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Centro Universitário Armando Álvares Penteado

João Pedro Andreoni Emendabili de Carvalhosa

Símbolo & Experiência:

Ensaio Sobre a Deturpação Hermenêutica dos Símbolos


Jurídicas na Pós-Modernidade.

Iniciação Científica

Orientado Pelo Professor Doutor


Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes

São Paulo
2022
Centro Universitário Armando Álvares Penteado

João Pedro Andreoni Emendabili de Carvalhosa

Símbolo & Experiência:

Ensaio Sobre a Deturpação Hermenêutica dos Símbolos


Jurídicas na Pós-Modernidade.

Iniciação Científica

Orientado Pelo Professor Doutor


Bernardo Bissoto Queiroz de Moraes

Trabalho de Iniciação Científica apresentado


ao Programa de Iniciação Científica em
Direito da Faculdade de Direito do Centro
Universitário Armando Álvares Penteado.

São Paulo
2022
“Oportet igitur veritatem esse
ultimum finem totius universi.”
(DE AQUINO; São Tomás. Summa
Contra Gentiles. 1, 1, 4.)
Capítulo 1 - Da Pós-Modernidade: A Perspectiva de Lyotard

“I suggest there can be no hard distinctions between what is real and what is
unreal, nor between what is true and what is false. A thing is not necessarily either
true or false; it can be both true and false.” (PINTER; Harold. Complete Works:
One. Grove Press, 1994, página 2).

Jean-François Lyotard, em sua obra The Postmodern Condition:


A Report on Knowledge, descreve a crise das narrativas legitimadoras
da modernidade a partir das transformações nas condições dos saberes
(savoir) das sociedades mais desenvolvidas 1 . Para Lyotard, a
modernidade é caracteristicamente marcada por certas metanarrativas
(como a Iluminista, em que o herói sábio - o filósofo ou o cientista - se
aventuraria em busca da paz universal através de sua função
intelectual 2 ) que legitimariam o conhecimento (connaissance) e as
instituições de coesão social através de metadiscursos, muitas vezes
diversos (como o de Hegel com a dialética do Espírito ou o de Marx com
a emancipação do proletariado, exemplos oferecidos pelo próprio
Lyotard 3 ), mas sem nunca perderem a referência à metanarrativa
original4.
Lyotard reconhece que a ciência, uma das espécies de
conhecimento (connaissance), muitas vezes se beneficiaria da
capacidade (de reguladora social e de unificadora das áreas de
conhecimento) do que ele chama de saber (savoir), que é tipicamente
narrativo, além de necessário para a legitimação do conhecimento pelo
ambiente social 5 . O conhecimento não passaria de um conjunto de
proposições denotariam ou descreveriam objetos e julgados segundo seu

1 LYOTARD; Jean-François. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge. Minneapolis


University of Minnesota Press, 1984, página xxiii.
2 Ibidem, páginas xxiii & xxiv.
3 Locus citatum.
4 A legitimização do conhecimento para Lyotard é um processo pelo qual o produtor de

conhecimento é autorizado, segundo algumas condições determinantes para a inserção de suas


contribuições na comunidade, a ter seu pensamento considerado como verdadeiro. Ver mais sobre isso
nas páginas 8 e 9 da obra supracitada.
5 LYOTARD; Jean-François. Opus citatum, páginas 18 - 23 & 27 - 37.
valor-verdade 6 . Sendo assim, a ciência se diferenciaria de qualquer
outro tipo de conhecimento por meio de duas notas relacionados à sua
aceitabilidade: (1) a replicabilidade do conhecimento e (2) a
possibilidade de suas proposições serem julgados segundo o linguajar
tido como relevante para os especialistas 7. No entanto, não seria como
o saber, que é um conjunto amplo e geral de competências unificadas e,
ao menos normalmente, transmitidas por uma tradição sob a forma de
uma narrativa 8 . Mesmo assim, muitas vezes a própria ciência, que
naturalmente tenderia a romper com as formas narrativas
tradicionais, por não ser componente direto e compartilhado do vínculo
social 9 , utilizaria implicitamente de metanarrativas para justificar-
se10.
Sendo assim, mesmo a sociedade moderna estaria totalmente
permeada de metanarrativas, principalmente de duas, intimamente
relacionadas, reconhecidas por Niels Brügger ao analisar a obra de
Lyotard: (1) a especulativa, que defenderia a autonomia e a capacidade
da ciência de encontrar a verdade e a necessidade da Academia, como
aquela que produz ciência, de ser uma força influente na sociedade,
portando a verdade que iluminaria o tecido social, e (2) a
emancipatória, que defenderia a necessidade da ciência de libertar o
indivíduo de tudo aquilo que prendesse-o à ignorância e à menoridade,
impedindo-o de governar a si mesmo11. A primeira funcionária como
uma legitimação filosófica do conhecimento científico segundo seu valor
por si mesmo e segundo a autoridade de seus produtores, todos parte

6
Ibidem, página 18.
7
Locus citatum.
8
Ibidem, páginas 18 & 19.
9 Ibidem, página 25.
10 Lyotard usa aqui do exemplo de uma grande “descoberta” científica que geraria entrevistas

no jornal e na televisão (e hoje poderíamos incluir, porque não, extensas discussões nas redes sociais e
publicações virais de posts e vídeos), sendo ela uma releitura da narrativa épica do conhecimento para
desenvolvido legitimidade na sociedade, algo necessário, pois a ciência, sendo meramente um conjunto
de conhecimentos, não teria meios para autolegitimar-se, recorrendo à metanarrativas. Ver mais sobre
isso nas páginas 27 & 28 da obra supracitada.
11 BRÜGGER; Niels. What About Postmodernity? The Concept of Postmodern in the Work of

Lyotard. Yale French Studies 99, Jean-François Lyotard: Time and Judgment, 2001, páginas 79 & 80.
Além disso, essa divisão também é apresentada por Lyotard de modo mais extenso na obra aqui
analisada, entre as páginas 31 & 37.
do Sistema, enquanto a segunda seria uma legitimação política,
segundo seu valor como instrumento prático para uso do Estado em
favor do povo12.
O problema, então levantado, seria justamente baseado na
deslegitimação de todas as metanarrativas, inclusive dessas duas,
devido a perda de credibilidade decorrente do desenvolvimento do
capitalismo liberal avançado, que valorizou demasiadamente o
indivíduo e sua alienação por bens e serviços, e da melhora veloz e
eficaz das tecnologias e das técnicas após a Segunda Grande Guerra,
que alterou o foco da ciência dos fins a que alcançaria para os meios 13.
Da deslegitimação das metanarrativas decorreria, logicamente, uma
deslegitimação das próprias instituições sociais e do conhecimento
científico, afinal, estás instituições e conhecimentos dependeriam da
legitimação emanada dessas metanarrativas 14 . Daí a enfática frase
conhecida de Lyotard de que, “simplificando ao extremo”, define-se
“pós-moderno como incredulidade frente às metanarrativas”15.
É interessante comparar a incredulidade apontada por Lyotard
com a crítica que Alaisdair MacIntyre faz ao Iluminismo como projeto
de fundamentação da moralidade 16 . MacIntyre identifica que há

12 Ibidem, página 80.


13 LYOTARD; Jean-François. Opus citatum, páginas 37 & 38.
14 Esse é o grande problema identificado por Lyotard. Para ele, sem dúvidas, o abandono das

metanarrativas per se não importa muito, pois Lyotard não é a um autor religioso, nem um grande
construtor de um sistema filosófico da história universal, ou algo nesses moldes, que obrigá-lo-iam a
atribuir grande importância essencial às metanarrativas. Lyotard concede somente uma importância
funcional a elas, segundo suas capacidades de legitimação das instituições e do desenvolvimento
científico, porquanto esses institutos têm importância imediata e material à vida humana. A derrota
das metanarrativas, para o autor, portanto, não deve ser vista como uma necessidade de volta a elas,
ou de abandono daquelas experiências históricas que acarretaram na derrota, mas como a possibilidade
de conduzir uma tentativa de relegitimação através do uso da filosofia tardia de Wittgenstein. Isso
comprova-se em sua obra posterior de 1983 “Le Différend”, que, apesar de ser inteiramente uma
tentativa disso, revela-se assim de forma mais clara no prefácio (páginas xi até xvi da edição traduzido
para o inglês da Manchester University Press de 1988).
15 LYOTARD; Jean-François. Opus citatum, página xxiv.
16 Obviamente tal comparação não poderia atender o fim de esgotar a relação entre ambos os autores,

mas somente o de revelar que mesmo autores advindos de tradições extremamente distintas ainda
assim conseguiram diagnosticar a imensa falha do projeto Iluminista. Não se pode, entretanto, deixar
de reconhecer as diferentes esferas de investigação de Lyotard e de MacIntyre. Enquanto Lyotard está
conduzindo uma investigação muito mais sociológica acerca da crise da legitimidade das ciências e das
instituições, ambas entendidas segundo perspectivas Iluministas, MacIntyre conduz uma investigação
filosófica e histórica acerca da fundamentação da moralidade, que estaria em crise graças às falhas do
projeto de fundamentação Iluminista. A presente comparação abstrai essas diferenças, já que o intuito
não é, e nem poderia ser, o de argumentar que ambos assumem perspectivas iguais sobre os mesmos
contemporaneamente uma profunda desordem no esquema conceitual
de moralidade, que se utiliza ainda de palavras e conceitos
historicamente construídos, mas sem uma profunda acepção
contextualizada e filosoficamente examinada deles 17. Essa desordem
seria resultado direto de uma falha profunda no projeto Iluminista, que
pretendia considerar o indivíduo como um agente moral autônomo e
livre de qualquer vinculação hierárquica ou teleológica (ou seja, ligada
a noção de Bem Comum enquanto fim da vida humana em sociedade),
somente obrigado pela sua própria consciência, ao mesmo tempo que
tentava manter algum padrão (por mais mínimo que seja) de
moralidade necessária para o convívio social pacífico 18. No entanto, o
projeto Iluminista falharia miseravelmente, já que, uma vez mais
retirado todo o valor vinculativo da submissão do sujeito à autoridade,
não haveria motivo para que os agentes autônomos da ação moral
reportassem ao filósofo que prescreveria uma determinada conduta
moral universal, senão se essa conduta legitimasse seus próprios
interesses subjetivos19.
Desta forma, vê-se que MacIntyre percebe que a própria ideia de
emancipação do homem de toda autoridade externa, - ideia esta que faz
parte das metanarrativas modernas identificadas por Lyotard, - acabou
levando-o a emancipação das próprias teorias morais dos filósofos
movidos pela metanarrativa emancipatória, quando estas não
atendiam seus anseios individualistas, o que, logicamente, acarretou

problemas, algo que absolutamente não é verdade. Lyotard abraça seu diagnóstico e tenta através de
uma abordagem wittgensteiniana trazer alguma possibilidade de legitimação sem voltar às velhas
narrativas Iluministas e pré-Iluministas, enquanto MacIntyre, como um católico de base aristotélica-
tomista, rejeita o projeto Iluminista na medida em que ele nega em grande medida a tradição filosófica
europeia anterior aos Renascimento, buscando uma retomada da tradição ética aretáica, ou seja,
baseada no conceito de virtude (αρετή). O fim desta comparação é simplesmente demonstrar que dois
intelectuais contemporâneos, de duas tradições completamente diferentes, com objetivos inteiramente
distintos, com metodologias ininteligíveis, e tratando de objetos investigativos pouco semelhantes, - fora
o fato de serem intimamente relacionados ao projeto Iluminista (que no capítulo 2 é melhor explicado),
- ainda assim foram capazes de identificar a falha Iluminista em legitimar institutos contemporâneos -
no caso de Lyotard, o conhecimento e as instituições, e no caso de MacIntyre, uma moralidade sólida.
17 MACINTYRE; Alaisdair. After Virtue: A Study in Moral Theory. University of Notre Dame

Press, 2007, páginas 4 - 8).


