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OS MITOS DA CIÊNCIA

SIMON SCHWARTZMAN

Os mitos da ciência

O texto começa com o autor citando uma ideia exposta por Homi J. Bhabba, um dos pais
da tecnologia nuclear da Índia, que era a de que é preciso, para desenvolver países, estabelecer a
ciência moderna e transformar suas economias tradicionais em economias baseadas na ciência e
tecnologias modernas. No entanto, a relação entre ciência, tecnologia e desenvolvimento é
bastante complexa, principalmente porque as percepções que possamos ter da ciência e de sua
relação com os processos de transformação social, são frequentemente perturbados pelos
mitos presentes na atividade científica. (p.18)

Os mitos são uma das formas pelas quais as sociedades percebem e justificam suas
crenças no progresso, e os cientistas explicam e justificam suas práticas. Não se trata, aqui, de
erros comuns que poderiam ser afastados com melhor conhecimento a respeito da natureza da
atividade científica e sua relação com a sociedade; os mitos tendem a ser simples e, apesar de
não serem necessariamente coerentes, obedecem às suas funções socias. (p.18 e 19)

Os mitos, muitas vezes, trazem consigo contradições e ambiguidades; nesse caso,


podemos lançar mão da dialética para entender tais situações. O autor propõe examinar primeiro
a ''síntese indiferenciada'', que é o mito social através da ciência, e subdividí-la em ''tese'' e
''antítese''. A tese seria, portanto, o mito do Rei Filósofo, segundo o qual a ordenação do
mundo seria mediante os ideias de racionalidade superior proporcionadas por aqueles que
sabem. Essa tese acredita que o mundo, em si, é desordenado e necessita de uma direção
esclarecida. A antítese, contudo, propõe a ideia de que a sociedade tende, naturalmente, à
racionalidade - de modo que, aqui, supõe-se que o mundo é naturalmente harmônico e que a
Razão impera. (p.19)

A união entre ambas é a síntese que postula a identidade entre ciência, tecnologia e
desenvolvimento. Os mitos capturam uma parte significativa da realidade social, como ela é e
como ela é percebida, transformando isso, posteriormente, em verdades generalizadas. A
preocupação com os mitos da ciência é essencial para o entendimento do que ocorre nos países
subdesenvolvidos, onde a ciência moderna entra, comumente, por políticas públicas
governamentais que se guiam, via de regra, pelos mitos. (p.19 e 20)

A antiga síntese: o progresso através da ciência

Por trás da citação de Bhabba, no início do texto, está uma antiga tradição que sustenta a
ciência e o conhecimento enquanto coisas boa e socialmente úteis, sendo, um fator que
supostamente separaria sociedades avançadas de sociedades primitivas; a ciência
transformaria não somente o meio natural, mas também transformaria os homens. Essa ideia,
contudo, já estava presente nos estudos de Robert Merton sobre o surgimento da ciência moderna
na Inglaterra do século XVII, mostrando, por exemplo, como já se propagava a ideia da ciência
ser uma atividade prática, útil e nobre. Para a ética puritana da época, a Ciência estava
''convocada ao serviço do indivíduo, da sociedade e de Deus''. (p. 20)

Há uma mistura de justificações pragmática e morais para a atividade científica que


tem sido, historicamente, um componente cultural ''indispensável'' às suciedades nas quais a
ciência surgiu como atividade significativa. É denominado de ''cientismo'', pelos sociólogos da
ciência, esse apoio social e cultural aos ideais científicos. Nesse caso, existem determinantes
sociais que podem ser observados quando esse mito surge socialmente. Um efeito, é que boa
parte dos indivíduos acabam optando por seguir carreiras científicas como projeto de vida; outro,
é que a sociedade, ou pelo menos os grupos ascendentes, concordam em cobrir os custos da
atividade científica. Um terceiro efeito, é que a ciência acaba sendo buscada e apoiada
independentemente de seus resultados práticos. (p.20 e 21)

A última consequencia é que a ''ciência'' passa a englobar atividades distintas e, nem


sempre, compatíveis entre si, isto é, atividades diferentes em objetivos, estilos, métodos, critérios
de verdade e validação. A ciência acaba sendo ''aquilo que as pessoas que a sociedade reconhece
como cientistas fazem''. O mito do progresso da ciência acaba encobrindo, assim, supostos
diferentes a respeito do relacionamento entre cientistas e sociedade. Um desses mitos diz respeito
ao papel dos intelectuais e cientistas na vida social e, o outro, sobre como a ciência é abordada
no meio sociopolítico. (p.21 e 22)

