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CAPÍTULO 1: O TRIVIUM E A SUA HISTÓRIA

Prof. Dr. Marco Antonio Chabbouh Junior

UNIDADE 1: O QUE É O TRIVIUM?

De uma maneira geral, não é comum que uma pessoa adulta nascida no Brasil
no final do século XX ou início do século XXI saiba o que é o Trivium. A não ser que
você tenha passado por um professor de filosofia muito zeloso no seu Ensino Médio,
que tenha dedicado um tempo da sua vida ao estudo da Idade Média, ou que tenha
feito outro curso superior, é muito provável que você esteja lendo o nome Trivium
pela primeira vez.
O Trivium é o primeiro grupo de disciplinas dentro do conjunto que compõem
as Sete Artes Liberais. Como o nome latino Trivium nos sugere, esse primeiro grupo
de disciplinas é composto por três matérias distintas, porém interligadas, a saber: a
Gramática Geral, a Lógica e a Retórica.
Nesta unidade, eu quero que você compreenda como o Trivium se distingue
do Quadrivium, espero que você entenda o que é a Gramática Geral – em
contraposição a gramática das línguas naturais. Pretendo que você entenda que a
lógica não é a disciplina das coisas óbvias e, por fim, quero que você saiba que a
retórica tem uma relação muito íntima com as duas outras disciplinas e com as
circunstâncias do nosso discurso.

1. O Trivium e as Artes Liberais

Como já conversamos, o Trivium é a primeira parte das Sete Artes Liberais.


Essas sete artes – ou sete disciplinas – estruturam o que era o currículo de estudos dos
medievais, mais ou menos a partir do século VIII. Contudo, não é meramente uma
estruturação de currículo diferente o que caracteriza a peculiaridade das Artes
Liberais, mas sim, uma visão completamente diferente do papel da educação.
Que os medievais compreendiam a educação de uma maneira diferente da
nossa pode ser visto de diversas maneiras. Em primeiro lugar, isso pode ser visto pela
própria composição da palavra portuguesa educação: educatio significa guiar. Não
por um acaso, e em segundo lugar, o modelo educacional que guiaria o ser humano
das prisões intelectuais é o modelo das Artes Liberais, ou seja, as artes a serem
aprendidas pelos homens livres. Os escravos, diferentemente dos homens livres,
deveriam aprender saberes técnicos, as τέχνη (technè – técnicas de criação) gregas;
enquanto os homens livres tinham a missão de aprender as ciências ou artes.
Essas artes ou disciplinas foram agrupadas por Marciano Capella, no século V,
em dois grupos de matérias. O primeiro grupo, o do Trivium, era ensinado para os
adolescentes até, mais ou menos, os dezessete anos de idade e tinha o objetivo de
preparar o espírito humano (ou a mente, como costumamos dizer modernamente). O
segundo grupo, o do Quadrivium, era ensinado após o Trivium e servia para instruir
a mente já preparada pelo Trivium para estudar as coisas no mundo.

2. Sobre o Quadrivium

Para compreender a peculiaridade do Trivium é necessário compreender qual


o papel que o Trivium não ocupa no desenvolvimento intelectual do estudante e,
portanto, é necessário compreender o papel do Quadrivium na educação.
O Quadrivium – grupo de matérias que nós não estudaremos detidamente neste
curso – era composto por quatro matérias: a aritmética, a música, a geometria e a
astronomia. Aos nossos olhos contemporâneos, depois da mediação feita pelo papel
dos renascentistas e dos iluministas nas escolas de educação básica e superior, não é
óbvia a relação que existe entre essas quatro disciplinas. Contudo, os gregos e os
medievais compreendiam essas quatro matérias como constituintes das matemáticas,
e isso pelo menos desde o filósofo Pitágoras.
De acordo com a concepção clássica, então, há dois grupos de estudos
matemáticos que se distinguem pelo tipo de objeto estudado. O primeiro grupo é o da
aritmética e o da música. As duas disciplinas trabalham com os números inteiros (ℤ)
e com os números racionais (ℚ), isto é, com aqueles números que usamos para contar
dinheiro1. A aritmética é o estudo puro dessas quantidades: está interessada na
compreensão do ser desses números e de suas relações. Por outro lado, a música é a
aplicação dessas quantidades no tempo e no espaço; as notas musicais sendo
representadas como duração de som em uma determinada tonalidade2.
O segundo grupo de disciplinas do Quadrivium é aquele composto pela
geometria e pela astronomia. Para nós, é dado como óbvio que a primeira é parte da
matemática e a segunda é parte da física. Entretanto, para os pensadores clássicos,
geometria e astronomia lidam com um tipo específico de quantidades, aquelas
quantidades que chamamos contínuas e que compõem a reta dos números reais (ℝ).
Quantidades que não aparecem no nosso trato com dinheiro como, por exemplo √2,
π, e, ϕ e os demais irracionais, estão envolvidas em quase todo tipo de operação que
fazemos e que envolvem o espaço3. A diferença entre as duas matérias, no entanto, é
que a geometria considera as quantidades contínuas por si mesmas – da mesma
maneira que a aritmética considera as quantidades discretas por si mesmas -, enquanto
a astronomia aplica o estudo dessas quantidades aos movimentos e relações
planetárias.
Diferentemente do que ocorre com as disciplinas do Trivium, o Quadrivium é
um estudo das coisas no mundo e não um estudo da mente humana; as disciplinas do
Quadrivium estudam aquelas coisas que excedem o ser do homem. Justamente por
isso, o Quadrivium é estudado posteriormente, somente após o estudo que permite o
uso adequado no espírito4.

