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Cadernos da Diversidade

Teoria Queer:
um aprendizado
pelas diferenças

Richard Miskolci

z- edição
revista e ampliada
Teoria Oueer:
um aprendizado
pelas diferenças

Richard Miskolci

. 2a edição
revista e ampliada

2a reimpressão

autêntica {l}11de p- ~. _0-,""'"


Copyright © 2012 Programa de Educação para a Diversidade - ProExlUFOP

COORDENADORA DA SERIE CADERNOS DA DIVERSIDADE

Keila Deslandes

CONSELHO EDITORIAL
Adriano Nascimento - UFMG
Carla Cabral - UFRN
Érika Lourenço - UFMG
Keila Deslandes - UFOP
Mônica Rahme - PUC Minas
Richard Miskolci - UFSCar
Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças teve aco-
PROJETO GRÁFICO
lhida surpreendente e esgotou sua primeira edição em poucos
Tales Leon de Marco
meses. Diante de seu sucesso, decidi aprimorá-lo nesta segun-
EDITORAÇÃO ELETRONICA, REVISÃO E PRODUÇÃO GRÃFICA da edição, que incorpora sugestões assim como reflexões sus-
Autêntica Editora
citadas no diálogo com alguns de seus leitores. Dessa forma,
o livro ganha ainda mais originalidade em relação à sua cria-
ção a partir da Aula Magna proferida na abertura do curso de
Educação para Diversidade e Cidadania, em agosto de 2010,
na Universidade Federal de Ouro Preto.
Mais uma vez, agradeço a Keila Deslandes pelo convite
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
para a Aula Magna e, em especial, pelo incentivo a transformá-Ia
(Câmara Brasileira do Livro. SP.Brasil)
neste livro. Sou grato a Moisés Mota por ter transcrito a fala
Miskolci, Richard
Teoria Queer : um aprendizado pelas diferenças / Richard Miskolci. - original e a Larissa Pelúcio por sua leitura atenciosa e pelas su-
2. ed. rev. e ampl., 2. reimp. - Belo Horizonte: Autêntica Editora: UFOP - Uni-
versidade Federal de Ouro Preto, 2015. -- (Série Cadernos da Diversidade; 6)
gestões para a primeira versão do texto. Estendo minha grati-
dão a Rossana Rocha Reis, cujo convite recente para participar
Bibliografia
ISBN 978-85-65381-28-4 de uma mesa sobre Direitos Humanos, Diferenças e Educação,
1. Controle social 2. Educação 3. Filosofia 4. Identidade de gênero no Instituto de Estudos Avançados da USP, serviu de impulso
5. Identidade sexual 6. Identidade social 7. Sexo - Diferenças (Educação) para que eu desenvolvesse algumas ideias que estavam apenas
8. Teoria Queer I. Título. 11.Série.
esboçadas na primeira edição e agora fazem parte da segunda.
12-04100 CDD-306.43
Sobretudo, espero que esta nova edição, revista e amplia-
fndices para catálogo sistemático:
1. Diferenças· Teoria Queer : Sociologia 306.43 da, agrade ainda mais aos/às leitores/as e cumpra seu objetivo
de ser uma introdução clara à Teoria Queer e sua promissora
incorporação na área educacional brasileira.

Richard Miskolci
São Paulo, setembro de 2012.
--
Sumário

Introdução 9

Origens históricas da Teoria Oueer 21

Estranhando a Educação 37

Um aprendizado pelas diferenças 55

Referências 69

Anexo
A guerra declarada contra o
menino afeminado - Giancarlo Cornejo 73
------------------------

. Introdução

Ainda recordo como, ao acordar, colocava meu unifor-


me e seguia para a escola. Era o final da década de 1970, e
vivíamos sob a presidência do general Figueiredo, a última
do regime militar. No pátio, tínhamos que formar filas: duas
para cada sala de aula, uma de meninos e outra de meninas.
Começavam aí as "brincadeiras", nas quais os meninos mais
robustos empurravam os mais frágeis para a fila feminina,
espaço desqualificado em si mesmo. Só sossegavam diante do
sinal para o hasteamento da bandeira cantando o Hino Na-
cional. Depois entrávamos na sala, de forma ordenada, mar-
chando feito soldados em miniatura. Por fim, levantávamos
em sinal de respeito, esperando pela entrada da professora,
uma senhora rabugenta e conservadora.
Na sala, as carteiras eram colocadas em ordem rígida e
a ninguém era permitido trocar de lugar. li\: professora não
titubeava em mostrar uma régua grande, feita de madei-
ra, com a qual dizia "colocar na linha" os indisciplinados.
Nunca a vi utilizar a tal régua, mas a ameaça de usá-Ia era
suficiente para manter uma sombra temerosa sobre os es-
tudantes, como se uma punição estivesse sempre à espera.
Medo que se somava a outros, ainda maiores, como o de se
tornar a vítima das brincadeiras cruéis dos meninos mais
violentos, sempre à espreita para exercitarem sua "valentia"
quando não havia nenhum funcionário por perto. ~pecial-
mente erigosos eram o banheiro e a saída, espaços limina-
res daquela ordem disciplinar asea a na ameaça constante
de violência.

9
Tinha apenas sete anos, daí não perceber que a minha deixado de ser carinhoso para adotar expressões de afetivi-
turma, a A, concentrava os estudantes mais privilegiados eco- dade que sempre terminavam em pequenas torturas, como se .
nomicamente, e, não por acaso, era uma sala massivamente um abraço ou um carinho entre homens tivesse que resultar
branca. A única figura não branca era a da empregada negra em uma luta, um soco ou um machucado. Ele não era exceção,
na cartilha, uma personagem secundária na história protago- antes a regra em uma época em que meninos eram submeti-
nizada por uma família branca e estereotipada cuja vida seguí- dos a uma pedagogia da masculinidade até se tornarem adul-
amos em lições de alfabetização que se confundiam com um tos, alguns, como ele, para sempre traumatizados pela recusa
aprendizado de como todos deveríamos ser em um mundo ide- da afetividade que lhes era imposta, por uma (delformação
al. Se por ideal se compreendesse casais desiguais sob o poder que os tornava incapazes de compreender as mulheres como
masculino, no qual mulheres eram restritas à casa, à família e iguais, tampouco de confiar em outros homens como confi-
ao cuidado, e os filhos, sempre um casal, reproduziriam, no dentes de seus temores ou dores.
futuro, o modelo dos pais. Como um menino que, como eu, entrou na escola incerto
A despeito de estar em uma escola pública, vivia quase ao sobre seu lugar no mundo podia sair do segundo grau como
abrigo da realidade brasileira, em um ambiente homogêneo e ele? Por que eu, diferentemente, passei anos resistindo a ser
autoritário organizado para inculcar valores da ditadura mili- como esperavam que eu fosse até deixar o secundário e enca-
tar instaurada pelo Golpe de 1964, o qual estudávamos como rar o alistamento militar obrigatório como um momento de
tendo sido uma "revolução': Daqueles valores, destaco o culto terror? Nossas histórias correram paralelas, divididas por pou-
da ordem, da disciplina e da autoridade, frequentemente sub- cos anos de diferença etária, mas cindidas por um processo de
sumidos em alguma figura masculina como a do Presidente da abertura política que trouxe a sociedade brasileira de volta à
República, o General cujo nome estampava o cabeçalho diário democracia. Só pude conhecê-Ia no último ano do secundá-
de meu primeiro caderno escolar. rio, quando ocorreu a primeira eleição livre para presidente,
Sob regime ditatorial militar, vivia sob a sombra de uma )5 anos depois do Golpe Militar.
ordem política e social que girava em torno de um poder emi- Marcado por um processo educacional-autoritário e vio-
nentemente masculino. A masculinidade se confundia com a lento, conheço suas marcas tanto naqueles que saem como es-
violência, em um jogo injusto e cruel para as meninas, mas perado quanto nos que resistem ou são expelidos. Essa memória
também para os meninos que, como eu, não gostavam de fute- sombria sobre minha geração me veio à mente enquanto pen-
bol, tampouco queriam emular o comportamento dos adoles- sava em como transformar a Aula Magna que proferi em Ouro
centes que, com 18 anos, adentravam na vida adulta vestidos Preto, em agosto de 2010, na abertura do curso Educação para
em seus uniformes do serviço militar obrigatório. Foi nele que a Diversidade e Cidadania, neste livro, que aspira ser uma breve
vi um de meus primos, antes amoroso, ser brutalizado até se e modesta contribuição para - quiçá - começar a transformar
tornar o que se compreendia como ~ a realidade vivenciada por aquelas e aqueles que viveram um
a uele que dominava as mulheres e des rezava "bichas': longo e doloroso conflito com os objetivos educacionais.
Um "homem de verdade" ho·e ercebo, era o que impu- Sobreviventes das tecnologias sociais que buscam e~-
nhaseu üõder aos outros e a si mesmo à custa de sua opria quadrar cada um em uma identidade, adequar cada corpo a
afetividade. DaI meu primO, desde o uso do uniforme, ter
- .
um único gênero, sabem como a educação auxilia a fazer da
.-I

10 11
fi~ância e da adolescência fases dirigidas para a construção Iniciarei com as origens históricas do queer na década de .
de homens e mulheres ideais; leia-se: pessoas "normais': "cor- 1980, mas é importante ter em mente que ele se insere em um
retas", como nossa sociedade nos faz crer que devemos ser. cenário aberto pelos novos movimentos sociais surgidos duas
Sabem também que entre o ideal e a realidade jaz uma história décadas antes, sobretudo o movimento pelos direitos civis nos
invisível de violências às quais alguns sucumbem. Estados idos, o movimento feminista e o movimento ho-
A maioria das crianças e adolescentes - em uma busca mossexual. Esses movimentos que ganham força e visibilidade
compreensível de aceitação e sobrevivência - aceita ou se dei- na época a contracultura costumam ser associados à emer-
xa moldar pelas demandas educacionais cujo conteúdo nor- gência de novos sujeitos históricos que passam a demandar di-
mativo violento - mais frequentemente do que gostaríamos de reitos e também a influenciar na produção do conhecimento.'
constatar - não é reconhecido nem mesmo pelos educadores/as A partir da segunda metade da década de 1980, há um
como algo a ser discutido e questionado. Trata-se de um fe- processo de reavaliação desses movimentos, seus sujeitos e de-
nômeno em que o pressuposto das boas intenções exime os mandas priorizadas. É o momento em que feministas negras,
meios de uma análise mais detida e questionadora. O desafio e do então chamado Terceiro Mundo, começam a criticar o
que encaro aqui é o de auxiliar a tornar visíveis essas violê?- caráter branco, de classe média e ocidental do feminismo an-
cias, descrevê-Ias e analisá-Ias de orma a torná-Ias também terior. Em movimento similar e articulado, o movimento ho-
objeto de crítica e re~valiaçã~ Nes~o, encontro na Teoria mossexual e o feminista passam a ser questionados por aque-
Queer um conjunto de reflexões ~ consi ero sãIutares no les que viriam a ser conhecidos como queer.
cfesenvolvimento e um novo olhar para a educa ão.
\... - - - O segundo capítulo será sobre o que seria a incorpora-
O objetivo que guia esta obra é o de refletir sobre os laços ção de uma perspectiva não normativa na educação. Claro
profundos entre educação e normalização social, entre a es- ~~1'a Teoria Queer vai ser ressignificada na realidade bras i-
cola e os interesses biopolíticos, entre o sistema educacional ~a, vai ser transformada e poderá virar outra coisa, mas me
e a imposição de modelos de como ser homem ou mulher, parece profícuo tentar refletir, mesmo que preliminarmente,
masculino ou feminino, hétero ou homossexual. Refletir para sobre quais as propostas iniciais do queer e como ele está flo-
~. nar e ro or ai o di into, não normalizador ou com- rescendo no Brasil. O que vejo nas iniciativas, lendo os livros
.pulsório, um ed~ar fincadqjiãn.em.modeloseconteúdos que produzidos, participando de eventos, é que, muito frequente-
'-Ú... cedem, mas, antes na ex eriência mesma do a12render. mente, as pessoas tomam o queer como sinônimo de questões
Vejo o aprendizado como algo que se constrói incessan- de homossexualidade enquanto a proposta queer pode ser
temente em um diálogo com o que nos causa estranheza, ou vista como mais complexa e ampla do que isso. Tentarei di -
seja, no contato com as diferenças. Com isso em mente, dividi cutir também sobre como está ocorrendo essa incorporação
o livro em três. No primeiro capítulo, buscarei apresentar um teórica e prática, cotejando com essa proposta de ir além da
panorama de como o queer surgiu como política e virou teo-
ria, depois buscarei esclarecer o foco dtssa vertente de estudos I Sobre a emergência desses novos movimentos sociais e seu impacto na produção
nos regimes de normalização a partir da experiência escolar acadêmica. consulte o livro de Miriam Adelman intitulado A voz e a escuta: encon-
para, por fim, expor alguns dos desafios educacionais apresen- tros e desencontros entre a teoria feminista e a sociologia contemporânea (2009). em
especial os dois primeiros capítulos. que lidam com a nova esquerda. a contracultura
tados por uma perspectiva inspirada pelas diferenças. e a gênese de novas perspectivas teóricas.

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A heteronormatividade seria a or resen-
sexualidade ou da ideia de que apenas mencionar ou trazer te~ ~al tod~ mundo é cri;-do para ser heterossexual, -ou .
para a discussão a respeitabilidade e o direito ao reconheci- - mesmo que não venha a se relacionar com.pessoas do sexo
mento das pessoas LGBT seria queer. .oposto - para que adote o modelo da heterossexualidade em
Nesse segundo capítulo, espero apresentar como podemos sua vida. Ga s e lésbicas normalizados, ue ade~ um_l?a-
questionar <22!!P to olhar ne~o no ual se baseou a ed ca- drão heterossexual, também odem ser a e nor-
ão até ho' e como sen~a perspectiva beteross~. Infe- matividade. Não por acaso, violências atualmente chamadas
lizmente, todo mundo é formado para acreditar que aprende de homofobia não se dirigem igualmente a todos/as os/a ho-
a ser professora ou ser professor, a educar, de forma neutra. mossexuais, mas, antes, muito mais frequentemente a quem
Como se fosse possível entrar na sala de aula deixando do lado não segue esse padrão. Nesse sentido uer se'am heterossexu-
de fora toda a nossa história de socialização. Isso é impossível
porque todos/as trazemos uma bagagem cultural para nossas
atividades profissionais, mas, sobretudo, porque educar nada
ais ou homossexuais, todos podem ser normalizados e precon-
ceituosos como Outro, aquele que vive, se comporta ou pensa
diferentemente .•..
Muitos homossexuais também norrnalízados
-
tem de neutro, seus métodos e seus conteúdos têm objetivos ajudam na estigmatização e na percepção negativa daqueles
interessados. Entre eles, destacarei aqui como essa ilu~ão de que não cabem na heteronormatividade. Prometo explicar isso
neutralidade era, no fundo, cúmplice de um dos pressupostos mais detalhadamente no segundo capítulo.
fundamentais da vida social contemporânea, que é o de ue Nesse capítulo tocarei também na questão das diferen as
todos são heterossexuais até prova em contrário. Essa suposta e da diversidade. Tentarei problematizar um pouco a tendên-
neutralidade da formação dos professores e da própria estru- cia a misturar essas duas perspectivas em nosso país. O termo
tura da escola fazia dela uma das principais ferramentas para "diversidade" já se arraigou na sociedade brasileira. Quase to-
a c~trução da heterossexualidade nã~como opção, mas s@ dos os prog;:amas governamentais e slogans dos movimentos
mo al o com ulsório. sociais ~rií com esse termo, mas o que buscamos expressar
A pensadora feminista Adrienne Rich afirmou, em um fa- usando a palavra "diversidade" pode ser repensado e adquirir
moso artigo do início da década de 1980, que nossa sociedade
• outfo significado, inclusive o de lidar com as diferenças. O ter- c::...
se assenta no que denominou de heterossexualidade compul- mo "diversidade" é ligado à ideia de tolerância.ou de.convivên-
sória.? Fala-se tanto de orientação sexual, opção sexual, mas cia, e o termo "diferença" é mais ligado à ideia do r.econheci-
---ninguém ain a pensa na heterossexua i a e como a go opcio- ~ mento como transformação social, transformação das relações ;> 9'
- nal. O queer traz esse tipo de provocação. Daí, nesse segundo de poder, do lugar que o Outro ocupa nelas.' ç,., ./
,L

capítulo, eu procurarei refletir sobre um dos focos da Teori Quan Q ocê lida com o diferente, você também se trans- \ ~
Queer: a heteronormativida~e. C; forma, se coloca em questão. Diversidade é "cada um no seu .•. i
t
"'.- \

