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JEAN-JACQUES ROUSSEAU

DO CONTRATO SOCIAL
%

ENSAIO SOBRE A
ORIGEM DAS LÍNGUAS
*

DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
*

DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS


FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS

Tradução de Lo u r d e s Sa n t o s Ma c h a d o
Introduções e notas de Pa u l . Ar b o u s s e -Ba s t id e e Lo u r iv a l Go m e s Ma c h a d o

EDITOR: VICTOR CIVITA


Títulos originais:

l.a edição — março 1973

c Copyright desta edição, 1973,


Abril S.A. Cultura) e Industrial, São Paulo.
Tradução publicada sob licença de
Editora Globo, Porto Alegre.
DISCURSO
SOBRE A ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
In t r o d u ç ã o

de Paul Arbousse-Bastide

Origens

Em 1753, a Academia de Dijon propôs, para prêmio do ano seguinte, a


questão: Qual a origem da desigualdade entre os homens e será ela permitida
pela lei natural? Rousseau resolveu concorrer mais uma vez. Para se concentrar
melhor, porém, deixou Paris e afastou-se do convívio dos demais, perto de uma
floresta, em Saint-Germain. As Confissões contam qual era então seu estado de
espírito: “Metido o dia todo na floresta, procurava e aí encontrava a imagem dos
primeiros tempos dos quais orgulhosamente traçava a história; não dava ouvidos
às pequenas mentiras dos homens, minha alma elevava-se até a divindade". O
escritor acabou a obra em Chambéry, redigindo uma dedicatória à República de
Genebra, que traz a data de 12 de junho de 1754. A obra apareceu impressa sob
o título de Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os
Homens.
As fontes deste segundo discurso foram estudadas por MoreV. São duas: de
um lado, Rousseau sofreu a influência da filosofia enciclopédica, e, de outro, a
das ciências naturais e históricas.
1) Os filósofos, como Diderot e Condillac, os juristas, como Grócio e
Pufendorf, tinham destruído a idéia tradicional de uma criação do estado social
por Deus e difundiram as idéias de uma evolução natural do homem e das socie-
dades, de sua organização progressiva da barbárie para a civilização; dessesfiló-
sofos e juristas, teóricos do direito natural, Rousseau toma, aliás, mais o seu mé-
todo do que as idéias, em relação a um bom número das quais, pelo contrário,
proclamará seu desacordo. O método consiste em reconstruir racionalmente a
história humana em lugar de se basear exclusivamente nos dados da geografia,
da erudição e da teologia; por aí pode-se fazer um julgamento dessa história,
justificando-a ou condenando-a. Em alguns pontos de pormenor, Rousseau
chega até a adotar quase que a teoria completa de um de seus predecessores: a
teoria das paixões é de Diderot. A origem de nossos conhecimentos, partindo dos
sentidos, foi descrita por Condillac; o nascimento da idéia de propriedade fora
analisado por Grócio e Pufendorf.
2) Diversamente dos filósofos e apesar de suas próprias declarações. Rous-
seau pede aos fatos a confirmação de seus raciocínios. Apóia seu sistema no es-

1 Annales Jean-Jacques Rousseau, 1909. (N. de P.A.-B.)


210 INTRODUÇÃO

tudo do corpo humano, das raças e dos povos. Suas principais fontes, neste
ponto, são: Buffon, na sua monumental História Natural, da qual cita sobretudo
o capítulo sobre A Natureza do Homem; P. Dutertre, autor de uma História
Geral das Antilhas Habitadas pelos Franceses; e a História das Viagens, publi-
cação periódica, editada desde 1746. Foi daí que o filósofo extraiu o retrato,
desde então legendário, do “bom selvagem”. Convém lembrar Montaigne e,
especialmente, o capítulo dos Ensaios sobre Os Canibais2.

Análise sistemática do discurso


Dedicatória:
A dedicatória é dirigida à República de Genebra. Rousseau nela descreve o
Estado ideal, na forma por que decorre das teses enunciadas no segundo discurso
e atribui a origem dessas teses e seu valor ao fato de, na sua mais tenra infância,
ter sido formado de acordo com os costumes e as leis da República de Genebra.
A) O escritor apresenta as razões pelas quais escolheu a República de
Genebra para dedicar-lhe a obra. Felicita-se por ter nascido em Genebra, o Esta-
do mais perfeito possível existente na terra. Se não tivesse a felicidade de lá nas-
cer, as seguintes razões o fariam reconhecer em Genebra o Estado mais perfeito:
a) Razões morais:
1) Lá a virtude individual é idêntica à virtude social.
2) Existe uma unidade profunda entre os governantes e os governados.
3) O homem é livre.
4) A autoridade da lei não reconhece exceção para nenhum privilegiado.
5) A ancianidade da lei é a fiadora de sua adaptação ao povo que, de sua
parte, está muito bem adaptado a ela.
b) Razões políticas:
1) Genebra não possui ambições em relação a seus vizinhos. Seus vizinhos
também não possuem nenhuma em relação a ela.
2) O direito de legislação é comum a todos os cidadãos, mas reserva-se aos
magistrados o direito de propor leis. Com isso evitam-se dois erros: o de Roma,
que excluía os magistrados do poder legislativo, e o de Atenas, que lhes conferia
todo esse poder.
c) Razões “providenciais”: as amenidades da região e do clima; as riquezas
do solo.
B) O autor dirige a cada categoria de genebrinos uma dedicatória especial:
1) Aos cidadãos, não deseja fazer a sua felicidade, uma vez que ela já exis-
te, mas sim conservá-la, obedecendo aos magistrados.
2) Aos magistrados dirige elogios devidos à felicidade que proporcionam a

2 A esse respeito poder-se-á recorrer ao brilhante livro, copiosamente documentado, de Afonso Arinos de
Mello Franco: O índio Brasileiro e a Revolução Francesa, Ed. J. Olympio, Rio de Janeiro, 1937. (N. de
P.A.-B.)
INTRODUÇÃO 211

seus administrados e à consideração com que tratam as classes sociais mais


desfavorecidas, das quaisfazia parte o pai de Rousseau.
3) Aos pastores da religião, que dão o exemplo do amor ao próximo e à
pátria.
4) As mulheres, guardiãs dos costumes e da paz.
Conclusão:

A República de Genebra oferece a imagem da verdadeira felicidade. A


Rousseau basta contemplá-la para sentir-se feliz.

PREFÁCIO

A) O autor expõe a idéia geral do Discurso.


1) O conhecimento do homem é o mais importante de todos.
2) A dificuldade está em que se impõe distinguir o homem como deveria ser
(estado de natureza original), do homem em que se transformou (evolução do
tempo devida a mudanças exteriores e ao progresso natural do homem). Há, pois,
uma bondade original da natureza humana: a evolução social corrompeu-a.
3) A aplicação dessa idéia geral ao problema particular da desigualdade:
existe uma igualdade original inscrita no homem natural; causas físicas produzi-
ram pouco a pouco as várias desigualdades, que são artificiais.
B) O autor justifica o método observado no Discurso.
1) O método é o raciocínio; somente esse possui rigor lógico, mas suas
conclusões são hipotéticas: “. . .conhecer bem um estado (o estado de natureza)
que não existe mais, que, talvez, nunca existiu, que provavelmente jamais existi-
rá, mas do qual se impõe, no entanto, possuir noções justas ”.
2) Esse primeiro método precisa ser completado por um segundo: o recurso
à experiência. Dificuldades na aplicação desse segundo método: má vontade dos
filósofos e dos chefes de Estado.
C) O autor afirma acreditar que seu Discurso traz uma solução ao pro-
blema do direito natural.
1) Os autores se contradizem entre si sobre essa questão e contradizem-se
a si mesmos, dando uma definição abstrata e complicada da coisa que hipotetica-
mente é “natural”.
2) Rousseau definiu o direito natural em função não do estado social, que
é posterior ao estado de natureza, mas do homem natural original.
3) Encontrou no Discurso os dois fundamentos do direito natural: o ins-
tinto de conservação, que prende o homem a si mesmo, e a piedade, que o prende
a outrem.
Conclusão:
1) A oposição entre os poderosos e os fracos só superficialmente explica a
evolução das sociedades. Impõe-se procurar um fundamento natural primitivo.
2) Esse fundamento permite distinguir aquilo que na sociedadefoi desejado
pela natureza, isto é, por Deus, do que foi produzido pelo homem.
212 INTRODUÇÃO

DISCURSO

Nas páginas preliminares, o autor formula com precisão o problema de que


irá tratar. Distingue duas espécies de desigualdade: a desigualdade natural ou fí-
sica, e a desigualdade moral e política. Não se trata de procurar a primeira ori-
gem ou as relações entre as duas, mas de estudar como se deu a passagem da pri-
meira à segunda. A própria formulação do problema leva Rousseau a tomar
posição em relação a questões de método: é necessário alcançar novamente o es-
tado de natureza pelo raciocínio; impõe-se evitar o erro dos filósofos que atri-
buem aos selvagens sentimentos dos civilizados; tem-se de separar os fatos, pois
a história é contrária à natureza; tem-se de respeitar o ensino da religião, que re-
vela ter sido procurada imediatamente por Deus a passagem ao estado social. O
problema que subsiste para a filosofia é o seguinte: “Que poderia ter acontecido
ao gênero humano se fora abandonado a si mesmo ”.

Análise do estado de natureza a fim de determinar se nele reina a desigual-


dade. Para tanto, o autor rejeita duas espécies de dados: os conhecimentos sobre-
naturais e a evolução biológica do homem. Supõe que o homem, no estado de
natureza, se encontra constituído anatomicamente como hoje.
A) Descrição do homem no estado de natureza.

I) O homem físico

1) Suas qualidades. Tem organização fisiológica perfeita. Suas necessi-


dades são facilmente satisfeitas. E capaz de adquirir todos os instintos dos ani-
mais. Possui temperamento robusto, reforçado pela seleção natural, que elimina
os fracos. Ignora o uso das máquinas, seu corpo é seu único instrumento. É auda-
cioso e não tímido, pois tem consciência de sua força. Faz-se temer pelos
animais.
2) Suas enfermidades naturais. Não se deve exagerá-las. A criança é melhor
protegida por suas mães do que os filhotes de outros animais. O velho, por ter
menos força, sofre menos necessidades. As doenças, enfim, são raras. Na verda-
de, são produzidas pela vida social. Quem leva um tipo de vida simples, não fica
doente. A natureza fez-nos para sermos sadios e é remédio melhor do que os dos
médicos. “O homem que medita é um animal depravado. ”
3) Verificação desta última tese:
Os animais, uma vez domesticados, degeneram. Os selvagens, de acordo
com os relatos de viajantes, possuem a vista, o ouvido e o olfato mais desenvol-
vidos do que nós. Todo ser vivo é, pois, pela sua natureza, fisicamente forte.

II) O homem psicológico

1) O homem possui, em comum com os animais, os sentidos de onde pro-


vêm as idéias; por meio deles, percebe e sente.
2) O que o distingue do animal é, em primeiro lugar, a liberdade; por ela, o .
homem quer e não quer; deseja e teme. Depois, a faculdade de aperfeiçoar-se e
INTRODUÇÃO 213

também de retrogradar; é a causa das infelicidades dos homens, que não soube-
ram permanecer nafelicidade do estado natural.
3) Asfaculdades intelectuais superiores nascem das faculdades inferiores.
a) A razão é posta em ação pelas paixões que, por sua vez, são suscitadas
pelas necessidades. As paixões elementares reduzem-se a três desejos e um
temor: o desejo de nutrição, o de reprodução e o de repouso; o temor da dor. O
homem, ignorante do que seria a morte, não poderia temê-la.
b) Essa opinião pode ser comprovada, de um lado, pela história do pro-
gresso intelectual, que está condicionado pelas paixões e pelas necessidades,
incessantemente aumentadas, do homem social; de outro lado, pela observação
dos selvagens, que não possuem desejos ou imaginação, e vivem inteiramente no
momento presente.
c) O progresso intelectual supõe trabalho, curiosidade, previdência — coi-
sas próprias não do homem natural mas do homem social. O progresso intelec-
tual supõe também duas condições que são as convenções sociais: a linguagem e
a divisão de terras.
4) Rousseau trata do problema da origem das línguas na intenção de pro-
var, de acordo com Condillac, que a língua supõe a sociedade e, portanto, não
pôde nascer naturalmente. Rousseau, consciente da dificuldade do problema e da
precariedade de todas as soluções, descreve os seguintes estágios na formação da
língua:
a) O grito é a primeira linguagem natural.
b) As inflexões da voz servem, pouco a pouco, para designar os objetos.
c) Surge, por fim, a instituição dos sinais, simbolizando as articulações da
voz. Limitada, a princípio, por palavras-frases, decompõe-se em infinitos e em
nomes próprios, depois estende-se aos adjetivos, que são abstrações, e às idéias
gerais. Compreende, então, as primeiras classificações lógicas e biológicas, como
as de Aristóteles.
5) Conclusão: a sociabilidade não está inscrita na natureza humana origi-
nal. O homem não tem necessidade de outrem. Não sofre nem a dor, nem a misé-
ria, que o tornariam digno de piedade. O estado de natureza caracteriza-se pela
suficiência do instinto, o estado de sociedade pela suficiência da razão.

III) O homem moral

1) Amoralismo integral: o homem não é então nem bom, nem mau, ignora
tanto as virtudes quanto os vícios. O estado de natureza é mais vantajoso para
ele e lhe proporciona maisfelicidade do que o estado social.
2) O primeiro princípio da moral natural: o instinto de conservação de si
mesmo. O erro de Hobbes, nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para
conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou torná-los
escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as
coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio univer-
sal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de
outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tar-
dias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não pode-
ria ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau.
214 INTRODUÇÃO

3) O segundo princípio da moral natural: a piedade.


O homem é naturalmente indulgente; a piedade é um movimento da nature-
za, anterior a qualquer reflexão. A prova disso pode ser encontrada no instinto
maternal, nos animais e, até, nos tiranos mais cruéis, que, naturalmente, sentiam
piedade pelos males que não tinham causado.
O erro de Mandeville reside em ter pensado que a piedade é uma virtude
social. Ora, a piedade é mais forte no estado de natureza, onde nos identificamos
espontaneamente com os infelizes, do que no estado social, no qual nos dirigimos
pela reflexão. A piedade espontânea do povo, e até da canalha, é superior à do
filósofo. A primeira inspira a máxima natural: “Alcança o teu bem, causando o
menor mal possível a outrem ”. A segunda produz a máxima razoável: “Faze a
outrem o que queres que te façam ”. A vantagem do segundo princípio — a pie-
dade — é que ele equilibra o primeiro — a conservação de si mesmo — e o
compensa.
4) As paixões: São mais violentas no estado de natureza. A paixão pela
alimentação pode ser facilmente satisfeita e, quando isso se dá, extingue-se. A
mesma coisa acontece com o amor. Tem-se de distinguir, no amor, o moral que
é fictício, nascido da sociedade, inventado pelas mulheres, e o físico, que é natu-
ral: “Qualquer mulher lhe serve ”. Comprovam-no, de um lado, os costumes dos
selvagens, a exemplo dos carcdbas, e, de outro, os animais: os combates entre os
machos só existem onde as fêmeas são menos numerosas. Ora, existem mais
mulheres do que homens.

Conclusão: Descrição recapitulativa do homem no estado de natureza.

B) A existência e a importância da desigualdade num tal estado de


natureza.

1) A desigualdade é quase nula no estado de natureza. Em nenhuma de


suasformas possui grande realidade ou influência.
2) A maioria das desigualdades resulta, com efeito, do hábito e da educa-
ção e, consequentemente, da sociedade que exercita ou não as forças do corpo e
as do espírito.
3) As desigualdades naturais, de início fracas e insignificantes, são multi-
plicadas pela sociedade que, de um lado, aumenta os desejos e, de outro, favorece
a cultura. Desse modo, só se notou a beleza depois de inventada pelo amor men-
tal, e também a servidão e a dominação decorrentes da força e da riqueza só vie-
ram a existir quando os homens convieram entre si quanto à sua dependência
múíua.

C) Transição para a segunda parte:

Falta, ainda, mostrar que a perfectibilidade e as virtudes sociais se desen-


volveram, que o homem se tornou sociável e mau. Uma tal mudança poderia não
se processar e permanecer o homem imutável no estado de natureza. E, também,
difícil e conjetural descrever como se originou o desenvolvimento. Escapam-nos
as causas mínimas que tiveram essas consequências consideráveis; elas consti-
tuem uma série de acasos.
INTRODUÇÃO 215

Rousseau descreve os cinco estágios pelos quais passou a humanidade no


seu desenvolvimento, caracterizando-se cada qual por um novo crescimento da
desigualdade. Entre eles, o estágio decisivo foi o da propriedade; dela vem todo
o mal, mas só foi inventada tardiamente e depois de longa evolução que a tornou
necessária.

A) O estado de natureza e os primeiros progressos.

1) Resumo da vida que levavam os homens no estado de natureza: vida


puramente animal, limitada às sensações puras “e com muita dificuldade
aproveitando-se dos dons que lhes oferecia a natureza”. Os acontecimentos prin-
cipais dessa vida eram a alimentação e a sexualidade, mas não implicavam
quaisquer relações contínuas dos humanos entre si.
2) Os primeiros progressos nasceram das dificuldades que se apresentam
no meio natural, particularmente por causa dos animais. Consistiram em exercí-
cios do corpo, na descoberta de armas naturais e nas primeiras disputas entre os
homens para proverem a subsistência.
3) Os primeiros progressos reforçam-se com a multiplicação rápida dos
seres humanos, que se espalham pelas mais diversas regiões do globo. A adapta-
ção às estações e às regiões leva à invenção da pesca, da caça, da vestimenta e
do fogo. Essas invenções suscitam a percepção confusa de novas relações, a for-
mação de uma consciência orgulhosa da superioridade humana sobre os animais
e, finalmente, a descoberta, feita por cada um, de que os outros pensam e agem
como ele, de que “o único móvel das ações humanas é o bem-estar ”.
4) Daí nascem os primeiros compromissos mútuos. O interesse comum,
mais freqüente do que a concorrência, ensina o homem a contar com a assis-
tência de seus semelhantes. Tais compromissos limitam-se ao presente, mas
ligam-se às primeiras manifestações da língua universal dos gestos e dos gritos,
que às vezes se completam por algumas articulações convencionais.
B) A Idade do Ouro.

1) Os primeiros progressos capacitaram os homens a conseguir outros mais


rápidos. Entre eles, a habitação é o mais importante. Teve três consequências
imediatas:
a) a constituição da família, que é a primeiraforma de sociedade;
b) a constituição de uma primeira forma de propriedade, pois foi mais fácil
ao homem construir uma choça para si do que desalojar uma família inteira da
que ocupa;
c) o desenvolvimento psicológico do homem, com o aparecimento do amor
conjugal e do amor paternal, e a diferenciação econômica dos sexos.
2) Os homens então utilizam seu tempo para procurar comodidades ignora-
das por seus antepassados: o aperfeiçoamento da linguagem, a princípio entre os
povos insulares, depois entre os continentais; a formação das primeiras nações,
o nascimento das relações de vizinhança — de um lado, o amor sentimental, a
noção de beleza, de ciúme; de outro, as reuniões comunitárias, os cantos e a
dança.
216 INTRODUÇÃO

3) Esse estado é a “verdadeira juventude do mundo ”; fica a meio caminho


entre a adolescência primitiva e a perversão atual. Já se vêem nele, porém, os ger-
mes dos males futuros: a estima e a consideração públicas surgem, então, crian-
do as primeiras desigualdades e os primeiros deveres de civilidade; são fontes de
contendas e de vingança. Introduz-se a moralidade: impõe-se a necessidade de
policiar os costumes e de punir os contraventores. O homem já pode ser conside-
rado cruel.

