munidade que representa, dos cargos para que
fora eleito .
84
Ep . ad Familiares , I. 8.3-4 (Fevereiro de 55 ).

[XLII]
escutados com res pe ito os parece res dos Senadores e
se e nco ntram coarctadas as poss ibilidades de os cidadãos
se ca ndidatare m aos altos ca rgos da Re pública 85 , mesmo
no caso de ho me ns, co mo C ícero , qu e dese mpe nh aram
co m profic iê nc ias as mag istratu ras para que fo ram
ele itos.
É neste co ntex to que Cícero, ao di sc ursar e m defesa
de P. Séstio , um tribuno da ple be que dese nvo lvera
gra ndes esfo rços no se ntido de ser revogado o decreto que
ditara o ex íli o do orad or, e ass im pe rmitir que este reg res-
sasse a Ro ma, cunh a pela prime ira vez uma ex pressão que
viri a a ter uma signifi cati va carre ira :
Qual então a perspecti va que se of erece à classe diri-
gente da nossa república, que os seus membros possam
contemplar e tomar como guia na sua carreira ? É esta, a
mais adequada às circunstâncias , a mais merecedora de
ser escolhida por todos os cidadãos sensatos, honestos ,
respeitáveis: serem eméritos , mesmo em privado 86 . Todos
quantos escolh em esta vida são cida dãos superiores 81,
todos quantos a praticam são julgados meritórios e
responsáveis pelo bem da cidade . É bom que os cidadãos
nem se preocupem tanto com a sua reputação 88 que não
pensem em retirar-se para a vida privada 89 , nem escolher

85
Enten da-se: já não há e le ições livres . uma vez que só são escolh idos
aq ue les que gozam do favor dos Triúnviros .
86 Em lat im : cu111 dig11irare ori11111. it letra. --um óc io com dignidate .. : trata-

se da s itu ação de home ns que . mesmo no ócio - no se ntido de não participação


act iva na vida públi ca. na po lític a - ainda assim in spiram respei to e cons ideração
pe las suas qua lidades mora is e inte lec tua is
87
--cidadãos supe riores .. tradu z o lat. Opll1111ares (ou Opri111ares). o u seja a
aristocracia se natoria l q ue formava a c lasse d irigente da Roma republi ca na .
88
Aqui: (e<ferri) dig11irare.
89
Lat. oriu111 .

IXLIIII
uma for111a de p1fracidade90 que não queira saber da
rep11tação 9 1 •
Nesta expressão combi nam-se dois termos em princí-
pio con traditórios: orium , literalme nte --oc ios idade··9 ~ ,
de nota e m parti cu lar o afasta me nto do cidadão dos se us
deveres corno tal. da sua participação ac tiva na admin is-
tração da --co isa públ ica .. - a Res publica -, do seu e mpe-
nhame nto na vida co lec ti va, civil e militar. se rvindo nas
mag istraturas de gra u infe ri or até assumir as de grau supe-
rior. as co nst ituti vas do cursos ho11orum a ''carre ira das
honras··; e dig nitas , a 'ºdi g nidade .. dos homen s a quem
cabe o exercíc io das mag istraturas, e que, para merecer
essa ·'di g nid ade·· deve m se r dotados de ve rdade iras
qualidades superiores9 1. Os doi s termos co nsideram-se
co ntraditórios porque, se ndo o ideal do c idadão romano a
participação no gove rno da república, a opção pe lo otium
tinha uma co notação de "i ndi gnid ade·•94 _
Torna-se estranh o, portanto , que Cícero afirme como
ideal esta co mbin ação: co mo admitir que possa existir
dig11itas e m alg ué m que optou pelo otium em vez da vida
activa? P. Boyancé faz-se eco dessa estranheza quando
men c io na o modo como o historiado r A . Piganiol alude a
esta proposição de Cícero como se fo sse natural: "Cicéron

90
Também la!. 01i11111.
91
Lat. (q uod ablwrreat ) a dig11itate. - Passo do discurso Pro Se.l'tio 98.
A expressão rn111 dig11itme otiw11 vo lta a oco rrer c m Ad Fw11 ., 1. 9. 2 1.
' Ao otiw11 opõe-se o 11egotiu111 .. não oc iosidade. ocupação ... sobretudo a
9

participação na política .
111 magistrado corrupto ou incompeten te seria denotado como i11dig1111.I',
e como tal não gozava de prestígio soc ial.
• Os epi curistas advogavam com energia o afastamento da vida po lítica:
9

uma das suas máximas carac terísti cas era a expressão ),áüe ~uíioaç. lit. .. vive
escondido (da multidão). reco lhe- te à tua privacidade ... Um dos motivos por que
Cícero detestava os Epicuri stas era esta rejeição dos de ve res cívicos.

IXLIYI
résume /e programme du parti nobiliaire e11 un seul mor:
otiurn , /e repos." 95 E a estranheza ainda se acentua se re-
cordarmos o passo com que se inicia o De oratore:
Quando , coisa que rne sucede com ji-equência .
me ponho a pensar no passado , vem-me à memória
( .. .) como devem ter sido bem fe/i':.es aqueles homens
que. na nossa república em pleno apogeu 96 , aureola-
dos pela glória provinda dos cargos desempenhados
e dos fei tos cometidos 97 , ti l'eram a possibilidade, ao
longo da vida, de participar na política sem perigo e
de conh ecerem a dignidade na privacidade 98 .

Contra urna opini ão que vê no sintagma cicero ni ano


um emprego de otium sem co notações negati vas, entendido
co rno o afastamento , o descanso da ag itação da políti ca,
por exemplo das campanhas eleitorai s, do desempenho
dos vá ri os ca rgos e o aproveitamento do tempo para
ocupações de ordem intelectual 99 , Boyancé va i procurar
outros meios de interpretar co ndignamente onde pretende
Cícero chegar co m o seu otium cum dignitate.
Para tanto recorre a outros passos significati vos .
Ainda no Pro Sestio, o orador estabe lece um nítido con-
traste entre ce rtos homens cujo ideal é urna vida ociosa,
cheia de toda a espécie de prazeres 100 , e aqueles outros que

95
A. Pi gan io l. f-listoire de Ro111e. 1954. p. 178. Boyancé 1973 c it a esta
frase. p. 349. nota 5.
96
Cícero eleve estar a pensar no tempo imediato à concl usão das Guerras
Púni cas. É a época ··dos Cipiões··. um período de paL soc ial e de íloresci111ento
cu ltural. que e le representa na Rep,íh/irn. e cujo protagonista é Cipião E111iliano.
97
··Cargos desempenhados··: o c11rs11s ho11om111 de C ipi ão e se us a111igos:
--feitos co111etidos··: a últi111a fase das Guerras Púnicas.
98
--Na política sem peri go··: e111 lat. i11 nexorio sine perirnlo: ··a dignidade
na pri vac idade··: e m lat. i11 orio cw11 dignilllte
w Tese de H . Wege haupt 1932.
l<Xl Lat. 110/11pw1es.

lXLVJ
entendem dever cu ltivar-se a dignidade º que consiste em 1 1

administrar a república, cumprir ao longo de toda a vida


os seus deveres , não pensar nos próprios benefícios, e, em
defesa da pátria, afrontar todos os perigos, aceitar todas
as feridas e até mesmo a morte 102 • o mesmo di sc urso,
além desta oposição entre dignitas e uoluptas , Cícero
introdu z mais um termo no con tex to, ao di zer:
A minha oração apenas tem que ver com a
virtude 10 3, e não com a indolência, com a dignidade.
e não com o prazer 104 .

Em face destes exemplos parece poder co ncluir-se


que para Cícero o termo otium mantém sempre um a ce rta
conotação negativa. Para ten tar um a justifi cação caba l
da aprox imação no sintagma cicero ni ano de dois termos
em princípio inco mpatíve is, Boya ncé va i recorrer à meto-
dologia da Quellenforschung 105 , tentando buscar a exp lica-
ção do sintagma nas le ituras filosóficas de Cícero e nos
rastos qu e estas teriam deixado. De forma muito suci nta
podemos resumir como seg ue o rac iocíni o do estudi oso
francês .
No Pro Sestio J39, Cícero usa a ex pressão hona fama
para tradu zir o co nceito pl ató ni co de EÚ ôol;(a " boa re pu -
tação"; no parágrafo an te ri or do mes mo di sc urso, Cícero

101
Lat. digniras.
º" Pro Sesrio 23.
1

103
Lat. uirrus. que. além de virtude. também pode se r tradu zida por .. co ra -
ge m ..
104
Pro Sesrio 138. Cf. ainda a oposição en tre ,·irrude e pra~er que se encon -
tra em De./inibus Ili. 1 (Cícero. Tex1osfi/osóJicos.2012. p. 365 e nota 3 18.
105
·'Investi gação elas fontes··. i. e .. a proc ura de textos an teriores ao que está
a se r in vesti gado que co ntenham e leme ntos forma is ou conceptu ais qu e possa m
ajudar a explicar a ocorrê ncia neste último ele expressões ou conceitos em prin -
cípio pouco prováveis de lá aparecerem.

[XLVil
esc reve ra que enquanto há homens que apenas se preoc u-
pam com os se us prazeres, outros dedicam-se à pátria, aos
seus concidadãos, à sua reputação , à sua glória, frase que
tem um para lelo em De finibus II , 45 , cuj a inspiração é
atribuída pelo orador a um passo de Platão 106 . Daqui se
co nclui ser possível que também a ex pressão em aná lise
tenha uma orige m grega .
Cícero e mprega com frequência dignitas e m oposição
directa a uoluptas, mas num campo se mântico em que
figuram termos co mo laus "fama , glória", honestas
" honestidade", decus " honradez , decência" , decorum
" id ., decoro" ; ora decus , decorum corresponde ao grego
i;o JLQÉnov , logo também dignitas poderá ter o mes mo
va lor se mânti co.
Cícero critica sempre a filo sofia epic uri sta , pelo seu
repúdio da vida pública e pela sua moral du vidosa; fá- lo
no Pro Sestio, co mo vimos ; fá-lo ainda no Pro Caelio 4 1,
em que tex tualmente afirma que dignitas e uoluptas são
do is concei tos inco mpatíveis entre si 1° 7 • Desta circunstân-
cia tira-se qu e , para poder falar de dignitas in otio, é
necessário que otium não tenha o sentido que os e picuri s-
tas lhe atribuem .
Por outro lado Boyancé refere passos de Ari stóteles
e m que surge o termo oxo11.f], equivalente pelo sentido a
otium " lazer, desocupação, tempo li vre", co mo factor
necessári o para a obtenção da felicidade (Euomµov(a) 1º8 •

106
V. Textos Jiíosójicos, 201 2 , pp . 3 16-7 e nota 119 .
107
Cf. na mes ma ordem de ide ias o di sc urso . ou me lhor. a in vecti va . tam-
bé m de 56. diri g id a por C ícero contra L. Ca lpúrni o Pi são. que se presume ser
o protector do fi lósofo e erudito grego Fil ode mo . e propri etári o da bibli oteca .
abund ante em tex tos epi curi stas . s it a na Vila dos Papiros. em Herc ul ano.
108
Ari stótel es. Ethica Nico111achea. 11 77 b 4 ss. C f. Ari stóteles. Po!itica.
1134 a 11 -25 . Destes passos decorre que o •óc io · de fendid o por Aristóte les não é
incompatíve l com a dig 11 itas romana .

[XLVII]
Prosseguindo o rac ioc in,o. Boya ncé reco rda as três
forma s de ex istênc ia conside rad as por Aristóte les na Ética
a Nicómaco 109 • a vida do vul go, ori e ntada para o prazer.
a l'ida política, acri va, cujo fim é a obtenção da nµfJ
"honra , di gnitas", e a vida co nte mpl at iva. o ri e ntada para
a fi losofia. para o est udo e a in vestigação. Recorda em
seg uid a que Cícero conhecia uma obra de Teofras to . di scí-
pulo de Aristóte les, e m que era estud ada a <.p LÀonµ(a " a
e ntrega à vida políti ca, co m vista à nµfJ" 11(1. e re mete ainda
para Ad Atticum IJ , 16 . 3, e m qu e o orado r mostra co nhecer
o de bate que se rea li zo u, no Perípato , e ntre Teofrasto , que
defe ndi a a vida co nte mpl ati va, e Dicearco , que preferi a
a vida ac tiva , e co nc lui de todo esta co nstru ção que
teria sido Teofra sto. por um lado , co mo autor do tratado
TT EQL <.p LÀonµ(aç. e, por outro, co mo defenso r da oxoM7
necessária à prossec ução de um a vida co nsag rada à
fi losofia, a fazer a associação oxo)d7<> nµfJ, a qu al se ria o
protótipo do s intag ma c icero ni ano otium cum dignitate .
Se m negar o e nge nho e e rudi ção postos por Boyancé
no seu tex to, e apo iand o a co nclu são res ultante qu e faz de
Cícero um home m , não apenas inte ressado , mas antes em-
penhado na reflexão filo sófica, e nte nde mos qu e o va lor do
sintagma otium rnm dignitate se ex plica , de forma muito
mais simples. através do recurso 111 ao co ndi c io na li smo
político e m qu e se viv ia e m Roma , e m gera l, e e m qu e
Cíce ro se senti a e nvo lvido, e m parti cular: a re públi ca

H~> 0.1.. 11 95 b 14- 19.


''º Em Ep. ad Alficu111. li . 3. 4. Cícero pede ao am igo qu e. da biblioteca do
seu irmão Qu into Cícero. lhe envie a obra 0 rn<j)gáornu ITl'Ql <j) L),onµ(ac:.
111
Proposto por Wirszubski. 1973. p. 404.

!XLV III I
romana morrera, a libertas já pertencia ao passado. a
supremacia de ixara de perte ncer aos Optimates , ao
Se nado 11 1 , que estava a ceder o luga r ao do mín io do triun -
virato, o orador j á não cab ia no novo mode lo de orga ni za-
ção po líti ca que se de lineava: a úni ca pe rspecti va que se
lhe deparava, afastado como estava de toda a parti cipação
na con dução da vid a po líti ca de Ro ma, co nsisti a e m apro-
ve itar o otiwn que lhe era imposto para a redacção das suas
obras de fi losofia po lítica (De oratore , De republica , De
/eg ibus 11 1 ), e tentar defender a sua dignitas não de ixa ndo
es morece r a reco rd ação do muito que a C id ade lhe dev ia .
ao compo r e pub licar em 55-54 11 4 um poe ma e m três li vros
De temporibus suis " Sobre a sua é poca" 11 5.

[32] Da libertas à clementia - da reconciliação de


Cícero com César aos discursos 'cesarianos' :
o pro Marcello
A exec ução dos cúmpli ces de Catilin a , ordenada por
C ícero após votação do Se nado, foi um dos pretex tos usa-
dos pe lo tribuno da ple be e ag itado r C lódi o Pulcro para,
apo iado ma is ou menos em segredo pe los tri únviros Césa r
e Crasso, propor, em 58, urn a lei qu e condenava ao exíli o
todo o mag istrado que ordenasse a mo rte de um cid adão
romano se m julgamento 11 6 • Em virtude dessa le i C ícero foi

1" Recorde-,e a pro pós it o que. e m seguida ao ,eu fraca, ,o na defe,a de


M ilão . em 52 . e até ao, anos 46-.i5 . o tempo dos ·•d i,c ursos cesa ri anos··. Cícero
nun ca ma is falou ne m no Senado ne m ao povo .
111 Composta, e ntre 55 e 51 .
• V. Soubi ra n 1972 . pp. JJ s, .
11

1" Interpreta mos . po rtant o . o {}fi 11 111 deste conte xto co mo o afastamento
compul sivo imposto a Cíce ro pe lo, triú nviros . e não como o ··de,ejo de tranqui -
lidade"". co mo suge re Wirsn1bski . l. e.
11 6 Como fora o caso dos companhe iros de Catilina. execut ados se m j ulga-
mento apenas po r ter sido essa a opinião da maioria cio Senado.

IX LI X I
fo rçado a exi lar-se 11 7, ape nas sendo auto ri zado a regressar
a R o ma e m Agosto de 57 .
Em 56, no e ntanto, o s três a li ado s do ano 60 renova-
ram o seu e nte ndi mento e m Luca, para desânimo de
Cícero , q ue via as suas prete nsões a um lugar de re levo na
po líti ca torn are m-se cada vez ma is re motas. Júli o César
prossegue a co nqui sta da Gá lia , que d ará po r concl uída e m
5 1; e m Roma c resce a ag itação soc ia l co m os constantes
co mbates nas ru as e ntre os ba nd os arreg ime ntados po r
C lódi o e po r T . Â ni o Mil ão, que favo rec ia o partido sena-
to ri a l. A ag itação at inge o auge em 52, qu ando C lódio é
mo rto no s arredo res de Ro ma pe los ho me ns de Mil ão .
E ntretanto, e m 54 , fa lecera Júli a , filh a de César e mulhe r
de Po mpe io, e e m 53 fo i a vez de Crasso mo rre r e m co m -
bate cont ra os Partos, na M esopo tâmi a ; e m 52 Po mpe io
fora no meado e m R o ma como úni co cônsul e C ícero fra-
cassou na defesa de Mil ão, que fo i ex il ado para M arse lha .
As ri va lidades e ntre os do is triún viros sobrev ive ntes acen-
tu a-se de di a para di a: e m 49 César atravessa o Rubi cão,
d ando iníc io à g ue rra c ivil. C ícero, de po is de lo ngas hes i-
tações , parte para a G réc ia, o nde Po mpe io o rgani zava o
exé rc ito para fazer fre nte a César. Após as derrotas dos
po mpe ianos e m vá ri os teatros de g ue rra , o co nflito chega
ao fim e m M arço de 45 .
Cícero , qu e se refu g iara e m Brindi si de po is da vitó ri a
de Césa r e m Farsá li a, acaba po r ace ita r o pe rd ão de Césa r
e regressa a Ro ma , o nde se reco nc ilia form a lme nte co m o
ditado r. A ca lm a vo ltara à c id ade. Em 46 fora e ri g id o e m
Ro ma um te mpl o em ho nra da " C le mê nc ia de César" di vi-

11 7
Prime iro em Tessalonica. depois em Dirráquio. na Grécia . v. Cowe ll.
1956 . pp. 239-46: M. Fu hnnann . 1992. pp . 128-38.

[L]
ni zada, co mo pode ve r-se numa moeda cu nh ada em 44 ,
em que a fro ntaria dum te mpl o ro mano é rodeada pe la le-
ge nd a CLEMENTI A CAESARI S. Entra assim no vocab u-
lário políti co da Urbe um novo te rmo , o qu al irá se r a pa-
lavra-c have du rante o breve pe ríodo da ditadu ra de Júli o
César e prosseg uirá a sua ca rre ira no pe ríodo imperi al.
Deste facto serão teste munh as os do is maio res pe nsadores
da c ultura ro mana: Cícero , que redi g ira e m meados dos
anos cinque nta do séc. I a. C. a visão ideali zada de uma
rep úb lica baseada na LIB ERTAS , e L. A neu Séneca , que ,
cerca de um séc ul o depo is , teori zará a C LEM ENTI A co mo
ideal po lítico de Ro ma sob o pode r dos Imperadores.
Desde o insucesso da sua actu ação como defe nso r
úni co no processo co ntra T. Âni o Mi lão, C ícero reco-
lhera-se ao silê ncio , um silê ncio de se is anos, que só se rá
quebrado e m 46 , quando numa me moráve l sessão o Se nado
co nseg uiu obte r de César o pe rd ão para o po mpe iano
M . C láudi o Marcelo, que desde Farsáli a perm anec ia auto-
-ex il ado e m Miti le ne 118 , apesar de muitas te ntati vas dos
ami gos, e ntre e les Cícero , que te ntava m co nve ncê- lo a
ace itar reconc ili ar-se co m o ditad or.
A fo rma co mo deco rre u essa sessão do Senado é nar-
rada por C íce ro numa ca rta, datada de Sete mb ro/Outub ro
de 46 , e e nde reçada ao juri sta Sé rvi o Sulp íc io Rufo 119 .
Le iam-se os parág rafos releva ntes dessa carta:

118
A princ ipa l c idade da ilha de Lesbos . co nh ec ida por ter sido a morada dos
poetas A lce u e Safo.
119
Existem várias cartas de C ícero a Sulpício Rufo. e també m deste para
C ícero. É mui to conhec ida aque la qu e Sulpício esc reveu ao orador a conso lá-lo
da morte da fi lha (Ad Fa111. IV. 5).

[LI ]
N11111 aspeuo apenas !e / = Sulpício j passá111os
àjj-ellle: no fac lo de 1er111os conh ecido pouco a111es de
Ti a reabililaçc7o do 1e11 colega M . Marcelo ; 111ais do
que isso , de 1en11os co111emplado pessoalmenle como
as coisas se processara111 . Procura ler presenle ao espí-
rito que 110 1ris1e es!ado em que estamos ' 2º, quero
di-:,er, desde o dia em que os problemas do ·es!ado de
direilo ·121 passara111 a ser resol vidos pelas arn1as 12 2,
nenhu//1 ac!O li vera lugar <110 Senado> co111 l'erda -
deira dignidade 123 O próprio César, embora se quei-
_rasse do 'a-:,edu 111e ·de Marcelo 124, como lhe chama va.
1•e11do co1110 a sua honorabilidade era amplamente
reconhecida pelo seu espírito de ju.11iça e pela sua
sensale-:, 12 ". sem que ninguém o esperasse, declarou
que, se o Senado lho solicitasse . ele nc7o recusaria
<a read111issc7o de Marcelo 126 >, nâo f osse isso ser
para si 11111 111a11 agoiro. Como agiu e111c7o o Senado?
Apro l'eitando uma menção a Marcelo fe ita por
L. Pisão, e vendo C. Marcelo 127 arrojar-se aos pés de
César 12~ , todo o Senado se ergueu e se dirig iu a César

"º Cícero refere -se à situação po líti ca de Ro ma. s ubme tida ao regi me dita -
to ria l de César.
1
" Ao usa r esta exp ressão que remos exp ressa r a ideia de que . no reg ime
cesar iano.já ne m hav ia estado . porque o pode r estava conce ntrado nas mãos cio
di tador. ne m hav ia d ireito . po rque a vicia judic ia l no fo ro tinha cessado.
2
" Isto é . desde que co meça ra a g uerra civ il e ntre po mpeia nos e cesa ria nos.
1
" Sobre a c rise ela digniws. v. a secção ante ri or.
12
-1 Azedume ele Ma rce lo: este se nador pre fe riu pe rmanece r no ex íli o a ter ele

ped ir pe rdão a Césa r po r ter sido se u o pos itor duran te a g ue rra c ivil. co mo o ut ros
fize ram. e ntre e les C ícero .
125
C íce ro a lude ao fac to ele os a mi gos ele Marce lo. como fo i o caso ele Sul -
píc io aqui alud ido. mas ta mbé m de o ut ros a mi gos . co mo Cícero . que in stare m
com Marce lo para q ue se reconc iliasse co m César.
126
Marce lo. um a vez qu e era Se nador. caso se reconc iliasse co m Césa r re-
c upe rari a o lugar no Se nado . No o rig in a l latino a ex pressão " a readm issão ele
Marce lo" está ape nas im plíci ta .
127
C. Marce lo era primo ele M . C láudi o Ma rce lo. o o bstin ado opos it or da
d it adura de Jú li o César.
8
" Em atitu de de s up li ca nt e.

[Llll
co111 Fo::: suplicante. Nem 111e perguntes: teia belo me
pareceu este dia, que até imaginei estar a assistir
co1110 que à ressurreiçc7o da república! Todos quantos
foram interrogados 129 antes de 111i111 expressara111 a
sua gratidc7o a Césa r [. . .]; quando chegou a minha
ve:::, opiei. nc7o com certe:::a por cobardia . mas por
respeito à minha antiga dignidade , por alterar a
dec isc7o que tomara 130 de passar a guardar para sem-
pre o silêncio. Fi:::eram-me quebrar esla minha pro-
messa tanto a grande:::a de alma de César quanto a
atitude do Senado ; assim. dirigi a César breves pala -
vras de agradecimento 1" 1 , mas fico com o receio de
mesmo em outras matérias ter de prescindir do meu
honesto ócio 132 , ún ico consolo que linha para a minha
triste situaçc7o. Numa pala vra ,já que evitei que César
ficasse ofendido se eu, com o meu perpétuo silêncio,
desse a e111ender que já não vivemos em república ,
vou passar a falar apenas de ve::: em quando, 011 mes-
mo espaçadamente , e assim conseguirei fa :::er-lhe a
vontade 13 ' e ter tempo para os meus estudos . Desde a
juventude que senti interesse por todas as artes e dis-
ciplinas liberais, em especial pela .filosofia; de dia

9
" Todos os Senado res a quem foi ped id o que se pronunciassem sobre a
acei tação ou a reje ição cio perdão ele César a Marce lo.
130
Desde o fracasso ela defesa ele Mil ão e m 52.
11 1
Ignora-se qu al a relação ex acta en tre estas breres pai<1,.,.as de agmde -
ci111t'11to (a César) e o di sc urso Pro Marcel/o. Este pode rá se r visto co mo uma
ree laboração esc rit a e poste ri o rment e publ icacla cio disc urso pronunciado. mas
pode tam bém cont er diversos tópi cos não aíloraclos no agradec ime nto fe ito no
Se nado.
I), Ao quebrar o silên c io que prometera manter. Cícero expressa a impos-

s ibilidade ele vo ltar a ca lar-se . um a vez que as palavras. ou as orais no Se nado .


ou as esc ritas do Pro Marcel/o. impli ca m uma norm a li zação das re lações ent re
César e o orador. Sobre o "honesto óc io". oti11111 rn111 dig11i1me. v. a secção pre -
cede nte.
1
-'J Cícero faria a von tade a César se voltasse a parti c ipar normalme nt e nas
reuni ões cio Senado. ao que Cícero desejava furtar-se porque o Senado estava
redu z ido à me ra obed iência ao di tador.

1Li li 1
para dia o meu interesse por esta matéria va i
crescendo. por um lado porque a idade madura me
aconselha à meditação , por outro, porque , na conjun-
tura em que vivemos. nenhuma outra ocupação inte-
lectual há que contrabalance em nós as agruras do
espírito 1' 4 •

Merece m sa lie ntar-se agora algun s po ntos do di sc urso


Pro Marcel/o. Logo a abri r o primeiro pa rágrafo Cícero
refere-se ao longo silêncio e m que se refug iara , não por
medo, mas em parte por desgosto e em parte por vergo -
nha , mas a que ago ra dec idiu pôr fim porque vê ter início
um período de tempo em que, como era seu costume,
poderá di:::,er abe rtame nte aquilo que pensa 135 . Desde logo
esta abe rtura te m conto rnos a mbíguos : ac reditará C ícero ,
de facto , qu e a anti ga libertas fora recupe rad a? Parece
ev ide nte que não: a inda no parág rafo inic ial da carta ,
Cícero salie nta vári as qu alidades pessoa is que Césa r
poss ui e m alto grau e impede m que e le seja um tiran o:
mansuetudo (tanta ), CLEMENTIA (inusitada , inaudita),
modus (tantus), sapientia (incredibi/is, paene diuina ):
e no rme bo nd ade , inus itada e inaudita cle mê nc ia , e no rme
mode ração, incríve l e quase di vina sabedo ri a , num a hipe r-
bó lica e nume ração qu e conc lui co m a retóri ca hipótese
di vini zação do ditador 136 . Mas nota que a moderação de
César é conco mita nte com o poder absoluto de que di spõe,
pe lo qu e , co nquanto e le fo sse um ditado r me nos bruta l do
que algun s que o precede ra m , co mo foi o caso de Co rn é li o

134
Cícero. Epis1ulae ad Familiares . IV. 4 . 3-4.
135
lbide111. § 1. As pa lav ras e m itál ico corresponde m a passos do o rig in a l.
136
Sobre a d ivinização de pe rsonage ns impo n a ntes por pa rte das aut o rida-
des e do povo ele Roma desde os últ imos te mpos da Re públ ica. V. C lauss 200 1.
pp . 41 -53. Note-se. apesar de tudo. um a ce rt a contenção el a part e de Cícero: as
qua lidades que atribui a Césa r são ape nas quase dil'i11as .

[LIV]
Sula , o e lenco de qu alid ades que lhe atribui Cícero , mai s
do que um testem unho cem por cento credíve l, e longe de
se r apenas uma baixa adulação , é antes a ex pressão do
desejo de que o seu poder abso luto se mantenha dentro
de limites suportáveis .
Na mes ma linh a de pensamento situa-se o paralelo
entre o caso de Marcelo e o de Cícero: a c le mênc ia de
César não pretende restituir ao Senado apenas a presença e
a colaboração de Marce lo, visa igualmente recondu zir ao
lu gar que fora o seu no Senado e na Repúbli ca a eloquên-
cia e a autoridade do próprio Cícero. També m aqui o ora-
dor, mai s do que verificar um facto , apenas formula um
voto piedoso: a sua eloquência apenas se manifestou
publicamente durante a ditadura de César nos "di scursos
cesarianos" 137 , e o recurso à sua auctoritas só veio ao de
c ima após o assassínio de César e a luta de Cícero contra a
tomada do poder por Marco António.
Não será aqui necessário proceder a uma análise po r-
menori zada do Pro Marcellom, mas não quere mos deixar
se m uma referência um passo do di sc urso que , quer para o
pronunc iar diante de César, quer para o difundir sob a for-
ma escrita por toda a cidade, ex igiu da parte do orador
considerável coragem :

m O Pro Marcel/o foi pronun ciado no Se nado. ou na versão que possu ímos.
ou numa versão ma is curt a: o Pro Liga rio ocorre u. algun s meses depois . num
processo fo rense. mas pres idi do pe lo próprio César. que. como ditador. detinha
també m o poder judicial. o que mostra como as institui ções repub licanas esta-
va m a ser alteradas em prove ito do poder pessoal : as condi ções anormais corno
se processava aju stiça ace ntu am-se ai nd a mai s no terce iro di sc urso cesa riano . o
Pro rege Deioraro . do ano 45. em que o julgament o decorreu. não no fo ro . mas
na própri a morada de Césa r.
138 Para esse fim remete mos para Gi ldenhard 20 11. ca p. 8 .. Copin g with

Caesar.. , pp . 223-243 (em espec ial as 225 -33. dedi cadas ao Pro Marcel/o).

[LV]
No campo de batalh a ass11111e111 gra nde rele 11ân-
cia a coragem dos soldados, a escolha de um terreno
favorál'el , <a qualidade> das tropas auxiliares, as
frotas, o equipamemo e o abastecimento, e, acima de
tudo, desempenha 11111 papel deci.1i1'0 a Fortuna. que
reclama para si 11111a hoa parte dos feitos hélicos 1W.

Em contraponto com este apoucamento das virtudes


militares, Cícero , já na parte fina l da oração. o usa ainda
estabelecer um programa 'c ivil' que aconselha César a pôr
em prática: restabel ecer o funcionamento normal dos
tribunais (co nstituenda iudicia), recuperar a confiança
entre instituições e cidadãos (reuocanda .fides) , pôr te rmo
à dissolução dos costumes (comprimendae libidin es), pro-
mover a nata li dade , depoi s dos massacres das guerras civis
(propaganda suboles) , numa palavra , promul gar leis seve-
ras que recon struam os e lementos da estrutura do Estado
caídos em ruína s. Daí a lamentação de Cícero : que a repú-
blica , embora deva ser imortal, esteja agora dependente
da vida de 11111 único morta/ 14º.

[33] Os prefácios das T. D.


Cada um dos cinco livros constituintes das T. D . 1111-
c ia-se co m um prefácio de temática cu ltu ral indepe ndente
da matéria de fundo que se rá debatida no decurso do li vro.
Se reflectirmos e m que matéria do livro l , por exemplo,

139
Pm Marcel/o. 6. Embora se trate de um tema tradi cio nal (v. Tedeschi
2005. pp. 64-7). ne m por isso deixa de se r signiti cativo desenvolvê- lo dia nt e
de um ho me m cujo poder e prestíg io est ivera dependente das suas qualidades
de c he fe militar. Po r o utras palavras. Cícero. ao di zer estas palavras. não fazia
mais do que g losa r o te ma que exp rimira e m ve rso num dos se us poe mas: ceda111
amw togae. co11 cedc11 la11rea /a11di "que as arma s rec ue m ante a toga. e a coroa
de lo uro se in c line ante a di gnidade c ivil" (Soubiran 1972. pp. 244 e 259 ).
140
Pro Marcel/o 23.

íLVI]
é a irrelevância da morte, mau grado a esco la e pic uri sta a
considerar o ma io r dos ma les que traze m sofrime nto ao
ser hum ano, e que o prefácio do mesmo li vro é uma apre-
c iação das re lações cu lturai s e ntre a Grécia e Ro ma e da
(q uase ) inex istê nc ia da filosofia na c ultura latina, mau
grado a sua ex tre ma importância na cultura g rega . terem os
uma ide ia do que prete ndemos di ze r quando afirmamos
que, em cada li vro das T. D .. " o prefácio é independe nte da
matéria de fund o" . Esta , a " maté ri a de fundo" , constitui
apenas um dos múltiplos tópicos susce ptíveis de serem
estud ados e debatidos pelos filósofos , pe lo qu e a inde-
pendência do prefác io é ape nas relativa.
Apesar di sto , estudiosos há que tê m manifestado a
te ndê nc ia para negar ao prefác io qualque r re lação sig nifi-
ca nte co m os proble mas e m di sc ussão no res pecti vo li vro .
É o que sucede co m M. Pohl enz, qu e dec lara "não serem
os prefácios de Cícero, na grande maioria dos casos ,
'Introduções' no sentido moderno do termo, mas sim pró-
logos que nada têm a ver com a matéria tratada " 141 •
Sucede , porém, que o culpado desta in aceitáve l to mada de
pos ição não é Pohlen z, nem nenhum dos outros auto res
qu e lhe eg uiram o exe mplo , mas sim o próprio Cícero ,
co nfo rme este narra ao amigo Ático, o editor das suas
obras, num a das que lhe escreve ca rtas :
Vaisficar a saber d11111a negligência 111inha . E11
em'iei-te o 111e11 ensaio ··Sobre a glória.. 14 ~ . ao qual
j 1111tei o <mes1110> prefácio q11e escrei·i para o tercei-
ro !il'ro dos Académicos 14 '. Isto s11cede11 porque e11

141
C itado por Gilde nh ard 2007 . p . 89 . nota 3.
142
Des te tratado de Cíce ro. co m o título latino De gloria. e m do is li vros.
ape nas resta m do is curtos fragme ntos.
141
Trata -se da segunda edi ção desta obra. os Arnde111ici libri. e m qu atro

ILYIIJ
compilei um volume de prefácios, do qual costumo
extrair um quando decido iniciar algum trabalho 144 •
Esta va na minha vila de Túsculo, não tinha qualquer
recordação deste prefácio, e tratei de colocá-lo no
início da obra que te mandei. Só depois, ia eu em
viagem de barco a ler os meus Academicos , é que me
dei conta da asneira que fi -:,era . Tra tei logo de escre-
ver um prefácio novo, e de mandar-to. Terás então
de cortar <ao De G loria> o primeiro <prefácio> e
de colar no <início do> texto o segundo 145 •

Nada há de estra nho no facto de Cícero ter co mpil ado


para seu uso pessoa l um vo lume de prefác ios adequados
aos di ve rsos tipos de obras qu e produ zia . Uma co lectânea
simil ar ex iste no Corpus Demosthenicum , isto é , na co lec-
ção manuscrita dos di sc ursos da auto ri a do o rado r grego ,
de qu e , ali ás , també m fazem parte algumas orações apó-
cri fa s . Nad a há , portanto , de estranh o e m que C ícero , ao
g izar o pl ano geral dos seus tratados fi losóficos, tenha ao
mesmo tempo co mposto uns prefác ios adequ ados aos
temas qu e iria desenvo lve r: é o caso do tratado De natura
deorum "Sobre a natureza dos deuses", no qua l o di álogo
propri amente dito ve m precedido por um lo ngo proé mi o
e m que o auto r ex pressa a sua o pini ão sobre a di fic uldade
do te ma, e faz um a súmul a das pos ições que ao lo ngo do
tempo os di versos fil ósofos fora m to mand o ace rca dos
problemas que se me lhante tema suscita . Pode mos con-

livros. dos qu ais se conservam ape nas o li vro I com lac un as. algun s frag me ntos
do 11. e outros do prefác io do 111. Do Iivro IV nada resta. A esta o bra també m cos-
tuma dar-se o títul o. e m latim . de Academica posreriora , por opos ição à pri meira
edi ção. o u Academ ica priora, de q ue se conse rva o livro li. co m o títul o Luculo.
144
Esse vo lu me não sobrev ive u.
15
"' Cíce ro . Episr11/ae ad A uicu111, XV I. 6. 4 . - Sobre esta colecção de prefá-

cios e a res pecti va uti lização por Cícero . v. Dyck 2003 . p . 62.

[LV III]
jecturar que Cícero, na altura em que pensou vir a redi g ir
um texto sobre esta questão tenha começado por compor o
proé mio e só algum tempo depoi s tenha co meçado a pôr
por escrito o diálogo, pegando então no prefácio já com-
posto e ne le introdu zindo as alterações necessá ri as para
justi ficar a escolh a de Bruto co mo dedi catário da obra.
O ce rto é que , se não se desse o caso de o próprio
Cícero ter contado a Áti co o que lhe sucedera co m o prefá-
c io do De gloria , o mais prováve l era que nenhum fi ló logo
tivesse suspeitado, ao le r os proémios do De oratore, do
De republica, do Definibus, ou de qu alquer outra obra, da
ex istê nc ia da colectânea de prefác ios referida pelo orador
na carta a Ático. O certo ainda é que nin gué m , que saiba-
mos, fo rmulou a hipótese de alg um destes proémios te r
sido prove ni e nte do 'famoso' vo lume, sa lvo no caso das
T. D ., texto a propósito do qua l, "mesmo sem a hipótese do
uo lume n 146 , a impressão geral dos Leitores modernos é que
não existe qualquer relação dos cinco prefácios com as
matérias que se Lhes seguem" 147 •
Segundo a opinião de Gilde nh ard 148 , esta circun stân-
cia te m ocasionado a falta de atenção co ncedida aos prefá-
cios das T. D ., quer em si mesmos, quer sob o ponto de
vista da sua contribui ção para o juízo a fazer sobre a obra
no seu todo.

[34.1] Os cinco prefácios


1. O po nto de partida de Cícero no prefácio do li vro I ,
o qua l pode ser entendido como proé mio gera l à

146
1. e .. o vo lume dos prefác ios preparado po r Cícero.
147
Gi ldenhard 2007. p. 89.
148
Gildenhard. o. 1.. ibidem.

[LIX]
totalidade das T. D., é a inex istê nc ia e m Ro ma de numa
1iteratu ra fi losófi ca esc rita e m latim , e mbora fosse acessíve l
a um a camada inte lectu alme nte culta o acesso à le itura dos
tex tos gregos 1-1 9 _ O franco reco nh ec ime nto desta , ta lvez
apa rente, infe rioridade c ultural de Ro ma relati va à Gréc ia
co ndu z à fo rmul ação de uma tomada de princípio do
orador sobre esta qu estão , de importâ ncia maior para a
hi stóri a da c ultura romana: a tese de C íce ro, ao co ntrári o
do qu e pode ria parece r, afirma co m ê nfase qu e Ro ma, ou
criou por si pró pri a uma c ultura superi o r à dos Gregos ,
ou , acolhe ndo e mbora muito da Grécia na á rea da lite ratura
e de mai s artes . be m como no do míni o das c iê nc ias e das
técni cas 150 , levaram a um grau supe ri o r os conhecime ntos
deles recebidos.
Na esfe ra da moralidade , que r indi vidual qu e r co lecti-
va , os Romano s criaram um siste ma de val ores qu e os
di stin guem de todos os o utros po vos, e m es pec ial dos
Gregos. Salientam-se desse conjunto de valo res a grauitas ,
a seriedade, co mpe netração , di g nidade moral , a constantia ,
a perseverança , que não de ve confundir-se com obstin ação ,
se nsível sobretudo nas ocasiões em que Roma supe rou
todas as adve rsidades , como foi o caso no te mpo das gue r-
ras Púnicas, a magnitudo animi , corporizada no res pe ito e
na lealdade para com os inimigos , a probitas, o decoro , a
honestidade e afides , a fid e lidade aos co mpromi ssos ass u-
midos, à pal av ra dada , inde pe ndente mente das duras

149 Reco rde-se a vin da para Roma da s bibliotecas gregas capt urad as por
Sul a e Luc ulo no resca ldo das suas campanh as d ura nte as chamadas gue rra,
mitridáti cas .
150 Neste domínio . C ícero di z . a títu lo de exe mp lo. que no domíni o das ma-
te1rníti cas . os Ro man o, ape nas mostraram interesse po r aque les conhec ime ntos
de mani festa uti lid ade práti ca . se m lig are m qu a lq ue r importânc ia às investi ga-
ções de o rdem teóri ca.

fLXl
co nseq uê nc ias que desta podem decorre r. e nfim , todas as
for mas possíveis de uirtus, da súm ul a de qualidades carac-
te rísti cas do ho mem de bem em todas as suas esferas de
actuação .
As difere nças qualitati vas que pode m detec tar-se e n-
tre as duas civili zações nos prime iros séc ul os das res pecti-
vas hi stó ri as ex plica m-se co m facilidade pelo interva lo
te mporal que as separa desde os primó rdi os. O s monu -
me ntos mai s antigos da cultura grega, os poemas de Ho mero
e Hesíodo. são anteriores à fundação de Ro ma ; o poeta
Arquíloco foi co ntemporâneo de Rómul o : desta di screpân-
cia cronológica deco rre a falta de inte resse de monstrada
pelos Romanos tanto pela poes ia como pe las demai s a rtes.
e m particular a música , que para eles poss uía uma conota-
ção de epicurismo, no sentido pejorati vo do termo.
Se nas outra artes os Romanos encontram se mpre
precedentes g regos de grande qualidade , j á o mesmo não
sucede co m a oratória. O papel determinante do orador na
soc iedade , so bretudo desde a revolução que pôs fim ao re-
gime mo nárquico em 509 , justifica que rapidame nte os
oradores de Roma atingissem um níve l equiparável aos
Gregos no que toca à habilidade no uso da palavra.
co nquanto só mai s recenteme nte e les ti vesse m atin g ido
um nível superior no concernente à téc ni ca e à c ultura
gera l indi spensáve l à pe rfei ção oratória 151 .

l.li No diálogo De o r cllore. Cícero represe nta estas du as ve rte ntes da orató ri a

atra vés dos do is 111aio res oradores da ge ração ante rior à sua. Li cíni o Crasso e
Marco Antó nio (avô do futuro triún viro ). o pri111e iro representando o 111oclelo ele
orado r dotado de grande cultura gera l. sob retudo nos conhec i111e nt os hi stóri co, .
fi losófi cos e jurídi cos (mais do que e 111 Licíni o C rasso. ao c ri a r este modelo
de orador Cícero estava a pe nsar dece rt o no se u próp ri o caso). e o segu ndo.
o 111ode lo de orador co111 grandes dotes natura is apo iados nu111a lon ga pníti ca
adquirida na a udi ção dos 111e lh ores advogados conte111porâneos.

[LX I]
Seg ue-se um c urto pa rê ntese so bre a falta que faz à
cultura romana a ca rê ncia de tex tos filo sóficos dotados de
qu al idade literá ria : pretex to para me ncionar a ex istê nc ia
de certos te xtos de divul gação do e pi c uri smo da a utoria de
homens mai s inte ressados e m justifi car pe la filo sofia a sua
não participação na vida política da Urbe do que e m afi r-
marem-se co mo fi lósofos a te mpo inte iro . As obras de tes
autores não me rece m de Cícero , ne m que o s conside re
filó sofos 152, nem que se di gne de referi-los pe lo no me pró-
prio 153, ne m sequ er que pe rca tempo na lei tura de obras
destituídas de qu alidade literária 15-1_
Destas c ircunstâncias decorre a proposta de Cícero:
por um lado , dar o devido relevo à fi losofia de acordo com
o exemplo de Aristóteles, fazendo a aliança e ntre a re tóri ca
e a filosofia 155 , por outro , leva ndo a cabo uma experiência
de todo inédita em Roma - a prática da OXOÀYJ / schola , i. e .,
de uma re união e m qu e participam um ' mestre' e vários
' di scípu los ' a fim de procedere m à di scussão de um te ma
fi losófico, uma tese proposta por um dos ' di scípulos', uma
proposição gera lme nte ace ite pel o co mum das pessoas,
mas que irá ser refutada pelo ' mestre' com argumentos de
ordem filo só fica 156 .

15
' T. D ., li. 7.
151
Na s T. D .. ape nas e m IV. 6-7 cita o nome de um dele s: C. Amafíni o.
154
Do ideal c iceroniano fazem parte e m pé de ig ualdade ta nto a matéria
fi losófica como a qualidade literá ri a ( T. D .. li. 7).
155
Exe mpl o de Cícero: às obras do domínio da retórica / ora tóri a (De ora-
10re, Ora/ore. Bru1us. Par1io11es ora1oriae, Topica) juntam-se as do domínio da
fi losofia. como as T. D . (tal como do corpus ari stotélico fazem pa rte tan to as
o bras filo sóficas. co mo a Mewfísica e as Éticas. as c ie nt íficas. como a Ffoca . e
as ;literári as·. co mo a Re1órica e a Poé1ica) .
156
Para uma visão esq ue máti ca deste prefácio v. T. C. Franke 1997-8. p. 2.
e o coment ári o de Lefev re 2008. pp . 29-32.

[LXII]
2. No livro II são retomados alguns tópicos já aflora-
dos no prefácio do livro precedente . Neste , Cícero inicia o
texto com a referência a uma personagem de uma tragédia
de Énio : Neoptólemo , filho de Aquiles, declara achar útil
a prática da filosofia desde que e la não seja excessiva.
Sente-se subjacente a esta posição a crítica que alguns
dos se us contemporâneos faziam aos interesses filo sóficos
de Cícero pelo tempo que lhe roubavam às actividades
' útei s' , tais como a participação no Senado e a advocacia .
Cícero não aceita como pertinentes nem esta , nem outras
críticas , a que di z já ter respondido suficientemente, quer
no seu 'protréptico ' , o Hortênsio, quer no prefácio do De
finibus 157 •
Em particular, a crítica de que a filo sofia só deve ser
estudada com moderação, e não da forma absorvente como
Cícero o faz neste período da sua vida , resulta da crença na
superioridade da vida activa sobre a vida contemplativa.
O contraste entre estas duas formas de 'v ida ' , entre , para
usar a terminologia latina, entre o otium, o afastamento
total dos deveres cívicos característicos do cidadão roma-
no, e o negotium, que não é outra co isa se não o cumpri-
mento escrupuloso desses mesmos deveres, de resto torna-
dos inviávei s durante a ditadura de César, que colocou um
ponto final às actividades judiciais no foro romano , e
reduziu a zero a oratória política no Senado, limitada à
aprovação com aplauso dos actos do ditador.
Para além destes tópicos de ordem política, com a
censura subentendida ao poder pessoal exercido por Júlio
César, e à ameaça implícita por este feita ao regime repu -
blicano defendido por Cícero, neste prefácio encontramos

157
Clcero. Tex1osfilosóficos . pp. 24 7-252 (= As úlrimas fro nreiras .. , 1. 1-8).

[LXIII]
de novo a refe rência deprec iativa aos escritos epic uri stas
de Amafínio 158 • e a declaração de preferência pela téc nica
c ham ada do recurso ao dup lo di sc urso in utramque
parrem 159 .
Me rece referê nc ia també m a menção do tema do
li vro I. a irrelevâ ncia da morte e a libe rtação do medo por
e la causado. muito e mbora a s imples inte ri orização dessa
irrelevância não chegue para libe rtar o es pírito dos huma-
nos do medo que e la causa. O medo , e não apenas o medo
da morte. conforme se rá ana lisado no li vro IV. é um a das
várias pertu rbações a que está sujeita a men te human a,
pe lo que apenas quando for estabe lecida a técnica capaz de
e liminar todas essas pe rturbações se poderá cons iderar
dominado por co mpl eto o medo da morte 160 •
3. este prefác io. do livro Ill , Cícero parte da dicoto-
mia e ntre o corpo e a alma co nsiderada pe la filo so fia co mo
caracte rísti ca da natureza hum a na, para de segu ida referir
o facto estran ho de a maioria das pessoas. qu a nd o doe ntes,
não hes itar e m recorrer aos se rviços de um médico , ao
passo que nem sequ e r consideram doenças as perturbações
de ordem mental que por vezes as afectam.
Ao nascer, o ho me m , e mbora traga j á co nsigo como
que as se men tes da razão, é ainda um se r frág il, sujeito a
toda a espécie de influê nc ias negativas do a mbi e nte qu e o
rodeia. de modo tal que Cícero c hega a di zer que parece te r
bebido todos os erros possíveis juntamente com o le ite da

158
Supra. nota 81 .
159
Cf. a prát ica refe rid a por Ari stóte les nos Tâpicos (A ri st.. Tópicos. trad
port. da IN-C M . 2007 ). bem como a maioria dos di scu rsos da pri me ira fase de
Platão.
,r,u V. a esquemati zação deste pre fácio e m Franke 1997-8. p. 8. e o come nuí-
ri o de Lefev re o. 1 . pp. 59-62.

[LXJVI
ama 161 . À medida que cresce , as influências perniciosas
vão-se acumulando, preconceitos de toda a espécie, erro s
de ava liação, falsos valores por vezes transmitidos pelos
poetas , os exem plos do vu lgo, por um lado , mas por outro
também inculcados por uma e lite ambiciosa e amoral , pelo
que tais influências só a muito custo poderão vi r a ser
combatidas com sucesso pe lo uso da recta razão.
Sucede assim que as perturbações mentais a que estão
sujeitos os indivíduos na adolescência e na idade adulta
devem ser consideradas doenças susce ptívei s de trata-
mento, e doenças tanto mais graves quanto não são
reconhecidas co mo ta is. Estas ' moléstias da alma', es tas
paixões, no sentido etimológico do termo 162 , requerem
uma vigi lância cuidada e contínua que só a filo sofia lhe
pode proporcionar 163 .
Várias são as ' doenças da alma' que Cícero ana li sa
nas T. D . Melhor dizendo , mais do que as paixões em si,
embora Cícero as caracterize devidamente , o problema
tratado neste livro é determinar se o sábio 164 , nesta sua
qualidade, é ou não passível de ser atingido pelas
paixões .

161
A re speito deste tóp ico. já mencionado por Cícero no De finilms. V. 55.
cf. Brunsc hw ig. 1995. pp. 69-112.
162
··Paixão··: em latim passio significa propriamente ""doença . sofrimento··.
tal corno . da mes ma raiz. pwientia de nota a capacidade de sofre r. a res istê ncia
à dor. e o ve rbo pmior. passus s11111 te m o se ntido de estar em so frimento. estar
doente: o me smo se verifica em grego com os termos rrá8oç. nome. e rráoxnv.
verbo. com idê ntico va lor (cf. em português patologia).
16
! Cf. White 1995: uma exposição ma is pormenori zada e centrad a sobre a
prática dos Estó icos. e m especial Séneca . é a obra de l lse traut Hadot 1969 sobre
a See/e11/ei11111g , ou 'd irecção espiritua l· .
164
Nestas do is livros a discussão é desen volvida sobretudo a partir das teses
estóicas . se bem que em paralelo e em com paração com o utra s escolas helenísti-
cas. nomeadamente o epicuri smo.

[LXV]
A paixão anali sada no li vro III é a aegritudo, que tra-
duzimos por ' desgosto' 165 , a que se seg uirá, no li vro IV, a
descrição e aná lise do metus ' medo ' , da laetitia gestiens
' praze r deli rante ' e da libido ' desejo' , sobretudo o desejo
do prazer sex ual (uoluptas).
4. O prefác io do li vro IV está artic ul ado e m c inco
tópicos.
O li vro inicia-se co m um exc urso hi stórico sobre a
prese nça do pitagori smo e m Itáli a, traz ido po r Pitágoras de
Sarnas , que, depois de viaj ar pe lo Médi o Orie nte e pe lo
Eg ipto, ve io instalar-se na Mag na Gréc ia onde fund o u
uma Escola que grangeo u grande prestíg io, te ndo até co mo
um dos se us di scípulos o segundo re i de Roma, Numa
Pompíli o. G raças a este re i, a influê ncia do pitago ri smo
fez-se sen tir no do mínio das institui ções e da mora lidade
soc ial dos Roma nos, pe lo que , de certo modo , é possível
afirmar que a fi losofia se ac limatou e m Roma desde o
séc ul o VI. Este tópico re mete para o livro I.
Um seg und o mo mento impo rtante na histó ri a da
fil osofia na Urbe situa-se no séc ul o 11 , através da acção do
"círcul o dos Cipiões", e m que po nti ficava m os a mi gos
C ipião Emili ano e Gaio Lé lio, co nh ec ido pe lo cog nome de
" Sábio" 166 . Ne m Emiliano ne m Lé lio, ne m ne nhum outro
dos parti cipantes deste círc ul o po líti co- inte lectu al praticou
o que cha maríamos a 'escrita fil osó fi ca ', isto é, ne nhum
teri a produzido fil oso fi a sob a fo rma de tex to esc rito 167 •

165
Cf. T. C. Franke. o . l.. p .10: Lefe vre, o. l.. pp. 85-87.
166
Deste círculo fizeram ainda parte duas figuras de rel evo da cultura gre-
ga contemporânea. o historiador Políbio (cf. supra §30. e not a 72) e o filósofo
Panéci o . que vo ltaremos a encontrar a propósito do último dos tex tos fi losóficos
de Cícero , o tratado De officiis .;Sobre os deveres·•.
167
Uma possível excepção é o poeta satírico Lucíl io . de quem resta um
frag mento (v v. 1326- 1338 Marx= 1342- 1354 Krenke l) com a defi nição da uir1us
'v irtude·. Acerca deste frag me nto luci liano v. o art igo de Gõrle r 1984.

[LXVI]
o entanto , na sua vida , que r pri vada quer pública , com-
portavam-se , ' viviam ' como filó sofos .
Im plicitamente deduz-se daqui uma parte das críticas
que Cícero diri ge contra Amafíni o e alguns seus amigos
que produziam em latim textos sobre a fi losofia de Epicuro:
não ape nas a fa lta de qu alidade literária que caracterizaria
os se us textos 168 , mas sobretudo o fac to de o ep icuri smo
defender uma forma de vida afastada dos deveres cív icos,
para o autor das T. D. , tão importantes, e, mais ai nda, uma
vid a dedicada aos prazeres, identificados estes pe los seus
adversários como em exc lu sivo de natureza vul gar, gros-
seira , imoral. Esta forma de e ntender o epicuri smo ficou
de tal mane ira arreigada que são estes prazeres que vêm
de imedi ato à me nte quando de a lgué m se diz ser "e pi -
curi sta" . Também este tó pico reprod uz ide ias já afloradas
no li vro l.
Se o epic uri smo não é recomendáve l, já sobre as
outras tendências, o u escolas , o Autor não aponta nenhuma
em especial , e mbora ao definir-se a si mesmo co mo
alguém que busca a ma ior aproximação possível à verdade ,
mas com a plena consciênc ia de que esta é inatin gível,
sugira de forma implícita que a corre nte da sua escolha, a
filiação no acade mj smo céptico herdado de Fílon de
Larissa, é do po nto de vista inte lectual a mai s correcta ,
por opos ição ao dog mati smo de outras correntes, em
particul ar do esto ic ismo. O importante , numa pa lavra, é
a prática da filo sofia .
o seguimento deste li vro os partic ipantes do di álo-
go , melh or, aq ue les que a lgun s manu scritos representam

168
Nem uma linha destes textos sobrevi veu. pelo que nos limitamos a di zer
por que moti vo C ícero não os aprec iava.

[LXVII]
pelas siglas M e A , prosseguem a análise das ' paixões da
alma ' iniciada no livro precedente. Neste são sucessiva-
mente passados em revista o 'medo (metus) , o ' prazer ' no
sentido de desejo incontrolado , desmedido , apaixonado e
delirante , designado por Cícero como /aeititia gestiens,
isto é, o prazer excess ivo, acompanhado de gesticulação e
outras manifestações de descontrolo , e por fim o 'desejo
físico' (libido), acompa nhado de prazer de natureza sexual
(uo luptas) 169 •
5. Partindo do princípio , não demonstrado , de que a
busca da ' felicidade ' (a uita beata ) constitui a finalidade
última da filosofia , mai s concretamente , da éti ca 17º, adis-
cussão vai confrontar-se , no ,livro V e último , com o pro-
blema de saber até que ponto para sermos felizes é
desejável , ou mesmo imprescindível , a posse da ' v,i rtude'
uirtus 171 •
Seja qual for a conclusão a que o diálogo chegue , um
ponto há qu e pode desde já afirmar-se como certo: a reso-
lução do problema apenas poderá ser obtida com o recu rso
à filosofia. Daqui vai partir Cícero para um novo excurso
histórico .
Começando por uma alusão a Pitágoras e às suas
doutrinas (cf. o livro IV) , Cícero recua muito no tempo
para recordar até que ponto remonta a antiguidade da filo-
sofia. Afinal, Pitágoras limitou-se a inventar o vocábulo
filósofo, do qual depois se derivou filosofia: pode dizer-se

169
T. C. Franke ,o . l. . p. 14 ; Lefevre . o. l. pp . 115- 11 7.
170
O facto de em épocas mai s rece ntes outros filó sofos tere m escrito sobre
a feli cidade. como Séneca e Santo Agostinho. ambos autores de opú scu los com
o tít ul o De uita beata. parece dar razão ao entendimen to de Cícero.
17 1
Este tópi co remete de imediato para o li vro I. e m que se fala da •virt ude ·
co rno de um tema muito do ag rado do destinatári o das T. D .. M . Júni o Bruto.

[LXVIII]
ass im que já havia fi losofia antes de haver fi lósofos 171 .
Como exemplos ci ta Cícero aqu ele conj unto que passo u à
hi stóri a co m a designação de "Os sete sá bi os - oocpo(- da
Grécia" , bem como al guns heróis homéri cos a qu em é
atribuído também o epíteto de 'sá bios', como foi o caso de
Nestor e de Ulisses, além de personagens do mito co rn o
Prometeu.
Temos depois, por ordem cro nológ ica , os pensadores
pré-socráti cos, a quem interessava sobretudo o estud o da
natureza; a estes segue-se o próprio Sóc rates, o homem
que, no di zer de Cícero , foi o primeiro que chamou a fi lo-
sofia do céu à terra e a levo u a interessar-se ac ima de tud o
pela vida dos homens, pública ou privada, que o mes mo é
dizer, a fa zer da ética o interesse máximo da in vesti gação
fi losófi ca. De Sócrates deri vam enfim as principais
correntes de pensamento, desde Platão e Ari stóteles, até
as escolas he lenísticas, em parti cular o Estoicismo e o
Cepticisrno, de cuja remodel ação, por Fílon. Cícero se
afi rrna segu idor 173 •

[34.2] Os temas postos à discussão


Se passarm os em revi sta os objectivos autopropostos
pelas principais fil osofia s da época helenística à sua acti vi-
dade, depressa verifi caremos:
- que todas, mai s ou menos ri gidamente, consideram
as três pa11es em que se subdi vide a filo sofia - lógi-
ca, física e ética - como formand o uma unidade
orgânica, em que cada urn a delas está em estreita

17
' Na China. apenas data cios tempos mode rnos a ex pressão para designar a

··filosofia"": sign ifi ca rá isto que Confú cio não era fi lósofo •?
m T . C. Franke. o. l. . p . 18: Lefevre. o. l. . pp . 140-146.

[LX IX J
correlação com as outras duas, de modo a que, se
uma delas for menos cabalmente tratada , todo o
edifício se ressenti rá;
- q ue o fim prosseguido por todas elas é a determina-
ção de qua l é para o homem o "supremo bem" que
deve procurar atingir, e , correlativa mente , qua l será
o "supre mo ma l" que a todo o custo deverá ser
evitado;
- que quase todas e las , com maior ou me nor vigor,
são de cariz dog mático, e m especia l o epic urismo
e o estoic ismo, desde que cons ide re mos que pode
to mar-se por dog ma o facto de não ace itarmos
nenhum dog ma;
- que é sobretudo às fi losofias da época he le nística
que co nvém a teori a de Pie rre Hadot , de que a fi lo-
sofia antiga é antes de mais "une maniere de vivre",
e, a este título, a sua fi na lidade consiste e m fac ultar
ao ho mem os meios necessári os e sufic iente para
alca nçar o seu fi m ('tÉÀoç), qu e não é o utro senão
um ideal, bastante utópico , de equi líbrio, tranquili -
dade, harmoni a consigo e com o mun do a que os
G regos chamavam EUômµov(a e os Ro manos uita
beata 174 .

Recordados estes po ntos, se passarmos agora à consi-


deração dos temas postos à discussão nos c inco ' di álogos
de Tú sc ul o', o que veri fica mos? Que o ponto mais impor-
tante, o limite para que te nde toda a fi losofia é justamente
o último afl orado, a "conqui sta da fe lic idade" • É impor-
175

174
Ambos os termos são corren temente traduzidos por --felicidade·•.
175
Títu lo de um livro de Bertrand Russell. de 1930.

[LXX]
tante reparar nesta ap li cação da máx ima po pular de q ue
"os últi mos são os primeiros", pois e la aj udará a ex plicar
o apare nte caos das matérias tratadas po r Cícero nas T. D .
Na realidade, aquil o que se d isc ute no li vro V não é
bem a demo nstração de que o mais impo rtante para o
ho me m é a conqui sta da fe li cidade, embora esta ideia
esteja impl íci ta, e subj acente a toda a discussão. O proble-
ma é antes esc larece r se, para alcançar essa fi nalidade , a
virtu de, além de condi ção necessária , é també m co ndi ção
sufic iente . Por outras palavras, a matéria do li vro V pode
se r encarada sob dois ângulos:
1. ide ia subj acente ao conjunto dos c inco di álogos,
embo ra não ex plic itame nte di sc utida como tese e m
nenhu m de les: a virtude é condição necessária
para se alcançar a.felicidade;
2. apenas o sábio (sapiens, oo<j)óç), porém , é poss ui -
dor da virtude, logo apenas o sábio tem condi ções
para ser fe li z; por isso se coloca agora este o utro
proble ma: será, para o sábio, a virtude, que ele, por
definição, possui , condição suficie nte para ser
fe liz? A esta questão o quinto li vro das T. D. dará
res posta afirm ati va.

Põe-se, co ntudo , uma nova questão: qu al o objecti vo


dos quatro prime iros li vros? Se a co ncl usão, a tese a qu e o
auto r quer chegar é qu e a virtude é condição necessária e
suficie nte para a fe licidade , não bastari a demonstrar esta
dupl a co ndi ção para ating ir o se u objecti vo ?
O que a tese de fac to diz é que a virtude é co ndição
necessári a e sufic ie nte para a fe li cidade mas para o sábio,
para o homem que j á possui a virtude. Sucede, po rém , que
Cíce ro, ao redi gir estes se us Diálogos em Túsculo não tem

[LXXI]
co mo propósi to dirigir-se a sábios. mas sim a pessoas
co muns , in c luindo e le próprio, conforme as palavras que
esc reveu a finaliza-los:
Ncio será fácil para mi111 di:er em que medida
esta minha acti1•idade poderá vir a ser títil a ourros;
110 meu caso pessoal , SL(jeito com o estava aos mais
lanc i11a,11es desgostos e aos dissabores de toda a
ordem que 111e assa!ta1•w11 de todo o lado. 11e11/zu111a
outrafomw de consolaçüo poderia ter e11co111rado 176 .

Para as pessoas comu ns, Cícero incluído , pessoas


não-sábias, desprovida s da virtude necessária e suficiente,
muitos são os impedimentos que não lhes pe rmitem ser
feli zes. São esses impedime ntos que os quatro prime iros
diálogos exam in am: o medo da morte, o ma is intenso
de todos . que no livro l se demo nstra não se r um mal. e.
portanto, não impede a fe li c idade; a dor, em es pecial o
sofrime nto físico, que , de acordo co m os Epicuris tas,
é o ma io r de todos os ma les que podem a fli gi r o ho me m 177 ,
mas que, se seguirmos os Estó icos, co nc luire mos que , por
muito intensa que seja , não é imped iti va da fe li c idade
(livro U); o desgosto 178 , talvez a mai s intensa das chamad as
" paixões da alma", mas que o sábio conseg ue, co m a sua
fo rça es piritual , domin ar por co mpl eto (livro Ili ); as res-
tantes " paixões" - o medo 179 , em ge ral , a angúst ia pera nte
a po sibil idade da ocorrê ncia de a lg um cataclismo, por
exemp lo; o pra-::,er desmesurado 180 , que tira ao homem

176
T. D .. li v. V. 128. i11 Ji11e .
177
Para os Epi curi stas a mo 11e não é um ma l.
178
Latim 11eg rirudo . so frim e nto . tristeza de natureza mo ral. co mo seja a per-
da de um ente querido.
179
Latim 111e11,.1·.
180
Latim /a etitia ges1ie11.1.

!LXXII]
a poss ibilidade de raciocinar co rrectamente ; o desej o 18 1,
sobretud o de natureza sex ual (li vro IV).
A libertação de todos estes ·'erros de opinião" a qu e
estão suje itas as pe ssoas comu ns 182 , a ind a que não trans-
forme automaticamente uma " pessoa vul gar" num "sábio" ,
aprox ima-a o sufi c ie nte do idea l da virtude de modo a
permitir-lh e at in g ir um estado muito próximo. pelo menos,
do que se rá a fe li c idade . Pode mos assim sinteti za r qu anto
a este aspecto o co njunto das teses expostas nas T. D .:

a) Tese pressuposta : a virtude é cond ição necessári a à


felicidade :

b) Imped ime ntos co mun s da fe lic idade:


- medo el a mo rte (l ivro 1)
- do r, sofrime nto fís ico (li vro li )
- paixões da alma: 1. desgosto ( livro Ili )
- o utras pa ixões: 2 . medo , ang ústi a
3. prazer des mes urado
4 . desejo ( li vro IV)
c) Libertação das paixões : aqui sição da virtude:
aproxim ação do idea l cio sábio;
Tese ex plíc ita: a vi rtude é condição sufi cie nte para a
felicidade (livro V)

181
Latim libido . termo muito w,ado na psica náli se.
'" C íce ro . que não sofri a de ··medo da morte··_como se viu pela deci são de
2

afront ar Marco Ant ó ni o. que o mando u exec utar. era se nsíve l a a lg umas ··pai-
xões . po r exempl o . à ang ústi a. que o para lisou nos di as imediatos à derrota ele
Farsá lia. ao desgosto pe la morte ela fi lha . ele q ue nun ca chego u a rec uperar. ao
content ame nto excess ivo po r a lg un s cios seus sucessos po líti cos.

ILXX III J
[35] A leitura dos prefácios como um todo
Todos os cinco prefác ios aos li vros das T. D . come-
çam com algumas palavras diri gidas a Bruto , cujo no me
em vocati vo surge logo nas prime iras linhas do tex to ' ,
18

relati vas a po rmeno res das re lações inte lectua is e ntre os


dois ho mens: Bruto teri a inspirado em C ícero a vo ntade
de esc rever sobre fil osofia 184, a fi losofia é uma ac ti vidade
qu e deve praticar-se co m o máx imo empe nh o e a te mpo
inte iro 18 \ há uma c iência que trata os males do co rpo, e há
o utra , a fil osofi a , adequada ao tratamento dos ma les da
alma 186 , os Roman os não devem co nsiderar-se cultu ra l-
me nte infe ri ores aos Gregos, já que mes mo os e le me ntos
importad os da Gréc ia fo ram por e les igua lados ou até ul -
trapassados 187, a fe licidade através da virtude, tema favo rito
de Bruto, é o objecti vo últim o a que visa a fi losofi a.
E m seg ui da a estas palav ras de abertura C ícero passa
a ana lisa r di versos tó picos , desenvo lvendo-o de modo a
q ue o mes mo tó pico surj a em mai s do que um livro , mas
em repetir-se , antes sub lin hando aspectos vários do mes-
mo tópi co em locali zações várias.
Um dos tó picos mai s desenvolvido s di z res pe ito às
Relações culturais entre Roma e a Grécia: não podendo
deixar de reconhecer o muito que a cultura roman a fi co u
a de ver à cultu ra grega , Cícero procura demo nstrar qu e a
superio ridade grega é apenas crono lóg ica, porque e m
te rmos qua litativos os Ro manos, ou aperfe içoaram os

181
Lin ha I nos livros Ili e V: lin ha 2 no livro I V: linha 3 nos livros I e li .
184
Li vro 1.
185
Livro I I.
186
L ivro Il i.
187
L ivro I V.

íLXXIV]
numerosos e leme ntos cu lturais que receberam (livro IV ),
ou, em importantes aspectos, atingiram um nível supe rior
ao dos Gregos, por exemp lo nos seus costumes , na vi da
pública tanto como na privada , nas estruturas do estado, na
instituição militar (livros li e lll). No que diz respeito à
literatura quase todas as produções romanas são de imita-
ção grega 188 : as várias formas poéticas só co meçam a apa-
recer no séc ulo III , e encontra m a opos ição do trad ic iona-
li sta Catão-o-Censor, o que aliás sucede co m as demai s
artes . Apenas a oratória foi imitada com interesse e suces-
so. ao passo que da filosofia , apenas o Ep icurismo suscitou
algum in teresse pelo seu conteúdo, mas os seus fa utores
não c ui daram da qualidade literária, e isto muito embora
Ari stóteles ten ha advogado a co laboração entre fi losofia e
retórica (liv ro II ).
Outro tóp ico co ns iste na demon stração da Importân-
cia da Filosofia. É um facto es tranho que o 'grande
público ' não mostra qua lquer inte resse por este ramo do
saber, e tanto mais estra nho por a fi losofia poder servir
como terapi a para os sofrimen tos da alma 189 . Mesmo quem
confessa " não se importar de filosofar" afi rma logo e m
seg uida que só é justo fazê- lo com moderação (li vros l , UI ,
V) , sa lvo , mai s uma vez , os Ep icuri stas. que apreciam a
fi losofia do Jardim pela sua rejeição da acção po líti ca.
Segue-se co mo tóp ico o da Filosofia como terapia ,
moti vo relevante no li vro HI , mas també m prese nte nos
li vros I e V com uma vari ante: na c riação das suas

188
Quintili ano dirá que. de entre os gé neros lite rári os exi stentes . apenas a
sátira foi de criação inte iramente rom ana (X . 1. 93: Satura ... tota 11os1ra est ).
189
V. supra 34.1.3 (a procura dos méd icos co mo es pec iali stas das doen-
ças do corpo . em contra ste co m a reje i~·ão dos fi lósofo s. como es pec iali stas das
doenças da a lm a).

[LXXV]
in stitui ções. os Ro manos. como já referimos acima, supe-
riorizaram-se aos Gregos pela auste rid ade dos se us cost u-
mes tradi c io nais, o mos maiorum , pe la correcta e efic ie nte
arquitectura da sua orga ni zação política e milita r co nce-
bida logo desde os inícios do pe ríodo monárqu ico: insti -
tu ição do Senado (Ró mul o), fixação da re li g ião do Estado
(Numa Pom píli o). regu la me ntação das fo rças armadas
(Tulo Hostíli o) , da vida eco nómi ca (A nco Márcio) e di vi-
são censitári a da popul ação (Sérvio Túlio) . a co nce pção
e organização de todas es tas institui ções pode di ze r-se que
os filósofos têm uma palavra a dizer, pe lo que qu ase
pode ri a pe nsa r-se q ue nos primórdi os de Ro ma ex istiram
fil ósofos antes de te r sido importada a fil osofia da Gréc ia .
A emergência do conceito de filosofia em Itália.
In icia-se o li vro IV co m a narração da vinda de Pitágoras
para a Itália (Magna Gréc ia) , o nde a princípio se fez se ntir
a influê ncia directa do Mestre, de poi s a dos seus di sc ípulos
(livro V), tanto na fixação da moralidade pública co mo no
estabelecimen to da constituição (li vro !). ma nova fase
da evolução cultural de Ro ma ocorreu mais tarde durante
o cha mado " séc ul o dos Cipiões" (li vro V), por acção de
C ipi ão Emiliano e os se us a mi gos romanos (co mo o sábio
Lé li o e o poeta Lucílio) ou gregos (co mo Panéc io, o fi ló-
sofo e Políbio, o hi storiador).
E m meados do sécul o 11 teve lu ga r e m Roma um facto
a que já temos aludido por vá ri as vezes , o qu e se j ustifi ca
pe la importância que viri a a ter: a 'embaix ada dos filó so-
fo s' . Foi e m parte a ind a neste sécu lo, em pa rte já no
seg uinte que ti veram lu ga r as co nt rové rs ias, às vezes
azedas, entre as diversas esco las fi losóficas de ri vadas do
e nsino de Sócrates: acadé mi cos, pe ripatéti cos, estó icos .
ova me nte importa fazer referência aos e pic uri stas

ILXXYIJ
romanos, co mo Amafíni o (l ivros 11 , I), criado res de uma
ve rsão ·popular· de fi losofia assente na busca do prazer, ou
seja. uma filosofia destituída da grauitas "seriedade" que
Cícero considera essenc ial. Posição de Cícero: cada um
pode adaptar para si a te ndê ncia qu e desejar, academismo
dogmático o u céptico, esto ic ismo, ou o utra qualquer.
embora não seja obrigatóri a essa esco lh a.
Fin almente encontrare mos um último tema , A emer-
gência do vocábulo 'filosofia ' , termo criado por Pitágoras
(livro IV) por recusa r se r tratado por 'sábio·, quando e le se
sentia apenas um " fi ló"-"sofo", um ami go da sabedoria .
E o q ue há que seja mais importante (ao contrá ri o do que o
vul go pen sa, li vro III ) do que a filo so fia , guia desta nossa
vida, que nos proporciona a virtude e elimina em nós os
vícios 190 , criado ra dos laços que mantêm as estruturas
sociais e familiares?
Mas importa não esquece r que a filo so fia , mais cio que
uma di sci plina. é uma atitude universa l perante a vida: por
isso a hi stó ri a nos apresen ta casos de homens que mere-
cem se r considerados, se não sábios, pelo menos filó sofos,
como foi o caso dos chamados "Sete Sáb ios" da Gréc ia , de
legisladores co mo Licurgo ou mesmo de heróis da epope ia
homérica co mo Nestor o u U li sses. E não poderemos
esq uecer a fig ura de Sócrates , o primeiro pensador que
trouxe a.filosofia do mundo celeste até ao meio das nossas
cidades, das nossas casas, das nossas vidas 191 , e o cr iador
do modelo de in vest igação filosófica qu e Cícero põe e m
prática nas suas ob ras, co mo as Tusculanae dispurationes
(livros 1, UI ).

190 T. O ., V. 5.
191
T. O .. V. 10 .

ILXXV II J
Em co nclusão, podemos considerar este conj unto de
textos co mo consti tuindo um só ensaio dividido em c inco
pai né is temáti cos:

- a sabedoria dos povos sistematizada pela fi losofia


(níve l sóc io-po lítico) ;
- a moral indiv idu al siste mati zada pela filosofia (níve l
pessoa l);
- as re lações e ntre a Grécia e Roma: literatura , artes ,
filosofia ;
- a c ultura filosófica co mo forma de chegar à
virtude;
- a conq ui sta da fe li cidade pela via da virtude, como
objectivo último do homem apo iado na fi losofi a.

[36] A virtude feminina e o humanismo de Cícero


um artigo ainda relativamente recente 192 , Wil liam
Altman cha ma a ate nção para algun s pormeno res que, em
se u e ntende r, implicam uma rev isão das posições corre ntes
acerca da fo rma co mo deve ser e ncarada a lei tu ra das T. D .
São doi s os pontos fundame ntai s e m que A ltman baseia a
sua proposta: o prime iro acen tua a necess idade, não apenas
de não esquecer, mas, pe lo contrári o, de acentuar o co n-
tex to geral e m que surge a obra, marcado pe lo go lpe que
para Cícero fora a morte da filha na pró pria vil a de Túsculo
onde de po is decorreram os diálogos 193; o seg undo, o e rro ,

192
Altma n 2009.
19
Túlia morreu das sequelas de um parto difíci l. algumas se manas depois
'

de ter dado à luz um filho (Ja neiro de 45). que parece ter tido uma vida basta nte
curta (Rawson.2001. pp . 225. 228). A liás . já anteriormente (em Maio de 49) .
ela tinha tido um parto prematuro que muito cont ribui u para a sua débil saúde
(Fuhrmann 1992. p. 201)

ILXXV HIJ
que consiste, em seu entender, e m interpretar a sigla M qu e
ocorre nas T. D . 194 co mo porta-voz do autor.
O primeiro po nto j ustifica-se antes de mais pe lo facto
de Túlia ser recordada nos d iálogos, ex pl íc ita ou implici ta-
mente , como exe mpl o de uma fo rma de uirtus raríss imas
vezes documentada nas letras latin as, co m a óbvi a excep-
ção de C ícero, e m parti cul ar nas T. D. É facto be m
conhecido q ue o te rmo uirtus é de ri vado de uir " va rão , ser
humano do sexo masc ulino", o que implica qu e qu ando
um ro mano fa la de uirtus o seu pensamento concebe como
referen te da pa lavra o co njunto das qu alidades caracte rís-
ti cas em particul ar do " va rão", e não do humano indepen-
dentemente do sexo. Em contraste com esta situação,
Cícero é , segundo A ltman , "o primeiro romano a atribuir
uirtu s a uma mulher sem intenções irónicas , o que , de
resto, ele Ja-::. repetidas ve-::.es com referência à sua fi lha
Túlia" 195 . A fo rma feminin a da uirtus centra- se no sofri-
mento ass umido pe la mulher em gera l, mas muito nítido no
caso parti cul ar de Túli a, no altruísmo e na coragem
que mani fes ta no momento da maternid ade, atitude que
demonstra uma fo rma di fe rente e talvez superi or de huma-
ni smo, aque le qu e A ltman des ig na po r woman/y huma-
nism.
Duas observações apenas para situar o nível em que
se processa a in vesti gação de A ltman. A corage m com
que Túli a se submete a um parto d ifíc il , qu e viria a ca usar-
-lhe a mo rte, é posta em para le lo po r Altman co m o
co mp0ttamento do pró prio C ícero aqu ando da luta contra
Catilina, o apogeu da sua ca rre ira po líti ca. a IV Catilin ári a
o orador salie nta o esfo rço d ifíc il e peri goso que lhe custo u

194
V. supra §~ 13. 19 .
195
Al tman . o. 1.. pp. 407-8.

[LX X I X]
essa luta , assumida por altruísmo em benefício dos se us
concidadãos:
Se a condiç-ão com que assumi o consu /adofoi a
de que deveria sujeitar-me a todas as dificuldades .
a todas as dores e sofrimentos , aceitá- /a-ei não ape-
nas com coragem , mas sem a mínima hesitação. des-
de que dos meus trabalhos nasçam para vós e para
todo o povo romano a dignidade e a salvação 196 .

Sob outro ponto de vista, o sofrimento de Cícero co m


a morte da fi lha contrasta co m a fri eza manifestada por
Anaxágoras quando lhe foi an unci ada a morte de um
filho 197 • Igualmente co ntrastantes a indiferença co m que
Anaxágo ras fa la da sua cidade nata l 198 , e a devoção de
Cícero a Ro ma no passo ac ima c itado da IV Catilinária ,
que pode ainda remeter para outra manifestação de altruís-
mo, desta vez a do pri sione iro da "caverna de Platão" que ,
depoi s de libertar-se e de co ntemplar a verd ade , decide
regressar à caverna para ajudar os outros pri sioneiros a
aceder, como ele , ao superi o r conhecimento 199 •
Passe mos ao seg undo ponto: a perso nagem represen-
tada pela sigla M de alguns manusc ritos.
Conforme vimos 200 , a sigla M pode ser interpretada
co mo representando o prenome Marcus (ou seja , Cícero) ,

196
ln Cc11ili11a111 IV, 1. A acção de Cícero ao combater Cati lina é desc rito
como um parto dol o roso de que res ultarão (à letra "serüo dadas à /11: ") para
Roma " a dign id ade e a sa lvação"'. Note-se como os termos e m neg rito (c/i/irn/·
e/ades< acerbiw1es: dores e so.fri111e111os < do/ores crucia111sq11e; dos 111e11s ira•
bailios 11asça111 .. . dignidade e salrnçcio < 111eis /abo riob11.1· ... cligni/Cls sa/11sque
paria1ur ) poderia m oco rrer. todos eles . num texto e m que se descrevesse o acto
de dar à lu z uma cri ança (v. A ltm an o. 1.. p. 411 ).
197
T. D .. Ili. 30.
198
T. D .. 1. 104.
199
Altma n o. 1.. p. 435.
00
~ Cf. su pra§§ 13 e 19.

[LXXX]
ou o nome Magister, Mestre. que igualmente remeteria
para Cícero. No entanto, daqui até inferir que as partes do
texto atribuídas a M representam o pensamento de Cícero
acerca das matérias em discussão vai uma considerável
di stância. Devemos antes de mais recordar as palavras de
Cícero no prefácio do livro V das T. D., que não deixam
qu alq uer dúvida a este respeito:
De entre <as várias correntes>, a que eu sigo
preferentemente é aquela que penso ser a adaptada
por Sócrates, e que consiste em não tomarmos uma
posição, mas corrigirmos os erros dos interlocutores
e procurarmos em todos os debates chegar o mais
próximo possfrel da verdade. Esta metodologia foi
seguida por Carnéades com grande perspicácia
e ab11ndância argumentativa , e é a que eu tenho
seguido em outras ocasiões , e também agora nestes
<diálogos> em Túsculo, que temos travado de
acordo com o mesmo modelo 201 •

Deste passo podemos dedu zi r:


- que os trec hos atribuídos a M nunca devem ser en-
tendidos como representando a opinião pessoal de
Cícero, já que este , seguindo o exe mpl o de Sócrates,
não to ma ex plicitame nte pos ição so bre o proble ma
e m di sc ussão 2º2 ;
- que o pro pós ito de M co nsiste ape nas e m refutar a
opini ão ex pressa por A, pondo e m relevo as suas
fraquezas ou inco ngruê nc ias arg ume ntati vas;
- que o resu ltado a que se pretende chegar nos debates
é uma aproximação à verdade, já que esta é

'º1
T. D. , V. 11 .
,o, A expressão usada no passo ci tado tradu z-se litera lmente: ··11ós ( = eu)
ocu/Jamos a 11os,a opi11iâo pessoa/"·

lLXXX I]
inatingível , ou seJa , o que se procura é apenas o
probabile 203;
- que esta metodologia , qu e fora a seguida também
por Carnéades , igualmente fora posta em prática
pelo próprio Cícero em outras obras suas (Academici
libri , Definibus) , e também nos presentes 'diálogos
em Tú sc ulo ';
- que esta posição é coerente com a assumid a em ge-
ral por Cícero na sua obra fi losófica, ou seja, o cep-
ticismo académico colhido no e nsin amento de Fílon
de Larissa 204 ;
- que , consequentemente, M não tem nada a ver co m
um a certa espécie de ec/ectismo introduzido na
Nova Academia por Antíoco de Áscalon , que defen-
dia a identidade de princípios co muns a Académicos,
Peripatéticos e Estóicos. posição esta de que uma
figura típica seria Cícero , académico em ep istemo-
logia, estóico na ética , e també m em an tropol ogia e
teologia, mas, neste caso, com co nceitos e teoremas
importados do Perípato 2º5 .

Aceitando em conclusão a tese de Altman do " wo-


manly humanism " de Cícero , põe-se agora o utra questão ,
a de saber se o orador merece ser considerado um huma-
nista , independentemente do género.
Não se afigura fácil uma resposta plau sível a esta
questão , até porque ela contém em si esta outra: o que
entendemos nós por " humani smo"? Será possível definir

203
C f. Vesperini 20 12. p. 486. e. sobretudo. Au vray- Assayas 2006.
pp. 141 ss.
2
(),l Cf. Vesperini 20 12 . pp . 484-5 .
205
V. Hirsc hberger Geschic/11e, 1. Tei l p.29 1.

[LXXXI[]
' humanis mo', ate ndendo a q ue, como diz Man ue l Antu nes,
"no limite , há tantos H(llmanismos) quantas as con-
cepções do homem " 206 ?
Uma prime ira o bservação é que não se rá pertine nte
confundir hllmanismo co m humanitarismo , ente ndido este
co mo "um sentimento vagamente fi losófico de amor pela
humanidade ", de in spiração modern a, sobretudo de
Roussea u e Comte 207 , mas de q ue pode mos enco ntrar um
antecede nte cláss ico num ve rso famoso de Terê nc io, no
qual se sobrepõe ta lvez a ide ia de hum ani smo co mo "uma
visão do homem tendente a promover-lh e a dign idade da
sua posiçâo no mundo " 208 . Fazemo- la porq ue nos parece
ser esta a visão subj ace nte à co ncepção ele Ves perini , para
quem Cícero é ac ima de tudo um po lítico o bcecado pe lo
desejo de g ló ri a, e de modo a lg um um fi lósofo preocupado
co m a coerê nc ia e pi ste mol ógica das ide ias fi losóficas que
ex plana nos se us tex tos209 . É e m obed iê nc ia a esta
concepção que Yes perini defe nde ser objecti vo de Cícero
co m os seus escritos fi losóficos co ntinu ar "afazê- lo existir
no campo político", o se u terre no de e le ição, muito e mbo-
ra não co nseg ui sse m impedir "essa Slla existência política
de ser praticamente irrelevante" . Daí a conclu são:
"Apenas a mor/e ele César reconclu-::, Cícero ao
co111ha1e político. A alegria que se apoderou de
Cícero no Senado quando viu os conjurados criva-
rem César de punha/adas, deveria suscitar nos eru -
ditos modernos mais precauções quando discorrem

'º6
Antunes Verho. 10.col . 582.
207
Antunes 2007. art. Humanitarismo. in Ohra Co111pleta. Tom o 1. Volu -
me I V. p. 324.
208
Antunes.o . !.. p. 3 10 e 3 14.
109
Vesperini.2012. p. 489 .

!LXXXIII I
sobre o humanismo de Cícero. A cortesia da troca
de cu111pri111entos literários . tanto nos diálogos de
Cícero como na sul/ prod11çüo epistolar coexistill co111
um desejo de glória que 11üo suporta va o mínimo
obstáculo. "' 1º

Estamos e m c re r que , para um a ap reciação correcta


do eventual humani smo de Cícero, são mais do que su fi-
cien tes as " precauções" to mad as por J. C hri stes na sua
oração de sapiência de 1995 : tud o de pe nd e do que quere-
mos dizer com " humani smo'·. Co mece mos por ate ntar no
passo seg uinte:
"Tudo ponderado , sugiro a tese seguinte: quem -
do Cícero atribui ao ideal da cultu ra grega um papel
tüo determinante 110 seu plano de vida, nüo o fa : a
partir de uma 10111adC1 de posiçüo humani.1ta' 11 :
Cícero não era um humanista .'º"'

Sublinh e mos: os Renascenti stas usara m a cu ltura


antiga para fo rmar uma nova espécie de Homem; C ícero ,
pe lo seu lado , não dese nvo lve a partir da fil osofia , da c ul-
tura , num a palav ra , da Jtmôda grega e m gera l, um novo
tipo de " Home m Romano", ape nas segue o idea l dos
antigos romanos , baseado na tradi ção do mos maio rum ,
simbo li zado por Catão-o-Censor, mas ala rgado pe la aber-
tura cultural à Hélade do chamado "círculo dos Cipiões" 2 1\

"º Vesperini 2012. p. 480 (o neg rit o é ela nossa res pon sabiliclacle).
"
1
" Pos ição humanista": no sentido cio que fizeram os renasce nti stas italia-
nos relati vamente à cu ltura roman a. isto é. toma va m essa cu ltura . cuja influência
se oc ultara durante a lclacle M édia. mas estava agora a ser redescoberta , corn o um
poderoso auxili ar para o se u obj ecti vo. a formação ele um novo e idea l tipo ele
Homem. aquele tipo que viria a se r conhec ido co mo o " Homem Renasce nti sta ...
) 12 Christes 1995. p. 13.
1
)1. Cf. o prefácio ele Luca Canali à edi ção cio De agri rnlrurn ele Catão.

[LXXXIV J
Por o ut ro lado. co ntu do ,
''O relacionamento com os bens culturais gregos
com a intensidade excepcional com que Cícero o pra -
ticou libertou forças reno vadoras que Ji-;,eram dele
um humanista : Cícero tornou-se um humanista. " 21 -1

Pode dize r-se ai nd a que o pensame nto de Cícero não


pe rmanece es táti co, antes está em perma ne nte evo lução no
se ntid o de exercita r cada vez mais a fo rça emancipadora
qu e recolhe nos se us estud os da fi losofia he lé nica . Ainda
no di zer de C hri stes ,
"em reflexões co1110 aquelas lque faz a propósito
dos q uatro tipos de Ho mem 2 1"J desenvolve-se 1111111
sentido verdadeiramente humanístico a força eman -
cipatória do pensamento grego " 2 16 •

Mas a palavra humanismo é relat iva me nte rece nte 217 •


o latim de Cícero são frequen tíssimas as ocorrênci as de
outro te rm o , humanitas , que , alé m do sig ni ficado an tropo-
lógico de " humanidade" , poss ui toda uma vasta rede de
conotações relacionadas co m as ta mbé m muito freque ntes
facetas do " huma ni smo" . Neste sentido até podere mos

C hri stes. o. \. . ibidem.


, i-1

m No seu últim o esc rito fil osófi co. o De o/ficiis. Cíce ro di stin gue qu atro
tipos human os . e o utras ta ntas fo rm as de actuação. a sabe r:
1. o tipo co mum a todos os huma nos . e que os d istingue co mo anim ais
rac ionais:
2. o tipo ca racte ri zado pe las capac idades pa rti c ul ares de cada ho me m: for-
ça. ve loc idade. p. ex.
3. o tipo que resu lt a da situ ação soc ial. em prin cíp io trut o do acaso e das
c ircun stânc ias epoca is.
4. o ti po qu e res ulta do exerc íc io da vont ade. e que faz co m que um se dedi -
que à po lít ica. o utro à fi losofi a. o utro à e loquê nc ia fore nse . etc. (Cíce ro .
De o/jiciis, \. 107 e 11 5).
216
C hri stes. o . 1.. p. 18.
m Princípi o do séc ulo x1x (Antunes . 200 7 . p . 30 3) .

!LXXXVI
dizer que foi Cícero o criador deste conceito, co mo se
concl ui deste passo de Heidegger:
''Somente na época da república romana. huma-
nitas é, pela primeira vez, expressamente pensada e
visada , sob este nome. Con trapõe-se o ho mo huma-
nus ao homo barbarus . O homo humanu s é, aqu i, o
romano que e leva e enobrece a virtu s romana mravés
da 'incorporaçüo · da paidéia herdada dos Gregos.
Estes Gregos sâo os Gregos do helenismo Cl!ͪ cultu-
ra era ensinada nas escolasfilosóficas . Ela ref ere-se
à erudit io et institutio in bonas artes . A paidéia assi111
entendida é trad11 -;,ida por humanitas. A ro111anidade
propriamente dita do homo romanus consiste em
tal humanitas. Em Roma, encontramos o primeiro
humanismo. Ela permanece. por isso. em sua essên-
cia , 11111 fenómeno especificamente romano. que ema -
na do encontro da roman idade com a cu ltura do
helenismo."" 18

[37] Conclusão
Da observação de todos os pontos ex plicitados nos
parágrafos precedentes que conc lusão devemos tirar, que
caracterização deste tex to c icero niano seremos co mpe li -
dos a delinear? Por outras palavras, o que são as T. D .? Ou
talvez mai s importante seja averiguar o que não são ?
Cícero não é ' ecléctico ·, termo co m uma certa conota-
ção pejorativa , e m vi rtude do princípio que para si adaptou:
a recusa soc rática e m assumir uma posição, dado apenas
saber que nada sabe, acompanhada da argumentação
dialéctica com que refuta a 'verdade ' do s interlocutores,
rec usa que depoi s evoluiu para o cepticismo académico de

218
Heidegger 1947. p. 49 (da tradução portugue sa) .

ILXXXV IJ
Carnéades e para a suspensão do juízo, a EJtOX1Í de Fílon
de Lari ssa, que, na prática de Cícero , se c ifra na procura do
verosímil , o probabile, na sua terminologia .
Deste modo , e m vez de uma permanente hesitação
entre várias posições possíveis 219 , de uma contínu a oscila-
ção entre a Academia, o Pe rípato e o Pó rti co, a filosofia de
Cícero revela uma gra nd e coerênc ia de base , mas também
uma abertura a o utros pontos de vista que , num caso ou
noutro , se podem revelar mais eficazes para o seu propósi-
to: contestar as ' teses ' dos interlocutores. Por princípio , tal
co mo fazia Sócrates , Cícero oc ulta qu al é , para si, a tese
mai s próxima da ' verdade '.
Para além das tentativas de aproximação ao probabile ,
um outro objectivo conduz o di scurso filosófico de Cícero:
a finalidade ' terapê utica' dos se us escritos. Em es pecial
nas T. D ., um dos fins consiste e m libe rtar os interlocuto-
res22º das ' pa ixões da alma' de que sofrem , não para
levá- los a aceitar uma qualque r crença es pecífica , mas sim
para lhes demo nstrar o erro em qu e laboram nas suas
tomadas de posição quanto a traços di stinti vos da condi ção
humana , ta is co mo a morte , o medo , o prazer dos sentidos ,
e as várias formas de desgosto a que o homem está suj e ito .
Por outras palavras, as T. D . devem , até certo ponto, ser
lidas tendo co mo referênc ia As últimas f ronteiras 22 1• Este
tex to proporc iona ao leitor a componente teórica de qu e as
T. D. constituem a vertente prática: a li gação entre os doi s
textos, ligação ' ex terior ' resultante de ambos tere m um
número de li vros idênti co e co m dimensões aproximadas,

219
Até a práti ca . não a teoria dos epi curi stas. que em geral apenas merece o
repúdio da parte de C íce ro. consegue uma vez por outra susc it ar a sua aprovação.
220
Ou •di scípu los ' . como al gun s erudit os lhes chamam .
221
Isto é. o tratado Definihus honoru111 et 111a/oru111.

fLXXXVII]
mas sobretudo 'interior ' pelo conteúdo filosófico, uma vez
que , se o primeiro demonstra a necessidade de sintetizar
em forma teórica o que é a •felicidade ' , o segundo exem-
plifica , pelo recurso a modelos recolhidos do mito , da his-
tória ou da literatura , quais as formas práticas de a
alcançar.
Não podemos, porém , esquecer que o autor das T. D .
é um homem com um currículo de várias décadas , quer
como advogado, quer como político. Mas não podemos
esquecer também que as T. D. começaram a ser redigidas
no auge da ditadura, em princípio vitalícia, de Júli o César,
motivo por que Cícero se via privado da li berdade de ac-
ção, tanto na advocacia, co mo na política. Como advoga-
do, a sua carreira terminara no já lon gínq uo , e fracassado,
processo contra Milão e a nomeação de Pompeio como
cô nsul único , quase o mesmo qu e ditador, e só viria a ser
retomada no período dos "discursos cesarianas", e corno
político só voltaria ao primeiro plano após o assassín io de
César e a luta final em que perdeu a vida . Sucedia, contu-
do , que para Cícero era humilhante deixar de ocupar urna
posição de relevo na república: a actuação no foro e o uso
li vre da palavra no Senado estavam-lhe vedados, pelo que
a composição dos tratados filo sóficos, entre outras, tinha
també m como motivação o desejo de suprir pela cultura ,
como nova forma de digniras, a obscuridade do otium a
que se via lim itado.
Não espanta , por conseguinte, que mai s duas outras
linhas de leitura percorram o texto das T. D .: por um
lado a crítica mais ou menos ve lada ao poder pessoa l do
dictator Júlio César, com a evocação de figuras do período
subsequente ao triunfo sobre Cartago, tais como o seu con-
te rrâneo Mário , além do sempre admirado Cipião Em iliano ;

lLXXXVIII]
por o utro, a crítica ao otium. desta vez o otium se m digni-
ras propug nado pelos seguido res de Epicuro . Cícero resig-
na-se ao afastamen to da política. mas exige conservar
como fi lósofo a dignitas que já fora sua como cônsul.
Pierre Vesperin i, no te rmo da di scussão das moti va-
ções de Cícero na preparação e redacção dos tratados fi lo-
sóficos . escreve:
"{Com esses seus trabalhos / Cícero inl'enta
aquilo a que ainda hoje chamamos 'filosofia ' nas
escolas e nas.faculdades: um corpus de doutrinas , em
especial de doutrinas éticas , registadas em livros ,
que não implicam nenhum.a prática particular, nem
111aneira de l'iver nem rituais religiosos. '' 222

Cerca de duas décadas antes Pierre Hadot tinha publi -


cado um li vro cujo títul o é uma pergunta : Qu 'est-ce que la
philosophie an tique ? 223 , à qual Hadot, em confron to com o
mainstream, responde com a afirmação de que os antigos
pensado res pretendiam que a fi losofia consisti sse exacta-
mente na escolh a de uma forma de vi da, de uma concepção
global do mundo e da determinação de um estil o de con-
duta, tanto na vida privada co mo na co lecti va. Anos ma is
tarde , o mes mo auto r, e m e ntrev ista publicada em 200 1,
reiterava a ideia de que a filo so fia anti ga devia ser tid a , não
co mo o corpus de doutrinas de que fa la Ve perini , mas
antes como uma "maneira de viver " 224 . Na mesma linh a
de pensame nto, também ll setraut Hadot ana li sa a prática
dos seg uidores do esto ic ismo, em parti c ul ar de Séneca , na
tese de que a tarefa do fi lósofo, nas relações com os outros.

2
'" Vesperini 2012. p. 489.
"-' "O que é a filo sofi a anti ga ·,..
220
V. na Bibli ografia Hadot 1995 e Haclot 200 1.

[LXXX IX]
deve ser a do que pode ríamos chamar um "di rector de
consc iê ncias" 225 .
Que d ize r quanto à questão da filosofia de Cícero?
Por um lado te mos de co ntar co m o facto de que a vida
de Cícero, centrad a sobre os deve res do c idadão roman o
educado na tradi ção dos costumes ancestra is, fo i a de um
po líti co que , e mbora interessado pe los estudos fi losóficos
que nunca deixou de prati car, e nve redou pela uita actiua,
e m vez de se consagra r à meditação fi losófica ou à in ves-
ti gação cie ntífi ca co mo fora m os casos de Pl atão e
A ri stóteles. Se sobrevalori zarmos este fac to ver-nos-e mos
constrangidos a negar qu e Cícero fosse um fil ósofo. Mas
te mos de co ntar també m co m este outro fac to: qu e C ícero
nun ca desc urou a fi losofia, qu e se mpre se manteve actu ali -
zado , que manteve co ntactos com numerosos pe nsado res
de várias escolas , que sempre revelou, quer nos di scursos
fore nses que r na co nduta po lít ica , não só o co nhec ime nto
das di ve rsas corre ntes de pe nsa me nto , como a preoc upa-
ção de conciliar necessidades práti cas e va lores intrínsecos
à filosofia . estas co ndições , o que impede que Cícero ,
além de home m de acção , seja també m um fi lósofo?
Se m dú vida qu e Cícero co rre u o ri sco que co rre todo
o fil ósofo 'engagé', co mprometido com as re lações co m
os seus co nc idadãos. C itando Pierre Hadot ,
" O fi lósofo [moderno} experimenta cruelmente
o seu isolamento e a sua impotência num mundo dila -
cerado entre duas inconsciências: a provocada pela
idolatria do dinheiro e a que resulta da miséria e do
sofrimento de biliões de seres humanos . Em tais

225
Cf. 1. Hadot. 1969 . O termo alemão para designar a tarefa do fi lósofo é
Seele11/eiru11g. lit. ·condução das almas·.

[XC]
condições o .filósofo , decididamente, nunca poderá
atingir a serenidade absoluta do sábio . Filosofar
sercí , portanto , so.f1'er também deste isolamento e
desta impotência. " 126

Nas T. D ., Cícero procede a um a ex pe ri ê nc ia: a


di sc ussão com um grupo de jovens amigos sobre algun s
problemas que afli gem o homem co mum, uma prática já
ex istente desde Aristóteles: a schola , oxoÀ~ , que funcio -
nou por cinco di as na vila de Túsc ul o, numa te ntativ a ,
entre outros fins, de esquece r os graves sucessos qu e e ntre-
tanto ocorriam e m Roma . Do isolame nto e da sensação de
impotê ncia , sabe mos be m até qu e ponto Cícero os sofria
pela leitura das cartas e nde reçadas a fami liares e amigos.
Essas cartas também nos informam das fraqueza s e das
hesi tações, da co mplacê ncia co m as pressões , das vaida-
des e dissabores pessoais , julgados po r vezes pelos
estudio sos mode rnos co mo pouco di gno de um cônsul
romano e, sobretudo , de um filósofo de fi liação académica .
Mas à luz das co nsiderações de Hadot cre mos poder di zer,
não só que Cícero te m todo o direi to a ser co nsiderado e
estudado a título de filósofo, co mo é tal vez, no melhor e no
pior, o mai s contemporâneo dos filó sofos antigos.

226
Hadot. 1995. pp . 423-4 .

[XCI]
BIBLIOGRAFIA

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A edição que utilizámos para base da tradução é a indicada
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[CXIJ
DIÁLOGOS EM TÚSCULO

(Tusculanae Disputationes)
LIVRO I

Quando passei a estar a maio r parte do te mpo liberto, 1 1


no todo ou e m parte , das tarefas de advogado 1 e das ob ri -
gações co mo Senador, refu giei- me de alma e coração 2 ,
meu caro Bruto , e m obedi ê ncia aos te us co nselhos , nos
estudos fil osóficos que se mpre guarde i no es pírito ,
embora as circun stâ nc ias de les me desviasse m , e que
agora , após esta longa interrupção , vo lte i a prati car.
E como o estudo teóri co siste mático da sapiê ncia, ou seja,
aquil o a que chamamos " fil osofia", sintetiza e m si as ma-
téri as de todas as artes que se oc upa m da fo rma correcta de
orientarmos a vida, tome i a dec isão de as ex por por esc rito
em latim , não porqu e o conhec imento da fi losofia não
pudesse se r obtido através dos tex tos ou das li ções dos
mestres gregos, mas po rque se mpre pe nse i que os nossos
concidadãos, ou c ri aram po r si sabe res mais profundos do
que os Gregos, ou ape rfe içoaram as teo ri as que deles

1
Lat. defe11sio11w11 laborib11s --c1as ( minha s) ta re fa s com as defesas judiciai s.
De facto. C ícero raramente actu ou nos tribunai s se m se r co mo ad vogado ele
defesa.
2
Esta fra se é susce ptível ele vá rias inte rpre tações res ultantes ela ambi gui -
dade susc itada pe lo advé rbio 11wxi111e ··sobretudo ... que aqui tradu zimos por "'de
a/1110 e corw; âo·· De facto. 111axi111e pode li gar-se are horra111e = --sobretudo gra -
ças aos te us conse lhos··: mas també m pode unir-se a ad haec swdia = ··(refugiei -
me) sob ret udo nestes estudos (filo sófi cos) .. : por nossa parte . e daí a tradução que
ofe recemos. seg uimos a in te rpretação ele Gilcle nharcl. 2007 . pp . 95 -96. que liga
o advérbio a rerruli 111e = ··refu g ie i-me acima ele tudo . a min ha atitude cons istiu
sobretudo em re fug iar- me tota lmen te (na fi losofia)'".

[31
receberam. pe lo me nos aque las que acharam disso mere-
2 cedoras . Em matéria de costumes. regras de co nvivência,
orien tação doméstica e eco nomia fam il iar todos estes são
tem as que nós ind ubitave lme nte tratá mos co m mais c ui da-
do e precisão: e qua nto à admin istração do Estado, os nos-
sos maiores dotaram- na ele in stitu ições e de le is de lo nge
supe ri ores. E que dize r ela arte da guerra, em q ue os Roma-
nos se d istingu ira m não só pe la corage m , como , so bretu-
do, pe la di sciplin a? Qua nto às q uali dades q ue de pe nde m
de dotes natu ra is e não da apre nd izage m . Ro ma não se
compara co m a G réc ia ne m co m qu alq ue r o ut ra nação. Em
que outro povo se e nco ntra. em g rau semelhan te ao dos
nossos ma io res. a seriedade, a co nstâ ncia, a gra ndeza de
es pírito , a ho nesti dade, a leald ade. e m sum a. todas as espé-
3 cies de virtude levadas ao máx imo gra u? Pe la c ultu ra , pelo
níve l que alca nça ram e m todos os gé neros lite rários. a
G récia levava- nos a me lho r: fác il vitó ri a sobre ad ve rsá-
ri os que não o punha m res istê ncia! A manifestação c ultu -
ra l mais ant iga na Grécia é a práti ca da poes ia: ora
Homero e Hesíoclo vive ra m ainda a ntes da fu ndação de
Ro ma. Arquíl oco fo i co nte mpo râ neo de Ró mul o, nós
só nos ini ciámos na poesia basta nte ma is tard e. Lívio'
fez rep rese ntar a sua prime ira peça no ano 51 O de pois
de fundada Roma 4 • no co nsul ado de C. C lá ud io , filh o de
C lá udi o-o-Cego\ e de M. T uditano, um a no a ntes do

' Lívio Androni co . li be rto . de o rige m g rega . foi o mai s a nti go dramaturgo
(a sua prime ira peça foi levada il ce na e m 240 a. C.) a escreve r e faze r re presentar
dramas e m latim imitado, das obras dos trág icos gregos . Fo i ta mbé m o autor do
prime iro poe ma é pi co e m latim. urna tradu ção e m versos , atúrni os da Odisseia
homé ri ca.
• Em -240 (v nota precede nte).
; Trata-se do famo so co nsul ar Á pi o C láudio. dito o Cego . a 4ue 111 deve o seu
nome a Via Ápi a.

141
nasc ime nto de Éni d '; Lívio e ra ma is ve lh o do qu e Pla uto 7
e Névi o 8 . O co nhec ime nto e a ace itação da acti vidade dos II
poetas fo i, po rta nto , tardi a , e mbora estej a registado nas
Orige11s9 que e ra costume nos banque tes os co nvivas
celebrare m os fe itos de gra ndes ho me ns co m acompanha-
mento de Aauti stas; as pa lavras de Catão. co ntudo , dão a
entender que esta práti ca não e ra muito aprec iada, co mo se
vê pe la ce nsura qu e diri ge a M. o bílio r po r te r levado
consigo para a sua pro vínc ia a lg un s poetas ; de fac to. ao
que sabe mos, fez-se aco mpa nh a r po r Énio qu ando partiu
para a Etóli a na qu a lid ade de cô nsul. Que r di zer, qu anto
menos apreço se mostra va pe los poetas, me nos impo rtâ n-
cia se dava ta mbé m à práti ca da poes ia . No e ntanto , a lg un s
deles, dotados de no táve l ta le nto para as artes , não de ixa-
ram de situa r-se numa pos ição di g na e m face da fam a dos
Gregos . ão se rá lóg ico pe nsar que se os co nte mporâneos 4
de Fábio P ícto r'º. ho me m o riundo de uma no bilíss ima

6
Q. Énio nasce u e m Rúdi as. na Ca lábria. e m 23 9 a. C.
7 Pl auto (de se u no me co mple to T Maccius Pla11111s) e ra de o rige m úmbri ca :
a data tradi c io na l <lo se u nasc ime nto é 250 a. C.
8
Cn . év io. poe1a ép ico e d rairníti co. <leve te r nasc id o por volt a de 270
a. C. As <latas re fe re ntes a todos estes poetas arca icos estão lo nge de pode re m
considerar-se seg uras. como obse rva o pró prio C íce ro. Brutus. 72-Tl.
'' Origens: o bra h istó ri ca. de q ue só subs iste m frag me ntos. de M . Pó rc io
Catão-o-Ce nsor (234- 149 a . C.). fig ura impo rta nte da literatura latina arcaica.
de quem se conse rva m ta mbé m a lgu ns frag me ntos de di sc ursos. be m co mo um
tratado de agric ultu ra. co m pleto. O s frag me ntos <la, Orige11.1 pode m le r-,e nu
I .º vol. <la obra Die Friihen Riimischen Historiker. he ra usgege be n. übe rse!Lt und
komment iert vo n !-I a ns Bec k und Uwe Wal te r. Darmstadt. W isse nsc haft liche
Buchgese ll sc haft. 2001. pp . 148-224.
10
C. Fábio Píctor. o riu ndo <l a ari stoc rática famí lia dos Fahii. gan ho u o
cognome Pictor ·•pinto r·· po r te r deco rado as pa redes do temp lo da de usa Sa/11s
··Saúde" . em Ro ma . em 302 a. C. O cognome man teve-se nos se us desce nden tes.
de que m se destaca o ne to Q. Fábio Píctor . o prime iro hi sto riado r rom ano. autor
de Anais, de que subs iste m frag me nt os. So bre C. Fáb io. v. Va lé ri o Máxi mo.
VIII . 14 . 6. Plíni o-o- Ve lho . N .H .. 35 . 19. Q . F.íb io . o ana li sta: v. Die Friihen
R. His10riker (cf. nota precede nte) . 1. pp . 55- 136.

151
fa mília, o ti vessem elog iado pe lo fac to de ser pintor, teri am
aparec ido depois dele muitos Policletos e Parrásios 11 ?
O apreço do públ ico alimenta as vári as artes, a fa ma incita
os homens à sua prática , mas aquela que susc ita a censura
geral nunca alcança projecção . Os Gregos atribuíam o
mais alto nível cultu ra l à mú sica, quer à prática instrumen-
tal 12 , quer ao canto; por isso Epaminondas , que para mim
fo i o mais completo homem que a Grécia produ ziu ,
ganhou fa ma pela arte com que cantava aco mpanhando-se
à cítara 1' ; alguns anos antes, em contra partida. Temístoc les
fo i considerado inculto por se recusar a tocar li ra nos ban-
quetes . O resultado fo i have r na Gréc ia muitos mús icos:
todos estudavam esta arte, e quem era incapaz de praticá-la
passava por ser pessoa de redu zida cultu ra intelectual.
5 Para os Gregos o ramo do saber mais prestigioso era a geo-
metri a, e por isso ninguém gozava de mais fa ma do que os
mate máti cos; nós, <Romanos> , limitámos a prática deste
saber apenas às tarefas utilitári as de medir e de contar.

11 Arti stas gregos (séc. v a. C.). esc ult or e pin tor. respecti va me nte.
11
Lit. ··e) prática dos instrumen tos de corda ". A prefe rê nc ia por este tipo
de instrume nt os de ri va da sua assoc iação a Apo lo. o de us do equi Iíbri o . da j usta
medid a . da refl exão . ao passo qu e os in strume ntos de sopro e de pe rcussão eram
assoc iados ao c ulto de Dio ni so ( Baco) . ca racterizado pe la pa ixão e pe lo excesso
de e ntusiasmo.
11 À fam a de Epam inondas como ge nera l ve io j untar-se. não se sabe be m
qua ndo ne m po r q11e via . a sua ce le brid ade como ho me m de c ultura. também
mu sica l: sobre este po nto v. a observação de Corné li o Ne pos c-·Epa mino ndas··.
1): "Sei be111 q ue a música é considerada inco111patí,·el co111 a personalidade e
a dig11idade dos nossos aristocratas. e a dança é 111es1110 sinal de 11111a dejiciellle
moralidade: 11a Grécia. pelo co11 trcírio. todas estas prcítirns era111 consideradas
11üo só aceitál'eis, co1110 dig 11as de apreço". Fe it a es ta preve nção. Corné li o es-
creve adi ant e que Epa min ondas sabia tocar cíta ra e apre nde u a ca nta r acompa-
nhado po r in strume ntos de corda.

[61
Em co ntrapartida acolhemos de imediato a prática da
oratória; a princípi o os nossos oradores não tinh am grand e
cultura, limitava m-se a possuir o dom da palavra , e só
mais tarde é que a este se juntou a exigência da cultura.
De facto , Galba, Cipião Africano, Lélio eram , segundo a
tradi ção, homens cultos; na geração precedente , Catão já
tinha algum interesse por estes estudos ; enco ntramos
depoi s Lépido , Carbão, os irmãos Gracos , e muitos outros
até ao nosso tempo , oradores suficientemente grandes para
apenas em pouco , ou mesmo em nada ficarem atrás dos
Gregos.
Até ao nosso tempo , contudo, a fi losofia não mereceu
qualquer atenção da parte dos escritores latinos, pelo que
decidi eu resgatá- la e e pô-la em lugar de relevo. É minha
intenção , se de alguma forma fui úti l aos meu s concida-
dãos enq uanto estive ao serviço da república, se r também
útil , se puder, agora que estou retirado. Tenho tanto mai s 6
obrigação de fazer algo nesse se ntido porquanto se diz que
têm aparecido muitos li vros em latim escritos se m grandes
cuidados por indivíduos, sem dúvida muito bem intencio-
nados, mas se m suficiente lastro cultural. É possível suce-
der uma pessoa ter ide ias correctas sobre uma matéria mas
ser incapaz de as exprimir com um estilo adequado; pôr
por escrito os se us pensamentos sem ser capaz de os orde-
nar e ex por com clareza, e sem conseguir aliciar a atenção
do lei tor e tornar- lhe agradável a le itura é atitude própria
de quem não sabe aproveitar nem o tempo nem a escrita.
Por isso mes mo esses autores lêem os se us livros entre si,
em circuito fechado , e não interessam a ninguém se não
àq ueles que desejam praticar também o mesmo desregra-
mento literário . Por esta razão, se porve ntura tenho co ntri -
buído com o meu esforço para dar algum brilho às letras

l7l
latinas , com mai s e mpenho aind a lhes fac ultare i o acesso
às fontes da fi losofi a , donde afin a l també m proveio a mi-
nha fo rmação .
IV 7 Do mesmo modo q ue A ristóteles, ho me m dotado do
maior talento , con hec imentos, e riq ueza de expressão ,
inco modado com a fa ma do retor Isócrates, co meçou a
ensinar aos jovens a fa lar de modo a uni r e loquê ncia e
sabedo ri a , també m eu prete nd o pôr de lado a minha antiga
preoc upação só com a retó ri ca e traba lhar antes nesta área
mai s no bre e rica de ensiname ntos 14 • Sempre pe nsei q ue a
fo rma perfe ita da fi losofia co nsistiri a e m fa lar com a maior
propriedade sobre as matéri as mais profund as usa ndo uma
linguagem maleável e um estil o alic iante. O fac to é que me
entreg ue i a esta práti ca co m tanto e ntusias mo que até já
me atrevo a faze r pa lestras 15 à mane ira grega. Há pouco
tempo , depo is da tu a parti da , co mo ti vesse co mi go em
Túsc ul o um grupo de ami gos , resolvi ex pe rime ntar as
minhas capac idades neste gé nero de exercíc ios. Assim , tal
co mo anti ga mente costumava decla mar os meus di sc ursos
destin ados ao fo ro , téc ni ca que nin gué m e mpregava com
ma io r frequ ênc ia do que eu , passe i ago ra a esta fo rm a de

10
Observe-se o para lelo que Cícero estabe lece e ntre si mesmo e Aristó-
te les: e nqua nto o Estag irita começou pela fil osofia (Lógica. Me,afÍ.\'ica. Ética.
Ciências da Narure:a) e no fi nal da carre ira passou ao est udo da e loquê ncia
(Rerrírica. Poérica) . Cícero faz o perc urso inve r<,o. dedi cand o-se prime iro à
prá ti ca e à teori a da e loquê nc ia. para consagra r-se sobretudo à fi losofia nos seus
últimos anos.
15
.. Palestra .. traduz o vocá bul o o ri g inal schola (gr. OXOÀÍl ). no d uplo se nti-

do do te rmo grego: "esco la" . loca l de e nco nt ro de um mestre e vári os di sc ípu los.
e .. pa lestra . confe rê ncia . lição .. mini strada pe lo mes tre aos di sc ípul os. Na sua
vil a de Tú sc ulo . Cíce ro até já ·'se atreve·' a dar lições de fi losofia a um grupo.
não identi fi cado. de jovens rom anos - os destinatári os destra s li ções por ele mi -
ni stradas. Sobre este te ma v. Gi ldenhard. Paideia Romana , pp . 12 ss.