2 Refiro- me aqui ao seu artigo Compulsory Heterosexuality and Lesbian Experience -;> J Em artigo esclarecedor intitulado «Adiferença e a diversidade na educação': Abramo-
(A Heterossexualidade Compulsória e a Experiência Lésbica), publicado no infcio wicz, Rodrlgues e Cruz afirmam: «Aspolíticas socíaís e educacionais do Brasil exaltam a
da década de 1980 e reconhecido por muitos/as como a primeira.discussão a ex- nossa 'diversidade criadora: ao mesmo tempo em que há um silenciamento das diferen-
plicitar a heterossexualidade não como algo natural, mas, antes, o resultado de um ças no campo da educação e isto tem significado a construção da heteronormatividade
conjunto de práticas sociais que a impõem como a forma «correta" de se relacionar como norma e normalidade e a estética branca como modelo do belo" (2011, p. 93).
amorosa e sexualmente. ~
/'
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quadrado", uma p-ersp~ctiva ue com _reende o Ourtro como Uma perspectiva queer exigiria repensar a educação a
incomensuravelmente distinto de nós e com o qual podemos. partir das experiências ue foram histori alterci- .
conviver, mas sem nos misturarmos a..ele~ pers]:pectiva d~ za as, até mesmo i n
~ iferen a, estaTIlos todos implicados/as na criação desse Ou- sar nossa sociedade b uper~-
tro, e quanto mais nos relacionamos com ele, o rec~mhece~os ~ E um desafio, mas taI1JPém algo muito promissor e que
como parte de nós mesmos,-.não apenas o toleramo , m~ dl~ ~ode a~~iar na transfo~1,a~ão social. Para que seja possível,
logamos com ele sabendo que essa relação nos tran~forma~. e necessano superar o b}nano hetero-homo, a ideia poderosa
e altamente contestávef de ue a sociedade se div· ena~
O último capítulo será uma breve reflexão sobre possibili-
em heterossexuais p/homossexuais, É importante também ir
dades diversas das ainda existentes e predominantes de educar.
além das meras tentativas de proteger aqueles que o movimen-
De uma forma muito simplificada, eu diria, a partir do pensa-
to social chama de pessoas1Q!IT (lésbicas, gays, bissexuais,
mento do filósofo francês Michel Foucault, que o dispositivo
travestis e transexuais), um termo que nãQ...dá.conta...do
..grande
L d e~ualidade..preGis eendido e enfrentado. "Dis-
espectro de gente que não se enquadra no mcdelo.aeterosse,
sit-ivo"é um.termo que se refere ao conjunto de discursos e
xua ue nã em nenhuma dessas letras.
pr-áticas sociais que criam uma problemática social, uma pauta ,
araePolíticas governamentais, discussões teóricas e até mes- ~ Considero que seria mais promissor tirar a própria he
mo embates morais. A sexualidade é um desses dispositiv:os ~ terossexualidade da sua zona de conforto, trazer ao discurso
históricos, e sur iu, aos poucos, a artir do século XVII, até cç ~ c suas normas e a hegemonia cultural centrada nela, de forma a
_
adquirir os contornos resentes ue fazem e a es- ~ questionar até mesmo o que seria o normal. Nessa perspectiv I
soas ~ comPIeendam a partir de sua sexualidade. Felizmente, i(, queer, a ideia.seria_traze~ ao discurso as experiências do estig~
_es~reducionismo não pode mais ser aceito sem resistência.' \. ma e da humilhação social daquelas pessoas que são frequen-
temente xingadas, humilhadas por causa da sua não norma-
A sexualidade, compreendida como um aparato, permi- ~
tividade de gênero. Isso tudo com o objetivo de modificar os
tiu que o Estado e as instituições nos controlassem por meio
aspectos da educação que ainda impõem, compulsoriamente,
daquilo que Foucault denominou "pedagogização do sexo':
as identidades.
Ou seja, um dos grandes investimentos bio olíticos do Estado
sempre foi na e ucação, e a proposta ueer é de justamente Em 2009, como coordenador do curso Gênero e Diver-
superar a e a o ização do sexo e transformar a osi ão da sidade na Escola da UFSCar, eu via um grande interesse, em
educação não mais com~bserviente aos interesses estatais e todo o Brasil, por esses temas que pincelei aqui. O curso de
bio olíticos, mas muito mais comprometida com as demandas lá foi para vários Estados, e era perceptível em São Paulo, no
da sociedade civil, organizada ou não.' interior do Mato Grosso, no extremo sul do país, no interior
da Bahia, uma preocupação e um interesse extremamente
louváveis de educadoras em querer entender com quem es-
tavam lidando na sala de aula. Mas esse "incômodo" com as

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ferramentas educacionais incapazes de fazer frente à realida-
de de pessoas fora da norma, essa vontade de acolhê-Ias ao de criar pessoas "normais': leia-se, disciplinadas, controladas e
invés de julgá-Ias, frequentemente se expressa em questões compulsoriamente levadas a serem corno a sociedade as quer.
como: Como chamo tal pessoa? O que é tal aluno? Ele é tra- Em outras palavras, a escola Rune e erse e a ueles e aque-
vesti? Ele é transexual? E foi um desafio lidar com essas ques- las que escapam ao controle, marca-os como estranhos, " nor-
mais': indesejáveis.
tões, foi muito difícil explicar que era justamente isso que a
gente não queria, não queríamos embarcar no processo de _AI.ém d.o,v~olen o pro~~ma descrito, a normali-
criar um escaninho das espécies sexuais alocando cada uma ~açao identitária tem ~o déficit: o fato de que se funda
em uma caixa ou identidade. Evitar esse ti o de aborda em em modelos a-históyKos e fixos de como as pessoas são ou
classificatória é uma forma de realmente transformar a expe- deveriam ser. Mas nen uma identi a e éllx, , urãnte a
nencia e ucacional. - vida, as pessoas realmente mudam. Constatações como es-
A esfera da educação não precisa, e, na minha opinião, sas são amplamente corroboradas por estudos sociológicos
nem deve, seguir essa lógica que busca trocar a for~ão he- e antropológicos, os quais, especialmente quando analisam
terossexista existente por outra simplesmente binária, como questões de gênero e sexualidade, mostram uma instabilida-
ct que opõe homem e mulher, masculino e feminino, hétero e de crescente na forma como as pessoas se compreendem e se
homo. Ou, ainda, por outra circunscrita aos termos de uma relacionam na sociedade contemporânea." Disso resulta um
sigla (LGBT), um número limitado de formas de identifica- desafio extra, o de tentar superar a ideia de uma educa ão
ção. E~utras alavr~ouco adíanta.ape ocar os si: sexual pensada como orientação, ue acabava resultando em
nais: se antes se educava todo mundo para a heterossexualidade, uma normalização das identidades e das práticas. ientar
punindo ou ignorando quem não a seguisse, passar a educar frequentemente se confunde corrrdirecionar esejo, indu-
para o binário, para ser hétero ou homo. Além de manter o. zi-lo e, talvez, até mesmo criá-lo segundo os interesses de
uma época e sociedade."
impulso norrnalizador, apenas ampliando o número de pos-
sibilidades para um conjunto restrito de identidades disponí- Além disso, esse tipo de educação sexual baseada no in-
veis no presente, essa forma de educar passa a exercer ainda tuito de orientar sexualmente acaba tambénÍgerando a ten-
mais pressão social sobre crianças ou adolescentes, pessoas dência a reforçar o pressuposto de que falar de sexualidade é
em formação, para que se definam logo e adotem uma id~- falar do biológico ou de prevenção de doenças sexualmente
tidade. Essa forma de pressão é, em si mesma, uma violência transmissíveis. ro osta ueer é ensar a sexualidade e ou-
que podemos evitar. tras diferenças, como culturais e políticas, como arte da vida
Na perspectiva queer, as identidades socialmente pres- cotidiana, e nao a e an o as pessoas apeJlas..cOIDoassunto d;
saúde ' ic.
critas são uma forma de disciplinamento social, de controle,
de normalização. Como mostra minha experiência pessoal
durante a ditadura militar, a escola tenta, pelos mais diversos • Sobre essa instabilidade das identidades e práticas sexuais, consultar Pelúcio (2009),
meios pedagógicos, criar meninos masculinos e meninas femi- Duque (2011), e Leite [únior (2011).

inas. Portanto, o ensino escolar participa e é umdos princi- 7 Sobre a ~uestão, consultar meu livro O desejo da nação: masculinidade e branquitude
no Brasil de fins do XIX (2012), um estudo histórico e sociológico sobre as relações
pais instrumentos de normalização, uma verdadeira tecnologia entre o desejo e os interesses políticos a partir da análise de três romances: O ateneu,
Bom crioulo e Dom Casmurro.

18
19
CapítuJo I
De uma forma geral, o queer se associa a um certo movi-
mento contemporâneo na área de educação que busca re en-
sar a sua forma de atuar e o seu papel social. O queer se alinha
Origens históricas
a uma questão que passou a ocupar a mente de educadõreSê da Teoria Oueer
educadoras: como transformar a educação escolar, algo que já
foi um dos aparatos estatais de controle do disci linamentã
das pessoas, em algo mais sintonizado com a sociedade civil,
com as demandas de reavaliação não só dos meios de educar,
-:
mas também dos seus objetivos? Uma questão que se desdobra o que hoje chamamos de gueer, em termos tanto políti-
em muitas outras, como: A gente vai educar para quê? Qual cos quanto teóricos, sur iu como um im ulso crítico em rela-
forma de educar pode transformar as normas e convenções ção à ordem sexual contem --ºIfu!.ea,possivelmente associado à
culturais, flexibilizá-las ao invés de impô-Ias ferreamente e às contracu tura e às emandas daqueles que, na década de 1960,
custas da humilhação de alguns ou do sofrimento de todos/as? eram chamados de novos mccdmentos.socigjs.
Os três principais "novos" movimentos sociais foram o
movimento pelos direitos civis da população negra no Sul d~s
stados Unidos, o movimento feminista da chamada segunda
onda e o então chamado movimento homossexual. Eles são
chamados de novos movimentos sociais porque teriam surgi-
do depois do conhecido movimento operário ou trabalhador. e
1 r
porque-tscuxeram ao espaçc.públícc.demandas.que iam além
d de redistribuição econô ica. Na verdade, essa classifica-
ção foi feita a posteriori, tentando superar, com sucesso apenas
parcial, uma perspectiva "economicísta" qué'deixou de reco-
nhecer a importância do feminismo desde sua primeira onda,
na qual se constitui como movimento social muito antes, já
em sua luta pelo direito ao voto e à educação para as mulhe-
res ainda no século XIX. A vi - es movimentos
m "novos t ai um olhar "eurocêntrico': ois atri-
bui caráter de vanguarda a enas ao movimento o erário clãs
sociedades industriais do Ocidente, ignorando o movimento
abolicionista que luto p,e@.liberta ão os escra:
-
m século
antes, sobretudo em países como o Brasil e os Estados Unido .
O que havia de novo nos movimentos sociais da década
de 1960 era uma maior participação de cama as e c asse mé~
dia e até populares em lutas já existentes, mas que passaram a

21
20
adotar um novo repertório de demandas em um cenário políti- os tempos, associado, no caso norte-americano, a uma recu-
co em que as instituições tradicionais como o Estado e os ar- sa estatal em reconhecer a emergência de saúde pública. Ao D.

e) tidos passavam a ver questionada sua ~epresentatividade e/o~ contrário do Bras· frentamentn.da eRidemiã
~ autoridade. De forma geral, esses movimentos afirmavam que.. aproximou Estado e movimento social em meio ao processo
~, o privado era político e que a desigualdade ia além do econô- -de-redem29"afização vivido depois de 20 anos de governo
1; ~_!llico. Ai uns, mais ousados e de forma vanguardísta.ramlzsrn militar, lá nos Estados Unidos houve um verdadeiro cho ue
'i: zçomeçaram a aponta que o corpo, o deseju.e a..sexualidade,
r entre asiemandas sociais e a recusa do governo conservador '"
tópicos antes ignorados, er~ alvo e veículo pelo qual s~ de Ronald Reagan em adotar quaisquer medidas.
pressavam relações de poder. A luta feminista pela contracep- A epidemia é tanto umfato híológíco como-uma-eonstru-
çãC;-sobo controle das próprias mulheres, dos negros contra ão social. A aids foi construída culturalmente e houve uma
os saberes e práticas racializadores e dos homossexuais contra decisão dedelimitá-Ia como DST. Uma epidemia que surge
o aparato médico-legal que os classificava como perigo social a partir de um vírus, que poderia ter sido pensada como a
e psiquiátrico tinham em comum demandas que colocavam hepatite B, ou seja, uma doença viral, acabou sendo compre-
em xeque padrões morais. Assim, em termos políticos, o queer endida como uma doença sexualmente transmissível, qua-
- começa a surgir nesse espírito iconoclasta de alguns membros se como um castigo para aqueles que não seguiam a ordem
dos movimentos sociais expresso na luta por desvincular a se- sexual tradicional." Então, a aids foi um choque, e da forma
xualidade da reprodução, ressaltando a importância do prazer como foi compreendidéLtoJ"no~se uma resposta conservadora
e a ampliação das possibilidades relacionais. à Revolu ão Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela então
Intelectualmente, esse impulso crítico inicial originou conhecida «geração do desbunde" No mundo todo, essa reação
obra~rnicas dispersas em vários países, como o Brasil, a teve conse uências olíticas iamais superadas e também na
França e os Estados Unidos. Dentre os precursores da Teoria forma como as pessoas aprenderam sobre si próprias, sobre a
Queer, é importante citar G.!!Y_Hoc.9.uegg!1em~ensadorf!:!illcê,s sexualidade, e na maneira como vivenciam seus afetos e suas
que, no início dos anos 1970, publicou Le désir homossexuel (O vidas sexuais até hoje.
desejo homossexual), um livro sobre o papel do medo da ho- Mas, nos Estados Unidos, o que se passou? A epidemia
mossexualidade na definição da ordem político-social do pre- de aids mostrou que, na primeira oportunidade, os valores
sente e alguns artigos da antropóloga feminista Ga le Rubin, em conservadores e os grupos sociais interessados em manter as
especial seu ensaio Thinking Sex (Pensando sobre Sexo, 1984).8 tradições se voltaram contra as vanguardas sociais. Daí parte
Apesar dessa origem dispersa, e ainda pouco explora- do movimento gay e lésbico ter se tornado muito mais radical
da, a política e a Teoria Queer como a conhecemos hoje se do que o anterior, criticando os próprios fundamentos de sua
cristaliza hist~ente na segurida metadeda década de luta política. A aids ortanto l2.! t!!!} catalizador biopolítico
1980, nos Estados Unidos, quan o o surgimento da epide- que gerou formas de.resístêncía mais.astutas e radicais, mate- <:;>

mia de aids gerou um dos maiores pânicos sexuais de todos ~lizadas no ACT UP, uma~lizão ..ligada-à-questão da aids .•

--,
• Infelizmente, não há ainda uma tradução para o português do livro de Hocquenghem, • Sobre esta questão, consultar meu artigo em coautoria com Larissa Pelúcio, "A pre-
e o artigo de Rubin circula há ao menos duas décadas em traduções não autorizadas venção do desvio: o dispositivo da aids e a repatologização das sexualidades dissi-
./ pela autora, de modo que apenas a obra de Perlongher está disponível na integra, dentes" (2009), disponível online na revista Sexualidad, Salud y Sociedad.
J