C) O primeiro progresso da desigualdade: a propriedade.

A invenção da propriedade suscita, de um lado, a existência da primeira


grande desigualdade, a que separa os ricos dos pobres e, de outro lado, a forma-
ção das primeiras sociedades civis, baseadas em leis.

1) A desigualdade entre ricos e pobres.

a) Causas: o desenvolvimento da metalurgia e da agricultura. A arte de tra-


balhar o ferro foi a primeira a ser inventada, por ocasião de uma erupção vulcâ-
nica. Tornou-se, então, necessário um aumento da produção do trigo para ali-
mentar os trabalhadores metalúrgicos e para ter-se alguma coisa a trocar com os
objetosfabricados.
b) Consequências: a cultura das terras leva à sua divisão: sua posse contí-
nua, por aquele que as trata, transforma-se no direito de propriedade. A desigual-
dade dos talentos naturais é multiplicada pelo rendimento do trabalho. Os mais
corajosos ou mais atilados tornam-se os mais ricos. Desenvolvem-se as artes, as
riquezas e as línguas.
c) Quadro da humanidade nesse estado: a igualdade desapareceu, o traba-
lho tornou-se necessário, o desenvolvimento das faculdades psíquicas leva à dis-
tinção entre o que é e o que parece ser; a sociedade impõe-nos parecermos coisa
diferente do que somos. O homem torna-se escravo de suas necessidades e de
seus semelhantes. A riqueza suscita a ambição, a concorrência, a rivalidade de
interesses, a herança, a dominação universal.

2) A formação da sociedade e das leis.

a) Sendo a força insuficiente para conservar o que adquiriu, o rico, a fim de


legitimar sua posse, imagina dar aos homens máximas e instituições além das
naturais.
Daí a formação de associações e de governantes; daí a perda da liberdade e
do direito natural.
b) Imediatamente as sociedades multiplicam-se e cobrem a terra. Mas, se o
direito civil mantém a ordem no interior de uma sociedade, o direito natural sub-
siste nas relações das sociedades entre si. Daí as guerras nacionais.
c) Podem-se propor outras hipóteses para explicar a formação da socieda-
de. Essa é a mais natural. Isso porque a conquista não é viável sem convenções,
a riqueza é a primeira forma da conquista e a convenção, que fundamenta a
sociedade, é mais vantajosa para o rico do que para o pobre, que nada tem a
perder.
INTRODUÇÃO 217

D) O segundo progresso da desigualdade: os magistrados.

Ao criar os magistrados, a sociedade produziu uma segunda grande desi-


gualdade: a dos poderosos e a dos fracos.
1) A insuficiência do primeiro pacto — pelo qual os indivíduos se consti-
tuem em sociedade — traz consigo a necessidade de um segundo pacto — pelo
qual a sociedade dá a si mesma um Governo. Com efeito, a obra política não
deve ser abandonada ao acaso, nem deixar oportunidade para fraquezas e revol-
tas. Há necessidade de magistrados para fazer observar as deliberações do povo,
mas, inversamente, os chefes são feitos para defender a liberdade dos povos, não
para avassalá-los.
2) Neste ponto, são múltiplos os erros dos teóricos políticos:
a) Uns falam de uma tendência natural do homem para a servidão, por
confundirem o estado atual com o estado original.
b) Outros baseiam o poder político numa extensão do poder paterno,
enquanto se deu justamente o contrário: a permanência da autoridade paterna e
seu rigor provieram do regime social.
c) Não somente o Governo não pode deixar de basear-se numa conven-
ção, como ainda essa convenção só é válida quando compromete as duas partes
e respeita, no futuro, sua liberdade. O erro de Pufendorf reside em ter acreditado
que se pode alienar tanto a liberdade quanto os bens. Ora, a liberdade é um dom
da natureza e, se apesar de mim continuo senhor de mim mesmo, com muito
mais razão não posso alienar a liberdade de meus descendentes.
3) Esse estágio não é, pois, o do poder arbitrário, mas o de um pacto entre
o povo e seus chefes, sob leis fundamentais. Essas leis fundamentais foram reco-
nhecidas pelos próprios chefes, como, por exemplo, Luís XIV. Quando se rom-
pem as leis, efetiva-se imediatamente a volta à liberdade; nisso se fundamenta o
direito de abdicar. Todavia, a razão mostra-se insuficiente parafundar a socieda-
de, é necessária a intervenção da vontade divina. A religião completa a sociabili-
dade: “Poupa ainda mais sangue do que o fanatismo faz derramar ”.
4) As várias formas de governo estão em função do grau de desigualdade.
A desigualdade com lucro de um só leva à monarquia; com lucro de alguns, à
aristocracia; com lucro do maior número, à democracia. As magistraturas são
eletivas; a riqueza, o talento ou a idade favorecem-lhe o acesso, porém os abusos
das competições suscitam, por reação, a constituição de poderes hereditários: os
reis tornam-se deuses, os súditos escravos e, assim, dá-se a passagem ao estágio
seguinte.

E) O terceiro e último progresso da desigualdade: o despotismo.

A mudança do poder legítimo em poder arbitrário provoca o aparecimento


da terceira grande forma de desigualdade: a do senhor e do escravo.
1) Essa mudança é necessária. As distinções políticas acarretam distinções
civis, que são reforçadas pelas paixões de cada um. Por exemplo, o usurpador é
obrigado a dar uma parte do poder a seus cúmplices e, para fazer com que seus
súditos se esqueçam da servidão, leva-os a guerras de dominação sobre outros
povos.
2) Há quatro espécies de desigualdade: a das qualidades naturais, única
natural; a do poderio; a da nobreza e de classe; e a da riqueza. Constituem a
218 INTRODUÇÃO

causa do progresso humano, tanto no que tem de bom quanto no que tem de
mau, mas engendram mais males do que bens.
3) Retrato da humanidade no seu último estágio. Rousseau, sem o dizer,
descreve o quadro do Antigo Regime: opressão, impostos, guerras, duelos, frivo-
lidade de costumes, luxo e estetismo.
4) O despotismo fecha o círculo da evolução. Com efeito, reencontra todos
os caracteres do estado de natureza: os homens, então, são iguais por não vale-
rem nada: o direito do mais forte vence; a moralidade reduz-se a uma obediência
cega; não existe mais virtude de costumes, nem noção do bem. Um tal estado
legitima todas as revoluções.

Conclusão geral:

A desigualdade não é legítima do ponto de vista natural.


1) Segundo a reflexão ensina, houve uma alteração da alma e das paixões
humanas, chegando à transformação da natureza; o homem natural desapareceu
gradativamente e cedèu lugar a agrupamentos de homens artificiais e de paixões
fictícias sem fundamento na natureza.
2) A observação confirma-o: o homem selvagem conhece o repouso e a
liberdade: seu próprio testemunho basta-lhe para ser feliz. Não possuem sentido,
para ele, as palavras poderio e reputação. O homem policiado conhece o traba-
lho e a escravidão. Só é feliz pelo testemunho de outrem. Vive para as aparên-
cias: suas virtudes, no fundo, não passam de vícios disfarçados.

Importância do discurso
1) Diferentemente do primeiro discurso, o Discurso sobre a Desigualdade
não foi premiado pela Academia de Dijon. Conferiu-se o prêmio a outro discur-
so, que foi impresso, de autoria do Padre Talbert, notável autor de sermões, de
inúmeros elogios, de peças e de poesias, e frequentemente laureado pelas acade-
mias de província. O Padre Talbert e suas obras há muito tempo caíram no mais
completo esquecimento. Do mesmo modo, a Dedicatória à República de Gene-
bra não produziu, naquela cidade, o efeito esperado por Rousseau, como o prova
uma carta a Perdriau, datada de 28 de novembro de 1754. O autor, com efeito,
descrevera muito mais a cidade de seus sonhos do que a realidade da vida polí-
tica genebrina e até incorrera em certos erros no quadro dessa vida, que
esboçara.
2) Mas, ao contrário do primeiro discurso, o segundo encontrou, não
somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal.
Mornet, que passou em revista quinhentas bibliotecas particulares do século
XVIII, nelas encontrou somente quinze vezes o primeiro discurso, enquanto o
segundo aparece setenta e seis vezes, e a Nova Heloísa, cento e sessenta e cinco
vezes. Em dois pontos especiais, a repercussão do discurso foi considerável: a)
Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura, o mito do selvagem livre,
feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à
vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a darforma à doutrina da igualda-
de, ao ideal de vida comunitária, que foi o dos espartanos e dos primeiros
cristãos.
INTRODUÇÃO 219

3) Enquanto o escritor quase renegou o primeiro discurso, o segundo marca


um ponto decisivo na evolução de suas idéias, levando-o a colocar um problema
muito mais geral, que somente o Contrato Social resolverá. Esta última obra co-
meça do seguinte modo: “O homem nasceu livre e em todo lugar encontra-se a
ferros. O que se crê senhor dos demais não é menos escravo do que eles. Como
adveio tal mudança? Ignoro-o. Que pode legitimá-la? Creio poder resolver a
pergunta”. O Discurso sobre a Desigualdade estuda a questão de fato; suas
conclusões são hipotéticas. O Contrato Social estudará a questão de direito, a
única interessante e verdadeiramente rigorosa. Quaisquer que sejam, porém, as
revisões que o Contrato Social traga ao pensamento de Rousseau, este, com o
segundo discurso, livra-se da influência demasiado forte de Diderot e conquista
sua autonomia. Diderot, e com ele os enciclopedistas, pensavam que a sociabili-
dade representa uma tendência da natureza humana: a sociedade é natural. É
inútil o contrato social no sentido em que Rousseau o entenderá; só haverá
necessidade do contrato para escolher o regime político de uma sociedade já
constituída; finalmente, a sociedade tornou-se má e corrompeu o homem, mas o
homem pode ainda salvar-se por meio de uma reforma individual, por uma volta
à verdadeira natureza original, pela restauração do direito natural. Rousseau,
pelo contrário, afirma aqui que o estado social é contra a natureza; que toda
associação tem como origem uma convenção; que, antes do contrato instituindo
um Governo, necessita-se de um contrato instituindo a sociedade; que nossa
natureza, fundamentalmente boa, está irremediavelmente corrompida. A vontade
individual perdeu sua retidão natural e não pode tomar a iniciativa de uma
redenção que só poderá vir de uma luz superior: a vontade geral. É isso que o
Contrato Social afirmará. O segundo discurso leva-nos, pois, ao seguinte ponto:
o estado de natureza não poderia subsistir eterna e imutavelmente: impunha-se
que as tendências ao aperfeiçoamento acabassem por desenvolver-se no homem
natural, mas não era necessário que se desenvolvessem numa direção determi-
nada. A via que a humanidade tomou resulta, na realidade, defatos contingentes.
Essas tendências desenvolveram-se ao acaso, ao sabor do arbítrio — daí adveio
o mal —, mas poderíam e deveríam ter sido dirigidas durante seu desenvolvi-
mento; desse modo, o bem teria sido conservado. Qual a direção que se deve
impor às tendências naturais por ocasião da passagem para o estado social? Essa
é a questão que resta a resolver depois do Discurso sobre a Origem da
Desigualdade.
DISCURSO SOBRE A SEGUINTE QUESTÃO,
PROPOSTA PELA ACADEMIA DE DIJON:
QUAL É A ORIGEM DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS,
E É ELA AUTORIZADA PELA LEI NATURAL?

Non in depravatis, sed in his quae bene secundum naturam


se habent, considerandum est quid sit naturale'.
Aristóteles, Política, Livro I, cap. II.

1 “Não é entre os povos depravados, mas entre os que bem se conformam à natureza, que se deve examinar
o que é natural.” Aristóteles, Política, Livro I, cap. II. (N. de P. A.-B.)
AD\ ERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS

Juntei algumas notas a este trabalho, de acordo com meu hábito preguiçoso
de trabalhar em intervalos irregulares. Essas notas2, por vezes, distanciam-se
bastante do assunto e não servem, por isso, para serem lidas com o texto. Colo-
quei-as, pois, no fim do Discurso, no qual me esforcei por seguir, do melhor
modo que pude, o caminho mais reto. Os que tiverem a coragem de recomeçar
poderão distrair-se, na segunda vez, levantando a caça e tentando percorrer as
notas. Não terá importância que os outros não as leiam.

Essas notas de Rousseau, seriadas por letras, encc.ntram-se nas páginas 295-320. (N. do E.)
A Re pu b l ic a d e Ge n e b r a

Magníficos, Honradíssimos e Soberanos Senhores

Convencido de que só ao cidadão vossos muros, teria acreditado não


virtuoso cabe prestar à sua pátria as poder isentar-me de oferecer esse qua-
honras que ela possa consentir, há trin- dro da sociedade humana^ àquele,
ta anos esforço-me por merecer ofere- dentre todos os povos, que me parece
cer-vos uma homenagem pública. Esta possuir as suas maiores vantagens e
feliz ocasião substituindo em parte o melhor ter prevenido os seus abusos.
que meus esforços não puderam fazer, Se tivera de escolher o lugar de meu
acreditei ser-me permitido aqui levar nascimento, teria escolhido uma socie-
em consideração mais o zelo que me dade de tamanho limitado pela exten-
anima do que o direito que deveria são das faculdades humanas \ isto é,
autorizar-me. Tendo a felicidade de pela possibilidade de ser bem gover-
haver nascido entre vós, como poderia
nada e na qual, bastando cada um a
meditar sobre a igualdade que a natu-
reza estabeleceu entre os homens e seus encargos, ninguém fosse obrigado
sobre a desigualdade instituída por eles a incumbir outros das funções de que
sem pensar na profunda sabedoria com fora encarregado; um Estado no qual
a qual uma e outra, felizmente combi- todos os particulares se conhecessem
nadas neste Estado, concorrem, da entre si, onde as manobras obscuras do
maneira mais próxima à lei natural e vício e a modéstia da virtude não
mais favorável à sociedade3, para a pudessem furtar-se aos olhos e ao jul-
manutenção da ordem pública e a feli- gamento do público, e onde esse hábito
cidade dos particulares? Procurando agradável de ver-se e de conhecer-se
as melhores máximas que o bom senso transformasse o amor da pátria em
possa ditar acerca da constituição de
um Governo, fiquei tão impressionado 4 Em oposição ao homem no estado de natu-
de vê-las todas em execução no vosso, reza, antes de qualquer sociedade, e cujo retra-
que, mesmo sem ter nascido dentro de to Rousseau fará. (N. de P. A.-B.)
5 Confrontar: l.°) com a descrição da verda-
deira ignorância que “consiste em limitar sua
3 É uma aplicação imediata da citação de curiosidade à extensão das. faculdades que se
Aristóteles, colocada em epígrafe, e um anún- receberam” (Carta ao Rei da Polônia); 2.°)
cio da segunda frase do Contrato Social: com a condição necessária para qualquer
“Esforçar-me-ei sempre nessa procura para democracia: “Um Estado muito pequeno, no
unir aquilo que o direito permite ao que o inte- qual seja fácil reunir o povo e onde cada cida-
resse prescreve, a fim de que não fiquem sepa- dão possa, sem esforço, conhecer os demais”.
radas a justiça e a utilidade”. (N. de P. A. B.) (Contrato Social, III, IV.) (N. de P. A. B.)
224 ROUSSEAU

amor dos cidadãos, mais do que em no Estado8 pudesse considerar-se


amor da terra. acima da lei, e que ninguém de fora
Teria desejado nascer num país no pudesse impor-se-lhe, sendo o Estado
qual o soberano 6 e o povo não pudes- obrigado a reconhecê-lo, pois, seja
sem alimentar senão um único e qualfor a constituição de um Governo,
mesmo interesse, a fim de que todos os se encontrarmos um único homem que
movimentos da máquina1 tendessem não se submeta à lei, todos os outros
somente para a felicidade comum. Não estarão certamente à discrição dele
podendo tal coisa suceder, a menos (a)10 e, se houver um chefe nacional e
que o povo e o soberano não sejam um outro estrangeiro, seja qual for a
senão uma mesma pessoa, conclui-se divisão de autoridade que possam efe-
que eu desejaria ter nascido sob um tuar, é impossível que um e outro con-
governo democrático, sabiamente sigam ser bem obedecidos, e o Estado
equilibrado. bem governado.
Teria desejado viver e morrer livre, Não desejaria, de modo algum,
isto é, de tal modo submetido às leis7 8* morar numa república de instituição
que nem eu, nem ninguém, pudesse nova31, ainda que tivesse leis boas,
sacudir o honroso jugo, esse jugo salu- temendo que o Governo, constituído
tar e suave que as cabeças mais orgu- talvez de modo diferente daquele que
lhosas tanto mais docilmente supor- devesse ser para o momento, não con-
tam, quanto mais afeitas são a não viesse aos novos cidadãos, ou os cida-
suportar qualquer outro. dãos ao novo Governo, e ficasse o Es-
Teria, pois, desejado que ninguém tado sujeito a abalar-se e destruir-se
quase desde o nascimento. Porque
acontece com a liberdade o que se dá
6 Para Rousseau, o soberano não é, como se
entende na linguagem corrente, uma pessoa, o com esses alimentos sólidos e suculen-
rei, o imperador. É o povo, na medida em que tos ou com esses vinhos generosos,
faz as leis, o aspecto ativo do corpo político; o apropriados para nutrir e fortificar os
Estado é seu aspecto passivo, o povo enquanto temperamentos robustos que têm o há-
observa as leis. (Cf. Contrato Social, I, VI.)
(N. de P. A.-B.)] No trecho em questão, Rous-
bito deles, mas que abatem, arruinam e
seau usa o termo em sentido propositadamente
ambíguo — primeiro, opõe soberano a povo, 9 Notar a progressão das idéias: o segundo
para, depois, indicar como, a fim de satisfazer parágrafo do texto falava do lugar de nasci-
aos anseios de felicidade comum, se impõe mento; o terceiro, da região; alcançamos,
identificar as duas entidades “numa mesma agora, um corpo social inteiramente organi-
pessoa”. É o princípio democrático, que, con- zado — o Estado. (N. de P. A.-B.)
tudo, neste passo Rousseau apresenta com I 0 Rousseau visa a teoria de Hobbes. Segun-
todas as cautelas, como o governo adequado a do Hobbes, o Estado pode ter como origem
“uma sociedade de tamanho limitado”, concre- uma convenção, um contrato, pelo qual cada
tamente à República de Genebra. (N. de L. G. cidadão renuncia a todos os seus direitos,
menos a um; o chefe conserva, pois, todos os
7 No vocabulário de Descartes, o corpo é seus direitos naturais e, por isso, exerce um
uma máquina, pois todos os seus movimentos poder absoluto sobre todos os cidadãos. No
podem ser explicados mecanicamente. Rous- artigo Economia Política, Rousseau mostrará
seau esboça aqui a metáfora biológica que será pormenorizadamente por que se impõe substi-
desenvolvida no artigo Economia Política: a tuir a submissão de todos a um só, pela sub-
sociedade possui a mesma organização que um missão de todos, também compreendendo os
corpo vivo. (N. de P. A.-B.) chefes, ao governo e à lei. (N. de P. A.-B.)
8 É a definição da liberdade civil, diferente da II Uma república de instituição nova. Com
liberdade natural. A liberdade civil é a trans- efeito, para Rousseau não existe sociedade
posição dessa última ao estado social. (Cf. natural. Todas elas são instituídas por uma
Contrato Social, I, VIII.) (N. de P. A.-B.) convenção. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 225

