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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO NORTE – UERN

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS – FAFIC


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICA – DCSP
DISCIPLINA: TÓPICOS ESPECIAIS EM ANTROOLOGIA
PROFESSOR: DR. FRANCISCO VANDERLEI DE LIMA

AS TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA À LUZ DE HELLER E GIDDENS


Carla Djaine Teixeira

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo discutir sobre as mudanças ocorridas no interior da
família com a inserção da mulher no mercado de trabalho. Assim, serão discutidos os papéis
atribuídos a homens e mulheres, e as transformações das relações sociais marcadas por
antagonismos.
A discussão será realizada a partir das contribuições da socióloga Húngara Agnes
Heller sobre a concepção de família, que coloca a figura feminina no centro do debate, e das
principais ideias sobre as mudanças produzidas pela modernidade do também sociólogo
Anthony Giddens, dando ênfase a transformações das relações afetivas. Das ideias do também
sociólogo Anthony Giddens sobre as mudanças produzidas pela modernidade, sobretudo no
campo das relações afetivas.
A construção da imagem e das funções atribuídas a homens e mulheres e a
consequente relação estabelecida entre eles tem raízes profundas que solidificaram ao longo
do tempo devido à divisão sexual do trabalho, presentes já nas primeiras formas de
organização social, e dos ideais cristãos ligados à criação do mundo. Assim, esta
diferenciação de papeis e funções pode ser explicada por fatores biológicos e socioculturais,
que se cristalizaram através das relações de poder e dominação legitimada pela religião.
É, sobretudo, no cristianismo que a supremacia masculina encontra respaldo. Os
dogmas seguidos por um número significativo de pessoas defendem a ideia que as mulheres
devem ser “submissas a seus maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher,
como Cristo é o chefe da Igreja, seu corpo, da qual ele é o Salvador. Ora, assim como a Igreja
é submissa a Cristo, assim também o sejam em tudo as mulheres a seus maridos” (BÍBLIA
ONLINE. Ef. 5: 22-24). Nesse sentido, o homem se apresenta como a figura que detém o
poder sobre a mulher dentro e fora do contexto familiar.
A divisão das funções familiares e sociais se dá, então, a partir da noção de público e
privado, na qual o homem “deve manifestar sua função dominante sobre a terra, o sistema e a
mulher, ou seja, cuidar de assuntos de foro público e notório” (SILVA, 2012. p.5). Enquanto a
mulher deve se encarregar das atividades relativas ao espaço privado, familiar, que seria “o
campo dos sentimentos, da fragilidade, da doçura, do amor; sua responsabilidade é parir e
cuidar dos filhos, do lar e do bem estar do homem dentro desse ambiente” (SILVA 2012. p.5).
À mulher é atribuído o trabalho de reprodução e cuidado do lar, sem nenhum tipo de
remuneração. Suas funções se restringem a ser mãe, esposa e dona de casa, ou seja, apenas ao
núcleo familiar. Enquanto ao homem são designados os trabalhos na esfera produtiva, e,
consequentemente, no espaço público e no poder, sendo remunerado por desempenhar suas
funções. No entanto, a partir da inserção da mulher no mercado de trabalho nas sociedades
modernas essas relações são transformadas.