22 23
pra atacar o poder, e no Queer Nation de onde vem a palavra quando surgem movimentos queer, se pautarão menos pela
queer, a nação anormal, a nação esquisita, a nação bicha. _demanda de aceitação ou incorporação coletiva e focarão mais
Vale lembrar que uee ' um xingamento, é um palavrão na crítica.às exigências sociais, aos valores, às convenções cul-
em inglês. Em português, dá a impressão de algo inteiramen- turais como forças autoritárias-e preconceituosas.
te respeitável, mas é importante compreender que realmente é 4
Enquahnto o movi~~ntdo homdossexu.al. apont~va para _'\.
um palavrão, um xingamento uma iniúria. A ideia por trás do d
a aptar os omossexuais as eman as SOCIaIS,para mcorpo- '-v' ~
Queer Nation era a de q~ parte da nação foi rejeitada, foi l:m.- rá-Ios socialmente, os queez.preferíram-enfreatar desafio de ....;"-
milhada, considerara aDjeta, motivo e es rezo e nojo, medo mudar a sociedade de forma que ela lhes seja ac itável~- 7J-.
de contaminação. É assim que surge o queer, como rea ão~- uan o mov .. anti o efendia a hom ssexualída. U'-

sistência a um novo momento biopolítico instaurado pela aids. de aceitando os valores hegemônicos os ueer riticam esses "\\
Alguém atento percebe como a problemática queer não -;y ~lores, ~tr;;;-d-;;;mo e es engendram as e periências d;
- .p
é exatamente a da homossexuali a e, mas a a ábjeçãõ.1fsS'e...o _ abjeção, a vergon a, o estIgma. o
termo, abjeção", se refere ao espaço a que a coletivid~ ÇQffiJ._ "l- Em resumo, o antigo movimento homossexual denuncia- ~
ma relegar aqueles e aquelas que considera uma amea a ao seu ..l.
va a heterossexualidade como sendo compulsória, o que podia ~
,.,
/

bom funcionamento, à ordem social e política. Segundo [ulia \ í ser também compreendido como uma defesa da homossexu-
Kristeva, o ab' eto não é simplesmente o que ameaça a saúde ~ alidade. O novo movimento queer voltava sua crítica à emer-
coletiva ou a visão de pureza que delineia o social, mas, antes, ~ ?;- gente heteronormatividade, dentro da qual até gays e lésbicas
o que perturba a identidade, o sistema, a ordem (1982, p. 4) ....• normalizados são aceitos, enquanto a linha vermelha da re-
A abjeção, em termos sociais, constitui a experiência de se % jeição social é pressionada contra outr@s, aquelas e aqueles
temido e recusado com repugnância, pois sua própria existên- considerados anormais ou estranhos por deslocarem o gênero p
cia ameaça uma visão homogênea e estável do que é a comu- J .~
ou não enquadrarem suas vidas amorosas e sexuais no modelo
nidade. O "aidético': identidade do doente de aids na década heterorreprodutivo. O ueer, portanto, não i uma defesa da
de 1980, encarnava esse fantasma ameaçador contra o qual a homossexualidade, é a recusa dos va ores morais violentos ü~
soletividade expunha seu código moral. instituem e fazem v er a inha da abjeção, essa fronteira rígida
Se o movimento gay e lésbico tradicional tinha como re- entre os que .são socialrqente.aceíros.e.os.que são. relegados à.
ocupação mostrar que homossexuais eram pes~normais e humilhação e ao desprezo coletivo.
. respeitáveis, o movimento queer vem para dizer: "olha, mesmo Em 199 , essa virada queer se torna perceptível, quando a
os gays e as lésbicas respeitáveis em certos momentos históri- Parada o Or. ulho Ga de São Francisco, umas das princi ai
cos serão atacados e novamente transformados em abjetos':
A maior parte das pessoas, sobretudo as que estavam com o
----
I1"osEstados Unidos, adota o queer c~;tema.10
....,.
Percebe-se o
potencial desestabilizador do sentido político não só do mo-
HIV, não faziam parte desse grupo pelo qual o movimento vimento LGBT, mas de todos os movimentos sociais constitu-
homossexual forjado na década de 1960 lutava. Em sua....QJ.~ ídos a partir de identidades, quer fossem os LGBT, negros ou
parte, o movimento homossexual emerge marcad alores
de uma classe-média letrada e branca, ávida por aceitação e
10 Este fato foi bem analisado pelo sociólogo [oshua Gamson em seu artigo "Os movi-
até mesmo incorporação social. Algo muito diverso se passa mentos identitários devem se auto destruir? Um estranho dilema':

24 25
feministas. Fica mais visível como o ueer vai se contrapor às impostos reconheçam seu caráter compulsório, violento e ~
concepções que havia~ado a ascensão dos novos movi- justo. 'De forma muito esquemática, mas, espero, esclarecedo-
mentos sociais da década de 1960. A começar e o mõvíinento ra, essa reflexão busca distinguir o espírito político queer da
homossexual e sua bandeira do «orgulho gay': uma palavra d mera luta pró-homossexualidade:
ordem com origem em uma classe média branca letrada que
provavelmente de forma inconsciente, parecia tentar criar uma Homossexual Queer J
imagem limpa e aceitável da homossexualidade. 11 • Regime de verdade Binário hetero-homo Normal-anormal

O contexto norte-americano, percebe-se, era muito pior Defesa da Critica aos


Luta política
homossexualidade regimes de normalização
do que o nosso, e foi em reação à falta de ação coletiva em
meio à crise da aids que emergiu a radicalidade política ue- Perspectiva~i~~~s.i~~~: Diferença
er. Assim, vai se constituir cada vez maIS Iga a às roblemá- :'-'~,_
Concepção
..•_- •.
de poder Repressora Disciplinar/controle
"". _._-_ ..- _ ..- _ __._-_ .._._. __ .__ ..-.. ..._ _ _ .. _._ .._ _ ..•.......... - _
i
.
ticas da vergonha, do estigma ~s9'iminaç~ e m~s
Segundo a filósofa norte-americana udith Butler, o ue-
com relação às demandas de assimilação identitária de a s
er é uma nova política de ênero. Alguns tendem a ver essa
e lésbicas. Muito da atração que o queer tem, inclusive na
ealídadê nos movimentos na entrada progressiva de traves.
sociedade brasileira, deriva do fato de que não são apenas
tis, transexuais, não brancos, todos os outros que antes não
homossexuais que se sentem em contradição com as normas,
eram vistos como suficientemente dignos de participar da :/
afinal, há muito mais pessoas em desacordo com as conven-
luta. No entanto, um olhar mais atento reconhecerá que a
ções culturais, com as obrigações que nos são impostas em
lógica identitária anterior é a que rege essa entrada e plu-
termos de comportamento.
ralização dos sujeitos dos movimentos sociais, e não uma
O gueer busca tornar visíveis as injustiças e violê as; revisão de sua forma de atuação. A nova olítica de gênero
implicadas na disseminação e naoeman a do cumprim~ - que também pode ser chamada de queer -:.se materializa
das normas e das conversões culturais, violênciase injustiças, no e das demandas fclta.s-.a.p'ªrtir dos su' eitos;
envo s tanto na criação dos «normais" quanto dos «an.QE- em outras aI v as,..cham a aten ão ara as normas ue os
mais': Quer alguém seja completamente ajustado e reconhe- criam. Essa mudança de eixo na luta política se fundamenta
cido socialmente, quer seja alguém marcado, humilhado, as em duas concepções distintas com relação à dinâmica das
normas e convenções operaram sobre os dois e ambos são ca- relações de poder: uma que as compreende a partir da visão
pazes de reconhecê-Ias. Claro qUeJ)s~, do poder como algo que opera pela repressão, e outra que o
os relegados à vergonha e à abjeção, sofrem mais e si!Qos g~ concebe como mecanismos sociais disciplinadores. Na pers-
denominamos es uisitos, mas nao é tão raro, em nossos dias, pectiva do poder opressor, os sujeitos lutam contra o poder
~ncontrar pessoas que mesmo dentrodos.modelos socialmente por liberdade, enquanto na do poder disciplinar, a luta é por
desconstruir as normas e as convenções culturais que nos
11 o sloga~gay; essário, a vergonha. Trata-se de constituem como sujeitos.
uma gramática mo.ral conformista em que as experiências do estigma e da a jeção
ichel Foucault é ores onsáve udan a de eixo
"Sãoignoradas, mesmo porque atingem os mais pobres, os que deslocam os gêneros,
nas reflexões sobre o poder. Em Vigiar e punir, o filósofo explica
os que não constituem família. Assim, as demandas gays revelam seu enquadramen-
to de classe alta e branca. Sobre estes aspectos, consultar Warner (1999). -
26 27
cuidadosamente como a conce ão do oder como localizável movimentos e que não seria possível fazer política sem partir
e repressor não dá conta da realidade histórica contem orâ- dos sujeitos concretos, no caso do movimento feminista, as
nea, na qual o poder está em toda parte e opera tam~m .J?9L mulheres. A história provou o contrário. Na nova política de
meio da incitação dos sujeitos cragírem de acorâo co~ gênero, seja lá nos Estados Unidos, quer seja aqui no Brasil,
teresses hegemônicos. Nessa perspectiva, o oder deixa de ser ganharam espaço problemáticas trazidas por trabalhadores do
algo facilmente associado a alguém ou a uma instituição, o rei sexo, transexuais, travestis e mesmo por pessoas que às vezes
ou a presidência, por exemplo, e passa a ser visto como uma estão dentro de relações com pessoas do sexo oposto, que po-
situação estratégica em uma dada socie ade em certa é oca. _ deriam ser vistas como pessoas modelares socialmente, mas
Passamos, portanto, de uma teoria ao poder para o desafio de que não acreditam nessas normas e acham que é uma violên-
lidar com ele como relacional, historico e culturalmente vari- cia que elas, as normas, sejam impostas. Os hetero-queer são
ável, ou seja, por meio d uma analítica." muito numerosos, politicamente engajados com as pessoas
A maior parte do movimento feminista e d ~

----
homossexual das décadas de 1960 e 197Q.-.ra liberacionista,
...
ou seja, via mulheres e homossexuais como sujeitos opnrm-
,
nova onda dos movimentos sociais problematiza a cultura e
a imposição social de normas e conve~cultUl"ais
-
que sofrem estigma e são relegadas à abjeção. Em comum, essa

que qc;:.
J

dos que deveriam lutar pela liberdade. Eram movimentos ue forma astucios e frequentemente invisível, nos fOllD.!..mcom~
concebiam Q..PodITcomo repressivo e operand .ma ara sujeitos, ou melhor) no assuieitam, /
baixo, por exeII.!Plo pela e ites dominantes contra o ovo. A
despeito das demandas inovadoras de reconhecimento das
Mas, afinal, o que a eceu ara ue a nova olítica de <J
~ inasse uma corrente teórica? Para compreender
diferenças, operavam com a inspiração teórica marxista que - .-6 '-'---
isso, é necessário recapitular a forma como as transformações ~ - -4
marcara o antigo movimento operário. De forma muito sim-
políticas e culturais da década de 1960 repercutiram na pro- ~ ~t>{ ~
plificada, era como se a luta de trabalhadores con!:a o~
ução o conhecimento. Esse cenário foi fundamental no que ,....ç, 1~
estivesse sendo apenas adaptada a um contexto em que novos
toca às reflexões sobre a sexualidade como al~ que é construí- ,c,..
sujeitos lutavam contra outras formas de opressão. A partir ~
do socialmente, e não algo meramente biológico. Até por volta O 1.
do final da década de 1980, com a disseminação do conceito
da década de 1~omava-se a sexualidade como uma área da ~
de gênero e a incorporação das ideias de Foucault sobre uma
vida humana que era explicada pela Biologia, pela Medicina, s.: .....
analítica do poder, a nova política de gênero começa a modifi-
na melhor das hipóteses pela Psicanálise, até que, em 1968, há ~.
car essa forma de conceber a luta política e a apontar como é a
ura e sua ormas ue nos criam co~su·eitos.
a publicação, na Inglaterra, do arti Homossexual Role" 'S...
O a el homossexual), escrito pela socióloga Mar c ntosh.
A-mu<lança de foco dos s . 'tos ara a cultura erou rea-
~sse é o rimeiro texto que vai dizer. claramente ue a hom~
- es. Muitos diziam que o conceito de gênero despolitizaria os
sexualidade é algo socialmente forjado.

12 A ideia de uma analítica do poder deriva de sua compreensão como uma situação
Não por acaso, o artigo de McIntosh foi publicado no pa-
estratégica em uma certa época e sociedade. Assim, o poder não é localizável em radigmático ano das transformações estudantis na França, no
uma instituição ou posse de alguém, sendo antes, reconhecível em sua dinâmica Brasil, no México, nos Estados Unidos ' e 1970
semprêvariável em termos históricos e culturais. Sobre essa transforma ão na forma
de compreender as relações de poder consulte também a excelente introdução de
há umJl~ se lésbicos com obras de
Roberto Machado ao citado livro de Foucault. pesquisadoresfa omo-e ocíólogo bzitânico.Jeffrey Weeks.

28 29
a própria heterossexualidade. No Brasil, Néstor Perlongher fez
No Brasil, o primeiro estudo sociológico sobre ho~ossexua- algo similar em O negócio do michê: a prostituição viril em São
lidade, orientado por Florestan Fernandes, surgiu no final ~ Paulo (1986; 2008), obra em que a michetagem serve como pon-
década de 1950 e forprrbltcadcrpor José Fábio Barbosa da Silva to de observação privilegiado para repensar a esfera do desejo e
como "Aspectos sociológicos no homossexualismo em São Pau- da sexualidade como um todo. Em O que é aids (1987), o pesqui-
lo" (1959), em uma revista da Escola de Sociologia e Politica. In- sador argentino-brasileiro foi ainda mais longe no diagnóstico
"felizmente, a pesquisa não teve repercussão, e o autor se mudou .de que a homossexualidade era um fantasma a partir do qual a
para os Estados Unidos. Apenas na década de 1970, o tema re- heterossexualidade havia sido naturalizada e instituída cultural-
emerge em outra chave, em O estigma do passivo sexual (1979),
de Michel Misse. A partir do início da década de 1980, surge
uma nova onda de pesquisas, como as de Peter Fry, Edward
-
mente o ue a epidemia de aids vinha reforçar.
A esar de lidarem com objetos muito distintos histórica e
socialmente, os livros cita os marcaram uma inflexão nos estu-
MacRae, Luiz Mott, Carmen Dora Guimarães, entre outros. Se- os so re sexu idade, No eUtãiito, devido a espeõficídãdés is-
gundo María.Pílomena Gregori (2010, p. 22-E), o que pas~o~~ tóricas e de dinâmicas acadêmicas diferentes, a obra de Sedgwick
caracterizar a área de estudos de sexualidade em nosso paIS foi _ teve mais impacto nos Estados Unidos do que a de Perlongher
~mentação e a análise de um repertório de práticas soci~ no Brasil. Além disso, a centralidade da produção acadêmica
culturais que contestam categorias com~ência ou natureza americana, ou se·a seu oder de influência mundial, gerou a ver-
humana, particularmente por meio da inserção da sexualidade ão ainda corrente - mas altamente contestável- de que a Teoria
e do desejo na esfera do cultural e do histórico. Queer surgiu apenas lá e teve como data de nascimento 1990.
as décadas de 1970 e 1980, no Brasil e no exterior, a ano em que foram lançados três de seus livros mais influentes:
maioria dos estudos focaram em gays e lésbicas e tenderam, Problemas de gênero, de Judith Butler, One Hundred Years of H"O-\ J.;""
mesmo sem essa intenção, a corroborar a impressão de que mosexuality (Cem anos de homossexualidade), de David M. Hal-
a maioria das pessoas eram heterossexuais e que a homosse- perin, e, sobretudo, o grande livro fundador da Teoria Queer, A
xualidade era algo restrito a uma minoria diferente que a so- epistemologia do armário, de Eve Kosofsky Sed~ck. (j)--.l
ciedade precisava aprender a conhecer e respeitar. ~m ou~r~ O ue esses rim . odific ? Pri-
palavras, os estudos sobre homossexualidade ~ pesgUlsa~ .;..meiro, o press maioria é heterossexual é alta-
sobre minorias sexuais, algo extremamente importante em /' mente uestionável porque se a homossexualidade é uma cons-
uma época que ignorava ou desqualificava formas de vivência trução social, a heterossexualidade também é. Então, o binário
sexual não hegemônicas, mas.que ainda questionavam apenas hetero-homo é uma construção histórica que a gente tem que ~
de fi rma parcial a hegemonia hétero como cul~ral e políti~ re ensai. Até mesmo os em íricos, como os que surgiram a ~
Os estudos queer vêm.modificar isso. á em meados da dé- partir de pesquisas sócio-antropológicas durante a e i emia de ~ ..,
cada de 1980, nos Estados Unidos, Eve Kosofsky Sedgwick de- ar s, mostravam que as pesso~itavam entre díferen- ..••
senvolveu uma análise das interdependências entre a hetero e a tes formas de amar. As pessoas nunca couberam apenas em um ;.
homossexualidade em Between Men (1985), um livro que an..Jlisa
os triângulos amorosos em romances do século XIX de forma a
compreender como se criou historicamente tanto o que, décadas
º-
úmero limitado de orientações do desejo.
se undo aspecto é gue foram feminiss!t~as~.l.le....cLiaLam
a Teoria Queenfeminístasjnulhefêã e omegs. Enquanto a
mais tarde, passaria a ser chamado de homossexualidade quanto
31
30
maior parte dos estudos gays eram feitos por homens que não de homossexualidade ou criando estudos sob sua perspectiva,
liam as eministas t do feminismo. os estud eles que eram xingados e .
Verdade ·a..dit.a.buna-veI=tent estionar se o su- J!}altratados por romperem no as e ênero.
je-t d emmlsmo é a m er. Até hoje boa parte da produção Como profissionais da educação costumam testemunhar,
feminista é feitéLComüpressuposto de gue ênero é mulher. A são meninos femininos e meninas masculinas, pessoas andrógi-
feoria Queer lida com o gênero como algo cultural, assim, o ) nas ou que adotam um gênero distinto do esperado socialmen-
masculino e o feminino estão em.homens e.mulher no te, que costumam sofrer injúrias e outras formas de violência no
Cada um de nós - homem ou mulher - tem gestuais, formas de ambiente escolar. Será mero acaso que homens e mulheres que
fazer e pensar que a sociedade pode qualificar como masculinos constroem um perfil de gênero esperado e escondem seu desejo
ou femininos independentemente do nosso sexo biológico. No por pessoas do mesmo sexo sofram menos perseguição? A so-
fundo, o gênero é relacionado a normas e convenções culturais ciedade incentiva essa forma "comportada', no fundo, reprimida
gue variam no tempo e de sociedade para sociedade. e conformista, de lidar com o desejo, inclusive por meio da for-
m outras palaygs, a Teoria Queer tem um ~upl~ ma como persegue e maltrata aqueles que são cotidianamente
to: ela vem enrique e os estudos gays e Iésbicos com ~a humilhados sendo xingados de afeminados, bichas, viados, ter-
perspectiva feminista que lida com o conceito de gênero'3 mos que lembram o sentido original de queer na língua inglesa, I
também sofistica o feminismo, ampliando seu cance pala Um olhar queer sobre a cultura convida a uma J>ers ec-
além das mulheres. Mas, como toda vertente teórica, ela reÓIle tiva crítica em relação às normas e conven ões de ênero e
'I diferentes autores/as e perspectivas sob um mesmo rótulo cria- sexu que I1.erm~_e.at' mesmo. exigem - que mui-
do a posteriori. Historicamente, o termo "Teoria ueer" foi tas essoas sejam insultadas cotidianamente como esquisitas,
cunhado por eresa e auretis em 9 como um' rótulo estranhas, anormai ichas sa atõe afeminados, travestis,
que uscava eOContrar o que há em comum em um conjunto boiolas, baitolas, e or aí vai. Pensem sobre essas pessoas e
muitas vezes dísperso e re ativamente diverso de pesquisas. cará um pouco mais claro, espero, por que queer não é a e-
Uma vez, em Ann Arbor, quando fazia pós-doutorado na nas sinônimo de gay ou de homossexua. am em espero que
Universidade de Michigan, vi um livro em uma loja cujo título perce am adianta buscar assar
jocoso ajuda a entender a distinção entre os estudos gays e a da injúria ara uma tabela de identidades, d, o a ue fosse
~
Teoria Queer. Não se trata de um livro importante, é apenas de possível dizer assim: "eu vou espeitarfulano, porque fulano '"
divulgação, mas seu título é ótimo, algo parecido com "Como é tal coisà:..A ideia não é apenas descobrir a forma correta de c."