atordoam os fracos e delicados, que uma república que de modo algum ten-
absolutamente não lhes são afeitos. Os tasse a ambição de seus vizinhos e que
povos, uma vez acostumados a possuí- com justiça pudesse contar, na necessi-
rem senhores, não conseguem viver dade, com socorro. Conclui-se que,
sem eles. Se tentam sacudir o jugo, numa posição tão feliz, ela nada teria a
distanciam-se a tal ponto da liberdade temer a não ser de si mesma e que, se
que, tomando por ela uma licença esses cidadãos fossem adestrados nas
desenfreada que lhe é oposta, as suas armas, antes seria para manter entre
revoluções quase sempre os entregam a eles o ardor guerreiro e a altivez da
sedutores que só fazem agravar suas coragem, que assentam tão bem à
cadeias. O próprio povo romano, esse liberdade e alimentam o seu gosto, do
modelo de todos os povos livres, não que pela necessidade de atender à pró-
foi capaz de governar-se ao sair da pria defesa.
opressão dos Tarqüínios. Aviltados Teria procurado um país no qual o
pela escravatura e pelos trabalhos direito de legislação fosse comum a
ignominiosos que eles lhes impuseram, todos os cidadãos'12, pois quem me-
a,princípio não foi senão a uma popu- lhor do que eles pode saber quais as
laça estúpida que se precisou dirigir e condições em que lhes convém viver
governar com a maior sabedoria a fim juntos numa mesma sociedade? Mas
de que, acostumando-se pouco a pouco não aprovaria plebiscitos como os dos
a respirar o ar salutar da libeídade, romanos, nos quais os chefes de Esta-
essas almas abatidas, ou antes, embru- do e os mais interessados em sua
tecidas pela tirania, adquirissem paula- conservação estavam excluídos das
tinamente a severidade de costumes e a deliberações de que frequentemente
altivez da coragem, que por fim o tor- dependia a sua salvação, e, por incon-
nariam o mais respeitável de todos os seqüência absurda, privavam-se os ma-
povos. Eu teria, pois, procurado para gistrados dos direitos usufruídos pelos
minha pátria uma república feliz e simples cidadãos.
tranquila, cuja ancianidade de certo Teria desejado, pelo contrário, para
modo se perdesse na noite dos tempos, sustar os projetos interessados e mal
que só tivesse experimentado os golpes
necessários para suscitar e fortalecer 12 Não é exato para a Genebra de então. A
em seus habitantes a coragem e o amor população dividia-se aí em quatro classes,
pela pátria, e na qual os cidadãos, desiguais em seus direitos, sob todos os aspec-
habituados de há muito a uma inde- tos. Somente a classe dos cidadãos ou burgue-
pendência sábia, fossem não somente ses, que correspondia a 1 600 pessoas em
24 000 habitantes, tinha entrada no Conselho
livres mas dignos de sê-lo. Geral, depositário do poder legislativo. Mesmo
Desejaria ter escolhido para mim esse Conselho Geral, depois das reformas
uma pátria despida, por feliz impotên- introduzidas por Calvino (1541-43), perdera a
cia, do feroz amor das conquistas, e iniciativa das leis e a designação direta dos
síndicos, em favor de Conselhos restritos,
garantida, por situação ainda mais recrutados por cooptação e representação da
feliz, do temor de tornar-se suscetível Igreja. Aliás, toda a história de Genebra é
da conquista por um outro Estado; marcada pela luta entre o governo da Igreja e a
uma cidade livre, colocada entre nume- assembléia popular. Rousseau é, pois, exces-
rosos povos, nenhum dos quais com sivo em seus elogios e, por isso, eles seriam
mal-acolhidos na própria Genebra. Rousseau
interesse de invadi-la e cada um dos mudaria de opinião sobre Genebra e denun-
quais com interesse de impedir os de- ciaria o poder arbitrário dos síndicos na Séti-
mais de invadi-la; em uma palavra, ma Carta da Montanha. (N. de P. A.-B.)
226 ROUSSEAU

concebidos, e as inovações perigosas ainda um dos vícios que puseram a


que, por fim, puseram a perder os perder a república de Atenas.
atenienses, que cada um não possuísse Teria, porém, escolhido aquela na
o poder de propor novas leis segundo qual os particulares, contentando-se
sua fantasia, que esse direito perten- em dar sanção às leis e em decidir,
cesse somente aos magistrados, que até enquanto corpo e segundo o parecer
eles o usassem com circunspecção, que dos chefes, os mais importantes negó-
o povo, por sua parte, mostrasse tanta cios públicos, estabelecessem tribunais
reserva ao dar seu consentimento a respeitados; distinguissem com cuida-
essas leis, e sua promulgação só se do os vários departamentos; elegessem
pudesse fazer com tanta solenidade cada ano os mais capazes e os mais ín-
que, antes de ser a constituição des- tegros de seus concidadãos para admi-
truída, contassem com tempo de se nistrar a justiça e governar o Estado, e
convencerem de que sobretudo a gran- na qual, assim prestando a virtude dos
de antiguidade das leis é que as torna magistrados testemunho da sabedoria
santas e veneráveis, de que o povo logo do povo, aqueles e este se honrassem
despreza aquelas que vê mudar todos mutuamente. De modo que, se algum
os dias e de que, habituando-se a dia funestos mal-entendidos viessem a
menosprezar os usos antigos a pretexto turvar a tranquilidade pública, até
de melhorá-los, frequentemente se in- esses tempos de cegueira e de erros se
troduzem grandes males para corrigir caracterizariam por provas de modera-
outros menores1 3. ção, de estima recíproca e de um res-
Teria evitado, sobretudo, como ne- peito comum pelas leis, que equivalem
cessariamente mal governada, uma a prenúnctos e garantias de uma recon-
república cujo povo, acreditando poder ciliação sincera e perpétua.
dispensar os magistrados ou conceder- Tais são, Ma g n íf ic o s , Ho n r a -
lhes apenas uma autoridade precária, d ís s im o s e So b e r a n o s Se n h o r e s , as
reservasse imprudentemente para si a vantagens que eu procuraria na pátria
administração dos negócios civis e a que escolhesse para mim. Se a Provi-
execução de suas próprias leis1 4; tal dência lhe acrescentara uma localiza-
deve ter sido a constituição grosseira ção encantadora, um clima temperado,
dos primeiros governos imediatamente uma terra fértil e a perspectiva mais
saídos do estado de natureza e tal foi deliciosa que existisse sob o céu, eu
não desejaria, para rematar a minha
felicidade, senão gozar todos esses
13 Manifesta-se aqui, plenamente, o conser- bens no seio dessa pátria feliz, vivendo
vantismo de Rousseau. Confronte-se com a
definição que dá Montesquieu da boa lei — é tranquilamente numa agradável socie-
aquela que resistiu à prova dos tempos. (N. de dade com meus concidadãos, prati-
P. A.-B.j [Consequentemente, não há confun- cando com eles, e segundo seu exem-
dir o conservantismo de Rousseau com o dese- plo, a humanidade, a amizade e todas
jo de conservar uma ordem injusta e fundada as virtudes, e deixando após mim a
na desigualdade, posto que se formula, explici-
tamente, como o desígnio de permitir que, honrada memória de um homem de
numa sociedade de homens livres e iguais, bem e de um patriota honesto e
ajam as forças de estabilidade social, evitando virtuoso.
a desorganização e as mudanças a esmo. (N. Se, menos feliz ou muito tardia-
de L. G. M.)]
1 4 Essa é a distinção fundamental entre sobe- mente prudente, eu me visse reduzido a
rano e governante sobre a qual repousará o acabar em outros climas uma carreira
Contrato Social. (N. de P. A.-B.) insegura e fraca, lastimando inútil-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 227

mente o repouso e a paz de que me pri- sois nem suficientemente ricos para
vara uma juventude imprudente, pelo enlanguescer-vos com a preguiça e per-
menos alimentaria em minha alma der com delícias vãs o gosto da verda-
esses mesmos sentimentos que não deira felicidade e o das virtudes sóli-
poder ia ter aproveitado em meu país, das, nem tão pobres para necessitardes
e, imbuído de uma terna e desinte- de socorro estrangeiro que vossa in-
ressada afeição por meus concidadãos dústria não exige. E quase nada vos
distantes, dirigir-lhes-ia, do fundo de custa conservar essa liberdade precio-
meu coração, mais ou menos o se- sa, que só se alcança nas grandes
guinte discurso: nações com impostos exorbitantes.
“Meus caros concidadãos, ou antes, “Possa durar sempre, para a felici-
meus irmãos, uma vez que tanto os dade de seus cidadãos e exemplo dos
laços de sangue quanto as leis nos povos, república tão sábia e felizmente
unem quase que a todos, é-me agradá- constituída! Tal o único voto que vos
vel não poder pensar em vós sem ao falta fazer e o único cuidado que vos
mesmo tempo pensar em todos os bens resta a tomar. E, só a vós, de agora em
de que gozais e cujo valor talvez ne- diante, caberá, não constituir vossa
nhum de vós alcança melhor do que felicidade' 5, pois vossos antepassados
eu, que os perdi. Quanto mais reflito já vos pouparam esse trabalho, mas
sobre vossa situação política e civil, sim torná-la duradoura pela sabedoria
menos consigo imaginar que a natu- que tiverdes de bem utilizar-vos dela. É
reza das coisas humanas possa com- da vossa união perpétua, de vossa
portar outra melhor. Em todos os de- obediência às leis, do respeito que
mais governos, quando se trata de tiverdes pelos seus ministros, que de-
assegurar o maior bem do Estado, penderá vossa conservação. Se subsis-
iodas as coisas se limitam sempre a tir entre vós o menor germe de amar-
projetos de idéias ou, pelo menos, a gor ou de desconfiança, apressai-vos
simples possibilidades; em vosso caso, em destruí-lo como um fermento funes-
vossa felicidade é completa — basta to, do qual, cedo ou tarde, resultariam
somente usufruir dela — e, para vos vossas infelicidades e a ruína do Esta-
tornardes bastante felizes, basta so- do. Conjuro-vos a que penetreis todos
mente contentar-vos com sê-lo. Vossa o fundo de vosso coração e consulteis
soberania adquirida ou conquistada à a voz secreta de vossa consciência' 6.
ponta de espada e conservada, durante Alguém dentre vós conhecerá no uni-
dois séculos, graças a vosso valor e verso corpo mais íntegro, mais esclare-
sabedoria, é enfim plena e universal- cido, mais respeitável do que o de vos-
mente reconhecida. Tratados dignos sos magistrados? Todos os seus
fixam vossas fronteiras, asseguram membros não vos dão o exemplo de
vossos direitos e fortalecem vosso moderação, de simplicidade de costu-
repouso. Vossa constituição é excelen- mes, de respeito pelas leis e de reconci-
te, ditada pela mais sublime razão e liação a mais sincera? Rendei, pois,
garantida por potências amigas e res- sem reservas, a chefes tão sábios, esta
peitáveis; vosso Estado é tranquilo,
não tendes nem guerras, nem conquis- 1 5 Rousseau é obsediado pela palavra “felici-
tadores a temer, não conheceis outros dade”, que incessantemente aparece nessa
Dedicatória, e, neste trecho, é repetida três
senhores senão as sábias leis que fizes- vezes em doze linhas. (N. de P. A.-B.)
tes, administradas por magistrados ín- 1 6 Alusão à especificidade e à condição de
tegros que são de vossa escolha; não inata da consciência moral. (N. de P. A.-B.)
228 ROUSSEAU

confiança salutar que a razão deve à contínuos e extemporâneos não se


virtude; pensai que eles são de vossa fazem sequer ouvidos quando necessá-
escolha, que eles a justificam e que as rios. ”
honras, devidas àqueles que consti- E vós, Ma g n íf ic o s e Ho n r a -
tuístes em dignitários, recaem necessa- d ís s im o s Se n h o r e s , v ó s , dignos e
riamente sobre vós mesmos. Nenhum respeitáveis magistrados de um povo
de vós será pouco esclarecido a ponto livre, permiti-me particularmente ofe-
de ignorar que, onde cessa o vigor das recer-vos minhas homenagens e meus
leis e a autoridade de seus defensores, respeitos. Se houver, nesse mundo,
não pode existir segurança' 7 ou liber- posição propícia a honrar aqueles que
dade para ninguém. De que se trata, a ocupam, será, sem dúvida, a atri-
pois, em vosso caso, senão de fazer, de buída pelo talento e pela virtude, aque-
boa vontade e com sincera confiança, la de que' vos tornastes dignos e à qual
o que sempre seríeis obrigados a fazer fostes elevados pelos vossos concida-
por um interesse verdadeiro, por dever dãos. Seu próprio mérito ainda acres-
e pela razão?''8 Que uma culposa e centa ao vosso um brilho novo e, esco-
funesta indiferença pela manutenção lhidos por homens capazes de
da constituição não vos leve jamais a governar outros, para a eles próprios
desprezjar, quando necessário, as opi- governar, eu vos considero tão acima
niões sábias dos mais esclarecidos e dos outros magistrados quanto um
dos mais zelosos dentre vós, mas que a povo livre, principalmente o povo que
eqüidadç, a moderação, a mais respei- tendes a honra de conduzir, fica, por
tosa firmeza, continuem a regula- suas luzes epor sua razão'' 9, acima da
mentar vossas decisões e a mostrar em populaça dos outros Estados.
vós, para todo o universo, o exemplo Que me seja permitido citar um
de um povo altivo e modesto, tão cioso exemplo do qual deveríam restar vestí-
de sua glória quanto de sua liberdade. gios mais firmes e que estará sempre
Livrai-vos, sobretudo, e este será meu presente no meu coração. Nunca deixo
último conselho, de jamais ouvir inter- de lembrar-me, com a mais agradável
pretações sinistras e discursos envene- emoção, da memória do virtuoso cida-
nados, cujos motivos secretos são dão a quem devo a luz e que, frequen-
frequentemente mais perigosos do que temente, alimentou minha infância
as ações que representam seu objeto. com o respeito que vos era devido. Eu
Todas as casas despertam e se mantêm o vejo ainda vivendo do trabalho de
alarmadas aos primeiros sinais de um suas mãos e alimentando sua alma
guarda fel e bom, que só ladra quando com as mais sublimes verdades. Vejo
se aproximam os ladrões, mas odeia-se Tácito, Plutarco e Grócio misturados,
o oportunismo desses animais baru- à sua frente, com os instrumentos do
lhentos que incessantemente atrapa- ofício20. Vejo a seu lado um flho que-
lham o repouso público e cujos avisos
19 As luzes correspondem aos talentos; a
razão, à virtude. (N. de P. A.-B.)
1 7 A segurança é tão importante, para Rous- 20 Rousseau alude a seu pai e a suas leituras
seau, quanto a liberdade. As duas vantagens da juventude. Tácito é o historiador dos pri-
do contrato social consistem em oferecer, a meiros tempos do Império romano; Plutarco, o
cada cidadão, a segurança de vida e em garan- autor da Vida dos Homens Ilustres da antigui-
tir a posse de seus bens. (N. de P. A.-B.) dade; Grócio, jurisconsulto e historiador ho-
1 8 A edição original e a de Genebra dizem landês, que viveu em França na corte de Luís
“par devoir et pour la raison A edição de XIII, é o autor do Direito da Guerra e da Paz;
1801 diz “par devoir et par raison". (N. de P. Rousseau formou seu pensamento político par-
A.-B.) tindo dessas obras. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 229

rido recebendo, com frutos bem par- prazer, ama naturalmente respeitar-
cos, as instruções ternas do melhor dos vos, e os mais ardentes em sustentar
pais. Se os desvarios de uma juventude seus direitos são os mais inclinados a
louca me fizeram, durante um certo respeitar os vossos.
tempo, esquecer lições tão sábias, Não surpreende que os chefes de
tenho afelicidade de, por fim, demons- uma sociedade civil prezem-lhe a gló-
trar que, ainda que se tenha alguma ria e a felicidade; mas chega a inquie-
tendência para o vício, dificilmente tar os homens testemunharem que os
ficará perdida para sempre uma educa- que se consideram magistrados, ou
ção na qual o coração estiver presente. antes, os senhores de uma pátria mais
Tais são, Ma g n íf ic o s e Ho n r a - santa e mais sublime, demonstrem
d ís s im o s Se n h o r e s , o s cidadãos algum amor pela pátria terrestre que os
e até os simples habitantes nascidos no alimenta. Como me é agradável poder
Estado em que governais; tais são abrir em nosso favor exceção tão rara
esses homens instruídos e sensatos dos e colocar, à altura de nossos melhores
quais, sob o nome de operários e de cidadãos, esses depositários zelosos
povo, se têm nas outras nações idéias dos dogmas sagrados autorizados
tão baixas e falsas. Meu pai, confesso- pelas leis, esses veneráveis pastores de
o com alegria, não se distinguiria de almas, cuja eloquência viva e agradá-
modo algum entre seus concidadãos, vel leva com mais facilidade ao cora-
não era mais do que todos eles eram, e, ção as máximas do Evangelho, posto
tal como era, não havia região em que que sempre começam por praticá-las
o seu convívio não fosse procurado, eles mesmos / Todo o mundo sabe com
cultivado, mesmo com proveito, pelas que sucesso a grande arte da tribuna é
pessoas mais honestas. Não me cabe, cultivada em Genebra. Mas, acostu-
e, graças ao céu, não tenho necessi- mados demais a ouvir dizer de um
dade de falar-vos da consideração que modo e ver agir de outro, poucas pes-
podem esperar de vós homens dessa soas sabem até que ponto reinam entre
têmpera — vossos iguais tanto pela nossos ministros21 o espírito do cris-
educação quanto pelos direitos da tianismo, a santidade dos costumes, a
natureza e do nascimento, vossos infe- severidade para consigo mesmo e a
riores por vontade própria —, pela suavidade para com o próximo. Talvez
preferência que devem a vosso mérito, caiba somente à cidade de Genebra
que reconheceram, e pelo qual, por mostrar o exemplo edificante de união
vossa vez, lhes deveis certo reconheci- tão perfeita numa sociedade de teólo-
mento. Sei, com viva satisfação, com gos e de letrados; é, em grande parte,
quanta doçura e condescendência tem- em sua sabedoria e sua moderação
perais, para eles, a gravidade que con- reconhecidas, em seu zelo pela prospe-
vém aos ministros das leis, como lhes ridade do Estado, que baseio a espe-
retribuís em estima e atenções o que rança de sua tranquilidade eterna, e
vos devem em obediência e respeito:
conduta cheia de justiça e de sabedo- 21 Aos olhos de Rousseau, Genebra reproduz
ria, propícia a distanciar cada vez mais a vida dos primeiros cristãos, que, para ele, é a
a memória dos acontecimentos infeli- ideal e que somente o protestantismo pode per-
zes, que é preciso esquecer para jamais mitir que tornemos a encontrar. Compare-se
com a ironia de Imbert de Ia Tour: “A pri-
rever; conduta ainda mais criteriosa na meira criação de Calvino foi um livro, a Insti-
medida em que esse povo eqüitativo e tuição, a segunda foi uma cidade, Genebra.
generoso transforma seu dever num Livro e cidade completam-se”. (N. de P. A.-B.)
230 ROUSSEAU