AS TRANSFORMAÇÕES NA FAMÍLIA
A definição de família encontrada atualmente nos dicionários diz respeito a um
“núcleo social de pessoas unidas por laços afetivos, que geralmente compartilham o mesmo
espaço e mantém entre si uma relação solidária” (HOUAISS 2016 apud IBDFAM 2016). No
entanto, a origem desta palavra está associada ao termo em latim “famulus”, que significa
“servo ou escravo doméstico”. Diante disso, é possível perceber que na medida em que se
transformam as relações, também se transformam seus significados.
Mudanças substanciais na estrutura da família ocorreram a partir da inserção da
mulher no mercado de trabalho. A participação ativa e efetiva das mulheres nas instituições
sociais, a princípio, ocorria apenas na esfera familiar, onde estas tinham como atribuição
principal o cuidado destinado aos filhos, ao lar e ao marido. Além disso, desempenhava um
papel fundamental na agricultura e na dedicação da preservação da saúde dos integrantes da
família e na educação dos filhos (HELLER, 1978).
De acordo com Heller (1978), a família tinha como uma de suas principais funções a
inserção das crianças na sociedade por meio da interiorização das normas sociais, para isso
deveria também protegê-las dos perigos criados pela própria sociedade, e isto aconteceria por
meio da educação.
A participação da mulher, nesse contexto, se dava a partir da perspectiva de mãe
amorosa que atuaria como mediadora da postura autoritária do marido para com os filhos.
Surge daí dois papéis antagônicos: a mãe como uma figura afetiva e o pai como o dominador
que estabelece uma relação de poder sobre os filhos.
No entanto, estes papéis assumem novos significados a partir daquilo que o sociólogo
Anthony Giddens chama de “transformação da intimidade”. Tal fato é caracterizado pela
mudança da essência das relações. Enquanto nas sociedades tradicionais as relações familiares
eram marcadas pelo poder econômico e social do marido, nas sociedades modernas as
relações começam a se pautar no afeto e na emancipação feminina. Assim, a opressão dá lugar
à afetividade e a independência (GIDDENS, 2002; HELLER, 1978).
Com o advento da industrialização, as mulheres inserem-se no mercado de trabalho
pela necessidade de complementar a renda familiar. Isso se dá, também, em grande medida
pelo número cada vez mais reduzido de homens nos processos de produção devido aos
conflitos intercontinentais e as guerras. Aliado a tal fato, mulheres e crianças forneciam uma
mão de obra mais barata (NAVES, 2011).
É equivocado pensar que esta introdução se deu pelo reconhecimento da capacidade
das mulheres de atuarem efetivamente na sociedade, que são sujeitos capazes de desenvolver
as mesmas atribuições e ter os mesmos direitos que os homens. Essa trajetória é marcada pela
desigualdade salarial e de direitos, e pela exploração. Nesse contexto as mulheres passam a
enfrentar uma dupla jornada: são mães, esposas e responsáveis pelo lar de um lado, e de outro
são trabalhadoras assalariadas que atuam foram do ambiente doméstico.
A rotina doméstica aliada à agitação do trabalho nas sociedades modernas faz com que
as mulheres tenham dificuldade em conciliar as duas esferas de suas vidas. Este fator faz com
que as mulheres, que antes tinham como uma de suas tarefas principais a educação dos filhos,
vejam-se sem tempo para executá-la. Diante disso, há o crescimento de uma instituição social
que desempenhará um papel muito importante na formação das crianças: a escola. (HELLER,
1978).
A instituição escolar passa a assumir um papel que outrora era desenvolvido pela
família, o de educar as crianças. A escola passa então a ser uma das responsáveis pelo
processo de socialização infantil, preparando as crianças para o convívio em sociedade por
