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1
A
Poeira
e
a
Nuvem
“La
poussière
et
le
nuage”,
in:
Perrot,
M.
(ed)
L’Impossible
Prison.
Recherches
sur
le
système
pénitentiaire
ao
XIXe
Siècle,
Paris:
Seuil,
1980,
pp.
29-‐39.
(resposta
ao
artigo
de
J.
Léonard,
“l’historien
et
le
philosophe.
À
propos
de
Surveiller
et
Punir.
Naissance
de
la
Prison”,
ibid.,
pp.
9-‐28.)
Em
1976,
a
historiadora
Michelle
Perrot
fez
uma
conferência
sobre
a
história
das
prisões
em
1848,
na
assembléia
geral
da
sociedade
de
história
da
revolução
de
1848.
Decorreu
daí,
por
iniciativa
da
sociedade,
uma
série
de
estudos
sobre
o
sistema
penal
no
começo
do
século
XIX
que
foram
publicados
nos
Anais
Históricos
da
Revolução
francesa
(n.2,
1977).
Jacques
Léonard
fazia
aí
uma
resenha
crítica
de
Vigiar
e
Punir,
publicado
em
1975,
intitulada
“o
historiador
e
o
filósofo”,
ao
qual
responde
“A
poeira
e
a
nuvem”.
Se
J.
Léonard
reconhecia
em
M.
Foucault
“um
historiador
que
nós
{os
historiadores}
temos
interesse
em
escutar”,
ele
opunha,
à
tese
da
“normalização
massiva,
a
poeira
dos
fatos”
e
comparava
M.
Foucault
com
um
“cavaleiro
bárbaro
que
percorre
três
séculos
com
as
rédeas
soltas”.
O
artigo
de
Foucault
retoma
os
pontos
levantados
por
J.
Léonard.
Dentre
outras
coisas,
aquilo
que
faz
a
força
e
a
originalidade
do
artigo
de
sr.
Léonard
é
o
vigor
com
o
qual
ele
põe
de
lado
o
estereótipo
do
“historiador”
oposto
ao
“filósofo”.
Algo
que
demandou
coragem,
sem
dúvida,
e
uma
visão
precisa
dos
problemas.
Ele
chega
a
este
ponto
de
duas
maneiras.
De
forma
séria,
fundamentando
melhor
do
que
eu
mesmo
jamais
poderia
tê-‐lo
feito,
a
possibilidade
de
uma
análise
histórica
das
relações
entre
poder
e
saber.
De
forma
irônica,
colocando
em
cena
na
primeira
parte
de
seu
texto
um
historiador
fictício,
um
daqueles
“especialistas
no
ofício”,
como
diz,
sorrindo.
Talvez
com
um
pouco
de
crueldade,
faz
com
que
esse
especialista
encene
os
grandes
papéis
ingratos
do
repertório:
o
virtuoso
cavaleiro
da
exatidão
(“eu
talvez
não
tenha
muitas
idéias,
mas,
ao
menos,
o
que
eu
digo
é
verdadeiro”),
o
doutor
de
conhecimentos
inesgotáveis
(“você
não
disse
isso
nem
aquilo,
e
ainda
isto
que
eu
sei
e
que
você
certamente
ignora”),
o
grande
testemunho
do
Real
(“nada
de
grandes
sistemas;
antes,
a
vida,
a
vida
real
com
todas
as
suas
riquezas
contraditórias”),
ele
o
sábio
desolado
que
chora
sobre
seu
pequeno
domínio
que
os
selvagens
acabam
de
saquear:
como
depois
de
Átila,
a
grama
não
mais
verdejará.
Em
suma,
todos
os
clichês:
os
pequenos
fatos
verdadeiros
contra
as
grandes
ideias
vagas;
a
poeira
desafiando
a
nuvem.
Não
sei
qual
o
grau
de
realismo
que
esse
retrato
carrega.
Seria
tentado
(minha
única
reserva
a
esse
texto
ao
mesmo
tempo
divertido
e
notável,
cujo
sentido
profundo
eu
absolutamente
aprovo),
eu
seria
tentado
a
pensar
que
sr.
Léonard
forçou
um
pouco
a
nota.
Emprestando
a
seu
historiador
imaginário
muitos
erros,
ele
tornou
um
tanto
fácil
a
tarefa
da
réplica.