[8 1
declamação adaptada à idade ava nçada 16 • Ped ia aos ami-
gos que me indi casse m um tema sobre que gostari am de
me ou vir falar , e e m seg uida , ou se ntado, ou caminhando
de um lado para o outro. punha-me a di sse rta r sobre o te ma
proposto. Foi ass im que. durante cinco dias, pronunciei 8
outras tantas ·' li ções" 17 , como lhes chamam os Gregos , que
depoi s passei a esc rito e m també m cinco li vros. As coisas
passavam-se deste modo : quando alguém manifestava
interesse num dete rminado tema , começava por ex primir
a sua op inião sobre ele , e em seguida eu co mbatia essa
opin ião. Como sabes e ra este o procedimento anti ga mente
usado por Sóc rates para refutar os pontos de vista alheios.
Pensava Sócrates que este era o método mai s apropriado
para conseg uir-se a maior aproximação à ve rdade 18 • Para
tornar as minh as di sse rtações mai s agradáveis de ler vou
ex pô-las sob forma dialogada , e não sob forma narrativa .
Foi deste modo , e ntão, que e las ti veram início .
A. 19 - Em me u e nte nder, a morte é um mal. V9

16
Lat. se11ilis ... declC1111C1tio .. (fo rma de ) decl amação apta pa ra ve lhos .. .
Du rante a ca rre ira de advogado C íce ro prati cava a .. dec lamação .. como form a
de ex perimen tar o efe ito que o di sc urso que es ta va a compor e memori za r fari a
sobre o auditóri o: a declamação. portanto. era uma forma de exercíci o. de trei-
no. e tarn bé rn uma técni ca de memori Lação. Agora que já não di scursa no fo ro
passou a urn gé nero diferen te de exe rcíc io: a expos ição de doutrinas fi losóficas.
17
o tex to . sclwlas (v. supra . nota 15 ).
18
Note-se que C ícero não afirma que Sóc rates procurava descobrir a --ve r-
dade... mas sim a mai or ··aprox imação à ve rdade··. ou seja. um a opini ão o mais
poss íve l --veros ímil ... já que a ve rd ade em si é in atin gíve l. esta posição con-
siste o .. ce pticismo académi co··. de ori ge m socráti co-p latóni ca. a aclopt ada por
Cícero. que a recebeu ci o se u mestre Fílon de Larissa.
19
Os mss. das T. O .. sobretudo os mais rece nt es . distin gue m os interl oc ut o-
res dos di álogos co m as duas siglas A. (poss ive lmente para represe nt ar a!t11111111s
.. discípul o··. ou C1d11/esce11s .. jove m.. ). e M. (tal veL para represe ntar Marrns . isto
é. Cícero. ou 111a1;is1er .. mestre··). Nos códi ces mai s an ti gos estas siglas podem
aparecer ocas ional. mas não sistemati ca men te. pelo que os editores em ge ral não
as introclu Le m no tex to. mes mo qu ando as emprega m na tradução. Sobre o se u

191
M .- Para os que j á estão mo rtos ou para os que ainda
hão-de mo rre r?
A . - Para un s e outros.
M .- Se é um mal, é ta mbé m um a infe lic idade .
A . - Se m dú vida .
M .- Por co nseguinte , são infe li zes tanto aque les para
que m a sua hora j á c hego u, co mo aque les que a mo rte ain-
da há-de levar?
A . - É o que eu pe nso .
M .- Não há, po rtanto , nin gué m que não sej a infe li z .
A . - Absolutame nte nin gué m .
M .- uma pa lav ra , para mante rmos a coerê nc ia , de-
vemos pe nsar que todos os ho me ns, j á nascidos o u que
ainda estão para nascer, não ape nas são infe li zes, co mo
são pe rma ne nte me nte infe li zes . De fac to, se tu di zes que
só são infe li zes aqueles que um di a hão-de mo rre r, não
podes exceptuar nin gué m de e ntre os vivos , j á que todos
tê m de mo rrer um di a; ora a mo rte pode ri a pô r-lhes um
termo à infe licidade. M as co mo os mortos ta mbé m são
infe li zes, seg ue-se que nascemos para uma ete rn a infe lici-
dade . Por consequê nc ia se rão infe li zes os que mo rreram
há já ce m mil anos , ou me lho r, são- no todos os ho me ns
nasc idos.
A. - É mes mo isso que e u pe nso .
10 M .- Di z- me um a coisa: não te ns medo , co m ce rteza ,
do que se co nta dos infe rn os, do Cé rbe ro de três cabeças,
dos re mo inhos do Coc ito , da travess ia do Aque ronte , de
Tâ ntal o "a morrer de sede no meio da água que lhe chega

uso. v. Po hle nz. ed .. p. XIV. e nota 2. - Esta primei ra fa la de A . constitui a rese.


refl exo do se u pensa me nto . que M . e m seg uida irá refut ar.

l l O]
ao queixo " 20 ? Ou da sorte "de Sísifo, coberto de suor
com o esforço inútil de empurrar o rochedo " 21 ? Talvez ,
então, dos implacáveis juízes Mi nos e Radamanto? Diante
destes nem L. Crasso nem M. António 22 conseguiriam
defender-te, nem te serviria de nada pedires o auxíli o de
Demóstenes , j á que os juízes são gregos! Terás de defender
tu mesmo a tua causa , e perante a mai or das audiências .
Se calhar é di sto mes mo qu e tens medo , e por isso julgas
que a morte é um mal para a eternidade!
A. - Jul gas-me assim tão tonto que dê crédito a essas
fábul as ?
M . - Então tu não acreditas nestas hi stórias? VI
A. - Com certeza que não!
M .- É pena , com franqu eza o di go !
A. - Posso perguntar porquê?
M .- Porque refutar essas crenças dava-me azo a mos-
trar a minha eloquência.
A. - Quem não o faria em se melhante causa? Que li
dificuldade há em provar a vacuidade dessas fantasia s de
poetas e pintores?
M .- Olha que ho uve filó sofos que escreveram li vros
inteiros para refutar estas fábulas.
A. - Mal fi zeram! Have rá alguém tão idiota qu e se
assuste co m tai s hi stórias?
M. - Vejamos: se não é no mundo infernal que estão
os infeli zes, co nc lui -se que não há nin guém nesse mundo .

20
Ve rso de urn a tragédi a ele autori a desconhec ida (v. Warrnin gton. Re111ains
of O/d Larin . 11. p. 6 10).
21
Verso de a uto ria du vid osa. atribuído dubitati varne nte a Énio po r F. Marx.
em nota a Luc íli o 1375 . e a Luc íli o po r Bec ke r: in serido nos fra gme ntos dúbios
de Lucíli o por Kre nke l. L11ciliu.1 - Satiren . 1399 - 1400 (1 1. p. 734 ).
22
Orado res da geração ante rio r à de C íce ro. q ue os introdu z corno persona-
gens no diál ogo De orarore.

11 1J
A . - É essa a m inh a conv icção .
M . - Então o nde é que estão esses entes q ue tu d izes
se rem infe li zes. que região hab itam e les? É q ue. se eles
ex istem. têm por fo rça de estar em a lgum lado.
A. - O que e u pe nso é que não estão em parte alguma.
M .- Pensas, portanto, que não existem ?
A . - Exacta me nte. e é por isso mes mo que e u os con-
side ro infe li zes, porqu e não ex iste m .
12 M .- Bo m , ac ho que seri a prefe ríve l te res medo do
Cérbero do que dizeres uma coisa tão inco ngrue nte!
A . - Que que res di zer?
M .- Quero di zer que tu afirm as que o mes mo indiví-
du o ex iste e não ex iste ao mes mo te mpo! O que fizes te à
inte ligência? Di zes que um certo indi víduo é um infe li z,
logo press upões que ex iste um indi víduo qu e afi rmas não
ex istir 23 •
A . - Eu não sou estúp ido a ponto de di zer tal co isa.
M .- 0 que pretendes e ntão di zer?
A. - Prete nd o di zer, por exe mpl o, qu e M. Crasso é
in fe li z po rque a morte o sepa ro u da sua e norme fo rtun a, ou
C n. Po mpe io, porque fo i des pojado da sua ime nsa g lóri a,
num a palav ra , são infe li zes todos qu antos de ixa ram de
gozar a lu z do di a .
M .- Vo ltas ao mes mo. Para sere m infe li zes esses
ho mens prec isa m de ex istir. O ra há pouco di zias qu e os
mortos não e xi ste m . Portanto, se não existem , não poderão
ser isto ou aqui lo; logo , não pode m ser infe li zes!

13
A contrad ição está e m qu e A .. quando di z que os mo rt os são infe lizes.
está a pressupor qu e e les ex iste m: mas anterio rmente tinha dito que os mor-
tos são infe li1es precisa111e111e porque 11cio exist e/li . Por o utras palavras. A . não
repara qu e está a usar o mes mo verbo esse co m o duplo va lo r de simp les cópula
predicativa. e de exp ressão da existênc ia.

r121
A. - Talvez ainda não tenha dito bem o que penso.
O que eu co nsi dero o cúm ul o da infelic idade é precisa-
mente já ter existido e deixar de existir .
M .- 0 quê? M aior infe licidade do que nunca te r exis- 13
tido? Vejamos, as pessoas que a inda não nasceram já são
infelizes, porq ue não ex iste m . E nós, qu e de poi s de mor-
rermos havemos de ser infe li zes, já fo mos infeli zes antes
do nascimen to . E u , por mim , não me reco rdo de te r sido
infeli z antes de ter nasc ido. Gostaria de sabe r se tu, caso
tenhas melh@r memória do que e u, te ns alguma recordação
desse tem po .
A . - Estás a fazer po uco de mim , co mo se e u tivesse VII
chamado infe li zes às pessoas ai nda não nasc idas , quando
quem eu co nsidero infeli zes são as pessoas que já mor-
reram .
M. - Press upões, po rta nto , que e las ex istem.
A . - ada di sso, e u considero infe li zes as pessoas que
um di a existiram porque agora já não ex iste m .
M .- Não pe rcebes qu e estás a entrar em contradição?
O que há de mai s contraditó ri o do que afirmar que algué m
que não existe, não ape nas é infeliz , mas é ... seja lá o que
for?! Quando atravessas a porta Capena 24 e conte mpl as os
sepulcros de Calatin o 25, dos Cipiões 26 , dos Servílios , dos
Metelos27 , achas que todos são infe li zes?

24
Porta Capena: um a das portas de Roma. dá acesso à via Ápia.
25
Calatino: no me co mpl eto. A. A1ilius Ca/a1i11 us. figu ra importante da
Roma republicana (cônsu l em 258 e 254 . ce nsor e m 247 a. C.). vári as vezes
mencionad o por C ícero (de /ege agraria), cujo e log io. em verso . c ita em de
se11ec/U1e. 6 1. de finibus. 2. 11 6. O tex to pode le r-se e m Blansdorf. Frog111e11w.
p. 14.
26
O mauso léu dos Cip iões situ ava-se junto à porta Capena. Os di ve rsos
sarcófagos co nse rva m-se hoje nos mu seus do Vaticano.
n Os túmulos de muitas no bres famíl ias ari stocratas sit uavam-se junto às
grandes vias que ligavam Ro ma às de mai s c idades. Junto da via Ápia situavam-
-se muitos de les. e ntre os quai s podemos contempla r o de Cec ília Metela.

[131
A. - Já que insistes tanto na lin guage m , não direi
outra vez que são infelizes, di-los-ei apenas in fe li zes pelo
simples facto de não ex istire m .
M .- Po rtanto , não dizes: "M . Crasso é infeli-::,", mas
so mente "Infeli-::, M . Crasso! "
A . - Exactame nte.
14 M . - Como se, seja qual for a co nstrução, o sujei to do
teu en un c iado não tenh a necessa ri ame nte de ser o u não ser
alguma co isa . Não estudaste nada de lóg ica? Um dos prin-
cípios e le me ntares é este: "toda a proposição (ocorreu-me
agora mes mo este termo para tradu zi r àl;(wµa; se depois
e nco ntrar outro me lhor, usá-lo-ei) , toda a proposição,
di zia eu , ou é verdadeira, ou falsa. Logo, quando tu di zes:
"J,~feli-: , M . Crasso! ", ou queres di ze r: "M . Crasso é infe-
li-::,!" , para que se possa ajuizar se esta proposição é verda-
de ira o u falsa , o u então, e m ri go r, não que res di zer nada.
A . - De acordo , admito que os morto s não sejam infe-
li zes, j á que tu me forças te a confessar28 que a respe ito de
a lg um e nte inex istente não se pode di zer qu e seja infe li z.
Mas quanto a nós? ós, os vivos, não nos sentire mo s infe-
lizes por sa bermos que te mos de morrer? Co mo é possível
ter a lgum a a legri a na vida quando, di a e no ite, so mos
levados a pensa r que mai s tarde o u mai s cedo havemos de
morrer?
VIII 15 M . - Porventura ten s bem a noção do po nto a que re-
baixaste a condi ção humana?
A. - Onde queres chegar?
M .- Aqui : se a morte fosse uma infe li c idade mesmo
para os mortos, nós ficaríamos submetidos nesta vida a um

28
A . como que .. confessa sob tortura .. (note-se a linguagem: .. torturaste-me
para que eu confessasse ... aquilo mes mo que não desejaria admitir de início.

[ 14]
mal ilimitado e eterno . Prese nte me nte veJo ape nas urna
meta, e qu ando a ati ngi rmos nada mais teremos depois a
temer. Ago ra tu estás a parecer- me que conco rdas co m
a máx ima de E pica rrno, autor in te li ge nte , e co m se nt ido de
humor, ou não fosse e le S ic ili a no!
A. - Que máx ima? Não conheço.
M .- Vou te ntar d izê- la e m latim. Sabes que ta nto sou
capaz de usar ex pressões gregas qu ando fa lo latim , co mo
ex pressões latin as q ua ndo fa lo grego.
A. - E fazes be m. M as qu al é afin al a máx ima de
Epicarrno?
M .- Não desejo morrer, mas é-me indiferente a ideia
de estar morto.
A . - Já esto u a le mb rar- me do grego 29 . M as co mo me
obrigaste a admi ti r que os mo rtos não são infe li zes, pros-
seg ue , se te é possível, para vermos se conseg ues persua-
dir-me de qu e não é urna infe li c idade o te rmos de morre r.
M . - Isso não te m a mín ima di fic uld ade. Os me us pro- 16
pósitos são mais impo rtantes.
A. - Co mo não te m a mínima d ific ul dade? E qu ais
são esses te us propósitos mais importa ntes?
M .- U rna vez que o estado após a morte não é ne-
nhum mal, a própria mo rte ta mbé m não se rá um mal, já
que a seg uir a e la vem um te mpo e m que tu reco nheces não
have r mal alg um ; logo , o te rmos de morre r també m não é
um mal, po rqu a nto corres po nde a c hegarmos a um estado
em que admitimos não have r mal algum .
A. - Ex plica isso me lhor, po r favo r. Essas razões são
mais co mpli cadas, e ma is de pressa me faze m ace itar a

29
V. / Presocralici - Tesri111011ia11~e e fra111me111i. da Tolere a Empedocle .
a cura di Alessandro Lami , Mi lano. Bibl ioteca Uni versal e Ri zzo li. 2000 (5 ." ed .:
o tex to grego re produ z o da edição c lássica de Di e ls- Kranz). p . 244 .

l 151
conclu são do que des ta fi car be m co nve nc ido. Mas e m que
cons istem esses propós itos ma is impo rta ntes que d izes se-
re m os te us?
M. - Co ns istem e m de mo nstra r, se fo r capaz , que a
morte não só não é ne nhum mal. co mo, ma is do que isso,
até pode se r um be m .
A. - Não te peço ass im ta nto , mas te re i muito gosto
e m o uvir-te. E a inda que não co nsigas todo o te u o bjec ti-
vo , conseg ui rás pe lo me nos prova r que a mo rte não é um
mal. M as não te inte rrompere i, pre firo ouvir-te faze r uma
ex pos ição seguid a .
17 M. - E se e u te fi ze r a lgum a pe rgunta, não res-
po nde rás ?
A . - Se ria má-c ri ação não o faze r, mas , a me nos que
sej a necessári o, prefiro que não me faças pe rguntas .
IX M .- Far-te-ei a vo ntade , e desenvo lve re i o te ma que
desejas co mo fo r ca paz, e não co mo se fosse Apo lo Pítico
a debita r ve rdades seg uras e imutáve is; as minh as pa lavras
serão as de um s imples e vul gar mortal qu e proc ura chegar
a co nc lusões co m algum gra u de probabilidade 10 . ão
tenh o me ios qu e me pe rmita m ir mais alé m daquilo
que me parece ser a ve rosimilhança. Ve rdades seguras,
di gam -nas aque les que se gabam de as pode re m conhece r
e se conside ram a si mes mo sá bi os 31 .

-'° Cíce ro deix a aqui bem vi ncado o se u cepti c ismo académico como di scí-
pulo de Fílon .
-'
1
A iron ia visa. naturalme nte . as d uas grandes esco las fi losóficas dogmáti -
cas. o Estoicis mo (que admite ser possíve l conhece r a verdade. e mbora os seus
seg uidores se não reconheça m a s i mes mos co mo sábios) e o Ep ic uri smo (que
ad mite sabe r a verdade. e vê e m Epicuro o sáb io ideal ). Cícero co ntenta-se com
a probabilid ade (que . no e ntanto . admite grau s).

l 16]
A. - Faz como e nte nderes. Pela nossa parte 32 estare-
mos prontos a esc utar-te.
M . -Antes de mais, e apesar de a morte aparentar ser 18
algo de muito bem co nhecido, convé m examin ar o que de
facto ela é . Há autores que definem a morte como a sepa-
ração da alma e do corpo; para o utros não há separação
alguma, alma e corpo perecem ao mesmo tempo, e a alma
ex tingue-se ainda unid a ao corpo . De en tre os que defen-
dem a se paração da alma , un s pe nsam que e la se dissipa
imediatamente , outros que permanece ainda durante um
certo tempo, outros que permanece sem pre. Há também
grande divergê nc ia quanto ao proble ma do que é a alma ,
onde reside e do nde pro vé m. Para un s a alma parece
identificar-se com o "coração" 33 , e daí ce rtas ex pressões
linguísticas , tais como excordes " de fraco entendimento" ,
uecordes "sem coração, medrosos", concordes " un âni-
mes", ou o cognome Corcu lum "de grande coração, inteli -
gente" dado ao sagaz Cip ião Nasica, que foi du as vezes
cônsul , ou o e píteto dado ao
arguto Élio Sexto, esse tão cordato 14 herói35 •

12
Conforme Cícero esc reve no § 7. estas .. 1ições .. eram mini stradas por e le
a um grupo de co111p/11res/ú111iliares. Admitimos. no e ntanto . que as rép li cas de
A. são indi viduai s , pelo que na tradução A . fala se mpre na 1." pessoa do sing ular.
Desta vez . porém , A . manife sta a di spos ição do grupo de seguir atentamente as
palavras de M .. e por isso mesmo usámos a 1." pessoa cio plural.
11
'·Coração ... e m lat im cor(d)- . vocábu lo de que . com adjun ção ele diversos
prefixos. se formaram os acljecti vos. ou e xpressões acljectivais. enume rados por
Cícero.
14
· Em latim egregie corda1 us (< co rd -) . i. e .... mag nânimo•·, o u. co mo se
dizia de Gandhi . ··mahatma .. ): e m portu guês corre nte o termo cordaw adquiriu
um sentido d istinto.
11
· Verso dos Anais ele Énio (v. 329 Sku tsch ). Este ve rso é citado muit as
vezes por Cícero (alé m do prese nte passo . també m em de rep . 1. 30: de oral . 1.
198) e outros auto res .

[ 17J
19 Para Empédocles a alma é o sangue que enche o cora-
ção; segundo outros autores, é uma parte do cérebro que
tem a hegemonia da alma; outros entendem que a alma
nem é o coração , nem uma certa parte do cérebro , mas
pensam que coração e cérebro não passam dos órgãos em
que está localizada a alma . Há quem entenda, como nós , os
Romanos 36 , que a alma é uma espéc ie de " sopro" , confor-
me sugerem os vocábulos latinos animus "alma" e anima
"sopro , respiração" 37 , o uso de expressões como agere, ou
effiare animam no sentido de " mo rrer, exalar o último sus-
piro", (pessoas ) " animadas" 38 , o u " cheias de ânimo" 39 ,
" co m as me lhores intenções" 4º; de resto , animus deriva de
anima41 • Para o estóico Ze não a alma é apenas fogo .
X Estas interpretações que acabei de enumerar - coração ,
cérebro , sopro vital, fogo - são as defendidas pe las várias
escolas; mas há o utras ainda , de pensadores indi vid uais.
Tal como os autores mais antigos42 , também mai s recente-
mente Aristóxeno 43 , que era músico a lém de fi lósofo , pen-

36
Com esta referênc ia a .. nós. os Romanos•· Cícero dá voz à sua ideia de
uma "' pro pe nsão fil osófi ca .. ro mana . a nte ri or à influê ncia grega . e cri stali zada em
pormenores de natureza lin guísti ca (v. G ilde nh ard . Paideia Romana. pp . 237 -8).
' 7 De anima no senti do de .. sopro vital.. de ri va an imal .. ser vivo. animai•·. etc.
38
Lat. animosi.
39
Lat. bene a11i111ati.
"º Lat. ex an imi sententia. - Os vocábul os o u ex pressões cit ados por Cícero
tê m a sua o ri gem e m anima '·res pi ração. sopro vital... o u animas "alm a.. , donde
pro vêm os adjecti vos a11i111osus, a11i111atus. etc. O esse nc ial desta arg umentação
de Cíce ro é a relação ex iste nte e ntre a11i111a e animus , ou seja. a re lação e ntre o
se nti do físico de " res piração .. e o se ntido tran scende nte ele .. alma··. Sobre estes
vocábulos e seus de ri vados v. o art. a11i111a , ae; animus, i e m Ernout -Me ill et. Dic.
Étymol. de la/. /a tine .
41
Esta etimolog ia de Cícero não é ex acta: segundo Erno ut -Meill et. s.u
anima, os dois termos são simultâneos.
41
Ente nda-se: os pré-soc ráti cos.
43
Ari stóxe no de Tare nto. di scípul o de Ari stóteles (séc . 1v a . C .), foi autor
de um cé lebre e muito influente Tratado de harmonia. V. A . Béli s, Aristoxene de
Tarenre et Aristote.

[ 18]
sava qu e a a lm a é uma espécie de ten são que se verifica no
corpo, seme lha nte à afi nação na mú sica voca l ou instru -
mental a que se c ham a ágµov(a 44 : assim, decorre ntes da
natureza e da forma do co rpo na sua totalidade seriam os
seus vári os movi me ntos, seme lhantes aos so ns emitidos
no canto. Ari stóxeno manteve-se se mpre de ntro do se u 20
domínio próp ri o 45 , m as mesmo ass im ex primiu uma ideia
que muito antes dele j á fora e nunciada e ex plicada por
Platão 46 . Segundo Xenócrates 4 7 , a a lma não possuía forma ,
quer di ze r, não era uma es pécie de corpo; dizia qu e era um
número, porque a po tê ncia do número , como já anterior-
mente afirmara Pitágoras, era a maio r ex istente na natureza.
O seu mestre 48 Platão dav a à a lma três partes, das quai s
a dominante, a razão, estava locali zada na cabeça , como se
esta fosse uma es péc ie de c idade la; as o utras duas, a e la s u-
bordinadas, a cóle ra e o desej o, colocou-as em lu gares se pa-
rados, a cólera no peito, o desejo po r baixo do di afrag ma .
Dicearco 49 , por seu lado , na pre lecção que rea lizou e m 21
Corinto e de po is re latou e m três livros, narra no primeiro
os pareceres dos vários eruditos que tomaram parte na
di scussão; nos doi s re stante s põe em ce na um certo
Ferécrates, um ancião da Ftió tide 50 , descendente , seg undo
ele , de Deucalião 51 , que expõe a te se seg uinte: não existe

•• Han11011ía: aq ui . a "concórdia" entre si das vári as notas que for mam urn
acorde.
5
• Ou seja. a teo ria mu sical.
6
" V. Platão. Féc/011 . 86 A e ss.
7
• Escolarca da Academia na seg unda metade do séc. IV a. C.
8
" "Seu mestre" . e ntenda-se: de Xe nócrates.
49
Di cípul o de Aristóte les (séc . 11 1 a. C.) .
50
Reg ião do No rte da G réc ia.
51
Segundo o mi to . Deu ca li ão e a mulhe r. Pirra . fora m os do is úni cos
sobreviventes do di lú vio decre tado pelos de uses para puni ção da humanidade
(v. Ovídio , Mew11101foses. 1. 324-4 15 . - Di zer que Fe récrates era descendente de
Deucalião equi va le. po rtant o. a atribuir-lhe um a g rande anti guidade.

[ 19J
uma coisa cha mada "alma", esta palavra é po r co mpl eto
destitu ída de referente, é sem qu alquer razão q ue se di z
que os animais são seres "anim ados", ne m no ho me m nem
no a nimal irrac io nal há "a lma" 52 ne m "sopro vital" 53, e
toda aquela e ne rgia que nos permite faze r ou se ntir alguma
coisa está di sse min ada por igual e m todos os co rpos vivos,
é in separáve l do corpo , um a vez qu e carece de substâ ncia,
não ex iste outra coisa para alé m do corpo un o e s imples,
formado de modo a ser capaz de acção e de se nsação
graças à sua constitui ção natu ra l.
22 Ari stóte les, de longe o mais impo rtante fi lósofo (sem-
pre co m a exce pção de Pl atão !), que r pe lo tale nto, quer
pe la capacidade de trabalho , de po is de faze r sua a tradi cio-
nal teo ria dos quatro e le me ntos 54 dos qu ais se o ri g inam
todos os e ntes , acrescenta uma quinta natureza da qual
provém a mente, uma vez qu e pe nsar, prever, apre nder
e e nsin ar, descobrir algo de novo e me mo ri zar tão nume-
rosos co nhecime ntos , amar e odiar, desejar e te mer,
angusti ar-se e alegrar-se , todas estas capac idades e outras
seme lhantes pe nsa ele que não res ide m e m ne nhum dos
qu atro e le me ntos; postul a , e ntão, um quinto e le mento,
carece nte de nome, e ass im passa a da r à alma o nome
novo de EVÔ EÀÉXHa, co mo se se tratasse de um mov imen-
to co ntínuo e pe re ne 55 .

5
~ Lat. a11i111us.
S) Lat. anima.
5
~ Os quatro ele mentos tradicionai s. pelo menos desde Empédocles (Ari s-

tóteles. Merq(ísica. 985 a 29-33). o fogo. o ar. a água e a terra .


55
Há aqui uma ce11a confu são da pa11e de Cícero: o vocábul o Évô1),ÉXEJa
.. continu idade. persistê nc ia .. não ocorre nu nca nas obras conservadas de Aris-
tóteles. que . pe lo cont rári o. usa co m basta nte frequênc ia o termo Év,EÀÉXEta
.. rea lidade perfe ita , acto .. (por oposição a b ú vaµLç .. potênc ia .. ). A ideia de
·'continuidade .. pressupõe a de .. movime nto .. (.. continuar a fa zer algo .. ): ora
Ari stóteles. pe lo con trário. não atribui qual que r mov imento à alma.

120]
A menos que me escape algum a, são praticamen te es- XI
tas as opiniões que têm sido e mitid as acerca da al ma .
Passo por alto De mócrito, homem sem dúvida inteligente,
mas que concebeu a alma co mo o resultado do enco ntro
fortuito dos seus co rpú sc ul os li ge iros e esfé ricos56 ; de
facto , para os ato mi stas nada há que não seja res ultante
da multid ão dos átomos.
Qual destas teorias corres po nderá à ve rd ade ? Tal vez 23
algum de us o possa dec idir ! A questão impo rtante é saber
qual delas é a mais verosím il. Po is be m , o que faze mos
agora? Vamos dec idir qual esco lher en tre estas opin iões ,
ou vo ltamos ao nosso propósito in ic ial?
A. - Eu, po r mim , prefe riri a ambas as escolhas, se
fos se possível, mas vejo qu e é difíc il tratar das dua s ao
mesmo te mpo . Po rtanto, se podemos li vrar-nos do medo
da morte mes mo se m decidir esta última questão , e ntão
façamo -lo . Se tal não for possível se m esclarecer o proble-
ma da alma , e ntão trate mos deste ponto e guarde mos o
outro para outra ocas ião.
M . - Percebo a tua preferê nc ia, e ac ho que é a mai s
sensata . De fac to , sej a qual fo r a verd ade ira de e ntre as
opiniões <acerca da alma> que e nuncie i, a razão conseguirá
demon strar que a morte, o u não é um mal, ou pode rá mes-
mo ser um be m . Se a alma fo r o coração, ou o sangue , ou o 24
cérebro , então , co mo qu alqu er destes é um corpo, perecerá
juntamente com o resto do corpo; se for um sopro , o mais
ce1to é di ssipar-se; se for fogo , ex tinguir-se-á; se for a har-
monia de Aristóxeno. cessará. E que dize r de Dicearco ,

56
Demóc rito. j unt ame nte com Le uc ipo. a qu e m ve m em ge ra l assoc iado.
fo i o criador do ato m ismo (os " corp1í sc ul os .. referidos po r Cícero). teori a de po is
retomada por Epicu ro e os se us seg uido res. co mo o poeta latino Lucrécio.

121 1
para quem a alma si mplesmente não existe? De acordo
com todas estas opiniões o período após a morte é por
completo indiferente a q uem quer que seja: a capac idade
de sentir perde-se em simu ltâneo com a vi da; e q uando não
temos sensações tudo ser-nos-á de todo indife re nte . As
opin iões dos demais pensadores dão-te a esperança, se por
acaso is o te der prazer, de que as almas, quando se sepa-
rare m dos corpos, vão para o céu. como se este fosse a sua
morada.
A . - Si m , dá-me prazer, isso é o que mais gostaria
que fosse verd ade, e, se o não for, gostari a que me persua-
d isse m do co ntrário.
M . - Se é ass im , para qu e prec isas do meu auxílio?
Poderei eu ser mais e loqu ente do que Platão? Lê com aten-
ção de um a po nta à outra o di álogo de Pl atão ace rca da
alma57 : nada podes encontrar que seja mais persuasivo.
A . - Já o fiz, mais do qu e um a vez. Mas sem eu saber
porqu ê, enqu anto estou a le r, co ncordo co m o que leio,
mas qu ando pouso o liv ro e me ponh o a meditar co mi go
mes mo acerca da imortalidade da alma , toda a minh a con-
cordância se esva i.
25 M . - Vejamos, <uma destas propos ições> tu admites:
ou que as almas continu am a existir depo is da mo rte, ou
que perece m também co m a mo1te?
A . - C laro que s im .
M . - Se continu arem a ex istir, o qu e conc lui s?
A . - Concluo qu e <os homens> são fe li zes .
M . - E se perecerem?

57
Trata-se do já mencionado Fédon, no qual Platão procura demo nstrar a
exi stê ncia e a imortalidade da alma.

(22]
A. - Não serão infe lizes, uma vez que deixam de
existir. Já há pouco conseg ui ste que eu aceitasse este
postul ado.
M. - De que modo, po rta nto , o u po r que razão a
morte te parece um mal, dado que e la , ou nos to rna fe li zes
caso as almas permaneça m e m vi da , o u não faz de nós
desgraçados po r nada sentirmos?
A . - Dese nvo lve e m prime iro lugar, se isso não te XII 26
custar, o te ma da sobrev ivê nc ia da alma de po is da morte ;
ca o o não co ns igas, po is ta l não é tarefa fáci l, pro va que a
morte é tudo me nos um mal. Sabes , o que e u receio que
seja um mal não é ta nto o fac to de não te rmos se nsações.
mas sim a necess idade abso luta de as de ixarmos de ter.
M . - Pode mos reco rre r a teste munh as autori zadas
para comp rovar a teori a que tu gostari as que fo sse verda-
de, coisa que e m todos os nossos juízos deve , e costuma,
ser da mai or impo rtânc ia , sobretudo aos autores mais anti -
gos, que , por estare m ma is pró ximos ainda das nossas ori -
gens di vinas , tinh a m talvez mais fac ilidade e m di sce rnir a
verdade.
Um dado que ace itavam todos os povos anti gos, aque- 27
les a que m É ni o c ha ma "primitivos " 58 , e ra a pe rma nê ncia
das sensações a pós a mo rte e a cre nça e m que o ho me m
não era tão co mpl etame nte destru ído que de le nada mais
restava; este po rme no r, juntame nte co m muitos o utros.

58
Énio. nos A1111a/es . v. 22 Skutsc h. esc reveu o verso quam (sei !. rerra)
prisci casei populi 1e1111ere Larini .. (a terra que ) oc upava m os an ti gos primit ivos
povos Latinos ... Note-se que Cícero re produ z os do is adjectivos prese ntes no
verso de Énio. prisci e casei --a nt igos e primit ivos ... O verso de Énio é també m
citado por Varrão no De Li11gua La1i11a . V I1. 28 . que a propós ito informa do facto
de cascus ser um vocábu lo da lín gua osca . com o sign ificado de --velho. ant igo ...
ponanto sinónimo de priscu.,·.

[231
podemos ficar a conhecê-lo a pa11ir do di reito pontifíc io e
dos ri tos ligados aos fu nerais, ri tos que esses homens,
dotados de superior inte ligência, não teriam conservado
com tanto rigor, nem te ri am condenado a sua violação de
uma fo rma tão inexoráve l se não ti vessem gravado nas
mentes que a morte não é uma aniquil ação rad ica l e des-
tru tiva , mas sim uma espéc ie de migração , de mudança de
fo rma de vida , a qual, aos homens e mulheres superiores ,
costumava guiá-l os até ao céu, aos restantes retinha-os no
28 solo e aí os deixava permanecer. Por isso é que, na crença
do povo ro mano, "Rómulo vive para sempre no céu em
companhia dos deuses " 59 , confo rme escreveu Énio em
obed iência à trad ição; por isso é que , entre os Gregos ,
donde a crença chegou até nós e de nós se propagou até ao
Oceano60 , Hércules é tido co mo um deus tão poderoso e
tão pronto a ajudar; e também Líbero 61 , fi lho de Sémele62 ,
e os gémeos fi lhos de Tíndard'\ que não só ajudaram o
povo Romano a obter a vitória numa batalha mas , seg undo
se di z, dela vieram dar notícia . Mais ainda: lno, a fi lha
de Cadmo, chamada pelos Gregos J\cu x o0Éa 64, não é
adorada por nós sob o nome de Matuta 65 ? Não é verdade

59
Éni o . A1111ales.v. 110 Skutsch .
60
O oceano Atl â nti co. onde ficam as "Co lun as ele Hérc ul es" (Estre ito de
Gibralta r).
61
Anti ga cli vinclacle itá li ca . que ve io a se r identifi cada co m o deus grego
Dioniso (Baco) .
62
Os primiti vos deu ses i1<íli cos não tinh a m. e m gera l. urna :í rvore ge nea-
lóg ica à mane ira cios gregos: quando Cícero esc reve " Líbe ro . filh o ele Sérnele".
está a atribuir-lhe uma genea log ia que. e m ri gor. apenas di z respe ito a Di oni so
61
Castor e Pó lux . també m conhec idos co mo "Diosc uros" . lit. "filhos de
Zeu s". o q ue fa zia de les irmãos ele Helena. e ram protectores cios navegantes
(cf. Ho rác io. Odes. 1. 3).
6-1 Leukorh éa. lit. a "de usa branca". dece rto por ser u ma cliv in clacle marinha.
65
De usa prim it iva romana , ligada ao cresc ime nto e à protecção ela infância.
mai s tarde ide ntifi cada com lno.

[24]
que praticame nte o céu inteiro , e por aq ui me detenho , está
cheio de deuses de origem humana?
Se eu qui sesse ir reb uscar os tempos mai s remotos e XIII 29
recolher as informações que sobre e les transmite m os
escritores gregos, descobrir-se-ia que os deu ses co nsidera-
dos co mo a " aristocracia di vina" partiram daqui , de entre
nós , e podem agora e ncontrar-se no céu . Procura também
66

saber de que m são os túmulos que podem ver-se na Grécia;


recorda-te , já qu e foste neles inic iado , daquilo que nos é
transmitido nos mi sté ri os : pode rás então compreender até
que ponto estas crenças estão difundidas . Sucede , porém ,
que nesses tempos os homens ainda não tinh am começado
a estudar os fenómeno s naturais, estudo que só muitos
anos depoi s começou a ser praticado , limitavam-se a ace i-
tar como verdade aq uil o que a natureza lhes ugeria, não
conheciam as razões de se r nem as causas dos fenómenos,
deixavam-se persuadi r por meras aparências, especial-
mente por visões nocturnas, que os levavam a aceitar que
os mortos continuavam a viver.
Atendendo a que a comp rov ação mais segura do 30
motivo por que nós acreditamos nos deuses parece ser o
facto de não existir ne nhum povo tão selvagem, nenhum
de tal modo bárbaro cuj a mente não es teja impregnada da
crença nos deuses (muitos há que pensam dos deuses
coisas abom inávei s, o que costuma se r consequência de
costumes depravados , mas todos acred itam no poder
da natureza di vina , o que não sucede e m virtude de alg uma

66
Talvez alusão aos doi s hexâmetros eni anos ( Éni o. A 1111a/es , vv. 240-24 1
Skutsc h) em que o poeta ac umul ou os nomes de se is deusas. seg ui dos dos nomes
de seis deuses. formando um total de doze correspondente aos chamados dii
co11se11res. os mai s impo rt antes do panteão roma no. Cf. o comentário de Skutsch
ad locum.

i25J
combin ação, de algum acordo entre popul ações, já que
essa crença se apo ia em trad ições, e não e m le is; ora
qu ando sobre um dado facto existe um co nse nso entre
todos os povos devemos pensar estar e m prese nça de uma
le i da natureza) - quem há, afi na l, cujo primeiro moti vo
para chorar a morte dos seus não sej a o pe nsar que eles
estão pri vados do que a vida tem de bo m ? Elimina esta
67

crença e porás fim ao luto. Nin guém sofre para causar


do r a si mes mo; talvez as pessoas si ntam pena, sintam
angústi a, mas aque las lamentações dilaceradas e o pranto
do loroso decorrem do facto de j ul garmos qu e o nosso ente
querido fico u pri vado das coisas agradáve is da vida e tem
consciênc ia di sso. Só que este nosso se ntimento é causado
pe la natureza, não pe la razão nem pe la fil o o fi a.
XI V 3I Mas o princ ipal argumento está em que é a própria
natureza que, tac itamente, se pronuncia so bre a imortali -
dade das almas, porqu anto é um proble ma qu e a todos
preocupa, sobretudo aquilo que acontecerá após a morte.
"Ele está a plantar árvores que só darão fru to noutro
século", como di z Estác io nos Companheiros de juvenru-
de68: co m que ideia o faz , senão po r saber que os séculos
futuro s também lhe di zem respeito 69 ? Um agri cultor cons-
c ienc ioso plantará árvores cuj os frutos e le nun ca verá:

67
Este parágrafo não é propri amen te um modelo de clareza. já que Cícero
parece considerar o consenso universa l co mo uma prova - uma " lei da nature-
za·· - da existê ncia do deu ses . para depoi s re tomar o raciocínio anterior e dizer
que o repúdi o da morte é consequência de uma fa lsa op ini ão sobre a sua real
natureza.
68
Cecílio Estácio. comediógrafo latino (séc. 111 a. C.) . de cujas comédias
apenas subsiste m frag mentos. Este verso dos Companh eim .1· de juventude (Sy-
nephebi) pode ler-se em Warm ingto n. Remains, 1. p . 538 . Este mesmo verso é
também cit ado por Cíce ro no De senecrure. 24.
69
A isto chama-se a responsabilidade intergeracional.

f26]
como não há-de um bom cidadão semear leis, institu ições ,
normas constitucionais? Que out ro significado tem a pro-
criação de fi lhos, a conservação do nome de fam íli a, a
adopção de desce ndentes, as disposições testamentárias ,
os monumentos e os elogios sepulcrais 70 , senão que nós
nos preocupamos também com o fu tu ro?
Porventu ra du vidas que devamos fo rmar o ideal da 32
espécie humana a partir dos melhores exemplos dessa na-
tureza? E que melhor modelo se pode encontra r na es pécie
humana senão o daqueles homens que se consideram nas-
cidos para aj udar, proteger, preservar a vida dos outros?
Hércules asce nde u ao mundo dos deuses: nunca o teri a
fe ito se, enquanto vivia entre os mortais, não ti vesse esco-
lhido para si esse caminho. Mas estes fac tos já são antigos , XV
e consagrados pelo culto re li gioso . Então e nesta nossa
repúbli ca não houve tantos e tão va lorosos homens que
sacri ficara m a vida por ela? Com que fi m o fize ram ? Foi
para ver o seu nome ex tinguir-se ao mesmo tempo que a
vida? inguém se entrega à morte pela pátria senão por ter
uma grande esperança na imortalid ade. Temístocles pode-
ria ter gozado de uma vida tranquil a, Epaminondas tam- 33
bém e, para não me limitar a citar exemp los antigos e
trangeiros, também eu o poderia ter fe ito. No entanto, nas
nossas mentes está enraizado como que um presság io do
futuro, e este é tanto mais intenso e faz-se sentir tanto
mais faci lme nte quanto mais talentosos os homens e mais
elevadas as suas aimas! Se não ex isti sse tal presságio
quem seri a tão louco que passasse a vida em tra-
balhos e em perigos? Isto digo eu dos estadi stas: então e os 34

70
São be m conhecidos os e logios gravados nos túmu los de famílias nob res.
como a dos C ipi ões. que se con se rvam hoje nos Mu se us do Vaticano.

1271
poetas , po rventu ra não desejam que o seu nome pe rma-
neça fa moso depo is de morrere m? Que que re m d ize r estes
ve rsos:
Contemplai , cidadâos , esta imagem do 1•elho É11 io:
Ele cantou os.feitos ilusrres dos 1·ossos maiores 7 1?

O poeta pede a fa ma co mo recompe nsa àque les ho mens


cuj os pa is e le torn ara famosos 72 • O mes mo Énio esc reveu:
Ni11[!,u ém m e honre co111 lágrimas ...
Porquê? Esvoaço. 1•i1 •0, nos lábios das pessoas! 73

E não só os poetas . També m os esc ultores que re m fica r


fa mosos de poi s de mortos . ão é ve rdade que Fídias
es boçou o seu próprio retrato no esc udo de Mine rva 74, já
qu e não lhe era líc ito grava r o no me ne le 75 ? E os nossos
fi lósofos, não é verd ade q ue, mesmo nos li vros que escre-
ve m so bre o des prezo da glóri a, de ixam in sc ritos os
no mes 76 ?

71
Ep it áfio composto por Énio em sua prcípr ia ho nra (v. Warm in gton. Re-
111ains. 1. p. 402).
72
Entre e les C ipi ão Africa no 1. Por isso consta que os C ipiões co locaram
no mo nume nto se pulcra l da família a estátua de Én io : "'Énio f!0 : 011 da w11i:ade
do prim eiro ICipiiío/ Africano. e por i.1so consfll que a estátua do poerafoi co-
locada ,w sepulcro dos Cipiiies '' (Cícero. Pro Archia. 22).
73
Este seg undo e pi gra ma de Éni o (Wa rming ton. ihide111 ) é citado aqui
mutil ado. mas as pa lavras 4ue fa lta m e ncontram-se no De senect111e 73: .. 11e111
aco111panhe co111pranro o 111e11 / f uneral .
70
a estátua de Atena (M ine rva) deste escultor co locada na Ac rópo le a
de usa é re presentada como gue rre ira , a rmad a de la nça e esc ud o.
75
Em Olímpia . nas ruína s de um ed ifício identifi cado rnmo te ndo sido a
ofic in a de Fídias e ncontro u-se o fund o de uma oi11ok/11íê e m que pode le r-se. em
escr it a a rcai ca e le tras maiúsc ul as. a ex pressão: <J) E ló IO E l/ M 1 "(cu ) pertenço
a Fídias". A peça e ncontra-se no Mu se u ele O límpi a .
76
Ta l fo i o caso do próprio Cícero. 4ue ta mbé m escreveu um trat ado sobre
a gló ri a (De gloria ) de que ape nas resta m fra g me ntos.

1281
Ora se o co nsenso ge ral é a expressão da natureza , e 35
se todos os homens o nde quer que vivam estão de acordo
em que ex iste a lgo que diz respeito aos mortos, nós deve-
remos partilh ar a mesma opi ni ão; e se pensarmos que os
homens c ujo espírito se di stin gu iu pela inteligência e pelo
va lor moral co nhece m me lhor a essê nc ia da natureza , pelo
próprio facto de sere m dotados de um a natureza supe ri or,
então, dado que o me lhor cidadão é o que melhor traba lha
para a posteridade , é verosími l que ex ista alg uma coisa de
que ele guarde a se nsação mesmo depoi s da morte.
Assim co mo nós pe nsamos, por natureza, que os XVI 36
deuses existem, e co nh ece mos através da razão as suas
qualidades, assim ta mbé m acreditamos na perma nê nc ia
das almas e m virtude do co nse nso uni ve rsal, mas deve mos
aprender através da razão em qu e local perma nece m
e quai s as suas qual idades. A ig no râ nci a destes tópicos é
a responsáve l pela ficção do mundo infe rnal e dos seus
terrores, que tu , não se m razão, me pareces desprezar.
Co mo os cadáveres caía m por terra e era m depois cobe rtos
de terra, facto que origino u o ve rbo '"e nterrar" 77 , as pessoas
imaginavam qu e os mortos levavam o resto da vida
debai xo do c hão, opini ão esta de qu e deco rre ram grandes
medos, aume ntados ainda pelas descrições dos poetas.
Os es pectác ul os teatrai s, a que ass iste m mulheres e
crianças, pro voca m o terro r quando se esc utam palavras
como estas:

77
O texto original aprese nta um jogo de pala vras corresponden te ao que
usamos na ve r;,ão portuguesa: a tradu ção Iit erai ,e ria: ··o., corpos cae111 por ter-
ra, e seio depois cobertos de humu s ( = terra ), do11de deri1·011 o \"l!rho hum ari ( =
enterrar )·· . Deste verbo latino h11111ari ex iste m e m português i11w11ar .. e nterra r··
e e.r11111or .. dese nterrar .. .

l29 I
Eis-me aqui, vindo a custo do Aqueronte por via alta
[e árdua,
Grutas cheias de rochas agudas amontoadas , prestes
la cair,
Enormes, cobertas da espessa escuridão que reina 110
linferno 78 .

A que ponto chega o absurdo - que eu pensava já


ser coisa desaparecida! -, que as pessoas mesmo sabe ndo
que os corpos são cremados continuam a imag inar que
se passam no inferno cenas destas, impossíve is de aconte-
cere m e de se e ntenderem sem a permanência dos corpos.
Não co nseg ue m imaginar mentalmente que as almas
possam ter uma vida autónoma, necessi tav a m de lhes atri-
buir uma forma, uma figura qualquer. Daqui provêm os
vÉxma, aparições de mortos , em Homero 79 , be m como
os v1:xuoµavtEia 80 , as cons ultas aos mortos que o meu
amigo Ápio fazia, e ainda o lago Averno, que fica na minha
vizinhança 8 1,

78
Versos de u111a tragédi a não identifi cada . U111a pe rsonage 111 . também não
ide ntifi cada. surge e m ce na vinda do mundo infe rn a l. Al gumas tragédia s apre-
se nta111 a e ntrada e111 ce na de espectros: por exe mpl o a Hécuba ele Eurípides
co meça com a apari ção de Po liclo ro " Eis-m e aqui , vi11do do mundo dos mor-
ros, saindo as portas / das trevas, onde Hades habita à 111arge111 dos restantes
deuses . No teatro ele Séneca també m fi gura111 a lg un s espectros: o de Tiestes no
Agamémnon , o de T ântal o no Tiestes. o ele Agrip in a na prete xta Octá l'ia. Mais
modername nt e. recorde-se a apari ção do espectro do pa i de Ha ml et na homóni -
ma tragédia ele Shakespeare .
79
O títul o véxuw é atribuído ao C anto XI da Odisseia . durante o qual
di versas al111as de mortos (Aga mé mno n . Áj ax. Aqu iles . .. ) aparecem a Uli sses.
que co 111 eles troca a lg umas palavras.
80
Locai s o nde se e voca vam as almas cios mortos a fi111 ele lhes porem
perguntas sobre o futuro . Ao que parece . este ami go de Cícero . Ápio Cláudi o
Pulcro. cônsul em 54 a . C. . que fa zia parte cio co lég io dos Áug ures de que Cícero
també m era membro. tal vez por dever de ofício visitava com frequênc ia estes
•·orácul os".
81
Cícero tinh a uma vila na Campâni a. perto ele Cumas, perto também.
portanto . do refe rido lago .

[301
Donde são evocadas as almas cobertas de obscura sombra,
[imagens
Dos mortos , salpicadas de sangue e sal, na funda porta do
[Aqueronte82 .

Prete ndem q ue estas imagens fa le m , coisa imposs íve l


de faze r se m lín gua, sem pa lato, sem a ple na colaboração
da garganta , do pe ito, dos pu lmões. Não conseguem ver
nada apenas menta lme nte , recorrem para tudo aos o lhos .
Só uma inteligê ncia poderosa conseg ue separar a 38
mente dos sentidos e o pe nsamento da refl exão rotine ira.
Acred ito que ao lo ngo de ta ntos séculos tenh a hav ido
outros pe nsado res, mas foi Fe réc ides de Siros 83 o prime iro
de que fico u reg isto e scrito de ter afirmado a eternid ade da
alma hum ana; este era , de resto , au tor bastante anti go , já
que viveu qua ndo rei nava o me u re moto ante passado 84 .
Esta tese fo i de po is confirmada pe lo seu d iscípul o
Pitágoras , q ue veio para a Itália du rante o re inado do
Soberbo, e domin o u a M ag na G réc ia graças à auto ri dade
reconhec ida à sua fi losofia; mu itos séc ul os de po is era tal a
fa ma dos Pitagóri cos qu e mais ne nh uns o utros eram
reconhec idos co mo ho me ns sabedo res .
Mas vo lte mos aos anti gos. Estes não fund ame ntavam XVII
quase nenhu ma das suas sente nças , salvo aque las que
podi am ser justi ficadas recorrendo à aritmética o u à geo-
metria85 . Di z-se que Pl atão viajo u até à Itáli a a fi m de

82
Versos de uma tragédi a não ide ntifi cada.
83
Feréc ides. de Siros (uma das ilhas Cíc lades). do séc . v 1 a. C. Seg undo
a tradição teria sido mestre de Pitágoras .
84
Afirmação iróni ca de Cícero. at ribuindo a Sérv io Tú lio. re i de Roma
entre Tarquín io Pri sco e Tarquín io-o-Sobe rbo a origem da ge11s Tu/lia a que e le
próprio pe11enc ia.
85
Lit. ··ou por meio de núme ros o u de fi guras (geo métricas )" .

[3 1]
conhecer os P itagóricos, q ue estudou a fu ndo todas as
do utrinas pitagóricas e que foi o prime iro , não só a pensar
o mes mo q ue Pitágoras sobre e eternidade das a lmas, mas
a justi fica r esta teoria racionalme nte. Se não ti ve res nada a
objectar, deixare i de lado esta just ificação , e be m ass im
toda a espera nça na imortalidade .
A. - O quê? Então des pertas em mi m a maio r ex pec-
tativa para depois me abando nares? Por Hércu les! Prefi ro
perder o norte co m Pl atão, porqu e eu sei até que ponto o
ad mi ras, e po rque eu também o ad miro quando fa las dele,
do qu e pensar a ve rd ade co m estes outros 86 .
40 M .- Muito bem ! Eu mes mo não me importaria nada
de and ar errante co m tal co mpanhe iro . Vamos e ntão recor-
rer à dú vi da 87 . . . ? Como, ali ás, faze mos na maio ri a das
questões? Não creio qu e seja aqui o critéri o adequado.
Por um lado, os mate máticos de monstram que a terra
está situada no me io do uni ve rso, e fun c io na proporcional-
mente co mo um po nto e m re lação à tota lidade do céu; a
esse po nto chamam xÉvt:gov 88 . Por outro lado, a natureza
daqu eles qu atro ele mentos de que são fo rm ados todos os
corpos é tal que eles , co mo se ti vessem di vidido e repartido
entre si as suas linhas de fo rça, se fo re m da terra e da água
move m-se, por impul so próprio e pe lo peso, form ando
ângul os iguais, em direcção à terra e ao mar, ao passo que
os dois restantes e le mentos, o fogo e o ar, enqu anto os dois
ac ima referidos por acção da gra vidade e do peso se diri -
ge m para o centro do mund o, estes ascende m em linha

86
En tenda-se: os Ep icuristas, segundo os q uais a alma morria em simult â-
neo com o co rpo.
87
O cepticismo académ ico, q ue Cícero professava, recorria à dú vida para
tentar a máxima aproximação possíve l à verdade.
88
Centro: estamos perante a teoria geocê nt rica do uni verso.

[32]
recta em direcção ao céu, ou porque são , pela sua natureza ,
atraídos para as alturas , ou porque os e lementos mais leves
são repelidos pelos mais pesados. Admitidos estes princí-
pios , deve tornar-se ev idente que as almas, q uando se
separam do corpo , q uer e las sejam de natu reza aérea 89 , isto
é, simil ares a um sopro , q uer de natureza ígnea 90 , tendem a
elevar-se. Se, con tudo , a alma for um núme ro, afirmação 41
mais engenhosa do q ue esclarecedora, o u se for aque la
quinta natureza des prov id a de no me mas ne m por isso
ininte li gíve l91 , tal sig ni fica rá q ue há en tid ades mais in cor-
ruptas e pu ras que te nde m a afastar-se o m a is possível da
terra. A alm a <te m de ser> 92 alg um destes e ntes, po is não é
admi ssível q ue algo tão vivaz co mo a me nte <h uma na>
esteja encerrada no coração, no cérebro o u merg ulh ada no
sangue co mo prete nde E mpédocles .
Esqueçamos Dicearco e o se u conte mpo râneo e co n- XVIII
di scípulo Aristóxeno 93 , apesar de ambos se re m ho mens
cultos, porque o prime iro parece nunca se te r im po rtado
mu ito por não sentir que tinh a a lma, e o seg undo de lei-
tava-se tanto com a s ua mú sica qu e te nto u apli car à a lma
as suas teorias mu sicais. De fac to , nós po de mos sentir a
ex istênc ia de harmo ni a e ntre sons inte rvalados , que in cl u-
sive pode m ser co mbin ados de vá ri os modos e o ri gi nar
di versas harmo ni as; e m co ntrapartida não co nsigo ver
onde haja harmo ni a res ultante da co locação dos me mb ros

89
Isto é, que r a alma seja formada a partir do e leme nto " ar".
90
Isto é, quer a alma sej a formad a a partir do e leme nto ··fogo·· (lat. ig11 is) .
91
Cf. supra § 22 (a quinta natureza postulada por Ari stóte les) .
92
Pequena lac una . s uprida de vá ri os mod os pe los editores: est ••é " . putetur
ou cogiten1r "deve ju lgar-se o u pe nsar-se 4ue é" ..
91
Ambos di sc ípu los de Ari stóte les (s upra . s§ 19-2 1) .

[33]
e da pos ição de um corpo des titu ído de alma94 . Este
homem, mau grado a sua erudição, deveri a deixar estes
problemas a cargo do seu mestre Ari stóteles e dedicar-se
ao ensino da mús ica, em obediência ao sábi o provérbio
grego , que di z: "Exerça cada um o ofício que aprendeu "95 .
42 Rejeitemos também por completo a ideia de alma fo rmada
pelo choque casual de corp úsculos indi viduais, leves e
esféricos que produ zem ca lor, e são de natureza aérea,
confo rme pretende Demócrito. Se, de facto , a alma é
fo rmada a partir daqueles quatro elementos que, segundo
se di z, originam todos os outros entes , então será um sopro
ígneo, o que é a teori a favo rita de Panéc io, e, por conse-
guinte, eleva-se necessari amente para o alto. Estes dois
elementos, o ar e o fogo, nada têm em si de pesado, e por
isso elevam-se sempre. Ass im , caso eles venham a di ssi-
par-se, faze m-no longe da terra; caso permaneçam e con-
serve m a sua form a, ainda mais necessário é que ascendam
ao céu e que deles seja violentamente separado este ar
es pesso e pesado mais próx imo da terra. A alma é mais
quente, ou melhor, é mais ardente do que este ar que eu
di sse ser es pesso e pesado, o que sabemos aco ntecer
porque os nossos corpos são fo rmados de elementos pri-
mordi ais ligados à terra, mas recebem o calor proveniente
da alma.

9
" Recorde-se a tese de Aristóxeno: aquilo a que chama .. harmoni a.. desem-
penha no corpo a função de .. alma". Dito de outro modo , o corpo não tem alma.
simplesmente , mas te m um sucedâneo. a " harmon ia'·.
95
Cf. o prové rbio de conteúdo se melh ante a propósito do pi ntor Apeles.
e do que este di sse ao sapateiro que cri t icou a forma como Ape les representara
uma sandál ia: '·Não suba o sapateiro além da sa ndáli a,··

f341
Por isso a a lma escapa-se co m toda a fac il idade deste XIX 43
elemento a q ue co m freq uê nc ia te nho c ha mado ·'ar" 96 , e
rompe mes mo este in vó luc ro, po rq ue nada ex iste mais
ve loz do que a a lma, ne m há ne nhuma ve loc idade que
possa co mpetir co m a ve loci dade des ta. Se <a alma>
permanece incorrupta e se mpre ig ua l a si mes ma. te m
necessari ame nte de escapar-se, de pe netra r sem e nco nt ra r
obstác ul os todo este cé u a q ue estão co nfi nadas as nu vens,
a chu va e os ve ntos, reg ião húm ida e somb ri a e m vi11ude
das exalações prov indas da Te rra .
A alma. de po is de ultra passar esta região e de reco-
nhecer pe lo contacto ter a lca nçado uma natureza simil ar à
sua, deté m-se naque le e le me nto ígneo constituíd o po r um
so pro ténue e um ca lo r mode rado vindo do So l, po nd o
ass im fi m à sua asce nsão. Assi m , po is, q uando de para co m
uma leveza e uma te mperatu ra seme lha ntes às suas , co mo
uma balança qu e fico u e m equilíbri o, não se move e m
nenhuma direcção, po is c hego u ao que é o seu me io natu -
r I qu ando pe netrou num a substânc ia s imil a r à sua; aí , se m
de nada mais te r necess idade , a lime nta-se e suste nta-se
co m aqueles mes mos e le me ntos que suste ntam e alime n-
tam os astros.
Dado qu e nós , ho me ns, costum a mos infl a mar-nos 44
co m os ardo res do co rpo e m nós despe rtados po r toda
a espécie de paixões, e qu e nos exc ita mos ma is co m a
ri va lidade qu e nos o põe aos que poss ue m os be ns qu e
desejamos pa ra nós mes mos, seg ue-se que ape nas se re-
mos efecti va me nte fe li zes qu a ndo, após abando narmos o

% "Ar" aqui equivale a "atmosfe ra". isto é. aquela ca mada de ar que envol-

ve a Terra e que. por se r "ocupado" pe las ·'exalações vindas da Terra". é mais


densa do que as camadas supe riores. O termo usado por Cícero é aer. que não
passa da transc ri ção do grego ÓÍl Q-

[35 J
co rpo, nos libe rtarmos de pa1xoes e rivalidades; o que
faze mos agora , quand o , libertos de preoc upações, senti-
mos vo ntade de observar co m atenção algum objec to , com
muito mai s fac ilidade o podere mos fazer quando nos
entregarmos por compl eto à co nte mplação e ao estudo ,
po rqu anto a natureza incutiu nas nossas me ntes um a sede
insac iáve l de observa r a verd ade : ora aqueles es paços a
que ascende re mos , e onde nos será mai s fác il acede r ao
co nheci me nto dos fe nóme nos celes tes, des pertarão e m nós
45 uma vontade ainda ma ior de co nhece r. A sua be leza até
mes mo aqui na terra des pertou e m nós , co m a ânsia do
conhec ime nto , aquela filosofia a que Teofra sto c hamou
"provinda do.fundo dos tempos " 97 • De la desfrutará so bre-
tudo que m , mes mo agora, vive ndo nesta te rra e nvo lta em
brumas, deseja persc rutá- la co m a agudeza da me nte .
XX Se ainda hoje se pe nsa ter sido um gra nde feito o dos
he ró is que buscara m a e mbocadura do Po nto 98 , aquela
estre ita passage m por onde pe netrou o nav io c hamado
Arg o , por nele na vegar a elite dos heróis Argivos
Partidos à conquista da pele dourada do carneiro 99 ,

o u aq ue les o utros qu e avis tara m as ág uas do Atl â nt ico H•i,


As ondas revoltas que separam a Europa e a Líhia 101 ,

co mo não se rá o es pec tácul o quand o nos fo r possível avis-


ta r a Terra inteira , e não ape nas a sua pos ição, fo rma ,

97
Lit. ··(aqu e la fi losotia) vinda dos pa is e dos a vós ...
98
A e ntrada cio Ponto Euxin o (= o Ma r Negro) . o u seja o estre ito ci o Bósfo-
ro. Re fe rê nci a à míti ca ex pedi ção cios Argonautas.
99
Ve rsos cio pró logo ela tragédi a ele Éni o M edeia, o u O exílio de Medeia.
adaptada ela peça homónima ele Eurípides .
l(l(l No o ri g in a l: ci o Oceano.
101
O estre it o ele Gib ra lta r. - O verso é de Én io. A 111w les. v. 302 Skutsc h.

[36]
contorno, mas també m as suas reg1oes hab itáveis, bem
como as outras, em que o excesso de fr io ou de calor to rn a
imposs ível a vida humana? Além do mais, não é com os 46
olhos que nós d isti ng uimos aq uil o que vemos; o fac to
é que nenhum dos nossos sentid os está no corpo, mas,
confo rme nos ensinam não só os fís icos 10 ~ como ainda
os médi cos que as pu seram clara mente à vista, há uma
espéc ie de ·'condutas'' 1º1 que põem em li gação os olhos , os
ouvidos e o nari z com a sede da alma. Por isso mes mo é
que, muitas vezes , ou por estarmos absortos a pensar, ou
em virtude de alguma doença, mesmo com olhos e ouvi -
dos sãos e bem abertos nem ouvimos nem ve mos co isa
algum a: por aqui se compreende fac il mente que é pela
alma que ve mos e ouvimos, e não por aqueles órgãos que
não passam de janelas da alma, e por cuj o interméd io a
mente não recebe qualquer sensação a menos que esteja
concentrada e atenta. ão é verdade que a nossa mente,
sempre a mesma. perce pciona se nsações tão dive rsas
como são a cor, o sabor, o ca lor, o cheiro, o som? Sensações
que nunca a alma perce pcionari a por in termédio dos seus
cinco mensage iros se estes não lhe comuni cassem tud o, e
de tudo ela fosse o único jui z? É, portanto, ev idente que
essas percepções serão muito mais pu ras e nítidas qu ando
a alma, liberta do corpo, chegar ao loca l que a natureza lhe
destinou. Presentemente , embora os canais que fa ze m a 47
ligação do corpo à alma tenham sido fo rj ados pela natureza
com extrema habi lidade, mes mo ass im estão sujeitos a ser
obstruídos por corpúscul os só lidos de matéri a terrena; em

102
Os investi gadores da, ciên cias da nature rn .
º' Ou can ali Laçõe,. Trat,H,e da,
1
ve ia, e a rté ri a, . 4ue o, médi co, anti gos
interpretava m co mo ;,c ndo tubo, po r o nde c irc ul ava o ar.

1371
co ntrapartida. quando nada mais houver sem ser a alma,
nada poderá impedi- la de apreende r o que cada coisa real-
men te é .
XXI Se de ta l hou vesse necessidade , co m que abu nd ância
de pormenores eu poderi a expo r-te a quantidade , a va rie-
dade e a grandi os idade dos espectáculos que a a lma admi-
48 rará nas reg iões ce lestes! Qua nd o pe nso ni sto não posso
de ixar de admirar a desfaçatez de certos fi lósofos que, à
força de admirar o cri ado r e principal defe nso r de uma
certa teo ri a da natureza , lhe rendem e ntusiásti cas graças e
o veneram co mo se fosse um de us 1().1 . Di zem que foram por
e le libertados de seve ros tiranos 105 , de etern as angústias,
de medos dia e no ite permane ntes 106 ! Que ang ústias?
Que medos? Nem seq uer um a anciã me io idi ota tre meria
de medo ao imag inar
O curso do Aqueronre, os espaços profundos do Orco.
o 1111111do sem cor da 111orre , e11 volro em rre1•as 1º1 •

que, assim parece, tanto vos ass ustaria se não ti vésse i


es tud ado a física <de Epic uro>! Que fi lósofo é este que
não te m vergonha de ga bar-se po r não te me r estas fáb ulas
que reconhece não passarem de fantasias? Daqui se con-
clui a es perteza natural destes ho me ns 108 que, se não fosse
a instrução filosófica, estari a m pro ntos a acreditar em
toda es tas fábulas!

104
Referê nc ia óbvia aos Epi c uri stas. Cf. Luc réc io. De reru111 natura, V.
8 ss.: "Si111 , há que di:ê-lo, jái 11111 ,·erdadeiro deus aquele que cu11cebe11 esw
cm1cepçcio de l'ida a que cha111c1111os sabedoria . ... o u seja . Epi c uro .
105
Os de uses da re li gião tradi c io na l.
106
Luc réc io . De rerum 11a111ra, 1. vv. 62 ss .
107
Én io . A11dró111aca , p . 254 Warmin gton (c f. Varrão . de /(11g1111 /a1i11a,
VII. 6 ).
108
Uma vez mais . os Epi c uri stas.

1381
Gostaria também de saber o que ganharam eles por 49
terem aprend ido que, quando chegasse a última hora , a sua
morte seri a tota l. Ad mitindo que seja ass im , o que não
estou agora a contestar, porque será isso moti vo de tanta
alegria e exaltação? Não me ocorre , todav ia, nenhuma
razão por que deva ser fa lsa a teori a de Pitágoras e
de Platão 109 • Ainda que Pl atão não tivesse apresentado
nenhuma prova - repara a que ponto chega o meu apreço
por este homem! -, a sua auto ridade chegari a para me
persuadir; mas apresen ta tantas provas que parece desejar
persuadir os outros por ele mes mo já estar persuadido
da sua tese.
Outros pensadores têm uma teoria oposta, e entendem XXII 50
que as almas também merecem ser condenadas à morte,
mas não têm outra razão para não ac reditarem na imor-
talidade da alma senão o facto de não conseguirem com-
preender nem j usti fica r intelectualmente o que será a alma
separada do corpo. Como se fosse m capazes de compreen-
der o que ela é unida ao corpo, qual a sua estrutu ra , a sua
grandeza, a sua locali zação . Se fosse poss ível ver num
homem vivo tudo quanto agora escapa à nossa observação,
implicaria isso que a alma caía sob a alçada da vi são? Não
será ela de natureza tão subtil que escapa ao olhar? Pensem 51
nisto quantos ac ham que a alma é ininteli gível sem o corpo
e verão como é que a entendem assoc iada ao corpo.
A mim , quando penso na natureza da alma, afi gura-se- me
muito mais di fícil e obscuro conceber o que seja uma alma
inserida num corpo, como que morando em casa alheia, do
que uma alma que se liberta do corpo e asce nde ao céu sem
limites como quem vai para a sua própri a morada. Se é

109
Ou seja. a teo ria da imonalidade da alma.

f39 1
verdade que não é impossível compreendermos a natureza
de algo que nunca vimos, é óbv io q ue poderemos entender
pelo pensa mento, não só o que é a divindade, como tam-
bé m o que é uma alma di vina libe rta do corpo . Dicearco
e Aristóxeno, como achavam difícil co mpreender o que
fosse a alma, e quaj s as suas qualidades, decretaram que a
52 alma si mplesmente não ex istia. O ponto mai s importante
está em ver a alma por interméd io da pró pria alma: o utra
coisa não é o s ignificado da máx ima de Apolo que aconse-
lh a cada um de nós a con hece r-se a si mesmo 110 . Não creio
que o deus nos recomende que con heçamos os nossos mem-
bros, estatura , aspecto gera l; nós não so mos <apenas> cor-
po , e e u , quando pro nuncio esta expressão, não é ao teu
co rpo que a di go. Po11anto , quando <A polo> diz "conhece-
-te" quer dizer "conhece a tu a a lma" . O corpo é apenas um
vaso , um reci piente da alma; é pe la tua a lma qu e é fei to
aquil o que é fei to po r ti . Se não fosse ta refa di vina conhe-
cer a alma, esta máx ima 111 de a lg um pe rspicaz pe nsador
anónimo não teria acabado por ser atribuída a um deus 11 2 .
Se a alma não for capaz de sabe r o qu e a a lma é,
53 peço-te que me di gas se també m não sabe que ex iste, nem
sabe que se move!? Desta questão decorreu a conhecida
de mon stração de Platão , desenvo lvida po r Sócrates no
Fedro 11 3 , e que eu inseri , e m tradução, no sex to li vro da
República 114 :

110
Trata-se da conhecida sentença insc rita na parede do templo de Apolo em
De lfos: yv<il0L OEau,óv "conhece-te a ti mes mo··.
111
Numa classe de mss. das T. D. alguém ac rescen tou esta g losa: "is10 é.
que cada 11111 pode crmhecer-se li si 111es1110 ··.
11 1
Em De Jinibus , Ili. 73 Cícero c ita um cert o número de máximas que
atribui a anti gos pensadores não identificados: e ntre e las co nt a-se o yv<ilÜL OE·
au,óv. gra vado numa parede do te mpl o de De lfos. o que fez com que a máxima
fosse atribuída a Apolo.
11 1
Pl atão , Fedro , 245 c-e.
11
° Cícero. República , V I. 3 1-32 Powel l.

[40]
"O que está sempre em movimento é eterno; aquilo
que causa um movimento em outrem, ou que de outrem
recebe o seu movimento, quando esse movimento chega ao
fim , a sua vida necessariamente também chega ao fim.
Apenas o que se move a si mesmo , como nunca se despren-
de de si, nunca deixa de estar em movimento; mais ainda,
é esta a fonte do movimento <de todos os outros entes>, é
o princípio que os fa z mover. Mas o princípio não tem
origem, porque é do princípio que se originam todas as
coisas, e ele próprio não pode ser originado por nenhuma
outra coisa, pois se fosse pro veniente de algo, não poderia 54
ser princípio. Se nunca tem começo, então também nunca
tem.fim, porque se o princípio se extinguisse, nem ele mes-
mo renasceria a partir de outra coisa, nem criaria outra
coisa a partir de si mesmo , porquanto é do princípio que,
necessariamen te, todas as coisas provêm. Daqui segue-se
que o princípio do movimento está em algo que se move a
si mesmo; ora este "algo" não pode nascer nem morrer,
pois de outro modo todo o mundo se desmoronaria, toda a
nature-::,a, necessariamente, pararia , e nunca mais encon-
traria uma força de que recebesse o impulso inicial para
voltar a mover-se. Por conseguinte, como é óbvio que o
que se move a si mesmo é eterno, quem poderá nega r que
esta qualidade foi também atribuída à alma? Tudo quanto
se move por intermédio de algum impulso externo é um
ente inanimado ; tudo quando é animado 11 5 é dotado de um
movimento que provém do interior de si mesmo. pois é
esta a nature-::,a, a capacidade espec(fica da alma. Em con-
clusão , se nada excepto a alma tem capacidade para a si
mesma se mover, segue-se obviamente que , por um lado, a
alma nunca nasceu, e, por outro , é eterna."

115
··Animado.. = dotado ele alma.

(4 11
55 Pode j untar-se aq ui toda " a p lebe dos fi lósofos" , pois
este é o nome que j ul go me recere m todos qua ntos discor-
dam de Pl atão , Sócrates e a respectiva Esco la 116 : não só
se rão incapazes de fo rmul ar uma ex pl icação tão bem
concatenada, mas ne m seq ue r serão capazes de e nte nder a
subtileza desta argume ntação. Em síntese , a alma dá-se
co nta de que se move ; ao dar-se conta do mov ime nto per-
cebe simultaneame nte que a e ne rg ia que a faz mover vem
de si, e não de fora ; e sente ainda que é de todo im possíve l
e la alguma vez desertar de si pró pri a. Daqui co nc lui -se
que a alma é eterna . A me nos que te nhas algum a objecção
a faze r.
A. - Pe lo contrário , esto u satisfe ito po r no meu es pí-
rito não se levantar ne nhuma objecção . Estou totalmente
de aco rd o co m essa teori a que ex puseste .
XXIV 56 M .- <Co ntinue mos .> Porve ntu ra jul garás menos
signi ficati vos os argume ntos que defende m haver na alma
hum ana certos ele me ntos di vinos? Eu , se por acaso pe rce-
besse de que modo estes podem surgi r, e nte nderia também
de que modo pode m perece r. No que co ncerne ao sangue,
à bíl is e à fl e uma , aos ossos , ne rvos e ve ias , e m suma, ao
conjunto dos me mbros e à totalidade do co rpo, parece- me
que so u capaz de di ze r de que ele me ntos são fo rmados e
de que modo fo ram co nstituídos; agora a respeito da alma,
se ela não fosse mais q ualquer coisa alé m do princípi o que
nos faz vive r, e u pe nsari a que a vida humana obedecia
à mes ma natureza que a vida das vide iras o u das á rvores,
já que destas també m di ze mos que são " seres vivos".

116
A ··pl ebe dos fil ósofos" . ou "os fi lósofos plebe us•·. trad ução litera l do
tex to latino . te m por alvo . uma vez mais. os Epicu ristas. que não acei tam a imor-
talidade da alm a. São, portan to. " plebe us... e m confro nto com a ari stocrac ia dos
fi lósofos. constituída por Acadé mi cos e Peripatéticos.

[42]
De igual modo, se a alma do home m se limitasse aos ape-
tites ou às aversões naturai s, e ntão o homem não se di stin -
guiri a dos res tan tes animais . Só que a alma é dotada de 57
memória , e me mó ria de uma infinidade de coisas. Platão
pretende mes mo que e la seja a re mini scê ncia de uma vida
anterior 11 7 • No di á logo intitulado Ménon , Sócrates põe a
um rapazito o probl ema geométrico da dime nsão do qua-
drado. O rapaz va i respondendo como garoto que é, mas
apesar di sto as perguntas são de tal modo fáceis qu e e le
responde passo por passo até chega r ao res ultado a que
chegari a se tivesse estudado geo metria . Daqui tira Sócrates
a conclu são que apre nde r não é o utra coisa senão recordar.
Este mesmo ponto volta Sócrates a ex por com maior por-
menor na co nversa que teve co m os amigos no próprio dia
em que foi executada a se nten ça 11 8 • Ele mostrou como
alguém , po r muito ig norante que seja de todas as maté ri as ,
se for responde ndo bem a perg untas feita s co m inte li gê n-
cia, as respostas não resultam de ne nhuma aprendizagem
de momento , mas da remini scênc ia de conhecimentos já
aprendidos antes; se ria de todo imposs íve l qu e tivésse mos
desde crian ças um tão gra nde número de conceitos inatos,
a que os Gregos c hamam evvmm, quase diríamos grava-
dos na alma , se esta , antes de te r incarnado num corpo, não
tivesse adquirido prev iame nte tod os esses conhecime ntos.
E visto que nada ex iste realme nte 119 , co mo Platão não se 58

11 7
""Memória··= lat. 111emoria. gr. µv1iµ.ooúv17: ""re miniscência"'= lat. re-
cordaria , gr. ává µv17 ou::. A memóri a norma l comprova só por si a imortalidade
da alma (cf. ad iante~§ 59 e ss.).
111
V. Pl atão, Fédo11. 72 e ss .. a demon stração da imortalidade da alm a fe it a
por Sócrates no te mpo q ue precedeu o mo me nto de beber a cicut a.
119
Pohlenz considera existir aqui um a lacu na. que. sugere. pode ser suprid a
por uma ex pressão como (11ada) daquelas coisas que apree11de111os por i111er-
médio dos sentidos. Esta conjectura é ace ite por G igon. que tradu z: Da femer

[431
cansa de afirmar - poi s ele pen sa que nada que nasça e
pereça te m ex istênc ia real. e qu e só ex iste de facto aq uilo
qu e nunca se altera (o qu e e le designa co m o termo i,ôioa 120 ,
e nós species) -, segue-se que a alma não pode adquirir
esses co nhecime ntos depois de se in se rir num corpo, mas
trou xe-os já consigo; por isto não é assim tão espantoso o
número dos nossos co nheci men tos. A alma, de res to, não
te m be m claras essas noções qu and o de repe nte se instala
numa morada tão inadequada e confusa, mas ape nas quan-
do se concentra e desliga 121 , porque e ntão te m a re minis-
cênci a do que já conhece. Em suma , apre nde r não é outra
coisa senão record ar.
59 Por mim tenho uma admiração ainda maior pela nossa
capacidade da memória 122 . O que s ignifi ca, efectivamente,
a faculdade de recordar? Qua l a sua natureza, qual a sua
origem ? O meu problema não está e m saber até onde
chegava a memória de Simó nides 123 ou a de Teodectes 124,
ou quão extraordinária era a de Cíneas 125 , embaixador
de Pirro 126 ao Senado de Roma , ou, mai s recente mente, a

<i111 Bereich der Si1111es1vahrneh111w1g> ,,ichts ist ... Ki ng não marca a lacuna
no tex to. mas tradu z como se a ace itasse: A11d si11ce there is 110 true existe11ce in
am· sensihle ohjecr ... Nem Fohlen -Humbert. nem Narducc i. Cleric i se referem
a esta hipotéti ca lacuna.
120
·1ota. há a lgun s anos 1raduzida quase se mpre por •• ideia'". ve rte-se hoje
em dia por "forma'". quando re ferida às '" ide ias'" / •' fo rm as·· de Pl atão.
12 1
En te nda-se: ··se desliga do corpo•·. No tex to latino. (se) recrea 11i1 lit. "se
recompôs". i. e .. "recuperou as forças" (abaladas pelo co nt acto com o corpo).
122
Ou seja. pe la me mória. digamos. normal. aque la de que nos servimos na
vida quotidiana.
121
Simón ides de Ceos (séc. v1-v a. C.). poeta líri co grego , au1or de ep in í-
c ios. e de epig rama s sepulcrais .
124
Teodec tes . a mi go de Ari slóteles. poeta trágico e reto r (séc . 1v a. C.).
m Médico e conselheiro de Pirro. rei do Epiro. e por este enviado como
embaixador a Ro ma com as suas propostas de paz (séc. 111 a. C.).
126
Di z-se q ue Pirro. depois de obter vári as vitóri as sob re os exérc itos
ro manos. mas à custa de enormes perdas . teria excla mado: '" Mais um a vi1ó-

[44]
de Cármadas, a de Metrod oro de Céps is 127 , ou a do nosso
Hortênsio 128 ; estou a falar da me mória normal dos se res
humanos , sobretudo daque les que se especiali zaram em
algum ramo específico do saber, e c ujas capacidades me n-
tais são difícei s de aval iar, dada a quantidade dos seus
conhecimentos .
Mas onde pretendo c hegar co m estas palavras? À ne- XXV 60
cessidade de compreendermos qual seja a natureza e a
origem desta capacidade . Uma coisa é certa: a sua origem
não está no coração , nem no sang ue, nem no cérebro , nem
nos átomos . Se provém de um sopro ou de um fogo, igno-
ro-o, e não tenho vergonha de confessar que não sei aqui lo
que ignoro , como fazem certos filó sofos 129 ! Nesta tão
obscura matéria , se alguma coisa eu pudesse afirmar, quer
a alma seja um sopro ou um fogo , seria a sua natureza
divina . Diz-me, por favor: achas possível uma capacidade
tão notável como a memória ser formada e estruturada a
partir de elementos terrenos, sob este clima tão nebuloso
e envolto em treva? Se não compreendes qual seja a essên-
cia da alma, compreendes ao menos as suas qualidades ;
se não reconheces estas, ao menos dás-te conta da sua
grandeza . Poi s bem : achas que podemos considerar que a 61
alma possui uma espécie de recipiente para onde vertemos,
como se de um vaso se tratasse, todas as nossas recorda-
ções? Tal ideia se ria um absurdo. Como imagi nar o bojo , a

ria como esta e estare mos pe rdidos!" Desta c irc un stânc ia pro ve io a ex pressão
"obter uma vitória à Pirro ··.
127
Cármadas e Metrodoro (séc. 11 a. C.). fil ósofos acadé mi cos . d iscípul o s de
Carnéades.
128
Hortênsio (Q . Hortensius Hortalus). reputado orador roma no. ri va l
e ami go de Cícero. q ue no Brutus me ncio na a sua espantosa me mória (Brurus.
§ 30 1).
9
" Os fi lósofos dogmát icos. u.g. os Estó icos.

145]
capacidade de uma tal alma, onde coubesse tudo quanto lá
deitamos? Julgamos que a alma é uma espécie de tabuinha
encerada em que se escreve, e que a memória é o vestígio
deixado na mente pelo que ficou gravado na cera 1.,o7 Que
espécie de vestígio poderiam lá deixar as palavras , as pró-
prias coisas? Que tamanho tão imenso não seria preciso
para armazenar tanta informação?
62 E que dizer daquela outra capacidade humana de
in vestigar os fenómenos ocultos a que se dá o nome
de capac idade inventiva e imaginativa? Acaso pensas que
ela pode ser ori ginada por uma natureza terrena, composta
de elementos mortais e perecíveis? Ou que desta possa ser
fe ito o primeiro homem que impôs a cada coisa o seu
nome, o que a Pitágoras parecia ser obra da mais alta sabe-
doria? Ou aq uele que reuniu os humanos di spersos e os
iniciou na vida em sociedade, ou aq uele outro que com um
número redu zido de letras conseguiu fixar os sons vocais
em número aparentemente infinito , ou ainda um ou tro que
registou as órbitas, as ultrapassagens e as paragens dos
planetas 13 1? Todos grandes homens, e não menores os que
os precederam, os que inventaram a agricultu ra, o vestuá-
rio , as habitações, a vida civili zada , a protecção contra as
feras . Graças a eles a humanidade perdeu os háb itos selva-
gens, culti vo u-se, ascendeu da mera necess idade ao supér-
fluo requintado. Uma forma de deleitar os nossos ouvidos
surgi u da descoberta da variedade dos sons e da forma de
os combinar 13 2; também o olhar se de li ciou com a contem-
plação dos astros, quer dos que ocupam uma posição fixa ,

130
Os Romanos usavam. com as funções das nossas agendas . umas tabui-
nhas cobertas de cera. onde escrevia m usando um est ilete.
131
Lit. .. das estrelas errantes ...
132
Forma imagi nosa de descrever o nasc imen to da arte mu sical.

[46)
quer dos que são errantes rn . O homem que , com a sua
alma, observou as revo luções e os dema is mov imentos
destes astros, descobriu que a alma era idê nti ca à daquele
ser que fa bricou no céu os corpos celestes. De fac to , quan- 63
do Arquimedes co locou, numa única esfera 134, os movi-
mentos da Lua, do Sol e dos ci nco planetas 1·' 5 , fez o mes mo
que fizera o criador do mundo do Ti meu, ou seja, o deus de
Platão: harmoni zar numa única revo lução os mov imentos
entre si tão d istin tos pela lentidão ou pela ve loc idade . Se,
neste nosso uni verso, tal harmoni a não poderi a ser conse-
guida senão graças a um deus, também Arqu imedes não
conseguiria imitar esses mov imentos se nele não ex istisse
uma inteligência di vina .
Em meu entender, nem mes mo nas artes mais conhe- XXVI 64
cidas e di vul gadas está ausente a infl uência di vina; não
creio que um poeta seja ca paz de compor uma série de ver-
sos subl imes e so lenes sem que na sua mente se faça sentir
algo de celeste, nem que a eloquência abunde em palav ras
sonorosas e sentenças ricas de sentido sem o auxílio de
alguma fo rça superi or. E quanto à fi losofia, a mãe de todas
as artes,o que é ela senão um dom, como Platão lhe chma 136 ,
ou uma in ve nção dos deuses co mo prefiro eu chamar-lhe?
Foi ela que primei ro nos iniciou no culto di vino , que nos
conduziu depo is ao direito entre os ho mens, fund amento

11 1
· Os astros errantes são os plane tas (gr. rrÀáVl]TE Ç áot ÉQEÇ = astros erran -
tes = planetas).
134
Uma só esfera. ma s fo rmada de sete esferas concêntri cas. Cícero refere -
-se aq ui à esfera arm il ar co nstru ída pelo cé le bre mate mático para ex plicar os
mov imentos dos astros.
135
Os cinco planetas co nhecidos então eram Mercúri o. Vénu s . Marte. Júpi -
ter e Saturno . A Te rra não faz ia parte dos ast ros errantes . pela boa razão de que
estava fixa , imóve l. no centro do ni verso.
6
1.1 Platão. Ti111 eu, 47 b .

l47 J
de toda a soc iedade humana, e també m nos ed uco u na
moderação e na grandeza de alma, e la ainda que m re mo-
ve u a esc urid ão que nos obsc urec ia os o lhos da alma , de
modo a pe rmitir-nos ver tudo, no alto ou no chão, no prin-
cípio, no fi m. ou no me io .
65 Parece- me abso luta me nte di vino o pode r capaz de cri ar
tantas e tão grandes maravi lhas. Afi na l, o que é a me mória
das coisas e das palavras? Mais a inda , o que é a ca pac ida-
de in ve nti va senão algo qu e ne m na di vindade pode
e ncontrar o que a supe re? Não ac redito qu e os deuses e
de le ite m co m a ambros ia , o néc tar u 7 , ne m com a presença
de Ju ve nta 138 a e nche r-lhes as taças, ne m me inte ressa o
que di z Ho me ro , segundo o qu al G a nimedes, dev ido à sua
be leza , fo i raptado pe los de uses para se rvi r de esca nção a
Júpite r 139 . Mas <ta l be leza> não era justa causa para que
a Lao medonte fosse fe ita ta manh a inj usti ça . Homero in-
ve ntava estas hi stóri as e atribu ía aos de uses co mpo rtamen-
tos próprios de huma nos; me lho r se ri a que aos homens

1.17 Ambrosia. néctar: respectivamente. o al imento e a bebida cios deuses no


Olimpo. Sobre a acentuação de wnbmsia. v. Rebe lo Gonçalves . Vocahulârio. s. u.
138
O latim conhece v,í rios te rmos para desig na r a ••j uve ntude··. ora como
nome com um. ora co mo no me próprio (mitónimo: a '"deusa da juventude'"):
iuuenta. 11e. pode ocorre r como nome comum. '"j uve ntude ... o u como teónimo.
··Juvema··. a deu sa: iuuentus. wis. nome comum. raramente como equivalente
da fom1a seg uinte: iuuewas. atis. nome co mum . mai s frequente como teónimo.
eq ui valente ao grego "H ~q '" Hebe··. De luuentas. aris a fo rma correspondente
em portu guês se ria "J111'e /1/ade " (c f.ju ventude). mas esta forma não se encon-
tra reg istada no Vocabulário. o nde. co ntudo. se encontra J111 ·e11ra. forma muito
corrente em português. u.g. na expressão ·•fonte de Ju venta".
139
Homero. Ilíada. 20. 231 ss.: Trrís Irei de Tróial teve três filhos valo-
rosos. 1/o , Assâraco e Cm1imede.1· ir;ual aos deuses: este era o mais belo de
quanws mortais ha1·ia: então os de uses raplllram-110 para servir de escançâo a
Zeus. por cau.,·a da sua bele:a. e para que vivesse e111re os imortais. Segu ndo
uma outra tradição (E urípides. Troianas. 820-822) . Ganimedes se ria fi lho de
Laomeclonte .

(48]
atribuísse qualidades di vinas! Ma que qualidades di vi-
nas? Energ ia vital. capacidade de pensa r, de inve ntar, de
recordar. A alma , portanto , també m é di vina 140 , como eu
costumo di zer. ou "é um deu s" , como Eurípides 141 tem a
ousadia de afirmar. Aliás , se a divindade é um sopro ou um
fogo vital, o mesmo será a alma humana. Se. de facto , a
natureza celeste está isen ta dos elementos " terra" e "água",
também a alma humana carecerá de ambos este s elemen-
tos. Se, todavia , existe um quinto e leme nto natural , noção
introduzida pela primeira vez por Ari stóteles 142 , esse será o
elemento quer dos deuses , quer das almas. Esta teoria foi
por mim seguid a, e exposta na Consolação 143 verba lmente
conforme segue:
"A origem das almas não pode de modo algum XXVII 66
encontrar- se na terra , já que nelas nada existe que seja
uma mistura , uma combinação de elementos , nada que
aparente ser um produto , uma criação da terra , nem nada
também originado nos elementos húmido, aéreo e ígneo.
Nestas naturezas nada existe de similar às capacidades da
memória, do pensamento , da reflexão , nada que seja
capaz de rememorar o passado , de prever o futuro , nem de
abarcar o presente . Estas capacidades são de natureza
di vina , e nunca se conseguiu descobrir onde o homem as
poderia obter senão na divindade. A alma possui, por con-
seguinte , uma natureza e uns atributos completamente

l-'O ··A alma .. . também"": tradução de a11i11111s q11oq11e. em que q11oq11e é uma

conjectura aceite por Gigon. Fohlen -Hum be11. Narducc i-Cleri ci: Pohlenz esc reve .
seg undo os mss .. a11i11w.,· qui . . ., pos tulando uma pequena lacun a a seg uir a qui.
141 Euríp ides. fr. 1O18 Nauck: a 111e11re Ivo uç I é u111 de us
q11e hahira e111 cada
11111de 11ós.
142 Cf. supra.§ 22 .
1
"' V. Cíce ro. Texrosfilosófi cos . 1. pp. XV-XVII.

r491
distintos dos elementos usuais e bem conhecidos . Seja
qual for, portanto, a substância sede das sensações e do
saber, da vitalidade e da acção , ela , <a alma> , será ne-
cessariamente celeste e divina , e, por isso mesmo, eterna .
A própria divindade, tal como a concebemos, não pode ser
concebida senão como uma mente independente e livre,
afastada de qualquer combinação mortal, que de tudo tem
consciência, a tudo imprime movimento, mas é ela mesma
dotada de movimento sempiterno. A mente humana é exac-
tamente da mesma espécie, da mesma nature-: , a. "
67 Pe rguntas- me o nde ex iste esta mente , que coisa ela é?
E a tua , o nde está, que coisa é ? Sabes di zer- me ? Se para
co mpreender estas questões eu não disponho de todos os
in strumen tos que gostari a de ter, não me pe rmites que
recorra aos que estão ao meu dispor? A alma não tem a
capacidade de observar-se a s i mes ma , mas, como sucede
co m os o lhos , també m a a lma não se vê a si, mas observa
tudo o mais. ão vê, de fac to , a sua pró pria fo rma , o que,
ali ás, é de so menos impo rtânc ia (e ta lvez , a final , a possa
observar, mas deixemos isso!), mas avalia , se m dúvida , a
força, a sagacidade , a memóri a , o movimento , a ve locidade
<de que di spõe> . Estas qualidades são importantes , divi -
nas, sempiternas ; qual seja o se u aspecto ou e m que lugar
res ide são questões que ne m merecem ser co locadas.
XXVIII 68 Quando co nte mplamos, prime iro o brilho resplenden-
te do céu , depoi s a ve loc idade da sua rotação 144 , tão gra nde
que nem sequ er a pode mos co ncebe r, e além di sso a alter-
nância entre os di as e as no ites , o ano dividido em quatro

144
Não esquecer que para os Anti gos a Terra es ta va fixa no ce ntro do Uni-
ve rso . de modo que a abó boda ce leste. com todas as suas estre las e o ut ros astros.
girava verti ginosa mente e m to rno desse po nto fi xo.

[50]
estações de modo a assegurar a maturação das searas e o
equil íbrio dos seres animad os ; e ainda o So l, moderador
e guia de todo este mu ndo, e a Lua , qu e com as suas
fases 145 co mo que vai assi nal and o e avaliando os dias <do
calendári o> 146 , e també m os cinco planetas 14 7 que numa
mesma órbita di vidi da e m doze partes iguais 148 perco rrem
sempre os mesmos pe rc ursos, conquanto a velocidades
distintas ; e mai s o aspecto nocturno do céu todo o rnado de
estrel as , e o g lobo te rrestre emergindo do mar 149 , fixo no
centro de todo o Uni ve rso , co m duas zonas hab itáve is e
aptas para a agri c ultura separadas um a da outra , das quais
uma , aque la e m que nós vivemos,
Está sob o pó/o vi~inho às sete estrelai5(), donde o cortante
Aquilcio 151 sopra e assobia , impelindo asji-ias neves 152 ,

105 Lit.. "com o aume nto e a d iminu ição da sua lum inos idade'' .
1º" Os di as do ca le ndá ri o ro mano . ini c ia lmen te lun ar. e ram susce pt íve is de
uma "ava li ação'·. isto é. cada dia t inh a um va lor fix o . e m espec ial a sua c lass i-
ficação como "di a fas to'· ou .. dia nefasto"'. confo rme e ram líc itas ou não certas
acti vidades . po r exempl o. de o rdem po líti ca o u j ud ic ia l. Pode ver-se um cale n-
dário romano, com todos os seus dia s dev idamente marcados. e m A. Degras-
si. /nscriptiones Larinae Liherae Rei P11blicae. Flo re nça . 1965 (2' ed .) . vol. 1.
pp. 23-41 . É esta realiclacle que está na base do poe ma de O vídi o Fasti "Os fas-
tos"' . espécie de ca lend ári o poéti co , e m que a propós ito dos vá rios d ias o poe ta
va i assinalando se se trata ele um d ia fas to o u nefasto. se o u qu a is as fest ivid ades
reli giosas que tê m lu gar nesse dia . o u ainda ce11as le nd as e mitos assoc iados a
cada um de les .
107 Supra , nota 135.
108 O Zodíaco .
109 Não é inteiramente c lara a ima gem que Cíce ro pretende tran smitir. dado
que o mar faz parte integra nte da esfera que é o nosso planeta.
150 A Ursa Mai or
15 1 Vento do norte.
] 51 , .
- Ac10. Filoc1e1es. vv. 57 1-2 Warm in gto n .

[51 J
outra no hemisfério austra l. para nós descon hecida , a que
69 os Gregos dão o nome de àvdx0wv 151 , e outras zonas
incultas, ou rege ladas dev ido ao fr io ou tórridas dev ido ao
ca lor; aq ui, nesta zo na onde nós habitamos , nunca deixa-
mos de . no seu tempo próprio. vermos
brilhar o céu, as árvores cobrirem -se de f olhagem ,
nas viçosas videiras desabrocharem os cachos.
curvarem-se os ramos ao peso de abundantes fruto s .
as searas encherem -se de espigas. tudo.florescer,
brotar a água das fon tes , a erva cobrir os prados 154;

e quando vemos multipli carem-se os animais de que nos


alimentamos, outros que aram os nossos campos, outros
que nos tra nsportam, outros que nos vestem, enquanto o
homem parece apenas ter por fun ção contempl ar o céu
e prestar culto aos deuses , além de ver tudo quanto é
campo ou quanto é mar votado à sati sfação dos seus inte-
70 resses - quando, numa palavra, contemplamos todos estes
fac tos, e incontáveis outros, podemos nós du vidar de que
ao uni verso presida um ente - , ou seu criador, se tudo
quanto exi ste teve um começo, como pensa Pl atão, ou, se
tudo ex iste desde sempre, como é opinião de Ari stóteles -
que tenha a tarefa de velar pelo bom fun cionamento desta
grandiosa fábrica? Tal como tu não podes ver a di vindade
mas reconheces a sua ex istência a partir das suas obras ,
ass im também, conquanto não possas ve r a mente humana,
podes reconhecer nela uma energia de natureza di vina
a partir da re mini scência do passado, da capac idade inven-
ti va, da veloc idade do seu movimento e da beleza das suas
qualidades.

153
Lit. " anti-Te rra" . isto é. o que chamamos "Ant ípodas··.
154
Én io . Euménic/es. vv. 157-61 Warmi ngton .

(52]
Onde é que reside a mente? Eu. por mim , estou con- XXIX
vencido de que reside na cabeça, e poderei ex pl icar quais
as minhas razões . Mas o prob lema da locali zação da mente
fica rá para outra altura; uma coisa é certa: reside em ti.
Qual a sua natureza? Penso que é uma natureza peculi ar,
exclusivamente sua. Podes imaginá-la fe ita de fo go, ou
fe ita de ar: para o nosso pro pós ito é irrelevante . Atenta
apenas ni sto: tal como podes conhecer a divi ndade embora
ignores a sua morada e o seu as pecto, també m podes
conhecer a tua mente mes mo sem saberes onde res ide e
que fo rma tem. Na concepção que faze mos da me nte há 71
algo de que não podemos du vidar, a menos que sejamos de
todo ignorantes em matéri a de ciência da natureza: que
nela não ex iste nenhum elemento estranho , nenhuma mis-
tura , nenhum acrescento, nenhum agregado , nenhuma
dupla natureza; e, nestas condições , ela não pode ser di sso-
ciada, di vidida, desmembrada, mutil ada, nem, por conse-
guinte, poderá morrer, uma vez que morrer signi fica
afastar, di ssoc iar, desmembrar aquelas componentes que,
antes da morte, estavam de alguma forma unidas entre si.
Foi por estas e por outras razões simil ares que
Sócrates, no j ul gamento em que a sua vida estava em jogo ,
não procuro u um advogado 155 nem ped iu mi sericórdi a aos
juízes , antes fa lou com a liberdade de ex pressão que lhe
vinha da sua grandeza de alma, não de petul ância; e no seu
último di a de vida discorreu largamente sobre estas ques-
tões; alguns di as antes, de resto, poderi a te r-se evadido
com fac ilidade da pri são, mas não o quis faze r; e quando já
ti nha praticamente na mão a taça com o ve neno, as suas
palavras não era m de um homem prestes a sofrer uma

155
Lat. pmro1111s.
morte violen ta , mas sim as de a lg ué m qu e está prestes a
ascender ao céu 156 .
XXX 72 Era este o pensa mento de Sócrates tal como ele o
sintetizou :
São du as as vias , doi s os trajectos que se apresentam
às almas quando se separam dos corpos: as almas que se
de ixaram co ntaminar pe los vícios próp ri os da natureza
humana , que se entregaram por co mpleto à sati sfação das
paixões e, por estas ofuscadas , ou se corromperam co m os
vícios mai s vergonhosos na vida privada , ou cometeram
fraudes imperdoávei s em prejuízo da república, essas
<almas> segue m por um atalho desviado , à marge m da
assembleia onde se reún em os deuses; as outras, as que
se conse rvaram íntegras e puras , que manti veram com o
corpo o mínimo contacto possível, que deste se apartavam
continuamente e que , e mbora dotadas de um corpo huma-
no , procuravam imitar a vida dos deu ses, a essas oferecia-se
um fácil regresso à companhia de que se tinh am por um
73 breve tempo apartado . E lembra a propósito o caso dos
ci snes, aves co m toda a razão dedi cadas a Apolo, porque
aparentam ter obtido do deus o dom da adivinhação, gra-
ças ao qual conseguem prever o que há de bom na morte e
por isso entoam um canto de alegria no momento em que
estão a morrer 157 • A mesma coisa devem fazer os homens

156
Ne ste parágrafo de C ícero combin a-se a re mini scê ncia de três textos de
Platão: a Apologia de Sócrares (rec usa de recorrer a aj uda e xterna. u .g. a de um
logógra fo hábil em persuadir os juízes . dec isão de Sócrates de ser apenas ele a
apresen tar a sua defesa ). Fédo11 (di álogo cen trad o na d isc ussão do problema da
imorta li dade da a lma). Críron (recusa da proposta de Críton de organi zar a fu ga
de Sóc rates da prisão medi ante o suborn o dos g uard as ).
157
Cf. Pl atão. Fédon. 84 e-85 a: "'Os c isnes . quando pressen tem que es1á
prestes o momento de morrer. embora sempre tivesse m can tado e nquanto vivos.
é no momento da morte que entoa m os seus cantos mai s numerosos e belos.

[54]
verdadeiramente bons e sábios. Deste fac to não há que du-
vidar, a menos que nos acon teça a nós, qua ndo meditamos
a fundo na questão da alma , o que mu itas vezes sucede
a quem concentra o olhar no so l no momento do ocaso e
por isso perde por completo a visão; do mesmo modo
a agudeza da mente que se contempl a a si mesma fica com
frequência corno que e mbotada, pelo que perde a nitidez
da contemplação. Assi m, o nosso discurso, à maneira
de jangada perdida na imensidão do mar, navega entre
dú vidas, cautelas e hesitações, e com temor <ai nda> pelos
possíveis obstác ul os 158 •
Mas isto é história anti ga, e grega ainda por cima! 74
Entre nós ternos o caso de Catão, que pareceu partir desta
vida sati sfe ito por ter encontrado urna razão para rnorrer 159 .
O fac to é que a di vind ade que habita em nós e nos dirige
proíbe que deixemos a vida sem ordem sua; mas quando é
a própria di vindade que para tal nos dá urna justa causa,
como fez em tempos a Sócrates, recentemente a Catão e
com frequência a mui tos outros , então, por Dio Fídio 160 ,

alegres por esta rem preste s a partir para ju nto do deus a cujo se rviço estão con-
sagrados."
158
Esta longa frase , desde "des/e fauo mio há que .. ." . é co locada por
Pohlenz ent re parê nteses.
159
Referênc ia ao sui cíd io de Pó rc io Carão. conhec ido como Catão de Úrica.
em 46 a. C. . e m co nseq uê nc ia da vi tór ia das tro pas de César na batalha de Tapso:
Carão esco lhe u a mone para não ter de subme te r-se à ditadura de Césa r.
160
Dio Fídio (lat. Diius Fidiu.1) é uma ant iga di vindade ro mana que. com o
passar do te mpo. ve io a ide ntificar-se com Júpi te r na sua fun ção de garante da
boa fé (cf. o termo.fic/e.1· .. boa fé . lea ldade ... também to mada co mo uma di vindade
de pleno direi to e. como ta l. dotada de c ulto e de te mplos: cf. ainda a pre se nça
nas Tábuas lgu 1·i11as. o impo nant e tex to úmbrio co m o reg ulame nto re lig ioso
das cerimón ias da cidade de lguuium, do teónimo Fisie). V. a propósito Georges
Dumézil. La religio11 ro111ai11e archaii1ue. pp. 190- 19 1. 208-210. Frequente e m
frases em que o locuto r e mpen ha a sua palavra. po r ex .. e m ju ra me ntos. sob a
fó rmu la per Dium Fidium (iuro) ..ju ro por D . F.··. o u 111e Diiu.1· Fidius (iuuel)

[551
será com alegria que o homem sáb io abandonará estas
trevas e caminhará em direcção à luz 161 , sem destruir as
barras da sua pri são, poi s tal é proibido pela lei, mas tal
como faria se convocado por um magistrado ou qualquer
outra autoridade leg ítima, res ponderá ao chamamento e à
ordem divina . Na sua tota lidade . confor me di z o mesmo
Pl atão 16", a vida dos filósofos nada mais é do que uma
XXXI 75 preparação para a morte. Afi nal , o que fa zemos nós quando
rejeitamos o prazer, isto é , os interesses do corpo , quando
des prezamos os bens patrimoniai s, que não passa m de
servidores e cri ados do corpo , quando nos afasta mos da
vida pública , isto é, quando renunciamos a toda a activida-
de política, o que fazemos nós, repito, senão convocarmos

··ass im D. F. me ajude' ... equivalen te a outras in vocações ele di vindades. como


é o caso ele Herc11/es = ··que H. me va lh a I ••• nome que . de tão usado. quase se
tran sformou num a mera interjei ção: herc/e ··por Hércu les' ... Na nossa tradução
optámos por escrever a fo rma aportuguesada cio nome da divindade. em vez de
a verter de uma forma incarac terística (co mo fa z Gigon. que tradu z por hei Cou
--por Deus 1··) . ou por me io de uma ex pressão que procura reprod uzir o co nteúdo
se mântico ela in vocação (King: o/a .rn ret_,. ··de ce rteza. sem clú vicla··: L. Z. Cle-
rici: te lo assirnro ··eu to ga ranto 1··). em ate nção à pouquíssima frequê ncia com
que Cícero recorre a esta fó rmu la.
16 1
Note-se a imagem con trastante da s trevas para conotar a vida terre na e da
luz para aludir à vicia eterna na presença dos de uses . que ta nt a fo rtuna ga nh aria
na literatura inspirada pelo cristiani smo. cf u.g .. em Dante a oposição entre o
mundo inferna l (treva= Inferno) e o mundo ce lestial (lu z = PCiradiso) . e a gra-
dação que se veri fica no Pu rgatorio. co mo passage m el a treva para a luz.
162
No texto latino apenas se lê: 111 ait ide111 = ··conforme di z o mes mo··. Mas
quem é este ··o mesmo'°') Clerici e J. Humbert optam por Pl atão: "dice a11com
Plaw11 e'" , "cm11111e /e dit e11core P law11··. res pecti va mente: Gigon prefere Só-
crates: "wie derse lbe Sokrates .mg1··. O facto é que o tex to latino pode ser visto
como um texto ambíguo . dado qu e esta opin ião era se m dúvida parti lhada tanto
pelo mest re como pelo discípu lo. e por isso a versão ele Kin g é: "Cis the sa111e
wise 111a11 sm·s .. _se m identifi ca r quem era. em se u entender. "the wise man··. Se
atendermos. porém. a que este dese nvolvimen to text ual ele Cíce ro é um a longa
paráfrase do F édo11 platóni co, parece que não inco rreremos em erro se alinhar-
mos com os fi lólogos que preferem Pl atão .

[56J
a alma para se ocupar de si mes ma, a obri garmos a concen-
trar-se em si e a afas tar-se o mais possíve l do corpo? Ora
separar a alma do corpo não é mais do que, simpl esmente,
aprendermos a morrer. Acredita em mim , preparemo-nos a
viver apartados do nosso corpo , ou seja, habituemo- nos
a estar mortos . Deste modo , enq uanto estivermos neste
mundo, teremos uma vida simi lar à vida no além: quando
nos libertarmos desta prisão e partirmos para o alto , mais
célere será o percu rso a percorrer pela nossa alma. As al-
mas que nunca se libertara m das peias deste corpo , mesmo
quando delas são so ltas , avançarão mais lentamente, como
aqueles homens que passaram muitos anos postos a fe rros .
Quando chegarmos ao além, então sim , começaremos
a viver: esta vida presente é que é de fac to a morte , dela é
que eu poderi a lamentar-me, se di sso ti vesse vontade.
A. - Já lamentaste <bastante a tri steza> desta vida na 76
tua Consolação 163 • Eu por mim , quando a leio, nada me
apetece mai s do que deixar o mundo. Depois de ouvir as
tuas palav ras ainda muito mais me apetece.
M .- Há-de chegar, e bem depressa , a tua hora , quer
resistas quer te apresses . O tempo voa . Tanto mais longe
de ti está a ideia de que a morte é um mal, como não há
muito ainda te parec ia ser, que chego a recear que não haja
para o homem nada que, com maior certeza, não só não
seja um mal, como também seja o maior dos bens, se de
facto, <depois da morte> , nós ou nos transformaremos em
deuses , ou viveremos na companhi a dos deuses 164 •

163
O tex to de conso lação que C ícero esc re ve u para si mesmo na sequê nci a
da mone da fi lha Tú lia (v. C ícero. Texrusfilosôficos / , pp . XV-XV II ).
164
Pohl enz postu la neste po nto um a lac una . que suge re possa se r comple-
tada por algo deste gé ne ro : ··mas jcí é altura de in vestigarmos as opiniões de
0111rosfilósofos sobre esta que.m io··.

[57]
A. - Onde queres chegar?
M .- Há quem não aceite estas ideias. Ora e u não que-
ro terminar este nosso diálogo sem que fique s convencido
de que não existe nenhu ma razão para considerar a morte
como um mal.
A . - Como poderia , depoi s de escutar a tua expla-
nação?
77 M . - Como poderias , perguntas tu ? Repara nas multi-
dões que se pronunciam contra esta teo ri a, e não apenas os
Epicuri stas, que de resto eu não desprezo! Mas , não sei
porquê , mes mo os mais doutos de entre os filósofo s, mes-
mo o meu favori to Dicearco 165 , combateu com o maior
vigor a tese da imortalidade da alma. Escreveu três li vros,
ob o título Diálogos em Lesbos 166 , por narrarem uma
di scussão reali zada e m Mitilene 167, e neles defende a ideia
de que a alma é mortal. Os Estóicos, por seu lado, conce-
dem-nos um generoso emprést imo, parecem querer fazer

165
Dicearco de Mess in a. peripatéti co (cf. supra. § 2 1): Di ógenes Laérc io
( III. 4) ci ta a sua obra n EQl j3ü.üv ··sobre as formas de vidaº'. como contendo
a informação de que Pl atão teri a um di a parti c ipado na prova de luta dos Jogos
Ístmicos. Num a carta a Ático datada de I de Junho de 45 a. C .. Cícero pede ao
ami go que lhe remeta os dois livros da obra de Di cearco intitul ada n EQL 'ljnJX~Ç
··Sobre a alma·· (Ep. ad A11icu111 , XIII . 22. 2). porque essa , e outras obras domes-
mo autor que aí menciona. apti esse111 ad id quod cogito "são important es para
o trabalho que tenho entre mãos··. Sobre a presença do Pe rípato nas T11sc11/a11as
de Cícero v. o artigo de C. J. Classen -- oi e Peripatetiker in C ícero ·s Tuskula11e11··
(in Fortenbaugh-Stei nmetz 1989 , pp. 186-200): cf. ibid .. p. 199 n . 5. em que oA.
regista os passos da obra de Cícero. além das Tuscu/anas. e m que são menciona-
dos Di cea rco e outros peripatéti cos.
166
A presença neste título da pal avra .. diá logos·· é mera mente conjectural:
o título latino me ncionado por Cícero é apenas Lesbiaci (se. libri) lit. ·•Livros de
Lesbos ... a que corresponderia em grego /\rnj3taxo( (se. À.ÓyOL) lit. ·' Di scursos
de Lesbos ... O tex to de Dicearco. portanto. poderia não ter a forma de diálogos.
mas sim a de pre lecção, conferência.
167
Mitilene era a cidade mais importante da ilha de Lesbos. donde eram
naturais o poeta Alceu e a poeti sa Safo .

f58]
de nós gra lhas 168 : di ze m que as almas, se m se re m imortai s,
têm uma longa duração • Ora bem , tu não queres o uvir XXXII
169

por que moti vo. mes mo qu e estes esteja m co m a razão ,


ainda assim a morte não de ve ser tid a co mo um mal ?
A. - Como que iras, mas nin g ué m me di ss uadirá de
que a alma é imorta l.
M .- Aprovo a tua determin ação, mas e m todo o caso 78
não deve mos co nfiar de masiado no que quer que seja.
Por vezes de ixa mo- nos pe rsuadir po r a lg uma co nc lu são
intelige nte , mas depois hes ita mos e mudamos de opinião
mesmo a propós ito de qu estões mai s transparentes. Neste
nosso proble ma não de ixa de have r algo de obscuro .
Convém , po rtanto, estarm os preve nid os para afrontar
qua lquer eventualidade .
A. - Muito be m, mas farei todo o possíve l por que
nenhuma se ve rifiqu e.
M .- E achas que há alguma razão que nos impeça de
mandar embora os nossos amigos Estóicos? Que ro e u
dizer, os defen so res da te. e de que a a lma permanece,
embora não para se mpre , após se parar-se do co rpo .
A. - e nhuma , já qu e depoi s de assumirem a defesa
do ponto mai s difícil em toda esta questão , isto é, que
a alma pode subsistir de poi s de separar-se do corpo, se
rec usam a aceitar que e la , ainda que subs ista durante
bastante tempo , é imorta l: ora este último ponto , desde que
se admita a sua tese <da subs istê nc ia da alma>, não só
é fácil de aceitar, como é a consequência lóg ica dessa
mesma tese.

168
As gra lh as e ram tidas como aves dotadas de uma vida muito longa .
169
Arrio Díclimo (e m SVF. II . 809 = Raclice. Swici awichi. p. 722 ). algum
1e111po.

159]
M .- Pertinente crít ica, a tu a! A situação é essa que
79 dizes . Devemos então dar crédito a Panécio neste ponto
em que es tá em desacordo co m o se u caro Platão 17º?
O facto é que , sempre que fala <de Platão> , ele chama- lhe
"divino", '·o mais sáb io, o mai s veneráve l, o Homero dos
filó sofos'' , mas discorda dele apenas nesta questão da
imortalidade da a lm a. Parte do princípio, que ninguém
nega, de que tudo quanto nasce , morre; ora as a lm as nas-
cem, como o comprova a semelha nça ent re progenitores e
descendentes, seme lh ança que se nota tanto no carácter
como na aparência fís ica. Outro argumento que e le aduz é
este: tudo quanto é susceptíve l de sofrimento é também
susceptíve l de adoecer; todo o organismo ex posto à doen-
ça está também expos to à morte ; ora a alma está exposta
XXXIII 80 ao sofrimento, logo está também exposta à morte. Esta
argumentação é fácil de refutar. Quem a produ z ignora
que, quando se fala da etern idade da alma , o qu e se tem em
vista é a me nte, a qual está semp re isenta de toda a es péc ie
de agitação desordenada, e não daque las partes <da al ma>
em que se processam as preocupações , os acessos de
cólera , as paixões, que Platão, o alvo desta crítica 17 1, con-
sidera afastadas e sem co municação com a mente 172 .
A se melhan ça que acima refe ri é mai s acentuada nos ani-
mai s, cujas almas carecem de razão ; no caso do s homen s a
seme lhan ça nota- se mai s na configuração gera l do corpo, e
por isso é muito importante saber as qualidades do corpo
em que <a alma> reside . H á, de facto, muitas influências

170
Pane zio. Tes1i111011ia11~e e .fra111111e111i. introd uzio ne .. a cura di E. Vimer-
cati . A99 ( p. 128 )
17 1
I. e .. a arg umentação produ z ida por Panécio. que Cíce ro acabou de sinte-
tizar.
in V. Pl atão. Repúhlica. 4 39 d.

[601
provindas do corpo q ue co ntribu em para aguçar a me nte , e
muitas també m que a to rnam obtusa . Di z Aristóteles que
todo o homem muito ta lentoso tem um certo grau de
loucura 173 , e por isso e u até não me impo rto nada de ser um
pouco le nto de es pírito. Enumera e m seg uid a muitos
exe mpl os, e, dando o caso co mo estabe lec ido, passa a
ex plicar a razão po r qu e este fenómeno sucede . Se para
a co nfo rmação da me nte têm ass im ta nta impo rtâ nc ia as
característi cas corpora is , e se são estas , seja m e las quais
fo rem, as res ponsáve is pe la se melhan ça, nem por isso a
ex istência de semelha nça impli ca o nascime nto da a lma. 81
Não fa lare i das di sse me lh a nças. Mas gostaria que tivésse-
mos aqu i connosco Pa néc io, o a mi go de Cipião Emili ano 174 ,
para lhe pe rg untar co m qu al dos se us fa mili ares se asseme-
lhava o neto do irmão de Emi li ano 175 , parec ido de rosto
talvez co m o pa ,, mas pe lo es tilo de vida de tal modo
semelhante a todos os dege nerados do se u te mpo , que
fac ilme nte se ri a co ns ide rado o pi or de todos . E també m

171
Aristótel es. Pro/J/enws. XXX . 1: " Por que 11wti1·0 é que os lun11e11.1·
excepcio11ais. seja co1110/ilrisoji1.1·. cm1w políticos . como poetas. 011 1w tâ1•eis e111
qualquer outra arte. sâo todos biliosos . e há 111es11w a/;;1111.1· que seio de 1al modo
afectados pelo excesso de hí/i.1· que düo os res11l1ados ,·isÍl'eis e111 certo., her<Íi.1
da fâb 11/a. co11w Hérac/eS:'" - Sobre as ca usas e efe itos da loucura no caso de
heróis míti cos veja-se a tragédia Héracles de Eurípides.
174
Panécio (c. 185- 109 a . C.). fi lósofo es tóico natural de Rodes. vive u
algum tempo em Roma. onde frequent ou o círcul o intelectual ele Cipião Emiliano.
Panécio conta va-se entre os se us am igos íntimos. a pont o ele o ter aco mpanh ado
numa mi ssão ao Egipto e à Ásia Menor.
175
Q. Fábio Má ximo Emilian o . irmão ele C ipião Emi liano . teve um filh o
que foi acloptaclo por Q. Fábio Labeão . e tomou o nome de Q. Fáb io Máx imo
Al obrógico: é a um ti lho deste . jovem cl is,oluto. que Cícero se refere . como ccm-
traprova ela posição de Panécio . po is todos o, se us asce ndentes. quer da fam íli a
natu ral. quer da famíli a de adopção . e ram fi guras not áve is. Seg undo Valéri o Má-
ximo (Ili. 5. 2). ele levava uma vicia ele tal modo depra vad a qu e o pretor urbano
Q. Pompeio interdito u-lhe o acesso aos bens herd ados do pai .

1611
com quem· se parecia o neto de P. Crasso 176 , home m c ulto ,
e loq ue nte , cidadão de primeira; e ainda os netos e fi lhos de
tantos e de tão ilustres figuras que não vale a pena nomear.
Mas para qu ê este arrazoado? Po rventura esquece mos que
o nosso propósito, de poi s de te rmos discutido com abun-
dância a questão da ete rnidade <da alma>, era demon strar
que , ainda mesmo qu e a alma seja mortal. ne m por isso a
mo rte me rece ser tida por um mal?
A. - Eu não me esqueci , mas não me importa nada
que nos afaste mos do nosso propósi to para te ouvi r fa lar
da etern idade <da a lma>.
XXX IV 82 M . - Vejo que ten s ideias elevadas e que o te u desejo
é em igrar para o cé u. Espero be m q ue um dia o possamos
fazer. Mas admite agora o que estes fi lósofos querem : que
as almas não subsistem após a morte . Se for este o caso
be m vejo que nos é ro ubada a espera nça numa vida mais
fe li z, mas o que te m esta teo ri a efec ti va mente de mal?
Admite que a alma mo rre e m simultâ neo com o co rpo:
porventura, depoi s da morte , o co rpo sentirá a lguma dor,
ou terá qualquer outra se nsação que seja? ingué m afirma
ta l coisa, e mbora E pic uro in si nue que De mócri to pe nsa as-
sim ; mas os seguid ores de Demóc rito nega m-no. Po rtanto,
a se nsibilidade não pe rsiste na a lma, e a pró pri a alma não
subsiste e m lado a lgum . Onde é qu e está e ntão o mal, uma
vez qu e não há te rceira poss ibilidade? No facto de a sepa-
ração da alma e do corpo implica r algum sofrimento ?
Ainda que o ace ite mos , co mo se rá diminuto , esse sofri -
me nto! Mas e u não c re io: a separação dá-se em geral sem

176
Deve tratar-se de P. Licínio Crasso. cônsul e m 97 a. C.. irmão do triún-
viro M . Licíni o Crasso. Este se u descende nte que Cícero aqui menciona endi -
vidou-se tanto que teve de vender todos os se us bens para conseguir pagar aos
credores (c f. Va lério Máxi mo . VI. 9. 12).