meio da interiorização das normas sociais.
Ainda de acordo com Heller (1978), cabia, sobretudo, a figura masculina a proteção
social, isto é, a preparação dos filhos para lidar com a sociedade e os problemas que dela
advinham. A mãe cabia protege-los dos excessos de autoridade do pai. Com a escola
assumindo este papel, o pai pode assumir o papel da figura amorosa.
Analisando as produções feministas, Giddens (2001) começa a retratar as
transformações na estrutura e nas relações familiares. É nesse contexto em que as mulheres
desempenham duplas ou triplas jornadas, segundo ele, que surgem as exigências por uma
divisão de tarefas justas no âmbito domiciliar.
Diante disso, é possível perceber que “nos últimos decênios cresceu o número de
mulheres que passaram a aumentar a força de trabalho. Com este ‘ganho’, sentem-se em
pleno direito de solicitar ao marido que faça também a sua parte no trabalho doméstico”
(HELLER 1978. p. 18. Grifo do autor). Além disso, o vínculo que outrora definia uma
família, era a institucionalização do casamento, agora centra-se na afetividade das relações
entre seus membros. As relações familiares que antes eram marcadas pelo domínio masculino
passam por um processo de busca pela igualdade. (GIDDENS, 2001)
Podem-se destacar, até o momento, três grandes rupturas na estrutura da família: a
autonomia financeira da mulher possível através da inserção mercado de trabalho; a
centralização do casamento nos laços afetivos e não na sua institucionalização, e a
transferência da responsabilidade da educação para a escola. Decorre daí uma quarta mudança
e conquista fundamental para as mulheres: a legalização do divórcio (GIDDENS, 2001).
A conquista do divórcio traz consigo a possibilidade de liberdade e autonomia sexual
para as mulheres, pois a elas nada era concedido, suas vontades estavam submetidas à de seus
maridos. Deveriam permanecer recatadas por exigência da sociedade e da religião, o valor da
“castidade feminina” precisava ser constantemente reafirmado (HELLER, 1978).
Nas relações da modernidade as mulheres podem relacionar-se da forma como
julgarem conveniente sem a necessidade da institucionalização do casamento. Com isso,
surgem às uniões tardias, as famílias tem um número cada vez menor de filhos; os
relacionamentos informais aumentam, uma vez que não há a necessidade de oficialização de
casamento.
Estas transformações possibilitaram a formação de novos arranjos familiares. A ideia
de família nuclear deixa de ser vista como a única configuração familiar possível, passando a
serem reconhecidas também as famílias monoparentais, formada apenas por um dos pais e o
filho e recompostas, e as famílias recompostas, nas quais os casais, ao separarem-se formam
novas famílias e integram/agregam seus filhos à sua nova família.
Estes agregados também ser gerados pela “adoção de família”. Isso significa que os
filhos de pais divorciados os filhos de pais divorciados passam a ter duas famílias: a família
do pai, ou mãe genitora e seus respectivos companheiros e filhos (GIDDENS, 2001). Para
Giddens as relações sociais tornaram-se complexas ao ponto de os membros dos novos
arranjos familiares não saberem como referirem-se uns aos outros. Para ele,
Muitas pessoas, adultos e crianças, vivem hoje em famílias "de adoção" —
em geral não, como em épocas anteriores, em consequência da morte de um
dos cônjuges, mas por causa da reorganização de laços familiares após o
divórcio. Uma criança numa família "de adoção" pode ter duas mães e dois
pais, dois conjuntos de irmãos e irmãs, além de outras relações complexas de
parentesco resultantes dos múltiplos casamentos dos pais. Até a terminologia
é difícil: deveria a madrasta ser chamada de "mãe" pela criança, ou por seu
nome próprio? (GIDDENS; 2002. p. 19)

