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A DIGNIDADE DA ,..,

LEGISLAÇAO ~~R\OR TR/8ú,


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Jeremy Waldro PE ("

Tradução
Luís CARLOS BORGES

Revisão da tradução
MARINA APPENZELLER

Martins Fontes
São Paulo 2003
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Esta obra foi publicada originalmente em inglês com o título


THE DIGNITY OF LEGISLATlON "Para mim foi bom provar a aflição
por The Press Sindicate of lhe University ofCambridge, 1999.
Copyrig}1f © Jeremy Waldron, 1999.
para aprender os teus estatutos."
Copyright © 2R03, Livraria Martins Fontes Editora Ltda.,
São Paulo, para a presente edição, SALMO 119, 71

l' edição
setembro de 2003

Tradução
LUÍS CARLOS BORGES

Revisão da tradução
Marina Appenzeller
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Elza Maria Gasparotto
Edna Gonçalves Luna
Dinarte Zorzanelli da Silva
Produção gráfica
Geraldo Alves
Paginação/Fotolitos
Studio 3 Desenvolvimento Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Waldron, Jeremy
A dignidade da legislação / Jeremy Waldron; tradução Luís Car-
los Borges; revisão da tradução Marina Appenzeller, - São Paulo:
Martins Fontes, 2003. - (Coleção justiça e direito)

Título original: The dígnity of legislation.


Bibliografia.
ISBN 85-336-1896-4

1. Direito - Filosofia 2. Jurisprudência 3. Legislação I. Título. 11.


Série.

03-4351 CDU-340.12
Índices para catálogo sistemático:
L Direito: Filosofia 340.12
2. Filosofia do direito 340.12

Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à


Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil
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e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www.martinsfontes.com.br
I r
Capítulo 5
A física do consentimento

Acho notável na nossa tradição como se discutiu pouco


com continuidade o princípio da decisão majoritária - refiro-
me a uma discussão contínua de sua natureza, sua base e sua
justificativa. Há uma linha em Aristóteles\ algumas linhas
no Leviatã 2, uma página no Segundo tratado do governo, de
Locke 3 e alguns comentários esquivos e ambíguos no Con-
trato Social, de Rousseau4 • Nenhuma destas é remotamente
satisfatória como defesa filosófica do uso que é feito do prin-
cípio majoritário pelo teórico em questão, embora, como ve-
remos, as poucas linhas que há em Hobbes e Locke podem
fornecer o ponto de partida de uma exposição satisfatórias.
Há mais nos escritos de Condorcet - Marie-Jean-An-
toine-Nicolas Caritat de Condorcet - no século XVIII e mui-
to mais na ciência política do século XX, graças em boa parte
aos esforços de teóricos da opção social que foram influen-
ciados pelo Ensaio sobre a aplicação da matemática à probabili-

1. Aristóteles, A política, 144: 1317b5.


2. Hobbes, Leviathan, capo 16.
3. Locke, Two Treatises, 331-3 (lI: §§ 96-98).
4. Rousseau, The Social Contract, livro I, capo 5 e livro IV, capo 2.
5. Para um diagnóstico, ver Kendall, John Locke and the Doctrine of Majo-
rity-Rule, 1655.
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dade das decisões alcançadas pelo voto majoritário de Condorcet6 implica quanto ao sufrágio. A corrupta Câmara dos Comuns,
ou que (sob sua influência ou não) exploraram os caminhos comprada e vendida pelos proprietários ingleses do século
dos quais ele foi pioneiro. Contudo, como alguns editores XVIII, usou a decisão majoritária. Os juízes a usam no Su-
observaram, "Condorcet nunca entrou no cânone dos 'gran- premo Tribunal dos EUA quando discordam quanto a der-
des livros', nos cursos de teoria política do mundo de língua rubar ou não um item de legislação democrática. Os corpos
inglesa" 7. E, portanto, 'permanece a nossa questão: ~or que governantes dos clubes de cavalheiros a usam para escolher
a decisão majoritária é tão subteorizada no cânone? entre esquemas rivais a fim de ocultar a natureza exclusiva
É inútil oferecer uma resposta hegeliana - que, como o dos seus membros. Pelo que sabemos, os conselhos de ter-
sufrágio universal foi estabelecido apenas no século XX, não roristas a usam para selecionar seus alvos, quando discor-
devemos esperar que a coruja de Minerva tenha voltado sua dam quanto a quem serão às próximas vítimas.
atenção para a questão muito antes. Pois, na verdade, a de- Hannah Arendt propõe, em On Revolution [Sobre a re-
cisão majoritária é, no mínimo, tão antiga quanto a demo- volução], a opinião de que "o princípio majoritário é ine-
cracia ateniense. Bosanquet chamou-a "o genuíno instru- rente ao próprio processo de decisão"9 - ecoando a descrição
mento de toda ação política" e disse que "foi inventada, de Bosanquet - e diz que é "provável que seja adotado qua-
tanto quanto podemos perceber, pelos gregos. O simples ex- se que automaticamente em todos os tipos de conselhos de-
pediente pelo qual é feita uma votação organizada e a mi- liberativos e assembléias"lo. O argumento, então, é que o
noria aquiesce à vontade da maioria como se fosse a sua ... princípio majoritário é óbvio demais para exigir qualquer
é encontrado pela primeira vez, como método cotidiano de gasto de energia filosófica?
decisão, na vida política grega"8. Embora a democracia direta Mas o óbvio é o nosso negócio; entender o sentido (ou
de Atenas tenha desaparecido, o princípio majoritário re- o não sentido) do óbvio é o que os filósofos fazemll . Somos
sistiu e prevaleceu em quase todos os contextos em que são os que examinam a causa e o efeito, a realidade do mundo
tomadas decisões por corpos compostos por mais de dois exterior, a identidade pessoal e a nossa capacidade como
ou três indivíduos que se consideram iguais. Os comitia ro- humanos de argumentar sobre o valor. É nosso trabalho
manos o usaram; os pais da Igreja e colégios de bispos o usa-
buscar o que Kant chamou uma dedução dos conceitos que
ram, assim como o senado da república veneziana, os con-
estruturam nossa prática e experiência. A "obviedade" de
selhos da Florença de Maquiavel, os parlements medievais,
um princípio (pelo menos, quando a obviedade não é ape-
os cidadãos da Genebra de Rousseau e os revolucionários
nas trivialidade) - ele ser algo que, apesar de evidentemen-
americanos. Enquanto aumentamos essa lista, devemos
nos lembrar também de que não há nada especificamente
democrático na decisão majoritária. Por si, o princípio nada 9. Arendt, On Revolution, p. 164. Note também o contraste de Arendt
entre decisão majoritária e governo majoritário. "Apenas quando a maioria, após
a decisão ter sido tomada, procede à eliminação política e, em caso extremo,
6. Em Condorcet, Se/ected Writings, 33-70. física da minoria opositora é que o dispositivo técnico da decisão majoritária
7. McLean e Hewitt (org.), Condorcet: Foundations ofSocial Choice and Po- degenera em governo de maioria" (ibid.).
litical Theory, 73. 10. Arendt, ibid.
8. Bosanquet, The Philosophical Theory of the State, 4-5. 11. Ver Waldron, "What Plato Would Allow", esp. 170-1.
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te importante, "temos como certo" - é uma indicação da lecto que caracterizam a consagração de outras fontes de di-
sua posição central no esquema conceitual que estrutura a reito - por exemplo, o desenvolvimento de uma nova dou-
nossa prática. É uma indicação de que é exatamente o tipo trina, um novo princípio ou uma nova exceção nas delibe-
de coisa que devíamos estar confrontando na filosofia, in- rações de um tribunal. Como, então, é possível esperar que
vestigando (como diria Kant) o direito do princípio de ser levemos a legislação a sério quando ela é determinada des-
tido como certo dessa 'maneira12 • sa maneira evidentemente arbitrária?
A acusação de arbitrariedade tem vários enquadramen-
tos no que diz respeito à legislação. A acusação mais im-
11 portante contrasta um processo arbitrário com um processo
arrazoado em um contexto em que a razão é necessária por
Além disso, há um interesse específico para os estudan- causa dos altos riscos de política, moralidade e justiça envol-
tes de legislação. Entre os muitos temores que os juristas e vidos. As questões que a legislação enfrenta são questões em
constitucionalistas tiveram quanto à legislação, há uma preo- que importantes interesses individuais estão sendo equili-
cupação quanto à maneira absurda pela qual proposições brados e, se não houver cuidado, há risco de que alguns se-
ou moções colocadas diante da legislatura adquirem autori- jam oprimidos ou tratados injustamente. Contudo, votar -
dade jurídica. Elas o adquirem sendo decretadas, isto é, sendo contar cabeças - parece justamente o oposto do tipo de cui-
aprovadas pelas várias câmaras da legislatura e recebendo a dado que a justiça exige. Outras preocupações têm relação
aquiescência do chefe de Estado. Tudo isso soa muito solene com a inconstância e a incoerência da lei resultantes do avan-
e dignificado até que nos recordemos de que o modo especí- ço e do recuo das facções parlamentares na luta pela supe-
fico dessa decretação em uma câmara legislativa é a votação rioridade numérica. Há uma boa formulação disto no De cíve,
e a decisão majoritária - uma determinação puramente es- de Hobbes. Argumentando contra a idéia de legislação por
tatística do fato de haver mais membros a favor do projeto assembléias, Hobbes diz que, em muitos casos, "os votos não
de lei do que contra ele. Os projetos de lei não se investem são tão desiguais a ponto de os vencidos não terem esperan-
de autoridade jurídica pela razão; impõem-se como autori- ças de, pela ascensão de alguns da sua opinião, em outra
dade com nada mais crível do que os números a seu lado. sessão, poderem vir a ser o partido mais forte". Eles tentam,
Em várias atividades, resolvemos as coisas tirando cara portanto, providenciar "que o mesmo assunto seja nova-
ou coroa: tiramos cara ou coroa para determinar qual lado mente trazido a debate ... para que o que foi confirmado an-
deve defender qual gol no início de um jogo de futebol. Nin- tes pelo número de seus adversários então presentes possa
guém pensaria nisso como uma base adequada para deter- agora, em certa medida, se tornar sem efeito ..."
minar a quais proposições se deve conferir autoridade como
fontes de direito. Mas contar votos é muito mais parecido Decorre, portanto, que, quando o poder legislativo resi-
com cara ou coroa do que com os exercícios de razão e inte- de em grupos como esses, as leis devem ser necessariamen-
te inconstantes e mudar, não segundo a alteração dos ... es-
tados de coisas, nem segundo a mutabilidade das mentes
12. Ver Kant, Critique ofPure Reason, 120-2 (A84/B 117 ss.). dos homens, mas quando a maior parte ora desta, ora da-
't