18 Ibidem, página 65.
19 Ibidem, página 71.
em um relativismo moral movido pelos anseios individuais (que
MacIntyre nomeia de “emotivismo”), e, visto sob uma perspectiva mais
ampla, contribuiu para a deslegitimação das próprias
metanarrativas20. Sendo assim, faz sentido a afirmação de MacIntyre
de que todas as tentativas de construção de uma teoria moral firmadas
no projeto Iluminista (e, pode-se dizer, nas metanarrativas iluministas)
estavam destinadas a falhar21.

Capítulo 2 - Da Tradição Rompida: A Perspectiva de Hughes

“Seulement, ce n’est guère qu’au XIXe siècle qu’on a vu des hommes se faire gloire de
leur ignorance, car se proclamer ‘agnostique’ n’est point autre chose que cela, et
prétendre interdire à tous la connaissance de ce qu’ils ignoraient eux-mêmes ; et cela
marquait une étape de plus dans la déchéance intellectuelle de l’Occident.” (GUÉNON;
Réne. La Crise du Monde Moderne: Erreurs et Mensonges de Notre Civilisation.
Éditions Dervy, 2022, página 44).

Glenn Hughes, comentando a proposição de Lyotard, faz uma


leitura voegeliana da Pós-Modernidade enquanto deslegitimação das
metanarrativas, tratando-a como uma época fundamentada na
suspeita22. Essa suspeita, que pode ser entendida como uma espécie de
desconfiança, muitas vezes chegaria a ser hostil quando posta à frente
de metanarrativas que se invocam como universais, ou seja, que
afirmam transcender perspectivas individual ou culturalmente
construídas 23 . Por ponto de vista transcendente nas metanarrativas
Hughes refere-se a qualquer relato acerca do drama humano que tem
por fundamento a noção de que há uma grande comunidade humana,

20 Não há como negar essa relação, visto que há uma interação direta e auto evidente entre a

ação concreta (e, portanto, moral) dos sujeitos que participam das instituições sociais e respeitam (ou
não) o conhecimento científico e a legitimidade intersubjetivamente construída dessas mesmas
instituições sociais e deste mesmo conhecimento, afinal, por definição, tudo que é intersubjetivamente
construído no contexto social depende da inter-relação entre sujeitos.
21 MACINTYRE; Alaisdair. Opus citatum, página 65.
22 HUGHES; Glenn. Transcendence and History: The Search for Ultimacy from Ancient

Societies to Postmodernity. University of Missouri Press, 2003, página 14.


23 Ou seja, a perspectiva pós-moderna não é nada além de uma atitude cética e relativista,

como Hughes pontua na obra supracitada na página 15, quando diz que “the contemporary incredulity
toward metanarratives, then, manifests a rejection of the notion of transcendent meaning” & “a
skeptical attitude toward transcendence is at the heart of postmodern self-interpretation”. Ver mais
sobre a hostilidade e o ceticismo pós-moderno em relação a metanarrativas transcendentes nas páginas
14 & 15 da obra supracitada.
cujos homens de todos os tempos e de todos os lugares participariam,
sob uma única empreitada que a permeie de sentido 24. Essa grande
comunidade humana em empreitada única é dita transcendente na
medida em que pressupõe ao menos alguma dimensão da experiência
existencial humana que transcende as dimensões meramente
contingentes e condicionadas cronotopicamente, ou seja, pelo tempo e
pelo espaço 25 . Essa dimensão transcendente, por definição, deve
necessariamente ultrapassar qualquer dimensão finita e particular,
sendo assim, muito mais apta a legitimar o sentido dos vínculos sociais
e de todo conhecimento 26.
Há três causas identificáveis que Hughes aponta como
importantes para a construção desta postura cética e relativista na
atitude pós-moderna: (1) o desastre humanitário das guerras
religiosamente motivadas por um certo dogmatismo exagerado, (2) o
impacto dos avanços científicos e do método empírico na cosmovisão
geral da população, que, como Lyotard demonstrou, decorreu das duas
grandes metanarrativas iluministas, e (3) o desenvolvimento de uma
percepção histórica mais acurada e sensível na modernidade, que
acabou levando à uma certa “contextualização” excessiva de toda
metanarrativa, em que ela seria meramente uma das diversas
perspectivas construídas socio-culturalmente na história humana, sem
nenhum fundo de verdade que transcenda as determinações
socioeconômicas do momento histórico, bem sintetizada no popular
brocardo que afirma que “o homem”, e, portanto, tudo que ele pensa e
faz, “é um produto do seu tempo”27.
A primeira causa, segundo Hughes, deve-se a reação contra esse
dogmatismo exacerbado, que o autor chama de “absolutismo
religioso”28, gerador de perseguições, guerras e sofrimentos em nome

24 HUGHES; Glenn. Opus citatum, páginas 14 & 15.


25 Locus citatum.
26Locus citatum.
27Ibidem, páginas 1 & 2.
28 Presume-se que o termo “absolutismo religioso”, apesar de nunca profundamente

destrinchado pelo autor, e de não ser exatamente um conceito muito corrente da tradição voegeliana,
refere-se ao ato de tratar não a experiência do transcendente e a teofania como fontes absolutas de
verdade acerca das simbolizações religiosas, mas a própria simbolização religiosa particular. Deste
modo, não seria o substrato simbolizado o critério absoluto de onde emanaria a verdade dos símbolos
que o representam, havendo uma inversão, resultando na dogmatização do próprio símbolo como fonte
absoluta da verdade sobre o fato simbolizado. Há uma sutileza aqui, o que é criticado não é, obviamente,
a ideia de que existe uma realidade absolutamente verdadeira e cognoscível acerca da condição humana
frente ao transcendente, nem mesmo a ideia de que possivelmente alguma religião seria a única que
seria capaz de trazer a salvação do homem, a primeira é dada por certa, enquanto a última não é sequer
discutida em seu mérito. Aquilo que é criticado é a ideia, não defendida essencialmente por nenhuma
grande religião, de que há absolutamente uma única religião com acesso privilegiado, por virtude de
seus dogmas, à verdade acerca da condição humana. É claro que pode haver alguma religião com um
acesso mais privilegiado que outra à essa verdade, mas isso não se dá em virtude das suas simbolizações
enquanto dogmas inegáveis, mas em virtude da adequação das suas simbolizações à realidade,
independentemente de serem consideradas pela tradição religiosa particular como dogmas inegáveis e
necessários para salvação ou meramente como uma opinião acerca do transcendente com valor não
muito distinto daquele das opiniões de outra, para fins salvíficos. Essa diferença é muito sutil, mas
impressionantemente relevante: é a diferença entre (1) colocar a realidade simbolizada acima do
símbolo particular, considerando a primeira como fonte de toda verdade no símbolo, e aceitar a
existência do outro, que é de uma religião distinta, como alguém que também sabe algo acerca da
realidade existencial humana, mesmo que de modo menos perfeito, e que, por isso, basta ser educado
corretamente acerca do maior mérito da suposta verdadeira crença para converter-se, atitude hoje
amplamente tomada nas tentativas de ecumenismo e diálogo inter-religioso, e (2) colocar o símbolo
acima da realidade simbolizada, considerando que o outro, que não simboliza a realidade compartilhada
do mesmo modo, não tem acesso algum a realidade da experiência humana, e, sendo assim, não pode
ser tratado como alguém digno de um diálogo, somente como alguém absolutamente alienado e bárbaro,
incapaz de viver no mesmo mundo e com as mesmas dignidades que o portador da suposta verdadeira
crença, o que resultaria, nas palavras de Hughes, em “opressão, desumanização e massacre daqueles
que não portam” os símbolos dogmatizados. Tal conceituação, mesmo que implicitamente, é feita em
diversas passagens por Hughes, como quando ele afirma que “of all the distortions (…) by far the most
harmful is the assumption that, through embracing a particular set of religious doctrines, one has
thereby become possessor and guardian of the exclusive and absolute truth about the human situation”,
ou que “this is a history that mocks, of course, the central teachings in all major religions”, e que um
dos perigos do reconhecimento de uma realidade transcendente seria “the supposition that its truths
can be the unambiguous and exclusive possession of a community or a religious institution, and that
this possession warrants intolerance and brutality toward others”. Apesar dessa afirmações, contidas
nas páginas 2 e 3, poderem, inocentemente, ser confundidas com um ataque a própria noção de que é
possível haver tradições religiosas melhores e piores, ao menos segundo o mérito da adequação de suas
simbolizações acerca da experiência humana, isso não poderia ser uma leitura mais equivocada, afinal,
alguns capítulos mais a fundo na obra, o próprio autor reconhece, em suas palavras, “failure of a
genuinely historical notion of human participation in divine transcendence to emerge in Hindu culture”
e que “the Hindu breakthrough into differentiated consciousness is a breakthrough that ‘does not quite
reach its goal’” (excertos retirados da página 79). Isso para não falar da clara preferência de Voegelin -
seguida e aprovada por Hughes - quando este dá a entender, segundo a explicação dada por Hughes,
que a tradição judaico-cristã (principalmente a cristã) é superior, na medida em que “the crucial element
allowing for these more complete differentiations appears to be a more intense experience of the
absolute being, absolute freedom, and absolute creativity of the divine ground, with the Judeo-Christian
experiences advancing beyond even the Greek in these respects”, que “the most radical differentiation
- and consequently the most profound insights into both the nature of divine transcendence and the
structure of historical meaning - arose in ‘the Judaeo-Christian environment with its millennial
Israelite background of differentiating consciousness’”, e que “the Christian climax of this
differentiating process focuses on the Gospel of John and, more fully, on the writings of Saint Paul”
(excertos tirados das páginas 79 e 80). A Igreja Católica, por meio de seu Pontifício Conselho para o
Diálogo Inter-Religioso, revela-nos posição similar no vigésimo-sexto parágrafo de seu documento “A
Igreja e as outras Religiões - Diálogo e Missão” (1984): “Esta perspectiva (de que a Igreja está
comprometida a atuar para o cumprimento de todas as coisas em Cristo) levou os Padres do Concílio
Vaticano II a afirmar que nas tradições religiosas não-cristãs existem ‘coisas boas e verdadeiras’ (OT
16), ‘preciosos elementos religiosos e humanos’ (GS 92), ‘germes de contemplação’ (AG 18), ‘elementos
de verdade e de graça’ (AG 9), ‘sementes do Verbo’ (AG 11, 15), ‘raios da verdade que ilumina a todos os
homens’ (NA 2). Segundo explícitas indicações conciliares, estes valores encontram-se condensados nas
grandes tradições religiosas da humanidade. Elas merecem, portanto, a atenção e a estima dos cristãos,
e o seu patrimônio espiritual é um eficaz convite ao diálogo (cf. NA 2.3; AG 11), não só sobre os elementos
convergentes, mas também sobre os divergentes”. Deste modo, haveria sim uma superioridade em
méritos de algumas tradições religiosas sobre outras, mas não pelo simples fato de que suas
de um suposto esforço santo 29. Isso teria levado os modernos, - os únicos
em todo a humanidade a reagirem negativamente frente ao
absolutismo religioso, - a verem autoridades religiosas como
manifestações de uma consciência supersticiosa e mistificada que
deveria ser combatida pelo uso crítico e autônomo da razão, uma
postura bem sintetizada no bordão kantiano: sapere aude!30. É claro
que essa ousadia em relação ao uso da razão contra a tradição
superabundou para todos os aspectos da vida pessoal e social, inclusive
com implicações políticas - talvez as consideradas mais célebres na
contemporaneidade, - mas isso deu-se porquanto a religião permeava
todos os aspectos dessa mesma vida individual e coletivamente
considerada, com consequências refletidas até mesmo na própria
política, como com a justificação absolutista através da argumentação
de mandato real pela graça de Deus31.
Os Iluministas teriam, segundo o autor, substituído a crença
tradicional cristã pela crença revolucionária na plena e autônoma
capacidade da razão humana, e colocaram o credo religioso como
adversário primordial dos valores do credo revolucionário, justamente
por clamar para si autoridade advinda de Deus e penas sub specie
æternitatis para os incrédulos em tal autoridade32. Hughes, entretanto,
deixa claro que o credo revolucionário, inicialmente, não pretendia ser
um adversário ao credo religioso per se, mas ao credo religioso segundo
aquilo de supostamente irracional que torná-lo-ia impuro, como a
crença na eficácia de ritos tidos como “mágicos”, ou em dogmas