Mas
essa
sátira
do
cavaleiro
da
exatidão,
enroscado
em
suas
próprias
observações,
é
feita
com
suficiente
inteligência
para
que
nós
reconheçamos
nela
os
três
pontos
de
método
que
sr.
Léonard
quer
por
em
discussão.
E
que
também
me
parecem
poder
servir
de
ponto
de
partida
para
um
debate:
1) Sobre
a
diferença
de
procedimento
entre
a
análise
de
um
problema
e
o
estudo
de
um
período;
2) Sobre
o
uso
do
princípio
de
realidade
em
história;
3) Sobre
a
distinção
a
se
fazer
entre
a
tese
e
o
objeto
de
uma
análise.
PROBLEMA
OU
PERÍODO?
A
PARTILHA
DO
BOLO
Desde
Beccaria,
os
reformadores
vinham
elaborando
programas
punitivos
caracterizados
por
sua
variedade,
seu
cuidado
com
o
corrigir,
o
caráter
público
das
punições,
a
cuidadosa
correspondência
entre
a
natureza
do
delito
e
a
forma
da
penalidade
—
toda
uma
arte
de
punir
inspirada
pela
Ideologia.
2
Ora,
a
partir
de
1791,
optou-‐se
por
um
sistema
punitivo
monótono:
o
encarceramento,
em
todo
caso,
é
aí
preponderante.
Espanto
de
alguns
contemporâneos.
Mas
espanto
transitório:
a
penalidade
do
encarceramento
foi
aceita
rapidamente
como
uma
inovação
a
aperfeiçoar,
mais
que
a
contestar
daí
em
diante.
E
ela
permanece
assim
por
muito
tempo.
Daí
um
problema:
por
que
essa
rápida
substituição?
Por
que
essa
aceitação
sem
dificuldades?
Daí
também
a
escolha
de
elementos
pertinentes
para
a
análise.
1) trata-‐se
de
estudar
a
aclimatação
no
novo
regime
penal
de
um
mecanismo
punitivo
imediatamente
designado
a
tornar-‐se
dominante.
Eis
o
objeto;
2) trata-‐se
de
explicar
um
fenômeno
cuja
manifestação
primeira
e
mais
importante
se
situa
nos
últimos
anos
do
século
XVIII
e
primeiros
do
século
XIX.
Eis
o
tempo
inicial
da
análise;
3) trata-‐se,
enfim,
de
verificar
que
esse
predomínio
do
encarceramento
e
a
aceitação
de
seu
princípio
se
mantiveram
mesmo
na
época
das
primeiras
constatações
de
fracasso
(1825-‐1835).
Eis
os
limites
últimos
da
análise.
Nessas
condições,
a
questão
a
se
colocar
a
um
tal
trabalho
não
é:
a
Grande
Revolução
foi
convenientemente
honrada?
As
partilhas
entre
os
séculos
XVIII
e
XIX
são
essas
mesmas?
Os
especialistas
de
cada
período,
como
crianças
rechonchudas
que
se
esbarram
em
volta
de
um
bolo
de
aniversário,
foram
eles
tratados
equitativamente?
Seria
mais
razoável
perguntar-‐se:
1) Quais
são
os
documentos
necessários
e
suficientes
para
descortinar
os
programas
punitivos
previstos,
as
decisões
efetivamente
tomadas
e
as
considerações
que
podem
ter
motivados
umas
e
outras?
2) Onde
procurar
a
explicação
do
fenômeno?
Do
lado
daquilo
que
o
precede
ou
do
lado
daquilo
que
acontece
depois?
Ainda,
as
decisões
de
1791
devem
ser
explicadas
pela
forma
como
se
pensara
até
então
ou
pela
maneira
como
passou-‐
se
a
matar
em
seguida?
3) Os
eventos
posteriores
(a
experiência
dos
tribunais
populares,
a
permanente
guilhotina,
os
massacres
de
setembro
de
1792),
sobre
quais
partes
do
sistema
penal
tiveram
um
efeito?
Sobre
a
organização
das
instituições
judiciárias?
Sobre
a
definição
das
regras
de
procedimento?
Sobre
o
peso
das
sanções
tomadas
pelos
tribunais?
(podemos
supor,
já
que
tudo
isso
estava
modificado
ao
final
da
Revolução).