os estudos gays traíram o mariquinha" Os estudos gays, e~ chamar alguém, mas, antes uestionar esse processo de elas- _ L;J
sua maior parte, eram estudos sobre homens ue adotavam sifica ão que gera o xingamento: a rime ira experiência com
uma posturãffiãSculina, uroaimagerrukrespeitabilidade so- relação à.sexaalidade-d do....mundo,..seja daquel que.foi
cial, a qual hoje em dia encontramos na mídia, especialmente re'eitado e a rendeu ue não era normal, seja de quem adotou
na voltada ara este público,-como um homem de classe mé- as normas e se inseriu socialmente de uma forma mais fácil,
dia ou alta, branco, másculo e que, quando musculoso, termi- algamos assim, é a experiência da .niúría,
'- pa.l'0r ser o que, em ambientes metropolitanos como o paulis- As pessoas a rendem sobre-sexualidade.ou .ndo injúrias
tano e o carioca, chamamos de "barbie" Focando nesse perfil com relãçio a si próprias ou com relação.aos.onjrgs. Na escola,

32 33
quer você seja a pessoa que sofre a injúria, é xingada, é humi- valer uma norma social e quem testemunha a cena. Frequente-
lhada; quer seja a que ouve ou vê alguém ser maltratado dessa mente, quem assiste não consegue agir e tende a ver na violên-
forma, é nessa situação da vergonha que descobre o que é a ~- cia um alerta para aceitar a norma, caso não queira se tornar
xualidade. É claro que, dessa forma, isso se transforma em um a próxima víti
trauma, e tudo é pior pra quem é humilhado e maltratado, mas
Atos isolados de violência emergem quando formas an-
também não é nada agradável alguém que - mesmo não sendo
teriores, invisíveis de violência, se revelaram ineficientes na
xingado - descobre que seu colega está sendo humilhado e mal-
imposição de normas ou convenções culturais. Estes atos cha-
tratado por causa disso. É assim que as normas se fazem valer.
mam mais nossa atenção, mas não podem nos iludir como
Daí ser simplista resumir essas violências no termo "ho- sendo as únicas formas de violência que se passam no con-
mofobia", à violência dirigida a homossexuais, pois essa~o- vívio social. Na verdade, ironias, piadas, injúrias e ameaças
lências se dirigem a todos e todas, arenas em aus diferentes. costumam preceder tapas, socos ou surras. A recusa violenta
Essas violências são e ressão do heterossexismo, da forma de formas de expressão de ênero ou sexualidade em desacor:
como somos socializados dentro de um regime de terrorismo do com o padrão é antecedida e até apoiada por um proces-
cultural. Uso esse termo forte, "terrorismo cultural", para res- so educativo beterossexis a, ou seja, porum. CUrrículo oculto
saltar que se trata de algo coletivamente imposto e experien- comprometido com a imposiçao da heterossexualidade com-
ciado; sobretudo, algo que vai além de atos isolados de violên- pulsória. Um comprometimento em construir uma experiên-
cia. Em uma perspectiva sociológica, há uma lógica de im 0- cia educacional que tenha uma perspectiva queer exige lidar
sição de normas por trás de uma forma de violência sempre com a experiência da abjeção como algo concernente a todos
à espreita, pois quando sabemos que ela pode acontecer, mas e que não deveria ser parte da experiência educacional.
não quando nem de onde ela virá, aprendemos a nos compor: - --
tar de forma "segura", ou seja, de uma forma que nos coloque
ao abrigo de suas manifestações. Q terrorismo cultural é um
nome que busca ressaltar a maneira como opera socialmente
o heterossexismo, fazendo do medo da V10 enCla a forma mais
eficiente de imposição chi1ieteros ~idade compulsóri:L"
Na vida social, mas sobretudo na escola, aprendemos as
formas coletivamente esperadas de ser por meio da persegui-
ção às maneiras de agir e ser rejeitadas socialmente. Na esfera
do desejo e da sexualidade, a ameaça constante de retaliações e
violências nos induz a adotar comportamentos heterossexuais.
Por isso, o que a mídia chama de homofobia atinge mais visi-
velmente quem é xingado, humi a o ou so re violência física,
mas também constitui um fenômeno que envolve a todos: a
vítima, o algoz e as testemunhas. Em um episódio de violên-
-,. cia há aquele que é atacado injustamente, o que ataca fazendo

35
Capítulo 11

Estranhando a Educação

No Brasil, em meio ao processo de universalização do en-


sino básico que se dá a partir da década de 1990, a educação
passa a ser tensionada pelo contato recente com grande parte
da população que, historicamente, nunca tinha sido atendida
pelo Estado, a não ser, talvez, por meio do sistema de saúde.
Ao mesmo tempo, as reivindicações dos movimentos sociais
ganharam maior atenção pública ao questionar concepções
sobre o que seria a nação brasileira. Em outros termos, graças_
à consolidação da democracia após décadas de re ime militar,
ficou atente ue a sociedade brasileira se revelava incapaz de
lidar com as diferenças étnico-raciais, de gênero e sexuais . .Q.!:..
feren as i noradas e sufocadas durante a ditadura afloraram
na democracia clamando J20r reconheciment e aceita ão.
-----._-
Foi nesse contexto que, em 2001, veio a público um dos
prllneitos1extos so re o queer em nosso pam-:o "Teoria Que-
70
~ uma política pós-identitária para a educação': de Guacira
Lo es Louro, publicado na Revista Estudos Feministas. Louro
teve contato com essa vertente de estudos alguns anos antes,
durante o período que passou no campus de Santa Cruz, da
Universidade da Califórnia, local de batismo dessa linha de
reflexão. As .m razões his óricas e de circulação intelectual
contribuíram cepção da Teoria Queer na área edu-
cacional brasileira~utras disci linas, como a Sociologia,
a Psicologia, a Comunicação e a Linguística, o contato com a
p odu ão de teórí os queer norte-americanos também desper-
tou uma nova sensibilidade acadêmica para os debates emer-

-
gentes na esfera da sexualidade brasileira.

37
A entrada da 'Ieoria.Queer no. Brasil, portanto, se deu em P.Thompson, e repercutiu em áreas como a Sociologia, a Hístó-
meio a uma reconfignração da área de.estudos sobre sexualidade ria e a Educação no Brasil." Nossa recepção se deu por meio. da .
que desde o final da década de 1980 tinha sido moldada pelos ênfase-dos pesquisadores ingleses na "experiência" das pessoas
debates envolvendo a epidemia de aids e a necessária arfic ação do.povo, na valorização de empreendimentos históricos e socio-
das demandas sociais aos interesses do Estado durante o pânico lógicos que recontassem a história oficial sob sua perspectiva.
sexual. A partir do surgimento do coquetel antirretroviral e a pro- Por razões de circulação intelectual e do perfil do mar-
gressiva percepção da aids como doença tratável, ganham espaço xismo predominante em nosso país, menor atenção foi dada
demandas de outra ordem, particularmente visíveis na área de às rupturas que as gerações seguintes dos Estudos Culturais
educação, onde uma massa de estudantes passa a ser atendida pela introduziram na pesquisa social. enas no final da
primeira vez pelo Estado brasileiro. Se na área de saúde a urgência déCada de 19 en contemporâneas dos Estu os,
de tratamento médico predominava, na de educação. é compre- Culturais que passaLam a lid com questões étnico-raciais e
ensível que surjam demandas mais claramente compreendidas sexuais os.Estudos Pós-Coloniais e a Teoria Queer, tiveram
como de cidadania. Assim, épossível dizer que foLnas escolas, em -eeeepçãe-entre.nós. Profissionais da educação como. Tomaz
particular no ensino básico, que o po.vo.encontrou o Estado e Tadeu da Silva foram fundamentais nesse processo de seleção,
emergentes tensões entre os interesses do ensino e o surgimento tradução e publicação de obras desses saberes que se desenvol-
da demanda das pessoas por reconhecimento e direitos. veram em relação crítica com as disciplinas acadêmicas insti-
A partir do exposto, não é de estranhar que educadoras tucionalizadas e que, por isso mesmo, são também conhecidos
tenham se sentido pressionadas, ou melhor, desafiadas a lidar como Saberes Subalternos."
com uma realidade invisível ou apagada durante a ditadura. . A.recepção brasileira da Teoria Queer na área de educa-
Os sujeitos, em uma sociedade democrática, se.sentem mais ão demonstra ue seus conceitos e abordagens se revelará'm
seguros para expressar ideias e desejos, questionando conteú- ~ demandas..que as educadoras passaram a-reconhecer
dos e métodos educativos. Professoras se viram entre os inte- nos estudantes. De forma positiva, professores começaram a
resses estatais e coletivos presentes no currículo e na própria reavaliar os interesses educacionais que inrpunham, muitas
organização do ensino escolar e as novas formas de expres- vezes de forma invisível e até silenciosa, modelos de compor-
são sexual e afetiva entre os estudantes. Faltavam ref~ tamento, padrões de identidade e uma gramática moral au-
teórico-pedagó .cas ara fazer frente a essa nova realidad , toritária a jovens e crianças. Mas ainda permanece a dúvida:
já que mesmo a produção brasileira mais avançada na área como incor orar o ueer na educas.!o? A primeira coisa seria
educacional ainda era herdeira de um marxismo que, mes~ ter um diálogo crítico e não assimilacionista dentro do espaço
, culturalizado.nã avia [ncorporado os temas das diferenças. escolar, porque isso não apenas tende a tornar a escola melhor,
Historicamente, a emergência de uma corrente culturali- quer dizer, não esta retórica de falar: vamos fazer a escola mais
zada do marxismo conhecida como Estudos Culturais se deu
inicialmente na Inglaterra, em Birmingham, e associou o traba- 1J Uma das melhores introduções aos Estudos Culturais em português é a da dupla de
lho de educação de adultos a uma maior atenção à experiência pesquisadores franceses Mattelart e Neveu (2004).
14 Saberes que até recentemente não tinham reconhecida sua cientificidade, por serem
social das classes populares. Isso enriqueceu a produção acadê-
localizados e construídos a partir da experiência, o que os colocava em desacordo
mica de autores como Richard Hoggart, Raymond. Willi~s e E. com a suposta imparcialidade e generalidade da ciência (FOUCAULT, 2000).

38 39
agradável, respeitar a diversidade. A proposta do queer é muito descobrimos ue somos acima do eso ou ma ros demais,
~
mais fazer um diálo o com a ueles e aquelas que normalmente feios baix~gos, negros, aferninados. Em suma, é no am-·
~do rocesso educaclOn e também o resto ~ente escolar que os ideais coletivos sobre como deveríamos \" ~
~eriên . .da.na.socie e é esse .álo o ue ode ser come am a aparecer como demandas e até mesmo como
.e...tornara ró ria educação, mudando o papel da escola. Não é im o " ã.es..muit<1Rvezes.de umaiorma muito violenta. ~
pouca coisa, é realmente ambicioso, um desafio a ser encarado e " em dia, a gente acabou criando um nome ara o cará-
acompanhado em tudo .que tem de promissor e incerto. ter yiolento da SQQ.a "za -o escolar: ull ing. Alguns imaginam
Historicamente, a escola foi durante muito tempo um 10- se tratar de um fenômeno novo, mas, no fundo, o assédio moral
Gal de nOBB~~,...um_gran e velC o e ma i sem re foi arte do rocesso educacional. O bullyingnão foi in-
~. O processo de educar e a expansão do sistema de ensino ventado,nos últimos anos, o que mudou foi nossa sensibilidade
foram importantes pra criar as nações contemporâneas. Ha- com relaçao as formas de violência que ele expres,!a. A escola
via interesse do Estado em utilizar o aprendizado e a cultura era partícipe do assédio moral de tal forma que, normalmente,
para unificar politicamente as nações, criando um sentimento a educação era bullying: você entrava e se enquadrava. Havia
~ comum de pertença, aquilo que Benedict Anderson chama um currículo oculto, um processo não dito, não explicitado,
'i; _ de "comunidades imaginadas". Na França, na Alemanha, em não colocado nos textos, mas que estava na própria estrutura do
') muitos países, já no final do século XIX todo mundo estava aprendizado, nas relações interpessoais, até na própria estrutura
na escola. Reconheço que é um avanço respeitável que todos arquitetõnica, que continua a ser normalizadora.
tivessem acesso à educação básica, mas é importante perce- Recordo-me que, antes de subir ao palco para a Aula
ber que isso se deu lá em um contexto que também envolvia Magna, no intervalo para o café, observei algo interessante no
interesse político. Era importante educar as pessoas para elas teatro da UFOP. Fui ao banheiro e havia uma fila inacreditável
serem cidadãs de um Estado-nação. Havia interesse político de mulheres para entrarem no banheiro feminino, não tinha
p no Estado em ter pessoas para governar. quase ninguém para entrar no banheiro masculino. Parem
ohsesvaçãe ac~e..a educação foi, para pensar em como essa distinção arquitetõnica nos obriga
2 (..-R{}S~ ~, m-meio-da-biopolítica, umaforma a descobrir toda hora o nosso gênero e a nossa sexualidade. Na
~ poderosa.d rmaliz ;ão.coktiYa. Isso já havia sido perce- hora de lidar com tudo de mais íntimo somos levados a nos
e- bido em parte, até mesmo por Durkheim, um dos fundadores separar em duas filas, duas portas, dois compartimentos arqui-
~~ -<"
~o -tia Sociologia, em fins do século XIX. Em meados do século teturais. O banheiro público, como a escola, é uma tecnologia
XX, Erving Goffrnan, um sociólogo da Escola de Chicago, já de gênero que merece ser repensada. Divisões arquitetônicas
At; observa que era na escola - justamente dentro desse processo são algumas das formas que a sociedade encontra de colocar
"..de normalização - que as pessoas entrariam em contato pela cada um no seu quadrado e, sobretudo, no caso do banheiro,
t> primeira vez com a sociedade e suas demandas. Isso porque, no seu lugar dentro do binário masculino e feminino."
muito frequentemente, nas famíljas é claro que você está ín-
serido na s ciedade mas você tem um certo cordão de pro-
IS A partir do conceito de tecnologia de gênero de Teresa de Lauretis, a teórica queer
_ teção com relação a muitas deman as exteriores ao círculo Beatriz Preciado analisa a ordem arquitetural como criadora de gênero e sexualida-
o arentesco. Na escola, tal cordão desa arece, e é aí ue de. Sobre os banheiros, consultar seu artigo online "Basura y género"

40 41
As ordens arquitetônicas são tecnologias de constru ão
de gênero, de discriminação. Mas já somos capazes de perce-
ber que são estúpidas também, porque ficar preso em uma fila
.com cem pessoas enquanto o outro banheiro fica vazio porque
é para homem se torna absurdo. Percebi e incentivei que as
pessoas começassem a entrar. Então as mulheres começaram a
entrar no banheiro masculino, de forma que foi bom constatar
que também emerge uma nova sensibilidade para o absurdo
de certas normas que se impunham de forma tão poderosa por
meio de uma placa na porta. Verdade seja dita, na porta de um
cômodo no qual as pessoas lidam com sua intimidade, com
seus corpos sexuados.
Como disse antes, o queer é relacionado a tudo ue é so-
~f cialmente chamado de estranho, anormal e, sobretudo, ab' eto.
, A abjeção pode ser de diversas formas: você ser c~ficado
'.f de negro em uma sociedade que já foi escravista é urna ma-
\

neira de ser subalternizado e te relegar a uma posição com


menos direitos ou reconhecimento. Mas, não por acaso, a ab-
\. . jeção costuma lidar com o que há de mais íntimo em nós, daí
ser compreensível que ela passe muito pela sexualidade. Infe- ------------------
Mary Douglas, em Purity and Danger: an Analysis of the
lizmente, muitas vezes, ao usarem a palavra "sexualidade': as Concept f Pollution and Taboo, seu famoso livro da década de
pessoas tendem a pensar apenas em relações sexuais, mas a 1960, explica como a dinâmica da abjeção opera de maneira
sexualidade vai muito além disso. ue as essoas sejam induzi das socialmen e a "extirparem"
A sexualidade envolve desejo, afeto, auto compreensão e de si mesmas, em geral de formas dolorosas, o que é consi-
até a imagem que os outros têm de nós. A sexualidade ten<!e derado pela coletividade como "impuro': incorreto ou, em
a ser vista, por cada um de nós, como nossa própria intimi- termos atuais, anormal. Socializar-se, portanto, costuma ser ':í
dade' a parte mais reservada, às vezes até secreta, de nosso um processo marcado por formas muito violentas de recusa,..,...,..
~
eu. Assim, não surpreende que a sociedade tenha encontrado em si mesmo, do que a sociedade quer evitar como "c~ta-~ .
nela um meio de normalizar as pessoas. Foi a partir de uma minante', seja uma identidade de gênero diferente das mais - ?