simbolizações indicariam um substrato real e verdadeiro acerca da condição existencial humana e que
estas seriam dogmatizadas, pois mesmo as outras tradições religiosas teriam “elementos da verdade e
da graça”, usando de um linguajar já explicitamente religioso (e, apesar disso, completamente
harmônico com o posicionamento do autor). A superioridade seria pela dignidade que certas tradições
religiosas teriam (leia-se, no caso de Voegelin e Hughes, as tradições cristãs) em serem o “clímax” de
modo “mais pleno” do “processo de diferenciação”, ou seja, do processo histórico de desenvolvimento dos
questionamentos e respostas na busca pelo Ground of Being (essa definição encontra-se principalmente
no artigo de Hughes entitulado “Voegelin’s Question of the Ground”, que pode ser consultado para
maiores elucidações acerca da questão da diferenciação).
29
HUGHES; Glenn. Opus citatum, página 2.
30 Ibidem, página 3.
31 Locus citatum.
32 Locus citatum.
supostamente contrários à natureza, ou mesmo em milagres e na
santidade 33 . O autor cita, por exemplo, que Voltaire (um deísta
declaradamente anti-Cristão) acreditava que as críticas enfáticas que
fazia ao que via como irracional no Cristianismo, na verdade, trariam
uma honesta e mais pura adoração ao Ser Supremo34.
A integral rejeição de todo e qualquer aspecto religioso e
transcendente, segundo Hughes, só viria no que ele nomeia de
Iluminismo Tardio, cujos maiores expoentes, para o autor, teriam sido
Holbach, LeMettrie, Condorcet e Condillac, que buscariam, na sua
perspectiva, hipertrofiar o aspecto crítico à qualquer religiosidade
dogmática (o que sim, já existia no Iluminismo Inicial) para que
abrangesse toda e qualquer noção de um plano transcendente,
limitando a compreensão do homem puramente ao plano finito e
material, - portanto, cientificamente explorável, - absolutizando a

33 Muitos adeptos de uma certa postura ateísta podem tentar negar essa afirmação, querendo
ver no Iluminismo o germe de uma ideologia secular e laica, completamente desvinculada de crenças
religiosas. Tal visão não poderia ser mais equivocada, afinal, quase todos - para, em gesto de
generosidade, não afirmar que em esmagadora e enorme maioria, - os intelectuais e aderentes do
Iluminismo eram absolutamente engajados em práticas religiosas, - só não na religiosidade
tradicional cristã, mas na religiosidade maçônica, - como demonstra o professor William Weisberger
em seu renomado livro, - prestigiado em meios maçônicos, - “Speculative Freemasonry and the
Enlightenment: a Study of the Craft in London, Paris, Prague, Vienna and Philadelphia”. Weisberger
complementa muito bem aqui a afirmação de Hughes, pois investiga de modo profundo, nas suas
próprias palavra, “that Masonic rites embodied cardinal Enlightenment doctrines and served as an
effective vehicle for their transmittance”, de forma a concluir que as “institutional operations of
Masonic lodges were important to the cultural and social life of major cities in eighteenth-century
Europe and that the cultural functions of many Masons were involved with the promotion of the ideas
of the Enlightenment” (citações retiradas da Introdução à segunda edição de 2017). Sendo assim,
haveria uma verdade fundamental naquilo que Hughes afirma: o credo revolucionário não era
inicialmente um movimento anti-teísta, mas um movimento manifestamente teísta/deísta (na medida
em que a Maçonaria assim é desde sempre, como expresso já em suas origens claramente na
Constituição Maçônica da Grande Loja Antiga da Inglaterra, por exemplo: “a mason is obliged by his
tenure to observe the moral law as a true Noachida, and if he rightly understands the craft, he will
never be a stupid atheist nor an irreligious libertine, nor act against conscience”. Apesar dos grifos
próprios, tal descrição, retirada da página 24 da edição de 1764 do Ahiman Rezon, é bastante óbvia
quanto a atitude tipicamente maçônica acerca da discussão entre teístas/deístas e ateístas). Esse
movimento, altamente maçônico em seu fundamento, desejaria purificar racionalmente a religião, de
forma a torná-la livre de supostas formas de obscurantismo medieval. Não é possível uma exposição
profunda segundo a dignidade e complexidade de tal tema em uma mera nota de rodapé,
principalmente porque seria essencial uma longa exposição prolegômena, como a que o próprio
Weisberger já fez nas páginas de Introdução de sua obra, sobre a fidelidade das fontes sobre esse
assunto, amplamente infectado de teorias da conspiração e de dificuldades de acesso à fontes
primárias devido a intencional e consciente tentativa de algumas Lojas Maçônicas de acobertarem
com descrição as operações de seus membros, não mantendo minutas e/ou mesmo destruindo-as. De
qualquer modo, recomenda-se profundamente a leitura da obra de Weisberger, principalmente da
Introdução e o capítulo 2, entitulado “Parisian Maronry, the Lodge of the Nine Sisters the French
Enlightenment”.
34 HUGHES; Glenn. Opus citato, página 3.
realidade imanente à experiência sensível humana 35 . De modo
bastante interessante, Hughes identifica a visão antropológica destes
Iluministas Tardios, caracterizada (1) pela confiança (até mesmo um
pouco ingênua) na capacidade da razão humana de entender
abundante e acuradamente o funcionamento do plano imanente, (2)
pela valorização do ser humano, e, sendo assim, da felicidade humana,
segundo a sua própria dignidade natural enquanto ser humano (o que
inclui a sua autonomia na busca pela própria felicidade como bem
quiser, característica marcante e presente na Declaração de
Independência das Treze Colônias: “We hold these truths to be self-
evident, that all men (…) are endowed (…) with certain unalienable
Rights, (…) among these (…) the pursuit of Happiness”), não segundo
sua dignidade enquanto primus inter pares dentre as criaturas criadas
por Deus, (3) pela negação de qualquer sentido existencial
transcendente à vida fisicamente limitada do homem e (4) pela noção
de que há um constante e progressivo aprimoramento da existência
humana, diretamente ligado ao abandono da religião, que teria
possibilitado um tremendo desenvolvimento científico, afinal, a razão
teria iluminado a realidade, antes obscurecida pelo pensamento dito
supersticioso36. Essa antropologia haveria motivado a segunda causa
apontada por Hughes: o avanço das ciências modernas e a penetração
de seus desenvolvimentos no imaginário coletivo37.
Durante os séculos XVI, XVII e XVIII (e mesmo durante o século
XIX) houve um surpreendente desenvolvimento das ciências:
Copernicus (1473-1543), Galileo (1564-1642), Kepler (1571-1630),
Huygens (1629-1695), Newton (1642-1727) e Lagrange (1736-1813)
construíram uma era de ouro para a física, Buffon (1707-1788),
Lamarck (1744-1829) e Darwin (1809-1882) construíram uma para a
biologia, enquanto Descartes (1596-1650), Pascal (1623-1662), Leibniz