noto, num misto de prazer, admiração de vossa convivência, os defeitos que


e respeito, como têm horror pelas tre- nossos jovens vão adquirir em outros
mendas máximas daqueles homens países, de onde, em lugar de tantas coi-
sagrados e bárbaros de quem a história sas úteis, que lhes seriam proveitosas,
fornece mais de um exemplo, e que, só relatam, com tom pueril e ares ridí-
para sustentar os pretensos direitos de culos adquiridos entre mulheres perdi-
Deus, isto é, seus interesses, eram das, a admiração por não sei que pre-
tanto menos avaros do sangue humano tensas grandezas, frívolas
quanto mais se jactavam de ser o seu compensações da servidão, que jamais
sempre respeitado. valerão a augusta liberdade. Sede sem-
Poderia esquecer essa preciosa me- pre, pois, o que sois: as castas guardiãs
tade da república que faz a felicidade dos costumes e os doces liames da paz,
da outra, e cuja doçura e sabedoria e continuai a fazer valer, em todas as
mantêm nesta a paz e as boas manei- ocasiões, os direitos do coração e da
ras? Amáveis e virtuosas cidadãs, o natureza em proveito do dever e da
destino de vosso sexo será sempre virtude.
governar o nosso22. Excelente vosso Orgulho-me de não ter sido desmen-
casto poder, quando, exercido unica- tido pelos acontecimentos, baseando
mente na união conjugal, não se faz em tais garantias a esperança da felici-
sentir senão em favor da glória do Es- dade comum dos cidadãos e a glória
tado e da felicidade pública! Assim as da república. Confesso que, com todas
mulheres mandavam em Esparta e essas vantagens, ela não brilhará com
assim merecereis mandar em Genebra. esse esplendor com o qual a maioria
Que homem bárbaro poderia resistir à dos olhos se ofusca e cujo gosto pueril
voz da honra e da razão na boca de e funesto é o mais mortal inimigo da
uma terna esposa? E quem não despre- felicidade e da liberdade. Que uma
zaria o luxo vão, vendo vossa aparên- juventude dissoluta vá procurar alhu-
cia simples e modesta que, pelo brilho res os prazeres fáceis e arrependi-
que lhe advêm de vós, parece ser a mentos profundos, que as pessoas de
mais favorável à beleza? Cabe a vós pretenso bom gosto admirem, em ou-
manter sempre, por vosso império gen- tros lugares, a grandeza dos palácios, a
til e inocente e por vosso espírito insi- beleza das equipagens, os mobiliários
nuante, o amor das leis no Estado e a soberbos, a pompa dos espetáculos e
concórdia entre os cidadãos, e também todos os refinamentos da ociosidade e
reunir, por meio de casamentos felizes, do luxo — em Genebra só se encontra-
as famílias divididas e sobretudo corri- rão homens. Todavia, um tal espetá-
gir, por meio da doçura persuasiva de culo tem certamente seu preço, e aque-
vossas lições e pelas graças modestas les que o procurarem não valerão
menos que os admiradores do resto.
2 2 Esta declaração pode parecer contraditória Dignai-vos, Ma g n íf ic o s , Ho n -
com muitas outras, especialmente com a Carta r a d ís s im o s e So b e r a n o s Se n h o r e s ,
a Bordes: “Não tenho interesse algum em fazer
a corte às mulheres; aceito que elas me honrem receber, todos com a mesma bondade,
com o epíteto de pedante, tão temido de todos os testemunhos respeitosos de interesse
os nossos galantes filósofos. . . O homem e a que tenho pela vossa prosperidade
mulher são feitos para se amarem e se unirem; comum. Se fui bastante desastrado
passada, porém, essa união legítima, qualquer
comércio de amor entre eles é uma fonte tre- para ser culpado por qualquer trans-
menda de desordem, na sociedade e nos costu- porte indiscreto nessa viva efusão de
mes”. (N. de P. A.-B.) meu coração, suplico-vos que me per-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 231

doeis, levando em consideração a terna Ma g n íf ic o s , Ho n r a d ís s im o s e


afeição de um verdadeiro patriota e o So b e r a n o s Se n h o r e s ,
zelo ardente e legítimo de um homem vosso humílimo e obedientíssimo servi-
que não almeja nenhuma felicidade dor e concidadão
maior, para si mesmo, do que vos ver a
todosfelizes. J.-J. Rousseau
Sou, com o mais profundo respeito, Chambéry, 12 de junho de 1754.
Pr e f á c io

O mais útil e o menos avançado de milhares de causas sempre renovadas,


todos os conhecimentos humanos pa- pela aquisição de uma multidão de
rece-me ser o do homem (b)23 e ouso conhecimentos e de erros, pelas mu-
afirmar que a simples inscrição do danças que se dão na constituição dos
templo de Delfos2 4 continha um pre- corpos e pelo choque contínuo das pai-
ceito mais importante e mais difícil xões, por assim dizer mudou de apa-
que todos os grossos livros dos mora- rência a ponto de tornar-se quase
listas. Considero, ainda, o assunto irreconhecível e, em lugar de um ser
deste discurso como uma das questões agindo sempre por princípios certos e
mais interessantes que a filosofia possa invariáveis, em lugar dessa simplici-
propor e, infelizmente para nós, como dade celeste e majestosa com a qual
uma das mais espinhosas a que pos- seu autor a tinha marcado, não se
sam responder os filósofos, pois, como encontra senão o contraste disforme
conhecer a fonte da desigualdade entre entre a paixão que crê raciocinar e o
os homens, se não se começar a conhe- entendimento delirante.
cer a eles mesmos? E como o homem O que há de mais cruel ainda é que,
chegará ao ponto de ver-se tal como o todos os progressos da espécie humana
formou a natureza, através de todas as distanciando-a incessantemente de seu
mudanças produzidas na sua constitui- estado primitivo, quanto mais acumu-
ção original pela sucessão do tempo e lamos novos conhecimentos, tanto
das coisas, e separar o que pertence à mais afastamos os meios de adquirir o
sua própria essência daquilo que as mais importante de todos: é que, num
circunstâncias e seus progressos acres- certo sentido, à força de estudar o
centaram a seu estado primitivo ou nele homem, tornamo-nos incapazes de co-
mudaram ? Como a estátua de Glauco, nhecê-lo2 5.
que o tempo, o mar e as intempéries ti- É fácil de ver que nessas mudanças
nham desfigurado de tal modo que se sucessivas da constituição humana é
assemelhava mais a um animal feroz que se deve procurar a origem primeira
do que a um deus, a alma humana, das diferenças que distinguem os ho-
alterada no seio da sociedade por mens, os quais, na opinião comum, são
23 Confrontar com o pensamento de Pascal: 2 5 O progressivo afastamento dos padrões
“Acreditei pelo menos encontrar muitos com- iluministas do tempo — já sublinhado em
panheiros no estudo do homem, e que esse era notas ao primeiro discurso — torna-se, agora,
o verdadeiro estudo que lhe é próprio. Enga- bem patente e, sobretudo, definido. Rousseau
nei-mc; existem ainda menos a estudá-lo, do adota a noção de lei natural, mas repele o sim-
que à geometria”. (N. de P. A.-B.) plismo dos que, afirmando existir uma ordem
2 4 “Conhece-te a ti mesmo.” Sócrates adotara natural preestabelecida, dão por bom e certo
essa divisa como sua. (N. de P. A.-B.) tudo que existe, caindo, portanto, numa espé-
234 ROUSSEAU

naturalmente tão iguais entre si quanto Que meus leitores não pensem que
o eram os animais de cada espécie ouso iludir-me julgando ter visto o que
antes que várias causas físicas tives- me parece tão difícil de ser visto. Ini-
sem introduzido em algumas espécies ciei alguns raciocínios, arrisquei algu-
as variedades que nelas notamos. Com mas conjeturas, antes com intenção de
efeito, não é concebível que essas pri- esclarecer e de reduzir a questão ao seu
meiras mudanças, sejam quais forem verdadeiro estado do que na esperança
os meios pelos quais se deram, tenham de resolvê-la. Outros poderão, desem-
alterado, a um só tempo e da mesma baraçadamente, ir mais longe na
maneira, todos os indivíduos da espé- mesma direção, sem que para ninguém
cie; porém, tendo-se uns aperfeiçoado seja fácil chegar ao término pois não
ou deteriorado e adquirido várias qua- constitui empreendimento trivial sepa-
lidades, boas ou más, que de modo rar o que há de original e de artificial
algum eram inerentes à sua natureza, na natureza atual do homem, e conhe-
ficaram outros por mais longo tempo cer com exatidão um estado que não
em seu estado original. Foi isso que mais existe, que talvez nunca tenha
determinou entre os homens a primeira existido, que provavelmente jamais
fonte de desigualdade, que é mais fácil existirá2 6, e sobre o qual se tem, con-
tudo, a necessidade de alcançar noções
demonstrar assim em geral do que
assinalar-lhe com precisão as verda-
deiras causas. 2 6 Rousseau tem como objetivo reencontrar,
por meio da hipótese, a história da evolução,
no decorrer da qual os homens se elevaram até
cie de fatalismo conformista capaz de excluir o estado social. O método empregado por ele é
qualquer distinção entre o bem e o mal e psicológico; o estado de natureza, como o defi-
desaconselhando qualquer esforço de regenera- ne aqui, é o homem, fazendo-se abstração da
ção. Rousseau, pelo contrário, defende o crité- vida social; o problema é, então, saber quais
rio ético acima de todos os valores e só o crê são, no homem, os elementos que derivam da
realizável por uma ação voluntária. Mas, para constituição do indivíduo. Esse método foi cri-
julgar e para agir, impõe-se conhecer o objeto ticado pelos sociólogos modernos que, pelo
dessas operações — daí a busca da verdadeira contrário, pensam que a sociedade possui uma
lei natural, que “não constitui empreendimento natureza específica e que não se limita a uma
fácil”, pois está em “separar o que há de origi- soma de unidades individuais. (N. de P. A.-B.)
nal e de artificial na natureza atual do homem [Vale, não obstante, registrar que a noção de
e conhecer com exatidão um estado que não só foi encontrada por Durkheim
mais existe, que talvez jamais tenha existido, (que se confessava constante leitor de Rous-
que provavelmente jamais existirá”. seau) no século XX. Mesmo os fundadores da
Esse empreendimento implicará desfazer ciência social — salvo a honrosa exceção de
dois pontos obscuros. O primeiro é puramente Karl Marx — continuaram, ainda depois de
metodológico e Rousseau acaba de enunciá-lo: conceberem uma essência social distinta da
se a ciência é um produto social, todo o esfor- individual ou da simples soma das realidades
ço que se fizer para aprimorar o método trará, individuais, a considerar a existência de duas
por igual, um afastamento do objeto. O segun- realidades, lado a lado. Tal ambiguidade de’
do diz respeito ao próprio objeto, pois, lutando pensamento é notória nos “evolucionistas” e
contra os pontos de vista firmados em seu “biologistas” que, como Rousseau, só se inte-
tempo, Rousseau procurará, como indicamos, ressaram por traçar a evolução que nos trouxe,
refutar uma noção fatalista da ordem natural homens e sociedades, do mais simples ao mais
— na qual se confundem o originário e o complexo. Atualmente, já bem assimilado o
adquirido —, mas também cuidará de afastar conceito de síntese, os sociólogos não temem
as noções a tal propósito postas em circulação versar problemas que se julgavam reservados à
por certos cultores do direito natural. Voltare- psicologia, destacando-se, entre os trabalhos
mos ao ponto em nota subseqiiente, para me- sociológicos contemporâneos, os dedicados ao
lhor acompanhar o pensamento de Rousseau. estudo da influência do social na formação da
(N. de L. G. M.) personalidade. (N. de L.G.M.)]
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 235

exatas para bem julgar de nosso estado na. Essa ignorância da natureza do
presente. Àquele que pretender deter- homem é que lança tanta incerteza e
minar exatamente as precauções a obscuridade sobre a definição verda-
serem tomadas para fazer sobre esse deira do direito natural, pois, como diz
assunto observações sólidas, tornar-se- o Sr. Burlamaqui28, a idéia do direito
á mesmo necessário mais filosofia do e, mais ainda, a do direito natural, são
que se pensa e não me parecería indig- evidentemente idéias relativas à natu-
na dos Aristóteles e dos Plínios de reza do homem. É, pois, dessa mesma
nosso século uma boa solução do natureza — continua ele — de sua
seguinte problema: “Quais as experiên- constituição e de seu estado, que se
cias necessárias para chegar-se a co- devem deduzir os princípios dessa
nhecer o homem natural e quais os ciência.
meios para fazer tais experiências no Não é sem surpresa e sem escândalo
seio da sociedade?”2*7 Longe de tentar que se nota a pequena concordância
resolver esse problema, creio ter medi- que reina sobre esse importante assun-
tado bastante sobre o assunto para to entre os diversos autores que já tra-
ousar de antemão responder que os taram dele. Entre os escritores mais sé-
maiores filósofos não serão suficiente- rios, encontram-se com dificuldade
mente bons para dirigir essas experiên- dois que sejam da mesma opinião
cias, nem os mais poderosos soberanos sobre esse ponto. Sem falar dos antigos
para fazê-las28, não sendo razoável filósofos, que parecem ter-se esforçado
contar com tal concurso, sobretudo para se contradizer entre si sobre os
com a perseverança ou, antes, a suces- princípios mais fundamentais, os juris-
são de luzes e de boa vontade necessá- consultos romanos submetem o
rias, tanto duma quanto doutra parte, homem e todos os outros animais à
para alcançar bom êxito. mesma lei natural, por atribuírem esse
Essas pesquisas, tão dijícies de nome antes à lei, que a natureza impõe
fazer-se e sobre as quais se pensou tão a si mesma, do que à que prescreve, ou
pouco até aqui, constituem todavia os melhor, por causa da acepção particu-
únicos meios que nos restam para lar que esses jurisconsultos dão à pala-
remover uma multidão de dificuldades, vra lei que, segundo parece, só empre-
que nos ocultam o conhecimento dos garam, nessa ocasião, como expressão
fundamentos reais da sociedade huma- das relações gerais estabelecidas pela
natureza entre todos os seres animados
2 7 Aristóteles, entre os gregos, e Plínio, entre
visando à sua conservação comum. Os
os romanos, foram os dois sábios da antigui- modernos só reconhecem como lei
dade que acumularam as observações e as uma regra prescrita a um ser moral,
experiências da história natural. O método de isto é, inteligente, livre e considerado
Rousseau é claro: para alcançar o homem nas suas relações com os demais seres,
natural, com o qual se deve reconstruir a socie-
dade, impõe-se isolar nele tudo o que existe de limitando consequentemente ao único
social. “Caso contrário, corre-se o risco de animal dotado de razão, isto é, ao
incorrer no erro daqueles que, raciocinando homem, a competência da lei natural;
sobre o estado de natureza, carreiam para ele definindo, porém, esta lei cada um a
as idéias tomadas da sociedade.” (N. de P.
A.-B.)
28 Rousseau pensa, ao mesmo tempo, na 29 Burlamaqui (1694-1748), professor gene-
tradição do mecenismo científico dos príncipes brino, autor dos Princípios de Direito Natural
e no despotismo esclarecido próprios do século (1747) e dos Princípios do Direito Político
XVII, do qual oferece uma idéia a Carta ao (1751). Influiu muito diretamente em Rous-
Rei da Polônia. (N. de P.A.B.) seau. (N. de P. A.-B.)
236 ROUSSEAU

seu modo, estabelecem tudo sobre regras sobre as quais, para proveito
princípios tão metafísicos que há, comum, conviría que os homens con-
mesmo entre nós, muito poucas pes- cordassem entre si, e depois dá-se o
soas em situação de compreender esses nome de lei natural à coleção dessas
princípios, em lugar de poderem en- regras, sem outra prova além do bem
contrá-los por si mesmos. De forma que, segundo acham, resultaria de sua
que todas as definições desses homens prática universal. Aí está certamente
sábios, aliás em perpétua contradição um meio muito cômodo de compor
entre si, concordam unicamente quan- definições e explicar a natureza das
to a ser impossível compreender a lei coisas por conveniências arbitrárias.
da natureza e, consequentemente, obe- Enquanto, porém, não conhecermos
decê-la, sem ser grande pensador e pro- o homem natural, em vão desejaremos
fundo metafísico. Tal coisa significa, determinar a lei que ele recebeu ou
precisamente, que os homens tiveram aquela que melhor convém à sua
de utilizar, para o estabelecimento da constituição. Quanto podemos apreen-
sociedade, luzes que só se desenvolvem der bem claramente sobre o objeto
com muito trabalho e para poucas pes- dessa lei é que não somente é preciso,
soas, no próprio seio da sociedade. para ser lei, que a vontade daquele a
Conhecendo tão mal a natureza e que obriga possa submeter-se a ela
concordando tão pouco quanto ao sen- com conhecimento, como, também,
tido da palavra lei, seria muito difícil para ser natural, é preciso que se expri-
convir numa boa definição da lei natu- ma imediatamente pela voz da nature-
ral. Assim, todas as que encontramos za.
nos livros, além do defeito de não
serem uniformes, têm ainda o de serem Deixando de lado, pois, todos os li-
extraídas de vários conhecimentos que vros científicos, que só nos ensinam a
os homens, em absoluto, não têm natu- ver os homens como eles se fizeram, e
ralmente, e de vantagens cuja idéia só meditando sobre as primeiras e mais
podem ter depois de sair do estado de simples operações da alma humana,
natureza30. Começa-se por procurar creio nela perceber dois princípios
30 É a aplicação do método geral, exposto anteriores à razão., um dos quais inte-
no início do Prefácio, à teoria do direito natu- ressa profundamente ao nosso bem-es-
ral. Para Rousseau, a sociedade só pode ter
nascido de uma convenção; é o postulado exa- tar e à nossa conservação, e o outro
tamente oposto ao da escola do direito natural. nos inspira uma repugnância natural
Rousseau manifesta seu desacordo com os por ver perecer ou sofrer qualquer ser
Enciclopedistas e com o artigo Direito Natural sensível e principalmente nossos seme-
de Diderot. Essa tomada de posição fez com
que o classificassem de artificialista. |A con- conceito de sociabilidade por qualquer motivo
tenda entre as várias correntes de estudiosos ultrapassava a condição de mero instinto
do direito natural nunca esclarecería suficien- humano, isto é, de elemento puramente indivi-
temente qual a verdadeira base natural das dual. Rousseau, aceitando prontamente a con-
relações sociais. Grócio, sem dúvida, enun- cepção individualista, dispõe-se a apurar até
ciando uma “sociabilidade” que levaria os ho- que ponto se pode, com propriedade, falar de
mens a viverem em sociedade, “ainda que lei natural, posto que a palavra lei já implica
Deus não existisse”, avançara o mais que per- uma regra consciente e voluntária; consequen-
mitia a cultura iluminista. Concorreu, pois, temente, busca saber até onde ia a confusão
para a efetiva laicização do direito natural, entre, de um lado, o liame natural, originário,
mas, nem pelos seus escritos, nem pelos de fundamental e universal, e, de outra parte, as
seus discípulos e continuadores (nenhum dos regras resultantes das convenções sociais e
quais o igualou em força de penetração e inter- que, a seu ver, são artificiais, tardias, deriva-
pretação), fica-se sabendo, ao certo, se esse das e particulares. (N. de L. G. M.)|
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 237