Mas
o
que
se
passa
com
o
“carcerocentrismo”
das
punições
previstas
que,
ele
mesmo,
não
foi
perturbado
nem
posto
em
questão
por
nenhum
dos
artífices
das
legislações
e
códigos
posteriores?
4) No
funcionamento
judiciário
dos
anos
1815-‐1840,
quais
são
os
elementos
que
manifestam
uma
recolocada
em
questão
do
encarceramento
penal?
Como
se
faz
a
crítica
disso?
Por
que
razões
em
dentro
de
quais
limites?
Em
relação
a
essas
perguntas
que
organizam
a
pesquisa,
o
cavaleiro
da
exatidão,
o
douto
de
infinito
saber
imaginado
por
sr.
Léonard
pode
certamente
acumular
reprovações
quanto
a
omissão;
eles
manifestam,
de
fato:
— ausência
de
rigor
cronológico:
qual
o
propósito
da
supressão
da
pena
de
morte
por
crime
político
em
1848
nesse
estudo
que
pára
em
1840?
— Percepção
confusa
do
objeto
tratado:
a
“sociologia
dos
advogados”
ou
a
tipologia
dos
criminosos
sob
Luís
Felipe
concernem
às
formas
de
punição
escolhidas
em
1791?
— Ignorância
da
regra
de
pertinência:
pois
não
se
trata
de
“se
ater”
a
uma
análise
sobre
os
massacres
de
setembro
mas
de
precisar
em
que
eles
poderiam
ter
um
efeito
sobre
as
decisões
de
1791
ou
em
todo
caso
sobre
suas
transformações
posteriores;
3
— Lacunas
de
leitura
(“ausências”
de
elementos
que
estão
presentes),
apreciações
arbitrárias
(tal
coisa
não
seria
“suficientemente”
sublinhada)
e
contradição
crassa
(se
foi
afirmado
que
a
escolha
em
favor
do
encarceramento
penal
foi
um
estratagema,
foi
por
causa
de
certos
contemporâneos
que
se
pode
ter
tal
impressão;
o
livro
todo
tenta
mostrar
que
não
foi
um
estratagema).
E
contudo,
essa
aparente
confusão
retoma
forma
no
momento
em
que
queremos
reconhecer
nela
os
princípios
de
um
trabalho,
bem
legítimo,
mas
de
um
tipo
muito
diferente
que
a
análise
de
um
problema.
Para
quem
gostaria
de
estudar
um
período,
ou
ao
menos
uma
instituição
num
dado
período,
duas
regras
dentre
outras
se
imporiam:
tratamento
exaustivo
de
todo
o
material
e
repartição
cronologicamente
equitativa
do
exame.
Quem,
ao
contrário,
quer
tratar
de
um
problema,
aparecido
em
um
dado
momento,
deve
seguir
outras
regras:
escolha
do
material
em
função
dos
dados
do
problema;
focalização
da
análise
sobre
elementos
capazes
de
resolvê-‐lo;
estabelecimento
das
correlações
que
permitem
sua
solução.
E
portanto
indiferença
com
relação
a
obrigação
de
dizer
tudo,
mesmo
que
para
satisfazer
o
júri
de
especialistas
reunidos.
Ora,
é
um
problema
que
tentei
abordar:
aquele
que
indiquei
de
início.
O
trabalho
assim
concebido
implicava
em
um
corte
segundo
pontos
determinantes
e
uma
extensão
segundo
relações
pertinentes:
o
desenvolvimento
de
práticas
de
disciplinamento
e
vigilância
nas
escolas
do
século
XVIII
pareceu-‐me,
sob
esse
ponto
de
vista,
mais
importante
que
os
efeitos
da
lei
de
1832
sobre
a
aplicação
da
pena
de
morte.
Não
se
pode
denunciar
“ausências”
em
uma
análise
se
não
se
compreende
o
princípio
das
presenças
que
nela
figuram.
A
diferença,
sr.
Léonard
observou
bem,
não
é
portanto
entre
duas
profissões,
uma
voltada
às
tarefas
sóbrias
da
exatidão
e
a
outra
ao
grande
torvelinho
das
ideias
aproximativas.
Mais
do
que
encenar
pela
milésima
vez
esse
estereótipo,
não
seria
melhor
debater
sobre
as
modalidades,
os
limites
e
as
exigências
próprias
a
dois
modos
de
fazer?
Um
que
consiste
em
se
colocar
um
objeto
em
tentar
resolver
os
problemas
que
ele
pode
colocar.