35 Ibidem, páginas 3 & 4.


36 Locus citatum.
37 Ibidem, página 5.
(1646-1716), Euler (1707-1783), Legendre (1752-1833), Gauss (1777-
1855) e Galois (1811-1832) faziam seus grandiosos estudos
matemáticos e Boyle (1627-1691), Brandt (1694-1768), Lavoisier (1743-
1794), Proust (1754-1826) e Volta (1745-1827) conduziam inovações
fantásticas na ciência central, a química 38. Toda essa riqueza científica
gerou imensa confiança nos modernos, que perceberam o mundo físico
cada vez mais como um sistema de estruturas integradas através de
relações regidas por leis universais e necessárias, passíveis de serem
conhecidas, estudadas e calculadas 39 . Todas essas descobertas
científicas teriam tido duas consequências diretas, segundo Hughes: (1)
a inovação tecnológica decorrente da evolução científica e (2) um
aumento considerável na confiança nas capacidades investigativas e
criativas do intelecto humano 40 . Ambas as consequências levaram
então o homem a ter a certeza de que um dia conquistaria o pleno
domínio da natureza 41. Além disso, uma vez convicto dessa certeza, e
confiante de que o meio para isso seria a ciência moderna, o homem
teria passado a ter por paradigma de conhecimento essas mesmas hard
sciences42.
Dessa associação entre (a possibilidade de) conhecimento e
ciência moderna (primariamente quantificável), que será chamada
aqui de Cientificismo, duas grandes correntes (com visões alinhadas à
essa associação) haveriam surgido: (1) os moderados, que, apesar de
considerarem científica uma área pela sua proximidade metodológica
com as hard sciences, não negam em absoluto a existência de um plano
superior ao da experiência imanente do ser humano, somente a
possibilidade de obter-se conhecimento científico acerca dele, vendo

38 A lista não é exaustiva, mas é marcada por uma característica curiosa: a maior parte desses
cientistas eram polímatas, logo, muitos não contribuíram somente para a área em que foram alocados,
tendo influência em outras muitas. Para uma visão aprofundada sobre a revolução científica da
modernidade até Newton, ver How Modern Science Into the World de Floris Cohen. Para uma
perspectiva mais ampla da ciência entre o Iluminismo e o Romantismo, ver The Age of Wonder: The
Romantic Generation and The Discovery of the Beauty and Terror of Science de Richard Holmes.
39
HUGHES; Glenn. Opus citatum, página 5.
40 Locus citatum.
41 Locus citatum.
42 Locus citatum.
com desconfiança todos os “cientistas de caráter mais humanista”
(como Freud e Jung na psicologia, por exemplo), e (2) os radicais, que
negam absolutamente a existência de qualquer plano transcendente à
experiência humana imanente, afirmando plenamente o
materialismo43. Uma reação proeminente ao Cientificismo só surgiria
no fim do século XVIII, através da Rebelião Romântica (que fundou o
Romantismo) 44 . A Rebelião Romântica foi uma revolta contra o
Cientificismo que insistia na prioridade dos sentimentos, da beleza, da
arte e da intuição sobre a análise matemática, prática e racional,
deixando a racionalidade impotente frente a profundidade das
experiências irracionais e do ímpeto de viver45.
A princípio, alguns cientificistas poderiam ver o Romantismo
como uma tentativa de retorno aos padrões religiosos, no entanto,
pouco uso a Rebelião Romântica deu à religião tradicional, à autoridade
espiritual cristã e aos dogmas teológicos, porque, apesar de focar suas
atenções na experiência do sagrado e do mistério da existência, fazia-o
vinculando tudo de sacro à Natureza 46, entendida como a comunhão
presente em tudo que existe 47. No fim, a resposta dos Românticos e dos
Cientificistas acerca de qual seria o plano onde encontrar-se-ia o
princípio fundamental da realidade era a mesma: na Natureza, ou seja,
no plano imanente48. A diferença entre ambas as vertentes Iluministas
era somente sobre o que buscar nesse plano para entendê-lo: os
Românticos buscavam uma experiência direta e intuitiva do espírito
imanente por trás da Natureza, enquanto os Cientificistas buscavam

43 Ibidem, páginas 6 & 7.


44 Ibidem, página 7.
45 Locus citatum.
46 Locus citatum.
47 É impossível não perceber aqui a influência de uma metafísica panteísta, intimamente

ligada à recepção de Spinoza pela intelectualidade alemã no final do século XVIII, da qual decorreu a
controvérsia panteística (Pantheismusstreit). A influência de Spinoza tanto no Cientificismo, quanto no
Romantismo, já é atualmente inegável. Para uma compreensão bastante atual do tema, ver da página
69 até a página 76 da obra de Jason Josephson-Storm chamada The Myth of Disenchantment: Magic,
Modernity and the Birth of Human Sciences. Recomenda-se a leitura de todo o capítulo para uma
compreensão mais ampla de toda a mitologia iluminista (página 63 até 93).
48 HUGHES; Glenn. Opus citatum, página 7.
uma compreensão racional e quantitativa da matéria da Natureza 49.
Ambas eram posturas imanentizantes, ou seja, que consideravam que
a realidade imanente e histórica era o todo da realidade50. Esse gênero
de concepções, para Hughes, necessariamente aprisionaria o homem
nas determinações do tempo histórico, de onde derivou a atenção
proeminente no século XIX e XX voltada às condições e determinações
históricas das ações e pensamentos humanos, a terceira causa que o
autor identifica para a postura pós-moderna51.
Essa excessiva preocupação com a historicidade das ações e dos
pensamentos humanos, que será chamada de Historicismo Radical,
transformou a afirmação da (possibilidade da) existência de um plano
transcendente (onde o drama da vida humano também ocorreria) não
só em uma afirmação tida por errada, mas em uma concepção alienante
e perigosa52. Hughes identifica dois motivos para essa transformação:
(1) a percepção de que toda “ideologia” que afirmasse o transcendente
acabaria retirando o foco na responsabilidade humana histórica, nas
condições históricas de vida e na capacidade humana de melhorá-las, e
(2) a noção de que todo pensamento e toda ação humana são
particularizados em uma dada determinação histórica e que, portanto,
não haveria a possibilidade de o homem acessar uma verdade perene e
supra-histórica 53. Desses motivos derivar-se-ia a concepção de que toda
afirmação do transcendente, na realidade, seria uma tentativa de
ideologização do homem, alienando-o das condições historicamente
determinadas de sua vida, para mantê-lo submisso a uma estrutura de
poder ou para tentar dominar tal estrutura 54 . Todos esses fatores
contribuiriam, então, para o combate ao absolutismo religioso, o que
supostamente, na visão dos defensores desses três pontos precursores

49 Locus citatum.
50 Ibidem, páginas 7 & 8.
51 Ibidem, página 8.
52 Locus citatum.
53 Locus citatum.
54 Locus citatum.
da pós-modernidade, construiria um fundamento para uma sociedade
tolerante e plural55.
A pós-modernidade, estruturada por cima desses pressupostos,
relaciona-se intimamente, sob a forma de complemento, com a
concepção já exposta por Lyotard, que afirma um certo abandono da
mitologia pela postura pós-moderna, - assim como de toda
metanarrativa, - pois, enquanto Lyotard vê a questão sob o prisma da
legitimação das instituições sociais, pelo qual o ceticismo permeia a
coletividade, Hughes observa um aspecto não antes estudado por
Lyotard: a autopercepção do sujeito que participa de tal sociedade sobre
sua própria narrativa vital, entendida, segundo o autor, como que
tendendo à fragmentação narrativa (ou seja, ao mesmo tempo que todo
indivíduo tenderia a ver qualquer mito que considera cada ser humano
como um participante de uma empreitada comum, perene e universal
como falso enquanto universal e perene, também não poderia
simplesmente se manter em ceticismo eterno no seu cotidiano, de
alguma narrativa para guiar sua vida precisaria, o que faria com que
uma pluralidade de narrativas particulares e subjetivas surgissem em
cada existência, - o homem, influenciado pelas suas crenças, mas
principalmente pelos seus anseios e desejos, construiria sua própria
narrativa, seu mito privado)56.
Essa fragmentação narrativa ocorreria devido a uma tendência
natural que Hughes identifica no homem, a de buscar sempre se
compreender como parte de uma narrativa, algo que o autor identifica
a partir de um fato que ocorre nas sociedades onde a postura pós-
moderna é disseminada: enquanto, por um lado, o conteúdo das
metanarrativas é tratado ceticamente, algo que Lyotard já identificava,
por outro, a própria existência dos símbolos que são usados para
construir essas metanarrativas continua firme e sem ser negada,
contribuição própria de Hughes: o uso desses símbolos é ainda corrente

55 Ibidem, páginas 8 & 9.


56 Ibidem, páginas 10 & 11.
e abundante nos discursos (fala-se abundantemente de religião, de
nacionalidade, de nação, de humanidade, de progresso, de meio-
ambiente, etc.), mesmo que, na consciência de cada sujeito, o conteúdo
que preenchia esses símbolos de sentido esteja esvaziado, os tornando
símbolos opacos de sentido, que nada dizem realmente sobre a
empreitada comum de uma coletividade57. Muitas vezes isso levaria os
indivíduos a adotarem crenças e símbolos decorrentes de diversas
metanarrativas contraditórias (como nas histórias e nos pontos
teológicos judaicas e cristãos, nas teorias científicas evolucionistas e
mecanicistas, no secularismo progressista pós-Iluminista, etc.),
construindo mitos privados extremamente idiossincráticos e
incoerentes, por vezes segundo uma finalidade hedonista58.
Essa questão levanta um problema primordial: se as
metanarrativas, tão questionadas na pós-modernidade por imenso
ceticismo 59 , são compostas e construídas a partir de símbolos, que
podem ser compreendidos de modo a tornarem-se opacos ou, - caso
sejam corretamente iluminados, - preenchidos de conteúdo, através de
qual processo isso ocorre? Fundamentalmente, para que isso seja
respondido, deve-se entender: (1) do que se trata o conteúdo dos
símbolos, e (2) porque há uma tensão no símbolo que permite que ele
seja opaco ou preenchido.