3;. maneira de tornar essa sensação mais íntima, mais preciosa e conhecidas ou formas de desejo fora do modelo em voga.
e~ pessoal em algo que é motivo de chacota, xingamento e de hu- Iulía Kristeva, em Pouvoirs de l'horreur, enfatiza como nossa ~-r
milhação. A abjeção acaba sendo maior via sexualidade por- sociedade compreende como abjeto o que, na visão hegemô-
que ali se unem esses sentimentos mais profundos, em quêa nica, não deveria ser visível. b-bjeto e obsceno (que significa
pessoa mais se sente em confronto com a ordem social. Quer se a roximam revelando o que a sociedade
você esteja apaixonado por uma pessoa do mesmo sexo ou do preferia não ver e que, ao adentrar o espaço público, causa

42 43
re u nância e re údio. A partir da ideia de abjeção, com reen- se relacionam. Em nossos dias, a sociedade até permite; mi-
demos a dinâmica coletiva que gera a injúria e a violência nimamente, por sinal, que as pessoas se relacionem com pes-
contra aqueles e aquelas que explicitam a instabilidade dos soas do mesmo sexo; portanto, ao menos para alguns estratos
gêneros e, das formas as mais diversas, encarnam a diferen a sociais privilegiados, já não vivemos mais em pleno domínio
o que não se anula na familiaridade do óbvio ou na reconfor- da heterossexualidade compulsória. Nas classes médias e al-
tante mesmice em que descansa o olhar cotidiano. tas urbanas, sobretudo metropolitanas, ganhou clara visibi-
A partir da experiência histórica recente da aids, a ab- lidade a existência de pessoas que se interessam por outras
jeção ganhou maior relevância na forma como passamos a do mesmo sexo. Nesse contexto, não é possível dizer que se
pensar as relações sociais. Em nossa sociedade, o desejo por nega a elas a homossexualidade, mas a SOCIe a e ainda exige
pessoas do mesmo sexo tende a ser visto como algo abjeto, ~ cumprimento das expectativas com relação ao gên~o e a
e esse triste fato ajudou a caracterizar a eclosão da epidemia ~m estilo de vida que mantêm a heterossexualidade como
de HIV / aids na década de oitenta como um pânico sexual, -tmLIllodelo inquestionável para todos/as.
uma reação contra a homossexualidade, entendida como Assim, é compreensível que haja tantos casais gays que
uma espécie de ameaça coletiva. Se isso já se passava antes, buscam, com grande dificuldade, adotar um padrão hétero
a partir da epidemia essa noção foi reforçada e dissemina- em seus relacionamentos. Isso é clara expressão da vigência
da, de maneira que, até hoje, ser chamado de homossexual da heteronormatividade, dentro da qual uma relação só é
quase sempre equivale a ser xingado, um chamado a se auto- reconhecida socialmente se seguir o antigo modelo do casal
compreender e, ao mesmo tempo, a constatar a condenação heterossexual reprodutivo. A demanda recente pelo casamen-
social do que se é. - to gay, adoção de crianças e reconhecimento dessas relações /
A experiência da abjeção deriva do julgamento negativo como modelo familiar corroboram esse novo momento his- J
sobre o desejo homoerótico, mas sobretudo quando ele leva ao tórico marcado mais pelalleteronormatiyidade do q~ .•.
rompimento de padrões normativos como a demanda social heterosse ualid m ulsória." -i-
de que gays e lésbicas sejam "discretos': leia-se, não pareçam Infelizmente, há uma cumplicidade por parte também
ser gays ou lésbicas) ou..aínda de ~u~o..se desloque o~ da maioria de gays e lésbicas com essa expressão mor de vio-
neros ou se modifique os corros, o ue, frequent te torna lência que é uma fobia do rompimento hetero normativo.
meninos femininos, meninas masculinas e, sobretudo, traves- Não estou falando isso para culpabilizar gays e lésbicas por
tis e transexuais vítimas de violência. Esses exemplos que mos- uma forma de violência simbólica criada socialmente. É sem-
tram como a sociedade reage mais violentamente com relação pre perigoso cair naquela retórica reacionária que tende a
ao rompimento das normas ou convenções de gênero do que jogar a culpa pelo preconceito na própria vítima. Meu obje- '-
com relação à orientação sexual. Por isso, homens gays que tivo aqui é ate~ CQH1Q tQQQS Hés cS'tanIOsrrrrpíreedcs "<'\
adotam uma estética masculina e um estilo de vida hegemô- em regimes de normaliza ã preender isso exige não /"

nico sofrem menos violência e, de certa maneira, até mesmo nos


_ apegarmos a uma forma vitimizadora de compreen er ás ~L c
contribuem para corroborar a heteronormatividade. ~/ ~
') ~ Qo'
A heteronormatividade é um regime de visibilidade, ou
16 Sobre o caráter normalizante de certas demandas políticas, em especial a de direitosq ~'~
!eja, um modelo social regulador das formas como as pessoas por meio do casamento, consultar Miskolci (2007) e Raup-Rios e Oliveira (2012). -~
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normas e convenções sociais, elegendo algozes e vítimas em se impõe por meio de violências simbólicas e físicas dirigi das
~ma concepção simpl1sta o que é a vida sociE: principalmente a quem rompe normas de gênero. Em outras
pa avras, heterossexismo, heterossexualidade compulsória
As normas sociais não escolhem sujeitos, elas se impõem
e heteronormatividade são três coisas diferentes, conceitos
_a todos e todas, mesmo àque es e aque as que jamais consegui-
importantes que nos auxiliam a compreender a hegemonia
~ _ rão atendê-Ias, daí, nessa perspectiva, se dissolver o paradoxo
..J.r aparente-de rnulheres.machistaggays homofóbicos ou negros
?- racistas. Afinal, ideais coletivos moldam todos nós, ;-eles se
cuftural hétero em diferentes dimensões .
-
_ Infelizm~te, quase toda educação e rodução de co-
'"..fazem valer por normas e convenções culturais que deveriam nhecimento ainda é feita em uma perspectiva heterossexista.
er nosso alvo crítiee-em busca.da construção.de uma socied,a- Quando algo se apresenta como neutro, como "científico",
•• de mais justa e igualitária. Em uma perspectiva queer, a edu- deve-se desconfiar de que foi feito em uma perspectiva mas-
cação pode evitar, ou pelo menos contribirir.para qrretodõs, culina, branca, ocidental, cristã e heterossexual. Um olhar
quaisquer que sejam as.suas decisões sobre as suas relações a partir das diferenças na educação implica tentar perceber
amorosas e sexuais, não adotem-irrefletidamente preconceitos os modelos, os padrões; em outras palavras, as normas e as
por meio da adesão a-modelos comportamentais. convenções culturais que buscam se impor de forma indireta
por meio, por exemplo, do material didático ou das discus- .
Não por acaso, a heteronormatividade é o grande alvo
sões correntes na mídia.
queer, pois ela não é apenas restrita aos heterossexuais. A he-
teronormatividade é um problema inclusive entre homosse- De certa maneira, um olhar queer é um olhar insubor-
xuais. De uma forma simplifica da, vou apresentar definições dinado. É uma perspectiva menos afeita ao poder, ao domi-
de três conceitos que estão frequentemente nos textos, nos nante, ao hegemônico, e mais comprometida com os sem
livros, nos sites, mas que vêm sendo utilizados sem nenhum poder, dominados, ou melhor, subalternizados. Na esfera da
rigor teórico, tampouco acurácia histórica. Refiro-me aos sexualidade e do desejo, a maior parte do que é reconhecido
conceitos de heterossexismo, heterossexualida e com ulsória socialmente como discurso autorizado a falar é produzido
.ehete onormatividade. dentro de uma epistemologia dominante, criada sob essa su-
posta "cíentíficidade" que pouco difere de um compromisso
Heterossexismo é a pressuposição de que todos são, ou
deveriam ser, heterossexuais. Um exemplo de heterossexis- com a ordem e o poder.
mo está nos materiais didáticos que mostram apenas casais É importante desenvolver um olhar atento e crítico para
formados por um homem e uma mulher. A heterossexuali- as abordagens pedagógicas sobre gênero e sexualidade cria-
dade compulsória é a imposição como modelo dessas rela- das em uma perspectiva de saúde pública. A maioria delas,
ções amorosas ou sexuais entre pessoas do sexo 02osto. Ela infelizmente, ainda lida com o desejo e o sexo como poten-
se expressa, frequentemente, de forma indireta, por exemplo, cialmente perigosos para a vida coletiva, ou seja, priorizando
por meio da disseminação escolar, mas também midiática, os interesses estatais de controle social em detrimento das
apenas de imagens de casais heterossexuais. Isso relega à in- demandas individuais por reconhecimento de seus interes-
visibilidade os casais formados por dois homens ou duas mu- ses e prazeres. Cabe à educadora ou ao educador buscar um
lheres. Aheteronormatizidade é a ordem sexual do. resente equilíbrio entre o oferecimento de informações sobre saúde,
~ndad'!. no modelo heterossexual, familiar e reprodutivo~ Ela doenças sexualmente transmissíveis (DSTs), contracepção e

46 47
outros temas, sem impor, juntamente com elas, padrões mo- acadêmicos como na forma de políticas sociais. A noção. de
rais e comportamentais rígidos, conservadores e antiquados. diversidade busca com reender as demandas I20rres ito or
Reduzir a sexualidade, o desejo e o prazer a imperativos de 3cesso a direitos por parte de.pessoas ..que-historicamente não
saúde pública pode ser uiiia forma de violência com rel~ ~ireitQs..reconhecidos,...como..n€g!"-0 povos i dí - t
aos diferentes anseios ind1vlaüãis. ~nas, ~omossexuais, mas de forma ue esses direitos articu-,
P~s morais costumã""m ser a via de entrada de nor- lares sejam recon . nu ontexto institucional
_ universalista. ?z-
mas e convenções na experiência educacional. Distinguir entre
concepções de educar voltadas para a diversidade ou para a Em sockdades democráticas como a francesa, .Qor ~
diferença pode ser um meio profícuo de evitar que o aprendi- exemp o, 0_universalismo se choca com demandas de- rec;' ~
zado redunde na manutenção da diferença como algo a ser, no n ecimento vindas degrupos historicamente considerados
máximo, tolerado. Comentei desde o início que, nos últimos mmoritári,os. Em uma ordem republicana universal, não há
anos, o termo "diversidade" entrou em voga no Brasil. Pro- espaço para demandar particularidade, diferença, daí os con-
vavelmente, isso se deu por meio de políticas internacionais, flitos que medidas como a proibição do uso do véu, por parte
mas pensemos um pouco sobre isso, porque vale a pena par- de mulheres muçulmanas, provocaram e ainda provocam por
tir dos termos que nos são dados pelos órgãos de fomento e lá. A rationale ue uia o rincí io do Estado laico exige ue
desconstruí-los para criara nossa abordagem. tod s sem exce ão, deixem de usar qualquer símbolo reli-
ioso dentro de prédios públicos como as escolas.
Qual o problema do termo "diversidade"? A ideia de di-
versidade surge da preocupação com conflitos étnico-raciais, Em países como os Estados Unidos ou o Canadá, a con-
e mesmo culturais, na Europa e-na América do Norte, entre as cepção política de nação é mais permeável a demandas dife-
décadas de 1980 e 1990. Nesse período, havia, por exemplo, renciadas, por isso o Estado adota medidas de reconhecimento
desde conflitos culturais entre diferentes comunidades de imi- e/ou políticas como as ações afirmativas que visam, por exem-
grantes de ex-colônias na Inglaterra, na França e na Holanda plo, a ampliar o acesso de negros e mulheres às universidades,
até, na América do Norte, a rivalidade entre as partes de fala e mesmo a postos de trabalho. ,..
francesa e inglesa no Canadá, que levou a uma tentativa de No Brasil, em que a República foi criada em fins do XIX
transformar o Quebec em um outro país. Nos Estados Unidos, de forma a preservar os privilégios das classes dominantes
no início da década de 1990, entraram para a história episó- brancas, ricas e letradas, em fins do século XX começamos
dios de conflitos raciais entre negros e brancos, como os que a ver a emergência - com muita polêmica - de demandas
se passaram em Los Angeles. É nesse contexto histórico de de reconhecimento e ações afirmativas. As políticas gover-
grande preocupação social que surge a demanda por reflexões namentais criadas sob o rótulo da diversidade buscam fa-
acadêmicas e políticas apaziguadoras e conciliatórias. zer frente a esse novo cenário cultural e político tão recente
Assim, em 1990, é lançado um texto fundamental sobre quanto imprevisível.
o tema, The Politics of Recognition (A política do reconheci- Creio que a razão histórica da oltadas
mento), do filósofo canadense Charles Taylor. Nesse artigo, 'para a diversidad:.. fica clara mas mais difleil-é-compreeader
há uma reflexão que serve de base para boa parte do que foi o que há de problemático na perspectiva da diversidade. Na
produzido daí em diante sobre diversidade, tanto em termos minha visão, as demandas sociais são e reconhecimento da ,

48 49
diferença, mas o filtro político as traduz na lin a em da tole- he emônica. Em resumo, uma política da diferença emerge
rância da diversidade. Tolerar é muito diferente de reconhecer como crítica.do -m ticu tura ismo e era retórica a-diversi-
~ o Dutro, de valorizá-lo em sua es ecificidade, e conviver com dade, afirmando a necessidade de ir além da tolerância e da
adiversidade também não quer dizer aceitá-Ia. Em termos te- , - inclusão mudando a cultura como um.todo po .o da-i
óricos diversidade é uma no ão derivada de uma conce ão corporação da diferença, do reconhecimento do Outro como
uito problemática, estática, de cultura. É uma conce - de 2.ªrte de.todos-nós,
eultul"a-muito-fr-aGa~ak~-ma:.bá pessoas que destoam A diversidade trabalha com uma ideia de poder horizon-
c.v-... da média e devemos tolerá-Ias, mas ca~m se mantém nõ
tal, por isso eu gosto do mote popular que define o multicultu-
J?z..,~_ seu quadrado e a cultura dominante permanece intocada ôr
ralismo como "cada um no seu quadrado", porque ele traduz,
-'5 ~ esse Outro. Na escola, seria como se disséssemos: estaremos ironicamente, como isso visa a manter as relações de poder
J ) na mesma sala, mas você não interfere na minha vida e eu não intocadas. Ao con.!Dírio, na perspectiva da dif@f€Hça, reside..a...
~"' interfiro na sua e não interferiremos na de fulano. Além de ser ~proposta de mudar as relações de poder.
impossível ocupar o mesmo espaço sem se relacionar e inter-
Veja-se, por exemplo, a proposta queer de repensar o
ferir, a ret~rica d!.Ldiversidade parece buscar manter intocada
aprendizado a partir da experiência da humilhação e do xinga-
a.cultura dominante, criando a enas condições de tolerância
mento. Quer dizer, é você tomar o que não era nem considera-
para os diferentes, os estranhos, os out~.
do passível de ser feito como ponto de partida. É ressignificar
Não por acaso, a Teoria Queer e os Estudos Pós-Colo- como fundamental o que antes não era trazido ao discurso
niais surgem articulados a uma reação crítica a essa retórica como questão: a normalização pela injúria e pela humilhação.
da diversidade, também conhecida como multiculturalismo. Em uma perspectiva das diferenças, queer, não normativa, ao
Em 1993, por exemplo, ela é ironizada por Michael Warner, invés de permitir que o processo educacional continue a usar
na primeira compilação de estudos queer, intitulada Fear of essas ferramentas para forçar as pessoas a "entrarem nos ei-
a Queer Planet (Medo de um mundo queer) como "a política xos",pode-se pensar na possibilidade de usá-Ias para modificar
do arco-íris': a utopia de uma sociedade em que as diferenças o processo educacional. ,...
conviveriam em harmonia, assim como apresenta a bandeira
Estamos diante de uma proposta de lidar com as dife- ~
do movimento homossexual, criada na década de 1970.
tenc e e chamana e uma proposta tsubalternà. Sin-
~ No mesmo <Ul..<1..Homi Bhabha publicou um artigo inti- tonizados com a definição que a feminista Ioan W. Scott 'to
,..,-\ ' tulado" outra uestão': no qual coloca em xeque a ideia de atribui a diferença como a "desig~aç~o do outro, que disti~- . ~
~ diversidade, por que as pessõã$ não estao emandando to e- g~oTias-de-p-esS()a:s-a partir de uma norma presumI:.. "X.
"'1-::s:::...- rância, mas sem reconhecimento, passa pela transformação .da.(IllIJitas vezes não exp-licitada)" (SCOTT, 1998, p. 297), é ~
~ da cultura hegemônica. Ou seja, não adianta dizer: "vivemos possível pensar em um exer~ transformador de trazer ao \
numa sociedade universalista, a cultura é para todos"; pois aí discurso, e questionar, esta norma presumida que, por tanto
tem espaço para cada um, desde que a cultura continue sendo tempo dirigiu o aprendizado a favor do poder hegemônico.
'""o que ela é. A dos ós-col .. ,..dos qll suma, Desconstruir as normas e, sobretudo, as convenções culturais -;.
~ dos saberes subalternos, é-a de.uma política da diferen a, o impostas por uma tradição que se imiscui em nosso cotidiano
econhecimento de quem é diferente pratransformar a cu~ violentando nossos desejos e mesmo nossa humanidade seria