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quela facção se une em tal medida que as leis flutuam para blica], se pensamos (por exemplo, por razões associadas aos
aqui e para acolá como se estivessem sobre as águas. 13 paradoxos de escolha social) que 0 caos e a incoerência são
1/

os resultados inevitáveis da votação majoritária, então, os


Meu objetivo neste livro foi apresentar a legislação sob tribunais de recursos ... foram igualmente à bancarrota ...
uma luz melhor do que geralmente acontece na filosofia Se aceitamos a tese no que diz respeito às legislaturas, não
jurídica e política. Corho disse no início, vale a pena pergun- temos para onde nos voltar 14 • l/

tar como seria desenvolver um retrato róseo das legislaturas Contudo, a comparação entre os tribunais e as legisla-
e seus métodos que estivesse à altura, em sua normativida- turas e a questão da revisão judicial não são as únicas ra-
de e, talvez, em sua ingenuidade, do retrato dos tribunais zões pelas quais queremos ou precisamos de uma teoria fi-
que apresentamos nos momentos mais elevados da nossa 10sófica da legislação. Precisamos dela, entre outras coisas,
jurisprudência constitucional. Pergunto isto em parte por- para desenvolver concepções adequadas de autoridade le-
que, em questões de projeto constitucional e reforma cons- gislativa e interpretação legislativa. Portanto, quer os tribu-
titucional, é importante comparar semelhante com seme- nais usem a decisão majoritária, quer não, ainda precisamos
lhante. Estamos todos familiarizados com a maneira como enfrentar a questão honestamente no que diz respeito ao es-
a arbitrariedade da decisão majoritária no parlamento ou tatutos: o que fazer da relação entre legislar e votar em um
no congresso é citada como uma maneira de realçar a le- modelo ideal? Como podemos consagrar a legislação como
gitimidade das cartas de direitos e da revisão judicial. No fonte dignificada de direito, quando recordamos que uma
fim, naturalmente, é uma estratégia sem esperança para os dada medida poderia não ter posição jurídica se aconte-
oponentes do majoritarismo. Os próprios tribunais de re- cesse de algum indivíduo não estar presente na legislatura
cursos são, invariavelmente, corpos de múltiplos membros quando uma votação específica foi contada ou se um capri-
que geralmente discordam entre si, mesmo após delibera- cho de embriaguez ou duplicidade o levasse a votar de outra
ção. (Talvez especialmente após deliberação!) E, quando dis- maneira? Como essa consciência deveria influenciar nossa
cordam, também eles tomam suas decisões por meio de vo- interpretação do estatuto e o espírito em que ele é recebido
tação e decisão majoritária. Cinco votos derrotam quatro no e integrado no direito? Sem uma compreensão adequada do
Supremo Tribunal dos Estados Unidos. A diferença, quando que deve ser dito a favor do princípio majoritário, não temos
uma questão é deslocada da legislatura para o tribunal, é como responder essas perguntas.
uma diferença de grupos de constituintes, não uma dife-
rença de método de decisão. Portanto, se votar produz re-
sultados arbitrários sob o princípio da decisão majoritária, IH
então, boa parte do direito constitucional norte-americano
é arbitrário. Como assinalam Dan Farber e Philip Frickey no Afirmei na seção I que os teóricos políticos parecem
excelente estudo Law and Public Choice [Direito e opção pú- considerar a decisão majoritária, em certo sentido, evidente

13. Thomas Hobbes, Do cidadão, capo 10, 137-8. 14. Farber e Frickey, Law and Public Choice, 55.
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(uma vez que nos comprometemos com a decisão de um Aqui, Locke parece estar tentando explicar a decisão
grupo). Outra palavra para "evidente" é "natural". É natural, majoritária com base na física ou na ciência natural. Na na-
podemos dizer, quando os membros de um grupo discor- tureza, um corpo move-se com a força maior: na política,
dam, colocar a matéria em votação e implementar a políti- de maneira similar, um corpo político move-se por ordem
ca preferida pelo maior·número15 • "Natural" ajuda-nos na da maioria, porque, qua maioria, ela é mais forte. O que po-
• deria ser mais natural do que isso? Posteriormente, neste ca-
busca por uma exposição filosoficamente respeitável da base
da decisão majoritária? pítulo, argumentarei que a leitura fisicalista desta passagem
Pelo menos um filósofo da nossa tradição, John Locke, não é a única leitura e certamente não é a melhor interpre-
usa uma concepção da ciência natural para explicar o princí- tação. Mesmo assim, diante dela, a física do argumento de
pio majoritário. Na sua discussão da segunda etapa do con- Locke é curiosa.
trato social (a etapa em que aqueles que já concordaram em Pede-se que imaginemos um corpo composto, impeli-
agir conjuntamente na sociedade civil se reúnem para deci- do internamente pelos vários movimentos das suas partes
dir a natureza das instituições legislativas que vão estabele- ou elementos constituintes a mover-se em várias direções.
cer), Locke diz o seguinte em defesa do processo majoritário: Algumas das partes tendem a mover-se para o norte, algu-
mas para o sul, e o corpo como um todo move-se para o nor-
Quando qualquer número de homens, pelo consenti- te ou para o sul conforme a tendência do maior número de
mento de cada indivíduo, formou uma comunidade, eles, por seus elementos, como resultado do seu movimento cumu-
meio disso, fizeram dessa comunidade um corpo, com poder 1ativo. (Ou pense no corpo como um scrummage no jogo de
de atuar como um corpo, apenas pela vontade e determinação rúgbi; alguns jogadores estão empurrando para um lado, os
da maioria. Pois o que move qualquer comunidade, sendo ape- . outros na direção oposta; e o conjunto como um todo mo-
nas o consentimento dos indivíduos dela, e sendo necessário ve-se em conformidade com a força maior. Ora, se um lado
que aquele que é um corpo se desloque, e sendo necessário que tem oito membros e o outro apenas seis ou sete, esperamos
o corpo se mova para onde a maior força o carrega, que é o que o lado mais fraco ceda e a massa toda mova-se campo
consentimento da maioria; do contrário, é impossível que aja
adiante, com desvantagem para o lado mais fraco.)
ou continue como um corpo, uma comunidade, que o consen-
Observe, porém, que essa expectativa pressupõe três
timento de todos que se uniram nela concordaram que seria, e,
portanto, todo o mundo é obrigado por esse consentimento a coisas. Pressupõe, primeiro, que o corpo não irá se desinte-
chegar a um acordo decidido pela maioria (lI: 96).16 grar ou se romper, que continuará a mover-se como um
todo, apesar de ser impelido por essas forças internas dís-
pares. (No exemplo do rúgbi, pressupomos que o scrum não
15. Cf. a observação de Thomas Jefferson: "Todo homem, e todo corpo se desmancha e que os jogadores continuarão" atados" até
de homens na terra, possui o direito de autogovemo. Eles o recebem com seu
ser da mão da natureza. Os indivíduos o exercem por sua única vontade - as que tenham permissão para "romper". Segundo, pressupõe
reuniões de homens pela da maioria, pois a lei da maioria é a lei natural de que, se alguns dos elementos estão se esforçando em uma di-
toda sociedade de homens." - Jefferson, Political Writings, 83. reção e o resto dos elementos estão se esforçando em uma
16. Os números entre parênteses no texto deste capítulo são referências
a Locke, Two Treatises, por tratado e número de parágrafo. direção diferente, o corpo como um todo irá mover-se em uma
160 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FisICA DO CONSENTIMENTO
161
direção ou em outra, dependendo de qual representar a ten- decisão, mas também frustrasse qualquer tentativa de se-
dência do maior número de partes. Em outras palavras, pres- cessão poderia ser muito, muito maior do que a representa-
supõe que o movimento do corpo não será um resultado ou da por uma maioria política simples. Segundo, o vetor ou
vetor da direção dos elementos. Por exemplo, o modelo que modelo resultante parece prover uma descrição melhor do
estamos considerando pressupõe que, se dois terços das resultado de tal conflito político do que um modelo de uma
partes estão se esforça'ndo rumo ao norte e um terço rumo direção ou outra. (Contudo, o que ele explica melhor pode
ao oeste, o corpo como um todo irá mover-se para o norte, ser o consenso, a construção de coalizões ou os elementos
não para o norte-noroeste, refletindo a extensão da influên- de assistência mútua em tal conflito do que o elemento puro
cia da minoria. (De maneira similar, a analogia do rúgbi pres- da votação.) Terceiro, a suposição de igualdade reflete ape-
supõe que o scrum não vai" girar" ou mover-se em diagonal nas as formalidades da política. Ignora a intensidade com a
pelo campo.)17 Terceiro, há um pressuposto implícito e im- qual os indivíduos e as facções se esforçam para impor seu
portante de que a influência das partes sobre o movimento desejo e também ignora os recursos políticos desiguais à sua
do todo é igual. Se algumas das partes têm mais massa do disposição18 .
que outras, ou se seus movimentos são mais agitados, não Boa parte disso pode ser dito a respeito das descrições fi-
há, naturalmente, mais nenhum motivo para supor que o sicalistas da decisão majoritária, que a vêem como um substi-
corpo irá mover-se em conformidade com a direção do maior tuto do combate. "Votar", diz Georg Simmel, "é uma proje-
número de partes. (No rúgbi, um scrum de sete homens pode ção das forças reais e das suas proporções ... antecipa, em um
derrotar um scrum de oito homens, se os membros do pri- símbolo abstrato, o resultado da batalha e da coerção concre-
meiro forem mais pesados ou se eles se compactarem e em- tas" .19 O que acontece em uma batalha real, porém, depen-
purrarem com mais força ou melhor técnica.) de (entre outras coisas) da duração da batalha, de como o re-
Cada um desses três pressupostos tem um significado sultado e a vantagem se relacionam com o terreno, etc., e da
político potencial. Primeiro, mesmo quando a maioria é po- habilidade prática e do matéríel *, não apenas dos números.
liticamente mais forte, o seu poder político só pode ser eficaz Thomas Hobbes oferece uma variação curiosa do mo-
na medida em que o sistema político se mantenha coeso. delo militar na sua descrição do papel da decisão majoritá-
Todas as apostas podem terminar se a minoria opta por cin- ria na mecânica de um corpo representativo:
dir-se em vez de aceitar a derrota em uma votação. A força
política superior (ou, em último caso, militar) que seria exigi- Se o representativo é composto de muitos homens, a
da para que o partido mais forte não apenas impusesse sua voz do maior número deve ser considerada a voz de todos
eles. Pois se o número menor pronunciar-se (por exemplo)

17. Naturalmente, na política, não pode haver um leque de opções in-


termediárias para inserir o vetor. Mas, em muitos casos, há, por assim dizer, * Em francês no original (N. do E.).
posições naturais de consenso entre a opinião defendida pelos "sim" e a opi- 18. Esta é a objeção de Kendall à analogia da força: ver KendalJ, John
nião defendida pelos "não". Na verdade, poderíamos argumentar que se não Locke and the Doctrine of Majority-Rule, 117.
há, então, a decisão majoritária é particularmente vulnerável aos paradoxos do 19. Simmel, "The Phenomenon of Outvoting". (Devo a citação a Spitz,
Teorema de Arrow: ver Arrow, Social Choice and Individual Values. Majority Rule, 156.)
162 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 163