lhantes31. Do concurso e da combina- nal, de suas verdadeiras necessidades e


ção que nosso espírito seja capaz de dos princípios fundamentais de seus
fazer desses dois princípios, sem que deveres, representa ainda o único meio
seja necessário nela imiscuir o da que se pode empregar para afastar essa
sociabilidade, parecem-me decorrer multidão de dificuldades que se apre-
todas as regras do direito natural, re- sentam sobre a origem da desigualdade
gras essas que a razão, depois, é força- moral, sobre os verdadeiros funda-
da a restabelecer com outros funda- mentos do corpo político, sobre os
mentos quando, por seus direitos recíprocos de seus membros e
desenvolvimentos sucessivos, chega a sobre inúmeras questões semelhantes,
ponto de sufocar a natureza. tão importantes quanto mal esclareci-
das.
Desse modo, não se é mais obrigado Considerando a sociedade humana
a fazer do homem um filósofo em lugar de modo calmo e desinteressado, a
de fazê-lo um homem; seus deveres princípio ela só parece mostrar a vio-
para com outrem não lhe são unica- lência dos homens poderosos e a
mente ditados pelas lições tardias de opressão dos fracos; o espírito se
sabedoria e, enquanto resistir ao im- revolta contra a dureza de uns ou é le-
pulso interior natural da comiseração, vado a deplorar a cegueira dos outros e
jamais fará qualquer mal a um outro — como nada é menos estável entre os
homem, nem mesmo a um ser sensível, homens do que essas relações exterio-
exceto no caso legítimo em que, encon- res produzidas mais frequentemente
trando-se em jogo sua conservação, é pelo acaso do que pela sabedoria, e
obrigado a dar preferência a si mesmo. que chamam de fraqueza ou poder,
Por esse meio, terminam também as riqueza ou pobreza —, os estabeleci-
antigas disputas quanto à participação mentos humanos parecem, à primeira
dos animais na lei natural, pois é claro vista, fundamentados em montões de
que, desprovidos de luzes e de liberda- areia movediça. Só quando os exami-
de, não podem reconhecer tal lei. Mas, namos de perto, só quando removemos
possuindo algo de nossa natureza, de- o pó e a areia que cobrem o edifício,
vido à sensibilidade de que são dota- percebemos a sólida base sobre a qual
dos, julgar-se-á que devam também se ergue e se aprende a respeitar os
participar do direito natural e que o seus fundamentos. Ora, sem o estudo
homem esteja obrigado para com eles sério do homem, de suas faculdades
a certos deveres. Parece, com efeito, naturais e de seus desenvolvimentos
que, se estou obrigado a não praticar sucessivos, jamais se chegará a fazer
qualquer mal para com meu seme- essas distinções e, no estado atual das
lhante, é menos por ser ele um ser coisas, separar o que a vontade divi-
razoável do que por ser um ser sensí- na32 fez daquilo que a arte humana
vel, qualidade que, sendo comum ao pretendeu fazer. As pesquisas políticas
animal e ao homem, pelo menos deve e morais sugeridas pela importante
dar a um o direito de nãó ser maltra- questão que examino são, pois, de
tado inutilmente pelo outro. todos os modos úteis, e a história hipo-
Esse mesmo estudo do homem origi-
32 Descartes definira a natureza: o que foi
31 O instinto de conservação é a fonte do instituído pela vontade divina, servindo a
egoísmo; a piedade, do altruísmo. A sociedade imutabilidade dessa vontade para explicai* a
possui, pois, uma base psicológica e a sociolo- permanência das leis da natureza. (N. de P.
gia repousa sobre a psicologia. (N. de P. A.-B.) A.-B.)
238 ROUSSEAU

tética dos governos representa, para o meios que pareciam dever cumular
homem, uma lição sob todos os aspec- nossa miséria.
tos instrutiva. Considerando aquilo em
que nos teríamos tornado se tivés- Quem te Deus esse
semos sido abandonados a nós mes- Jussit, et humana qua parte locatus es
mos, devemos aprender a bendizer in re, Disce33.
aquele cuja mão benfazeja, corrigindo Pérsio, Sátiras. ///, r. 71.
nossas instituições e dando-lhes uma
posição estável, preveniu as desordens 33 “Ouvi o que L>eus ordenou que sejais e
</ue deveríam resultar delas e fez com em razão de que partilha fostes estabelecido no
que de nossa felicidade nascessem os estado humano." (N. de P. A.-B.)
DISCURSO
SOBRE A ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
É d o h o m f m que devo falar e a virtude sempre se encontram, nos mes-
questão que examino me diz que vou mos indivíduos, na proporção do
falar a homens pois não se propõem poder ou da riqueza: tal seria uma boa
questões semelhantes quando se tem questão para discutir entre escravos
medo de honrar a verdade. Defenderei, ouvidos por seus senhores, mas que
pois, com confiança, a causa da huma- não convém a homens razoáveis e
nidade perante os sábios que me convi- livres, que procuram a verdade.
dam a fazê-lo e não ficarei descontente De que se trata, pois, precisamente
comigo mesmo se me tornar digno de neste Discurso? De assinalar, no pro-
meu assunto e de meus juizes. gresso das coisas, o momento em que,
Concebo, na espécie humana, dois sucedendo o direito à violência, sub-
tipos de desigualdade: uma que chamo meteu-se a natureza à lei; de explicar
de natural ou física, por ser estabele- por que encadeamento de prodígios o
cida pela natureza e que consiste na forte pôde resolver-se a servir ao fraco,
diferença das idades, da saúde, das for- e o povo a comprar uma tranqüilidade
ças do corpo e das qualidades do espí- imaginária pelo preço de uma felici-
rito e da alma; a outra, que se pode dade real.
chamar de desigualdade moral ou polí- Os filósofos que examinaram os
tica, porque depende de uma espécie de fundamentos da sociedade sentiram
convenção e que é estabelecida ou, todos a necessidade de voltar até o es-
pelo menos, autorizada pelo consenti- tado de natureza, mas nenhum deles
mento dos homens. Esta consiste nos chegou até lá. Uns3 4 não hesitaram em
vários privilégios de que gozam alguns supor, no homem, nesse estado, a
em prejuízo de outros, como o serem noção do justo e do injusto, sem
mais ricos, mais poderosos e homena- preocuparem-se com mostrar que ele
geados do que estes, ou ainda por faze- deveria ter essa noção, nem que ela lhe
rem-se obedecer por eles. fosse útil. Outros3 5 falaram do direito
Não se pode perguntar qual a fonte natural, que cada um tem, de conser-
da desigualdade natural, porque a res- var o que lhe pertence, sem explicar o
posta estaria enunciada na simples que entendiam por pertencer. Outros3 6
definição da palavra. Pode-se, ainda
menos, procurar a existência de qual- 3 4 Trata-se antes da opinião geral difusa, do
quer ligação essencial entre essas duas que de um determinado filósofo. Talvez Rous-
desigualdades, pois, em outras pala- seau pensasse também em Locke e em Montes-
vras, seria perguntar se aqueles que quieu. (N. de P. A.-B.)
3 5 Outros: Grócio, Pufendorf, Burlamaqui.
mandam valem necessariamente mais (N. de P. A.-B.)
do que os que obedecem e se a força do 3 6 Outros: Aristóteles, Hobbes e, de certa
corpo ou do espírito, a sabedoria e a forma, Grócio. (N. de P. A.-B.)
242 ROUSSEAU

dando inicialmente ao mais forte auto- a esclarecer a natureza das coisas do


ridade sobre o mais fraco, logo fizeram que a mostrar a verdadeira origem e
nascer o Governo, sem se lembrarem semelhantes àquelas que, todos os dias,
do tempo que deveria decorrer antes fazem nossos físicos sobre a formação
que pudesse existir entre os homens o do mundo. A religião nos ordena a crer
sentido das palavras autoridade e que, tendo o próprio Deus tirado os
governo. Enfim, todos, falando inces- homens do estado de natureza logo de-
santemente de necessidade, avidez, pois da criação, são eles desiguais por
opressão, desejo e orgulho, transpor- que assim o desejou; ela não nos proí-
taram para o estado de natureza idéias be, no entanto, de formar conjeturas
que tinham adquirido em sociedade; extraídas unicamente da natureza do
falavam do homem selvagem e descre- homem e dos seres que o circundam38 37,*
viam o homem civil3 7. Não chegou acerca do que se teria transformado o
mesmo a surgir, no espírito da maioria gênero humano se fora abandonado a
dos nossos, a dúvida quanto a ter exis- si mesmo. Eis o que me perguntam e o
tido o estado de natureza, conquanto que me proponho a examinar neste
seja evidente, pela leitura dos livros Discurso. Interessando meu assunto ao
sagrados, que, tendo o primeiro homem em geral, esforçar-me-ei por
homem recebido imediatamente de empregar uma linguagem que conve-
Deus as luzes e os preceitos, não se nha a todas as nações, ou melhor,
encontrava nem mesmo ele nesse esta- esquecendo os tempos e os lugares
do e que, acrescentando aos escritos de para só pensar nos homens a quem
Moisés a fé que lhe deve todo filósofo
cristão, é preciso negar que, mesmo 38 É evidente a inspiração cartesiana. Des-
antes do dilúvio, os homens jamais se cartes instaurara uma dúvida universal, dei-
tenham encontrado no estado puro de xando de lado as verdades ligadas à fé. Ele
natureza, a menos que não tenham tor- procurava saber tudo o que a razão humana
pode ensinar-nos por suas próprias luzes,
nado a cair nele por causa de qualquer independentemente do que a Revelação nos
acontecimento extraordinário — para- ensinou por outros meios. Descartes chegou
doxo bastante difícil de defender e até a justificar seu tratado Do Mundo de um
completamente impossível de provar. modo exatamente idêntico ao utilizado por
Rousseau no Discurso sobre a Desigualdade.
Comecemos, pois, por afastar todos Descartes afirma, com efeito, que sua exposi-
os fatos, pois eles não se prendem à ção sobre a criação do mundo, das plantas e
questão. Não se devem considerar as dos animais é a única em acordo com a razão
pesquisas, em que se pode entrar neste e a verdade, não estando, porém, ele em
assunto, como verdades históricas, contradição com a narrativa bíblica do Gêne-
sis; com efeito, Deus, infinito e todo-poderoso,
mas somente como raciocínios hipoté- podia criar os seres como lhe aprouvesse, seja
ticos e condicionais, mais apropriados geneticamente e de acordo com o método
cartesiano, seja completamente formados e de
pronto em toda a sua perfeição, como o ensina
37 Os selvagens, de acordo com Rousseau, a Bíblia. “Adão e Eva não foram criados
só com grande inexatidão representam o esta- crianças, mas na idade de homens perfeitos”,
do de natureza. Um método falso fez com que Princípios, XII, 45; ora somente a razão não
os filósofos se enganassem quanto às tendên- pode decidir, por si só, uma questão que inte-
cias primitiva., do homem e lhe atribuíssem, ressa a todo o poder divino; somente Deus
por exemplo, uma crueldade inata. Rousseau, pode dizer-nos como de fato agiu. Do mesmo
todavia, utilizar-se-á do exemplo dos selvagens modo, Rousseau afirma a irrealidade do esta-
neste seu discurso, mas somente a título de do de natureza ao mesmo tempo que a necessi-
verificação de suas hipóteses; nunca a psicolo- dade de estudá-la, caso se deseje compreender
gia do primitivo serviu-lhe de ponto de apoio somente pela razão o que se passa. (N. de P.
para uma indução científica. (N. de P. A.-B.) A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 243

falo, supor-me-ei no Liceu de Atenas, descrever de acordo com as qualidades


repetindo as lições de meus mestres, que recebeste, e que tua educação c
tendo os Platões e os Xenócrates39 teus hábitos puderam falsear40, mas
como juizes e o gênero humano como que não puderam destruir. Há, eu sei,
ouvinte. uma idade em que o homem individual
Oh ! homem, de qualquer região que gostaria de parar; de tua parte, procu-
sejas, quaisquer que sejam tuas opi- rarás a época na qual desejarias que
niões, ouve-me; eis tua história como tua espécie tivesse parado. Descon-
acreditei tê-la lido não nos livros de tente com teu estado presente, por
teus semelhantes, que são mentirosos, motivos que anunciam à tua infeliz
mas na natureza que jamais mente. posteridade maiores descontenta-
Tudo o que estiver nela será verda-
deiro; só será falso aquilo que, sem o mentos ainda, quem sabe gostarias de
querer, tiver misturado de meu. Os retrogradar. Tal desejo deve constituir
tempos de que vou falar são muito dis- o elogio de teus primeiros antepassa-
tantes; como mudaste! É, por assim dos, a crítica de teus contemporâneos e
dizer, a vida de tua espécie que vou o temor daqueles que tiverem a infelici-
dade de viver depois de ti.
39 O Liceu era um logradouro de Atenas
onde Aristóteles dava seus cursos. Rousseau 40 No texto francês: dépraver, falsear (anti-
confunde-o com o jardim de Academos, onde go sentido da palavra em francês), desviar de
Platão reunia seus discípulos. Xenócrates sua natureza verdadeira. Cf., mais adiante: “O
(406-314) foi o segundo sucessor de Platão, na homem que medita é um animal depravado".
direção da Academia. (N. de P. A.-B.) (N. de P. A.-B.)

Pr ime ir a Pa r t e

Por importante que seja, para bem pio garras retorcidas, se era peludo
julgar o estado natural do homem, como um urso e se, andando com qua-
considerá-lo desde sua origem e exami- tro pés (c), seus olhares dirigidos para
ná-lo, por assim dizer, no primeiro a terra e limitados a um horizonte de
embrião da espécie, não seguirei sua alguns passos não assinalavam, ao
organização através de seus desenvol- mesmo tempo, o caráter e os limites de
vimentos sucessivos; não me deterei suas idéias. Não poderei formular
procurando no sistema animal o que sobre esse assunto senão conjeturas
poderia ter sido inicialmente para ter- vagas e quase imaginárias. A anatomia
se tornado o que é. Não examinarei se, comparada progrediu muito pouco até
como pensava Aristóteles41, suas hoje, as observações dos naturalistas
unhas compridas não foram a princí- ainda são muito incertas para que se
possa, sobre tais fundamentos, estabe-
41 O valor de Áristóteles como naturalista
lecer a base de um raciocínio sólido;
resulta do fato de ter ele introduzido sistemati- assim, sem ter recorrido aos conheci-
camente o método comparativo em biologia; mentos naturais que temos sobre esse
salientou a analogia em que diferentes classes ponto e sem levar em consideração as
zoológicas aparentam órgãos cuja estrutura e mudanças que se deram na conforma-
aspecto exterior são muito dessemelhantes. O
que a mão é para o homem, a,pinça o é para os ção, tanto interior quanto exterior do
crustáceos: o que a asa é para o pássaro, a bar- homem, à medida que aplicava seus
batana o é para o peixe, etc. (N. de P. A.-B.) membros a novos usos e se nutria com
244 ROUSSEAU

novos alimentos, eu o suporei confor- alimentos (e) que os outros animais


mado em todos os tempos como o vejo dividem entre si e, consequentemente,
hoje: andando sobre dois pés, utili- encontra sua subsistência mais facil-
zando suas mãos como o fazemos com mente do que qualquer deles poderá
as nossas, levando seu olhar a toda a conseguir.
natureza e medindo com os olhos a Habituados, desde a infância, às
vasta extensão do céu. intempéries da atmosfera e ao rigor
Despojando esse ser, assim consti- das estações, experimentados na fadiga
tuído, de todos os dons sobrenaturais e forçados a defender, nus e sem
que ele .pôde receber e de todas as armas, a vida e a prole contra as ou-
faculdades artificiais que ele só pôde tras bestas ferozes ou a elas escapar
adquirir por meio de progressos muito correndo, os homens adquirem um
longos, considerando-o, numa palavra, temperamento robusto e quase inalte-
tal como deve ter saído das mãos da rável; os filhos, trazendo para o mundo
natureza, vejo um animal menos forte a excelente constituição de seus pais e
do que uns, menos ágil do que outros, fortificando-a pelas mesmas atividades
mas, em conjunto, organizado de que a produziram, adquirem, desse
modo mais vantajoso do que todos os modo, todo o vigor de que a espécie
demais. Vejo-o fartando-se sob um car- humana é capaz. A natureza faz com
valho, refrigerando-se no primeiro ria- eles precisamente como a lei de Espar-
cho, encontrando seu leito ao pé da ta com os filhos dos cidadãos; torna
mesma árvore que lhe forneceu o fortes e robustos aqueles que são bem
repasto e, assim, satisfazendo a todas constituídos e leva todos os outros a
as suas necessidades. perecerem43, sendo quanto a isso dife-
A terra abandonada à fertilidade rente de nossas sociedades, onde o
natural (d)42 e coberta por florestas Estado, tornando os filhos onerosos
imensas, que o machado jamais muti- para os pais, mata-os indistintamente
lou, oferece, a cada passo, provisões e antes de seu nascimento 4 4.
abrigos aos animais de qualquer espé- Sendo o corpo o único instrumento
cie. Os homens, dispersos em seu seio,
observam, imitam sua indústria e, 43 A natureza é, pois, um instrumento de sal-
assim, elevam-se até o instinto dos ani- vação. (N. de P. A.-B.)
mais, com a vantagem de que, se cada 4 4 Rousseau, uma vez convencido da superio-
espécie não possui senão o seu próprio ridade de certos valores, dificilmente os aban-
instinto, o homem, não tendo talvez donava, ainda mesmo quando contraditórios
entre si. Assim, o ideal espartano permanecerá
nenhum que lhe pertença exclusiva- no desenvolvimento de súa obra, não obstante
mente, apropria-se de todos, igual- perceber-se que esse ideal de severa simplici-
mente se nutre da maioria dos vários dade conscientemente desejada e praticada de
maneira a engendrar todo um sistema social se
opõe à concepção de uma vida “naturai” irres-
42 Lucrécio, no Livro V do De Natura trita e na qual não se compreendería nada do
Rerum, explica que os primeiros habitantes gênero da estrita “polícia” de Esparta. Apesar
humanos da terra eram maiores, mais vigoro- disso, os dois valores opostos acabam por
sos, mais resistentes do que os atuais. Isso harmonizar-se em certas passagens de nosso
acontecia porque a terra e o céu possuíam autor, como, por exemplo, nessa em que a sele-
ainda toda a força produtora, enquanto que ção eugênica artificial dos espartanos é dada
mais tarde a terra ficou como uma mulher como a perpetuação da seleção natural da luta
velha, cansada de ter filhos. Essa descrição pela vida, que Rousseau conseguira entrever,
paradisíaca da juventude do mundo é uma das bem antes dos evolucionistas, através dos
formas do mito da idade do ouro. (N. de P. dados bastante precários da história natural de
A.-B.) seu tempo. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 245

que o homem selvagem conhece, é por land e Pufendorf asseguram também 4 6


ele empregado de diversos modos, de que nenhum ser é tão tímido quanto o
que são incapazes, dada a falta de homem em estado de natureza, e que
exercício, nossos corpos, e foi nossa ele está sempre tremendo e pronto a
indústria que nos privou da força e da fugir ao menor ruído que o alcance, ao
agilidade que a necessidade obrigou o menor movimento que perceba. Tal
selvagem a adquirir. Se tivesse um coisa pode ser verdadeira em relação
machado, seu punho rompería galhos aos objetos que não conhece e não du-
tão resistentes? Se tivesse uma funda, vido que se atemorize com todos os
lançaria com a mão, com tanto vigor, novos espetáculos que se lhe oferecem,
uma pedra? Se possuísse uma escada, sempre que não pode distinguir o bem
subiria a uma árvore tão ligeiramente? e o mal físicos que deles deva esperar,
Se tivesse um cavalo, seria tão veloz na nem comparar suas forças com os peri-
corrida? Dai ao homem civilizado o gos pelos quais deve passar — são
tempo de reunir todas essas máquinas circunstâncias raras no estado de natu-
à sua volta; não se poderá duvidar que, reza, no qual todas as coisas se desen-
com isso, sobrepasse, com facilidade, o volvem de uma maneira tão uniforme e
homem selvagem. Se quiserdes, porém, no qual a face da terra não está sujeita
ver um combate mais desigual ainda, às mudanças bruscas e contínuas que
deixai-os nus e desarmados uns de- determinam as paixões e a incons-
fronte dos outros, e logo reconhecereis tância dos povos congregados. Mas o
qual a vantagem de sempre ter todas as homem selvagem, vivendo disperso
forças à sua disposição, de sempre entre os animais e vendo-se desde cedo
estar pronto para qualquer eventuali- na iminência de medir forças com eles,
dade e de transportar-se, por assim logo fez a comparação e, verificando
dizer, sempre todo inteiro consigo que mais os ultrapassa em habilidade
mesmo (f). do que eles o sobrepujam pela força,
aprende a não mais temêdos. Colocai
Hobbes 4 5 pretende que o homem é um urso ou um lobo em disputa com
naturalmente intrépido e não procura um selvagem robusto, ágil, corajoso
senão atacar e combater. Um filósofo como todos eles o são, armado de
ilustre pensa o contrário, e Cumber- pedra e de um bom bastão, e vereis que
o perigo será, no mínimo, recíproco e
4 5 Thomas Hobbes de Malmesbury que, depois de várias experiências
(1588-1678) foi, na opinião de Augusto semelhantes, as bestas ferozes, que não
Comte, um grande inventor, um dos primeiros
a perceberem, em seu relevo brutal, a realidade gostam de atacar-se mutuamente, com
política. Suas obras são: Elementa Philoso- pouca vontade atacarão o homem, pois
phica de Cive (1642); Human Nature or the já verificaram ser tão feroz quanto
Fundamental Element of Policy (1650); Levia- elas. Em relação aos animais que têm
than or the Matter, Firm and Authority of a realmente força maior do que a des-
Commonwealth Ecclesiastical and Civil
(1651). A antítese fundamental do Leviatà è a . treza do homem, este encontra-se no
dá vaidade, raiz de todos os apetites naturais, e caso das demais espécies mais fracas,
do temor da morte violenta, fonte da razão e que não deixam de subsistir; o homem
da moralidade. A vaidade é o desejo e todo de-
sejo leva a desejo de poder; ela engrendra o
desprezo que conclama à vingança; o estado 4 6 Richard Cumberland (1613-1718), prelado
de natureza é uma guerra de qualquer homem anglicano, autor do De Legibus Naturae
contra qualquer outro homem. Rousseau Disquisitio Philosophica (1672), no qual recu-
opor-se-á vivamente a essa teoria. (N. de P. sa o sistema de Hobbes, opondo-lhe a lei da
A. B.) benevolência universal. (N. de P. A.-B.)
246 ROUSSEAU