Outro
que
consiste
em
tratar
um
problema
e
determinar
a
partir
dele
o
domínio
do
objeto
que
é
preciso
percorrer
para
resolvê-‐lo.
Sobre
esse
ponto,
sr.
Léonard
teve
razão
ao
se
referir
a
uma
investigação
muito
interessante
de
Jacques
Revel*.
REALIDADE
E
ABSTRAÇÃO.
OS
FRANCESES
SÃO
OBEDIENTES?
Nesse
“nascimento
de
prisão”,
o
que
está
em
questão?
A
sociedade
francesa
em
um
dado
período?
Não.
A
delinquência
nos
séculos
XVIII
e
XIX?
Não.
As
prisões
na
frança
entre
1760
e
1840?
Nem
mesmo
isso.
Trata-‐se
de
algo
menos
palpável:
a
intenção
refletida,
a
racionalidade
que
foi
posta
em
obra
na
reforma
do
sistema
penal,
assim
que
decidiu-‐se
introduzir
nele,
não
sem
modificação,
a
velha
prática
do
encarceramento.
Trata-‐se
em
suma
de
um
capítulo
na
história
da
“razão
punitiva”.
Por
que
a
prisão
e
a
reutilização
de
um
encarceramento
depreciado?
Podemos
tomar
duas
atitudes:
— colocar
em
cena
o
princípio
da
“comodidade-‐inércia”.
E
dizer:
o
encarceramento
era
uma
realidade
dada
há
um
longo
tempo.
Era
utilizado
fora
da
penalidade
regular
e
às
vezes
nela.
Foi
suficiente
integrá-‐lo
completamente
ao
sistema
penal
para
que
ele
se
beneficiasse
de
uma
instituição
pronta
e
para
que
essa
instituição,
por
seu
turno,
perdesse
o
arbitrário
que
lhe
reprovavam.
*
-‐
“Foucault
et
les
historiens”,
Magazine
Littéraire,
n.
101,
jun
1975,
pp.
10-‐13
4
Explicação
pouco
satisfatória,
se
pensamos
nas
pretensões
da
reforma
penal
e
nas
esperanças
que
a
sustentavam;
— colocar
em
cena
o
princípio
da
“racionalidade-‐inovação”.
Essa
novidade
do
encarceramento
penal
(mal
ou
bem
percebida
como
novidade),
a
que
cálculo
obedecia?
O
que
se
esperava
dela?
Sobre
que
modelos
se
apoiava?
De
que
forma
geral
de
pensamento
ela
provinha?
Percebemos
as
objeções:
fazendo
desse
modo
a
história
da
razão
punitiva,
você
não
alcança
nada,
ou
quase
nada,
da
realidade
plena,
vivente,
contraditória.
No
máximo
uma
história
das
ideias
e
ainda
uma
história
bem
incerta,
já
que
o
contexto
real
nunca
aparece.
Ainda
nesse
ponto,
tentemos
evitar
aproximações
às
quais
nos
condena
o
uso
de
esquemas
críticos
prontos.
A
quais
exigências
deveria
responder,
então,
uma
análise
histórica
da
razão
punitiva
no
final
do
século
XVIII?
1) Não
a
de
estabelecer
um
quadro
de
tudo
o
que
podemos
saber
hoje
da
delinquência
nessa
época;
mas,
comparando
o
que
podemos
saber
hoje
(graças
aos
trabalhos
como
aqueles
de
Chaunu
e
seus
alunos)
e
aquilo
que
os
contemporâneos
diziam
sobre
a
necessidade,
os
fins,
os
meios
eventuais
da
reforma,
estabelecer
quais
foram
os
elementos
de
realidade
que
tiveram
um
papel
operatório
na
constituição
de
um
novo
projeto
penal.
Em
suma,
fixar
os
pontos
de
ancoragem
de
uma
estratégia.
2) Determinar
por
que
tal
estratégia
e
tais
instrumentos
táticos
foram
escolhidos
ao
invés
de
outros.