Tese: o rei filósofo

a) Planejamento científico

O autor argumenta que o Positivismo do século XIX é uma expressão recente da ''utopia
platônica'' de uma república organizada e dirigida racionalmente. Nesse sentido, Auguste Comte
visualizava a necessidade de realizar 2 tipos de tarefas, sendo uma teórica e espiritual, que tem o
objetivo de desenvolver o novo princípio pela qual as relações sociais devam ser coordenadas, e
a outra prática e temporal - que objetiva determinar o modo pelo qual deva se estabelecer a
divisão do poder no conjunto das instituições administrativas. A primeira, seria uma tarefa
exercida pelo cientistas, e a segunda, a execução do plano, aos administradores. (p.22)

Acontece que o ''rei filósofo'' de Comte, para além de um cientista, é um intelectual,


alguém que vai além dos limites do conhecimento especializado, que consegue ter uma visão
completa do conhecimento e, por isso, seria o indicado para exercer liderança e supremacia.
Nesse caso, não só a sociedade deveria ser organizada pela ciência, mas também a própria
ciência deveria estar submetida a essa ordem de planejamento. Aqui, Comte sintetiza um dos
mitos centrais da ciência moderna - a da ciência enquanto parte um plano nacional para o
desenvolvimento e uso dos resultados das pesquisas. (p.23 e 24)
Essa questão contrasta com as realidades dos países em desenvolvimento, pois elas não
teriam os ''elementos institucionais e motivacionas para a pesquisa'' e, por isso, seriam alheias a
ela. O planejamento pareceria uma solução a esse problema, mas seria difícil, pela própria falta
de experiência e tradição nesses países. Mas, mesmo assim, a ciência deveria ser vista como
parte de um planejamento político. (p.24)

b) Os intelectuais

A pretensão, pelos intelectuais, de superioridade moral e ao direito de conduzir a


sociedade, não é algo que começou com Comte ou Platão. Mas Weber, em estudos sobre as
sociedades da China, Índia e Palestina, apontou o jogo de poder entre os militares - que
governam pela força - e os intelectuais, que governam mediante a autoridade moral. Nesse caso,
intelectuais surgiram, muitas vezes, como grupos especializados em assuntos religiosos. Na
Índia, Egito e Islã, o sacerdócio era a carreira mais importante do inlectualismo; já na Grécia,
Roma e China, o pensamento metafísico, ético e o desenvolvimento da teologia ficou incumbido
aos não-sacerdotes. (p.24 e 25)

Muitas vezes, os intelectuais são responsáveis pelo desenvolvimento e manutenção de


tradições religiosas e culturais, justificando e legitimando a ordem social vigente, recebendo, em
troca, prestígio e honra social - tal como os brâmanes e os mandarins. Mesmo assim, conforme o
autor, o interesse pelo conhecimento científico, de base empírica, tende a ser mínimo. (p.25)

No mundo árabe, o erudituo muçulmana, ''ulama'', estava numa posição próxima, mas
diferenciada da dos detentores do poder, pois perceberam que, ao se manter distantes do
exercício efeitivo do poder, mantinham seus prestígio e cultivariam tradições intelectuais. Um
espécie de acordo entre os príncipes e o ''ulama'', promoveu uma hierarquia de diferentes tipos de
conhecimento, sendo o mais alto o estudo da lei religiosa - que definia as regras adequadas de
comportamento social, o segundo seria os conhecimentos ''socialmente úteis'' e, por fim, a busca
do conhecimento pelo conhecimento (que poderia ter alguma utilidade). (p.25 e 26)

Essa hierarquia não foi incompatível com o desenvolvimento da ciência aplicada, mas o
contato com o Ocidente, com as derrotas militares do Império Otomano, abalaram essa tradição.
Surgiram, assim, intelectuais ocidentalizados que tentaram estabelecer uma ''ponte'' entre suas
tradições e as novas ideias modernas ocidentais; o resultado, no entanto, foi a ocidentalização das
polítcas e o desenvolvimento do nacionalismo árabe. Quando houve, no entanto, a ascensão de
regimes militarizados, esses intelectuais foram relegados à marginalidade. (p.26 e 27)

Conforme o exemplo, o autor argumenta que, mesmo mediante o desenvolvimento da


ciência moderna ocidental, a experiência ocidental colocou um grupo significativo de intelectual
à margem do poder, com um comprometimento latente de sua atividade específica. Joseph Ben-
David, ao questionar o surgimento da combinação entre racionalidade, impulso intelectual
individual e preocupação com a natureza das coisas, expões que o filósofo tradicional, ao
contrário do cientista -que está a fim de captar por modelos lógicos algum tipo de realidade-
tinha como realidade paradigmática o Homem ou Deus, sendo o conhecimento prático visto
como uma atividade menos importante. (p. 27)