57 Locus citatum.
58 Locus citatum.
59 É interessante relacionar brevemente tal situação com a atual crise política, principalmente

europeia, que está intimamente ligada ao ceticismo em relação aos partidos de tradição iluminista
clássica e aos que dialogam pacificamente com essa tradição. Não é possível deixar de trazer aqui um
gráfico relevante acerca da evolução das intenções de voto nos partidos italianos desde a última eleição
geral de 2018 (anexo 1). Vê-se nele claramente um crescimento radical do Fratelli d’Italia (FdI), partido
que, entre outras coisas, abarca uma ala nostálgica com o fascismo e outra católica tradicionalista,
ambas respostas contundentes contra a tradição iluminista, principalmente contra a liberal, que
conseguiu a incrível proeza de ir de uma intenção de voto de 4.4% em março de 2018 para uma de mais
de 20% em março de 2022, o que significa um acréscimo de quase 400% em quatro anos. Além dessa
clara substituição da narrativa iluminista, há, sem dúvidas, a guinada para partidos populistas
também, que são respostas de massa ao vazio que sobrou após a quebra da narrativa tradicional. Isso
observa-se em março de 2022 com a Lega tendo uma intenção de voto de pouco menos de 20% e o M5S
com pouco menos de 15%. Um cálculo simples demonstra que cerca de 50% da população italiana hoje
está disposta a votar em um partido de ruptura da tríade narrativa liberal-democrática/social-
democrata/democrata-cristã que antes era hegemônica. Isso é um resultado concreto dessa crise na vida
política europeia.
Capítulo 3 - Da Experiência: A Perspectiva de Orestano

“Per ciò stesso è il modo che meglio consente di accostarci alla realtà storica (…) nella
sua concretezza e nella molteplicità infinita delle sue manifestazioni (…), permettendo
come nessun'altra concezione di ricondurle tutte ad un'unica nozione - appunto
l'esperienza (…) - e così scorgerne i nessi, le correlazioni, i reciproci condizionamenti,
le necessarie determinazioni, i loro rapporti logici, ma pure, nell'àmbito della stessa
nozione, le discontinuità, le irrazionalità, le casualità, gli arbitri, persino le
negazioni.” (ORESTANO; Riccardo. Introduzione Allo Studio Storico del Diritto
Romano. G. Giappichelli Editore, 2021, página 183).

Francesco Orestano foi um filósofo italiano da primeira metade


do século XX, portador de um trabalho profundo e erudito. Ele
orquestrou uma obra que, nas palavras de Olgiati, filósofo
neoescolástico contemporâneo de Orestano, “constitui um todo
orgânico, de forma a não ser difícil apreender a unidade do seu
pensamento inspirador”60. Orestano é uma figura de grande relevância
para conduzir à resposta as indagações do último capítulo,
principalmente a primeira, que encontra na sua teoria da experiência
uma verdadeira elaboração filosófica 61 . Orestano construiu, em sua
filosofia, o conceito de experiência como centro, ponto arquimédico 62, de

60 OLGIATI; Francesco. Il Superrealismo di Francesco Orestano. Rivista di Filosofia

Neo-Scolastica Vol. 27 N. 2, 1935, página 103.


61 Orestano define experiência de modo bastante rigoroso na sua edição de 1939 de
seu Verità Dimostrate: Saggi di Filosofia Critica (“L’esperienza, così intesa, non è più
dunque soltanto una successione di fenomeni-apparenze, nè una deduzione dialettica o logica;
non è neppure semplice adaequatio rei et intellectus; ma è una viva e drammatica Realtà, che
emerge ricca di valo ri e di significati, se pure sovraccarica di incognite, da una Realtà più
profonda, insondabile, vora ginosa, abissale, e che tale resta nei due sensi : sia cioè che
l’esperienza si ripieghi quanto più verso il soggetto, sia che approndisca quanto più l’oggetto.
Inoltre diventa possibile istituire tra la realtà vis suta e la realtà che in essa si annuncia e
fisiono- mizza, relazioni e corrispondenze sperimentali. L’immanenza si salda così punto per
punto nella trascendenza, il fenomeno nel noumeno, la fisica nella metafisica, tutto il relativo
in un quid di as soluto. E ciò rende preziosa e insostituibile ogni particella di esperienza, in
quanto rivelazione, sia pure ipotetica e parziale, ma sperimentale, posi tiva, potenzialmente
e strenuamente progressiva dell’Assoluto nella Vita.”). É de se pontuar que a edição de 1934
e a edição de 1939 apresentam diferenças substanciais no modo de exposição do conteúdo em
algumas partes da obra, fato que leva à, por vezes, certas definições e ideias encontrarem
melhor demonstração em uma versão do que em outra.
62 O conceito de Ponto Arquimédico, no original, Punctum Archimedis, foi usado de

modo famoso por Descartes na sua Segunda Meditação, que em latim reza: “Nihil nisi
punctum petebat Archimedes, quod esset firmum & immobile, ut integram terram loco
dimoveret; magna quoque speranda sunt, si vel minimum quid invenero quod certum sit &
inconcussum”. Indicaria uma tese firme, autoevidente e inquestionável que pudesse servir
como fundamento de toda construção filosófica. Tal busca por um Ponto Arquimédico foi
seguida por enorme parte da filosofia moderna, como pode-se ver no conceito de Substância
toda sua empreitada, em vista de uma mathesis universalis63, ou seja,
uma ciência universal: algo que se revela pelo fato desse conceito
permear toda sua obra64. Para se chegar ao conceito de experiência,
Orestano parte de uma perspectiva histórica, remetendo aos filósofos
modernos e a relação entre eles e os pré-modernos, notando que houve
uma transformação fundamental na filosofia que constituiu uma
verdadeira ruptura: o fato de que o centro da indagação filosófica

de Spinoza na Definição III de sua Ethica (“Per substantiam intelligo id, quod in se est et
per se concipitur; hoc est id, cujus conceptus non indiget conceptu alterius rei, a quo formari
debeat.”), ou no conceito de Mônada de Leibniz, apresentado na sua Monadologia e na sua
Teodicéia (“La Monade, dont nous parlerons ici, n’est autre chose qu’une substance simple,
qui entre dans les composés ; simple, c’est-à-dire sans parties.”), além disso, houve também
tentativas posteriores menos óbvias, como no conceito de Apercepção Transcendental de
Kant, apresentado na sua Crítica da Razão Pura (“Nun können keine Erkenntnisse in uns
stattfinden, keine Verknüpfung und Einheit derselben untereinander, ohne diejenige Einheit
des Bewußtseins, welche vor allen Datis der Anschauungen vorhergeht, und, worauf in
Beziehung, alle Vorstellung von Gegenständen allein möglich ist. Dieses reine ursprüngliche,
unwandelbare Bewußtsein will ich nun die transzendentale Apperzeption nennen.”), ou no
conceito de Sujeito Transcendental (com seus vários nomes, como Subjekt em
Schopenhauer, ou Ich em Fichte) dos Pós-Kantianos, como exposto claramente, por
exemplo, por Fichte em seu Fundamentos da Ciência do Conhecimento (“Es ist demnach
Erklärungsgrund aller Thatsachen des empirischen Bewusstseyns, dass vor allem Setzen im
Ich vorher das Ich selbst gesetzt sey.”). Pode-se afirmar que esse conceito é central para a
estruturação filosófica daquilo que Orestano chama de filosofia orientada ao problema da
realidade, justamente porque ele seria o princípio central e autoevidênte da filosofia de cada
autor, que legitimaria e fundamentaria todas as outras afirmações acerca da existência do
real e suas decorrências, e a partir do qual todas as outras teses filosóficas seriam
fundadas. Talvez a melhor representação na filosofia nacional desse uso do conceito venha
de Mário Ferreira dos Santos no volume I de sua Filosofia Concreta (“Há um Ponto
Arquimédico, cuja certeza ultrapassa ao nosso conhecimento, independente de nós, e é ôntica
e ontológicamente verdadeira. (1) Alguma coisa há.”).
63 O conceito remonta na filosofia moderna à Descartes (presente na Regra IV de

suas Regras para Direção da Mente, “Quod attentius consideranti tandem innotuit, illa
omnia tantum, in quibus ordo vel mensura examinatur, ad Mathesim referri, nec interesse
utrum in numeris, vel figuris, vel astris, vel sonis, aliove quovis obiecto talis mensura
quaerenda sit; ac proinde generalem quamdam esse debere scientiam, quae id omne explicet,
quod circa ordinem et mensuram nulli speciali materiae addicta quaeri potest, eamdemque.
non ascititio vocabulo, sed iam inveterato atque usu recepto, Mathesim universalem
nominari, quoniam in hac continetur illud omne, propter quod aliae scientiae et
Mathematicae partes appellantur.”), sendo parte de uma tentativa de sistematização das
ciências em uma ordenação filosófica integral e coerente, similar à matemática, que, na
época, recebia forte desenvolvimento.
64 No prefácio de sua edição de 1942 do volume I de I Valori Umani, Orestano, ao

comentar sobre a fidelidade escrupulosa que teve ao seu método próprio durante sua
carreira intelectual (método que desde o seu primeiro livro, - que, na época em que escreveu
o prefácio, estava sendo republicado, - era seguido, considerando seu objeto de estudo – o
valor – como uma experiência), cita o comentário que o filósofo catalão Cristofòr de Domenec
fez à sua obra após lê-la integralmente, afirmando que nela havia “una onesta e perfetta
continuità”. Sobre esse tema, importantíssimo para o estudo de Orestano, conferir o prefácio
previamente referido, especialmente da página XVIII até XXI.
deixou de ser, na modernidade, o “problema da verdade”, e passou a ser
o "problema da realidade”65. O autor pega emprestado o nome que Kant
dá ao fenômeno histórico do solipsismo idealista, “escândalo filosófico”,
e utiliza-o justamente para abranger toda a crise da ruptura filosófica
da modernidade, o que leva a concluir que, em última instância, a
modernidade é firmada sobre um escândalo filosófico 66. Esse escândalo
nada mais seria que a mudança no questionamento filosófico: enquanto
o questionamento filosófico pré-moderno era fundamentado no axioma
da verdade (axioma esse resumido na máxima “veritas est adæquatio
rei et intellectus”, que reza que a verdade é uma relação objetiva e real
entre um algo, também objetivamente existente e abundantemente
inteligível, nomeado enquanto conjunto de entes como “realidade”, e
um intelecto humano indubitavelmente capaz de apreender essa
realidade como ela é), o questionamento filosófico moderno partiria
conduzia-se exatamente sobre as partes desse axioma, duvidando, por
exemplo, da existência de uma verdade objetiva e real, de uma
realidade externa ao sujeito que a conhece e da própria capacidade
subjetiva de conhecer 67 . Orestano aqui começa a revelar suas
similaridades com o diagnóstico acerca da modernidade que Hughes
faz, principalmente com a identificação do Historicismo Radical como
um dos fundamentos teóricos da modernidade, afinal, tal posição
filosófica nada mais é que uma crítica ao axioma da verdade dos pré-
modernos, mais especificamente uma crítica direcionada à objetividade