É
preciso,
portanto,
inventariar
os
domínios
que
possam
ter
informado
tais
escolhas:
— os
modos
de
pensar,
os
conceitos,
as
teses
que
possam
ter
constituído,
à
época,
um
consenso
mais
ou
menos
constritivo
–
um
paradigma
teórico
(por
exemplo,
aquele
dos
“filósofos”
ou
dos
“ideólogos”);
— os
modelos
efetivamente
postos
em
prática
e
experimentados
em
outros
lugares
(Países
Baixos,
Inglaterra,
América);
— o
conjunto
dos
procedimentos
racionais
e
das
técnicas
refletidas
pelas
quais,
à
época,
pretendia-‐se
agir
sobre
a
conduta
dos
indivíduos,
discipliná-‐los,
reformá-‐los;
3) Determinar,
enfim,
que
efeitos
reversos
se
produziram:
aquilo
que,
dentre
os
inconvenientes,
desordens,
danos,
consequências
imprevistas
e
não
controladas,
foi
percebido,
e
em
que
medida
esse
“fracasso”
pode
suscitar
uma
reconsideração
da
prisão.
Eu
compreendo
muito
bem
e
acho
excelente
que
se
faça
a
sociologia
histórica
da
delinquência,
que
se
tente
reconstituir
o
que
eram
a
vida
cotidiana
dos
detentos
ou
suas
revoltas.
Mas
como
se
trata
de
fazer
a
história
de
uma
prática
racional,
ou
antes,
da
racionalidade
de
uma
prática,
é
a
uma
análise
dos
elementos
que
estavam
implicados
realmente
na
gênese
e
no
estabelecimento
dessa
racionalidade
que
é
preciso
proceder.
É
preciso
desmistificar
a
instância
global
do
real
como
totalidade
a
restituir.
Não
há
“o”
real
que
rejuntaríamos
[ou
do
qual
nos
aproximaríamos;
rejoindrait,
no
original]
desde
que
falássemos
de
tudo
ou
de
certas
coisas
mais
reais
que
outras,
e
que
perderíamos,
em
proveito
de
abstrações
inconsistentes,
se
nos
ativéssemos
a
fazer
aparecer
outros
elementos
e
outras
relações.
Seria
preciso
talvez
também
interrogar
o
princípio,
com
freqüência
admitido
implicitamente,
que
a
única
realidade
a
qual
deveria
pretender
o
historiador
é
a
própria
sociedade.
Um
tipo
de
racionalidade,
um
modo
de
pensar,
um
programa,
uma
técnica,
um
conjunto
de
esforços
racionais
e
coordenados,
objetivos
definidos
e
perseguidos,
instrumentos
para
atingi-‐los,
etc,
tudo
isso
é
da
ordem
do
real,
mesmo
se
não
se
pretende
ser
nem
a
própria
“realidade”
nem
a
5
“sociedade”
inteira.
E
a
gênese
dessa
realidade,
a
partir
do
momento
que
fazemos
intervir
aí
os
elementos
pertinentes,
é
perfeitamente
legítima.
Isto
é
o
que
o
historiador
posto
em
cena
por
sr.
Léonard
não
capta,
no
sentido
estrito
do
termo.
Para
ele,
não
há
uma
realidade
que
não
seja
de
um
só
golpe
“a”
realidade
e
“a”
sociedade.
É
por
isso
que,
quando
falamos
de
programas,
de
decisões,
de
regulamentos,
e
quando
os
analisamos
a
partir
de
objetivos
conferidos
a
eles
e
dos
meios
que
eles
colocaram
em
prática,
crê-‐se
objetar,
dizendo:
mas
esses
programas
jamais
funcionaram
realmente,
jamais
atingiram
seus
objetivos.
Como
se
jamais
alguma
outra
coisa,
jamais
tivesse
sido
dita;
como
se
não
estivesse
sublinhado
a
cada
vez
que
se
trata
de
tentativas,
de
instrumentos,
de
dispositivos,
de
técnicas
para...
Como
se
a
história
da
prisão,
central
nesse
estudo,
não
fosse
justamente
a
história
de
alguma
coisa
que
nunca
“funcionou”,
ao
menos
se
considerarmos
seus
fins
afirmados.
Quando
falo
de
sociedade
“disciplinar”,
não
se
deve
captar
“sociedade
disciplinada”.
Quando
falo
da
difusão
dos
métodos
de
disciplina,
não
se
trata
de
afirmar
que
“os
Franceses
são
obedientes”!
Na
análise
dos
procedimentos
estabelecidos
para
normalizar,
não
há
“a
tese
de
uma
normalização
massiva”.