contando ainda com a vantagem de, risco de perecer com ela. Esse perigo,
não menos disposto do que os animais porém, é comum a muitas outras espé-
à caminhada e encontrando nas árvo- cies, nas quais os menores, durante
res um refúgio quase seguro, dispor algum tempo, não são capazes de pro-
sempre da aceitação ou recusa do curar por si mesmos a alimentação e,
embate, e da escolha entre a fuga ou o se a infância é mais longa entre nós, a
combate. Acrescentemos que, segundo vida sendo mais longa também, neste
parece, nenhum animal guerreia natu- ponto tudo é quase igual (g), havendo
ralmente com o homem, a não ser no não obstante sobre a duração da pri-
caso de sua própria defesa ou de uma meira idade e sobre o número das
fome extrema, nem lhe testemunha crianças (h) outras regras que não se
essas antipatias violentas, que parecem prendem ao meu assunto. Entre os
anunciar ser uma espécie destinada velhos, que agem e transpiram pouco,
pela natureza a servir de pasto a outra. a necessidade de alimentos diminui
Aí estão, sem dúvida, os motivos com a faculdade de atendê-la e, como a
pelos quais os negros e os selvagens vida selvagem distancia deles os reu-
dão tão pouca importância aos ani- matismos e a gota, e como a velhice,
mais ferozes que possam encontrar nos entre todos os males, é aquele que o
bosques. Os caraíbas da Venezuela, socorro humano menos pode aliviar,
entre outros, vivem, a esse respeito, na extinguem-se um dia, sem que nos
mais profunda segurança e sem o apercebamos que deixaram de viver e
menor inconveniente. Embora vivam quase sem que eles mesmos percebam.
quase nus, diz François Correal, não Quanto às doenças, não repetirei as
deixam de corajosamente expor-se nas declamações inúteis e falsas que faz
matas, armados unicamente de flecha e contra a medicina a maioria das pes-
arco. Jamais se ouviu falar, no entanto, soas de boa saúde, mas perguntarei se
que alguns deles tenham sido devora- há uma observação sólida da qual se
dos pelos animais. possa concluir que, no país em que
Outros inimigos, mais temíveis e em essa arte é mais descuidada, a vida do
face dos quais o homem não conta homem seja mais breve do que naque-
com os mesmos meios para defender- les em que a cultivam com o maior dos
se, são as enfermidades naturais, a cuidados. E como poderia acontecer,
infância, a velhice e as doenças de toda se nós nos causamos males mais nume-
espécie; sinais muito tristes de nossa rosos do que os remédios que a medi-
fraqueza, os dois primeiros são co- cina pode nos fornecer? A extrema
muns a todos os animais e o último desigualdade na maneira de viver; o
pertence principalmente ao homem que excesso de ociosidade de uns; o exces-
vive em sociedade. Observo até, em so de trabalho de outros; a facilidade
relação à infância, que, levando a mãe de irritar e de satisfazer nossos apetites
consigo o filho para todos os lugares, e nossa sensualidade; os alimentos
tem muito mais facilidade para alimen- muito rebuscados dos ricos, que os nu-
tá-lo do que as fêmeas de inúmeros trem com sucos abrasadores e que
animais que são forçadas, continua- determinam tantas indigestões; a má
mente e com muita fadiga, a ir e vir, de alimentação dos pobres, que frequente-
um lado para outro para procurar mente lhes falta e cuja carência faz que
pasto e, de outro, para amamentar e sobrecarreguem, quando possível, avi-
nutrir seus filhotes. E verdade que, se a damente seu estômago; as vigílias, os
mulher morre, o filho corre grande excessos de toda sorte; os transportes
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 247

imoderados de todas as paixões; as outras e é fácil perguntar aos caçado-


fadigas e o esgotamento do espírito, as res se, nas suas caminhadas, encon-
tristezas e os trabalhos sem-número tram muitos animais enfermos. Muitos
pelos quais se passa em todos os esta- encontraram animais que apresen-
dos e pelos quais as almas sào perpe- tavam ferimentos enormes muito bem
tuamente corroídas — são, todos, cicatrizados, que tiveram ossos e até
indícios funestos de que a maioria de membros quebrados e reconstituídos
nossos males é obra nossa e que tería- sem outro cirurgião além do tempo,
mos evitado quase todos se tivéssemos sem outro regime além de sua vida
conservado a maneira simples, uni- comum e que não deixaram de curar-se
forme e solitária de viver prescrita pela perfeitamente por não serem atormen-
natureza. Se ela nos destinou a sermos tados por incisões, envenenados por
sãos, ouso quase assegurar que o esta- drogas e extenuados por jejuns. Final-
do de reflexão é um estado contrário à mente. por mais útil que possa ser
natureza e que o homem que medita é entre nós a medicina bem adminis-
um animal depravado47. Quando se trada, será sempre certo que o selva-
pensa na constituição dos selvagens, gem doente, abandonado a si mesmo,
pelo menos daqueles que não estraga- nada espera senão da natureza e, em
mos com nossos licores fortes, quando compensação, nada deve temer senão o
se sabe que eles quase não conhecem seu mal, o que frequentemente torna
outras doenças senão as feridas e a sua situação preferível à nossa.
velhice, fica-se bastante inclinado a Evitemos, pois, confundir o homem
crer que com facilidade se faria a his- selvagem com os homens que temos
tória das doenças humanas seguindo a diante dos olhos. A natureza trata
das sociedades civis. Pelo menos é a todos os animais abandonados a seus
opinião de Platão48 que, de acordo cuidados com uma predileção com qué
com alguns remédios empregados ou parece querer mostrar quanto é ciosa
aprovados por Podalírio e Macaão no desse direito. O cavalo, o gato, o touro,
cerco de Tróia, acha não serem ainda o próprio asno têm, na maioria, uma
conhecidas entre os homens várias estatura mais alta, e todos uma consti-
doenças que esses remédios deveriam tuição mais robusta, mais vigor, força
excitar, e Celso conta que a dieta, hoje e coragem quando nas florestas do que
tão necessária, só foi inventada por em nossas casas; perdem a metade des-
Hipócrates49. sas vantagens tornando-se domésticos
Com tão poucas fontes de males, o e poder-se-ia dizer que todos os nossos
homem, no estado de natureza, não cuidados para tratar bem e alimentar
sente, pois, necessidade de remédios e, esses animais só conseguem degenerá-
menos ainda, de médicos; a espécie hu- los. Acontece o mesmo com o próprio
mana não está, pois, a esse respeito, homem. Tornando-se sociável e escra-
em condições piores do que todas as vo, torna-se fraco, medroso e subser-
viente, e sua maneira de viver, frouxa e
4 7 Essa frase causou escândalo; na Carta a afeminada, acaba por debilitar ao
Philopolis, Rousseau contornará a objeção. mesmo tempo sua força e sua coragem.
(N. de P. A.-B.) Acrescentemos que, entre a condição
48 República, Livro III. (N. de P. A.-B.) selvagem e a doméstica, a diferença de
49 Celso: célebre médico do século de Augus-
to. Hipócrates é o maior médico da antigui- homem para homem deverá ser ainda
dade, nascido aproximadamente em 460 a.C. maior do que a existente de animal
(N. de P. A.-B.) para animal, pois sendo o animal e o
248 ROUSSEAU

homem tratados igualmente pela natu- mais exercitadas deverão ser aquelas
reza, todas as comodidades que o cujo objetivo principal seja o ataque e
homem a si mesmo oferece, mas não a defesa, quer para subjugar a presa,
aos animais, são outras tantas causas quer para defender-se de tornar-se a de
particulares que fazem com que mais um outro animal; os órgãos que só se
perceptivelmente degenere. aperfeiçoam pela lassidão e pela sen-
Não constituem, pois, para esses sualidade devem, ao contrário, perma-
primeiros homens, nem tão grande necer num estado de grosseria que
mal, nem, sobretudo, tão grande obstá- deles excluirá qualquer delicadeza;
culo à sua conservação, a nudez, a ficando seus sentidos, nessa direção,
falta de moradia e a privação de todas divididos, terá o tato e o gosto de uma
as inutilidades que consideramos tão rudez extrema, e a vista, a audição e o
necessárias. Se não têm a pele peluda, olfato de uma enorme sutileza. E esse o
de modo algum disso necessitam nas estado animal em geral e também, de
regiões quentes e, nas frias, desde logo acordo com os relatos dos viajantes, o
sabem apropriar-se da dos animais que da maioria dos povos selvagens. Eis
dominaram; se só têm dois pés para por que não devemos espantar-nos
com o fato de os hotentotes do cabo da
correr, têm dois braços para atender à
Boa Esperança descobrirem navios em
sua defesa e às suas necessidades. Seus
filhos talvez andem tardiamente e com alto mar a olho nu tão longe quanto os
holandeses os divisam com óculos,
dificuldade, mas as mães os carregam
nem, por igual, que os selvagens da
com facilidade, o que constitui uma
vantagem, que falta às demais espé- América sintam os espanhóis no seu
encalço como o poderíam fazer os
cies, nas quais, ao ser a mãe perse-
melhores cães, nem, também, que
guida, vê-se obrigada a abandonar seus'
todas essas nações bárbaras suportem
filhotes ou a regular seus passos pelos
sem sacrifício sua nudez, agucem seu
deles. Finalmente, a menos que se
paladar com pimenta e bebam licores
suponham esses singulares e fortuitos
europeus como água.
concursos de circunstâncias dos quais
falarei em seguida e que poderíam Até aqui levei em consideração
muito bem jamais ter acontecido, é somente o homem físico; esforcemo-
claro e sem contestação possível que o nos por encará-lo, agora, em seu
primeiro a arranjar vestes e uma habi- aspecto metafísico e moral.
tação ofereceu a si mesmo, desse Em cada animal vejo somente uma
modo, coisas pouco necessárias, pois máquina50 engenhosa a que a natureza
tinha passado até então sem elas e conferiu sentidos para recompor-se por
também por não se poder imaginar si mesma e para defender-se, até certo
como não poderia ele suportar, feito ponto, de tudo quanto tende a destruí-
homem, um gênero de vida em que la ou estragá-la. Percebo as mesmas
vivia desde a infância. coisas na máquina humana, com a
diferença de tudo fazer sozinha a natu-
Só, desocupado e sempre próximo reza nas operações do animal, en-
do perigo, o homem selvagem deve quanto o homem executa as suas como
gostar de dormir e ter o sono leve, agente livre. Um escolhe ou rejeita por
como os animais que, pensando pouco,
dormem, por assim dizer, todo o tempo
em que não estão pensando. Consti- dos50 Rousseau adota o mecanismo cartesiano
corpos. No parágrafo seguinte, segue a
tuindo a própria conservação quase teoria cartesiana do espírito, que o divide em
sua única preocupação, as faculdades entendimento e vontade. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 249

instinto, e o outro, por um ato de liber- e o animal, haveria uma outra quali-
dade, razão por que o animal não pode dade muito específica que os distin-
desviar-se da regra que lhe é prescrita, guiria e a respeito da qual não pode
mesmo quando lhe fora vantajoso haver contestação — é a faculdade de
fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, aperfeiçoar-se, faculdade que, com o
frequentemente se afasta dela. Assim, auxílio das circunstâncias, desenvolve
um pombo morreria de fome perto de sucessivamente todas as outras e se
um prato cheio das melhores carnes e encontra, entre nós, tanto na espécie
um gato sobre um monte de frutas ou quanto no indivíduo; o animal, pelo
de sementes, embora tanto um quanto contrário, ao fim de alguns meses, é o
outro pudessem alimentar-se muito que será_por toda a vida, e sua espécie,
bem com o alimento que desdenham, no fim de milhares de anos, o que era
se fosse atilado para tentá-lo; assim, os no primeiro ano desses milhares. Por
homens dissolutos se entregam a ex- que só o homem é suscetível de tor-
cessos que lhes causam febre e morte, nar-se imbecil?51 Não será porque
porque o espírito deprava os sentidos e volta, assim, ao seu estado primitivo e
a vontade ainda fala quando a natu- — enquanto a besta, que nada adqui-
reza se cala. riu e também nada tem de bom a per-
Todo animal tem idéias, posto que der, fica sempre com seu instinto — o
tem sentidos; chega mesmo a combi- homem, tornando a perder, pela velhi-
nar suas idéias até certo ponto e o ce ou por outros acidentes, tudo o que
homem, a esse respeito, só se diferen- sua perfectibilidade lhe fizera adquirir,
cia da besta pela intensidade. Alguns volta a cair, desse modo, mais baixo
filósofos chegaram mesmo a afirmar do que a própria besta? Seria triste,
que existe maior diferença entre um para nós, vermo-nos forçados a convir
homem e outro do que entre um certo que seja essa faculdade, distintiva e
homem e certa besta. Não é, pois, quase ilimitada, a fonte de todos os
tanto o entendimento quanto a quali- males do homem; que seja ela que,
dade de agente livre possuída pelo com o tempo, o tira dessa condição
homem que constitui, entre os animais, original na qual passaria dias tran-
a distinção específica daquele. A natu- quilos e inocentes; que seja ela que,
reza manda em todos os animais, e a fazendo com que através dos séculos
besta obedece. O homem sofre a desabrochem suas luzes e erros, seus
mesma influência, mas considera-se vícios e virtudes, o torna com o tempo
livre para concordar ou resistir, e é o tirano de si mesmo e da natureza (i).
sobretudo na consciência dessa liber- Seria horrível ter de louvar como um
dade que se mostra a espiritualidade de ser benfeitor o primeiro a sugerir aos
sua alma, pois a física de certo modo habitantes das margens do Orinoco o
explica o mecanismo dos sentidos e a uso dessas tabuazinhas que aplicam
formação das idéias, mas no poder de nas têmporas de seus filhos e que, pelo
querer, ou antes, de escolher e no senti- menos, lhes asseguram uma parte de
mento desse poder só se encontram sua imbecilidade e de sua felicidade
atos puramente espirituais que de original.
modo algum serão explicados pelas O homem selvagem, abandonado
leis da mecânica. pela natureza unicamente ao instinto,
Mas, ainda quando as dificuldades
que cercam todas essas questões dei- 51 Sofrendo no corpo e no espírito, Rousseau
xassem por um instante de causar dis- toma posição contra a filosofia do progresso e
cussão sobre diferença entre o homem das luzes. (N. de P. A.-B.)
250 ROUSSEAU

ou ainda, talvez, compensado do que ao distanciar-se da condição animal53.


lhe falta por faculdades capazes de a Ser-me-ia fácil, caso fosse necessá-
princípio supri-lo e depois elevá-lo rio, apoiar essas opiniões em fatos e
muito acima disso, começará, pois, fazer ver que, em todas as nações do
pelas funções puramente animais (j). mundo, os progressos do espírito se
Perceber' e sentir será seu primeiro proporcionaram precisamente segundo
estado, que terá em comum com todos as necessidades que os povos recebe-
os outros animais; querer e não querer, ram da natureza ou aquelas às quais as
desejar e temer, serão as primeiras e circunstâncias os obrigaram e, conse-
quase as únicas operações de sua alma, quentemente, as paixões que os leva-
até que novas circunstâncias nela vam a atender às suas necessidades.
determinem novos desenvolvimentos. Mostraria, no Egito, as artes nascendo
Apesar do que dizem os moralis- e espalhando-se segundo o transborda-
tas52, o entendimento humano muito mento do Nilo; acompanharia seu pro-
deve às paixões, que, segundo uma opi- gresso entre os gregos, onde as viram
nião geral, lhe devem também muito. E germinar, crescer e elevar-se até os
pela sua atividade que nossa razão se céus entre as areias e os rochedos da
aperfeiçoa; só procuramos conhecer Ática, sem poder lançar raízes nas bor-
porque desejamos usufruir e é impos- das férteis do Eurota5 4; observaria que
sível conceber por que aquele, que não em geral os povos do norte são mais
industriosos do que os do sul5 5 por
tem desejos ou temores, dar-se-ia a
menos poderem se privar disso, como
pena de raciocinar. As paixões, por
se a natureza quisesse assim igualar as
sua vez, encontram sua origem em nos-
coisas, conferindo aos espíritos a ferti-
sas necessidades e seu progresso em lidade que recusa à terra.
nossos conhecimentos, pois só se pode
desejar ou temer as coisas segundo as Mas, sem recorrer aos testemunhos
idéias que delas se possa fazer ou pelo incertos da história5 6, quem não verá
simples impulso da natureza; o homem que tudo parece afastar do homem sel-
selvagem, privado de toda espécie de vagem a tentação e os meios de deixar
luzes, só experimenta as paixões desta de ser selvagem? Sua imaginação nada
última espécie, não ultrapassando, lhe descreve, o coração nada lhe pede.
pois, seus desejos a suas necessidades Suas módicas necessidades encon-
físicas (k). Os únicos bens que conhece tram-se com tanta facilidade ao alcan-
no universo são a alimentação, uma
fêmea e o repouso; os únicos males que 53 Rousseau concorda com Lucrécio e Mon-
taigne, no sentido de exorcizar o temor da
teme, a dor e a fome. Digo a dor e não morte e de mostrar que esse temor não é natu-
a morte, pois jamais o animal saberá o ral, mas adquirido de origem social. (N. de P.
que é morrer, sendo o conhecimento da A.-B.)
morte e de seus terrores uma das pri- 5 4 Eurotas: rio da Lacônia que banhava
meiras aquisições feitas pelo homem Esparta. Os espartanos distinguiram-se- pela
sua rusticidade. (N. de P. A.-B.)
5 5 Montesquieu, ao estudar a influência do
52 Rousseau toma o partido de Diderot, que clima na vida política, tornara célebre a oposi-
reabilitava a paixão, em sua tradução dos ção entre os povos do Norte e os do Sul. (N. de
Princípios da Filosofia Moral, de Shaftesbury, P. A.-B.)
e em sua Apologia do Padre de Prades (1752), 5 6 Comparar com a declaração anterior:
contra os moralistas do século precedente, “Afastemos todos os fatos”. V. também a nota
Pascal, La Bruyère, Fénelon, que descreviam o 26, supra, onde se registra o sentido evolutivo
drama do homem como uma luta da razão que Rousseau imprime à interpretação dos
contra as paixões. (N. de P. A.-B.) fatos. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 251