65
ORESTANO; Francesco. Verità Dimostrate: Saggi di Filosofia Critica. Casa
Editrice Rondinella, 1934, página 173 & 174.
66 Locus citatum.
67 Esse axioma fora usado por Orestano no local supracitado, mas se referindo à

expressão famosa de São Tomás sobre a Verdade, encontrada na Resposta ao Artigo 1 da


Questão XVI da Prima Pars da Suma Teológica (“Quod autem dicitur quod veritas est
adaequatio rei et intellectus potest ad utrumque pertinere.”). Talvez essa Questão, com todas
suas disputas, seja a melhor demonstração acerca do cerne da inquirição filosófica pré-
moderna, justamente por ser composta de questiones disputatae (método mais desenvolvido
em rigorosidade e profundidade antes da modernidade) sobre o problema central da filosofia
da época, apresentando e defendendo estruturadamente todas as posições filosóficas
relevantes sobre o problema que circulavam nos meios universitários parisienses do século
XIII, de modo a sintetizar uma resposta que transcendesse todos os posicionamentos
autoritativos apresentados.
da verdade, à imutabilidade do conteúdo essencial da realidade e à
capacidade de conhecer objetivamente do sujeito.
O autor percebe que Kant tentou remediar esse escândalo a
partir das formas subjetivas, tanto as intuições, quanto as categorias
racionais, que serviriam como prova da existência de um noumenon que
esteja além do mero phenomenon, pois, não sendo dedutível a partir das
formas puras, constituiria necessariamente, por contraste, algo além
delas. No entanto, Kant teria falhada drasticamente nisso, já que os
Idealistas Absolutos que dele decorreram, e mesmo os ferrenhos
adversários de tal Idealismo, voltaram a questionar a existência de um
algo que transcenda o sujeito conhecedor (algo que Orestano identifica
nas máximas de Fichte de um lado e de Schopenhauer de outro, um que
afirmava “Kein Nich-Ich ohne Ich” e outro que, seguindo fórmula
símile, dizia “Kein Objekt ohne Subjekt”, mantendo, entre rivais, uma
harmonia quanto ao fato de considerarem que não havia um algo sem
um alguém que o apreendesse)68. Desta forma, a questão fundamental
para Orestano, desejando remediar essa crise, que permearia todas as
posições filosóficas modernas e pós-iluministas, é, nas palavras do
próprio autor, “saber, antes de mais nada, se existe uma realidade
independentemente da experiência humana que a revela ao sujeito” 69.

68 Aqui fica claro a revolução que houve da passagem da filosofia pré-moderna para a
filosofia moderna, em que comumente passa-se a aderir ao “escândalo filosófico”, negando a
existência do noumenon isolado de sua apreensão pelo Sujeito, o que levará aos inúmeros
debates da filosofia europeia pós-kantiana sobre a relação entre noumenon e phenomenon,
como o célebre debate entre Kuno Fischer e Adolf Trendelenburg na décade de 1860. Para
Orestano a experiência é exatamente esse ponto de contato entre o noumenon e o Ich,(usa-se
aqui o termo em alemão em respeito ao fato de que Orestano usa em sua obra essa
terminologia fichteriana para um dos polos tratados, sempre traduzida para o italiano, mas
em vista de que talvez causasse certa estranheza ao leitor o usa rigoroso e conceitual de um
conceito filosófico que, em sua forma traduzida nacionalmente, “Eu”, é empregado de modo
bastante banalizado e sem grande tradição intelectual nacional que sustente o uso traduzido)
ou, chamado de outro modo, o Sujeito, em um processo em que o noumenon desvela-se ao Ich
na medida de suas possibilidades intrínsecas e extrínsecas no momento da experiência, ao
mesmo tempo em que o Ich apreende o noumenon na medida de suas capacidades psicofísicas
e lógico-categoriais, o que torna a experiência para o Ich um momento de revelação do
noumenon ao Ich através do phenomenon, que é um símbolo engendrado neste momento
experiencial, relacionando ambos os polos da realidade (polos esses que, em uma
terminologia fichteriana mais restrita, seriam o Ich e o Nicht-Ich, mas que, sem prejuízo
nenhum substancial, podem ser chamados de Sujeito e Objeto, ou Sujeito e noumenon).
69 ORESTANO; Francesco. Opus Citatum, página 174.
Não é adequado ser anacrônico com Orestano e desvinculá-lo de sua
tradição pós-Kantiana e Neo-escolástica, “experiência” para o autor
tem um sentido muito particular, que é bastante próximo ao sentido de
phenomenon para Kant, mas na medida em que é interpretado dentro
de um diálogo com a tradição pré-moderna, principalmente de São
Tomás de Aquino, especialmente com a máxima presente na Summa
Theologica de que “quidquid recipitur ad modum recipientis
recipitur”70, que melhor aplicada ao conhecer humano, transforma-se
em “cogitum (...) est in cognoscente secundum modum cognoscentis ”71.
Ou seja, experiência é a apreensão concreta de uma realidade
particular, de um noumenon, que é, por sua natureza, independente da
própria experiência, segundo as possibilidades do sujeito cognoscente,

70 Acha-se os fundamentos dessa afirmação na Resposta do Artigo V da Questão 75


da Prima Pars da Summa Theologiae (“Respondeo dicendum quod anima non habet
materiam. Et hoc potest considerari dupliciter. Primo quidem, ex ratione animae in communi.
Est enim de ratione animae, quod sit forma alicuius corporis. Aut igitur est forma secundum
se totam; aut secundum aliquam partem sui. Si secundum se totam, impossibile est quod pars
eius sit materia, si dicatur materia aliquod ens in potentia tantum, quia forma, inquantum
forma, est actus; id autem quod est in potentia tantum, non potest esse pars actus, cum
potentia repugnet actui, utpote contra actum divisa. Si autem sit forma secundum aliquam
partem sui, illam partem, dicemus esse animam, et illam materiam cuius primo est actus,
dicemus esse primum animatum. Secundo, specialiter ex ratione humanae animae,
inquantum est intellectiva. Manifestum est enim quod omne quod recipitur in aliquo,
recipitur in eo per modum recipientis.”).
71 Essa aplicação está bem estruturada no Artigo 4 da Questão 12 da Prima Pars

(“Respondeo dicendum quod impossibile est quod aliquis intellectus creatus per sua
naturalia essentiam Dei videat. Cognitio enim contingit secundum quod cognitum est in
cognoscente. Cognitum autem est in cognoscente secundum modum cognoscentis.
Unde cuiuslibet cognoscentis cognitio est secundum modum suae naturae.”), mas já se
encontra presente na continuação da Resposta supracitada (“Sic autem cognoscitur
unumquodque, sicut forma eius est in cognoscente anima autem intellectiva cognoscit rem
aliquam in sua natura absolute, puta lapidem inquantum est lapis absolute.”).
inerentes ao seu modo de conhecer 72 . Além disso, Orestano enxerga
nessa concepção a possibilidade de estruturar uma nova ontologia 73.
Segundo o autor, há na experiência, como ele a entende, algo
peculiar: ela é inteira e irredutivelmente simbólica enquanto percebida
pelo homem, na medida em que a realidade experienciada nunca é
apreendida em absoluto, mas somente segundo uma certa forma
accipiente, ou seja, segundo uma forma de experienciar típica do ser
humano, que, por sua vez, é incapaz de abarcar integralmente aquilo
que transcende a própria experiência, portanto, a própria forma de
percepção humana, pela sua natureza limitada e subjetiva, condensa
cada realidade particular em um símbolo, ao qual chama-se
“experiência”, e, enquanto símbolo, não se encerra em si, mas sempre
aponta para algo além74. Não é, como facilmente se poderia entender,
que toda experiência, após ser experienciada, seja condensada em um
símbolo quando guardada na memória, mas, na verdade, que toda
experiência é, em essência, uma construção simbólica, na medida em
que ela mesma é sempre uma condensação da própria coisa
experienciada construída pelo modo de recepção do sujeito que
experiencia, ou seja: o sujeito não experiencia o noumenon, mas um
símbolo dele, o phenomenon, que, sendo construído tanto no sujeito,
quanto pelo sujeito, necessariamente é imanente à ele, sem nunca, no
entanto, se fechar na própria imanência, sempre, como todo símbolo,
apontando para o simbolizado, para o noumenon, que Orestano chama

72 Orestano não nega de modo algum que essas possibilidades experienciais sejam

estruturadas também por potências psíquicas como a memória, a imaginação e a


estimativa, e por sentidos físicos, como a audição ou a visão, o que já liquida o erro de
limitar a experiência à um fenômeno meramente intelectual, delimitado por categorias
puras da razão e da intuição. A experiência é verdadeiramente uma atividade vital,
estruturada pela integridade da existência humana concretamente inserida, inclusive
interagindo com os apetites humanos (entendidos escolasticamente), pois a experiência
pode ser tratada com desejo (apetite concupiscível) ou com aversão (apetite irascível), e
mesmo consentida ou renegada, em diferentes graus de intensidade (apetite racional,
também chamado de “vontade”).
73 ORESTANO; Francesco. Verità Dimostrate: Saggi di Filosofia Critica. Fratelli

Bocca - Editori, 1939, página 78.