Como
se,
justamente,
todos
esses
desdobramentos
não
estivessem
na
medida
de
um
insucesso
perpétuo.
Conheço
um
psicanalista
que
compreende
que
afirmamos
a
onipotência
do
poder,
se
falamos
da
presença
das
relações
de
poder,
pois
ele
não
vê
que
sua
multiplicidade,
seu
entrecruzamento,
sua
fragilidade
e
sua
reversibilidade
estão
ligadas
à
inexistência
de
um
poder
todo-‐poderoso
e
onisciente!
Mas
deixemos
todos
esses
erros
(seria
necessário
citar
todas
as
linhas).
E
tenhamos
em
mente
o
problema
extremamente
difícil
que
o
próprio
sr.
Léonard
nos
sugere:
o
que
é
que
fazemos
desse
real
que
é,
nas
sociedades
ocidentais
modernas,
a
racionalidade?
Esta
racionalidade
que
não
é
simplesmente
princípio
de
teoria
e
de
técnicas
científicas,
que
não
produz
simplesmente
formas
de
conhecimento
ou
tipos
de
pensamento,
mas
que
está
ligada
por
laços
complexos
e
circulares
a
formas
de
poder.
Que
é
que
se
faz
com
essa
racionalidade,
como
podemos
fazer
sua
análise,
capturá-‐la
em
sua
formação
e
sua
estrutura?*
(Tudo
isso
não
tendo
nada
a
ver
,
certamente,
com
uma
acusação
contra
as
Luzes:
que
leitor
eu
surpreenderia
afirmando
que
a
análise
das
práticas
disciplinares
no
século
XVIII
não
é
uma
maneira
sub-‐reptícia
de
tornar
Beccaria
responsável
pelo
Gulag?)
O
OBJETO
DA
TESE.
O
PROBLEMA
DA
ESTRATÉGIA
O
sr.
Léonard
compreendeu
perfeitamente
que
estavam
aí
sem
dúvida
os
problemas
mais
importantes
que
haveria
a
levantar
a
propósito
desse
tipo
de
estudo.
E
creio
que
ele
faz
com
que
apareça
sua
principal
dimensão
com
bastante
lucidez.
E
isto,
fazendo
com
que
seu
historiador
imaginaria
cometesse
duas
séries
de
erros
crassos.
Eis
aqui
dois
dentre
os
mais
significativos.
1) Leitura
do
texto.
Ele
se
espanta
que
se
possa
descrever
os
projetos
dos
reformadores
com
verbos
empregados
no
infinitivo:
“deslocar”,
“definir”,
“colocar”,
“diminuir”,
como
se
se
tratasse
de
processos
anônimos
e
automáticos,
uma
maquinaria
pura
sem
maquinista.
Ora,
aquilo
que
o
historiador
não
diz,
é
que
essas
dez
linhas
em
questão
resumem
quinze
páginas
que
precedem
e
costuram
dez
páginas
que
seguem;
e
nessas
vinte
e
cinco
páginas,
as
principais
*
-‐
Poderíamos
nos
reportar
ao
notável
livro
de
G.
Vigarello,
Le
Corps
Redressé
(Paris,
J.
P.
Delarge,
1978{N
do
E.}).
Encontraremos
aí
não
uma
história
global
do
corpo,
mas
uma
análise
específica
de
um
conjunto
de
técnicas
estruturais,
que
o
autor
descreve
como
táticas
e
estratégias.
6
ideias
diretoras
da
reforma
penal
no
fim
do
século
XVIII
são
caracterizadas
a
cada
vez
com
referências
e
nomes
de
autor
(uma
boa
vintena).
Ausência
de
estratégia?
Aí,
também,
é
o
ultra-‐completo
aquilo
de
que
seria
preciso
duvidar.
2) Sentido
das
palavras.
Seria
uma
“estratégia
curiosa”
aquela
que
não
tivesse
um
“ponto
de
origem
único”,
que
poderia
servir
a
“muitos
interesses
diferentes”
e
que
permitiria
“combates
múltiplos”.
Imagine-‐se,
pergunta
ele,
uma
tal
estratégia?
Não
vejo
senão
uma
resposta:
imagine-‐se
uma
estratégia
que
não
seja
justamente
essa?
Uma
estratégia
que
não
nasça
de
múltiplas
ideias
formuladas
ou
propostas
a
partir
de
pontos
de
vista
ou
de
objetivos
diferentes?
