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ESPECIAL LEITURA & ESCRITA

Compreender bem
para ensinar melhor
A alfabetização é uma aprendizagem complexa que, para além da aquisição do
sistema alfabético de escrita, pressupõe a inserção do sujeito no universo letrado; por
isso, é uma ampla meta educativa na constituição cognitiva, social e política

Silvia M. Gasparian Colello

C
om base em posturas arraigadas na cultura escolar brasileira, a Do ponto de vista formal, a alfa-
alfabetização poderia ser compreendida pela seguinte definição: betização é, indiscutivelmente, uma
aprendizagem de um sistema linguístico fechado que, baseado em responsabilidade da escola. No en-
normas e regras, permite a expressão do sujeito. Como responsabili- tanto, muitos estudos demonstram
dade da escola, a aquisição da língua escrita diz respeito a um estágio preliminar que as crianças, pelas próprias expe-
(os anos iniciais do ensino fundamental) com o objetivo de preparar o aluno para riências no mundo letrado, come-
a aprendizagem dos conteúdos curriculares propriamente ditos. Para tanto, os çam a aprender a língua escrita já no
professores devem ensinar pautados por um planejamento que, seguido passo a período pré-escolar. De fato, ao ou-
passo, seja capaz e controlar o caminho que vai das letras aos textos. virem a leitura de histórias, acom-
Definitivamente, essa é uma definição incompatível com os referenciais panharem a execução de uma re-
teóricos de hoje, com os apelos do nosso mundo e com o projeto de uma ceita culinária, compartilharem em
sociedade democrática. família a leitura de convites, cartas
Partindo do pressuposto de que concepções costumam justificar instân- ou e-mails, as crianças, desde mui-
cias de responsabilidade (à qual cabe a tarefa de ensinar a ler e escrever) e os to cedo, refletem sobre os papéis da
objetivos do ensino (por que ensinamos a ler e escrever), sustentar a orga- língua escrita (funções sociais), seus
nização de conteúdos escolares (o que ensinamos quando ensinamos a ler e modos de apresentação (gêneros
escrever) e as diretrizes de ensino (como ensinamos a ler e escrever), con- textuais) e de circulação (suportes),
sideramos o interesse de repensar a definição acima e, por essa via, discutir sua natureza convencional (como
possibilidades de mudança nas práticas pedagógicas. Pretendemos, acima de o formato das letras e a direção da
tudo, contribuir para os debates acerca do ensino da língua materna; debates leitura) e suas formulações típicas
necessários, sobretudo em um cenário em que ainda prevalecem, em pleno (construções diferentes da oralida-
século 21, os quadros de fracasso escolar, de altos índices de analfabetismo e de). Para além das aprendizagens
de baixo letramento da nossa população. em si, elas desenvolvem também
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uma relação de proximidade com o escritos, quanto mais se aproxima é a constituição do sujeito leitor e es-
universo da língua, o que faz toda a o ensino das práticas letradas e dos critor, isto é, aquele capaz de circular
diferença no processo formal de al- propósitos da língua escrita. Em no universo letrado com autonomia,
fabetização. Uma diferença marcada contrapartida, o poder público não usufruindo dessa condição e aten-
por oportunidades desiguais, já que pode investir na construção de um dendo aos apelos de seu mundo.
as crianças menos favorecidas costu- sistema escolar desarticulado de Na prática, isso significa um en-
mam ficar à margem das experiên- uma política de incentivo e distri- sino capaz de desenvolver inúmeras
cias letradas. buição dos bens culturais. competências vinculadas à escrita,
Como se isso não bastasse, sa- Em síntese, como a aprendiza- despertar o gosto pelo escrever, esti-
bemos que muitos jovens e adultos, gem da leitura e escrita não começa mular iniciativas de interação social,
que até se alfabetizaram, podem e não se esgota entre as paredes da fortalecer os hábitos de leitura e fa-
involuir para um estado de analfa- sala de aula, a alfabetização é uma vorecer o acesso à literatura. Assim,
betismo funcional quando são pri- reponsabilidade escolar, mas é tam- embora a alfabetização possa estar
vados de oportunidades qualitativas bém um compromisso político. Isso associada aos fins estritamente es-
de ler e escrever. Essa é uma condi- explica por que tantos países vêm colares, ao sucesso da vida estudan-
ção típica das populações desprivi- investindo em iniciativas de demo- til e até à formação profissional, é
legiadas, que têm pouco acesso aos cratização da cultura como coadju- certo que ela supera esses objetivos
bens culturais. vantes do esforço para a erradicação para alcançar a constituição pessoal
Tais constatações têm implica- do analfabetismo e da construção da e social do sujeito. No plano pessoal,
ções práticas para o ensino da língua justiça social. a escrita funciona como um instru-
materna. Em primeiro lugar, porque mento auxiliar do pensamento, fa-
não se pode, na escola, partir de um APRENDER PARA QUÊ? vorecendo a organização das ideias,
marco de conhecimento suposta- Quando se consideram os objeti- o posicionamento individual e o
mente zero, desconsiderando os sa- vos da alfabetização, é preciso ter em modo de se colocar no mundo. No
beres já conquistados pelos alunos vista que, para além da aquisição do plano social, a escrita amplia os ca-
ingressantes. Em segundo lugar, sistema alfabético e do conhecimen- nais de interação e as possibilidades
porque o esforço realizado pela esco- to das regras gramaticais, ortográfi- de inserção em diferentes contextos.