na afirmativa e o número maior na negativa, haverá negati- tão peculiares a ponto de incorrer em petição de princípios
vas mais do que suficientes para destruir as afirmativas e, em todos os pontos em que a decisão majoritária parece
desse modo, o excesso de negativas, ao permanecer incon- persuasiva.
testado, é a única voz que o representativo tem. 20 O primeiro dos pressupostos que mencionei - o pres-
suposto de coesão - merece consideração adicional neste
A imagem ofereCida aqui é da decisão política como ponto. Mencionei anteriormente que a interpretação fisica-
algo semelhante a um combate corpo a corpo, com a vitória lista do princípio majoritário só funciona se o corpo (que se
ficando para o lado que contar com o último homem que dividiu em facções de maioria e minoria) consegue manter-
restar de pé. Mas a análise não é mais convincente do que a se coeso. É interessante que, na física, John Locke conside-
de Simmel. É realmente uma lógica militar estranha, que vê rasse a coesão dos corpos como algo dado, se bem que mis-
a batalha como um conjunto de encontros aos pares - cada terioso: ele disse no Ensaio que é algo que podemos ter como
um necessariamente destrutivo por causa da igualdade dos certo mas que, não obstante, não conseguimos explicar22 •
combatentes individuais - com a vitória cabendo ao exérci- Na política, porém, a coesão não é dada; antes, é estabele-
to que tiver tantos soldados que alguns deles não consigam cida, em boa parte, pela conduta dos membros do corpo em
encontrar parceiros de combate entre os membros do outro questão. As próprias pessoas que são exortadas (a) a aquies-
lado! Mais uma vez, é uma lógica que se dissolve se uma cer à opinião da maioria também são as que são exortadas
quantidade de combatentes no lado menos numeroso for (b) a não se separarem e a fazerem a sua parte para manter
mais forte ou mais habilidosa do que suas contrapartes21 • o corpo coeso. Não estou dizendo que a exortação (a) seja
Por essas razões, não parece prudente confiarmos em igual à exortação (b). Locke às vezes parece dar a entender
qualquer explicação da decisão majoritária fisicalista ou ba- que é na sua sugestão de que o princípio majoritário é a úni-
seada na força militar. Tais descrições teriam de ser muito ca regra de decisão possível para um corpo eficaz incapaz
qualificadas ou seriam aplicáveis apenas em circunstâncias de unanimidade (li: 97-98): mas nitidamente são possíveis
outras regras de decisão. O que está claro é que a exortação
(a) pode ter sucesso apenas se a exortação (b) tiver suces-
20. Hobbes, Le:uiathan, capo 16, 114.
21. David Heyd sugeriu-me que a analogia, no caso, pode estar na base
de ação em um corpo orgânico. Certamente, a imagem de forças individuais
cancelando-se até restar apenas uma é notavelmente parecida com a descri- 22. Assim, ele argumentou que a capacidade de uma substância material
ção de Hobbes da relação entre vontade e deliberação em um indivíduo (ibid., para manter-se coesa não é menos misteriosa do que as capacidades ativas de
capo 6, 44): "Quando, na mente do homem, apetites e aversões, esperanças e uma substância espiritual, pensante. Ver Locke, Essay, livro II, capo 23, seção
medos, referentes a uma única coisa surgem alternadamente, e diversas con- 24. "Por mais clara que seja a idéia que pensamos ter da extensão do corpo, que
seqüências, boas e más, do feito ou da omissão da coisa proposta vêm suces- nada mais é além da coesão de partes sólidas, aquele que bem considerar em
sivamente aos nossos pensamentos, de modo que, às vezes, tt2mos um apeti- sua mente pode ter razão para concluir que é igualmente fácil para ele ter uma
te por ela, às vezes, uma aversão a ela; às vezes, desesperança ou medo de idéia de como o espirito pensa, de como o corpo se estende. Pois, como o cor-
tentá-la; a soma total dos desejos, aversões, esperanças e medos, prosseguida po não se estende mais, nem de outra maneira, que não pela união e coesão
até que a coisa seja feita ou considerada impossível é o que chamamos DELI- das suas partes sólidas, compreenderemos muito mal a extensão do corpo sem
BERAÇÃO ... Na deliberação, o último apetite ou aversão a aderir à ação ou à compreender em que consiste a união e a coesão das suas partes, o que me
omissão da mesma é o que chamamos VONTADE." parece tão incompreensível como a maneira de pensar e como ela se executa."
164 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FisICA DO CONSENTIMENTO 165
so. Alguém que não esteja convencido de que o corpo deve sentativa. Na melhor das hipóteses, porém, uma descrição
manter-se coeso certamente não estará convencido de que, com base na força só pode nos dizer como a minoria será obri-
como membro da minoria, deve aquiescer à opinião da maio- gada (fracassando a secessão), não como ela deve ser obriga-
ria. Ora, como uma descrição baseada na força da manei- da. Ou nos diz como um corpo coeso de fato move-se como
ra como um corpo irá mover-se caso se mantiver coeso não resultado do ímpeto da maioria, não como devemos respei-
é uma descrição basead'a na força da permanência da sua tar ou considerar esse movimento.
coesão, a versão fisicalista do argumento a favor da deci- Essa não é apenas a falácia naturalista. É mais uma ver-
são majoritária é necessariamente incompleta. Ela precisa são de um argumento de Jean-Jacques Rousseau no início
ser complementada por um argumento baseado na força em do Contrato social. Um argumento baseado na força, disse
favor dessa coesão. Mas, evidentemente, tal argumento não Rousseau, não tem a capacidade, na deliberação prática, de
é possível. Alguns itens que podem ser considerados como opor-se à razão - nem mesmo à mais ligeira razão - que al-
partes possíveis de um todo maior tendem para a coesão na- guém poderia ter para resistir à força em questão:
turalmente - por exemplo, gotas de mercúrio tendem a for-
mar uma gota maior quando entram em contato. Outras - A força é um poder político; não vejo como qualquer
moralidade possa basear-se nos seus efeitos. Ceder à força é
como os grãos de areia -, não. Não há nada evidente ou
um ato de necessidade ... na melhor das hipóteses, é um ato
natural de uma maneira nem de outra. Claramente, então,
de prudência. Em que sentido pode ser um dever? ... Tão
Locke vai precisar de um argumento inequivocamente nor- logo alguém seja capaz de desobedecer com impunidade,
mativo para a coesão política - por exemplo: devemos fazer a pode fazê-lo legitimamente ... Se devemos obedecer por causa
nossa parte para manter o todo coeso já que foi por isso que da força, não temos nenhuma necessidade de obedecer por
firmamos o contrato social. Mas, então, só porque é norma- dever, e se não somos mais forçados a obedecer, não temos
tivo, esse argumento ficará um tanto estranho e desconfortá- mais nenhuma obrigação de fazê-lo ... Se um salteador pre-
vel na descrição naturalista ou fisicalista da direção do corpo para uma emboscada para mim em uma estrada de floresta,
quando a coesão foi assegurada. Sentimo-nos tentados a devo dar-lhe meu dinheiro pela força, mas, se puder conser-
dizer que, se o argumento fisicalista não pode cumprir toda vá-lo, sou obrigado pela consciência a cedê-Io?23
a função, não vale a pena tê-lo para nenhuma parte dela.
De qualquer modo, há algo inadequado em princípio
nos argumentos baseados na força nessa área. Perguntamos IV
sobre a decisão majoritária, pois estamos interessados em
por que a minoria deve considerar-se obrigada ou por que Embora Locke use a linguagem da força e do movimen-
os forasteiros devem considerar a voz da maioria como a voz to - "é necessário que o corpo se mova na direção em que a
do todo. Ou, mais especificamente, perguntamos sobre a de- força maior o carrega" (TI: 96) -, ele pode não pretender que
cisão majoritária porque estamos interessados no respeito
que deve ser conferido aos estatutos com base na sua pro- 23. Rousseau, Social Contract, livro r, capo 3 (ênfase rnirlÍta). Ver também
veniência das decisões coletivas de uma assembléia repre- Dunn, The Polítical Thought ofJohn Locke, 129n.
166 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO
167
isso seja interpretado de maneira fisicalista. Uma interpre- Contudo, os que se obrigaram fizeram-no com vistas ao
tação mais interessante considera "força" e "movimento" estabelecimento de instituições legisladoras, e esse processo
como concepções inteiramente abstratas, quase termos ló- também é concebido por Locke como um processo que exige
gicos, que podem ser imbuídos de conteúdo variado, de- consentimento. A decisão nessa segunda etapa é concebida,
pendendo de estarmos lidando com interações materiais ou no primeiro caso, como um ato da comunidade, uma decisão
interações de um tipo di'ferente 24 • E, na verdade, Locke dei- do povo: as pessoas devem fazer um julgamento de como a
xa claro que a física que ele tem em mente é uma física do autoridade legislativa é mais adequadamente estabelecida
consentimento individual, não da força ou poder individual: (II: 132). Ora, para Locke, um ato da comunidade não pode
ser nada mais além de uma função de julgamentos indivi-
Pois aquilo que move qualquer comunidade, sendo ape-
duais, "aquilo que representa a comunidade, sendo apenas
nas o consentimento dos indivíduos dela, e sendo necessário que
o consentimento dos indivíduos dela" (II: 96). Portanto, os
aquele que é um corpo se desloque, e sendo necessário que o
corpo se mova para onde a maior força o carrega, que é o con- indivíduos devem voltar suas mentes para o problema que
sentimento da maioria. (II: 96; grifo meu) enfrentam como comunidade recém-estabelecida: como es-
tabelecer uma legislatura e a quais mãos confiá-la.
O consentimento não traz consigo a força física; traz, Como enfatizei no capítulo 3, Locke intui que isso é algo
antes, força moral no que diz respeito aos fins para os quais quanto ao que se deve esperar que os membros de uma co-
se exige o consentimento. munidade discordem, dada "a variedade de opiniões e a
O argumento de Locke a favor da decisão majoritária contrariedade de interesses que inevitavelmente aconte-
posiciona -se na seqüência imediata à formação do contrato cem em todos os agrupamentos de homens" (II: 98). Cada
social. O próprio contrato, naturalmente, exige unanimida- uma das várias opiniões tenderá a empurrar a coletividade
de no que diz respeito aos que são considerados obrigados em uma direção em vez de outra - mas o "empurrar" ago-
por ele: "Sendo os homens ... por natureza, todos livres, ra é compreendido antes como a tendência lógica de uma
iguais e independentes, ninguém pode ser colocado para proposição sobre o consentimento do que como a força fí-
fora deste Estado e sujeitado ao poder político de outro, sem sica do humano que a detém. Como o julgamento da cole-
o seu consentimento" (II: 95). Nessa etapa, a "física" do con- tividade decorre dos julgamentos dos indivíduos, o fato de
sentimento individual é a de um veto como trunfo. Embora o indivíduo A acreditar que a autoridade legislativa deve ca-
muitos homens possam encontrar-se juntos contratualmen- ber de direito a um monarca "empurra" o grupo para uma
te, fazer isso não "prejudica a liberdade do resto; eles ficam constituição monárquica, ao passo que o fato de B dar pre-
como estavam na liberdade do estado de natureza" (II: 95). ferência a uma assembléia" empurra" o grupo numa dire-
ção republicana. Se C como A prefere a legislatura de uma
única pessoa, então há um duplo impulso na direção da mo-
24. Dunn, The Political Thought of John Locke, 129n., sugere que é "tão
plausível ver o conceito de força como moralizado pela noção de consenti-
narquia, de modo que, se nenhum outro indivíduo for consi-
mento quanto é ver a noção de consentimento transformada em um termo de derado' essa será a direção na qual o corpo como um todo se
coerção social". moverá. Ou, abandonando inteiramente a linguagem física
-
168 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FisICA DO CONSENTIMENTO 169
do empurrão, podemos dizer: A opinião de A "conta" a favor composto de muitas pessoas será capaz de subsistir e atuar
da monarquia como a decisão do grupo, assim como a de com base na unanimidade. O consentimento unânime de
C, ao passo que a de B é a única opinião que" conta" a favor todos os membros é "quase impossível de conseguir" se
da decisão contrária. Então, qualquer exposição do que deve consideramos as vicissitudes que manterão alguns distan-
ser dito a favor da monarquia ou da assembléia, respectiva- tes da assembléia e dividirão os interesses e opiniões dos
mente, observaria que• há duas vezes mais a ser dito a favor outros (II: 98). Como todos sabem disso quando dão o con-
daquela do que a favor desta. sentimento original para serem membros do corpo, nin-
Esse é um esquema da física lockeana do consentimen- guém pode fundamentar razoavelmente a adesão ao corpo
to, embora, claramente, precise de mais explicação. Mas, com base na exigência de que ele atue apenas quando hou-
primeiro, como essa interpretação altera nossa visão daqui- ver unanimidade. Nenhuma condição assim ao consenti-
lo a que me referi anteriormente como os três principais mento original seria razoável. Decorre, bem rapidamente,
pressupostos da exposição lockeana? que cada um deve aceitar - em virtude do consentimento
1. O primeiro pressuposto é que o corpo continuará original- que o corpo seja capaz, em princípio, de mover-
coeso. Na descrição fisicalista, isso implicava o mistério da se legitimamente, com a sua adesão, em uma direção con-
coesão material25 • Em um modelo baseado no consentimen- trária àquela em que gostaria que se movesse. Como é pos-