ce da mão e encontra-se ele tão longe arte de reproduzi-lo! E quantas vezes,


do grau de conhecimento necessário talvez, cada um desses segredos não
para desejar alcançar outras maiores morreu com aquele que o descobrira!
que não pode ter nem previdência, nem Que diremos da agricultura, arte que
curiosidade. O espetáculo da natureza, exige tanto trabalho e previdência, que
por muito familiar, torna-se-lhe indife- se liga a tantas outras artes, que
rente; é sempre a mesma ordem, são evidentemente só pode ser praticada
sempre as mesmas revoluções; não numa sociedade pelo menos em início
possui espírito para espantar-se com as e que não nos serve tanto para extrair
maiores maravilhas e não é nele que se da terra os alimentos que fornecería
deve procurar a filosofia de que o sem a sua prática quanto para forçá-la
homem tem necessidade para saber às preferências que são mais de nosso
observar por úma vez o que sempre gosto? Suponhamos, porém, que os ho-
viu. Sua alma, que nada agita, entre- mens se tivessem multiplicado de tal
ga-se unicamente ao sentimento da modo que as produções da natureza
existência atual sem qualquer idéia do não fossem mais suficientes para ali-
futuro, ainda que próximo, e seus pro- mentá-los, suposição que, digamos de
jetos, limitados como suas vistas, difi- passagem, indicaria à espécie humana
cilmente se estendem até o fim do dia. uma grande vantagem nessa maneira
É esse, ainda hoje, o grau de previ- de viver; suponhamos que, sem forjas e
dência dos caraíbas: de manhã vende o sem oficinas, os instrumentos agrícolas
colchão de algodão e de tarde chora, tivessem caído do céu nas mãos dos
querendo readquiri-lo, por não ter pre- selvagens, que esses homens tivessem
visto que na noite seguinte necessitaria vencido o ódio mortal que todos têm
dele. por um trabalho contínuo, que tives-
Quanto mais se medita sobre esse sem aprendido primeiramente a bem
assunto tanto mais aumenta, aos nos- prever suas necessidades, que tivessem
sos olhos 5*7*, a distância entre as puras adivinhado como se deve cultivar a
sensações e os mais simples conheci- terra, semear as sementes e plantar as
mentos, sendo impossível conceber-se árvores, que tivessem encontrado a
como um homem teria podido, unica- arte de moer o trigo e de fazer com que
mente por suas forças, sem o auxílio a uva fermentasse, enfim, todas as coi-
da comunicação e sem a premência da sas que preciso fora que os deuses58
necessidade, vencer intervalo tão gran- lhes ensinassem por não se poder con-
de. Quantos séculos talvez tenham ceber como as poderíam prender por si
decorrido antes de chegarem os ho- mesmos — qual seria, depois disso, o
mens à altura de ver outro fogo que homem suficientemente insensato para
não o do céu ! Quantos acasos não lhes atormentar-se com a cultura de um
foram necessários para aprender os campo de que o despojaria o primeiro
usos mais comuns desse elemento!
Quantas vezes não deixaram que ele se
extinguisse antes de ter adquirido a 58 De acordo com a mitologia antiga, Ceres,
a deusa das colheitas, ensinou agricultura aos
homens. Rousseau adota, neste ponto, uma
5 7 A partir deste ponto, Rousseau inspirar- concepção nacionalista da evolução da huma-
se-á no Ensaio sobre a Origem dos Conheci- nidade: os deuses foram inventados pelos ho-
mentos Humanos (1746) de Condillac. A his- mens para dar autoridade às descobertas
tória do pensamento humano durante muito humanas; também desse modo os legisladores
tempo foi orientada unicamente pelas impres- atribuíram à inspiração divina suas constitui-
sões dos sentidos. (N. de P. A.-B.) ções. (N. de P. A.-B.)
252 ROUSSEAU

a chegar, fosse indiferentemente inventado?61 Que progresso poderia


homem ou besta, e a quem conviesse conhecer o gênero humano esparso nas
essa colheita? E como poderia cada florestas entre os animais? E até que
um resolver-se a passar sua vida num ponto poderíam aperfeiço ar-se e escla-
trabalho penoso, cujo prêmio tem recerem-se mutuamente homens que,
tanto mais certeza de não recolher não tendo domicílio fixo nem necessi-
quanto de ser-lhe muitíssimo necessá- dade uns dos outros, se encontrariam
rio? Em uma palavra, como poderia talvez, somente duas vezes na vida,
essa situação levar os homens a culti- sem se conhecer e sem se falar? 62
varem a terra enquanto não fosse divi- Lembre-se de quantas idéias deve-
dida entre eles, isto é, enquanto não mos ao uso da palavra; como a gramá-
estivesse suprimido o estado de natu- tica exercita e facilita as operações do
reza? 59 espírito; pense-se nos trabalhos inima-
Quando quiséssemos supor um gináveis e no tempo infinito que custou
homem selvagem tão hábil na arte de a primeira invenção das línguas; jun-
pensar quanto o dizem os filósofos60, tem essas reflexões às precedentes e
quando dele fizéssemos, segundo o ter-se-á idéia de como foram precisos
milhares de anos para sucessivamente
exemplo destes, um filósofo, a desco- desenvolverem-se no espírito humano
brir por si só as mais sublimes verda- as operações de que era capaz62.
des, a construir, graças a conjuntos de Que me seja permitido examinar,
raciocínios muito abstratos, máximas por um instante, as dificuldades relati-
de justiça e de razão extraídas do amor vas à origem das línguas, Poderia
à ordem em geral ou da vontade contentar-me em citar ou repetir aqui
conhecida de seu Criador; em uma as pesquisas do Sr. Padre de Condil-
palavra, quando supuséssemos em seu lac63 sobre esse assunto, as quais,
espírito o quanto de inteligência e de todas, confirmam inteiramente minha
luzes que devera ter e que, na realida- opinião e talvez me tenham sugerido a
de, só se encontra nele de lentidão e primeira idéia. Mas, de acordo com o
estupidez, que utilidade a espécie tira- modo pelo qual esse filósofo resolve as
ria de toda essa metafísica impossível
de ser comunicada e destinada a pere- 61 O equipamento físico-psíquico natural não
cer com o indivíduo que a tivesse supõe, nem favorece as “luzes”, cuja expansão
só se pode conceber, portanto, como resultante
de novas “necessidades” provenientes, por seu
59 O progresso, tal qual o conhecemos reali- turno, de situações relacionadas e nunca de
zado, não é, pois, inerente ao homem natural. impulsos estritamente individuais. (N. de L. G.
A este, sem dúvida, era concedida a possibili- M.)
dade de algum avanço sobre si mesmo — 62 Na corfcepção de Rousseau, o grande
como Rousseau explicitamente reconhecerá passo mediante entre o isolamento individual e
—, porém nunca na atabalhoada transfor- as relações com os semelhantes é representado
mação que tudo perverteu — convenções, pelo uso da linguagem. Daí o constante inte-
regras, códigos — para acabar pervertendo o resse de nosso Autor pelo problema e pelo
próprio homem. Não se queira, pois, no grande especialista na matéria, Condillac, logo
homem natural reconhecer o anormal “filóso- abaixo nomeado. (N. de L. G. M.)
fo” civilizado. (N. de L. G. M.) 63 Étienne de Condillac (1715-1780) foi o
60 Os filósofos: os partidários das idéias ina- grande filósofo francês da segunda metade do
tas, Descartes, Leibnitz e, sobretudo, seus século XVIII e o chefe da escola sensualista.
discípulos. Rousseau é partidário do sensua- Rousseau refere-se aqui à sua Gramática, I e
lismo e do empirismo. A pedagogia do Emílio II. Ele mesmo, mais tarde, escreverá um En-
basear-se-á numa psicologia genérica do espí- saio sobre a Origem das Línguas. (N. de P.
rito humano. (N. de P. A.-B.) A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 253

dificuldades, que apresenta a si e, como quase não havia outro meio de


mesmo, sobre a origem dos sinais insti- encontrarem-se senão o de não se per-
tuídos, mostrando dar por suposto o derem de vista, logo encontravam-se
que coloco como problema — a saber: em situação de nem sequer se reconhe-
uma espécie de sociedade já estabele- cerem uns aos outros. Notai, ainda,
cida entre os inventores da língua —, que, tendo o filho todas as suas neces-
creio, voltando às suas reflexões, dever sidades para exprimir e, consequente-
juntar-lhes as minhas, para expor as mente, mais coisas para dizer à mãe do
mesmas dificuldades à luz mais conve- que esta ao filho, deveu fazer os maio-
niente a meu assunto. A primeira que res esforços de invenção e a língua
se apresenta será imaginar como elas empregada por ele devera ser, em gran-
puderam tornar-se necessárias, pois, de parte, obra sua — o que multiplica
não tendo os homens qualquer corres- as línguas em tantas quantos indiví-
pondência entre si, nem necessidade al- duos houver para falá-las, contri-
guma de tê-la, não se concebería nem a buindo ainda para tanto a vida errante
necessidade dessa invenção nem a sua e vagabunda que não dá tempo a que
possibilidade se não fora indispen- nenhum idioma adquira consistência.
sável. Diria, como muitos outros, que Dizer que a mãe dita ao filho as pala-
as línguas nasceram no comércio do- vras de que deverá servir-se para
méstico dos pais, das mães e dos pedir-lhe isto ou aquilo mostra bem
filhos, mas, além de tal coisa não resol- como se ensinam as línguas, mas nada
ver as objeções, seria cometer a falta adianta quanto à sua formação.
daqueles que, raciocinando sobre o es- Suponhamos essa primeira dificul-
tado de natureza, transportam para ele dade vencida; transponhamos, por um
as idéias pertencentes à sociedade e momento, o espaço imenso que, com
vêem sempre a família reunida numa certeza, existiu entre o estado puro de
mesma habitação e seus membros natureza e a necessidade de línguas, e
guardando entre si uma união tão ínti- procuremos, supondo-as necessárias
ma e permanente quanto entre nós, (m), como puderam elas começar a
onde tantos interesses comuns os reú- estabelecer-se. Nova dificuldade, pior
nem, enquanto que, nesse estado primi- ainda do que a precedente, pois, se os
tivo, não tendo nem casas, nem caba- homens tiveram necessidade da pala-
nas, nem propriedades de qualquer vra para aprender a pensar, tiveram
espécie, cada um se abrigava em qual- muito mais necessidade ainda de saber
quer lugar e, frequentemente, por uma pensar para encontrar a arte da pala-
única noite: os machos e as fêmeas vra e, quando se chegasse a com-
uniam-se fortuitamente segundo o preender como os sons da voz foram
acaso, a ocasião e o desejo, sem que a tomados como intérpretes convencio-
palavra fosse um intérprete necessário nais de nossas idéias, ainda restaria
das coisas que tinham a dizer-se, e por saber quais puderam ser os intér-
separavam-se com a mesma facilidade pretes dessa convenção para aquelas
(l). A mãe a princípio aleitava seus fi- idéias que, não tendo de modo alguip
lhos devido à sua própria necessidade; um objeto sensível, não se poderíam
depois, tendo o hábito Ihos tornado indicar nem pelo gesto, nem pela voz.
caros, alimentava-os por causa da Isso faz com que somente possamos
necessidade deles. Os filhos, assim que formar conjeturas toleráveis sobre o
tinham forças para procurar pasto, não nascimento dessa arte de comunicar os
tardavam a abandonar a própria mãe pensamentos e de estabelecer um co-
254 ROUSSEAU

mércio entre os espíritos, arte sublime são mais apropriadas a representá-las


que já está tão longe de sua origem, como sinais instituídos. Tal substitui-
mas que o filósofo ainda vê a uma dis- ção só pôde fazer-se com o consenti-
tância tão grande de sua perfeição que, mento comum e de maneira bastante
absolutamente, não há homem bas- difícil para ser praticada por homens
tante ousado para assegurar que um cujos órgãos grosseiros não possuíam
dia a alcançaria, desde que as revolu- ainda qualquer exercício, sendo essa
ções, que o tempo necessariamente substituição mais difícil de conceber-se
traz, se detivessem em seu proveito, os em si mesma, posto que aquele acordo
preconceitos abandonassem as acade- unânime teve que ser motivado e a
mias ou se calassem diante delas, e palavra parece ter sido muito neces-
estas pudessem, durante séculos intei- sária para estabelecer-se o uso da
ros sem interrupção, ocupar-se desse palavra.
assunto espinhoso. Deve-se acreditar que as primeiras
A primeira língua do homem, a lín- palavras utilizadas pelos homens tive-
gua mais universal, a mais enérgica e a ram em seu espírito significação muito
única de que se necessitou antes de mais extensa do que aquela que pos-
precisar-se persuadir homens reunidos, suem nas línguas já formadas e que,
é o grito da natureza. Como esse grito ignorando a divisão do discurso em
só era proferido por uma espécie de suas partes constitutivas, os homens, a
instinto nas ocasiões mais prementes, princípio, deram a cada palavra o sen-
para implorar socorro nos grandes tido de uma proposição inteira. Quan-
perigos ou alívio nas dores violentas, do começaram a distinguir o sujeito do
não era de muito uso no curso comum atributo e o verbo do substantivo, o
da vida, onde reinam sentimentos mais que não representou pequeno esforço
moderados. Quando as idéias dos ho- de espírito, os substantivos não foram
mens começaram a estender-se e a de início senão outros tantos nomes
multiplicar-se, e se estabeleceu entre próprios, o presente do infinito foi o
eles uma comunicação mais íntima, único tempo dos verbos, e, quanto aos
procuraram sinais mais numerosos e adjetivos, a noção só se desenvolveu
uma língua mais extensa; multipli- com muita dificuldade, visto que todo
caram as inflexões de voz e juntaram- adjetivo é uma palavra abstrata e as
lhes gestos que, por sua natureza, são abstrações, operações penosas e pouco
mais expressivos e cujo sentido depen- naturais.
de menos de uma determinação ante- Cada objeto, a princípio, recebeu
rior. Exprimiram, pois, os objetos visí- um nome particular, sem levar em
veis e móveis graças a gestos, e aqueles consideração os gêneros e as espécies,
que atingem a audição, graças a sons que esses primeiros instituidores 6 4 não
imitativos; mas, como o gesto só indi- estavam em condições de distinguir —
ca os objetos presentes ou fáceis de todos os indivíduos se apresentaram
serem descritos e as ações visíveis, isolados a seu espírito como o são no
como o gesto não é de uso universal, quadro da natureza. Se um carvalho se
porquanto a obscuridade ou a interpo-
sição de um corpo o torna inútil, e 6 4 Instituidores: autores da instituição da lin-
como o gesto mais exige do que excita guagem. Rousseau, depois de ter manifestado
seu acordo com Condiílac sobre o princípio da
a atenção, resolveram então substituí- explicação, segue, neste ponto, opinião contrá-
lo pelas articulações da voz que, sem ria quanto aos pormenores da explicação. (N.
ter a mesma relação com certas idéias, de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 255

chamava A, um outro chamava-se B, a imaginação nela se imiscua, a idéia


pois a primeira idéia que se tem de logo se torna particular. Tentai traçar-
duas coisas é que não são a mesma vos a imagem de uma árvore em geral
coisa e, frequentemente, necessita-se de e jamais conseguireis; mesmo que não
muito tempo para observar o que pos- o queirais, será preciso vê-la pequena
suem de comum; eis como quanto ou grande, pouco densa ou copada,
mais se limitavam os conhecimentos clara ou escura, e, se dependesse de
mais extenso se tornava o dicionário. vós nela não ver senão o que se encon-
A confusão de toda esta nomenclatura tra em todas as árvores, essa imagem
não pôde resolver-se com facilidade, já não se parecería com uma árvore.
pois, para classificar os seres sob deno- Os seres puramente abstratos são
minações comuns e genéricas, precisa- assim vistos ou só se concebem pelo
va-se conhecer as propriedades e as discurso. Basta a definição do triân-
diferenças, eram necessárias observa- gulo para dar-vos a idéia verdadeira;
ções e definições, isto é, a história assim que figurardes um deles em
natural e a metafísica, muito mais do vosso espírito, será um determinado
que aquilo com que os homens desse triângulo e não qualquer outro, e não
tempo poderíam contar. podereis evitar tornar as linhas sensí-
Aliás, as idéias gerais só podem veis ou o plano colorido. Precisa-se,
introduzir-se no espírito com o auxílio portanto, enunciar proposições, falar
das palavras 6 5 e o entendimento só as para ter idéias gerais, pois, assim que a
aprende por via de proposições. É essa imaginação pára, o espírito só se movi-
uma das razões pelas quais não pode- menta à custa do discurso. Se os pri-
rão os animais formar tais idéias, nem meiros inventores, por isso, não pude-
jamais adquirirem a perfectibilidade ram dar nomes senão às idéias que já
que depende delas. Quando um maca- tinham, conclui-se que os primeiros
co vai, sem hesitar, de uma a outra substantivos nunca puderam ser senão
noz, imaginar-se-á que tenha a idéia nomes próprios.
geral dessa espécie de fruto e que com- Mas quando, por meios que não
pare seu arquétipo 6 6 com esses dois conheço, nossos novos gramáticos co-
indivíduos? Não, está claro; mas a meçaram a estender suas idéias e a
visão de uma dessas nozes faz com que generalizar suas palavras, a ignorância
surjam na sua memória as sensações dos inventores obrigou esse método a
que recebeu da outra, e seus olhos, sujeitar-se a limites muito estreitos e
modificados de uma certa maneira, como, a princípio, eles tinham multi-
anunciam ao seu paladar a modifica- plicado demasiado os nomes dos indi-
ção por que passará. Toda idéia geral é víduos por não conhecerem seus gêne-
puramente intelectual e, por pouco que ros e espécies, demarcaram, depois,
muito poucas espécies e gêneros, por
6 5 Essa é a teoria nominalista, predileta da não terem considerado nos seres todas
psicologia inglesa. (Locke, Berkeley, Hume.) as suas diferenças67. Para levar as
(N. de P. A.-B.)
palavra que aparece frequente-
mente nas filosofias de Platão, Malebranche, 6 7 O gênero é uma classe muito geral de obje-
Berkeley. É a idéia em si de um objeto, tal tos que se subdividem em espécies. A diferença
como se apresenta no entendimento divino; é um caráter indeterminado no gênero e pró-
todos os objetos da mesma espécie são criados prio à espécie. Determina, pois, a espécie no
por Deus segundo o modelo de seu arquétipo; interior do gênero. Por exemplo, a diferença
o verdadeiro conhecimento das coisas para o “raciocinante” determina a espécie “homem”
homem consiste no conhecimento de seus no interior do gênero “animal”. (N. de P.
arquétipos. (N. de P. A.-B.) A.-B.)
256 ROUSSEAU