la não pode se desvincular da reali- cas e sintáticas, o que está em pauta Em consonância com os objetivos
dade social e dos contextos que dão
sentido ao ler e escrever. Alfabetiza-
-se melhor quanto mais se promove
o acesso à diversidade de materiais
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da alfabetização apresentados, vale leticamente, em uma dupla linha de
defender a aprendizagem da língua Ao ouvirem a intervenção: por um lado, garantir o
escrita não como um instrumental leitura de histórias, acesso à dimensão fechada da língua,
preliminar e preparatório para o co- isto é, o conhecimento das normas e
nhecimento, mas como um efetivo compartilharem em regras da escrita, o que permite não
conhecimento. Projetada como um família a leitura de só a adequação do texto, como tam-
conteúdo a ser desenvolvido a lon- bém a possibilidade de ser interpre-
go prazo, a aprendizagem da língua convites, cartas ou tado ou compreendido; por outro,
materna prevê o desenvolvimento
das competências linguísticas que
e-mails, as crianças, não se pode descuidar da dimensão
aberta da língua, compreendida pe-
merecem ser trabalhadas ao longo de desde muito cedo, las possibilidades de criar, articular
toda a escolaridade. Por meio de um ideias, argumentar, expressar pontos
constante processo reflexivo, o aluno desenvolvem de vista, arguir e até mesmo de fan-
aprende a usar o sistema para lidar proximidade com tasiar. Estamos nos referindo à escri-
com o conhecimento; interpretar e ta como possibilidade de tudo dizer.
comparar informações; planejar, tex- o universo da Se a língua faz sentido tanto pelo seu
tualizar e revisar textos; estabelecer a língua, o que faz ajustamento notacional (o “como se
progressão discursiva e garantir coe- escreve”) quanto pela sua construção
são no tratamento do tema; antecipar, toda a diferença no discursiva (o “o que se diz”), não po-
testar e conferir sentidos; considerar
propósitos comunicativos e buscar
processo formal de demos correr o risco de um ensino
instrumental e mecanicista (a alfa-
ajustamento aos interlocutores pre- alfabetização betização feita pelo BA-BE-BI-BO-
vistos; apreender significados e, a -BU), tampouco de uma intervenção
partir deles, estabelecer outras cone- Essas tendências monológicas livresca, que perca de vista a especifi-
xões temáticas e discursivas. de tratamento da escrita mudam ra- cidade dessa aprendizagem.
Para tanto, importa reconsiderar dicalmente quando a língua é com-
as práticas pedagógicas. Quando a preendida como uma produção con- COMO ENSINAR
língua escrita é concebida apenas textualizada, voltada para as práticas As considerações feitas até aqui
como um sistema fechado, o ensino comunicativas, para a negociação de remetem ao questionamento mais
tende a se concentrar na aquisição sentidos no encontro entre pessoas. objetivo sobre a didática da alfabeti-
do código e na assimilação de re- Na concepção dialógica defendida zação. A ideia de um método infa-
gras. Por essa via, se justificariam as pelo linguista russo Mikhail Bakhtin lível, projetado e controlado passo
atividades de silabação, cópia mecâ- (1895-1975), escrever é um exercício a passo, que possa resultar na pro-
nica e exercícios do tipo “faça con- interativo de construção de signi- gressão previsível de aprendizagem
forme o modelo”. Quando a escrita ficados, que se organiza a partir de (das letras às sílabas, das sílabas às
é tomada como simples expressão um universo polifônico (o conjunto palavras, das palavras às frases, das
de ideias, corre-se o risco de tratar de ideias que circulam em um dado frases aos textos), funciona como
o texto como unidade autônoma, contexto) e de posturas responsivas, um ícone de segurança para os pais
independentemente dos contextos, isto é, de sujeitos que se manifestam e professores. Eles se agarram a essa
interlocutores e propósitos sociais. reagindo às esferas discursivas. Vem promessa como garantia de realiza-
Essa postura nos permite compreen- daí a convicção de que, no ensino, ção de seus desejos, com a certeza
der a lógica equivocada dos exercí- vale a pena substituir as unidades ar- de cumprir metas pela eficiência
cios de interpretação de texto que, ao tificiais da língua (as letras, as sílabas, dos planejamentos preestabelecidos.