to, porém, a interpretação desse pressuposto é fácil. O "cor- sível que todos, menos o indivíduo, prefiram um movimen-
po" em questão já é constituído pelo consentimento dos to na direção X, ao passo que ele prefere Y, e, como ele
indivíduos que o compõem. É esse consentimento ou, antes, aceita que a unanimidade não pode ser a única condição do
o compromisso implícito com esse consentimento a única movimento do corpo, ele não deve excluir de antemão a pos-
base da coesão política nessa etapa. Se a aceitabilidade do sibilidade de que o corpo se mova na direção X apesar da
governo da maioria for colocada em questão pela tendência sua oposiçã026 • (Ou, se excluir, não deve basear-se na exis-
do corpo a se desintegrar (reconhecendo que essa é uma base, tência de algo especial na sua oposição, e isso contradiria o
mas não a única base, sobre a qual poderia ser colocada em pressuposto da igualdade, que consideraremos sob o tópico
questão), podemos recorrer ao consentimento ao contrato de terceiro pressuposto.)
social que os indivíduos que colocam essa questão deram Portanto, o consentimento original desempenha uma
originalmente: podemos perguntar se os indivíduos preten- função muito importante no argumento a favor da decisão
deram que o corpo permanecesse em existência, capaz de majoritária. Não é consentimento - devemos observar - ser
ação ou não. Seu consentimento original foi sério ou eles se obrigado pela maioria. Isso tornaria a legitimidade da deci-
juntaram à sociedade civil da maneira como" Catão entrou são majoritária um problema puramente de convenção: as
no teatro, apenas para sair em seguida" (II: 98)?
O pressuposto também recebe mais força da insistên-
cia de Locke em que ninguém pode pensar que um grupo 26. Locke constrói o argumento perguntando que novo compromisso
haveria no contrato social acima da liberdade natural de uma pessoa, "se ela
não fosse obrigada por quaisquer decretos da sociedade mais do que julgasse
25. Locke, Essay, livro TI, capo 23, seção 24. adequado e sem seu efetivo consentimento?" (lI: 97).
170 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FlsICA DO CONSENTIMENTO 171
pessoas podiam ter escolhido qualquer processo decisório, quanto a basear a obrigação política e a legitimidade no con-
mas aconteceu de concordarem quanto a esse 27 • E não é essa sentimento, essas razões oferecem a base da nossa descri-
a hipótese que estou explorando aqui. Estou explorando ção daquilo de que a sociedade civil é a favor. Se consinto em
uma interpretação, baseada no consentimento, da visão de participar de uma organização para promover os objetivos
Locke de que a decisão. majoritária é natural. O consenti- X e Y, não posso ser obrigado pela decisão dessa organização
mento original, entã<'!, é consentimento para ser obrigado a promover um objetivo Z, completamente diferente. (Por
por um ou outro processo decisório, um processo decisório exemplo: uma decisão de juntar-se aos outros pela seguran-
que pode muito bem envolver algo menos que a unanimi- ça e pelo apoio comuns não me compromete com conclu-
dade. Mas ainda não chegamos aos elementos específicos sões do grupo a respeito de um culto comum.) De maneira
da decisão majoritária28 • similar, se consinto em participar de uma organização para
O outro ponto a enfatizar sobre o consentimento origi- promover os objetivos X e Y, essa organização perde sua le-
nal (para ser membro do corpo) é que ele opera na física da gitimidade consensual se atua de uma maneira patente-
descrição de Locke de como opera o consentimento. Os teóricos mente destrutiva para X e Y. Como diz Locke, em uma ex-
da autoridade e da obrigação social muitas vezes procuram pressão que comunica tão claramente quanto possível seu
por algo que possa ser interpretado como consentimento compromisso com o que estou chamando a lógica limita-
e depois o tratam como uma espécie de interruptor de "li- dora do consentimento, "não se pode esperar que uma cria-
ga/desliga", que gera magicamente para a sua teoria todas tura racional mude sua condição com intenção de ser pior"
as conclusões a respeito da obrigação política que o mais (II: 131). A lógica do consentimento é mais ou menos alógi-
completo autoritário poderia desejar. Locke, porém, reconhe- ca da escolha racional e se descobrimos que, por algum ato
ceu que se estamos nos valendo do consentimento, devemos, alegado de autoridade política, os homens realmente" co-
então, permitir que a lógica do consentimento domine as im- locam-se em uma condição pior do que o estado de nature-
plicações políticas de este ter sido dado. za" (II: 137), temos direito de inferir que o governo deve ter
Que lógica é essa? Ela implica, primeiro, que o con- ultrapassado os seus limites, que são, como disse, os limites
sentimento é dado por razões. Se formos realmente sérios estabelecidos não apenas pelo ato, mas pela lógica do con-
sentimento. Finalmente, a idéia de legitimidade por consen-
timento limita-se àquilo em que indivíduo moralmente
27. Eles poderiam escolher algum processo decisório diferente. Locke,
porém, enfatiza que o argumento oferecido nessa passagem estabelece o prin- tem permissão para consentir. Certos direitos naturais, para
cípio majoritário como a regra padrão natural para qualquer assembléia que Locke, são inalienáveis não apenas no sentido de que ne-
não tenha escolhido nenhuma outra: "E, portanto, vemos que nas assembléias nhuma criatura racional renunciaria a eles, mas também no
que receberam poder de legislar por leis positivas e nas quais nenhum núme-
ro foi estabelecido pela lei positiva que lhes dá poder, o ato da maioria passa sentido de que - de um ponto de vista jusnaturalista - ne-
pelo ato do todo e, naturalmente, determina, já que tem, pela lei da natureza nhuma pessoa tem o direito de renunciar a eles:
e da razão, o poder do todo" (TI: 96).
28. Ver também Kendall, John Locke and the Doctrine of Majority-Rule,
114: "Simplesmente não é verdade que uma sociedade deva escolher entre Ninguém pode transferir para outro mais poder do que
decisões por voto majoritário e dissolução após um breve período de experi- tem, e ninguém tem poder arbitrário absoluto sobre si ou so-
mentação com decisões unânimes ... " bre qualquer outro para destruir sua vida ou tirar a vida ou a
172 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 173
propriedade de outro. Um homem ... não pode sujeitar-se ao o pressuposto lockeano subjacente de que" aquilo que
poder arbitrário de outro e, não possuindo no estado de na- representa qualquer comunidade [é] apenas o consenti-
tureza poder arbitrário sobre a vida, a liberdade ou a posse mento dos indivíduos dela" (li: 96) pode ser interpretado
de outro, mas apenas na medida em que o desse a lei da na-
de duas maneiras complementares. Pode ser interpretado -
tureza para a preservaç~o de si e do resto da humanidade;
como interpretamos até agora - com o significado de que
isso é tudo a que ele Ienuncia ou pode renunciar para a co-
munidade e, por ela, para o poder legislativo, de modo que o nada além do consentimento dos indivíduos determinará o
legislativo não pode ter mais do que isso. (II: 357) resultado de qualquer decisão política. Ou também pode
significar que nada além do consentimento dos indivíduos
Vimos no capítulo 3 que é provável que as pessoas dis- determinará o leque de resultados possíveis para a decisão
cordem, dentro e fora da legislatura, quanto a quais são es- política. A segunda interpretação insiste em que a escolha
política não é feita a partir de um leque de opções dadas ou
ses direitos alienáveis. Mas que há tais direitos, que eles
impõem limites àquilo em que podemos consentir e, assim,
pré-ordenadas, mas a partir de um leque de opiniões pro-
postas especificamente por membros individuais da comu-
limites àquilo com que o nosso consentimento pode nos
nidade. Nessa exposição, uma posição de consenso pode
comprometer no que se refere à decisão majoritária - tudo
não ser selecionada, a menos que seja a opinião de alguém
isso é inquestionável no argumento de Locke 29 •
quanto ao que deve ser feito. E se é a visão de alguém, en-
2. O segundo pressuposto era que o corpo mover-se-
tão, deve colocar-se como tal em uma disputa por votos da
ia em uma direção ou na outra, dependendo dos votos dos
maneira comum. Assim, a lógica do consentimento indivi-
membros; ele não se moverá, como se moveria um corpo fí-
dual como força motriz na política é que o corpo político
sico' como um vetor de forças. Assim, suponha - no que se
não deve mover-se em nenhuma direção a não ser na dire-
refere ao problema do projeto constitucional que Locke pos-
ção que foi explicitamente proposta e em que alguém con-
tula - que alguns indivíduos votem a favor de uma legisla-
sentiu como proposição. Não pode se mover em uma dire-
tura monárquica, enquanto outros votam a favor de uma
ção que ninguém tenha oferecido como proposta simples-
democracia perfeita (li: 132). O pressuposto do princípio
mente como resultado de votação entre outras propostas
majoritário é que será uma coisa ou outra, dependendo de que foram oferecidas.
qual tiver o maior apoio; no modelo de vetor, porém, o cor- 3. A questão em que ocorre a maior diferença quando
po como um todo mover-se-ia rumo a um consenso, por passamos de uma exposição puramente fisicalista para a fí-
exemplo, uma legislatura composta por mais de um mas sica lockeana do consentimento é a questão da igualdade
menos que todos, dependendo do equilíbrio de forças exa- de forças. No seu estudo da teoria de Locke, Willmoore
to. Como a nossa análise em função da física do consenti- Kendall sugere que o argumento de Locke se baseia na su-
mento interpreta a rejeição do modelo de vetor? posição" de que os consentimentos dados e negados são
de igual intensidade". Nenhum espetáculo é mais familiar
29. Portanto, rejeito o ataque de Willmoore Kendall aos direitos aliená- na política, escreve Kendalt do que "a facilidade com que
veis como característica do majoritarismo de Locke: ver ibid., 68-74. um número menor de pessoas, com convicções intensas,
174 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO
175
pode fazer o seu consentimento contar mais do que o de político é o consentimento dos indivíduos que o compõem.
um número maior de pessoas"30. Para o propósito dessa proposição normativa, o consenti-
O primeiro problema disso é que pressupõe que o con- mento é uma questão de autoridade e legitimação individuais.
sentimento seja algo que pode variar em força e intensida- As pessoas podem variar em influência política e know-how.
de. Na verdade, não está claro que possa, e percebe-se que Mas não é a mesma coisa que uma variação na força nor-
Kendall escorrega imediatamente, deixando de falar da in- mativa do consentimento individual. Mesmo à parte as
tensidade do consentimento para falar da intensidade das questões retratadas no parágrafo anterior, Locke insiste em
convicções por trás do consentimento. O consentimento que, quaisquer que sejam as variações entre nós, somos
em si não é uma questão escalar. Se o consentimento indi- iguais no que se refere à autoridade (lI: 54). Nosso estado
vidual é exigido para a legitimidade, então, uma transação natural, a partir do qual deve ser conjurado o princípio da
é legitimada tão logo o consentimento esteja presente; não decisão majoritária, é um estado de "igualdade, no qual todo
importa especificamente quão entusiástico ou vigoroso é o poder e jurisdição são recíprocos, ninguém possuindo mais
consentimento. Meu consentimento a uma operação cirúr- do que outro" (lI: 4). A importância do consentimento ba-
gica não varia na força de legitimação, por assim dizer, com seia-se puramente nessa igualdade natural da autoridade
o floreio da minha assinatura ou a intensidade com que faço
legitimadora, e isso ajuda a tornar irrelevantes quaisquer ou-
sinal de minha concordância. A menos que uma falta de in-
tras diferenças na eficácia política entre nós no que diz res-
tensidade suscite a questão da realidade do consentimento,
peito aos elementos da decisão política.
o consentimento não tem absolutamente nenhuma varia-
ção interessante nesta dimensão. O mesmo parece ser ver-
dade no que se refere ao consentimento interpretado como
contrato ou consenso. O que é importante em uma situa- v
ção contratual é que eu realmente concorde com o negó-
cio que me é oferecido; o negócio não varia, nem a sua apli- Interpretar os três pressupostos em função do modelo
cabilidade' dependendo de com quanto ou quão intensa- da física do consentimento não é suficiente. Ainda temos
mente eu concordo. de interpretar o argumento fisicalista a favor do princípio
O segundo problema é que Kendall compreende maIo de que a maioria deve prevalecer.
tipo de exposição que Locke está oferecendo na sua física A lógica desse argumento - na nossa leitura original da
do consentimento. Ele não está postulando que, na verda- passagem - era a lógiça da agregação das forças físicas: com
de, o movimento de um corpo político depende da força da três forças empurrando para o norte e duas empurrando
participação do indivíduo. A física lockeana do conhecimen- para o sul, o corpo irá mover-se para o norte quando as for-
to tem mais a natureza de uma teoria normativa. A afirma- ças individuais forem iguais. Mas a força moral do consen-
ção é que a única coisa que move adequadamente um corpo timento é agregada da mesma maneira? Willmoore Kendall
tem dúvidas quanto a isso: o argumento de Locke, disse
ele, é "irrepreensível ... na medida em que afirma que mais
30. Ibid., 117. consentimento (pois o consentimento é aditivo) gera uma
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176 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 177