[62]
que demos po r e la 177 ; às vezes até poderá causar um certo
prazer, e m qua lq uer caso é irre levante , poi s tudo se passa
numa fracção de te mpo min úscula. "Mas o que sobretudo 83
causa angústia" - dir-se-á -, "é a privação de todos os
bens de que gozamos na vida." 178 Pensa se não seri a ma is
correcto di zer-se: "de <todos> os males ". M as para quê
lamentar agora a vida humana? Posso fazê- lo com razão ,
com justi ça . M as para quê, agora que estou a demonstrar
que não deve mos j ul gar-nos infe li zes depois da morte ,
lamentar a vida e torn á- la ass im ma is infe li z a inda? Já fiz
isso, na medida do possível, naquele li vro em que procure i
consolar-me a mim mes mo 179 • Se que remos ser j ustos , é
dos males que a morte nos libe rta , não dos be ns. Esta
ideia fo i tão exausti vame nte defe ndida po r Hegés ias de
Cirene 180 , que fo i proi bido pe lo rei Pto lo me u 18 1 de abordar
este terna nas suas co nferê nc ias: porque muitos dos que o
escutavam corriam a sui cidar-se .
um epi grama que escreveu sobre Teómbroto de 84
Arnbrác ia 182 , Calímaco di z que este, e mbora não lhe ti vesse

177
É o que sucede com o doente a que m é m in istrada a an estes ia: a passa-
gem da co nsc iênc ia para a inco nsc iê ncia é instant ânea .
178
Esta observação é colocada por Pohl enz entre comas, interpretando-a
como atribuível ao chamado '"interloc utor fic tíci o··.
179
Mais uma vez . alusão à Consolação esc rit a depo is da morte da filha .
180
Filósofo da esco la c irenai ca: viveu na prime ira metade do séc ulo 111 a. C.
Em virtude do seu pess imismo extremo recebeu a alcunha de nt::LOL0ávm:oç
··o advogado da mone·· (lit. aquele que recomenda !aos outros! a morte).
181
Pto lomeu I Soter (re i do Egipto. de 323 a 283 a. C.) o u Pto lo meu li Fila-
delfo (28 5-246 a. C.).
182
.. 'Ó Sol , adeus '' , exclamou Cleó111bro!O de Ambrácia, e saltou para o

Hades do alto da muralha , não por e11col1/rar algum 1110/ digno da morte, mas
porque acabara de ler u111 texto de Platão sobre a al111a " (Ca límaco. Werke, hers.
von M . Aspe r. Epi gra mmata . 53. p. 486 = 23 Pfe iffer). A mudança de nome no
texto de Cícero (troca de C leómbroto por Teómbroto) deve-se ce rtame nte ao
fac to de este menc ionar o poema de cor. - Ambrác ia: c idade do Sul do Epiro.

[63]
suced ido nenhum a desgraça, se atiro u das muralhas ao
mar em conseq uência de ter lido o Fédon de Platão 183 •
Quanto a Hegésias, a que aci ma fiz refe rência, esc reveu
um li vro intitulado A noxagi;Egwv 184 : ne le fa la de alguém
que deixou de comer para morrer de inanição , mas é dis-
suadido de ir até ao fi m pe los ami gos, a quem ex plica a sua
atitude e numera ndo todos os co ntratempos e m que a vida
humana é fértil. Eu poderi a faze r o mes mo que ele, em bora
se m ser tão radical a ponto de pensa r que a vida não é van-
tajosa para ning uém . Mas esqu eço os outros : porventura a
vida ainda é vantajosa para mim ? Destituído como estou
das conso lações da vida pri vada e das honrarias da vida
pública 185 , se já ti vesse morrido há algum te mpo , a morte
ter-me-ia decerto afastado de males, e não de bens.
XXXV 85 Veja mos agora o caso de alg ué m que não passo u por
nenhuma desgraça, que não recebeu ne nhum go lpe da
fortuna: o famoso Mete lo 186 teve quatro filho s, e todos eles
alcançaram as mai s altas magistraturas; Príamo 187 teve cin-
quenta , dos quai s dezassete nascidos da esposa legítima 188 •

na Grécia de SW. - Calímaco . o mai s cé lebre poeta grego da época helenística.


Da sua vasta obra chegaram até nós intactos 6 1 Ep igra mas e se is Hinos . e impor-
tantes fra gmen tos de ou tras obras.
181
No original. Cícero escreve apenas "o livro de Pl atão". Que esse " livro"
era o Fédo11 decorre da temática que está a ser desenvolv ida.
.i Lit. '·(o homem) que faz greve da fome' ' . i.e., que se sui ci da por in ani ção.
18

185
O desgosto pela morte da filha (v ida privada). o afastame nto da vida
política e judicial (consequência da ditadura de J. César).
186
Quinto Cecílio Metelo Macedóni co, cônsul em 143 a. C .. áugure de 140
a 115. censor em 13 1. entre o utros mu itos cargos que dese mpenhou . Sob re ele. v.
Plínio. N .H .. VII . 142 ss .. que o considera "u111 dos raros exemplos da f elicidade
humana ".
187
O rei de Tróia, na Ilíada de Homero .
188
Héc uba . Segundo Homero, Príamo teve ci nquenta fi lhos e doze fi lhas
(Ilíada, VI. 242-250): os filhos legítimos foram deza nove (Ilíada. XX IV. 496),e
não dezassete . como di z Cícero. por lapso.

[64]
Idêntico era o pode r da fortuna sob re am bos 189 , mas só o
exerceu no caso do seg undo : o corpo de Metelo foi levado
à pira fúnebre por uma multidão de fi lhos, fi lhas, netos e
netas , enq uanto Príamo, quando, depoi s de mortos todos
os seus desce nde ntes, se refug io u no altar, fo i aí morto por
mão inimi ga 190 • Ora se e le tivesse morrido quando a inda
viviam os fi lhos e o se u reino esta va incólume,
... com todo o luxo asiá1ico,
e os tectos com cin::,elados caixotões 191 ,

de que se veria e le privado, de bens ou de males? o pró-


prio mome nto , pareceri a decerto que de bens . o entanto
a morte teria s ido preferíve l, e não haveria dado luga r a
este canto dol o roso:
Todo o palácio eu vi paslo das chamas,
vi Príamo cair vítima de morte violenta,
e manchado de sangue de Júpiter o altar 192 •

Como se nesta ocasião não fo sse a mo rte vio le nta o me lhor


que lhe poderia acon tece r! Se ti vesse morrido antes não
teria tido um fim tão lame ntável ; agora, pe lo menos,
deixou de dar-se co nta da desgraça.
O meu ami go Pompe io , um dia adoeceu gravemente 86
em Nápoles, mas de poi s recuperou . A ge nte de Nápoles
cobriu-se de co roas 193 , e, co mo era natural , o povo de
Putéolos 194 fez o mesmo, e nas povoações vizinhas ti veram

189
l.e .. quer sobre Mete lo. quer sobre Príamo.
190
Príamo foi mon o por Pirro. també m chamado Neoptó le mo). filho de
Aqu iles (Vergíl io, E11eida. li. 506-558).
19 1
Énio, Andrómaca. vv. 103- 104 Warmin gton .
192
Éni o, ibidem , vv. 106-108.
193
De flore s , em si nal de regozijo pela recuperação de Pompeio .
194
Pequena cidade vizinha de ápoles. hoje Pozwoli.

[65 1
lu gar man ife stações públicas de sati sfação, co isa frívo la e
própria de Gregos, mas, e nfim , sinal de fe lic idade.
Suponhamos, poré m , que Pompeio tinha suc umbido à
doença: escapava a uma boa ou a uma má conjuntura?
A uma má, com certeza, po is não te ri a e ntrado e m guerra
co m o sogro 195 , não teria pegado e m armas co m de fi ciente
preparação, não te ria de ixado a sua casa, não te ria fu gido
da Itáli a , não se te ria e ntreg ue ine rme, depoi s de pe rder o
seu exército , nas mãos e nas armas de esc ra vos , t não
196

te ria hav ido razões para chorar os seus filho s 19 7 , ne m todos


os seus be ns te ri am passado para a posse dos ve ncedores.
Se Po mpeio tivesse fa lecido e ntão , te ri a morrido no apo-
geu da sua carreira; o prol o nga me nto da vida só lhe trouxe
XXX VI inúmeras, e normes , inc ríve is desgraças! A estes males
podemos esca par pela mo rte; aind a que e les não ve nh am a
ocorrer, ne m por isso deixa de ex istir essa possi bilidade.
Só qu e os ho me ns não pensam que e les podem suceder:
cada qual tem es perança de ser tão afo rtunado como
Mete lo , como se fossem mais numerosos os afortun ados
do que os infe li zes, co mo se algo de certo ex isti sse na vida
human a, ou fosse mai s prude nte ter espera nça do que
receio.

' Po mpeio fo i casado com Júlia. fi lha de J . César, fa lec ida em 54 . A guerra
19

civ il que o opôs a César teve in ício e m 49 : depo is de ve ncido e m 48 na batal ha


de Farsália . Po mpe io d iri giu -se para o Egipto. o nde foi assass inado por ordem
de Pto lo meu XII. ou dos seus mini stros.
I% Os soldados egípcios a cuja protecção se confi o u e por quem foi assas-

sinado .
197
Tex to co1Tompido: lit. os (se us) dois filhos /amemado.\', o que é absurdo.
porque qu ando Pompeio mo rreu ainda os se us dois fi lhos estava m bem vivos.
Ambos. G neu e Sex to. continu aram ai nd a algum tempo. de poi s da morte do
pai , a luta cont ra as fo rças cesari a nas . se m sucesso. Em 45 a. C. . as tropas que
e les co man davam fora m ve ncidas por César na Batalha de Mund a. na Península
Ibéri ca.

í66l
Mas aceitemos que a morte priva os homens de mui - 87
tos bens: por acaso isto significa que é uma infelicidade
para os mortos carece rem das benesses da vida? Há quem
diga que esta será a conc lu são lóg ica a tirar. Mas será pos-
sível qu e quem não existe si nta a fa lta de alguma coisa?
O que é triste é a expressão verbal " sentir a fa lta", por-
quanto pressupõe : ele teve , mas já não tem ; deseja, procura ,
m falta de alguma coisa . Em meu entender, é isto o que
torna tri ste a se nsação de alguma falta : quem não vê está na
tri ste situação de ser cego, quem não tem filhos sofre com
a sua ausência. Mas isto é vá lido para os vivos, os mortos
não sentem a fa lta dos bens que a vida proporciona, não se n-
tem seq ue r a falta da própria vida . Eu estou falando dos
mortos ,dos que não existem : porve ntura nós ,os vivos, se nti -
mos a falta de cornos ou de penas ? Alguém o admi tiri a?
Decerto que não. M a is ainda: quando alguém não possui
alguma coisa que não lhe serve de nada nem seq uer é adequa-
da à sua natureza, não se nte a sua falta, e mbora sa iba que
não a possui . É este um argume nto que devemos co m toda 88
a urgê ncia repetir e inte riori zar, depoi s de estarmos co n-
vencidos de ste o utro ponto, a sa ber, que não pode mos duvi-
dar, caso aceitemos a mortalidade da alma , que na morte o
desaparecimento é tão completo que não resta em nós nem
o mínimo resquíc io de se nsação. Depoi s de bem ana li sado
e fixado este ponto há que ir ao fundo da questão e inves-
tigar o que significa " ter falta", para que não subs ista
nenhuma ambi g uidade . Ora " ter falta" significa carecer de
algo que se deseja poss uir; " ter falta" implica "vontade", a
menos que se esteja a falar de " não te r feb re", mas neste
caso a expressão tem outro se ntido 198 . També m se pode

198
1. e ., se di ssermos de um doe nte que ·1e111 fc1ila de feb re·, apenas quere-
mos di zer que ele e.wá sem f ebre. que 11âo 1e111fe bre. e não que ·es1á co111 ,·0111ade
de ter febre ·.

[671
em pregar a expressão ··ter fa lta '" a res pe ito de a lg ué m que
não tem algo, sabe que não tem, mas não se importa nada
com isso . " Ter fa lta·· não é expressão apropriada quando se
fa la de mo rte, porque , neste con tex to, não há lu gar para o
sofrime nto; pode di zer-se " te r fa lta de um be m", e isso é
que é um mal. Mas nenhum ho me m vivo "tem fa lta de
a lgo" se não precisar desse a lgo para nad a. Mas já faz sen-
tido, a propósito de a lg ué m vivo , dizer que ·'te m fa lta do
poder"; e mpregar esta expressão a teu res pe ito não fará , de
fac to, gra nd e se ntid o, mas já fa ri a se a usásse mos ao fa lar
de Tarq uíni o depois de es te ter sido exp ul so do trono 199 .
Mas é um a ex pressão ininte li gíve l se a usarmos a respe ito
de um morto, porquanto " ter fa lta·· impli ca um se ntimento:
ora um morto nada se nte, logo é impossíve l a um morto
'"ter fa lta de alguma co isa•·.
XXXVII 89 M as para quê estarmos aq ui a filosofar sob re um
assu nto que pode passa r muito be m sem filosofia ? Quantas
vezes os nossos ge nera is, o u mes mo exércitos inteiros não
se oferecera m a um a mo rte mais do que certa! ? Se a morte
merecesse ser te mid a, decerto Lú cio Bruto não teria caído
e m co mbate para impedir o reg resso ao poder do tirano
qu e e le próprio ex pul sa ra ; não te ri a m afro ntado as armas
inimi gas Déc io Mure, o pa i2(x i , ne m o se u fi lh o. ne m o seu
neto , nas g ue rras contra os Latino s, co ntra os Etru scos, e
contra Pirro , respect iva me nte; a Hi spânia não te ri a assisti-
do , num a mesma g ue rra , à mo rte de doi s Cipiões lutando
pe la pátri a , nem Canas à de Paul o e Gémino , Venú sia à de

'N Tarquínio-o-Soberbo . o último re i de Roma. expulso do trono em 509


1

a. C.. na datação tradicional. dando lugar ao período republicano .


1
" Xl Públ io Déc io Mure. sac riti co u a vida pa ra obter a vitória mi litar de Roma
sobre os Latinos (340 a. C.): o mesmo fi ze ram o ti lh o. em 295. e o neto . todos
co m o mesmo no me. e m 279.

1681
Marcelo , a fl oresta Lítana à de Albi no, o país dos Lucanos
à de Graco 2º1 . Porventura algum destes homens é um infe-
liz, hoje? Nem sequer o foram no momento em que deixa-
ram de resp irar 2º2 , porq uanto ninguém é infel iz quando
perdeu toda a sensibilidade. " Pois isso mesmo é que é 90
horrível, perder roda a capacidade de senrir " 2º-'. Horrível,
sim , se isso signifi casse "ter falta <de algo>" . Mas como é
ev idente que nenhum sentimento pode ex ist ir em alguém
que , simplesmente, não ex iste, que co isa pode ser horríve l
para alguém que nem sente falta , nem sente que tem falta ?
Talvez eu repita demas iadas vezes estas ideias, mas faço-o
porque a angústi a que todas as almas sentem prové m
apenas da contracção da alma provocada pelo medo da
morte. Alguém que ti ver bem entendido este ponto, aliás ,
mais claro que a própria luz, que , qua ndo a alma e o corpo
são consumidos , o princ ípio vital se esgota, se processa o
aniquilamento total , e o ser vivo que aí ex isti a deixa de
existir, esse alguém perceberá com nitidez que não há
qualquer diferença entre um ser inexistente como o hipo-
centauro10-1 e o re i Agamémno n, e que, nos di as de hoje,
tan ta importância tem para M . Cami lo a presente guerra
civ il , como tem para mim a captu ra de Roma na época em
que ele viveu205 . Sim, porque ha via Camilo de sofrer por

201
Referê ncia à morte heróica de vários ge nerais roma nos durante a
Segunda G uerra Púnica (2 19-202 ): os irmão, Públi o e G ne u C ipião. na Peníns u-
la Ibérica (2 12). Emíli o Pau lo e Servíli o Gémino na Bat a lha ele Canas (2 16). M .
Cláudio Marce lo em Venú s ia (208) . Postúmio Alb ino na fl ores ta Lítana (2 15).
Semprónio Graco na Lucân ia (213).
202
Lit. .. após o último sus piro ...
20
·' V. supra. n. 178.
20
• O mesmo que. simplesmen te. cent auro . ser mitológ ico meio
homem . me io cava lo.
205
M . Fú ri o Camilo. he ró i da é poca repub licana. liberto u Roma dos Gaule-
ses que haviam capturado e saqueado a cidade cerca de 390 a. C. Pe nsa-se qu e

1691
ca usa destes eventos pos terio res a e le perto de trezen to e
c inq ue nta anos, e porq ue he i-de sofre r eu , se imag inar que
daq ui a dez mil anos um povo q ua lq uer se apodera rá desta
nossa cidade? Ape nas po rque é tão gra nde o nosso amor
pe la pátria que não o ava lia mos em fun ção daquil o que
podemos se nti r, mas sim do q ue pensamos ser a sua
prese rvação.
XXX VIII 91 O sáb io não se deixará assustar pe la morte: esta, se m-
pre imine nte dev ido aos aciden tes q ue a q ua lquer hora
podem verificar-se, e , dada a brev idade da vida, nun ca de
nós muito di sta nte, não o deve impedir de continu amente
dar toda a sua ate nção à salvação da Rep úbli ca. pe lo mes-
mo mo ti vo po r qu e ve la pelos inte resses da sua progénie.
conqu a nto de la não possa ter co nsc iê nc ia. Po r isto , ainda
q ue se ace ite a mo rta li dade da a lma, devemos trabalhar
para a ete rnid ade, não po r qu a lqu e r desejo de g lória de que
não pode re mos desfrutar, mas po r a mo r da virtude, que.
mes mo sem se r esse o nosso o bjecti vo, não deixará de ser
bafejada pe la g lória.
Se , de acordo com as le is da natureza , ass im co mo o
nasc ime nto re presenta pa ra nós o iníc io deste mundo, a
mo rte represe nta o seu fim , do mes mo modo, ta l como
nada nos di z res pe ito a ntes de nasce rmos, ta mbé m nada
nos di z res pe ito de po is de mo rre rmos. Nesta situação,
co mo pode ser a mo rte um ma l, se e la não di z respe ito nem
92 aos vivos, ne m aos mo rtos ? Estes não exi ste m , aos outros
e la a inda não os atin g iu 206 . Que m prete nde minimi zar o

teri a sido durante esta in vasão que foram destruídas as Doze T,íbuas originais
redi gidas pe los Decênviros em 451 a. C.
'º" Entenda-se: os vivos, enq uanto vivos. estão isentos da morte: quando
esta exe rce sobre e les o seu poder. e les cessa m de estar vivos. Por o utras pal a-
vras; vida e mo11e nun ca podem coex istir. Cf. Epicuro. K ÚQLOL ból;m (Má.rimas

f70]
impacto da morte di z que é um estado e m tudo semelhante
ao sono 207 : co mo se fosse possível um home m desejar vi-
ver até aos noventa anos, mas, ao chegar aos sessenta , pas-
sasse os restantes trinta a dormir! Nem os porcos 208 deseja-
riam tal coisa , quanto mai s e le próprio! Se qui sermos
recorrer às fábulas , temos o caso de Endimião 209 , qu e ador-
meceu, sabe-se lá quando, no monte Latmo, na Cária , e ,
imagino e u, ainda não acordou ... ! Al gué m pe nsará que e le
se preocupa com os ecl ipses da Lua , quando se diz que foi
esta mesma que o pôs a dormir para o poder beijar durante
o sono ? Com que há-de preocupar-se algu é m que se en-
contra desprov ido de sensações? Diariamente cais num
estado , o sono , que é uma image m da morte , e mesmo as-
sim não aceitas que na morte não há sensações, quando no
seu simulacro não ten s se nsação al guma? !
Afastemos, por conseguinte , de nós estas crendices XXXIX 93
de velhinhas tontas: que é uma desgraça morre r antes de

soberanas). li : "A ,norte nada 1e111 a ver connosco: um corpo sem vicia ncio 1e111
sensações, e a ausência de sensações nlllla /em a ver connosco."
207 Na rea lid ade. a ser seme lhante ao so no. sê-lo-á ao sono induzido por

anestesia. por exe mpl o. Durante o sono propriame nte d ito a pessoa pode son har,
o que não acont ece durante um a anestes ia.
208 Tradução segundo a c lasse de manu scritos ma is fiáve l (famíli a X). que

apresent a a leit ura sues " porcos•·: 11e sues quic/em icl ue/inr (le itura ace ite pe lo
ed itor da Coll ect ion des Uni vers ités de France. J. Hum be rt ). A o utra fam íli a de
manusc ritos (fa míli a Y ) tem o inconvenie nte ele se terem perd ido todos os có-
dices a ela pertence ntes. pe lo que as suas lições apenas são con hec idas . o u por
algumas con-ecções int roduz idas em mss. da fa mília X. ou po r códices mai s
recentes (do Re nasc ime nto) . que as o ferece m. A sua lei tu ra é sui (= os seus fa-
mili ares). ace ite por vários editores. no meada me nte Po hlenz. O te xt o segu ndo
esta famíl ia. ne .mi quiclem icl uelinl . tradu zir-se- ia: " nem os seus fa miliares
deseja riam /ai coisa " .
209
Apolodoro. Bihlio1eca, 1. 7. 5 (56): .. Di:em alguns que era filho de Zeus.
Se/ene [a Lu al apaixonou-se pela sua bele:a.fára do comum. e Zeus prornereu
sarisfa:e r um pedido que ele .fi:esse. à sua escolha. Enc/im icio escolheu .ficar
para sempre ac/or111ecic/o. sem nunca morrer 11e111 em•elhecer."

[7 1]
tempo. Mas antes de que tempo? O <fixado> pe la natu-
reza? Repara que a natureza deu -nos a vid a como se
se tratasse de um empréstimo sem data de solvência prede-
terminada. Porq uê lamentares-te se e la pode exi g ir-te que
pagues quando muito bem quiser? Foi nes tas condições
que o co ntraíste. As mes mas pessoas que acham de vermos
aceitar com calma a morte de um rapazito , pensa m que
nem seq ue r deve lamentar-se a morte de uma criança de
berço. No e ntanto a natureza foi muito mai s dura neste
caso quando exigiu o pagamento da dívida. Dir-se-á: "Esta
criança ainda não tinha experimentado as doçuras da vida,
ao passo que a primeira já tinha começado a gozá-las,
já tinha grandes esperanças para o .futuro." E m outras
situações tu mostras mai s di scernime nto , qu ando dizes
que é mel hor ter um a peq ue na pa rte do que não ter nada:
porque é que , no caso da vida , as co isas hão-de se r diferen-
tes? No e ntanto , não de ixa de ter razão Ca límaco quando
di z que Príamo c horo u muito mais do que Troilo 21 º. Em
contrapartida costuma exalta r-se a sorte dos que morrem
94 em idade avançada . Porquê? Porque nin gué m poderia ser
mai s feliz, imag ino e u , se a sua vida ainda se prol ongasse;
além disso porque nada é mai s agradável ao homem do
que a sabedoria 2 11 , faculdade que a velhice proporciona ,
ainda que o pri ve de todas as de mais 2 12 • Afinal , quando

° 21
Ca lím aco. fr. 375 Asper (= 49 1 Pfeiffer): µd.ov t bá x gum::v T gw01.oç i\
n g(a µoç "Troilo chorou menos do que Príamo ". Toda esta frase(" o entanto .
. . . . . . . . .do que Troiloº') é colocada por Pohl enz e ntre parênteses. - Troil o era o
mais novo dos filh os de Príamo e Hécuba. morto por Aquiles no templ o de Apolo
logo após o desembarque das forças gregas em Tró ia (Apolodoro, Epírome, 3.
32 ., cf. Vergíli o . E11eida, l. 474-477).
2 11
Em lat. : prude111ia .
2 12
A comprovação desta tese encontra -se no opúsc ul o de Cícero Cato
Maior de senecture.

í72]
pode di zer-se que uma vida é longa? Em termos humanos ,
0 que pode cons iderar-se ·' longo"? Não é verdade que a
velhice ,
Seja a crianças ou a adolescentes Fem no encalço
Sempre, e alcan ça-os sem que dêem por e/a 21 ' ?

Mas como não dispo mos de mais tem po, já achamos este
"longo". Em todos os casos , conforme for a porção que
cabe a cada um de nós, ass im a j ulgamos longa ou breve.
Perto do rio Hípani s2 14 , que, vindo da Europa, vai desaguar
no Ponto Euxino, diz Ari stóteles que nasce m uns bi chi-
nhos que vive m apenas um diam . Um destes bi chos que
dure umas oito horas morre já numa idade ava nçada; um
que morra quando o so l co meça a pôr-se já está decrépito,
sobretudo se ca lhar no di a do solstício. Compara agora
uma vida humana excepcionalmente provecta com a
eternidade e ve ri fica rás que os homens não são menos
efémeros que estes animaizinhos!
Não demos importância a todos estes di sparates- pois XL95
que nome mais frívo lo hei-de dar a toda esta "fri volida-
de"? -, e co loquemos a verdadeira importância da fe lici-
dade na energia e na grandeza anímica, por um lado, no
completo desprezo por todas as co isas humanas 216 , por
outro , e na prát ica de todas as virtudes. Actualmente

rn Verso de um comed ió2 rafo desconhecido (Ribbeck. C .R.F.. incen. 43) .


21
• Ac1ualmente o rio Bui. na crânia.
115
Aristóteles. Hi.l'tória do.l' a11i111ai.l'. 552 b 17-23. A c urta duração da sua
vida justifica o nome que lhe é dado em g rego: .. efémero .. (li1. .. que dura um só
dia").
216
Li!. "no des prezo e na reje ição ... ·· Entenda-se: por tudo qua nto na vida
do homem não passa de futilidade o u. no me lhor dos casos . de e rro de aprecia-
ção.

(73 1
de ixamo- nos de ta l modo do min a r por ide ias efeminadas217
que, se a mo rte nos colhe r antes de te rmos levado a cabo o
qu e estava prev isto nas profec ias dos Ca lde us 2 18 , senti-
mo- nos es bulhados de muitos e grandes be ns, ilud idos.
96 ludi briados. Se as ex pectativas e os desejos ape nas nos
põem num estado de ans iedade, de to rtu ra, de a ng ústi a,
pe los de uses imo rta is!, co mo não deve rá ser agradável
aqu e le ca minho e m c uj o te rmo nos e nco ntrare mos li vres
de cuidados, e de preoc upações pe lo futu ro. Co mo sinto
admiração pe lo exe mpl o de Te râ me nes 2 19 ! Que grandeza
de es pírito, a sua! Embora possamos cho rar qu ando lemos
a s ua hi stó ri a, a mo rte deste g rande ho me m não susc ita
co mpa ixão . A ti rado para a pri são po r orde m dos Trinta
Ti ra nos, levo u o ve ne no à boca co mo se esti vesse com
sede, atirou o resto que fi cara na taça de modo a fazê- lo
ressoar22 º e , ao o uvir o so m , sorrio e exc la mo u: "À saúde

7
" Sobre o en tendimen to que deve dar-se a este traço ele masculinidade mo-
ral. v. o artigo ele A lt man 2009.
' 18 Eram orig in ários ela Caldeia. Mesopotâmia. os pri meiros astró logos que
introdu ziram a astrol og ia em Ro ma. De poi s a desi gnação ge neralizou -se. e o ter-
mo "caldeu" passou a designar todo o astró logo. se m atender à sua o ri gem étnica.
' 19 Políti co atenien se. cios últ imos anos da Guerra cio Peloponeso. Tomou
parte na Revolução cios Quatrocen tos . em 41 1 a. C. As s uas te ndênc ia s modera-
das levaram-no a defender uma política me nos agress iva cio que os seus co legas
neste mov ime nto o ligá rqui co. Esta posição c ustou- lh e a hostiliclacle ele Crítias.
De poi s ela de rrota ele Atenas em 404 foi encarregado ele condu zir as negoc iações
com Espart a . Fez parte cio go ve rno dito cios Trinta Tiranos . ta l como Críti as . que ,
se mpre hosti l à sua atitude moderada. acabou por conseg uir a sua condenação à
morte.
n o A lusão a uma tradição simposíaca grega: cada conviva. no fim cio ban-
quete. devia la nça r as últimas gotas de vinho que lhe fi ca ram na taça e acertar
num rec ipiente ele meta l: ao cair no recip iente. o vinho prod uzia um som que
era interpretado como ele bom ou mau agoiro. No caso ele Terâmenes . o som
produ zido era ele ma u ago iro . uma vez que fora produzido. não por vinho. mas
sim pelo ve neno. O brinde ass im fei to a Crítias sign ificava , portan to . que este
mo1Teria em breve.

[74]
do belo Crítias 22 1! ", que fora o mais cruel dos seus adve r-
sários. Têm por costume os Gregos , nos seus banquetes ,
dizerem o nome do conviva a quem pretendem passar a
taça. Que ironia a deste homem notável , prestes a exa lar
a alma, com a morte já in stalada nas entranhas: na realidade
o que fez foi profetizar a morte daquele a quem brindara
com a taça de veneno. Crítias, de facto , morreu pouco
tempo depoi s.
Quem admiraria a serenidade deste grande espírito no 97
momento de morrer se pensasse que a morte é um mal ?
Poucos anos depoi s, Sócrates vai ocupar o mesmo cárcere
e ser condenado a beber da mesma taça, vítima de juízes
tão iníquos como os tira nos que ju lgaram Terâmenes. Ora
o que disse ele no discurso que pronunciou perante os
juízes já depoi s de condenado à morte? Esta é a defesa que
Platão lhe atribui:
"Tenho grande esperança, juízes, de que me será XLI
vantajosa esta condenação à morte. Necessariamente
suceder-me-á uma de duas coisas: ou a morte privar-me-á
de toda a faculdade de sentir, ou irei, graças a ela, emi-
grar daqui para algum outro local. Por conseguinte, ou
roda a capacidade de sentir desaparecerá, e a morte será
algo de semelhante ao sono que tantas vezes, bons deu-
ses!, sem sequer a ocorrência de sonhos nos proporciona
uma quietude sereníssima - que bom será estar morto!
Quantos dias podemos nós ter que se assemelham a uma
noite como esta ? Se com ela se parecer todo o tempo

211
Po lítico e intelectua l ateniense. paren te de Pl atão. Tal como Terâme nes .
mas assumindo se mpre posições o li gárq uicas muito mai s radicais. participou no
golpe cios Quatrocentos e fez também parte cios Trinta Tiranos. Morreu em com-
bate na guerra civil que ec lodiu em Atenas e le vou à restauração da de mocrac ia
(403 a. C.). Fi gura como perso nagem em alguns di álogos ele Pl atão . no meada-
mente no que tem o seu nome .

1751
ilimitado que venha a seiuir, quem será maisfeli-: . do que
eu ? Se for verdade a opinião corrente que a.firma ser a
98 morte uma viagem até àquelas paragens onde habitam os
que deixaram este mundo , então a minha feli cidade ainda
será muito maior. Escapar à alçada de certos indivíduos
que se consideram a si mesmosjuí-::.es e comparecer à pre-
sença de juízes que mereçam de facto esse nome , Minas ,
Radamanto , Éaco e Triptólemo 212 , ir conviver com homens
que viveram segundo os princípios da justiça e da boa
f é . .. , porventura vos parece esta ser uma jornada sem
grande interesse ? Que valor atribuis vós ao encontro com
Orfeu , Mus eu, Homero e Hesíodo 223 ? Se isso fosse possí-
vel, quase desejaria morrer mais do que uma ve-::., desde
que pudesse desfrutar das visões de que vos falo. E que
prazer não sentiria eu no convívio com Palamedes, com
Ájax, e ainda outras vítimas de atentados à justiça!
Poderia até pôr à prova a sabedoria do grande rei que
comandou um enorme exército ao cerco de Tróia 22 4, ou a
astúcia de Ulisses e de Sísifo 225 , sem ser condenado por
fa zer Lá as mesmas investigações que era meu costume

22
' Minos e RadaI11a nto. filh os de Ze us e Europa . nollleados juízes no mun-
do dos Ill ortos pe lo seu ri goroso espír ito de justi ça: a tradi ção poste ri o r acrescen-
to u a estes . Éaco. rei de Eg in a . pai de Pele u e avô de Aquil es: a estes três nomes
Pl atão junta aind a o de Triptó leI110 . dev ido às suas co nexõe s CO ill o sa ntu ári o e
os Illi sré ri os de Elê usis.
2
'' O,fe u e Mu se u. poetas le nd ári os. assoc iados a corre ntes místi cas. e aos
telllpos an teriores à Guerra de Tró ia (id ade dos he róis. v. Hesíodo . Trabalhos
e Dias. 109-201 ): Ho lllero e Hes íodo I11arcam. por co ntraste. os prilll órd ios da
cultura grega.
2
' " Agamémn on . chefe suprelllo das fo rças gregas.
25
' No o ri g inal latino Cícero menc io na a prudenria cios três he ró is citados.
Sucede qu e pmc/emia é ullla pa lavra po lissé mi ca que não convé m por igual a
estas três pe rsonagens. IllOti vo por que a desdob rálllos na tradução. vertendo-a
por .. sabedo ri a .. (u lll tanto irónica ) no caso de Agamé mno n. e por .. astúcia .. nos
casos de Uli sses e Sísifo.já que e ra este o atributo que I11e lho r os caracteri zava.

[76]
Ja zer nesta cidade 226 . Também vós, juí::.es, os que votastes
pela minha absolvição, não deveis temer a morte . Nenhum
mal existe que possa ocorrer a um homem de bem , nem 99
vivo nem morto , pois os deuses imortais nunca deixam de
velar por ele. O que me está a suceder a mim não é obra
do acaso . De resto eu não tenho qualquer recriminação a
Ja-:,er nem aos meus acusadores, nem aos juf::.es que me
conde11aram 22 7, salvo o fa cto de eles pensarem que podiam
Jazer-me algum mal! 228
Estas foram , poi s, as palavras de Sócrates. Mas o me-
lhor de todo o di sc urso foi o fin al:
"Já é tempo de nos irmos embora daqui , eu para a
morte , vós para a vida. Qual de nós é mais afortunado,
sabem-no os deuses imortais . De entre os homens, creio
que nenhum o saberá ao certo . " 229
Eu por mim não trocaria esta di sposição anímica de
Sócrates pela fortu na 230 de todos aqueles que o ju lgara m. XLII
No entanto, quando Sócrates di z que " apenas os deuses
sabem o que de facto é me lhor", a verdade é que ele também
o sabe na perfeição, poi s já antes o di ssera , só que prefere
manter até ao fim a sua posição de nada qu erer afirmar231 •

226
Sócrates imagina-se no mundo dos mortos colocando a heróis do mito
como Ulisses os me smos problemas que di scutia e m Atenas com Laques.
Crátilo. Êutifron. Hípi as. e ou tros
m ote-se que Sócrates tem o cu idado de di stin g ui r os acusadores co mo
Meleto. cios juízes que vota ram a sua condenação.
228
Platão. Apolo1<ia de Srícrmes. 40 c-41 d. A tradução ele Cícero é algo
abrev iada em relação ao o rig inal.
229
Pl atão. ihid .. 42.
·' "Fortuna·· refere -se aqui. não apenas à "felicicl ade·· dos acu sadore s e
20

jt1ízes em contraste com a ••infel icidade·· da co nde nação i1 morte . mas ai nd a aos
bens materiais e a out ras van tagens que e les possuíam e ele qu e Sócrates e ra
despro vido. Por ou tras pa lavras. o que para Sócrates é um ··be m·· é para os outros
um "mar·. e vice-ve rsa.
l)I Ou seja. embora Sócrates sa iba ··qual é a me lhor condição para o

homem•·. mantém o seu cepti c ismo habitu al ("só sei que nada se i! ºº) .

177]
100 Qua nto a nós, deve mos manter a nossa co nvicção de
que nada quanto a natureza pro porc io na a todos pode ser
j ul gado um mal ; a lé m d isso, se a mo rte fosse um mal, seri a
um mal ete rno. A morte, todav ia, aparece <às vezes> ser o
fi m de uma vida de mi sé ri a, pe lo que, se a mo rte é <tam-
bé m> um ma l, e ntão o fi m da mi sé ri a nunca c hega rá!
Mas para qu ê estar a reco rda r Sócrates, o u Te râ me nes ,
ho me ns de excepc ional va lor e fa mosos pe la sua sabedo-
ri a . qu ando te mos o caso de um anó nimo es pa rta no 232 • cujo
no me ne m sequ e r fico u reg istado, que. conde nado à morte
pe los éforos, ia a ca minh o da exec ução co m um a r bem-
-di sposto, mes mo a legre . Pe rgunto u-lhe um se u inimigo:
"Assim desprezas as leis de Licurgo?" "Nada disso,"
- res po nde u e le - "estou-lh es até muito grato porque me
impuseram uma pena de que eu posso deso brigar-me sem
ter de pedir um empréstimo nem de pagar juros." Oh! Que
ho me m di g no de Es pa rta ! Até se me afi gura que quem
de mo nstro u um a tal corage m deve te r s ido co nde nado
injusta me nte!
l01 A nossa c idade pode apresenta r nume ros íss imos casos
s imilares . M as para quê cita r individualme nte c hefes mili -
tares o u po líticos, quando Catão reg ista o caso de legiões
inte iras233 que a va nça ram dec ididas pa ra pos ições donde
es tava m co nvictas de qu e não regressariam ? Fo i com

212
No original : Lacedemóni o. a rea lid ade. o heró i desta hi stória não era
anónimo . o seu nome . c it ado por Plutarco. era Tec támenes (v. Ditos fa mosos de
Espartanos. 221 F).
11
' Catão. Origines (v. Peter, H.R.R .. § 83. e nota. onde vem citado um passo
similar ao prese nte , Cícero. de senectute. 75: Eu escrevi nas Ori gi nes que as
nossas legirJes muitas l'e:esfora111. cheias de ânimo e coragem. ocupar 11111 local
donde calculava111 que nw1rn regressariam ). Cf. também Marcus Porcius Cato.
Origines. fr. 4 .7a. tex to e tradução (pp . 200-202). e comentário (pp. 202-203) em
H . Beck -U. Walter. Die Frühen Rô111i.Khen Historiker / .

178)
um ânimo ass im que morreram nas Te rmópi las os Lacede-
mónios obre quem Simónides escreve u:
Peregrino . di-: a Esparta que nos viste aqui caídos
Enquanto ohedecíamos às sacras leis da pátria 214 .

E Leónidas , o seu co mand ante, qu e di sse e le? "Combatei


com a maior valentia, homens de Esparta, porque é possí-
vel que vamos todos cear aos Infernos! "m Era va lente,
esta ge nte es partan a, pe lo me nos e nquanto esti veram em
vigor as le is de Licurgo 236 . Durante uma troca de palavras,
um soldado do exérc ito pe rsa observou co m jactância:
"Serão tão numeroso os dardos e setas que lançaremos
sobre vós que nem conseguireis ver o sol! " "Óptimo!"
- responde u <um Espartano> . - "Assim combateremos à
sombra!"m
Até agora te nh o falado de ho mens 238 . Mas que di zer 102
daquela lacó ni a que e nviou o filho para a g ue rra , e que ao

1
1-1 O epigrama de Simónides sob re os combate ntes das Te rmópi las que Cí-

cero. li vre me nt e. ass im tradu z é citado em Heródoto . VI 1. 228. Este ep igrama


ve m també m citado no discu rso de Li cu rgo Co111ra Leôcra/es, 105 . com uma
variante em re lação ao tex to de He ródoto: Perqvi110, vai comwlicar ao pm·o
de Esparw / que j a:emos aqui e111 obediê11cia às suas leis (v. Li curgo , Oraçcio
co111ra Leôcrwes. tradução ... Segurado e Campos.20 1O. p. 202 e notas 11 3 e
114 .
1 5
' Plut arco cit a a fa la com va ri a ntes: "( Le!Ínidas) discursou aos soldados ,
1ke11do-lhe.1 que c11111hatesse com bra1·ura . 1·01110 quem espera ir janwr aos
lnfemos" (Plutarco. Ditos .fw11osos de Espartanos , 225 D 13). Com o utras
variante, a frase ocorre ainda e m Sé neca. Ca rtas a Lucílio. 82, 2 1: Camaradas.
)amai hoje na plena certe:a de que ha1•eis de ir cear elllre os 1110rtos.' " (tradução
Seg urado e Campos. Sé11ern - Cartas a Lucílio . Fundação C. Gulben ki an).
16
-' Estas pala vras. desde E Leónidas ... até . . . de Lirnr1;0. são conde na-
das por vá rios editores: Fo hl e n e Lucia Z. C le ri ci colocam-no e ntre parênteses
rectos. J. E. Kin g reg ista -o apenas e m nota . porque "t he pass age is generall y
condemned as a spurious in se rti o n".
m Sobre este dito v. Plut a rco . o. 1.. 225 B 6 .
1 8
-' V. Introdução [361 .

[79 1
ser informada de que e le fora morto apenas come ntou:
"Dei-o à lu::, na condição de ele não hesitar em morrer
para def ender a pátria ."n 9
XLIII É bem sabido que as gentes de Esparta são corajosas e
duras, graças ao rigor da sua organização política . Mas
será isso razão para não admirarmos Teodoro de Ci rene? 240
Uma vez Lisímaco ameaçou mandar c rucificá-lo . Resposta
de Teodoro: "Porfa vor,fa::, lá essas ameaças de horríveis
tormentos aos teus cortesãos vestidos de púrpura! A Teo-
doro tanto dá apodrecer no chão ou dependurado. "
Esta réplica leva-me a achar opo1tuno dizer alg umas
palavras sob re a inumação ou a depos ição em sepu lcros,
matéria muito fácil, sobretudo se retivermos presente o
que há pouco di ssemos sobre a comp leta insensibilidade
<dos mortos> . O que Sócrates pensava sob re o ass unto
está bem explíc ito no di álogo em que <Platão> relata a sua
morte 2-1 1, e sobre o qual já muitas observações fizemos .
103 Depoi s de ter discorrido longamente sobre a imortalidade

139
Plutarco. Ditos de 111L1/heres espartana.,·. 242 C 7. dá uma versão ampli a-
da desta hi stó ri a: "U111a certa llllllher e111•io11 para a f?Uerra os seus cinco filhos, e
foi postar-se nos arredores da cidade afi111 de saher as 110/ícias sohre o resultado
da batalha. U111 soldado ,•indo do campo. in terrof?ado por ela. in/á r111011 -a de
q11e todos os seusfilhos ti11ha111 sido mortos. - 'Niio te perf? untei isso , 111iserârel.
111as si111 o qlle aco111ece11 à nossa pcí1ria ·. - QL1a11do o h0111e111 lhe respondeu que
Esparta saíra 1·e11cedora ela replicou: - "Nessa condiçcio aceilo de hom f?rado a
111or1e dos 111e11sfilhos. ·"
,-IO Fil ósofo (séc. 1v- 111 a. C.) da esco la c ire naica fu ndada por Arist ipo. dito
o ··Ate u··. po rque . segundo Dióge nes Laé rcio. refutava co mple ta men te todas as
teori as relati vas aos de uses (D . L. li . 97). de fe ndi a o hedo ni smo e suste ntava que
o ho me m virtuoso não dev ia ex po r a vida e m de fesa da pátri a para não correr o
ri sco de a sua vida nobre se r despe rd içada e m prove ito de imbec is (D. L. ibid ..
98) . Cícero c ita -o como exe mpl o de que um fi lósofo. mes mo de fensor de teses
in ace itá ve is. pode te r ta mbé m gestos de grande corage m . Esta resposta que. alega-
dame nte . ele de u a Li símaco pode ta mbé m se r vista co mo um a mani fes tação
da libe rdade de lin g uage m e m q ue e le ta mbé m se di stin g ui a ( D . L. . ibid., 102).
141
Trata -se do Fédo n .

[80]
da alma, ao aproximar-se a hora em que de via proceder-se
à execução da se nte nça, Críton perguntou a Sócrates como
é que queria se r se pultado . "Parece-me, caros amigos, que
mdo quanto disse foi de uma completa inutilidade! Não
consegui persuadir aqui o nosso Críton ele que vou partir
deste mundo e de mim nada mais persistirá . No entanto ,
Críton, se tentares aproximar-te de mim ou se me encon-
trares em qualquer lado, pois bem , sepulta-me como
melhor te parecer. Mas crê no que te digo: quando eu
partir nenhum de vós voltará a chegar perto de mim. " 242
Admirávei s pala vras estas, com que Sócrates, por um lado
fez a vontade ao amigo. por outro. demonstrou o seu tota l
desinteresse por esta questão. Mais ríspida foi a resposta 104
de Diógenes . A sua opinião sob re este mesmo problema
era idêntica, mas. como Cínico que era , as suas palavras
foram duras: mandou que o deixassem se m se pultura .
"Exposto às aves de rapina e às.feras ?" , perguntaram-lhe
os amigos. "De modo nenhum", retorquiu Dióge nes, -
"ponham ao pé de mim um cqjado para eu afugentar os
bichos."- "Como assim ?" - es pantaram-se os amigos. -
"Tu não sentirás nada!" - ''En tão que mal poderão cau-
sar-me as dentadas das.feras se eu não sinto nada?"
Notável foi também a resposta dada em Lâmpsaco por
outro filósofo. Anaxágoras. quando os amigos, vendo-o
atacado de uma doença mortal , lhe puseram a questão: "Se
houver um desenlace , desejarás tu que o teu corpo seja
levado para Cla::,ómenas , a tua terra natal? " 243 "Não vale
a pena" - respondeu -, "de onde quer que partamos a
distância até ao Hades é sempre a mesma! "

1
'" Versão li vre e muit o condensada das palavras de Sócrates no Fédo11
11 5 c-d.
w No ori gin al a pe rgunta é feita em di sc urso indirec to.

[81 l
Em suma , no que toca ao problema da inumação a
úni ca coisa que deve mos ter be m gravada na ideia é que se
trata de uma questão relativa ao co rpo, quer a a lma pereça
em si multâneo, que r perdure. Ora é evide nte que no corpo,
quer a a lma se ex tin ga, que r se evole, nen hum a sensibili-
XLIV 105 dade perdura . Mas sobre esta matéria abundam as opi ni ões
e rróneas. Aquiles arrasta o cadáver de He itor amarrado ao
carro: se ca lhar estava co nvencido de que <Heitor> sentia
a mutilação que o seu corpo sofria! No se u pensamento,
estava co nve ncido de que co m este acto se vingava do
inimigo. Também <Andró maca.> se nte uma imensa dor
ao co ntemplar a ce na:
Eu vi . e tal visão causou-me i11di-:,ível dor.
244
Vi Heitor arrastado pela quadriga <de Aquiles>!

Mas qual He ito r? Quanto tempo a inda esse cadáver será


" He itor"? Mai s avisado foi Ácio , e mai s se nsato o seu
Aquiles, <ao exclamar>:
Restitu í o corpo a Príamo, 1110s roubei-lhe <a pessoa>
[de Heitor' 245

Sim , <Aquiles> , não fo i He ito r quem tu, de fac to , arrastas-


te, mas sim o cadáver do que fora Hei tor.
106 Temos aqui um outro qu e se ergue da te rra apenas
para não deixar a mãe dormir:
É a ti que apelo , mãe , que esqueces 110 sono as tuas
[angústias,
246
E de mim não cuidas: acorda e dá um sepulcro ao teu jilho.1

244
Énio. A11drómaca. in Wa rming to n . R.O.L. . 1. p . 248.
245
Ác io. Trag. inc .. in Warmin gton , R.O.L.. li , 566.
246
Verso da tragédia llío11a . de Pacúvio (v. Warmingto n . Remaim , li.
p . 238. O argumento desta peça é resumido por Higino . na fábula 109 .

[82]
Palavras co mo estas, acom pa nh adas de uma melod ia tri ste
e sombri a, enc he m de a margura o teatro inte iro, e tornam
difícil não ac red ita r que os mortos sepultas são infe li zes.
"Antes que as feras e as aves ... ": <Deípilo> te mi a, co m
certeza, que os seus me mb ros lace rados não lhe obedeces-
sem! Mas se fosse inc inerado j á não hav ia proble ma:
Não consintas que ns meus restos meio comidos, com os
[ossos descarnados,
Seja m atro::mente arrastados pelo chão, ensanguentados e
[podres ... 24 7

Não ente ndo de qu e é qu e e le te m medo, quando te m 107


uns versos tão bons para rec itar ao so m da flauta! Embora
saibamos que muitos se vinga m co m c rue ldade nos inimi -
gos mortos , é prec iso te r se mpre be m prese nte que depoi s
da morte já nada nos pode afectar. Na peça de É nio , Tiestes
amaldi çoa <o irmão> e m versos so noros, fa zendo votos
por que Atreu mo rra num naufrág io, votos, de facto crué is,
pois uma morte destas impli ca uma séri e de prév ios sofri -
mentos . Mas os versos que seg ue m são irrelevantes:
Que ele fique bem preso num cortante recife , desventrado,
As vísceras penden tes, salpicando a rocha de sangue negro
[podre ... 248

Tanta será a se nsibilidade do rec ife co mo a do home m de


"vísceras p end entes ... ", a que m <Tiestes> deseja estator-
tura; se ele pudesse sentir alguma co isa , seria uma pena de
fac to dura , mas de todo ineficaz na ausê ncia dos sentidos.

247
Pacúvio. o. e .. p. 240.
18
' Énio. Ti es1es. vv. 366-8 Warmin gton.

[831
Sem ter um sepulcro que o receha , um porto de abrigo para
[o corpo,
Em que este , de todo .finda a vida , possa repousar dos
/males 249 .

Vê be m o que há de absurdo nestes versos : <o poeta> ima-


g ina que o se pulcro é " um po rto de abrigo para o corpo",
e que o morto pode " re pousar" no sepul cro . A c ulpa é de
Pélops25 º, que não ed ucou o filho , e não lhe e nsinou a
importância que cada coisa me rece 25 1.
XLV 108 Mas para quê evocar o piniões individuais quando
te mos a possi bilidade de obse rvar as di ve rsas concepções
erró neas dos vários povos ? Os Egípcios e mbalsamam os
cadáveres e g uardam-nos e m casa 252; os Pe rsas e nterram-
-nos , depois de os reves tire m de cera para que os corpos
dure m o máximo tempo possível251. O s Magos 254, esses
só costumavam e nterrar os cadáveres de fa miliares que
ti vesse m previame nte sido dilacerados por an imai s selva-
gens255 . Na Hircâ nia 256 o povo cria cães a expensas públi-
cas , os nobres c riam-nos nas suas moradas; sabe mos que
se trata de uma raça de cães muito apreciada, mas e m geral
cada pessoa provide ncia , na proporção das suas posses , a
posse dos cães qu e a hão-de um dia devorar, forma de

249
Éni o. ibid .. vv. 369-70 Warming ton .
250
Pélops. fi lho de T ânt alo. e pa i dos do is irmão inimi gos. Atre u e Tiestes.
Sobre este te ma pode ler-se a tragédi a de Sé neca Tiestes.
251
Cf. a propós ito o conhec ido ve rso do poeta satíri co Lu cíli o: "A l'irrude,
para o ho111e111 . consisre e111 saber aPaliar a importância que a cada coisa de1·e
dar-se" (Luc íl io . Sátiras . v. 1344 Kre nke l).
2
'" He ródoto. li. 86 .
2
" He ródoto. 1. 140 .
25
-' Aqui. nome de um a das vá ri as tribos que form ava m o povo dos Medos

(Heródoto . !, 101 ).
255
He ródoto . l. 140 .
256
Reg ião da Ásia a sul do ma r Cás pi o.

[84]
sepultura que eles acham a mai s apropriada 257 . Muitos
outros costumes deste tipo foram reg istados por Crisipo,
um homem muito meticuloso nas suas investigações 258 ,
mas algun s deles são tão repugnantes que até as palavras
como que mostram, com medo, relutância a fa lar deles.
Esta matéria , portanto , há que tratá-la com displicência
pela parte que nos toca , mas devemos dar-lhe alguma
atenção no que concerne aos nossos fami li ares , sempre ,
porém, enquanto vivos, sem perdermos de vista a ideia de
que os corpos dos mortos não sentem absolutamente nada.
<Quanto aos funerai s> , os vivos deverão , sem dúvida, 109
decidir como devem proceder em atenção às tradi ções e à
opinião pública, mas sempre com a certeza de que , o que
fizerem , em nada afectará os mortos.
Quando, porém , enfrentamos a morte com a maior
tranquilidade de ânimo é nos casos em que a vida, prestes
a chegar ao termo , pode receber algum conso lo da lem-
brança dos seus sucessos . Ninguém teve uma vida curta
quando tirou por completo todo o partido de uma completa
vi rtude259 . No meu caso. muitas ocasiões tive em que
poderia ter morrido na altura certa. Pena fo i que não tivesse
perecido então! Não tinha já nada a ganhar, já cumprira
todos os deveres que a vida me impusera, restava apenas o
combate com a fortuna. Por conseguinte, se a razão por si
só não basta para nos fazer desprezar a morte , que ao
menos o cumprimento da nossa missão nos faça pen sar

257
Cf. Plutarco . Mora /ia. 499 D ( ·· Pode o l'Ício causar a i11/elicidade:1 ") .
,;s Este passo de Cícero é reco lhid o como o frag me nto Ili. 322 dos S. V. F.
de H. von Arni m.
259
A presente tradu ção: 1imu por co111ple10 / .. ./o pcm ido de u11w co111plew
/ ... /, sacrifi ca de certo modo a e legâ nc ia à re produção do jogo de pal avras do
original: 11ir1u 1is pe1j'euae 1>er/ec10 ... 11uu1ere.

185J
qu e já vivemos mai s do que o sufi c ie nte. E mbora privados
da consc iê ncia , ainda que os não atinja o se ntime nto da sua
reputação e da sua g lória, ne m por isso os mo rtos deixam
de ser le mbrados pelos se us mé ritos pessoais. E se bem
que a g lória não te nha em s i mesma nada qu e a torne dese-
j áve l, mes mo ass im e la aco mpa nh a a virtud e co mo se fora
XLVI 110 a sua sombra. Que as massas possa m eve ntualmente
fo rmular um justo juízo de va lo r so bre as qualidades dos
bons c idadãos é algo qu e as ho nra a e las , mai s do que é
para estes moti vo de se se ntire m fe li zes. Eu não posso
afirmar, seja co mo for que me inte rpretem , que Licurgo e
Só lo n 260 sintam a falta da g ló ria de sere m criado res de leis
e de institui ções políti cas, nem Te místocles e Epaminondas
a de grande s chefes militares 261 • Mai s de pressa Neptuno
afundará a ilha de Sa lamina do que serão o lvidados os
troféu s da famosa batalha262 , mai s cedo desaparece rá da
Beócia a cidade de Leuctros do que se esquece rá a glória
263
conqui stada na batalha tra vada às suas portas • Muito
mai s tempo perdurará ainda a fama de Cúrio , Fabrício,
Calatino, os doi s Cipiões, os dois Africanos, Máx imo.
Marcelo , Paulo , Catão , Lé lio, e inúmeros o utros 2ó-l _Al guém

160 Li curgo e Só lon deixaram nome na hi stó ria como legi~ladores de Espa11a
e de Atenas. respect iva me nte. Li c urgo é figura me io le nd á ria . Sólon (séc. Vll-1"1
a. C.). pelo contrári o . está bem inserido na hi stó ria da sua cidade. quer corno
leg islador. quer como poeta .
161
Sobre Temístocles e Epamino ndas. v. supra § 4 .
161
Batalha na va l ele Salamina. 480 a. C.. na qual a esquadra ateniense co-
mandada por Temístoc les derrotou a a rmada pe rsa de Xerxes.
·' Batalha de Leuctros . 371 a. C.. em que o exército de Tebas. chefiado por
16

Epaminondas. derrotou os Esparta nos . pondo assim fim à sua hegemonia sobre
a Grécia.
164
Longa li sta de fi guras da hi stó ria de Ro ma. Sobre estas personagens
v. F. Mün ze r. Adelsparreien .. .. Anhang (pp . 376-408 ).
Mâ ni o Cúrio Dentado. séc. 111 a. C.. vencedor de Pirro:

[86]
que , porven tu ra, se asse me lhe de alguma fo rma a estes
homens, sem se importar co m a popu laridade , mas co m
uma reputação g ra njeada e ntre os bo ns c idadãos , esse po-
derá , se as circ un stâ nc ias o impusere m , camin har co m ple-
na autoconfi ança para a mo rte, na qual , conforme vimos,
ou encontrará o supre mo bem , o u, pe lo menos, a au sê nc ia
do mal. Mes mo no auge da sua fo rtun a poderá desejar
morrer,já que a acumu lação de benesses nunca compe nsará
a amargura de as pe rde r. Parece ser este o se ntido das 111
palavras qu e um ce rto lacón io di sse ao ve lho Di ágoras de
Rodes, famo so vencedor o límpico , que acabara de ver os
seus dois filh os, no mes mo dia, sere m ta mbém e les vence-
dores em Olímpia ; c hega ndo-se ao pé dele , fe lic itou-o e
di sse-lhe: "Morre , Diágoras, já que não poderás ascender
ao céu!" 265 Os Gregos dão, o u melho r, davam um a g rande

Ga io Fabríc io Luscino. séc. 111 a. C. . herói também el a guerra contra


Pirro:
Aulo Atíli o Ca latino . v. supra nota 25:
Os irmãos Gneu e Públi o Cornéli o Cipi ão. mortos em co mbate no início
ela li Guerra Púni ca (2 18-202 a. C.):
Púb li o Co rnélio Cipião Africa no 1. ve ncedor ele Aníbal em Za ma
(II Guerra Púni ca):
Púb lio Co rnéli o Cip ião Emil ia no Afri cano li . vencedor ela Ili Guerra
Pún ica ( 149-146 a. C. ):
Quinto Fábio Máximo C1111cwwr. distinguiu-se na li Gu erra Pú nica:
Marco Cláudi o Marce lo. ge neral co nqui stador ele Siracusa (2 12 a. C .):
Lúcio Emílio Paulo (ou o c6nsu l morto heroicamen te na batalh a ele
Cana,. cont ra Aníbal: ou o ,eu fi lho cio me, mo nome. ve ncedor ela bata-
lha de Pidna cont ra a Macedóni a em 168 a. C.):
Marco Pórcio Catão . o Censor (séc. 111 - 11 a. C.). político e homem
de cultu ra (orado r. e autor cio tratado De a!i rirn/rura): dá o seu nome ao
diálogo ele Cícero De senecture:
Gaio Léli o Sapiens. ami go ele C ip ião Emili ano: dá o se u nome ao di álo-
go de Cícero De cu11 icitia.
165
Diágoras de Rodes . fa moso atl eta do séc. \' a. C.. a quem é dedicada
a Vil Olímpica ele Píndaro. - O qu e esta observação signifi ca é que Di ágoras

1871
impo rtâ nci a, ta lvez mes mo excess iva, a es tes fe itos <des-
porti vos> ; o ho me m qu e fez esta o bservação a Diágoras
ac hav a um fe ito excepc io nal uma mes ma fa m ília produzir
três ve ncedores o límpi cos, pe lo qu e pe rmanece r vivo e
suj e itar-se aos revezes da so rte j á não tinha qualquer
se ntido para e le .
Parecia-me a mim te r res po ndido à tu a qu estão de
forma sufi c ie nte e e m po ucas pa la vra s, ate nde ndo a que tu
tinhas admitido qu e os mo rtos já não sofre m qu a lquer mal;
mas acabei por es prai ar-me mais lo nga me nte po rque é
esta a mai or con so lação que pode mos te r na saudade e na
tri steza. A nossa do r pessoal, a que de ri va dos nossos
in teresses, deve mos suportá- la co m mode ração, para não
apare nta rmos qu e é ape nas um a do r ego ísta. M as o que
verdade irame nte ca usa e m nós um sofrim e nto intolerável
é pensar qu e os e ntes de que fi cá mos pri vados co nservam
alg uma sen sibilidade e se vêe m subme tidos ao s males que
o comum das pessoas imag ina . Eu mes mo prec isava de
erradi car definitivamente da minha mente es ta <fal sa>
opin ião , e por isso alon guei a minha expos ição.
XLVII 112 A . - Alon gaste , di zes tu ? ! A mim não me pareceu .
A primeira parte da tu a lição fazia -me desejar a morte , a
segunda, ora a não a desejar, ora a não pe nsar no assunto.
No seu conjunto, a tua ex pos ição con seguiu de certeza
um a coi sa: não mai s incluir a morte e ntre os males.

ating ira o c ume da fe lic idade a que um hum ano pode aspirar. j á que o caminhar
pe lo cé u ape nas cabe rá aos de uses. Cf. os ve rsos qu e u mes mo Píndaro compôs
e m ho nra de um out ro at leta. desta vez um jovem ve ncedo r nos Jogos Píticos:
" Bem aventurado e digno de ser cantado pelos poetas é o ho111e111 / que, pela
f orra das ,nãos 011 a /lgilid/lde do.1 pés . sa i \'encedo r I e obtém. pela s11a audácia
e energia , o maior prémio dos jogos. / e que . ainda e111 1·ida. contemplou I a
j o1·e111 .filho ter a fo rt111w de ser rnroado e111 Delji,s [lit. nos <jogos> Píticos].
O brân:eo céu não pode selllir os seus pas.1·os" (X Pític a. vv . 22 -27) . A frase de
Cíce ro é uma rem ini scênc ia do último verso des te passo.

[88)
M. - Muito bem! E agora, queres que compo nha um
epílogo segundo as regras da retórica 266 , ou que deixe de
praticar de vez esta arte?
A. - Deixares de prati car uma arte que sempre hon-
raste , e que, em boa verdade , também te honrou a ti , seria ,
com toda a justi ça, imposs íve l267 . Mas de que va i constar
esse epílogo? Estou com muita vontade de o escutar, seja
qual for o tema.
M .- as escolas <de retórica> é costume citarem-se 113
os juízos que sobre a morte faze m os deu ses imortai s. Não ,
naturalmente , os imaginados pelos próprios retores, mas
os resultantes do teste munho de Heródoto e de muitos ou-
tros. Comecemos pelo <episódio> protagoni zado por
Cléobis e Bíton, filhos de uma sacerdoti sa de Argos 268 .
A história é bem conhecida. Mandava o ritual que ela fosse
transportada de carro a um templo bastante longe da
cidade a fim de celebrar o sacrifício assinalado para um
determinado dia. Os animai s <que deviam puxar o carro>
nunca mai s chegavam, pelo que os doi s jovens que men-
cionei despiram o seu traje, untaram o corpo de óleo e

,ó6 O epílogo. ou peroração. era a pa11e do d isc urso e m que o o rador mais
podia demonstrar todos os se us dotes de pers uasão, e m que o seu tale nto mais
sobressaía. Tanto assim era que. em certos processos importantes em que a de-
fesa era assegurada por vár ios advogados. era confi ada a Cícero a peroração. em
que os dotes do Arpinate arrebatava m em gera l o auditório. Cf. a in fo rmação
do sclwlia.,·w Bohiensis a propósito cio processo contra Séstio (5 6 a. C.): ··11esre
processo a defesa fui as.1"e1;11rada por l'ârios ad1 ·01;ados. enrre eles Q. Horrê11sio,
M. Crasso, C. Licínio Calvo , os quai., disrribuíra111 enrre si qual a parle <do
processo> que caheria a cada um : a Túlio 1= C íce ro ! coube a peroração ... "
(v. M. Tullius Cícero Orario pro Sestio. ecl iclit T. Mas lowsk i. Leipzig, Te ubner,
1986. pp. 2-3 )
267
Ou seja. os pontos altos da ca rre ira políti ca de Cícero ficou este a devê-
-los ao seu tal ento co mo orador.
268
Esta história pode le r-se e m Heródoto. 1. 3 1. O sac rifício de que se trata-
va destinava-se a honrar a deusa He ra . protec tora da cidade.

f89 J
atrelaram-se eles ao carro . Deste modo foi asseg urado
o transporte da sacerdoti sa <sua mãe> até ao templo, no
carro puxado pelos filho s. Di z-se que ela, então, suplicou
à deusa que, em recompensa pelo amor filial demonstrado
pelos filho s lhes desse o prémio maior que um deus pudesse
dar a um mortal . Os doi s jovens , depoi s de participarem no
banquete em companhi a da mãe, adormeceram : no dia
seguinte fora m encontrados mortos.
114 Conta-se que objecto de uma súpli ca semelhante
foram Trofónio e Agamedes 269 . Depois de terem conclu ído
a construção do templo de Apo lo em Delfo s adoraram o
deu s e ped iram-lhe uma recompen sa avu ltada pelo seu
penoso trabalho; não ped iram nada de es pecífico, mas sim
aquilo que fosse o melhor para os humanos . Apolo prome-
teu que os recompensaria no terceiro dia a contar daí;
qu ando nasceu esse dia , foram ambos encontrados mortos .
Afirma-se que foi este o ju ízo for mulado pelo deus, aquele
deus precisamente a quem os demai s deuses concederam o
XLVIII dom da adi vinhação. A respeito de Sileno º também se
27

conta uma história. Apri sionado por Midas , diz-se que.


271

para pagar a sua libertação , reve lou ao re i este segredo:


que de longe o melhor bem para o homem é não ter nasci-
115 do, e o segundo melhor é morrer quanto antes . Este mesmo
conceito ve m tam bém expresso nos seguintes versos do
Cresfonte de Eurípides:

169
Trofó ni o e Agamedes são várias vezes recordados por Pau sâ ni as. u.g ..
IX .37, S ss.
°
27
Criatura mito lóg ica . me io homem meio anima l. co mo os Sátiros . Costu-
ma aparece r associado a estes (v . o drama satíri co Ciclope de Eurípides. em que
Sileno fi gura co mo presidindo ao coro dos Sátiros). Tem também dons proféti-
cos. como se vê . além deste e pi sódi o referid o po r C ícero . pela sua intervenção
na VI Bucóli ca de Yergíli o.
271
Re i míti co da Fríg ia .

[90]
Quando celebramos em casa as nossas reuniões
Devíamos lamentar quando nasce uma criança ,
Pensando nos males a que estâ St(jeita a l'ida humana ;
Mas a que111 com a morte se liberwr das suas penas,
A esse os antigos del'iam f estejar com alegria 272 •

Ideia semelh ante encontra-se ai nda na Consolação de


Crantor m : conta ele que um certo Elís io, natural de Terina,
sofrendo enormemen te pela morte do filho, visitou um
local onde se evocam as almas dos mortos para perguntar
qual fora a causa de uma tão grande ca lamidade. Como
res posta deram -lhe uma tabuinha onde se liam estes
versos:
Os homens erram durant e a l'ida devido à ignorância ;
Eutínoo encontrou a morte por 1•0111ade dos destinos.
Logo ,foi melhor ter morrido, para ele e para ri . 21-1

É graças aos factos <narrados> nestes tex tos , e em 116


outros sim il ares, que se pensa poder conhecer o pensa-
mento dos deu ses imortais. Alcidamante 275, um antigo
retor de grande categoria, escreveu até um elogio da
morte . que consiste na en umeração dos males que afli gem
os homens; fa ltam neste trabalho as argumentações mais
subti s ad uzidas pelos filósofos , mas não lhe fa lta a riqueza

m Cre.1já11re. tragéd ia perdi da ele Eurípides ( Nauck . TGF. fr. 449 ).


171
Fil ósofo grego. acadé mi co. v. Diógc nes Laérc io. IV. 24-27. Seg undo
Dióge nes . era muito ad m irado o se u li vro n rgl rrtvOouc; ··Sobre o luto .. (eleve
tratar-se da obra a qu e Cícero dá o no me de Consolaçâo).
74
! Estes verso, vê m inserido, en trem frag me nt os poéticos de C ícero tradu -
zidos de autores grego, (v. C icéro n. Ararea - Fra!i11ie11r.1 poériq11e.,. tex te étab li
et trad uit par Jea n So ubi ra n. Pa ri s. 1972. p. 28 1). Estes mes mos ve rsos. com
lige iras va ri antes. são c it ados (mas se m qu a lque r referê nc ia a Cra ntor ) po r Plu -
tarco. na sua Consola rio ad Appol/011iw11. 109 D .
115
Retor (séc. J\' a.C.) di scíp ulo de Górg ias e ad ve rsár io de lsócrates.

1911
da lin guage m. As mortes ce lebradas dos que sacrifi cam a
vicia pela pátria afig uram -se aos retores serem. não apenas
uma fonte de glóri a. mas também de fe licidade. Retomam
as razões de Erecteu. cujas fi lhas se oferecera m à morte
para sa lvar a vid a dos seus conc idadãos: <recordam>
o exempl o de Coclro. que se infiltro u entre os inimigos
ves tido de escravo para não ser recon hecido, como seria se
aparecesse co m as vestes reais. por causa de um orácul o
que prometia a vi tóri a aos Atenienses no caso de o seu rei
ser assass in ado 276 : não é esquecido o ca. o de Meneceurn,
que. também em conseq uência de um orácu lo, igualmente
deu o seu sangue à pátria . nem o de Ifi génia. que se sacri-
ficou para que o se u sangue atraísse o derramam ento do san-
gue inimi go 27'_ A seguir c itam-se exemplos mais recentes:
XLI X exa ltam-se Harmódio e Aristogíton • cobrem-se de encó-
279

mi os o lacede móni o Leó nidas e o tebano Epaminondas.


E não conhecem eles 280 os nossos heró is. que grande traba-
lho lhe. dariam se pretendessem enumerá- los. tão numero-
sos são os casos dos que optaram por uma morte glori osa!
11 7 Sendo as coisas ass im como são, ex igir-se-á porven-
tura uma gra nde eloquênc ia. será necessári o discursar do
alto de uma tribuna 281 para que os homens comecem a

271
' Estes e xe mpl os de mo rt es g lo ri osas ass umidas e m de fesa da cidade
siio na rrados ( no caso de Erec tcu . com lo nga c it a<;iio de um passo da tragédia
ho mó nima de Eurípides) pe lo orado r Lic urgo na Omccio co111m /,eácrare.1.
** *
84-87 (caso de C odro). 100 (di sc urso de Prax ítea . mulhe r de Erecteu).
277
O ~ac rifíc io de Me nece u constitu i um e pi sódi o da tragédia de Eurípides
A.1 Fenícia.\ vv. 977- 10 18.
27
" Eco. apare nte me nte . de a lg um pas,o de uma tragédi a latin a insp
irada na
lfigé11ia e111 Áuli. 1 de Eurípides (É ni o. //igé11ia. 25 2 Warmin gton '!).
27
" Os tiranicidas . que assass in a ram Hipa rco. irmão d<' tirano Hípi
as. numa
te ntativa mal sucedida de de rruba r a tirani a e m 51 a. C. ( He ródoto.V. 55).
~
80
En tenda -se : os mestres de retó ri ca g regos.
281
Cíce ro está aqui a pe nsar na c hamada rrih1111a ro.11ml. de o nde o, orado·
res co mo ele falavam às ma ssas re unid a, no Fon1111 ro ma no.

1921
desejar a morte , ou, pelo menos , renunciem a temê- la? 282
Se o último di a da vida , em vez de significar a extinção,
não for afinal mais do que uma mudança de lugar, o que
há de mais desejável? E se represe ntar a mai s completa
destruição, o que há de melhor cio que adormecer no meio
das contrariedades ela vida e, cedendo ao sono , adormecer
para todo o sempre? Se for este o caso, mais adeq uadas são
as palavras de Énio que as de Sólon. Di z o nos o poeta :
Ning uém chore por 111i111. nem acompanhe com pranto o
/meu .fúnera / 283 .

O sábio grego 28-1 . esse, escreve u:


Que à minha mone 11ãofalte o pranto: deixemos aos
{amigos
A triste::,a, aco111pa11h e111 com gemidos o meu/it11era/ 2K5 •

Pela nossa parte. se vier a suceder algo que dê a entender 118


que a divi ndade nos está a sugeri r ser tempo de deixar a
vida, obedeçamos, alegres e ag radec idos, com a consc iên-
cia de que. ou está a ti rar- nos cio cárcere e a libertar-nos
dos ferros a fim ele regressarmos à eterna morada que é
realmente a nossa. ou então estamos a ficar liv res ele toda

:>2 A pontuaçiio inte rroga tiva de,la fra ,e deve -se a Po hl e nL. e é ace it e por
O. Gigon. J. E. Kin g. G. Fo hl e n e Luc ia Z. C lcri c i o pt am pe la po ntuação
afi rmati va. Pela nm,a pane ace ita mm tam bé m o tex to de Po hl e n, . 4ue nos
parece mai, conse nt fineo com a conc lu ,iio de Cícero: ,iio pre ferívc i, a, pal av ra,
de Énio às de Sólon .
1
" Epi grama de l~n io (l:iJigrw1111101ll. 9- 10 Warmi ng ton ). O seg undo ve r,o
e-iá inco mpleto na c it ação. E,ta termi na: P on11dt' P nrqul' l' .11·oa("O ,fro na.,
palal'ra.\ do /Hl\'O.

:~, Só lon. um dm ··sete '-<Íb im da G récia··.


1
"· Tradução o mais litera l poS'-Í\el do texto lati no de Cícero. V. o o rig in a
l
grego em De lfim F. L..:ão. SiÍ/011. 1' Tirn e fiOlí1irn. F 21 W. e a n:,pec ti va ve rsão
portuguesa de D. F. Leão: Qul' .11'111 fir111110.1 111e 11110 chegul' a 11111rll'. 111a.1 q u e 110.1
amigo., f po.1 .111 eu deixar. ao f)arlir. dorn e lw11e1110.1.

1931
a se nsibilidade e amargura . Mas se não recebermos ne-
nhum av iso, mante nh amos um es tado de â nimo tal que
co nside re mos be néfico para nós o di a qu e para outros é
te meroso, e não inclua mos entre os ma les nad a do que para
nós foi dete rminado pe los de uses imortais, o u pe la natu re-
za. a mãe de todos os se res. ós não fomo s , de certeza,
ge rados e c riados por pu ra obra do acaso 286 , há, de ce rteza,
a lg uma força que ve la pe lo gé ne ro hum a no , que não o ori -
g ina e alime nta apenas para. depois de suporta r toda a es-
péc ie de trabalhos. vir a deparar na morte co mo um infin-
dáve l mal. Pense mos ne la a ntes como um po rto, um local
119 pre parado para nos proporcionar ab ri go . O xa lá possa mos
ne le entrar com as velas desfraldadas! Mas se ve ntos co n-
trários nos repelirem, necessari a me nte, um pouco mai s
tarde. não deixare mos de a e le a po rta r. uma palavra, o
q ue é inev itáve l sucede r a todos, como pode ser um mal
para um só <indi víduo> ?
Aqui te ns , pois , o me u epílogo, para não pe nsares que
eu omiti ou me esq ueci de algum <ponto importante> 287 •
A. - Claro que não ! A li ás, esta tu a peroração co ntri-
buiu mes mo para rob ustecer as minhas co nvicções .
M .- Óptimo! Mas agora é altura ele desca nsa rmos um
pouco. Amanhã, e nos de mai s di as que passa rm os aq ui em
Túsculo , co ntinu are mos os nossos di á logos , co ncentran-
do-nos sobretudo no modo ele ultrapassar os desgostos.
os temores , as paixões, que é o fruto mai s sucul e nto que
pode mos tirar cios estudos fi losóficos.

286
Lit . "sem finalidade e co11w f ru1os do acaso .. .
287
Ente nda-se: alg uma das pa11es estruturais de todo o di sc urso. segundo a
retó rica que as prescre ve.

[94]
LIVRO II

Numa tragédia de Énio 1, eoptólemo 2 di z que sente I 1


necessidade de fil osofar, mas com moderação ; dedicar-se
totalmente à fil osofia , isso já não lhe agrada3 • Ao contrário
dele, porém, eu creio sentir necessidade de fil osofar - poi s
que outra co isa melhor posso faze r agora , afastado como
estou da vida ac ti va? - , mas nunca com moderação!
No campo da fil osofi a é difícil uma pessoa restringir-se
a uns quantos temas e ignorar a maior parte, ou mesmo
todos os outros. Limitar-se a un s tantos tópicos significa
faze r uma esco lha entre mui tos, além de que dominar um
restrito número de conceitos não impede que procuremos
conhecer a fund o os demais com o mesmo empenhamento.
Todav ia, um homem que leve uma vida acti va , como era 2
então o caso de Neoptólemo em pl ena campanha militar,
mesmo os poucos tópi cos que estudou são-lhe com
frequência muito úteis, e não deix am de dar os seus fruto s,
senão tantos como se podem co lher da totalidade da
fi losofia , pelo menos aqueles que podem por vezes

1
Possivelmen te a A11drrí111aca (adaptada de Eurípides). No ent anto o ve rso a
que Cícero alu de é in cluído por Warmington entre os frag J11entos de locali zação
incena (o.e .. p. 368).
' Neoptólemo. tambélll co nhec ido por Pirro. era fi lh o de Aqu iles. e parti ci-
pou na fase fin al da Guerra de Tróia. de pois da lll orte do pai. Como perso nage lll.
figura em vá ri as tragéd ias. u. g. no Filoc1e1es de Sófoc les. na A11dró111aca de
Eurípides.
1
Cf. De fi nibus , 1. 2-3.

195J
libertar-nos , ai nda que só em parte, de desejos, de desgos-
tos, ou de medos . Por exemplo. aq uele diálogo que há
pouco ai nda sustentei na minha vi la de Túscul o parece ter
resultado num decis ivo desp rezo pela morte, o que consti-
tui um contributo importante para libertar o espírito do
medo. Quem está sempre com receio de alguma coisa
impossível de ev itar nunca pode levar um a vida tra nquila.
Em contrapartida, quem não tem medo da morte, não só
porque todos temos de morrer, mas ta mbé m porque a
morte não tem em si nada que infunda receio , já co nseguiu
uma prec iosa ajuda com vista a ter uma vida fe li z.
3 Eu não o ignoro: muitos sustentarão com toda
a energia uma opini ão contrári a à minha, mas a única
maneira de ev itar isso seri a eu não escrever absolutamente
nada. Veja-se o caso dos meus di scursos, que sempre
pretendi que consegui ssem o apreço do pú bli co, pois a
eloquência é uma arte que vive para o aud itóri o e o seu
efeito tradu z-se pelo apl auso de quem a escuta ... , se
algun s ouvintes hav ia que não aplaudi am nada senão
o que eles próprios se julgavam capazes de imitar
e que propunham como fin alidade da perfe ita oratória
apenas aquele modelo que espera va m poder alcançar,
esses, sentindo-se es magados pela opulência da minha
fra se e riqueza do voca bul ário , afi rmava m preferir a secura
<do estilo> e a pobreza vocabul ar à riqueza e à abundância
<que eu praticava> ... Daqui resultou o género de oratória
dito "Áti co", que eles afirmava m praticar sem saber
bem que coisa fo sse o aticismo; por isso, porque o próprio
auditóri o <que os escutava> no Foro quase deles troçava,
4 acabaram por remeter-se ao silêncio•. Bem, que futu ro me

4
Nesta fra se . de com posição pouco estruturada. Cícero a lude a uma con-
trovérsia contemporânea acerca do modelo de est il o oratóri o mais adeq uado .

[96]
Já desde os Gregos era corrente a distirn,:ão en tre três mode lo, fu ndamentais. que
incl usive era costume remontaram tempos homéricos. De ent re os heróis
de Homero. três havia que c,ses três modelo, possívei s: Uli sses.
que prati cava uma oratória emocional. palavrosa. violenta mesmo. qu e procura-
va despe11ar o entusiasmo e.lo auditório: Mene lau. que pelo contrário. era repre-
sentado como praticante de um a oratória ,imple,. clirecta. ao essencial.
numa palavra . lacóni ca: entre estes cloi, extremos situ ava-se o ve lho Nestor.
caracteri zado pel a moderação. pelo cu id ado posto em evitar tanto a demasia-
da conci são de Mene lau como o excessivo em polamento à maneira de Ulisses
(v. A.Géli o,Noi1e.1Árirns . VI. 14. 7). No período áureo ela e loquência ática (séc. IV
a. C.) . oradores há. como Lís ias. que se carac teri za m pe la sua Iin guagem clirecta e
conci sa.outros. como lsócrates. que praticam um estilo e laborado. com recurso às
mais variadas figura, - as,onância. para le lismo. gradação. etc. - . e outros. como
Ésquines e. sobretudo. De móstenes. que sabe m aliar a co nc isão e o entu siasmo.
a si mp licidade da fra se e a sua co nstrução. chegando até este último . no juízo
do seu rival Ésqu ines. a parecer muito pouco ático (Cícero. Ornror. 26 ). No fina l
do séc. 1v a. C.. co m o domín io macedóni co sobre Atenas e o fim da democrac ia.
pode di zer-se que a e loquênc ia át ica perdeu a sua ra?ão de se r. Na Ásia Me -
nor. e também na ilha de Rodes. fl ore,ceu en tretant o um mode lo de e loquência .
mais virada para a ex ibi ção e ce ntrada nas esco las de retórica. caracteri zado pe la
busca de efeit os de toda a ordem. a que cos tuma dar-se o nome de asia11is1110 ,
por opos ição ao arici.1·11w cio pe ríodo áureo. No séc. 1 a. C. estes doi s mode los,
as iani smo e ati cismo. ,ão representados. res pectivame nte. por Hortênsio e
Cícero (que fazia de De móste nes o seu máximo inspirador). Cícero. contudo.
pelo seu esti lo cuidado. baseado no equilíbri o das frases. na riqueza cio vocabu -
lário (a sua fa mosa copia 11erhorw11 "'abundância elas palavras"'). no ritmo e nas
sonoridades. nas cláu,u la, mét ri cas (a estrutura métri ca cios finai s de frase) . era
criti cado pelos oradores mai s novos co mo um ve rdade iro '·asiani sta ·•. a quem
eles opunh am uma eloquênc ia conc isa e e,correi ta que definiam como sendo um
modelo de ··ati c i,mo··. Devemo, ,ublinhar ain da. que para Cícero. ao contrári o
do que pensavam o, ,e u, crít icos. o cuidado co m a esco lh a voca bul ar e a arqui -
tectu ra das frases não decorria de um mero desejo de demonstrar vi11uos ismo.
mas sim do facto de Cícero. além de orador. ser també m filósofo. que a si mes mo
se definia como ··11111 ornc/or... saído. 11üo elas e.,colas dos refores. 111as si111 das
i11sralaçiie.1 ela Academia" (Oraf(1r. 12). porque "se111 .filosofia 11i11gué111 pode
ser 11111 orador 1al como eu o conceho. / ... / pois parn .falar .1ohre as 111c11éria.1·
mais i111porw111es e dii ·er.,as de uma jim,w clara e profu11da é i11dispe11.WÍ\>el
a filosofia " (ibic/e111. 14). Não é por is,o se m uma cena amargura que Cícero.
apesar da amizade que o Iigava a Bruto. dá a entender que este se situa va entre
os seus críti cos: "Aqui /e/IS. Brn10 , a 111i11ha c1111 cepçüo do que seja w11 ora -
dor: adop1á-/a-ás co1110 Ilia. se co11corc/ares cm11 ela. ou. se til'eres mllra ideia.
111a111erás a lua posiçüo. Nesla 111c11éria 11e111 irei co111radi~er-1e. 11e111 afirmarei

1971
espera, agora qu e já não po sso mais recorre r ao ap lauso da
multidão que antes me apreciava 5 ? A filosofia co ntenta-se
co m poucos juízes, foge de liberadamente da mu ltidão, que
aliás o lha para e la de sos laio e com reserva tal que, se apa-
recesse alguém que prete ndesse vi tupe rá- la na totalidade,
pode ri a fazê- lo com o apoio popular, e , se te ntasse atacar
a co rre nte a qu e e u dou a minha particular adesão6, encon-
traria até um a impo rta nte aju da da parte das demais
esco las filosóficas .
II Aos arg ume ntos dos detractores d a fi losofia , e m geral ,
já respondi no Hortênsio ; e m defesa da Academia creio
também já ter- me ex pli cado sufic ie ntemente nos meus
quatro Livros Académicos . Estou lo nge de desejar que
deixem de escrever contra as minh as ideias , até prefiro que
o façam. Na própria Grécia a filosofia não te ri a at ingido o
prestígio qu e a lcançou se as ri val idades e as discussões
e ntre os mai ores e ruditos <não ti vesse m co ntribuíd o> para
a sua pujança.
s Por esta razão inci to todos quantos se se nte m capazes
de o fazer a que arrebate m à Gréc ia e m declíni o a glória
deste gé nero de tex tos 7 e a tran sfiram para a nossa cidade
co mo fi zeram os nossos maiores que, co m trabal ho e talen-
to , adaptaram também os outros géneros lite rários que
acharam di g nos de inte resse 8 • É um fac to que a g lória da

que a 111i11ha co11cepção. que procurei explicirar e defender neste meu li1w. é
mais verdadeira do que a tua. ( ... ) Eu. de resto. só procuro definir o que me
parece estar mais próximo da verdade. porque a verdade. essa. per111a11ecerá
sempre oculta" (Orator, 237).
5
Cícero. neste período da vida. sob a ditadu ra de César. já não pode contar
com o aplauso do povo reunido no Foro para esc utar os seus di sc ursos.
6
A corren te fil osófi ca a qu e C ícero " dá a sua adesão" é o cepti cismo acadé-
mi co. teoria exposta po r ele nos seus Li vros Académicos.
7
Este "género de textos" refe re-se à fil osofi a.
8
Cícero compara a sua acção no sentido de introdu zir nas letras latinas o
novo ramo de estudos que é a fi loso fia aos anti gos auto res. em es pec ial os poetas

[98]
eloquência passo u dum níve l humilde à máx ima perfeição ,
de tal modo que, segundo o que parece ser uma lei geral da
natureza, está a envelhecer e parece em breve tempo ir
reduzir-se a nada9 ; a fil osofia , em co ntrapartida , está a
nascer ago ra neste nosso tempo, pelo menos nas letras
latinas, com todo o meu apoio , pelo que estou di sposto
a acatar que me contradigam e procurem refutar. Toda a
crítica é recebida co m azedume por aqueles que, por ass im
dizer, se entregam e consagram a certas teorias bem deter-
minadas, de modo tal que se sentem obri gados, por uma
questão de coerência, a defender ideias que não costuma-
vam dar-se ao trabalho de demonstrar. Pela minha parte,
uma vez que me limito a procura r o prováve l e penso que
não podemos ir mais alé m do veros ímil , estou preparado
para refutar se m me mostra r obstinado e para ser refutad o
sem denunciar irritação .
Se os estudos fil osóficos passarem a frequentar o nosso 6
meio deixa remos de prec isar de recorrer às bibliotecas
gregas , nas quai s encontramos um número infindável de
li vros dev ido ao número infindáve l dos autores que os
escreveram. Os mesmos temas são tratados por muitos
pensadores, o que faz com que haja Iivros por toda a parte .

como Énio. Pacúv io. Cec íli o fa tác io . mas ta mbé m prosadores corno Ca tão-o-
-Censor. que adaptaram it cu ltura ro ma na m, gé ne ro, lite rári os (ép ica . tragédia .
comédia. hi stó ri a ... ) já ele há te rn pm, praticados pe los G regos.
9
A hi stória da e loquê nc ia ro m ana. desde as or ige ns até à sua é poc a . é tra -
çada por Cícero no Bm111s. A afirm ação el e que a orató ri a e m Ro ma e m breve
estará red u7ida a nada deve-se ao fac to ele. el as três rnocl a lidades de o ratóri a
reconhecidas desde Ari stóte le, ( Re1rírirn. 1358 a 36 - 1358 b 8). a deliher(lfi-
rn (polírica). a j 11d icial (1rih1111ais) e a epidícrirn. 011 de arHmlfo (pa neg íri cos.
orações fú nebres . clec la rn açõe,) . a, du as ma is import a ntes. a de libe rat iva e a
judici al. deixa rem de se r poss íve is nas cond ições po lít icas clerivacl as el a dit adura .
Sobre o desapa reci me nto da orató ria e m Ro m a. v. as pa lavras ini c iai s cio D iálogo
dos oradores. de T ác it o.

1991
O mes mo aco ntecerá no nosso caso , se fo re m muitos os
qu e se dedique m à fi loso fi a . a medida do possíve l entu-
sias mare i à práti ca des tes estudos todos os qu e , dotados de
um a só lid a cultu ra. fo re m capazes de a li ar uma metodolo-
g ia basead a na razão a um estil o di sc urs ivo ele a lto nível.
Ili 7 Há po r aí um certo núme ro de indi vídu os qu e gostam de
se r tidos po r fil ósofos e que , seg undo co nsta , são autores
de nume rosas obras 10 • Po r mim es to u lo nge de os des-
prezar, até porque nun ca os li . Mas co mo são e les os
primeiros a di ze r que as suas o bras carece m ele c lareza
<te rminol óg ica> , de planifi cação . de brilho lite rári o, numa
pa lavra , de estilo. não pe rde re i te mpo a le r tex tos que não
me proporcionari a m o mínimo praze r. O qu e di zem e o que
pe nsam os seg uid o res dessa corre nte fil osó fi ca , não há
ning ué m . mes mo de modesta c ultura . qu e o ig nore . Por
qu e mo ti vo estes ho me ns. qu e dec la ram à pa rtida não se
impo rtare m com a fo rma co mo se ex prime m . deve m ser
lid os a não se r, rec iproca me nte, po r qu e m pe rte nce à
s mes ma seita, é a lgo que não e nte nd o 11 • De fac to. ass im
co mo toda a gente lê Pl atão e os de mai s di scípulos de
Sóc rates, e també m lê os di scípulos e co me ntado res destes
qu e tem ha vido ao lo ngo ci o te mpo, mes mo qu e não ace i-
te m as teo ri as o u não as defe nd a m co m e ntu s iasmo. ao
passo qu e as o bras ele E pi c uro e ele Me trodoro 1.:i nin guém

10 Referênc ia deprec iativa aos Ep icu rista s romanm: C. A11u1/i11i11.1. Rahi•


ri11.1 . e o utros . por que m C ícero mostra desdé m . ideo log icamen te por serem se-
guido res de Ep ic uro. lite rariame nte po r defe nde re m a ausê nc ia de preoc upações
de natu reza estilística.
11 Recorde-se qu e. para Cícero. fi lmofia e o rat ó ria de vem andar se mpre
juntas . i. e .. a fi losofi a só te m a ga nhar se a fo rma Iite rária util in1da fo r de modo a
at rair e a mante r a ate nção dos le ito res. Por o ut ra s pa lavra s. apesa r da exce lência
do conte údo . a fo rm a não pode. de modo a lgum . ser ba nida .
11 Di scípu lo de Ep icuro . V. a li sta das suas obras e m Diógenes Laérc io. X. ~4.

1100 1
lhes pega se não os se us seg uid o res, ass im també m estes
fil ósofos latin os a pe nas são li dos po r qu antos ace ita m as
suas doutrin as. Em co nt ra partid a, e u pe nso qu e tud o
quanto é pos to po r esc rito deve atra ir a le itura de todas as
pessoas c ultas, e nós, <os a uto res> , se não co nseg uimos
atingir esse o bjecti vo, pe lo me nos deve mos pe nsar que é
este o caminh o ce rto. Se mpre pe nse i que o mé todo usado 9
por Peripatéti cos e Ac ad é mi cos de, e m todas as maté rias,
argume nt ar se mpre e m defesa dos do is po ntos de vista
contrári os 11, é de seg uir, po r do is mo ti vos: por um lado
porque não há o ut ra ma ne ira de descobrir o que, e m cada
questão, é ma is ve ros ímil 1~ , po r o utro , po rque é a me lhor
maneira de exe rc ita rmos o estil o 1'. A ri stó te les foi o pri -
meiro que pratico u este mé todo 16 , no que foi seg uido pelos

1' Trata-se daquele método. a que Cícero frequentemente se refere. de in


111ra111q11e parre111 di.,.,erere ··argumentar a favor e contra us doi s pontos de vista ...
Cf. infra n. 16 .
10 Dado que a ve rdade é. por na1Ure1a . inatin gível.
i; A palavra .. c,1i10·· tem uma grande abrangê ncia. A preoc upação de
Cícero ,ai muito alé111 do que pode mos chamar .. a bele;a lite r{iria··. Um ponto
imponantíssimo é a c lareia 1er111ino lcígica. o escrú pulo na busca do termo latino
exaclO para 1radu1ir do grego um termo técnico da fi losofia. dificu ldade que ils
veLes só pode ser reso lvida pe lo recurso a uma perífrase ou a um grupo de pala-
vras mai s ou 111enos sinó nimas . A tíllllo de e, e111plo. v. a preocupação pmta por
Cícero na ex plicitação do co nteúdo semüntico de um vocá bulo como ae!(rirudo
(mal estar. desgosto. contrariedade. 1mígoa. a111argura ... ) e111 T. D .. Ili. 22-23 .
IV. li ns.
1• Cícero refere-se a esta metodol ogia ari"1otélica noutros textos: de orato-
re Ili. 80: oraror 46: dej111ilm .1 V. 10 . 1ão cita exp re ssa mente. contudo. em que
obrado Estagirita cst.í a pensar. Gigon sugere a hip<Ítc;,e de se tratar dos Tópico.,.
mas com rese n as: au., der erhalre11e11 Topd l-w111 1111111 .,ie :ur No r ded11:iere11.
oh.1clw11 ,ie .1icli 11irge11d.1 pmgrw11111mi.,ch 1111.1gnpmche11 findei (Gigon. 1998.
p. 489). remete. co1110 paraleli smos. para Rer,írirn 1355 a 29-38 e Mew fí.sirn
995 b 2-4. e acaba por ave ntar outra hip(Ítc sc. a de se tratar da introdu<,:ão de
Aristóteles a algum dos seu;, di {i logos (pe rdidos). Pe la nos,a parte cremlls qu e a
mai s vero, ímil dela, (por tidelidadc a Cícero') é a que reme te param, Tópico.,.
Veja-se oraror 46. em que Cícero escrc,e: A prúrica 'I"" co/1\i,re 1'111 pa.,.\lir da

11011
seus di sc ípulos. No me u te mpo, co ntudo, Fílon 17, a cujas
lições e u assisti co m frequ ê ncia , ada pto u o utro s iste ma ,
di vidindo o d ia e m du as pa rtes , uma ded icada à ex pos ição
dos prece itos da retó ri ca 18 • a outra às teorias fi losó fi cas 19 •
Fo i esta a me todo log ia q ue , a ped ido dos me us a mi gos ,
pus e m práti ca na <vi la de> de Túscu lo , repa rtindo de
ma ne ira se me lh ante o te mpo q ue tín hamos à nossa di spo-
sição. Assim , de po is de ter dedicado a parte d a manhã à
arte da palavra, co mo fizéra mo s no d ia a nte ri o r, na parte da
tarde descemos até à Acade mi a"º. Vo u e ntão passa r a ex por
o di á logo que a í travá mos, não sob for ma na rrati va, mas
sim e m estil o d ra mático, isto é, reprod uzi ndo as palav ras
que o s inte rl oc uto res pro nunc iaram .
IV 10 Fo i, po is, ma is ou me nos deste modo q ue se e ncetou a
nossa co nversa , e nqu a nto ía mos passeando :
A . - Ne m te nh o palavras para desc rever o prazer que
se nti co m a ex pos ição que o nte m fize ste, o u melhor.

consideraçüo das pessoa.,· e épocas connTtas para a consideroç·üo do u11i1·er.wl


cha111a-se <e111 grei;o> 0ànç. Aristóteles exerci!Cl\'ll os seus jm·ens <discípu-
los> nesra prárica, 11âo se111 preocupa('iJes_fomwis de li11guage111 à 111a11eira dos
.filrísojás, 111a.1· si111 de acordo cmn os e11si1111111e111os dos refores. co111 o objeclil'o
de _falare111 co111 u11w li11g uage111 eleganre e precisa seg undo os dois cmurârios
po11 ros de 1·isra (i n utram q ue pa rte m ). O 111 e.1·11111 <ArisriÍreles> inrmdu:iu 11i11da
a noçüo de ·'lugares" (TÓ :ro1) - esre o 11m11e que lhes dâ - co1110 .1e11do 111110
espécie de indicaçüo dos w;s;11111e1110s a parrir dos quais se dese11ml1·e o discurso
a proprisiw de a111bos os po11w.1· de 1•is111 ( in ut ra mque pa rt e m ).
17
Fíl on de Lari ssa. ve io vive r pa ra Ro ma para fug ir às consequ ências da
terce ira g ue rra mitrid áti ca. C ícero fo i e nt ão ,e u di scípu lo. e to rnou-se por esta
via um segu ido r do acade mi smo cépti co.
IH Lit . ··dos re tores"·.
19
Lit. ··dos fi lósofos··.
20
Na sua vil a de Tú sc ul o. Cíce ro tinh a constru ído do is pó11icos onde
costum ava conve rsa r co m os ami gos. a que de ra os no mes de Li ce u. e m honra
de Aristóte les. e de Acade mi a. e m ho men age m a Pl atão. Esta. co mo se vê pelo
verbo empregado. "desce11111s ··. deve ri a situ ar-se num a parte me nos elevada da
propriedade.

[ 102]
que proveitosa ela fo i para mim. Embora eu nunca tenha
sido um indi víduo particul armente agarrado à vida , mes-
mo ass im , uma vez por outra , senti a em mim um certo
medo, um certo mal estar quando pensava que al gum dia
deixaria de fruir desta Iuze ve r-me- ia pri vadodascoisas agra-
dávei s da vida. Podes crer que fiqu ei curado deste tipo
de mal-estar, que passo u a ser o que menos an siedade me
provoca.
M .- Ni sso não há nada de estranho, pois essa é preci - li
sarnente a fun ção da fil oso fi a: ser a medicina da alma ,
libertá-la de preocupações irrelevantes , curá-l a das pai-
xões, afastar dela todos os medos. Mas nem em todos
<a filosofia> con segue este resultado, apenas exerce todo
o seu poder numa mente apta para a acolher. Não é apenas
"a fortuna " que "ajuda os bravos" 21 , como di z o anti go
provérbio , a razão aj uda muito mais, porqu anto, por meio
de adequados preceitos , como que dá novo vigor à bravura
inata . A natureza fez de ti , certamente , um homem de
carácter nobre e elevado , capaz de olhar com di stancia-
mento para a vida do comum dos homens, e daí que se
tenha gravado com fac ilidade na tua mente superior a
argumentação que compu s cont ra a morte . Mas pensas tu
que tais argumentos teriam um efeito semelhante, salvo
raras excepções , mesmo naqueles que os conceberam ,
discutiram e pu seram por esc rito? Quantos fil ósofos será
possível encontrar cujo carácter, mentalidade e fo rma de
vida sejam confo rmes aos ditames da razão? Qu al deles
é que faz dos seus ensinamentos. não uma ex ibição de

21
O provérbio. Jimis ... jártuna adiuuar, na lição de Cíce ro. oco rre e m
Vergílio como audenri.1· JiJrr w 1a iuuar ··a Fortu na protege os audazes·· (E11eida,
X. 284)

11 03 1
conhecimentos, mas s im uma reg ra de vida? Que seja o
primeiro a do min ar-se , e a obedecer ao s seus princípios?
12 É poss íve l e nco ntrar algun s tão superficiai s e vaidosos que
mai s teriam be nefic iado se não tivessem estudado tanto;
outro s há que só pe nsam ou em dinheiro , ou e m serem
famosos; há-os també m que são escravos das paixões e
c uj a vida contradiz vergo nhosame nte as suas pala vras.
Para mim , este será o cúm ul o da deso nra . Um indivíduo
apresentar-se como gra mát ico e di zer toda a casta desole-
c ismos quando fala, querer fazer-se passa r por mú sico e
não fazer nada quando ca nta se não desafi nar, é tanto mais
vergonhoso quanto c laudi ca prec isa me nte naq uil o de que
afirma ser especialista; do mes mo modo um filósofo que
vive de modo contrário à razão merece sob re tudo ser
condenado por falhar naque la maté ri a em que tinha a
obrigação de ser mestre, e por se afirmar co nh ecedor da
arte de viver quando a sua vida é um total fracasso .
V A. - Se as coisas são co mo di zes , não será de recear
que careça de fundamento o mé rito qu e atribuis à filosofia ?
Acaso have rá melhor prova da sua inutilidade do que o
facto de haver filó sofos assumidos c uj a vida só merece
censuras?
13 M . - Não , isso não prova abso lutame nte nad a. Assim
como nem todos os terrenos em que se prati ca a agricultu-
ra são fértei s, e Ácio não te m razão quando escreve:
As boas semenres, m esmo que caiam em mau rerreno,
Acabam por dar bom fruro conform e à sua 11arure;,a 22,

também uma mente culta não dá se mpre o fruto <espe-


rado>. Continuando com o mesmo s ímile, assim como um

22
Ácio.Atreu. vv. 199-200 Warmin gton.

[ 104]
terreno fértil não pode dar bons frutos se não for dev ida-
mente culti vado, assi m também o mesmo se passa com
uma alma se m ensinamentos, isto é, cada um dos factores
é insufic iente se o outro fal tar. Ora a cultura do espírito
é a filosofia, é esta que dele ex trai rad icalmente os víc ios,
é esta que prepara os es píritos para receberem a semente , é
esta que, por assim di zer, os ara e se mei a de modo a que,
quando <as sementes> medrarem, produzam frutos em
abundância. Continuemos, portanto, conforme começámos.
Diz- me poi s, por favor, qual o tema que desejas di scuti r.
A. - Em meu entender, a dor é o maior de todos os 14
males.
M.- Maio r mesmo do que a desonra?
A. - Não me passa pela cabeça afirmar tal co isa. Até
ten ho ve rgo nha de ter visto a minha opinião refutada tão
depressa !
M.- Se mantivesses essa opi ni ão é que era moti vo
para teres vergo nh a. O que pode haver de menos digno do
que achar que ex iste alguma co isa pior do que a desonra , a
vergonha, a ig nomínia? Que dor não será preferível , não
apenas não recusarmos, mas até mesmo não a procurarmos
de moru proprio?
A. - Estou tota lmen te de aco rdo. Mas ainda que a dor
não seja o maior dos males, o facto é que é um mal.
M. - Estás a ve r, portanto , como uma breve adve rtên-
cia te fez aba ndonar o temor do sofrimento13 !
A. - Vejo muito bem, mas quero mai s. 15
M .- Vou tentar, mas é uma tarefa difícil. Prec iso que
o meu interloc utor não me cont rad iga por princípio.

3
' No texto latin o: ··dor··

11051
A. - Não o farei. Tal como ontem, seguirei sempre o
teu raciocínio até onde ele me conduz ir.
VI M .- Começarei por fa lar dos pontos fraco s de muitos
filósofos , pertencentes até a muitas esco las de pensa-
mento. O primeiro de todos, tan to em au toridade como em
an tiguidade , é um discípulo de Sócrates, Aristipo 24, que não
hesitava em afirmar que a dor é o maior dos males. Mais
tarde , esta teoria amoleci da e efeminada foi docilmente se-
guida por Epicuro . Seguiu-se a este Hierónimo de Rodes 25
que punha o sumo bem na ausê ncia de sofrimento 26 ,
de tal modo era grande o mal que ele atribuía à dor! Os
demai s <filósofos> , com excepção de Zenão, Aríston , e
Pírron 27 , pensavam mais ou menos o mesmo que tu : a dor
16 é, sem dú vida , um mal , mas há outros piores. Deste modo,
aquela concepção que a própri a natureza e uma certa
bravura inata de imediato repel ia, que te impediu a ti de
fazeres da dor o supremo mal e te fez logo mudar de
opinião quando in voco u o contraste com a desonra 28 , é
uma questão que se põe desde há tantos sécul os à mestra
da vida <que é> a filosofia. Que dever, que glória , que

20
Ari stipo de Cirene. fundador da c ha mada esco la c irenaica. séc. V-1v a. C..
(Di óge nes Laé rcio. 11 , 65 -85 ). a me nos que esta ho nra ca iba a um neto se u do
me smo nome (D . L.. o. l. . 83). Segundo D. L.. Aristipo "sahorea 1·a o pra~er das
circuns1âncias presenles. e não se dm·a ao /rahalho de procurar o xo~o de bens
não presell/es" (o .l. . 66). o que fa z dele. até ce rt o ponto . um precursor de Epicu-
ro. como Cícero não se esquece u de o bse rva r.
"' O pen sa mento deste fil ósofo é di sc utido no De finihus. li . 8 etc. (vejam-
-se os passos no Índi ce Onom ástico do Vol. 1 dos Texros Fi/o.wíjicos de Cícero).
Seg undo De jin. 8 , Hi erónimo defe ndi a que o supremo bem co nsistia na au sência
total de dor.
26
No orig inal : ··dor".
n Zenão. fundador da escola Estó ica. Aríston de Quios. di scípu lo de Zenão.
Pírron de Éli de. fund ador da escola Cépti ca: sobre todos estes pensadores. v. o
Ín dice refe rido na nota 25 supra .
28
V. supra ~ 14.

[106]
honra terá tan to valor que possa ser procurada mesmo com
sofrimento físico por um homem que esteja convicto de
que a dor é o maior dos males? E in versa mente, a que
ignomíni a, a que in fâm ia não se expori a, para escapar
à dor, quem esti vesse convencido de que esta era o mal
supremo? E quem não se considerará um infe li z, não ape-
nas quando está a sofrer intensas dores, se de facto estas
constitu írem o mal supremo, mas também com o pensa-
mento de que tal mal lhe poderá acontecer? E quem há
<neste mundo> a quem isso possa não acon tecer? A ser
assi m, então não ex iste ninguém que possa sentir-se fe li z.
Metrodoro 29 entendi a que é plenamente feliz o homem 17
que, além de dotado de uma boa co nstitui ção fís ica, tem a
certeza de que a manterá sempre . Mas quem pode estar
seguro de semelhante condição ? Ep icuro, por seu lado, faz VII
certas afirmações que parecem destinadas a provocar o
riso. um passo qualquer di z ele que o sábio , se e tiver
a ser queimado, a ser torturado ... - es peras talvez que ele
dirá: "<o sábio> sofrerá, aguentará, não sucumbirá <à
dor> "; grande at itude seri a esta, por Hércules, atitude
bem digna do deus , Hércul es , pel o qual jurei; mas para
Epicuro , homem rijo , duro, isto não basta ; se o sábio esti -
ver dentro do touro de Fá laris 30 exclamará: "Como se está
bem, aqui! Tudo isto me é indiferente! " O quê? Está-se
bem? Não chegava dizer "isto não custa nada "? a ver-
dade, mesmo quem nega que a dor é um mal , nem mes mo

19
Metrodoro de Lâ mpsaco . di sc ípul o de Epic uro (v. De .finihus, li . 92 . pas-
so em que Cícero c ita e,ta mes ma máx im a ).
30
Fálari s. t irano de Ag ri ge nto (séc . VI a. C.) . fam oso pe la sua crue l-
dade. Cont a-se que mand ara construir um tou ro de bro nze . dentro do qual e n-
cerrava as suas vítim as . De ba ix o ci o to uro ace ndi a de po is uma fog ueira . que
provocava os gritos dos paci e ntes.

11 071
esse di z "que se e stá bem no m e io da tortura " ; diz , sim ,
que é algo de penoso , difícil de suportar, detes tável, con-
trár io à natureza, embora não seja '·um ma l". <Epicuro>,
este <fil ósofo> , que cha ma à dor o ún ico mal, o mais vio-
lento de todos os males. afirma que o sábio di ri a "sen tir-se
18 bem" no meio da dor. Eu não exijo de ti que fa les da dor
com as mesmas palavras com que fa la do prazer Epicuro,
homem, como sabes, ap reciador dos prazeres . Admitamos
que ele usari a dentro do touro de Fá lari s a mesma lingua-
gem co mo se esti vesse recostado num leito. Não pretendo
que a sabedori a seja ass im tão eficaz para combater a dor.
Que um homem seja capaz de a suportar com coragem
já fará o seu dever; não ex ijo que sinta prazer ne la. Pelo
contrári o, <a dor> é , sem dú vida alguma, algo de penoso,
de afliti vo, de custoso, de contrário à natureza, di fíc il de
19 aguentar e suportar. Olha o caso de Fil octetes 3 1: ninguém
deve censurá- lo pelo seus gritos de dor. Ele tinh a visto o
próprio Hércul es gritando no Eta por causa da enormidade
do seu sofrimento. Em nada o conso lava m as fl echas que
recebera de Hércules nos momentos em que
nas en tranhas, as veias impregnadas do Fe11e110 causado
pela mordida da víbora lhe causava111 terrfreis
/ padecime1110s)2.

<Ü mesmo Fil octetes> , deseja ndo ao mes mo tem po ser


socorrido e morrer, exclama:
Oh, quem me atirará ao mar salgado
do alto deste escarpado rochedo.?

31
Uma pane do mit o de Fil oc tetes relacion a-o com Hérc ul es . de quem ele
foi ami go , di sc ípul o e herdeiro do arco e fl ec has.
32
Ácio . Filocreres , vv. 552-3 Warmin gto n. O te ma da do r de Fil octetesjá
fora també m utili zado por Cíce ro e m Defini/Jus. II . 94 .

[ 1081
Já não posso mais! Destrói-me a alma
a violência desta fer ida. o ardor desta chaga.11'

É difícil não admitir que este home m estava a sofrer,


estava mesmo a sofrer muito, e por isso gritava de dor.
Mas vejamos o que faz Hé rcul es quando a dor o submete, VIII 20
no momento em que a pró pria morte lhe ia proporcionar a
imortalidade 34 . As palavras do herói e ncontramo-las repro-
duzidas nas Traquín ias de Sófocles. Qua ndo Dejan ira lhe
vestiu a túni ca embebida no sa ngue do Ce nta uro 35 e esta se
lhe colou ao co rpo, o he ró i exclama:
Oh! actos difíceis de narrar, penosos de sofrer, I 046
que suponei no corpo e padeci 11a alma!
Nem a implacável perseguição que 111e mo via Ju,10 36
nem o sombrio Euristeu' 1 me ca usou tão grande mal
como esta insensata filha de Enet/' 8 so:inha mefe:! 1050
Enredou -me, confiante, nesta veste dig na das Fúrias
que se me cola aos f lancos e morde e lacera o meu
[corpo
e, atacando fundo , me rouba dos pulmões o ar:
engoliu -me todo o sangue, jcí perdida a cor.
Assim ,flagelo horrível. destrói-me !Oda o corpo. I 055
A vicla/oge-me. enredada nes1e pestífero tecido.

31
Áci o. Filncte tes . 564-7 Warm in gto n.
14
Ao morrer na pira Hé rc ule s acede à morada dos deuses. de c ujo núme ro
passa a fazer pane.
15
Nas Trnq11 í11ias. Sófoc le, dese nvolve o mesmo tema qu e Séneca desen-
volverá no Hércules sobre o Ew. Nesta peça é Hil o. fi lho de Hé rcu les e Deja nira.
e não Fil octetes. que m ass iste aos últim os momentos do heró i.
16
Ju no. por ci úmes. já que Hércules era fi lh o de um a mortal amante de
Júpiter. persegu ia o herói desde o seu nasc imen to.
37
Rei de Tirinte. impôs a Hérc ul es os "doze traba lh os" .
18
A "filha de Ene u" é Dejanira . que m:i11ha causo u a mrn1e ele Hércul es
quando lhe deu a vestir a túni ca e n vene nada.

1109]
Isto nc7o ofa::, 11111 braço inimigo. nem a 1110 /e dos
[Gigantes
nascidos da Terra , nc7o foi 11111 Centa uro biforme
que me desferiu 11111 golpe sobre a cabeça ,
nc7o foram nem a bravura grega ou a audác ia
/ bárbara , 1060
nem povo algo selvagem vindo dos confins da terra
que eu, /cí aportando , libertei de toda a vio/ência 39 .
E11, 11111 homem pereço. à femin ina mc7o de uma
[nw/her! 40
IX Filh o, compro va ao te11 pai a verdade de tal nome4 1,
nc7o saia vencedor o amor pela tua mãe, que me
(destrói! 1065
Arrasta-a aré mim com as ruas mãos piedosas,
para e11 ver quem tu pref eres, se a mim , se a ela '
21 Vai,.filh o, coragem! Lamenta a dor deste teu pai . 1070
Piedade ' Todos os po1•os chorarão as minhas
/desgraças .
Ai de mim , que solto prantos virginais com esta boca
que nunca ninguém 011 vi11 ge mer por nenhuma dor.
A minha f o rça efeminada s11rn111be ao sofrimento.
Vem ,.filho , aprox ima-te, contempla este m ísero
corpo esfac elado do teu dilacerado pai!
Vede, vós todos, e tu , ó pai dos deuses, 1080
lança contra mim , peço- te, n reu rain coruscanre.
Ora a dor me tortura num apogeu de sofrimenw ,
ora um fogo me consome . Ó mãos antes vitoriosas. /090

39
Sob ce rtos aspectos . Hé rc ules é o que se pode c hama r .. um herói civi liza-
dor' ' . na medid a em qu e libe rtou as te rras dos mon stros selvagens que afl igiam a
humanidade (como fo i também o caso de Teseu. o herói de Atena s. que libertou
a c idade do " touro de Maratona •· ou da submi ssão ao Min ota uro).
0
• A oposição l10111e111-mulher é ace ntuada pel o jogo de palavrasfe111i11ae -
feminea [ ... } manu . lit. "de uma fêmea - a feminina mão".
1
" Pro va pe la tua atitude que és verdadeiramente meu filho.

[ 11O]
ó peito , ó ombros, ó tão robustos músculos , 22
foi sob a vossa pressão que um dia o leão de Ném ea ,
rangendo os dentes exalou o último sopro ?
Foi esta a mão que deu a pa-;, a Lema depois de a fera
serpente sacrificar? Este o braço que derrotou os
[Centauros?
Este, o que pôs f im àfera destruti va de Erimanto ?
Este, o que trouxe do Tártaro4 " , saído de entre as
[sombras ,
o cão de três cabeças 43 gerado pela Hidra ?
Este o que deu a morte aos múltiplos abraços
do dragão, guarda atento da árvore de áureosji-uto~M? / 100
Muito s outros desafios afrontou esta mão vitoriosa ,
e ninguém conquistou sobre mim nenhum trofé11 45 .

Podemos nós despreza r a dor quando ve mos que até mes-


mo Hércu les não co nsegue repri mir a sua?
Vejamos qu e informação nos dá Ésq uil o, que alé m de X 23
poeta era pitagórico , pelo me nos seg und o reza a tradi ção 46 .
Como representa <Ésqui lo> a forma como Promete u
suporta o sofri me nto que lhe foi imposto co mo pe na pe lo
roubo de Lemnos47 ?

'' Em rigor. o T árt aro é uma pa rt e do mund o inferna l. aque la onde são
sup li ciados os gra ndes c rimin osos da fábul a. V. a descr ição que desta secção dos
Infe rnos faz a S ibi la de Cumas a Eneias e m Vergíli o. Eneida . 54 8-627.
" Cérbero. o cão que g uarda a entrada do mundo in fe rna l.
" O dragão q ue gua rda as maçãs de o uro no j ardi m das Hespérid as.
" Tradução li vre de Sófocles . Traq11í11ias. 1046- 1102. A nume ração dos
versos indicada à marge m corres po nde ao número dos versos 110 texto de Sâ-
foc/es . Pode verifica r-se. a part ir destes números . q ue a lguns destes nâo fora m
tradu:idos por Cícero. Out ras liberdades a ind a oco rre m na ve rsão do Arp in ate.
6
' Ignora-se onde pode rá Cícero te r co lh ido esta in fo rm ação. abso lut ame n-
te única . sobre um pre te nso pit ago ri s mo de Ésqu ilo.
7
' Segundo o mito. o Titã Promete u teri a roubado o fogo do vulcão da ilha de
Lem nos (onde o de us do fogo. Hefesto . tin ha a sua ofic in a ), para o dar aos home ns,
contrariando ass im a vontade de Zeus. V. Apo lodoro. Biblimeca. 1. 7, 1 (4 5).

[ 11 1J
Daqui l'eio o fogo, a ocultas, com os mortais
partilhado:foi o sábio Pro111eteu que o
roubou . dolosa111 ente, e por Júpiter/ui punido
com o mais implaccí Fel destino! 4 x

Eis as suas palavras, quando sofre o cast igo, aco rrentado


no Cáucaso:
Oh Titc7s 49 , parentes do 111e11 sangue • raça
50

gerada por Ceu. Fede conto estou preso, a este duro


rochedo acorrentado, como na ve que entre o.fragor
[das ondas
os nautas , temendo a noite. amarram <à costa>.
Júpiter.filho de Sa turno.foi quem aqui me agrilhoou, 5
ao serviço de llÍpiter pôs Mulcíbero 5 1 as suas meios.
Este. com técnica cm el. cra1•a esre.\· pregos
despedaça -me os 111embros; e e11 , infeli-:,, pela sua
(de.1·t re-;a
trespassado. habito agora este castelo das FlÍrias.
24 Dia si111 dia nc7o 52 • mas dia sempre.funesto . 10
as garras aduncas lacera11do-111e, co111 voo sinistro.
numa refeiçcio cruel, rasga-me a ave de Júpiteríl_
Depois de de vorar até saciar-se gordos bocados
[do meu.fígado
solta um sonoroso grito . e voando até ao alto
acaricia o meu sangue com as penas da cauda. 15

48
Versos do Filocreres de Ácio. cf. Warming to n. o.e .. li. p. 508.
49
Segundo parece . Pro mete u diri ge a pal av ra aos Titãs 4ue const ituíam o
coro ela peça .
.1o Ceu (= o cé u). equi va lente ao g rego Ura no. pai dos Titã, . cf. Hesíodo.
Teogonia. 207- 10.
51
Mu lcíbero. lit. "aquele que derrete". e pítet o latino ele Vulcano(= Hefes-
to). deus cio fogo.
5
" Lit. "ao terceiro dia".
5) Lit. "a companheira ele Júpiter". a ág ui a (v. p. ex. Píndaro. Pírirns. 1. 6-8 ).

111 2]
Quando o fígado devorado cresce e retoma a sua forma
de novo <a águia> gulosa vem ter com o seu cruel pasto.
Assim eu alimento a guardiü do meu triste suplício
que, eu ainda vivo, me atormenta com eterna desgraça.
Como vedes. agrilhoado como estou por Júpiter, 20
nem sequer posso ajúgentar do corpo a terrível ave.
Assim , viúvo de mim mesmo sofro a ânsia dos tormentos 25
e. desejando a morte, procuro nela o.fim desta dor.
Ma s. essa a 1•ontade de Júpiter, permaneço longe
[do fim ,
acumulada ao longo dos séculos , esta tortura antiga 25
e dolorosa mantém-se indissociável do meu corpo
de que escorrem gotas <de sangue> . liquefeitas pelo
[ardor
do sol, que sem cessar salpicam as rochas do Cáucaso' 54

Parece difícil não considerar infeliz alguém que sofra


desta maneira, e se um tal homem é infeliz, então o sofri-
mento não pode ser senão um mal .

5' Estes ve rsos são tradu z idos por Cícero de uma tragéd ia perdida de Ésqui -

lo. a qual se sucedia ao Pro111 ere11 ai<rilhoado. constituindo. portanto. a seg unda
peça da trilogia centrada sobre a figura de Promete u. Essa tragédia perd ida. mas
cujo tíilllo é preservado no Catálogo da s peças de Ésqui lo . deve ser o Prome-
teu /iberrado. Gilbe11 Murray. na sua edi ção dos dramas de Ésqu il o. regi sta. a
seguir ao texto do Agrilhoado. os fragmentos conservados do Libenado. e ntre
os quai s insere (pp . 147-8) esta tirad a que Cícero traduziu. Há. no en tanto. um
problema: os versos 14- 15 . e 1•ow1do aré ao alio acaricia o 111eu sangue com as
penas da cauda. são c itados pe lo gra mático Nónio Marcelo co mo pertencendo
ao Pro111e1eu de Ácio. A ques tão . portan to. está em saber se Cícero traduziu um
passo de Ésquilo o u se citou um passo da peça latin a de Ácio. Pa rece- nos difícil
dizer sobre esta questão mai s do que já disse Murray na nota que acompan ha os
versos em causa: Haec si ah A ceio .1·cripra .1·u111 Aeschylwn fo111e 111 habe/11 , si a
Cicerone Aeschyli ipsa uerha reddu111. Hoc 111ihi ueri si111ilius , .. se estas palavras
foram escritas por Áci o têm como fonte Ésqui lo. se por Cícero. reproduzem as
próprias pa lavras de Ésquilo. Esta <hipótese> parece-me a mai s verosímil '"].
Cf. ainda as palavras de Cícero no final cio§ 26. que sugerem. embora de forma
não de todo irrespondíve l. que os versus foram tradu zi dos.