74 Ibidem, página 60.
de dimensão transcendental da experiência 75. A experiência, enquanto
símbolo do fato, indica a própria existência do fato independentemente
do sujeito experienciador, como se guardasse em si um indício, um
vetor, nas palavras do autor, que dá a orientação ontológica daquilo que
foi condensado, e por orientação ontológica entende-se justamente uma
prova de que há uma realidade para além da experiência que funciona
como um substrato do símbolo, permitindo que todo aquele que conheça
o símbolo adequadamente, conheça também, dentro das possibilidades
do próprio sujeito, a dimensão transcendental dele 76. Isso não se dá
apesar da experiência ser uma espécie de simbolização, mas pelo
próprio fato de ser uma simbolização, afinal, essa é a natureza do
símbolo: simbolizar algo para além de si, ser como que a presença de
algo ausente (observe que não se pode negar que é cotidiano considerar
que palavras são símbolos de coisas externas à própria língua, e mesmo
que palavras escritas são símbolos de palavras faladas, ou seja,
símbolos de símbolos, que, por sua vez, não estão presentes, portanto,
enquanto se experiencia esses símbolos, sempre se considera que a
experiência, mesmo se considerar ela como entendida de forma
ingênua, anterior à essa virada simbólica, não se fecha na própria
imanência do fato como empiricamente percebido pelos sentidos,
apontando universalmente para outros símbolos que existem
independentemente do primeiro e o transcendem, até que se chegue em
um fato real e concreto, que exista por si. Isso tudo é tremendamente
intuitivo e inquestionável, até porque, para se negar isso, o negador
seria obrigado a afirmar que este próprio texto não teria referencial
nenhum fora de si, e mesmo que esses símbolos alfabéticos não teriam
nenhum referencial externo, como, por exemplo, palavras e conceitos,
não formando sequer um texto, palavra que, inclusive, sequer teria
sentido, uma vez negada a dimensão transcendental de qualquer
símbolo. Agora, considerando então que a própria experiência é uma

75 Ibidem, páginas 56 & 57.


76 Ibidem, páginas 56 - 59.
espécie de símbolo, o argumento assume uma estrutura ainda mais
complexa e inegável, uma vez que a própria ação de negar a experiência
enquanto símbolo geraria uma outra experiência, que necessariamente
há de ser considerada um símbolo, pois não é a negação em si, somente
uma condensação dela segundo o modo de recepção do sujeito, que
patentemente tem uma dimensão transcendental, ou sequer faria
sentido ter falado anteriormente em uma “experiência da negação da
experiência enquanto símbolo”, porquanto se encerraria em si e não
poderia indicar a negação da experiência, algo que até o mais cético dos
homens terá de admitir que não faz nenhum sentido) seja esse algo
ausente intrasubjetivo, como um sentimento, um pensamento ou um
desejo, ou extrasubjetivo, como uma bola de futebol, um bolo ou uma
arma77.
Deste modo, a experiência se mostra inevitável, assim como a
sua dimensão transcendental também, já que, como demonstrado
anteriormente, uma vez que tenta se negar a experiência, se engendra
outra experiência, - a da negação da primeira, - que, por sua natureza,
indica a partir de qual fato foi engendrada, - sendo esse o fato da
própria negação da experiência, que em momento nenhum se confunde
com a limitada percepção subjetiva desse fato, apesar de ser
possivelmente harmônico com ela, - o que, em si, já é a dimensão
transcendental da experiência da negação da primeira experiência 78.
Por fim, mostram-se irreprimíveis, afinal, negar o que previamente se

77 Locus citatum.
78 A experiência prova-se assim como Ponto Arquimédico do sistema filosófico,
impossível de ser negado, pois sua própria negação acarretaria uma contradição patente,
fundamentando assim, de modo sólido, o Novo Realismo do autor, nomeado de
Superrealismo. Por sua vez, não se perderia a contribuição moderna da filosofia crítica, mas
permitiria que dela saísse uma verdadeira herdeira da tradição Realista pré-moderna,
preocupada em dialogar com os novos dados das ciências e do conhecimento. A filosofia de
Orestano apresentar-se-ia, portanto, como uma síntese da filosofia até a metade do século
XX, abarcando-a e transcendendo-a. Tal intuito comprova-se pela sua afirmação de que sua
filosofia coincidiria com “la filosofia vissuta dall’umanità, dall’uomo-specie” através do
“pensiero e” da “azione dei secoli e dei millenni” (Orestano, 1939, XIII).
demonstrou é um ato que, em si, transcende a experiência: o ato de
ignorar o que a própria experiência desvela ao sujeito79.
Vale a pena, a partir dessa teoria orestaniana da experiência,
responder a primeira pergunta antes feita, ao menos parcialmente:
afinal, do que se trata o conteúdo dos símbolos? Bem, desde que tais
símbolos sejam experiências, - algo que, como visto, abarca inclusive
experiências de interpretação dos próprios símbolos, - seus conteúdos
são, na realidade, fatos que os transcendem, recebidos e condensados
segundo as capacidades do sujeito experienciador, sem nunca perderem
as suas referências, - seus vetores, - que dão a orientação ontológica do
que seria o substrato transcendental da experiência. Entretanto, isso
só responde parcialmente à pergunta, que necessitará da contribuição
de outro autor, Eric Voegelin, para ser plenamente compreendida,
autor esse que tratará justamente dos símbolos que não são
experiências, compreendendo-os como condensações sintéticas,
construídas historicamente, de experiências, e buscando compreender
esses símbolos segundo as experiências que os fundamentam, como a
palavra falada fundamenta a palavra escrita, ou como a palavra
pensada fundamenta a palavra falada, ou mesmo como o fato referido
fundamenta a palavra pensada.

Capítulo 4 - Da Simbolização: A Perspectiva de Voegelin

“Human society is not merely a fact, or an event, in the external world to be


studied by an observer like a natural phenomenon. Although it has externality as one
of its important components, it is as a whole a little world, a cosmion, illuminated
with meaning from within by the human beings who continuously create and bear it
as the mode and condition of their self-realization.” (VOEGELIN; Eric. The New
Science of Politics: an Introduction. University of Chicago Press, 1987, página 36).

Para Voegelin, as ciências humanas, assim como todas as


ciências cujo objeto de estudo seja algo típico da esfera social, se diferem

79 Ato que Orestano nomeia de heterofania, - ou no original italiano, eterofania, -


pois desvela aquilo que não é o Sujeito (Nicht-Ich) ao próprio Sujeito (Ich), permitindo que
ele se reconheça em sua condição de Sujeito, que lhe é desvelada pela percepção do limite
entre si e o Outro (o que o autor chama de egofania).
abundantemente das ciências naturais, na medida em que elas são
profundamente fundamentadas por um substrato que precede
qualquer esforço científico por milênios: uma auto-interpretação da
sociedade 80 . Dessa forma, o autor vê que a vida dos membros da
sociedade e suas interrelações, antes mesmo de ser iniciada qualquer
empreitada crítica por algum intelectual, já são permeadas por
significados (meaning) compactados simbolicamente em um complexo
processo histórico, com todos os seus avanços, declínios, rupturas, e,
sem dúvida, com suas contradições e continuidades81. Nesse processo
histórico, esses símbolos são engendrados por seres humanos e para o
uso dos homens, a partir de suas experiências, para iluminar e orientar
o mistério da existência 82.

80 Essa auto-interpretação é algo que emana da própria realidade social, como


constructo dela, a partir de suas próprias necessidades inerentes a condição histórica
humana. Todo membro de uma sociedade tem necessidades imediatas, tanto por
determinações biológicas, quanto por autodeterminações ou por determinações de outrem, e
essas necessidades de modo algum podem ser afastadas por tempo indeterminado até que
respostas possam ser obtidas academicamente, ou por qualquer membro de uma elite
intelectual, nem sempre afiliada à universidade a depender do tempo ou da cultura.
Explicações pragmáticas têm que ser oferecidas, além de símbolos que condensem essas
explicações e as experiências existenciais que orbitam em volta deles, possibilitando a
formação de novas gerações com suficiente conhecimento para se orientar na realidade, sob
a pena de que, se não forem, não haver sequer a possibilidade da formação de uma
sociedade. Apesar disso, essas auto-interpretações nem sempre são pragmáticas, as vezes
realmente apresentam questões altamente intelectualizadas, ligadas à cosmovisão, como a
perspectiva acerca da história do Marxismo, ou a visão acerca do homem nas Cartas de São
Paulo, que, para Voegelin, não podem ser de modo algum consideradas científicas, por não
serem simbolizações de experiências pneumáticas, não noéticas, sendo, entretanto, sem
dúvida alguma, auto-interpretações que emanaram da sociedade em um dado momento
histórico a partir de figuras de relevância ímpar, contextualizadas em um dado tempo e
dentro de uma dada cultura.
81 VOEGELIN; Eric. The New Science of Politics: an Introduction. University of

Chicago Press, 1987, página 36


82 O termo “mistério da existência” não é somente um conceito poético, mas pouco

explicativo, como pode a princípio parecer para o leitor pouco experiente com a cosmovisão
voegeliana. É, na realidade, uma verdadeira condensação simbólica da condição
fundamental do homem dentro da antropologia do autor. Para Voegelin, a existência é,
essencialmente, uma participação na Comunidade do Ser, composta pelo homem, pela
sociedade e pelo mundo, além de por Deus, que, em vez de ser um participante da
Comunidade do Ser, é o participado, abarcando e transcendendo a existência de todos os
outros membros. Ou seja, existir é participar de algo que transcende infinitamente a parte
existente, e que já é uma realidade desde muitíssimo antes do início da existência
individual, sendo que continuará sendo mesmo depois da morte física do sujeito. Enquanto
isso, a existência humana, fisicamente limitada desde a concepção por circunstâncias, por
um lado, bastante rígidas (herança genética, estigmas advindos dos ancestrais, falta de
nutrientes no desenvolvimento intrauterino e na primeira infância, etc.), e, por outro,
razoavelmente alteráveis (formação cultural, hábitos adquiridos, bens acumulados, etc.),
Esses processos de engendramento foram explicitados por
Voegelin em seu ensaio “Equivalents of Experience and Symbolization”
(1970), onde o autor afirma que, antes de mais nada, a proposição
fundamental - poderia ser dito, o Ponto Arquimédico - de seu
pensamento residiria naquilo que está condensado na proposição
seguinte: “man participates in the process of reality”83. A partir desse
fundamento, as implicações começariam a aparecer, principalmente
enfocando na própria condição do homem enquanto participante desse
mesmo processo 84 , seja enquanto participante conhecedor 85 , como
engendrador de símbolos condensadores de experiências86, ou mesmo
como conhecedor dos próprios símbolos que lhe estão disponíveis87.
Todas essas possibilidades do homem se revelariam como
tensionais, ou seja, partes de uma antinomia, ou dito de outra forma,

acaba sendo marcada por dois fatos intrínsecos a ela: sua historicidade e sua limitação
frente à infinitude que a abarca. Toda narrativa humana é historicamente limitada, tendo
data precisa para os fatos que a compõe e determinações duras e rigorosas, até mesmo, e
principalmente, quanto ao seu começo e seu fim, ao mesmo tempo em que é incutida de uma
tensão fortíssima, derivada do fato da Comunidade do Ser ser inabarcável - devido a
impossibilidade de ser integralmente experienciada - por uma consciência limitada que é
somente parte participante dela. Nesse sentido, a existência humana se revela como
mistério para todo homem, porque é inserida em uma tensão insolúvel entre o finito e o
infinito, ou melhor, considerando a necessidade de orientações precisas para a concretização
mais excelente da vida humana, entre o cognoscível e o incognoscível dentro de um tempo
hábil de vida.
83 O importante aqui não é a proposição enquanto premissa de uma argumentação

lógica: Voegelin era totalmente contrário à essas sistematizações dogmáticas. O relevante é


a proposição enquanto símbolo que condensa a experiência fundamental por detrás de toda
a filosofia voegeliana, que é a experiência da participação do homem no real, ou, como
exposta previamente, na experiência de ser uma parte finita e limitada quanto às suas
capacidades de descobrir aquilo que lhe é relevante para uma boa vida por si em um todo
infinito e que abarca e transcende todos os participantes.
84 Quando aqui se fala de um processo da realidade, Voegelin está simbolizando a

experiência humana da Comunidade do Ser dando enfoque na mutabilidade e na


historicidade da tensão previamente descrita, ou seja, na experiencia participativa humana
enquanto constante e instável descoberta, deturpação, redescoberta e aperfeiçoamento de
aspectos dos membros da Comunidade. Seria um erro ler Voegelin enfocando
demasiadamente no termo e no conceito usado, em vez de na experiência a que este se
refere.
85 “2. Man is conscious of reality as a process, of himself as being part of reality, and

of his consciousness as a mode of participation in its process.” (Voegelin, 1970).