força motivadora maior do que menos consentimento"31. nhuma, que os interesses ou preferências que eles põem em
Não tenho certeza. Lembrem que se espera que o consen- jogo em alguma questão sejam iguais ou estejam igualmen-
timento funcione no modelo da física do consentimento te em jogo para os fins de um cálculo de utilidade geral. Há
que estamos considerando não como uma força motriz ou problemas também na suposição implícita de que o utilita-
motivadora, mas como força de autorização e legitimação. rismo é a base subjacente adequada para um princípio de
E nisso simplesmente não é evidente que o consentimento decisão. Não está nada claro que seja, especialmente quan-
se agregue. Tomando um exemplo trivial: suponha que eu do estamos lidando com os élementos fundamentais do pro-
diga sim várias vezes (na segunda-feira, na terça-feira e na jeto social e constitucionaP3. Nesse contexto, o princípio da
quarta-feira) à proposta de um cirurgião de executar em utilidade é, pelo menos, tão controvertido quanto o princí-
mim, na quinta-feira, uma operação perigosa, mas que, na pio majoritário; interpretar esse em função daquele pode
manhã da quinta-feira, após pensar novamente, eu diga torná-lo mais inteligível, mas não torna a argumentação a
não. Não entra em questão somar os consentimentos e di- favor da decisão majoritária mais persuasiva.
zer que três pesam mais do que um; em vez disso, a regra é Há também um ponto mais profundo aqui. Nosso pro-
que a última expressão prevaleça, não importa quantas au- blema agora é se o consentimento dos indivíduos deve ser
torizações no sentido contrário aconteceram anteriormen- compreendido agregadamente. Podemos apontar o utilita-
te. Esse exemplo não prova efetivamente nada, exceto o se- rismo como um corpo teórico que compreende as preferên-
guinte: que não podemos ter como certo que o consentimen- cias dos indivíduos de maneira agregadora. Mas há proble-
to é um conceito agregador em qualquer contexto em que a mas filosóficos bem conhecidos exatamente com essa corri-
legitimação é a questão. preensão: vinte dores de cabeça pequenas causadas pela
política X equivalem a uma grande dor de cabeça, suficien-
Uma interpretação possível do consentimento como
te para superar a grande dor de cabeça que um único indi-
agregador seria a interpretação utilitária: se o consentimen-
víduo sofrerá se a política X não for adiante? E há questões
to de cada pessoa reflete uma percepção precisa dos seus
similares quanto à estrutura agregadora de quase toda teo-
próprios interesses, então, a agregação dos consentimentos
ria conseqüencialista: por que, exatamente, é melhor para o
individuais poderia implicar uma conclusão confiável a res-
salva-vidas escolher nadar na direção que lhe possibilitará
peito do interesse geral, compreendido de maneira bentha-
salvar cinco nadadores do que na direção que lhe possibi-
miana. Há, porém, muitos problemas nessa interpretação litará salvar um?34 Não adianta dizer simplesmente que é
utilitária da decisão majoritária32 . A dificuldade mais proe-
evidente que cinco superam um: mesmo que seja verdade
minente é que uma interpretação utilitária da votação nos
leve de volta ao problema da intensidade, com o qual acha-
mos ter lidado em (3) na seção anterior. Mesmo que cada 33. O argumento clássico nesse sentido é, naturalmente, o de Rawls, A
Theory ofJustice, 3-4 e 22-34.
indivíduo conte igualmente, não decorre, de maneira ne-
34. Q. Taurek, "Should the Numbers Count?", 306: "Quando sou impe-
lido a resgatar seres humanos de dano em situações do tipo descrito, não posso
vir a pensar neles exatamente dessa maneira ... Meu interesse pelo que aconte-
31. Ibid., 117 (grifo no original). ce a eles fundamenta-se principalmente na percepção de que cada um deles
32. Ver também Waldron, "Rights and Majorities". está, como eu estaria em seu lugar, terrivelmente preocupado com o que acon-
178 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FisICA DO CONSENTIMENTO 179