[ 11 3]
XI 26 A. - Bom , até agora ten s estado a defender a minha
causa . Mas esta questão fica para depois . Por agora,
diz-me: de quem são estes versos ? ão os reconheço .
M .- Digo , com certeza , a tua pergunta é pertinente.
ão vês tu co mo esto u tão desocupado?55
A . - E en tão?
M .- Qu ando estiveste em Ate nas, frequ entaste , penso
eu, as escolas fi losóficas56 .
A . - Sim, e co m o maior interesse .
M. - Reparaste com certeza que, embora por esse
tempo não houvesse lá ninguém muito eloquente , era, ape-
sar de tudo , costume inserir c itações poéticas no di scurso.
A. - Sim , o estó ico Dionísio 57 fazia -o muitas vezes.
M . - Ten s razão , mas este parecia que estava a fazer
um ditado, sem um a esco lha, sem brilho literário . Fílon,
pe lo co ntrário , conservava a métrica particular <dos
tex tos> 58 , escolhi a os poemas e ci tava-os a propósito. Por
conseg uinte , eu , depo is qu e to me i o gosto po r esta espécie

55
Cícero não pe rde uma o po rtunidade de sa li e nt ar que "está desocu pado··.
ou seja. que não te m deve res pú bli cos a c umprir. ne m como advogado nem,
sobre tudo. como po líti co. Não se esqueça que. na época e m que esc reveu as
Tuscu /anas. estava no seu apogeu a ditadu ra de Césa r.
56
Outra tradução possíve l: "assististe a muitas liçôes (co11fe rê11cias) de
fi lós<~(os··. uma vez que a palavra scho /a ta nto pode sig nificar "escola" . espaço
físico o nde decorre m as li ções mini stradas pe los fi lósofos. como a "exposição"
(di sc urso . li ção . conferê nc ia) po r e les feit as.
57
Não é claro a que Estó ico é fe ita esta refe rê ncia. já qu e deve tratar-se de
al gum fi lósofo da é poca J e Cícero e dos seus inte rl oc utores. Uma coisa é cena:
não pode ser o Dio nísio de He racleia me ncionado e m De fi nibus. V. 94. porque
este era contempo râneo de Ze não. Também é improváve l que se trate de um
Dionísio Estó ico (~wvúowç ó L,ui(xóç) me ncio nado po r Di ógenes Laércioem
VI. 43. a que m atribu i um e ncontro com Fi lipe II da Macedó ni a.
58
O tex to que tradu zimos é : Phi/0 11 et propriwn 11umeru111 . etc. Pohlenz
exibe um tex to corrupto: Pl,i/011 et propriu111 nrt etc.

[ 114]
de "dec lamações para idosos" 59 , recorro com aplicação aos
nossos poetas. Mas se eles me fa ltam traduzo muitos pas-
sos de ori ginais gregos , para que este meu tipo de decla-
mação em latim não sinta a falta de <c itações> decorati -
vas. Mas já ava li aste bem como são prejudiciais os poetas? 27
Põem e m cena heróis a lamentar-se, amolecem-nos o
carácter, e de o utras vezes são de tal modo atraentes que
nos não limitamos a lê-los, mas os sabemos de cor. Assim,
quando à decadência da ed ucação fami liar e a um modo de
vida de efe minad a delicadeza se junta a influência dos
poetas, e vai-se toda a e nergia que caracteriza a virtude.
É, portanto, com um bom moti vo que Platão , quando
procura determinar quai s os melhores costumes e qual
a melhor forma de o rganização po líti ca, ex pul sa <os
poetas> da cidade ideal que <teoricamente> co ncebeu 60 .
Quanto a nós , que construímos o nosso sistema de educa-
ção a partir da c ultura g rega , le mos estas hi stó rias, apren-
demo-las de co r desde a infância, e co nsideramos que
nisto assenta a verdadeira c ultura hum anística .
Porquê esta hostilidade para co m os poetas? Até se XII 28
encontraram filó sofos, mestres de virtude, que decretaram
ser a dor o maior dos mal es . Tu , poré m , que és um jovem ,
que ainda há po uco dizias estar de acordo co m essa teoria ,
quando te perg untei se <a do r> era pior do que a desonra ,...

59
Tex to orig in al: posrquam ada111a11i /w11c quasi se11ile111 decla mario11e111
"depois que tomei o go;to a este (tipo de) dec la mação senil ". As "dec lamações"
eram di scursos fic tíc ios. co mposto; e a presentado, pe los jove ns nas escolas de
retórica. como preparação. teóri co- práti ca. para uma futura carreira de orador.
Cícero. já idoso. durante o se u óci o fo rçado. está a faze r e/o u a diri gir a compo-
sição de di scursos - declanwrio11es - própri os de. o u adequados a idosos (senil is
não tem a presente conotação negat iva).
60
Referência óbvia à A Repúblirn de Pl atão. So bre a hostilidade de Platão
em relação aos poetas . veja-se sobre tudo o li vro X de A República.

[ 11 5]
bastou uma palavra para te fazer mudar de ideia 61 ! Faz a
mes ma perg un ta a Epicuro: responder-te-á que um sofri-
me nto medíoc re é um mal maior do que a maior das
desonras , uma vez que na desonra só há ma l se ela
fo r causa de dores . M as afi nal que do r afli ge Epic uro no
preciso mo mento em q ue declara a dor como o maior dos
ma les? Da parte de um fi lósofo não es pero desonra maior.
Deste- me uma grande satisfação q ua ndo me respondeste
que a deso nra te parecia ser um mal ma ior do que o sofri-
me nto . Se te mantiveres firme nesta ideia , perceberás
como se pode enfre nta r a dor. Por consegui nte, mais do
qu e inquirir se a dor é um mal. devemos é robustecer o
â nimo para a e nfre ntar.
29 O s Estóicos formam un s s ilog ismos ridícu los para
provar que a do r não é um mal, como se o que está e m jogo
fosse um vocábulo, e não a co isa em s i. Para q ue me enga-
nas, Zenão? Qu ando, perante uma coisa q ualquer que a
mim parece ho rrível , tu afirmas que e la não é nenhuma
espécie de mal, e u acei to, e fico co m vo ntade de perceber
por que razão uma situação que se me afigura infe licíssima
não é seque r um mal. "'Nada é um mal " - di z <Zenão> -
"senão a deson ra e o vício." Vo ltaste às fr io le iras, e assim
não co nseg ues liberta r-me do que me a ngustia. Sei muito
be m que "dor" não signifi ca "v íc io". Escusas de e nsinar-me
isso . Ensi na- me antes que é ind iferente "estar a sofrer" ou
'·não estar a sofrer" 62 • "Sim, é de todo indiferente" - res-

61
V. su pra § 14 .
62
Para os Estó icos tudo q uanto se situ a entre o ··bem absoluto·• (que é o
bem de orde m moral ) e o ··mal absoluto·· (o de ordem ét ica) merece ser consi-
derado como '•indiferente··. isto é. como algo que . em si mesmo . não é um bem
nem é um mal (por exemplo . a saúde . a riqueza. o talento a11ístico. etc .. não são
intrin secame nte nem bens nem males . depe ndendo a sua classificação apenas da

[ 11 6]
ponde ele - "no que c/i::, respeito à feli cidade, a qual de-
pende em exclusividade da Firtude . <A dor é>, no
entanto, algo que devemos rejeitar. ·· Porquê? " Porque é
uma situação penosa , antinatural. d(fícil de suportar,
triste, angustiosa ." Ora aqui está o que se chama "riqueza XIII 30
vocabul ar", para signifi car todas as modalidades de algo
que podemos si nteti zar numa única palavra: " mal". O que
tu fazes , <Zenão> , é defi nir, não li bertar-me da dor,
quando di zes que esta é uma coisa penosa, antinatural , que
ó a custo se pode enfrentar e tolerar. ão mentes, mas
quem é tão rico de palavras não deveri a desanimar ante a
coisa em si 63 . " Desde que não se tome como bem senão o
que é honesto, e como mal senão o que é desonroso ... "
Estas palavras ex primem uma opção, não constituem
uma prova. eri a preferíve l e mais confo rma à verdade
que tudo quanto a natureza rejeita deve er con tado entre
os males, e tudo qua nto ela procura alcançar, entre os
bens64. Fixado este ponto, afastada toda a di ssenção
verbal, destacar-se-á aq uele princípi o defendido <pelo
Estóicos> , a saber, aq uilo a que chama mos honesto , justo,
decoroso, que por vezes sinteti zamos na palavra " virtude" ;
e também <a ideia> de que tudo o mais, aquilo a que se dá

respecti va cla,, ificação e m te rmos é ticoq . Lo go . a prese nça o u a ausênci a de


sofrime nto são. em , i. indi fere nte,: tudo depende da ma ne ira como o suje it o
encara o seu e,tado ele do r. o u de não dor. - Sobre a teoria dos in d ife rentes v.
Stoici cmtichi. pp. 9 1-2 (Zenão). 248-50 (C lea nte,) . 1025 -46 (Cri sipo). Sé neca .
Ad L11cili11111 episru/ae 111ora/es. 82. So bre o, , il og ismm de Ze não . cf. . al é m da
carta de Séneca men cio nada. Jo nath a n Barnes . Logic a11d rhe l111perial Swa. Le i-
den. Brill. 1997. caps . 1 (" The Dec li ne of Log ic··) e 2 ( ··s e neca··).
63
Lit. "convinha que não se de ixasse ve nce r pe la co isa (e m si) que m se
ufana de tão ri co vocabuário··.
"' Cf. Ari stóteles. É1irn a Nicrí11wrn. 1098 b 12 , ,.

11171
o no me de " ben s do corpo e da fo rtuna" são diminutos e
65

de pouca monta, <pelo que> ne nhum mal , ne m mesmo


66

que num único loca l se acum ulassem <os mal es> todos,
31 seriam co mparáve is a esse mal que é a desonra. Logo,
conforme admitiste no início, se a desonra é pior do que a
dor, e ntão a dor fica redu zida a nada. Enq uanto te parecer
que é desonroso e indigno de um homem ge mer, clamar,
lamentar-se. deixar-se abate r e ser vencido pe la dor, quan-
do se conserva a honestidade , a di g nidade e a honra, e
e nquanto tu , com o olhar fixo ne las, mantive res o controlo
sobre ti , a dor acabará por ceder ante a virtud e e perderá a
força, vencida pela tua firme dec isão.
Ou a virtude não se rve para nada , o u e ntão toda a dor
não merece se não desprezo . Admites a existência da
prudência 67 , <virtude> se m a qual ne nhuma o utra virtude
pode ser sequer co ncebida. Muito bem! Será que ela
consente que cometas alg uma acção de todo inútil , que
represe nte um esforço <em pura pe rda> 68 ? Por acaso a
temperança consentirá qu e faças algo de imoderado?
Poderá , porventura , a justi ça ser praticad a devidamente
por um homem qu e, sob o constrangimento da dor, diga
tudo quanto lhe o rdenam , traia os co mpanheiros, neg li gen-
32 c ie o cumprimento dos deveres? E co mo corresponderás tu

65
Aos be ns do corpo cha ma Ari stóte les tà .. . JU' QL oc.ôµa: os ··bens da for-
tun a•· devem corresponder os que Aristóteles designa po r ··ben s·· Éx1óç i.e ..
··exteri ores··.
66
Estes parênteses angu lares já figuram no tex to de Po hl enz.
67
Cícero inici a a e nume ração daquelas virtudes que vieram a ser chamadas
pelos auto res cri stãos as ·•v irtudes ca rdi ais ... Essas quatro virt udes já se encon-
tram enu nciadas po r Platão. A República. 427 e: uma c id ade convenientemen-
te admin istrada deve assentar na práti ca da prudência (p rude11ria cpgóv110LÇ).
remperança (rempera11ria owcpgooúv11 ). coraf!e111 (jo rrirudo ávógEta) ejusriça
(iusri ria Õlxmooúv11) .
68
Estes parênteses an gulares remontam à ed ição de La mbi nus . 1566.

l 118]
às solicitaçõe s da co ragem , e das suas assoc iadas - a gra n-
deza de alma, a gravidade , a paciê nc ia , o di stanciame nto
em relação às questões humanas? Pe nsas que algué m ,
ao ver-te acabrunha do, caído por te rra , soltando prantos e
lamentos , exclamari a: "Oh , que homem valoroso! "? Presa
assim de tais e moções, nin gué m te c hamari a seque r
"homem" ! Por conseguin te, há que o ptar: ou desistes da
coragem, ou ten s de se pultar a do r. Então tu não sabes XIV
que , se perderes um do s teus vasos de Corinto69 , podes
conservar a salvo o res to da tu a colecção, ao passo que , se
perderes um a só virtude ... - o u me lhor, porque é impos í-
ve l perder uma virtude -, se tu ad mitires não poss uir uma
vi rtude , isso é o mes mo que não poss uíres ne nhuma 70 ?
ão podemos chamar " va lente" , " magnânim o", " pac ie nte" , 33
"grave", "desinte ressado dos favores da fo rtuna" a ... ,
<digamos,> a um Filoctetes 71 , j á que não quero dar-te
a ti como exemplo ; mas não pode mos cha mar "vale nte" a
alguém que jaz
sob um húmido tecto,
que, com os seus gritos , prantos, gemidos, soluços
ecoando , embora mudo. reprodu::, os seus tristes !amentos72 .

Eu não nego qu e a do r seja <mesmo> do r, poi s de


outra forma para qu e necess ita ríamos da corage m? Digo é

til Vasos de bronze. muito aprec iad os no mundo anti go.


70
Segundo os Estó icos. todas as vi rtudes constitue m um todo indi ssoc iá-
vel. pelo que, ou se possuem iodas as 1•ir111des. ou e nt ão não se possui ne nh uma.
Melhor di zendo. a virtude pode ocorrer sob di versas manifestaçõe s. umas vezes
manifestar-se como corage m , o ut ra vez como prudênc ia. etc. Seg undo as pa la-
vras de Diógenes Laérc io . " Di:e111 os Esuíicos que as l'irTudes andam sempre em
conjumo, logo quem 1e111 w11a delas 1e111 -11as rodw " (D.L. . VII. 125) . Cf .. u .g ..
Stoici antichi. p. 166 (= S. V. F. . I. fr. 376) .
71
Personagem da tragédia de Ác io. cf. supra 19 .
71
Ácio. Filoc1e1es. vv. 549-51 (Warmingto n).

r11 91
que ela pode ser dominada pela paciência -', se é um facto
7

que a paciência ex iste. porque , se não exi ste , de que vale


enaltecermo s a fi losofia e gabarmo-no s do título de •'fi ló-
sofos"? A dor tortura-te , penetra-te mes mo: se estás iner-
me, oferece a go rja74 . Se estás proteg ido " por armas de
Vulcano'' 75 • isto é, se tens coragem, então res iste; de outra
maneira <esta virtude> , guard iã da tua dignidade , aba ndo-
nar-te-á por completo 76 •
34 As leis vigentes em Creta, que, segundo narram os
poetas, foram estabelec idas <por Júpiter> , ou por Minos,
77

mas por indicação de Júpiter, e também as de Licurgo 7 ,


habituam a juventude ao esforço, através da caça e da cor-
rida, da ex posição à fome e à sede, ao frio e ao calor. Em
Es parta, os jovens são mesmo aco lhidos junto ao altar com
chicotadas
q11e /h esfcr:,em espirrar muito sangue do corpo ,
79

e por vezes mes mo, segundo ouvi contar quando lá estive.


até à morte; pois bem, nunca nenhum deles soltou uma
exclamação, nem sequer um gemido. Então estes jovens
podem aguentar <a dor> , e os homens feitos não podem?
A tradição consegue um efei to que a razão só por si não
consegue?

7.1 " Paciê ncia". do latim patientia . que por sua veL de ri va do verbo patior.pati
"sofrer" . signifi ca "capacidade de sofre r. coragem para ag uentar o sofrimento".
74
Faz como o g ladiado r ve ncido que ex põe a garga nt a ao golpe de miseri-
có rdi a do adversári o .
75
Ilíada . XV III. vv. 369 ss .: alu são às armas fabri cadas pe lo deus do fogo
para Aqui les .
76
Lit. ··deix ar-te-á e abando nar-te-á".
77
Este inse rto já ex iste no tex to de Po hl e nz.
H As leis de Lic urgo . legis lado r de Espart a .
7

79
V. de uma tragéd ia de tem a e a utor desconhec idos (Warmington. "Frag-
me nt s oftraged ies by auth or; unkn ow n... v. 115 ).

[120]
Existe um certa diferença e ntre esforço 80 e dor8 1• São xv 35
noções muito próximas. mas ainda assim algo diferentes .
"Esforço" remete para qualquer tarefa. in telectual ou
física 82 , que exige muito trabalho e respo nsabi lidade, "dor"
denota um mov ime nto do corpo. brusco, pe noso e desa-
gradável aos se ntid os. Os Gregos, cuja língua passa por
ser mais ri ca do que a nossa, usam um a só palavra para
denotar estes dois conceitos 83 . Aos ho me ns "acti vos" e les
dão o nome de "aplicados·•, literalmente " amantes da dor";
nós empregamos um termo mais adeq uado , ''trabalhado-
res". ma coisa é " traba lhar", o utra coisa é " pe nar".
ó Grécia, ó língua parca às vezes e m palavras , e mbora
julgues que de las di spões se mpre e m abundância! Uma

IIO Lat. lahor .. esforço. traba lh o. ac ti vid ade ...


81 Lat. dolor .. dor. sofrim e nto ...
s: Lit. ··ou da a lma o u do corpo ...
8 ' É um lugar
com um nm textos latino, a co mpa ração do latim com a mai or
riqueza vocabular da lín gua grega. Um pa,so c láss ico a este respe ito é a afir-
mação por Luc réc io da difi c uldade de trat ar em latim te ma s fil osófico s gregos:
'"Nüo 111e passa desapercebida a dificuldade de reprodu: ir e111 versos latinos
as obsrnras teorias dos Crei;os. sobretudo porque 111 e verei obrii;ado a utili -
~ar muitas pala1 n1S novas. atendendo à 1whre:a da nossa língua e à no vidade
da matéria que 1·ou /rata r'" ( Luc récio. Poema da Na111re~a. 1. 136-9). A Cícero
não agrada esta ve rifi cação. e defe nde sempre a língua latin a da acusação de
pobreza vocabular. como faz. u .g .. no De finih/1.\ . num pa sso e m que afirma que
o latim. não só não é ma is pobre. mas é até ma is ri co e m vocabulário do que
o grego (de Jin .. 1. IO). No caso prese nte Cícero pretende fazer va ler o fa cto de o
lat im ter dois termos diferentes para duas noções dife re ntes como são .. esforço•·
e ··ctor'". e procura mostrar a pobreza do g rego que usa um mesmo adjectivo
- cjnÀórrovoç - para ex primir as idei as de .. ac ti vo (= traba lhador). industrio.rns.
ou industrius .. e de ··esforçado. lahoriosus"' . Infe li zmente para o se u rac iocínio.
o termo rróvoç signifi ca. de facto . '·esforço pe noso'" . pe lo que <p LÀÓnovoç . à
letra. signifi ca .. que ama o es forço··. o que não implica que .. ame a dor resu ltante
desse esforço··. Di ga mos . assim. que des ta vez o se ntido de humor de Cícero não
foi bem sucedido. Até porque. para a noção de .. do r. so frim e nt o··. o grego di spõe
de termos tão variados como ná0oç. ,,úm1. a,,yoç. á),y11bluv.

11211
coisa é "trabalhar" , repito, outra coisa é "penar". C. Mário84 ,
qu ando estava a ser operado às varizes, ·'senti a dor";
marchar à frente das tropas sob a to rre ira do sol, era uma
prova de " esforço" . Entre estas duas situ ações ex iste uma
certa seme lhança: a habituação ao esforço to rna mais fác il
36 a capacidade de aguentar a do r. Por isso é q ue os homens
que dera m à Gréc ia as suas consti tu ições po líticas preten-
dera m robu stecer fis icamente os jovens através do esforço.
Esta mes ma política fo i ap licada també m pe los Espartanos
às rapari gas; enqu anto nas demais c idades levavam uma
vida de mo leza,
protegidas pela sombra das paredes,

qui seram e les que fosse muito di fe re nte a s ituação


das virgens da Lacón ia,
que na palestra ,junto ao Eurotas , ao sol, ao pó ,
[em esforço
se aplicavam mais à milícia do que à fertilidade asiática 85 •

Nestes esforçados exercíc ios não raro está presente a


dor: e las e mpurra m-se, fe re m-se, são derru badas, caem
po r terra , e é o próprio esfo rço que as to rn a calejadas con-
tra a dor8 6 •

84
Gene ral e po lítico da primeira metade do séc . 1. Natural de Arpino. como
Cícero . é muitas vezes referido pe lo o rador nos se us tex tos. Cícero compôs até
um poema narrati vo com Mário por herói.
85
Vv. de uma tragédi a de tema e autor desconhecidos (Warmington.
··Fragments of traged ies by authors unknown··. vv . 29-32). Nestes versos o con-
fro nto é entre as raparigas espartanas. submetidas. co mo os ra pazes. a esgotantes
exercícios físicos. e as raparigas ·•bárbaras··. isto é. da Ásia Meno r. cuja tarefa
consistia apenas e m te re m filh os. V. o contraste entre os do is tipos de mulheres
e m Ésquilo . Persas, 18 1- 197.
86
Nesta fra se nada há de expl ici tamente referido às raparigas. ou aos
rapazes . Em boa verdade até pode mos e nte nder que com estas palavras Cícero

[ 1221
No que toca à instrução mi litar. .. 87 - refiro- me à nossa , XVI 37
não à dos Es parta nos, cujo exército ava nçava ao ritmo
marcado pela Aauta, e ao qual os incitamentos são sempre
feitos em anapestos 88 . Antes de mais deves reparar
no signi ficado ori ginal do te rmo exército 89 • Em seguida, no
enorme esforço que exige a marc ha das tro pas em fo rma-
ção: <cada soldado> deve carregar comida que lhe chegue
para meio mês, deve carregar ainda todos os objectos de
uso pessoal que entender, mais os paus para a paliçada 90 ,
e isto porque para os nossos so ldados o esc udo, o gládio e
o elmo não são " mais carga" do que os ombros, os braços
e as mãos; di zem eles que as armas são os membros do
soldado, e transportam-nas de um modo tão engenhoso
que, se necessári o fo r, bas ta pôr no chão a carga para
poderem combater com esses memb ros que são as suas
armas. E que dizer do trei no das leg iões? Que enorme
esforço não ex igem todas aq uelas corridas, as cargas ao
ataque, os gritos de guerra! Assim se consegue o ânimo

pretend a res umir o ideal edu cativo de Es parta. tanto num caso co mo noutro .
Em portu guês . no en tant o. é necessá ri o o ptar entre um suje ito femin ino ou
masculino. Co mo a últim a referê nc ia al ude à edu cação elas raparigas opt ámos
pelo sujeito feminin o.
87
Notar o anaco lut o. interrupção el a estrutura sintácti ca.
88
O anapesto é um ·•pé"". um a unidade rítmi ca co nstituída por duas sílabas
breves seg uidas de um a longa . é um ritm o adequado à marcha . Por isso são
em ritmo anapéstico os versos com que o coro ela tragédia fa z a sua entrada e m
cena ..
89
Segundo Varrão. o vocá bul o exercirus prové m do ve rbo exerci/are ··exer-
citar(-se). fa ze r exercíc io··. que por sua vez é um frequ entati vo de e.rercere ··estar
em mov imento. agir. praticar··: exercirus. quod exerciwndo jir 111e/ior (de li11,;11a
/mina, V. 87) ··exérciw (des igna um agrupamento ele so ldados) que se aperfeiçoa
por mei o cio exercício··.
90
O acampamento rom ano era um vasto espaço rodeado por um fosso.
e protegido por urna pali çada co m se is pés (cerca ele 1.80 rn ) de altura (v. Ps.
Higino. De 111ewrio11e rns1rorn111 liher. 50).

l 1231
apto a suportar as feridas em co mbate. Põe a se u lado outro
so ldado, não me nos corajoso, mas se m qu a lque r treino:
38 parecer-te-á uma mulher. Porque é que há ass im tanta
dife re nça entre um exército inexpe ri e nte e um <exérci to>
de vetera no s, conforme ti ve mos ocas ião de o bse rva r <pes-
soalmente>91 ? É ce rto qu e a ju ve ntude dos rec rutas é bas-
tante mai favorável , mas a capac idade de res istê ncia , a
indife re nça às fe ridas, essa só vem co m a ex pe ri ência.
É por isso qu e vemos muitas vezes os feridos se re m leva-
dos para lo nge da linha de co mbate, sob retudo o soldado
novato e inexpe ri e nte, que so lta ve rgo nhosos lamentos
por um simples arranh ão, ao passo que o militar ex peri-
mentado. mai s ve lho e. por isso mes mo, mai s e ndurec ido,
apenas pede ao médi co que lhe li g ue a ferida!

<EURÍPILO>
Ó Párroclo. 1•e11ho aqui pedir auxílio às ruas 111cios ,
para 11cio s11c11111bir àsferic/(ls causadas pela 111cio
feio i11i111igo. 92
***
O sangue corre-li/e, e 11cio renho meio de o esra11car,
a 111e11os que a ltta ciência renha 111eio ele 111e el'irar
l(/ 111or1e.
Os.feridos a11wnroa111-se à porra clos/ilho. 1· ele Esculápio 93;
11cio consigo lá e11rrar.'

91
Alusão à bata lha de Far,ália: o exé rcito de César. co mpo,to de veteranos
bem trei nados. não teve gra nde dificuldade em vem:er as tropa, de Pom peio. na
sua maioria recrutas in experie nt es.
91
o texto de Pohle nL indicação de uma lacuna de apena ~ um verso. Dos
outros editore, usados apenas Gi gon a nota no se u texto .
91
Esculápio. filho de Apolo e deu , da medicina . O s •fi lhos de Esculápio·
são os méd icos Macáon e Poda lírio. que. na / /fada. acompanham o exército gre-
go. v. //fada . li . 729-803. O encontro entre Eurípi lo e Pátruclo ornrre em XI.
810 s,.

11 24 1
<PÁTROCLO>
É decerto Eurípilo. Ma s como vem mal1ralado! 9 -1

Repara bem co mo , no meio de tantos lame ntos, <o XVII 39


herói> não responde de forma lacrimejante , limita-se a
justificar por que moti vo entende que deve suportar a dor
com firmeza :
<EURÍPILO>
Quem quer 11,awr o seu adversário
deve es/C/r be111 preparado para sofrer uma sorte
[se111elhan1e!

Nesta altu ra Pátroclo co locá-lo-ia num leito, imag ino eu, e


ligar-lhe- ia a ferida. lsto se <Pátroc lo> fosse um homem
comum. Mas nunca vi ninguém menos com um ! O que ele
fez foi perguntar o que se tinha passado:
<PÁTROCLO>
Fala, co111C1 -111e9' e111 que pé esrâ o combate dos Argivos 96 .

<EURÍPILO>
Não pode expri111ir-se em palavras como foi áspero
/o rnmba1e 1

94
A estas pala vras . 4ue tradu1e m a exp ressão latin a ho111i11e111 exerci1w11.
Pohlenz acresce nta um a conjec tura sua cuja tradu ção se ria: 11ws igua/111e111e e.r-
peri111e111ado !em latim : exerci1all1sl. introdu Linclo ass im um jogo de pa lavras
desnecessári o entre os particípios e.rerci111s (= maltratado! e e.rercilll/11.1 !trei na-
do. experimentad o!. A con_jeclllra não é ace ite pe lm restantes ed itores .
95
No tex to latino eloquere. eloquere "fala. fala 1··
96
Pátroclo não se co mporta como um ··homem co mum·· por4ue es tá mai s
interessado na situação co lecti va (co mo es tá a decorrer o co mbate entre Gregos
e Troianos'I) cio 4ue no problema indi vidual cio se u interlocutor. - Argi vos =
Gregos.

11251
Acalma-te agora. de ixa que te li g ue m a ferida . Ai nda que
Euríp il o acei tasse o co nse lho, Esopo não es taria pelos
97

aj ustes:
<EURÍPILO>
Quando Heitor teve a fo rtuna <de romper> as nossas
[linhas inahaláveis ... ,98

e prosseg ue a narrat iva apesar das dores. A ta l po nto num


homem va le nte o e ntu siasmo militar não co nh ece limites!
E ntão um so ldado veterano pode agir ass im e um homem
de c ultura , um sá bio não pode ? Pode, me lho r até, e bem
40 melhor. M as te nho estado a fa la r da habituação ao exercí-
cio, ainda não passe i à razão e à sabedoria . Há ve lhotas
qu e co nseg ue m estar se m co me r doi s o u três di as; mas tira
a co mid a, um di a que seja. a um atl eta e logo este se põe a
sup licar a Júpite r, a Júpiter Olímpico99 , nad a me nos , em
cuj a honra esta va a treinar-se, queixando-se de não ag uen-
tar. A habituação te m muita força: os caçadores passa m a
noite sobre a neve , nas mo nta nh as; os Indi anos suportam
be m as que imaduras 1°0 , e nqu a nto os pug ili stas, che ios das

97
Esopo e ra um actor tnígico. conte mporâneo e a mi go de Cícero. que se
lhe refe re em Ad F11111 .. V II . 1. 2. e T.D .. IV. 55. A ideia de Cícero é que um bom
ac tor trág ico rec it ará a sua parte num tom heróico .
98
Esta sequência de c it ações deve provir. segundo o entendimento maio-
ri tário dos filólogos. de um a tragédia de Éni o. Hecwris lnra ··o resgate de Hei-
to r''. Cícero aproveita as cenas e m que Euríp il o. cobert o de fe ridas. se retira do
co mbate e pede auxíl io a Pátroc lo. a quem informa da supremacia dos Tro ianos .
99
Este at leta estava decerto a tre ina r-se para participar nos Jogos Olím-
picos.
100
Tradução do tex to de Po hlen z: pemocta/1/ uenatores in 11i11e i11111011rib11s:
uri se patiu111ur !11di (leitura em que l11di resulta de uma conject ura fundamenta-
da com a refe rê nc ia às mulheres indianas q ue se fazem queimar na pira fúnebre
do marido). A le itura dos mss. é: p . ue11atores in 11iue. in 1110111ihus uri se pari1111-
111r. inde .. .. O s caçadores passam a no ite sobre a neve. deixam-se queimar <pelo
ardor do so l> no a lto das mont anh as . enquanto (inde) os pugilistas ..

r1261
contusões provocadas pe las " lu vas" 1º1 , não soltam sequer
um gemid o. Mas para quê fa lar destes homens, para qu em 41
uma vitóri a nos Jogos O límpicos va li a tanto co mo o
consul ado va lia para nós ant iga mente 1º2 ? Os gladi adores,
geralmente margina is ou bárbaros, q ue go lpes não sofrem
eles! Vê como os bem tre inados prefere m ag uentar um
golpe do q ue esqui vá- lo de maneira vergo nhosa. Quantas
vezes não dão e les a impressão de não desejare m mai
nada na vida do que agradar, ou aos seus senhores 1°3, ou ao
público. Todos cobertos de fe rid as, mand am perguntar aos
seus donos o que pretende m de les: se estes estão sati sfei-
tos, acei tam de bo m grado o golpe de mi seri córdi a. Onde
está o gladiado r, mes mo med íocre, qu e se lamenta, que
altera a ex pressão do rosto? Onde está aquele qu e, ou e m
pé ou caído po r terra, fez algum gesto deso nroso? Onde
aquele que, caído po r terra, tenta proteger a garganta do
golpe fatal? Tal não é o pode r do exe rcício , da meditação ,
da habituação! Se pode, po rtanto, co mpo rtar-se ass im

Um Samnita , homem ordinário, digno desta f orma de


[vida 1°4,

101
Os pugili sta s anti gos combati a m com as mão e nvo ltas numa espéc ie de
luvas fe itas de couro q ue e nvo lviam bocados de chumbo o u fe rro . o que torn a-
va os combates especia lme nte vio le ntos. A estas ··Juvas··. davam os Ro manos o
nome de caesrus, que e m po rtuguês daria "cestos•·. Pode le r-se uma desc ri ção de
um combate de boxe com os "cestos" e m Ve rg íli o. Eneida, V. 368-484 .
101
Observação re lati va à situ ação vige nte e m Ro ma: o co nsulad o . a mai s
alta magistratura da "ca rre ira das honra s·· tinh a para os Ro manos um val or ímpar
nos tempos da Re públ ica. Co meço u a pe rde r impo rtânc ia na segunda metade do
séc.1. e. com o triun fo de Octáv io sobre M . Antó ni o e a in stauração do Princ ipa-
do. o consulado passou a ser uma mag istratu ra qu ase só honorífi ca.
101
ão esqu ece r qu e . na ma iori a dos casos. os g ladi ado res e ram recrutados
entre os esc ravos e os pri sio ne iros de g ue n-a.
IOJ Verso de uma sá tira de Lucíli o ( 152 Kre nk e l) e m que o poeta desc reve
um combate de g ladi ado res. um dos q uais era um Samnira.

11271
co mo será possível um homem nascido para a g lória que
tenh a pa rte da sua alma tão débi l que a não possa robuste-
cer pelo estudo e pe lo uso da razão ? Para muitas pessoas
os combates de g ladiado res são um espectácul o cruel e
desuma no , e ad mito que o sejam , ta l como se praticam
actu alme nte. Mas q uando os duelos eram travados por
c rimin osos, talvez para os o uvidos ho uvesse <outras fo r-
mas de ens ina me nto> co ntra a do r e a morte, para os olhos
não havia de certeza outra mais eficaz do q ue esta .
XVIII 42 Já di sse o q ue tinh a a d ize r a res pei to da exercitação,
da criação de hábitos, da refl exão . Se não ten s nenhuma
observação a faze r sobre isto , passamos ao capítul o da
razão .
A . - Eu, inte rpe lar-te? Até d is pe nsaria esta pausa, de
tal modo o te u d iscurso é co nv ince nte .
M. - De ixo aos Estó icos a tarefa de exa minarem se
a dor é ou não é um mal, já que e les gosta m de recorrer a
silog ismos retorcidos , sobre pontos ins igni fica ntes , e que
leva m a co nc lusões irre leva ntes e incom preensíveis para
estabe lecer q ue a dor não é um mal. Po r mim , não penso
qu e e la seja ass im uma coisa tão <te m ível > co mo pa rece,
pe lo co ntrári o, afi rmo co m a maio r e nergia que os homens
se de ixam enganar po r fa lsas aparê nc ias, e que a dor é algo
pe rfeita me nte suportáve l.
Por onde começar? Talvez a ma ne ira mais rápida seja
record ar e m breves palavras aquil o que estava a di zer,
de modo a que o di sc urso possa de po is prosseg uir o seu
43 c urso. Dizia eu que é co nsensual, não ape nas entre os
home ns cultos, mas até mes mo e ntre os inc ultos 1°5, a ideia

105
A oposição entre homens cultos e homens i 11cu/1os corres ponde à di stin-
ção entre os homen s dados à meditação fil osó fi ca e os outros.

[ 128]
de que é característica dos homens de coragem, mag nâni -
mos, pacientes e superiores à condição hu mana suporta r
de bom ânimo a dor; <di zia ta mbém> que ninguém recusa
tecer louvo res a quem possua uma tal capac idade de
aguentar. Porventu ra não será uma ve rgonha temer a dor
futura , ou não suportar a presente , ao contrário do que se
exige e apl aude nos homens corajosos? Repara bem: a
todas aquelas di spos ições justas da mente damos o nome
de "virtudes", mas este não é o nome próprio de cada uma
delas , mas sim o daquela úni ca que excede as demais em
valor; desta virtude por exce lência é que deri vou o nome
para as restantes . A palavra virtude prové m de uir
"homem" 1º6; ora a principal qualidade es pecífi ca do "va-
rão" é a coragem 107, a qual tem duas tarefas fundamentais:
o distanciamento em relação à morte e o des prezo pela
dor108 . Exercitemos, pois, estas práticas se queremos

106 Vir. e111 lat i111. designa o ·varão·. o ind ivíduo do exo 111ascul ino (corres-
pondente ao grego àví19). Qua nto ao termo 11ir-t11s. que traduz imos necessa-
riamen te por ·•virtu de ... devemos ter a noção de que a palavra em latim des igna
"o conjunto de ca rac terísticas que defi ne m o uir, ou seja. o ser humano do sexo
mascul ino··. tal como i1111 e11 -tus ••juve ntude··. des igna a situ ação e as caracterís-
ticas dos jovens. As vi rtudes romanas es tão. portan to. muito distantes daquelas
que virão a ser as virtudes cri stãs.
107
Lat.fortit11do.
108
Lat. 111orti.1· dolorisque co11te111ptio . lit. "o des prezo pela morte e pela
dor". Na trad ução preferimos distinguir os doi, aspectos que Cícero une no úni -
co termo co11te111ptio ··de,prezo ... pela ratão que seg ue: ··desprezo pela dor·· en-
tende-se a capacidade que um homem tem de resi,tir à dor sem por ela se deixa r
abater 110 próprio 1110111e11ro e111 que está a .1er suh111etido a 11111a dor efectil•a (por
exemplo. os resistentes submetidos à tortura exercida por um a qu alq uer políc ia
política): em cont rapartida. ··despre;,o pela 111ortc·· e ntende-se como a disposição
de espírito do ho111em que ace it a natural mente tudo qu ant o respeita à natureza
humana e que. co1110 mort al. não pode rebelar-se contra a mort e. já que ela faz
parte da sua defin ição como se r human o. O ··desprezo pela morte .. projecta-se
para o futu ro. até porque. parafrasea ndo Epicuro. "a morre é alf{o que 11ão 110s
di~ respeito; q11a11do 111orre11111s dis.\0l1·e-1e a 1111.1.1a 11ature:a de h11111a11os, e ao

1129J
possuir a virtude, ou melhor, se queremos ter um com por-
tamento viril, uma vez que a palavra virtude deriva preci-
samente de vir(il).
Pe rguntarás, talvez , co mo isto se co nseg ue, e com
razão : a filosofia não nos promete outra coisa se não este
tipo de medici na.
XIX 44 Aproxima-se agora Epicuro, homem se m más inten-
ções. digamos mesmo, uma exce lente pessoa. Aconse-
lha-nos tudo aq uil o que é capaz de compreender 109 •
Diz ele: "Não dês importância à dor ". M as quem diz isto
não é a mesma pessoa que decreta q ue a dor é o maior
dos males ? Parece haver aq ui uma certa incoerência.
Escute mos . Diz e le a inda: "Se a dor já atingiu o máximo,
então é necessariamente breve." 110
"Repete essas pa/ai•ras , por favor,111

poi s não e nte ndo bem o que en tendes por " máx imo", nem
o que e nte ndes po r " breve". "Máximo é o que não tem
nada acima de si , breve o que <não conhece> nada mais
breve. Digo que despre-::,o a intensidade da dor porque a
brevidade da sua duração me livrará dela quase antes de
ela me atingir." Mas se fo r uma dor tão inte nsa como a

dissolvermo-nos deixamos de senlir: ora 11âo se111ir já 11cio 110s di: respei10" (cf.
Máximas soberanas . 2). o u. dito de o ut ro modo. "e11quan10 existimos a morre
ncio está presente. quando a morre está presente nós já ncio existimos .. (Epicuro.
Carta a Meneceu. 125).
109
Sobre as conotações iróni cas presentes nestas palavras v. Carlos Lévy.
"Cicé ro n et J' é picuri sme: la problématique de l' é loge paradoxa l". em especial
pp . 68 -9.
°11
Cf. Epi curo. Máximas soberanas. 4 . Ci tada por Cícero també m em De
.ftnibus. li. 22.b
11 1
Cícero Irava um breve diá logo fi c tíc io co m Epicuro. ini c iando a sua
questão com um pedido de esc larecimento extraído de uma tragédia de Pacúvio
(Ili ona . v. 211 Warmin gto n).

1130 1
de Filoctetes? "Reconheço que deve ser essa uma dor mui-
to intensa, mas não a máxima <possível>. Ele só sofre de
um pé. Podia padecer dos olhos. da cabeça, dos rins, dos
pulmões, de todo o corpo. Está , portanto, lon ge de ter um
sofrimento que seja o máximo possível. Logo" - conclui
ele-, "uma dor prolongada acaba por dar mais prazer do
que mal estar." Vejamos, eu não posso pensar que um ho- 45
mem desta envergadura não sa iba o que está a dizer, pare-
ce-me antes que ele está a troça r de nós. Uma dor extrema,
e digo "extrema" ainda que uma outra qualquer possa ser
dez átomos maior, pe lo fac to de não ser contínua não é
necessariamente breve, posso citar muitas pessoas exce-
lentes que são atormentadas há anos pelas dores causadas
pela gota. Mas <Epicuro> , esperto, nunca determina a me-
dida <exacta> nem da inten sidade nem da duração, de
modo a eu entender o que seja uma dor "extrema" e uma
"curta" duração! Mas deixemo-lo em paz , já que ele não
diz nada relevante . Obri guemo- lo, porém, a reconhecer
não ser a um homem como ele , que define a dor como o
maior dos males , que deve remos so li ci tar o remédi o para
suportar a dor, muito embora demonstre uma certa cora-
gem no modo como reage às suas dolorosas có licas re-
nais11 2. O remédio <contra a dor> devemos ir procu rá- lo a
outra escola, concretamente. se desejamos proceder com
toda a coerência. àq ue les pensadores para quem o supremo
bem é o bem moral , e o supremo mal é tudo quanto fo r

111
Acerca da morte de Ep ic uro . da co ragem co m qu e e le ace itava o sofri -
mento e da consolação que buscava na record aç~o cio convívio filo sófico com os
amigos. v. Cícero . DeJi11ih11s. li. 96. A difere nça el eve-se ao facto de. nas TO ..
Cícero fa lar de Epi curo num registo irón ico (v . supra n . 109). ao contrário cio que
sucede no De_fi11ih 11s.

113 1]
desonroso 11.1 _ N a presença destes homens tu não ousarás
sequer gemer ou perder a compos tu ra; pela boca deles será
a Virtude em pessoa a dirigir-te a palavra:
XX 46 "Enrão tu , depois de veres os garotos em Esparta 114,
os adolescentes em Olímpia, os <gladiadores> bárbaros
no nosso w~fiteatro sofrerem os mais duros go lpes sem sol-
tarem um gemido, se acaso sentires alguma pequena dor
vais pôr-te a choramingar como uma mulher, em ve-::, de a
ag uentares com calma ./irme-::,a?" ·· Impossível! A nature-::,a
não o permite!" Compreendo. O s garotos faze m-no , uns
por orgulho, outros por vergonh a, muitos até por medo, e
nós receamos que a natureza não suporte uma atitude que
tantos e em tão di versos lugares são capazes de assumir!
N ão, a natureza não se limita a suportar, ex ige! Ela não
conhece nada de mai s nobre, nada há que ela mais rec lame
do que a virtude, o mérito, a di gnidade, a honra. Por meio
de tod os estes termos eu pretendo signifi car um único
conceito, e recorro a muitos vocábul os para que esse signi-
fi cado fi que bem explícito. Eu pretendo signifi car que para
o homem o melhor bem que ex i ste é, de longe, aquele bem
desejáve l em si e por si , decorrente da v irtude e consistente
na própri a virtude, louváve l por natureza, um bem que eu,
melhor do que di zê- lo '·supremo", deveria antes defini-l o
como " único". Tud o quanto acabei de di zer do bem
moral poderá di zer-se, em sentido co ntrári o, de quanto é
desonroso: nada é mais vergonhoso, mais detestável , mais
indi gno do homem .

113
A Escola aqui em vista é a dos Estóicos.
114
No texto la1 ino: .. em Lacede mónia .. designa tanto a região como a própria
c idade de Esparta.

[ 1321
Se esti ve res convicto destes princ1p1os, e no 1n1c10 47
<do nosso di álogo> tu disseste que consideravas a desonra
um mal pior do que a dor, só resta uma coisa: seres capaz
de mandar em ti mes mo. ão sei bem como hei-de ex pli -
car. É como se cada um de nós fosse doi s <homens>, um
que manda . outro que obedece. Isto não é um di sparate .
O facto é que a alma consta de du as partes. uma participa XXI
da razão. a outra não. Quando. portanto, se diz que deve-
mos mandar em nós mes mos . estamos a di ze r que a razão
deve mandar sob re os impul sos m _A natureza inseriu na
mente de quase todos os homens um e lemento débil ,
servil , fraco. mole. como que fa lho de energia . Se nela
nada mai s hou vesse. nada ha ve ri a de tão des prez ível como
o homem. Só que ex iste também a razão. e esta é a senhora
que reina sobre tudo. a qual . pondo em acção as suas
forças . vai sempre progredindo até se tornar na perfeita
virtude . O homem. portanto . tem que conseguir que esta
exerça o seu poder sobre aque la parte da mente que tem
por obrigação obedecer. Perguntar-me-ás: Como conse- 48
g11i-/o? ·· Agindo como o senhor em relação ao escravo, o
general ao so ldado, o pai ao fi lho. Se aq ue la parte da mente
que di sse ser privada ele energia , se se pu ser a lamentar-se
como se fosse uma mulher, se se derreter em lág rimas.
há que dominá-la. que confiá- la à guarda de ami gos e
fam ili ares: é frequente ve rem-se pessoas que não se
deixam gui ar pela razão mas se co mportam bem por ve r-
gonha . Estas são co mo os escravos que têm às vezes de
er refreados por cast igos e medidas de coacção, enquanto

115
Cf. Salú, ti o: " [111111í., . /w111e11 .,. u., cu11uch!t11/e., l'l'/Hl/'le111 -.1e entre o cor-
po e a a/1110; o alma c11111wula. o corpo /Jredo111i1w111e111e111e ohedece: 1e1110.1. por-
tanto. 111110 pane de 111í., ,i111ilor ao.1 deu .,n. 011/ra pune .,i111ilar 00.1 irracio11ui., ..
(Conjura de Ca1ili110. 1. 2).

1133 1
a outros, mai s firm es, embora não em grau muito e levado ,
basta um breve aconsel hame nto, tal co mo sucede aos sol-
dado s, qu e uma adve11ênc ia reco ndu z ao c um primento do
dever. Na tragédia Niptra 116 , quando <Uli sses> , o mais as-
tuto dos Gregos, fe rid o 11 7, se lame nta, fá-l o se m exage ros,
antes com alg um a moderação:
Del'C1gar, caminhai le11ta111e11te. passo a passo.
Para que as sacudidelas 11âo au111e11te111 a 111i11ha
Dor 11 •

49 este epi sódi o Pacú vio foi superi o r a Sófoc les, em


cuja peça Uli sses qu e ixa-se da ferida no me io de muitas
lágri mas . Mas apesar de e le se lamentar sem alçar a voz ,
mes mo ass im os <homens> qu e transportam o ferido ,
te nd o em conta a nobreza da perso nage m , não hes itam em
cens urá-lo:
Também tu . Ulisses. e111bora nós te vejamos
Ferido com gra vidade. demonstras um â11i1110
Algo débil. para um ho111e111 habituado ao longo da vida
A usar as armas ... 11 9

O nosso perspicaz poeta sabia bem que habituação à


50 dor é uma mestra de apreciável va lor. <Ü he ró i> , e mbora
não excess iva me nte, <cede> à sua gra nde do r:
Detende-vos, parai 1 Aferida oprime-me:
Destapai-a. Oh , triste de mim , como so.fro! 1"º

116
Niprra = O banho: tragéd ia de Pacúv io . adaptada de Sófocles. inspirada
num ep isód io da Odisseia. XIX . 386-93.
117
um episód io mais ad ia ntado da peça. Ulisses é ferido por Telégono. o
fi lho que ti vera de C irce.
11
H Pacúvio. Niprra, vv. 280-2 Warmington .
11 9
lde111. vv. 283-6 Wanning to n.
120
lde111. vv. 287-8 Warmington.

[ 1341
Começa a fraq uejar, mas recompõe-se no mesmo instante:
Cobri-me e ide embora , já.já,
Deixai-me! Quando me tocais e sacudis
Só aumentais a minha cruel dor/ 12 1

Estás a ver co mo e le cesso u as que ixas, não porqu e a dor


fís ica ti vesse passado, mas porque do mino u a do r que
senti a no âni mo. Po r isso, no fin al da tragédia, é ele
que censura os o utros, e exclama ao morrer:

Podemos queixar-nos da fortuna adversa , mas não soltar


[lamentos:
Este o dever do homem , o pranto é próprio do carácter
[feminino 122 .

Aqui tens co mo a parte ma is débi l da alma obedece à


razão, tal co mo o so ldado com sentido do dever obedece
a um genera l rigoroso.
o ho me m , po rém , dotado de perfei ta sabedoria 123 ... XX II SI
- <um ho me m> co mo até hoje ainda não encontrámos
nin guém , mas cuj as q ualidades, se um di a vier a ex istir,
corres po nde rão às desc ri ções dos fil ósofos -, nesse
homem, <di zia eu> a razão, qu e nele terá atin g ido a abso-
luta perfeição, terá sob as suas o rdens a parte infe ri o r <da
alma>, ta l como um pa i j usto fa z e m re lação ao filh o bem
formado; com um mero aceno obterá o que pretende, se m
esforço, sem d ific uld ade; por si próprio <o fi lho> ganh ará
fo rça, co rage m , fi rmeza , arm ar-se-á de fo rma a resistir à
dor como se esta fosse um inimi go . Quais as suas arm as?

111
Idem . vv. 289-91 Warmin gton.
111
lde111 , vv . 294-5 Warmin gton.
11
' O " homem dotado de perfeita sabedoria" é o sábi o. cuja mente obedece

em tudo à razão. e. por ass im di zer. se confunde com a virtude.

r13s J
O esforço, a resolução. as pala vras de incitamento que di -
ri ge a si mesmo: " Evita tudo quanto seja desonroso,jraco
52 e indigno de um homem!" Ac udir-lhe-ão à me mória exem-
plos de comportamentos exe mplares: lembrar-se-á de
Ze não de É lea , que preferiu submete r-se a todas as torturas
a denunciar os se us cúmp li ces numa re vo lta con tra a
tirania 124 ; ou de Anaxarco , di sc ípulo de De móc rito , que ,
quando fo i feito pri sioneiro e m C hipre pelo rei Timocreonte,
não se exim iu a ne nhum tormen to ne m pediu piedade 125 ;
Calano , um natural da Ín di a . inc ulto e bárbaro , nascido no
sopé do Cáucaso , fo i queimado vivo por sua própria
vontade 126 • Nós já não co nseguim os suportar uma dor num
pé ou num dente , [para já não di ze r que nos doa o corpo
todo ! 127 ] . Trata-se de uma opini ão 128 efe min ada , sem fun -
dame nto , que ocorre tanto a propós ito da dor co mo do

124
Fi lósofo da esco la Eleática. d iscípul o de Parmé ni des (séc. v a. C.).
co nhec ido pe los seus pa radoxos de mo nstrativos da impossibi lidade do mov i-
mento (Di ógenes Laé rcio. IX . 29). Sobre a sua pa rti c ipação numa revo lt a contra
o ti rano da cidade. v. Di ógenes. I X . 26.
125
Ana xarco de Abdera . di scípul o de De móc rito seg un do C ícero. tem uma
"genealog ia" mai s co mplexa de aco rd o co m Dióge nes Laérc io: Anaxarco não
fora di scípul o directo de De móc rito. mas sim de Metrodoro de Qui os. que fora
di sc ípul o de Nessas de Qui os. e este. po r sua vez. é q ue fora di scípul o de De-
mócrito (Di ógenes . IX . 58). - De acordo com Dióge nes . o re i de C hipre que 1or-
tu rou o fi lósofo c ha mava-se Ni cocreo nte ( Di óge nes. ibide111 ). no me que fi gura.
a li ás . nos códi ces mai s recentes das Tuscula11as (certa me nte correcção introdu -
zida po r a lgué m q ue conhec ia o tex to de Di óge nes).
126
Em De di ui11atio11e. 1. 47. C ícero a lude à hi stó ria de Cala no. um asceia
indi ano (ou. como lhe chamava m os gregos. um gi11111oso/ista. li t. "um sábi o nu")
qu e se consumiu pe lo fogo num a pira. e que. na a ltu ra da morte. mostrou grande
sati sfação po r ir te r uma mo rte simil a r à de Hé rc ules. Cícero deve te r encont rado
esta hi stória e m a lgum dos hi stori adores de A lexa ndre q ue o acompa nharam
à Índi a. mas cujas obras se pe rde ram . ta lvez Onecríti co. co mo sugere Gigon
(p . 498) ou Ca líste nes.
127
Expressão posta e ntre parê nteses rectos seg undo uma conjectura adopta-
da por Pohlen z e seg uida po r al gun s o utros edito res.
128
Recorde-se que "opin ião" não é uma fo rma de conhec ime nto!

[ 136]
prazer, e que, quando nela nos deixamos co mo que emba-
lar, até uma picada de abe lha não podemos sofrer sem
gritar. Em con trapartida, C. M ário, um ho me m do campo, 53
mas acima de tudo um ho me m , quando ia se r operado,
como acima recordei 129 , co meço u por não co n ent ir que o
amarrasse m , o que nun ca sucedia a ntes de Mário - alguém
ser operado sem estar amarrado . Porque é que de poi s
outros lhe seg ui ra m o exem plo? Po rqu e a sua autorid ade o
impôs. Estás a ver <co mo a dor> ve m da opinião , e não da
natureza? E no e nta nto o mes mo Mário co mprova, ao não
deix ar que lhe operasse m a o utra pe rna. até que ponto a
dor era vio lenta. uma pa lavra, suportou a dor como um
homem , mas co mo se r hum ano não quis submeter-se a
outra dor ainda ma ior se m necessidade.
Toda a qu estão está, po rtanto, e m impo res a tua von-
tade <a ti mesmo>. Já ex plique i e m que co nsiste esta
imposição. O próp ri o facto de re fl ec tirmos e m quanto
ex ige de nós a pac iê nc ia 130 , a corage m , a magnanimidade ,
não só contro la a me nte, co mo , por um processo que não
sei ex plicar, tornam a própri a dor menos vio lenta. Tal XXIII 54
como sucede numa batalha qu e um so ldado timorato ,
medroso, assim que avista o inimigo deita fora o escudo e
põe-se a fugir com quanta fo rça te m , e por esse moti vo
acaba muitas vezes por mo rre r se m sofrer uma úni ca
ferida, ao passo qu e ao so ldado que se manté m firme nada
de seme lhante acon tece, ta mbém os que não podem supo r-
tar a image m da dor perde m o ânimo, e fica m ine rtes
sem força e sem corage m , enq uan to os que res istem
<à dor> sae m dela vi toriosos na gra nde maioria dos casos.

119
V. supra § 35.
1.1o V. supra. n. 73 .

11 37 1
Há algumas semelhanças entre o que se passa na alma e no
corpo . Com os múscul os tensos transporta-se bem uma
carga pesada , com eles relaxados, va mo-nos abai xo; do
mesmo modo , quando a mente está concentrada é capaz de
aguentar toda a pressão. se anda a vag uear, a própria
55 di spersão não a deixará dar conta do recado. A di zer a ver-
dade , para cumprirmos os nossos deveres a mente deve
estar sempre concentrada: é a concentração a única res-
ponsável pelos deveres. No que concerne à dor devemos
ter o máximo cuidado em evi tarmos comportamento
indecorosos, timoratos, indi gnos, servi s, próprios de mu-
lheres, e antes de mai s recusemos de forma categórica 131 os
lamentos ao estil o de Filoctetes 132 • Gemer pode , uma vez
por outra, ser aceitável num home m, gritar não é admi ssí-
vel nem sequer nas mulheres. Talvez fosse aos lamentos
que <os anti gos> chamavam o lessus, que as Doze Tábuas
56 proibiam se praticasse durante os fun erais 3. unca, por
13

conseguinte, um homem corajoso e sábio so ltará sequer


um gemido , a menos que a sua intenção seja incitar- e à
firmeza, como fa zem os corredores no estád io que gritam
com quanta fo rça têm. O mesmo fazem os atletas durante
os treinos. Os pugili stas, até , quando atingem o adversário ,

1.1 iLit. ··rec use mos e rejeitemos...


IJ~ Cf.supra . § 19.
111
Lessus é um termo arca ico que já no tempo de Cícero não se sabia bem
o que sig nificava . Conforme Cícero nota em De lexihus . li. 59. os gramáti cos
avent am duas op ini ões possíveis: para un s tratava-se de uma espécie de vestuá-
rio usado nos funerais. para outros se riam antes os g ritos exagerados que se ou-
viam d urante as cerimóni as fúnebre s. Tanto num caso como no outro. a lei tinha
por alvo o componamento das mu lheres: Que as mulheres 11e111 se arra11he111 ,w
rosto 11e111 usem (o u pratiq11e111 ?) o lessus nos funerais (Le i das XII Tábuas. X.
4). V. S. Riccobono. F. I.R A .. pars prima Leges. p . 67: Di eter Flach. Das lll'iilj-
tafelsxeset: , pp . 148- 149.

[ 1381
gemem enquanto manejam os "cestos " 13 4, não porque sin -
tam dores ou estejam a perder o âni mo, mas sim porq ue os
gritos que soltam co ntribu em para a te nsão do corpo, e
assim o go lpe sai mai s vigoroso. Porventura aqueles que XXIV
pretendem gritar co m ma is fo rça conte ntam-se e m pô r em
tensão pulmões , boca, líng ua, enfi m , os órgãos de que os
vemos se rvir-se para emitirem a voz? Pe lo contrário , eles
recorrem a todo o corpo, põe m unhas e de ntes 135 ao serviço
da energia da voz . Por Hé rcul es! Eu vi M . António ajoe- 57
lhar quando pronunciava energicamente o di scurso e m que
se defendia de cair so b a alçada da le i Vária 136 • Tal co mo as
pedras ou os dard os disparados pe las balestras o u p:'lr
outras máquin as de g uerra têm tanto mai or alcance quanto
mai s tenso e curvado estive r o arco, assi m também a eficá-
cia da voz, da corrida , dos socos é proporcional à energia
neles emp regue. Dada a força que tran smite este tipo de
tensão, se, no caso da do r, os ge midos se rvirem para dar
firmeza ao ânimo , use mo- los <sem hesitar>; mas se esses
gemidos corres ponderem a queixas, se forem indícios de
fraq ueza , de indi gnidade , de deses pero , eu terei dificul -
dade em co nsiderar ' homem' que m os emite. Se e les de
alguma fo rma co ntribuírem para a li viar <a dor> , ve remos
até que ponto se adeq uam a um homem fo rte e co ra-
joso . Mas se em nada diminuem o sofrimento , para quê

134
V. supra . n. 101 ..
115
Expressão feita: lit. o latim correspondente é omnibus ungulis. lit. ··com
todas as unhas...
136
A lei Vária (Lex Varia 111aiesra1is ) fo i proposta pelo tribuno Q . Vário
Híbrida em 90 a.C.. e vi sava punir cidadãos romanos que tivesse m incitado as
popu lações latinas a in surgirem-se con tra Roma durante a chamada Guerra So-
cial do ano precedente. M arco António era . co m Licínio Crasso. um dos ma iore s
oradores da geração anterior à de Cícero. Ambos são protagoni stas do diálogo de
Cícero De orarore.

[139]
sujeitarmo-nos sem necess idade à vergonha? Ora o que há
de mais vergon hoso para um homem do que chorar como
58 uma mulher? Os preceitos que dou para co m bater a dor
têm um alca nce mais vasto: a todas as emoções, e não
ape nas à dor, deve mos opor resistência com uma si mil ar
firmeza. Ficamos afogueados por causa da có lera, exci ta-
dos sob o a rd or da paixão : há que procurar refú gio na
mes ma fo rtaleza, há que recorrer às mes mas armas. Mas
de ixe mos estas casos, dado q ue estamos a tratar da dor.
Para suportar a dor co m ca lma e tranq uil idade nada
há me lho r do q ue med ita r de alma e coração 1·17, como
costum a di ze r-se , e m co mo é ho nroso ta l co mpo rtamento .
Por natureza o home m proc ura e desej a e m a ltíss imo grau ,
como já antes di sse' 38 , mas nunca será de ma is repeti -lo!,
al cançar a pe rfe ição mora l 139 ; ain da qu e desta apenas
possamos co nte mpl ar co mo q ue a sua irrad iação, nada há
que nós não esteja mos di spostos a suportar de bom
grado 140 desde que possamos fazê- la nossa. Esta di sposi-
ção, este impul so anímico e m d irecção à verdade ira glóri a
e à pe rfe ição moral faz que afro nte mos todos os peri gos
das batalhas; na linh a de co mbate, os ho me ns co rajosos
não sente m as fe rid as , o u , se as sente m , prefe riri a m morrer
59 a desce r um degrau qu e fosse na esca la da di g ni dade. Os
Déc ios 14 1 viam perfe ita me nte o brilho dos g ládios inimi-
gos qu ando se lançava m co m todo o ímpeto sob re as suas
linhas. Para e les a nobreza e a g lória da sua morte co mpen-
sava todo o medo das fe rid as . E pe nsas porventura que

117
Expressão feita. em lat. wtn pecwre lit. .. com todo o coração·•.
118
Supra.~ 46.
119
Lat. honestas .. honestidade. bem morar·.
i.io Lar. fe rre et perpeti lit. --suponar e sofrer...
i.ii Sobre os Déc ios . v. supra 1. 89 .

r1401
Epaminondas 142 começou a gemer quando se deu conta de
que o sangue e a vida se iam escoando de le ao mesmo
tempo? O facto é que ele deixou a sua pátri a, que recebera
submi ssa aos Lacedemónios, nu ma posição predominante .
São deste género o conso lo e o alív io para as dores mais
pungentes . Perguntarás tu: então e em tempo de paz, na XXV 60
nossa casa, no nosso leito ? Fazes-me voltar à presença dos
filósofos, que não são gente que ande com frequência em
batalhas. Entre eles encontrarás um sujeito muito incons-
tante , Dionísio de H erac leia 143 , que aprendeu a ser corajoso
com Zenão mas depois a dor fê- lo desaprender tudo .
Apanhou uma doença dos rin s, e no meio das cóli cas
gritava que tudo quanto havia aprendido acerca da dor era
falso . Cleantes, seu condi scípul o , perguntou-lhe por que
motivo mudara de opi ni ão, ao que o outro respondeu: "Se
após um breve tempo de dedicação à fi losofia contin uasse
a não poder suportar a dor, isso seria uma prova de que a
dor é um mal. Mas depois de ter desperdiçado uma série
de anos a estudar filosofia e continuar a não poder supor-
tar a dor, então é porque esta é mesmo um mal." Cleantes
então, batendo com o pé no chão , dec lamou este verso dos
Epígonos 144 :
Sob a terra que te cobre. A,~fiarau. ou viste estas palavras ?

1
"V. supra. !. * 116 .
w Dionísio de Heracl eia. por al cunha o Desertor. depoi s de ter sido di s-
cípu lo de Zenão. apanhou um a doe nça muito dol orosa. que o faz aba ndonar o
Estoicismo e abraçar o Hedonismo ( Diógenes Laércio. VII. 166).
i.w Os Epígonos (lit. .. aqueles qu e nascera111 depois.. ) são os ti lhos dos herôis

que tentara m sem sucesso conqui star Teba, no tempo do conflit o entre os fi lh os
de Édipo. - Anliarau . um dos Sete co ntra Tebas. era si111ulta nea111ente guerreiro e
profet a. pelo que os deuses . em ve? de o deixarem 111orrer e111 co111bate. fizeram
a terra abrir-se e engo lir o seu carro de guerra .

114 11
Aludia, assim . a Zenão , cuj a doutrina lamentava que
61 <Dionísio> tivesse aba ndonado. Outro foi o co mporta-
me nto do nosso ami go Pos idó ni o 145 • Ti ve várias vezes
ocas ião de o visi tar e esc utar, e vou contar-te uma hi stória
de le qu e Po mpe io costumava narrar. Este, de reg resso da
Síria 146 , passou por Rodes, o que lhe des pe rtou a vontade
de ir escutar Pos idó nio . Apesar de ter ouvido di zer que
<o fi lósofo> estava grave mente doente, che io de dores nas
articulações, ins istiu e m vis itar o ilu stre pensador. Viu-o.
saudou -o co m as palavras ma is e logiosas, e manifestou o
seu pesar por não lhe ter s ido possível escuta r as sua
lições. Posidóni o di sse- lhe então: " Mas é claro que podes,
nem eu consentiria que uma dor física _fi-::,esse com que
um homem tão importante me viesse visitar em vão ."
E <Pompe io> prosseg uiu, narrando como o fil ósofo,
mesmo de itado, fez , num tom grave, uma pormenori zada
ex pos ição sobre o tema do be m mora l 147 , o úni co verdadei-
ro be m . E quando as do res pro vocadas pe la artrite o inco-
mod ava m como se fos se m tochas ard en tes, muitas vezes
e le repetia: "Não consegues nada , dor! Por muito incomo-
dativa que sejas, nunca direi que és um mal! "
XXVI 62 De um modo ge ral, todos os esforço s penosos que
enobrece m e dão fa ma a que m os exerci ta , a habituação
acaba por torn á- los suportáveis. Não vemos nós como,
entre aq ueles povos que apreciam muito os jogos a que
chamamos " gím ni cos", é uma honra para os que partici-
pam nas co mpetições nun ca se recusarem a aceitar o sofri-
mento? Também en tre os apreciadores da caça ou da

145
Pos idó ni o de Apameia (séc . 11 -1 a. C.). foi estó ico. di scípul o de Panécio
de Rodes . Viveu algum te mpo nesta ilh a. o nde foi vis it ado po r Cícero.
146
Em 62 a. C. . depoi s de te r posto fim às gue rras contra Mitrid ates. rei do
Ponto.
147
Em lat. honestw11. Lit .. a ho nestidade .. .

1142]
equitação , os que pratica m <estas artes> não ev itam tam-
bém a dor. E que dire i dos que, co mo e u , aspiram à prosse-
cução de uma carre ira po líti ca? A que fogueira não se ati -
rariam todos aque les que, e m tempos idos . iam co ntando
os votos um a um 148 ? O seg undo Africano 149 trazia se mpre
consigo as obras de Xenofonte 150 , o di sc ípulo de Sócrates,
de que recordava co m e ncó mios aq ue le passo em qu e o
Autor di z ia não sere m comparáveis e m difi culdade os de-
veres do genera l e os do so ld ado, porquanto a honra que
decorre desses deve res to rn a m mai s supo rtáve l o trabalho
dos comandantes 15 1•
Sucede , poré m , qu e para as massas ig nora ntes 152 te m 63
muita importância a re putação de moralidade , e mbora não

148
Anti gamente. os ca ndidatos às vá rias magistraturas iam inquirindo dos
ele itores a qu al deles davam o se u voto. que era depoi s marcado co m um sina l à
fren te do nome de cada um . No tempo de Cícero. aquando elas eleições. a cada
eleitor era dada uma tabuinh a em que insc rev iam o nome do se u candidato pre-
ferido. Os votos eram recolhidos num recipiente . e depoi s contados . Esta nova
forma de votação foi estabe lec ida po r um a lei ele 13 1. a Le.r Gabinia Tabellaria ,
sob proposta cio tribuno Q. Gabínio. V. a propósito Cícero. De legibus , III. 35.
149
P. Cornélio Cipião Emilia no Africano li .
150
Xenofonte (séc.1 v-111 a. C.) . atenien se . di scípu lo de Sócrates. homem ele
acção e hi storiador. As sua, obras mai s conhecidas são a Ancíbase , a Ciropedia,
ou '' Educação de Ciro•·. as Hisrririas helénicas . em que prosseg ue a narrati va da
guerra de Atenas e Esparta desde o ponto em que Tu cídides interrompeu a sua
Hisrória até ao fim da guerra. etc.
111
"Firn sahendo. 111eu filho, que, e111hora o co111andanre e os soldados re-
nham as 111es111as capacidades)faica.1· e se sub111era111 a idêmicos esfor ços. esres
ncio rê111 o mesmo efe iro nos dois casos. porque a glória que o cobrirá e o facro
de saber que as suas acçries nunca serão esquecidas wma111. de cerro 111odo ,
menos penosos os rrabalho.1 do co11w11dallfe" (Xenofo nte. Ciropedia, 1. 6. 25).
152
Segundo a teori a cios Estóicos . o conjunto cios homens divide-se em dois
grupos: os ·'sábios·· (sapie11res) e os ··não-sábios .. (i 11sipie111e.1). Embora a condi -
ção de "sábio" seja um ideal pratica men te inatingíve l (o próprio Cícero afi rmou
que nunca tinha encontrado nenhum. nem sa be se um dia virá a ex istir alguém
que mereça tal títul o. v. supra 51 ). mes mo ass im (co mo Cícero diz no passo
referido) que m ti ver fo rm ação filosófica poderá reconhece r as suas qual idades.
coisa que a "massa insipiente" nunca se rá ca paz de fazer.

r1431
saiba m reconhecê- la na realidade. Deixam-se , po r isso,
influe nc iar pe la fama e pe la opinião corre nte do vul go, e
ace ita m co mo sendo bom aq uil o q ue é ap laud ido pela
ma io ri a. No te u caso. co ntudo. ai nda que a mu ltidão tenha
os o lhos postos em ti , ne m desejarei que te de ixes guiar
pe lo que e la de ti pensa, ne m q ue co nsideres óptimo o que
e la aprec ia como tal. Deixa-te cond uzir uni camente pelo
te u próprio j uízo. Se j ul gas q ue o q ue pensas é j usto e, ao
fazê-lo, ficas conte nte conti go mesmo . en tão serás capaz,
não ape nas de ve nce r-te a ti mes mo, co mo há po uco eu te
64 aco nse lh ava 15 -', mas triunfares de tudo e de todos . Fixa
para ti mesmo este propósi to: a lcançar uma nobreza de
es pírito, d iri a mesmo uma va loração do mesmo levada ao
ma is a lto g rau , <uma nob reza> que , sobretudo, se sali ente
pe lo des prezo e o desdé m pe la dor; é este o mais belo de
todos os se ntime ntos. e ta nto mais be lo se não se importar
co m o vu lgo ne m proc urar os seus apl ausos , mas e ncontrar
a sati sfação ape nas e m si mes mo . Em boa ve rdade , entendo
até que todos os actos são ta nto mais lo uváve is quanto
me nos carecem de ostentação e do parecer da maiori a. não
po rque devam ser real izados às oc ultas. po is as belas
acções me recem ser co nte mpl adas em ple na lu z, mas por-
que, para a virtude, ne nhum púb li co se co mpara à própria
co nsc iê nc ia .
XXVII 65 Medite mos so bretudo nes te po nto: a resistê nc ia à dor,
que já re peti vári as vezes se r refo rçada graças à concentra-
ção da me nte 154, deve mani fes tar-se po r ig ua l e m todas as
si tu ações. Acontece co m freq uênc ia muitos ho me ns, ou por
desejo de vitó ri a, o u de fa ma, o u ain da para defe nderem os
seu dire itos e a sua libe rd ade, recebe re m e suportarem as

153
Supra .* 53 .
15
~ Supra. ** 54 ss.

[144]
feridas com coragem, mas, passada essa excitação, serem
incapazes de aguentar o sofrim ento causado pela doença.
O motivo está em que , no primeiro caso , a res istência à dor
não decorria do sábio uso da razão , mas sim da preocupa-
ção com a glória. Pelo mesmo motivo encontramos certos
povos bárbaros incivilizados 155 capazes de lutarem energi-
camente de armas na mão , mas incapazes de suportarem
virilmente as doenças 156 • Em contrapartida , os Gregos,
povo não particularmente bravo 157 mas ensato quanto
baste na medida das capacidades humanas. não são capazes
de olhar de frente o inimigo. mas suportam a doença com
paciência e dignidade . Os Cimbros e os Celtiberos mos-
tram audácia nos co mbates , mas na doença não fazem
senão queixar-se. Ora nenhuma forma de comportamento
pode manifestar-se <sempre> por igual se não assen tar em
princípios racionais firmes. Quando vês certas pessoas que
e deixam condu zir pelo impul so e a opinião pública, mas 66
que . desde que atinjam os seus objecti vos, não se deixa m
abater pela dor, deves pen sar. ou que a dor não é um mal 158 ,
ou então, caso queiramos chamar " mal" a tudo quanto é
difíci l e contrári o à natureza 1' 9 , será um mal tão diminuto
que se deixa dominar de tal maneira pela virtude a ponto
de nem sequer deixa r rasto . Peço-te que medites ni sto dia

111
Os dois epíteto, não são si nónimo-,: para os ant igos Gregos e Romanos
.. bárbaros·· designava apenas m não-Gregos ou não- Romanos. independente-
mente do seu gra u de civil inção.
156
Daqu i o fac to de Cícero lhes chamar ••i ncivi li1adrn.··. porque. enquant o a
coragem bé lica pode re,u lt ar ele fac tores ideo16g icos ele ordem social (por exem-
plo. a devoção aos chefes por parte dos povos ge rmâni co;,. v. Táci to. Germânia .
XIV). a resistênci a à dor é o res ultado da p,,~ ição fi losófica pai1i cul ar.
157
Cícero não deix a. no entanto. ele cit ar com admiração o comport ament o
de certos heróis ela hi stória grega. como Leónida s ou Epaminondas.
158
Conforme pensa m os Estóicos.
159
Segundo a opinião clrn, Peripatéti cos .

[1451
e noite. Estes princípios alargar-se-ão até mesmo a outros
espaços para lá da mera questão da dor. Se tud o quanto
fazemos, ou o fazemos para evitar a desonra ou para aceder-
mos ao bem moral , deve mos estar imuni zados tanto co ntra
os aguilhões da dor como contra os raios e coriscos da
Fortuna , sobretudo quando temos à nossa di sposição aquele
refú g io que prepará mos no nosso di álogo de ontem.
67 Se um navegador pe rseguid o por piratas o uvi sse um
deu s dizer-lhe: "A tira-te à água w, alguém te salvará
1

rapidamente, ou um golfinho, como sucedeu a Aríon de


Metimna 161 , ou os cavalos dados a Pélops por Neptuno 162 ,
que, diz-se, puxavam o seu carro à superficie das águas,
recolher-re-ão para levar-te aonde desejares", poria de
lado todo o medo; assim tu, se atacado por dores cruéis e
terrívei s, caso estas sejam tão fortes que as não possas
aguen tar, pelo menos já sabes onde procurar refú g io.
Era isto , mai s ou menos, que de momento tinha para
di zer-te . Mas tu , se cal har, vais manter a tua opinião .
A . - De modo algum , espero bem que nestes doi s dias
já tenha ficado liberto das duas coisas que mai s medo me
faziam.
M .- Amanhã , com hora marcada 163 ! Assim co mbiná-
mos, e eu não quero ficar em dívida para contigo.
A . - De acordo: dec lamação da parte da manh ã, filo-
sofia a esta hora.
M. - Muito bem , farei o possíve l por corresponder aos

160
Lit. '"deita-te para fora do navio'·.
161
Aríon de Metimna . na ilha de Lesbos. poeta grego (séc. v11 a. C.).
Cf. Heródoto. 1. 24.
161
Pélo ps . filho de Tântalo. para conqui star a mão de Hipodami a. teve de
di sputar urna corrida de carros com o pai da sua amada. Neptuno. para faci li tar a
vitória de Pélops , cedeu- lhe os eus cava los.
163
Lit. .. (de acordo) com a c lepsidra .. . V. supra. § 9.

[146]
LIVRO III

ão cons igo imaginar qual possa ser a causa, Bruto , I 1


pela qual, sendo nós formados de alma e de corpo, se
in ventou uma arte com a final idade de curar e de velar pela
saúde do corpo, e até se atribuiu aos deuses imortais ades-
coberta de uma prática tão útil 1 , ao passo que a medi ci na
da alma , não só não se lhe sen tia a fa lta antes de ter sido
in ventada , co rno não tem s ido muito praticada desde a sua
descoberta , e, além de não merecer a gratidão e a aprova-
ção da mai oria , a inda por ci ma incorre na má vo ntade e na
suspeição de muitos! Será porque nos damos co nta do mal -
-estar e das dores do corpo por meio da mente, ao passo
que as doenças da mente não as senti mos no corpo? Como
resultado temos que a mente tem de julgar-se a si mes ma ,
ou seja , é a faculdade de julgar que vai ju lgar da sua
doença! Se a natureza nos ti vesse gerado com a capacidade 2
de observar e ava liar a me nte de modo a que , dela nos
servindo como soberana guia , pudéssemos orientar o
decurso da nossa vida 2 , certamen te não andaría mos todos
em busca de uma filosofia ce ntrada na razão . O certo é que
<a natureza> nos concedeu apenas umas cente lhas, q ue os

1
Apolo e Asc lé pi o (Esc ul ápi o . e m latim ).
1
Recorde-se a importânc ia que tê m as ca rac te rísti cas naturai s dos ho me ns
para as dife rentes fil osofia s . no meada me nte os Estó icos e os Epi curi stas que. un s
e outros .defende m o princ ípi o fund ame nta l sequi naruram "seguir a natureza.obe-
decer à natureza" . e mbo ra di verg indo no modo co mo e nte nde m esse prin c ípi o.

[ 1471
homens rapidamente ext inguem corrompidos por maus
costumes <assentes em> preconceitos, a ponto de a luz
natural nunca se manifestar. Existem inatas no nosso
es pírito as sementes das virtudes; se , porventura , estas
pudessem desenvolver-se , a própri a natureza conduziria o
homem à feli cidade. Na realidade. mal nascemos e somos
aceites <na família>' deparamos com um meio dominado
pela depravação e somos confrontados com as mai s dís-
pares maneiras de pensar, de modo a que parecemos ter
bebido a tendência para o erro juntame nte com o leite da
ama . Quando depoi s somos restituídos à <responsabilida-
de> da fa míli a e logo em seguida aos cuidados de mestres ,
então fi camos impregnados de toda a es pécie de erros, tais
que a verdade cede o lugar à fantasia e a nossa natureza às
II 3 opiniões então correntes. Vem depoi s o estudo dos poetas
que , aureolados de uma aparência de cultura e sabedoria,
são ouvidos, lidos e aprendidos de cor, pelo que fica m gra-
vados nas nossas mentes 4 • Quando a este panorama se
acrescenta a opini ão pública , que fun ciona como uma

3 Alusão à cerimóni a dit a do .. reconhec imento··: o pai do recé m-nasc ido.


o pater .famílias . pegava na cri ança (gesto refe rido pelos ve rbos suscipere ou
101/ere .. le va ntar. erguerºº) como sin al de que o ··reconhec ia'· co mo seu fi lho (cf.
Sto. Agostinho. A Cidade de Deus. IV. 11 ): o reconheci mento era confirmado
pela imposição do nome no dies /ustricus .. di a lustral ... isto é. o oit avo (no caso
das rapari gas) ou o nono (no caso dos rapazes) dia após o nasc imento (Macróbio.
Saturnalia. 1. 16. 36). a que se seg uiam di versas outras ce rimónias religio-
sas. como a /ustratio. ou .. purificação .. . Sobre o conj unt o destas cerimóni as
v. J. Marquardt , Das Privatleben der R6me1: 1Q9() ( 1:' ed . 1886). 1. pp . 83 ss.
4
m panorama sintéti co ela edu cação em Roma no tempo da república
- desde os rudimentos aprendidos em casa. à frequência da escola orientada
pelo gramático. depois à da esco la do re for. e fin almente ao tirocinium (para
quem seguia a carreira militar). ou o acompan hamento de um pol íti co. advogado
ou orador junto de quem o jovem ia sendo ini ciado na vida prática do fo ro -
v. J. Marq uardt. Das Prim tleben der R6me1; 1. pp . 80-1 34 . e também as secções
ded icadas a Roma na obra colec ti va editada por J. Chri stes. R. Kl ein e C. Lüth.
Handbuch der Erziehung 1111d Bildung in der Anrike. Darmstadt. 2006.

[ 148]
espéc ie de mestre su premo , e <o exemplo> da multidão
sempre pronta a aprovar tudo quanto seja vício, então
somos por completo dominados por concepções erróneas
que nos desv iam das nossas tendências naturai s, de que
resulta tomarmos como os melhores conhecedores da
natureza humana aqueles que defendem que nada há de
melhor, de mai s desejáve l, de mais importante para o
homem do que a carre ira política 5 , os comandos militares 6 ,
a popularidade 7 . Todo o homem superior tende a procurá-la,
no desejo de obter a verdadeira beleza moral , a única que
a natureza humana acima de tudo deseja, mas acaba por
resvalar para o completo vazio e a alcançar, não uma nítida
imagem da virtude, mas si m um confuso esboço da glória.
A glória é algo de seguro , de bem delineado , não um mero
esboço. Ela consiste no aplauso geral dos homens de bem,
a voz clara dos que sabem reconhecer sem hesitar o méri to
indiscutível. é, por assim di zer, o eco que responde à ma-
nifestação da virtude . <A glória 8>, portanto , na medida em

; Aquilo a que os Roma nos da va m o nome el e cursos honon1111, lit. "a ca r-


reira das honras" . i.e .. elas mag istratura s desde a questura ao co nsulado.
6
Pense-se e m certas fi g ura s cios sécs. 11 e Ia . C .. os me mbros ela aristocra-
cia senatori al: os C ipi ões. os M úcios Cévo la. os Cecíli os Mete los. os Emílios
Pau los . e . mai s mode rname nt e. Mário e Sula. Pompe io. C rasso e. acima ele
todos. Júli o César. para os 4uai s os co mandos militares foram uma forma
de aceder ao poder que. depo is ela te ntati va falhada ele Sul a . primeiro co m César.
e depoi s com Au g usto. acabaria por tornar-se abso lut o.
7
Note-se que nestas linhas está s inteti zada a própria ca rreira ele Cícero:
um homo 110 1111s que chego u ao cons ul ado e m 63 a. C.. um ce rto sucesso militar
aquando do seu gove rn o da Cilíc ia e m 51 -50. a pop ul aridade de que goza va
como advogado e políti co que atin g iu os pontos mai s a ltos co m a vitó ria sobre
Cati lina e o reg resso a Roma no me io cios ap lau sos . ao vo ltar cio exílio imposto
pelas manobras de Clódio (58-57) .
8
A importância dada po r Cíce ro à g ló ria é comprovada pelo fa cto ele e le
ter escrito uma ob ra em doi s li vros de que apenas restam mag ros fragmento s
(v. Cícero. De ofjiciis. li . 3 1. e cf. Aulo G é li o. N.A .. XV. 6 ).

r1491
que ge ralmente acompan ha os actos conformes à virtude9 ,
4 não deve ser rejeitada pe los homens de bem . Mas há outra
modalidade , que não te m mai s do que a pretensão de imi-
tar <a virtude> fruto das ci rcun stâncias, irreflectida , na
mai ori a dos casos e ncomiásti ca e m re lação aos c rimes e
aos vícios, aque la "aura popular" 1º que , ao ten tar parecer-
-se co m o bem moral , dá deste uma image m sem brilho
nem e levação. Levado s por esta cegueira, <muitos>
homens, no desejo de protago nizare m actos g randiosos ,
mas sem saberem quando e por que motivo estes o são,
condu ziram à perda total das suas cidades , e ou tros foram
a causa da sua própria destrui ção. Estes últimos , mau
grado os se us aceitávei s propósi tos , acabara m por falhar,
não tanto intencionalmente, como por e rro de ap rec iação 11 •
Mas será que aos que são levados, o u pela ganância do
dinheiro , ou pela paixão imoderada do praze r, ou aos que
sofrem de uma perturbação me ntal que pouco se di stingue
da louc ura , sorte , aliás , qu e afecta todos os in sipientes 12,
não é poss ível aplicar-lhes nenhum tratamento? Serão por-
ve ntura as doenças mentai s menos nocivas do que as do
corpo , serão porve ntura curáveis as doe nças do corpo,
enquanto para as mentai s não há tratamento nenhum ?

9
Os --ac tos confonnes à vi rtude'·. i .e .. aqueles a que os Estóicos davam o
nome de Karnp0wµam, lit. ··actos correc tos.justos··.
10
··ó glória de manda,; ó vã cobiça / Desta vaidade. a quem chamamos
ràma .1 / Ó ji·audulento gosta. que se atiça / Ctra aura popular. que honra se
chama ' .. (Ca mões , Os lusíadas. IV. 95 . 1-4) .
11
Segundo algun s co mentadores . todo este passo tem por alvo J. César
(Hum bert ) ou César e Pom peio (J. E. King) .
1
~ Algun s ed itores (C leri c i. Fohlen) co locam esta ex pressão entre parênte-
ses rectos para mostrar a sua concordânc ia com Bake. que co ndena a expressão
com base no facto de e la ser o le ma de um dos paradoxos tratados por Cícero no
se u o púsc ul o: Paradoxo IV: ·on rràç ii<ppwv µaívcrm = Omnes stultos in saníre =
Todos os insipientes (não-sábios) são loucos.

[ 150]
Sucede , poré m , que as doenças mentais são mais peri- III s
gosas e e m maior número do que as do corpo; e las são
mes mo particularmente odiosas porque afecta m a me nte e
continu amente a so licitam, e porque, co mo diz Énio,
Uma menre enferma nem se habirua nem resisre
[ <à doença> ,
E nunca se li berra dos desejos .. .13

Que mol és tias co rporai s poderão ser mais graves do que


estas du as , o desgos to e a ganância, para já não fa lar das
restantes? Como é poss íve l aceitar que a me nte não possa
curar-se a s i mesma quando foi e la quem descobriu a
medicina adequada ao corpo? <Como acei tar ai nda que>
para a cura do corpo ten ham grande importâ nc ia as carac-
terísti cas físicas <dos doentes> e, mesmo assim, ne m
todos quantos se submete m ao tratamento me lhoram de
imed iato, enq ua nto no caso das doenças me nta is os enfer-
mos que desejam c urar-se e passa m a seg uir os preceitos
dos sábios obtê m se m qualquer dúvida a sua cura? Existe , 6
de certeza, uma med icina para a mente : a filosofia , c uja
ajuda não tem de vir de fora , como sucede com as doenças
do corpo, pe lo con trário, devemos recorrer a todas as
nossas fo rças para se rmos capazes de nos c urarmos a nós
mesmos.
Creio que tracei , no meu Hortênsio, um panorama
geral da fi losofia, e dei xe i c laro de que for ma pode-
mos inicia r-nos ne la e prat icá- la de fo rma adequ ada 14 •
Pelo que respeita às maté rias mai s im po rtantes, quase

u Éni o . Trag. lnc .. 408-9 Warmin gto n. Cl e ri c i sugere tratar-se de um passo


da !figénia em Áulis.
'" Cf. supra. li § 4 .

[ 151 J
nunca deixei desde e ntão de di sc utir e escrever sobre
e las 15 • os prese ntes li vros reprodu zi por escrito os diálo-
gos qu e travei <na minha vila> de Túsc ul o com alguns
amigos. Nos do is primeiros fa lámos sobre a morte e a dor,
<respectivamente>, es te tercei ro livro co rresponde ao ter-
7 ce iro dia de debates. Quando desce mos para a Acade mia 16 ,
quando o dia já tinha ultrapassado a hora do meio-dia, ped i
que algum dos presentes suge ri sse um tema para o debate .
O diálogo decorreu e ntão como va i seguir-se.
IV A . - Em meu entender até mes mo o sábio está sujeito
ao desgosto 17 •
M. - E estará també m suj ei to às o utras perturbações
da mente: os medos, os desejos, as iras? Todos estes termos
des ignam estados a que os Gregos chamam ná011 18 ;
eu podia dar-lhes o nome de "doenças" 19 , o qu e se ria a
tradução literal , mas isso não seria co nforme ao uso da
nossa líng ua . <Sentir> "compai xão"' (misereri). " in veja"
(inuidere), "exaltação" (gestire), "sati sfação" (/aeta ri ), a
todos es tes sen timentos os Gregos chamam " doenças", no
se ntido de 'mov imentos da me nte desobedi e nte' à razão ,

1
' Recordemos que. de po is cio /-forrênsio . que é uma exortação à filosofia.
Cícero escreveu e lll duas ve rsões sucessivas us Li1·ms Académicos. dedicados
ao problema do conhecimen to. e o De.fi11ib11s ho11orn111 et malornm. ci nco li vros
em que passa em revista o probl e ma cio bem último para o homem seg undo.
sucessivame nte. os Epicurista,. os Estóicos e os Pe ripatét icos.
" Cf. supra II .§ 9: na sua vila . Cícero tinha constru ído dois pórti cos. um.
1

num terreno mai s ele vado. o Liceu. em q ue. com os se us am igos. tratava de
questões de retó rica. o ou tro. nulll nível me nos elevado. a Academia. tinha a
fi losofia como o bjec to ele di sc ussão e est udo.
17
Cf. infra § 83.
18
Lit. "estados de alma . pa ixões". A re lação co m o ve rbo rráaxw. bm0ov.
lat. patiOI: pari. passio so fre r. paixão. sig nifica que a pal av ra te m uma conotação
fo rte me nte negativa (cf. pacie111e = do eme. parologia. etc .. e tc.).
19
Em latim rnorbi.

[ 1521
enquanto nós, a esses mov imentos de uma mente agitada,
damos, e bem , crei o eu , o nome de " perturbações" , mas
habitualmente não lhes chama mos ' doenças'. A ti , o que te
parece?
A. - Concordo conti go. 8
M . - Pensas, portanto, que o sábio está sujeito ao
desgosto?
A. - Penso que sim , com certeza.
M.- Bem, parece-me que essa orgulhosa sabedori a
não tem ass im ta nto valor, já que aparenta não ser muito
diferente da loucura!
A. - Como di zes? Parece-te que toda a agitação men-
tal seja equivalente à loucura?
M .- Parece. e não só a mim! Muitas vezes, até, sinto
grande admiração pelos nossos maiores que já assim pen-
ava m muitos séculos antes de Sócrates, o homem de cujo
pensamento deri vou toda a filosofia relativa à vida e aos
costumes20 •
A. - O que pretendes di zer?
M .- Que a palavra insania des igna um mal -estar2 1,
uma doença 22 da mente, isto é, signifi ca que a mente está
enferma23 e em sofrim ento 24 : a este estado chamaram eles
' insânia '. (A todas as perturbações da mente os fi lósofos 9
chamam "doenças", e di zem que estão afectados por estas

w Sócrates. e m mat é ria de filosofia . co locou a tónica na ética . em confro nt o


com os anti gos "fis ió logos" (os pré-soc ráticos) que es iuda va m sobretudo a na-
tureza . v. Cícero. Academica posteriora, 1. 15. e m que declara ter sido Sócrates
o primeiro que fe z a fi losofia descer das especu lações sobre o unive rso para a
trazer para a vida quotidiana do homem vul gar.
21
Lat. aegrotatio.
,, Lat. n1orbus.
1
' Lat. insanitas (in sa nidade).
'" Lat. aegrotus.

11531
doen ças todos os insipientes 25 . Ora que m sofre de uma
doença não está são; as mentes de tod os os insipientes
sofrem de al guma doença; logo, todos os insipientes são
loucos.) Pensavam <os nossos an tepassados> que a sani-
dade mental implicava um certo estado de tranqui lidade e
constância da mente 26 . Quando a me nte não se encontra va
em nenhum destes estados di zia m que sofria de insânia,
porquanto uma mente perturbad a e um corpo <enfermo>
estão num estado de insanidade .
V 10 Mostraram-se ig ua lmente perspicazes quando deram
o nome de amentia27 ao estado daque las pessoas que não
dispõem do uso da razão , a que também se podia chamar
dementia 28 • Pode daqui co nc luir-se que os homens que
puseram estes nomes a estes <estados mentais> chegaram
po r si sós à mesma concepção que os Estóicos fora m
buscar a Sócrates e depoi s co nservaram dili gente mente,
isto é , qu e todos os insi pie ntes são <pessoas> não sãs.
Uma mente que padece de algum a doe nça - e , confo rme
di sse , os fil ósofos chamam "doenças" a estes estados de
alma desordenados - não é mais sã do que um corpo que
padece de doen ça . Daq ui se co nclui que a sa bedoria é a
sanidade da mente, qu e a insipiê ncia é uma certa espécie
de in sanidade , aq uela a que se chama " insâni a" ou

25
Lembre-se q ue "insipie ntes · = ·não sábi os ·.
26
Este passo constitui urna boa o po11unidade pa ra recordar quão prove itosa
será a leitura dos do is e nsa ios de Sé neca. o De tranquil/itate animi e o De cons-
tantia sapientis.
27
Palavra formada de a (prefi xo negati vo) ment(e). o u seja. o estado de
al guém que não di spõe de capacidades inte lectuai s . de in te ligência.
28
Formada pe lo prefixo de+ ment(e). Entre amentia e dementia existe uma
d ife rença importante: amentia (e m po rtu guês •·amê nc ia") de nota al gué m que.
desde sempre, não é dotado de razão , de inte li gência. ao passo que dementia
(em portu guês " de mênc ia" ) de nota alg ué m que foi dotado de ra zão mas que. por
algum moti vo . fi cou del a privado.

[ 154]
"demê nc ia". Es tes co nceitos são muito me lh o r ex pressos
pelos te rmos latinos do que pe los g regos , o que, de resto ,
ocorre e m mu itos o utros casos . M as de ixemos isso para
outra a ltu ra e va mos agora ao qu e impo rta . A natureza e as 11
caracte rís ticas do pro ble ma que proc ura mos so lu c io na r
são inte ira me nte esc la rec id as pe lo pró prio sig nifi cado da
palavra <de base> 29 • Um a vez qu e necessari ame nte deve-
mos cons iderar "sãos" todos aq ue les c uja me nte não está
afectada po r ne nhum a agi tação doenti a, també m necessa-
riame nte deve mos c ha ma r " in sanos" 30 aos que estão ass im
afectados . ão há, po rta nto , me lho r ex pressão <para este
fenóme no> do que a us ua l na líng ua latin a: di ze mos que
estão fora de si3 1 todos qu a ntos agem sob o do mínio dese n-
freado do desejo o u da cólera (e mbo ra a có le ra seja uma
fo rm a do desejo . já qu e se defi ne "cólera" co mo " desej o de
vin ga nça"); di ze mos, po rta nto, que estes estão fo ra de si
porque não es tão s uj e itos ao do m íni o da me nte, à qu a l
cabe po r natureza o exercício do pode r sobre a tota lid ade
da alma . ão sou capaz de di ze r o nde fo ram os Gregos
busca r o vocá bul o µav(a " lo uc ura" 32 ; mas o co nceito , nós
di sti ng ui mo- lo m a is nitid a me nte do que e les, uma vez qu e

'
9
Isto é. do adject ivo sa1111s ··são. sa udá ve l" " e do conjunto dos seu s de-
rivados: insa1111.1 ··doe nt e··. sanita.1 ··saúde. sa nidade··. insaniras ••insanidade .
demência··. etc.
lO ··Sãos··.••in,a nos··: e m latim . .rnni <> insani .
1
' Lit. ··que estão fora cio se u pró prio control o. que não se domin am a si
mesmos··.
'' Daqui prove io o port . mania (c f. maníaco. manicómio). - A etimo logia
do termo grego não podia ser tran spare nte para Cícero. mas na rea lidade trat a-se
de um deri vado de um a rai z indo-europe ia co m muito a mpl a representação nos
di versos ramos lin g uíst icos desta família (v. Pok o rn y. !. E. W. pp. 72 6-8 . J 3.
111e11-). u. g . e m latim , e m que e ncontra mos o pró pri o te rm o mens ··me nte··. o
verbo 111e111i11i ··Ie mbrar-se··. e tc. (c f . Fris k. G.E. W. s. u. ~iaivo pai ··estar louco··:
fllftVTÍOKOJ ··Jembrar-se··: Ern o ut -Me ill et. D.E.L.L.. s. u . memini. 111ens. moneo).

11551
di stin g uim os a " in sa nid ade"' assoc iada à estupidez, e ,
po rtanto, co m um se ntido ma is lato, da " lo uc ura furio sa" 33 .
O s Gregos també m que re m destrinça r as du as noções, mas
o se u léx ico não os ajuda: ao estado que nós des ig na mos
po r f uror .. lo uc ura furi osa'· c ham a m e les
co mo se a me nte ape nas fosse susce ptíve l de se r afectada
pe la atrabíli s 35. e não, co mo s ucede co m frequê nc ia, com
um acesso viole nto de có le ra, de medo, o u de desgosto .
É este tipo de lo uc ura qu e nós atribuímos a fi g uras <míti -
cas> ta is co mo Ata ma nte, Al c méo n , Ájax o u Ores tes 36 . Ao
home m afec tado po r esta es péc ie de lo uc ura a Le i das
Doze T ábu as proíbe o pode r sobre os seus pró prios bens:
o qu e está escrito na le i não é "se esti l'er in sano .. .",
17
mas sim "'se esti ver louco.fitrioso . . . " • Fora m <os nossos

11
Em lat i1n / i11 m: O g rego µavía corresponde . pe lo se ntido. ao termo la-
ti no. Reco rde-se a propós it o a inda a re lação co m µavía ci o vocábulo µmvá~
µmváôoç ·•mé nadc··. a mulhe r poss uída do fre nes im. cio delíri o di o ni síaco . ou
seja. a ··baca nte ...
'• Me lanco li a= ··1e mpe rame nt o atrab il i,íri o . me la ncó li co··.
,; Te rmo mai s corre nte. e mbo ra. seg undo o V()(· .. a fo rma correcta devesse
se r ··atrabil e .. .
.. Atamant e. num acesso ele lo uc ura furi osa . matou o filh o Learco.
6
·'

e nq uan to a sua mulh e r lno e o filh o desta . Me li ce rte . se la nça ram ao mar.. (Apo-
loclo ro . Bih!iotern. 1. 9. 2. 84): ··Alc méon . irrit ado co m a corrupção ela mãe .
e e m obedi ê nc ia a um oráculo ele Apo lo. matou -a . .. Pe rseg uido pe las Eríni as
acaba por enlou quecer .. (lde111 . 111. 7. 5 . 86- 7 ): Ájax . qu e ;,e ju lga va ser o di gno
he rde iro ela s arm as ele Aquiles. e n lo uquece u ao ve r que os o utros c hefes gregos
as atribu íra m a Uli sses e. num acesso ele lo ucura . mato u urn a sé rie ele carnei-
ro, con ve nc ido ele que estava a mat a r li sses e os Atridas : qu a ndo a loucura
aca lmou. dando-se conta do que fi 7e ra. suic id o u-se (te ma da tragéd ia Ájax de
Só foc les) : a louc ura ele O restes . també m pe rseg uido pe las Eríni as e m seg uida
ao assass íni o ele C li ternnestra. sua mãe. po r e le pe rpe trado . co nstitui o te ma da
últ ima tragédi a . as Eu111énides. ela tril og ia Oresteia ele Ésqu il o.
7
O tecto co mpl e to desta di s pos ição legal é: SI FVR/OS 1S ES<Cl>T.
1
'

ADGNA TVM GENT!L! VMQVE !N EO PECVN!AQVE E/I S POTESTAS ESTO


··se (o prop rietári o) fi car lo uco . o pode r sobre a sua pessoa e os se us be ns será
e xe rcido pe los seu s ag naclos (pa rent es po r con sa ng uinidade} e pe los membros

l 156J
maiores> de parece r que a pateti ce, e mbora seja um estado
que carece de equilíbri o , isto é, de sanid ade, pode asseg u-
rar uma séri e de tarefa s de po uca importânc ia e prati car os
usos e costumes da vida e m co mum , ao passo que co nside-
raram a lo uc ura furi osa co mo uma ceg ue ira me nta l para
toda a es péc ie de acti vidades. Embora esta pa reça se r uma
<doença> ma is grave do que a in sânia , a sua nature za é de
molde a qu e o sábio pode vir a sofre r de la , ao passo qu e
nunca pode rá sofre r de insânia 18 . Mas esta é já uma o utra
questão . Vo lte mos ao ass unto .
Di sseste tu , se be m me le mb ro , qu e te parece possível VI 12
o sábi o se r vulne ráve l ao desgosto .
A . - Sim , é isso mes mo qu e e u pe nso .
M . - É natu ra l que pe nses ass im . Nós não nasce mos
de um a roc ha , é hum ano qu e te nh amos no es pírito um
certo se ntime nto de te rnura e se nsibilidade que, co mo uma
tempes tade , pode abalar-nos e m seg uida a um desgosto 39 •
Tem algu m fund a me nto a o pini ão do conhec ido Crantor1°,
um dos me mb ros ma is notáve is ela nossa Acade mi a ; di zia
ele: "Não concordo nada com aqueles <filósofos> que
louvam hiperbolicamente esla espécie de 'imunidade à

da mesma gC'ns (os desce nden tes ele um mes mo a nte passado co murn ).. (Lex XII
Tab ulamm. V. 7).
,x Trata-se de uma q uestão a lgo co nt roversa . e que se re lac iona co rn a ques-
tão ele saber se o sá bio pode vir a perder a sua 11ir11 1s. Para C ri sipo a perda el a
virtude. logo. a queda na insâ ni a . pod ia afectar o sá bio e rn ce11os casos de natureLa
clínica . por exemp lo. sob o efeito de clete rrn in ados fá rm acos. o u em consequê n-
cia de ce rt as doe n~as (v. Stoici antichi. pp. 1080-82 = S VF. 111 . 237-9).
19
· Como s ucede u ao pró prio Cícero em res ultado el a mo rt e da fi lh a.
"º Cra ntor de So los (séc . ,, - 11 1 a. C.). fi lósofo da Anti ga Acadernia.
em igrou para Atenas. onde se tornou di scípu lo de Xc nócra tes. A sua o bra ma is
conhec ida era um li vro inti tu lado ll q1i rrtvüou~ ··Sobre o luto··. que exerce u
importa nte in flu ê nc ia sobre os au to res latinos de tratados ele ··conso la~ão··. como
foi o caso de Cícero (v. Di ógenes Laércio . IV. 24-27).

1157 1
dor' que não pode, nem sequer deve existir. Eu não estou
doente, mas se esti ver quero sentir que me amputam ou
extraem alguma parte do corpo41 • Não sentir dor nestas
circunstânc ias só seria possível à custa de enorme violên-
cia sobre a mente e insensibilid ade no corpo." 42
13 Mas tenhamos c uidado, não vá este di sc urso se r pró-
prio de que m co ntempo ri za co m as fraquezas humanas e
se mostra indulgente co m a nossa se ns ibilidade. Devemos
amputar co m corage m , não ape nas os ramos das nossas
tri stezas, mas tam bé m a rran car todas, até as ma is ínfimas
raízes. É poss íve l que algo de las pe rsista . tão profundas
são e m nós as raízes da insipiência; de ixe mos, porém,
apenas aquilo que for imposs íve l ex tirpar. Duma coisa
podes estar certo: enq uanto a nossa mente não estiver
sa nad a, o que é impossível sem o auxílio da filosofia, as
nossas tri stezas nunca te rão fim . Por es te moti vo, uma vez
que começámos , entreg uemo-nos a e la para que cuide de
nós. Se o qui sermos, podere mos c urar-nos. [re i a inda mais
longe : não me c ing irei a falar do "desgosto", e mbora este
ve nha em prime iro lugar, mas tratare i també m de todas as
" perturbaçõe s", co mo e u lhes chamo, ou das ''doenças da
mente", como prefe re m os Gregos. Se estive res de acordo,
co meça rei por usa r o método estói co de argumentaç ão
co nci sa, e depoi s espraiar-me -ei seg undo o me u es til o
habitual.
VII 14 Um homem corajoso é confiante (jidens) em si mesmo.
Não posso e mpregar confidens4 3, porque, devido a um uso

41
Isto é. se lhe amp uta m algum membro. ou o o peram para ex trair algum
tumor.
42
Estas mesmas ide ias e parte da citação de Cra ntor estão prese ntes 1am-
bém na ca rta de --conso lação a Apolón io ... de Pl utarco (§ 102 C-E).
43
Que também significa ··co nfian te•·.

1158]
incorrecto da língua, este termo ganhou um a co notação
negati va44 , embora provenha do verbo confidere " co nfi ar",
que tem conotação positi va . Que m é 'confi ante' não tem
rece io de nada , uma vez que ex iste incompatibilidade entre
"recear" e "confiar". Em contraparti da, que m está sujeito
ao desgosto, está também sujeito ao receio, pois aque las
mes mas co isas cuj a presença nos to rn a desgostosos, teme-
mo-l as qu ando elas estão iminentes e a ponto de nos
atin girem. Daq ui res ulta que desgosto e coragem são
incongruen tes. É, po rtanto, verosímil que quem está
sujeito ao desgosto , igualmente está suj e ito ao temor, à
quebra do ânimo, à depressão. E que m se deixa sujeitar
por tais emoções, sujeita-se também a uma posição servil ,
e, inclusive , a te r de co nfessa r-se venc ido. E quem a tal se
resigna, necessari ame nte resigna-se também ao medo e à
cobardi a . Nada disto é apanág io de um ho me m corajoso,
logo, também não é se u apanág io o desgosto. Mas sucede
que só é sábio quem é corajoso, logo o sábio não é sujeito
ao desgosto . Po r o utro lado , o ho mem corajoso é também , IS
necessari amente, dotado de um a alma grande ; que m é
dotado de um a alma grande, é in vencíve l; que m é in ve n-
cível pode encarar co m des prezo as vic iss itudes humanas
e considerá- las co mo abaixo do seu nível. Ora ning uém
pode encarar co m des prezo as vic iss itudes humanas se
estas fo rem para si um moti vo de desgosto. Daqui se conclui
que o ho me m corajoso nun ca pode ser afectado pe lo des-
gosto. Por outro lado , todo o sábi o é corajoso, logo o sábi o
nunca é afectado pe lo desgosto. E tal co mo um olho doente
não está dev idamente capac itado para exerce r as suas

44
O termo confidens sig nifi ca .. confi a nte'· no mau se ntid o da palavra, isto
é. passou a em prega r-se no sen tido de .. arroga nte. in so le nte .. .

[ 159]
fun ções, e be m ass im as de mais partes do corpo, se afas-
tadas do seu estado natu ra l, não pode m c umprir as suas
tarefas obrigatórias , ass im ta mbé m uma me nte pe rturbada
não está apta ao desempe nh o das suas fun ções. Ora a
fun ção da mente cons iste e m utili zar bem a razão; por
outro lado , a me nte do sábi o está sempre capac itada para
utili zar a razão da me lhor fo rma possível; logo, a mente do
sábio nunca pode estar pe rturbada. Sucede que o desgosto
é uma perturbação da me nte ; logo , o sábi o nunca está
afectado <por tal pe rturbação> .
VIII 16 Também é ve rosímil <o rac iocíni o a propósito> do
homem te mperante , o tipo de home m a qu e os Gregos
chamam o wcpg wv 45 ; à virtude co rres ponde nte dão o nome
de o wg oo1Jv17 46 , <termo> que e u costum o tradu zir ora
por temperantia, ora por moderatio , às vezes ainda por
modestia 47; não se i se não se ria co rrecto c hamar a esta
virtude "fru galidade" 48 , te rmo que , e m g rego, te m um
alcance mai s restrito , uma vez que aos ho me ns "frugai s"
<os Gregos> chamam XQÍ70Lµm, adjecti vo que, à letra , sig-
nifica " útei s"; a palavra latina te m um alcance mai s lato;
toda a forma de " rese rva" 49 , toda a forma de " inocê ncia"5º
(para esta noção a língua grega não di spõe de nenhum
termo , e mbora fo sse poss íve l usar à~Àá ~ELa 51 ; de facto,

05
··Sensato . prude nte . te m pe rante"".
6
• ··s ensatez . prudê nc ia. te mpe rança"".
07
'·Te mperança'" . '·mode ração"" . ""(se ntido da ) j usta medid a"".
08
Lat. frugali tas.
09
Lat. abstinentia =reserva. mode ração.
50
Lat. innocentia. quer no se nt ido pass ivo . co mo e m portu guês. quer no
sent ido acti vo = incapac idade pa ra fa zer o ma l.
51
Note-se como Cícero do min ava tão be m a língua g rega q ue se perm ite o
lux o de sugerir um termo para ex prim ir a llles ma noção qu e o latilll innocemia.
Na rea lidade. um termo cognato de àPÀ.àPEta ocorre ullla úni ca vez no Hino
homérico a Hermes. v. 393 . à pÀ.aPínm (dativo do plural de àpÀ.apía). Depoi s da

[160]
innocentia denota um a disposição da mente tal que a torn a
incapaz de lesa r alg uém) - .. . emfrugalitas estão co ntidas
todas as demais virtudes <além destas> 52 . Se <o conceito
de "fru ga lidade"> não ti vesse uma ex te nsão tão grande,
e se se manti vesse c ircun sc rito ao estre ito âmbito a que
algun s pretendem reduzi-lo, nun ca L. Pi são teria recebido
0 cog nome que e le to rn o u célebre . O ra, como não é 17
53

costume dar-se o epíteto de Frugi <ao militar> que deserta


do seu posto por medo , o que é um ac to de co bardia , nem
ao homem que por ganânci a rec usa restituir <ao dono> os
bens que es te lhe co nfi ara em seg redo , o que é uma forma
de injusti ça, ne m àque le q ue po r imp rev idê ncia teme rári a
ad mini stra mal as suas e mpresas, o qu e é co nsequ ência
da sua estup idez , co nc lui -se que o termo "frugalidade"
cobre semanticamente as três vi11udes " coragem" , "justiça"
e "prudência" (es te traço é co mum às virtudes : todas

sugestão de Cícero . o vocá bul o só vo lt a a oco rrer. muito depois. num passo de
Plutarco (v. LSJ . s .u .).
52 Neste desenvo lviment o .. term ino lóg ico .. o estil o de Cícero tem uma

liberdade de constru ção que não ocorre habitualmente; Cícero escreve por
assoc iação de idei as. à medid a que estas vão acorre nd o ao se u espírito. se m dar
à frase a arrumação gramati ca l. a constru ção arquitec tóni ca . a amplitude da frase
que caracteri za m o se u estil o habitual. Daí o anaco luto que se pode obse rvar
neste passo: Cícero esc reve ra ··1oda a fo rma de ·reserva·. toda a forma de 'ino-
cência"', sintag mas que o leitor es pera ve nh am a se r o suje ito ele al guma fo rma
verbal; mas a construção é inte rro mpida pela re íl exão sobre a inexi stência ele um
termo para •• inocê ncia.. na língua grega . e qu ando a ideia anteri or é reto rnada o
A. escreve:J,-uga/itas co nt ém as restantes virtudes: mas ·'restantes .. em relação a
quê'7 Obviamente em relação à .. reserva .. e à .. in ocê ncia.. que ass im reaparecem.
subentendidas . mas a dese mpenh ar a fu nção ele compl e mento cli recto . já que
essas vi nudes. tal corn o .. as restantes .. também estão cont id as no terrn ofl'ugalitas.
53
L. Calpürnio Pisão (n. em 180 a. C.) fo i Tribuno em 149. Cônsul em
133 e Censor em 120 a. C. O cog nome ele Frugi (fo rm a acljecti va l indec lin áve l)
fo i-lhe atribu ído pela sua austerid ade e disci plina. co mo mi li tar e como mag is-
trado. Além dos cargos que desempe nh ou. Pisão Frugi notabili zo u-se ain da pela
sua obra históri ca Annales (v. Die Friihen Romischen His toriker 1. pp . 282-329).

11611
re lac io nadas e ligadas e ntre si); a <v irtude> restante, a
qu arta, será a pró pria fruga lidade 4, cuja propriedade
5

es pecífica será a de do minar e aca lmar os mov imentos


impuls ivos da mente , sem pre fazen do fre nte ao desejo55 e
conservand o uma mode ração firm e e constante em todas
as c ircun stânc ias . O víc io q ue se lhe co ntrapõe tem por
no me nequitia 56 .
18 Fruga litas "frugalidad e", seg undo me parece, provém
do no me frux , plural fruges "cerea is'', o me lho r produto
nasc ido da te rra , e nqu anto nequitia (a minh a pro posta é,
talvez , abstru sa, mas vo u tentar: se não servir, to mem-na
co mo jogo de palavras!) , di zia eu , de ri va do fac to de se
di zer qu e um ho mem nada va le (n ihili) qu ando não tem
valo r (nequicqua 111 )57 . Portanto, qu and o um homem é
" fru gal" (jrugi) ou , se preferes, é mode rado e po nderado,
e le se rá necessari amente fir me e constante: quem é cons-
tante, é tranqu ilo; que m é tra nqu ilo, não sofre da mínima
perturbação , logo não sofre de desgosto. O ra es tas são as
característi cas do sábi o, logo o desgos to não pode atingir
o sábio.

5
-' Cf. S1oichi amichi. p. 94 (= S. V F. 1. 200 ): Zenão disting ue as di versas
virtudes ..... por ex. a sageza . a coragem. a temperança e a justi ça. mas embora
cada uma de las te nha a s ua própria defini ção. na rea lidade a virtude é apenas
uma. e as aparentes virtudes di stintas não passam das dife re ntes moda lidades de
re lação que a virtude única tem com a realidade.
55
Lat. libido. termo que e m latim. tal co mo uolup1as. ou co mo ~õovii em
g rego. possui urna forte conotação nega tiva.
56
Lit. ·•má qu al id ade. mau ca rácte r. a usênc ia de va lor"·.
57
·Assim como de 11011 ··não·· e uol o ··quero ·· se fo,jou a fo rma Ferbal
nol o ··não quero··, assim 1ambém de ne ··nao " e qui cq uam ··atguma coisa·· se
fo, jou. com eliminação da silaba do meio. o <adjeclivo indec/inái·el> nequam
" 1110 11. de má qualidade". Do mesmo modo. assim como ao homem que achamos

não valer nada (esse 11 0 11 hi li) chamamos 11111 nihili ( = 11111 =ero). 1a111bé111 àquele
que nos parece não ler valor nenhum (que parece não ter nada lá dentro} chama·
mos 11111 nequam (Varrão. De Língua /a fina. X . 81 ).

11 62]
Não é, por isso, sem sentido de humor o comentári o X
que Dionísio de Heracleia faz, se bem me lembro. às pala-
vras com que Aquil es se lamenta no poema de Homero :
Sinto o cornçüo inchar-111e <no peito> de triste ra iva
Quando 111e l'ejo pri\'(/do da glória e da honra
/ <111erecidas-> 5 x.

Porve ntu ra estará no seu estado normal uma mão 19


inchada? E um outro qualquer membro inchado , inflamado,
porventura não estará doente? Do mes mo modo, se a
mente está inchada. intumesce nte, é porque está sofrendo
de alguma moléstia. Ora a mente do sábi o nunca sofre de
moléstia al guma, nunca está infl amada nem intumescente,
que é o estado em que se encontra uma mente dominada
pela ira: por conseguinte , o sábio nunca está irado. Se está
irado. estará afec tado de concupi scência, porque quem
está irado está também desejoso de que a pessoa por quem
se sente prejudi cado arda no maior tormento . Quem sente
semelhante desejo. caso o consiga reali zar sentirá necessa-
riamente uma enorme alegri a. Quer isto di zer que sente
satisfação com o mal alheio, sentimento este que nunca o
sábio ex perimentará: logo , o sábi o não está sujeito à ira .
Se, porém, o sábi o esti ver sujeito ao desgosto, então estará
também sujeito à ira: mas como não está suje ito à ira,
então não estará também sujeito ao desgosto.
Com efeito. se o sábi o fosse susceptíve l de ex pe- 20
ri mentar desgosto. também seri a susceptível de sentir

;s Tradução li vre de Ilíada. IX . 646-8: O 111e11 coraçcio está inchado de


cólera. quando me lemhro da ofensa que 111efe:: o A trida <Aga111é11111011> dia me
dos A1gi1·0s. 1ra1a11do-111e como se e11 ncio /Hls.1asse de 11111111iserá1·el e111igra111e ··.

11 63 1
"piedade" <por al guém> , de sentir .. in veja·· <de alguém> 59 .
(Não empreguei inuic/ia , que significa que alguém é objecto
de inveja; mas é poss ível derivar correctamente inuiclentia
do verbo inuic/ere, e assim escapar à ambiguidade de
inuidia. O verbo i1111iclere •'invejar"' foi cunhado para
exprimir a ideia de que alguém contempla com demasiada
in sistência a prosperidade de outrem. como ocorre na
tragédia Melanipr/'º :
Quem olha <co111 lanra insistência> a.flor dos meus
!filhos ?