86 “3. While consciously participating, man is able to engender symbols which express

his experience of reality, of himself as the experi-encing agent, and of his conscious
experiencing as the action and passion of participating.” (Voegelin, 1970).
87 “4. Man knows the symbols engendered to be part of the reality they symbolize - the

symbols consciousness, experience, and symbolization denote the area where the process
of reality be-comes luminous to itself.” (Voegelin, 1970).
de uma aparente contradição, que, na realidade, acabaria encontrando
sua concretude na própria tensionalidade, sem nunca se resolver na
vida humana: (1) enquanto, por um lado, há o sujeito conhecedor
experienciando a realidade a partir do Cosmos a sua volta, por outro
lado, há o próprio Cosmos abarcando o sujeito e se desvelando para ele,
sem nunca se deixar esgotar; ou mesmo, (2) enquanto, por um lado, há
o homem tentando engendrar novos símbolos (gestuais, linguísticos,
pitorescos, etc.) para expressar algo de fundamental que teve de
orientação existencial em alguma de suas experiências, há, por outro,
a própria experiência limitando a precisão simbólica do homem, por ela
mesma ser um símbolo que não se fecha em si, mas que se abre para
sua dimensão transcendental que, para o criador do novo símbolo,
acaba se tornando um aspecto negligenciado pelo símbolo engendrado
(e quando não negligenciado, só implicitamente presente); ou ainda, (3)
enquanto, de um lado, há o sujeito que contempla e interpreta o símbolo
engendrado por outro alguém, a partir de sua própria cosmovisão
limitada e de seus conhecimentos e valores, há, do outro lado, o símbolo,
incutido e engendrado segundo uma certa intencionalidade, muitas
vezes totalmente desconhecida pelo agente hermeneuta, mas contendo
em si a possibilidade de ser interpretado de ilimitadas maneiras, a
depender da própria intencionalidade do intérprete88.
Essas experiências que podem ser condensadas em símbolos não
são, de modo algum, meramente subjetivas, elas são existencialmente
necessárias ou possíveis, ou seja, elas refletem uma realidade que, se
essencialmente manifesta, é universal, ou que, se acidentalmente
manifesta, poderia ser universal, desde que todos os membros da
espécie humana estivessem nas circunstâncias conecessárias para tal,
algo que, apesar de factualmente irrealizável, permite ao homem, junto

88 Essa tensionalidade é caracteristicamente apreendida pelo ser humano devido ao


fato dele estar, como Voegelin afirma, em um estado de Metaxy, de entremeio, entre dois
polos que, com diferentes nomes (Necessário-Contingente, Infinito-Finito, Ilimitado-
Limitado, Brahman-Maya, Qián-Kūn, Civitate Dei-Civitate Hominis, etc.), referem-se à
uma espécie de experiência equivalente, como descrita já previamente.
de seu mundo interior e utilizando-se de sua empatia89, a compreender
a experiência que fundamenta o símbolo, independentemente de qual
seja.
Nesse sentido, os símbolos engendrados voluntariamente pelos
homens acabam passando sempre por um verdadeiro processo orgânico
de desenvolvimento, podendo tornar-se em seu conteúdo algo ligeira ou
profundamente diferente para um leitor ou um ouvinte, a depender de
como que ele é interpretado e segundo qual a intencionalidade do
intérprete ao interpretar (além do próprio referencial à qual a
dimensão transcendental do símbolo passará a ser orientada na
consciência do receptor). O que não pode nunca ser confundido com o
abandono de qualquer critério de análise hermenêutico acerca de qual
seria a interpretação mais adequada do símbolo: para Voegelin, o
símbolo pode ser interpretado com uma maior diferenciação de
consciência (nos termos explicados no Capítulo 2), ou com um menor
acesso à essa precisão na descrição da experiência humana em seu
drama perene pelo Fundamento (Ground) em que participa. Além
disso, é possível que, através de uma visão originada pelo
ressentimento para com a realidade 90 , o intérprete conduza sua

89 Entendida aqui a partir da perspectiva da misericórdia afetiva de que São Tomás


de Aquino fala na sua Summa Theologiae (II-II.30.2): “Respondeo dicendum quod, cum
misericordia sit compassio super miseria aliena, ut dictum est, ex hoc contingit quod aliquis
misereatur ex quo contingit quod de miseria aliena doleat. Quia autem tristitia seu dolor est
de proprio malo, intantum aliquis de miseria aliena tristatur aut dolet inquantum miseriam
alienam apprehendit ut suam. Hoc autem contingit dupliciter. Uno modo, secundum
unionem affectus, quod fit per amorem. Quia enim amans reputat amicum tanquam
seipsum, malum ipsius reputat tanquam suum malum, et ideo dolet de malo amici sicut de
suo. Et inde est quod philosophus, in IX Ethic., inter alia amicabilia ponit hoc quod est
condolere amico. Et apostolus dicit, ad Rom. XII, gaudere cum gaudentibus, flere cum
flentibus”. Ou seja, empatia pode ser definida como o afeto interior (sentimento) que inclina
o homem, frente à miséria de outro, a desejar ajudá-lo, por conseguir ter compaixão do
sofrimento alheio como se fosse, ao menos em algum grau, seu. Nesse sentido, usa-se aqui o
termo empatia analogamente, não indicando a virtude em si da misericórdia afetiva
efetivada, nem a própria misericórdia afetiva, mas o mecanismo pelo qual o homem, através
da sua fantasia, consegue imaginar-se na experiência do outro, seja ela de miséria ou não.
90 Por ressentimento para com a realidade entende-se o ódio dirigido à estrutura da

realidade, ou seja, ao modo como o Cosmos é ordenado, devido à um amor excessivo e


desordenado dirigido à um bem imanente que, por ser essencialmente limitado, não é capaz
de ocupar, dentro da cosmovisão do sujeito, uma função central equivalente àquela que o
Ground of Being deveria ocupar para harmonizar a percepção subjetiva do homem acerca
da realidade com a própria ordem cósmica. No caso, pelo Ground of Being ser idêntico ao
interiorização do símbolo com uma scotosis, ou seja, uma deformação
da cosmovisão do intérprete que desarmoniza suas crenças com a
estrutura da realidade, ignorando-a, como o termo indica, como se
devido à uma condição de cegueira (Voegelin, 1970).
Daí levanta-se então a questão acerca de qual seria a função
destas mesmas ciências humanas que, no início do Capítulo, foram
citadas, dentro do contexto da contínua busca da consciência humana
por orientações mais fundamentais sobre o real? Voegelin responde
afirmando que essa função gira em torno do que nomeia de clarificação
crítica, ou seja, “the discovery of the psyche and of its anthropological
and theological truth”, onde a consciência vai se diferenciando em sua
busca por orientação existencial no drama humano, ao mesmo tempo
em que dialeticamente “it consisted in the measuring of the symbols in
reality by the standards of the new truth”, descoberta pelo processo de
auto-iluminação da consciência a partir da reflexão acerca de sua
própria experiência (1987, páginas 72 & 73).
Finalmente, então, podem-se resolver, com os instrumentos
teoréticos e filosóficos aqui dispostos, as questões colocadas ainda no
Capítulo 2. Quanto à primeira, além do conteúdo dos símbolos
experienciais, já visto no Capítulo anterior, os símbolos derivados têm
por substrato direto algum símbolo experiencial (ou mais de um, um
conjunto que, por sua vez, pode ou não ter sido experienciado de modo
a formar um outro símbolo experiencial que unifica-os), que
necessariamente devem fundamentar as simbolizações derivadas, ou

Sumo Bem, - afinal, o fundamento de tudo aquilo que possui ser necessariamente deve ser
também o fundamento do bem inerente a tudo que é, na medida em que tudo aquilo que
possui ser é, sob algum aspecto, apetecível, ou seja, um bem, que não pode ser inerente ao
próprio ente contingente, mas derivado do próprio fundamento necessário desse ente, -
então é também o bem sumamente apetecível, de onde deriva-se que é, inerentemente, o
Membro da Comunidade do Ser mais digno, segundo Sua natureza, de amor. Sendo ao
mesmo tempo Fundamento e Centro do Cosmos, é natural que o segundo seja ordenado
levando isso em consideração, o que necessariamente leva a conclusão de que o amor
desordenado à algum membro da Comunidade do Ser que ocupe na cosmovisão de um
sujeito, indevidamente, a função do Ground of Being, faz com que, inevitavelmente, se odeie
a estrutura do Cosmos por não ser moldada segunda a consciência desordenada do sujeito e
impedi-lo constantemente, pela sua própria constituição, de consumar plenamente seu
amor pelo bem idolatrado.
algum outro símbolo derivado que, aí sim, fundamentado por algum
símbolo experiencial, ou mais de um, o que, em última instância,
orienta o símbolo para um referencial ontológico.
Quanto à segunda questão, o que pode tornar um símbolo opaco
é a alienação (scotosis) do intérprete do símbolo ou do próprio
engendrador deste, que, a partir de sua consciência, faz do símbolo uma
mera simbolização da sua desordem interior em relação à estrutura
ordenada do real. Tendo em vista isso, o que resta é que o verdadeiro
cientista em sentido clássico, aquele interessado em chegar ao
conhecimento verdadeiro daquilo que estuda, já tendo uma consciência
bastante diferencializada, faça um honesto processo dialético com esses
símbolos desordenados que penetram sua área de engajamento e
ordene-os, encontrando o substrato experiencial por detrás deles e a
limitação das experiências deturpadas descobertas frente ao drama
humano.

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Anexo 1:

Gráfico retirado em 14/05/2022 de


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