Portanto, a ciência, enquanto atividade institucionalizada, teria de surgir a partir da noção


de que o conhecimento científico era tão importante à sociedade quanto a filosofia moral; os
cientistas deveriam servir à Ciência. (p.27)

Antítese: o reino da ciência

a) A racionalização da sociedade

A noção liberal de desenvolvimento, mediante a racionalidade individual, supõe que a


sociedade será mais racional e eficiente a medida em que casa pessoa maximize sua
racionalidade individual, ou seja, a racionalidade é estabelecida no interrelacionamento entre os
indivíduos de modo que a a buracracia teria apenas a função de encaminhar os objetivos
definidos no mundo político. Essa noção liberal, é a noção weberiana; nesse caso, trata-se de
algo bem diferente do modelo platônico e comtiano em relação a um planejamento racional de
organização social - o que não é o proposto, no caso em questão. (p.28)

Em sua versão liberal, o Reino da Ciência é inseparável dos ideiais a respeito da evolução
e do progresso por meio do desenvolvimento da racionalidade dos indivíduos. Aqui, cada pessoa
tem o direito de aceitar ou rejeitar a verdade conforme os seus ideais individuais, mas o
conhecimento científico deve prevalecer, pois é um conhecimento melhor e mais convincente.
(p.28 e 29)

O autor cita Alexander Vucinich, um autor que, a partir de estudos sobre a ciência na
cultura russa do século XIX, traça um quadro do clima ideológico e político. Cita-se, aqui, o
movimento ''niilista'', enquanto adepto da defesa do poder intelectual da ciência e das ''qualidades
humanísticas da atitude científica''. Contudo, essa ideologia não levava, somente, à rejeição da
autoridade tradicional russa, mas à rejeição da autoridade enquanto tal. Em relação à essa ideia, a
reação das autoriedades foi negativa, mesmo tendo em vista os benefícios que a ciência poderia
proporcionar. (p.29 e 30)

Os principais opositores do regime esperavam que a ciência desempenhasse um papel


considerável na liberação da Rússia de seu passado feudal, como um instrumento de mudança
social e modernização. Nesse caso, alguns de seus defensores mais ativos eram filósofos,
professores de direito e intelectuais. Foram os professores, e não os acadêmicos, que ajudaram a
ciência a chegar à comunidade mais ampla, tanto na forma de um conjunto de novos
conhecimentos, quanto de uma arma ideológica. (p.30)

b) A república dos cientistas

Os cientistas exploram o desconhecido e só têm compromissos com a sua própria


curiosidade e com a busca da satisfação intelectual. Como no mercado, a racionalidade
individual o impulsiona a trabalhar temas que lhe sejam valiosas; de certo modo, eles buscam
vantagens comparativas. Assim, o resultado agregado de tantas decisões individuais é a
coerência, sua organização conforme princípios de ''auto-coordenação por ajustes mútuos'' e
''disciplina sob autoridade mútua''. Há o desenvolvimento de um paradigma comum de trabalho.
(p.30 e 31)

Conforme tal perspectiva, as pesquisas científicas dão-se de modo independente; os


ajustes entre o produto de seu trabalho e as necessidades sociais se darão naturalmente. Acontece
que todas essas noções de liberdade de pesquisa e predominância da liberdade individual sobre a
autoridade, dependem de uma ''fronteira aberta de expansão''. Quando esses limites estão
próximos, é necessário fazer escolhas e admitir prioridades; para evitar isso, existe a noção de
que existe ''só uma ciência''. Nesse caso específico, essa ideia refere-se à noção de que a ciência é
universal, de que existem paradigmas abrangentes que seriam compartilhados por toda a
comunidade de especialistas. (31 e 32)

No entanto, as comunidades científicas, em sentido estrito, são grupos muito reduzidos,


de modo que o conhecimento é dificilmente transferível e comunicável com outras áreas de
especialidade. Em muitos casos, o volume de produção científica tende a ser tão grande que
surgem problemas de sobrecarga de informações. Daniel Greensberg, em estudos sobre a política
da ciência pura nos EUA, aponta que os recursos à produção científica são distribuídos conforme
o poder e a influência dos grupos de interesse, nesse caso o mito do mercado científico ''se
distorce'' quando a ciência deixa de ser ''barata'' e se torna cara. A tendência é que, diante de
tantos de problemas de escolha e como eles não podem ser ignorados, a ciência possa dar
critérios objetivos ou técnicos de prioridade. (p.32 e 33)