Esta frase parece ser escrita em mau latim , mas Ácio


tem toda a razão: tal como se constrói uiclere .florem 61 ,
assim também se deveria co nstruir inuiclere flore m. O uso
impede-nos a nós de di ze r ass im , mas <Ácio>, como
poeta , seguiu a sua lei e preferiu usar uma construção mais
li vre .)
X 21 Sucede que o mesmo sujeito é susceptíve l. tanto de
sentir piedade, co mo de sentir inveja . porqu anto quem
sofre com a adversidade de outre m, també m pode sofrer
ao assisti r à prosperidade alheia. Foi este o caso de
Teofrasto , que , ao mes mo tempo que depl ora va a morte do

59
Neste passo . para exprimir a noção de .. in veja .. Cíce ro criou o neolog is-
mo i1111ide111ia . que . no entant o. não se impfü na lin guage m fi losófi ca. a fim de.
segundo ele pe nsava . ev itar a ambi guidade in ere nte ao termo inuidia. ambi gui-
dade que decorre de a pala vra poder se r usada e m se ntid o activo (= ter inveja de
al guém) e em se ntido pass ivo(= se r objecto de in vej a por parte de alguém).
60
Tragédia de Ácio. de qu e Cícero cita part e do v. 427 Warmin gton.
.. Ver uma fl or.. : uidere .. ve r.. . se ndo um ve rbo tran siti vo . co nstrói-se com
61

um compl e me nto e m acusa ti vo..f/ore111. Em co ntrapartida . inuidere. no sentido


de .. desejar mal a algué m... é acompanh ado por um co mpl emento em dati vo .j1o-
ri. O que Cícero lou va no verso de Ác io é o fa cto de este te r usado inuidere como
verbo transitil'o (tal como o ve rbo simpl es uidere) e . portanto. aco mpanhado de
um acu sati vo.

ll64J
seu antigo co ndi scípulo Calístenes, se se ntia angustiado
com a so rte de Alexandre, e por isso di zia qu e Calístenes
tinha sido companheiro de um ho me m imensamente pode-
roso e imen sa me nte afo rtun ado, mas que não sabia usar
com moderação a sua própri a felicidade6 2 . Tal como a pie-
dade é um desgos to causado pe la adversidade de alguém,
assim també m a in veja (i nuidentia ) é um desgos to ocasio-
nado pela prospe ridade de a lg ué m . Po r co nseg uinte, que m
for susceptíve l de sentir piedad e, també m será capaz de
sentir inveja; ora o sábi o não é susceptíve l de se ntir inveja .
logo , també m não é suseept íve l <de sentir> piedade. Se o
sábio costumasse se ntir desgosto <por alguma co isa> ,
costumaria també m sentir piedade. Logo, <sentir> desgosto
é incompatíve l co m o sábio .
É deste modo que a rg ume ntam os Es tó icos, e é assim 22
que eles tiram as suas co nc lu sões ri gorosa me nte fo rçadas.
Mas é agora altura ele ex por as suas ideias ele uma forma
mai s abrangente e pormenorizada , e mbora partindo elas
suas sentenças, baseadas num a fo rma ele raciocínio rigo-
roso e forte , quase diri a, v iril. Quanto aos no ssos amigos
Peripatéticos. <filósofos> e loque ntes, sabedo res e sé ri os
como nenhun s outros. não co nseguem convencer-me da
sua teori a do me io te rmo aplicada às perturbações e
doenças mentais 61 . Todo o mal, mesmo diminuto , é um

02
Ca lístene, (J70-J27 a. C.). discípu lo e fami liar de Ari>t ótel e,. acompa -
nhou Al exandre Mag no na, s ua, ex pcdii,:iíc,. 4ue narro u numa hi stória enco-
miá,tica hoje perdida . Sobre ele e,crcvcu Tcofra,to. ,eu co mpanheiro de e, tudm
no liceu de Ari,tótek,. um li vro (perdido ) ,ob o título Kcú.i,to0Év11ç i\ ;rr01
:1tvOotic "Calístene,. ou ace rca do de,l!o,10 (o u: do luto )"_
º' Cf. Ari,tót e le,. l 1ica o Xicó ,,11:co, 1106 b 18-27: Assim co11w o medo
e a audácia. o desejo. a ira e o co111pai.riio. d11111 modo gero/, o pro::.er e a do,;
1ao susceptÍl'eis de 11111111ai.1 e de 11111 111e1ws. e w11ho.1 0 .1 grall\ .1ao i11correc10.1:
q11a1110 ao tempo adequado. às circ1111.11ú11cim. à1 pes1oa. 00.1 1110/i\'0.1 e ao modo

11651
mal , e o que nós procuramos é q ue no sá bio não haja 0
mínimo resquíc io <de mal> . Assim como o corpo não está
são se tiver um a doença mes mo in s ig nificante. tam bém a
teoria do me io termo denota uma falta de sa nidade 64 . Mais
uma vez os nossos an tepassados fizeram muito bem ao
chamar aegritudo "(sentimento de) desgosto" aos (se nti -
mentos de) mal-estar, de inquietação , de angúst ia , por
com paração co m o que se passa com as doenças do
23 corpo 65 . Os Gregos usa m um termo mai s ou menos se me-
lh ante ao nosso (aegrirudo ) para desi g nar toda a es pécie
de perturbação da mente ; a toda e qua lquer agi tação
mental chamam e les ná0oç, ou seja, "doen ça, paixão".
A opção latin a é superior: de facto a aegritudo da mente
asseme lh a-se às doenças corporais 66, mas já não se asse-
me lham à aegritudo nem o desejo (libido), nem a alegria
desmesurada (immoderata /a etitia), que é uma forma de
prazer e m que a men te fica exa ltada e fora de si. Também
o medo não parece ser propriamente uma doença , e mbora
esteja muito próx imo da aegritudo; o q ue sucede é que
<ambos os termos>, aegrotatio co mo <doença> do corpo
e aegritudo como <doença> da mente con tê m e m si a
noção de "sofrimento" 67 . O que nós temos ele ave ri guar é a
orige m des te sofrime nto, isto é , qual a ca usa eficie nte que

como são adequadas. o meio 1er1110 é o melho1; e é ele que define a 1·ir111de. Da
111es111a maneira. no que se refere às acções 1e111os a considerar o excesso, o
defeito e o termo médio. A 1·in11de cli:: respeito tanto às paix6es co1110 às acções.
e nelas o ex cesso é errado , tal co1110 o defeito. ao passo que o termo médio é o
prefe,frel e correcto.
64
Cf. Cícero . Paradoxos. Ili : se co me ter urna falt a cons iste em ultrapassar
urna certa linha. desde que a ultrapasse mos é irre leva nte se ava nçamos muito ou
pouco. a falta já fo i cometida.
65
Lit. .. com os corpos doentes .. (co1pon1111 aegrorum ) .
66
Lit. ··com os corpos doente s .. (aegris corporihus) .
67
Lat . dolor ··ctor ..

r166J
ocasiona a aegritudo na mente , bem como a aegrotatio no
corpo . Os médi cos estão convictos de que , se descobrirem
a causa da doença , logo descobrirão a <respectiva> cura;
do mesmo modo , nós, descoberta que seja a causa da
aegritudo, acabaremos por encontrar a fo rma de a debe-
larmos .
A causa está , toda ela , na opinião68 , não apenas <a XI 24
causa> do "desgosto" (aegritudo) , mas também de todas
as restantes perturbações , quatro no que concerne ao
género, <subdividida cada uma> em várias es pécies 69 . Ora
como toda a perturbação consiste num mo vimento da
mente, ou sem participação da razão, ou ignorando a
razão , ou desobediente à razão, e como esse mov imento
é provocado pela opinião acerca do bem e acerca do mal
em duas direcções opostas , obtém-se assim um esq uema
equilibrado das quatro perturbações. Efectivamente, duas
derivam da opinião acerca do bem; uma destas , o " prazer
delirante" (uolup ta s gestiens), isto é, uma forma desmes u-
rada de "a legria" (Laetitia ), decorre da opinião que consi-
dera presente um determinado bem; a outra , a "avidez"
(cupiditas), que também pode expressar-se correctamente
pelo termo "desejo" (libido ), consiste num apetite exage-
rado , e rebelde à razão , de algo que se considera um gra nde
bem . Temos aq ui , portanto , doi s géneros de <perturbações 25
mentai s> - " prazer delirante" e "desejo" - gerados pela
opini ão acerca do bem. Os do is restantes, o " medo" e o
"desgosto", <são gerados pela opinião acerca> do mal.

68
A opini ão. e m g rego 8óE,a. como re prese nt ação falsa. o u. pe lo menos. du -
vidosa da rea lidade. opõe -se à c iên c ia. e m grego óncn-~µq . como conheci mento
efecti vo . fidedig no. da mes ma.
69
Qu ase com a mesma ex pressão. C ícero re fere -se aos quatro géne ros de
penurbações mentai s no Defini bus. 111 . 45 .

11671
O " medo" (m etus) co nsiste na opinião de que um grande
mal impende sobre nós; o " desgosto" (aeg ritudo) consiste
na o pinião de que ex iste presente mente um grande mal , ou
me lhor, na o pini ão se mpre actua l de um seme lhante mal ,
que se jul gue ex ig ir esse se ntime nto de ang ústi a, isto é,
que faz co m que que m está desgostoso entenda q ue é seu
dever estar mes mo desgostoso. A estas fo rmas de perturba-
ção mental , que a estupidez hum ana introdu z e exc ita na
sua vida co mo se de Fúri as se tratasse, há qu e res istir com
todas as forças, há q ue co mbatê- las po r todos os meios,
se qui sermos desfrutar e m paz e tranquilid ade a po rção de
vida que nos co uber.
As outras paixões fi carão para o utra altu ra 70 . Agora
vamos faze r o possível por nos Iibertarmos do " desgosto"
(aegritudo) . Este se rá o nosso objec ti vo, um a vez que tu
di sseste ser tua opini ão que o sábio não é im un e a este
sentimento, o que eu fo rte me nte contesto. Trata-se de um
sentimento terrível , infe li z, detestáve l, de a lgo a qu e deve-
mos envidar todos os esfo rços para escapar, co m as velas
ao ve nto, por ass im di zer, e à fo rça de re mos.
XII 26 Que te parece a ti este célebre ...
. . .neto de Tântalo,.filho daquele Pélops que um dia
[do seu sogro ,
O rei Enómao , a fi lha Hipodamia raptou para
[a desposa r ...?

Pois bem , e le 71 era bi sneto de Júpiter. Co mo pode sentir-se


tão mi seráve l, tão des morali zado? A po nto de di zer:

7
° Constituirão a maté ria do li vro IV.
71
··El e ... a personagem que pronunc ia estes versos (c f. nota seguinte)
é Tiestes. filho de Pé lo ps. neto de T ântalo e bisneto de Júpiter.

[ 168]
Não vos aproximeis de mim . estrangeiros ,./icai onde estais,
Não vá o meu cuntcígio , a minha sombra ser.funesta
[a gente nobre,
Tamanha é a violência do crime oculto no meu corpo! 72

Então tu , Tiestes, condenas- te a ti mesmo, queres privar-te


da luz dev ido à vio lência de um crime que não cometeste?
E não ac has tam bém este fi lho do Sol 73 indigno da luz
emitida pelo seu pai?
Tenho os olhos encovados. o corpo quase se extingue
[de magro ,
A corrente de lágrimas consumiu-me as.faces exangues ,
A sujidade cobre-me o rosto , a barba esquálida , eriçada
E por cortar escurece -111e, caída sobre o peito imundo74 .

Os teus males, Eetes , estúpido como poucos, fos te tu


mesmo que os atraíste sobre ti, não faz iam parte daq ueles
que o acaso te rese rvara, ocorreram quando a exc itação da
tua mente, com a hab itu ação à dor, já estava a acalmar (o
desgosto, como te ex pl icarei , consiste na crença em um
mal recente75) ; o que te entristece, <Eetes>, são as saudades
do teu trono, não as da tua fi lha76 • Esta. ali ás, tu odiava- la77 ,
e poss ivelmente com razão . O que tu não conseg ui as

12
Éni o . Tiestes. 356-60 Wa rmin gton . = " crime oc ulto no co rpo (de Tie s-
tes)"· são os restos do s filh os que e le co me u. se m sabe r o que esta va a fa ze r.
71
Trata-se de Eetes. filh o do So l. re i d a Có lquida . e pai da fam osa fe iti ce ira
Medeia. Cf. Eurípide s . ,\1/edeia. 132 1-2.
74
Pac úvio. Medo. vv. 253- 6 Warmin gto n . Estes ve rsos teriam s ido . seg un -
do Cícero . pronunc iado s po r Ee tes a pós te r s ido ex pul so ci o trono pe lo irmão
Perses.
75
Este parêntese diri g ido ao inte rl oc ut o r inte rro mpe a apóstrofe de Cíce ro
à personage m de Eetes .
76
Segundo o mit o. Mede ia . a fi lha de Ee tes. fugi ra da Có lqu ida na co mpa-
nhi a de Jasão . comandante dos Arno nauta s.
77
Por ter ajudado Jasão a rm:bar o ve lo de o uro e te r fu g ido com e le para a
Grécia .

[ 1691
suportar era a perda do tro no. Con sumir-se de tri steza por
já não poder reinar sobre ho me ns li vres é uma forma
impude nte de desgosto .
27 Dionísio , tirano de Sirac usa, quando ex pul so do
trono 78 , foi viver para Corinto , onde dava lições a crianças,
a tal ponto lhe c usta va presc indir do poder • E que atitude
79

supera e m impudê nc ia a de Tarquínio, ao declarar guerra


<aos Romanos> po rque não hav iam suportado a sua so-
berba80? Diz-se que ele, ao ver que não conseguia rec uperar
o poder mes mo com a ajuda mi litar de Veios e dos povos
Latinos, retirou-se para Cumas, cidade o nde acabou por
morrer, consumido pe la ve lhice e pe lo desgosto 81 •
Xlll Pois be m , porventura pensas que o sábio é susceptíve l
de se de ixar dominar pelo desgosto , o u seja, pe la mi séria?
Se toda a pe rturbação mental é uma mi sé ri a, o desgosto

78
Em 344 a. C. Trata-se de Dionísio 11. que exerce u o poder em Siracusa
como sucessor de seu pai. Di onís io 1. desde 367 a. C. Desa possado do poderem
357 . vo lt ou ao tro no em 346 . mas foi defin it ivamente destronado em 344. indo
ent ão como ex il ado para Corinto, onde levou uma vi da obsc ura.
79
Cícero exp lica a opção de D ionísio pela profissão de mestre-escola por
esta se r um cert o exercício de poder sobre as cri anças (o desejo de parler en
maírre. co mo tradu z J. Humben ). Sobre a forma co mo Dion ísio em pregava
o tempo no ex íli o corriam muitas ve rsões históricas. ou pseudo-históricas
(Teopompo. Timeu. etc.). A propósi to Gigon obse rva. peninentemente. que
'Cicero ha1 so s1ark gekiirz1 1as ve rsões dos hi storiadores I da/J 1110 11 nich1siel11.
ilmiefern seine Td1igkei1 ais ypaµµarnÕLÕáoKaÀ.oc; ein Ausdruck unangebrachrer
aegri1udo 11·ar · --Cícero resumiu tão drasti ca mente essas versões que não se per-
cebe em que medida a sua acti vidade como ·mestre-esco la' pode ser interpretada
como uma form a desca bida de desgosto .. (Gigon. 1998. p . 5 1O).
80
Tarquín io . o Soberbo. sét imo e último rei de Roma. expul so do 1rono
pe la revolução. encabeçada por Júnio Bruto. que implantou o reg ime repub li -
cano em 509 a. C.
81
·F oram em ào eleilos cônsules A°pio Cláudio e Públio Sen•ilio 1509
a. C. I. Es1e ano é digno de regislo por causa do anúncio da morre de Tarquínio.
Es1e faleceu em Cumas. onde se rinha refi,giado ) 111110 do rirano Ariswdemo,
depois do ji-acasso mi/i1ar dos Larinos ·· !Tito Lívio. Ab Vrbe condira. li. 21. 51 .

[170]
é uma <verd adeira> tortu ra . O desejo é aco mpanhado
de ardo1-ll 1 , a alegri a deli rante de inconsc iência 83 , o medo de
depressão 84 , mas o desgosto tem conseq uências ainda
piores: consumi ção , tormento , afl ição, as pecto repul sivo;
<o desgosto> lacera a mente , devora-a e destrói-a por
completo. A menos que dele nos libertemos, que de nós o
afastemos definitivamente, nunca fica remos ao abrigo da
infelicidade .
Uma coisa é óbvia: o desgosto atin ge- nos quando 28
criamos a ideia de que um mal muito fo rte se aproxima de
nós de uma fo rm a esmagadora. Para Epicuro a opinião do
mal tem como consequência natural o desgosto , do que
resulta que, qu ando se pensa num mal muito grave e se
julga que ele nos acontece u, de imediato sentimos em nós
o desgosto . Os C irenaicos 8 ) entendem que nem todo o mal
é causador de desgosto , mas somente o mal ines perado e
imprevisto. Esta circunstânc ia, de fac to, contribui bastante
para o agrava mento do desgosto , dado que todos os mal es
imprevistos parecem ser de maior gravidade . Por esta
razão são muito apreciados estes versos:
Quando os gerei. sahia que os meusfilho.~· eram morrais,
/ e aceitei essa condição.

81
"Amor ardente". dirá Camões.
83
Em lat. /e11itas. lit. -- 1ige ireLa ... mas também ··exc itação. inconstância .
frivolidad e··.
8-l Em lat. hwnilitas, que também pode signifi ca r -- humilhação. degradação.
avil tamen to··.
85
A esco la fi losófica. cuja fundação se atribu i a Ari stipo de Cirene. aproxi -
ma-se do Ep icuri smo au colocar o conheci men to na dependênc ia das se nsações.
e considerar o praze r como o bem supremo. mas di ve rge de Epic uro em que
apenas dá va lor ao prazer efec ti vo e imedi ato. enquanto este va loriza também a
recordação que permanece em nós ele prazeres pa;sados .

l 17 11
Mais ainda . quando os em •iei a Tróia em def esa da honra
[da Grécia
Sabia que os mandava para uma guerra mortífera , não
lfJara urna f esta 86 .

XIV 29 De fac to , meditar com an tec ipação nos males que


hão-de vir a li via o se u impacto quando chegam , uma vez
que a sua chegada já era esperada de há muito . Por isso
também são apreciadas as palavras de Tese u <na tragédia
de> Eurípides , que , como muitas vezes faço , vo u traduzir
para latim :
Eu, que me lembro de as ter ouvido a um homem sabedor,
Preparava-me mentalmente para as desgraças futuras:
Uma mor/e cruel. uma la111e11rávelfuga para o exílio ,
E sempre meditava em algum grande mal possível,
Para que, se porventura algo de terrível me sucedesse,
Não me encontrasse desprevenido e me dilacera sse
la mente87 .
30 O que Teseu di z ter o uvido a um ho me m sabedor
correspo nde ao que te ria sido o caso do pró prio E urípides.
po is este tinha sido di scípulo de Anaxágoras, de quem se
di z que , ao ser- lhe com uni cada a morte do fi lho , co men-
tou: Eu sabia bem que tinha gerado um morta/! 88 Destas
palavras conclui-se que semelh a ntes casos são so bretudo

86
Lit. ··para um banque te··. V. Éni o . Té/amon. vv. 320-22 Warmington.
C f. infra 58 . e m que são c itadas as pa lav ras in ic ia is desta fa la e atribuídas
expressamente a Té la mon . Este e ra re i de Sa la min a. e pa i ele Ájax e Teucro.
Ambos parti c iparam na G uerra ele Tró ia. no decorre r da q ua l Ájax se suicidou.
Quando Teuc ro regressou a Sal a mina o pa i ex pu lso u-o. por não te r sido capaz de
ev itar a morte cio irmão.
87
Eu rípides . fr. 964 N _, (tragédi a desconh ec ida. ta lvez Teseu :').
88
Este d ito é també m re fe rido por Di óge nes Laé rc io. l i. 13 . que comenta:
"Há autores que atrib uem estas palavras a Só/011, e outros a Xenofo111e"

11 72 ]
penosos pa ra quem não os prev ia. Não há, porta nto , dúvi -
das de que tudo quanto se ju lga ser um ma l é muito mai s
grave se for ines perado . Ai nd a que não sej a esta a úni ca
circun stânc ia que to rna um desgosto es pecialme nte pro-
fundo , mes mo assi m , dada a poss ibilidade de a previ são e
a preparação me nta l contrib uírem muito pa ra diminuir o
sofrimento, deve mos se mpre meditar sobre as contin gên-
cias da vida humana . isto consiste, sem a mínima dú vida,
aquela exce le nte e di vin a sabedo ri a qu e aprec ia e m
profundidade e a nal isa e m todos os as pectos a condi ção
humana, que não se es panta de nad a quanto acontece, e
que sabe bem co mo, antes que aconteça , nada há que não
possa vir a acontecer.
Todo o homem. portanto , quando está sumamente f eli: ,
[sobretudo
Então deve pensar de que modo pode fa:erJi-en te à maior
/aflição .
Quando regressa a casa, pense sempre nos perigos e
[aciden tes <possíveis>:
Os disparates do .filho. a morte da esposa, a doença dafi/ha ,
São desgraças comuns, nada disto se pode di:er uma
/novidade,
E quanto de bom nos suceda . consideremo-lo proveitosox 9
.

Pois be m , se Te rê nc io9(1 so ube sinteti zar tão hab ilmen te XV31


estes prece itos Alosóficos, nós, <filósofos>, que somos as
fo ntes de o nde e les foram beb idos, não os e nun c iaremos
de urna forma ma is aprofundada e não os te re mos interio-
rizados de um modo mais firme e co nstante? Está aqui a

89
Terêncio. Formiào. 241 -246 (co m ligeiras variantes).
90
Públi o Terêncio Africano (séc. 11 a.-C.). comedi óg rafo latino. autor de
seis coméd ias.

11 73 J
causa daquele humor se mpre imperturbável que Xantipa
dizia estar habituada a ver no rosto do marido , Sócrates:
via-o se mpre com o mesmo ar quer quando saía de casa,
quer quando regressava. E não era decerto com um ar se-
me lhante ao do velho M . Crasso, que, seg un do Lucílio ,
apenas se riu uma vez em toda a vida 91 , mas sim um ar
cheio de calma e se re nid ade . Pe lo menos ass im consta.
E mantinha sempre esse mesmo ar, com toda a razão, porque
na sua me nte, que é onde se for ma o aspecto do rosto , não
oco rria qualquer transformação. Por isso aprovo a postura
dos C ire naicos, que utilizam como arma contra todas os
even tuai s go lpes do acaso uma con tín ua meditação prévia
sobre a possibilidade da sua oco rrê nc ia, o que diminui o
impacto no momen to em q ue oco rrem. Co ncordo com eles
também quando dizem que o ma l deriva da opinião,
e não da natureza , po is, se ele es ti vesse na natureza das
co isas, como é que a meditação prévia o tornaria mais
suportável?
32 Mas sobre esta matéria podemos ir a inda mais longe
se prime iro anali sa rmos a posição de Epic uro : para este.
são necessariame nte presas do desgosto todos os que se
jul ga m vítim as de a lgum mal9 ~ , quer este seja prev isto e
aguardado, quer cons ista e m alguma ocorrê nc ia crónica.

91
Marco Li cín io C rasso. Pretor e m 126 a . C .. avô do companheiro de
Pompe io e César no "primei ro triun virato". O se u no me ficou na hi stória pela
circunstância de só ter rid o uma vez na vida . conforme C ícero já recordara em
De fi11ib11s. V. 92. Este traço de carác ter mereceu-lhe o epíteto de áyO..acn oç
"que nunca ri". pormeno r re ferido po r Lucíli o . 1300 Marx (= 13 16 Krenkel ). e.
além de Cícero. també m po r Plíni o-o- Ve lh o. N. H. V II . 79 e Amiano Marcelino.
XXV I. 9. 11 .
9
' Isto é. todos os que pen sa m ser afec tados por um mal real. efecrivo. e não
apenas pela oco rrê ncia de alguma situação que se lhes afigure ser 11111 mal. mas
que não passa de um "mal de o pini ão".

11 74]
Um mal crónico não é menor por isso , nem é menos grave
se for previamente pensado; é estúpido, ali ás, meditar
sobre males futu ros que podem, até, nunca suceder: todo
0 mal é bastante detestáve l quando ocorrer; além di sso ,
alguém estar se mpre a pensar que pode aco ntecer alguma
adversidade, já constitu i só por si um mal interminável; se
ela não se verificar, cair-se-á sem qualquer prove ito numa
infelicidade vo luntári a; em suma, ou por o sofrermos, ou
por estarmos sempre a pensar no mal, a angústia é perpétua .
<Para Epicuro> só há duas maneiras de ali viar o desgosto: 33
uma é cessarmos de pensar sempre na desgraça , outra é dar
toda a atenção à contemplação do prazer. Entende ainda
que é possível a mente obedecer à razão , e seguir o cami -
nho que esta indicar. Ora a razão proíbe- nos de pensarmos
sempre na desgraça, afasta- nos das meditações angus-
tiantes, enfraquece o nosso olhar para contemplar as misé-
rias e, quando toca a reti ra r <do contacto com a desgraça> ,
impele-nos , pelo contrário , e incita-nos a concentrar o nosso
esforço mental no exame dos vários prazeres que, segundo
Epicuro , preenchem a vida do sábi o, ou através da recor-
dação dos já passados, ou graças à esperança dos que hão-de
vir. Ex pusemos estes pontos à nossa maneira habitual, os
Epicuri stas ex pô- los-ão ao seu estil o9 ' . Mas anali semos as
suas ideias, sem cuidarmos ago ra do seu esti lo.
Antes de mais eles faze m ma l em reprovar a medita- XVI 34
ção prévia sobre o que o futuro nos pode trazer. Nada
há que tanto redu za e afaste de nós o desgosto como a
meditação contínua, ao longo da vida, sobre a certeza de

93
Cícero criti ca a po uca preoc upação que os ep icu ri stas mostram em re la-
ção à forma lit erária co mo ex põe m as s uas ide ias . num est ilo. seg undo e le . po uco
cuidado e sem prec isão term ino lóg ica .

[J75]
que nada ex iste que seja impossíve l de aco ntece r-nos, ou
como a meditação sob re a co nd ição hum ana, sobre a lei da
vida e a obrigação de lhe obedece r: <a nossa co ndi ção>
não nos obriga a ser pe rpétu os sofredores , antes q uer que
nun ca o sej amos. Que m refl ec tir sobre a natureza das
coisas, sobre as mud anças pró pri as da vi da, sob re a impo-
tê ncia do gé nero huma no , não se to rn a um desgraçado por
pe nsar nestes po ntos , pe lo co ntrár io, está a usufruir ao
máx imo dos rec ursos da sabedo ri a. Obte rá ass im doi s
res ultados : po r um lado, ao anali sar as vicissi tu des próprias
da vida está a desempe nh ar a fu nção própria da fi losofia;
po r outro, está a defe nder-se da ad ve rs idade graças a uma
tríplice consolação: pri me iro , po rque de há mu ito tem
pe nsado e m tudo qu anto é susce ptíve l de acontecer94 , e
este ún ico pe nsa me nto é aqu e le q ue, mais do q ue qualquer
out ro, e nfraquece e apaga todas as desgraças; seg undo,
porqu e co mpree nde que a co ndição huma na deve ser
suportada po r nós como home ns que somos; te rce iro, por-
que se dá co nta de que não há ne nhum outro mal senão a
culpa95 , e que não ex iste c ulpa qu a nd o o qu e sucede não
é imputáve l ao home m.

9
-1 Tradução da li ção dos mss. pri11111m quod posse accidere diu cogitaue-

rit. text o adoptado por Fohle n- HuI11be rt . Gigon e Zucco li Clerici (e J. E. King.
que escreve cogitauit em vez de cogitauerit ). Pohl enz propõe a e lllencla primum
quod <nihil ei accidit nisi quocl> posse accidere cliu cogitauerit "prillleiro. por-
que ele h,í muito telll pen sado <qu e nada lhe aco nt ece senão> aquilo que pode
acontecer" .
95
"Culpa" : acção contrária às normas ela é tica e ela I11oral. Seg undo os Es-
tóicos . só ex iste ulll I11a! verdadeiro. e esse é o I11a! de natureza éti ca: nihi/ esse
ma/11111, quod twpe 11011 si! "nenhulll Illal exi ste se não aq uel e que for de natureza
moral"' (Cíce ro . Definibus. Il i. 29: cf. T D. li . 29: V. 27). v. ainda S1oici a111ichi
p. 1006 (= S. V F. Ili . 79): r1ç Ô.<ppMÚVI/Ç. ~V póv17v <pa.aiv cí, ,a., KO.Kàv oi a;rà
njç I'roàç ... . ela in sip iência. que. seg undo afirmam os Estó icos. é o ún ico mal
que existe"

[ 176]
A reevocação <dos prazeres> a que <Epicuro> recorre 35
para nos afastar da contemplação dos males não faz
qualquer sentido. Quando atormentados por circunstâncias
que , em nossa opinião, são males, não está na nossa mão
dissimulá- las ou esquecê- las: dilaceram-nos, oprimem-nos,
espicaçam-nos, queimam-nos, não nos deixam respirar, e
tu , <Epicuro>, di zes- nos que esqueçamos, o que é antina-
tural , tu, que nos privas de recorrer ao auxílio que a natu-
reza nos oferece: a habituação à dor? É um remédio lento ,
sem dú vida, mas poderoso, este que nos proporciona a
contínua passage m do tempo . Tu mandas- me pensar no
bem e esq uecer o mal. Teriam peso as tuas palavras, seriam
dignas de um grande fil ósofo, se porventura considerasses
como "bens" os mai s di gnos do homem.
Se fosse um Pitágoras, um Sócrates ou um Platão que X\11136
me di ssesse:
"Porque estás abatido ? Porque estás triste? Porque
sucumbes e te dás por vencido pela Fortuna ? Esta poderá,
talvez., awrmentar-te, torturar-te, mas não conseguiu , com
certe-::,a, roubar-te asforças. As virtudes dispõem de grande
energia : desperta -as, se por acaso as sentes adormecidas.
A primeira a vir em teu auxílio será a coragem; esta inspi-
rará em ti um tal ânimo que te fará desprewr e considerar
como sem valor todas as vicissitudes que podem deparar-se
ao homem. Seguir-se-á a temperança, equivalente à mo-
deração, à qual há pouco chamei ' frugalidade" 96, que te
não deixará fazer nada de vil e indigno. Ora o que há de
mais indigno e vil do que um homem efeminado? Nada
disto te consentirá também a justiça, virtude que parece
não ter grande cabimento neste ponto ; ela dir-te-á , no

% V. supra .** 16- 17.

[ 1771
entanto , que estás a ser duplamente injusto , por um lado
por desejares um bem alheio , uma vez que ambicionas a
condição dos deuses imortais, quando por natureza és
mortal, por outro, porque levas a mal seres obrigado a
restituir um bem que te foi dado apenas em comodato .
37 E que responderás à prudência , quando esta te ensinar
que a virtude se basta a si mesma , para que possas ter uma
vida , não apenas digna , mas também feli z? Se a virtude
estiver dependente de alguma ligação ao exterior em
lugar de ter em si os seus pontos de origem e de regresso,
e de conter em si tudo quanto necessita e não carecer de
ir buscar fo ra o que quer que seja , não percebo por que
razão a exaltamos tanto por pala vras, e a tantas acções
recorremos para tentar obtê-la! "
Se é co m estes bens que me alicias, E picuro , obede-
ço-te, sigo-te, fa re i de ti o meu gui a , esqueço- me até dos
males, co mo tu mandas , e tanto mai s facilmente quanto
nem sequer penso que os deva considera r co mo tal . Mas tu
desv ias os meu s pensamentos para os prazeres . Quais?
Imagino que os prazeres do corpo , o u os que em fun ção do
corpo são recordados, ou esperançosamente imag inados.
Há alguma alternativa? Esto u a inte rpretar be m o teu pen-
samento? O s <Epicuri stas > cos tumam dizer que nós não
38 entendemos o que di z E picuro . Mas é isto mes mo o que ele
diz . E era também isto o que afirmava co m toda a vivaci-
dade e e m voz bem alta o velho Zenão97 , de resto o mais
arguto de todos eles , quando fui seu di scípulo em Atenas:
que é feliz o homem que desfruta dos prazeres presentes e

97
Ze não de Sídon (séc. 11-1 a. C.). ep icuri sta. um dos o ito autores de nome
•·zenão" enu merados por Di ógenes Laérc io e m VII , 35 (cf. X. 25). Cícero fo i seu
alun o em Atenas em 79-77 ( De fin ibus. 1. 16).

[] 78]
confia _em que deles desfrutará no futuro ao lo ngo de toda
a vida , ou, pe lo menos, durante grande parte de la se m
intervenção da dor; que , se esta interviesse , caso fosse de
grande intensidade , seria breve, caso fosse mai s prolongada ,
causaria mai s praze r do que ma l-estar98 ; qu e quem assim
pensar será fe li z, sob retudo que m se co nte nta co m os be ns
de que gozou até e ntão, e não rece ia ne m a morte ne m os
deuses 99 . Aqui te ns as carac te rísti cas da fe licidade segundo
Epicuro, ex pressas na linguagem usada por Zenão de
modo a não pode r ser refutado .
Pois bem! É possível que pensar numa perspectiva de XVIII 39
vida semelhante seria capaz de conso lar Tiestes, ou Eetes ,
de quem há pouco falei, ou Télamon , <que foi> expul so da
pátria. exilado, mi serável, c uja contemplação dava azo a
palavras como estas:
Este homem é Téla111011 , rnja.fama ainda há pouco o
/ elevava ao céu ,
A quem os Gregos admiral'am e não conseguiam olhar
[ nos olhos ? 100

Sim , se a esta perso nage m , co mo ela di z <na peça>, 40


o ânimo faltou ao mesmo tempo que a sorte 1º1 ,

98
V. Epi curo . Kúp tm oóé;m ·•Máx imas soberanas.. . IV.
99
Não receia a morte porque enqu anto vivos a morte nada tem a ver con-
nosco. e qu ando mortos já não podemos se ntir nada: e não receia os deuses
porque não acredita na imortalidade el a alma. pelo que não teme ser objecto ele
algum julgamento ou casti go por parte deles.
100
Tragédi a não iden ti fi cada de autor desconhec ido. vv 60-61 Wannington.
li. p. 610 .
101
Verso da mesma tragédi a referida na n. precedente (co nstitui o verso 62
do frag. citado).

l l 79J
deverá ir soli citar conso lação aos graves fi lósofos da
Antiguidade , e não a estes pensadores do prazer 102 • O que
entendem eles por 'abundância de bens'? Imag inemos que
o maior bem consiste na ausência da dor (embora a este
estado não se chame ·'prazer" , mas não é prec iso atentar
agora em todos os pormenores! ). será esta ausência atrac-
ti vo bastante para pormos fi m à angústi a? Imag inemos
que o mai or dos males é a dor: porve ntu ra quem não esti-
ve r neste estado de ausência de mal, desfrutará só por isso
41 do sumo bem? Porquê essa hes itação, Epi curo , porque não
confessar que tanto nós co mo tu chamamos ' prazer' à
mesma coi sa, como tu próprio admites quando esqueces
a vergonha? Estas palavras, são ou não são as tuas? No
li vro em que compendi aste todas as tuas ideias <sobre esta
matéria> (e vou fa zer, também aqui , de tradutor, não vá
alguém imaginar que fa lsifi co o teu pensa mento), nesse
li vro 1º' , di zia , podemos encontrar estas palavras tuas:
"Não consigo imaginar o que se deva entender por
"bem" se deste conceito excluirmos os pra-;:,eres que senti-
mos através do sentido do gosto. se excluirmos os prazeres
resultantes das relações sexuais, se excluirmos o prazer
da música que apreendemos pelo ouvido , se excluirmos o
pra-;:,er que nos proporciona, através da vista , a contem-
plação das coisas belas, numa palavra , todos os outros
prazeres da totalidade do nosso ser, seja qual fo r o sentido
em acção . Não é correcto afirmar que só os pra-;:,eres do

102
Isto é. os Epicuristas.
103
Trata-se da o bra íl Epi , éÀ.ouç "So bre o fim. ou o máx imo grau. ou a defi-
nição'' (do be m e do mal). Sob re a difi c uldade de tradu zi r o conceit o de "fim..
por meio de um termo q ue contenha todas as sua s conotações . v. o que di ssemos
na " introdução" ao Defini bus (v. Cícero , Texros filosóficos. 20 12. pp . XLV\11 ss.).
Sobre esta obra de Epicuro v. a referê nc ia. acompa nhada de um fragmento. em
Diógenes Laérc io . X. 6.

f 180]
espírito podem incluir-se entre os hens. Onde eu reconheço
a felicidade é na esperança que a mente sente de possuir
todos os bens que acabei de enumerar sem que no seu
go:.o tenha lugar a dor." É isto o que ele di z, são estas as 42
suas palavras : qualquer pessoa é capaz de concluir daqui o
que é que Epic uro entende por ' prazer' .
Um pouco adiante esc reve:
"Muitas ve-::,es inquiri junto dos chamados sábios o
que incluíam eles no conjunto dos "bens " se excluíssem os
pra:.eres dos sentidos , caso não pretendessem limitar-se a
di:er palavras sem sentido: não consegui obter resposta.
Quando querem fa-::,er estadão de virtude e de sapiência
não são capa:.es de indicar outra via senão aquela que
condu:. à obtenção dos pra-::,eres por mim enumerados. "
O que vem a seguir mantém-se na mes ma ordem de
ideias; o li vro inteiro. cujo objecti vo consiste em ex por o
conceito de 'supremo bem·. está repl eto de palavras e de
pensamentos simil ares. Será este tipo de vida que reco- 43
mendarás ao acima citado Télamon, para o consolares da
sua tri steza? E se vires pl eno de an gústia algum dos teus
seguidores dar-lhe-ás <para o conso lar> uma esquisi ta
iguaria 10-1 em lu gar de um tex to de al gum di sc ípulo de
Sócrates? Exortá-lo-ás antes a esc utar a mú sica de um
órgão hidráulico 1º5 do que a ouvir ler Pl atão? Mostrar-lhe-ás

io.i o 1ex10. o 4ue ,e lê efect i,a 111cn1e é ucip<'11.1ere111 / ... } &,bis. lit. ··ctar-
·lhe-ás um e,turjão ... E,te peixe era mui to con,idc rado en tre os Roman os. co mo
iguaria di gna de um go11m1<'l. Ma, a ofe rta do e,lurjão rep rese nta um qualquer
grosseiro prazer sensori al. em co nt rapm, i~·ão a um texto ti losó ti co de alguma
escola de origem soc ráti ca.
º'
1
lnstn;mento mu , ica l usado de sde o séc . 11 a. C. V. a desc ri ção deste ins-
tru mento em Vitrú vio. D e a rchi1ec111rn. X. cap. 8 (Loeb). V. o artigo ·órgão hi -
drául ico· no Dicionário d r! Al,í1·ica (/111.1/rado). ele Tomá, Borba/ Fern ando Lopes
Graça. Lisboa. 1958.

11 8 1J
um variegado arranJo floral ? Chegar-lhe-ás o ramo ao
nariz? Queimarás pe1fumes e mandá-los-ás c ingir a cabeça
com uma coroa de rosas e outras flore s? E se lhe facultares
ainda aq ue le outro prazer. .. 106 , então, não há dúvida de
XIX 44 que toda a angústia será esq uecida. Esta a receita completa
proposta por Epicuro, a menos que pretenda eli minar do
seu li vro aqueles passos que acabei de traduzir li teralmente;
mas o melhor seria deitar fora todo o livro , que não passa
de um catálogo de prazeres! Ora o que nós devemos in ves-
ti gar é o modo de aliviar o desgosto de a lguém que fale em
termos seme lhantes a estes:
Por certo , o que me falta agora é a sorte, mais que
[a genealogia.
Tive em tempos um reino. Assim podes perceber
De que bens , de que alto estado a minha sorte acabou
f por 10mbar 101 .

Vamos dar de beber a este homem um cálice de vinho


doce 108 , ou qu a lquer o utra bebida do mesmo género, para
ver se e le pára de chorar? Mas temos aqui o utra fig ura do
mesmo poeta :
Da mais alta posição <caí>, Heitor, privada do teu
[auxílio 1°9 .

106
O prazer não especificado aqui por Cícero é. obvia men te. o prazer
sex ual.
101
Énio . Tiestes, 363-5 Warmington .
108
Lit ., o mulsum, o no me da bebida que ocorre no texto. era um mistura de
vinho com mel.
109
Énio. Andrómaca. 94 Warm ington .

[ 182)
Temos de a ajudar, poi s ela bem precisa de aj ud a:
A quem pedir, de quem conseguir socorro. em que ajuda
confiar contra o exílio , contra o desterro 7
Fiquei sem acrópole , sem cidade. Para onde ir7
[Onde refugiar-me 7
Nem os altares ancestrais restam na pátria . Tudo está
[destruído e caído por terra.
Os templos consumidos pelo fo go, os altos muros
f incendiados
E derrubados, as madeiras retorcidas ... 110

Conheceis o resto, sobretudo os versos seg uintes:


Ó pai, ó pátria , ó palácio de Príamo,
Edifício encerrado por rangentes portões!
Vi-te quando ainda ostenta vas a riqueza asiática,
Com os teus tectos ornados de caixotões,
E uma ré[(ia decoração de ouro e marfim!' 11

Sublime poeta. ainda que des prezado por estes admi- 45


radores de E ufórion 11 2 ! Sabia bem que todos os aconteci -
mentos súbitos e inesperados tê m um impacto maior.
Assim , depoi s de hiperbolizar a referência às riquezas
régias , qu e parec iam de stinadas a durar para sempre, o que
acrescenta ele?
Tudo isto vi eu pasto das chamas ,
A Príamo <vi> morrer l'iolenta morte
E manchada de san[(ue a ara de Júpiter 11 ' .

110
Énio . idem. 95 - 100.
111
Énio. idem. 101 - 105.
' Eufór ion de Cá lcis . poe ta g rego da escola alexandrina (séc. 111 a. C.).
11

que Cícero elege aqui como representante dos poetas romanos imitadores de ssa
escola. entre os quais se di sting ue C. Valé ri o Catul o. conte mporâ neo do orador.
- O demonstrati vo estes (admirado res) te m uma conotação fo rte me nte negati va.
111
Énio. ibidem. 106-8.

r183 J
46 Grandiosos versos! Tudo neles é s inistro : o te ma, as
palavras, os ritmos. Mas libertemos <Andrómaca> dos
seus desgostos! Como ? Deitando-a <talvez> num co lchão
de pe nas, manda ndo vir uma cantora 114 , queimando perfu-
mes, dando-lhe a beber qualquer co isa doce 11 ' , esco lhendo
para ela algo qu e co me r? Tudo isto são bens apropriados
para afastar os mai s profundos desgostos , não é verdade?
Ainda há pouco tu dizias não co nceberes o utros be ns para
al é m destes ! Eu estaria de acordo co m Epicuro que é
apropriado afastar o espíri to da tri steza e levá-lo a pensar
antes e m coisas boas, se fosse possível chegarmos a acordo
sobre o que seja o " bem'' .
XX Dir-me-á alguém: "Será caso que ru imagines que era
em bens destes que Epicuro pensava , achas que as suas
ideias estão confinadas ao pra::,er?" De modo nenhum ,
tenho co nsc iê ncia de qu e muito do que e le di z é sério e
elevado. O que es tá e m ca usa, portan to , não são os seus
costumes. mas sim a sua agudeza de es pírito , como tenho
dito muitas vezes . Conquanto di ga des preza r aqueles tipos
de prazer que acima refe riu 116 , e u não esq ueço como ele
concebe o supremo bem. Sim , porque e le não se limüou a
empregar a palavra ''prazer'', ex plicou muito bem o que
queria dizer: ''O sabor, as relações sexuais, os jogos, a
música, as formas belas que dão satisfação aos olhos! "
Não estou a inventar, nem a me ntir, po is não ? Só peço que

''J Lat.psa/1ria, lit. .. tocadora de cítara ...


115
Tradução baseada na leitura hed1-c,w11 i11cenda11111s. demus sc111el/a111
c/11/ciculae po1ionis, ado ptada por Gigon. Fohlen . Humbert. Zucco li Clerici.
Texto proposto por Po hlen z: demus hed1·cmm. <odorum> incendamos sc111ella.
dulcicu/ae po!ionis aliquid uideamus e/ cibi? .. demos- lhe um ung uento. queime·
mos um pratinho de perfumes. esco lhamos para ela algo de doce para beber.e
algo que comer' 1
116
V. supra. 41.

[ 184]
me refutem . Não ten ho outra intenção que não seja a de
fazer ressaltar a verdade em todas as questões . "Mas 47
Epicuro , o que di-::. é que a ausência da dor não aumenta o
prazer, pelo contrário . o supremo pra-: . er consiste na au-
sência da dor. " Três grandes erros em tão poucas palavras!
Primeiro , ele contradi z-se a si mesmo. Há pouco di zia que
não imagi nava seq uer que fosse um bem algo que não lhe
excitasse os sentidos com prazer: agora di z que o máximo
prazer está na ausência da dor. Poderá alguém contradi-
zer-se mais a si mesmo? Segundo erro: ex istem três estados
na natureza, um , a alegria ; doi s, a dor; três, a ausê ncia quer
de alegria , quer de dor. Ora o <nosso filó sofo> identifica o
primeiro com o terceiro estado, sem di stinguir o prazer da
ausência de dor. Terceiro erro, que ele partilha com outros
fi lósofos 117 : enq uanto a virtude é o bem mai s procurado
e a sua obtenção é o principal motivo por que surgiu a
fi losofia, <Epicuro> tornou o supremo bem independente
da virtude .
"Mas ele está constantemente a enaltecer a virtude." 48
Também C. Graco , apesar das enormes despesas com que
exauriu o erário públ ico 11 8 , não se cansava de garantir
que o seu propós ito era salvá- lo . Que me importam as
palavras, quando estou perante os facto s? L. Calpúrnio
Pisão Frugi 119 tinha sempre erguido a voz contra a Lei

117
Trata-se daqu e les fil óso fo s que. como Epi c uro . pre tendem separa por
completo o praze r e a virtude. i .e .. o Cire nai co Ari stipo e o Peripaté ti co Hi e ró ni -
mo de Rodes . v. Cíce ro . Definibus, IV. 49 .
118
Ga io Sempró ni o Graco (t 12 1 a . C.) . co mo j á tinh a fe it o o se u irm ão
Tibério t 133) . defendi a um a po líti c a fav oráve l ás c lasses populares . nome ada-
mente através da venda de ce rea is a preços redu z idos e da di stribui ção de te rras .
em detrimento dos grandes latifundiári os.
119
V. supra § 16 e n. 53.

[ 185]
Frumentária 120 <proposta por C. Graco>. Apro vada esta , 0
antigo cônsu l ap resentou-se também para receber o seu
quinh ão <de trigo> . Graco deu conta da presença de Pisão ,
em pé, no mei o da multidão , e decidiu interpelá- lo , com o
povo Ro mano como testemunha , perguntando-lhe 'que
es pécie de coerência era a sua , para vir agora reclamar o
seu quinhão ao abrigo de uma lei que tanto co mbatera' .
"Eu não queria que tu , Graco ," - di sse ele - "quisesses
dividir os meus bens entre os cidadãos, mas se o .fizeres
quero também a parte que me cabe. " Não é verdade que
este home m, austero e sábio, revelo u com estas palavras
que o tesouro público estava a ser desbaratado? Mas se
leres os di scursos de Graco dirás que e le advogava a causa
49 do erário públi co . Epicuro afi rma que não se pode ter
alegri a na vida se não se viver na companhi a da vi rtude,
afirma que a Fortuna nenhum poder te m sobre o sábio,
afirma preferir um a refeição ligeira a uma abundante,
afirma que não há uma fracção de tempo em que o sábio
não seja feliz. Todas estas sen te nças são dig nas de um
fil ósofo, mas não são compatíveis com o prazer. " Não é a
esse prazer 121 que ele se refere ." Pode referir-se a outro
qualquer; o que co nta é que se refere a <um prazer> tal
que a virtude está de le totalmente ause nte. Já que não
compreendo o que ele en tende por "prazer" , acaso não

120
Le i frum e ntária = le i sobre os ce reais (fm mentum ··trigo .. ). que Grnco
propunha fo ssem vendidos a preços ao a lca nce das ca madas pobres da popu la-
ção . Esta mesma le i é re ferid a um po uco adi a nt e sob o no me de Lei Sempróni a.a
partir do no me de famíli a de C. Semprónio Graco. seg undo um processo habitual
na leg islação romana : a lei rece bi a o epíte to de ri vado do ge ntilíc io do seu propo-
nente . u.g .. uma lei proposta por Cícero (gentilíc io: Tullius) será des ignada pela
e xpressão Lex Tui/ia.
121
Para Cíce ro. 110/upras -- prazer" de no ta e xc lu siva me nte .. prazeres dos
sentid os'·. po rtanto. vul ga res e in dig nos do sábio.

[ 186]
compreendo também o que é a dor? O que eu nego . por
conseguinte. é que este homem . que ava lia o supremo mal
em fun ção da dor. tenha qualquer competência para fa lar
da virtude.
Queixa m-se alguns Epi curi stas. excelentes pessoas . XXI 50
aliás. j á que não há se ita alguma menos maldosa do que
esta . de que eu mostro animos idade quando fa lo de
Epicuro . Até parece que estamos os dois a di sputar a
me ma mag istratu ra. ou a querer ri va li zar em dignidade.
A mim parece-me que o sumo bem tem o seu lugar na
mente. eles loca li zam-no no corpo . para mim con siste
na virtude. para eles no prazer. Eles lutam para fa zer
vingar as . uas teses , chegam até a impl orar o auxílio dos
vizinhos <ideo lóg icos> 122 - e muitos são o que de imedia-
to respondem ao apelo! -. enqu anto eu dec laro a minha
neutralidade na ques tão 12·1 • disposto a ace itar a conclusão a
que chegarem. Pois quê! Porventu ra estaremos a di scutir a 51
questão da guerra púni ca 12-1? E mes mo nes te caso . embora
M. Catão e L. L êntul o defendessem pos ições contrári as,
nunca essa di scord ância se tra nsformou em hostilid ade.
Estes < picuri stas> de hoj e revelam-se gente demasiado

i:: Cícero quer ditcr que a te,c funda men tal do Ep icu ri,mn. i.e .. a ide nt i-
dade do supremo bem com o pra1e r. é partilh ada por ou tra, correntes filosóticas.
como a dos Cirenaico, .
i:, A invocação do e,tatu to de neu tra lidade de1e -se a q ue. para Cícero.
como Académ ico . o import a nte no, co nfro nt o, tilo,ófico, é a aproxi mação
máxima à verdade . e não o ga nho de ca usa de uma corre nte ,obre o ut ra . como se
de uma competição dc,pon iva se trata,,e .
i:, Terminada a l i Gue rra Pún ica oco rre u no Senado de Roma uma acesa
cont rové rsia entre Catão-o-Ce nsor e L. Co rné li o Lê nt u lo Lupo sob re a atitude
a lomar perante Ca rt ago. c uja des trui ção Cat ão e nte ndi a inev it .í ve l. o qu e era
negado por Lêntu lo . ra t ão de ser desta re mini scê nc ia hi stó ri ca deve-se a que.
apesar da di,c ussão no Senado. as re laçéie, c ntre o, dois homens não caíra m no
a1edume pessoa l.

11 871
irascível, tanto mais que a sua tese é pouco viri l, e não
ousam defendê-la nem no senado. nem na assembleia do
povo, nem perante o exército, nem mesmo diante dos
censores . Mas com estes a discussão fica para outra altura,
sempre com o propósito ele não cair no confronto polémico,
mas sempre pronto a reconhecer quando eles dizem a
verdade. Limitar-me-ei a aconselhá-los a que, se for o
mai s possível conforme à verdade que o sábio deve aferir
tudo em função cio corpo, ou se. para dizer o mesmo de
uma forma mais decente , <o sábio> não faz nada senão o
que lhe for conveniente. ou ainda se aferir tudo pela sua
própria utilidade, como nenhuma destas hipóteses é digna
ele aplauso, aconselho-os a que se aleg rem no seu íntimo e
se deixem de vãg lórias.
XX II 52 Resta analisar a opin ião cios Cirenaicos . Pensam estes
que o desgosto só tem razão de existir quando sucede
algum facto inesperado. Esta circu nstância é , sem dúvida,
importante.já acima o disse. Sei que Crisipo também é de
parecer que um acontecimento não previsto com antece-
dência nos atinge com mais força 125 . Mas isto não é tudo.
Um ataque inimigo repentino é bastante mais perturbador
do que se for esperado. uma súbi ta tempestade no mar
causa mais medo aos viajantes do que se for previsível , e o
mesmo em muitas situações simi lares. Mas se ana lisares
em profundidade a natureza dos fenómenos inesperados
nada mais descobrirás senão que os acontecimentos súbitos
aparentam ser maiores <do que na realidade são>, e isto por
dois motivos: primeiro. porque, seja qual for a violência do
acontecimento, ele não dá tempo a ser devidamente ava-
liado; segundo. porque. quando parece ter sido possível a

lê, Cf. supra §~ 28 e 30 .

11881
precau ção caso e le ti vesse sido prev isto, o fac to de parece r
ser um ma l que nos afli ge por c ulpa nossa, to rn a mai s
intenso o desgosto provocado.
Que é ass im qu e tudo se passa, mostra-o o co rre r dos 53
dias, poi s à medid a qu e o te mpo passa, ai nd a qu e os ma les
permaneça m in variáve is , o desgosto va i se ndo miti gado,
e desaparece mes mo na m a io ri a dos casos. Muitos
Cartagineses se rvira m em Ro ma co mo esc ravos 126 , muitos
Macedó ni os ta mbém, de po is da captura do seu re i Pe rses 127 ;
na minh a ado lescê nc ia e nco ntre i no Pe lo po neso a lg un s
Corínti os 128 . Todos es tes pode ri a m la me nta r-se co m as mes-
mas pal avras de A ndró m aca: "Tu do isto eu vi ... " Ou , se
ca lh ar, até já te ri a m cessado o la me nto. Pe la s ua ex pressão
fis ionó mi ca, pe las suas pa lav ras, pe los se us mo vime ntos e
atitudes, to má- los- ia po r natu ra is de A rgos o u de Síc io n; a
súbita apari ção dos esco mb ros de Corinto co move u- me
mais a mim do que aos pró prios Co rínti os, c uj a me nte já
estava calejada pe la inte rmin áve l re fl exão so bre a pró pri a
desgraça. Ti ve ocas ião de le r o li vro q ue C litó maco 129 ,
depois da destrui ção de Cartago, e nvio u , pa ra os conso lar,
aos se us co nc idadãos no cati veiro: nes ta o bra e nco ntra-se
uma li ção de Carnéades qu e C litó maco di z te r registado

l!n Como con,equ ê nc ia da , Gu e rra, Púni ca, .


l)J Per,es. o u Pe r,e u. últi mo rei da Macedó nia inde pe nde nte . de rro tado po r
Paul o Emíli o na Bata lh a de Pidn a. e m 168 a. C.
l)S Corinto fo i co nqu istada e des tru ída pe lo cêin, ul L. Múmi o e m 146 a . C.

Cícero visit ou o que re,ta 1 a ela c idade aquando da sua viage m de estudo it Grécia
entre 79 e 77 a. C.
19
) Clitó maco de C art ago . acadé mi co: fo i di scípul o de Ca rnéade , ( Di óge nes

Laércio . l. 14 ). co m qu e m e, tud o u e m At e na s. o nde troco u o no me feníc io origi -


nal.Asdrúbal. pelo no me g rego co m o qual passou à hi , tó ria ( Dióge nes . IV. 6 7) :
o biógrafo (ibidem ) atribui - lhe nada me no, cio que quatrocent os li vros . e re fe re a
circunstância de e le ter freque ntado as trê, escolas fil osófi ca, mai s importantes .
a Academia. o Pe rípato e o Pó rtico.

11 891
por escrito. A tese de partida di zia : ''o sábio sentir-se-á
presa do desgosro se a sua pátria for conquistada". à qual
se segue a argumentação contrária de Carnéades. Tão
eficaz foi o remédio proposto por este filósofo contra a
presente ca lam idade que se tornou desnecessário ao fim de
algum tempo; pode dizer-se que , se o mesmo livro fosse
enviado aos cativos alguns anos depoi s . em lugar de sanar
as feridas, teria antes curado as cicatrizes. À medida que o
tempo vai passando. gradual e insensivelmente, a dor
vai-se aten uando. não porque as suas causas costumem, ou
possam. alterar-se, mas porque a habituação faz o que
deveria ter sido a razão a fazer: ensinar que o que aparenta
ser muito grave o é muito menos do que parecia .
XXIII 55 Perguntará alguém: "Mas qual é a utilidade de recor-
rer a considerações racionais , 011 mesmo àquele género
de consolação que usamos quando pretendemos aliviar a
dor de quem sofre? O argumento que nos ocorre nesta
situação é quase sempre o mesmo: não classificar como
inesperado tudo quanto possa acontecer. Por outro lado,
ter a consciência de que tudo o que acontece ao homem
fa-::, parte da condição humana , em que medida torna isso
mais suportável a desgraça ? Este tipo de discurso não
subtrai nenhuma parcela à tora/idade do desgosto, apenas
chama a atenção para que nada acontece que ncio seja
previsível! "
É poss ível , mas mesmo assim não devemos declarar
ineficaz este género de arg umentação, não sei até se não
será o mai s eficaz.
*O facto de um acidente ser inesperado, por conse-
guinte, não tem tanta importância que dele resulte toda a
espécie de desgosto. Talvez o seu efei to imed iato seja mais
forte, mas está longe de ser a causa que faz os aconte-

[ 1901
cimentos parecerem mais relevantes: estes aparen tam
maior relevância porque são recentes , não porque sejam
repentinos. 130 *
Existem , portanto , dois métodos para descobrir a 56
verdade , não apenas em relação com o que nos parece
ser ' mal', mas também e m re lação com que nos parece ser
'bem ' . Pode mos , assim , ou investi gar qual a natureza da
coisa em si, qualitativa e quantitativamente , por exemplo
quando , o que sucede com frequ ê ncia , pretendemos ali viar
com as nossas palavras a grav idade da pobreza mostrando
como é diminuto e raro aqui lo de que a natureza necessita;
ou então, de ixar de lado as subtil ezas argumen tativas e
passar à apresentação de exemp los concretos. Podemos
trazer à me móri a o caso de Sócrates, o de Diógenes , ou
citar o verso de Cecílio:
Quantas ve.::es a sabedoria se oculta sob uma capa
sórdida 13 1•
Urna vez q ue a natureza da pobreza é uma , e ape nas
uma , co rno exp licar por que moti vo ela era to le ráve l para
C. Fabríc io 132 , e insuportável para o utros? É s imil ar ao 57
segundo método de consolação acima referido 133 a téc ni ca
de explicar que tudo quanto nos acon tece é próprio da

110
Este passo ass ina lado pe los asteriscos deve te r sido acrescentado à mar-
gem do seu manu sc ri to pe lo próprio C ícero como co nclusão (o pa sso começa
por ergo= por co nsegu inte) dos arg ume nt os ad uzi dos nos~* 52-54. Te ria depo is
sido colocado. e rroneamen te, nesta posição pe los copi stas de Po mpó ni o Áti co
quando procediam à preparação ela có pia definitiva. Esta. pe lo me nos, é a opi-
nião de Pohlenz (v. o aparato c ríti co ela sua ed ição. ad /ocum) .
131
Cec íli o. v. 255 Warmin gton (co méd ia não iden tifi cada). - Cec íli o Estácio
é considerado o melh or praticante cio género cóm ico pelo crít ico Volcác io Seclí-
gito. v. E. Courtn ey. Th e Frag menrarv Larin Poers, fra g. 1 (p. 93).
132
C. Fabrício Lu sc ino. cônsul e m 282 e 278 a. C. Sobre ele. v. C ícero e m
Definib11s. V. 64.
131
Isto é. o método baseado na apresentação ele exempl os hi stóricos.

r1911
condição humana . Consiste ela, não ape nas em discorrer
de fo rma a aprofu ndar os nossos con heci mentos sobre o
género huma no, mas também em mostrar que a nossa con-
di ção é suportáve l, co mo o prova o facto de outros terem
XXIV podido, e podem ainda, suportar. Se discutimos a pobreza
recorda m-se os mui tos pobres que a souberam tolerar; se
o desprezo pelas honrarias u-1, citam-se pelo seu nome e
louva-se a vida dos numerosos cidadãos que nunca acede-
ram a elas e que, por isso mesmo, tivera m uma vida mais
fe liz, e também aqueles que preferiram o seu ócio pri vado
à parti cipação na vida públ ica, sem esquecer os versos 135
ditos por aquele poderos íss imo rei que louva o seu velho
interlocutor e lhe chama afortunado porque está a aproxi-
mar-se do fi m da vida sem ser fa moso nem sequer conhe-
58 ci do 136 . De modo semelhante , quando se trata do problema
da perda de fi lhos, também pode reco rrer-se à in vocação
de exemplos , e suavizar a dor dos que a essa dor são mais
sensíveis 137 citando os exempl os dos que me lhor a suporta-
ram . Deste modo o caso de outros que res isti ram à dor
leva a pensar que as desgraças que nos atingem não são
tão gra ves como à primeira vista parec iam. Meditando

l ) -l Honrarias = o desempenho de cargos honoríficos na esfera da política

romana. as mag istraturas (e m latim . honores).


I ! , Lit. "os anapestos". isto é. aque les ve rsos cuja unidade métrica de base

era o anapesto.
"
6
Referência a um passo do seg undo pró logo da tragédi a ifigénia em Áulis.
de Eurípides. O rei é Aga mémn on. que . quando se vê na ob ri gação de sacrificar
a filha. lfigénia . para assegurar o sucesso da exped ição a Tró ia. di z ao seu velho
servidor: "/m ·ejo-1e, ancião, invejo 10do o homem que leva a ,•ida sem incorrer
em p erigos, sem ser conhecido nem famoso; menos inveja lenho dos que go:am
de honrarias (Eurípides, !figénia em Áulis, 16- 19). A mesma ideia virá a ser
desenvo lvida, cerca de um séc ulo depois, por Séneca no primeiro coro da sua
tragédi a Aga111e11111on. vv. 57 e ss.
l ! Como seria o caso do próprio Cícero.
7

[ 192]
longamente <nestes exemplos> verifica-se até que ponto é
errada a opini ão comum . Vão nesse sentido as palavras de
Télamon:
Quando os gerei . .. 1' 8 ,

as de Teseu:
Preparava-me menlalmente para as desgraçasfururas 1:w,

ou as de Anaxágoras:
Eu sabia he,n que ri11ha gerado um morra/! 140

Todos estes são exemp los de pessoas 141 que meditaram


toda a vida sobre a condição humana, e perceberam que
esta, ao contrário do que pen sa a opini ão comum, não tem
o que quer que seja de temível. Quanto a mim , a situação
dos que meditam previamente é mais ou menos a mesma
dos que encontram o remédio na passagem do tempo,
salvo que aos primeiros é uma argumentação racional que
os cura , enquanto os outros têm a cura na própria natureza ,
depois de compreenderem a questão ful cral, ou seja, que
aquele mal que se julgava enorme, não é afin al tão grande
que possa destruir a fe licidade . A conc lu são a tirar é que, 59
embora a ferida causada por uma desgraça imprevista seja
mais fund a, tal não imp li ca, ao contrário do que pensam
<os Cirenaicos> 142 , que de entre doi s indi víduos que so-

118
V. supra.~ 28.
139
*
V. supra. 29.
"º V. supra.~ 30.
141
É interessa nte repara r no facto de C ícero dar a mes ma impo rtânc ia ao
que a hi stória refere acerca cio compo rtame nto ele ce rt as tigura s rea is e ao de
figuras que não passam ele personagens lite rári as.
142
No texto: 111 i/li p 111a n1 ··como pe nsam aque les (que) . . ·· A ide ntifi cação
destes com os C irenai cos res ulta da referê nc ia s upra.~ 28.

[193]
fram a mesma ca lamidade. ape nas sofre uma gra nde per-
turbação aquele para quem a calamidade era impre-
visível.
Conta-se que houve certas pessoas que , tendo ouvido
falar da condi ção comum a todo o género humano , e do
facto de todos estarmos suje itos à lei segundo a qual
ninguém pode ser para sempre imune ao mal, ficaram ain-
XXV da mai s desgostosos <do que já esta vam>! Este o moti vo
por que Carnéades. segundo eu já li num tex to do nosso
amigo Antíoco 143 • censurou os louvores que Crisipo dava a
e tes versos de Eurípides:
Não há nenhum mortal que esteja imune à dor
E à doença ; 11111itos são obrigados a enterrar osji fh os,
E a procriar outros; a morte é o fim comum de todos.
Tudo isto causa angústia. em l'ão, ao género humano:
Há que restituir a terra à terra , todos verão a sua Fie/a
Ceifada como uma seara. Assim o ordena a Necessidade 1J,.4.

60 Di zia Carnéades que este tipo de di scurso não tem a


mínima capacidade para proporc ionar consolação a um
desgosto. Di zia mesmo mais, que é inteiramente de lamen-
tar que estejamos submetidos a uma tão cruel necess idade;
o tipo de conso lação baseado na enumeração de males
alheios é apenas adequado a conso lar pessoas malforma-
das. A minha opinião é muito diferente. A necess idade que
impende sobre a condi ção humana proíbe- nos. por a sim
dizer, de lutar contra a di vindade, recorda- nos que omos

141
Antíoco de Áscalon . discípu lo de Fílon de Lari ssa com quem depoi s se
in co mpati bi li zou.
144
Eurípides. Hipsípile. frr. 747 N 1 . - A Necessidade (lat. Necessitas) cor-
respo nde à àváy1n1 dos Gregos: a lei que gove rna o Universo. à qual até os
deu ses tê m de sujeitar-se.

11 941
homens 145 , e é este pensamento que sobretudo traz alívio
ao sofrimento: a enumeração de exempl os não se destina a
ser agradável às mentes malforrnadas , mas sim a conseguir
que quem está merg ulhado na dor pense que deve suportá
-la, ao ver que muitos outros a suportaram com resignação
e tranquilidade .
Devemos ajudar de todos os modos possíveis quem 61
quer que se si nta destroçado, e incapaz de se fixar um
rumo , devido à imensidade do seu desgosto. Esta ci rcun s-
tância levou até Cris ipo a propor para a palavra grega que
significa desgosto, À.Úm7. a derivação a partir do verbo
ÀÚúJ "desagregar"' 146 , como se esti vésse mos perante um
caso de completa desagregação do ser humano . Ora esta
situação poderá ser totalmente evi tad a desde que se ex pli -
que, corno atrás di sse , a causa da aflição: esta decorre
apenas da opinião corrente, que a julga ser um grande mal,
presente e esmagador. Portanto, assim como a dor física
como que morde e dilacera todo o corpo, mas pode tornar-se
suportá vel graças à es perança de um bem-estar futuro ,
também a consc iência de ter-se levado uma vicia digna e
honrosa constitui uma conso lação com força bastante para
que quem assim vive u, ou seja imune ao desgosto, ou não
sinta no espírito mais que um li geiro desconfo rto.
Mas quando à opinião que vê num certo evento um XXVI
grande mal se junta este outro preconceito que nos di z
ser preci so, ser justo, ser do nosso dever sentirmo-nos

145
Recorde1110s a propó, ito a frase que o esc ravo di Lia repe tid amente ao
genera l triunfador: .. não te esqueças ele que és hum ano '''
146
Esta etimologia é fanta , ista . /\ úrrri deri va de um a ra iz indo-e uropeia
rup- llup- .. quebrar (a li gação) .. que se enco nt ra nas for111 as ve rbais ser. vécl.
hi-m-pvati, lat. ru-111-po. v. H . Fri sk . C. E. W , s. u . ÀÚllTJ . - Este passo ele Cícero
foi recolhido por H . vo n Arnim co mo o frag. Il i. 485 dos S V F

11 95 ]
desgostosos po r aquil o que aco ntece u, e ntão é qu e, por
fim , se fo rma e m nós a gra ve pe rturbação me ntal a que
62 cha ma mos ·desgosto· . Deco rre m deste preconceito aquelas
tão vari adas co mo co nde náveis mani fes tações de dor: o
aspecto suj o, os a rra nh ões que as mulhe res dão no próprio
rosto 1-17, os go lpes no pe ito , nas coxas. na cabeça; daqui
també m a atitude ele Aga mé mn o n , ta nto e m Ho mero 148
como e m Ác io 1-1'i,
Arrancando com a dor. sem cessar, os seus longos cabelos ,

atitud e que lhe me rece u a o bse rvação troci sta ele Bíon 15º:
"rei bem estúpido era este, que na sua dor arrancava os
cabelos como se, para ele , dependesse da call'Ície o alívio
da triste:..a ''.
63 Mas é ass im que procede m qu a ntos obedece m a este
preco nceito . Por es te moti vo també m é qu e Ésquines ataca
De móstenes acusando-o ele te r fe ito um sac rifício no sétimo
d ia após a morte da filha 151 • E co m que habilidade retórica
o faz . co m qu e abund â nc ia de rec ursos . de va ri edade de
argume ntação. ele brilho vocabular. Po r aqui se percebe
como a um retor tudo é poss íve l! Ora nin gué m co ncor-

i -1 V. Le:: XII Tab11/a m111. X.-+: i\111/iere.1 gl'nas 11e rac/111110 11e11e lessu111 f11-
7

11eris ergo lwhe1110 .. Qu e a, m ulhe res não a rra nh e m a, faces nem aco mpanhem o
fun era l com sono ros pranto,··: o le.1s11111. que tradu ?imos po r ··,onoros prantos ...
e ra. ,eg undo os g ram áticm,. um lúg ubre ulu lar e ntoado pe la, mu lhe res (Cícero.
De legihus. li . 59 ).
i-1~ Ho me ro . Ilíada. X. 15. Agamé mno n não co nseg ue dormir. preocupado

co m a , itu ação pe ri gosa e m q ue ,e e ncontra o exé rc ito dos Aqueus. e. na sua


afli ção . .. arranca ela caheça. desde arai::. 1111111ero.ws madeixas··.
l -l'l Tragédi a ,Vrc1egresia ··A vigíl ia noc turn a ... v. 483 Warmingto n.
150
Bío n de Boríste ne,. fi ló,ofu .. po pular... espéc ie de so fi sta. autor de nu-
me roso, esc rit os e m que ex punha e c rit icav a os mai s variad os ass untos (c f. Dió-
ge nes Laé rc io . IV. 46-57) . co mpôs Dialribes (cf. Dióge nes Laé rcio . li. 77) . que
alg uns erudi tos considera m se r um asce nde nte da poe, ia sa tíri ca latina .
151
É,quines . Co111ra Clesi/óme. 77.

[ 1961
dari a 152 com os arg ume nto s de Ésq uines não fosse o caso
de toda a gente te r gravada no es pírito a ideia de que os
homens de be m têm o deve r de manifestar uma profundís-
sima dor pe lo falecimento dos pare ntes. Daqui decorre
também que outros há qu e proc uram a solidão co mo remé-
dio para as dores espi ritu ais, co mo diz Ho mero a propósito
de Belerofonte 15' ,
Que errava, so-:,inho, pelos campos Aleiosfora,
Mordendo o coraçcio, evilando !Oda a presença humana 154 •

Níobe é represen tada como uma rocha, ta lvez para suger ir


o seu eterno silê ncio pe la dor <de pe rder os fi lhos> 155;
crêe m <os Gregos> q ue Héc uba , por causa do ódio que se
ac umul ou no se u es pírito , e para representar a raiva de que
fico u possuída 156 , fo i transformada numa cade la. Outros há
que preferem ma nifestar o se u desgosto fa lando freque nte-
mente com a sua pró pria so lidão , como é o caso da a ma
<de Medeia> na peça de Énio:
Apoderou -se de mim, i11feli-:,. a rn111ade de narrar
Ao céu e à /erra as i1~felicidades de Medeia " 7 .

i;) Isto é. os concei10s morai , do te mpo de Cícero co ns iderariam .. de mau

gosto.. a virul ênc ia co m qu e Ésquines põe e m chequ e a falta de observância por


parte de De móstenes dos ritos fúnebres para com a filha falecida. e. tal veL ainda
mai s. a alegria qu e de mon stro u ao saber da mo rte de Filipe li.
15
-' Herói ele Corinto. co m uma ges ta pareci da com as de Hérac les. Te se u. ou
Édipo.
1
" Homero. //ioda, V I. 201 -202. Bele rofont e manifesta va ass im a sua dor
pela morte do fi lho lsandro.
155
Níobe tinha sete filhos e sete fi lha s. que foram todos morto, por Apolo e
Ánemis. v. O vídio . Me1w11orfó.1es. VI. 146-3 12.
156
Hécuba. mulher de Príamo. rei de Tróia: sobre a sua me tamorfose. cL
Ovídio. Me1C111101foses. X III . 565-75 .
157
Énio. Medeia. 264-5 Wannin gton.

11 971
XXVII 64 Todas estas atitudes pe ra nte a do r são ass umidas por
que m as jul ga j ustas , co rrectas. obri gatóri as ; a melhor
prova de que ass im é está e m que e las são jul gadas como
um verdadeiro dever, a tal ponto que as pessoas que
quere m afirm ar- se ' de luto ' , se por acaso fize ram al gum
gesto mai s natural ou se ex pressaram num to m menos
tri sto nh o, rapidame nte regressa m à pos tura de desgosto , e
co mo que se ac usa m do pecado de te re m inte rro mpido as
mani fes tações de dor. Ta nto as mães co mo os mestres-
-esco la costum am até cas ti gar os garotos, e tanto verbal-
me nte co mo co m a ve rgas ta 158 , se e les , no pe ríodo e m que
a família está de luto. fize re m o u di ssere m algo e m tom
alegre, e obri gam-nos e m vez d isso a cho rar ! Não é verdade
que , quand o se põe te rmo à ma nifestação de luto , e se
pe rcebe que as mani fes tações de tri steza não servem
para nada , não é verd ade, di z ia , qu e se pe rcebe bem como
todas essas atitudes e ram voluntárias? O que fa z o famoso
·'carra sco de si mes mo" te re nc ia no. isto é , ó Éamóv
uµwgoú µr voç; 159 ?
Decidi, Cremes , que será tanto menor a of ensa
Feita ao meu.filho se contin uar eu a ser infe/i-: , 1r. 1_

El e decide ser infe li z . Nin g ué m decide o qu e que r que seja


in volunta riamente , poi s não?
Co nside ro-me merecedor de rodo o mal .. .161

158
Tent ati va . q ue reconhece mos não mu ito fe liz. de re produzir o jogo de
pa lavras do latim: nec uerbis so /11111 sede/iam uerberibus .
159
Tít ul o grego de uma das co médi as de Terê nc io . lit . ··aque le que se castiga
a si mes mo ..
160
Te rê nc io . H e111on1i111ommenos. 14 7-8 .
161
Te rê nc io . o. 1.. 135. Me nedemo. o protagon ista da coméd ia. tinha man-
dado o fi lho pa ra fa zer o se rviço m il itar com o fim de o separar da rapariga que
e le a mava . e que o pa i j ulga va se r uma me re tri z. Ao fim de vários meses sem ver

f 198]
<Ü home m> considera-se merecedor de algum ma l se não
for um infe li z. Estás a ver co mo o mal está na o pini ão , e
não na natureza . E que dizer daque les a que m as própri as
circun stânc ias impedem as mani fes tações de dor? No
poema de Ho me ro, os massac res quotidi anos , a morte de
tantos gue rre iros acabam po r se rvir de sedati vo para a
tri steza. Repara nestes versos:
Todos os dias vemos em grande número guerreiros
Que morrem , ninguém tem tempo para os lamentar.
Não podemos senão colocar os ca ídos nas twnbas
Com .firme-::,a de ânimo e redu-: , ir o luto ao pranto dum só
[dia 162_

Está , portanto, na tu a mão afas tar de ti a do r, se o 66


qui seres, e obedecer às c irc un stânc ias . Haverá por acaso
alguma situação, já que tudo isto está na nossa mão, a que
não nos seja possíve l adaptarmo- nos a fi m de pormos um
termo à afli ção e ao desgosto? É do conhecime nto ge ral
que as pessoas qu e viram Cn . Pompe io tombar ferid o de
morte, perante um es pectác ulo tão crue l e do loroso só
temeram pela sua própria vida , uma vez qu e se viam
cercad os por toda a armada inimiga, e a única coisa que
fi zeram foi inc itar os re madores e te ntar e ncontrar na fu ga
a sal vação. Só de po is qu e aportaram a Tiro é qu e pudera m
dar largas à angústi a e aos lame ntos 163 • Então o medo fo i
capaz de reprimir nestas pessoas a angústia , e a razão não
conseguirá o mes mo res ultado no sá bi o? Haverá por acaso XXVIII
algum remédi o mais e fi caz para pô r te rmo à do r do que a

o filho arrependeu-se da sua du reza. e decidiu ent ão trabal har co lllo Ulll escravo
para se casti ga r da atitude in telllpesti va que ti vera .
162
Holllero. Ilíada. X IX . 226-29 (tradução li vre de Cícero).
163
Cf. Lu ca no. Guerra Civil (Farsália) . VI 11 . 56 1-662.

f 199 1
verificação de que ela não traz qualquer vantagem e nada
nos ap roveita o ne la nos comprazermos? Mas se podemos
eliminar a dor, igualmente podemos não lhe dar entrada:
há que admitir que a angústia depende de um acto de
67 vontade, de um a decisão. Comp rova-o a resi gnação
de quantos já passaram tantas vezes por muitas aflições e
suportam agora mais facilmente o que lhes possa suceder,
que, em sum a, já se julgam end urecidos para aguentar
os golpes da Fortuna , por exemplo esta personagem de
Eurípides:
Se fosse este o primeiro dia que para mim /u -;, com triste-;,a,
Se nunca ti vesse na vegado num mar tão tormentoso,
Decerto teria causa para sofrer, como sucede aos potras
Que ao sentir de súbito o .freio pela primeira ve-;, se empinam.
Mas eu já estou entorpecido pelas desgraças que passei 1&4_

Em co nclu são, o esgotamento derivado do acúmulo de


desgraças torna mai s supo rtáve is os desgostos, logo temos
de aceitar que não são os factos em si a causa e a fo nte da
68 aflição. Fi lósofos importantes , mas que ainda não atingi-
ram a sabedoria, como é possível não perceberem que
sofrem o maior dos males? Na realidade , são in sipientes;
ora não há nenhum mal maior do que a insipiência , e
no entanto eles não se lamentam! Porquê? Porque a este
género de males não se ap lica a opinião corrente de que
seja correcto, j usto, respeitante aos nossos deveres supor-
tar com dificuldade o facto de não se rmos sábios , opinião
que ap licamos ao desgosto relacionado com o luto , que é a
forma maior <de desgosto> .

164
Eurípides , Frixo, frag. 821 Nauck ' . Estes mes mos versos são citados por
Galeno e atribuídos a Crisipo. v. Stoici antichi. p. 12 32 (= S. VF. Ili. fr. 482).

[200]
Por isso mesmo Ari stóteles , ao ac usar os antigos fi ló- 69
sofos que consideravam ter a fi losofia alcançado a perfeição
graças aos se us talentos, di z ia que e les eram , o u o cúmulo
da estupidez , o u o cú mul o da vaidade ; mas acresce ntava
que lhe parec ia, dado o gra nde progresso que <a fi losofia>
conheceu e m tão poucos anos, qu e breve me nte pode ri a vir
a atin gir a perfeição 165 • Diz-se que Teofrasto, ao mo rrer,
acusou a natureza de co nceder uma vida lo nga aos veados
e às gralhas, que daí não tiram qualquer espécie de benefí-
cio, enqu anto aos ho mens, que dela poderiam muitíss imo
aproveitar, deu um espaço de vida tão diminuto; se o tempo
da vida humana pudesse se r mai s prolongado certamente
poderia atingir a pe rfei ção e m tod as as artes e ass imil ar
toda a es péc ie de co nheci mentos . Lamentava-se e ntão
por estar pres tes a mo rrer no prec iso mome nto e m qu e
começava a di sce rnir a lguma coisa. E não é verdade que,
de entre os restantes filó sofo s, os melho res e mai s profun-
dos recon hece m qu e ig noram muitas maté rias e que têm
sempre muito qu e aprender? E, no entanto , apesar de 70
reconhece re m que estão merg ulhados na in sipiênc ia, a pior
das possíveis s ituações, não são do minados pe la aA ição,
dado que neles não te m lugar a ideia de que sofrer seja um
dever! E que di ze r daqueles que afirmam que um home m
não chora? Eram desta tê mpera Q . Máx imo 166 , quando
acompanho u o fun era l do seu filho consular 167 , Lúcio

15
" V. Ari stóteles. Frag111enra se/ec,a, ed. W. D. Ross, pp. 37-38, frag. 8
(consta de doi s pequenos tex tos . um é este passo de Cícero. o o utro é um texto
de Jâmbl ico. Comm. Marh. 26).
166
Q. Fábi o Máx imo. o célebre Cuncraro,: c uja tácti ca milit a r 4 uebrou o
ímpeto da in vasão cartag inesa.
167
São designados por .. consulares" todos os cidadãos que já dese mpenh a-
ram o ca rgo de Cô nsu 1.

l201 J
Paulo 168 , que e m poucos dias perdeu dois fi lhos, M . Catão ,
quando perde u o fi lho pretor designado 169 , e tantos outros
71 cujos no mes coligi na minha Consolação. Que factor acal-
mou a dor <nestes homens> se não o sentimento de que luto
e tri steza não são próprios de um ho me m? Foi esta a razão
por que o abandono que alguns entendem ser correcto
co nceder às manifestações de tri steza, entenderam estes
outros que era vergo nhoso e por isso reprimiram o se u
desgosto. <Mais uma vez se conclui> que o desgosto não
está na natureza, mas si m na o pinião .
XXIX A isto poderá objectar- se: "Mas haverá alguém tão
louco que sofra deliberadamente ? A dor tem causas naturais,
e <à natureza>, diz", sublinham e les , "o vosso Crantor 17º,
não se pode opor resistência; ela pressiona-nos, ataca-nos,
há que ceder- lhe . Na tragédia de Sófoc/es 17 1, Oileu, que
antes tinha conseguido consolar Télamon pela morte de
Ájax, sentiu-se destruído quando recebeu a notícia de que
o seu Ájax também morrera. A sua disposição de espírito
alterou-se, e ele proferiu estas palavras :
Ninguém é tão dotado de sapiência que, depois
De ter consolado com as suas palavras uma triste-:,a alheia,
Se a Fortuna muda de rumo e o ataca a ele ,
Não se sinta des truído com a inesperada desgraça
E esqueça logo as sentenças com que fa lara a outrem 172 ."

168
Conhecido como Pau lo Emílio (a ordem correc ta do nome se ria L. Emí-
li o Paulo. ve ncedor da batalha de Pidna ( 168 a. C.) .
169
Isto é . que já tin ha sido eleito corno Pretor. e entraria em funções no dia
1 de Janeiro após a eleição.
.. Vosso·· Crantor = Cran tor pertence . corno vós. à escola académica .
170

171
Trata-se de uma tragédia perdida. Ájax de Locros. a Ilíada homérica
fi guram dois guerreiros de nome Ájax: um deles era fi lho de Télamon e natural
de Salam ina. e suicidou-se ainda em Tróia: o o utro era natural de Locros e filho
de Oileu. e morreu duran te a viagem de regresso depoi s de term inada a guerra.
m Sófocles . T G. F. fr. 666 N ! _

(202]
Quando <os Peripatéticos> 173 recorrem a estes argu-
mentos a sua intenção é demonstrar que não se pode
resistir à natureza . Eles mesmos, no entanto, admitem que
as manifestações de dor são mais intensas do que a natureza
ex ige. Mas que loucura é esta?, <digo eu> , para lhes fazer
a eles a mes ma pergunta 174 • Mas são muitas as causas por 72
que as pessoas se entregam à dor. A primeira é a opinião
geral de que se está em presença de um mal : quando as
pessoas o defrontam e se persuadem da sua natureza a
consequência é, necessariamente , o desgosto. Em segundo
lugar temos a crença de que, se fize rem grandes manifes-
tações de dor, isso será muito agradáve l aos mortos.
Acrescenta-se a isto uma superstição caracteristicamente
feminina : ju lgam elas que é mai s fáci l apaziguar os
deuses imortais se reconhecerem que os golpes por estes
deferidos contra si as deixaram completamente de
rastos! E a maior parte das pessoas não se dá conta da con-
tradição existente entre estas posições: por um lado,
enaltecem quem demon stra uma grande coragem ao
morrer; por outro, acham que merecem censura os que
demonstram gra nde coragem na aceitação da morte de
outrem! Como se fosse possível verificar-se na realidade
aq uilo que costuma ocorrer na linguagem dos apaixo nados:
que cada um tem mai s amor pelo outro do que por si
mesmo. Já é de aplaudir, e, se mo perguntas, acho que é 73
justo e real o facto de amarmos como a nós mesmos as
pessoas que devem ser para nós as mais queridas; mas que

173
A identifi cação dos objectantes não fi gura no texto. Mas cf. supra .
§§ 69-70 . em que Cícero refe re os no mes de Ari stótel es e de Teofra sto .
11
• Ao iniciar o re lato das objecções peripatéti cas . C íce ro pu nha na boca
deles a pergunta: Ha verá alguém rào louco [ .. } ~: agora devo lve -lhes a pe rg un -
ta: Mas que loucura é esra ~

[203]
as amemos mai s 175 • é coisa impossível de suceder. Mesmo
no caso da amizade não é sequer desejável que o outro me
te nha mais amor do que a si mes mo, nem que eu tenha
mai s amor pelo outro do que por mim. A ser ass im, a vida
tornar-se-ia uma confusão e todos os deveres fica riam
alterados .
XX X Mas isto é tema para outra ocasião 176 • Baste por agora
fixar que não devemos atrib uir a nossa infe lici dade à perda
dos amigos , até porq ue eles, se ainda vivessem. não quere-
riam que nós os amássemos mais do que eles desejariam,
sobretudo mais a eles do que a nós próprios. Quanto ao
argumento de que à maior parte das pessoas as consola-
ções não trazem qu alquer confo rto, e à ve ri ficação do facto
de que os consoladores . no caso de a Fortun a virar contra
eles os seus ataques, acabarem por se reconhecer também
un s infeli zes, carecem, um e outra, de fundamento. Ambas
as situações decorrem da nossa responsabi Iidade. não
da natu reza. Em contrapartida não fa ltam argumentos
para acusar a nossa estu ltíc ia. Qu anto aos in sensíveis à
consolação, esses como que se incitam a si mesmos ao
sofrimento; quanto aos que reagem no seu caso pessoal
de modo di stinto daq uele que tinham de outras vezes
aconselhado aos outros , esses não são ma is inconsequentes
do que a maiori a dos outros, por exemplo os avarentos que
condenam <os outros> avarentos, ou os va idosos <que
criticam> os que desejam a fa ma. Aliás, é característico da

Se. ··do que a nós mes mos...


175

A referê ncia ao .. caso da ami zade .. pode denotar da parte de Cícero a


176

in tenção de esc reve r um tex to ··sobre a ami zade .. . o futuro di álogo Laeli11s. de
amiciria . e a men ção de .. todos os de veres·• pode consti tuir uma antec ipação da
escrita do De o.fficiis. Ambos os textos serão redi gidos no ano seguinte ao das
TD.

1204]
estult ícia hum ana observar os defeitos dos outros e esque-
cer-se dos se us.
Mas há um ponto que tem de ficar bem esclarec ido: 74
conqu anto se saiba que o desgosto se aten ua com o tempo ,
este efeito não é causado pela passagem do tempo, mas
sim pela reflexão diária sob re o assunto . a realidade, se
o facto causador do desgosto permanece o mesmo , e
se permanece a mesma a pessoa afectada, como é que pode
haver alguma a lteração no sofrimento se não sofreram
alteração nenhuma , nem o caso que foi causa da dor, nem
a pessoa afectada por essa dor? Por consegui nte , o remédio
para o sofrimento está na meditação co nt inuada de qu e
no facto em s i não existe qualquer mal, e não na simp les
passagem do tempo.
Vêm agora <os Peripatéticos> co m a sua teoria das XXXI
<paixões> médias 177 . Se estas são naturais, que necessidade
há de co nsolação? A própria natureza determinará a justa
medida; se, pelo contrári o, são fruto da opi nião, então há
que elimjnar radica lmente a opinião.
Penso que j á disse o bastante sobre o facto de o des-
gosto co nsistir na opinião sobre um mal prese nte, e desta
opinião faz parte a ideia de que é um dever assu mir odes-
gosto <em causa>. A esta definição Zenão 178 ac rescenta,
com razão, que essa opinião re lati va a um mal presente
deve ser ainda rece nte . Mas <os Estóicos> interpretam o
termo ' recente· não ape nas no sentido de algo acontecido

177
*
V. supra 22 . Cf. ainda Ari stóteles. É1ica a Nicómaco, 1106 b 24-28:
""A 1·ir111de di:: respei10 1an10 às paixões como às acções. nas quais o excesso é
condenável. 1al como o defeilo. enqua111a o pom o médio é acei1á 1·el e co,.,-ec/o.
Ambos os casos relevam da vinude. A mediania é uma fo rma de 1•i1wde, o seu
objec1i1·0,; encon/rar o pom o médio(= a j us/a medida)."
178
Zenão de Cício . o fundador do Estoi cismo.

12051
há pouco, mas s im no de alguma coisa e m cujo pres umível
" ma l" perdura uma ce rta força qu e faz com que se mante-
nha presente ao espírito sempre com uma espéc ie de
"frescura" merecedora de ser considerado ·rece nte '. Por
exemplo, a célebre Artemísia , mulher de Mauso lo 179 , rei
da Cária , que mando u constru ir o imponente tú mulo de
Ha licarnasso, ma nteve sempre o luto e nquanto viveu e
acabo u por fa lecer consumida pe la dor. Para ela, e m cada
dia a morte do marido era um ' mal recente '; só deixari a
de ser rece nte se com a passagem do tempo o seu efeito
acabasse por extinguir-se .
Estes são , portanto, o s deveres de q uem pretende
consolar outre m: erradicar por com pleto o desgosto, ou
e ntão aca lmá- lo , e lim iná- lo na med ida do poss ível, estan-
cá- lo e não pe rmi tir que e le pross iga o se u curso por
76 mais tempo, ou e ntão desviá- lo no utra direcção . Uns
pe nsam que o úni co objecti vo de que m co nso la consiste
<em de monstrar> qu e o mal <e m qu estão> não é absoluta-
mente ne nh um mal , co mo é a o pinião de C lean tes ; outros ,
que não se trata de um mal muito inte nso, como pe nsa m os
Pe ripatéti cos; o utros, co mo é o caso de E picuro, que
desv iam a ate nção dos males e a e nca m inha m para os bens;
há ta mbé m que m pe nse que basta ass ina la r que nenhu m
mal efecti va me nte inesperado pode sucede r, <co mo fazem
os C ire na icos> 180 . C ri s ipo , po r sua vez , e nte nde que o fun-

179
Mausolo. rei da Cária (séc. 1v a. C.) : o se u túmulo. o "mausoléu·· manda-
do construir pela sua viú va. era considerada uma das sete maravilhas do mundo
antigo. As estátuas de Mausolo e Anemísia . bem como outros fragmentos do
monumento enco ntram -se actu almente no Museu Britâni co.
180
Texto de Pohlenz: sum qui satis putent os tendere nihil inopinati accidisse
<ut Cyrenaici> [. . .}. nihil 111ali. que aceita uma co nj ectura do séc . XVIII (Davi-
sius) . co m a lei tura 111 Cyrenaici em substitui ção de nihil rnali. J . E. Kin g. Clerici
e Fohlen-Humbert aceitam a conjectura 111 Cvrenaici e suprimem 111 medi. Gigon

í206]
<lamentai da consolação cons iste em ex trair da men te de
quem está desgostoso a crença errónea de que as manifes-
tações de dor constituem um dever a c ujo cum prime nto
estamos obrigados . Há ainda quem co mbine todos estes
tipos de conso lação, dado que as várias pessoas são mais
sensíveis a este ou àq uele tipo de arg ume ntação; foi o que
eu procure i fazer na minha Consolação , que acum ul ei
numa única co nsolação todos os métodos poss íveis. O meu
espírito sofria de uma gravíss ima doença , e por isso eu
recorri a todas as terapias possíveis. Mas há que escolher o
momento mais adequado, tanto para as doen ças do espírito
como para as do corpo. Veja-se o caso do Prometeu de
Ésquil o: qu ando alg ué m lhe di sse
Estou certo , Prometeu , de que tens plena consciência
De como a ra::,ão pode ser um remédio para a ira,

ele respondeu:
Sem dúvida, quando o remédio vem a tempo e horas.
E não agrava inabilmente a própria ferida 181 •

Nas consolações, o remédio cons iste , e m pnme1ro XXXII 77


lugar, em de mon strar que o ' mal ' o u não ex iste, o u é dimi-
nuto; em seg undo lugar, e m disse rtar sobre a co ndi ção
humana , em gera l, e sobre as circu nstâncias específicas da
vida do sofredor, se for caso di sso; e m terceiro lugar, em
mostrar que é o c úmu lo da in sipiê ncia de ixar-se abater
pela tristeza quando se percebe claramente que isso não

apresenta o texto sunt qui {. .. } inopinati accidisse /nihi/J medi (se m introdução
de 111 Cyrenaici>. A nossa tradução co rre sponde ao tex to: s11111 qui satis putent
ostendere nihil inopinati accidisse mali <ut Cyrenaici>.
181
Ésquilo. Prometeu agrilhoado, 377-380. Oceano é a pe rsonage m qu e
tenta acalm ar a ira ele Pro mete u contra Ze u,.

[207]
remedeia a nada . < ão devemos fazer> como C leantes,
que procura até co nsolar o sábio , quando este não precisa
de co nsolação para nada. Se convenceres a pessoa enlu-
tada de que ne nhum mal existe senão o que é desonroso ,
não estás a libe rtá- la do luto , nas sim da sua estultícia, e
para lhe e ns inares isto não será e ntão o mome nto apropria-
do. De resto parece-me que C lean tes não se deu be m conta
de que por vezes o desgosto pode provir do que o próprio
C leantes considera o supremo mal , <a estultíc ia>. Pois que
ou tro comentário nos me rece o caso de Sócrates quando ,
segundo reza a tradi ção , persuadiu Alcibíades de que era
um zero como homem , e de que não havia a mínima
diferença e ntre o aristocrata Alcibíades e um vu lgar carre-
gador? Alcibíades ficou aterrado , e supli cou em lágrimas a
Sócrates que lhe e nsinasse a virtude e o libe rtasse da sua
baixeza! i sê Que have mos nós de co mentar, Cleantes ? Que
na situação que e nc heu Alcibíades de tristeza não existia
78 nenhum ' mal '? E como ava li aremos os argumentos de
Lícon 181 • que procura diminuir a importância do desgosto
dizendo que são fúteis os motivos qu e o originam, que têm
a sua ori ge m na so rte e nas defi c iê nci as do corpo , não nas
impe1feições da me nte ? Então o sofrimento de Alcibíades
não tinh a a sua o ri ge m nos males e nos defei tos da sua
me nte? Quanto à técnica consolatória de Epicuro , já
acima 18-1 falei qu a nto baste .

182
V. uma re fe rê ncia a este epi sód io do re lac io na me nto de Sóc rates e Alci-
bíades e m S . Agos tinh o . Cidade de Deus. XIV. 8 (in.fine).
183
Lícon . fi lósofo (séc. 111 a. C.). es teve qu arenta a nos à frente do Perípa10.
So bre e le. v. Di ógenes Laé rc io. V. 65 -74. Em Definibus. V. 13. C ícero faz-se eco
de uma o pini ão que o julga bom co mo escritor m as pouco sig nifi cati vo como
fil óso fo .
184
V. supra. §§ 34-51 .

[208]
Não d ispõe de mu ita solidez, ai nda que seja muitas XXXIII 79
vezes empregada e a lgumas até útil. aquele tipo de co nso-
lação <co nsubstanciado na expressão> : "Tu não és caso
único!" É útil às vezes, como d isse , mas nem se mp re ,
nem co m todas as pessoas: muitas há q ue a reje itam.
É importante o modo co mo se apli ca. O q ue é preciso pôr
em relevo é o modo co mo cada uma das pessoas afec tadas
suportou racio nalme nte <a sua infe lic idade> , e não faze r a
lista das desgraças que acontecera m a cada um. A proposta
de Crisipo 185 é óptima co mo teo ria, mas ineficaz pera nte
uma dor rea l: não se rá fácil co nve ncer alg ué m num
momento do loroso de q ue está tri ste de liberada me nte, e
porque ac ha q ue no mo me nto prese nte aqu ilo que deve
faze r é manifes ta r tri steza. É ó bvio, po r co nsegui nte, qu e,
ass im como nas co ntrovérs ias j urídi cas não usa mos
sempre do mes mo po nto de vista (no me que da mos aos
diversos tipos de contrové rsia) 186 , mas sim co mpo mos o
discurso adaptando-o às c irc un stânc ias, à natureza do pro-
cesso, à pessoa do liti gante , ass im ta mbé m para a li viarmos
o desgosto de alg ué m deve mos estud ar qu a l a metodo log ia
apropriada a cada caso.
Mas ve ri fico que a minh a ex posição se afastou do 80
tema que tinhas pro posto, e que e ra a questão do sábio 187 :
aos olhos <do sábio> ne nhum ma l o é ve rd ade irame nte,
desde que não e nvo lva baixeza moral: o u e ntão é um mal
di minuto, que e le, co m a sua sabedoria, de tal modo apo uca
que quase não se dá po r e le; <i sto po rq ue o sá bio> , no que
respeita a toda a fo rma de desgosto, e m nada se de ixa guia r

185
V. supra.§ 76.
186
V. teori a e exe mplificação e m Cícero. Tópicos. § 94 .
187
Cf. § 7: o terna proposto era saber se o sábi o pode estar sujeito ao desgos-
to . ou se é imune a toda a fo rma de dor.

[209]
pela opinião comum sobre a matéria, nem considera justo
martiri za r-se no mais alto grau e deixar-se abater pela dor,
atitude que é a mai s estulta poss íve l. No entanto , embora a
nossa investigação presen te não fo sse no se ntido de saber
se existe algum ' mal ' senão aquele que envolve alguma
forma de baixeza , ac he i que a razão impunha averiguar se,
de facto , tudo quanto existe de ' mal ' no desgosto não tem
nenhuma causa natural , mas, pelo contrário , depende de
um juízo voluntário e resulta de um erro de avaliação .
81 O tipo de desgosto que investi gámos foi o que se con-
sidera o mai s g rave de todos 188 , tal que , eliminado este,
os outros não necess itam grandemente que procuremos
XXXIV remédios para eles. Há-os já bem estabelecidos , que se
repetem com frequência para nos conso lar da pobreza , ou
de levarmos uma vida sem honras nem g lória. Existem
tratados individualizados para tratar do exílio, da ruína
da pátria , da escravatura , da falta de saúde , da ceg ueira,
enfim , de todas as s ituações a que costuma dar-se o nome
de "calamidade". Os Gregos tratam destes temas particu-
larmente , sob a forma de conferências ou de tratados
(ou não andassem eles se mpre em busca de fi Iões para
explorar!; mas reconheça-se que as suas di ssertações são
82 muito agradáveis de ler) ; no entanto, assim como os
médicos , enq uanto tratam da tota lidade do corpo , curam
também qualquer dor que surja na mai s pequena parte
dele , assim também a filosofia, ao eli min ar o desgosto em
termos gerais , elimina também al guma falsa opinião que
surja seja por que causa for , ou as dentadas da pobreza , ou

188
Supra , § 68: o desgosto mais grave de todos é aque le que envolve o
luto, o u seja , as manifestações de dor ocas ionadas pe la morte de algum fa mili ar
(como fora o caso de Cícero co m a mo11e da filha ).

[210]
as picadas da ignomínia , ou as trevas derivadas do exílio,
ou algum dos outros problemas possíveis que acima referi .
Há modalidades de consolação apropriadas a cada situa -
ção indi vidual , de que poderei falar-te 189 quando quiseres .
Mas regresse mos ao nosso po nto de partida : todo o tipo de
desgosto é impróprio do sábio, porque carece de funda-
mento , porque não condu z a nada, porque não tem uma
causa natu ra l, mas, pelo co ntrári o, resulta de uma ap recia-
ção, de um a opinião, de uma espécie de conv ite à dor, de
uma decisão nossa de que ass im nos devemos com portar.
Eliminado este fac to r, que depende totalmente da nossa 83
vontade , todo o desgosto e nvolto e m tri steza será também
eliminado, co nqu anto possa permanecer um certo mal-es-
tar, um aperto, por assi m dizer, da alma. D igam, se qui se-
rem , que isto é natu ra l, desde que não se fa le em "sofri men-
to", palavra dolorosa, terrível, fúnebre , impossível de viver,
e, passe a expressão, de coabitar com a sabedo ri a. Mas que
raízes não te m o sofrimento , como são numerosas, como
são amargas! Importa , po ré m , eliminá- las a todas, mes mo
depois de derrubado o tro nco e , se necessári o fo r, dedicar
uma di ssertação a cada uma delas. Tempo li vre , seja para o
que for, é coisa de que não te nho fa lta 190 ! M as a cau sa de
todas as fo rmas de sofrimento é sempre a mes ma, as desig-
nações é que são muitas . Do sofrimento faz parte a in veja,
a emulação , a calúnia, a co miseração, a angústia , o pranto ,
a tri steza, a sensação de pe na, a von tade de chorar, de sentir
preocupações, de sofrer, e o sentir-se doente, afli to , deses-
perado. Para tudo isto os Estóicos tê m uma defini ção, as 84

189
No texto. l it.: .. de que tu poderás esc utar(-me) ... ··
190
A lusão ao estado ele Cícero no momento presente ... desocupado .. politi -
camente em consequência cio regime ditatorial ele Júlio César.

[211]
palavras que e numere i correspo nd e m a situações parti -
cul ares; ao que parece , não sig ni fica m todas a mesma
coisa, há e ntre e las uma certa diferença. Talvez e m outra
ocasião vo lte a este ass unto . São estes os filamentos das
raízes qu e no início referi 19 1, todos devem ser procurados e
arrancados. para qu e ne nhum possa voltar à vida. Tarefa
importante e difícil. quem o nega? Mas há alguma acção
do home m que seja nobre sem ser trabalhosa? É este tam-
bé m o fruto que a filosofia nos promete, assim nós
sai bamos colhê- lo .
Mas sobre esta matéria já vimos qu anto baste. Sobre
as demais ques tões. seja aqui seja em outro local, estarei
se mpre à vossa di spos ição .

191
. supra. § 13.

[212]
LIVRO IV

São muitas as áreas, Bruto. e m que conte mpl o co m I t


admiração o tal e nto e as ca pacidades dos nossos co nc i-
dadãos; admiro so bre tudo as s uas reali zações na esfera
intelectual 1, a que e les só tardiame nte se ded icaram e que
importaram da Gréc ia para es ta nossa c idade . Se é um
facto que desde os primó rdios de Ro ma , e m parte g raças às
instituições estabelecidas pelos re is, e m parte també m
graças à produção legis lati va~, os auspíc ios, os rituai s
religiosos , as assembleias, os apel os ao povo 3 , as reuniões
do Senado , a repartição da cavalaria e da infantaria , toda a
organização militar, em suma , se tudo isto fo i levado a
cabo de uma forma perfeita, a verdade é que , co m a subs-
tituição do domínio dos rei s pelo reg ime republicano, se

1
Cícero refere-se aos esc rito res que começa ram no séc. 111 a. C. a adaptar
em latim as peças de teatro gregas e a praticar o utros gé neros literários. igua l-
mente de in spiração grega. como a e po pe ia (Névio e . sobretudo. Énio ). e certas
tentati vas no ca mpo da fi lo sofia. de que há vestíg ios també m na o bra de Énio.
2
A trad ição atribui a Rómu lo a in stitui ção do Senado . a Numa Po mpíli o a
organi zação das in stitui ções re li g iosas. a Sé rvio T úli o a organi zação milit ar.
3
Apelos ao povo. lat. prouocmiones. A pmuocmio ac/ popu/11111 era uma
instituição surgida no período das g randes lutas soc iais entre patríc ios e pl ebeu s.
fixada por uma le i da tada de 300 a. C. (a /ex Valeria de prouocarione) . que
punha certos limites à vio lê nc ia puni ti va dos mag istrados rn111 i111perio. pe rmi -
tindo que o cidadão qu e se conside rava vio len tado ou inju stamen te tratado por
aquel e apelasse à intercessão ele um o utro mag istrado de g ra u igual o u superi or.
sobretudo dos tribunos da plebe. que di spunh a m ele poder para torna r nula a
acção do mag istrado prevari cador. Cf. W . Kunk e l - M . Sc herme ier. Ro111i.1che
Rechrsgeschichre, p. 21 .

[2 13]
assistiu a um ad miráve l progresso e uma marcha acelerada
em direcção à exce lência. Não é este o lugar adequado
para fa lar dos costumes e das in stituições dos nossos ante-
passados, nem da organi zação e funcionamento dos órgãos
do Estado; em outras obras minhas já me pronunciei com
pormenor sobre esta matéri a, em especial naqueles seis
livros que dediquei ao tema: A República4 .
2 Presentemente, ao dar ate nção aos estudos de filo sofia ,
deparo com muitas causas que ex plicam não só a sua
importação do estrange iro, mas também o interesse que
despertaram e com que fora m depois culti vados e presti-
giados. <Os nossos maiores> tinham , por ass im dizer,
di ante dos olhos um homem de grande sabedoria e enorme
reputação, Pitágoras, que vivia em Itália pelo mesmo tem-
po em que L. Bruto, o ilu stre fundador da tua linhagem,
deu a Roma a liberdade 5 • As doutrinas de Pitágoras, de fac-
to, ti veram uma irradiação tão grande que me parece, não
apenas ser teoricamente prováve l que elas tenham pene-
trado na nossa cidade , mas também que há indícios de que
tal tenha acontec ido. Será , porventura , possível imaginar
que, enquanto floresc ia em Itália a cultu ra grega, naquelas
prósperas e importantes cidades <da região> conhecida
como a Magna Grécia em que gozava de tão grande
renome, primeiro Pitágoras em pessoa, depoi s os seus
di scípu los , os Pitagóricos, aos ouvidos dos nossos compa-
3 triatas não chegasse o eco das suas sábias palavras? Estou
mesmo em crer que foi a admiração da posteridade pelos
Pitagóricos que deu azo a considerar-se como Pitagórico o

4
Di álogo escrito por Cícero e nt re 54 e 52 a. C.. protagonizado por Cipião
Em ili ano. e m que este e os se us interlocutores analisam a co nstituição romana .
5
L. Jún io Bruto , encabeçou em 509 a. C. a revolução que ex pul sou do trono
Tarquíni o-o-Sobe rbo e fundou o regime repub licano.

f214]
próprio re i Num a 6 • Co mo era be m co nhec id a a fil osofia e
as institui ções ele Pitágoras, co mo a tradi ção cios nossos
maiores cl ava ele uma um a imagem ele equid ade e sa be-
doria , e como a inda a c rono log ia, dada a vetu sta anti guidade
<destes ho me ns> , não estava estabe lec id a ele fo rm a
rigorosa, fo rmo u-se a c re nça ele que um re i do tado ele
sabedori a deveri a ter sido di scípul o de Pitágoras.
Mas qu anto a conj ectu ras, fiqu e mos po r aqui . Qua nto li
à influência do Pitagori smo, e mbo ra fosse possível reco lhe r
muito mate ri a l, ape nas lhe fa re mos umas po ucas refe-
rências, dado qu e não é esse o nosso o bjecti vo presente.
Consta que <os Pitagóri cos > costumava m praticar a poe-
sia a fim de tran s m itire m os seus princ ípi os de uma fo rma
um tanto mi ste ri osa , e pa ra dare m descanso à me nte
depois de medita re m com g rande co ncent ração recorri a m
ao canto e à lira; o ra um a uto r tão séri o co mo C atão di z,
nas Origens, q ue e ra costume nos ba nquetes dos nossos
antepassados os co nvivas prese ntes , cad a um po r sua vez,
entoarem cantos co m aco mpanha mento de fl auta , e m
louvor das virtudes de ho me ns fa mosos 7 . Pode daqui con-
cluir-se que já e ntão e xi sti a m co mpos ições co m no tação
musical , e be m ass im tex tos poéti cos. Ali ás , as pró pri as 4
Doze Tábuas teste munh a m q ue e ra costume j á e ntão
elaborarem-se tex tos poéti cos 8 ; o que a le i punia e ra q ue se

6
Cf. Ti to Lívio. Ah Vrbe condita. 1. 3 1. 8. que mencio na a ex istência de
textos de orientação pitagórica da autoria do rei uma P0111pílio . o que se ri a
impossível. dado que a tradi ção atribui ao governo de Numa o período en tre 7 15
e 673 a. C.. quando Pitágoras teria morrido em 51 O. já no fi 111 da monarquia .
7
V. Die Frühen Rn111ische11 Historiker. 1. fr. 7. 13 (p. 221 -2) = Peter. H. R.
R.. I. fr. 118. p. 92 .
8
Lex XII Tahularu111 . VIII . 1 a: QV I FRVGES EXCANTASS IT ... / QV I
MALVM CA RMEN INCA TASS IT (D. Flach. 2004. p. 120: "!have rá punição!
para quem lançar maldi ção sobre as searas 1-.. 1/ para quem lançar uma impre-

[2 151
compusessem poemas para injuri ar out re m9 • Uma prova de
que estes tempos não desconhec iam totalmente a cultura
está no facto de o prelúdi o dos fes tin s oferec idos aos
deuses e dos banquetes dos magis trados constar de peças
tocadas na lira , tradição es pecífi ca da esco la fi losó fica de
que fal ei10 . A mim, parece- me de influência pitagórica 0
poema de Ápio Cl áudio 11 tão elog iado por Panéc io 1~ numa
epístola diri gida a Q. Tuberão 13 • Mas há muitos elementos
nas nossas in stituições que têm orige m pitagórica, mas não

cação ... - As fo rmas ve rbai s e.r- cantare e in-cantare. o no me carm en parecem


reme ter. neste contexto. para a e laboração de tex tos. possive lme nte em verso.
ma, de conteúdo si mil a r à das chamadas defi.rio1111111 lllhelllle "placas de maldi -
ção". curtos tex tos em pl acas de c humbo o u o ut ros materia is que se lançavam
nas sep ulturas para que o morto transmi tisse aos deuses infe rna is o desejo de
fazer mal a o utre m . O texto das XII Túhuas não deve te r e m consideração o
ca rácter eve111ualme nte poé ti co de tai s textos. mas s im a sua função. pois esta
é qu e me rec ia puni ção. V. a propós it o o come nt ári o de Sé rvio (a V.e rg .. Buc..
8. 71 ): Slllle 1·e1eres ·cal/lare' de 111agico car111e11 diceha111. 1111de e1 ·exca111are'
es1111agici.1 rnn11i11ilm.1 obligare "o, anti gos em pregavam o ve rbo cw11are para
s ig ni fica r a recitação de um tex to rítmico mágico: daq ui que o ve rbo excanwre
s ignifiq ue obter um ce rto efei to e m a lgué m graças a tex tos mág icos" (D. Flach.
2004 . p. 128). A rem issão de Cícero ao tex to da le i não parece . po is . pert ineme.
dado que a função dos "poe ma s .. ca nt ados nos banquetes que Catão menciona
dese mpe nham um pa pe l difere nte.
9
É be m conhec ido o caso do poeta Né vio e o se u (irnag inário'I) confli-
to com a poderosa família dos Cecílios Metel o,. Este caso te m s ido várias ve-
zes aprese111ado como exem pl o do casti go de um poeta por ter co mposto um
poe ma in sultuoso para um ari stocrata . Tal inte rpretação é contestáve l: cf . Naeuius
poew. a cura di Enzo V. Marmorale. Fire nze. 1967: v. e m espec ial as pp. 53-57.
10
I . e .. da esco la pitagóri ca.
11
Áp io Claúdio. o Cego. durante a sua censura no ano :i 12 a. C. mandou
construir a Aq11a Claudia, o prime iro aq ueduto de abastecimen to a Roma. e a
famosa Via Appia. q ue li gava Roma a Brindes (Brn11disiu111 ). O "poema" a que
Cícero alude de ve te r s ido apenas uma reco lha de máximas de vá ria origem. de
que re stam apenas três. v. Frag111e111a Poe1<1r11111 La1i11on1111 . ed. J. Blansdorf.
1995. pp. 11- 13.
12
Pa néc io de Rodes. 185-109 a. C .. fi lósofo estó ico do c hamado período
médi o. A frase de Cícero co nsti tui o fr. A 115 da ed. de E. Vimercati .
' Q. Élio Tuberão. sobrinh o de C ipião Em ilia no. foi di scípulo de Panécio.
1

f2 16J
vou falar di sso, para não dar a impressão de que são de
origem estrangeira pormenores que passam por ser cri ações
nossas. Mas volte mos ao ass unto que estávamos a tratar. s
Em tão breve espaço de te mpo quantos poetas surg iram . e
tão bons, e també m quantos oradores! Deduz-se daqui que
os nossos co nc idadãos foram capazes de obter exce le ntes
resultados, desde o mome nto e m qu e o desejaram.
Mas sobre os demai s ramos de estudo fala rei noutra III
ocasião , se for caso di sso, além de que já abordei este
assunto muitas vezes 14 . Quanto ao estudo da fi losofia , é
certo que já ex iste desde há tempos entre nós, e mbora não
possa referir nominalmente nenhum caso concreto antes
da época de Lé li o e de Cipião 15 • Sei que quando ambos
eram ainda novos visitaram o Senado romano o estóico
Diógenes e o académico Carnéades, enviados como
embaixadores por Atenas 16 ; ora qu alque r destes nunca
tinha participado no gove rno da c idade, além de que um
era natural de Cirene, o outro de Babilónia, pelo que
decerto não teriam ido bu scar nenhum deles à sua escola
nem os teriam escolhido para esta missão se por essa altu ra
não houvesse já em Roma alguém , entre os notávei s da
cidade, que estivesse interessado na filo sofia. Muitos
punham por esc rito outras matérias, un s o direito civi l,
outros os seus di sc ursos, outros a hi stó ria dos seus
antepassados; quanto <à filo sofia> , a mai s co mpleta de
todas as artes , a teoria da vida confo rme à justiça , a esta

14
Alusão às suas obras rel ati vas à orató ri a (De orarore. Oraror. etc.).
à hi s1ória da eloq uência (Brutus). à política (De re puhlica. de /egihos).
15
As du as figuras mais signi ficat ivas do chamado ••círcu lo dos Cipiões··.
ou seja. Gaio Léli o. o Sábio. e o se u am igo P. C ipião Emi liano.
16
E também o peripatético Cri1o lau. Trata-se da '"e mbaixada dos fi ló-
sofos". em 155a.C.

12 171
preferiam vivê-la do que sobre e la escrever. A verd adeira
e bem constru ída filo sofia que , proveniente de Sócrates ,
perdurou até hoje nos Peripatéticos e nos Estóicos, que
dizem a mesma coisa por ou tras palavras , enq uanto os
Académicos procuravam decidir entre as contro vérsias
dos outros , não deu origem a nen huma , ou a quase nenhuma
obra escri ta em latim , ou por causa da dific uldade da
matéria, e das tarefas públicas que se impõe m <aos
eventuais filósofos> , ou ainda po r estes e ntende rem que
tais obras nunca seri am do agrado de gente sem fo rmação
adequada; entretan to , perante o si lênc io dos outros ,
erg ue u- se a voz de C. Amafínio 17 : os livros que ia editando
eram recebidos com g rande en tu siasmo pelo público , que
aderiu prontame nte a esta filosofia , ou porque a julgava ser
de apreensão mais fáci l, ou porq ue se senti a atraído pelas
bland íc ias do prazer, o u ainda porq ue , co mo nada de
melhor tinha sido ainda publi cado , se agarravam àquilo
7 que havia 18 • Depoi s de Amafínio , muitos outros seguidores
da mes ma fil osofia encheram a Itál ia de alto a baixo com
os seus inúmeros escritos , e co nfirmaram a va lidade da sua
doutrina invocando a ausê ncia nestes textos de preocupa-
ções e subtilezas es tilísticas, o qu e to rn a a teoria tão fácil
de se r apreendida que até os mai s ig nora ntes são capazes
de fi carem a co nhecê- la .

17
Sobre Amafíni o e outros e pi c uri stas conte mpo râ neos , v. supra , 1. 6: li . 8.
18
Cícero fal a se mpre com sobran ce ria de C. Amafíni o. e dout ros epicuri s-
tas roma nos do te mpo , por du as razões fundam e111ais: po rque eles . seguindo nis-
so o pe nsamento de Epicuro . não se preoc upa va m grande me nte com as questões
formai s, tais como estil o. te rmino log ia. téc ni ca de composição , val or literário.
etc. : e também po rque o valor supremo que os epi c uri stas propu gnavam. o pra-
zer, e nte ndido, com alguma injusti ça. no se ntid o vul gar do termo, estava nos
a ntípodas do val o r proposto pe las correntes mai s " nobres"·. como a Academi a. o
Perípato e o Pó rti co. que pri vil eg iava m a virtude.

[2 18]
Mas defenda cada um o seu ponto de vista pessoal. já IV
que somos livres de aj ui zar: eu defenderei a minha
posição, uma vez que não estou manietado por dogmas
próprios de nenhuma teoria única a que seja obrigatório
obedecer; em todos os casos procurarei sempre a solução
que se me afigure mais provável 19 . Foi este o procedimento
que adaptei na maioria das situações. e. recentemente,
voltei a socorrer-me dele com todo o empenho nos <meus
diálogos> em Túsculo . Já fiz a narrativa das conversações
travadas nos três dias precedentes, este quarto li vro será
dedicado à quarta jornada. Quando, pois, descemos à
palestra inferior, <a Academia> 20 , como tinha suced ido
nos di as precedentes, o diálogo começou assim:
M .- Pon ho à vossa consideração o tema para hoje: 8
quem propõe o que vamos discutir?
A. - Em minha opinião o sábio não pode estar imune
a todas as formas de perturbação mental 21 .
M .- Bom, ontem chegámos à conc lu são de que , pelo
menos, está isento do ''desgosto", salvo se concordaste
comigo apenas para faci litar 22 .

19
Mais um a veL Cíce ro atirma-se seg uidor da Nova Acade mi a e do se u
objecti vo principa l: proc ura r a solu ção que se aprese nte como a mais pl ausíve l.
io Cf. supra. li. 9: Ili. 7. Na vila de Túscul o o g inás io mai s e levado tinh a o
nome de Liceu. o menos e levado. o de Academi a.
11
Compare-se co m o te ma cio Ili Li vro . Neste a ··tese .. e ra: .. o sábi o não
está imune ao desgosto .. (que é um a forma de perturbação da mente). e todo
o livro fo i clecl icaclo a este te ma. O prese nte Li vro IV ass istirá à di scussão das
outras três fo rmas de pe rturbação ex iste nt es: o medo. a a leg ria des mesurada e o
desejo (c f. supra Il i. 24-25 .
'" Lat. remporis Cl111sa. lit . ··por cau sa cio tempo··. ex pressão que pode se r
entendida de vá ri as mane iras: porque se esgotou já o tempo di sponíve l para o
debate (Gi gon): por amab ilidade (Fohl en-Hum bert) ocas ional (Z ucco li C lerici).
para despachar (J . E. King).