50 51
um primeiro passo insubordinado
mação da cultura.
no caminho da transfor-

Na visão das correntes teóricas e políticas inspiradas


-
subalternizados. Enquanto a perspectiva da diversidade tenta

uma questionável harmonia, a perspectiva das diferenças nos


-
inserir diferentes na sociedade evitando contatos em nome de

convida sempre ao contato, ao diálogo, às divergências, mas


pelas diferenças, é necessário çnmpreender o processo de su-
também à negociação de consensos e à transformação da vida
balternização pra mudar a ordem heKe~a. Em outras pa-
coletiva como um todo.
lavras, elas releem e reatualizam o marxismo na vertente cul-
turalizada do pensador italiano Antonio Gramsci. De forma A perspectiva das diferenças é mais democrática porque
geral, segundo Gramsci, a cultura hegemônica não é resultado nos convida a descobrir a alteridade como parte não reconheci-
de uma dominação coercitiva direta, mas, antes, o resultado da do que somos, em vez de um atributo ou a identidade de um
de um contexto em que os próprios subalternizados apoiam Outro incomensuravelmente distinto de nós mesmos. Quando
os dominantes. A hegemonia é resultado da cumplicidade dos falamos de "Outros" sociais, pensamos que a diferença é algo
dominados com os valores que os subalternizam. Na perspec- que não existe em nós, mas ela existe, apenas foi normalizada,
tiva dos saberes subalternos - aqui com reendidos como o apagada ou ignorada. Infelizmente, aprendemos a nos ver como
feminismo, a Teoria Queer e os studos Pós-Coloniais -, de- seres mais respeitáveis socialmente quanto mais negamos nos-
vemos colocar em xeque a forma de criaçao o con êcírnento sas divergências e idiossincrasias. Só que elas existem e se ma"
atual, a epístemología.vígente, de forma a mos rar como seu nifestam cotidianamente, muitas vezes na forma de frustração
poder e autoridade derivam não de sua neutralidade científiCa, de algum anseio que permanece inarticulado, expresso apenas
mas sim de seu comprometimento com o poder. como tristeza ou um sentimento repentino de solidão.
Na esfera das práticas sociais, em particular na educação, Daí a perspectiva não normativa de educação mostrar que
uma perspectiva subalterna exige essa atenção ao que os pro- a ex eriênclà a a15Jeçaonão diz respeito apenas a quem foi
cessos educacionais antigos mais temiam: a diferença, o ines- qualificado de anormal, estranho, mas constituiu quem rré
perado, o criativo, o novo, o que realmente pode mudar a or- somos e muito frequentemente o que a sociedade nos fez crer
dem do poder. Distinguir entre diferença e diversidade a·uda que é o que há de pior em nós. A educação, mfelizmente, até
a compreender mais claramente a proposta queer. Uma pers- hoje se constituiu em um conjunto de técnicas que busca fazer
pectíva.não normativa pode causar mudanças mesmo dentro o Outro ser do jeito que a gente quer. E isso é realmente muito
de programas que têm o título de diversidade. - triste, algo autoritário, normativo, violento. A gente aprende a
A diversidade serve a uma conce ão horizontal de rela- ensinar como se ensinar fosse um processo bem -sucedido em
ções sociais que tem como objetivo evitar a divergência e, so- que no final, todo mundo pensa como você, age como você e
bretudo, o conflito. Por sua vez, lidar com as diferenças im õe vive como você. Talvez, espero, tenhamos começado a reava-
encarar as relações sociais em suas assimetrias e hierarquias, liar isso, e, ao invés de educar para homogeneizar ou alocar
reconhecendo que a divergência é fundamental em um contexto confortavelmente cada um em uma gaveta, estejamos come-
-J.I.W~~c!.:ra~'
t~ico.Reconhecer diferenças é um primeiro passo Qara çando a aprender a nos transformar por meio das diferenças.
questionar desigualdades, o que pode criar conflito, mas tm;-
bém consenso na necessidade de mudar as relações de poder
em benefício daqueles e daquelas que foram historicamente

52 53
Capítulo -111.

Um aprendizado
pelas diferenças

Chegamos, por fim, aos desafios de uma educação não


normalizadora, ou, como eu preferiria pensar, um aprendiza-
do pelas diferenças. Serei mais breve nessa parte porque ela se
re ere a uma possibilidade e só o tempo dirá se ela se tornará
algo concreto. Também porque não é nenhum segredo que
sou apenas um sociólogo em diálogo com a área de educação,
alguém treinado mais teórica e metodologicamente do que
para o difícil exercício de articular conhecimento e prática.
O grande desafio na educação talvez permaneça o mes-
mo: o de repensar o que é educar, como educar e para que
educar. Em uma perspectiva não normalizadora, educar seria
uma atividade dialógica em que as experiências até hoje invisi-
bilizadas, não reconhecidas ou, mais comum ente, violentadas,
passassem a ser incorporadas no cotidiano escolar, modifican-
do a hierarquia entre quem educa e quem é educado e buscan-
do estabelecer mais simetria entre eles de forma a se passar
da educação para um aprendizado relacional e transformador
para ambos.
O título deste livro, Teoria Queer: um aprendizado pelas
diferenças, surgiu dessa ideia de uma educação que não impu-
sesse modelos preestabelecidos de ser, de se compreender e de
classificar de uns aos outros. Isso para que a educação buscasse
deixar de ser um dos braços de normalização biopolítica para
o Estado e passasse a ser um veículo social de desconstrução
de uma ordem histórica de desigualdades e injustiças. De certa
maneira, isso se configura como a compreensão da educação
para muito além da escola, em suas relações profundas - apesar

55
de frequentemente pouco exploradas - com os interesses co- aparato educacional sob o controle do Estado, o que se Pé!s-
letivos, sociais e políticos. Nas palavras da também socióloga sou nos países centrais ainda no século XIX. Vale a pena
Berenice Bento: pensar como aqui, no Brasil, em que a democratização do
Para se compreenderem os motivos que fazem da escola acesso à educação básica se deu tão tardiamente e se apro-
um espaço destinado, fundamentalmente, a reproduzir os fundou recentemente, após a redemocratização, em meados
valores hegemônicos, é necessário sair desse espaço, am- dos anos 1980, isso já se deu dentro de uma relação menos
pliar nosso olhar para a própria forma como a socieda- submissa entre a sociedade civil e os interesses estatais.
de produz as verdades sobre o que deve ser reproduzido,
quais os comportamentos de gênero sancionados e por que Sugiro que a recepção e o interesse atual da área da Edu-
outros são silenciados e invisibilizados, qual a sexualidade cação brasileira nas questões das diferenças de gênero, raciais
construí da como "normal" e como gênero e sexualidade se e sexuais têm relação com o momento histórico em que a ex-
articulam na reprodução social. Essas questões não podem
pansão do sistema de ensino se deu em nosso país. Em outras
ser respondidas exclusivamente nos limites da escola. Há'
um projeto social, uma engenharia de produção de corpos palavras, nós, tanto acadêmicos quanto educadores/as, esta-
normais, que extrapola os muros da escola, mas que en- \ mos criando diálogos antes incipientes graças a uma recente
contrará nesse espaço um terreno fértil de díssernínaçêe-> democratização da sociedade brasileira.
(BENTO, 2011, p. 555-556).
Nesse contexto, não é mero acaso que tanto se fale sobr~
O primeiro passo nessa direção me parece ser o de iden- os conteúdos usados em sala de aula, já que apenas em socie-
tificar e desconstruir os pressupostos de neutralidade sob os dades democráticas se pode discutir e reavaliar o que se con-
quais se assentaram durante tanto tempo o processo educati- sidera como relevante de ser aprendido, ao invés de tomar os
vo e o espaço escolar, ambos associados ao que Bento chama livros, por exemplo, como portadores de saberes obrigatórios.
de "engenharia de produção de corpos normais': Algo apenas Considero interessante a proposta de criar outros materiais
viável quando educadoras, mesmo mantendo seus pés na sala escolares ou mesmo lidar com o material disponível de outra
de aula, ampliam seu olhar para o que vincula o cotidiano ali forma. Ao invés de encarar o material como conteúdo a ser
dentro com o espaço mais amplo das interações além dos mu- assimilado e decorado, seria inteiramente pensar nele como
ros da escola. Nesse sentido, posso dar meu testemunho de base para refletir e questionar. Diante de uma imagem familiar
que foi essa constatação que me fez compreender o que tem branca, heterossexual e de classe média estampada nas páginas
vinculado meu trabalho como sociólogo com o de profissio- de um livro de alfabetização, caberia um exercício de desenhar
nais área de educação: nossos esforços se encontram na per- a mais próxima de cada um dos estudantes em todas as suas
cepção de como o processo educativo e a reprodução social particularidades no que toca a diferenças socioeconômicas,
estão intrinsecamente ligados. Uma reprodução que, infeh:Jz- número de pessoas sob o mesmo teto, raça, religião, identida-
mente, tende a inculcar e disseminar valores preconceituosos de de gênero, configurações amorosas.
que engendram formas diversas de desigualdade social. Durante a maior parte da história, as referências cultu-
Historicamente, nenhum outro espaço institucional foi rais em torno das quais se desenvolveu o aprendizado cons-
tão claramente usado como uma tecnología de normaliza- tituíam modelos e padrões educativos vinculados ao que o
ção quanto a escola. Como já comentei, a expans~ Estado queria impor como ideal. No Brasil, por exemplo, a
delo de nação ainda hegemônico dependeu da expansão do chamada "ideologia do branqueamento" de fins do século XIX

56 57
e começo do século XX foi sucedida, a partir da década de imaginar, e conhecer nossas origens culturais para além de um
trinta, pela de democracia racial. Estes ideais de nação se ex- imaginário ocidental e europeu ainda é um' desafio.
pressaram e se disseminaram por meio de textos, imagens e Nesse sentido, é revelador como até recentemente não
demais mensagens culturais inculcadas desde a infância na tínhamos acesso a bom material em português sobre História
população educada. A crença altamente contestável de que da África, criado também por pesquisadores africanos e sob
não há racismo no Brasil, ou de que não se deve discutir uma perspectiva que não insere a cultura africana dentro de
questões raciais ou implementar políticas de ação afirmativa, uma ordem mundial moldada pelos interesses e padrões eu~
deriva muito desse ideal de nação fundado em uma imagem ropeus." Abordar criticamente as dinâmicas em que contri-
de harmonia social, a ordem, como condição imprescindível buições culturais africanas e indígenas são reconhecidas em
para alcançarmos o progresso.
sua incorporação subalternizada em nosso país é um exer-
Historiadores e sociólogos mostram como toda nação é cício promissor no desenvolvimento de uma nova ideia de
imaginada como uma comunidade com fronteiras que defi- nação brasileira, mais próxima das experiências concretas do
nem quem dela participa e quem é dela excluída, ou seja, a povo e positivamente mais distante dos velhos ideais de nos-
nossa imagem de nação também comporta discriminações e sas elites. Ao contrário do que afirmam os defensores atuais
exclusões. Encará-Ias é reconhecer a existência de diferenças, da manutenção da teoria da democracia racial, a verdadeira
dissonâncias e dissidências na sociedade em relação, ao que o democracia só surgirá quando interpretações do que somos
Estado tentou construir como ideal. Trata-se de um exercício dialogarem com as experiências concretas e diversas de nos-
intelectual e político de mirar a sociedade como algo distinto sa população distribuída por um território tão vasto quanto
e mais rico do que os modelos querem aceitar. A educação, marcada por experiências e especificidades culturais diversas
e a escola em particular, tendeu a ser usada como um meca- e pouco reconhecidas.
nismo de socialização que era também de normalização das Não por acaso, a concepção dominante de nação tendJ
diferenças, seu apagamento ou enquadramento nos modelos
que interessavam aos interesses políticos do alto.
a minimizar o papel das mulheres, vistas apenas como mãe:-~ \ 1.
esposas, restritas ao espaço doméstico, portantõ" confinadas à ~~
No Brasil, esses interesses foram marcados por um ideal reprodução e ao cuidado dos homens, apresentados como os ) y

de nossas elites políticas, intelectuais e econômicas de criar verdadeiros cidadãos nacionais, senhores do espaço público e '<;
uma "civilização nos trópicos': uma nação à semelhança dos da política. A historiadora Margareth Rago mostrou como até
modelos europeus ou norte-americanos. Um ideal que igno- meados do século XX mulher pública era sinônimo de pros- \
rou ou deu menos relevância à influência da cultura africana tituta, o que desqualificava a mulher para a esfera do poder e
e da indígena para o que somos hoje em dia. A ideia ainda associava a sexualidade feminina ao crime e ao romPimentoJ
corrente de miscigenação como sinônimo de brasilidade, por da moral. Se, desde a década de 1960, as feministas nos ensi-
exemplo, deixa de explicitar que essa hibridez é sempre apre- naram que o privado é político, ainda enfrentamos a dificuldade
sentada de forma a priorizar o que nos aproxima do Ocidente
branco usando ou reconhecendo a influência de outras cultu="
17 Refiro-me aqui à importante tradução da História geral da Africa para o português,
ras apenas para nos singularizar nesse Ocidente. Mas o Brasil
coordenada por meu colega de departamento, Valter Roberto Silvério, e disponível
é mais diverso do que o ideal de nossas elites jamais conseguiu para download livre no site da UNESCO: cwww.unesco.org».

58 59
de reconhecer e mudar os termos em que as relações de poder forma de preconceito que só recentemente começamos a reco-
se dão na esfera da sexualidade e do desejo. nhecer como digna de recusa. O que quero dizer é que a de-
A esfera da sexualidade e do desejo, mais presente no mandas de normalidade atingem as pessoas para muito além
chamado "currículo oculto': ainda aguarda por ser trazida ao do . , . hete - o -
discurso e ao debate como parte constitutiva do que apren- Temos que encarar o desafio possível de lidar com a
demos a compreender como mais íntimo, pessoal e, muitas sexualidade como algo cultural e que influencia todos os
vezes, o que nos é mais caro. Assim, valeria começar retirando aspectos da nossa vida em sociedade. Precisamos repensar
a heterossexualidade da posição de sujeito universal neutro, nossos modelos de recusa, mas também os de aceitação. Nes-
perceber que os programas educacionais, as escolas, as ordens se sentido, temos que olhar mais criticamente para as repre-
arquitetônicas são construídas numa perspectiva heterossexis- sentações culturais com as quais vivemos, nos divertimos e
ta, a qual faz valer a heterossexualidade compulsória e/ou a também aprendemos. Poderíamos tentar inserir ruído, in-
heteronormatividade por meios antes invisíveis de violências, serir dúvida sobre coisas que antes ainda eram vistas como
das quais as mais óbvias e mortais têm sido progressivamente naturais ou indiscutíveis.
identificadas como homofobia.
De certa maneira, as diferenças que ressaltei anteriormen- ~
Mas é importante não "trocar seis por meia dúzia" apenas te se relacionam e se misturam na vida social, daí termos que ~
buscando "incluir" as diferentes expressões da (homos)sexua- pensar nelas como interseccionais. Ao invés de refletir sepa- <;. ~
lidade. Podemos fazer mais e melhor questionando o próprio radamente sobre raça, gênero ou sexualidade, podemos ver "') ~_ ~
binário hetero-homossexual (ou mesmo a tríade hetero- esses eixos de diferenciação social como marcas da diferença, :;.~
homo-bi) como um esquema rígido e restrito que jamais abar- daquele rompimento normativo que coloca em xeque os ideais ,..?)
cou toda a variedade de expressões afetivas e sexuais humanas. que uma sociedade cria sobre si mesma. A educação costuma- ~ 7~
/ Se somos capazes de perceber que as pessoas cada vez menos va ser parte da engenharia social voltada para concretizar essa \ ~

l
cabem
em binários como homem-mulher, masculino-femini- imagem ideal ou modelar por mecanismos normalizadores ~' 'e
no, hetero-homo, é porque mal começamos a compreender que confundíamos como educativos, mas qu'; agora começa- !)... 7 (
como as pessoas transitam entre esses pólos, ou se situam en- mos a reconhecer em seu caráter autoritário e interessado. Em
tre eles de formas complexas, criativas e inesperadas. outras palavras, a educação era fundamental na disseminação ~
A pirâmide da respeitabilidade sexual mudou e não pode de um ideal hegemônico da sociedade, mas parece ter desper-
mais ser compreendida de forma fácil, esquemática ou biná- tado para seu potencial político de transformação do ideal em
ria." Vejamos, por exemplo, quem é mais respeitada: uma lés- algo mais democrático e afeito às experiências subalternizadas.
bica dentro de uma relação estável e talvez até com filhos, ou O ponto de contato da educação escolar com a socie-
uma mulher solteira de 50 anos? Muitas vezes, essa mulher sol- dade, não por acaso, se dá por meio de um diálogo cotidia-
teira de meia idade sofre tanto, mais, ou ao menos uma outra no com a realidade familiar dos estudantes. Ao contrário do
que se pensa, essa proximidade mais visível com a esfera do
18 Refiro-me aqui à ideia de Gayle Rubin de como nossa sociedade tem uma pirâmide privado não restringe seu papel social e político, pois, histori-
da respeitabilidade sexual. inicialmente apresentada em seu artigo Pensando sobre
camente, a família foi criada como uma instituição-chave na
Sexo (1984).