A nova síntese: ciência, tecnologia e desenvolvimento econômico

Entre o mito do rei filósofo e o mito do Reino da Ciência, há um contraste de duas


concepções diferentes no que diz respeito ao que é racionalidade e como ela se relaciona com a
sociedade. No entanto, ambas as concepções partem de uma concepção hegeliana a respeito do
desenvolvimento da história mediante o ''desdobramento progressivo da razão''. (p.33)

O autor propõe que, a partir desse contraste, fica claro que existe um debate mais amplo a
respeito de ''questões de organização social, liberdade política e planejamento econômico, de
modo que não existem soluções simples para esses problemas - mas existe uma tentativa de
solucioná-los mediante uma nova síntese: a de que todas as formas de racionalidade moderna são
partes de uma mesma coisa. (p.34)

Marx, ao denunciar o caráter alienado do pensamento teórico, inseriu os filósofos,


intelectuais e cientistas na arena política. Aqui, a racionalidade era vista como um produto do
desenvolvimento social, e as fronteiras existentes entre os demais campos da ciência ou, por
exemplo, entre o pensamento teórico e pensamento prático, tratavam-se de alienações que
desapareceriam no próprio processo de transformação social. No entanto, a junção de todas as
dimensões da racionalidade em uma unidade, deixaram o marxismo aplacado ante aos problemas
de dominação tecnocrática, autoritarismo político e super-burocratização. (p.34)

Nesse caso, as teorias liberais também não estavam em posição melhor para lidar com as
questões da tecnocracia e do autoritarismo. Contudo, depois de Keynes, o planejamento
econômico tornou-se aceito no mundo ocidental e, a partir do trabalho de alguns economistas de
Chicago, a tecnologia começou a ser tratada como um fator de produção, assim como o capital e
o trabalho - é aqui, inclusive, que surge o conceito de ''capital humano'', como uma
caracterização sobre a contribuição econômica que pessoas ''bem educadas'' ou ''bem treinadas''
poderiam trazer. Assim, o planejamento para a ciência, tecnologia e educação, passou a ser
entendido como suscetível de incorporação a modelos de planejamento econômico. (p.34 e 35)

Aqui, não existe uma resposta simples quanto à relação entre ciência e tecnologia, nem
sobre suas fronteiras. A tecnologia, enquanto conhecimento prático, pode se desenvolver tanto a
partir conhecimento ''científico'' (conhecimento sistemático, sem aplicação imediata) quanto sem
ele, pois a busca por resultados práticos nem sempre é o que orienta o trabalho científico. A
posição tomada pelos cientistas, sobre essa questão, é ambígua, porque, conforme o autor, pode-
se utilizar, dependendo da situação, o argumento a favor da utilidade da ciência e sua vinculação
com a tecnologia, ou a independência e autonomia científica em relação a objetivos práticos
imediatos. (p.35 e 36)

Após a 2ª guerra, um número crescente de cientistas mostraram-se dispostos a não mais


aceitar a condição de independência entre a atividade científica e o mundo social, político e
econômico. Antes da guerra, a defesa de uma ciência autônoma e independente era vista como
um posicionamento importante ante as ameaças de liberdade de pensamento e da razão. Robert
K. Merton, em trabalho publicado em 1939, toma a Alemanha nazista como exemplo de
hostilidade à ciência, exigindo que os cientistas abandonassem o respeito a todas as normas que
conflitassem às normas estatais. Os cientistas, ao se manterem afastados da realidade política,
acabaram entrando em uma linha de colaboração passiva com o regime. (p.36 e 37)

Ali, não havia espaço para uma atividade científica íntegra e coerente. O que Merton
conclui é que, quando o locus do poder social está em instituições não-científicas, e os cientistas
não sabem se mantêm-se leal ao poder ou à ciência, sua posição fica incerta e, aqui, a solução
apresentada é a volta ao ideial da República da Ciência. (p.37)

A busca de uma posição intermediária entre essas questões, que são a subordinação total
da ciência a objetivos tecnológico, econômicos e políticos, ou a sua total independência,
tendenciou tentativas de estabelecer critérios racionais à distribuição de recursos entre diferentes
tipos de atividade científica. Nesse contexto, o autor, conforme Jacques Salomon, questiona: qual
é a fonte mítica para a questão de que possa haver critérios objetivos e racionais à distribuição de
recursos à atividade científica? De acordo com Salomon, não existe uma relação clara entre
ciência e desenvolvimento econômico e, também, não existe uma relação necessária entre
investimento em pesquisas e a prosperidade de um país. Trata-se, portanto, de mitos, mitos que
''são a força vital que dá sangue e paixão a uma área de atividade cada vez mais difícil e cara''. (p.
37 e 28)

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