12191
A. - De modo ne nhum! A tua expos ição fo i a bso luta-
me nte co nvince nte.
M .- Não pe nsas, po rta nto, q ue o sáb io está sujeito ao
desgosto?
A. - Já não pe nso ta l coisa!
M . - Mas se esta pe rturbação não pode afecta r a mente
do sábi o ne nhum a out ra o poderá. Q ue achas? Será que o
medo o pe rturba? O medo te m po r objecto a ausê ncia de
ce rtos fac tos c uj a presença ocas iona o desgos to; se, por-
ta nto, co nseguirmos e liminar o desgosto, e limin aremos
ta mbé m o medo. Resta m agora d uas fo rmas de pe11urbação.
o prazer de li ra ntec1 e o desejoc4 . Se ne nhuma destas puder
a Ai g ir o sá bio, e ntão a me nte do sáb io gozará se mpre de
tranqu iIidade.
9 A. - É essa a minh a ide ia.
M .- O que pre fe res que faça mos? Desfra lda mos já as
ve las, ou va mos um po uco a re mos, co mo se es tivéssemos
a sair do porto?
A. - Que que res d ize r? ão pe rcebo.
M .- Fa lo ass im po rqu e C ri s ipo, e os Estó icos em
ge ra l, qu a ndo d isc ute m as pa ixões da a lma~5, oc upam a
ma io r pa rte do te mpo co m as di v isões e as defi ni ções de
cada um a, mas po upa m muito as palavras q ua ndo se trata
de fi xa r os me ios para as c ura r o u preve nir a sua ec losão:
os Pe ripaté ti cos, e m co ntrapartid a. pro põem muitos méto-
dos para dar tranquilid ade à me nte, mas não se preoc upam

"' --PrnLer delirante .. = lat. laetitia (que Cícero u,a its ve,es com o ,entido
de .. pra7er... lit. 110/upta.1) ge.11ie11.1 ("de lirantc ... lit. que faz muitos gestos . muitas
demonstrações de e ntu siasmo ).
2"' -- Desejo" = lat. libido "paixiio violen ta, depravação .. ).
" Damos à ex pressão --paixões da alma .. o mesmo sentido que a --penurba-
ções da me nte .. .

1220 1
com as acro bac ias~6 de di vidir e defi nir. O qu e e u te
pergunto é se devo desfra ldar já as ve las do di sc urso, o u
se recorrere i po r a lg um te mpo aos re mos da dial écti ca.
A. - Prefi ro a seg unda hipótese ; deste modo, o po nto
que me interessa res ultará mai s cl aro reco rre ndo a ambos
os métodos .
M .- É o método ma is directo; mas não te esqueças de IO
perguntar aquil o que ac hares obsc uro .
A. - Fá- lo-ei certame nte. Mas tu , co mo de res to , cos-
tumas, ex plica os po ntos o bsc uros co m mai o r clareza do
que fazem os Gregos.
M. - Pe lo me nos te ntare i. Mas mantém o es pírito be m
atento, porque se a lg um po nto te escapar, tod o o edifíc io
cairá por te rra .
Uma vez que dec idimos tradu zir o te rmo grego ná817n
por " perturbações da me nte" e m vez de po r "doe nças" ,
a fim de as ana li sar vou reco rrer à co nce pção pro posta
inicialmente por Pitágo ras e de poi s aceite por Platão , que
distingue du as partes na a lma , um a qu e parti cipa , o utra
que não parti c ipa da razão; na que partic ipa da razão
colocam e les a tra nquilidade, isto é , um estado aními co
equilibrado, ca lmo e se reno; à o utra parte atribu e m os mo-
vimentos co nfu sos ora da ira , o ra do desejo 28 , mo vime ntos
estes qu e são co ntrári os e hosti s à razão . Esta ide ia se rá o ll
nosso ponto de partida . No entanto, para desc reve r as vári as
perturbações recorrere i às d iv isões e defi ni ções dos Estó icos ,
que, nes ta questão, me parecem de gra nde subtil eza .

6
' No te xto. o 4ue traduLim os po r ··acrobac ias .. é sp i1ws. palav ra que suge re
a ideia de "'d ific uldade"'. mas ta mbé m a de "' minú c ia. excesso de s ubtil eza··.
7
' Us ua lme nt e tradu L-se rrú011 por ··paixões ... ma s Cíce ro prefe re -- pe rtur-
bações mentai s .. (nun ca "'doe nças me nt a is).
28
Aqui co rresponde ao lat. cupiditas.

[22 11
VI Zenão define a perturbação, o que ele chama rcá8oç,
como sendo "uma movimentação 29 da mente oposta à
recta ra-::,ão, e contrária à nature-::,a 30 " . Alguns, de fo rma
mais concisa, definem perturbação como "um desejo31
muito inten so", e chamam " muito intenso" ao desejo que
se afasta consideravelmente do eq uilíbrio natural. Pre-
tendem em seguida que as perturbações se su bdividem
entre as que se originam na opi ni ão re lati va a dois bens ,
por um lado, e relativa a dois males, por outro . Há, portanto,
quatro espécies' 2 ; origi nadas pelos bens, temos o 'desejo '33
e o 'pra-::,er' '4, o prazer como re lati vo aos bens presentes,
o desejo como relativo aos bens futuro s; consideram origi-
nados pelos males, o ' medo ' 35 e o 'desgosto' 36 , relativo aos
futuros o medo, relativo aos presentes o desgosto; os males
que se aproximam causam-nos medo, esses mesmos
<males>, se já nos atingiram , in spiram-nos desgosto .
12 O prazer e o desejo dizem respei to à opinião que faze mos
sobre os "bens": o desejo exerce-se, ardentemente aliciado,
sobre algo que se considera um bem, o prazer entu siasma-se
desmesuradamente por algo muito ambicionado que já se

19 O termo latino que traduzimos por '·movimentação.. (também pode ría-

mos ter esc rito --movimento··) é co111mo1io. palavra fo rmada de com- (cwn-) +
11101io "movimento... que deu em portu g uês --comoção ... Não usamos este termo
porque em português já se perdeu o nexo etimológico com '·movimento'·, noção
que está mui to prese nte no termo latino: uma co11111101io. li t. uma .. movimentação
conjunta·· corresponde a uma alteração no estado mental. isto é. todos os seus
e lementos mudam. por assim di zer. ele colocação. como as pecinhas ele vidro que
se deslocam num ca lei doscóp io formando image ns nunca absol ut ame nte iguais.
10
V. Stoici a111ichi. p. 96 (= S. V F. , 1. 205)
11
· Lat. adpe1i1us.
31 Sobre a subdi visão elas pe rturbações ela men te. cf. supra . Ili. 24-25 .

ll Lat. lihido.
34
Lat. /ae1i1ia.
35
Lat. 111erus.
36
Lat. ae[! rill1do.

[2221
obteve . Por natureza, todos os ho me ns proc uram obte r o
que lhes parece ser bom , e ev itam o contrário . Por este
motivo, mal se nos apresenta a imagem de algo que parece
ser um bem , de imediato a própria natureza impele-nos a
tentar alcançá- lo. Quando este <impul so> ocorre de uma
forma equ ilibrada e prude nte os Estóicos chamam- lhe
~oúÀ11mç, e m latim chamamos-lhe "vontade" 37; e nte nde m
eles que ape nas ex iste no sáb io, e defi nem -na nestes
termos: "vontade é o desejo que se processa de acordo
com a razão" . Qu ando tem a forma de um impulso muito
forte e con trário à razão, trata-se de desejo o u a nseio
desmesurado 38 ; é o que se verifica no caso de todos os
insipientes 39 . Igualme nte, quando a nossa mente te m a 13
impressão de estar a gozar de algum bem , te mos duas
possibilidades: se a no ssa me nte é afectada de uma fo rma
tranquila e eq uilibrada , co nforme à razão, di z-se que
sentimos 'alegria' 40 ; mas, se a mente se exci ta de uma
forma descontrol ada e sem rumo, temos o estado a que se
pode chamar " prazer desmes urado, ou excessivo" 41 , que
<os Estóicos> defi nem assi m : "uma exaltação da mente
sem interferência da razão". E assi m co mo nós proc ura-
mos por natureza os " be ns" , ig ualmente nos afasta mos por
natureza dos " males"; a este afastame nto , se moti vado
pela razão , damos o nome de " precaução" 42 , e devemos

37
Lat. uo/1111/as. - Sobre a definição de ~0ÚÀ17olç v. Stoici a11tichi , p . 11 78
(= S. V.F. , 111 .431).
38
Lat. /i/Jido uel cupiditas e.ffrenata .
39
Lat. stulti , lit. ··estúpidos. in sipientes"' (todos os se res hum anos com ex-
cepção do sábi o).
40
Lat. gaudium ; corres po nde ao grego XUQá (Stoici an tichi, p . 11 80 = S. V.
F, 111 . 433 )
·H Lat. laetilia gestiens ue/ ninlia.
42
Lat. cautio.

[223]
considerar que apenas é apanag10 do sábio ; se , pelo
contrário, não é fruto da razão , mas sim de um estado de
prostração e pusilanimidade, toma o nome de " medo", o
14 qual é uma forma de precaução contrária à razão . A pre-
sença de um mal não afecta em nada a mente do sábio;
no caso dos insipientes to ma a fo rma do ' desgosto ' , os
qu ais reagem deste modo perante o que consideram como
males, <o que se traduz> num estado de abatimento, numa
'contracção ' da mente surda à voz da razão. Daqui a
primeira defi ni ção: o ' desgosto ' consiste num "aperto da
alma ,.n em co nflito com a razão 44 . As perturbações mentais
são, portanto, quatro , mas os 'estados de equilíbrio ' 45 são
apenas três, porque não há nenhum estado de equilíbrio
que seja o co ntrário do 'desgosto ' 46 .
VII Todas as perturbações mentais decorrem, segundo
<os Estóicos>, de um juízo e de uma opinião. Por isso
defi nem-nas de uma forma exausti va , para que se perceba,
não só até que ponto elas são viciosas , co mo também em
que med ida podem ser por nós co ntroladas. Deste modo , o
'desgosto ' é uma opinião rece nte sobre um mal presente,
relativamente ao qual a atitude correcta parece ser o abati-
mento e o aperto da alma; o ' praze r' é uma opinião recente
sobre um bem presente , em que a atitude correcta parece
ser a exaltação; o ' medo ' é a opinião relati va a um mal
iminente , qu e se nos afigura como in suportável ; o 'desejo'
é a opinião sobre um bem futuro , que gostaríamos de ter já
à nossa di sposição para dele gozar4 7 .

-D Lat. animi ... co111ra ctio .

"" Cf. Sroici a111ichi.p.1166 (= S. V. F. , Ili , 412 ).


"' Lat. cm1sta11tiae = grego EÜ rráÜELat .
6
" Cf. Diógenes Laé rc io. V II . 115- 116.
7
" V. Sroici a11richi. pp . 1058- 1060 (= S. V. F., Ili. 394).

[224]
Mas <os Estóicos> acrescentam que os JUtzos e as IS
opiniões relativas às perturbações mentai s que e numerei
não abarcam apenas as perturbações em si, mas igualmente
as manifestações que delas decorrem ; por exemplo, o ' des-
gosto ' manifesta-se como uma espécie de ferida 48 causada
pela dor, o 'medo' como uma espécie de retirada , de fuga
da alma, o ' prazer ' como uma inesgotável sati sfação, o
'desejo' como a avidez in saciável de alguma coisa. <Ainda
de acordo co m os Estóicos>, a formulação de uma opinião
que in serimos em todas as definições precedentes não
passa de uma forma débil de assen timento.
Às perturbações mentais subordin am eles as respecti vas 16
espécies dentro de cada género.
Assim , <como espécies> de "desgosto" te mos : a
' in veja' 49 (por razões de ordem pedagógica recorro a um
termo pouco usado, dado que inuidia não se emprega
apenas em relação àq uele que inveja , mas também ao
que é objecto de inveja) , a 'em ul ação', o 'c iúme', a 'com i-
seração', a 'angústia', o ' lu to' , a ' tristeza ', o 'sofrime nto',
a 'dor ', o ' lamento' , a ' preocupação', a ' inq uietação ' , a
'aflição ', o' deses pero ', e todas as demais co mponen tes do
mesmo gé nero .
Do " medo" temos co mo espécies: a ' pregui ça', a 'ver-
gonh a', o 'terror' , a ' timidez ', o ' pânico', o ' desânimo ' , a
'deso rientação', o 'receio '.
No " praze r" 5º incluem-se a ' mal evolência' , isto é , o
sentir aleg ri a com o mal dos o utros, o 'deleite', a 'jactân-
cia', e similares.

48
Lit. "mord ida" (lat. 111orsus).
49
Lat. i11uide111ia, criação vocab ul a r do auto r para ev itar a ambi g uidade
inerente ao termo con-e nte. i11uidia: v. a exp li cação que o pró pri o Cícero ofe rece
sobre o assunto. su pra. Ili. 20.
50
Lat. 110/upras.

[225]
No "desejo" 51 temos: a ' ira ', a 'fú ri a', o 'ódi o', a ' ini-
mizade' , o 'rancor', a ' insaciabi lid ade ', a 'obsessão', etc .52.
Vejamos agora as definições que <os Estó icos>
propõe m <para " desgosto"> .
' In veja ' chamam eles ao desgosto causado pela
prosperidade de alg uém que e m nada preju di ca o invejoso.
VIII 17 (Se alguém sofrer co m a prosperidade de qu e m lhe causa
algum dano não se pode propriamente fa lar de inveja,
co mo no caso de Aga mé mnon re lativame nte a He itor53 ; no
caso de alguém a quem os sucessos de outre m nada prej u-
dicam se se sentir desgostoso po r isso, e ntão sim , temos
um caso de in veja).
'Emulação' em prega-se e m duplo se ntid o. com cono-
tação pos it iva. o u negati va 54 . Pode usa r-se a pal avra para
de signar a 'imitação da virtude' alhe ia. e neste caso tem
valor positivo. pelo que não cabe na presen te exposição.
A ·em ul ação· torna-se uma forma de desgosto quando
alguém deseja arden temen te algo qu e não consegue obter.
mas vê nas mãos <do outro>.
"Ciúme ' , palavra que eu ente ndo no sentido do grego
t 171-.or u:rtfo, é o desgos to de ver a lg uém apropriar-se do
que desejávamos para nós.
18 'Co mi seração' é o desgosto pe la mi séri a de alguém
que sofre injustamente (uma vez que ningué m te m pena de
ver supli ciado um parri cida ou um traid or).

51
Lat. /uhido (va riante fon ética da forma mai s usada lihido).
51
V. em Di ógenes Laérc io. VII. 111 - 114. os termos gregos que correspon-
dem às várias espécies de pertu rbaçõe s enumeradas por C ícero.
53
Agamém non. co mo comand ante das força s gregas. e Heitor. como co-
mandante das forças troianas . são inimi gos. mas não há razões para que algum
deles tenha inveja do outro.
50
Neste caso tal vez fosse pre feríve l fa lar e m •ri va lid ade·.

[226]
' An gústia ' é um desgos to op ress ivo ; ' luto ' é o des-
Posto ca usado pe la perda crue l de alg ué m que nos era
o
querido ; ' tri steza ' é um desgosto que provoca as lág rim as;
'sofrimento' é um desgosto contínu o; ' dor ' um desgos to
cruel; ' lame ntação' um desgosto acompanhado de g ritos;
'i nquietação ' um desgosto qu e não nos sai do pen sa mento ;
'aflição ' um desgosto que provoca sofrime nto fís ico;
'deses pero' um desgosto em qu e não ex iste qualquer espe-
rança de me lho ri a .
Das espéc ies de " medo" são estas as respecti vas defi -
nições:
' Preg ui ça' é o medo do esforço que se nos impõe 55 ;
o 'terror ' é um medo que nos abala , e do qual resulta que, 19
tal co mo a ve rgonh a nos fa z corar, assim o terror nos faz
empalidecer. a lé m de pro voca r també m calafrios e ran ge r
de dentes: a •timidez' é o medo res ultante da prox imidade
de um mal: o ·pâni co· é o medo qu e nos faz perder o bom
senso . co mo o descrito por Éni o no ve rso
O pânico extraiu-m e do p eito exâ11i111 e toda a
5
[rac ionalidade \ ·

o 'desânimo ' é o medo sub sequ e nte e, po r as sim dizer, o


acompanhante do pâ ni co: a ' desorie ntação· é uma for ma
de medo que impede toda a re flex ão; o 'rece io ' é um medo
que nun ca passa.

55
No ~ 16 supra. entre a ·preg ui ça· e o ·terror· fi gura a ·vergo nha ·. de que
fa lta aqu i a defini ção. Para suprir a lacun a têm sido sugeri da s vári as poss ibilida-
des . mas nenhuma se impõe .
56
Én io. Alc111éo11 . 26 Warmin gton.

[2271
IX 20 Passe mos às de fini ções das várias espécies de prazer' 7:
' Ma levo lê nc ia' ' 8 é o prazer no ma l dos o utros , mes mo
que não nos traga qu a lque r pro veito .
' De le ite. ' 9 é o prazer q ue nos e nca nta o es pírito pela
suav idade das se nsações audit ivas; e ta l co mo há um pra-
ze r prove ni e nte da aud ição , o utro s há qu e de le itam a vista.
o tacto , o o lfac to e o gosto; todas estas se nsações são
do mes mo gé nero e impreg na m a alm a co mo se fos sem
praze res no estado líquido .
' Jactânc ia ' 60 é um praze r de lira nte , que se manifesta
de fo rm a in sole nte.
21 Segue m-se as definições das es péc ies de "desejo":
' ira ' é o desejo de punir qua lqu e r um que nos pareça
te r-nos lesad o injusta me nte 61 ; a 'fú ria ' é a ira no mo mento
e m que se o ri g ina, acabada de surgi r, co rres po nde ao que
e m g rego se di z Oúµwol<;"~; o 'ódi o' é um a ira pe rmanente;
a ' inimi zade ' é aque la ira que es tá à es pre ita da hora da
vin ga nça; o 'ranco r ' é uma ira muito vio le nta, que se
fo rma no po nto ma is íntimo do suj ei to; a ' in saciab ili dade'
é um desejo nun ca sati sfe ito; a 'obsessão' 6·' é o desejo
de e nco ntra r a lg ué m que a inda não está prese nte. Aqui
<os Estó icos> int rodu ze m a inda um a o ut ra di stinção,

57
Lat. 110/upws.
58
Lat. 111ale110/e111ia (lit. •má vo ntade· J.
:w Lat. delecratio.
60
Lat. iacwtio.
,,1 esta acepção •ira· confunde -se co m o desejo ele •vinga nça·.
6
' Lat. excw1desce111ia "a e moção que nos faL s ubir o sangue ao rosto. que
nos fa z ficar a/iJgueados ...
11
' O termo latino co rres pondente . desideriu111. poderia servir para traduzir o
conce ito ele --saudade" (G igon . o tradu to r a le mão. e mprega aqui Seh11such1. que
o utra co isa não é se não a nossa ·saudade'). Mas sucede qu e C ícero pretende dar
aqui ao term o uma conotação muito negati va. daí termos esco lhido "obsessão ...
que tra nsmite uma ideia ele excesso e de deseq uilíbrio.

1228 1
definindo o desejo como tendo por objecto aqueles predi-
cados que se atribuem a ce rtas coisas ou pessoas, aquilo a
que os dialécti cos chamam xai:riyogriµm;a "atributos",
como por exemplo 'possuir riquezas', 'receber honrarias',
ao passo que ' insac iabilidade' visa as próprias coisas,
como as " honrarias" 6-1 ou as " riquezas".
Dize m ainda <os Estóicos> que a origem de todas as 22
perturbações está na intemperança; e esta co nsiste na re be-
lião assumida pe la mente humana contra a justa razão,
uma <rebel ião> tão radical co ntra as prescri ções da razão
que se torna em abso luto imposs íve l dominar e refrear os
apetites da alma. Do mesmo modo , portanto , como a
temperan ça acalma esses impul sos, obriga-os a obedecer
à justa razão e prese rva os juízos ponderados da me nte,
assim també m a sua inimiga, a inte mperança, infl ama ,
confunde e excita todo o equ ilíbrio me ntal ; daqui nasce m ,
por conseg uinte, os desgostos, os medos e todas as de mai s
perturbações me ntais .
O san gue contami nado, o excesso de mucosidades e X 23
de bílis dão origem no corpo a doe nças ou enfermidades
crónicas; de mane ira se melhante a afluência co nfu sa
de ideias e rrón eas, e as próprias co ntradi ções entre estas,
tudo isto rouba a sa nidade à mente, na qual introdu z
um confuso estado doentio . Das perturbações da me nte

M J;í ternos notado por di ve rsa s ve1:es 4ue o te rmo latino honores des igna as

altas magistratura s da república romana e m s i mes mas 4ue const itue m o cur.rns
l1011orw11. Mas Cícero a4ui introdu L um s ubtil di stinção e ntre as ··honras .. pro-
priamente ditas. i. e .. os cargos. e a ··honra··e m 4ue a sua ocu pação e nvo lve cada
mag istrado . aquilo a 4ue poderíamo, c ham ar a ··honrari a··. a distinção . à maneira
das pe rsonalid ades di stinguidas com condecorações da, c hamada, "'ordens ho-
noríficas"'. Em lat im a pala vra usada é a mes ma . /wnores: com o uso do te rmo
"honrarias .. pretendemos conci liar num mesmo vod bulo as duas noçõe s.

12291
resulta m prime iro as doe nças 65 , a qu e <os home ns do
Pórti co> c ha mam voof]µm:a . depois os estados opostos a
es tas doenças, caracte ri zados por um a aversão 66 infundada
e um senti me nto de reje ição 67 re lativa a ce rtas coisas, e por
fi m as mo lésti as cróni cas 68 , o u àggwoi;f] µm;a, na termi-
no logia dos Es tóicos. e bem ass im as ave rsões co ntrárias
o postas a es tas < mo lésti as> . O Estó icos. e m es pecial
C ris ipo, gastara m demas iadas e ne rg ias co m esta matéria,
dada a sua vontade de coloca rem e m para le lo as doe nças
do corpo e as doe nças da me nte q ue se lhes asse me lham 69 .
Pe la minh a pa11e opto por passa r por alto todo este discurso.
de res to, tud o me nos impresc indíve l, e vou co ncen trar-me
nos po ntos de fac to esse nc iais.
24 Te nh a mos prese nte que o estado de co nfu são mental
ca usado pe la invasão das opiniões está e m pe rpétuo e
instáve l movi me nto. Qua ndo, poré m , toda es ta ag itação
e exc itação c riar raízes na me nte e. po r ass im di ze r, insta-
lar-se nas ve ias e nas e nt ra nh as, surg irão as doe nças . as
e nfe rmidades cróni cas, e també m os estados opostos a
XI estas doenças e e nfe rmid ades. Es tes estados a que me
refi ro são di stintos teori came nte, mas na rea lid ade estão
li gados un s aos o utros, e tê m todos a sua o ri ge m no desejo
e no praze r. De fac to. q ua ndo se se nte um desejo áv ido
da riqueza e não intervé m de imed iato a razão como
um tratame nto soc rát ico para c ura r de ta l desejo, o mal

65
Lat. 11wrhi.
66
La:. ri/fensio.
67
Lat.fas1idi11111.
68
Lat. aegro1a1io11es.
69
Sobre este tema. os fragme ntos agrupados nos S. V F.. Ili sob o título De
proc/i11i1a1e. 111orbo. aegro1C11io11e ·'Sobre a predi sposição. a doença e a moléstia
crónica ... com os números 421 a 430. são. na sua maioria . ex traídos das Tusrnla-
11as de Cícero.

[2301
permanece nas ve ias, fica in stalado nas vísceras, dá lugar a
uma doença , a uma enfermidade impossível de e rradi car
quando se torna in veterada: esta doe nça tem o nome de
avareza. Observa-se o mesmo com as restantes doenças, 25
a ambição da gló ria , a queda para as mulheres 70 , para tra-
duzir o que os Gregos chamam cj)LÀ.oyu v(a , e similarmente
nascem as restantes doenças e enfermi dades . Os estados
opostos a estes, pensa-se que têm origem no medo, como
a aversão às mulheres, posta e m cena no Mwóyuvoç;
"O Mi sóg ino", de Atílio 7 1, ou a aversão geral ao género
humano , de que temos um modelo em Tímon 72 , co nhec ido
como o µwáv0gwnoç; " o mi santropo", ou ainda a inospi-
talidade: todas estas são enfermidades da alma que tê m
origem num certo medo relati vo a situações que se evitam
e detestam .
A defini ção estó ica de uma 'enfermid ade crónica da 26
mente ' 73 é como seg ue : " uma convicção <errónea> 74
muito f orte, gravada e como que enrai:: , ada na mente, que
nos apresenta como altamente desej ável uma coisa na
realidade indesejável " . Os estados anímicos resultantes de

70
Lat. mulierosiras (c riação vocabul ar de C íce ro) .
71
Co medi ógrafo latino. au tor de pal/iatae. i .e .. ele comédias im itadas dos
Gregos, tai co mo o fora m Pl auto e Terêncio.
72
Tímon de Atenas. perso nage m hi stórica (teri a vivido em Atenas no
tempo da Guerra do Peloponeso). mas rap idame nte envo lta em lend a. que. por
despeit o pela fo rma in grata co mo os amigos o trataram. se retirou ela cidade e
se tornou ""misant ropo··. A sua história inspirou a peça ele Shakespeare Ti,110,1
of Arhens. Na comédia ele Aristófane s. As aves. há um a al usão à sua figura:
Prometeu . que odeia todos os deu ses. define -se a si próprio co mo um T [µwv
xa0aQÓÇ "" um puro Tímon·•.
73
Lat. animi aef!,rolatio.
74
Lat. opinaria (i .e .. um a convi cção derivada ele uma opinião. e não ele um
saber).

[2 31 J
uma ' rejei ção' 75 são definidos nestes termos: ··uma con-
vicção <errónea>76 muito forte, i ravada e como que
enra i::,ada na mente, que nos apresenta como devendo ser
evitada uma coisa que na realidade não devemos evitar".
A convicção errónea 77 de que fa lo consiste no conve nci-
me nto de qu e se sabe algo que se ignora. São exemplos de
es péc ies da 'enfermi dade cró ni ca·, entre outras, ' avareza',
'amb ição ', ' qu eda para as mulhe res ', 'obstin ação ', ' gul odi-
ce', 'alcooli smo ', 'gul a· 78 , e sim ilares. A ' avareza' define-se
como ''uma convicção <errónea> muito forte, gravada e
como que enraizada na mente, que nos apresenta a rique-
::,a79 como algo muito desejável " . Segue m este modelo as
defi ni ções das outras es péc ies do mes mo gé nero.
27 São també m si milares as defi ni ções das es péc ies de
reje ição: por exe mplo. a ' inospita lidade ' é "a convicção
<errónea> muito fo rte, gravada e como que enraizada na
mente, de que devemos evitar a todo o custo dar hmipitali-
dade a alguém ". Do mesmo modo se de fin e o ódi o às mu-
lhe res , como fo i o caso de Hipólito, ou ao género humano,
como era o de Tí mon80 .
XII Passo ago ra ao para le li smo com a saúde ; e mpregarei
por vezes esta analog ia, e mbora ma is moderadamente do
que costumam faze r os Estó icos. O ra ass im co mo certos
homens têm te ndência para certas doe nças , <e outros

75
Lat. of/e11sio.
76
Lat. opi11io ('opin ião·).
77
Lat. opi11atio.
78
Lat. c111ari1ia. a111bi1io. 11111/ierosiws. peruicacia. liguri-itio , 11i1111/e111ia,
rnppedia. respecti va me nte.
79
Lat.pern11ia lit. "dinheiro".
80
Hi pó lito. fi lho de Tese u e da ra inh a das Am azonas. despertou em Fedra.
sua madrasta. uma paix ão avassa ladora. que e le. ou por razões religiosas (na
tragéd ia de Eurípides). o u por mi sogi ni a (na versão de Sé neca) . rejei tou. - Sobre
T ímo n de Atenas. v. supra *25 e nota 72.
[232]
para outras> - por exe mpl o, di ze mos qu e un s te nde m para
as enxaq uecas, outros para as cólicas abdominai s, não
porque neste mome nto esteja m sofre nd o , mas porque
sofrem destes males com algum a freq uê nc ia -, do mesmo
modo algun s há co m prope nsão para o " medo" o u para
qualquer outra ' pe rturbação mental '. Ass im , há homens
em que domina a ' ansiedade' (chamamos- lhes ' ansiosos '),
enquanto o ut ros são ' irascíveis' 81 • O ra este estado difere
da ' ira ', uma vez que não é a mes ma coisa ·ser irasc íve l'
ou ' estar irado' 8 ~, tal co mo a ' ansiedade ' difere da ' ang ús-
tia ' (ne m são sempre ' an siosos' os que ocasionalmente
estão ' angustiad os ', nem os que são 'ansiosos ' estão
'ang ustiados ' 83 se mpre), ou como não signi fica m o mes mo
"embriaguez" e " a lcooli smo" 84 , nem é a mesma coisa
'ser obcecado por mulhe res' o u ' estar e namorado ' 85 .
E ta tendê ncia de un s para estas, outros para aquelas

81
Lat. (noutros predomi na a) irac111 ulia. são propensos à ira. logo. são
' irascíveis'.
81
Nota-se bem a d iferença se re pararmos na reparti ção e ntre estes adjec-
ti vos dos ve rbos copul ativos "ser" e ··estar" : X É irascíve l (é pote nci almen te
irascível ). mas X ESTÁ irado (neste mome nto o atributo que ex isti a em potên c ia
passou a ex istir em acto).
8.\ Este paralelismo s ublinhad o por ícero
é transparente e m latim : w1.ri11.1·
anxieras (pronúncia: a11KSi11s. an KSietas) tem a mesma rai z que a11Gor ( 1: w1-
gor. oris nome: 2: ª"liºr ve rbo na voz passiva ). A consoan te ve lar KIG rea li1.a-se
como sonora antes de vogal (a 11Gor). mas como surda an tes da sibilan te surda
S (anK-Sii. a11 K-Siews ). Em português. porém. já o parale li smo não é imedia -
tamente visível en tre w1Siedade e a11G1ístia (cf. a inda outra rea li Lação fonética
poss ível: a11Gi11a).
114
"EmbriagueL ... estado ocas iona l de a lg uém que ··bebeu dema is". "alcoo-
lismo". tendência que a lguém tem para "estar sempre a beber demais ... Em latim
os dois termos correspondentes têm a mesma derivação morfo lógica: ehrietas e
ebriosiras. respect ivamente.
85
Percebe-se melhor a dife re nça se recorrermos aos doi s verbos copulat ivos
"ser" e "estar": ·ser obcecado por mulh eres·= ser um "donjuan". um "casanova"
<> "estar enamorado"= estar neste 11w111e11to apaixonado por alguém. Em latim :
amaror /esse) = estado permanen te <> w11w1s /esse)= estado ocas ional.

12331
'enfe rmidades' te m um alca nce mu ito vasto, uma vez que
28 di z respe ito a todas as ' perturbações me nta is'. Verifi ca-se
o mes mo ainda no caso de muitos víc ios que carecem
de um no me es pec ífico. Ass im é qu e da mos os no mes de
' in vejosos', ' mal évo los ', ' dev assos ' 86 • ' timo ratos', 'com-
pass ivos' aos qu e tê m tendênc ia para estas pe rturbações,
não a q ue m está sem pre sob o seu efeito. C hame mos assim
a esta te ndê nc ia cada qu a l para o seu gé ne ro 'enfe rmidades
cróni cas', à se me lhança do q ue se passa com o co rpo , desde
que te nh amos presente q ue se trata de um a tendência
para a e nfermidade. o contex to dos ' bens', como uns
<homens> são mais aptos para a lgun s de les, e o utros para
outros , pode mos empregar o termo de " inc linação" 87 , e
reserva mos " pro pe nsão" para o caso dos ' males' , para
sugerir a ide ia de qu e se trata de um a ' queda' 88 ; em con-
tex to neut ro e mpregaremos o te rmo inic ia l89 .

86
Traduz o termo latino lihidi11osi, que é uma conjec tura de Pohlenz para
substituir a li ção dos mss .. /iuidi .. invejosos . ciumentos.. . Fohlen- Humben.
J. F. King. Zucco li Cleri ci imprimem /e1 li11idi /. que tradu Le m por .. jaloux ...
.. jealous .. . .. ge losi ... res pectivamente. Gigon ace ita a proposta de Poh lenz
(= Zuchtlosen). que também seguimos.
87
Lat. facil i1as.
88
Nos parágrafos precedentes Cícero refe riu -se muita s vezes ao que ele
chama a .. tendência .. para esta ou aquela 'e nfermidade·. O termo genérico que
tradu zimos por ··tendência.. tem sido se mpre procli11 i1as. Sucede que até agora
Cíce ro tem estado a teori zar apenas sobre as enfermidades. que. obvia mente. só
podem se r class ifi cadas co mo ·males·. Neste ponto. porém . sen tiu a necess idade
de di stin guir termin olog icamente a ·tendência para o ma l· e a ·tendência para o
bem· . Ass im propõe reservar para a ·tendência para o mal' o termo procli11i1as.
lit. .. plano inclinado. inclinação.. porq ue nele se cont ém a ideia de 'queda',
'perda de equilíbrio' (lat. /a psi o = lapsus) . e suge re o termo faciliws para
designar a ·tendência para o bem· . Con trariando a etimo logia. dado que Cícero
ainda não tin ha manifestad o a sua vontade de dar a .. tendência .. uma conotação
negativa. dec idimos cont inuar a empregar .. tendência .. quando o nome tem urna
conotação neutra . especia lizar .. propensão .. para a tendência negati va, e introdu-
zir .. incl inação .. qu ando o contexto im pli ca uma conotação posit iva.
89
Esta distinção de contex tos remete para a teoria estóica dos indiferentes.

[234]
Do mes mo modo como a respeito do corpo podemos XIII
di stinguir e ntre 'doe nça', ' e nfermidade cró ni ca ' e ' defi -
ciência ' 90 , <uma distinção similar> deve fazer-se a respeito
da mente. Chama-se 91 "doença" a uma alteração general i-
zada da totalidade do corpo, "enfermidade c rón ica" a uma
doença acompanhada de um estado e nfe rmi ço permane nte ,
e "deficiência" quando há um a desarmonia e ntre as vári as
partes do corpo que tem por resultado a malformação , a
di storção ou até a fea ld ade dos me mbros .
Os doi s prime iros estados, ou seja , a doe nça e a e nfer- 29
midade crónica, surgem qu and o ocorre a lg uma causa qu e
aba la e confunde o eq uilíbrio de todo o corpo; a defi c iê n-
cia é, em si, detectável à vista e independe nte da saúde.
Pelo que di z res peito à me nte apenas e m teoria pode-
mos di sting uir a doe nça e a e nfe rmidade crónica; o 'estado
defic iente' 92 , pe lo seu lado , consiste num certo modo,
numa dada di sposição inconsta nte ao longo da vida e se m-
pre em desacordo consigo mes ma . Daqui resu lta que, num
primeiro tipo de degradação das opi ni ões , as co nsequê n-
cias são a doença e a e nfe rmid ade cró ni ca, e nquanto num
segundo tipo são a in co ng ruê ncia e a co ntradição 9 ' . em

90
Empregamos ··defici ê nc ia·· para tradu zir o termo latino ui1iw11 : deste pro-
vém o português ·•vício... que não é possíve l usar por poss uir uma conotação
exc lusivamente ··morar·: ningué m c hama •víc io ·. por e xe mplo . a uma pato log ia
como a perda da visão. ou da audi ção .
91
Lit. ··eles(= os Estó icos) c hamam ··.
9
~ Empregamos a ex pressão ·estado de fi ciente · para tradu zir o 1e rmo la1 in o

11iriosiras . li1. ·tendê ncia para a defi c iênc ia· (c f. supra os doi s termos empreg ue,
por Cícero: fac iliws e procliuiws).
93
Todas as pa ix ões da alma res ultam de uma degradação das opini ões.
A1endendo a que. e m para leli smo com as mo lésti as do corpo. devería mos
dis1inguir no caso das ·mo lés1ias da a lma · també m três modal idades - a doe nça.
a enfermidade crónica e a deficiê nc ia - cau sadas po r outras tantas deg radações
das opiniões . mas como ape nas e m teori a é poss íve l di stinguir entre doença

[235J
todas as defici ências, contudo . conhecem idênticas formas
de co ntradi ção; por exe mpl o. no caso daque les que já
estão assaz próximos da sabedoria . existe sem dú vi da uma
certa di screpânc ia consigo mes mos dado o facto de serem
ainda ' in sipientes ', mas é <uma di screpânc ia> que não
atinge o nível da di storção ou da perversidade. As doenças
e as enfermjdades crónicas são partes do 'estado deficiente',
mas põe-se em dúvida se as perturbações <mentais>
também são partes deste estado .
30 As ' deficiências ' 94 são modos de estar permanentes, as
'perturbações mentais ' são tran sitórias, por isso não podem
ser partes dos modos de estar permanentes. Ass im como,
no caso dos ' males', a se melhança com o co rpo afecta
igualmente a natureza da mente , assim o mes mo se passa
no caso dos ' bens'. As qualidades principais são, no corpo
a beleza, a força, a saúde , a energia , a velocidade , e na
mente, as correspondentes a estas. E assim como a sanidade
do corpo é o estado de equilíbrio recíproco entre <as
partes> de que so mos formados <a que chamamos>
harmonia 95 , o mesmo se diz , a propósito da mente, quando

e enfermi dade crón ica. conc lui -se que bastam dois tipos de degradação das opi -
niões pa ra dar con ta das três ' mo léstias da alma·. um tipo para as duas primeiras
e outro tipo apenas para a terce ira.
94
Não esquecer que ·deficiênc ias·= uilia lit. •vícios·
91
· ··Harmonia··. correspondente aqui ao lat. 1empera111ia. que. em outros

co ntex tos . pode ser ve rtid a por (v irtude ) da temperança. No contexto presente
1empera111ia te m por referente o estado de equ ilíbri o e ntre as pa rtes correspon-
dentes à noção musical da •afi nação · do instrumento (cf. os estudos de Bach
sob o títul o de O cravo bem temperado . ou o verso de Camões a lira 1e11ho des-
temperada i.e .. desafinada). Cf. ai nda a análise fís ica deste eq uilíbrio em Ario
Dídimo (= Estobeu. li . 7. 5 a 4 ): "Assim como a saúde cio corpo é a co111bi11açâo
equilibrada e11 1re o q11e111e e ofi-io. o seco e o húmido. assim 1ambé111 a swídeda
alma co11si.l'le na cm11bi11açcio equilibrada das opiniões 11es/a comidas " (v. Arius
Did ymu s. Epi10111e o/Swic E1hics . edi ted by Arthur J. Pomeroy. 1999. p. 18).

í236]
desta são concordes entre si os juízos e as opiniões; é esta
a virtude da mente, a que uns chamam a ' temperança'
<propriamente dita> , e outros aq uela <qualidade que
consiste> na obediência aos preceitos da temperança e em
ser um seu complemento, mas que não tem <nenhuma>
característica <específica>, e que , em qualquer dos casos.
apenas se encontra no sábio. Ex iste ainda uma outra forma
de sanidade <mental> que é aq uela que se encontra nos
insipientes quando, em virtude dos curati vos e dos tra-
tamentos médicos 96 , é eliminada a sua perturbação
<mental>.
E assim como no corpo se ve rifi ca o que chamamos 31
'beleza' <quando a> uma certa di spos ição adequada dos
membros se junta uma cor agradáve l <da pele> , assim
também se dá o nome de ' beleza da alma ' <ao equilíbrio>
entre , por um lado a constânc ia e a coerência e, por outro ,
uma certa firme za e estabi lidade nas op iniões e nos
juízos 97 , que, ou decorrem da virtude, ou contêm em si a
essência mesma da virtude. De modo si milar, as forças da
mente são designadas pelos mesmos termos que servem
para referir as forças, o vigor e a capac id ade do corpo .
À velocidade física equipara-se a ag ilidade98 mental ,
termo que serve também para enaltecer o talento dev ido à
facilidade com que a mente percorre, num breve es paço de
tempo , uma gra nde qu antidade de matérias .

96
Tradução correspondente ao texto adapt ado por Pohlenz: rn111 c11rc11io11e
er purgarione 111edicorum (nos ms s.: c11rnrio11e er perrurba1io11e 111edicom111).
97
"Assim como a bele:.a do corpo é a si111erria dos membros que o co111piJe111
em relação uns com os owros e com a rowlidade <do corpo >, 11ssi111 1C1111bé111 a
bele~a da a/111a é a simerria e111re o rnciocínio e as suas panes e111 relaçâo ao
rodo e a cada uma das suas parres" ( Ario Dídimo = Estobeu. 11. 7. 5 a 4) .
98
Lar. uelociras "veloc id ade (física)" - ce/eriras "agi lidade (mental)".

1237]
XIV A gra nde diferença que se dá e ntre o plano mental e 0
plano físico está em que uma mente sólida não está sujeita
à doença, mas um corpo está; em contrapartida, as malei-
tas do corpo podem ocorrer se m que nós tenhamos
qualquer culpa, ao passo que as da mente, sejam doenças
sejam perturbações mentais, decorrem, todas elas , do
desprezo pela razão . Por isso apenas se verificam no
homem; os animais podem, por vezes, ter comportamentos
semelhantes, mas não sofrem de perturbações mentais .
32 Entre as pessoas argutas e as obtu sas ex iste esta dife-
ren ça: as inte ligentes são como os bronzes de Cori nto que
su portam me lhor a ox idação, isto é, resistem mais tempo à
doença e curam-se mais depressa, co m as obtu sas passa-se
o contrári o. Além di sso a mente de um homem inteligente
não está sujeita a toda a espéc ie de doença ou de paixão,
nomeadamen te as de natureza cruel e des mesurada 99 ; há,
ali ás, muitas <paixões> que, à primeira vista, parecem
decorrer de <um sentimento> de humanidade , como é o
caso da ' comiseração ' 100 , do ' desgosto' 1º1, ou do ' medo '.
Pensa-se que seja mai s difícil erradi car as enfermidades
crónicas e as doenças da alma do que os vícios mais
importantes e contrários às virtudes . De facto , ai nda que as
doenças pers istam, as deficiências podem ser erradicadas,
porquanto estas podem mai s depressa ser curadas do que
<podem> aquelas <ser> elimin adas 1° 2 .

99
Texto a lterado: mss. 11011 eni111 111u/1a ecferaw e/ i111111a11ia; Pohlenz
propõe a e me nda seg uinte: /1()17 e11i111 <.ad 011111ia ui1ia aeque propensa est
11anira humana; su111 e11i111 111u/1a> ecfera/a e/ i111111a11ia "<a natureza humana>
não é <propensa po r ig ua l a todos os víc ios: há de facto> mu it os ..
100
Lat. misericordia.
101
Lat. ae1;ri1udo.
102
As "defic iê ncias" me ntai s podem se r e rradi cadas ra pid amente com o em-
prego de terapias de c hoque , e nqu anto as e nfe rmidades menta is crónicas exi gem
um tratame nto me nos vio le nto mas ma is pro lo ngado.

1238]
Aqui tens exp licada com minúcia a teoria <desta 33
Escola> acerca das perturbações mentai s por meio de
<proposições> a que os Estóicos chamam À.oyLxá 103 , dada
a sua concatenação rigorosa . Mas como o meu di scurso já
navegou para fo ra desta zona de <si log ismos> que mai s
perecem aguçados recifes, poderei manter o rumo no resto
da discussão, desde que tenha sido claro qu anto baste na
exposição de uma matéria tão obscura .
A. - Foste o mais poss íve l claro! Mas se alguma
questão necessitar de ser estudada mais em profundidade , na
altura própria pôr-te-ei as minhas perguntas. Espero agora
que ices as ve las e pross igas a viagem de que fa lavas .
M.- Uma vez que , como em outros lugares já di sse XV 34
acerca da virtude e muitas vezes terei ainda de di zer - mui-
tas são de facto as questões respei tantes à vida moral 104
que decorrem dessa fo nte que é a virtude - uma vez que ,
dizia eu, a virtude é uma di sposição da mente bem tempe-
rada e coerente que torna di gnos de apreço aq ueles que
a possuem, e que só por si merece ser valorizada indepen-
dentemente da sua utilidade, é dela que decorrem as
nossas vo ntades, opini ões e ac tos conformes à moral, e,
dum modo geral, a justa razão (até porque, em síntese, a
própria vi rtude pode ser defi nida como 'a justa razão ').
O contrário da vi rtude ass im definida é o ' estado defic ien-
te'1º5 (prefiro empregar este termo em vez de 'maldade ' 106 ,

103
/\O '(lXÓ. i.e .. "propos ições lóg icas". ag rupada s e m sil og ismos construí-
dos com ri gor.
104
Lat. quae ad uiw111 moresque per1i11e111e " (questões) que di ze m respe ito
à vida e aos costu mes" .
105
106
V. supra *29 e nota 92 .
M a/iria " má qua lid ade . maldade" . corresponde nte exac to e m latim cio
grego xax[a.

[239]
para denotar o que e m grego se di z xax(a; ·'maldade" de-
nota uma ' defici ê ncia' bem determin ada. enq uanto "estado
deficiente" te m por âmbito todas as ' defici ê ncias' poss í-
ve is1º7): <a partir do 'estado deficiente ' > o ri g in am-se as
pe rturbações <me ntais> , as qu a is, co mo acima di sse 1º8 ,
são mov ime ntos me ntais co nfu sos e deso rde nados. contrá-
rios à razão e o mai s possível opostos a uma me nte e a uma
vida tra nquil as. <Tais pe rturbações> traze m co nsigo des-
gostos ple nos de ansiedade e amargura , dep rime m o ânimo
e debilita m-no através do medo ; alé m di sso infl amam-no
de de sejos excessivos 109 , a que cha me i ' desejo ou anseio
des mes urado ' , uma incapac idade de autocontrolo o mais
35 possíve l co ntrá ri a à temperança e à moderação. Se porve n-
tura se chega a obter o objecto dos nossos desejos, então a
pessoa fica exc itada de tal maneira que "nem sequer tem
consciência " daquilo qu e faz , co mo diz <o poeta quando
afi rma que>
Um excessivo pra:er da alma é o maior dos erros 110 •

Para es te tipo de mal es a única possibilidade de cura


está na virtude .
XVI O que há, não só de mai s tri ste, mas mesmo de mais
indigno e repu gnante do que ve r alguém acabrunhado ,
debilitado, incapaz de move r-se com um desgosto ? Pouco

107
·Estado defi c ie nte· tradu z o latim uiriosiras. termo que propriame!lle
denota .. tendê ncia para a defici ê ncia ( nl(lral i-·. u,anclo ·deficiência· . conforme
te mos feitn. para trad uz ir uiriu111.
108
*
Cf. supra 11 .
109
Cf. supra § 12: libido uel cupidiras effrenara. correspondente ao grego
ém0uµ(a.
110
V. cio poeta cómi co Q. Trábea ( R ibbeck . C .R.F., 252). que C ícero cita por
mai s cio que uma vez . se não o ve rso inte iro. pelo menos uma parte. cf. De fi 11 .,
li. 13. ad Fam .. 11 . 9. 2.

[240)
menos mi será vel é o estado de quem está com medo de um
mal que se avizinha e está parali sado de terror. É para
denotar a força deste 'mal' que os poetas representam
Tântalo nos Infe rnos com um rochedo suspenso sobre a
sua cabeça <como castigo>
Dos seus crimes, do seu ânimo inco11trolável, da sua
[lin guagem cheia de soberba 111 •

É esta a pena a que estão condenados todos quantos


sofrem de estu ltícia 11 ", poi s todos quantos têm a mente
apartada da razão têm se mpre qualquer coisa terrífica
sobre eles impendente. A par de perturbações que destroem 36
a mente , quero eu dize r, do desgosto e do medo, há o utras
de aparência me nos graves: a 'ganância' 11 3, sempre insa-
ciável em busca de qualquer coisa , a exc itação gratuita,
isto é, o ' prazer delirante ' 114, mas que na realidade pouco
diferem da loucura. Daqui se deduz , por co mparação, qual
o carácter do home m que desc revi umas vezes co mo mode-
rado, outras como modesto e razoável, outras como
senhor de si e co nti do 115 ; por vezes ac he i por bem sinte ti -
zar todos estes se ntidos num úni co termo , 'frugalidade ', a
palavra que oferece o sig nificado básico 116 • Se não se desse
o caso de por este termo se e ntenderem as virtudes, decerto
não se teria divulgado tanto aquele dito, tran sformado e m

111
Verso de uma tragédia de autor de sconhecido (v. Warmin gton. Re111ai11s.
li. p. 610).
112
Ou. dito ele o utra forma. todos os não-sáb ios (lit. .. os estúpidos. os in , i-
pientes .. ).
113
Lat. cupidiws.
114
Lat. laeriria xesriens.
115
Lat. 111oderarus. 111odesrus~re111pera11s. co11srw1s . co111i11e11s. respecti va-
mente.
110
Lat. f ntfialiras . - Cf. supra . Ili. ** 16- 17.

12411
provérbio , segundo o qual "o que o homem frugal faz é
<sempre> bem Jeito!" No entanto, quando os Estóicos se
referem ao sábio nestes mesmos termos, o comum das
pessoas acham-nos exagerados e paradoxai s.
XVII 37 Em suma, todo o homem , quem quer que ele seja, que
alcançou a tranquilidade de es pírito graças à moderação e
ao autodomínio , que está em paz consigo mesmo, a ponto
de não se deixar corroer pelas maleitas nem abater pelo
temor, que não busca nada com tanta avidez que o faça
arder de desejo nem se deixa entusiasmar tanto que caia no
delírio descontrolado - esse homem é o sábio que procura-
mos, é o <homem perfeitamente> fe liz 11 7, para o qual
nenhuma das coisas humanas é tão insuportável que o faça
perder o ânimo nem tão empolga nte que o leve à beira da
loucura . Que grandeza, ali ás, poderá encontrar ao nível
humano um homem que tem a noção da eternidade e da
grandiosidade do universo inteiro? Sim , o que há nos
empreendimentos humanos ou nesta nossa vida tão exígua
que possa parecer grande a um sábio , cuja mente está
sempre alerta, e a quem , portanto , nada pode acontecer de
imprevisto, de inesperado, numa palavra, abso lutamente
38 nada de novo? Para além di sso ele lança um olhar tão
penetrante em toda as direcções que sempre descobre um
local onde possa habitar sem sofrimento ou angústia.
um sítio adequado e calmo onde refugiar-se sejam quais
fo rem as circunstâncias que a Fortuna lhe proporcionar, o
que, de resto, ele fará sem sentir desgosto nem qualquer
outra espécie de paixão . Ter a mente liberta de paixões é a
condi ção indi spensável para obter uma perfeita e absoluta
felicidade , tê-la agitada e afastada da plena e justa razão

11 7
Lat. bearui.

[242]
signi fica perder, não só o equi líbrio, como a própria sani-
dade <mental>.
Por este motivo devemos considerar como débil e
falha de energia a posição e as palavras 118 dos Peripatéticos
que entendem ser necessária à mente uma certa pertur-
bação , embora com limites que não devem ser ul trapassa-
dos 119 . O quê? Impor um lim ite ao estado deficiente? Será 39
que não obedecer à razão não é só por si uma deficiência?
A razão não demonstra de forma capaz que não é um 'bem'
o objecto que desperta em nós um ardente desejo e que, se
o obtemos , nos torna soberbos de insolência, e <não
consegue demonstrar também> que é um ' mal ' o que nos
faz entrar em depressão , ou que, para não fica rmos abati-
dos de todo, quase nos faz perder o eq uilíbrio mental?
<A razão não nos prova> que todas as situações demas iado
tristes ou demasiado alegres são assim devido a um erro de
apreciação? Que este erro , no caso dos insipientes, se vai
atenuando com o tempo , de modo a que os mesmos factos
sejam diferentemente julgados confo rme forem remotos ou
recentes , enquanto no caso do sábio nem sequer o aflora ?
E que es pécie de limite <se impõe>? Vejamos qual o limite 40
a pôr ao desgosto, já que é esta a perturbação que ex ige
mais atenção. Fânio 120 deixou escrito que P. Rupílio supor-
tou muito mal a rejeição do irmão nas eleições para o con-
sulado . Parece mesmo ter ultrapassado os limites , já que

11 8
Lat. rario er oratio. lit. ··a razão e a oração (di scurso)" (jogo de palavras
intraduzíve l).
119
Uma lon ga refl exão c ríti ca sobre esta tese do Perípato encontra-se no
ensa io de Séneca consagrado à có lera (De ira libri Ili ). V. sobretudo o Li vro I
deste diálogo senequiano: De ira I. 3. 3: 9. 2: I 7. 1: cf. III.. 1, 5: 17, 1.
120
C. Fânio (séc. 11 a. C.). hi storiador. autor de Anna/es (v. os po ucos frag-
mentos conservados e m H . Beck-U . Walter. Dir Frühen Ro111i.1che11 Historiker.
l.pp. 340-346 (o passo de Cícero constitui o fr. 6 = Peter, H.R.R. , 6 ).

[243]
mo rreu em co nseq uê ncia do desgosto. Deveria, pois, ter
sido mai s moderado . Mas supo ndo q ue e le tivesse sido
mai s comed ido. o que sucederia se lhe an unc iassem a
morte dos fi lhos? "Teria surgido uma nova causa de
desgosto, mas moderado. " Mas co m um ac resce nto muito
agravante! E se depo is começasse a ter um do loroso sofri -
mento físico , se perdesse os se us bens, se ficas se cego, se
fos se ex il ado ? Se a cada desgraça se fosse m sempre acres-
centando novos desgos tos , a so ma de todos e les acabaria
po r se r insustentáve l.
XVIII 41 Quem acha que pode pôr-se um limite ao estado defi-
c iente age co mo se fosse possível a a lgué m ati rar-se da
roc ha Leucatas 121 ao mar mas, se o qui sesse, interromper a
queda a me io ca minh o. C laro que isto não é possível,
como é també m impossível a uma mente perturbada e fora
de si refrear-se e parar qu ando qui ser. Dum modo geral.
tudo qu anto ao cresce r dá mostras de se r pernicioso é
42 po rque já é vic ioso ao nascer; o desgosto , bem como as
de ma is perturbações mentais, qu and o se desenvo lvem,
torn am-se inev itave lmente destruid oras; uma vez contraí-
das, e las contêm em s i desde logo uma grande parte da sua
capac idade noc iva. A partir do mo mento e m q ue nos afas-
tamos da razão elas ga nh am ve loc idade po r si mes mas , a
nossa fraqueza absté m-se de reagir - e a <perturbação>
avan ça imprudente para o largo sem encontrar um ponto
onde deter-se 122 . Aceitar a ex istê nc ia de ' perturbações mo-

" Promontó ri o da ilh a de Lêucade . no mar Jón io. associado à lenda que diz
1

ter-se a poeti sa Safo aí sui c id ado e m consequê nc ia de um desgosto amoroso.


121
O . Gi gon. 1998 . p . 540 , cha ma a ate nção para a c ircunstância de.enquan-
to Ari stóte les. Ética a Nicô111aco 11 07 a 8- 12. adm ite que apenas certas paixões
(e também certas acções ) carece m ele um ponto interméd io . µi;oón1ç. como a
desfaçatez. o sadis mo. a inveja (ou . de e ntre as acções. o ad ultério. o roubo.

[244]
deradas· é o mesmo que ace itar uma ' injusti ça mode-
rada ', uma 'co bardia moderada', ou um 'destempero
moderado '. Quem atribui um limite aos víc ios está a
considerá-los aceitáveis até um ce rto ponto , procedimento
só por si co ndenável, e tanto mais prej udicial quanto os
víc ios actuam em terreno escorregadio e, uma vez excita-
dos, corno que rolam por um plano inclinado sem encontrar
obstácul o que os detenha .
Como haveremos então de aprec iar o juízo dos XIX 43
Peripatéticos que consideram aquelas perturbações. di g-
nas, em nosso ente nder, de se r por completo extirpadas ,
como faculdades, não apenas natu rais , mas também úteis
proporcionadas pela natureza 12·1? Eles pronunciam-se
nestes termos: primeiro enaltecem copiosamente a cólera,
que defi nem co mo a pedra de amo lar da coragem , graças à
qual se torn a muito mais enérgico o ataque de um homem
encoleri zado contra os inim igos o u os cidadãos desones-
tos; em contrapartid a são ineficazes os raciocínios tímidos
de quem pensa ass im : "Entrar neste combate é de justiça ,
tal como é nosso dever lutar em defesa das leis, da liber-
dade , da pátria!" , meras fórmulas destituídas de vigor, a
menos que a coragem seja estimulada pela ira. Mas eles
não se referem apenas aos militares: as ordens mais

o homicídio). para o estóico tudo quanto seja --paixão.. (perturbação mental )


carece em absolut o de urn pon to interméd io onde lixar-se. o que equiva le a urna
generali zação da posição ari stotéli ca.
!2J Sobre a pos ição de Aristóteles quanto a esta matéri a v. Ética a Nicó111aco.

1125 b 26 - 11 26 b I O (em espec ial 1125 a 3 1-32 sob re a cólera natural e di gna
de aprovação). V. ainda Aristóteles. o.1.. über;,etzt und kornment iert von Fran z
Dirlme ier. Berlin. Akademie Verlag . 1999. pp . 383 ss. E . Wolf. Aristoteles·
"Niko111achische Ethik ·. Darmstadt. 2008 (2.te Auflage). pp. 86-87 e 184. Int e-
ressante comparar a tomada de posição de Cícero com a que Séneca assu mirá urn
século mai s tarde . De ira. 1. 5. 1 ss .: 111111c q11aerw1111.1 w1 ira sec1111d111 11 11alllrw11
si1 e1a11111i!is a1q11e ex aliq11a parte reti11e11da. etc .

12451
severas não obtêm efe ito se não fore m temperadas com o
tom a margo da ira; tam bém não têm por bom um orador
que não possua , quer para acusar quer para defender, uma
ce rta dose de iracúndia ; e se esta não for real, ao menos
deve rá ser sim ul ada, quer nas palavras quer nos gestos,
para que a gesti cu lação do orador co nsiga suscita r a ira da
assistência. Chegam ao ponto de nem seq uer considerarem
ho me m o que não fo r capaz de e ncolerizar-se , e àquele
estado de alma a que nós c hamamo s "' brandura ' chamam
44 e les, pejorativame nte, ' mo leza ' . E não é só este tipo de
desejo 1~4 qu e e les aprec ia m - si m , po rque, de aco rdo com
a minh a defini ção , a cólera co nsiste no ' desejo de vingan-
ça ' 125 - mas, dum modo gera l, este tipo de ' desejo', ou de
' apetite ', conside ram e les ter-nos sido dado pela natureza
para ex tre ma utilidade nossa , uma vez qu e ning ué m pode
praticar uma acção rel eva nte a não ser qu e o deseje muito.
Te místocl es , q uando senti a difi c uld ade e m adormecer,
punha-se a deambular pelas ruas, e se alg ué m lhe pergun-
tava o moti vo e le res po nd ia "que os trof éus conquistados
por Milcíades tira vam -lh e o sono " 126 . E que m é que nunca
ouvi u falar nas vigílias de Demósten es 127 , que di zia ficar
desgostoso se soubesse que hav ia artífices mai s madruga-
dores do que ele? També m os g randes mestres no domínio
da fi loso fia nun ca pode ri am te r feito tan tos progressos na
suas investi gações se não senti sse m um a tão ardente

124
··Desejo·· é a tradução co rre nte do lat. libido , lit. ··pa ix ão vio lenta. desejo
sexua l imode rado··.
125
Cf. supra § 2 1.
126
V. Valério Máximo . VIII . 14 ex t. 1: a g ló ri a o btida po r Milcíades na Bala·
lha de Marato na serviria de incenti vo a Te místoc les para o seu triunfo na batalha
nava l de Salamina .
m Plut arco. Demóstenes . X I . 6 : breve refe rê nc ia às vig íli as de Demóstenes
quando pre parava os seus di sc ursos.

[246]
paixão pe lo estudo . É do con hecimento geral que Pitá-
goras , Demócrito , Platão viajaram até remotas parage ns.
Entendiam eles que dev iam visitar todos os locai s onde
pudessem aprender al go de novo 128 . Seria isto possível se
eles não fo ssem movidos por um arde nte desejo de co nhe-
cer129? O próprio desgosto , q ue acima disse devermos XX 45
procurar evitar co mo se de uma fera temível e c rue l se
tratasse 13°, di zem e les que foi c riad o pe la natureza co m um
fim de grande utilidade : fazer co m q ue sinta a dor da
punição , da cens ura , da ve rgonha pública todo o homem
que co meteu um c rime . De fac to , não se ntir re bates de
consciência e m resultado da ignomínia e da desonra púb lica
equivale a gozar de impunidade, pelo que é preferível
sentir algum re mo rso. Daqui res ulta aque le exemplo de
vida notado por Afrânio, e m que ao ouvir o fi lho devasso
<exclamar> :
Ah! Desgraçado de mim!

o pai severo <comenta>:


É bom que sinta algum desgosto, seja qual for o motivo 1131

També m as resta ntes formas de desgosto di ze m <os 46


Peripatéti cos> te r a sua util idade, por exe mpl o a compai-
xão, que nos move a prestar auxílio e a procurar ali via r as

128
Sobre as viage ns . alg um as le ndá ri as . atribuídas a importa ntes fi lósofos.
v. Diógenes Laércio. VIII . 1-3 (Pitágoras) : IX . 35 ( De mócri to): Ili. 6 (Pl atão).
129
Deste tipo de ho me ns . qu e não do co mum dos mortais. pode afirm ar-
-se o que Ari stóte les d iz do género huma no: n ávi:rç a v0gcmtOL ,:ou r ibt vm
àgtyov,:m cpúon '·todos os ho me ns tê m por natureza o desejo de sabe r"' (Me-
rafísica, 980 a 2 1) .
130
V. supra III , 25 .
131
Lúci o Afrâni o (séc. 11-1 a. C. ) . co medi ógra fo . autor defa/Ju /ae rogatae ,
comédias em que as pe rso nage ns vê m vestidas co m a toga à moda ro mana.

[247]
desgraças de pessoas que as não merecem: também a riva-
lidade e a inveja terão a utilidade de nos fazer ver, ou que
não conseguimos os mesmos resu ltados que um outro, ou
que um outro teve o mesmo proveito que nós 132 . O próprio
medo, se fosse el iminado, libertari a o homem da obriga-
ção de bem se comportar, <obrigação> que sobretudo se
nota nos que temem as lei s. o poder dos magistrados,
a pobreza, a ignomínia , a morte , o sofrimento. A sua argu-
mentação va i, pois , no sentido de admi tir que as paixões
devem ser restringidas. mas nem podem ser errad icadas
por comp leto nem seria desejável que o fosse m: como em
tudo o mais, o melhor é um ponto de eq uil íb ri o 133 . O que
achas desta ex pos ição. parece-te não ter nenhum valor, ou
pen sas que te di z alguma co isa?
A. - Parece- me interessante, por isso estou desejoso
de ouvi r se tens algum co mentári o a acresce ntar-lhe.
XXI 47 M .- Talvez encontre alguma objecção a faze r-l he,
mas há um ponto prévio <a esc larecer>. Pergun to-te: não
te dás conta do discernimento reve lado pelos Académicos
quando se lim itam a discutir as questões pertinentes para a
argumentação, ao contrário do que fazem os Estóicos, que
argumentam contra os Peripatéti cos ponto por ponto? Por
mim podem di gladi ar-se à vontade, poi s não tenho outro
objectivo senão in vestigar qual a solução mai s verosímil.
o que concerne a este prob lema o que encontramos nós

1 11
• CL s upra. * 17. as considerações de Cícero sobre a ae11111/ario ·•riva lida-
cle·· e a ~17),0,:u:n:í.a •• in veja··.
1
" No origina l latino. o termo que corresponde a ··ponto de equilíb rio"' é 111e-

dio cri1as ··mecliania··. no se nti do de ausênc ia ele excessos e defeitos (µwó111c.


termo de Ari stótel es. aque le pont o em que ne m há excesso - ú:n:EQ~OÀÍl - nem
carência - eÀ),Enµtc;. v. É1irn a Nic .. 1107 a 2 ss.) . an tecipação da a11rea 111edio-
cri1as defendida por Horácio.

f2481
que sirva de ponto de partida para a busca do verosímil , o
máximo resu ltado a que a mente humana pode aspirar 134 ?
<Encontramos> a defini ção de perturbação mental , que
penso ter sido correctamente dada por Zenão. Diz ele
que a perturbação é "uma mo vimen tação da mente oposta
à razão, e contrária à nature::,a " 135 , ou, mais concisamen-
te , que a perturbação é '' um desejo muito intenso", enten-
dendo " muito intenso" como algo que está muito afastado
do estado de equilíbrio natural 136 • Que tenho eu a objectar 48
a definições deste tipo? O facto é que elas são apanágio de
quem di scute as questões com di scernimento e penetra-
ção 137 , enquanto outros 138 , com os seus 'ardores da alma, a
pedra de amo lar a coragem', preferem recorrer à decora-
ção da retórica. Será que um homem fo rte não pode ser
forte se não estiver encoleri zado? Isso valerá talvez para
os gladiadores. E, no entanto, mes mo entre estes encon -
tram-se alguns que mostram a maior calma:

Trocam palavras, aproximam-se , perguntam ou pedem


[algo <um ao outro> 139 .

Parecem , em suma, mostrar mai s tranquilidade do que


cólera. Mas isto não quer di zer que entre eles não possa

134
Note-se co mo Cícero reafirma a sua posição de seg uidor da Academia
céptica. e co mo tal não lhe interessa disc utir a pos ição global dos Peripatéticos.
uma vez que a verdade é in atin gível e o máximo que a men te pode a lca nçar é a
verosimilh ança ; rejeita . portanto. o propósito dos Estóicos . que têm a co nvicção
de ser possíve l chegar à verdade .
135
V. supra.§ 11 . e as notas respect ivas.
136
Não esq uece r que -- perturbação .. corres ponde ao te rmo grego rrá0oç usa-
do por Ze não . e que corrente me nte pode tradu zir-se por .. paixão'".
1.17 Entenda-se: os Académ icos. como o próprio Cícero.
138
Entenda-se: os Peri patéti cos. cf. supra§ 43 .
9
1.1 Verso extraído tal vez de al guma coméd ia o u sátira não identificada.

[249]
aparecer a lgum que se co mporte como o Pacideiano de
que fala Lucílio :
" Vou dar cabo dele, vou derrotá-lo, se quereis saber'"
[- disse.
"Creio que para começar receberei no rosto um golpe seu,
Ma s depois enfio-lhe o gládio pela garganta até aos
[pulmões.
Odeio este homem , luto com cólera, e apenas me custa
Esperar que ele se decida a empunhar o gládio,
Tal é a rivalidade e o ódio que a cólera em mim
[desperta 140 •

XXII 49 Mas é se m estas cóleras de g ladi ador, antes com


mostras de boa di sposição, que ve mos, em Homero 141 ,
Ájax preparar-se para ir bater-se em du elo co m Heitor.
A sua entrada no ca mpo , já armado, encheu os seus com-
panhe iros de aleg ri a, mas de te rror os inimi gos, até o
próprio He ito r, que, segundo a descrição do Poeta , sente
bater o coração de tal mod o que se arrependeu de o ter
desafiado. Mas os do is g uerre iros 142 trocaram palavras um
com o o utro antes de ini c iarem a luta , e mes mo durante o
combate mostraram ca lma e tranquilid ade, se m nad a faze-
rem sob o impul so da cólera ou da raiva . Não consigo
imaginar também que Torquato , o prime iro romano a usar
este cog no me, des pojo u do seu to rque o chefe gaul ês 143 ,

140
Luc íli o . Sáriras, vv. 155-160 Krenkel (= 153-158 Marx ). Este Pacideia-
110.segu ndo Lucíli o . era o melhor g ladiador que jamais ha via existido ( 153-154
Kre nke l = 15 1-152 Marx).
141
Ilíada, VII. 206 ss.
) Ájax e He i1 or.
14

' T. Mâ nlio Torquato. em 36 1 a. C., venceu e m combate um gaulês a quem


14

despojou. co mo trofé u de g ue rra. do torque de o uro que este usava ao pescoço.


donde o cognome que lhe foi atribuído.

[250]
nem que M arce lo se comportou como um heró i em
Clastídi o mov idos pela có lera 144 . Pelo que respeita a 50
<Cipião> Afri cano 145 , dado que ele viveu numa época
melhor conhecida, porque menos remota, posso j urar que
ele não es tava infl amado pela có lera quando, durante um
combate, protegeu co m o escudo M . A liénio Peligno e
enterrou o gládio no peito do adversári o . Já ponho em
dúvida se L. Bruto não terá atacado com tanta violência
Arrunte levado pelo seu intenso ódio contra o tirano 146 ,
pois vej o que ambos caíra m mortos sob os go lpes um do
outro 147 • Terá sido a essa co ragem , que quereis identificar
com a có lera , que Hércules ficou a dever a sua entrada no
céu, ou fo i porventu ra a có lera que o moveu a lutar contra
o java li de Erimanto ou o leão de N émea 148 ? Terá sido sob

144
M. C láudi o Marce lo. e m 222 a. C.. notabili m u-se na Bata lha de C lastíd io.
contra os Gauleses . Es te e pi sódio fo i tratado pelo poeta Név io numa
1ragéd ia pretex ta intitul ada Clastidi11111 (v. E. V. Ma rmora le. Nae11i11s poeta. 1967 .
pp. 152-4 e 202 ).
145
Trata-se de P. Co rné li o Cipião Emil iano Afri cano li . fi g ura apreciada por
Cícero. Este epi sódi o não é referido po r ma is ne nhum outro aut or. Em todo o
caso recorde-se que O . G igo n. 1998. 543. põe como hipó tese. bastante plausíve l.
que a ce na tenha ocorrido durante o cerco de umâ nc ia ( 134- 133 a. C. ). pelo
que o acto de Emil iano poderia ter s ido reg istado nas 1-!istórias de Ru tílio Rufo .
testemunh a prese nc ial dos acontec ime ntos (F. R. H .. li. p . 100).
146
L. Júni o Bruto. depo is de ex pul sar de Ro ma Tarquíni o o Sobe rbo.
morreu em combate para impedir a te nt ati va de Arrunte . filho do So berbo. de
regressar a Ro ma e reocupar o tron o ( 509 a . C.).
147
A tradu ção "pois vejo que ... " co rres po nde lite ra lme nte ao ori g inal
latino uideo e11i111 .... O uso do verbo "ver" imp lica. po rt anto. que Cícero. ou
contempl ou a lguma pintu ra que re prese nt asse o due lo dos do is ad versá ri os.ou que
leu alguma desc ri ção é pica de um d ue lo à moda ho mé ri ca. ta lvez. como sugere
Gigon. o. l. . p. 543. um e pi sódi o dos A11ais de Éni o. um dos se us poetas favoritos.
Em vez de "pois l'ejo ,111e ... " de ve ría mos ass im e nte nder que Cíce ro que ria di ze r
"renho lido que . . .".
148
V supra li . 20 um a lo nga c itaçiio das Traqu í11ias de Sófoc le s e m qu e são
enumerados al gun s dos " trabalh os de Hé rcul es". a que Cícero ac rescen ta uma
referênc ia à luta de Tese u contra o touro de Ma ratona.

í25 I J
o impé ri o da ira que Teseu do minou os cornos do touro de
Maratona? Pe nsa a ntes se não se dará o caso de a coragem
nada te r a ver co m a raiva e de a cólera ser toda motivada
por uma ca usa frívo la. O facto é qu e nunca ex iste co ragem
quando está ausen te a razão.
XX III 51 ''Há que sentir despre-;o pela condição humana , não
dar i111portânciC1 à m o rte, cons iderar com o suportáveis
todas as penas e trabalhos " : uma vez assimi lados estes
princípi os através de um juízo bem fundam e ntado estare-
mos na posse de uma corage m firme e co nstante . a menos
que imag ine mos que todas as nossas acções fei tas com
e ntu s iasmo. e mpenho e bravura seja m inspiradas pela
có lera . Ne m sequer Cipião asica, o famoso Pontífi ce
Máxi mo que co mpro vo u até qu e po nto e ra válida a tese
es tó ica de que '"o sábio 11uncC1 é <C1penas> um cidadão
privado" 149 • apare nta ter ag ido po r ód io co ntra Tibério

149
Eme nda -se: o sá bi o nunca pode vive r a pe nas para s i mes mo. te m o dever
de pa rti c ipar ac ti va me llle na vida públi ca . o qu e in c lui a capac idade de substi -
tuir-se a um mag istrado incompete nt e e comandar ··as ope raçõe,"· que este não se
mostra capa? de ass umir. Fo i este o caso de P. Co rn é lio C ipi ão as ica Serapi ão.
que. qu ando e m 133 a. C. T ibé ri o G raco ,e pre para va para se r pe la terce ira vez
e le it o tribun o da ple be . e dada a in acção cio cônsul e m exe rcíc io no se ntido de
impedir essa e leição (des favoráve l aos ari stoc ratas co nservadores de que Cipi ão
fa 7ia parte). ape lo u ao povo pa ra que o apo iasse na de fesa da República. Em
co nsequê nc ia da revo lta q ue se seg uiu Tibé ri o Graco foi assass inado . e Ci pião
teve qu e ex ilar-se ele Ro ma para escapar à vin gança das ca madas popul ares.
- Sobre este sucesso v. Cíce ro . Bru111.1. 107. 21 2 . /11 Cm ilinam. 1. 3 (e m todos
estes passos C íce ro escreve qu e C ipião c he fiou a revo lt a co ntra Tib . G raco como
priull/11s. o u seja . como um c idadão que não exe rc ia qu a lqu e r cargo públi co).
Sobre a tese estó ica que de fend e a pa rti c ipação cio sá bi o na vida pública .
v. Sé neca . De olio . 1: "Dei·emos panicipar sempre li /é ao .fim do 110.1·.111 l'ida.
111111ca dei.rl11110.1· de co111rih11ir pllra o hem púhlico. w1.riliar 10da.1 li.\ pe.1.10115. e
aj11d11 r até os 11 0 .1.10.1 i11 i111igos mé tl/l /ermo da 1·!!/lticl' ··: mas també m ibidem.
3 . e m que enunc ia uma restri ção proposta por Ze niio: "o .,âhio de ,·e participar
na ,·ida p1íhlica. sa/l'(J se e11co111mr alg11111 i111pedi1111'1110". a sabe r. ...,e o poder
polí1ico esti,·er de11111.1i11do corrup10 para poder .,er ajudado . .11' 0 .1 11/los cari:0.1

1252 1
Graco quand o, afastando-se de um cô nsul que se recu sava
a agir, ele, <s imples cidadão> pri vado , co nvidou , co mo se
fosse ele o cônsul, que o seguissem todos quantos qui ses-
sem salvar a República . É poss íve l que e u pró pri o te nh a 52
mostrado al guma coragem na chefia da República 150 , mas
tudo quanto fi z, fi -lo sem estar encolerizado . Ha verá alguma
coisa que mai s se pareça co m a loucura do que a có lera?
<A esta> muito bem chamou Énio "o princípio da lou-
cura " 151 • A co r, a voz, os olhos, a respiração, as incoerê n-
cias das palavras e dos gestos , até que ponto conservam
<num homem irado> a sanidade <mental>? O que há de
mai s vergonhoso do que os in sultos qu e lança m um ao o u-
tro Aquiles e Aga mémnon <na Ilíada > homé rica 152 ? Foi
também a ira que levou Ájax à demência e ao sui cídio 15 '.
Não , a coragem não preci sa para nada do patrocínio 154 da
cólera, por si só já possui todos os recursos, toda a pre pa-
ração , todas as armas de que necessi ta. Por esta ordem de
ideias também poderíamos co nsiderar a e mbriaguez útil
para <despertar> a coragem, e útil també m a loucura ,
atendendo a qu e os dementes e os ébrios muitas vezes
cometem actos de grande bravura. Ájax era um homem
corajoso , mas foi quando estava louco qu e a sua coragem
atingi u o au ge, porquanto

esri1·ere111 todo., ocupado., por xe111e se111 111oral. 11es.,a altura o sábio 11üo .fúrâ
e.1:forço.1 co11de11ado., ao i11.rncesso e de.,tituído., de qualquer utilidade ...
150
Alu são à e nérg ica acção cio cônsu l C ícero aq uando da conjura de Cat il ina
em 63 a. C.
151
Énio. frag mento não identificado ( Varia . 32: Warmington. p. 444 ).
15
' Rernrde-,e que a primeira pala vra do poema é µ1jv1v. a •cólera· (de
Aqui les) . dada as,im como tema ce ntral cio poema.
151
Te ma ela tragéd ia Ájax ele Sófocle,. Na literatura lat in a. v. os fra gmentos
da peça de Pacúv io Amwrn111 i11dici11111. os de uma peça de Ácio com o me smo
1ít1do. e um e pi ,ódio das Mew111orfo,e.1 de o, íd io (XI I 1. 1 e ss.).
is. Lit. "n ão carece de ter a cólera como sua advogada".

1253 1
Cometeu um Jeito extraordinário: os Dânaos 155 j á
/retira vam ,
Ele so-:,i11ho, porém . assegurou a vitória 15
6
.

XXIV 53 Reeq uili brou o co mbate qu a ndo estava lo uco : va mos


di ze r por isso que a lo uc ura é útil ? A nali sa as de fi ni ções de
"corage m" e fic a rás a pe rcebe r q ue e la não necess ita da
cólera . Pode di ze r-se qu e a corage m é "um estado de espí-
rito que nos per111ite afrontar as ad versidades se111 deixar
de obedecer à lei suprema ", o u "a capacidade de fa-:, er
frente e repelir aquelas situações que parecem terríveis
mantendo estável a fa culdade de julgar ", ou a inda "a
ciência das coisas que provocam terror, ou as suas contrá-
rias , ou as por completo negligenciáveis, conservando
estável a f acultade de julgar essas mesmas coisas", ou,
mais s intética , a <defi ni ção> de C ri s ipo (as defin ições que
c ite i perte ncem a Es fero 157 , auto r especia lme nte hábi l, no
di zer dos Estó icos, e m fo rmul ar de fi ni ções; no seu conjun -
to todas as defi nições são bastante simil ares, e mbora umas
ex presse m o co ncei to co mum de fo rm a ma is c lara do que
out ras) ... M as qu al é e ntão a de fi ni ção de C ri sipo?
"A coragem " , di z e le, "é o conhecimento <das situações>
que teremos de suportar, ou a disposição de espírito <que
nos permite> suportá-las e enfrentá-las obedecendo à lei
suprema e sem sentirmos medo ." 158 C laro qu e podemos
c riticar <os Estó icos> , co rno C arnéades costumava fazer,

155
1. e .. os G regos.
156
Verso de tragédi a de autor desconheci do. cf. Warmin gton. R. O. L.. li.
p. 608.
157
Estóico (séc. 111 a. C.). natural de Borístenes. fo i di sc ípul o de Zenão e de
C leantes. V. os se us fragmentos e m Radi ce. Stoich i A11tichi. pp . 272-278 (= S. V
F.. 1. pp .139- 142. - Obse rve-se co mo este parênteses pree nche a fun ção que hoje
em dia ca be às notas de rodapé.
158
Este passo constitui o fr. S. V. F. Ili. 285 (Radi ce. o. c .. p.11 08).

[254]
mas receio bem que talvez sejam estes os únicos filósofos a
sério. Qual destas defini ções, afinal, não esclarece a noção
que todos temos do que seja a coragem , ainda que de fo r-
ma obscura e pouco explícita? E bem explicada ela , quem
exigiria outra coisa de um soldado , de um general ou de
um orador, quem pensa qu e qualquer destes homens só
será capaz de um acto de bravura se estiver dominado pela
raiva? Não será, porventura , a afirmação estóica de que 54
"todos os insipientes são loucos" 159 comprovada por estas
considerações? Elimi na <da noção de louc ura> as pertur-
bações mentai s , sobretudo a cólera : as palavras dos
Estóicos parece r-te-ão absurdas. A afirmação deles de que
"todos os insipientes são loucos" faz lembrar a voz
corrente de que todo o lodo cheira mal. Dir-se-á: "Nem
sempre se nota o mau cheiro." Agita o lodo e verás se não
o sentes! Um homem colérico não está se mpre encoleri -
zado. Mas provoca-o , e vê-lo-ás enfurecer-se num ápice .
Mais : quando essa belicosa predisposição para a có lera
regressa a casa, como se comporta com a mulher, com os
filho s, com o pessoal doméstico ? Também aí ela se mostra
útil ? Existe alguma coisa, por acaso , que uma mente
perturbada possa rea lizar me lhor do que uma <mente>
equilibrada? É poss ível a lguém encolerizar-se sem que a
sua mente fique alterada ? Tinham toda a razão os nossos
maiores quando , ao verificarem que toda a nossa vida
depende do carácter <de cada um> , e q ue nenhum <carác-
ter> é mais nocivo do que o prope nso à cólera, reservaram
o epíteto de morosi' ro para os home ns propensos à có lera.

9
l.l V. Cícero . Paradoxos. IV.
160
Morosi= '·de mau carácte r. de ma u fe iti o . quez il e nto. capri c hoso . mal-
-humorado'' . de mores " costumes . ma neira de ser, ca rác te r" (do nde prové m
.. mora l").

12551
XXV 55 Em nenhuma c irc un stância fica bem ao orado r dei-
xar-se levar pela cólera, mas é aceitável que a simule. Ou
tu pensas que quando eu falo num processo em tom mais
vigoroso e apaixonado estou 161 sob o domínio da cólera?
E quando, depo is de já terminado e decidido o processo,
me ponho a passar a esc rito os me us discursos, também
estarei encolerizado?
Nêío há ninguém que veja isto '.' Prendei-o/1 6 ~

ão achas que Esopo 161 es tava e nco leri zado ao decla-


mar <este verso> , ou qu e Ácio esta va e ncoleri zado quando
o esc reveu , pois não? Versos destes são ó ptimos para de-
clamar, e um orador, se for de facto um orador, dec lamá-lo-á
ainda melhor do que qualqu er actor, mas declama-os com
calma , e co m toda a tranquilidade de es pírito.
E que espécie de ' desejo ' é qu e pode leva r alguém a
enaltecer <o va lor> do desejo 164 ? Citais , alguns de vós , os
exe mplos de Temístocles e de Demóstenes, acrescentais
de poi s os de Pitágoras, De mócrito , Platão . E então?
Chamais ' desejo ' ao interesse veemente pelo estudo?

161
Lit. no tex to de Cícero a fra se est<í no plural : ··ou tu pensas que <nós, os
advogados> . quando falamos 1111111 processo/ ... / estamo s sob o do111í11io da có-
lera?·· Pode . por consegu int e. ser interpretada de dua s maneiras: ou Cícero refe-
re-se à sua prática pessoa l - eu - . mas usa o plu ral majestático (co mo fa z King).
o u pensa na atitude norma l de todos os advogados e e mprega nós, em sentido
próprio (opção de Gigon. Humbert. Cle ri ci). Dada a tendência de Cícero. nas
T. D .. para pri vi legiar a sua ex peri ênc ia particu lar preferimos a primeira inter-
pretação.
~ Tradução de um verso da tragédia Arreus de Ácio (Segurado e Campos.
16

Séneca: Ti estes. p. 23. cf. Warmington . R . O. L. . Accius . v. 198). Este mesmo


verso já fora citado por Cícero no De orawre . 111. 2 17.
163
Acto r. am igo de Cícero. cf. supra 11 . 39.
164
Cf. supra §§ 44 e 45. e as notas respectivas. Não esquecer que .. desejo··.
neste contexto . corresponde ao termo latino libido, q ue co nota um desejo exacer-
bado e. como tal. condenável.

12561
O interesse , mesmo quando visa as activ idades mais eleva-
das, como no caso dos vossos exemplos. deve ma ni festar-
-se de uma for ma calma e tra nqui la . Quanto ao desgosto,
sentimento o mais detestável possível , que fi lósofos há que
o aprec iem? Citais-me o ve rso de Afrân io:
É bom que sinta algum desgosto , seja qual for o motivo! 16 '

Mas este verso aplica-se a um adolescente devasso e liber-


tino, enqu an to a nossa inves ti gação res peita ao homem
equilibrado e sábi o. E quanto à fa mosa cólera 1<>6 , deixe mo-
-la mani festar-se num centuri ão , num porta-esta ndarte, e
em outros sujeitos de que não vale a pena fa lar 167 , para não
desvendarmos os segredos da retórica. Para quem não é
capaz de recorrer à razão pode ser útil recorrer à emoção.
Mas nós , volto a sublinhá- lo, estamos a indagar o que é
um sábio.
Alegareis, talvez , que podem ser úte is o ci úme, a XXVI 56
inveja, a comi seração. Mas porquê sentir comi seração
<por alguém> em vez de lhe prestar auxílio , se isso nos fo r
possível? ão podemos , porve ntu ra, ser generosos sem
sentirmos piedade? A verd ade é que nós não devemos
fazer nossos os desgostos dos outros, mas sim , se puder-
mos, aliviá- los do seu desgosto. Sentir in veja de outro e
competir com ele no mau sentido do termo 'competi ção ',
ou seja, a que se asse melha à ri validade, que es péc ie de
utilidade pode ter, uma vez que o ci umento sente desgosto
porque um bem que ele não poss ui pertence a out ro , e o
invejoso sente desgosto porque um out ro possui o mesmo

165
Cf. sup ra § 45.
166
Famosa . isto é . ce le braua co mo me ritóri a por ce rtos Pe ripaté ti cos.
167
Os oradores.

l257J
bem que e le próprio? Co mo pode mos nós achar útil sentir
desgosto e m vez de tentar o bter o que desejamos?
Pretendermos ser o úni cos a possuir <uma determinada
coisa> é o cúmul o da in se nsatez.
57 Quem poderá leg itimamente aprovar a teoria do meio
termo 168 apli cada aos ma les? Quem pode , se na sua mente
ex istir o desejo e a av idez , não se r um ho me m libidinoso
e ávido? Se <exi stir ne le> a cóle ra , qu em não se rá colé-
ri co? Se a angústi a , que m não será ansioso? Se o medo ,
que m não será medroso? Acaso um home m que seja libi-
din oso , co lérico , ansioso , timorato , pode se r co nsiderado
um sábi o? Sobre a excelênc ia do sábi o é possível
di ssertar ampla e pormeno ri zadamente, mas de uma fo rma
conc isa podemos di zer qu e "a sabedoria é a c iência das
coisas di vinas e humanas , e o conhecimento da causa de
cada uma de/as " 169 ; daqui decorre que <a sabedoria>
procura imitar os deuses , e co nsidera todo o humano como
infe rior à virtude 170 . E di sseste tu qu e esta <sabedoria>
te parece poder estar suj e ita às perturbações mentai s, tal
co mo o mar está suj eito <à força> dos ve ntos? Que facto

168
So bre a teori a do meio te rmo dos Peripaté ticos. v. supra. Ili. ~ 22 .
169
Cf. S. V. F. , li . 35 (= Rad ice . o. 1.. p. 306 ): ··o s fil ósofos estó icos definem
a sa bedo ri a (oo<j)(a) corno se ndo a ciênc ia (Í'n.t0r íiµ11 ) das co isas divinas e hu-
ma nas . e a fi losofi a co rno a prática da arte co rrespo nden te··: li. 36: ·'a sabedori a
(di zem os estó icos) é a ciê ncia da s co isas d ivinas e huma na s": cf. Cícero. De
fi 11ihus. Ili. 29: Ve rgílio, Geó1J?icas, li . 490 : fel ix qui p0111it rerum cog11oscere
ca11sas ··fe liz aque le que pôde conhecer as cau sas das co isas .. : Sé neca . Questões
Naturais. 1. prae fa tio 1: Q11a111w11 inter ph ;/osophiwn i11terest ... et ceteras artes,
tantum intr,resse existi1110 i11 ipsa jilosrljia inter illam partem quae ad ho111i11es
et ha11c quae ad deos pertinente ··A d istância que separa a fil osofi a das restantes
a rt es é. e m me u e nte nde r. idê nt ica àq ue la que . na pró pri a fil osofia. separa a parte
q ue d iz res pe ito aos ho me ns e aque la q ue d iz respe ito aos de uses:·
170
Sé neca. ibidem . 5 : O qua111 co11te111pta res est ho1110 . 11isi s11pra hu111a11a
.rnrrexerit "Oh . que co isa desprezíve l é o ho me m se não se e levar ac ima da sua
co ndição 1••

f258]
haverá que pe rturbe a profund a gra vidade e a coerê ncia
<do sábio> ? Que lhe aco nteça algo de imprev isto , de
repentino? M as co mo pode tal co isa aco ntece r a que m
<meditou prev ia me nte> 17 1 sob re tudo qu anto pode aco nte-
cer a um ho me m?
Quanto àque la 172 afirm ação de que co nvém podar o que
seja excessivo mas de ixar o que fo r natu ra l, <e u pe rgun -
to:> co mo é que uma co isa pode se r natu ra l e excessiva ao
mesmo te mpo? Todas es tas ide ias pro vêm el a rai z e rrada
<da teoria pe ripaté ti ca> , pe lo que deve m se r ex tirpadas e
arrancadas . e não ape nas apa radas e podadas.
Mas suspe ito que tu , ma is do que inquirir ace rca do XXVII 58
sábio , estás inte ressado e m ana li sa r-te a ti , po is sabes que ,
enqu anto este já está po r co mpl eto libe rto das pa ixões, tu
ainda estás e m via <de o co nseguires> . Ava lie mos e ntão a
eficacidade dos re médios que a fil oso fi a reco me nda co ntra
as perturbações da me nte 171 • Ex iste efecti va me nte uma
terapêutica adequ ada , a natureza não fo i tão adve rsa. tão
inimiga do gé ne ro huma no a po nto de te r tantos bo ns
tratamentos para o co rpo e não te r descobe rto ne nhum para
a mente. O ra qu a nto a esta . a natureza a inda fo i ma is ge ne-
rosa, na medida e m que os medi ca me ntos pa ra o co rpo
provê m do ex te ri o r, ao passo que a c ura da me nte de pe nde
apenas de si mes ma. M as qu a nto mais excele nte e apa re n-
tada ao di vino é <a me nte> 174 , tanto maiores são os cuidados
de que carece. Ass im , se a razão utili zada co rrec ta me nte
sabe descobrir o me lho r <re médi o> , se negli ge nc iada

171
Expressão não constante cios mss .. co njec turacla na edição ele Bo uhie r
1560.
171
lsto é. cios Peripatéticos. res po nsáveis ela concepção do ·meio te rmo·.
17
J Neste passo. ao contrário cio habitu a l. Cícero escreve ··doenças ela me nte··.
174
Ou ··a alma··.

[259 1
59 vê-se e nredada e m mil e um proble mas. Se rás tu , portanto ,
a partir de agora o objecto do me u di sc urso, po is, conquanto
apare ntes inquirir a ques tão do sábio, é talvez o te u caso
<que desejas in vesti ga r> .
São dife re ntes os trata me ntos a pro pri ados para aq ue-
las pe rturbações qu e ac ima desc rev i 175 . Po r exe mplo , nem
todo s o s desgostos são aca lmados seg undo o mes mo méto-
do (será d ive rso o re médi o a mini strar a que m está de luto ,
ou a que m sofre de co mi se ração o u de in veja); a respeito
de toda s as qu atro pe rturbações há qu e di stin guir se <o di s-
c urso> deve visar o co nce ito ge ral de pe rturbação como
se ndo ou reje ição da razão ou um a fo rma exage rada de de-
sejo , ou se, pe lo co ntrá ri o, deve te r por objecto a perturba-
ção indi vidual , po r exe mpl o , o medo , o desejo , e as demais;
pode di sc utir-se també m se é o caso conc reto qu e ori ginou
o desgos to qu e não pa rece me rece r ta manha afli ção , ou se
deve antes e limina r-se o desgo sto e m gera l, <independen-
te me nte da causa> , por exe mpl o, se algué m mostra des-
gos to por se r po bre, pode a rgume nta r-se ou que a pobreza
não é um mal , ou e ntão qu e o ho me m não deve mostrar
desgosto seja pe lo qu e fo r. Este método é preferíve l,
porque, se não se con seg ue pe rsuadir <o pac ie nte> acerca
da pobreza 176 , te rá de admitir-se o desgosto , ao passo que
se o desgosto fo r e rradi cado pe los mé todos adequados,
co mo os que refe ri no di álogo de o nte m 177 , de al guma
forma e rradica-se a ide ia de qu e a pobreza é um mal 178 .

175
Sohre os vários tipos de pe rt urbações existe ntes . v. s upra ~ 11.
17
Isto é. se não conseg u imos convencê -lo de que a pob reza não é. em si.
"

um ma l.
177
C f. Ili . 76 e ss .
178
O desgosto cau sado pela pobreza está co nt ido no conce ito ge ral de ·des-
gosto ·. logo. se se e rrad icar ela me nte o desgosto. em ge ral. errad ica-se também
e m es pecial o desgosto ca usado pela pobreza.

[260 1
Pode, por co nseg uinte, co nseg uir-se um a aca lmi a da XXVIII 60
mente no caso de uma perturbação deste tipo se se demons-
trar que nem é um '' bem"" aqui lo que origi na o prazer ou o
desejo, como não é um ·' mal"' o que dá origem ao medo ou
ao desgosto. Mas a cura mais segura e apropriada consiste
em demonstrar que as perturbações são , em si mes mas.
viciosas . que não têm em si nada de natural ou de necessá-
rio 179: podemos ass im ver como o desgosto acaba por
se aca lmar quando ex pomos ao paciente a fraqueza que
caracteri za uma mente efe minada , ou quando enaltecemos
a di gn idade e a firmeza demonstrada pe los que ace itam as
viciss itudes humanas sem se deixarem perturbar. Esta
atitude, ali ás , cost uma verifica r-se até no caso de pessoas
que consideram essas vici ss itudes como males , mas que
entendem que devem ser suportadas com gra ndeza de
alma . Este indi víd uo co nsidera o prazer como um 'bem ',
este outro pensa o mesmo do dinheiro: toda via o prime iro
pode se r desviado da devassidão, tal como o segundo o
pode ser da ava reza. A primeira metodologia 180 que referi ,
e que procura simultanea mente libertá-lo de um a falsa
opinião e eliminar o desgosto que o afecta. é sem dúvida
mais útil 181 • mas raramente é bem suced ida, e não deve
aplicar-se ao comum dos homens. Ex istem certos desgostos 61
que não podem ser sa nados por este método. por exemplo

179
Cf. supra Ili. 76. 79.
1811
" Metodologia"= lat. rario er ora rio. lit. "o mé todo e o d isc urso .. . i. e .. o
*
método di scu rs ivo (cf. supra :l8). Cícero está a refe rir-se ao mé todo que co n-
siste em pe rsuad ir o pac ie nte de q ue. por exemplo. a pob re ia não~ em s i um mal
(1upra 59).
181
*
Pode considera r-se mais útil na med id a em q ue obtém dois resu ltados.
mas só re~ulta em pe~'.-,Oa~ com alguma predi~ po'.-> içüo pa ra a f-i losofia: a uma
pessoa comu m já é mais d ifíc il conve ncê -la. pa ra usa r o exemp lo de C ícero. de
que a pobreza não é e m s i um ma l.

126 11
quando alguém sente com desgosto que não possui nem
um grão de virtude , de coragem, de sentido do dever, de
honestidade: é um desgosto ocas ionado por males ve rda-
deiros mas que ex ige para ser sanado um outro método,
<um método> de natureza tal que possa ser aceite por
todos os fi lósofo s, por muito grande que seja o seu desa-
cordo em todas as demais questões . Jmporta que todos eles
concordem em que as emoções contrárias ao uso justo
da razão que afec tam a mente são, em si, viciosas, de
modo que , embora sejam ' mal es ' as causas do medo ou
do desgosto, ou sejam ' bens' <as causas> do desejo ou do
prazer, ainda ass im a emoção, em si mes ma, será viciosa.
Queremos fo rma r alguém que seja firm e, tra nquil o, digno,
que despreze todas as viciss itudes humanas - alguém a
quem possamos chamar mag nânimo e valoroso . Ora estas
qualidades não podemos encontrá- las em quem seja
sujeito à tri steza ou ao medo, ao desejo ou à excitação
do prazer, ou seja. em indi víduos persuadidos de que as
contingências humanas são mais poderosas do que a força
das suas mentes .
XXIX 62 É por este moti vo que todos os fil ósofos , como atrás
di sse . empregam o mesmo método de tratamento que
consiste em anali sar, não a perturbação concreta que afecta
a mente, mas sim a perturbação mental em si mesma .
Ass im , tomando como exempl o a avidez, quando o objec-
ti vo consiste apenas em erradi car es ·a perturbação , não
é preciso começar por indagar se o que provoca o desejo é
ou não é um ' bem', é o desejo em si que deve ser erradi-
cado, de modo que, quer se considere que o sumo bem
consiste no ' bem moral ' 182 , quer no ' prazer ' , quer na com-

18
' O termo latino que Jradu zimos habitu al mente por " bem moral" é aqui

[262]
binação de ambos , ou nos co nhecidos três géneros de
bens 183, ainda que o desejo mai s intenso ten ha por objecto
a própri a virtude, deve em todos os casos empregar-se o
mesmo disc urso no se nt ido de erradi car <o desejo>. Tudo
quanto propo rc io na tran quilidade à mente encontramo- lo
na observação da natureza hum ana , e para desta termos
uma noção co mpl eta há que analisar a condição e a lei da
vida co muns a todos os homens.
Não é sem motivo que , quando Euríp ides pôs e m cena 63
a tragédi a O restes , Sócrates, ao que se co nta, ped iu q ue se
repeti ssem os três prime iros versos:
Não existe notícia tão terrível de tran smitir pela pala vra ,
Nem f atalidade ou desgraça causada pela ira dos deuses
Que a nature:,a humana não seja capa:, de suportar' 184

Para persuad ir algué m de que as desg raças pode m e


devem suportar-se vale a pe na enumerar casos de pessoas
que as supo rtaram . De res to, o modo de acalmar o desgos-
to já o ex pu s no nosso di álogo de ontem , e també m na
Consolação, o li vro que redigi qu ando estava mergul hado
- pois não era um sábio ! - na tri steza e na do r 185 ; fiz e ntão

ho11es1u111: Cíce ro. e o ut ros autores, usa m com a mesma fun ção também /umes-
ras: estes termos tê m um a lcance mai s vasto do que o corresponde nte português
""honestidade··. daí a nossa preferência: o bem moral. o bem em si. a virtude.
183
Os ·be ns da alma ' (co mo o bem mora l, tese dos Estóicos) . os ·bens
do corpo ' (co mo o praze r. tese dos Epic uri sta s) e os ' ben s exteriores· (como a
riqueza. tese dos Pe ripatéticos); v. infra V. 85. Todo o tratado de Cícero De
fin ibus consagra os dois primeiros li vros à di sc ussão do bem supremo seg undo
os Estóicos, os doi s seg uintes à tese de Epi c uro. o quinto e ú ltimo à posição dos
Peripatéticos.
18
• Eurípides . Orestes. vv. 1-3. A tradução latin a ele C ícero é um tanto livre :

enquanto Eurípides pretende sublinhar como a natureza hum ana está suje ita às
mais terríve is vicissi tudes . a ideia que C ícero tran smite é que o home m é capaz
de suportar todos os ma les que o possam afec tar.
185
Isto é . qua ndo Cícero tinha acabado de sofrer o falecimento da fil ha.

l263J
aquilo que Crisipo desaconse lh a, isto é, ap li ca r o remédi o
quando as fe ri das da mente a inda estão inflamadas 186 ,
forcei a natureza para que a vio lê ncia da minha dor fosse
ve ncida pela violê nc ia do re médi o.
XXX 64 Vi zinho do desgosto, que já di scu tim os quanto baste,
é o medo, sobre o qual há algumas palavras a di zer.
Enqu a nto o desgosto se refere ao <mal> prese nte , o medo
tem por objecto um ma l futuro 187 • Por isso algun s autores
co ns ideram que o medo co nstitui um a parte do desgosto,
enquanto outros cha mam-lhe um ' pré-sofrimen to ' 188 , como
se e le fos se a vanguarda do sofrimento que vai seg uir-se.
Os mesmos métodos , portanto, que se rve m para <os
mal es> prese ntes também servirão para os futuro s. Em
ambos os casos há que tomar atenção e m não tomar atitudes
rasteiras, fraca s, tímidas, efemi nadas , resig nadas, despre-
zíve is. E conquanto haj a algo a dizer sobre a inconstânci a,
a de bilidade e a fri vo lidade <de carácter> que o medo em
si implica , é també m proveitoso desvalorizar as próprias
ca usas do medo.
Deste modo, acabou po r ser vantajoso o fac to, ou
devido ao acaso , o u a a lgum propósi to, de nos doi s primei-
ros dias de di álogo te rmos di scutido as du as principais
causas do medo , a morte e a do r. Se os argumentos nos
pe rsuadiram , te re mos e m g rande parte fi cado livres do
medo .

186
Cf. supra Ili. 76. Este passo é recol hido por von Arnim co mo o fragmen-
to 111 . 484 dos S. V. F.
187
CL su pra 11.
188
Neolog ismo . tanto quanto sabe mos. form ado segundo o modelo de u.g.
pré-socrárico (v. Rebelo Gonça l ves. VOC.. s. u. pré- , e para lelo ao latim de
Cícero. também neologismo. tal vez criado pelo orador. prae1110/esria. Em todo o
caso refira-se que Platão. A República , emprega o verbo ngo:1.urrêio0m = ··pré-
-sofrer.. (584 b) e o nome ngo:l.uní7oaç = " pré-dores.. (584 c).

[264]
Até agora tratámos das cre nças relativas aos " ma les": XXX I 65
vejamos agora as relativas aos " bens" , is to é , o '"prazer"
e o "desejo'" 189 • Em meu e ntender, a tota lidade da teoria
respei tante às pertu rbações da me nte res ume-se a um a
única questão: todas e las es tão sujei tas ao nosso poder,
todas são aco lhi das de liberada me nte, todas são vo luntá-
rias. É este. porta nto , o e rro a ser e limin ado, esta a cre nça
a ser apagada: e assim co mo nos ma les deri vados da crença
devemos to rn á- los to leráveis, ass im ta mbé m no caso dos
bens, os q ue nos parecem im portantes e causado res de
sati sfação devem ser redu zidos às devidas propo rções 190 .
Existe um po nto co mum aos " ma les" e aos " be ns" : a inda
que seja d ifíc il pers uadir ou tre m de que nen huma daque las
coisas que causa m pe rturbações na me nte se inclui real-
mente entre os be ns o u e ntre os ma les , não deve mos
renun ciar a apli car um trata me nto es pec ífico a cada caso
indi vidual, usa ndo um método para co mbate r a ma levo-
lência, o utro para a obsessão pelas mulh e res , o utro a in da
para que m so fre de ansiedade o u para que m é timorato.
Seri a, ali ás, fác il para que m ada ptasse a do utrina 66
acerca do bem e do ma l que goza de ma io r ace itação 191 ,
afirm ar que o não-sábio nunca pode se ntir o ve rdade iro
prazer, dado q ue não sabe o que é o be m 192 ; mas nós aqui

189
Aqui ··c1esejo·· 1raduz o lat im cupiditas ··avicleL··. Elll ou1ros passos. para
a noção ele ··desejo·· Cícero em prega lihido.
190
Ou seja. os ··males ele opinião ... se devidamen1e conside rados. acaballl
por !Ornar-se supon áveis: aos .. bens ele op ini ão ... o que há a fa7er é não lhes
a1ribui r maior impor!ância do que a que lllerecem.
191
A doulrina estó ica. seg undo a qual apenas exisle Ulll único belll. o ··belll
moral .. (ho11es111111). e um único Jllal. o 11iti11111. i. e .. ludo quanlo for 111orallllen1e
condenável.
192
O não-sábio. o insipienle segundo os Es1ó icos. não possui na realidade
o conhec illlelllo ele co isa ne nhulll a . ape nas le lll opin iões sobre as coisas. e a
opinião equ iva le a um não-saber.

12651
usamos a linguagem de tod a a ge nte . Admita mos então
qu e são de facto " be ns" aque les a que damos es te nome,
co mo os altos ca rgos, as riquezas, os praze res, etc.: mes mo
assi m os exce sos de li ra ntes de a leg ria por os poss uirmos
são co ndenáveis, do mes mo mod o que co nsideramos
ce nsuráve l rir às garga lh adas mes mo em circun tâncias
em que o ri o é admi . ível. ma pes<,oa cuja mente dá
larga ao entimento do prazer ofre do me mo \ ício que
uma pe . oa que '>e dei xa abater pela dor. a ofreg uidão
om que s.e des.eja '>Ofre da me'>ma ri olidade que a
aleg ri a om que s.e de fruta . pelo que ão on iderados
gente em carác ter tanto o que e deixam abate r demai
pelo ofrimento como o que se excitam demasiado co m o
prazer: e nquanto a in veja é um a ca u a de de gosto. o gozo
com os males alheio é um moti vo de praze r. mas ambos
ão pe rturbações que e m gera l . e co rri ge m pondo em
rele vo o que ne las há de bestialid ade e c rueza: ass im co mo
é acei táve l tomar preca uções mas já não o é se ntir medo ,
també m entir alegria é ace itáve l mas é censuráve l o
praze r des mesurado: as sim. po r razões ex pos itivas. di s-
tin go na terminol og ia a ·'aleg ri a" do "prazer excess ivo" 193.
67 Há um ponto que j á ac ima de ixe i refe rid o, que o abati-
mento da me nte nunca é razoáve l. mas que o co ntentamento
pode sê- lo 194 . Veja-se o co ntra te e ntre a forma de sati s-
fação man ife tada pel o He ito r da tragédia de é io:
Ale~ra -111e ser /o urndo por ri. 111e11 pai. 11111 ho111e111 digno
[de /011ror;

º' ·· en llr akgna" = t111dae: " lsen11r1 razer de,me,urado" = laerari:


.. alegna·· = 'a11di 111n: razer e, ~e55t\O .. = la~ru,a.

*~
"" nbre as questões term1nológ1 -a.s e a.s 1de1a, gera 1, de,te passo . , . supra
l 3 e l-t .

[2661
e as de um " he rói" de uma co méd ia de T rábea:
A alco vireira , amansada pelo dinh eiro , ohservará os
(meus sinais ,
O que desejo . o que me inreressa. Ao chegar harerei
(com os dedos na porra.
Que se abrirá de par e111 par. Quando Crísis , se111 o
/ esperar. der pela minha presença
Virá ao 111eu enconrro wda conrenre. desejosa que eu
/a abrace.
Serú roda minha.' 10 '

Até qu e po nto este ju lga dig na a cena. e le próprio o


dec lara:

A minha for1111w suplanrará a própria deusa Fort111w.

Bas ta pres tar algu ma atenção a estas palav ras para se XXXII 68
perceber qu a nto de vergo nhoso ex iste nes ta fo rm a de
alegria .
E ass im co mo são un s desa ve rgo nhados aque les que
se entu siasma m e m e xcesso no pró prio mo me nto e m
que desfrutam dos praze res de Vé nu s, são un s devassos
os que se exc itam de desejo qu ando ne les pe nsam . Todo
este sentime nto a que co rre nte me nte se chama "amor"
(e eu confesso q ue ig no ro po r que o utro no me pode re i

19
; O primeiro ,·er o. pertencente à uagédia Hecior proficiscen.1 " He ito r

par1indo (para o combate , ... de '.\évio tséc. 111 a . C. ). mostra da parte do


herói uma forma aceitá,el de contentamento: o de alguém que se sente ho nrado
por merecer a admiração da parte de quem é. ele mesmo. digno da admiração
do povo. Com es e ontrasta o pa -,o e~traído de uma omédia de Trábea
(séc.111-11 a. C ,. em ue ,emo, um ad11/esce111 um Jo,em dis,oluto que recorre
aos servi os de uma ako I eira para o era- boas graças de Crí,1,. certamen-
te uma mere nt a quem ele , a1 1,1 ar. an e gozando em pen,amento a ,olúp1a
do encontro . numa ma-n1 ·e·u. ão de alegna que nadá tem a ,er com a alegna
'·heróica.. de He nor

[267]
chamá- lo !) é de uma tal superficia lidade que não vejo
outro que lhe seja comparável. Cecílio pensa que
Q11e111 não acha <o a111or> o deus supremo
011 é estlÍpido, 011 nâo conhece a Fida.

<esse deus>
Que dispõe do poder de. a quem lhe aprou1 •er, enlouquecer,
011 tornar ra:,oá1 ·el. 011 dar por curado, 011 cair doente,

011. pelo contrário..fa:,er co111 que seja amado. desejado ,


fpro c11rado 1196

69 Oh! Que be la educadora da vida é a arte poética! Com


que discernimento propõe qu e e co loque no co ncílio dos
deuses o amor, conselheiro da devass idão e da frivolidade!
Mas isto di go eu da coméd ia, gé nero que , se estas devassi-
dões não gozassem de apreço , nem equer existiria! Mas
vejamos o que diz numa tragédia o grande príncipe do
Argo nautas:
O amor, mais do que a honra. é que te incitou
/a sall'ar-111e! 191

Bo m! Quantos incê ndi os não fora m ateados pelo amor


de Mede ia! Esta heroína , seg und o um o utro poeta , até se
atreveu a dizer ao próprio pai que teve por espo o
O homem que A111or lhe deu. <esse deus>
Mais poderoso e.forte do que 11111 pai! 19 '

I% Versos de uma coméd ia não ide ntifi cada de Cecíli o. Warmington. R. O.


L .. Caecili11s. vv. 238-42.
197
Verso da tragédia Medea. de Éni o (Wanni ngto n. R. O. L.. 1. Tra1;edies.
V. 286 ).
19
s Ver,o da tragédia Med11s de Pacú vio (Warmington. R. O. L .. li. Parnl'il/S.
V 260 ).

1268]
Mas deixemos os poetas entregues às suas fa ntasias, XXXIII 70
graças a cuja imaginação até o próprio Júpiter nós ve mos
entrega r-se à devassidão! Passe mos aos filósofos, mestres
da virtude , que negam a identifi cação do amor com o sexo,
e contradizem a este respeito Epicuro , que, neste aspecto ,
não está , segundo penso, muito longe da ve rd ade. Onde
querem eles chegar com o se u 'amor pela amizade' ? E
porquê não sentir amor por um moço feio ou por um ve lho
ai nda formo so 199 ? Parece-me ser este um costume nascido
nos ginásios dos Gregos, em que este tipo de amor é li vre
e geralmente aceite . Mas Énio tem razão qu ando di z:
O princípio da devassidc7o esrá em mosrrar-se nu
f em público 21m.
Admito que seja poss íve l tai s pessoas serem decentes ,
mas não deixa m de sentir-se ansiosos , pouco à vontade ,
porque apenas contam consigo próprios para se domi -
narem e controlarem . Mas para já não fa lar dos amores
71
inspirados por mulheres, caso em que é maior a liberd ade
permitida pela natureza, quem é que não percebe as inten-
ções dos poetas quando falam no rapto de Ganimedes,
quem é que não compreende as palavras e os desejos
de Laio no drama de Eurípides 211 1? E quantos homens de
enorme cu ltura e ta lento poéti co não fi zera m de si o tema

199
Cícero al ude a uma doutrina dos Estóicm, conservada num a c itação de
Estobeu. v. 5. V r~. Ili. 650: "'O amor é w11 i111p11l.10 para contrair m11i:ade des -
perrado pela co111e111plaçâo da hele:a dejm·ens perfeito.,: o .wíhio. portt11110 . .,erâ
sensfrel ao amor e amarcí os <jovens> di,;11os do seu amor pela ,whre:a do seu
1wsci111e1110 e pelas suas qualidades inmas. ·· Cf. infra.
ioo Éni o. peça não identificada (Warrning to n. R. O . L.. 1. Scenica. 407).
201
A tragédi a de Eurípides. Crisipo. pun ha em cena a paixão de Laio. re i de
Tebas. por Crisipo. fi lho bastardo ele Pé lops (c f. Hig ino. Fá/mia s. 85).

l269 J
de poesias e cantos de sua auto ri a? Veja-se Alceu , tão
famo so na sua pátria em resultado da sua acção política,
quantos versos esc reveu sobre o amo r pe los ado lescentes,
o u Anacreonte, cuj a produção poéti ca é toda e la consa-
g rada ao amor. Mas de e ntre todos os líri cos nenhum
vibrou tanto co m o amo r do que Íbi co de Régio, como se
vê pe los seus escritos 2º2 .
XXX IV Em todos estes auto res vemos tratados amores de
natureza sensual. E chega mos ass im ao nosso caso, o dos
fil ósofos, que nos pronunciamos sobre o tema no segui -
me nto do exemplo de Pl atão 203 , com alguma razão acusado
por Dicearco 204 de ter garant ido a respeitabilidade ao amor.
Quanto aos Estóicos , não só afirmam que o sábio pode
entregar-se ao amor, mas també m definem este corno "um
impulso para contrair ami-::.ade deri vado da contemplação
da bele-::.a " 105. Um tal amor, se ex iste na natureza um amor
imune à ansiedade , ao desejo , ao cuidar e suspirar, admito
que seja possível, mas nada tem a ver com o desejo sensual.
Ora o que estamos a di sc utir é o desejo . M as ex iste tal vez

'º 2
Trê s grande nomes da lírica grega são e numerados por Cíce ro como
exe mpl os de como a poesia se interessa pe la questão amorosa, e m espec ial.
a jul ga r pelos poetas citados. pelo amor ho mossex ual : Alceu de Mitilene
(séc. v 11 -v1 a. C.). Anacreont e de Téos . na Jón ia (séc. v 1 a. C.). Íbi co de Régio
(também do séc . v 1). A lenda da mon e viole nta deste e do casti go dos assassinos
inspirou a Fri edrich Schiller a famosa balada Die Kranich e des lbvkos.
W ! Entre os diálogos de Pl atão que tratam do proble ma do amor salientam-se
o Banquete e o Fedro.
*
,OJ Ace rca de Di cearco. cf. supra 1. 2 1. Di óge nes Laércio. Ili. 4 atribui-lhe
uma obra intitulada Sobre us !(éneros de ,·ilia.
205
V. supra. n. 199. Co m li ge iras va ri antes a mesma defi ni ção ocorre ainda.
atribu ída a Zenão. e m S. V F.. 1. 248: "O sábio sentirá a111or pelos ado/esce111es
cuja hele:a denote u111a propensão inata para a l'irtude ··; cf. S. V F., Ili. 718:
"Co1110 escrel'e Crisipo. 11 0 seu tratado Sobre o amor. o a111or é uma varia111e
da a111 i:ade. pelo que não incorre e111 desaprol"Clção nenhuma ; a bele:a, aliás,
é como que w11a f lor ,wscida da 1•irrude.,.

[2701
um outro tipo de amor, como de facto parece que ex iste ,
que em nad a o u em muito pouco difere da louc ura , se me-
lhante ao que se encontra em A rapariga de Lêucade 206 :
Se ao menos existisse um deus que se preocupasse
[cornigo 1. .. .

Ora aqui está o qu e devia preocupar todos os deu ses : co mo 73


fazer com que <o jovem da peça>- 207 saboreasse o prazer
amoroso? !
Oh , como sou desgraçado!

Absolutame nte ve rd ade. E tem toda a razão o interlocutor:


Estás no teu juí::,o , a lamentares-te assim sem ra::,ão ?

Como se vê, até os a mi gos o co nsideram maluco. E co m


que tom de tragéd ia e le fala:
Socorro , di vino Apolo, peço-te: a ti invoco , omnipotente
/Neptuno,
E a vós também, ó Ventos!

Imagi na ele que conve ncerá o universo a ajudá- lo a sati s-


faze r a sua paixão , com a exce pção de Vé nu s, rejeitada por
injusta:
Para quê apelar para ti , Vénus ?

A pai xão, argu me nta e le , impede a deu sa de dar aten-


ção a tudo o mai s , co mo se não fosse preci sa me nte a pai -
xão que o leva a e le a ag ir e a fa lar de modo tão devasso!

206
Co médi a de Turpíli o. comedi óg rafo do séc.1 1a . C. Deve tratar-se de uma
versão burlesca da lenda de Safo alud ida supra.§ 41 (e nota 12 1).
201
No ori g inal , o suje ito da form a ve rbal qu e ve rte mos por .. saboreasse•·
é apenas o de monstrati vo masc ulin o hic --este .. . q ue e nt ende mos represe ntar o
.. adolescente apai xonado" que fi g ura e m todas as comédias latinas.

í27 ]]
XXXV 74 A um indivíduo neste estado mental deve ap li car-se a
seguinte terapia : mostrar-lhe como é in sig nificante 0
objecto do seu de sejo, como é desprezível. destituído de
valor, como é fácil obter o mesmo resultado em outro
luga r o u de o utra maneira, ou a inda que pode pe rfeita mente
des ist ir dele: o paciente deve ser por vezes desviado para
outros interesses. oc upações. tarefas. cu idados, por vezes
deve ser-lhe reco me nd ada uma mudança de residência
co mo se faz aos doentes qu e tê m dific uld ade em co nva-
75 lescer. Há quem pen se que, tal como se usa um prego para
expu lsa r o utro , se deve suscitar- lhe um novo amo r para
substi tui r o amo r ve lh o 208 . Mas o principal é faze r-lhe
ver a que ex tre mos de lo uc ura pode c hega r o amor. Na
realidade , não há, e ntre as perturbações da me nte , nenhuma
que o iguale e m vio lê nc ia, a ponto de , mes mo se m querer
leva ntar a questão de casos como os de vio lação, sedução.
adu lté ri o, incesto, e nfim, c ujo gra u de ig nomín ia está
sujeito à j ustiça penal , se m referir estes casos, repito , a
perturbação me nta l ocas io nada pelo amor é por si só algo
76 de indi g no . Para já não falar daquelas pe11urbações que
redundam em lo uc ura , mesmo o utras que parecem ser
ma is li ge iras de notam por si só um carácte r superfi cial
e frívolo :
Insultos .
Suspeiras , i11i111i:ades , depois tréguas.
Guerra agora . pa: a seguir: se tantas inconstâncias
Quisesses tomar constan/es , não conseguirias mais
Do que se tentasses recorrer à ra:ão para.ficares /ouco"'fl·

,os Imagem retornada por S . Je rónimo . Episrolârio. 125 . 14: "'Os filósofo s
seculares cosrunwm di:er que u111 wnor I Wl'O expulsa u111 anor 1·elho como 11111
prer,o nm•o expulsa 1.1111 prego velho .. ,
'° 9
Terê ncio. O eunuco . vv . 59-63.