Uma
estratégia
que
não
encontrasse
seu
motivo
em
muitos
resultados
buscados
conjuntamente,
com
obstáculos
diversos
a
contornar
e
diferentes
meios
a
combinar?
Podemos
imaginar
uma
estratégia
(diplomática,
militar,
comercial)
que
não
deva
o
seu
valor
e
suas
chances
de
sucesso
à
integração
de
um
certo
número
de
interesses?
Não
deve
ela,
por
princípio,
acumular
as
vantagens
e
multiplicar
os
benefícios?
É
precisamente
nesse
sentido,
admitido
por
todos,
que,
não
muito
afastado
disso,
uma
excelente
historiadora
fala
da
“estratégia
de
correção”
no
pensamento
dos
filantropos
do
século
XIX.
De
fato,
sob
esses
erros
benignos,
trata-‐se
de
uma
confusão
importante
dos
planos:
aquele
dos
mecanismos
propostos,
para
assegurar
uma
repressão
penal
eficaz,
mecanismos
que
são
previstos
para
que
atinjam
certos
resultados,
graças
a
certos
dispositivos,
etc;
e
aquele
dos
autores
que
podiam
ter
em
seus
projetos
motivações
diversas
mais
ou
menos
visíveis
ou
escondidas,
individuais
ou
coletivas.
Ora,
o
que
é
automático?
Que
é
que
funciona
sozinho,
sem
ninguém
que
o
faça
funcionar,
ou
antes
com
maquinistas
cuja
face
e
nome
importam
pouco?
Com
efeito,
justamente,
as
máquinas
previstas,
pensadas,
imaginadas,
sonhadas,
talvez,
por
pessoas
que
tinham,
elas
mesmas,
uma
identidade
bem
precisa
e
que
são
efetivamente
nomeadas.
“O
aparelho
disciplinar
produz
poder”;
“pouco
importa
quem
exerce
o
poder”;
o
poder
“tem
seu
princípio
em
uma
determinada
distribuição
concernindo
aos
corpos,
superfícies,
luze,
olhares”:
nenhuma
dessas
frases
constitui
minha
concepção
pessoal
do
poder.
Todas,
e
da
forma
mais
explícita,
descrevem
projetos
ou
organizações,
concebidos
ou
postos
em
prática,
com
seus
objetivos
e
o
resultado
que
se
esperava
deles:
em
particular,
trata-‐se
daquilo
que
Bentham
esperava
do
panóptico*,
tal
como
ele
mesmo
o
apresentou
(que
se
volte
ao
texto
citado:
sem
nenhum
equívoco
possível,
é
a
análise
do
programa
de
Bentham).
A
automaticidade
do
poder,
o
caráter
mecânico
dos
dispositivos
onde
ele
toma
corpo
não
é
de
forma
alguma
a
tese
do
livro.
Mas
é
a
ideia,
no
século
XVIII,
de
que
um
tal
poder
seria
possível
e
desejável,
é
a
pesquisa
teórica
e
prática
de
tais
mecanismos,
é
a
vontade
incessante
manifestada
então
de
organizar
tais
dispositivos
que
constituem
o
objeto
da
análise.
Estudar
o
modo
como
se
desejou
racionalizar
o
poder,
como
se
concebeu,
no
século
XVIII,
uma
nova
“economia”
das
relações
de
poder,
mostrar
o
papel
importante
ocupado
pelo
tema
da
máquina,
do
olhar,
da
vigilância,
da
transparência,
etc,
não
é
dizer
que
o
poder
é
uma
máquina
nem
que
uma
tal
ideia
nasceu
maquinalmente.
É
estudar
o
desenvolvimento
de
um
tema
tecnológico
que
eu
creio
importante
na
história
da
grande
reavaliação
dos
mecanismos
de
poder
no
século
XVIII,
na
história
geral
das
técnicas
de
poder
e
mais
globalmente
ainda,
das
relações
entre
racionalidade
e
exercício
do
poder,
importante
ainda
no
nascimento
de
estruturas
institucionais
próprias
às
sociedades
*
-‐
Bentham
(J.).
Panopticon,
or
the
Inspection
House,
containing
the
Idea
of
a
New
Principle
of
Construction
Applicable
to
any
sort
of
Establishment,
in
which
Persons
of
any
Description
are
to
be
Kept
under
Inspection;
and
in
Particular
to
Penitentiary-Houses,
Prisons,
Houses
of
Industry
and
Schools,
Londres,
T.