(e muitos negam), lembrem-se de nossa discussão no início sição de Locke tem relação com a justiça para os indivíduos
do capítulo, de que nossa tarefa como filósofos políticos é e com o reconhecimento e o respeito pela sua posição como
explicar o evidente, não deixar que a percepção da evidên- iguais. Então, a métrica básica de qualquer situação na qual
cia faça o trabalho por nós. os indivíduos tenham visões diversas e contrárias a respei-
Recordem, finalmente, .que não estamos procurando por to da ação do corpo que eles compõem deve ser uma métri-
uma interpretação da a~egação majoritária que implique ca de eqüidadé6 • Devemos nos perguntar: qual é a base mais
que a maioria está necessariamente certa. Não obstante, é o eqüitativa sobre a qual proceder em uma situação na qual
que a interpretação utilitária tende a sugerir. (Ou, se não é o somos confrontados com tal discordância? Nossa resposta
que sugere, é difícil perceber o que ela pode acrescentar.) O a essa questão será a analogia adequada, na física do con-
argumento de Locke não é que a decisão majoritária esteja sentimento lockeana, do trabalho feito pela agregação de
certa, mas que a decisão majoritária é legítima ou adequada, forças na exposição fisicalista.
em relação às questões para as quais o consentimento é re- Recordemos os pressupostos sobre os quais estamos
levante. Exatamente como o fato de que, se uma pessoa con- trabalhando. Uma escolha coletiva deve ser feita, apesar da
sente em uma proposta, não toma a proposta certa, sábia ou discordância, entre um conjunto de opções proposto por
justa. (Isso é o que foi enfatizado no capítulo 3)35. O consen- membros individuais. A escolha não deve ser feita com base
timento e o apoio da maioria supostamente funcionam em em nada a não ser nas opiniões dos indivíduos. Essas opi-
relação com a legitimidade da decisão popular, não, nessa niões serão informadas, espera-se, pela discussão entre os
etapa, em relação com a sabedoria da multidão. membros: esse é o ônus do argumento aristotélico no capí-
Como, então, a contagem da maioria é sustentada em tulo 4 e dos elementos da teoria deliberativa que observa-
uma exposição orientada pela legitimidade? Penso que de- mos na visão de Locke perto do final do capítulo 337 • Mas não
vemos abordar essa questão perguntando: Qual é a melhor há nenhum repositório sobre-humano de conhecimento ou
ou a interpretação mais natural da "agregação de forças" vontade que possa servir como base para a decisão: embora
na física do consentimento lockeana? A resposta não preci- uma ou outra das opções possa estar objetivamente errada,
sa ser" a agregação do consentimento"; ao contrário, a res- tudo o que temos na terra (como enfatizei no capítulo 3)
posta pode ser inteiramente não agregadora ou pode nos são as opiniões dos indivíduos sobre isso. Portanto: todos os
voltar indiretamente para uma conclusão agregadora que membros concordam com que uma decisão entre as opções
não depende de nenhuma analogia direta com a agregação propostas pelos membros deve ser tomada pelos membros
física de forças. A lógica ampla do consentimento na expo- tendo como referência nada mais além das opiniões dos
membros. E essa decisão, eles concordam, deve ser toma-
da, apesar do fato de que eles (os membros) estão em dis-
tece a ele. Não é meu costume pensar neles como tendo, cada um, certo valor
objetivo, determinado, seja como for que determinamos o valor objetivo das coi-
sas e, então, fazer a estimativa do valor combinado dos cinco ante um."
35. Assim, Kendall está inteiramente errado, penso, quanto à direção 36. Para uma ênfase na eqüidade como base da decisão majoritária, ver
do majoritarismo de Locke. Cf. Kendall, John Locke and the Doctrine of Majo- Barry, Political Argument, 312 ss., e Barry, "Is Democracy Special?"
rity-Rule, 112. 37. Ver acima, capítulo 3, seção VIII, notas 30-3 e texto que as acompanha.
180 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FtSICA DO CONSENTIMENTO 181
cordância quanto a qual deve ser a decisão - em outras pa- decisão e como interpretação natural da agregação física das
lavras, apesar do fato de que a decisão do corpo pode não ser forças na física do consentimento.
unânime. Qual, nessas circunstâncias, é a maneira eqüitati- Os leitores nervosos por causa do caráter direto deste
va de proceder? Qual maneira de proceder é a mais eqüita- movimento podem ser tranqüilizados se eu demonstrar que
tiva para cada um e para t9dos os indivíduos envolvidos? podemos chegar ao mesmo resultado por um caminho um
Quando colocamos a-questão dessa maneira, parece que po- pouco mais indireto. Recordem a exposição da decisão ma-
demos nos mover diretamente para o princípio majoritário como joritária de Hobbes:
a resposta evidente. Pois pode ser demonstrado que nenhum
outro princípio dá maior peso às visões de qualquer mem- Se o número menor pronunciar-se ... na afirmativa, e o
bro individual, exceto dando a suas opiniões maior peso do número maior na negativa, haverá negativas mais do que su-
que o atribuído às de algum outro membro individual38 • Na ficientes para destruir as afirmativas e, desse modo, o exce-
dente de negativas, ao permanecer incontestado, é a única
verdade, o método de decisão majoritária tenta dar à opinião
voz que o representativo tem. 40
de cada indivíduo nesse processo o maior peso possível
que seja compatível com um peso igual para as opiniões de
A imagem é que, uma por uma, cada afirmativa é can-
cada um dos outros. Isso torna a opinião do indivíduo mi-
celada por uma negativa correspondente, até que haja, pelo
nimamente decisiva, no sentido de que, se o membro M1
menos, uma negativa não contradita. Podemos interpretar
pensa que devemos fazer X e nenhum outro membro do isso nos termos da física do consentimento da seguinte ma-
grupo tem uma opinião, então X é o que devemos fazef 9 • neira: um grupo de cinco membros tem de escolher, diga-
Mas não apenas isso: o método de decisão majoritária tam- mos, entre fazer e deixar de fazer X como questão de política.
bém confere caráter decisivo máximo a cada membro, su- Os membros acreditam que a decisão deve decorrer de nada
jeito apenas à restrição da igualdade. Nesse sentido, a deci- mais além das suas visões individuais. Eles compreendem
são majoritária apresenta-se como um método eqüitativo de que as 'suas visões são relevantes para a decisão do grupo
dessa maneira porque o grupo não pode agir legitimamente
sem o seu consentimento. Mas eles compreendem também
38. Para o teorema (na teoria da opção social) de que só a decisão majo-
ritária satisfaz às condições elementares de eqüidade e racionalidade, ver May,
que o grupo deve chegar a uma decisão sobre essa questão,
"A Set of Independent Necessary and Sufficient Conditions for Simple Majo- mesmo que as opiniões individuais não sejam unânimes;
rity Decision". Ver também Sen, Collective Choice and Social Welfare, 71-3. Há cada um deles já está comprometido com isso. Eles aceitam,
discussões úteis em Ackerman, Social Justice in the Liberal State, 277-93, Beitz,
finalmente, que, para os fins da legitimidade da ação grupal,
Political Equality, 58-67, e Dahl, Democracy and its Critics, 139-41.
39. Ackerman, Social Justice in the Liberal State, 283, oferece uma descri- o consentimento de um membro é tão bom quanto o de ou-
ção levemente diferente do "caráter decisivo mínimo" em termos de decisão tro: embora variem um pouco na sua capacidade e na sua
de empate: "Se, digamos, há 99 pessoas na assembléia, a regra majoritária me experiência, eles aceitam que são mutuamente iguais no que
dá um voto decisivo quando o resto de vocês está dividido, 49 a 49, e o mesmo
é verdade a respeito da sua decisão. Quando confrontado com a perspectiva de
diz respeito à exigência de consentimento.
votação empatada, o adepto do majoritarismo não recorre a nenhum processo
decisório não reativo, mas, ao contrário, reconhece o direito de cada cidadão
de fazer com que o seu julgamento considerado determine o resultado social." 40. Hobbes, Leviathan, capo 16, 114.
182 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 183
Assim, eles agora ocupam-se em elaborar uma decisão lisia - no fim da etapa 2. No que se refere ao consentimento,
coletiva a partir dos consentimentos e dissensões. Esse pro- não há nada a ser dito a favor de X que não possa ser dito
cesso passa por várias etapas. contra X. Diante dessa perspectiva desconfortável, o presi-
dente do grupo pergunta: "Mais alguma opinião?"
1. A primeira coisa que acontece é que um membro M1 5. No último minuto, Ms ergue-se de um salto. Ele não
ergue-se e expressa opósição a X: ele não consente em X. concorda com X, diz: é contrário. Então, agora, a situação
Se mais ninguém dissesse nada (dada uma oportunidade), mudou, do empate do fim da etapa 4 para a proposta que
isso seria claramente conclusivo. Seria conclusivo não ape- nada mais traz à tona além de uma nova dissensão. Como
nas como questão de preferência, mas como questão de le- o grupo não pode proceder legitimamente diante da dis-
gitimidade: pois o grupo não pode agir sem consentimento sensão sem oposição, deve desistir de X.
e, até então, a única indicação do consentimento dos indi-
víduos é a recusa de M 1 à proposta de fazer X. E é assim que a decisão majoritária pode ser apresen-
2. Mas então Mzlevanta-se: ele é a favor de X e contrá- tada em termos de uma versão hobbesiana da física do con-
rio a não fazer X. No que diz respeito à legitimidade, a si- sentimento lockeana.
tuação agora está igualmente equilibrada: o consentimento
individual foi recusado a cada uma das opções diante do
grupo. Se M1 e Mz fossem os únicos membros, então, o gru- VI
po estaria paralisad041 • Ou, se a unanimidade fosse exigida,
o grupo também estaria paralisado, não importando o nú- A preocupação com que começamos era a de que a le-
mero de membros. Felizmente, porém, o grupo não está pa- gislação parece arbitrária quando apresentada como o re-
ralisado porque há um número ímpar e todos eles concor- sultado da decisão majoritária. Como podemos considerar
dam em que o grupo pode agir mesmo sem ãpoio unânime. as decisões legislativas como uma fonte dignificada de di-
Passamos, então, para a terceira etapa. reito quando não se baseiam em mais nada além da autori-
3. A terceira coisa que acontece é que M3 se levanta. dade dos números? Na seção V, tentei dar uma resposta a
Também ele se opõe a X. Então, agora, saímos do empate do essa preocupação ligando o problema da "contagem de ca-
fim da etapa 2 para uma situação na qual há uma voz adi- beças" às exigências de legitimidade e eqüidade. Quando
cional e, até agora, não contestada em favor de não X. Se estamos decidindo uma questão para a qual precisamos de
tudo acabasse por aqui, então, no que se refere à legitimida- uma decisão comum e há opiniões individuais díspares, a
de, seria errado o grupo prosseguir com X. decisão majoritária pode parecer um procedimento político
4. Em seguida, porém, M4 expressa sua opinião a favor
antes respeitável que arbitrário.
de X e, então, estamos novamente onde estávamos - para- Nesta seção, quero perseguir um pouco mais o surgimen-
to da arbitrariedade. Por ora, devemos examinar a suposição
de discordância. Com certeza, é o que está obstruindo o cami-
41. Hobbes diz: "uma representação de número par, especialmente
quando o número não é grande, pelo que as vozes contraditórias muitas vezes nho no caso, é o que está nos levando a substituir o processo
são iguais, é, portanto, muitas vezes, muda e incapaz de ação" (ibid.). de deliberação arrazoada pela aritmética crua da contagem.
184 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 185
Os modernos proponentes da democracia deliberati- da na resposta compreende o seu próprio bem, Como nin-
va enfatizam a conversação e a unanimidade como valores guém é privilegiado, cada um pode assegurar1isso apenas
processuais-chave. Idealmente, dizem, "a deliberação alme- compreendendo igualmente o bem dos seus pares e, assim,
ja chegar a um consenso racionalmente motivado - encon- demonstrando seu igual respeito por eles e por seus esforços.
Um intercâmbio arrazoado, no qual todos busquem uma res-
trar razões que sejam persuasivas para todos os que estão
posta com a qual todos possam concordar, resulta em una-
comprometidos a agir com base nos resultados de uma ava-
nimidade. O processo da política deliberativa é, assim, infor-
liação livre e arrazoada das possibilidades pelos iguais"42. mado pelos padrões que o seu resultado deve satisfazer"3.
Ora, tal objetivo é certamente importante em termos da ló-
gica da deliberação. Argumentar de boa-fé é apresentar ra- Em uma exposição como essa, a necessidade de votar
zões que (pensamos) o outro deve aceitar. O fato de duas ou deve parecer uma admissão de fracasso, ditada talvez por
mais pessoas persistirem no argumento significa que consi- prazos, detalhes práticos, pela ignorância ou pelo precon-
deram seriamente a possibilidade de, no fim, as mesmas con- ceito invencíveis de algumas ou de todas as partes.
siderações convencerem a todos. (Do contrário, para que se Assim, é tentador para os teóricos da democracia deli-
incomodar?) Contudo, aceitar o consenso como o telas in- berativa tentar marginalizar a votação e os processos (como
terno da deliberação não é a mesma coisa que insistir nele a decisão majoritária) que a votação implica nas suas des-
como o resultado político adequado. É aí que os teóricos de- crições da deliberação. Isso pode ser feito de várias manei-
liberativos erram. Eles supõem que a dissensão ou discor- ras. O ideal deliberativo pode ter sua aplicação limitada aos
dância é necessariamente um sinal do caráter incompleto ou que compartilham as mesmas compreensões (isto é, aos que
politicamente insatisfatório da deliberação. Sua abordagem provavelmente não discordarão) e que consideram a política
sugere que deve haver algo errado na política da delibera- como uma maneira de verificar o que são essas compreen-
ção se a razão falha, se o consenso nos foge e se não há nada sões compartilhadas44 • Ou pode limitar-se a áreas da política-
a fazer além de contar cabeças. Na verdade, alguns até su- como a política constitucional - que o teórico em questão
geriram que só podemos ter certeza de que um processo é considera como mais do que usualmente consensuais45 . Ou
deliberativo se o seu resultado for unânime. Uma política de- o teórico da democracia deliberativa pode inferir que há algo
liberativa, dizem, errado nas motivações dos participantes quando se desco-
bre que a votação é necessária. Essa terceira estratégia é a
busca uma resposta com a qual possamos todos concordar, mais comum e a mais perturbadora. Como Rousseau, os teó-
já que chegamos a ela a partir de um debate em que cada um, ricos deliberativos estão sempre inclinados a suspeitar que
livre e plenamente, pode oferecer o seu julgamento arrazoa- uma divisão em facções de maioria e minoria é um sinal de
do sob regras que não tratam nenhuma pessoa como privile-
giada e nenhuma resposta como presuntivamente preferida ...
Como cada um pode apresentar o seu julgamento arrazoado, 43. Gauthier, "Constituting Democracy", 320.
44. Ver Walzer, Spheres of Justice [trad. bras. Esferas da justiça, Martins
cada um pode assegurar que a vantagem mútua concretiza- Fontes, São Paulo, em preparaçãol. Para uma crítica, ver Dworkin, A Matter of
Principie, 216 ss.
45. Essa parece ser a estratégia em Gauthier, "Constituting Demo-
42. Ver Cohen, "Deliberation and Democratic Legitimacy", 23. cracy", 322.
A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 187
186 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO
tiva" parece sonho). Eis uma analogia. Considerem a idéia
que alguns ou todos estão votando sobre uma base estrei-
das circunstâncias da justiça de John Rawls - os aspectos
ta de interesse próprio e não enfrentando as questões do factuais da condição humana, como a escassez moderada
bem comum no espírito que os modelos deliberativos pres-
de recursos e o altruísmo limitado dos indivíduos, que tor-
supõem46 • Eles admitem que há um problema de segunda nam a justiça como virtude e prática possível e necessária48 •
melhor teoria, de como mudar as motivações das pessoas Podemos dizer, nessa mesma linha, que a discordância entre
e inculcar nelas a virttide cívica e o interesse pelo bem co- os cidadãos quanto ao que devem fazer, como corpo políti-
mum que a política deliberativa idealmente pressupõe. Ain- co, é uma das circunstâncias da política. Não é totalmente cir-
da assim, eles pensam que, assim que conseguirmos uma de- cunstâncias da política, é claro: há também a necessidade
mocracia genuinamente deliberativa, a questão sórdida da sentida de agir conjuntamente, embora discordemos quan-
contagem de votos será, em boa parte, desnecessária, pelo to ao que fazer. Como a escassez e o altruísmo limitado no
menos em assuntos sérios de princípio. A autoridade da le- caso da justiça, as circunstâncias da política são um par con-
gislação consistirá na sua proveniência legislativa, não nas jugado: a discordância não teria importância se as pessoas
suas credenciais majoritárias. não preferissem uma decisão comum, e a necessidade de uma
Suponham, porém, partir da premissa contrária. Supo- decisão comum não daria origem à política como a conhe-