[2721
Perante tais exem plos de inconsistência e instabil i-
dade. que m não sentiri a rep ugnância por tanta desordem
mental? Há que vi ncar bem esta ideia aplicáve l a toda a
perturbação me ntal : ne nhuma existe que não seja derivada
de urna opi ni ão, nenhum a que não seja res ultante de um
juízo erró neo, ne nhuma que não sej a vo luntá ri a. Em su ma ,
se o amor fosse um fac to natural todos <os home ns>
amari am. e a mariam sempre , e ama ri am todos o mes mo ,
sem de le serem desmoti vados , um pe lo pud o r, o utro pela
refl exão , o utro a inda pe la sac iedade.
Quanto à có lera , podemos estar ce rtos de que e nquanto XXXVI 77
ela se apodera das me ntes não é se não uma forma de
loucura , sob cuja influê nc ia até e ntre <doi s> irmãos
podem trocar-se tais inj úri as:
- Em que parte do mu11dojcí se vi11 um impudente como tu ?
- Pergunta antes: 111ais malvado do que tu /2 1º

Conheces o resto : a lternadamente , os doi s irmãos vão tro-


cando e ntre si os mais graves insultos , vê-se co m toda a
clareza que são os doi s filhos daque le mes mo At reu que
congernjn a uma vin gança nunca vista con tra o próprio
irmão:
Quero tuna de~forra enorme. 11111a malvade::, ini111agincível,
Que possa subjugar, destroçar o seu ânimo crue/.' 211

"º Di álogo da tragédi a de Éni o lfigénia (Warm ington. R . O. L .. 1. Sceni ca.


vv. 229-230). Os interlocutores são A gamémnon e M enelau .
211
Depois de Éni o . é Ácio que fornece a Cícero um seg undo par de irm ãos
inimigos. Atreu e Tiestes (Áci o. A1re11s. in Warmington. R. O . L.. li. Á cio. vv.
165-6)

[273 I
E como se traduziu essa terrífica desforra ? Escuta Tiestes:
O meu próprio irmão convidou-me. desgraçado de mim,
A comer com esta hoca os meus .fi !hos 1. . .m

<Atreu> se rviu <a Tiestes> as carnes das crianças.


Sim , porque razão não havia a cóle ra de cair nos mesmos
excessos que a loucura? Por isso dizemos co m toda a
justiça que um homem irado perdeu todo o autocontrolo,
toda a faculdade de decidir, de raciocinar, de pensar, pois a
posse destas capac idades deve estender-se a toda a alma.
78 Dos homens em cólera devemos proteger aqueles de quem
pretendem vingar-se até que eles recuperem o estado
norma l . . . - e o que é o ' estado normal' senão a reposição
da orde m correcta das partes da alma entretanto dispersas?
Ou e ntão pedir-lhes , sup li ca r-lhes que guardem para outra
ocas ião todo o seu grande desejo de vi ngança , até que a ira
vá refrescando . O termo " refrescar" pressupõe ter-se
formado na alma um ardor contra a vontade da razão . Por
isso citam-se co m ap lauso as palavras de Arquitas quando,
e nco le ri zado contra o seu fei tor, exc lamou : "Nem tu sabes
a recepção que te faria se não estivesse tão ~angado
contigo! " 213
XXXVII 79 Onde estão agora estes sábios 2 14 que ac ham a cólera
útil (mas co mo é que a loucura pode ser útil ?) ou natu ral ?
Como pode uma coisa co ntrária à razão ser conforme com
a natureza? Se a ira fo sse natural como se ex plicaria que
certas pessoas são mai s prope nsas à ira do que outras,

2
" Ibidem , vv. 196-7.
rn Arquitas de Tarento. fi lósofo pitagóri co. co me mpo râneo de Pl atão . por
quem imercedeu junto ele Di o nísio ele Sirac usa (Dióge nes Laé rcio .111. 2 1). Duas
elas cartas atribuídas a Platão são e nde reçad as a Arquitas.
210
Os Peripaté ticos . c f. supra§ 43 e n. 123.

[2741
que <a có lera> deste se extinguiu ainda antes de ter levado
a cabo o desejo de vingança , que foi possíve l àquele outro
arrepender-se de um acto praticado enquanto poss uído
pela ira? Sabemos que foi este o caso do rei Alexandre 215
que por pouco não se suicidou quando caiu em si e perce-
beu que tinha assassinado o seu am igo Clito , tão violen to
foi o seu arrependimento 216 • Em face destes factos , como
duvidar que também esta perturbação mental, <a ira> , seja
totalmente fruto da opi ni ão e da vo ntade ? Como pôr e m
dú vid a que perturbações da mente do género da avareza o u
da ambição de gló ria derivam de se atribuir uma excessiva
importânc ia à própri a causa dessa mesma perturbação?
Daqui pode conc luir-se que toda a perturbação mental é
fruto de uma opinião .
Por outro lado , e nquanto a autoconfiança, isto é, a 80
firme segurança da me nte, é uma forma de conhecimento
e uma opinião séria que não confi a no acaso , também o
medo 217 será uma falta de confiança causada pe la ex pecta-
ti va de um mal iminente; e se a esperança é a ex pectativa
de um bem , o medo é necessariamente a ex pectati va de um
mal. Tal como o medo , portanto , também as demai s pertur-
bações cae m no â mbito do mal. Por conseguinte, ass im
como o equilíbrio me ntal é deco rrente do conhecimento ,
assim a perturbação da mente <é decorrente> do erro.
Quando se diz de alguma pessoa que é por natureza pro-
pensa à có lera , à compaixão, à inveja ou a algo de se me-
lhante, é porque se trata de alguém que padece de algum
tipo de defic iente saúde mental , curável , no entanto ,

215
Alexandre. o Grande . re i da Macedónia.
216
Este epi sódi o é relatado, ou me ncionado. por numerosos autores .. u . g ..
Valério Máximo. IX . 3 . ext. 1.
217
Texto pouco seg uro. v. o aparato críti co da edição de Poh lenz ad /oc w n.

[2751
co nfo rme se conta de Sócrates: durante uma reuniao
Zópiro2 18 , homem que se gabava de ser capaz de deduzir o
carácter de alguém a partir dos seus traços fis ionómi cos ,
atribuiu <a Sócrates> um sem-número de defeitos , com o
que provocou a troça dos circun sta ntes. que não reco nhe-
ciam a presença <n o fi lósofo> de ne nhum de tais defeitos.
Foi. porém, defendido por Sócrates. que di zia ter tido
por natureza todos essas de fi ciê nc ias, mas que delas se
libertara graças ao uso da razão 219 .
81 Portanto , ass im como home ns dotados de excelente
saúde , podem , apesar di sso. te r propensão natural para
sofrer esta ou aqu ela doença, també m a me nte human a é
susceptíve l de mostrar tendência o ra para un s , ora para
outros víc ios . Em co ntrapartid a , no caso dos que não são
viciosos por natureza , mas sim por c ulpa própri a, os seus
víc ios resultam das fa lsas opiniões que tê m sobre o bem e
o mal, e por isso um é mais prope nso a esta, outro é mais
prope nso àqueloutra pe rturbação me ntal. U ma paixão
inveterada, contudo. é mai s difíc il de erradi car do que uma
paix ão súbita , tal como no caso do corpo é mai s fác il
e lim inar um repe ntino inchaço oc ul ar do qu e sanar uma
doença cróni ca nos olhos.
XXXVIII 82 Ate nde ndo . po ré m , a que neste momento já conhece-
mos as ca usas das pai xões , e já sabe mos que todas elas são
de ri vadas de j uízos asse ntes e m fal sas opini ões e resultam
de actos vo luntári os, pode mos dar por find a a presente
di scussão. Impo1ta- nos ainda ficar sabe ndo que, conhec idos

218
Inve ntor e prati cante da arte da fi s iognomia.
219
Esta históri a é re latada por Cícero no tratado De fa10 --sobre o destino..
Entre outros defeitos Sócrates. dizia Zópiro . era po uco inte lige nte e muito ape·
gado às mu lhe res (11111/ierosus). o que provocou o ri so de A lcibíades. por quem
Sócrates tinha uma fo rte inc linação ho mossex ual.

12761
que sejam, na medida e m que ta l con heci me nto é acessível
ao homem , qua is as últ imas fro nteiras do bem e do ma l22 º,
nad a de mais impo rtante e mais út il podemos es perar da
fil osofia do q ue as maté ri as que te mos disc utido du rante
estes qu atro d ias. Mostrá mos a irrelevânc ia da morte , o
modo co mo se pode res istir à dor, e ac resce ntá mos a fo rm a
de domin ar as pe rturbações me nta is, qu e são o que há de
pior pa ra o ho me m. E mbora toda a pe rtu rbação me nta l
seja grave e e m pouco se di stinga da louc ura, mes mo
assim , àqu e les qu e sofre m de algum a pe rturbação causada
pelo medo, pe lo prazer ou pe la av idez ape nas costuma mos
chamar-lhes 'agitados' e ' pe rturbados ' , e os outro s, os qu e
se deixam abate r pe lo desgosto, di ze mo- los ' infe lizes',
'aflitos', ' melancóli cos', ' deses pe rados'. Parece ass im qu e 83
não foi por acaso, mas sim de libe rad a me nte, qu e suge ri ste
que tratásse mos e m separado do "desgosto" po r um ladow ,
e das de mais pe rturbações, por o utro 22 \ ate nde ndo a que
<o desgosto> é co mo que a fo nte e a o ri gem de toda a
infe licidade . No e ntanto , qu e r para o desgosto, qu er para
as demais pe rturbações me ntai s a tera pi a é ape nas uma:
mostrar que toda s elas decorre m de fa lsas opiniões, são
actos vo luntári os, e apenas as ace ita mos po r jul garmos se r
correctom ag ir ass im . Ora este e rro de juízo é, por ass im
dizer, a raiz de todos os males, e o qu e a fi losofia se propõe
conseguir não é o utra co isa senão ex tirpá- la de vez.

120
Alu são ao trat ado de Cícero De ji11ih11s. em qu e são clebaticlos teorica-
mente vári os problemas re lati vos ao bem e ao ma l a qu e a, T. D . proc uram dar
as solu ções práticas.
111
Conteúdo cio Livro Il i.
212
Conteúdo cio Li vro IV.
llJ Muit as vezes poder-se-á di ze r: "po liti came nte correc to"!

12771
84 Confiemo-nos, portanto, aos cuidados da filoso fia ,
deixemos que ela nos restitua a saúde. Enquanto estas
deficiências esti verem arreigadas em nós nunca poderemos
ser, já não di go feli zes, mas nem sequer saudáveis. Numa
palavra, ou afirmamos que usando a razão não poderemos
obter nenhum resultado , quando , na realidade , nada de
válido podemos conseguir se não recorrermos à razão, ou
então , uma vez que a fi losofia consiste na fixação de prin-
cípios racionai s <de vida> , solicitemos a esta , se de facto
pretendemos leva r uma vida virtuosa e feliz , que nos
proporcione todo o auxílio , todo o apoio necessário para
sermos virtuosos e felizes224 .

' ' O diá logo termina ass im com o anúnc io do tema do quinto e último diá-
4

logo das T. D.: será. porventura . a virtude co ndi ção sufic ie nte para sermos feli-
zes? (Cf. in fra V. 12. e também Paradoxos dos Estóicos, li : ·'O ho mem virtuoso
não necess ita de mai s nada para ser fe li z .")

f278]
LIVRO V

O prese nte quinto di a , Bruto , sig ni fica o te rmo destes 11


Diálogos em Túsculo ; fo i um di a e m que discorremos
sobre um tema qu e , ma is do que qualqu er o utro , é do teu
maior interesse . ão só pe la leitu ra do Iivro tão aprofundado
que me dedi caste 1 , mas també m pe las co nve rsas que
tivemos, compree ndi na pe rfe ição que, e m teu entender,
a virtude se basta a si mes ma para assegurar a fe licidade
<do homem> . E mbo ra esta tese seja difíci l de acatar, dev ido
às di ve rsas e nume rosas malfeitorias co m que a Fortuna
nos conte mpl a , mes mo assi m devemos e nvidar todos os
esforços para to rn á- la aceitáve l. De todas as maté rias de
que a filosofia se oc upa nenhuma há mai s sé ri a e sublime
do que esta. Fo i esta a causa pe la qual os prime iros 2
homens que se e ntregaram à práti ca da fi losofia foram
incitados a poste rgar todas as de ma is matérias e a consa-
grar-se por co mpleto à bu sca de qual a me lho r co nduta
a ter nesta vida; foi , po rtanto , a es peran ça de alcançar a
fe licidade que os moveu a pô r tão g rande esforço e e mpe-
nho em tal investigação . Se é um fac to que esses ho mens
concebera m e aperfe içoaram o co ncei to de " virtude", e se
a virtude é sufic ie nte para nos gara ntir a fe li c idade, como

1
Trata-se de uma ob ra de Bruto. intitul ada De uirtute. dedi cada a Cícero.
mas que não c hego u até nós. A essa o bra Cícero já ha via fei to uma refe rê nc ia
muito elog iosa e m De fi nibus 1. 8. pe la 4u a l fica mos a conhece r o te ma e o títu lo
da mesma .

[279]
não considerá- los di gnos do maior apreço. e les por terem
dado início, e nós por gara ntirmos a continuidade da prá-
tica da filosofia? Se. pelo co ntrário, a virtud e , submetida a
multiformes e incertos acidentes, se com portar co mo
escrava da Fortuna e não encontrar em si mesma as fo rças
suficientes para se defender. receio bem que. mai s do que
co nfiarmos na virtude para termos es pera nça e m ser
fe li zes, te nh amos de supli car qu e <a fe lic idade> nos caiba
3 e m so rte . No meu caso pessoal, quando pen so nos sobres-
sa ltos com que a Fortuna tão vio len tamente me tratou ,
sucede-me por vezes desconfiar desta teoria" e avali ar com
ansiedade a fraqueza e a fragilidade da condição humana.
Temo e ntão que a natureza, já que à debilidade do corpo
q ue nos deu acrescentou ai nd a doen ças se m remédio e
dores in suportávei s, nos te nha concedido também uma
mente, não apenas sujeita a dores s imilares às do corpo,
mas susceptíve l ai nd a de sofre r a ngústi as e moléstias
es pecíficas de la.
4 Mas, quando tal me sucede, imediatamen te me cubro
de ce nsura s por não medir a força da virtude pela bitola da
própria virtude , mas s im pela debil idade dos homens, que
é tal vez també m a minha . A virtude , porém , se de facto
ex iste! - e o exemplo do teu ti o 3 , Bruto. e liminou toda a
dúvida a esse re spe ito -, domina e conte mpla do alto todas
as co ntin gê ncias huma nas, e. isenta de todo o erro, e ntende
que nada lhe interessa senão e la própria. Nós é que exage-

2
Isto é. da tese segu ndo a qual a vi rtude é só por si suficiente para nos dar a
fe li c idade.
3
Marco Pó rcio Catão. ti o de Bruto por parte da mãe. su ic idou-se depois da
vitó ri a de César na Bata lha de Tapso. e m 46 a. C.. para não ter de submeter-se ao
d it ador. Este gesto. apreciado desde logo pe los adversários de Júlio César. viria
a fa zer de Catão o protótipo do sábio estóico que prefe re a morte à indignidade.

[280]
ramos, com medo, todas as adversidades futura s, encara-
mos as presentes com tri steza, e preferimos culpar di sto a
natu reza em vez da nossa própria falsa opinião .
Desta concepção errada, e bem assim dos nossos li 5
demais vícios e erros , é na filosofia que devemos procurar
a correcção . Foi ao regaço <da filosofia> que voluntaria e
empenhadamente me confiei desde a primeira juventude ,
é nesse mesmo porto de abrigo , donde então parti, que me
refugio agora, após tão dolorosos sofri mentos, e abalado
por terrívei s tormentas 4 • Ó filosofia , guia desta nossa vida ,
tu que bu scas a vi rtu de e eli min as os vícios! Sem ti o que
poderi a ser, já não digo apenas a minh a, mas a vida de todo
o género humano? Foste tu quem deu o ri ge m às c idades,
tu quem levou os homens até então dispersos a passarem
a viver em sociedade , tu quem os un iu primeiro pe la
proximidade das habi tações, depois pela constitui ção de
famíli as, em seg uida pela in venção da linguage m , oral e
escrita, fos te tu quem inventou as leis, tu quem pro mo veu
a moralidade e a c ultura; é e m ti que busco refúg io , a ti que
solicito auxíl io, é a ti que , tal co mo desde sempre em larga
medida me confiei, me en trego <agora> de alma e coração.

4
Nestes doi s períodos, Cícero e mprega semp re a primeira pessoa do plural.
Na tradução e nte nde mos deve r introdu zir um a difere nc iação: no primeiro pe río-
do deixa mos o plural (nós). porque nele Cícero refe re um procedimento a que
recorrem. ou elevem recorre r, todas as pessoas que se dão conta dos se us erros
de apreciação e bu scam na fil osofia urna orientação para o futuro . No seg undo
período. contudo. Cíce ro foca li za a atenção sobre o seu caso pessoa l: quando
jovem dedi cou-se à filosofia com todo o e ntu sia smo. depo is decidiu enveredar
pela carreira ele orador ( político ), na qual. após a lgu ns sucessos. ve io a encon trar
numerosos di ssabores. humilh ações e desgostos (a morte da filh a). No presente .
dec ide voltar à fi losofia (de que . de res to. nunca se afastara po r co mpl eto) corno
"conso lação'· para todos os se us infortúnios. Por isso. e para dar a entender ao
leitor. que Cícero. aqui. se está a re ferir a s i me smo. optámos pe lo emprego cio
singul ar (eu).

1281]
Um único dia bem viv ido de acordo com as tuas determi-
nações é preferível a uma eternidade permanente no erro.
6 A que m recorreremos a pedir ajuda senão a ti , que nos
proporcio nas uma vida de tranquilidade e nos libertas do
medo da morte? E , no en tanto, a fi losofia está bem longe
de ver devidamente apreciado o seu contributo para a quali -
dade da vida humana; mais do que isso, até é neg ligenciada
pela maioria dos homens e mesmo denegrida por muitos.
Como é possível alguém denegrir esta <verdadeira> mãe
da vida civili zada , ousar manchar-se co m tão ímpio crime,
mostrar-se tão indignamente ingrato , e acu sar <a fi losofia>
qu e , ai nda quando não fos se capaz de entendê- la, deveria
pelo menos res peitar? Este erro, porém, esta o bsc uridade
que cega a mente dos ignorantes, cre io que se deve ao facto
de e les não co nseg uirem rec uar tanto na observação do
passado que consiga m veri ficar que os primeiros homens
a quem se deve a organi zação da vida civilizada foram
precisame nte os fi lósofos .
III 7 Se a filosofia, co ntud o , é uma prática já muito antiga,
o nome te mos de reco nhecer que é recente . Mas da sabe-
dori a em si , nin gué m poderá negar que seja antiga tanto de
facto co mo de no me. Já entre os anti gos era este o belíssimo
no me que se da va ao co nheci mento das coisas divinas e
humanas e bem assim ao princípios e às ca usas de cada
um a 5 • Assim foi o caso daq ue les sete homens a quem os
Gregos chamavam oocj:>o(, po r nós tid os e chamados
sapientes6 : muitos séc ul os antes te mos o caso de Licurgo,
conte mporâneo de Ho mero, que co nsta terem vivido , um e

5
Cf. a defini ção de ·sabedori a' dada supra . IV, 57.
6
Os sete sábi os da Gréc ia são alud idos por Cíce ro em vári os passos da sua
obra: a títul o de exempl o v. L11rnl/11s 11 8: De Ji11ib11s li. 7 . etc.

l282J
outro , antes da fundação de Roma; e, remontando à idade
heróica , recordamos os nomes de Uli sses e Nestor, que
eram sáb ios, e reputados co mo tais . Também não se te ria 8
formad o a tradi ção de que Atlas foi o sustentáculo do céu ,
que Promete u foi agri lhoado no Cáucaso e que Cefeu , em
co mpanhi a da es posa , do ge nro e da fi lh a foram tra nsfor-
mados em estre las se , porventura , o seu profundo conheci-
mento dos fenóm e nos celestes não tivesse tran sposto os
respectivos nomes para as fáb ulas da mitol ogia 7 . Em
seguida , a quantos seguira m o seu exemplo e se co nsag ra-
ram à co nte mplação da natureza foi dado o nome de
' sábios' e co mo ta l eram reputados, e o mesmo nome
continu o u a ser usado atá ao te mpo de Pitágoras. Segundo
refere Herac lides Pô nti co 8 , di scípulo de Platão e homem
de grande cu ltura , a tradição diz que <Pitágoras> visi tou
Fliunte, onde teve com o príncipe da cidade , Leonte, uma
longa e e rudita conve rsa sobre <variadas matéri as>.
Leonte ficou fascinado com o talento e a e loquência
<de Pitágoras>, e pergu ntou -lhe qual a arte em que era
especialista , ao qu e o outro res pondeu "que não conhecia
nenhuma arte em especial. era , sim , um filósofo " . Leonte
estranho u o no me , que lhe e ra de todo desco nhecido, e
perguntou <que espécie de homens eram> os fi lósofos,

7
At las . tit ã fil ho de Jápeto . suste nta va sobre os seu s o mbros a abóbada
celeste. Promete u fo i mandado po r Ze us ag ri lhoar num roc hedo do Cá ucaso
como puni ção por te r tran s mitido aos ho me ns o conhec imen to do fogo . Ce fe u
era rei dos Etíopes. marido de Cass iope ia e pai de Andrómeda. So bre estas perso-
nage ns míti cas tão do ag rado dos trág icos gregos . v. Apo lodo ro. Bihliotern. I 2.
3 (8): 1 7. 1 (45): 11 4. 3 (43- 44 ). respec ti va me nte.
8
Heraclides Pônt ico. natural de Heracle ia no mar Neg ro (Po nto) . frequ e n-
tou a Acade mi a de Pl atão . mas foi també m di scípu lo de a lg uns pitagó ricos.
e. mai s tarde. de Ari stóte les. Sobre este autor. v. Dióge nes Laérc io . V. 86-93.
Os seu s testemu nhos sobre Pitágoras podem ver-se e m G iang iulio 2000. 1.
pp. 30-35 .

[2 83 1
9 e em que se di stin g uiam dos demais . Pitágoras e ntão
respo ndeu-lhe qu e co mparava a vida dos ho me ns àq uele
me rcado e m que se realizam jogos muito a paratosos e a
qu e aco rre m pessoas vindas de toda a Grécia 9 ; durante
esses festejos, algun s proc ura va m obter a fama e a notorie-
dade propo rc io nada pe la coroa de ve ncedores nas provas
atléti cas: outros e ra m motivados pela pe rspec ti va ele faze -
re m negóc ios qu e lhes re ndesse m a lgum lucro va ntajoso;
mas havia a inda o utro géne ro de ho me ns, e estes era m de
todos os mai s di g nos ele res pe ito, que não proc urava m
aplau sos nem proveitos , mas que vinham <aos jogos>
apenas para observar e in vestigar co m a máx ima ate nção
tud o qu anto se passava, e co mo as pessoas agiam; nós, os
< filó sofos> , tal co mo as pessoas qu e vê m da sua c idade
para o bulíc io e a multid ão que se j unta nas feiras, somos
co mo a lgué m q ue ve m ele um a o ut ra vida e de uma outra
natureza para esta v ida <aqui na te rra> , e m qu e un s pro-
c uram a g ló ri a, out ros a riqueza. e nqu a nto outros , mais
raros, a qu e m e m nada inte ressa m estes objecti vos, se
interessam antes por estud a r e mpe nh adamente a natureza;
a estes ho me ns dá-se o no me ele · interessados na sabe-
doria · - pois é este o signi ficado da palavra .filósofos .
E ass im co mo na feira a ati tude mais res pe itáve l é a
daq ue les que observa m tudo des in te ressadame nte, assim
na nossa vida a co nte mplação e o co nhec ime nto da
natureza é de lo nge a oc upação qu e deve mo s prefe ri r.
IV 10 Pitágoras, poré m , não se limitou a in ventar um termo
novo, mas a largou també m o ca mpo de estudo da fi losofi a.
Depois deste co lóqui o e m Fliunte veio para a Itália.

9
Alu são ev idente aos grande s jogos pan-heléni cos. nomeadameme aos
Jogos Olímpicos.

l284J
fi xo u-se naq ue la reg ião co nhecida pe lo no me de Mag na
Gréc ia, qu e presti g io u co m as ma is no táve is artes e insti-
tui ções , que r pri vadas que r públicas . É poss íve l qu e e m
outra ocas ião a inda ve nh a a fa lar do pe nsame nto de
Pitágoras. Para os a nti gos fil ósofos, todavi a , até ao te mpo
de Sócrates. di sc ípulo de Arque lau , qu e po r sua vez hav ia
estud ado co m An axágoras 10 , os assuntos preclilectos e ram
os números e os mov imentos, e també m a origem e a d isso-
lução ele todos os se res 11 ; ig ualme nte estud ava m a
grandeza dos astros . os inte rva los <entre e les> , as suas
órbitas , e todos os de ma is fe nó me nos ce lestes . Sócrates
fo i o prime iro que mando u a fi losofia desce r do cé u ,
vir habitar nas c idades, e ntrar até nas casas , o bri go u-a a
estud ar a vida e os cos tumes <dos ho me ns> , e a ave ri g uar
os limites do be m e do ma l 12 . O método multiface tado qu e 11
<Sóc rates> punha nos se us de bates . a vari edade das maté-
ri as, a sua e no rme inte li gênc ia cuj a me móri a chega até nós
através dos tex tos de Pl atão dera m o ri ge m a numerosas
esco las fil osóficas di ve rge ntes e ntre s i. De e ntre <as vá ri as
co rrentes> , a que eu s igo prefe rente mente é aqu e la qu e
penso se r a ada ptada po r Sócrate s , e que con siste e m não

10
Anaxágoras de C la1óme nas. fi lósofo (séc.\' a. C.). vive u a lgum tem po
em Ate nas. o nde fo i a mi go de Pé ri c les e de Eurípi des. Ac usado de imp iedade
ex ilou-se e m Lâmpsaco. o nde fundou uma esco la. Dados biog ráficos e im port an-
tes fragmentos em Diógenes Laércio. li . 6-1.5 . Entre m se us d iscípul os con ta-se
Arque lau (Diógenes Laérc io. li . 16- 17) .
11
Ta lvez os mes mos te mas q ue Aristó te les est udo u no seu tratado n fQL
YEVÉOEUJÇ xui cp0ogã; ··Sobre a ge ração e a corrupção ...
1
' Ou seja. com Sócrates a filosofia de ixou de in teressar-se em especial pelo

estudo da naturen1 e passo u a oc upar-se ta mbé m do estudo "" el a vida e costum es··
dos homens. 4ue é como que m cli L. a lé m d a física . passa a agregar a si o do mín io
da éti ca (g rego i10oç ··costume. carác ter""). ma das ma térias ab rang idas pe la
ética é a defi ni ção do "be m · e do ·111a 1·. a que Cícero ded icou o tratado De/i11ih11.1
e. em larga medida. es tas 1l1sc11/wwe di.1pllllllÍIJ/1es.

l2 851
tomarmos uma posição 13, mas corngtrmos os erros dos
interloc utores e procurarmos em todos os debates chegar o
mais próximo possível da verdade . Esta metodologia foi
seguida por Carnéades co m grande perspicácia e abu ndân-
cia argumentativa, e é a que eu tenho seguido em outras
ocasiões, e também agora nestes <diálogos> em Túsculo ,
que temos travado de acordo co m o mesmo modelo .
Eu e nvie i-te já a versão escrita do s diá logos que aq ui tive-
mos nos passados quatro dias: no quinto , depoi s de nos
se ntarmos todos no mesmo loca l, foi posto à discussão o
tema que seg ue:
V 12 A. - Não sou de opinião que a virtude chegue, só por
si, para nos proporcionar a felicidade.
M .- Hé rcules me va lh a!, mas essa é a opinião do meu
amigo Bruto: peço-te vénia para pôr o parecer dele bem de
longe ac ima do teu .
A. - Não duvido , mas o que está em di scussão não é
o teu apreço por Bruto, mas s im a minha opinião, e é sobre
o va lor desta que e u pretendo que tu dissertes.
M . - Po rtanto tu afirmas que a virtude não c hega para
nos fazer felizes ?
A. - É isso mesmo .
M .- No enta nto, para levar uma vida justa, moral-
me nte correcta, digna de apreço, em suma, uma vida boa,
a vi rtude dá algum a aj uda?
A . - Sim , dá.
M .- Tu podes, e ntão, não co nsiderar infeli z um
home m que te nh a uma v ida má, e podes negar que
um outro , que tu mesmo admitas viver be m , leve uma
vi da feliz?

l) Isto é. em recorrer à b roxí1. a ·suspensão do juízo·.

[286]
A. - Porque não hei-de poder? Mesmo sob tortura
pode levar-se uma vida j usta , moralmente correcta, digna
de apreço, e nestas condi ções pode ter-se uma vida boa ,
desde que se perceba o que significa 'boa' nesta frase .
O que e u que ro di zer é : uma vida asse nte na firmeza, na
seri edade, na sabedori a, na coragem . Estas qualidades 13
pode m fazer frente ao potro da tortura, coisa que a fe lici-
dade não poderá admiti r.
M .- Co mo? Então diz-me uma co isa: só a fe licidade
é que fica fora da porta , do lado de cá da e ntrad a da pri são,
ao passo que a firmeza, a seri edade, a coragem, a sabedoria
e as resta ntes virtudes podem ser arrastadas até ao carrasco
e não se ex imem a nenhum suplício , nem a nenhuma dor?
A. - Se pretendes obte r algum res ultado te ns de pro-
curar novos a rgume ntos ; esses já não me co mo vem , não só
porque já estão muito batidos , mas sobretudo porque, tal
como alguns vinhos li ge iros misturados co m água não
sabem a nada, assim esses argume ntos de o ri gem estóica
dão mai s prazer a saborear do que a beber. Do mesmo
modo , o co njunto das virtudes postas e m cima do potro
<da tortura> erguem-nos di ante dos olhos uma imagem
de enorme di gnid ade, de modo a fazer parecer que a felici-
dade se vai pô r a correr em direcção a elas dando a enten-
der que se sente incapaz de as abandonar. Mas se desviares 14
a atenção desta imag inati va pintura das virtudes e a con-
centrares na realidade da vida , a questão que se levanta
é esta: co mo é que pode ser feliz alguém que esteja a ser
submetido à tortura? É, por co nseg uinte, este o ponto que
devemos investigar. E quanto às virtudes, não receies
que elas reclamem e se pon ham a chorar de serem abando-
nadas pela fel icidade. Se nenhuma virtude existe separada

í287l
da prudê nc ia 14 , cabe prec isamente à prudência verificar
que ne m todos os ho mens bons são també m fe li zes; bastará
recordar o que sucede u a M . Atílio < Rég ul o> , a Q. <Ser-
vílio> Cepi ão, a M ·. Aquílio 15 ; se preferes recorrer a
image ns de preferê nci a à co nsideração dos factos, verás
que, se a fe li cidade te ntar subir para a mesa de to rtura , será
a pró pria prudênc ia a retê- la e a fazer-lhe ver qu e nada
de com um existe e ntre e la. <por um lado> , e a dor e o tor-
mento, <po r o ut ro> .
V I 15 M. - Não me c usta ace itar es te te u proced ime nto , se
be m qu e não seja j usto seres tu a ditar-me co mo hei-de
fazer a minha ex pos ição. Mas di z- me uma co isa, nos dias
que precederam c hegá mos a alguma co nc lusão? Sim
o u não?
A. - C laro que chegámos , e a conclu sões impo rtantes.
M .- Be m , se ass im é , a nossa di scussão já está tão
ava nçada que podemos dá-la po r co nc luída.
A . - Porque di zes isso ?
M . - Porque os mov ime ntos confu sos, as agi tações
exc itadas e provocadas po r impul sos desordenados da
mente escapa m a todo o co ntrol o da razão e não de ixam o
mínimo es paço li vre para a feli c idade . Como pode al guém
deixar de ser infeliz se esti ver do minado pe lo medo da
morte ou do sofrimento , <medo> muitas vezes presente

14
O 1er1110 lat in o pm de 111ia te111 um se ntido mais a111p lo do que o português
·prudência·. pois além de si gnificar como em portu guês ·prudência. precaução··.
tem. na lin guage m fi losófica. também os se nt idos de ·sageza ·. •inteli gência.
ca pacidade intelec tual. di scerniment o·.
15
Sobre Régul o. cuj o exempl o é objecto de várias referências de ícero. v.
Defi11ibus , li. 65: Cepi ão . depo is de um a ca rreira pública brilhante. terminou os
seus dias na pri são . onde morreu. sendo o se u corpo lan çado ao Tibre (Val ério
Máx imo. VI. 9. 13) : quanto a Aquílio. foi feito prisioneiro por Mitri dates que o
submeteu a nuel 1011ura. de que morreu (Apia no . XI1. Guerras Mitridâticas. 12).

[288]
num caso e se mpre iminente no o utro ? E o mesmo pode
di zer-se de o utros medos que frequentemente ocorrem,
corno o da pobreza , da desonra , da má reputação , como o
da in va lidez ou da ceg ue ira, e enfi m o medo da servidão,
que mui tas vezes es pre ita , não apenas indivíduos iso lados,
mas até mesmo povos poderosos. Co mo pode ser feliz
quem viva atorme ntado por estes medos?
E que di zer de qu em não só receia estas situações para 16
o futuro , mas já sofre o seu peso no presen te? Acrescente-se
ainda o exílio, a morte de en tes que ridos, muito e m espe-
cial dos próprios fi lhos : um home m que passe por estes
casos e se deixe abater pelo desgos to , como não acabará
por senti r-se o mais desgraçado possível? E vejamos o utro
caso: quand o observa mos alg ué m inflamado de desejos 16
até à louc ura, ou dominado por uma vio le nta e insaciáve l
ganância de tudo possui r, alguém qu e, quanto mais abun-
dantes e variados fo re m os praze res a que se entrega, mai s
intensa e ardente é a sede de os sati sfazer - não achas
que deve rás co nside rá- lo o mais infeliz <dos home ns> ?
E ainda um outro caso, o daqueles que se de ixam exc itar
pela fri vo lidade, que se deixam tomar de uma al eg ria se m
fundamento e de um delíri o despropositado : não se rão
estes tanto mais infeli zes qu anto mais ditosos se julgam ser?
Em co ntraste co m estes mi seráve is temos aquel es a
quem co nsideramos fe li zes : os que estão imunes a todo o
medo, os qu e nunca se de ixam corroer pelos desgostos
nem excitar pe los desejos, os qu e não se de ixa m amo lecer
pelos langorosos prazeres resultantes de fúte is sati sfa-
ções 17. En te nde-se que o mar está totalme nte tranquil o

16
Entenda-se: de desejos libidin osos (lat. libidi11ih11s).
17
Medo. desgosto. de sejo. prazer: os quatro grandes tipos de perturbações

1289]
quando ne m a mais li geira brisa suscita qualquer ondula-
ção: do mesmo modo di z-se sereno e ca lmo o estado da
mente que nenhuma espécie de perturbação é capaz de
17 alterar. Se algum home m existe que não tema a violência
da Fortun a, que cons idere to leráveis todos os aconteci-
mentos qu e possam afligir a vida humana e destes não
res ulte para e le ne m medo nem angústia ; e se esse mesmo
ho mem não se ntir desejos excessivos, nem deixar que a
sua mente se excite co m prazeres vácuos, que motivo há
para qu e não o consideremos fe liz? E se toda esta maneira
de ser for causad a pe la vi rtude , não há razão a lguma para
que cons ideremos impossíve l que a virtude seja bastante
para , por s i só , fazer os home ns feli zes.
VII A. - Sim , não pode deixar de reconhecer-se que são
fe li zes todos os que não sentem nem medo nem desgosto
seja pe lo qu e for, que nada desejam , nem se de ixam excitar
por prazeres de lirantes. Reconheço que quanto a este
po nto tens razão. Quanto ao segundo po nto , já foi em parte
tratado, dado que nos diálogos precedentes se chegou à
conclu são de qu e o sábio está imune a todas as formas de
perturbação menta l 18 •
18 M .- Parece, portanto , qu e a questão chego u ao seu
termo.
A . - Sim , pratica me nte.

mentai s s usce ptíve is de ocas ionare m a infeli c idade definidas por Ze não (cf. su-
pra . IV, 11 ).
18
Nos três li vros precedentes o debate chegou a vá rias conc lusões: que a
dor não é o s upremo mal (Li vro II ): que o sábio é imune ao desgosto (Li vro Ili)
e às o utras três '·perturbações da mente·· (Li vro IV ). e que é à virtude que o sábio
deve a imunidade às paixões . Daqui se conc lui . portanto. que a posse da virtude
é condição necessária para se alcançar a felic idade. Fa lt ava. porém. demonstrar
que a posse da virtude é também condi ção s ufi c ie nte para chegar a esse resulta-
do: essa va i ser a tarefa a reali zar neste quinto . e último. livro .

f290l
M .- Este método. todavia . é próprio dos matemáticos .
não dos fi lósofos. Os geó metras, quando pretendem
demonstrar alg um teorema. se en tre as proposições pre-
viamente demo nstradas a lguma existe que seja pertinente
<para a presente demonstração>, tomam essa proposição
corno admiti da e demonstrada. e só desenvolvem aqueles
pontos ai nda não anteri o rmente abordados 19 • Os fi lósofos,
por seu lado, qu ando estão a tratar um determinado tema ,
reúnem todos os argume ntos que co m e le possa m esta r
relacionados , mesmo que já tenham sido tratados em outra
ocasião . Se não procedessem ass im. por que razão um
Estóico , <por exemplo> , se lhe perguntassem se a virtude
é bastante por si só para assegurar a fe li cidade , teria de
responder num lo ngo di scurso? Bastar-lhe-ia respo nder
que antes já tinha demonstrado que não há nenhum bem
senão o que é honesto 20 • e que , pro vada esta premissa ,
segue-se que a fe li cidade se co ntenta apenas co m a virtude;
ora. tal co mo esta pre mi ssa é a conseq uênc ia da prime ira,
também a prime ira é co nseq uê ncia da segu nda, logo. se a
fe licidade se conte nta apenas com a vi rtude, é po rqu e nad a
a não ser o que é ho nes to poderá ser <efectivamente> um
bem. Não é, porém, ass im qu e <os Estóicos> procedem: 19
de facto, tratam separad amen te a questão do "bem moral" 2 1
e a do " be m supre mo" 22 , e, embora em ambos os casos o
resu ltado a que chega m seja que a virtude só por si tem

19
Lit. --sobre os quais ai nda nada foi esc rit o ...
10
La1. ho11esrw11.: usualmente tradu zimos luJ11es111111 por .. bem morar·. mas
nesta fra se . para conseg uirmos um mínimo de c lareza. prec isamos de empregar
duas palavras diferentes. uma para corresponder a ho11w11 .. be rn··. o utra para cor-
responder a ho11esrum .. honesto= bern moral ... a fim de ev itar a sequ ênc ia ··bem..
o ··bem moral'" .
11
Lat. ho11es111111 (v. nota precedente).
:2:2 Lat. swnmwn ho11u111.

12911
fo rça sufi cie nte para asseg ura r a felici dade , nem por isso
deixa m de tratar as du as matéri as:i 1 separadamente. De facto
cada as pecto da questão deve ser desenvo lvi do com argu-
mentações e aco nselhamentos es pecíficos , so bretudo os
mais re leva ntes. Repara bem que não ex iste no di scurso
fi losó fi co nenhuma sen tença mais releva nte. que nenhuma
promessa a fil osofia fa z que seja mais ri ca de consequên-
cias significativas. O que é que ela nos promete? Bons
deuses! <Pro mete- nos> que conseguirá, caso obedeçamos
às suas leis, que fi quemos para todo o sempre armados
contra <os go lpes> da Fortun a, que encontre mos nela toda
a aj uda necessári a para termos uma vicia boa e fe liz, numa
20 palav ra , para sermos sempre fe li zes . Fi cará para outra
ocas ião observa r o efeito desta pro messa: para já entendo
que é da máx ima im portância que <a fi losofia> a faça.
Xerxes . apesar de cumul ado com toda a so rte de benesses
e favo res da Fortun a, in satisfe ito com as suas fo rças mili-
tares de cavalari a e de infa ntaria, com a enorme multidão
dos seus nav ios de guerra, co m a qu antidade in fi ndável de
ouro <que poss uía>, pro pôs um prémio a quem in ventasse
uma nova fo rma de praze r: mas nem ass im fico u sati sfeito,
porque a ganância nunca conhecerá limites. Eu, por mim ,
ofereceri a antes um prémio a quem me pro porcionasse os
meios de ac reditar ainda com mais fi rmeza <no poder da
virtude>:i-l _
VIII 21 A. - Eu ta mbém desejari a o mes mo, mas tenho um
pequeno pedido a faze r-te. Estou de aco rd o que as duas

' ·' Ou sej a. a defin ição de ··be m morar· (/w11estu111) e a de fini ção de ··bem
supre mo"' ( .1·1111111111111 bo1111111 ).
'" Isto é. C ícero que re ri a ··acred itar ainda com mai s fir meza·· na tese que
te m es tado a discut ir: que a virtude é só po r s i sufi c ie nte para assegurar ao
homem a máx ima fe licid ade.

12921
proposições que enunciaste se implicam mutu amente, de
modo que, se, por um lado. so mente é um bem aquil o que
é honesto , segue-se que a virtude é condição para a fe li ci-
dade . e por outro, se a felicidade consiste na <posse da>
virtude, segue-se que não ex iste outro bem para além da
virtude. O teu ami go Bruto, todav ia. basea ndo-se na auto-
ridade de Ari sto 25 e de Antíoco, não é da mes ma opinião,
pois embora pense <que a virtude é um bem>. admite que
há outros bens para além da virtude.
M .- E então? Julgas que vou refutar as ideias de 22
Bruto?
A. - Tu fa rás o que entenderes, não me cabe a mim
traçar o teu programa .
M .- Depois veremos qual de nós dois, eu ou Bruto ,
pensa com maior coerência. O facto é que sobre este ponto
tive muitas di ve rgênci as com Antíoco , e ainda há pouco.
quando passei por Atenas como chefe militar26, di scuti
a mesma co isa co m Ari sto , em casa de quem fiqu ei hos pe-
dado. Era minha opinião que ninguém poderi a ser feliz
se sofresse de algun s males; ora o sábio poderi a sofrer de
alguns males desde que se admiti sse a ex istênci a de males
oriundos do corpo ou dos go lpes da Fortun a. Objecta-
vam-me eles, e Antíoco até escreveu muitos tex tos sobre
isso, que a virtude só por si é capaz de faze r um homem
feliz, mas não completament e fe li z. Além di sso, muitas
coisas há que recebem o nome a partir da sua qualidade

,_s Ari , to. irmão de Ant íoco . am bos de Á,ca lo n. Cícero. que já e,cu tara
Ant íoco qu ando es tu dou em Ate nas. teve em 50 a. C.. ao passa r po r Atenas de
reg resso da Cilícia. ocas ião de se encontra r com Ari sto.
"' Du ra nte a sua missão na Ci líc ia. Cícero obteve a lgun s sucessos mili ta-
res que lhe va leram. da parte das tropas. o títul o de i111perawr ··che re mi lit ar.
general ""_

1293J
preponderante , mesmo que outras lhe faltem , como a força,
a saúde, a riqueza , as honras, a g lória , coisas estas que
va lem pela sua es pécie , e não pela quantidade. O mesmo
se passaria co m a felicidade. que recebe o seu nome por
ser o elemento preponderante. muito embora seja deficiente
23 e m alguns aspectos. Não é estritamente necessário analisar
agora esta argumentação, embora me pareça que e la não é
de uma coerê nc ia absoluta . De facto eu não co nsigo com-
preender de que é que um homem feliz necessi ta para ser
ainda mais feliz, poi s, se para isto lhe fa lta alguma coisa,
e ntão esse homem não é feliz . E quanto ao argumento
segundo o qual cada coisa é nomeada e entend ida em
função da sua parte preponderante , admito que haja casos
em que tal se verifique . No en tanto, dizem <estes nossos
filósofos> 17 que há três espéc ies de males: um homem que
esteja a sofrer de todos os males de duas es pécies , isto é.
que esteja submetido a todas as advers idades causadas
pela Fortuna e cujo co rpo esteja destroçado e oprimido por
dores de toda a sorte , diremos dele que pouco lhe falta,já
não digo para levar uma vida de completa felicidade , mas
para ter uma vida feliz?
IX 24 Fo i esta conclusão que Teofrasto não co nseguiu sus-
ten tar.
Efectivamente , depois de ter estabe lec ido que as pan-
cadas, a tortura , o sofri mento , a destruição da pátria, o
exílio, a morte dos filhos tê m a maior importância no
sentido de tornare m a vida um a sucessão de desgraças , não
se atreveu, depois , a empregar um tom e levado e vigoroso
para exprimir estas suas ideias tão sem elevação e vigor.
Não me importa decidir se co m ou se m razão , mas que foi

27
Antíoco e Ari sto de Á scal on .

í2941
coerente , isso fo i. Este o moti vo po r que eu não aceito
que considere m válid as as pre missas e se c rit iq ue m e m
seguida as conc lu sões <que de las decorre m> . Sucede que
este fil ósofo 28 , o mais coere nte e co nhecedor de todos , não
é grandemente ce nsurado po r defender que ex iste m três
gén eros de bens, mas recebe críti cas de todos os lados
sobretudo a propós ito do seu e nsaio Sobre a f elicidade 29 ,
no qual ex põe com po rme no r po r que razão um ho me m
torturado e che io de dores , nun ca poderá ser fe li z . Co nsta
até que e le esc reveu nessa obra que "a f elicidade não
trepa até à roda " (que é um instrume nto de to rtura 10 usado
pelos Gregos) . É um facto que e le não diz precisamente
isto , mas a ide ia é a mesma . Te nho eu e ntão o dire ito de 25
validar a sua afirm ação de que os sofrim entos físicos ,
e bem ass im as rev ira vo ltas da fortun a, faze m parte
do co nj unto dos males , e depo is zangar-me qu ando e le
decl ara que ne m todos os ho me ns bo ns são fe li zes, po r-
quanto todos os ho me ns bo ns estão suje itos aos ac identes
que ele incl ui no co nju nto dos ma les ? O mes mo Teofrasto
é ainda censurado po r todos os fil ósofos, quer nos li vros
quer nas aul as , po rqu e , no se u traba lho intitulado
Calístenesº 1 , mostrou aprec iar muito esta máx ima:
É a Fortuna , não a sabedoria, que governa a vida! 12

8
' Teofrasto .
9
' No e lenco das obras de Teofra sto estabelecido por Diógen es Laérc io fi -
gura uma obra (pe rdida ) n Egl EÚômµov[aç Sobre a .felicidade. e m um li vro
(Diógenes Laércio. V. 4 3).
JO Cf. a ··roda de lx íon··. um dos grandes criminosos su bmet idos no Tárt aro

a penas eternas.
·" Sobre Ca lístenes. e sobre a obra de Teofrasto qu e tem o seu nome. v.
supra. Ili. 2 1 (e a nota respec ti va).
1
' Verso grego tradu z ido por Cícero . tal vez oriundo de um drama satíri co
de Querémon (poeta de meados do séc . 1v a. C.) . v. J. Soubiran . Cicéro11 - Ara-
tea, Frafi111e11ts poétiques . p. 28 1. e a nota das pp . 292 -3.

[2951
Dizem que nenhum fi lósofo compôs jamais uma frase
mais desencorajadora do que esta, e têm ce rtamente
razão, mas quanto a mim <Teofrasto> não podia te r feito
afi rmação mai s coerente <com o seu pe nsa me nto> . Se
admitirmos como verdade qu e existem numerosos bens
re lativos ao corpo, e o utros ta ntos não relativos ao corpo
mas oriundos do acaso e da fo rtun a, não é lógico admitir
que a Fortuna, que te m todo o poder sobre as coisas, quer
as de orige m exte rn a quer as relativos ao co rpo, é mais
26 impo rtante do que o exercício da razão ? Dar-se-á o caso
de que prefe rimos imitar Epicuro? Este é autor de muitas
sente nças brilhantes, e mbora não se preocupe grandemente
com a coe rê ncia e co m a lógica . <Por exemplo> e naltece
a frugalidade 33 . Pala vras di g nas de um filósofo, mas se
fosse um Sócrates, ou um Antístenes 34, a dizê-las, e não o
ho me m que pensa se r o prazer o mai or dos be ns. ega
ainda que seja possível alguém levar uma vida feliz à
marge m da mora l, da sabedori a e da justiça 35 . ada de
mais digno, de mai s próprio da filosofia, não fosse o facto
de "moral, sabedoria e justiça " te re m por pano de fundo
o prazer. ada de mai s ve rdadei ro do qu e afirmar "que é
muito diminuta a influência da Fortuna sobre o sábio" 36 .
Mas que m faz esta afirmação não é o mes mo <homem>
que afirma se r a dor, não ape nas o maior dos males, mas
sim o úni co mal que ex iste? E <não é verdade> que , no
próprio momento e m que mai s se gaba de ser capaz de
fazer frente à Fortuna , pode estar a se r submetido às mais
terrívei s dores em todo o seu co rpo ?

1
-' Lit. "a alimentação fru gal" (lat. 1e1111is uicr us) .
14
Antístenes de Atenas. di scípulo de Sócrates , in iciador da esco la Cíni ca
(v. Di ógenes Laérc io . VI. 1- 19) .
.1, Epicuro. Rawe se111e111iae V (von der Mueh ll 1982 ).
36
Epicuro . ihide111 XVI.

[296]
Mais impressionantes ainda os termos usados por 27
Metrodoro sobre o mesmo tema: "Invadi o teu espaço,
Fortuna , conquistei-o, e bloqueei todas as vias de modo a
que te não fosse possível aproximar-te de mim. " Belas
palavras , caso as tivessem pronunciado Arísto n de Quios
ou Zenão , o Estóico. homens que apenas consideravam
"mal " tudo quando fosse indigno 37 . Agora tu , Metrodoro.
para quem a sede de todo o bem está nas vísceras e nas
medulas, tu , que fundamentas o bem supremo no perfeito
estado de saúde do corpo e na esperança real de assim o
manteres, tu bloqueaste as vias de acesso à Fortuna? De
que maneira? um áp ice podes ficar privado disso a que
chamas " bem" 38 .
Palavras deste teor sedu zem as mentes pouco expe- X 28
rirnentadas, e é por causa de sentenças simi lares que é
enorme a multidão dos seguidores <de Epicuro> . Quem
discute capazmente questões como as presentes eleve
tornar atenção. não ao que cada um diz. mas sim ao que
seria lógico dizer. Por exem pl o, no caso da premi ssa
de que parti para a presente discussão , na qual afi rmo que
todos os homens de bem 39 são sempre felizes. É evidente o
que pretendo signi ficar quando fa lo em " homens de bem":
são os homens dotados do pleno gozo de todas as virtudes.
a quem umas vezes chama mos "sábios" , e outras '"homens
de bem·'. Vejamos agora a que pessoas chamamos ' felizes '.
Eu considero felizes os homens que gozam de <múltiplos>
bens sem adj unção de nenhum mal. Quando dizemos que 29

37
L at. 111rpe "" moralmente conclen:íve l . vergonhoso··.
18
O ··bem sup remo··. a virtude. uma vez aclquiricla nun ca mai s pode perder-
-se. ao contrári o ela saúde. que num seg undo pode so frer uma compl eta alt eração.
19
Todos os ··homen s ele bem .. = lat. m1111is (/u1111i 11es) /mni . lit. ""todos os
homens bons··.

1297 1
alguém é ' feliz ' esta pa lavra não implica outra coisa senão
um conjunto comp leto de bens de que fora m eliminados
todos os males. Ora este conjunto será inacessível à vir-
tude caso exista alguma parcela de bem para além dela
mesma . <Em contrapartida> ficará sujeita a uma multidão
de males, se é que de fac to são males a pobreza, o nulo
relevo e a modéstia da posição socia l, a so lidão , a perda
dos fam iliares, as intensas dores físicas , a saúde deficiente,
a in validez, a cegueira, a ruína da pátri a, o ex ílio, enfim ,
a servidão. Ora o sábio pode ver-se exposto a estas nume-
rosas e graves situações, e muitas outras ai nda há que
podem verificar-se; todas elas podem, de fac to, ser conjun-
turas casuais em que o sábio pode ver-se enredado. Se aci-
dentes como estes são 'males', quem pode asseve rar que o
sábio será sempre feli z, uma vez que é possível ter de
30 defrontar-se com todos eles ao mesmo tempo? Não é fácil
para mim aceitar que o meu amigo Bruto , que os nossos
mestres comuns40 , que os notáveis <filósofos> antigos ,
Aristóteles, Espeusi po , Xenócrates, Pólemon 41 , declarem
que o sábio é sempre feliz e <ao mesmo tempo> afirmem
que são males aquelas situações que acima enumerei. Se
na realidade os deslumbra este nobre e fo rmoso título de
'sáb io ', tão digno como ele é de um Pitágoras , de um
Sócrates , de um Pl atão , então devem persuadir a sua mente
a desprezar tudo quando a sedu z com o seu brilho , <como
sejam> a força, a saúde, a beleza, a riqueza , as honras, o
poder, e não dar o mínimo valor aos seus contrários; deste
modo poderão proclamar com voz so nora que não se

4
° Co mo Antíoco de Ásc alon e o seu irmão Ari sto .
41
Ari stóte les. fundador do Perípato . e os três esco larcas da Acade mi a que
se sucederam a Platão.

[2981
deixam atemorizar nem pel as ag ressões da Fortuna , pelas
opiniões do vul go , pelo sofrimento ou pela pobreza , que
tudo o qu e lhes di z respeito depende <exclusivamente> de
si mesmos, que não existe nada que considerem ' bens' que
escape ao seu contro lo . Não é de modo algum admi ss íve l 31
fazer afirmações deste nível , di g nas de um carácter forte e
elevado , e depois class ificar as co isas em ' boas' e ' más '
seguindo o mesmo critério que o vul go. Até Epicuro se
deixou entusiasmar por esta forma de glória, a ponto de ,
se os deuses o consentirem, pensar que o sábio é sempre
feliz . Ficou e ncantado com a nobreza destes pensamentos,
mas nun ca pensaria deste modo se escutasse as suas
próprias doutrinas . O que pode haver de mais incoe rente
do que o mesmo homem que co nsidera a 'dor ' co mo o
maior, talvez até o único ' mal ' , afirmar depois que o sábio ,
mesmo que presa de insuportáveis dores , exclamará :
"Como tudo isto é agradávelf " 42 Não é por se ntenças suas
isoladas que os filósofos devem ser avaliados , mas sim
pela coerência e a constância <do seu pensamento>43 .
A. - Estás quase a convencer-me a dar-te razão . Em XI 32
todo o caso repara bem se a tua coe rência não deixa algo a
desejar.
M .- Onde queres chegar?
A. - Li ainda há pouco tempo o quarto livro do teu
diálogo sobre As últimas jronteiras 44 . Fiquei com a ideia
de que tu, ao argumentares contra Catão, pretendias provar

" Cf. supra . li . 17 . o passo em que Cícero atribui estas pal av ras ao sá bi o
mesmo que torturado de ntro do ·touro de Fálari s ' .
43
Sobre este te ma merece uma leitura o di álogo de Sé neca que te m po r
títul o De co11swn1ia sapioe111is ··A constânc ia (ou: coerê ncia ) do sábi oº'.
44
Trata-se do tratado Defini/Ju s bo11orw11 e/ ma/oru111 ··As últimas fro nt ei-
ras do bem e do ma r ·.

[299]
(e nisto estou de acordo contigo) que Zenão ape nas difere
dos Peripatéticos de vido à sua nova terminologia 45 . Se
ass im é, e se de facto é coerente com a teoria de Zenão que
a virtude te m só por si força bastante para tornar fe liz a
vida do homem, por que razão não hão-de os Peripatéticos
defe nder a mesma ideia? O importante , penso eu, é anali-
sar o con teúdo, não as palavras.
33 M .- Estás a recorrer neste nosso diálogo a doc umen-
tos por mim ass inados. e servem-te de teste munhas as
palavras que em outras ocasiões eu possa ter dito ou escrito.
Este modo de agir é vá lido quando a di scussão gira sobre
a interpretação de tex tos legais preexistentes. Sucede,
porém, que nós vivemos o dia-a-dia, e quando alguma
ideia impressiona, pela sua probabi lidade , a nossa mente,
fazemo- la nossa, e, por isso mesmo. somos os únicos que
pensamos livremente46 . No entanto, dado que há pouco es-
ti ve a fa lar em coerência, entendo que neste momento não
é necessário in vestigar se é verdade aquil o que pensavam
Zenão e o seu di sc ípulo Aríston <de Qui os>47 , isto é, que o
único bem ex istente é o ·bem mora l ,. 8 , mas sim se, no ca o
de <essa tese> corres ponder à ve rdade, <é ou não coerente
com ela>49 que apenas da virtude depende termos ou não
34 uma vida fe liz . Concedamos , portanto, a Bruto o direito a

"' V. De.finilms IV. 56-58.


"
6
Cícero reitera nestas palavras a sua pos ição como ti lósofo adepto do
cepticismo académico (v ia o probabili smo defendido por Carnéades). o texto
latin o . Cícero e mprega a primeira pessoa cio plural. nós. que nós leitores
podemos i11terpretar literalmente (nós= eu. Cícero. e os demais seg uidores desta
corrente filosófica). o u co mo um ·plural de autor· (nós = eu . Cícero). Seja qual
fo r o caso. este passo é uma das diversas ocorrências na obra de Cícero em que
este reivindica a sua liberdade de pensamento.
"
7
*
Cf. supra. 27.
"
8
Lat. lu111es111111.
"
9
Texto inseguro no porme nor. embora claro na ideia.

1300]
pensar que o sábio é se mpre feli z: caber-lhe-á a ele averi -
guar a sua coerência <lóg ica>: de resto quem haverá
mais do que Bruto que seja di g no de pronunciar uma
tal sentença? Eu , por mim , mantenho a minha posição: o
sábio é absolutamente fe liz!
E se Zenão de Cício, um obsc uro estran geiro inventor XII
de termos técnicos 50 , aparenta ser um intruso en tre os
anti gos filósofos , podemos invocar co mo garante da pro-
fundidad e desta sua sentença a autoridade de Pl atão, em
cuj a obra ocorre várias vezes a máxima: que não existe
outra coisa a que chamemos bem para além da virtude.
Por exemplo, no Górgias al gué m perguntou a Sócrates se
considerava feliz Arque lau , filho de Perdi cas, que era na
altura tido como o mai s afortunado dos homens. Sócrates
respondeu : "Não sei, nunca conversei com ele!" "Como 35
é? Então não tens outra maneira de o saber?" "Nenhuma
maneira ." "Que di-::,es ? Nem sequer do Grande Rei dos
Persas podes dizer se é f eliz, ou não?" "Como é que
hei-de poder, se não sei até que ponto ele é um homem
sabedor, e um homem de bem ?" "Queres di-::,er que, para
ti, é nesses aspectos que reside a f elicidade ?" "Mais
ainda , em meu entender os homens de bem são feli -::,es, e os
perversos são infelizes." "A rquelau , portanto , é um
desgraçado ?" "Se for injusto , com toda a certe-::,a! " 51

50
Alu são à ide ia de qu e Zenão .. pen sa o mes mo que Ari stóte les .. . sendo a
ún ica difere nça e ntre e les a .. nova te rmin o log ia .. in ventada por Ze não.
51
Este peque no d iálogo re produ z . qu ase ipsis 11erhi .1. a troca de pala vra s
que se pode ler no Górgias de Pl atão travada entre Po lo e Sócrates (v. Gárgias.
470 d-e). Po lo afi rmara previame nte que .. muitos ho me ns inj ustos há que ne m
por isso deixam de ser fel izes ... e cita co mo exempl o Arquelau. tira no da Mace-
dóni a desde 41 3 a. C. Apesar das suas injustiças , Arquela u e ra aliado de Atenas.
e recebeu na sua corte intelectuais atenienses de relevo como Eurípides . Tim óteo
e talvez Tucídides.

l301 J
Não é evide nte que Sócrates faz depender a fe li cidade
apenas da vi rtude?
36 E não é verdade que no Epitáfio 5~ se exprime quase
nos mes mos termos? Di z e le: "A quele homem que forja
por e para si mesmo todas as condições indispensáveis
à conquista da felicidade, sem que estas estejam depen-
dentes da boa ou da má fortuna de outros e, portanto ,
andem à deril'O conforme seja a sorte des tes outros, <um
tal homem> dispõe do método ideal de conseguir a felici-
dade. Esse será verdadeiramente moderado , corajoso,
sábio, aceitará todos os bens, especialmente os.filhos, que
para ele nasçam ou para ele pereçam, e obedecerá ao
antiquíssimo preceito53 , sem demasiado se alegrar nem
demasiado se entristecer, uma vez que é em si mesmo que
coloca toda a sua esperança." Destas palavras de Platão ,
co mo de uma fonte sagrada e veneráve l, brotará, portanto,
todo o nosso di scu rso.
E que melhor po nto de partida poderíamos nós encon-
XIII 37
trar do que a natureza, a mãe comum de todos nós? Qu is
esta que tudo quanto ge ro u. qu er fosse anim al, quer fosse
uma das plantas que da terra nascem e à terra se prendem
com as suas raízes, ating isse a perfeição 54 dentro do seu

orne por que tarnbérn é conhec ido o diálogo ele Pl atão que tem por
título Me11éxe110. A designação Epi1ájio deriva ele nele se debater a questão dos
"discursos fúnebres" ern honra cios solclaclos rnonos na guerra. os quai s. entre
outras funções. const ituern urna oponuniclacle ele e naltecer os va lores básicos da
cidade de Atenas. O rnode lo de d isc urso fúnebre ("epitáfio") que Sócrates recita
para conheci rnento de Menéxeno e ocupa a maior parte do tex to é dado como
tendo sido co rnposto por Aspásia de Mileto . a célebre hetera amante de Péricles.
que o comunicou a Sócrates. e por este foi me morizado (Pl atão. Me11éxe110 , 236
d-249 e: o passo aqui reproduzido por Cícero e ncontra-se nas pp. 247 e-248 a).
SJ Trata-se da máxima M11b i\v iiyav " Nada em excesso". uma das gravadas
na parede do temp lo de Delfos.
50
Em termos ari stoté li cos. se reali zassem em ac/0 com todas as qualidades
que tinha desde sempre em porê11cia.

[302]
género . Por isso é que as árvores , as videiras e aquelas
plantas raste iras que não se erguem acima do chão , umas
permanecem sempre verdes, outras , depois de perderem
a folhagem no In verno, recuperam o se u revestimento co m
o calor da Primavera, sem que nenhuma haja que não
ganhe novas forças a partir de um impul so interno e das
sementes que cada espécie traz co nsigo, e que lhe permi -
tem manifestar-se sob a forma de flores, de grãos ou de
frutos , e em todas as es péc ies, salvo se alguma força ex te-
rior o impeça , todas as suas potencialidades se realizam .
38
É nos anima is, contudo, que mai s facilmente se pode
observar a fo rça da própria natureza , dado o fac to de esta
os ter dotado de se ntidos. Assim é qu e a natureza destin ou
alguns animais a se rem nadadores e a habitarem na água, a
outros permitiu-lhe qu e voassem li vremente pelo céu; há
também os que rastejam , os que caminham e destes últimos
há-os que vive m so litários e outros em grupos, uns são
selvagens, ou tros mansos, alguns ainda há que vive m
escondidos no interior da terra. Cada um deles mantém-se
fiel ao seu carácter peculiar e, como não pode adoptar um
modo de vida próprio de uma outra espéc ie animal , perma-
nece submetido à lei natural. E assim como aos animais a
natureza deu a cada um uma particularidade di stinti va , que
cada animal co nserva se m nunca a perder, assim também
ao homem deu uma característi ca que o superioriza; a ver-
dade , toda via, é que , para ava liar um carácter superior,
é necessário um termo de co mparação; ora sucede que
a mente humana , emanada da mente divin a , não sofre
comparação com nen huma entidade senão com a divindade ,
se não é sac ril ég io di zê- lo! Ora a mente humana , se for 39

[3031
<devidamente> c ulti vada , se a sua acuidade for ap urada de
modo a não de ixar-se cegar pelo erro, tornar-se-á uma
mente perfeita , isto é . a razão absoluta, por o utras pala-
vras, ide ntificar-se-á co m a virtude . Logo , se todo o ente a
que nada fa lta é feliz, e aqui lo que no se u gé ne ro é perfeito
e comp leto, e se esta particularidade é a característica da
virtude, seg ue-se sem qualquer dúvida que todos <os
entes> que atingem a virtude são felizes.
Qu anto a este po nto estou de acordo com Bruto , que é
como quem di z, co m Aristóteles, Xe nócrates , Es pe usipo,
Pó lemo n55 . Só que a mim parece m-me , não só fe li zes, mas
40 fe licíssimos . A quem co nta com os se us bens pessoais56 , o
que lhe fa lta para se r feliz ? E quem não pode contar com
e les , co mo se rá fe li z? Ora não pode necessari amente
co ntar com e les todo o homem que divide os be ns e m três
classes 57 •
XIV Poderá a lgué m confia r em que a saúde se manterá
inalteráve l? E na es tab ilidade da Fortuna? Ora ninguém
pode se r fel iz se não contar com um bem estável, fixo , per-
mane nte . E qual dos bens <comu ns> apresenta estas carac-
terísticas? Parece-me be m adaptado a este tipo de pessoas 58
o dito daquele ho mem da Lacónia a propósito de um mer-
cador que se gabava de ter muitos nav ios se us de comércio
dis persos ao longo de todas as costas: "Não me parecem
desejáveis esses teus bens dependentes das mnarras." 59

55
Cf. supra. ~ 30. em que se co nserva a ordem correcta dos sucessores de
Platão: Espeusipo. Xenócrates. Pó lemon: Aristóteles é um caso à parte.
56
Não co nfundir ··bens pessoa is .. com ·propriedades. posses . patrimón io·:
os bens pessoais de cada um são as qualidades dr. sua mente. ou seja. a virtude.
57
Os Peripatéticos di videm os bens em bens da mente·· (ou da alma).
00

··bens do co rpo··. e ··bens exter iores ... isto é. dependentes da Fo11una.


58 Isto é. aq ue les que ·•dividem os bens em três c lasses··.
59
f. Plutarco. Ditos dos Lacedemô11ios. 234 F 48: Um certo homem da
Lacônia comentou a um outro . que !(aba\'(/ a felicidade de Üimpis de Egina

[3041
Nada do que contribui para a felicidade pode se r co isa
susceptível de perder-se: a lg ué m du vida que sej a ass im ?
Dos eleme ntos e m que consiste a fe li ci dade ne nhum deve
ficar resseq uido , ne nhum deve ex tin guir-se , nenhum cai r
por terra , po is q ue m viver no te mor de pe rder algum de les
nunca pode se r fe li z . Po r "feli z" e nte nde mos o ho mem que 41
vive em segurança, inaba láve l, proteg ido , imune não só a
pequenos medos in signi fica ntes , mas inacessíve l a toda a
espécie de medo. Ass im como cha mamos " inoce nte" não
a quem não faz muito mal a outrem , mas a quem não faz
nenhum ma/6-0, assi m devemos co nside rar " se m medo",
não quem te nha ' po uco medo ' , mas sim quem ' não te m
medo algum ' . A que chama mos nós "corage m" se não ao
estado me nta l de a lg ué m que se mostra pac ie nte 61 no
afrontar de um pe ri go , de um esforço ou de uma do r, e que ,
além di sso, não se nte o me no r medo? Ora nada di sto se
verificari a se não se desse o caso de todo o be m consistir
<apenas> na virtude 6 ~ .
Como pode conseguir a tão desejada e tão procurada 42
serenidade (po r ' serenid ade ' e nte ndo agora a ausênc ia
total de desgostos indi spen sáve l à felicidade) um ho mem

por aparentar ser homem de grandes rique;.as. pois tinha 11 11,nerosos naFios
de comércio: Nüo me inte ressa ~ ra 11de111e 11te uma .felicidade presa por cordas"
(Mora/ia . ed . loeb. Ili. p . 4 10).
60
" Inocente ... que hoje se e nte nde corre nte me nte no senti do ele ··não c ul pa-
do .. . significava em latim .. (a lg ué m ) que não prejudi ca - ,wcet - os outros. que
não faz mal a nin guém··: poderíamos at é di ze r. para manter de alguma forma o
nexo etimo lóg ico. ··q ue não é noc ivo··.
61
··Pac ie nte .. no se ntido ele al g ué m capaz de suportar os ma iores sofrim e n-
1os sem que isso lhe d iminu a a ca pac idade de resistê nc ia e de reso lução.
6
::! N o tex to latin o: in honeswte .. na ho nes tid ade .. : mas lw nestas. tal co mo

lw11est11111. tam bé m usado vúri as vezes por Cíce ro. corresponde ao q ue chama-
mos com frequê nc ia o ··bem mo ra r ·. que. em últim a aná lise se confunde com a
vinude.

1305 1
que está, ou pode vir a estar exposto a toda a es pécie de
ma les? Co mo pode ser altivo , no bre , capaz de considerar
se m impo rtânc ia todas as eventu alidades q ue podem apre-
sentar-se a um ho me m , como <pode> co rrespo nder ao
nosso co ncei to de "sábio", a lg ué m q ue não co nsid ere que
tudo isto de pende apenas de si mes mo? O s Lacedemónios
pudera m respo nde r às cartas de Fi lipe 63 , q ue os ameaçava
de impedi -los de toda e qua lquer acção , perguntando-lhe
se ta mbé m os pro ib ia de mo rre r: uma tal firm eza de carác-
te r não será muito ma is fác il de e nco ntrar num sábi o como
nós o co ncebe mos do q ue numa cidade inte ira ? Pois bem ,
a esta corage m de q ue esto u fa lando junte mos agora a
moderação64 com o encargo de regu lar todas as comoções:
a um ho me m cuj a co ragem o liberta do desgosto e do medo
e cuj a moderação o afasta do desejo , a lé m de não o deixar
ca ir e m e ntu siasmos desregrados, o que lhe fa lta para
asseg urar a feli c idade ? Seri a agora a ocasião de provar
que estes res ultados se deve m à virtude se não se desse o
caso de e u já ter ex pl anado esta questão nas jornadas
precedentes .
XV 43 Co mo as pe rturbações me ntais arrasta m consigo a
rni séri a65 , e nquanto a tranquilid ade proporc io na à vida
a fe li c idade, e dado a inda que é dupl a a motivação das
perturbações, urna vez que o desgosto e o medo decorrem
de co isas que julgamos se rem males , e o e ntu siasmo des-

63
Fi lipe li. re i da Macedó nia . Pl utarco recorda um d ito de um certo es-
partano . Damindas . que. quando alguns anteviam os peri gos que para Espar-
ta poderia representar a in vasão do Pelo poneso po r Fi lipe. exc lamou: "Seus
andróginos! Se não ti vermos medo da morre o que podemos sofrer assim de
tão terrível?" (Plutarco. Ditos dos Lacede111ó11i0.1". 2 19 F = Mora/ia. ed. Loeb.
vol.1 11.p.3 14).
64
Lat. temperanria = temperança. moderação.
65
Lat. miséria = desgraça. infe licidade .

[306]
regrado e o prazer de coisas que julgamos e rradamente
serem ben s; e dado ainda que tudo isto se con trapõe a toda
a espécie de dec isão racional , tu, se e ncon trares um indiví-
duo isento , solto, liv re de solicitações tão prementes além
de tão di scordan tes e co ntraditórias entre si, hesitarás em
julgá- lo "feliz"? Ora bem, é sempre este o estado de espí-
rito do sábio , logo o sábio é sempre um homem fe liz.
Por outro lado todo o bem proporciona aleg ri a; tudo
quanto produ z aleg ri a deve causar satisfação e org ulho ; e
neste caso deve ser também moti vo de glória66 ; se é moti vo
de glória , então será digno de louvor; mas tudo quanto
merece louvor é <necessari amen te> honesto; logo , tudo
quanto é um bem será <necessariamente> honesto 67 . Mas 44
os que <os outros fil ósofos> enumeram como sendo ' be ns',
nem eles próprios qualificam de ' be ns morais'; só é um
'bem', portanto , o que fo r ' honesto '; donde se ti ra a co n-
clusão que a fe licidade depe nde exclusivamente do ' be m
moral' 68 • Isto implica que não deve m ser chamados ne m
contados como ' be ns' os que mesmo o mais infeliz dos
homens pode poss uir e m abundância . Ou hesitas tu que 45
um indi víduo bem dotado de saúde, robustez, beleza, sen-

66
Não de ve confund ir-se gloria " glória . fa ma , boa reput ação" com qua l-
quer forma despropos itada e to nta de va idade. à maneira do plautino so ldado
fanfarrão , o miles gloriosus que apregoa as suas tão hiperbó licas quanto inexis-
tentes faça nh as para impress io nar o públi co fe minino , o u da glória de mandar
com razão re preendida pe lo ca mo ni ano Ve lho do Reste lo. A 'g ló ri a' romana é
um valor objecti vo que acompanha todo o c idadão que põe a sua •v irtude' ao
serviço da comunidade ; a gló ria de um g rande homem tran sborda e alarga-se
a todos os conc idadãos de quem merece. - Sobre o conce ito romano de gloria.
v. Hans Drexler. Polirische Grundbegriffe der Rômer. 1988. pp. 49-54 .
67
Observe-se este curi oso exemplo de sorites (cf. o utro exempl o supra,
Ili. § 14 .
68
Lat. honestas= ho11es1um = ·ho nesto / ho nestidade / bem moral (mora-
lidade).

[307 ]
tidos escorre itos e de grande acuid ade , dotado ainda,
se qui se res , de agilidade e de velocidade, e também de
riquezas , honras, comandos <militares> , poder, glória, se
o ho me m que possui todas estas caracte rísti cas fo r injusto,
excessivo em tudo, ou med roso, de inteligência e ntorpe-
cida ou mesmo nul a , hesi tas tu , <repito> , e m dizer que é
um infeliz? Que espéc ie de be ns são e ntão esses que pode-
mos poss uir e continuar infelizes? Re para neste exempl o:
assim como um montículo de grãos é formado <por grãos>
da mes ma es pécie , assim també m a felicidade deve resultar
de e le mentos da mesma natureza <que e la> . estas condi-
ções a fe licidade deve ser o res ultado exclusivo de bens de
natureza moral ; de uma mi stura de elementos di ssi mila-
res69, poré m , nada pode resultar que seja ' honesto '; mas se
fa ltar <o elemento> ' honesto ' co mo pode obter-se a feli ci-
dade? a realidade , tudo quanto for um ' bem ' é desejável ;
tud o quanto é ' desejáve l' é di gno de apreço; tudo o que for
apreciáve l deve ser considerado grato e bem vindo. Logo
devemos també m reco nhecer-lhe di gnidade . Neste caso,
será necessari a mente di gno de louvo r; todo o 'bem' , por-
tanto, é di gno de lo uvor. Daqui infere-se que apenas é um
' bem ' tudo aquilo que for 'honesto' 70 •
XV I 46 Se não formos ri gorosos na te rmin o logia acabaremos
por chamar ' bens' a muita coisa. Não falo seque r da riqueza,
que não incluo no número dos ' be ns' porque é acessível a
qualque r um , por muito indigno que seja. Ora o que for
um ' bem ' não pode estar ao al cance de qua lquer. Não fa lo
da reputação e da popularidade res ulta nte da opinião

69
Isto é. de ·be ns' de nature za moral combin ados com fal sos bens (como
saúde. riqueza. etc .. num a pa la vra . aque las co isas que os Estó icos colocam na
categoria dos •indi fe rentes ').
70
Outro exempl o de sorites.

[308)
comum de gente ignorante e desonesta . Estas outras coi -
sas, apesar do seu dimi nu to valor, são necessariamente
chamadas 'bens' , tai s co mo uns dentes brancos, uns o lh os
bonitos, um a tez de cor agradável, e aq ue les outros atrib u-
tos que Anticleia gabou em Ulisses na cena em que lhe
lavou os pés 71 :
•' Um modo tranquilo de falar, uma pele agradável "n.

Se a isto tomarmos por 'bens ' em que aspecto é que a


seri edade do filósofo se mostrará mais séria e profunda do
que a op inião do vul go e a linguagem dos ig norantes?
Pode objectar-se que os Estó icos chama m ' promo- 47
vidos' ou ' preferíveis ' a factores que os o utros ape lidam de
' bens' 73 . É certo, <os Estó icos> ex primem-se ass im , mas
não afi rmam que es tas co isas 74 contribuam <decisiva-
mente> para a fe lic idade, ao passo que os outros dizem
que se m e las não há felic idade, o u então, caso haj a a lg uma
felicidade, pelo me nos não será a máx ima possível. Ora o
que nós procuramos é a máx ima <fe li c idade> possível,
objectivo que e nco ntramos confirmado na bem conhec id a

71
Co nfu são de Cícero: Anti c leia era a mãe de Uli sses (já fa lec ida quando o
herói regressou a Ítaca ). e q uem lhe lavou os pés fo i a sua anti ga ama. de nome
Eu ri cle ia.
72
Verso da tragédia de Pac úvio Niptra "O banho·· (ed . Warmin gton . R . O.
L. , li. p. 266 . v. 269). Trata-se da cena provi nda da Odi.,seia e m que Euri c le ia
lava os pés do desco nhec ido hóspede. em quem. a po uco e pouco. acaba por
reconhece r que não é ou tro senão Ul isses (XIX . vv. 36 1 ss.).
7
.1 Esta di sc ussão. tem1ino lógica . e não só. sobre a c lassi fi cação das coisas
em ·boas·. •más·. e •indi fe re ntes·. e. de nt ro da c lasse dos •ind ifere ntes·. a di s-
tinção entre co isas ·preferívei s· (Jl{!OllYµt va) o u ·reje it áveis· (àrrorrgo qyµi·va).
o comentári o aos termos gregos empregados por Zenão e ao, te rmos lati nos
sugeridos por C ícero para melhor os tradu zir já fo ra a mp lame nte tratada no
ant.erior di álogo De fi 11ibus (v . Ili. ** 50 e ss.). - Os ·outros · aqui aludidos são
os Peripatéti cos.
74
As coisas " preferíve is... o u "vant ajosas".

[309]
demonstração de Sócrates. A argumentação deste ' príncipe
da filosofia' processava-se assim : tal como for a confi gu-
ração da mente de cada homem assi m será o homem ; tal
como for o próprio homem assim será a sua linguagem; os
actos corresponderão à linguagem, e toda a vida corres-
ponderá aos actos75 . Por outro lado , a configuração da
mente de um homem de bem é digna de encómio; logo
a vida de um homem de bem é di gna de encómio, e se é
di gna de encómio é porque é conforme à moral7 6 . Daq ui se
concl ui que a vida dos homens de bem é <uma vida de>
fe licidade.
48 Sirvam-me de testemunhas os deuses e os homens:
não é ve rdade que nos nossos precedentes diálogos fi cou
perfeitamente esclarecido - a menos que tenhamos dialo-
gado apenas para nos di strairmos e matarmos o tempo! -
que o sábio está sempre liberto de todas as agitações da
mente a que eu chamo ' perturbações m , e que no seu espí-
rito vigora sempre uma inalterável tranquilidade?78 Não é
verdade , portanto , que um homem equilibrado, firme ,
constante, imune ao medo , ao desgosto , aos entusiasmos
vazios79 e aos desejos será <necessariamente> fe liz? Ora
o sábio será sempre um homem com estas qualidades,
logo será sempre feli z. Sim , porque será impossível a um

75
Cf. Pl atão. República, 400 c-d .
76
"Conforme à mora l"= lat. honesta.
77
As ·perturbações menta is' di sc utidas nos Li vros III e IV. a que os Estói-
cos chamam também ·paixões (da alma)'.
78
Recorde-se a propós ito . uma vez mai s. o diálogo de Séneca De rranqui-
1/itate animi.
79
Tradução correspondente ao tex to ada ptado por Pohl enz: sine a/acritate
.futtili. em que .futtili é uma conj ectura de Ben tley (ocas ionada pela ocorrência
deste mesmo si ntagma supra IV. 37). Nos mss. a li ção corre nte é sine alacritate
ui/a "sem nenhum entu sias mo" . adaptada pelos ed itores que utili zá mos.

[3 10)
homem de bem não reg ul ar todos os se us actos e sen ti -
mentos pelo critério de que sejam di gnos de encómio; esse
homem terá como fin alidade alcançar a felicidade; ora a
feli cidade é di gna de encómi o; nada, porém, é digno de
encómi o na ausência da virtude; a fe licidade, por conse-
guinte, alcança-se atra vés da virtude.
Pode chegar-se a esta co nclusão por esta outra via: XII 49
nem numa vi da de infelicidade, nem numa que não seja
nem infeli z nem feli z ex iste o que quer que seja que mere-
ça enaltece r-se ou de que devamos gabar-nos . Há vidas ,
contudo, em que este ou aquele as pecto merece se r enalte-
cido , gabado, posto e m relevo . Por exe mpl o , na de Epami -
nondas80:
Foi a minha estratégia que abateu a glória de Espcma 8 1,

ou na do Afri cano 82 :
Desde onde nasce o Sol, passando pelos pau is de Meótis 8 3,
Ninguém há ci(josfeitos se assemelhem aos meus 84 .

Se isto é ass im , a felicidade de ve ser gabada, enalte- 50


cida, posta em relevo; nenhuma outra coisa há que mereça
ser enaltec ida e posta em relevo. A partir destas premi ssas
podes ver que co nsequências tirar: em particul ar qu e, se a
fe licidade não fo r equ ival ente à honestidade 85 , então deve-

80
Exemp lo muita s vezes citado por Cícero nestes •di álogos·: 1. 4: 1. :n: 1.
110: 1.116: li. 59. além do presente passo.
81
Tradução por Cícero do prime iro verso de um ep ig rama que. segu ndo
Pau sânias regista (IX . 15. 6). estava gravado na estátua ele Epaminondas em
Tebas (v. Soubi ran, 1972. p. 294. not as 7 e 8).
8, Públio Cornélia Cipião Afri ca no 1.
83
O mar ele Azofe (Azov).
84
Énio. Epigramas. 1-2 (Warmingto n . R . O. L.. 1. p. 400).
85
Lat. (uira) honesta.

13 111
rá haver algo que seJa superi or à felicidade; ora <os
Peripatéticos> admitirão sem dúvida que a vida segundo
a moral será superior. Deste modo existirá <de facto>
alguma coisa de superior à felicidade . Haverá coisa mais
absurda do que esta conclusão? Então eles reconhecem
que os vícios têm potência sufi ciente para tornar a vida
infeliz , e não admitem que uma potência igual tem a virtude
para tornar a vida feliz? É um facto , porém, que de propo-
sições contrárias deduzem-se conc lu sões con trárias.
51 Neste momento tenho vontade de perguntar o que
significa a famosa balança de Critolau86 : <este filósofo>
punha num dos pratos da ba lança os 'bens da mente' , no
outro os 'bens do corpo' e os '<bens> ex tern os', e pensava
que o prato cios ben s ela mente pesava de tal maneira que
até empurrava para baixo tanto a terra como os oceanos.
XVIII Não entendo o que impede <Crito lau>, ou Xenócrates, o
mai s grave dos fi lósofos, eles, que dão a maior impor-
tância à virtude e deprec iam e rejeitam tudo o mais, de
atribuir à virtude não só a conqui sta da felicidade , mas
mesmo a da suprema feli cidade. É que , se assim não fizer-
52 mos, o resultado será o desaparecimento ela virtude. De
facto, quem não está imune ao desgosto, necessariamente
também o não estará ao medo (uma vez que o medo é a
ex pectativa ansiosa de um futuro desgosto); e quem está
sujeito ao medo também o estará à ansiedade , à timidez, ao
pânico, à cobardia; tal homem , portanto , deixar-se-á de
vez em quando vencer, em lugar de aceitar como seu o
preceito enu nci ado por Atreu:

86
Critolau. peripatéti co (séc . 11 a. C.). um dos participantes da ··embaixada
dos filó sofos·· a Ro ma em 155 a. C.

13 I 2J
Preparem-se para agir na vicia como homens que ncio
f conh ecem a clerrotcl 7 .

Um tal homem será, como disse, derrotado , e não será


apenas derrotado, mas redu zido à serv idão. Ora nós
pretendemos que a vi rtude seja semp re li vre, e sempre
inve ncíve l; sem estas qualidades, a virtude não ex istirá.
Por out ro lado, se a virtude tem capac idade sufi ciente 53
para nos ajudar a vive r bem88 , tem-na também para nos
proporcionar uma vida feli z; há também na vi rtude
<capac idade> bas tante para vivermos com coragem; se
<vivermos> com coragem, teremos grandeza de alma
quanto bas te para nunca nos deixarmos aterro ri zar por
coi sa alguma e sermos sempre invencíve is. O resu ltado
será que nunca nos tere mos de arrepender de nada, ne m
de nada senti re mos a fa lta, que nada , enfi m, nos causará
embaraços; tudo, <pelo cont rá rio> , -correrá bem, sem
problemas, co m sucesso, logo com fe lic idade. A virtude é
sufic iente para nos proporcionar vive r com coragem; logo
é quanto basta para sermos felizes. Por conseguinte, ass im 54
como a insipi ência , ainda que consiga obter o que deseja,
nunca se dará por sati sfe ita co m o que conseguiu , ass im
também a sabedori a está se mpre contente com o que tem
à mão, e nunca tem de arrepender-se de i mes ma .
Julgas tu que o único consulado de C. Lélia8 9 , e mesmo XIX
esse depoi s de já ter sido rejeitado (se é que, quando um

87
Verso de u111a tragédia ince rta (War111in gnton . o. e .. p. 612 ). mas 4ue
talvez tivesse pertencido ao A1re11 de Ácio. dada a observação de Cícero a
propós ito.
88
·•Viver bem·· e111 se nti do ético. não e111 sentido 111aterial co1110 se usa
corren te111ente .
89
Gaio Lélio . cog no111inado ··o Sábio··. a111igo íntim o de Cipião E111iliano.
fo i apenas u111a veL elei to para o consu lado e111 140 a. C.

f3 13 J
home m sábio e bom como e le era é derrotado nas urnas,
não será mais o povo do que ele quem deve queixar-se da
rejeição! )()(> - <repito a pe rg unta>: o que preferirias tu , se
isso fo sse possível, ser cô nsul uma só vez como Lé lio , ou
55 sê-lo quatro vezes como Cina ? ão tenho dúvidas de
91

qu al seja a tu a resposta: se i bem co m quem esto u falando.


Aliás, eu nunca faria a mesma pergunta a qualquer um .
Um outro que não tu , decerto , me respo nderia, não só
que preferiri a qu atro co nsul ados a um só, mas que antes
quereria um úni co di a de Cina à vida inte ira de numerosos
homen s célebres . Se Lé lio tocasse em a lgué m com
um dedo sofreri a casti go por esse gesto ; pe la sua parte
Cina mando u decapita r o seu co lega no consulado , Cn .
Octáv io 92 , e ainda P. Crasso93 , L. César94 , homens de
gra nde nobreza, cuj a virtude era be m reconhecida tanto
e m pe ríod os de paz co mo de g uerra, M . António 95 , o mais
e loquente de todos os orado res que eu a ind a esc utei ,
C. Césa r96 , e m quem me parece ver incarnado um modelo

90
Note-se o anacolut o: a fra se inic ia-se com um a construção sintáctica que
não é levada até ao fim. pe lo que. de po is do nosso ac resce nto <repiro a per-
gw,ra> a frase prossegue co m um a construção d istinta . Em esquema teremos:
1) Ju lf!.a.,· ru que .. .. <repiro a pergu111C1> 2 ) mas afinal o que preferirias ru .. _?
91
Lúc io Co rné li a Cina. apo iante de Mário na c he fi a chamado ' pai1ido
popul ar·. fo i e le ito qu atro vezes seguidas (de 87 a 84 a. C.) para a suprema
mag istratura. V. Tito Lívi o . Periochae lihroru111 LXXIX. LXXXIV, Ve leio Patér-
cul o . li. 20-24 .
92
Cônsul e m 87 (co mo C ina) . cuj a po líti ca tento u contrari ar: quando as
forças re unid as de Cin a e de Mári o e ntraram e m Roma. foi exec ut ado.
9
' Pa i do triún viro: sui c ido u-se para escapar aos so ldados de Mário
(87 a. C .).
90
Lúc io Júli o César Estrabão. côns ul e m 90 a . C.
95
Marco Antóni o, um dos mai ores o radores el a geração precedente à de
Cícero . que lhe concedeu um lu gar de re le vo no De ora/Ore.
96
Ga io Júlio César Estrabão. irmão ele Lúc io. c itado na nota 92. morto
também por ocasião das proscrições o rdenadas po r C ina e po r Mário. Também
personagem do De orarore .

[314]
de humanidade , de humor, de genti leza , de elegância.
E chamamos 'feli z ' <a Cina>, que mandou matar todos
estes homens? A mim , pelo co ntrári o , parece-me que
ele foi não apenas infe li z por ter comet ido tais actos 97 ,
mas sobretudo porque a sua acção po lítica lhe fo rn eceu
o dire ito98 de os cometer impu ne mente. A ve rd ade é que
nin guém tem o direito de cometer cri mes, mas nós faze mos
um mau uso da ling uagem e dizemos que algué m ' tem o
direito de', quando tem ' a poss ibilidade' de cometer um
ce rto acto.
E quando pensamos nós que M ário teria sido mai s 56
fe li z, quando co mpartilhou a glóri a de te r vencido os
Ci mbros co m o seu colega Cátu lo 99 , qu ase um seg undo
Lélio, tal a se melhança que me parece ex istir e ntre os doi s ,
ou quando, no decorrer da gue rra civil , irritado co ntra os
fa mili ares e amigos de Cátulo que por este interced iam ,
respondeu não um a, mas várias vezes: "Que morra! "?
Mai s feliz foi, nesta situação , aq uele que obedece u a tão
criminosas palavras, do que o outro, o que deu a celerada
ordem. Não há dúvida de que mais va le sofrer uma injus-
tiça do que praticá- la ; do mes mo modo , quando a morte já
se aproxima caminh ar um pouco ao seu e ncontro como fez
Cátul o, é preferível ao comportame nto de M ári o, que ao

97
Tese de Sóc rates: mai s vale sofrer uma injusti ça do que cometê- la.
98
Para esta ide ia de ·te r o direito· de fazer alguma co isa o latim emprega
o verbo impessoal /i cei 'é lícito· a al g ué m fazer determinado acto. O uso incor-
recto a que se refere Cícero co nsiste e m dar ao ve rbo impessoal /i ce, um sentido
semelhante ao do verbo pessoa l posse. ou seja. di ze r /icei alicui x. 'é líc ito a
alguém fazer x.'. ·algué m te m o direito de fazer x.' emprega-se com o mes mo
sentido de aliqui.1· p01es1 x. 'a lguém pode. te m o poder de fazer x.'.
99
Quinto Lutác io Cátul o. cônsu l e m 102 a. C .. e m que teve por colega
C. Mário. Foi o pai do homón imo Q. Lutác io Cátu lo que figura como persona-
gem nos diá logos de C ícero. Hon ênsio. Câ1ulo (perdido ) e Lucu/o. Suicido u-se
também em 87 em conseq uência dos tumultos ocorridos nesse ano.

l3 I 51
ordenar a morte de um homem como Cátu lo obscureceu a
glória dos se us seis <prime iros> consulados e conspurcou
os últimos dias da sua própria vida .
XX 57 Dionís io foi tirano de Siracusa duran te trinta e oito
anos . um a vez que tomou o poder aos vin te e c inco anos 100 •
Como era bela esta c idade. como era opul e nto o Estado
que e le dominava e reduzia à serv idão! o e ntanto, de
acordo co m o testem unh o de grandes escrito res , consta
que ele era um homem de grande frugalidade pessoal,
activo e hábi l na cond ução do gove rn o. mas por natureza
mau e injusto , o que faz co m que todos quantos saibam
aprec iar a verd ade não pode m deixar de julgá-lo infeliz.
As coisas mes mas que mais desejava não as podia obter,
58 apesar de se jul gar om nipotente. Era um home m descen-
de nte de boas famílias, até mes mo de classe elevada
(embora quanto a este po nto os hi stori ado res não sejam
unânimes), tinha muitos amigos e ntre os seus contempo-
râneos, alé m de excelentes relações com os pare ntes próxi-
mos: tinh a ainda à sua volta numerosos adolescentes , seus
amantes co mo é cos tume e ntre os Gregos . mas mesmo
assi m não co nfiava e m nin gué m , e preferia recorrer para
seus guardas de co rpo a esc ravos de famílias abastadas
a quem e le concedia a libe rdade, além de aventureiros
bárbaros e selvagens. Assim , e m resultado do seu injusto
desejo de poder abso luto, acabou por viver co mo que
fec hado numa mas morra . Para não te r de confiar a sua
garganta ao barbeiro , mandou as suas filhas aprenderem
esta arte; deste modo as princesas , encarregadas de um
serviço humilde e servil, foram no meadas cabeleireiras,
encarregadas de fazer a barba e cortar o cabelo ao pai.

100
Di onísio 1 (430-367 a. C.) . gove rnou Siracusa desde 405.

[316]
Mes mo a estas. q ua ndo já ad ul tas. pro ibi u-as de pegare m
na nava lh a e decretou que passassem a aparar- lhe o cabe lo
e a ba rba com cascas de noz transformadas e m brasa.
Tinh a d uas esposas. Aristó maca. sua concidadã. e Dóris. 59
natu ra l de Locros. Qu ando ia passar a no ite co m e las a
prime ira co isa q ue faz ia era passa r minuc iosa rev ista ao
aposento. O q ua rto de dormir estava rodeado po r um la rgo
fosso . acessíve l ape nas por uma pequena po nte de made ira.
que <Di o nísio> ma nd ava se mp re re ti ra r de pois de en trar
e fechar a po rta do qu a rto. G a nh ou o háb ito de fa lar à
multidão a pa rtir de uma to rre e levada. po r não se atrever
a fazê- lo da tribun a <dos o rado res> habitua l. Conta-se 60
també m de le que um di a e m que estava co m vo ntade de
jogar à bo la (des po rto que prati cava co m g rande prazer e
frequê nc ia), de po is de tira r a túni ca , e ntrego u a sua es pada
a um jovem se u predilecto. Um seu fa mili a r co me nto u a
pro pós ito e m to m jocoso, qu e fez o j ove m sorrir: "Ora
aqui está alguém a quem confias a tua vida!" <Di onís io>
mandou matá- los a ambos, um po rque tinh a reve lado a
maneira co mo e le pode ri a ser assass in ado, o o utro po rqu e,
com o seu so rri so, tinh a ap la udido o dito do prime iro . De
resto este fac to causo u ime nso desgosto <ao tiran o> , co mo
nenhum o utro a inda lhe cau sara . uma vez que matara
alguém por que m tinh a grande pa ixão. Isto mostra co mo
agem e m sentido contrá ri o as pa ixões na me nte de que m
não sabe do min á- las: para sati sfaze r urna, há qu e ofe rece r
res istência à o utra .
O pró pri o Di o nísio 1º1 • a li ás, sabia reconhecer be m os XXI 61
limites da sua fe li c idade. Um d ia, e m conversa com

101
No texto: ··o tirano".

13 I 71
Dâmocles , um do s seus cortesãos l(J" , este pôs-se a gabar as
riq uezas <de Dionísio>, o seu poderio , o prestígio do seu
governo, a abundância dos tesouros , o luxo dos palácios,
afirmando que nunca existira ninguém tão fe li z como ele.
<Dio nís io> então perguntou- lhe: "Quererás tu, Dâmocles,
já que esta minha forma de vida te fas cina , saboreá-la
pessoalmente , experimentar até onde vai a minha felici-
dade ?" O o utro confessou que não desejava outra coisa.
O tirano mandou então que in stalassem o homem num
leito e m o uro, recobe rto com um colcha fe ita de um tecido
belíssimo, ornada de magníficos bordados; colocaram
depois no aposento nu merosas ba nquetas cobertas de
baixe la em prata e ouro cinzelado. Ao redo r da mesa
alinhava-se um grupo de esc ravos, seleccio nados pela sua
excepcional be leza , com o rde m de estarem atentos aos
olhares <de Dâmocles> a fi m de sati sfazerem co m pront i-
62 dão os seus desejos . Por todo o lado hav ia perfumes e
coroas <de fl o res> ; quei mavam-se essências; nas mesas
eram servidos os mais de licados manj ares. Dâmocles não
cabi a e m si de co nte nte. No me io de todo este lu xo
<Di onís io> mand ou suspender do tecto uma es pada re lu-
zente, atada po r uma crin a de cavalo de modo a fic ar
pendu rada sobre a cabeça do afo rtun ado Dâmocles. Este
deixou logo de apreciar a fo rmosura dos servidores nem a
arte da baixe la de prata; não se atrev ia a estender a mão
para as iguarias; até as coroas de fl ores lhe caíam da cabeça.
Por fim supli cou ao tirano que o de ixasse ir embora , por-
qu e já não queri a mais ser fe liz. Não te parece que Dionísio
demonstrou de fo rma ev idente qu e nenhuma felicidade

102
Lat. adse11101or, lit. '"um daqueles homens que di ze m •sim ' a tudo. adu-
lador''.

[3 181
pode conhecer um ho mem que vive permanentemente no
terror de algo iminente? A verdade é que e le nem sequer
tinh a a possibi lidade de regressar à via da ju stiça, e de
restituir a liberdade e os direitos aos seu s concidadãos ;
quando <Dionísio> era jovem, na idade da inexperiência ,
dei xou-se e nredar em tantos delitos e cometeu tantos actos
condenávei s que , se porventura voltasse à razão , não con-
seg uiri a escapar <ao castigo> . Até que po nto e le desejaria XXII 63
conhecer a verdadeira amizade, ele , que estava se mpre
desco nfi ado de que os ami gos o traíam , demonstra-o a
hi stóri a do tirano e os do is amigos pitagóricos: um des tes
prestara-se a ser garante do o utro , que fora co nde nado à
morte; este, para que o seu gara nte fosse man dado e m paz ,
apresentou-se à hora exacta em que dev ia se r executada a
sente nça; <Dionís io> teria e ntão exclamado: "Ah, pudesse
eu juntar-me a vós e ser o terceiro amigo do grupo! " 103
Como não seria tri ste para e le viver sem com panhi a de
amigos , se m re lações sociai s , se m amigável troca de im-
pressões , sobretudo atendendo a que <Dionísio> era um
homem educado desde a infância e versado nas artes libe-
rais , com es pecial inclinação para a música, e também
poeta trág ico , se bom ou mau , não vem ao caso! Trata-se
de uma maté ri a em que , por algum motivo que eu desco-
nheço , cada qual acha excele ntes as obras que produ z .

IO! A hi stó ri a é recontada. co m ma is porme nores. por C ícero e m De <!/ficiis.


Ili. 45. Um dos do is jove ns a mi gos pitagóri cos. Dá mo n e Fínc ias de seu no me
(mas outras ve rsões da hi stó ria exi ste m e m qu e os protagoni stas tê m o utros
nomes). fo ra conde nado à mo rte po r Dionís io. Ped iu e ntão ao tira no que ad iasse
a execução por a lguns di as a fim de ir à sua c idade trat ar de resolver a lgun s
assuntos pessoa is. de ixando como ga rante o ami go. qu e seria exec utado se e le
não se aprese ntasse no di a es tipulado. Esse d ia c hegou se m que e le reg ressasse:
mas quando o ami go já estava a ser levado para o local da e xec ução. o co ndenado
apareceu. e ambos foram pe rdoados pe lo ti rano .

13 191
Até agora. pe lo me nos, a ind a não e ncontrei ne nhum poeta
que não se ac hasse um gén io. e apesar de ter sido ami go de
Aquínio! io-1 As coisas são mesmo assim : tu gostas dos teus
esc ritos. e u gosto dos meu s! Mas vo ltemos a Dionísio: ele
viv ia à margem de tudo quanto há de agradáve l no co nví-
vio soc ial : convivia apenas com escravos fu g iti vos, crimi-
nosos. bárbaros: alguém que fosse di g no de ser um ho mem
li vre. o u que tivesse sequer o so nho de vi r a sê- lo. não lhe
passava pe la ide ia que pudesse se r seu a mi go.
XXIII 64 Não vou co mpara r a vida deste <Dionísio> , a ex istên-
c ia mai obscura. mi seráve l, ho rrorosa que co nsigo imagi-
nar, co m a vida de um Pl atão o u de um Arquitas 105, homen s
cultos e exem plos acabados de sáb ios. Vou antes buscar
<aos dese nhos que fazia> no pó com o se u estil ete um
humilde c id adão da mesma c id ade . que a í viveu muitos
anos depoi s: Arquimedes 106 . Quando eu estive como
questo r <na Sicília> tive ocas ião de descobrir o se u túmulo,
todo rodeado e cobe rto de arbustos es pinhosos. que os
Siracusanos não só ig no rava m . co mo até negava m que
ex isti sse . Eu le mbrava-me de um ep igrama 107 que ,

10
-'A implicação é que este Aquínio era um poeta medíoc re (talvez ident i-
ficáve l com um ·Aquino· mencio nado por Catul o em 14. 18). O tom proverbial
da frase. para que Gigon chama a atenção (Gigon. p. 569 ) é confirmado por
Epis111lae ad At1ic11111. XIV. 20. 3: ··Nunca hou,·e poe/a ou orador q11e admilisse
haver al!!uém melhor do q11e ele!··
105
Arquitas de Tarento. fi lósofo pitagórico (primeira metade do séc.11· a. C.).
cf. supra IV. 78.
106
Arq ui medes de Siracusa. mat emáti co grego cio séc. 111 a. C. A ele se atri -
bui a conhec ida frase: ··se 1i.-er 11111 polllo e111 que esreja apoiado . 111rJ1"erei wda
a 1erra co111 a 111 i11ha halm1ça /ou: ·alava nca·)."" O termo grego - xagL01Íwv -
que traduzi mos por ··balança .. desig na um im,trumento talvez parecido com a
chamada ·balança romana· /1·. Greek Mmh e111a1irnl Works. tran slated by Ivor
Thomas. Loeb Class ical Li braty. Vol. 11. p. 20).
107
Lit. ··uns quan tos senári os·· (versos ele se is pés). Esses ve rsos . cli -lo Cí-
cero. teriam sido gravado;, no túmul o: constitu ía m. portan to. um ep igra ma. Pena

f320J
segu ndo a tradi ção , teri a s ido gravado no monume nto
fún ebre , cuja parte superior, seg undo os versos, estava
adornada com urna esfera acompanhada de um cilindro 108 .
Um dia anda va eu a observar toda a zona s ituada perto das 65
portas de Agrigento , na qual há urna grande quantidade de
túmulos, quando reparei numa pequena coluna um pouco
emergente da massa de arbu stos em cujo topo se viam as
figura s de urna esfera e de um c il indro. Di sse de imediato
aos Siracusanos que me acompa nh avam, entre e les as
autoridades da cidade, que devia ser aquilo precisamente
o que eu procurava. Vários homens armados de foice s
limparam a zona e to rn aram- na acessível. Aproxirná- 66
mo-nos pelo caminh o aberto da base do monumento :
ne la vimos a metade de um ep igra ma, dado que a seg und a
parte dos ve rsos estav a toda co rroída. Ass im esta tão nobre
cidade da Magna Grécia , em tempos até a mais culta, per-
maneceria na ignorância do monumen to fúnebre do mai s
intelige nte dos seus c idadãos se não fosse informada de
onde ele estava po r este homem de Arpino!
Mas voltemos ao ponto inicia l deste exc urso . Haverá
porventura um homem que tenha alguma vez tido co ntac -
to com as Mu sas, isto é, com a cultura e a ciê ncia , qu e
não prefe ri sse ser um rnaternático 109 a ser um tirano 110 ?
Se analisarmos a vida e a obra respectivas , vemos que a
mente de um deles se alimentava com o levantamento e a
investigação das questões, e com o deleite que aí

que o orador. já que record o u o epi sódio da descobena do túmul o. não tenha
recordado igualme nte os ve rsos alu s ivos ao sábio Arquimedes.
108
Uma das obras mai s conhec idas de Arquimedes estudava preci sa me nte
as superfíc ies esféri cas (v. o. 1.. p. 40 ss.).
º"1
Como Arquimedes.
"º Como Dio nís io.

[32 IJ
e ncontrava a sua argúcia , o que co nstitui o mai s agradável
de todos os alime ntos do es pírito ; a do outro , viv ia e ntre os
assassínios e as inju sti ças, sempre presa do medo, dia e
noite. Com este co mpara agora a vi da de De móc rito, de
Pitágo ra s, de Anaxágoras : que re inos, que pode ri o há que
prefiras às investi gações e aos praze res intelectuai s destes
ho me ns?
67 Além di sso, o bem supre mo qu e tu proc uras atin gir,
es tá necessari amente situado na parte melhor do homem .
E o qu e há de melho r no home m do que uma me nte sagaz
e despe rta ? É, portanto , do bem pró prio da me nte que nós
deve mos desfrutar, se qui se rmos vive r fe li zes; ora o bem
pró prio da me nte é a virtude; é nesta, por co nseguinte, que
está necessariame nte co ntid a a fe li cidade. Da virtude
de pe nde , portanto , tud o qu a nto é bo m , moral, digno de
apreço: já ac ima o di sse, mas é preciso insi stir muito no
mesmo po nto, tudo quanto me nc io ne i abunda e m moti vos
de alegri a. Ora co mo é ev ide nte que a fe li c idade se carac-
teri za pe las suas co nstantes e inte nsas alegria s, co nclui -se
que <a fe lic idade> con siste na virtude 111 •
XX I V 68 Mas para não nos limitarmos a reco rre r às pala vras
para indicar onde é que prete nde mos c hegar, há que propor
certas moti vações que nos leve m a um níve l superior
de co nheci me nto e re fl exão. Tome mos <co mo ponto de
partida> um ho me m dotado de g randes ca pacidades nos
domín ios mai s altos do sa ber 11 2 , e te ntemos por um
mo me nto fixá-lo na nossa me nte e imag inação. Antes de
ma is deve se r alguém dotado de inte li gência muito acima

111
o texto: ex ho11esw1e .. (a felicidade) decorre da honestidade= do bem
em sentido moral= da virtude.. .
11
" No tex to: praes1a11s uir op1w11is ar1ib11s ··um home m com grande forma-

ção em todas as artes= em todas as áreas da cultura··.

[322]
do co mum , um a vez que a virtude não se assoc ia co m
fac ilidade a me ntes um ta nto o btusas: e m seg undo lu ga r,
deve mos im ag in á- lo co m uma grande pro pe nsão para
a in vesti gação da ve rdade . Daqui deco rre uma tríplice
form ação inte lectu al, te ndo por o bjec to, primeiro , o co nhe-
cime nto e a ex plicação dos fe nó me nos naturai s: segundo,
a dete rmin ação de tud o q ua nto de ve mos qu e r proc ura r
que r reje itar, ou sej a, as no rm as que rege m a nossa v id a;
terce iro, a capaci dade de ava li a r em cada caso as co nse-
quê nc ias lóg icas e as co ntradi ções, capac idade de que
deco rre ta nto o ri go r do di sc urso como a va lidade do rac io-
cíni o 11.1_
Co mo não deve rá se r g ra nde a sati sfação do sá bi o 69
cuj o es pírito se e ntrega di a e noite a estes probl e mas!?
Como é o caso quando e le obse rva o movime nto de todo
o uni verso e as suas revo luções, quando co nte mpl a as
incontáve is estre las fix as no firm a me nto, c ujo mov i-
mento res pe ita se mpre as di stâ ncias e xi ste ntes entre as
pos ições res pecti vas de cad a uma; ou ainda os sete plane-
tas, que pe rcorre m as suas órbitas tão di stantes umas das
outras . o ra na pos ição supe ri o r o ra na infe ri o r, e que . e m-
bora cada qu a l se mov a co m a sua ve loc idade, percorre m
sempre a mes ma ó rbita que lhe é partic ul a r. Não admira
que a o bservação destes fe nó me nos ti vesse incitado,
ti vesse suge rido aos a nti gos que prosseg ui sse m cada
vez mais as in vesti gações. Daqui resultou a indagação de
quai s os e le me ntos a partir ele que , co mo se se mentes

11
-' Referência à tri parti ção. de ori ge m académica mas retom ada pelo estoi -

cismo. da activiclade fi losó fi ca pe la; três áreas cio saber: a física (estudo da na-
tureza). a éti ca. de cuja práti ca o c icero ni ano tratado Defi11ih11s ho11on1111 (o q ue
devemos proc urar) et 11wloru111 (o que eleve mos rejeitar). e a lóg ica. ou clia lécti -
ca. a fixaç ão das reg ras que garant em a va lidade dos raciocínio'.-).

13231
fosse m . se o ri g in o u. se fo rmou e se co nst ituiu tudo o que
ex iste <no uni ve rso> : co mo apareceu cad a es péc ie de
se res in animados o u animados. e . <destes> , os animais
mud os o u os dotados de lin g uage m: o qu e é a vida , o que
sig nifi ca a mo rte . co mo se processa a tran sformação e a
mutação de umas fo rm as e m o utras: qu a l a o ri ge m da terra ,
e co mo é que e la se manté m em equilíbri o : e m que cavi-
dad es es tão os ocea no s co ntid os: que es péc ie ele fo rça , que
peso é aque le que atra i se mpre todos os o bjectos para o
ce ntro do uni ve rso, ce nt ro esse que coinc ide co m o ponto
XXV 70 mai s bai xo da esfe ra . Te rmos o es pírito oc upad o di a e
no ite na meditação destas questões sig ni llca que estamos na
senda do co nhec ime nto reco me nd ado pe lo de us de De lfos,
e que con siste e m a me nte se co nh ece r a si mes ma 11 -l, e
co mpree nde r a a finid ade que a li ga à me nte di vin a. do
qu e res ultará para e la a o bte nção de uma inesgotável
forma de a leg ria . O própri o pe nsame nto sobre o poder e a
natureza dos de uses des pe rta a vontade ele imitarmos a sua
ete rnidade . e m vez de nos conside rarmos limitados à
brev idade da vida humana , ao verifi ca rmos co mo as cau sas
de todos os fe nó me nos natu ra is deco rre m necessari amente
da li gação umas às o utras. as qu a is, apesar de fluírem
desde se mpre, são ta mbé m se mpre reg idas po r uma mente
racional 115 •
71 Quando erg ue mos o o lh ar a fim de co nte mplar <este
es pectácu lo> , ou me lh o r. quando passa mos e m re vista
todos os recantos , todos os âng ul os do uni verso. co m quanta

• Re fe rê ncia à máx ima insc rit a numa <la , parede, do te mplo de Apolo em
11

Delfos: ··Conhece-te a ti me, mo 1.. . fundam e ntal para a fil osofia de Sócrates.
" 1. e .. ape sa r de o contínuo dev ir qu e re in a no uni verso . e,,e de vir não é
1

de natureza caót ica . ma s an te, obedece it racional idade que caracteri za a mente
divina.

i324J
tranquil idade de es pírito não passa mos a ava li ar os traços
que di stin g ue m esta nossa dime nsão hum ana! A partir
daqui fo rma-se a co ncepção do qu e seja a virtude, dese n-
vo lve m-se os tipos e as compo nentes das dive rsas vi ,tudes ,
descobre-se qu a l é o s upre mo be m reco nhec ido pe la natu -
reza , be m co mo qual é para esta o último dos ma les 11 6, a
que c rité ri o deve mos subme te r os nossos deveres, e qu a l
a o ri e ntação que deve mos esco lhe r para a nossa vid a.
Depo is de in vesti ga rmos es tas e o utras questões simil ares,
chega-se co m a ma io r seg ura nça à co nc lusão a que visa
esta nossa in ves tigação: que para a o bte nção da fe li cidade
a virtude basta-se a si mes ma . Seg ue-se um a terceira 72
<fo rm a de es tu do>, a qu a l se diri ge e se infüt ra po r todas
as áreas do sa ber, defi ne o o bjec to <de cada uma>, d istin -
gue os géneros, tira as co nsequê nc ias, ex tra i as dev idas
co nc lu sões, separa o ve rdade iro e o fa lso, nu ma pa lavra,
fo rj a o método e a c iê nc ia da di a lécti ca, c uj a utilid ade se
veri fica sobretud o na aprec iação de toda a es péc ie de q ues-
tões , a lé m de se r um a forma de sabe r q ue é a me lh o r
di stracção para um es pírito liberal 11 7 • Mas este pon to di z
respe ito à vida privada. O sábio, ta l co mo o e nte nde mos.
deve oc upa r-se ta mbé m el a gove rn ação do Estado 11 8 . O qu e

" O ··,upremo bem·· e o ••último <lm, males··(= o , upremo mal ): problema


11

centra l de toda, a, co rre nte, filosóf-ica, na área da éti ca (v . Cícero De Ji11ilm.1


bo11oru111 er 111alon1111).
117
Para além da utilidade prúti ca. o, estudo, dito, liberais (a, ··artes libe-
rais"" ) são uma forma digna <le um cidadão livre oc upar os se us óc ios. privi le-
giando a distracção inte lec tual a outra, variedades gros,e iras <le e ntretenime nt o
(corno. u . g .. os e,pectáculo, do circo).
" Para um c idadão romano no pleno gozo <lo, ,eu, direitos po líti co, é
11

fun damen tal a participação nos vá rio, órgão, do poder. ,eguindo a c hamada
··carreira da , honras··. a auividade militar ou na administração das província,. a
presença acti va no Senado. Esta é uma das ra1.õe, por 4u e Cícero rejei ta va com
tanta força a filo sofia e picu rista: o seu fundador defendia 4ue o filósofo só em
caso; muito excepcionais deveria oc upar-,e de política .

1325 1
pode co nceber-se de mai s útil <do que a política>, do que
a ca pac idade <do sábio> 119 e m discernir co mo conceber
o bem público, e m prat icar a j usti ça sem gui a r-se por inte-
resses partic ul ares, em dar li vre curso a todas as suas
virtudes. as mai s variadas? Acre, ce nta as vantagens das
re lações de amizade. que para os sábios 120 co ns iste não só
na co nco rd â nc ia, diri a mesmo na cu mpli c idade nas várias
situações a que a vida nos co ndu z. como é ainda a su prema
alegria nas formas do co nvívio soc ia l quotidi ano 1~ 1 • A uma
vida condu zida nestes te rmo s. o que lhe fa lta para que
a cons idere mos fe li z? Pera nte as suas tão numerosas e
intensas aleg rias até a pró pri a Fortuna se se ntirá ob ri gada
a cede r-lhe o passo ! Se a fe lic idade, por conseg uinte , con-
siste e m desfrutar des te gé nero de be ns da alma 122 , ou seja,
as virtudes, e se todos os sábios desfrutam desses bens,
deve mo logica me nte concluir qu e <todos os sábios> são
feli zes.

119
Texto pouco seguro. cf. o aparato crítico das edições de M. Pohlen z
e de G. Fo hl e n .
120
Lat. c/oc1is "aos home ns doutos. sa bedores". Note-se que C ícero não em-
prega aqui o termo próprio para designar o sábio-filósofo. o sapie11s. o presente
con texto. a sabedoria '·das relações de amizade" é uma sa bedoria prática. algo
inte resse ira. e as suas vantagens são sobretudo de natureza política .
12 1
ote-se a presença nes te período de duas concepções distintas de "ami -
zade". por um lado a ami zade "po lítica" . i. e .. a co munhão de interesses parti-
dá ri os. a prossecução de idênticos fins po líticos. e. g. a ·amizade' en tre Cícero
e Pompe io . e ntre Po mpeio. Césa r e Crasso aquando da formação do "primeiro
triun virato". entre Octávio. M. António e Lépido (segundo "triunvirato"): por
o utro lado . a a mi zade como relação pessoal. fundada na existênc ia de valores
parti lh ados . como fo i o caso da amizade de toda uma vida entre Cícero e Pom-
pónio Ático. apesar de Cícero se r um políti co e nqua nto Ático. como ep icuri sta
que era. tinh a o ma ior c uidado e m viver à margem da po líti ca.
112
" Be ns da alma". expressão que conté m e m si. a lé m da o pos ição '·bens da
a lm a<>bens do corpo". ainda a noção de bens mentais. intel ectuais.

[3261
A . - Mes mo no meio dos mais cruéis suplícios 123 ? XXVI 73
M .- lmag in avas que eu ia di zer " cobertos de violetas
e de rosas" ? Até mes mo Ep icuro, que de filósofo só tem a
máscara , e foi qu em se arrogou <pessoalmente> o dire ito
a ser chamado tal, terá o direito de di zer, co isa que na
presente situação lhe gara ntirá o meu total aplauso , que
o sábio nun ca , por mais que o q ue ime m , o torturem , o
dilace rem , nunca , repito, poderá deix ar de exc lamar:
"Para mim nada disso tem importância! " 124 Atende ndo
sobretudo a qu e é e le quem usa a dor co mo critério para
definir o ma l, e prazer para definir o be m , quem faz troça
do nosso critéri o baseado no bem e no mal moral 125 , quem
di z que nós nos preoc upamos com as palavras, pronun-
ciamos frases sem sentido , e consideramos que apenas nos
di z respeito aquilo que é sentido fi sicamente co mo mac io
ou áspero! Então a este ho mem , cuja capacidade de j ul gar
pouco difere da dos irracionai s , será permitido esquecer-se
de si mes mo e desprezar a acção da fortuna, e mbora para
ele todo o bem e todo o mal estejam submetidos à fortuna ,
<será perm itido> di ze r-se feliz ai nda que suje ito aos mais
violentos e crué is torme ntos , apesar de ter formu lado a
teoria de que a dor é, não apenas o supremo, mas o úni co
mal que ex iste ?!
Sucede ainda que e le nun ca se preocupou co m os 74
reméd ios que torn am a dor suportáve l, tal como a firmeza
de ânimo , a vergonha pela desonra, a prática habitual de

12
-' Lit. .. no me io de tortura e de suplícios .. .
12
' Idê nti ca re ferênc ia a Epi c uro e à sua atitude pe rante os torme ntos supra.
li . 17.
125
Lit. "nosrra honesra wrpia ·· = (aquil o que para nós são ) as acções
honestas e as desonrosas). Neste ponto C ícero usa a term inologia espec ífica dos
Estóicos . com que m está por vezes de acordo.