Payne,
1791.
7
modernas,
importante,
enfim,
para
compreender
a
gênese
ou
o
crescimento
de
certas
formas
de
saber,
como
as
ciências
humanas
em
particular.
Ficando
claro,
certamente,
que
permanece
aberta
toda
uma
série
de
domínios
conexos:
o
que
acontece
com
os
efeitos
dessa
tecnologia
quando
se
tenta
colocá-‐la
em
prática?
Ou
ainda,
quem
eram,
pois,
esses
homens
que
o
imaginaram,
o
propuseram?
Qual
era
a
sua
origem
social
ou,
como
dizemos
classicamente
“que
interesses
representavam”?
Sobre
esse
ponto,
e
de
uma
forma
mais
geral
sobre
todos
os
grupos
ou
indivíduos
que
tentaram
repensar
menos
os
fundamentos
jurídicos
do
poder
do
que
as
técnicas
detalhadas
de
seu
exercício,
é
preciso
dizer
que
o
trabalhos
históricos
são
ainda
pouco
numerosos.
Mas
sem
dúvida,
esses
estudos
de
sociologia
histórica
demandariam
que
se
fizesse
a
análise
precisa
daquilo
que
foram
em
si
mesmas
essas
tentativas
de
racionalização
do
poder.
Querer
tratar
de
modo
específico
as
relações
entre
tecnologia
de
poder
e
genealogia
nos
saberes
não
é
uma
maneira
de
interditar
aos
outros
a
análise
de
domínios
vizinhos;
antes,
é
convidá-‐los
a
fazê-‐lo.
Mas
não
acho
que
seja
legítimo
colocar
a
um
trabalho
uma
exigência
de
exaustividade,
se
não
tivermos
compreendido
de
que
é
que
ele
falava.
Tanto
quanto
não
podemos
fazer
objeções
em
termos
de
“realidade”
e
“verdade”
se
confundimos
aquilo
que
ele
afirma
com
aquilo
do
que
ele
fala,
sua
tese
e
seu
objeto.
É
por
isso
que
precisamos
ser
gratos
ao
sr.
Léonard
por
fazer
aparecer
esses
problemas
com
uma
tal
lucidez.
Ele
capturou
perfeitamente
a
importância
metodológica
de
todo
um
grupo
de
noções
das
quais
se
faz
um
uso
cada
vez
mais
extenso:
estratégia,
tática,
objetivo,
etc.
Ainda
nesse
ponto,
o
recente
livro
de
G.
Vigarello
deve
ser
lido
de
perto,
(e
ele
permite
alargar
o
debate
para
além
das
prisões).
Estamos
muito
longe
de
ter
tirado
todas
as
consequências
do
uso
dessas
noções,
e
nem
medimos
tudo
aquilo
que
implicam,
sem
dúvida.
Mas
me
parece
que
vale
a
pena
tentar
(livres
para
abandoná-‐las
um
dia),
desde
que
desejemos
fazer
uma
análise:
1)
das
formações
das
racionalidades
práticas;
2)
da
gênese
dos
saberes
e
das
técnicas
que
o
homem
aplica
a
sua
própria
conduta
(à
maneira
de
se
conduzir
e
à
maneira
de
conduzir
os
outros),
3)de
seu
lugar
no
jogo
das
relações
de
força
e
das
lutas.
Igualmente,
desde
que
tivermos
podido
fazer
concretamente
a
experiência
dos
limites
da
noção
de
ideologia.
O
princípio
de
inteligibilidade
das
relações
entre
saber
e
poder
passa
mais
pela
análise
das
estratégias
que
por
aquela
das
ideologias.
É
preciso
ler
antes
de
tudo
as
páginas
de
Paul
Veyne*.
Parece-‐me
que
é
essa
noção
e
seu
uso
possível
que
poderiam
permitir
não
um
“encontro
interdisciplinar”
entre
“historiadores”
e
“filósofos”,
mas
um
trabalho
em
comum
de
pessoas
que
procuram
se
“desdisciplinarizar”.
*
-‐
Veyne
(P.),
Comment
on
écrit
l’histoire.
Essai
d’Épistemologie,
Paris,
Seuil,
1971,
cap.
IX:
“la
conscience