3. O Trivium

1
A partir daqui, eu oferecerei algumas explicações formalmente mais adequadas nas notas de rodapé.
Se você gosta de matemática, essas explicações podem te ajudar a compreender com mais
profundidade os conteúdos explicados no texto principal. Caso contrário, não se preocupe. Esse
material não é absolutamente essencial. De maneira mais formal, então, a aritmética e a música lidam
com os números regidos pelos axiomas de Peano (naturais), a expansão dos naturais obtidas por
consecutivas operações de subtração (inteiros), e a expansão dos inteiros obtida por consecutivas
operações de divisão (racionais).
2 Por exemplo: semibreve, mínima, semínima, colcheia, etc.
3 O jeito mais simples de visualizar o aparecimento desses números é por uma aplicação prática em

geometria plana. Seja o triângulo ABC um triângulo retângulo de lado 1. O valor da hipotenusa, dado
pelo teorema de Pitágoras (a² + b² = h²), levará ao resultado h = √2 que é, por sua vez, um número
irracional.
4 No contexto do estudo da filosofia clássica e da filosofia moderna, a palavra espírito funciona muitas

vezes como um sinônimo daquilo que costumamos chamar de mente. Não há nessa palavra, portanto,
conotação religiosa específica.
Estamos, agora, melhor equipados para compreender do que o Trivium trata.
Se o mundo que o ser humano conhece é composto por entidades independentes
conhecidas e uma entidade muito peculiar, o homem, que é capaz de conhecer essas
mesmas entidades, então o Trivium deve dedicar-se a conhecer melhor essa entidade
cognoscente, a saber, o próprio homem.
Todavia, o Trivium não está preocupado em efetuar um estudo do homem
como aquele proposto pela antropologia – disciplina fundada no século XIX. Não se
trata de compreender as diferenças culturais, as diferenças de organização social, as
diferentes visões de mundo dos agrupamentos humanos. O Trivium quer entender o
homem enquanto sujeito do conhecimento, justamente porque – em conjunto com o
Quadrivium – prepara o homem para o estudo das coisas superiores.
Sendo assim, o Trivium é o conjunto de disciplinas que prepara o λόγος (logos
- palavra grega para razão, verbo, língua, discurso, etc.) por meio de um estudo
eminentemente filosófico da linguagem. Isso quer dizer, o Trivium serve para refletir
e para preparar os estudantes para o exercício do nosso principal instrumento de
conhecimento, a linguagem, mas unicamente na medida em que essa linguagem é
instrumento de conhecimento.
O estudo da linguagem do ponto de vista filosófico tem, então, três tarefas. A
primeira dessas tarefas é a de compreender como nós formamos os conceitos, como
esses conceitos se relacionam e podem se relacionar com os objetos e como a
peculiaridade de cada estrutura conceitual se relaciona com um tipo específico de
palavra. Essa primeira etapa do Trivium é chamada de Gramática Geral. A Gramática
Geral não se confunde com a gramática das línguas naturais – como a do português,
a do inglês, a do árabe, ou a do russo – por não tratar da língua como objeto, mas por
investigar a língua em sua relação com o mundo a ser conhecido.
A segunda tarefa do Trivium é a de tratar da linguagem na medida em que ela
se estrutura em raciocínios e argumentos. Afinal de contas, as palavras nos servem o
tempo inteiro, mas no estudo de qualquer ciência não nos basta dominar o puro uso
das palavras, mas é importante compreender como sentenças inteiras se articulam para
estruturar raciocínios e deduções. Essa etapa do estudo do Trivium é chamada de
Lógica.
A última tarefa do Trivium, por fim, é a de estudar a linguagem na medida em
que é utilizada não meramente para nomear, não meramente para raciocinar, mas
também para convencer. Afinal de contas, na ciência e em todos os campos da vida
humana, nós nos relacionamos uns com os outros o tempo todo e argumentos muito
bem estruturados podem, simplesmente, não surtir efeito algum no interlocutor. A
Retórica precisa, assim, estudar como as circunstâncias em que os discursos se
inserem precisam levadas em consideração para a socialização da nossa comunicação.

Considerações Finais

Os três caminhos (Trivium), primeira parte das Artes Liberais, são as três artes
relacionadas à nossa mente e ao nosso intelecto. Para conhecer o mundo a nossa volta
e para que possamos nos conhecer a nós mesmos, o Trivium propõe que comecemos
por educar nossas mentes. Estudar e educar a mente para o interesse de compreensão
da realidade não é mais do que inteligir as maneiras de estruturar a linguagem na tarefa
de formular palavras, construir argumentos e pronunciar discursos.
É nesse sentido que o Trivium constitui uma maneira completamente distinta
da contemporânea de um processo educacional. Educar e ser educado não é, nem
nunca poderia ser do ponto de vista clássico, colecionar saberes sobre o mundo.
Diferentemente, educar e ser educado envolve um processo de empoderamento da
mente com relação à linguagem (Trivium) e com relação às matemáticas
(Quadrivium).
O objetivo desta disciplina é, então, o de te tornar livre com respeito ao seu
próprio processo de construção de conhecimentos. O que eu espero – e espero que
você também espere – é que você termine este semestre capaz de compreender as
maneiras em que as palavras, os argumentos e as circunstâncias se envolvem na
construção do seu conhecimento.

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