nham que estipulemos de início - embora a deliberação seja cemos se não houvesse pelo menos o potencial para a dis-
importante - que os humanos tendem a discordar entre si cordância quanto a qual deve ser a decisão comum. Nessa
no campo da justiça e da política tanto após como antes da exposição, imaginar eliminada a persistência da discordân-
deliberaçãd 7 • Se estipularmos isso, podemos insistir em que cia é como desejar eliminada a escassez em qualquer expo-
qualquer teoria normativa adequada do direito e da política sição da justiça distributiva. Naturalmente, na filosofia, não
deve, portanto, levá-lo em conta e construir a sua visão da há nada de errado em fazer certas suposições ideais: mas,
distinção entre processos decisórios arbitrários e não-arbi- seja o que for que desejemos eliminado na filosofia política,
trários desta maneira. não devemos desejar eliminado o fato de que nos encon-
Que tipo de estipulação seria essa (que sempre tende à tramos vivos e agindo ao lado de muitos com os quais não
discordância)? É tentador dizer brutalmente: "Uma estipu- há a menor perspectiva de compartilharmos uma visão so-
lação realista./I Mas é mais do que realismo. A perspectiva bre justiça, direitos ou moralidade política49 •
de persistir a discordância deve ser considerada, penso, como
uma das condições elementares da política moderna. Nada
do que dizemos sobre a política faz muito sentido se proce- 48. Rawls, Theory ofJustice, 126-30. A exposição clássica das circunstâncias
da justiça é dada por Hume em A Treatise ofHuman Nature, livro III, parte lI, se-
demos sem levar essa condição em conta (e é por isso que ção Ü, 493-5, e especialmente em An Enquiry Concerning the PrincipIes ofMoraIs,
tanto do que se diz sob a rubrica de "democracia delibera- seção III, parte r, 183-92: Ver também Hart, The Concept of Law, 193-200, para
uma idéia similar sob o título "The Minimum Content of Natural Law".
49. Este tópico - as circunstâncias da política - merece muito mais aten-
ção do que tem recebido na filosofia jurídica e política. É, creio, o fundamento
46. Rousseau, Social Contract, livro N, caps. 1-2, 247-51. Preocupações
de muitas das virtudes distintamente políticas e é indispensável para a com-
similares às minhas são expressadas por Young, "Communication and the preensão das regras de decisão processual e das idéias concomitantes de au-
Other", em 125-6. toridade e obrigação.
47. Ver Knight e Johnson, "Aggregation and Deliberation", 286-7.
188 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO
189
Os liberais fazem um bom trabalho ao reconhecer a tam (corretamente) que uma questão de justiça é uma ques-
discordância no que diz respeito às visões abrangentes de tão na qual precisamos agir conjuntamente, com base em
religião, ética e filosofia. Assim, John Rawls insiste em que uma visão comum. Mas a necessidade de uma visão comum
"uma diversidade de doutrinas abrangentes conflitantes e não faz desaparecer a discordância. Ao contrário, significa
irreconciliáveis" não é "uma mera condição histórica que que a nossa base comum para a ação em questões de justi-
pode passar em breve; e uma característica permanente da ça tem de ser forjada no calor das nossas discordâncias, não
cultura pública da democracia"so. (Também é uma das cir- fundamentada na suposição de um consenso sereno que
cunstâncias da justiça.)51 Ele oferece uma exposição da per- existe apenas como ideal.
sistência desse tipo de discordâncias2 . E conclui que, por- Estas não são apenas considerações teóricas abstratas.
tanto, é bom que não precisemos compartilhar na socieda- Nos Estados Unidos, na Europa ocidental e em todas as ou-
de uma visão comum sobre religião, ética e filosofia. Mas tras democracias, cada passo isolado das legislaturas para
os liberais rawlsianos fizeram um trabalho pior ao reco- tornar a sociedade mais segura, mais civilizada e mais justa
nhecer a inevitabilidade da discordância em questões sobre foi dado contra um pano de fundo de discordância, mas, não
as quais eles pensam que realmente precisamos ter uma vi- obstante, de uma maneira que conseguiu, de certo modo,
são comum, embora tal discordância seja - como argumen- conservar a lealdade e a aquiescência (ainda que, muitas ve-
tei - a característica mais proeminente das democracias zes, lealdade e aquiescência relutantes) dos que, de boa-fé,
modernas 53. se opunham às medidas em questão. A proibição do traba-
Rawls e seus seguidores podem responder que seu tra- lho infantil, a reforma do processo criminal, a limitação das
balho é explorar a idéia de "uma sociedade bem organiza- horas de trabalho, o desmantelamento da segregação, a ins-
da", definida como uma sociedade cujos membros com- tituição dos regulamentos de saúde e de segurança nas fá-
partilham uma visão sobre a justiças4 . Eles pensam que essa bricas, a liberação feminina - cada uma dessas conquistas
foi assegurada no que chamei as circunstâncias da política,
é uma idéia importante a explorar em parte porque acredi-
não em algo que se assemelhe remotamente ao consenso de
justiça que os rawlsianos consideram essencial para uma so-
50. Ver Rawls, "The Domain of the Politica! and Overlapping Consen- ciedade bem organizada. Mais ainda, cada uma dessas con-
sus", 246. quistas legislativas reivindica autoridade e respeito como di-
51. Rawls, A Theory ofJustice, 127.
52. Esse é o argumento sobre "os ônus do julgamento", em Rawls, Polí- reito nas circunstâncias da política, inclusive na circunstância
tical Liberalísm, 59 ss. da discordância quanto a ser um passo na direção certa. Tal
53. Na verdade, é a característica mais proeminente não apenas da polí- legislação não reivindica autoridade e respeito simplesmen-
tica moderna, mas das próprias interações dos filósofos políticos com colegas
quando estão debatendo as questões de direitos e justiça, sobre as quais se su- te como uma sugestão de como seria uma sociedade ideal; se
põe que sejamos todos especialistas. reinvidicasse, os que têm uma visão ou ideal social diferente
54. Rawls, Polítical Liberalism, 35. Chamar uma sociedade de bem orga- simplesmente virariam as costas.
nizada, Rawls diz, transmite, entre outras coisas, que" ela é uma sociedade na
qua! todos aceitam, e sabem todos os outros aceitam, os mesmos princípios
de justiça ... "
A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO
190 191
VII tes potenciais concordam a respeito do projeto e comparti-
lham as mesmas preferências para o seu sucesso. Quão maior
Se aceitamos essa tese sobre as circunstâncias da políti- ~ a conquista, então, quando uma grande população age con-
ca, podemos, então, começar a construir uma resposta agres- Juntamente visando um interesse comum, apesar de discor-
sivamente afirmativa à acusação de arbitrariedade no que diz dar entre si quanto ao que deve ser feito exatamente.
respeito à legislação majoritária. Nas circunstâncias da política, tirar cara ou coroa pode
A primeira coisa a dizer é que a dignidade da legislação, ser uma maneira de estabelecer um curso comum de ação.
o fundamento da sua autoridade e o seu direito de ser respei- Se o prazo para a ação estiver próximo o suficiente e a ne-
tada por nós têm muita relação com o tipo de conquista que cessidade de ação concertada for suficientemente premente,
é. Nosso respeito pela legislação é, em parte, o tributo que podemos adotar qualquer método arbitrário que tome o cur-
devemos pagar à conquista da ação concertada, cooperativa, so de ação mais notável. Se a questão fosse particularmen-
coordenada ou coletiva nas circunstâncias da vida moderna. te grave, poderíamos até admirar tais métodos, em uma es-
De várias maneiras e por várias razões, muitos de nós pécie de espírito nietzscheano ou existencialista: lembro-me
acreditam que devem agir ou organizar coisas conjuntamen- da sensação estimulante quando uma reunião de faculda-
te. Há uma porção de coisas que só podem ser conseguidas de .se pre~arava para jogar cara ou coroa e decidir qual dos
quando desempenhamos os nossos papéis, em grandes nú- dOIS candIdatos contratar após várias horas de impasse.
meros, em uma estrutura comum de ação. Empreendimentos -!"- decisão majoritária deve ser respeitada nesse espíri-
como proteger o meio ambiente, operar um sistema de assis- to? E simplesmente um recurso técnico que nos capacita a
tência médica, assegurar as condições para a operação de escolher um curso de ação - qualquer curso de ação - em cir-
uma economia de mercado ou prover uma base para a reso- cunstâncias em que queremos agir conjuntamente, mas che-
lução de disputas fracassarão a menos que as pessoas atuem gamos a um impasse sobre o que fazer?
concertadas, seguindo regras, participando de práticas e es- Certamente, qualquer processo decisório que trate das
tabelecendo instituições. A ação concertada não é fácil, es- circunstâncias da política tem de parecer técnico. Suponha
pecialmente depois que as pessoas têm uma percepção de que meus dois amigos e eu enfrentamos um problema de
si como indivíduos e das maneiras em que agir com os outros dec~são do tipo que estamos considerando: queremos agir
pode entrar em conflito com projetos próprios de menor es- conjuntamente no que se refere a uma matéria M, mas um
cala. Na verdade, quando realmente ocorre, a ação concerta- de nós acha importante seguir a política X, ao passo que os
da é uma grande conquista na vida humana55 • Os teóricos da outros pensam que é importante seguir a política Y, e ne-
opção social lembram-nos de que um empreendimento co- nhum de nós tem razão para pensar em qualquer um dos
mum muitas vezes fracassará mesmo quando os participan- o~tros como melhor juiz dos méritos de M. Suponha tam-
bem que todos sabemos que M requer uma política comum,
na qual cada um de nós desempenhe um papel independen-
55. A ênfase na ação concertada e na fragilidade da sua conquista domi- te, mas necessário; além disso, o papel que cada um de nós
na a filosofia política de Hannah Arendt. Ver Arendt, The Human Condition,
199 ss.
desempenharia em X é contrário ao papel que cada um de
192 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 193
nós desempenharia em Y (no sentido de que qualquer um ela não exige que nenhum de nós finja haver um consenso
desempenhando o papel atribuído a si em uma política tor- quando não há, meramente porque pensamos que deveria
naria impossível o sucesso da outra política). Nessas cir- haver - quer porque qualquer consenso é melhor do que
cunstâncias, a seguinte não seria obviamente uma maneira nenhum, quer porque a visão que impressiona alguns de
de estabelecer uma política comum: cada um faz o que pen- nós como correta parece tão evidentemente correta por si
sa ser importante fazer a respeito de M. Devemos encontrar que não conseguimos imaginar como alguém poderia sus-
uma maneira de escolher uma única política, da qual nós tentar o contrário.
três possamos participar apesar da nossa discordância quan- Há uma tentação perigosa de tratar uma visão antagô-
to aos méritos. E, como cada um deve agir independente- nica como algo "indigno de nota", se quiserem, na delibera-
mente assim que o método de escolha for seguido, cada um ção respeitável, supondo que é necessariamente ignorante
deve ter uma maneira de identificar apenas uma das políti- ou marcada por preconceito ou interesse próprio e não con-
cas propostas como "nossa", isto é, aquela que "nós" esta- templa suficientemente a realidade moral. Tal postura incor-
mos seguindo. Essa capacidade não deve envolver o uso de pora a idéia de que, como a verdade em questões de justiça,
qualquer critério como C: "O que é importante fazer sobre direito ou política é singular e o consenso é a sua incorpo-
M", pois é justamente a discordância quanto à aplicação de ração natural, alguma explicação especial - algum fator de
C que dá origem ao problema de decisão em primeiro lu- patologia deliberativa, tal como a influência persistente do
gar. A maneira como cada um de nós identifica uma política interesse próprio - é exigida para explicar a discordância, ex-
como "nossa" deve, portanto, parecer arbitrária em compa- plicação que pode então ser citada como razão para colocar
ração com C (embora, naturalmente, não seja arbitrária em de lado a visão dissidente.
O tipo de respeito que tenho em mente - o respeito in-
relação ao problema da decisão). A votação majoritária satis-
corporado no princípio majoritário - implica a rejeição des-
faz essa exigência pois qualquer membro do grupo pode iden-
sa inferência. Não precisa implicar a rejeição da premissa
tificar (digamos) Y como" a política preferida pela maioria",
sobre a singularidade da verdade, isto é, não precisa envol-
quer ele pense que Y satisfaz C, quer não.
ver nada como o relativismo. O respeito tem de estar relacio-
Mas isso é tudo o que podemos dizer a favor dela - que
nado com o modo como tratamos as crenças dos outros a res-
é um detalhe técnico bem sucedido? Penso que podemos
peito da justiça em circunstâncias em que nenhuma delas
dizer mais, na linha do que chamei a física do consentimen-
atesta a si mesma, não com a maneira como tratamos a ver-
to. A decisão majoritária não é apenas um processo decisó-
dade na própria justiça (que, afinal, nunca surge na política
rio eficaz, é um processo respeitoso. Respeita os indivíduos
in propria persona, mas apenas - se é que surge - na forma
de duas maneiras. Primeiro, respeita e considera seriamen-
da crença controvertida de alguém) 56. Tampouco é apenas
te a realidade das suas diferenças de opinião quanto à justi-
um ponto sobre a falibilidade, embora, naturalmente, qual-
ça e ao bem comum. A decisão majoritária não requer que a
opinião de ninguém seja menosprezada ou silenciada por
causa da importância imaginada do consenso. Ao impor o 56. Ver também a discussão em Waldron, "The Irrelevance of Moral Ob-
nosso apoio e o nosso respeito como processo decisório, jectivity" .
194 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FÍSICA DO CONSENTIMENTO 195
quer um que sustente uma opinião sobre a justiça deva pen- Mas não é arbitrário, dirá o oponente do majoritarismo
sar que é possível estar errado e não deva agir de maneira (e esta é quase que a última resposta que darei), conferir
que demonstre pensar que essa possibilidade pode ser ig- igual peso aos votos das pessoas dessa maneira mecânica? A
norada. Trata-se, antes, do fato de que, qualquer que seja o posição de John Stuart Mill em Considerations on Represen-
estado de minha confiança quanto à correção da minha ta tive Government [Considerações sobre o governo represen-
opinião, devo compreehder que a política existe, nas pala- tativo] pode ser recordada. Mill sustentou ferozmente que
vras de Arendt, porque "não um homem, mas os homens
habitam a terra e formam um mundo entre si"57 - não uma É uma injustiça pessoal subtrair a qualquer um ... o pri-
pessoa, mas pessoas -, que a minha mente não é a única vilégio comum de ter sua voz reconhecida no manejo de ca-
que trabalha no problema diante de nós, que há muitas in- sos em que ele tem o mesmo interesse que as outras pessoas.
teligências distintas trabalhando em qualquer questão que Se for obrigado a pagar, se for obrigado a lutar, se for exigido
enfrentemos e que não é inesperado, nem antinatural pen- implicitamente que obedeça, ele deve ter o direito legal de ...
sar que pessoas razoáveis discordariam. que lhe peçam o consentimento e de que sua opinião seja
reconhecida pelo que vale ... 60
Disse que o majoritarismo respeita os indivíduos de duas
maneiras. Ele os respeita, como vimos na seção V, ao tratá-
Mas "não corno valendo mais do que vale", acrescen-
los como iguais na autorização da ação política. Imagino
tou Mill. A eqüidade não exige que a opinião de urna pes-
que, em um sentido, tirar cara ou cora também os trata corno
soa sábia e inteligente tenha o mesmo peso - o mesmo po-
iguais. Ou, mais cuidadosamente, poderíamos ter um siste-
tencial decisório - que a opinião de urna pessoa ignorante e
ma político no qual todas as pessoas colocassem a sua opi-
irracional. Na verdade, pode-se argumentar que a eqüida-
nião em urna urna, tirassem urna delas aleatoriamente e
de exige o oposto, pelo menos se eqüidade significar algo
agissem, corno sociedade, com base nela. (Poderíamos pen-
corno" aquilo a que ninguém pode razoavelmente fazer ob-
sar que esse sistema de loteria tem a vantagem de evitar a
jeção". Corno diz Mill,
inevitabilidade das minorias permanentes)58. Todos teriam
chance igual de tornar decisiva a sua opinião. Mas esse é um Todos têm direito de se sentirem insultados por serem
sentido pickwickiano de igualdade. Pode-se argumentar que tratados como ninguém e tachados como desprezíveis. Nin-
urna distribuição igual é urna distribuição no nível mais ele- guém, a não ser um tolo ... , sente-se ofendido com o reco-
vado compatível com a igualdade59 . Se é assim, o princípio nhecimento de que há outros cujas opiniões, cujo próprio
majoritário sai-se melhor corno princípio de igual respeito desejo, têm direito a maior consideração do que os seus. 61
porque dá ao voto de cada indivíduo urna chance maior de
determinar o resultado do que na proposta de loteria. Tal concepção de igual respeito, aberta a diferenças pro-
vadas ou reconhecidas em razão, sabedoria e experiência,