[3271
aguentar o sofri mento 126 , os preceitos formulados pela
coragem 12 7, a viril resistência à dor, mas costumava antes
di zer que lhe bastava para se habituar <à dor> a recorda-
ção dos prazeres passados: como se fosse possível a um
homem morto de calor, incapaz de habituar-se à intensi-
dade da canícula, fazer por recordar-se um dia passado na
minha quinta de Arpino , toda rodeada de frescos riachos!
O facto é qu e não ente ndo co mo podem os prazeres passa-
75 dos acalmar os males presentes. No entanto, se até declara
que o sábio é sempre feli z um homem <como Epic uro> , o
qual , se qui sesse ser coerente, nun ca deveria atrever-se a
fazer tal declaração , o que não devemos nós esperar da
parte de pensadores qu e não incluem no número dos bens
nada que careça de va lor moral ? 128 O que em meu en tender
deveriam fazer tanto os Peripatéticos como os seg uidores
da Antiga Academia era deixarem de gag uejar de vez em
quando , e atreverem-se antes a defender com voz co nvi cta
e c lara que a felicidade não é incompatível com o touro
de Fálaris 129 •

6
" Possive lme nte a habituação a ce rtos exe rcícios físicos dest inados a
aume nt ar a capacidade de resistênc ia à do r.
127
Expressão conside rad a por J . E. Kin g co mo glosa. elim inada na edição
de Seyffert ( 1864). seg uid a por Gi gon. Fo hl e n . Lucia Z. C le rici (que no ent anto
a tradu zem ). A co njectura de Seyffe11 não é acei te pela edição de Pohl enz. por
razões ex pli citadas no aparato c ríti co . ad /oc.
''" Epi curo, se qui sesse mante r a coe rê ncia da sua tese seg undo a qu al o
supre mo be m é o praze r. nun ca deveria afirmar a perpétu a fe li cidade do sábio
mesmo em situ ações do lorosas , em que ali viaria as dores presentes graças à
re mini scê ncia dos prazeres passados: por maioria de razões fariam se melhante
afi rm ação tanto os Peripaté ticos como os Académicos . já que para un s e outros
o bem ve m se mpre acompanh ado da moralidade .
129
Cf. supra li. 17- 18 (sobre a fe li cidade do sáb io ainda quando submetido
à tonura do touro de Fálari s). e nota 30 (sobre o tiran o Fálaris de Agri ge nto).

[328]
Mas admitamos a existência de três classes de be ns, XXV II 76
para nos libertarmos das subtilezas dos Estó icos , às quai s
recon heço ter recorrido mais do que costumo fazer; ad mi -
tamos que existem essas classes de bens uº , desde que os
relat ivos ao corpo e de natureza extern a se mante nham ao
níve l raste iro e ape nas se lhes chame 'be ns' por serem
preferíve is, ao passo que os <bens> de natureza di vin a se
ex pandem por todo o lado a ponto de at ing ire m o céu,
de modo a que todo aque le que os alcança merece que o
conside remos não só 'fe li z' , mas 'o ma is fe li z possíve l'!
Dar-se-á o caso de o sábi o te mer a dor? Este é o maior
obstác ul o que se opõe à presente tese. Co ntra a mo rte, quer
a nossa que r a dos nossos e ntes queridos, co ntra o desgos-
to1.11 e contra as de mais fo rm as de pe rturbação me ntal 132
parece qu e j á ficá mos sufi c ie nte me nte pre parados e defen-
didos de po is dos di álogos dos d ias precede ntes. A dor,
poré m, apare nta ser o adversá ri o mais ag ue rrido da virtude.
Co ntra esta, <a dor> mobili za os seus arde ntes rai os ,
ameaça debilitar a corage m, a grandeza de alma, a capac ida-
de de res istir. Pe rante ela, deve rá a virtude reconhecer-se 77
vencida , deverá cede r-lhe o passo a fe li c id ade do home m
sábio e co nstante nas suas convicções? Bo ns deuses, que
vergo nh a! Os moços esparta nos não ge me m seque r so b
a dor das vergastadas 133. Eu própri o vi e m Lacedé mon 134
a fo rma co mo g rupos de ado lescentes se defrontava m
co m in críve l co mbati vidade, ora co m os punhos, ora com
os pés, as unhas, até co m os de ntes, e mais de pressa se

"º Cf. supra ** 37 e ss.


111
V. supra . Il i. 7 ss.
'-'~ V. supra. IV. 8 ,,.
'-'-' Cf . supra li. 34 e 46 .
'-" Nome alternati vo da c idade de Esparta .

[329 1
deixavam desfalecer de exaustão do qu e se reconheciam
de rrotados.
Que região há no mundo mais vasta e agreste do que a
bárbara Índia? E ntre este povo, no entan to , ex iste uma clas-
se de ho mens que e les consideram co mo sábios , que vivem
sempre nu s, afron tam sem sentir qualquer dor tanto as ne-
ves como os ri gores do In verno caucásico, e se se aproxi-
marem de uma fogueira de ixam-se quei mar sem soltar um
78 gemjdo 135 • Quanto às mulheres indianas , quando sucede a
alguma falecer o marid o, en tram todas em competição
para decidir qual tinha sido a mai s amada pelo marido co-
mum (uma vez que é costume na Índia cada homem ter
várias mulheres); a que sa ir vitoriosa deixa-se conduzir
toda contente pe los parentes que a colocam na pira fún ebre
ao lado do defunto , enquanto a derrotada se afasta mergu-
lhada e m tri steza 136 . É certo que nunca os costumes se
sobrepuse ram à natureza, pois esta acaba se mpre por sair
vencedora; sucede, porém, é que nós deixamos amolecer
o ânimo , habituados a viver ao abrigo do sol, en treg ues ao
prazer, à ociosidade, à indolência , à preg ui ça, e, obedien-
tes aos preconceitos e aos mau s hábitos , acabamos por
perder todo o vigor aními co .

'" Os sábi os a que alude Cícero são os chamados pe los Gregos ·•g imnoso-
fi stas··. ou seja. os brâmanes que te rminam a ex istênc ia retirando-se el a sociedade
e indo vive r para a floresta como asce tas . À capac idade que es tes home ns tinham
para suportar as maiores intempé ries. já C ícero fi ze ra alu são supra . em 11. 52 .
1 6
-' Re ferênc ia ao costume ex istente na civili zação indi ana . ao que parece

desde os te mpos anteriores aos Vedas . de a mulher se de ixar ··vo luntariamente ..


inc inerar e m simult âneo com o mari do morto . Este costume eleve ter sido gran-
de mente fa vorecido pe la in stitui ção da po li gamia . O nome dado a este bárbaro
costume era e m sânscrito slll f, palavra que . à letra . te m o signifi cado ele "esposa
fi e l'' (Re nou. 198 1. p. 79).

[330]
Quem desconhece os costumes dos Egípcios? A mente
deste povo. cheia de depravadas superst ições . preferiria
suje itar-se a toda a espécie de torturas a erguer a mão con-
tra um íbis , uma áspide, um gato. um cão ou um crocodi lo .
e se porventura cometesse inconscientemente algum delito
deste tipo. acharia correcto que lhe fosse ap li cado qualquer
castigo que fosse.
Até aqui falei de pessoas . O que se passa com os ani - 79
mais? Não é verdade que são capazes de aguentar o frio. a
fome , de se arriscarem a lo ngos e perigosos percursos por
montes e fl o restas? E não é verdade que luta m e se expõem
às feridas para proteger as crias. sem medo algum dos ata-
ques e dos go lpes? ão falo já das contrariedades e peri-
gos que defronta todo o ho mem que tem a ambição de
um cargo público. do aplauso que lhe garante a g lória , do
desejo de saciar uma paixão! A vida quotidiana está cheia
de exe mplos destes 137 .
Mas refreemos este entusiasmo oratório e regresse- XXVIII 80
mos ao ponto em que teve iníc io esta di gressão. Di zia
eu que a felicidade faz frente aos tormen tos e , quando
acompanhada da justiça , da temperança. e sobretudo da
coragem , da grandeza de alma. da capacidade de resistir.
mesmo que veja à sua frente o torcionári o , não interrom-
perá a sua marc ha , não ficará parada à porta no limi ar do
cá rcere, como já atrás disse 118, enq uanto todas as demais
virtudes avançam ao e ncontro da tortura sem que o se u
ânimo si nta o me nor resquíc io de terror. Que há de mais
repugnante, de mais vergo nho so <para a fe li cidade> do

'- Recorde-se a pro pós ito o própri o caso de Cícero. e a lo nga lut a . rec heada
17

de in ci dentes variados. que foi a sua própria carreira pol íti ca.
118
V. supra ~ 13.

[3311
que ficar sozi nh a para trás. aba ndonada por um tão fo r-
moso cortejo? Esta situ ação, todavia. nunca poderá ocorrer,
porque ne m as virtudes podem subs istir sem a co mpanh ia
81 da fe li cidade, ne m esta pode ex istir sem as virtudes. Por
isso mes mo é que estas não deixarão <que a fe li c idade>
hesite, fo rçam-na a aco mpanh á- las, g uiam-lhe até os passos
no ca minh o que co nduz a toda a do r e ao sofrime nto.
O sábi o é caracter izado por nunca faLe r nada de que ve nha
a arrepender-se, de nada faze r co ntra vo ntade; tudo quanto
faz fá- lo co m dignidade, seg uran ça. se ri edade. es pírito de
justiça; não conta com o futuro, in certo por natureza, não
se es pa nta co m o que aco ntece , julgando-o ines perado e
estra nh o, mas a ntes ava lia tudo pe lo seu próprio crité ri o
e manté m-se fiel às suas decisões. Co ndi ção de vida mai s
fe li z do que esta , nen huma ex iste que me ve nh a à ide ia.
82 É fác il a co nclu são que daqui tiram os Es tó icos: como,
seg undo o seu e nte ndime nto, o bem supremo co nsiste em
estar de aco rdo com a natureza e viver com e la de forma
coeren te. e como este princíp io deco rre, para o sábio. não
só do se u dever, mas também das suas faculdades, co nc lui -
-se necessa riame nte que quem poss ui o supre mo bem tam-
bém tem ao se u alcance a fe li cidade. Deste modo a vida do
sáb io será sem pre um a vid a de felicidade.
Aqui te ns aquilo que, seg und o penso, são os pontos
fundamentais. e também , no estado ac tu a l da questão , os
mais ve rdade iros a referir acerca da felicidade, a menos
que tu tenhas alguma co isa de mais importante a acres-
ce ntar.
XX IX A. - Não posso ac resce nta r nad a de mai s importante.
mas gostari a de pedir-te que, caso isso não te abo rreça,
como não es tás vinc ul ado a ne nhuma esco la fil osófica
determinada, mas aprove itas um pouco de todas e las de

i 332J
acordo co m o que te parece se r ma is confo rme à ve rdade.
po is be m . co rno a ind a há po uco 119 me davas a impressão
de exo rtares os Peripatéti cos e os da Anti ga Acade mi a a
terem a coragem de reconhecer sem hes itações que os sábios
são se mpre max imame nte fe li zes, gostari a de o uvir-te
expli ca r co mo é qu e um ta l reco nhec imento é compatíve l
com as res pecti vas teo ri as. Isto po rque tu aduz iste muitos
argumentos co ntra as ide ias de les , e a co nc lusão que tiraste
prove io das teses dos Estó icos .
M . - Use mos en tão da li berdade que , de e ntre todos os 83
fil ósofos, so mos nós 140 os úni cos a poss uir, uma vez qu e o
nosso di sc urso não prete nde tran smitir urn a to rnad a de
pos ição. mas sim propo rc io nar uma pano râmi ca geral <das
vári as co rrentes> 141 , de modo a que cada um ajuíze po r si
próprio qu a l lhe parece se r a ma is justa, se m se submete r à
autoridade de nin gué rn 142 • Parece- me qu e a tese que tu
gostari as de ver d isc utida é es ta: Por muito di vergentes
que seja111 as opiniões cios _fi /ós<~/ós acerca elas últi111as
fro nteiras <cio be111 e do mal>, ne111 por isso eles deixa111
de admiti r que a virtude é só por si si(ficiente para a obten-
ção da f elicidade . Seg undo co nsta, e ra esta a tese qu e
Carnéades costumava defe nde r 14 3. Só que este parti a de
uma pos ição de g rande hostilidade co ntra os Estó icos, aos

119
Cf. supra~ 75.
1
"º ·•Nós··: os segu ido res da Academia céptica. e ntre o, qu a is se co nta
Cícero.
IJI bto é. o~ Académi co!-! pa~!-.a m critica mente em revi~ta a~ di,·ersa!-, toma -

das de pos ição re lat iva me nte a cada prob le ma fil o,óficu. mas praticam a É:;roz q.
a ,uspen,ão do ju íLo. deixando ao ouvi nt e. ou le ito r. a tarefa de escol he r a po,i -
ção que e nte nde ser a mais j usta.
14
' Ao con trári o do qu e f,11em. por exemplo. os Epicurista,. que profes,am

pelos ens inamentos de Ep icuro uma , cneração tal que mais pa recem membros
de um se ita re li g iosa do que filósofos.
141
Cf. supra. Il i. 54.

1333 1
qua is proc urava se mpre ardorosa me nte refut ar co m uma
animos id ade sempre e m crescendo . Nós. e m contrapartida ,
faze mo- lo se m preco nce itos : se os Es tó icos defi nire m
correctamente o supre mo be m 144 a di sc ussão está te rmin ada:
o sá bi o será necessaria me nte se mpre fe li z.
84 Mas examine mos uma por uma. na medid a do poss íve l,
as o pini ões dos de ma is fil ósofos. para averi g uar até que
po nto este. chame mos- lhe ass im.· vene rando dog ma da fe l i-
c id ade · pode ser compatíve l co m as o pini ões e as do utrinas
de todas as Esco las .
XXX As teo ri as re lati vas ao sumo be m que , e m minh a
o pini ão. fora m reconhec idas e tê m e ncontrado seguido res
são as seg uintes 14'. Prime iro as qu atro <teo ri as> s imples :

- a dos Estó icos : não há o ut ro be m senão o be m


mora l 146 ;
- a de Epi curo: não há o utro be m senão o prazer 14 7;
- a de Hie ró nimo 148 : não há o utro be m senão a ausência
<de do r> ;
- a de Carnéades, defe ndida e m po lé m ica com os
Estó icos: não há o utro be m senão o gozo daque les
be ns que a nossa natureza nos propo rc io na qu ando
nasce mos, o u todos e les, o u <ape nas> os princ i-
pai s1 49 _

Lat. ji,,is honoru111 ··o limite máx imo do, ben<·= ··o sumo bem ...
i-1-1
14
Esta matéria é tratada por C ícero em o utras o bras suas . nomeadamente
'

no De ji11ih11s. Recome ndamos a consulta do Índi ce onomásti co do Vo l. 1 dos


Textos/ilosrí/ims. pp . 527 ss .. onde se e ncontnrilo as referênc ias fe itas por Cíce-
ro a estes fi lósofos. algun s de les pouco con hec idos.
146
.. Bem mora l"'= lat . hone.\ 111111.
IJ? Lat. 110/11ptas.
148
Hierónimo de Rodes. peripatét ico (v. Cícero. Textosjilosríjicos. l. p. 194 .
e n . 258).
IJ'> Sobre estes bens dados à nascença pe la natu reza v. Cícero. De_(,11ih11s . V.
18 e 20 (= Cícero. Textos/ilo.\'!Í/irns. 1. pp. 475-7).

f334]
Estas são as doutrin as simples; as de mai s são com- 85
postas:
- há três c lasses de bens , un s res pe itantes à alma,
outros ao corpo, ou tros ex teri ores a nós: é a doutrina
dos Peripatéticos , pouco diferente, al iás , da dos
membros da Anti ga Academia;
- <o sumo bem cons iste> no praze r combinado com
os valores morais: pensam assim Dinómaco 15º e
Califonte;
- o peripatéti co Di odoro 151 , por se u lado, combinou os
va lores morais com a ausência de sofrimento.

Estas teori as manti veram al guma ace itação estáve l,


enquan to as de Aríston , Pírron , He ril o e de algun s o utros
ainda ca íram por co mpl eto no esqueci mento 152 •
Vejamos agora que proveito podemos tirar destas
doutrinas, deixando de lado os Estóicos , cujo pe nsa mento
me parece ter já sufici enteme nte defe ndid o
A posição dos Peripatéti cos é muito c lara , se excep-
tu armos Teofra sto 153 e os seus eventuai s seguido res, que
demonstram perante a do r um mi sto débil de medo e terror
pâni co . O s outros, face a esta questão, fazem o mes mo que
quase se mpre, ou seja, exaltam a seriedade e a di gnidade
da virtude. Quando a e naltece m de modo tal q ue, po r ass im
dizer, a e levam até ao céu , coisa que nada lhes custa a fa ze r

150
Sobre Din ó maco v. Cícero, o. 1.. p. 478: sobre Ca li fo nte . ihid .. pp. 194
e 478.
151
C f. Cícero. o. 1.. p. 512.
152
Sobre Aríston de Q ui os. estó ico di ssi de nte. Pírron de Éli de. cépt ico. e
Heril o de Ca rtago. v. os Ín dices Ono mást icos do Vo l. 1. be m como cio presente
tex to.
153
V. supra.*~ 24 ss.

[3351
co mo ge nte e loq uente que são. não têm depo is d ific ul dad_,
em . po r co mparação. red uzir tudo o ma is ao níve l mais
raste iro e desprezíve l is-1 _ De fac to, que m porventura defen-
da que a glóri a. mes mo aco mpanhada da dor, me rece ser
procurada, não tem dire ito a nega r qu e sej am fe li zes todos
qu antos a tenh am alcançado. po is aind a que esteja m sujei-
tos a al gun s males. o termo '·fe li cidade'· tem um a ex tensão
XXXI 86 de longe maior. Por exe mplo, nós fa lamos de um a acti vi-
dade comercial 'ren tá 1'e!'. de um a ex pl oração agrícola
'lucrati va': isto não signi fica que a primeira estej a sempre
ao abri go de al gum preju ízo, ou qu e a segund a não possa
ser arruinad a por uma eventu al te mpestade; quer di ze r,
isso sim , que o sucesso é em proporção muitíss imo supe-
ri o r em ambas as actividades. Do mes mo modo, também
não é necessári o que a vicia, para ter o direito a ser consi-
derada fe li z, esteja se mpre na posse de toda a es péc ie de
bens, basta ape nas que os períodos de feli c id ade sejam
87 muito ma is prolo ngados e intensos. Segundo a doutrin a
destes pensadores, a fe li c id ade aco mpanhará a virtude
mes mo até ao cadafal so , penetrará ao mesmo te mpo que
e la até no touro <de Fálari s> co m a aprovação de
Ari stóteles, de Xenócrates, ele Espeus ipo , de Pó le mon 155 , e
não a abandonará nem à força ele ameaças ou de ali cia-
mentos. idêntica será a opini ão de Califonte e de Diodoro ,
os quai s dão um tal re levo aos valores morai s 156 que tudo

*
'" Recorde-se a ··balança·· de C rito lm1". •11e ncionada supra S 1. em que
num dos pratos são colocados "os bens da a lma·· e no outro "os bens do corpo e
os ex teriores a nós"· o peso do primeiro prato é tal que poria em desequi líbrio a
terra e os ma res.
155 Cf. supra§ 30 a mesma sequência de fi lósofos (Aristóte les. mais os três
sucessores imediatos de Platão it fre nte da An ti ga Acade mia ).
156 Em lat. ho11esta1e111. li t. ··todos os com po rt amentos e modos de pensa r
co nfo rmes it mora l".

[336]
quanto deles careça é co locado num plano muito inferior.
Os restantes parecem sent ir algumas dificuldades. mas
acabam por ser e les a impor-se 157 : estou a referir-me a
Epicuro, a Hi e rónimo , e a todos que porve ntura ainda
ousem defender a abandonada defini ção proposta por
Carnéades 158 ; dos pe rte nce ntes a este grupo ne nhum há
qu e negue ser à alma qu e ca be aj ui zar o que é ou não é
"bem", e que a instruí no sentido de ser capaz de desprezar
tudo o que é "bem'' ou " mal" apenas na aparência. Por isso 88
é que os argumentos que te parecem se r de Epicuro , serv i-
rão igualme nte para defe nder a posição de Hierónimo, o u
a de Carnéades , ou, em boa verdade 159 , a de todos os res-
tantes . Have rá , porventura , algum que não esteja pre pa-
rado para defrontar a morte ou o sofrimento ?
Comece mos, se estás de aco rdo, por aq ue le homem
que co nsideramos co mo um efemi nado que só pensa no
prazer 160 . Que achas? Parece-te que ele tem medo da morte
ou do sofrime nto , e le. que até c lassificou como ·feliz' o
próprio dia em que veio a morrer 161 e reco rreu à recorda-
ção das suas in ovações para combater as dores terríveis
que o a Ai giam? E ao di ze r estas palavras não dá de modo
algum a impressão de falar por fa lar! Acerca da morte e le

157
Lat. e11mw11 "nadam à supe rfície" (e nqua nto os ri vais se afundam. i. ed ..
cae m no esquec ime nt o).
158
V. supra 84: os "bens naturai s" que a natureza fac ulta a todo o ser hu -
mano acabado de nasce r.
159
Lat. hérc11/e " (j uro) po r Hé rcu les' ". o rig inalme nt e o vocati vo de um
nome de um de us to rnado por teste munha do que se afirm a. redu zido co m o
anelar dos séculos ao estatuto de urna s impl es inte rjeição .
"'° Epic uro .
161
Veja-se a refe rê ncia a este epi sód io e m C íce ro. De.fi11ih11s. li. 96 ss . (i n
Te.rtos/i /osôficos 1. pp. 348 ss .. e notas res pec ti vas) . No di a e m que morre u.
Epi c uro escreve u um tex to de que e nvio u có pi a aos se us di sc ípulos.

[337J
pensa que , qu ando um ser cessa as suas fun ções vita is 162
perde igualmente a capacidade de sentir; ora a ausência da
capacidade de se ntir acha e le já nada te r a ve r connosco 163 .
També m sobre a mo rte ele tem ide ias bem definidas:
a curta duração compensa a gra nde inte ns idade de uma
dor, enquanto uma dor prolongada suporta-se por ser
89 pouco inte nsa 164 . Em re lação a estas duas cau sas funda-
mentai s das angú stias humanas, e m que é que esses teus
palavrosos <Estóicos> têm um co mportamento superior
ao de Epicuro?
E co ntra os restantes males aparentes, acaso te parece
que Epicuro e os de ma is fil ósofos não estão suficiente-
mente preparados? ão é ve rdade que todas as pessoas
temem a pobreza? No entanto , nenhum fi lósofo <a rece ia>.
XXXII Este mesmo homem de quem es tamos fal and o, co ntenta-
-se com bem pouco! inguém defendeu com mai s vigor a
frugalidade <do que Epicuro> 16'. E quanto àquelas situa-
ções que tornam impe ri osa a necess idade de dinhe iro em
abundância para satisfazer as re lações amorosas, as ambi-
ções <po líticas> 166 , um a vida de g rande lu xo , por que
razão ha via <Epicuro> de desejar a posse de riquezas, de
preocu par-se sequer com tal problema, quando e le se
90 manteve se mpre à margem de simil ares situações? Se para
o cita Anacársis 167 o dinheiro não signifi cava nada , por que

16
' Em lati m lit. ··quando um ser animado se desagrega··.
161
Epicuro. Má.rimas soberanas. li: ""A morre nada 1e111 a 1•er cm1110sco:
11111 Or[(WIÍs1110 desag regado deixa de se111ir: a perda da capacidade de semirjâ
nada re111 a ,·er co1111osco. Uma li ção idênti ca fig ura no G1101110/ogi11111 Va1ica111111
Epicure11111. 2.
ló-1 Cf. Epi curo . o. 1. . 4 .
165
Epicuro. Epíswla a Me11eceu. 130 ss.
166
Era freq ue nte os cand idatos às principai s magistraturas fica rem forte-
mente e mpe nhados para sustentar as de spesas com a propaganda e leitora l.
cf. u . 120g. o caso bem con heci do de Catilina .
167
Sobre este sábi o de orige m cita. v. Heródoto. IV. 76 ss.

[338]
razão não poderão os nossos fi lósofos pensar o mes mo?
Conse rva-se uma carta 168 deste homem que co meça com
estas palavras: "Anacársis a Hanão , saudações! Para me
vestir uso o manto próprio dos Citas , servem-me de cal-
çado os calos da planta dos pés, uso a terra como leito,
a fome como aperitivo, leite , quezjo e carne são os meus
alimentos . Por isso, se me visitares, encontrarás um
homem tranquilo . Quanto aos presentes que tiveste o pra-
zer de enviar-me, oferece-os antes aos teus concidadãos
ou aos deuses imortais. " Quase todos os fi lósofos , inde-
pendentemente da Esco la a que pertencem , com excepção
dos que a natureza dotou de uma perso nalidade avessa
ao uso correcto da razão , fora m capazes de assumir uma
atitude se melhante .
91. Sócrates, ao ass istir a um a procissão em que abun - 91
davam os objectos em ouro e prata , exc lamou : "Tanta coisa
que eu não quereria para mim! " 169 A Xenócrates foram
uns emi ssári os de Al exandre oferecer um presente de
ci nquenta ta lentos, o que na é poca era uma soma muito
consideráve l, sobretudo em Atenas. <Ü filósofo> levou-os
a jan tar consigo na Academia , e se rviu -lhes o estritamente
necessári o, sem a mínima ex travagância . No dia seg uinte
eles pergun taram-lhe a quem prete ndi a que fosse dado a
guard ar o dinheiro, <Xenócrates> respondeu : "Essa agora!
Então o meu modesto jantar de ontem à tarde não vos deu
a entender que eu não preciso de dinheiro para nada?"

168
Data do séc. 11 a. C. a compilação. apóc rifa . de umas supostas cartas
endereçadas po r Anacá rsis a diversas personalidades (entre as quai s o cartag inês
Hanão). Dessa compi lação fat parte o texto aqui tradu zido do grego por C ícero.
169
Cf. Di óge nes Laé rcio . li . 25: "Mu itas ,·e:es <Sócrates>. quando via
a qua111ifdade de coisas que eram postas à 1•enda , exclamava para si me.1·1no:
'Ta111a coisa de que não sinlO qualquer necessidade.'·"

[3391
Mas como os viu ficarem todos tristes acabou por acei tar
trinta min as 170 , para não dar a ide ia de que desprezava a
92 libera lid ade do re i. Diógenes. co mo cíni co que era. fo i
ainda mai s directo : um dia e m que Alexand re lhe pe rguntou
o que poderia faze r por e le li mitou-se a responder: "Afasta-
-te um pouco do so/!" 17 1 <Ü rei> tinha com certeza parado
diante de Di ógenes quando este estava a gozar o so l. Um
dos argumentos que utili zava com freq uência era a supe-
ri oridade do se u modo de vida em comparação co m a do
rei dos Pe rsas: a e le, <Diógenes> , nada fazia falta , ao rei,
não havi a nada ca paz de sac iá- lo ; para <Diógenes> não
tinham qualqu er atractivo os prazeres que o rei nun ca con-
seguia sati sfazer, ao passo que os prazeres <de Diógenes>
o re i nunca os pode ria sentir.
XXXIII 93 Conheces co m certeza a class ificação dos desejos 172
proposta por Epicuro , talvez não de tod o perfeita , mas útil ,
de qualquer modo: algun s são naturai s e necessári os,
outros são naturai s mas não necessários, outros ainda não
são uma co isa ne m outra ; os naturai s dão-se por sati sfe itos
com quase nada , j á que os recursos da natureza são fáceis
de obter; os desejos da segunda classe nem são difíceis de
alcançar ne m nos custam nada a prescindir de les; quanto
aos da te rceira classe , uma vez que são de todo inúteis,
poi s não tê m nada a ver ne m co m as nossas necess idades
ne m com a natureza, entende <Epicuro> que devem ser
94 eliminados por co mpleto . Sobre esta matéria os Epicuristas

170
Tri nta min as era apenas o equ ivalente a me io ta lento. quando o va lor
total do presellle montava a três mi l minas.
171
Outra anedota protagoni zada por Di ógenes é narrada por Cícero supra. !.
104.
172
A esta c lass ificação dos desejos já se referira Cícero no Oejinihus 1. 45
(v. Texrosji/o.,ó./icos 1. p. 271 -2. e nota 34).

[340]
dissertam lon ga mente. redu ze m o valor dos praze res indi-
viduais cuja espécie não rejeitam. embora não recomen-
dando a sua abu ndância 173 . Os prazeres <ditos> obscenos 174,
sob re os quais dissertam longamen te, são fáceis de sati s-
fazer, habi tuais e ao alcance de qualq uer um, e qua ndo a
natureza faz se ntir a sua fo rça <o critério a seg uir> não
deve ser o nascimento. a posição e o estatuto social, mas si m
a beleza, a idade , a fig ura: prescindir de les também não é
muito difícil. se a abstinênc ia fo r ex ig id a por questões de
saúde. de obrigações , de reputação ; de um modo gera l esta
c lasse de prazeres é desej áve l, desde que não prej ud ic ial.
já que vantajosa nunca o é .
Toda esta teoria <de Epicuro> relativa ao prazer deriva 95
do pri ncípio de que o prazer e m si, só pe lo facto de ser
prazer, é se mpre desejável e por isso deve ser procurado;
pela mes ma orde m de razões também a dor e m si, pe lo
pró prio facto de ser dor, deve ser sempre evi tada. O sáb io ,
portanto, deve agi r com o máx imo de ponderação , ev itando
o prazer se deste vier a resultar uma do r maior, assumindo
a dor se esta se tradu zir por um superi or prazer; tudo quanto
é ag radáve l, muito embora o juízo de va lor seja fei to pe los

'
71
Trata-se ne ste caso da seg unda classe de desejo, . os naturai s 111as não ne-
cessári os. aos quais eles não dão gra nde import ância. pelo que reco111encl a111 que
os 111oclere mos . É o caso cios prazeres sexuais. do cha111 ado ·prazer da mesa·. e
outros si111ilares. O facto ele sere111 naturai s implica que niío os deve111os ext irpar
rad ica l111ent e. 111as apenas sati sfazê-los com 111ocleração. - A tradução proposlll
correspon de ao tex to de Pohl enz: < 11011 > q 11aem1111ame11 copiam. e111 que 11011 é
uma leit ura proposta por Be ntl ey: dos editores utili tados ape nas Gi gon a aceiia
na sua edi ção. A fa lta de 11011 dá um tex to. e111 nosso entender. inco111paiível com
a ideia orig in al de Epic uro: tais desejos não são ele reje itar por se re111 naturai s .
mas isso não i111pli ca que os deva111os sati sfazer --em quantid ade .. (lat. cnpia).
A tradução de J. Hu111bert . que verte quaen11111w11e11 cop iam por •• it s y cherchent
surtout la co111111ocl itéº' não entende111os o que possa que re r dizer.
rn De cae1111111 ··iodo. suj idade ...

í341 I
96 sentidos , nem por isso deixa de ser aferido pela mente. Por
esta razão é que o corpo apenas goza no próprio momento
em que está sentindo prazer, ao passo que a mente não
apenas sente o prazer em simultâneo com o corpo , mas
também sabe antecipar <um prazer> futuro e não deixa
desaparecer de todo um já passado . Assim , no caso do
sábio os prazeres estão sempre presentes e ligados entre si,
na medida e m que combinam quer a expectativa dos
prazeres que se prevêem , quer a lembra nça dos que já
XXXIV 97 foram sen tidos. Um raciocínio seme lhante aplica-se ao
caso dos " prazeres da mesa": o facto de a natureza se con-
te ntar co m uma alimentação frugal faz com que não sejam
valori zados o luxo e a magnifi cênc ia dos banquetes. Quem
há que não compreenda que todas estas coisas só têm o
va lor que os nossos desejos lhes dão? Dario 175 , posto em
fu ga, viu-se na contingência de beber de uma água impura
e inqu inada pela presença de cadáveres <em decomposi-
ção>, mas mesmo assim declarou que nunca bebera com
maior prazer. Ao que parece nunca tinha bebido com sede!
Também Ptolomeu 176 nunca tinha es perado pe la fome para
comer: um dia em qu e viajava pelo Egipto e o seu séquito
tinha ficado para trás, deram- lhe a comer um pão grosseiro
numa cabana , e nada nunca lhe pareceu tão saboroso como
esse pão . Conta-se também que perguntaram a Sócrates ,
um dia em que o viram a andar com passo estugado dum
lado para o outro , o que andava ele a faze r; a resposta foi

175
Dario Ili . re i dos Persas. foi derrotado em di versas batalhas e posto em
fuga po r A lexa ndre (33 1 a. C.). e acabou por ser morto por conjurados con tra ele .
Esta mesma hi stória é protagonizada por outras fi g ura s em outras fontes.
176
Muitos faraós egípc ios ti veram o nome de Ptolomeu. mas não é claro
qual deles é o "herói" desta hi stó ria.

[342]
que esta ''ida ao mercado" se destinava a adqu iri r vontade
de corner 177 !
Mais ain da: acaso ig nora mos as vitua lhas se rvidas 98
nas refeições com unitárias dos Lacedernónios? O tirano
Dionísio 178 , um dia em q ue parti c ipou de urna dessas refei-
ções, declarou q ue não tin ha gostado nada do fa moso
caldo negro , o prato de resistência do jantar. O <cozinheiro>
que o preparara comento u: "Não admira ; faltaram os
aperitivos! " "Que aperitivos?", perguntou <o visitan te>.
" O esforço da caça, o suor, as corridas junto ao Eurotas 179 ,
afame , a sede: são estes os condimentos usados nos ban-
quetes dos Lacedemónios ." Este ens inamento pode mos
nós ex traí- lo não ape nas dos costumes dos ho mens, mas
também do co mportame nto dos animais, que se co nten tam
co m qualquer coisa que lhe atirem para co mer, e não
procuram po r mais, na co ndi ção de essa comida ser co m-
patíve l co m a sua natureza . Há co mun idades que, ensi na- 99
das pe la tradição , se se nte m bem com um modo de vida
fr uga l, co mo é o caso dos Lacede mó ni os que aci ma referi.
A dieta dos Persas, seg undo a descreve Xenofo nte , consiste
em pão se m outro aco mpanhamento se não agri ões 180 • No
entanto , se a nossa condi ção natu ra l ex igisse algun s man-
jares mais apetitosos, co m que ab undânc ia a terra e as
árvores os produ ze m , não só fáce is de obter co mo de sabor

177
Cf. Xenofonte . Me111ôrias socráticas. 1. 11 1. 5 . - A expressão que empre-
gá mos - ••ida ao mercado .. - procura reproduzir de alg uma forma o conte údo
semânti co do verbo obso11are. lit. ••ir ao mercado comprar as provi sões para
preparar as refei ções .. Ora Sóc rates não ia ao mercado co mprar co mida: o seu
exe rcíc io físico tinha por fi m apenas aumentar- lhe o apetite para o jantar.
178
Dionísio Ide Siracusa: cf. supra ~ 57 e no ta 99.
179
Ri o viz inho da c idade de Esparta . em cujas margen s os jovens de ambos
os sexos se exerc itavam na corrida .
ixu Xenofonte. Ciropedia. 1.11 . 8.

[343]
muito agradáve l! Ac resce nta a co mpleição seca e escor-
rei ta resultante de uma dieta cont ro lada. acrescenta também
os háb itos saudáveis. Compara-os depoi s co m os homens
suados, arrotando atulhados de co mida , como se fosse m
100 bois postos à engorda: compreenderás então como são os
que mais proc uram o prazer que menos o co nseg uem
obter. e qu e o prazer propo rcio nado pe la comida está na
sati sfação do apetite. e não na quantidade do q ue in ge ri-
XXXV mos. Conta-se que Timóteo. um impo rtante home m de
estado ateniense 181 .jantou um dia em companhi a de Platão.
e fo i tão grande o prazer qu e lhe deu esse jantar que no dia
imedi ato fo i ter co m <o fi lósofo> e di sse- lhe: "Os vossos
jantares são tc7o agradáveis enquanto decorrem como
conlinuam a sê-lo no dia seguinte!" Não é verdade tam-
bém que não podemos fazer uso correcto da razão qu ando
esta mos demasiado che ios ele co mida e ele bebida? Existe
uma be la carta ele Platão aos pare ntes ele Díon 182 e m que
encontramos estas palavras. aproximadamente: ''Quando
lá cheg uei 183 deparei-m e com a famosa 'doce vida ' dos
banquetes à moda i1álica e siracusana , que nc7o me agra-
dou em nada: encher-nos de comida duas ve:::es ao dia,
nunca passar as noites so:::inho e todos os demais hábitos
característicos desta forma de vida em que nunca ninguém
se torna um sábio e menos ainda um homem regrado.
Que maneira de ser nalural seria capa::: de manter um

'"' Do séc. IV a.C. Foi ta111bé111 u111 bem ccn hecido general. Exi ste u111a bi o-
grafia sua entre as diversas Virae co111po,tas pelo historiador e amigo de Cícero.
Cornélia Nepos.
181
*
Díon era parente de Dionísio 1 (s upra. 98 e nota). ami go e d iscípulo
de Platão. que esperava vê-lo u111 dia a pôr e111 prática no governo de Siracusa
al gu111as das s uas ideias políticas. o que não se verifi cou. - A carta de que Cícero
tradu z iu este parágrafo é a conhec ida Carta V II . 326 B-C.
i s:i A Siracusa.

[344]
equilíbrio tão espantoso 184 ?" Como é possível um homem 101
ter uma vida agradável se não dispuser de prudência nem
de moderação 185 ? Por este moti vo Sardanapalo 186 , o opu-
lento rei da Síria 187 , incorreu no erro de mandar gravar no
seu sepulcro estes ve rsos:
"Só possuo agora o que comi, o que consum i para saciar
Os meus desejos ; tudo o mais , por precioso que seja,.fica
[por aí <ao abandono!> 188

Perg unta Aristóteles: " O que deveria escrever-se caso


se tratasse do sepulcro de um boi , e não de um rei ? Diz
este que tem na sua posse depois de morto os prazeres que
enquanto vivo não duraram mais do que o tempo em que
deles desfrutou/" 189 • Por que motivo devemos então l02
desejar a riqueza? Onde é que já se viu que a pobre-
za é impeditiva da felicidade ? Imagi no que possas ser
um co leccionador apaixonado de estátuas ou pinturas.

184
O ·equilíbrio espa ntoso· a q ue se refere Pl atão é o hipotético equ ilíbrio
que seri a necessário manter e ntre duas tendê nc ias contrári as entre si. a mode-
ração e a tendência para o excesso (1. e .. C: "nlio é possfrel alguém ter wna
nwneira de ser assim tcio extraordinária" ).
18
' Prudência - moderação= sensatez - sentido da justa medida .
186
Nome grego correspondente ao nome assírio Assurba11ipal. Os cost umes
dissol utos deste rei são referidos por Ari stóteles. Ética a Nicâ11wco. 1095 b 22:
Ética a Eudemo. 12 16 a 16: Política . 13 12 a 1.
187
Síria não corresponde ao país que tem actualmente esse nome. mas sim
ao antigo Império da Ass íria.
isx Na A11toloiia Palati11a fig ura um e pigra ma anónimo cujo se ntido é muito
semel hante ao do ci tado por C ícero:
O que possuo é tudo quanto comi e behi. bem como os pra:eres
Que Eros me e11si11ou: wdo o mais que de ho111 possuí.fica ao aba11do110
(A. P.. VII . 325 ).
189
V. Aristóte les. Frag111e11ta selecta. pp. 52-3 (em que se recorda ainda
uma o utra ve rsão do mesmo ep igrama registada por Estrabão). O próprio Cícero
refere também o comentári o de Aristóte les a propósito em De Ji11ib11s. li. 106
(Textosjilos!Í}ico.,. 1. p. 355 e nota 202).

[3451
Há pessoas q ue se de lei tam com a posse de obras de arte 190 ;
mas não sent irá maio r praze r co m essas obras um co lecc io-
nador modesto do que um outro q ue possua uma co lecção
eno rme ? De todos estes tipos de obras há um grande
número nos espaços públi cos da nossa c idade . Em co ntra-
part ida , os co leccionadores privados ne m possue m tantas
o bras, e só as vêem rara men te , quando visitam as suas
vil as . Algun s até pode m se ntir remorsos quando lhes vem
à me mó ri a o modo como as obtiveram 191 • U m di a não me
chegari a para defe nde r a causa da pobreza. A questão é
transparente: todos os di as a pró pri a natureza nos indica
como são po uco numerosas , de não muita impo rtânc ia e
de ba ixo preço as coisas de que <verdadeirame nte> neces-
sitamos .
XXXVI 103 Se rá porventura a modésti a de estatuto , a humildade
soc ial, o u a inda a impo pul aridade que impedirão o sábi o
de ser fe liz? Vê antes se a popul aridade com as massas, se
aque la glóri a que pretende mos 192 não nos traz a fin al mais
contrari edades do que prazeres ! Não de ixa de ser fútil da
parte do me u caro 193 De móste nes reconhecer o prazer que
senti a ao ouvi r uma das mulhe res do povo que iam à fo nte
bu scar água , como é costume na Grécia, murmurar bai -
xinho para uma companhe ira: "Olha , aquele é o célebre

190
Um caso famoso de um magistrado cuja pai xão pela arte chegou até ao
crime fo i o de Verres . contra quem Cícero esc reveu as famosas Verrina s, v. em
especia l o Li vro IV. int itulado De signis "sobre as estátuasº'. da seg unda acção
cont ra Verres.
19 1
Nova al usão ao caso paradi gmáti co de Ve rres.
192
Em especial a g lóri a proveniente do desempenho de cargos po líti cos.
19
' Caro : como modelo de eloquência. já que Demóstenes era considerado

o mais completo dos oradores do cânone ático. Lem bremos a propós ito que nas
suas Vida s paralelas Plu tarco põe em confronto como parad igmas de eloq uência
Demóstenes e Cícero.

[346]
Demóstenes!" Que há de mai s fútil ? Mas que grande
orador ele é! Ao que parece , tinha aprendido bem a arte
de fa lar em público , mas não sabia como falar consigo
mesmo 194 ! Deve mos daqui co ncluir que nem a glóri a 104
popular deve se r e m si mes ma procurada , nem a obsc uri -
dade deve ser te mjda. " Vim a Atenas e ninguém me reco-
nheceu!", di sse Demócrito . Frase di gna de um homem
coere nte e séri o, que se glorifica de não querer sabe r da
g lória ! Vejamos: os músicos, quer os flauti stas , quer os
tocadores de lira executam a melodia e marca m o ritmo
guiados pelo seu critério , não pe lo do público; então e o
sábio , homem que pratica uma arte e m muito supe rior, e m
vez de procurar aproximar-se o mais possível da verdade
have ria de sati sfazer os propósitos do vulgo? Haverá coisa
mai s estúpida do que atribuir um critério válido em co n-
junto a pessoas que individualmente desprezamos co mo
meros braçais se m resquícios de cultura? <Ü sábio> menos-
prezará a mesquinhez das nossas intrigas políticas , repu -
diará até as honras 195 que a multidão de li vre vontade lhe
ofe reça ; nós, pe lo co ntrário , não sabemos menosprezá- las
se não depo is de nos arrependermos <de as aceitar!> 196
Encontra-se em He raclito , o filósofo naturali sta, a hi stória 105
de Hermodoro , o mai s notável dos cidadãos de Éfeso.
Afirma e le que todos os Efésios mereciam se r conde nados
à morte por tere m expulso da cidade Hermodoro com este

194
I. e .. para medita r. para se a utocriticar.
195
Semanticame nte o termo ·honras· combina neste passo o sentido de
.. eleições para as mag istraturas .. e .. honra ri as. po pularidade. estado de graça nas
relações co m a popu lação .. .
196
Mant ive mos nesta frase o suje ito no plural. •nós·. que Cícero aqui e m-
prega para diluir um pouco o se u caso pessoal. A referê nc ia. no e ntanto. de ve ser
mes mo ao caso pessoa l ele Cícero.

[347 1
pretexto: " En tre nós nenhum cidadc7o deve sobressair de
entre os demais: se algum hotn'er que se dis ringa, procure
outro país e outro povo. " 197 Mas não se ve rifi cará, porven-
tura, o mes mo e ntre todos os povos? Não é ve rdade que
todos e les odeiam o cidadão q ue , pelas suas qualidades,
se di stin gue de entre os o utros? Não sucedeu a Aristides .. .
- prefiro recorrer a exemplos gregos em vez ele romanos! ... -
ter sido ex pulso de Atenas. a sua pátria. sob a alegação ele
ser excess ivamente ju sto 198 ? De quantos di ssabores não
se li vram todos quantos ele abstê m ele re lações co m as
massas?! O que há de mais agradável do que re nunciar à
po lítica 199 para nos e ntrega rmos às letras ? Quando di go
'·letras"' refiro-me ao estudo ele toda a imensidão cio uni ver-
so e ela natureza 20<> e , ao nível do nosso mundo <terrestre> ,
ao con hec imento do céu , da te rra e cio mar.
XXXV II I06 Desde o momento e m que des prezamos as honras e o
dinheiro . o que é que resta que nos possa causar medo 2º1?
Talvez o exíli o, que é ge ralmente contado e ntre os maiores

197
Esta hi stória. e este juízo de va lor do fil óso fo Heracli to sobre os ;eus
conc idadãos. é narrada por Estrabão num pequeno exce no que constitu i o
fra gme nto 121 de Heraclito (Die ls- Kran7. Die Frag. Der Vossokrawker. cf.
Ki rk -Ra ven-Schfield. Os .filósofi1.1· pré -socrârirns p. 188 . 219 n. 1. A Lami.
I presocmrici. p. 234 e n. 1. e m que menciona a tradição inveros ími l de que
He nnodo ro 1eria viajado até it Itália. o nde teria co laborado com os Decê nviros
na e laboração das Lei s das XII Tábuas: a esta tradi ção alude Plíni o-o-Ve lho.
N .H .. 34. 21: " Ho111 ·e 110 ferreiro dos com fc ius. <em Roma>. 11111a e.mí111a.
eri~it/a a expensas púhlicas, de Hennodoro por te r auxiliado como intérprete os
Decê11 \'iros na elahoraçüo das .Hw.,· leis").
198
O ostraci smo de Ari stides te ve lu ga r e m 4d3 a. C.
199
No texto lat ino: mio lirera/0 . lit. 'do que 11111 ócio dado às ferras.
,oo Lat. (conhecimento) rernm a1q11e 11m11rae lit. "das coisas e da nature,a "
(cf. o títu lo do poema de Lucréc io De ren111111a111m. que habitualmente se traduz
como " Poema da (ou: sohre ) a 11a111re;a".
101
Entenda-se: as honras e o din he iro ca usam -nos medo. o u co mo co i,a,
que podemos nunca alcançar ou obter. ou que podemos perder depoi s de um dia
as termos alcançado ou obtido .

1348 1
dos males 202 . Se jul gamos que este seja um ma l por signi -
ficar a hostilidade ou mes mo o ódi o do povo e m re lação a
nós, já acima di sse mos até que ponto <tais sentimentos>
nos deve m ser indife re ntes 20.1_ Se a desg raça co nsiste em
estarmos ausentes da pátri a, então as nossas provín cias
es tão repl etas de desg raçados que só em peque no número
reg ressarão à pátri a 204 .
"Mas os bens dos exilados são co,!fiscados. " 205 107
E então? Não di scorri já o sufi c iente sobre a capacidade de
suportar a pobreza? Se atendermos à natureza do ex íl io e
não à hum ilh ação assoc iada ao seu nome, em que difere
e le de uma estadia permanente em terra estran geira? Este
foi o tipo de vida que le varam os mais notáveis fi lósofos:
Xenócrates, Crantor, Arcesil au, Lacides , Aristóteles , Teo-
frasto , Zenão , Cleantes, Crisipo ,Antípatro , Carnéades , C li -
tómaco , Fílo n, Antíoco, Panécio , Posidónio 206 , e inúmeros
outros ainda que , uma vez saídos da sua pát ri a nunca mai s
a e la reg ressaram . "Mas não sofreram nenhuma humilha-
ção "207 . Po rventura pode o exíli o ser para o sábio uma
humi lhação? Toda esta di scussão tem po r objecto o sábio ,
e este nunca poderá ser ex ilado com justa causa, ao passo
que quem seja exi lado justamente não merece co nso lação.

202
V. supra n. 196: Cícero sab ia do que estava a fa lar por ex periê nc ia
própria.
20
' Su pra .§ 104.
204
Entre o utros casos. Cícero poderia estar a referir-se aos po mpeianos
que se rec usava m a reg ressa r na Roma depo is do triun fo e da ditadu ra de J úl io
Césa r. co mo fo i o caso de Marce lo c uja causa o o rador de fende u pe ra nte Césa r.
O Pro Marcel/o, a li ás. é um dos chamados "di sc ursos cesarianos" de C ícero.
supra n. 195.
205
Objecção possível daq ue la personagem suposta e m m uitos di á logos
(Cícero. Sé neca) que costumamos designar por "i111erlocutorjiufcio".
2
0<, Todos estes no mes fig urarão no Índ ice Ono mástico.
207
S itu ação idê nti ca à el a n. 205.

13491
108 A teoria daqueles que regulam toda a sua existência pela
busca do prazer 208 é a que mai s facilmente se adapta a to-
das as situações, porquanto co nseguem viver felize s seja
qual for o local que lhes proporcione prazer. Po r isso mes-
mo é aceitável por todas as doutrinas a sente nça de Teucro:

"Onde se está bem. aí é a nossa pátria! " 209

Um dia perguntaram a Sócrates a que c idade perten -


cia; a resposta foi : "Sou cidadão do mundo" 2 10 • Queria e le
di zer que se sentia habitante e cidadão do mundo inteiro .
E não é verdade que T. Albúcio 211 demo nstrou a maior tran -
quilidade quando , exilado e m Atenas , se consagrou ao es-
tudo da filosofia? Di ga-se, a li ás, que ele pode ria ter sido
poupado ao exílio se vivesse em Roma à margem de toda
a actividade política , seg und o presc reve a doutrina de
109 Epicuro 212 • Em que foi mai s feliz Epicuro por viver na sua
pátria do que Metrodoro por vive r em Atenas <o nde não
nasce ra> 2 13 ? Que vantagem tinha Pl atão sobre Xe nócra-
tes ou Pó lemo n sobre Arcesilau que os tornasse mais

208
1. e .. os Epicuristas.
209
Pacúvio. Teucer. v. 380 (Warmington. Re111ai11.1·, li. p . 302. e cf. G igon.
p. 581 ).
2 10
Depoi s de c itar um a fra se atri buída a Hércules. e m que este declara que
não pertence a Argos nem a Tebas. mas é cidadão de toda a Grécia , Plutarco
acrescenta: "Melhor ai11da esteve Sócrates qua11do disse: 'Ncio sou Ate11iense
11e111 Grego. 111as sim Cidadcio do Mu11do " (Plutarco. Sobre o exílio. 600 F).
2 11
É a mesma personagem satiri zada por Luc íli o. como refere Cícero em
De.fi11 ihus. 1. 8-9 (Lucílio. 89-95 Krenke l. p . 138).
21 2 A qual pode sintetizar-se na con hecida máxima Àá0E j31ómaç "v ive reti -
rado (de toda a activ idade pública) ...
21, Epic uro. embora nasc ido em Samos , era filho de pai s atenienses. pe lo

que era c idadão de Atenas. o nde passou a maior parte da sua vida ; o seu di scípu -
lo Metrodoro era natural de Lâmpsaco. mas viveu também em Atenas.

[350]
felize s214 ? E que valor devemos reconhecer a uma ci dade
que se permite mandar para o exíl io ho mens de bem e <até
mesmo> sábios? Damarato2 15 , pai do nosso rei Tarquínio
<Pri sco> 2 16 , fugiu de Corinto por não suportar a tirania de
Cípselo e veio para Tarquínios 217 , onde se instalou , prospe-
ro u e teve os seus filh os. Acaso fo i estupidez da sua parte
ter preferido a liberdade no ex íli o à serv idão na própria
pátria?
Sucede que as perturbações da mente, as ansiedades e XXXVIII 110
os desgostos acabam por ali viar-se e cair no esq uec imento
quando a atenção da mente se vira para o prazer. Não é
sem razão que Epicuro se atreve a dizer que o sábio 218 está
se mpre rodeado de um maior número de be ns porq ue
está sempre entregue aos prazeres . Daqui resulta segundo
e le , a poss ibil idade de alcançarmos o nosso objecti vo : que
o sábio seja pe rmane nte mente feliz . "Inclusive se lhe fal - 111
tara visão e a audição ?" Sim, mesmo essas sensações o
sábio menospreza-as. Mesmo a ceg ueira, que é considera-
da a defic iênc ia mais temida , de que prazeres nos priva ,
afinal ? Sobretudo ate nde ndo a que há que m pense que
e nqu an to o utros prazeres se localizam nos própri os senti -
dos , ao passo que o que se percepciona através da vista

21
-i Pl atão e Pólemon era m aten ienses. X enócra tes nascera em Ca lcedóni a e
Arces il a u e m Pítane. Estes três pares de fi lósofos - Ep icuro/Meu·odoro. Platão/
/Xe nócrates . Pó lemo n/Arcesil au - tê m em comum o facto de o primeiro de cada
par ser ateni ense. e nquanto o seg undo era de d iversas loca li dades.
215
Parece ser preferível a forma De marato. que é a reg istada no VOC. de
F. Rebelo Gonça lves.
21
" L. Tarquínio Prisco (lat. priscus ·'o antigo··. para o di stinguir de um outro

Tarquíni o mais recente conhec ido como Tarq uíni o-o-Soberbo) fo i o quinto rei de
Ro ma (prime iro da dinasti a etru sca).
"' Como se vê pelo no me. cid ade da Etrúria.
8
" O sábi o epic uri sta. natu ra lmente. mu ito di fe rente do "sáb io' · seg undo
out ras corre ntes fi losóficas.

[351 J
não apreciam nenhum prazer por meio dos olhos, isto
é, enquanto as sensações gustativas, o lfactivas, tácte is e
auditi vas obtemo- las através dos próprios ó rgãos dos
se ntidos correspo nden tes, nos olhos não se passa nada de
semelhante, uma vez que é na mente que rece bemos a
se nsações visuais. Por isso mesmo a mente pode aceder ao
prazer de muitos modos , mes mo se m a utili zação da vista.
Estou a referir-me , claro , ao homem culto e sabedor, para
o qual viver é pensar. Ora o pensar do sábio não precisa
para nada de recorrer aos o lhos nas suas investigações .
112 De facto, se a no ite não é impedi ti va da fe li cidade , por que
razão have ri a de sê- lo um di a semelh an te à noite? Há uma
frase de Antípatro de Cire ne 219 um bocado picante , mas
que não deixa de ter um a certa razão de ser; ao o uvir umas
mulherz inh as a lamentar a sua cegue ira, exc lamou: "Qual
é o problema ? Será que para vocês a noite não tem tam-
bém os seus prazeres ?" Temos também o caso famo so do
ve lho Ápio 220 : apesar de ter ficado cego desde muito cedo ,
sabemos , pe las magistraturas que exerceu e pe las acções
que levo u a cabo, que a sua desgraça física não o impe-
diu de cumprir os seus deveres, quer pri vados, quer públ i-
cos. Conhecemos a tradição de que a casa de Gaio Druso 221
estava se mpre che ia de pessoas qu e desejavam consultá-
-lo: quer di zer, homens que não viam a solução para os
seus casos recorriam a um cego para os guiar. Quando eu

219
Antípatro de C irene. Do séc.IV a. C.. foi um filósofo discípulo de Aristipo.
também de C irene. o fundador da Esco la dita Cirenaica. uma das deri vadas dos
ensinamentos de Sócrates.
"º Ápio C láud io. o Cego. cônsul em 307 e 296 , censor em 3 12.
' ' C. Lívio Dru so . cô nsul em 144 . além de pa receres, teria também escri -
1

to um manual de direito civil (Va léri o Máximo. VIII. 7. 4) de que nada resta .
V. sobre este jurista F. P. Bremer. lurisprude11ria a11rehadria11a. Leipzig. Teubner.
1896. p. 27.

[352]
era rapaz , Gneu Aufídio. antigo pretor, não só continuou a
manifestar o seu parecer no Senado, como nunca se ex imi u
a aux ili ar os amigos a toma rem decisões; além di sso,
esc reveu uma Hisrória <de Roma> em grego, e tinha um
apurado senso críti co em I iteratu ra 222 . O estóico Diódoto 223 , XXX I V 11 3
j á cego, vi veu muitos anos em minha casa. Pois ele, coi sa
que não parece fácil de acredi tar, dedi cava-se à fi losofia
ai nda co m muito mais ardor do que an tes, tocava
lira à moda dos Pi tagóricos 22 4, mandava que lhe lessem
li vros , quer de noite quer de dia. Para estas activid ades
ele não prec isava dos olhos; ele, poré m , mai s do que isso,
fazia algo que não parece possíve l fazer se m a vista : ens i-
nava geometri a aos se us di scípul os, ind icando verbalmen-
te a parti r de que ponto e em que direcção deviam dese-
nhar cada linha. Conta-se que A sc lepíades, um bem
co nhec ido fil ósofo da esco la de Erétri a225 , quando alguém
lhe perguntou em que é que a ceg ueira alterara a sua
vida, respondeu "que precisava agora de mais um j ovem
escravo para o acompanhar ". Ta l como até a maior
mi séri a se torn a suportáve l quando se pode lançar mão
dos rec ursos com que os Gregos <que vivem en tre nós>

n, De Gneu Aufíd io sabe -se . por esta inform ação de Cícero. que tinha sido
pretor. não se sabe ao ce rto e m que data (Luc ia Z. C le ri c i apo nta como poss íve is
as datas de 108 e 104: Gigon suge re. dub it at iva ment e . 107).
m No L11culo. 111 (Texrosfilosóficos 1. pp. 179-80. Quando Cícero esc reve u
este tex to ai nda Di ódoto esta va vivo . poi s o orador refere-se- lhe usando os ve r-
bos no presente: agora. nas T. D .. j á usa o perfe it o . o que significa que Diódoto
fal eceu ent retanto.
'" Sobre a impo nância da música para os Pitagóri cos c f. supra IV. 3.
'" A Esco la de Er~tria é uma das muitas deri vadas do ensino de Sóc rates.
O seu ini c iador fo i Fédon. natural de Éli da. pe lo 4ue a princípio era conhec ida
como ·Escola El idense· . O seu terceiro sucessor fo i Menedemo de Erétri a: a
escola passou e ntão a chamar-se ··de Erétri a"". Sobre Ascl epíades v. Diógenes
Laérc io. 11. 105.1 3 1. 137e 138.

1353 J
se desembaraçam dia a dia 226 , também a cegue ira se
pode suportar facilmente se dispusermos dos me ios de a
aliv iar.
114 Demócrito , quando perdeu a visão , deixou de poder
distinguir o branco do preto, mas con tinuo u a saber dis-
cernir o bem do mal, o justo do injusto , o honroso do
depravado, o útil do inútil , o muito do pouco importante;
ora se m a variedade das co res pode-se viver feliz, sem o
conhec ime nto da realidade tal não será possível. Este
ho me m pe nsava até que o exercício da visão era prejudicial
à pe rsp icác ia me ntal, e en qu anto outros muitas vezes não
vêe m o que têm diante dos pés, ele peregrina va por todo o
uni verso se m ser detido por ne nhuma barreira . A tradição
d iz- nos que Homero também era cego, mas o que nós
vemos dele é pintura, e não poesia . Não há região , litoral ,
lu gar ne nhum da Grécia , ne nhuma táct ica e formação de
combate, nenhuma manobra militar na terra ou no mar,
nenhu mas movimentações de homens ou de animais, nada
há, e nfi m, que não esteja descrito de tal modo que nós
co nsigamos ver aq uil o que ele pr ' pri o não via! Acaso
pensamos que alguma vez o de leite ou o prazer da me nte
faltaram a Homero ou a qua lquer ou tro home m de cu ltura?
11 5 Se não fosse assim , porventura Anaxágoras o u o há
pouco referido De mócrito teri am abandonado as suas
terras, todo o seu património para se e ntregare m tota lmente
a este di vin o de leite que é o estudo e a in vesti gação? Os
poetas desc reve m o adi vinho Tirésias como um sábi o , mas

226
Fi cou na hi stóri a a imagem dos g regos que vivem em Ro ma e usa m de
todas as suas ca pac idades de imag inação e desc aramento para parasitarem os ro-
manos ricos. Inesquecível o retrat o que. do is séc ulos depo is de Cíce ro . traçou do
Graecu/11s esurie11s . .. g rego esfomeado··. o poeta Ju venal. Sá riras 111. vv. 60- 125.

1354)
nenhum o representa a que ixar-se da sua cegue iram;
Ho mero, e m contrapartida, ao desc rever Po li femo como
uma cri atura selvagem e feroz , representa-o a di alogar
com um carneiro e a louvar a co ndi çao deste 228 , que lhe
permüe andar po r onde qui ser e mordi scar tudo a que possa
chegar229 . E tinha toda a razão <o poeta> ,já qu e o Ciclo pe
em nada mostra va ser mais inte li gente do que o ca rne iro!
Veja mos agora o que há de mal na surdez. M . Crasso 230 XL 116
tinha fa lta de o uvido, mas, segundo penso, sofria de um
mal ainda pio r e qu e e le, a meu ver, não merecia: pe rce bia
que fa lavam mal dele 231 . A maior parte dos Romanos
desconhece a língua grega, e o mes mo se passa com os
Gregos em re lação ao latim . Pode di zer-se ass im que nós
so mos surdos para a lín gua de les, tal co mo e les o são para
a nossa. Todos nós, de um modo gera l, so mos co mpl eta-
mente surdos para as línguas, e são imensas, qu e não
co mpreendemos. "Ma s <os surdos> não conseguem
ouvir avo:: dos citaredos." Com certeza, mas també m não

'" V. g. Sófocles. Édipo 11,ra110. Édipo em Co/0110. Eu rípides Fe11jícia.1.


7

Baca/1/es.
'" Existe. de facto. na Odisseia a ce na em que o Ciclope fala com o grande
8

carne iro a cuja barriga va i agarrado o fugi ti vo Ulisses (Od .. I X. 447 ss.). O con -
teúdo da fala. porém. não é o que refere Cícero: Polifemo queixa -se. isso sim. do
trat amen to crue l qu e rece bera de ·•Ninguém··. o nome fictício com que Ulisses se
lhe apresentara.
"' Lat. quae ueller a11i11iere lit. "c hega r àquilo que qui ser··.
9

"º Marco Li cín io Crasso. con hecido como ··o Ri co·· (lat. Diues) fo rmou em
60. co m Pompeio e Césa r o Prime iro Triun vi rat o.
l) I Há nesta fra se um jogo de pala vras latente: Cícero di t. que Crasso era

.rnrdasrer. lit. ··era um pou co surdo. ouvia mar·. Esta ide ia pod ia também ex pre,-
sa r-se em latim. com o sintag ma 111ale c111dieha1: mas sucede que 1110/e audiehar
é uma expressão ambígua , poi s além de ·'ouvia mar· ( 1) pode significa r també m
"ouvia (fa lar) mal (de s i)" "(2). Cícero. pon an to. podi a ter esc rito: Crasso 1110/e
audiehar ( I ). mas ainda ha via algo pio r: é q ue e le 1110/e audiehar (2 ). Como a
fra se ficava assim. embora ling ui stica mente correcta . di gamos. um tanto estranh a.
Cícero substituiu ma/e audiehar ( I ) pe lo acljectivo .rnrdas rer.

1355]
esc utam o ranger de uma serra a ser afiada, os grun hidos
dos porcos ao serem mortos , nem. quando o objectivo é o
descanso, o murmúrio da agitação marítima. As pessoas
que gostam de o uvi r cantar, aliás , deverão começar por
pe nsar que houve muitos sábios que viveram muito antes
de se ter inventado a mú sica, .e em seguid a por apercebe-
rem -se de que a le itu ra dos poemas pode proporc ionar
11 7 maior prazer do que o uvi-los a serem cantados. Em suma,
tal como há po uco 2-' 2 remeti os cegos para o prazer da au-
di ção, remeto agora os surdos para o da visão . Afi nal,
quem for capaz de dia logar consigo mes mo não necess ita
das pa lavras do inte rl ocutor.
Acumulemos so bre um só indivíd uo todos os males
poss íve is, de modo que a mesma pessoa , além de ser cega
e surda , sofra dores te rríveis em todo o corpo. Antes de
mais estes sofrime ntos bastam só po r si para de itar abai xo
um ho me m; se, pe lo contrári o, e las se perpetu arem no
tempo e nos fize re m so frer cada vez mai s, a ponto de não
restar ne nhum mot ivo para que deva mos supo rtá- los, para
quê, bons deu ses, pe rseverar no sofrime nto? Existe um
porto à nossa di spos ição, po rque o nde res ide a mo rte há
també m se mpre uma recepção para que m de ixa de senti r.
Um dia Li símaco ameaçou de mo rte o fi lósofo Teodoro.
ao que este res po nde u: "Grande coisa da tua parte, teres
118 tanto poder como uma cantáride!" m Paul o <Emílio>

2 2
' Supra § 111 .
m Li sírnaco. rei de Esparta. Teodoro era um filó sofo da Escola C ire naica
(cf. supra n. 219. e Diógenes Laércio. li. 65). Urna variante da mesma anedota .
com os mesmos protagoni stas . é narrada por Cícero. supra 1. 102 . - A can táride
é um in secto co leóptero de que pode extrair-se um veneno. inclusive com utili -
zação medi cinal.

[356 1
responde u nestes termos ao pedido do rei Pe rse u234 de não
ser levado no se u cortejo triunfaJ: " Bom , isso é algo que
está na tua mão! " Já discorri muito sobre a morte no
prime iro di a <destes di álogos> , quando o proble ma e m
debate era precisamente "a morte" . Muito fa lámos tam-
bé m no di a imed iato: do que di sc utimos sobre a dor, muito
pode aplicar-se à morte; a quem se reco rdar do que en tão
se di sse não pode deixar de vir à ideia de que a morte ou é
desejável, ou pe lo me nos não deve ser te mida . Pe la minha XLI
parte e nte ndo que deve observar-se re lati va mente à vida
aquel e brinde que os Gregos usa m nos seus banquetes:
"Ou bebe, ou vai-te embora! " 235 Tê m razão . Ou um a
pessoa desfruta juntame nte com os outros do prazer de
bebe r, ou e ntão , se não deseja e mbri agar-se e cair na
vio lê ncia própria dos bêbados 236 , retire-se an tes <q ue isso
aco nteça>. De modo simil ar, se não puderes suportar as
inj usti ças da fortuna, li vra-te delas pela fu ga 237 . A mes ma
so lu ção é proposta por Epi curo , que Hi e rónimo re produ z
pala vra po r palavra .
Se estes filó sofos para que m a virtude só por si carece 119
de valor, e àquil o a que nós chamamos moralme nte correcto
e di gno de ap reço di ze m e les que não passa de vacuidades
ex postas e m lin guagem decorat iva, se até e les ad mite m

''" Perseu.ou Pe rses. re i do Epi ro. venci do po r Lúc io Em íli o Pa ul o e m 168


na bata lha de Picln a ..
''-' Sobre a co mpa ração da vicia co m um ba nque te cf. Luc réc io . De rem111
11a111ra. III. 93 1-943: Ho rác io . Ser111011e.,. 1. 1. 117- 120. - O texto grego deste
brinde a prese nta um c uri oso jogo de pa lavras: ij ;i:i01 ij á;i:101: ;i:i01 é o imperati -
vo ao ri sto do ve rbo rr(vuv .. bebe r.. : á m Ot é ta mbém um impe rati vo. d um ve rbo
que signifi ca .. ir-se e mbo ra ... á rr + u pt (, (- . c f lat. i+ re).
236 Outro j ogo de
palavras: 11io/e11tia .. a violência .. <> ui110/e 111on1111 .. do~
embri agados··.
17
' Ou seja: pe lo suicídio.

13571
que o sábio é se mpre feliz , o que não hão-de pensar os
filó sofos derivados do pensamento de Sócrates e Platão?
Destes alg un s há que afirmam que os be ns relativos à
mente são de tal mane ira superiores que deixam na sombra
os bens do corpo e os externos 218 ; outros nem sequer con-
sideram bens estes últimos, uma vez que aferem tudo em
120 função da mente 239 . As co ntrovérsias e ntre uns e outros era
costume serem julgadas por Carnéades, que actu ava como
uma espécie de árbitro honorário . Os Peripatét icos chama-
vam ' bens' a certas co isas que para os Estó icos não eram
ma is do que 'vantagens', embora os Peripatéticos não atri -
buíssem à riqueza, à boa saúde e às restantes co isas do
mesmo gé nero mais va lor do que os Estóicos; <Carnéades>,
ve ndo qu e a diferença e ntre <as duas Esco las> estava nas
palavras e não nos factos , sentenc iou que não havi a moti vo
para prolo ngar a di ssi dênci a. Caberá aos fi lósofos das
restantes Esco las decidir se pode m ou não aceitar o ponto
de vista que aqui defe ndi . A mim já me sati sfaz ve ri ficar
qu e, ao reconhecere m ao sábio a faculdade de te r para
se mpre ao seu alcance a feli c id ade, estão a pronunciar um
parecer di gno de filósofos .
121 Mas co mo amanhã teremos de partir, guarde mos na
memóri a as di sc ussões destes últimos cinco dias. Pela
minha parte estou a pe nsar pô- las por escrito , po is que
outra me lho r oc upação podere i arranjar para este meu ócio
<forçado>? Dedi ca re i este segundo conjunto de cinco
li vros 240 , ao meu amigo Bruto a quem devo, não só a suges-
tão, como també m o insistente in citamento à escrita de

m Académi cos . Peripatéticos.


239
Obviamente os Estó icos. para quem só são bens os relati vos à mente .
lJO Cícero já tinh a dedicado a Bruto os cinco livros do Dejinibus bonoru111
e/ ma/orwn .

[3581
tex tos fil osófi cos. Não se rá fác il para m im d ize r em que
medid a es ta m inh a acti vidade pode rá vir a ser útil a outros;
no meu caso pessoal, sujeito co rno es ta va aos mais lanc i-
nantes desgostos 241 e aos di ssabo res de toda a o rde m que me
assa ltavam , nenhuma o utra forma de conso lação poderi a te r
enco ntrado .

24 1
Referência . uma vez mai s. ao go lpe profund o que para Cícero represe n-
tou a morte da fi lha T úlia.

[3591
ÍNDICE ONOMÁSTICO

Tal como deixámos ex plicitado no vo lume precedente


das o bras fi losóficas de Cícero , os nomes masculinos
romanos são reg istados po r ordem a lfa bética do nome
gentilício , por exe mpl o, C. Júli o César ocorrerá no lu gar
que compete ao ge ntil ício Júlio ; os prenomes, em geral
ab rev iados, não conta m, portanto, para a o rdem alfabética.
As abreviaturas correntes dos pre nomes masc ulinos
são as seguintes:
A . = Aulu s; App. = Appiu s; C. = Gaiu s; Cn. = Gnaeu s;
L. = Lucius; M . = Marcus; M '. = Manius; P. = Pu blius ;
Q . = Quintus: Ser. = Servius; Sex . = Sextus; T. = Titus;
Tib . = Tiberius
Outras abreviaturas corre ntes:
etn . = etnó nimo ; mit. = mitó nimo; teon. = teónimo;
to p. = to pó nimo.
Os no mes precedidos de um aste ri sco* ta mbé m ocor-
re m no Índice Onomástico do vo lume precedente. Expli -
cações mais pormenori zadas so bre cada no me podem
e ncontrar-se o u neste outro vo lume. ou nas notas de rodapé
dos presentes Diálogos em Túsculo .

Acade mi a. e m Atenas: - V, 9 1
*Academia. do utrin a de Pl atão: - II , 4, 9: Ili. 12: V. 82
Acade mi a , edifício na Vila Tu sculan a de Cíce ro; - II , 9;
Ill, 7

l361 J
*Académi cos, seguidores da Academia: - IV, 5,6, 47 ; V,
75,85
*Académicos (livros), obra de Cícero: - Il , 4
L. * Ác io, poeta trágico: - IV, 55 ; citado e m: II , I 3; IV, 55 ,
77 (Atreu) ; III , 20 (Melanipo) ; I, 68 ; II , 19, 23, 33
(Fi!octetes); 1, 105 ; Ill , 62 (trag . incerta)
L. *Afrâni o: poeta cómico: - IV, 45 , 55
*Africano - Corné li a Cipião
*Africa nos (doi s) : - 1, 110
Agamedes, construtor do templ o de Apolo e m Delfos: - 1,
114 - Trofón io
Agamémnon , mit.: - l , 90
Agri gento: - V, 65
Ájax , filho de Télamon, mit: - I, 98
* Albino - Postúmi o
T. * Albúcio: - V, I 08
Al ceu, poeta grego: - IV, 7 1
Alcibíades: - III , 77 , 78
Alcidamante , retor, co nte mporâneo de Isócrates: - I, 11 6
*Alcméon, mit. : - III , l l
Aleios (campos) : - III , 63
* Alexandre Magno: - III , 2 1; IV, 79; V, 9 l -92
M. Aliénio: IV, 50
C . *Amafínio: - IV, 6-7
Ambrácia , top. - Teómbroto
Amor, deus : - IV, 69
Anacársis, sábio: - V, 90
Anacreonte , poeta: - IV, 71
*Anaxágoras, fil ósofo: - I, l04; III , 30 ; IV, 58 ; V, JO ,
66 , 115
Anaxarco, di scípulo de De mócrito: - II , 52
*Andrómaca - Éni o

[362]
Anfiarau , mit.: - 11 , 60
Anticleia , mit. : - V, 46
*Antíoco de Áscalon, filósofo: - lll , 59; V, 21 , 22 , !07
Antípatro de Cirene , filósofo : - V, 112
*Antípatro de Tarso , filó sofo : - V, !07
Antístenes, filósofo: - V, 26
M . *António, cônsul 99: - 1, 10; II , 57 ; V, 55
* Apolo, deus - Pítico
Ápio - Cláudio
Aqueronte , top ./mit. : - I, 10 (cf. I, 37, 48)
Aquiles , mit. : - I , 105 ; III , 18 ; IV, 52
M . Aquílio, côns ul !O 1: - V, 14
Aquínio: - V, 63
*Arcesilau , filósofo : - V, 107, !09
Arquelau, rei da Macedónia: - V, 34, 35
Arquelau , filósofo: - V, 10
* Arquíloco, poeta: - 1, 3
*Arquimedes, matemático: - I, 63; V, 64
*Arquitas , filósofo pitagórico: - IV, 78; V, 64
Argivo: - I , 45, 113; II, 39; III , 53
Argo, navio mit. : - I , 45
Argonautas : - IV, 69
Aríon de Metimno , mit. : - II, 67
* Aristides : - V, 105
* Aristipo , di scípulo de Sócrates: - II , 15
* Aristo , filósofo : - V, 22
Aristogíton : - I , 116
Aristómaca , mulher de Dionísio: - V, 59
* Aríston de Quios, filósofo: - II, 15 ; V, 27, 33, 85
* Aristóteles , filósofo : - I, 7, 22, 41, 65 , 80; II, 9; V, 30, 39 ,
87 , 107 ; citado em I, 70, 94; III, 69; V, !01
* Aristóxeno , músico e filósofo : - I, 19 , 24, 41, 51

[363]
Arpino , te rra natal de Cícero: - V, 66 , 74
Arrunte , etru sco: - IV, 50
Artemísia: - III , 75
Asclepíades, fil ósofo: - V, l l 3
Atamante , mit.: - III , l l
*Atenas : - [, 116; II , 26; lll , 38; V, 22, 9 1, 100 , 104 , 108,
109
Atenienses : - IV, 5
Áticos (oradores romanos): - J, 3
M . * Atílio , poeta: - IV, 25
A .* Atíli o Calatino , cônsul 258: - 1, 13, 11 0
M . *Atílio Régulo , cônsul 267 : - V, 14
Atlas , mitónimo: - V, 7
Atreu , mitó nimo: - 1, 106; IV, 77 ; V, 52
Cn. *Aufídio: - V, l 12
Áu lide, topónimo: - 1, 11 6
Averno (lago de): - J, 37

Babilónia - Diógenes
Belerofo nte, mitó nimo : - lJl , 63
Beóc ia, topónimo. - l , l 10
Bíon de Borístenes, cri ador da chamada ' diatribe
cíni co-estó ica': - III , 62
Bíton, irmão de - C léobi s
*Bruto - Júnio

Cadmo, mit.: - L 28
Calano, indiano: - II , 52
*Calatino - Atílio
Caldeus: - I , 95
*Califonte , filósofo: - V, 85, 87
Calímaco, poeta grego (séc. IV a. C): - I, 84, 93

1364]
Calísrenes (s ubtítulo : Sobre o /1110 ). obra de Teofrasto : -
III , 2 1: V, 25
L. *Ca lpúrn io Pi são Frúg i, cônsul 133 : - Ili , 16. 48
Cam il o - Fúria
Canas, top .: - 1, 89
Capena (porta), sa íd a de Ro ma , no começo da via Ápia: -
I , 13
Ca rbão - Papírio
Cá ri a.to p.: - I, 92; III , 75
*Cá rmadas, filósofo: - I, 59
*Ca rnéades, filósofo: - III , 54 , 59; IV, 4, 5 , 53 ; V, 11 . 83,
84, 88, 107 , 120 (cf. V, 87)
*Cartago, Ca rtag ineses: - III , 53, 54
*Catão - Pórc io
*Cátulo - Lutácio
Cáucaso , top.: - ll , 23, 25, 52 ; V, 8, 77
Q. *Cec íli a Metelo Macedóni co , cônsul 143: - I, 85. 86
*Cecíl ia Es tác io, co medi ógrafo: - I. 3 1; IV, 68; citado li I,
56
Cefe u, mitónimo: - V, 8
Ce io, mitóni mo (= Cé u, um dos Titãs, pa i de Saturno): - II ,
23
Ce ltiberos: - II , 65
Ce ntauros, mit.: - 1, 90 ; li , 20
Cepião - Se rvíl io
Céps is - Metrodo ro
Cé rbero, mitó nimo: - 1. 10. 12; 11 , 22
Césa r - Júli o
Cépsi s - Metrodoro
Cérbero, mitó nimo: - 1. 1O, 12; li. 22
Chipre, to pó nimo: - II , 52
Cíc io - Zenão

1365]
C ic lope , mit. : V, 1 15
Cimbros , Címbricos , etn .: - II , 65 ; V, 56
Ci na-.. Cornélia
Cíneas , embaixador do re i Pirro a Roma (séc. 111 , a . C) :
- 1, 59
*Cínico (filósofo~~): - V, 92 , 104
*Cipião-.. Cornélia
Cip iões (dois)-.. Cn. Cornélia Cipião e P. Cornélia Cipião
Cípse lo , tirano de Corinto : - V, 109
*C ire naico, Cirenaicos , etn .: - 1, 83 ; III , 28, 31 , 51, 76 ;
V, 112
Cirene , Cireneus , top ./etn: - 1, 102 ; IV, 5
Citas , etn .: - V, 90
Clastídio, top . - IV, 49
App . *Cláudio Cego, cônsul 307 , 296: - IV, 4; V, 102
C. Cláudio Centão, cônsul 240 : - J, 3
M. *C láudio Marce lo, cô nsul 222 : - 1, 89 , 110; IV, 49
App. Cláudio Pulcro , cô nsul 54 : - J, 37
Clazómenas , top .: - I , 104
*Cleantes , filósofo : - II , 6; m, 76, 77; V, 107
Cléobis, filho de uma sacerdoti sa de Argos, irmão de Bíton
(He ródoto , I, 3 1): - I, 11 3
Cleómbroto (forma correcta) -.. Teómbroto
Clito , am igo de Alexandre , que o matou num acesso de
có lera: - IV, 79
*Clitómaco , filósofo: - III , 54 , 107
Cocito , top./mit. : - 1, 10
Codro: - 1, 116
Comédia incerta: - 1, 94
Corinto, Coríntio: - to p./ etn : - II , 32; m, 53 ; IV, 32; Livros
Corínrios -.. Dicearco
L. Cornélia Cina , cônsul 87-84 : - V, 54 , 55
L. Cornélia Lêntulo Lupo , cônsul 156: - III , 51

[366]
C n . Corné lia C ipião, cônsul 222 e P. Corné lia C ipião ,
cô nsul 2 18 (= do is Cipiões) : - 1, 89 , 11 0
P. *Corné lia Ci pi ão Afri cano f: - V, 49 I , 11 O
P. *Cornélia C ipi ão Emili ano Africano II : - I , 5 , 8 1, I 10 ;
II , 62; IV, 5 , 50
P. *Cornélia Cipião Nasica Córc ul o , cô nsul 162 , l 55 :
- I , 18
P. Co rné lia C ipião Nasica Se rapião , cô nsul 138: - IV, 5 I
*Crantor, fi lósofo: - I ,l 15; III , 12,71 ; V, 107
*C rasso - Licínio
*Cre mes , pe rsonagem de Terê ncio: - III , 65
Cresfontes - Eurípides
*Crete nses, etn .: - II , 34
*C ri sipo , fi lósofo : - 1, 108; III , 32 , III , 59 , 61 , 76 , 79; IV,
9 , 23 , 53 , 63; V, 107
Crísis, personage m de uma co média de Trábea: - IV, 67
Crítias, um dos Trinta Tiranos que governaram Ate nas
de poi s da Guerra do Pe loponeso: - I , 96
C ríton, a mi go e di scípulo de Sócrates : - I , 103 (tanto
Crítias co mo Críton são títulos de di álogos de Pl atão)
*C rito lau , fil ósofo : - V, 5 I
*C um as , top .: - III , 27
M ' . *Cúri o De ntato , cônsul 290 : I , 110

Damarato , pai de Tarqu íni o Pri sco: - V, 109


Dâmoc les: - V, 61 , 62
*Dánaos, etn . - IV, 52
*Dario (Codo mano), re i dos Pe rsas, ve ncido por Alexandre:
- V, 97
P. *Décio Mure,
pai , cô nsul 340 ; j
filho , cônsul 3 12; I , 89; II , 59
neto , cônsul 279 j

[367)
Deja nira . mit. . filh a de -+ Ene u , mulher de Hércul es:
- II. 20
De lfos. top .: - 1. 11 4: V, 70
*De mócrito de Abdera , filósofo : - 1. 22 , 42 : IV. 44 , 55 : V,
66 , 115: cf.. 1, 82 : V, 104 , 11 4
o discípulo de ~~: -+ A naxarco
os discípulos de ~~: 1, 82
Demóste nes , orado r ateniense : 1, 10: 111 , 63, IV, 44, 55,
V, 103
Deuca li ão. mit.: - 1, 2 1
Di ágoras de Rodes , atl eta vencedor o límpi co , ce lebrado
por Píndaro, e pai de dois at letas também vencedo res
o límpi cos : - 1, 111
*Di cearco, filó sofo: - I, 24 , 41. 51 : IV, 7 1; Li vros Coríntios
( KogLv0Laxol, Àóym / Corinthii libri): - I. 2 l : Livros
Lésbicos ( A rn~ laxol, Àóym / Lesbiaci libri ): - 1, 77
*Dinó maco . filó sofo: - V, 85
*Diodoro , pe ripatéti co : - V, 85, 87
*Di ódoto, estó ico: - V, 11 3
*Di ógenes de Babiló nia , fi lósofo estóico: - IV, 5
Diógenes de Sinope: filósofo cíni co: - 1, 104,: IIl , 56:
V.92
Díon. amigo de Platão : - V, 110
Dioní sio 1, tirano de Siracusa: - V, 98
Dionísio li. tirano de Siracusa: - fl I. 27: V, 57. 63
*Dionísio de Heracleia. filósofo: - ll , 60; Ili , 18
Dionís io, e tó ico : - li, 26
Dius Fidiu s (me ): - 1. 74
dois C ipi ões - Cn. Corné li o Cip ião , cônsul 222 e P.
Corné li o Cipião, cô nsul 21 8
Dó ri s, natura l de Locros, mulher de Dionísio II : - V, 59

1368]
*Druso - Lívio
Éaco , mit. , avô de Aquiles: - l , 98
Eetes, mit. , pai de Mede ia: - Ili. 26, 39
Efésios, etn. : V, 105
Eg ipto, top. : - V, 97
*Élea - Zenão
Sex . *Élio Peto Cato, cô nsul 198 : - r, 18
Q. *Élio Tube rão, discípulo de Pa néc io: - IV, 4
E lís io: - I , 115
M . Emílio Lé pid o Porc in a, cônsul 137: - l , 5
L. *Emílio Paulo , cônsul 182 , 168: - III , 70; V, 118
M. Emíl io Paulo , cônsul 2 19: - I, 89 , 11 O
*Empédocles, fil ósofo: - I,l 9
*E nd imião , mit. : - I , 92
E neu , mit. , re i da Etólia , pai de - Dejanira: - II , 20
Q. *Énio , poeta: - I, 3
Citado em : I , 18,27,28 , 34,35,45,48 , 69 , 105 , 107 , 11 7 ,
II , 1, 38,39
III , 5 , 26,28 , 44 , 45 , 53 , 58 , 63 , 85 ,
IV, 19,69 , 70 , 77
V, 49 , 52
Enómao , mit.: - III , 26
*Epami nondas, general e político tebano: - I , 4, 33, l 10 ,
116; II , 59 ; V, 49
Epicarmo , comediógrafo g rego sici liano , sécs. VI e V a . C. :
- l , 15 (Énio deu o seu nome a uma obra de sua
autoria)
Ep icuri stas , seguidores da filosofia de - Ep icuro : - I , 77 ;
III , 33 ; V, 94
Epicuro , filósofo : - II , 8, 15, 17 , l 8 , 28, 44; lll , 32 , 51 , 76,
78; V, 26 , 31, 84, 87, 88, 89 ss. , 108 , 109 , l 10 , 118;

[369]
C itado e m: I, 8
ll , 17 44 , 45
lll , 28 ,32, 38 , 4 1, 42 , 46 , 47 , 48 , 49
IV, 70
V,26 , 73 , 88 , 89 , 93, 94 ,95 , 97, 103 , 11 0 ,
11 7
Epígonos (tragédi a de Sófoc les; ou tragéd ia de Ác io): -
IJ , 60
Epitáfio de Platão - Pl atão
Erecteu , mi t.: - I, 11 6 (há frags. de uma tragédi a de Eurí-
pides)
Erétri a - Asclepíades
E rimanto, to p./mi t. Uava li de~~): - II , 22
Escul ápio , deus: - II , 38
Esfero , filó sofo : - IV, 53
Esopo, acto r: - li , 39; IV, 55
*Es parta , to p. , I , 100 , 10 1; II , 34 (cf. Lacedé mo n)
Espartanos , etn .: - 1, 102; II , 36 , 37
*Espeusipo, fi lósofo: - V, 30, 39 , 87
*Ésquil o, poeta trág ico: - II , 23 ; c itado em 11 , 26 ; UI , 76
Ésquines, di scípulo de Sóc rates: - III , 77
*Ésquines , orador ate ni ense: - III , 63
*Estác io - Cec ílio
*Estóico , adj.: - I, 19; II , 26 ; IV, 5; V, 27
*Estóicos - * Aríston , *C ri sipo , *C leantes , *Dionísio ,
*Heril o , *Esfero , *Zenão
Eta , mo ntanh a e m que Hércul es se sui cido u pe lo fogo .
- Il , 19
Etólia , top.: - I, 3
*Etruscos , etn .: - I , 89
Eufó ri o n, poeta grego (séc . 111-11 a . C.) , aprec iado pe los
poetas romanos da escola al exandrini sta , como Catulo:
- Ili , 45

[370]
*Eurípi des, poeta trág ico: - 1, 11 5; lll , 30 , 57, 59, 67; [V,
63, 7 1 (cf. 1, 65; III , 29, 58 , 59)
Eurípil o , m it. : - rr , 38, 39
Euri ste u. mit. ,: - rr , 20
Europa, top.: - 1, 45, 94
Eurotas, ri o da Lacóni a: - li , 36; V, 98
Eut ínoo, 1, 11 5

Q. Fábi o Máxi mo Ve rrucoso C unctator, cônsul 233: 1, 11 0;


Ili , 70
Q. Fábio M áx imo, fi lho de Q. F. M. Al obróg ico: I, 8 1
C. Fábi o Pi cto r, avô do a nali sta: I, 4
*C. Fab ríc io Lusc in o , cô nsul 282, 278: I, 11 O; III , 56
*Fá lari s (to uro de~~): - II , 17, 18; V, 75, 87
*C. Fânio , hi stori ado r: IV, 40
Fe réc ides de Si ros (séc. VI a . C.), alegado mestre de
Pitágoras: - 1, 38
Fe réc rates. ve lho e rudito, c itado po r Dicearco : - I, 2 1
Fédo n - Pl atão
*Fedro - Pl atão
*Fídias, esc ultor: - 1. 34
*Filipe U, re i da Macedó ni a: - V, 42
*Filocte tes, he ró i da ex pedi ção a Tró ia: - 11 , 19 , 33,44 , 55
*Fíl on de Lari ssa, fil ósofo acadé mi co, mestre de Cícero:
- II , 9, 26; V, 107
Fliunte. to p.: - V, 8, 10
*Fortun a, teó n.: - V, 27, 72
Fti a, top .: - l , 2 1
M . Fúl vio obilio r, cônsul 189: - 1,3
*Fúrias
M. Fúrio Ca mil o , ditado r 396: - l , 90

137 IJ
*Galba - Su lpício
*Gaulês : - IV, 49
Ganimedes , mit.: - 1, 65 ; IV, 71
Gém ino - Servílio
Gigantes : - II , 20
Górgias - Pl atão
Ti. e C. *Gracos: - cf. Semprónio
*Gregos: - 1, 1, 3, 4, 5, 7, 8, 1O, 28, 4 1, 68, 74 , 96 , 111; II ,
26. 35 , 65 ; llI , 7, 11 , 13 , 16 , 23 , 8 1; IV, 1O, 34, 70; V,
7 , 24 , 105 , 11 6. 11 8
*Grego , em grego , pequeno grego: - 1, 15 , 86; li , 6; Ili , 10;
IV, 2 1, 25 ; V, J 12 , 116
*Gréc ia: - 1, 2 , 3 , 4, 29 ; li , 4 , 5 , 27, 35 , 36, 48 ; UI , 28 ; IV,
1, 2; V, 9 , 10 , 58 , 66, 103 , 114; cf. Magna Grécia
Graio = Grego: - II , 20 ; lll , 39

Hali ca rn asso: - III , 75


Hanão: - V, 90
Harmódio: - I, 11 6
Heitor, he ró i troi ano , personagem da Ilíada: - I, 105 ; li ,
39; III , 44; IV, 17,49 , 67
Hécuba : - mulhe r de Príamo , rainha de Tróia: - lll , 63
Hegésias , fi lósofo cirenaico (séc. 111 a. C.): - l , 83 : auto r de
um li vro intitulado " O suicida por inanição "
(Arroxa91:i::9wv) 1, 84
*Heracle ia - Dionísio
Herac lides Pônti co , discípulo de Pl atão: - V, 8
* He rac lito , fi lósofo pré-socrático: - V, 105
*Hé rc ules , heró i mito lógico , fi lho de Júpite r: - 1, 28 , 32 ;
ll , 17 , 19 , 20,22; IV, 50
*Heril o de Cartago , filósofo: - V, 85
Hermodoro , cidad ão muito nobre de Éfeso: - V, 105

13721
*Heródoto, hi sto riador grego (séc. v a . C.): - I, 11 3
Hes íodo , poeta g rego (séc. V I I a. C.) . - 1, 3 , 98
Hid ra , monstro de três cabeças, ve nc ido por Hé rcules:
- 11 , 22
*Hi e ró nimo de Rodes, fil ósofo pe ripatéti co (séc. llI a. C.):
- II , 15 ; V, 87, 88, J 18
H ípani s, ri o na actua l Uc râni a: - 1, 94
Hipocentauro - Centauros
Hipodami a , mit.. mulhe r de Pé lops: - lfI , 26
Hipó lito, mit. , filh o de Teseu: - IV, 27
Hircâ ni a, reg ião cerca do mar Cásp io : - r, 108
Hi spâni a, a penín sul a Ibé ri ca: - 1, 89
*Ho mero, poeta grego, alegado auto r da Ilíada e da
Odisseia: - I, 3, 37 , 65 , 79, 98; IV, 49; V, 7, 114 , 11 5;
c itado e m lll , 18, 62, 63, 65; LV, 49
Q . *Ho rtê nsio Hórta lo , o rado r. co nte mporâneo e am igo de
C íce ro: - 1. 59
*Hortênsio , d iá logo de Cícero -Túli o

Íbi co de Rég io , poeta g rego (séc. V I a. C.): - IV, 7 J


ffigé ni a. mit. , fi lh a de Aga mé mno n: - I , 116
Índi a, Indi a nos : - II, 52; V, 77, 78;
fn o = Matuta, teon .: - I, 28
lsóc rates, o rador e reto r grego, co nte mpo râneo de Pl atão
(séc . V- IV a. C.): - I , 7
*Itá li a. Itá li co: - I , 38, 39, 86; IV, 2. 7; V. 10, 100

C. Júli o César Estra bão , t 87: - V. 55


L. Júli o César, cô ns ul 90 . irmão do precede nte: - V. 55
L . *Júni o Bruto . cô nsul 509 ( in staurado r da Repúbli ca em
Ro ma): - I , 89 ; IV, 2 , 50
M . *Júni o Bruto , ami go e dedi catári o de C íce ro , assass in o
de César: l , L li , I ; III , 1; IV. 1,4 , 21 , 30,39, 12 1

l373 1
Juno , mit. , deusa , mulhe r de Júpiter: - II , 20
*Júpiter, mit. , deu s, marido de Jun o e pai de Min erva: - l ,
65 ; II , 23, 24 , 25, 34 , 40 ; JII , 26 , 45 ; IV, 70
Ju venta , mit. , a deusa da Ju ve ntude: - I , 65

*Lacedémo n, Lacede mónios: - l , 100. 101 , 116; TI , 59; V,


42 , 98 , 99
Lacónio , Lacónios (= Espartano, ~~s): - 1, I 02 , 111 ; II , 36;
V,40,49
*Lac ides, filósofo académico , di scípul o de Arcesilau: - V,
107
Laio , mit. , pai de Édipo : - IV, 71
*Lâmpsaco, top ., c idade da Tróada: - 1, 104
Lao medonte , mit. , rei de Tróia vencido por Hé rcules: - l ,
65
*Latinos: - I, 15 ; II , 26; III , l O, 11 , 29; Lat in as (letras): - 1,
1, 5; II , 5
Latmo, monte na Cá ri a: - I, 92
C. *Lé li o Sapiens (o Sáb io), cô nsul 140, ami go de Cipião
Emili ano: - I , 5 ,
l 10; IV, 5; V, 54, 55 , 56
*Lemnos, Lémnio : - ilh a do N . do mar Ege u: - II , 23
Lê ntulo - Cornélia
*Leónidas, rei de Esparta , herói das Termópilas: - I, l Ol , 11 6
Leo nte , príncipe de Fliunte , di scípulo de Pitágoras: - V, 8
Lé pido - E míli o
Lema , to p ., cenário da luta de Hé rcul es co m a Hid ra: - fl ,
22
Lésbicos (li vros) - Dicearco
Leucádia , co médi a - Turpílio
Leucates , promontó ri o na ilha de Laucata, no mar Jó ni o:
- IV, 41

(374]
J\ i::u xo0fo [Leukothéa] - lno M atu ta
Le uctros, cidade na Beócia: - I , 11 O
*Líbero, teo n .: - 1, 28
Líbi a. reg ião do N . de África: - I , 45
L. Li cíni o Crasso , cônsu l 95 : - I , 10
M . Li cínio Crasso, avô do triúnvi ro : - III , 31
P. *Lic íni o Crasso Dívite (= o Ri co) , cônsul 92, pai do
triúnviro: - I , 81; V, 55
M . *Licínio C rasso Dívite, cônsul 70, 55 (triúnviro): - I ,
12 , 13 , 14; V, 11 6
*Lícon , filósofo peripatético (séc. IV , Ili a. C.): - lll , 78
*Li curgo, legislador de Es parta: - I , 10 , 101 ; II , 34; V, 7
Li símaco, um dos sucessores de Alex andre: - I , l 02 ; V,
11 7
Lítana , top.: - I, 18
Lívio A nd ron ico , poeta e dramaturgo, séc. Ili a. C.: - I, 3
C. *Lívio D ru so, juri sconsulto: - V, 11 2
Locrense , natural de Locros - Dó ri s
Lua , teó n., amante de Endimi ão: - 1, 92
Lucanos , natu ra is da Lucânia (Itália meridion al): - 1, 89
C. *Lu cílio , poeta satírico , séc . 11 a . C. : - II , 41 ; lll , 3 1;
IV, 48
Q. *Lutácio Cátul o, cônsul 102: - V, 56

*Macedónios : - III , 53
T. Mác io Pl a uto. co mediógrafo: - I , 3
M agos , etn .: - 1, 108
T. *Mânli o Torquato, cônsul 347: - IV, 49
M aratona (touro de ~~), dominado por Teseu: - IV, 50
M arcelo - C láudio
C. *Mári o, po líti co e general , riv al de Su la (séc. 11 - 1 a . C .),
protago ni sta de um poema de Cícero: - II , 35 , 53 ; V,
56

1375]
Matuta - lno Matuta
Mausolo , rei da Cári a: - Ili , 75
*Máxi mo - Fábio
*Medeia, mit.: - III , 63; IV, 69
Melanipo - Ác io
Menece u. Mit.: - 1, 116
M énon - Platão
Meóti s, top. , hoje chamado mar de Azov : - V, 49
*Mete los, famíli a ro mana: - 1, 13
Met imno , top. - Aríon
*Metrodoro , fi lósofo ep icu ri sta: - li , 8 , 17; V, 27, 109
Metrodoro de Cépsis, académ ico , di scípu lo de Carnéades:
- I, 59
Midas, mit. , rei da Lídia: - 1, 114
*Mil cíades, genera l grego, vencedor da batalha de
Maratona: - IV, 44
*Mine rva, teón.: - 1, 34
Mi nos, mit. : - I, 1O, 98 ; II , 34
Mi tilene, to p, c idade da ilh a de Lesbos : - 1, 77
Mulcíbero, e píteto de Vu lcano: - II , 23
Mu sas, teón. : - V, 65
Mu seu, poeta le ndári o , di scípul o de Orfe u: - I , 98

*Nápo les, Napo li ta nos: - 1, 86


Nasica - Corné lia
ecess idade, teón .: - III , 59
Némea (leão de ~~), fera morta por Hércules: - II , 22:
IV, 50
*Neo ptó lemo, fi lho de Aquiles: - li , 1, 2
*Neptuno , teón .: - 1, 110; 11 , 67 ; IV, 73
Nestor, heró i homé rico: - V, 72
C n . Névio , poet latino (séc. 111-11 a. C.) : - 1, 3; IV, 67

1376]
Nicocreonte - Timocreonte
íobe, mit., cujos filhos foram mortos por Apo lo e sua
irmã: . Ili , 64
Niptra , tragédi a - Pacúv io
Nob ili or - Fúlvio
*Numa, re i de Ro ma, sucessor de Rómu lo: - I V, 3

Oceano (Atlântico): - 1, 28, 45


Cn. Octáv io, cônsul 87: - V, 55
Oi le u, mit. , pai de Ájax , dito o meno r: - lll , 71
Olímpia , O límpi cos, O limpionico: - 1, 111; II , 4 1, 46
Olímpio (Júpi ter): - II , 40
*Orco, o mundo dos mortos: - 1, 48
*Orestes, mit. , filho de Agamém no n: - III , 11
Orestes, tragédi a - Euríp ides
Orfeu, poeta lendário: - 1, 98
Origens, obra hi stóri ca - Pó rc io Catão

Pac ide iano, g ladiador - IV, 48


M . *Pacúvio, tragediógrafo latino (séc. 111-11 a . C.): - ci ta-
do e m 1, 44 , 106; 11 ,44,48-50 : V,48
Pa lamedes, mit.: - I, 98
*Panéc io de Rodes, filósofo estó ico, amigo de Cipião
Emi li ano: - 1, 42 , 79, 81; IV, 4 ; V, 107
C. Papíri o Carbão, cônsul 120: - I, 5
Parrás io, pin tor grego: - I, 4
Patríco les, heró i homérico, ami go de Aquiles (= Pátroclo):
- li , 38-39
*Paul o - Emíli o
Pe ligno , etn .: - IV, 50
Pe loponeso: - 111 , 53
Pé lo ps, mit. , pai de Atreu e Tiestes: - 1, 107; II , 67; IIl , 26

[377 J
Perd icas , pai de Arque lau, rei da Macedóni a (séc. v a . C.):
- V,34
*Peripatéticos : - II , 9; III , 22 , 76; IV, 6 , 9 , 38, 43 , 47; V,
32 , 82 , 85, 120
*Persa, Persas: - 1, 101 , 108 ; V, 35 , 99
*Perses, re i da Macedóni a - Perseu
*Perseu, ou Perses: - lll , 53; V, 118
*Pirro , re i do Epiro: - 1, 59 , 89
*Pírro n , fi lósofo céptico: - n, 15; V, 85
*Pi são - Ca lpúrn io
*Pitágoras, sábio , fi lósofo e místi co: - I , 29, 38, 39 , 46 , 62 ;
III , 36; 1V,2,3, l0 ,44 , 55;V, 8,9 , 10 ,30 , 66
*Pitagóri cos - I, 38, 39 ; II , 23; IV, 2 , 3 , 4 ; V, 63, l 13
*Píti co (A polo): - I, 17
*Platão: - I , 20 , 22, 24, 39, 49, 55 , 58, 63, 64, 70, 79; li , 8;
III , 36 , 43; IV, 10, 44 , 55 , 7 1; V, 8, 19 , 30 , 34, 36, 64 ,
100, l 09 , 11 9
Citações : - Apologia: ! , 97
Carta Vil: V, / 00
Epitáfio : V, 36
Fédon: ! , 24, 84 , 57, 72, 73, 74, 75, 103
Fedro: ! , 53
Górgias: V, 34
Ménon: /, 57
República: li, 27; V, 47
Timeu: ! , 63, 64
Pl auto - Mácio
Poetas anónimos - 1, 10; IV, 48; V, 49
*Pó lemon , fi lósofo académi co: - V, 30 , 39 , 87, 109
*Polic lito (= Po lic leto), esc ultor: - I , 4
Polifemo , Cic lope: - V, l l 5

[378 ]
C n. *Po mpe io Mag no , po lítico e milita r, ami go e conte m-
porâ neo de C ícero , ali ado , de po is ri va l de Júli o Césa r:
- 1,12. 86: II , 6 1; Ili , 66
Pôn ti co-+ Herac lides
Po nto Eux ino (= Mar Negro): - I , 45 . 94
M .* Pórc io Catão . o Ce nsor, cô nsul 195: - I, 3 , 5, 11 O: II 1,
5 1, 70: IV, 3;
Origines . obra c itada e m I, 3 , 10 1; IV, 3
M . *Pórc io Catão , de Úti ca, estó ico: 1, 74: V, 4 , 32
* Pos idóni o de Apa me ia , estó ico: - II , 6; V, 107
L. *Postú mi o Albin o , cô nsul 234 , 229 : - 1, 89
Príamo , rei de Tró ia : - 1, 85, 93 , 105; lll , 44 . 45
Pro mete u. mit. : - II, 23; III , 76; V, 8
* Pto lo me u, fi lho de Lago , um dos sucessores de Al exa ndre ,
mona rca do Eg ipto (dinasti a dos Lág id as, que te rm i-
no u co m C leópatra ): - 1, 83
Pto lo meu (in ce rto qu al dos doze re is do Eg ipto co m este
no me) : - V, 97
Púnicas (gue rras): - III , 50
Puteo lanos , habitantes de *Putéo los, top .: - 1, 86

(Que ré mo n, poss íve l auto r de um ve rso tradu z ido po r


C íce ro de um a peça grega não ide ntifi cada): - V, 25
(v. nota ad toe.)
Qu ios -+ Arísto n

Radamanto , jui z dos Infe rnos: - I , 10 , 98


Rég io , to p. -+ Íbi co
Rég ulo -+ *Atílio
* Rodes, Ródi os-+ Di ágoras , Hi e rónimo

!379 1
*Roma: - 1, 3, 90 ; 111 , 53
*Romano (povo~~): - 1, 28; Il i , 48
*Rómulo. fundado r e primeiro rei de Roma : - 1, 28: 111 , 48
P. Rup ílio Lupa , cônsul 132: - IV, 40

Sábios (os sete~~) : - V, 7


Salami na (batal ha de ~~): - II , 41
Sam nita (tipo de g ladiador): - li, 41
*Sardanapalo , re i da Síria : - V, 101
Satúrnio - Júpite r
Sémele. fi lh a de Cadmo, mãe do deus Dioniso . - 1. 28
Semprón ia (lei) : - IIL 48
C. *Semprónio G raco, tr.p l. 123 .122 : - 1, 5: III . 48
Tib. *Se mpró ni o Graco, irmão do precedente, tr. pi. 133:
- 1, 5: IV, 51
Tib . *Semprónio Graco , côns ul 215 , t 213: - 1, 89
M. Semprónio Tuditano, cônsu l 240: - L 3
Q. Servílio Cepião. côns ul 106: - V, 14
C n. Servílio Gémino , cô nsul 2 17: - 1. 89
Servílios : - 1, 13
Sérvio Tú li o , sexto re i de Roma: - I; 38
*Sicília. Sícu los: - 1, 15
Sícion, top., cidade do Peloponeso: - lll , 53
Si le no, mit. : - I. 11 4
*Simónides. líri co grego (séc. v a. C.) : - 1, 59: c itado em
l. 1O1
*S iracusa , Siracusanos: - III , 27: V, 57, 64. 65, 100
*Síria: - II , 61; V, 101
Siros , uma das Cíc lades - Ferécides
Sísifo , mit.: - 1, 10 . 99
Soberbo - Tarqu íni o

[3801
*Sócrates: - l , 8, 55 , 71 , 74 , 97, 100 , 102; lll , 8, 10 , 3 1, 56 :
IV, 6 , 63,80; V, 10 , ll , 26,30,91,97 , 108,1 19
(personagem de diálogos de Pl atão): - J, 53, 57 : V, 34
(personagem de um diálogo de Ésq uines): - lll , 77
(cf. a ed . de Gigon, p. 522)
Socrático , adj .. - 11 , 15 ,62 ; IJJ ,43
Socráticos: - I 1, 8
*Sófocles: - IL 20, 22 , 49; lll , 7 1
Sol, mit. : - III , 26
*Só lon , estadi sta ateniense: - 1, 110 , 1J7
Ser. Sulpício Galba, cônsul 144: - I , 5
*Tântalo , mit. , I, 10; III , 26: IV, 35
Tarquínios, top., c idade da Etrúria: V, 109
L. Tarq uíni o Prisco, re i de Rom a (d inastia etru sca): - V,
109
L. *Tarquínio-o-Soberbo: último re i de Roma - 1, 38, 88:
III , 27
Tártaro, zo na dos Infernos rese rvada às pe nas máximas : -
II , 22
Té lamon, pai de Ájax, o Mai o: - UI , 39 , 4 3, 58, 7 l
*Temístocles , ge nera l e po lítico ate ni e nse: - 1, 4 , 33, 110;
IV,44 , 55
Teodectes , poeta trág ico, amigo de Aristóteles: - 1, 59
Teodoro, fi lósofo cire nai co : - 1, 102; V, 11 7
*Teofrasto , d iscípulo de Aristóteles e seu sucessor à frente
do Li ceu : - 1,45 : m, 69: V, 85, 107: citado e m: III , 21 :
V,24,25
Teómbroto (lapso de memória de Cícero) de Ambrácia -
C leó mb roto
Terâmenes , político ate ni e nse (séc. v a. C.) : - I , 96 , 97,
100

13811
P. *Terên c io Afro, comediógrafo latino: - c itado e m Ill , 30
(Formião); III , 65 (0 carra sco de si mesmo); 1V, 76
(Eunu co )
Terina. top ., cidade e go lfo no Brútio , Mag na Gréc ia: - I,
115
*Termópilas , top .: - J, 1O1
*Teseu. mit. , herói ateniense: - III. 29. 30, 58 ; IV, 50
Terra: - li . 20
Teucro. herói homérico , irmão de Ájax, o Maior: - V, 108
Tiestes , mit.. irmão de Atreu: - 1, 107: Ili , 26. 39; IV, 77
*Timeu - Platão
Timocreo nte - Nicocreonte
Tímon µwáµ~goi:oç (misá111broros " mi sa ntropo") : - IV,
25 , 27
Timóteo, ateniense ilu stre , ami go de Platão: - V. 100
Tindáridas, gémeos filhos de Tíndaro (= Castor e Pó lu x):
- I , 28
Tirés ias, mit. , adivin ho cego., de Tebas: - V, 115
Tiro , top .. cidade da Fenícia: - III , 66
Titãs, mit.: - 11 , 23
*Torquato - Mânli o
Q.Trábea , co mediógrafo, citado em JV. 35, 67
Traquí11ias - Sófocles
Trágicos não identificados . - 1, 10. 37; II , 34 , 36 , 67; III ,
26,39 ; IV, 35,52 , 69; V, 52 , 108
Triptólemo , mit.: - I. 98
*Tró ia , top .: - I , 99; III. 28
Troi lo. fi lho de Pría mo , morto por Aqu iles: - I , 93
Trofónio , um dos construtores do templo de De lfos -
Agamedes
*Tuberão - Éli o
*Tuditano - Semprónio

[3821
M . *Túlio Cícero , cônsul 63 :
Obras menc io nadas:
Académicos (li vros): li, 4
Consolação:/, 65, 76, 83; li! , 70, 74 : IV, 63
De j inibus : V, 32
Hortensius : li , 4 ; Ili , 6
De re publica: / , 53; V, 1
Tusculanae disputationes: V, I , 121
Turpílio , co medi ógrafo, c itado (comédia Leucádia) : - IV,
72
Tu sc ulan o, vila de Cícero: - l , 7;, 119; II , 2, 9; lll , 6 ; rv, 7:
V, li

*Ulisses, heró i da Odisseia homé rica: - 1, 99; 11. 49; V, 7 , 46

Vária (le i): - II , 57


Ve ientes, etn .: - lll , 26
Ventos, mit. : - IV, 73
Vé nu s, teó n.: - lll , 41 ; IV, 73; V, 68 ;
Venú sia , top .: - 1, 89
*Virtude, teó n.: - rr , 19
Vul ca no , teón .: - II , 33 (- Mulcíbero)

Xantipa , mulher de Sócrates: - 111 , 31


*Xen ócrates, di scípul o de Platão : - V, 30 , 39 , 51 , 87 , 9 1,
107, 109; c itado em 1, 20
*Xenofonte, di scípu lo de Sócrates, militar e escritor ate-
niense: - citado em li , 62 (Ciropedia): V, 99 (Ciropedia )
*Xe rxes, rei dos Persas : - V, 20

*Zenão de Cício, estóico: - II, 15. 29 , 60; Ili , 75 ; V, 27, 32 ,


33, 107; c itado em I , 19; II , 29 ; IV, 11, 47

!3831
*Zenão de Élea , fi lósofo da esco la eleática: - 11 , 52
*Zenão, epicurista: - lll , 38
Zó pi ro , críti co de Sócrates: - IV, 80

[384]
ÍNDICE GERAL

Introdução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . XI

Bibliog rafia ......................... . .... XC III

Di á logos e m Túscu lo ...... ........ ..... ... .

Livro I .............. . .................... 3

Li vro Ir . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 95

Li vro Ili. ........................ ......... 147

Livro IV . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 213

Li vro V . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 279

Ín dice Onomástico . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 36 1

Índice Ge ra l . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 385
Esta ed ição de TEX TOS FILOSÓF ICOS li -
- DIÁLOGOS EM TÚSCULO, de Marco Túli o C ícero,
fo i composta, im pressa e encadern ada para
a Fundação Calouste Gulbenkian,
na Gráfica ACD Print, S.A.
www.acdprint .pt

A tiragem é de 750 exe mpl ares

Agosto de 2014
EDIÇÕES DA FUNDAÇÃO
CALOUSTE GULBENKIAN

Textos Clássicos
Próxima publicação:
Princípios de Política Económica
Walter Eucken

Cultura Portuguesa
Próxima publicação:
Obras Completas de Eduardo Lourenço, Vol II

Manuais Universitários
Próxima publicação:
Teoria Geral do Estado, 4. • Edição Atualizada
Reinhold Zippelius

Capa de Sebastião Rodrigues


EDIÇÕES
DA FUNDAÇÃO CALOUSTE GULBENKIAN

TEXTOS CLÁSSICOS -As raízes da cultura estão naquelas obras chamadas clássicas, obras cuja mensagem
se não esgotou e permanecem fontes vivas do progresso humano. Por isso a Fundação, ao esquematizar o seu
Plano de Edições,julgou que seria indispensável colocar ao alcance do público lusófono livros que marcassem
momentos decisivos na história dos vários sectores da civilização. Da ciência pura à tecnologia, da quantidade
abstracta ao humanismo concreto. procurar-se-á que os depoimentos mais representativos figurem nesta nova
série editorial. Para dificultar ao mínimo o acesso do leitor, todas as obras serão vertidas em português e apre-
sentadas com a dignidade e a segurança que naturalmente lhes são devidas. Integrando na língua pátria estes
grandes nomes estrangeiros, supomos contribuir para urna mais perfeita consciência da própria cultura
nacional, cujos clássicos terão também o lugar que lhes compete no Plano de Edições da Fundação Calouste
Gulbenkian. MARCO TÚLIO CÍCERO (106-43 a. C.). Pelas circunstâncias dramáticas da época em
que viveu, o período final da República Romana, marcado por sangrentas guerras civis que construíram a via
conducente ao regime imperial; pela intensidade cultural e política do tempo, assinalada pela presença de
grandes nomes pela História registados, como Mário e Sula, Pompeio e Júlio César, Marco Bruto, Octávio e
Marco António, corno o erudito Terêncio Varrão, o historiador Salústio ou os poetas Lucrécio e Catulo; pela
sua actividade pessoal corno advogado.jurista, estadista e pensador, Cícero faz jus a ser considerado uma das
figuras mais notáveis da Antiguidade Clássica, e em particular da cultura romana. A sua obra, quer sob o
aspecto quantitativo, quer, sobretudo, sob o aspecto qualitativo é indispensável a quem queira inteirar-se dos
valores legados por Roma ao Ocidente, tanto no conteúdo em função da época histórica era que foi
produzida, bem como nas transformações que a sua recepção foi conhecendo ao longo dos dois milénios que
de Cícero nos separam. Várias dezenas de discursos, judiciais e políticos, chegaram até nós, além de
impo11antes obras consagradas ao estudo da oratória e da retórica, e de escritos de índole filosófica, que desde
a Anliguidade. passando pela idade Média e o Renascimento, até ao Iluminismo tiveram grande popularidade
e não menor influência na cultura europeia. Apenas com o século XIX e o florescimento dos Estudos Clássicos,
assinalados pelo maior relevo dado à cultura grega e pela subsequente subalternização das letras latinas, a figura
de Cícero passou a ocupar um lugar secundário, marcado pelo juízo negativo de Theodor Mommsen, para
quem o orador romano não merecia consideração de maior, nem como homem. nem corno escritor, nem,
acima de tudo, como político - esmagado pela supremacia e visão de futuro do seu contemporâneo Júlio
César. Pelo que concerne em particular aos textos filosóficos de Cícero dois factos há que merecem ser
assinalados. Em primeiro lugar, e independentemente do valor que se lhes atribua como filosofia, há que
reconhecer-lhe enorme importância para o conhecimento das correntes filosóficas gregas da época heleníslica:
estoicismo, epicurismo, cepticismo, etc., dado o facto de os textos destes filósofos se terem perdido, salvo as
referências que lhes fazem outros autores, como é o caso de Cícero. É ao orador romano que Epicuro, Zenão
e Crisipo. Pírron, Arcesilau. Carnéades, e inúmeros outros, devem grande parte. ou mesmo a totalidade do
que hoje ainda sabemos sobre eles. Em segundo lugar há que ter em conta, como tem sido posto em relevo
nas últimas décadas, o valor pessoal de Cícero como filósofo. É certo que, como o próprio reconhece, não foi
um pensador original como o foram Platão, Aristóteles, Epicuro, e alguns outros. Cícero expõe nas suas linhas
gerais o pensamento dos epicuristas ou dos estóicos, mas sobretudo pensa o mlor dessas teorias quando elas
passam do ambiente restrito das escolas para a i•ida de cada um de nós. Com Cícero a filosofia deixa de ser
um saber he,mético para iniciados e toma-se no que Pierre Hadot chama 'une maniere de vivre' que deixou mar-
cas em todas as circunstâncias da sua vida e em todas as páginas da sua obra, e a este título constituem uma
leitura de grande significado cultural e um auxiliar muito válido na recuperação de valores fundamentais em
que o nosso tempo se revela tão parco. JOSÉ ANTÓNIO SEGURADO E CAMPOS. é Professor Catedrá-
tico Jubilado da Faculdade de Letras de Lisboa, em que ingressou como Segundo Assistente em 1964 e se dou-
torou em Março de 1974, com um estudo sobre a Tragédia Octávia, atribuída a Séneca. Participou em diversos
congressos e colóquios, nacionais e internacionais. com apresentação de comunicações (Londres, Boston,
Clerrnont-Ferrand) e orientou seminários sobre "Camões e 'Os Lusíadas"' nas Universidades de Colónia e
Oxford. Além de diversos artígos sobre autores gregos, latinos e portugueses, publicou: A Tragédia Octávia :-
A Obra e a Época (tese de doutoramento), a tragédia Tiestes. de Séneca, tradução do latim. introdução e notas
(Editorial Verbo); Tópicos, de Aristóteles, tradução do grego. introdução e notas (Imprensa Nacional- Casa da
Moeda); Oração contra Leócrates, de Licurgo: lseu. Discursos VI, A herança de Filoctémon, Tradução do
grego, introdução e notas (Coimbra, Classica Digital ia). Editadas pela Fundação Gulbenkian publicou ainda as
obras seguintes: Cartas a l11cílio, de Lucílio Aneu Séneca, traduzidas do latim, com introdução e notas;
Ulisseia ou Lisboa Edificada, poema de Gabriel Pereira de Castro. edição. comentário e vários anexos; Insti-
tuições-Direito Primdo Romano, de Gaio, tradução do latim, introdução e notas. O presente volume, contendo
os Diálogos em Túsculo, constitui o segundo volume da versão portuguesa dos Textos Filosóficos de Cícero,
de que já foi publicado um primeiro conjunto de textos, entre os quais o diálogo As últimas.fronteiras do bem
e do mal (em latim, Definibus).

ISBN 978-972-31-1528-4

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