As transformações surgidas com a possibilidade de garantia de saúde e educação pelo


Estado, liberdade sexual, a desinstitucionalização do casamento, o divórcio, e, sobretudo a
autonomia financeira das mulheres fizeram com que as principais funções da família
perdessem espaço na modernidade. Portanto, o casamento não se faz mais necessário para
constituir uma família, assim como não há mais necessidade de mulheres terem maridos que
sejam seus provedores econômicos. A educação dos filhos é em grande medida
desempenhada pela escola. Com isso estaria à família perdendo o seu sentido e fadada ao
fracasso? Neste sentido, Heller (1978, p. 27-28) afirma que
Para resolver ao menos teoricamente esta contradição é preciso imaginar um
tipo completamente novo de comunidade, baseada na associação de cidadãos
livres e iguais. Uma comunidade se torna associativa se se pode aderir
livremente a ela e se é possível abandoná-la sempre que assim desejar (...).
Se se tem um lar não se pode ser livre de todo. Mas, se não se tem um lar
para onde retornar, onde encontrar os amigos, onde se é conhecido e
compreendido, onde se pode relaxar completamente, não se pode ser
emocionalmente seguro.

Nesse sentido, embora a família tenha perdido espaço no desenvolvimento de uma de


suas principais funções, a proteção social e a educação de seus filhos, foi possível perceber o
surgimento de novas demandas e papéis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações no interior da família estão amplamente ligadas à participação ativa da
mulher na sociedade. As mulheres deixam de ser unicamente mães, esposas e donas de casa,
e, neste contexto o feminismo contribuiu na atuação da luta pelo direito a igualdade. Ele se
apresenta, portanto, como um movimento libertário que luta não só pela conquista dos direitos
trabalhistas, sociais e políticos das mulheres. Mas por uma nova forma de relacionamento
entre homens e mulheres, em que esta última tenha liberdade e autonomia para decidir sobre
sua vida e seu corpo.
Assim, com o surgimento de novas demandas, a família vê sua estrutura transformada,
perdendo a centralidade na figura masculina, diminuindo a dominação sobre as esposas e
filhos, e que agora se veem ocupados em outros espaços. O papel da família nas sociedades
tradicionais era garantia da inserção na sociedade e a proteção dos males produzidos pela
própria sociedade. No entanto o ritmo acelerado das sociedades modernas fez com que essa
função fosse, em grande medida, desempenhada pelas escolas.
Embora as transformações das relações familiares sejam inegáveis, fatos como a
legalização do divórcio, a liberdade sexual da mulher e o surgimento de novas famílias não
estão isentos de preconceitos. As cobranças que envolvem a “boa conduta” das mulheres
ainda hoje são realizadas. É preciso, portanto, levar em consideração que a construção dos
ideários de gênero estão cristalizados na cultura, e são constantemente reafirmados pelos
preceitos cristãos e por uma parcela da sociedade.

REFERÊNCIAS
BÍBLIA ONLINE. Efésios 5: 22-24. Disponível em:
https://www.bibliaonline.com.br/nvi/ef/5/22-24. Último acesso: 13 de Outubro de 2019;

GIDDENS, Antony. Famílias. In: Sociologia/ Tradução: Alexandra Figueiredo. Coordenação


e Revisão científica: José Manuel Sobral. Fundação Calouste Gulbenkian, 6ª ed. 2001. p. 175-
201. Disponível em:
https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/3114970/mod_resource/content/1/Anthony_Giddens
_Sociologia.pdf. Último acesso: 14 de Outubro de 2019;

GIDDENS, Antony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002. p.
09-39;

HELLER, Agnes. A concepção de família no estado de bem-estar social. Rev. Crítica


Marxista, nº 006. Roma: Riuniti. 1978. p. 5-30;

INSTITUTO BRASILEIRO DA FAMÍLIA (IBDFAM). Dicionário reformula conceito de


família. Disponível em: http://www.ibdfam.org.br/noticias/5990/Dicion
%C3%A1rio+reformula+conceito+de+fam%C3%ADlia. Último acesso: 13 de Outubro de
2019;

NAVES, Elisângela Fernandes et al.. Inserção, conquistas e evolução das mulheres na


política: uma questão de gênero. In: Centro Universitário de Franca Portal de Periódicos
Eletrônicos. v. 3, n.1. 2011. p. 101 – 114. Disponível em:
http://periodicos.unifacef.com.br/index.php/forumadm/article/view/659. Último acesso: 13 de
Outubro de 2019;
SILVA, Carla da. A desigualdade imposta pelos papeis de homem e mulher: uma
possibilidade de construção da igualdade de gênero. In: Revista Eletrônica UNISEP Direito
em Foco. 5ª Edição. 2012. Disponível em:
http://www.unifia.edu.br/projetorevista/artigos/direitoemfoco.html. Último acesso: 13 de
Outubro de 2019.

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