57. Arendt, On Reuolution, 175.


58. Devo este ponto a David Heyd. 60. Mil!, Consíderatíons on Representatíve Government, capo 8, 329.
59. Ver Vlastos, "Justice and Equality", 62 ss. 61. Ibíd., 335.
196 A DIGNIDADE DA LEGISLAÇÃO A FisICA DO CONSENTIMENTO 197
pode justificar certo tipo de esquema de votação plural no circunstâncias da política. É porque discordamos quanto
lugar do igual peso implícito na decisão majoritária simples62 . ao que deve ser considerado como o resultado substanti-
Se é possível, nas circunstâncias da política, justificar vamente respeitoso que precisamos de um processo deci-
critérios de sabedoria (ou entrar em acordo quanto a eles) sório; neste contexto, recolocar a substância no processo irá
etc. para os fins dessas diferenciações é outra questão. Se a necessariamente privilegiar uma opinião controvertida so-
marca da sabedoria é têr chegado a decisões justas no pas- bre o que o respeito acarreta e, portanto, deixar de respeitar
sado, e as pessoas discordam quanto ao que deve ser consi- as outras. Assim, nas circunstâncias da política, tudo com
derado uma decisão justa, então não está claro como pode- que podemos trabalhar é a "compreensão implausivelmente
mos determinar quem é sábio e quem não está livre de erro estreita" do igual respeito; e espero ter convencido o leitor
no respeito pelas pessoas no primeiro dos sentidos expostos de que a decisão majoritária é o único processo decisório
acima (a saber, respeito pela realidade e pelas implicações da compatível com o igual respeito nesse sentido necessaria-
discordância) . mente empobrecidd5 .
Algo similar pode ser dito a respeito de uma argumen-
tação de Charles Beitz, de que qualquer inferência do igual
respeito para a decisão majoritária teria de "refletir uma com- VIII
preensão implausivelmente estreita do princípio mais bási-
co [isto é, o igual respeito], da qual interesses substantivos Minha estratégia neste livro foi invocar os nomes das
referentes ao conteúdo dos resultados políticos ... tivessem figuras canônicas da teoria política para sustentar as reivin-
sido excluídos"63. Beitz, com certeza, está certo em que o con- dicações que podem ser feitas em nome da legislação por
ceito de igual respeito para com as pessoas normalmente é uma assembléia popular como fonte respeitável de direito.
usado de uma maneira que comunica não apenas a opinião Como mencionei no início, consideramos além dos suspei-
do falante a respeito de como se conseguem as decisões po- tos de costume nesse aspecto. Não recorremos a Bentham
líticas, mas também sua opinião a respeito do impacto subs- nem a Rousseau. Recorremos a Aristóteles, supostamente
tantivo do próprio resultado sobre os indivíduos. Tal falan- o teórico da virtude política diferencial; recorremos a John
te não se convencerá, então, de que o igual respeito implica Locke, o filósofo dos direitos naturais como limites às le-
decisão majoritária, pois eles saberão que a decisão majori-
tária pode levar a resultados que (como eles acreditam - e
65. Beitz poderia responder dizendo que, se realmente temos de traba-
talvez com razão) não dão aos indivíduos o respeito subs- lhar com uma noção processual estreita do respeito pelas pessoas, o único
tantivo ao qual eles têm direitd4 • método de decisão que podemos inferir é a exigência de unanimidade incor-
Mais uma vez, porém, podemos perceber que essa no- porada em algo como o contratualismo rawlsiano (cf. Beitz, Polítical Equality,
63). Mas, é claro, a unanimidade é justamente o que não está disponível nas
ção ampla de respeito é inútil em nome da sociedade nas circunstâncias da política, as únicas circunstâncias nas quais realmente preci-
samos de um processo decisório. De qualquer maneira, como o próprio Beitz
observa, a exigência contratualista de unanimidade geralmente é vista hoje
62. Ver também Rawls, A Theory olJustice, 232-4. como uma heurística substantiva, não como a base de um modelo processual-
63. Beitz, Political Equality, 64. e é por isso que ignora, como fazem todas as abordagens orientadas para a
64. Cf. Dworkin, A Matter 01 PrincipIe, 59-69. substância, o fato da discordância substantiva.
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gislaturas; e recorremos a Emmanuel Kant, supostamente o de Hobbes e Locke, a decisão majoritária é defendida como
sumo sacerdote do raciocínio moral individual autônomo. princípio a ser usado por uma comunidade política recém-
Encontramos nessas teorias um fundo de discernimentos da formada para tomar as decisões mais básicas. Em Hobbes,
necessidade da legislação, a contribuição distinta que uma as- ela é defendida como base para escolher o soberano; em Lo-
sembléia plural pode dar cke, é defendida como princípio para estabelecer uma le-
, e a respeitabilidade do majorita-
rismo como processo decisório. gislatura e para selecionar a forma e o caráter das regras sub-
Não seria engenhoso, porém, encerrar sem observar que seqüentes de decisão política70 • Como diz Locke, essa maio-
nenhum dos três (ou quatro, se contarmos a contribuição de ria primordial pode reservar a função legislativa para si
Hobbes, que também considerei no presente capítulo) pode
e, então, a forma do governo é uma democracia perfeita: ou,
ser razoavelmente considerado como proponente da legis-
então, pode colocar o poder de fazer leis nas mãos de alguns
lação pelo povo (na linha, digamos, de um plebiscito ou de homens selecionados ... e, então, é uma oligarquia: ou, então,
uma iniciativa no estilo da Califórnia). Para Kant, a igual par- nas mãos de um homem, e, então, é uma monarquia. (TI: 132)
ticipação de todos é, na melhor das hipóteses, uma suposi-
ção teórica ideal66 • Locke sente-se mais à vontade com uma Embora (como vimos no capítulo 3) ele achasse que ha-
assembléia representativa, como a Câmara dos Comuns, ou, via razões muito boas para dar preferência à escolha de uma
talvez, uma legislatura mista, como a Câmara dos Lordes, a assembléia representativa - "corpos coletivos de homens,
Câmara dos Comuns e o monarca (lI: 213), e, segundo al- chamemo-los senado, parlamento ou o que lhes aprouver"
guns de seus intérpretes, tinha dificuldade com a idéia de (lI: 94)71_, elas eram razões de prudência política; não tinham
sufrágio universal67 • E a visão considerada de Aristóteles pa- relação nenhuma com a tese lockeana da "naturalidade" da
rece ter sido favorável antes a um regime misto do que à as- decisão majoritária que estivemos examinando. A primazia
sembléia popular soberana com que brincou nos capítulos conferida a uma maioria do povo é simplesmente decorrente
do livro III da Política 68 que consideramos aqui. (E mesmo da artificialidade (não da inconveniência) de qualquer outro
isso deixa de lado a ambivalência geral a respeito da legis- arranjo (lI: 99)72. Em outras palavras, os argumentos lockea-
lação em Atenas - uma ambivalência, não menos do que a nos e hobbesianos que estive considerando nesta palestra
ambivalência na jurisprudência norte-americana na virada não foram argumentos a respeito da legislação como tal;
do século, que consideramos no início do capítulo 1. 69) foram argumentos sobre a necessidade primordial de extra-
O ponto é especialmente importante no que diz res-
peito aos argumentos que estudei neste capítulo. No caso 70. Hobbes, Leviathan, capo 18; Locke, Two Treatises, li; 132.
71. Ver também Locke, Two Treatises, II: 143.
72. Como Hobbes diz, "O primeiro, em ordem de tempo, desses três ti-
66. Kant, "On the Common Saying", 74 ss. pos [de governo] é a democracia e deve ser necessariamente assim porque
67. Ver, por exemplo, Wood, "Locke Against Democracy". uma aristocracia e uma monarquia requerem a nomeação de pessoas de co-
68. O livro IV da Política de Aristóteles contém as suas prescrições cons- mum acordo, concordância que, em uma grande multidão de homens, deve
titucionais, que ficam consideravelmente aquém da democracia plena. consistir no consentimento da maior parte e, onde os votos da maior parte
69. Ver Ostwald, From Popular Sovereignty to the Sovereignty of Law, es- implicarem os votos do resto, há efetivamente uma democracia" (Hobbes, De
pecialmente caps. 2 e 5-6. corpore politico, capo 21, 118-9).
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polar algum processo decisório a partir da própria noção de postas políticas nem emendas constitucionais; são os argu-
sociedade política como tal. Como John Dunn observa: mentos inseridos na rica tapeçaria da nossa tradição de teo-
rização sobre a política, exemplos passados da própria ati-
A noção de uma sociedade política na ausência de qual- vidade a que nos dedicamos quando especulamos com nos-
quer processo decisório historicamente creditado prescreve a sas vozes se os tribunais são melhores do que as legislaturas
votação majoritária' em todas as questões legislativas. Mas, para lidar com matérias de princípio em disputa. Essas ques-
naturalmente, nada semelhante a tal situação existiu na In- tões não surgiram ontem e vale a pena lembrarmo-nos -
glaterra do século XVlI - nem, a propÓsito, em nenhuma co-
particularmente na jurisprudência - que foram propostos e
munidade política de longa duração mencionada por Locke.
resolvidos argumentos nessas áreas da teoria política du-
E não há dúvida de que ele teria considerado a votação majo-
ritária por uma população inteira em todas as questões como
rante centenas, na verdade, milhares de anos.
uma estrutura grotescamente perigosa e praticamente absur- No fim do capítulo 1, mencionei um aviso de Maquia-
da ... Seus comentários sobre a posição das maiorias na esco- vel: que não devíamos nos desorientar com o barulho e o
lha política eram parte da sua análise formal do conceito de tumulto, o conflito e a discórdia, o cheiro ou o som da tur-
legitimidade política. Não eram, em nenhum sentido, uma ba e pensar que uma política indecorosa é necessariamente
proposta para a forma adequada de organização social.73 um sintoma de política insana ou que essa participação po-
pular é um sinal de desordem75 • A lição é provavelmente
Se pensamos, portanto, que a legislação majoritária é mais fácil de aprender para os cientistas políticos do que
uma coisa boa, não temos direito de pensar isso porque o para os estudiosos jurídicos, pois os primeiros se associam
grande John Locke o propôs. à teoria política em todo o seu irreverente esplendor, ao
Minha intenção neste livro, porém, não foi citar Aristóte- passo que os segundos tendem a limitar-se filosoficamente
les, Hobbes, Locke e Kant como se fossem nossos oráculos74 • aos tons abafados das discussões jurisprudenciais sobre a
Examinamos o argumento de Locke no início do capítulo 8 natureza do raciocínio jurídico. E eles formam sua visão da
do Segundo tratado porque tínhamos ouvido dizer que a de- dignidade ou da posição das várias fontes do direito da mes-
cisão majoritária era um processo decisório" arbitrário" e ma maneira. Este livro foi uma tentativa de fertilização cru-
queríamos ver o que mais havia a ser dito sobre essa ques- zada. Vale a pena aproximar a jurisprudência, um pouco mais
tão. A exposição de Locke da sua não-arbitrariedade em um do que geralmente se aproxima, das várias maneiras como
contexto forneceu-nos alguns recursos de que poderíamos as pessoas teorizaram sobre a política: pois o direito deve
precisar para perceber que nossa prática de usá-la em ou- ser visto como fruto da política, diga a jurisprudência o que
tros contextos tampouco é tão arbitrária quanto podería- disser. Espero, contudo, que o livro também tenha o efeito
mos pensar. E, de maneira similar, a descrição de Kant sobre de ajudar os teóricos políticos a perceberem que esses tópi-
a necessidade de leis uniformes e a descrição de Aristóteles cos da filosofia jurídica não estão além do seu domínio, mas
sobre a sabedoria da multidão. Estas não são profecias, pro- oferecem um foco útil para refrescar nossa compreensão de
textos que, de outra maneira, são por demais conhecidos.

73. Dunn, The Polítical Thought ofJohn Locke, 128-9.


74. Ver Waldron, "What Plato Would Allow". 75. Maquiavel, Discourses on Livy, II, capo 6, 16.

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