60 61
consolidação da ordem social em que vivemos. Da afirmação das injustiças e do diálogo com os anseios dos/as estudantes.
de que a família é a "célula mater da sociedade': que dissemi- Desejos silenciados antes mesmo de chegarem às palavras, já
nou o mito da família burguesa como base de uma coletividade que lhes falta vocabulário para expressá-los, tanto pela tenra
segura, percorremos um longo caminho para chegar - talvez idade quanto pela forma como a educação tende a restringir
ainda timidamente demais - às problemáticas atuais em que seus horizontes, ao invés de expandi-los.
reconhecemos as violências e desigualdades presentes nesse Giancarlo e sua família se descobriram na linha de fogo,
arranjo doméstico, como o abuso sexual infantil ou a violência pressionados e demandados pelas educadoras a fazer fren-
contra a mulher. Passamos de uma idealização da família para te a demandas sociais de enquadramento a um modelo he-
a contestação de que ela seria necessariamente local de acolhi- gemônico de família. Ele era visto pelas educadoras como
mento, mas ainda temos dificuldade de pensar além dela. um "menino afeminado", para o que buscaram solução de
Constatei isso de forma mais clara quando li um ensaio do diversas formas até chegarem a um diálogo com seu pai e,
jovem sociólogo peruano Giancarlo Cornejo, no qual ele ana- principalmente, com sua mãe. Sinceramente preocupadas
lisa sua própria experiência na escola." Em "A guerra declara- com o bem-estar e o acolhimento desse menino "diferente"
da contra o menino afeminado" (2010), Cornejo relata que sua na escola, professores e psicólogas tentaram compreender
vida escolar foi marcada pela maneira como educadores o viam sua diferença, mas - baseados nas visões hegemônicas sobre
como estranho, delicado, em suma, um menino feminino. Ele gênero e sexualidade - terminaram por reduzir sua diferença
era um ótimo aluno, cumpria com todas as suas tarefas de estu- a algo a ser "sanado". O diálogo com a mãe revelou que ela o
dante, mas não se encaixava na imagem hegemônica de mascu- criara como uma criança inteligente e bem-comportada, mas
linidade. Assim, na perspectiva da escola, mesmo ele não sen- - curiosamente - essas qualidades o tornaram um problema
do "um garoto problema', terminou sendo rotulado como um de gênero na visão dos outros.
"problema de gênero': Seu relato analisa em detalhes as agruras Nessa forma rara e sensível de autoetnografia, Cornejo par-
pelas quais passou dentro da instituição educacional, na qual, te de sua experiência escolar para discutir e criticar as concep-
mesmo com as melhores intenções, as pessoas tentavam mudá- ções dominantes do que é ser homem, mulher, ~asculino ou fe-
-10, adaptá-lo, fazer dele o que não era, tampouco desejava ser. minino. Ao terminar a leitura, percebi como o enfrentamento da
O conflito injusto e desigual entre um menino e a institui- "inadaptação" do menino foi feito de forma que se reforçaram
ção escolar me fez pensar em como a educação ainda é despre- os valores e ideais sociais que o marcavam como diferente. Ao
parada para lidar com as diferenças. Também me levou a re- invés de problematizar o preconceito e as reações dos colegas ao
fletir sobre o desafio que seria transformá-Ia em algo diverso, menino, os profissionais transformaram "a vítima" no problema.
pautada menos pelo objetivo de inculcar valores dominantes e No diálogo com a mãe, nota-se como toda a sua dedicação ao
conteúdos previamente definidos e mais pelo questionamento filho foi desqualificada, pois ela gerou um "menino afeminado"
Sem perceber, as educadoras permitiram que a escola
19 o texto completo foi publicado no número da revista [canos dedicado à Teoria
policiasse tanto o menino quanto a mãe, investigando sua
Queer na América Latina, e Larissa Pelúcio traduziu para o português a versão slfi-
tetizada do ensaio, apresentado originalmente no Seminário Internacional Fazendo unidade familiar e a classificando como uma aberração. To-
Gênero de 2010. Agradeço a Giancarlo Cornejo por autorizar sua republicação do das as lutas e as duras vitórias dessa mulher que era o cabeça
ensaio neste livro, como anexo.

62 63
do casal terminam desqualificadas, e a feminilidade do filho é tem um amigo, ou uma amiga, que vai te acompanhar para o
apresentada como a prova de seu fracasso. O real interesse em resto da vida, e não esse companheiro ou' companheira. Assim,
ajudar foi gerando sucessivos embaraços e violências simbó- quais são as relações que o Estado deveria conhecer como legí-
licas contra o estudante: a começar pela problematização da timas? O casamento, a amizade, qual? Vejam, há questões mais
feminilidade em um menino, passando pela investigação se o profundas que um olhar queer pode trazer sobre nossa vida
modelo de família era adequado até chegar à culpabilização da em sociedade, como: Os pais precisam se casar para terem fi-
mãe, o cabeça do casal, esposa, portanto, de um homem que lhos? Uma mulher pode decidir não ser mãe?
não atendia completamente às demandas de enquadramento Em outras palavras, aprender a olhar para o mundo de
em um ideal de masculinidade que prescreve ser sempre ele o uma maneira não normalizadora exige mais do que pensar em
"provedor': Esse episódio nos ajuda a compreender como as famílias diversas, em inclusão, em mais do mesmo. É possível
diferenças tendem a ser reforçadas pela escola, mas também questionar a própria pressuposição de que é necessário repro-
pode ser pensado como exemplo de como ela se baseia em um duzir o existente quando podemos começar a transformá-lo.
ideal familiar poderoso e injusto. A gente, hoje em dia, pode questionar o que existe, estranhar
Vou dar um último exemplo para tentar esclarecer esse o que nos propõem. Talvez se aprendermos a encarar noss<;>s
limite que ainda enfrentamos quando lidamos com o ideal fantasmas naquele estudante esquecido ou acuado num canto
normativo de família como base da sociedade. No final do da sala, feito um corpo estranho, motivo de chacota, piadas,
curso Gênero e Diversidade na Escola da UFSCar em 2009, risinhos e, fora da sala, de empurrões, xingamentos e outras
pedimos que as educadoras fizessem um projeto de aplicação violências. Por que ele ou ela está ali neste local do incômodo,
do que tinham aprendido no curso em suas escolas. A maioria do que precisa ser exorcizado pela indiferença ou pela estig-
fez trabalhos sobre como respeitar as diferenças. Vira e mexe matização, senão porque a sociedade teme algo nele/a? Isso
surgia um trabalho sobre famílias diversas em que propunham exige exorcizar não esse corpo estranho na sala de aula, mas o
atividades que mostravam que há famílias com dois pais, famí- medo que constrói a gramática educativa atual, ainda voltada
lias com duas mães e por aí vai. Mas uma educação não nor- para guardar esqueletos no armário. --
mativa pode ir além disso. Pode questionar se realmente todos O que aconteceria se o estudante que incomoda pudesse
se casarão e/ou constituirão famílias. Todos deveriam se casar? falar em suas próprias palavras, ou melhor ainda, se a educa-
E quem não se casa? O casamento é necessário para constituir dora lhe fornecesse um novo vocabulário para se compreender
uma família? E as famílias fora do casamento são menos famí- e uma nova gramática? Nos termos de Gayatri Spivak, o subal-
lia? Afinal, o casamento é obrigatório? Viver sozinho é proi- terno não pode falar não apenas porque sua voz é inaudível no
bido? Alguém sem par deve ser socialmente desqualificado? sistema capitalista, mas também porque ele ou ela não encon-
A pessoa com quem alguém se casa é realmente a pessoa tram palavras disponíveis para as formas de opressão e desi-
mais importante da sua vida? Na luta pelo casamento gay, [u- gualdade em que se encontram. Na visão da feminista pós-co-
dith Butler recentemente ousou perguntar: por que a pessoa lonial, o silêncio e a invisibilidade em que se encontram mui-
com quem você tem uma relação amorosa e sexual é justa- tas pessoas não será rompido apenas com a melhora de suas
mente aquela da qual você vai exigir um contrato com garan- condições econômicas, mas apenas quando nós, intelectuais,
tias sobre bens, dinheiro, direitos? Muito frequentemente você repensarmos nosso papel quando criamos conhecimento,

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de modo a não reproduzirmos formas de pensar que relegam população mude para fazer frente às demandas daqueles que
boa parte da humanidade ao inarticulado ou "sem importân- antes eram depreciados, vigiados e punidos e que agora po-
cia': Essa proposta crítica de Spivak pode ser expandida para dem ser reconhecidos em suas singularidades.
a esfera da educação, agora já compreendida como esse espa- A demanda queer é a do reconhecimento sem assimila-
ço dialógico que vincula reflexões sociológicas como a minha ção, é o desejo que resiste às imposições culturais dominantes.
com as experiências inovadoras e provo cativas com as quais A resistência à norma pode ser encarada como um sinal de
educadores e educadoras se defrontam no dia a dia." desvio, de anormalidade, de estranheza, mas também como a
É compreensível que educadoras e educadores se vejam própria base com a qual a escola pode trabalhar. Ao invés de
diante de uma demanda assustadora. Afinal, por que lhes cabe punir, vigiar ou controlar aqueles e aquelas que rompem as
trazer a experiência desse Outro para o centro da sala? A res- normas que buscam enquadrá-los, o educador e a educado-
posta é tão simples quanto difícil: porque o medo e a vergonha ra podem se inspirar nessas expressões de dissidência para o
do Outro também têm eco neles. Não é nada fácil lidar com próprio educar. Em síntese, ao invés de ensinar e reproduzir
o estigma e a abjeção, pois o que faz do Outro motivo de es- a experiência da abjeção, o processo de aprendizado pode ser
cárnio coletivo se transfere para quem ousa torná-lo visível, de ressignificação do estranho, do anormal como veículo de
abrir-lhe espaço, deixá-lo falar. Há um vínculo moral com a mudança social e abertura para o futuro.
alteridade do qual não se pode fugir, por piores que sejam as
consequências para nós mesmos. Às vezes, salvar alguém se
impõe ao nosso próprio direito de autopreservação." Se as
sensibilidades mudaram e formas ocultas de violência hoje
são visíveis e têm até nome é porque novas responsabilidades
se instalam em nossos corações.
A base da pirâmide da respeitabilidade social nos assom-
bra com suas denúncias de maus tratos, a descrição de formas
de sofrimento antes silenciadas e, por isso mesmo, longe de
nossa capacidade de entendimento. Esses fatos e sensibilida-
des demandam que uma das áreas historicamente mais usadas
pra inculcar normas e fazer valer o controle do Estado sobre a

20 Para se aprofundar nessas questões consulte o famoso texto de Spivak já traduzido


para o português como Pode o subalterno falar? (2010). Segundo ela, o papel dos in-
telectuais é o de criticar os fundamentos de uma maneira de conhecer que torna cer-
tas experiências sociais invisíveis ou irrelevantes. Em outros termos, ela atenta para
as violências epistemológicas que marcam a ciência oficial e hegemônica, apontando
a necessidade de construir outros saberes, mais afeitos à realidade daquelas e-éa-
queles cujas vidas - e mortes - não são nem mesmo reconhecidas como existentes.
21 Sobre esse vínculo moral com a alteridade sob ameaça, consultar "Vida precária"
(2011), de Judith Butler.

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RUBIN, Gayle. Thinking Sex: Notes for a Radical Theory of Na escola havia uma psicóloga que me torturava. Ela
the Politics of Sexuality. In: ABELOVE, Henry; BARALY,Mi- aplicava exames que eu não entendia (e ainda não entendo o
chele Aina; HALPERIN, David (Eds.). The Lesbian and Gay sentido): desenhávamos pessoas; a nossa família; fazíamos lis-
Studies Reader. New York; London: Routledge, 1993. p. 3-44. tas de nossos defeitos e virtudes. Ela sempre se queixava com
SCOTT, Joan. A invisibilidade da experiência. Projeto História, meus pais. Lembro-me que uma vez, quando ela chamou a
São Paulo, n. 16, p. 297-325, fev. 1998. mim e aos meus pais, vi claramente meu nome em seu cader-
no de anotações, e no verso dele um X em uma opção que di-
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Between Men: English Literature
zia: "problemas de identidade sexual". Eu não estava presente
and Male Homosocial Desire. New York: Columbia University
Press, 1985. quando ela conversou com meus pais, mas o que ela disse a
eles, e o que eu mais ou menos já intuía, os chateou muito.
, GEDGWICK, Eve. A epistemologia do armário. cadernos pagu,
Parte dessa minha narrativa escrevi inspirado pelo belo en-
Campmas, n. 28, p. 19-54, jan.-jun. 2007.
saio de Eve Sedgwick "How to Bring your Kids up Gay" (2007).

l SILVA, José Fábio Barbosa da. Aspectos sociológicos do ho-


mossexualismo em São Paulo. Sociologia, São Paulo, n. 4, p.
350-360, 1959.
Nesse ensaio, Sedgwick propõe que a figura do menino afemi-
nado concentra com particular virulência a patologização da
homossexualidade. De fato, a psicóloga que mencionei decla-
SPIVAK, Gayatri. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Edi- rou que eu tinha um transtorno de identidade de gênero. Esse
tora UFMG, 2010. tipo de teorias de gênero foram propostas inicialmente por psi-
WARNER, Michael (Ed.). Fear of a Queer Planet: Queer Po- cólogos como Richard C. Friedman, para quem "o homossexual
litics and Social Theory. Minneapolis; London: University of saudável é aquele que já é um adulto e age masculinamente"
Minnesota Press, 1993. (SEDGWICK,1993, p. 156). Sedgwick, além disso, lembra que:
WARNER, Michael. The Trouble With the Normal: Sex, Politics, o movimento gay nunca foi a fundo para atender aos as-
and the Ethics of Queer Life. Cambridge: Harvard University suntos relativos aos meninos afeminados. Há uma razão
Press, 2000.
22 Tradução de Larissa Pelúcio.
23 Sociólogo peruano, atualmente doutorando em Retórica na Unversidade da Califór-
nia, Berkeley.