perguntar “o que o autor quis dizer?”, as palavras e até mesmo as frases iso- Ainda que se possam compreender
pressupõem uma única via de enten- ladas) por textos com efetivos signi- as boas intenções dessas expecta-
dimento, como se a língua fosse um ficados e propósitos comunicativos. tivas, o princípio da aprendizagem
recurso inflexível de tradução das Com base nessa postura, o en- como um resultado inevitável do en-
ideias. sino deve incidir, equilibrada e dia- sino peca justamente por não con-
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siderar a complexidade das relações no papel como aquele que, na pro- das suas experiências com o univer-
na escola, dos modos de assimilação dução textual, enfrenta os dilemas e so da escrita, ativando seus saberes
e dos processos de construção do desafios do bem escrever. Tudo isso prévios, mas também lançando mão
saber. Como os alunos aprendem faz parte da alfabetização! de hipóteses na direção de novos sa-
com diferentes experiências, por di- beres. Como protagonistas desse pro-
ferentes vias, de diferentes formas e PERSPECTIVAS cesso construtivo, vão se envolvendo,
com diferentes ritmos, não há como Em face dos referenciais teóricos, através de textos, em práticas refle-
controlar esse processo, tampouco dos apelos da nossa sociedade e do xivas sobre a língua de modo a com-
como esperar uma trajetória linear projeto de uma sociedade democrá- preender a sua complexidade e de-
de progressão cognitiva. tica, os educadores não podem ficar senvolver competências de produção,
Assumir um posicionamento indiferentes aos desafios da educa- revisão e interpretação. Na impossi-
didático mais flexível não invalida, ção e, particularmente, de formação bilidade de balizar os caminhos des-
contudo, a necessidade do planeja- dos sujeitos leitores e escritores. Ain- sa aprendizagem pelo planejamento
mento do professor, assim como o da que o analfabetismo e o baixo le- linear e cumulativo do ensino (como
delineamento de prioridades para tramento no país não sejam proble- se fosse uma trilha única e inflexível
alavancar a aprendizagem. Muito mas só da escola, eles são problemas de transmissão de conhecimentos),
pelo contrário, o papel do professor é também da escola e na escola devem os professores devem criar oportu-
justamente o de organizar situações ser enfrentados a partir da revisão nidades de aprendizagem que, por
didáticas, propor tarefas e prever de posturas. De fato, instituir novas meio de atividades interativas, refle-
modos de interação em um contexto práticas em sala de aula sem mudar xivas e sempre vinculadas aos propó-
que possa contemplar tanto a impre- concepções de ensino e de educação sitos comunicativos, possam favore-
visibilidade nas dinâmicas dos gru- é impor ao sistema reformas apenas cer hábitos da leitura, estratégias de
pos como a singularidade dos pro- periféricas. Assim, ao repensar me- interpretação, acessos ao mundo da
cessos de cada aluno. Ao contemplar tas, explicitar reducionismos, postu- literatura, interesses pelas práticas de
as diversidades e propor desafios, o lar diferentes bases teóricas e valori- escrita e mecanismos de organização
trabalho do professor, em vez de se zar aspectos antes desconsiderados, do pensamento. Nesse sentido, alfa-
configurar como mera transferência é possível, ainda que provisoriamen- betizar é promover uma condição ao
do conhecimento, passa a se consti- te, afirmar que a alfabetização é uma sujeito que, pelas possibilidades de
tuir como um espaço de problemati- aprendizagem complexa que, para compreender, torna-se senhor de sua
zações e descobertas. Nele, os alunos além da aquisição do sistema alfabé- própria linguagem. w
são convidados a refletir, considerar tico de escrita, pressupõe a (e ao mes-
outros pontos de vista, rever conhe- mo tempo implica a) inserção do su-
cimentos prévios, testar hipóteses, jeito no universo letrado, razão pela LEITURAS SUGERIDAS
aprender e ampliar suas esferas de qual ela se configura como uma am- Alfabetização e letramento:
circulação. pla meta educativa na constituição pontos e contrapontos. V. Aran-
Esse princípio geral, válido para cognitiva, social e política do sujeito. tes. Summus, 2010.
qualquer situação de aprendiza- Trata-se de formar o sujeito interlo- Língua materna nas séries ini-
gem, é particularmente oportu- cutivo, isto é, aquele capaz de intera- ciais. L. Coelho (org.). Vozes,
2009.
no na conquista da língua escrita, gir e de se comunicar, participando
A escola que (não) ensina a es-
incluindo tanto o aluno que, pela das práticas de leitura e escrita pró- crever. S. Colello. Summus, 2012.
primeira vez, compreende o caráter prias de seu mundo. Ao aprenderem
O ingresso na escrita nas cul-
convencional das marcas impressas a ler e escrever, as crianças partem turas do escrito – Seleção de
textos de pesquisa. E. Ferrero.
A AUTORA Cortez, 2013.
Alfabetização e seus sentidos
Silvia M. Gasparian Colello é pedagoga, doutora e livre-docente pela Faculdade – O que sabemos, queremos e
de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Docente dessa mesma ins- fazemos? I. Frade (org.). Ofici-
tituição, dedica-se à pesquisa sobre psicologia da educação e ensino da língua na Universitária. Editora Unesp,
escrita. 2014.
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