72 73
desonrosa para essa posição marginal ou estigmatizada à infância". Não obstante, ou talvez por isso mesmo, minha
qual, inclusive, os homens gays adultos que são afemina- intençao seja resgatar essas coaexões e vínculos entre a
dos têm sido relegados no movimento social. Uma razão traIlSgeneridade..e.. a.homossexualídadç. - a e ressa 1-
tar que
mais compreensível que a "afemínofobía" é a necessidade esses limites ou fronteiras tem sido amplamente proble-
conceitual do movimento gay de interromper uma longa matizados no caso das lésbicas masculinizadas (butch) e de
tradição de ver o gênero e a sexualidade como categorias
transgêneros masculinos, como os trabalhos de Judith Hal-
contínuas e coladas - uma tradição de assumir que qual-
berstam (1998 e 2005) mostram. No entanto, no caso das
quer pessoa, homem ou mulher, que deseja um homem
deve por definição ser feminina, e que qualquer pessoa, ho-
feminilidades masculinas estas não parecem ser disputadas
mem ou mulher, que deseje uma mulher deve, pela mesma por gays (BRYANT2008, VALENTINE2007). No que escrevo
razão, ser masculina. Que uma mulher, como uma mulher, a-seguir ó-peà~dar istas de como a atologização êIã
possa desejar outra; que um homem, como um homem, -.-figJ.lra do menino afeminado cria um trepo" discursivo que
possa desejar outro: a necessidade indispensável de fazer tor a impossível desassociar a transgeneridade da homosse-
essas poderosas e subversivas afirmações pareceu, talvez,
requerer que se diminuísse a ênfase relativa dos vínculos
entre os gays adultos e aqueles meninos em desacordo com
-xualidade (masculina).
Quase todos os meus professores me adoravam, mas me
o gênero (normativo) ... Existe o perigo, no entanto, que
lembro que os que lecionavam Educação Física eram parti-o
esse avanço possa deixar o menino afeminado mais uma cularmente hostis a mim. Um desses professores falou com
vez na posição do abjeto inquietante - dessa vez o abjeto meu pai, porque estava preocupado comigo, e disse a ele que
inquietante do próprio pensamento gay... o eclipse do me- eu era muito afeminado, e que todos meus colegas zomba-
nino afeminado no discurso gay adulto representaria mais vam de mim. Meu pai, ao chegar em casa, me repreendeu, e
que um vazio teórico prejudicial; representaria um nó de não hesitou em me culpar pela hostilização sistemática pela
ódio homofóbico, ginecofóbico e pedofóbico internalizado qual eu passava no colégio. Q ando este professor chamou
e arííquílante e um elemento central para a uma análise gay
meu pai para falar sobre o meu afeminamento, tornou-se
afirmativa. O menino afeminado viria a funcionar como o
. evitável e óbvia a patologização do meu corpo, como das
segredo das vozes desautorizadoras de muitos homens gays
minhas performances de gênero. O que não era tão óbvio é
adultos politizados" (p. 157-158).
que, naquele momento, este jovem e atlético professor estava
O menino afeminado é um segredo nas vozes e pensa- reconhecendo a sua própria impotência para modificar meu
mento gay, e isso, pelos motivos apontados por Sedgwick, afeminamento, sua impotência para me fazer o homem que
talvez se deva a um terror à indeterminação de gênero. Final- se supunha que eu deveria ser, e sua impotência para mar-
mente, dissociar a homossexualidade da (menos respeitável) car claramente os limites entre ele e eu. Lembro-me de que
transgeneridade provavelment em sido uma das formas este não era um professor particularmente hostil a mim. De
pela qual a homossexualidade tem aparecido como m-erws fato, sempre me convidava para jogar futebol, ou para correr
ameaçadora, e foi certamente, uma das formas pelas quais ela com ele e seu grupo, para fazer longas caminhadas, para fa-
foi retirada da lista de patologias do Manual Diagnóstico e ET zer abdominais. Na verdade, era bem atencioso comigo. No
tatístico dos Transtornos Mentais (DSM-I1I). Basta recordar
que o DSM-IV, publicado em 1980, foi o primeiro a incluir 24 Tropo é uma figura de linguagem em que ocorre uma mudança de significado, seja
uma nova entrada:" transtorno de identidade de gênero na interna (no nível do pensamento) ou externa (no nível da palavra).

75
74
entanto, eu recusava todos aqueles convites, não me deixava apagamento que aniquilava qualquer possibilidade de futuro.
impressionar por todos os seus esforços, e certamente não lhe Esse apagamento fazia com que o amor (de qualquer tipo) fos-
dava muita atenção. se impossível para mim.
Como Sedgwick afirma, e meu pai nunca pode sequer Não posso negar que compartilhar o segredo me causou
considerar: "Para um menino afeminado protogay, identificar- algum tipo de alívio. Provavelmente, se não o houvesse feito
se com o 'masculino' pode implicar seu próprio apagamento" naquele momento teria integrado a lista de adolescentes gays
(SEDGWICK,1993, p. 16l). O ~e a cultura me demandava era que se suicidam. Mas, em que consistia o alívio? Esse cenário
que me desvanecesse. - - . não questiona necessariamente) a rivatiza ão a omosse-
Halberstam cita uma potente pergunta retirada da obra xua 1 ade nem sua paródica espetacularização C2mo segre-
de Gertrude Stein intitulada Autobiografia de todo o mundo - Estou mais inclina o a pensãr: seguindo Mario Pecheny
(de 1937): "De que te serve ser um menino se vais crescer para (2005), que cita o trabalho de Andras Zempleni, que não é a
ser um homem? " (HALBERsTAM,2008, p. 23 ) . De que me~ ser- revelação de uma verdade interna o que mais alivia, mas, ao
via ser um menino se minha infância era pensada como uma compartilhar um se redo le alzez.csse.em.partícgjar), com-
transição a um espaço e a um nome que me parecia inabitá- partilha-se mbém a anggstia ~a.doLqlle_encarna..a demanda
veis? Por que esse menino não podia ter outros futuros? .Ae ocultá-lo/exibi-~
Por muitos meses sentia demasiada angústia, tinha insô- Essa pode ser vista como a cena em que saio do armário,
nia, me doía a cabeça e o corpo, chorava antes de dormir, me mas me recuso a chamá-Ia e pensá-Ia assim. Nenhum armário
encontrava querendo dizer coisas que não sabia o que eram foi destruído, nem os monstros que o habitavam foram doma-
exatamente, mas que tinha de dizer. Era Natal de 1996, tinha dos e aniquilados. O wdo o 'lica ue fiz ~nha mãe
onze anos, e estava só com minha mãe e meu irmão menor. não foi ue me ajudasse a sair do armário, mas ue o fizesse
E comecei a chorar, a chorar, a chorar com gemidos muito mais...habitável para mim. Eu não saí do armário. Na verdade,
fortes. Então disse para minha mãe que tinha algo para dizer a - ela entrou nele. -
ela, e o que balbuciei foi: "Mãe, acho que eu tenho atração por Neste ponto se faz mais que necessária a seguinte pergun-
homens". Minha mãe também começou a chorar, porque ela ta: Por que uma guerra é declarada contra uma criança? Há
entendeu o que eu quis dizer. Logo, ela nos levou ao cinema uma potente citação de Sedgwick que pode nos dar algumas
para ver uma estúpida comédia de Arnold Schwarzenegger, pistas nesse sentido:
um suposto símbolo de masculinidade heterossexual branca.
A capacidade do corpo de um menino de representar, entre
Mas será que por acaso minha mãe suspeitava que ele também outras coisas, os medos, fúrias, apetites, e perdas das pessoas
podia ser um ícone homoerótico? ao redor [... ) é aterrorizante, quem sabe, em primeiro lugar
Se es menino ( ue eu fui) viveu meses e anos de dor, para elas, mas com um terror que o menino já aprendeu
angustia, pânico (homossexual), foi porque a díade segredõ/ com grande facilidade e, de todos modos, com muita ajuda
r~eia~o é consfitutíva-d-o.:3Iue-clramamos hoje de homõS- (SEDGWICK, 1993 p. 199).

sexualidade (SEDGWICK,1998). Esse segredo em questão-me Toda essa dor, toda a angústia que senti nessa época da
ameaçava com meu próprio apagamento, mas não apenas minha vida, podem também ser pensadas como melancolia. E
da materialidade que eu havia sido, como também com um aqui gostaria de fazer uma contribuição à teoria da m colia

76 77
de gênero de Butler (2001). Uma diferença entre a melancolia verdade interior, uma verdade que era eminentemente sexual.
heterossexual e a h~xual é que, como eu na minha in- Mas essa "verdade interna" não era tão minha. Nos termos de
fância, e a maioria de sujeitos não heterossexuais que conhe- FQY€fttll.t: " qael que.escuta não será só o dono.do perdão, o
ço, temos chorado (ou choramos) por não sermos heterosse- ·uiz ue condena ou absolve; será o dono da verda~e" (Fou-
xuais. Alguém poderia argumentar que não é que choremos CAULT,2007, p. 84). Essa era a "verdade" de uma cultura hete-
ou tenhamos chorado por não sermos heterossexuais (e por ronormativa, não a minha. E como Halperin (2000) argumen-
não podermos amar e desejar sexualmente mulheres no caso ta, a homofobia é uma pretensão de conhecimento. Isso faria
de "sermos" homens), mas que choramos por não termos os . visível que a homofobia tem um fundamento essencialmente
privilégios que a heterossexualidade implica. Mas estas duas prazeroso também, um prazer novo da modernidade sobre o
osições são (tão) diferentes uma da outra? qual Foucault comenta:
Aqueles "tratamentos psicológicos" procuravam, suposta- Frequentemente se diz que temos sido capazes de imaginar
mente, fazer com que minha homossexualidade fosse impro- prazeres novos. Ao menos inventamos um prazer diferente:
nunciável, mas faziam, na verdade, com que ela proliferasse e o prazer na verdade do prazer, prazer em sabê-Ia, em expô-Ia,
que, tudo tivesse a ver com ela. Co o Bu er 2004) ar umen- em descobri-Ia, em nos fascinar ao vê-Ia, ao dizê-Ia, ao cati-
ta, a.homossexualidade em certos contextos pode constituir-se var e capturar os outros com ela, ao confiná-Ia secretamenie,
como uma palavra contagiosa. - ao desmascará-Ia com astúcia; prazer específico no discurso
~dadeiro sobre o prazer (FOUCAULT, 2007, p. 89). -
De fato, em nenhuma parte deste ensaio seria mais per-
tinente fazer referência à seguinte (e muito citada) passagem Não fui O único patologizado por esses professores, psicó-
de Michel Foucault: logas e psiquiatras; o foram também meus pais, especialmente
A sodomia [... ] era um tipo de ato interdito e o autor não minha mãe. Figuras como as do "pai ausente" ou "mãe super
era mais que seu sujeito jurídico. O homossexual do século protetora" não tardaram a aparecer como explicações de (pois
XIX torna-se um personagem: um passado, uma história e teria que ser explicado) meu afeminamento. Esther Newton
uma infância, um caráter, uma forma de vida; assim mesmo cita a obra de Robert Stoller, para quem a figura do menino 'C
uma morfologia, com uma anatomia indiscreta e, quem sabe, afeminado é produto da grande proximidade e presença da "S

uma misteriosa fisiologia. Nada daquilo que ele é escapa a mãe e pouca do pai. Assim, "a verdadeira vilã é a mãe que se ~
sua sexualidade. Ela está presente em todo seu ser: subjacente
'gratifica' muito com seu filho" (NEwToN, 2000, p. 191). De t ~~
em todas suas condutas, posto que constitui seu principio
insidioso e indefinidamente ativo; inscrita sem pudor em seu fato, quem me acompanhava às sessões com diferentes psicó- ~~ <;

rosto e seu corpo porque consiste em um segredo que sem- Iogas era minha mãe. A ela se dirigiam, e sobre ela recaíam as \ '\
pre se trai [... ] A homossexualidade apareceu como uma das atribuições de culpa e responsabilidade. E de que a culpavam
figuras da sexualÍcÍadequando foirebaixada da prática da so- realmente? Talvez por atribuírem a ela aquele que é conside-
domia a uma sorte de androginia interior, de hermafroditis- rado o pior dos crimes: matar seu próprio filho. Nas palavras
mo da alma. O sodomita era um reincidente, o homossexual de Edelman, "[Se] representa a homossexualidade masculina
é, agora, uma espécie (FOUCAULT, 2007, p. 56-57).
através da figura de uma mãe que mata seu filho, e quem por-
As inumeráveis psicólogas às quais fui levado por meus tanto, participa na destruição da continuidade familiar (pa-
pais esperavam de mim uma confissão, a confissão de minha triarcal)" (EDELMAN,1994, p. 167).

78 79
~o a homossexualidade de uma criança se transfi u- Referências
ra em seu assassinato? Creio que Stockton acerta ao postular
que' a frase 'menino gay' é uma lápide para marcar o lugar e
o momento em que a vida heterossexual de alguém morre"
(STOCKTON,2009, p. 7). Em outras palavras, o berço de um

--
menino mariquinha é a lápide de um memno eterossexu .-
A categoria "rnullier" é reiterada uma e outra vez nestas
intervenções disciplinares sobre meu corpo de uma maneira
heteronormativa e misógina, que já Guy Hocquenghem su- BRYANT, Karl. In Defense of Gay Children? 'Progay' Ho-
blinhou: "A 'mulher', que por ~tr~}ado não tem como tal mophobia and the Production of Homonormativity. Sexuali-
nenhum lugar na sociedade, designada como o único ob·eto ties, v. u, n. 4, p. 455-475, 2008.
sexual social, é também a falta atríbuída relaçã homossexual"
BUTLER, Judith. Lenguaje, poder e identidad. Madrid: Sín-
à

(HOCQUENGHEM,2009, p. 54). -
tesis, 2004.
Minha mãe era, assim, patologizada por seu generoso BUTLER, Judith. Mecanismos psíquicos deI poder - Teorías so-
afeto, que por esses "profissionais da saúde" será chamado su-
bre Ia sujeción. Madrid: Ediciones Cátedra, 2001.
perproteção e excessiva arrogância, e que geraria (em mim)
EDELMAN, Lee. Hornographesis: Essays in Gay Literary and
um quadro de neuroses que estaria associado a um ódio em
Cultural Theory. New York; London: Routledge, 1994.
relação às mulheres, que seria no fundo uma projeção de um
ódio fecundo em relação a minha mãe. Minha mãe seria es- FOUCAULT, Michel. Historia de Ia sexualidad 1: Ia voluntad
sencialmente patologizada também por um outro excesso: de saber. México, DF: Siglo Veintiuno, 2007.
por um excesso de masculinidade, que se expressava em sua HALBERSTAM, Iudith, Female Masculinity. Durham; Lon-
relativa independência, em sua voz, em suas atitudes (ou na don: Duke University Press, 1998.
ausência delas), e em ser a principal provedora econômica da HALBERSTAM, Judith. In a Queer Time and Place - Trans-
minha casa. Não era só meu gênero aquele a ser disci linado; gender Bodies, Subcultural Lives. New York; London: New York
o dela também õefa. --- -- University Press, 2005.
Na sua míope vontade de saber, o que nenhuma des- HALBERSTAM, [udith. Masculinidad femenina. Barcelona;
sas psicólogas pôde nem por um segundo considerar, e que Madrid: Egales, 2008.
Sedgwick sabia, e no que eu quero acreditar, é que "estas mis-
HALPERIN, David. San Foucault: para una hagiografía gay.
teriosas habilidades para [que um menino afeminado possa]
Córdoba: Ediciones Literales, 2000.
sobreviver, de filiação e de resistência podem derivar de uma
HALPERIN, David. How to Do the History ofHomosexuality.
firme identificação com a abundância de recursos de uma
Chicago; London: The University of Chicago Press, 2004.
mãe" (SEDGWICK,1993, p. 160).
HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual. In: HOC-
QUENGHEM, Guy. EI deseo homosexual - Con "Terror anal",
de Beatriz Preciado. Espana: Melusina, 2009. p. 21-131.

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PECHENY, Mario. Identidades discretas. In: ARFUCH, Leo-
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SEDGWICK, Eve. Tendencies. Durham: Duke University
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STOCKTON, Kathryn Bond. 7he Queer Child, or Growing
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University Press, 2009.
VALENTINE, David. Imagining Transgender: An Ethnography
of a Category. Durham; London: Duke University Press, 2007.


I
I
82
I
Richard Miskolci é pro-
fessor do Programa de
Pós-Graduação em So-
ciologia da Universidade
Federal de São Carlos.
Coordenou, na UFSCar,
o curso Gênero e Di-
versidade, oferecido na
modalidade a distância
para mais de mil educadores/as em todo o país. A
partir dessa experiência, organizou o livro Marcas
da diferença no ensino escolar (2010). Autor de
diversos artigos sobre sexualidade, gênero e Teoria
Queer, coordena o grupo de pesquisa Corpo, Iden-
tidades e Subjetivações (www.ufscar.br/cis). é pes-
quisador associado ao Núcleo de Estudos de Gênero
Pagu (UNICAMP) e membro do comitê editorial
dos periódicos Cadernos Pagu e Contemporânea
- Revista de Sociologia da UFSCar. Atualmente,
Miskolci desenvolve, com bolsa Produtividade em
Pesquisa do CNPq, investigação sobre o uso de mí-
dias digitais na sociedade brasileira contemporânea.

Este livro foi composto com tipoglilfia Minion Pro


e impresso em papel Off-Set 75g/m21ll Gráfica Paulinelli.
Excelente introdução ao debate em torno da Teoria Queer, o presente livro é escrito
com a precisão e a sensibilidade peculiares a Richard Miskolci, este jovem, inspirado e
talentoso pesquisador das temáticas do corpo, das identidadese das subjetivações. A
partir da narrativa pessoal de suas experiências escolares, marcadas pelo autoritarismo
e pela violência dos anos finais da ditadura militar, adentramos, por meio de uma leitura
leve e aprofundada, numa reflexão balizada pelo desejo de transformar as relações de
poder presentes na escola heteronormativa, que desconhece as múltiplas facetas da
expressão humana e impõe padrões binários daquilo que se espera do "ser homem"
e do "ser mulher".
A Teoria Queer, tal como vem sendo incorporada à cultura e às práticas da sociedade
brasileira, vem questionar os dispositivos de biopolítica que disciplinam e controlam
corpos e desejos, causando sofrimento a quem ousa ser diferente. E vem, assim, propor
um novo olhar para a escola e para a educação, onde a ilusão da neutralidade quanto
à construção ideológica de uma hegemonia identitária .deve ser vinculada a alguns
interesses - e não a outros.
Lidar com o diferente, na perspectiva de também se transformar e se colocar em ques-
tão: eis a provocação queer para uma escola que traz ao discurso as experiências do
estigma e da humilhação, a fim de repensar a si própria em face do convívio humano e
das demandas da sociedade civil.

Keila Deslandes
Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Paris
Coordenadora do Programa de Educação para a Diversidade - UFOP

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autentica
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