divisões bastante longe, necessitar-se- vras abstratas, os aoristos69 e todos os


iam mais experiências e luzes do que tempos dos verbos, as partículas, a sin-
ele poderia possuir, e mais pesquisas e taxe, ligar as proposições, os raciocí-
trabalhos do que desejaria realizar. nios, e formar toda a lógica do discur-
Ora, se, mesmo hoje, se descobrem so. Quanto a mim, atemorizado com
cada dia novas espécies que até aqui ti- as dificuldades que se multiplicam e
nham escapado a todas as nossas convencido da impossibilidade quase
observações, pode-se imaginar como demonstrada de terem podido as lín-
escaparam a homens que só julgavam guas nascer e estabelecer-se por meios
as coisas pelo seu primeiro aspecto. puramente humanos70, deixo, a quem
Quanto às classes primitivas e às o desejar, empreender a discussão
noções mais generalizadas, é supérfluo desse problema difícil de saber o que
acrescentar que deveríam ainda esca- foi mais necessário — a sociedade já
par-lhes. Como teriam podido, por organizada quando se instituíram as
exemplo, imaginar ou compreender as línguas, ou as línguas já inventadas
palavras matéria, espírito, substância, quando se estabeleceu a sociedade.
moda, figura, movimento68, uma vez Quaisquer que sejam tais origens,
que nossos filósofos, que há tanto vê-se, pelo menos, o pouco cuidado
tempo se utilizam delas, demonstram que teve a natureza ao reunir os ho-
grande dificuldade para entendê-las, e mens por meio de necessidades mútuas
as idéias relativas a tais palavras,sendo e ao facilitar-lhes o uso da palavra,
puramente metafísicas, não se pode- como preparou mal sua sociabili-
ríam encontrar delas qualquer modelo dade 71 e como pôs pouco de si mesma
na natureza? em tudo que fizeram para estabelecer
Detenho-me nestes primeiros passos os seus laços. Com efeito, é impossível
e peço a meus juizes que suspendam imaginar por que, nesse estado primiti-
aqui a leitura para refletir, partindo da vo, um homem sentiría mais necessi-
invenção unicamente dos substantivos dade de um outro homem do que um
físicos, isto é, da parte da língua mais macaco ou um lobo de seu semelhante;
fácil de encontrar, sobre o caminho ou ainda — uma vez supondo-se essa
que falta fazer para exprimir todos os necessidade —, qual o motivo que
pensamentos dos homens, para tomar poderia levar o outro a atendê-lo; ou,
uma forma constante, para poder ser
falada em público e influir na socieda-
de. Peço-lhes que reflitam como foram
necessários tempo e conhecimentos
para encontrar os números (n), as pala-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

finalmente, neste último caso, como se exercerem, a fim de que não se tor-
poderíam estabelecer condições entre nassem supérfluas e onerosas antes do
si. Sei que incessantemente nos repe- tempo, nem tardias e inúteis ao apare-
tem que nada ter ia sido tão miserável cer a necessidade. O homem encon-
quanto o homem nesse estado 7 2; e, se trava unicamente no instinto todo o
é verdade, como creio tê-lo provado, necessário para viver no estado de
que só depois de muitos séculos pode- natureza; numa razão cultivada só
ría sentir ele o desejo e a oportunidade encontra aquilo de que necessita para
de sair dessa condição, tal acusação viver em sociedade.
fora de fazer-se à natureza e não àque- Parece, a princípio, que os homens
le assim constituído por ela. Mas, se nesse estado de natureza, não havendo
compreendo bem o termo miserável, é entre si qualquer espécie de relação
ele uma palavra sem sentido algum ou moral ou de deveres comuns, não
que só significa uma privação dolorosa poderíam ser nem bons nem maus ou
e sofrimento do corpo ou da alma. possuir vícios e virtudes, a menos que,
Ora, desejaria que me explicassem tomando estas palavras num sentido fí-
qual poderia ser o gênero de miséria de sico, se considerem como vícios do
um ser livre cujo coração está em paz e indivíduo as qualidades capazes de
o corpo com saúde. Pergunto qual das prejudicar sua própria conservação, e
duas — a vida civil ou a natural — é virtudes aquelas capazes de em seu
mais suscetível de tornar-se insupor- favor contribuir, caso em que se pode-
tável àqueles que a fruem. À nossa ria chamar de mais virtuosos àqueles
volta, vemos quase somente pessoas que menos resistissem aos impulsos
que se lamentam de sua existência, inú- simples da natureza72 73. Sem nos afas-
meras até que dela se privam assim tarmos do senso comum, é oportuno
que podem, e o conjunto das leis divi- suspender o julgamento que pode-
nas e humanas mal basta para deter riamos fazer de uma tal situação e des-
essa desordem. Pergunto se algum dia confiar de nossos preconceitos até que,
se ouviu dizer que um selvagem em de balança na mão, se tenha exami-
liberdade pensou em lamentar-se da nado se há mais virtudes do que vícios
vida e em querer morrer. Que se julgue, entre os homens civilizados; ou se suas
pois, com menos orgulho, de que lado virtudes são mais proveitosas do que
está a verdadeira miséria. Pelo contrá- funestos seus vícios; ou se o progresso
rio, nada seria tão miserável quanto de seus conhecimentos constitui com-
um selvagem ofuscado por luzes, ator- pensação suficiente dos males que se
mentado por paixões e raciocinando causam mutuamente à medida que se
sobre um estado diferente do seu. instruem sobre o bem que deveríam
Deveu-se a uma providência bastante dispensar-se; ou se não estariam, na
sábia o fato de as faculdades, que ele melhor das hipóteses, numa situação
apenas possuía potencialmente, só po- mais feliz não tendo nem mal a temer
derem desenvolver-se nas ocasiões de nem bem a esperar de ninguém, ao

72 Alusão a Pascal, cuja 7 3 Agora, é a moral que se conceituará como


se funda na oposição entre a gran- produto do social, pois — a exemplo da lin-
deza do homem com Deus e de sua miséria guagem — falta-lhe base e finalidade na exis-
sem Deus; isso porque, para Pascal, a natureza tência individual básica, enquanto se torna,
é originalmente corrompida; a natureza sem primeiro, possível e, depois, fatal mesmo, na
graça é o pecado. Rousseau recusa, absoluta- convivência entre semelhantes. (N. de L. G.
mente, a noção de pecado. (N. de P. A.-B.) M.)
258 ROUSSEAU

invés de ter-se submetido a uma depen- satisfazer uma multidão de paixões


dência universal e obrigar-se a receber que são obra da sociedade e que torna-
tudo daqueles que nada se obrigam a ram as leis necessárias. O mau, diz ele,
lhe dar. é uma criança robusta. Resta saber se
Nao iremos, sobretudo, concluir o homem selvagem é uma criança
com Hobbes7*4 que, por não ter nenhu- robusta. Mesmo que se concordasse
ma idéia da bondade, seja o homem com ele, que se concluiría? Que, sendo
naturalmente mau; que seja corrupto esse homem, quando robusto, tão
porque não conhece a virtude; que nem dependente dos outros quanto quando
sempre recusa a seus semelhantes ser- fraco, não haveria espécie alguma de
viços que não crê dever-lhes; nem que, excessos a que não se entregasse; que
devido ao direito que se atribui com bateria em sua mãe quando tardasse
razão relativamente às coisas de que muito a dar-lhe o peito, que estrangu-
necessita, loucamente imagine ser o laria um de seus irmãos mais moços
proprietário do universo inteiro. Hob- quando o incomodasse, que mordería a
bes viu muito bem o defeito de todas as perna de um semelhante quando esti-
definições modernas de direito natural, vesse ferido ou perturbado. Consti-
mas as consequências, que tira das tuem, porém, duas suposições contra-
suas, mostram que o toma num sentido ditórias ser, no estado de natureza,
que não é menos falso. Raciocinando robusto e dependente. O homem é
sobre os princípios que estabeleceu, fraco quando dependente e, antes de
esse autor deveria dizer que, sendo o ser robusto, se emancipa. Hobbes não
estado de natureza aquele no qual o viu que a mesma causa que impede os
cuidado de nossa conservação é o selvagens de usar a razão, como o pre-
menos prejudicial ao de outrem, esse tendem nossos jurisconsultos, os impe-
estado era, consequentemente, o mais de também de abusar de suas faculda-
propício à paz e o mais conveniente ao des, como ele próprio acha; de modo
gênero humano. Ele diz justamente o que se poderia dizer que os selvagens
contrário por ter incluído, inoportuna- não são maus precisamente porque
mente, no desejo de conservação do não sabem o que é ser bons, pois não é
homem selvagem a necessidade de nem o desenvolvimento das luzes, nem
o freio da lei, mas a tranquilidade das
7 4 O estado de natureza de que fala Rousseau paixões e a ignorância do vício que os
não é o estado de guerra a que se refere Hob- impedem de proceder mal: Tanto plus
bes, pois o homem é acessível à piedade. Aliás, in illis proficit vitiorum ignoratio,
Rousseau modificará sua opinião quanto a quam in his cognitivo virtutis15. Há,
esse segundo ponto. No Ensaio sobre a Origem
das Línguas, cap. IV, sustentará que a piedade aliás, outro princípio que Hobbes não
implica a reflexão — tem-se de saber o que percebeu: é que, tendo sido possível ao
exvste de comum entre nós e aqueles que
sofrem; ora, os homens crêem-se inimigos uns
dos outros. Nada conhecendo, tudo temem; 7 5 Citação de um trecho de Justino (Histórias
atacam para defender-se. Certamente já existia I, II) que se aplica aos Citas: “Desse modo,
a piedade, mas no interior de um pequeno parece admirável que a natureza lhes dê o que
grupo; “tinham a idéia de um pai, de um filho, os gregos não puderam adquirir por meio do
de um irmão, mas não de um homem”; reu- longo ensinamento dos sábios nem pelos pre-
niam “costumes tão ferozes e corações tão ter- ceitos dos filósofos que não sobrepujaram,
nos, tanto amor por sua família e aversão pela com seus costumes civilizados, a barbárie
sua espécie”. Enfim, a piedade é muito anterior inculta: serviu muito mais a estes a ignorância
à reflexão, mas só se estende a toda a humani- dos vícios do que àqueles o conhecimento da
dade por meio desta. (N. de P. A.-B.) virtude”. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 259

homem, em certas circunstâncias, sua- com os dentes assassinos seus fracos


vizar a ferocidade de seu amor-próprio membros e rasgando com as unhas as
ou o desejo de conservação antes do entranhas palpitantes dessa criança.
nascimento desse amor (o), tempera, Que agitação tremenda não experi-
com uma repugnância inata de ver so- menta essa testemunha de um aconte-
frer seu semelhante, o ardor que consa- cimento pelo qual não tem nenhum
gra ao seu bem-estar. Não creio ter a interesse pessoal! Que angústias não
temer qualquer contradição, se confe- sofre com esse espetáculo, sem poder
rir ao homem a única virtude natural levar socorro algum à mãe desfalecida
que o detrator mais acirrado das virtu- ou à criança moribunda!
des humanas teria de reconhecer. Falo Tal o movimento puro da natureza,
da piedade, disposição conveniente a anterior a qualquer reflexão; tal a
seres tão fracos e sujeitos a tantos força da piedade natural que até os
males como o somos; virtude tanto costumes mais depravados têm dificul-
mais universal e tanto mais útil ao dade em destruir, porquanto se vê
homem quando nele precede o uso de todos os dias, em nossos espetáculos,
qualquer reflexão, e tão natural que as emocionar-se e chorar por causa das
próprias bestas às vezes são dela al- infelicidades de um desafortunado,
guns sinais perceptíveis. Sem falar da aquele mesmo que, se estivesse no
ternura das mães pelos filhinhos e dos lugar do tirano, agravaria ainda mais
perigos que enfrentam para garanti-los, os tormentos de seu inimigo, como o
comumente se observa a repugnância sanguinário Sila, tão sensível aos
que têm os cavalos de pisar num ser males que não tinha causado, ou aque-
vivo. Um animal não passa sem in- le Alexandre de Fers, que não ousava
quietação ao lado de um animal morto assistir à representação de uma tragé-
de sua espécie; há até alguns que lhes dia, temendo que o vissem chorar com
dão uma espécie de sepultura, e os Andrômaca e Príamo, enquanto ouvia
mugidos tristes do gado entrando no sem emoção os gritos de tantos cida-
matadouro exprimem a impressão que dãos que, por sua ordem, eram degola-
tem do horrível espetáculo que o dos cada dia.
impressiona. Vê-se, com prazer, o
autor da Fábula das Abelhas1 6 força- Mollissima corda
do a reconhecer o homem como um ser Humano generi dare se natura
compassivo e sensível, sair, no exem- fatetur,
plo que nos dá, de seu estilo frio e sutil Quae lacrymas dedit17
para oferecer-nos a imagem patética de
um homem aprisionado que descobre Mandeville compreendeu muito bem
lá fora uma besta feroz arrancando um que, com toda a sua moral, os homens
filho do seio de sua mãe, estraçalhando jamais passariam de uns monstros se a
natureza não lhes tivesse conferido a
7 6 Trata-se de Mandeville, médico holandês piedade para apoio da razão; não
que clinicava na Inglaterra, morto em 1733. compreendeu, no entanto, decorrerem
Sua Fábula das Abelhas, publicada em 1723 e somente dessa qualidade todas as vir-
traduzida para o francês em 1740, sustenta que
o luxo e os vícios, bem como a embriaguez e a
prostituição, constituem coisas boas e vantajo- 7 7 “A natureza, dando-lhe lágrimas, reco-
sas para a sociedade. Berkeley refutou esse nhece que. deu ao gênero humano corações
ponto de vista no seu Alciphron. (N. de P. muito ternos.” Juvenal, Sátira XV, verso 131.
A.-B.) (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU

tudes sociais que quer contestar nos homem prudente se distancia; a cana-
homens. Com efeito, que são a genero- lha, as mulheres do mercado, é que
sidade, a clemência, a humanidade, separam os contendores e impedem as
senão a piedade aplicada aos fracos, pessoas de bem de se degolarem
aos culpados ou à espécie humana em mutuamente7 8.
geral? Até a benquerença e a amizade Certo, pois a piedade representa um
são, bem entendidas, produções de sentimento natural que, moderando em
uma piedade constante fixadas num cada indivíduo a ação do amor de si
objeto especial, pois desejar que al- mesmo, concorre para a conservação
guém não sofra não será desejar que mútua de toda a espécie. Ela nos faz,
seja feliz? A ser verdadeiro que a sem reflexão, socorrer aqueles que
comiseração não passa de um senti- vemos sofrer; ela, no estado de nature-
mento que nos coloca no lugar daquele za, ocupa o lugar das leis, dos costu-
que sofre, sentimento obscuro e vivo mes e da virtude, com a vantagem de
no homem selvagem, desenvolvido ninguém sentir-se tentado a desobe-
mas fraco no homem civil, que impor- decer à sua doce voz; ela impedirá
tará tal idéia para a verdade do que qualquer selvagem robusto de tirar a
digo, senão para dar-lhe mais força? A uma criança fraca ou a um velho enfer-
comiseração, com efeito, mostrar-se-á mo a subsistência adquirida com difi-
tanto mais enérgica quanto mais inti- culdade, desde que ele mesmo possa
mamente se identificar o animal espec- encontrar a sua em outra parte; ela, em
tador com o animal sofredor. Ora, é lugar dessa máxima sublime da justiça
evidente que essa identificação deveu raciocinada — Faze a outrem o que
ser infinitamente mais íntima no esta- desejas que façam a ti —, inspira a
do de natureza do que no estado de todos os homens esta outra máxima de
raciocínio. É a razão que engendra o bondade natural, bem menos perfeita,
amor-próprio e a reflexão o fortifica; mas talvez mais útil do que a prece-
faz o homem voltar-se sobre si mesmo; dente — Alcança teu bem com o
separa-o de quanto o perturba e aflige. menor mal possível para outrem.
É a filosofia que o isola; por sua causa, Numa palavra, antes nesse sentimento
diz ele, em segredo^ ao ver um homem natural do que nos argumentos sutis
sofrendo: “Perece, se queres; quanto a deve procurar-se a causa da repug-
mim, estou seguro”. Nada, além dos nância que todo homem experimen-
perigos da sociedade inteira, atrapalha taria por agir mal, mesmo independen-
o sono tranquilo do filósofo e o arran- temente das máximas da educação.
ca do leito. Podem impunemente dego- Ainda que possa ser próprio de Sócra-
lar um seu semelhante sob sua janela, tes e dos espíritos de sua têmpera
ele só terá de levar as mãos às orelhas
e ponderar um pouco consigo mesmo 78 Nas Confissões, Rousseau afirma que esse
para impedir a natureza, que nele se retrato do filósofo que raciocina contra a.pie-
revolta, de identificar-se com aquele dade natural tapando os ouvidos é o de Dide-
rot. Aproveita-se disso para acusar Diderot de
que se assassina. O homem selvagem ter, devido à sua influência, dado às próprias
de modo algum possui esse talento obras “o tom duro e o aspecto negro” que de-
admirável e, por falta de sabedoria e de pois não mais apresentaram. Esse retrato tam-
razão, vemo-lo cada dia entregar-se bém visa Lucrécio (com o célebre trecho
“suave mari magno . . “é doce ver um nau-
temerariamente ao primeiro senti- frágio quando se está ao abrigo em terra
mento de humanidade. Nos motins, firme”) e o moralista inglês Shaftesbury. (N. de
nas arruaças, a populaça se reúne, o P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

adquirirem a virtude pela razão, há causam entre nós, já mostram à sacie-


muito tempo o gênero humano não dade a insuficiência das leis nesse
existiría mais, se sua conservação só particular, além disso seria útil exami-
dependesse dos que pertencem a esse nar se tais desordens não nasceram
grupo. com as próprias leis, pois, nesse caso,
Com paixões tão pouco ativas e mesmo que fossem as leis capazes de
freio tão salutar, os homens, mais fero- reprimir as desordens, o menos que se
zes do que maus e mais preocupados poderia exigir é que sustassem um mal
em se defender do mal que possam que não existiría sem elas.
receber do que tentados a fazê-lo a Comecemos por distinguir, no senti-
outrem, não estavam sujeitos a dispu- mento do amor, o moral do físico. O fí-
tas muito perigosas. Como não tinham sico é esse desejo geral que leva um
entre si nenhuma espécie de comércio, sexo a unir-se a outro. O moral é o que
como consequentemente' não conhe- determina esse desejo e o fixa exclusi-
ciam nem a vaidade, nem a considera- vamente num só objeto ou que, pelo
ção, a estima ou o desprezo; como não menos, faz com que tenha por esse ob-
possuíam a menor noção do teu e do jeto preferido um grau bem maior de
meu, nem qualquer idéia verdadeira de energia. Ora, é fácil de compreender
justiça; como consideravam as violên- que o moral, no amor, é um sentimento
cias, que podiam tolerar, como um mal artificial, nascido do costume da socie-
fácil de ser reparado e não como uma dade e celebrado com muita habilidade
injúria que deve ser punida; e como e cuidado pelas mulheres, que visam a
não pensavam na vingança senão estabelecer seu império e tornar domi-
maquinalmente e no momento, à ma- nante o sexo que deveria obedecer.
neira do cão que morde a pedra que lhe Esse sentimento, baseando-se em cer-
atiram — suas disputas raramente te- tas noções de mérito ou de beleza, que
riam consequências sangrentas, se não um selvagem é incapaz de ter, e em
conhecessem assunto mais excitante comparações que não está em condi-
do que o alimento. Percebo, porém, um ção de fazer, deve ser quase nulo para
outro mais perigoso, de que devo falar. ele. Isso porque, posto que seu espírito
Entre as paixões que agitam o cora- não pôde engendrar idéias abstratas de
ção do homem, há uma, ardente, impe- regularidade e de proporção, seu cora-
tuosa, que torna um sexo necessário ao ção também não é capaz dos senti-
outro, paixão tremenda que enfrenta mentos de admiração e de amor que,
perigos, anula todos os obstáculos e mesmo sem se perceber, nascem da
que, nos seus furores, parece capaz de aplicação dessas idéias. Ele ouve uni-
destruir o gênero humano, a cuja camente o temperamento que recebeu
conservação se destina. Que aconte- da natureza e não o gosto que não
ceria aos homens, entregues a essa pôde adquirir — qualquer mulher lhe
raiva desenfreada e brutal, sem pudor, convém.
sem comedimento e diariamente dispu- Limitados unicamente ao aspecto fí-
tando entre si os amores ao preço de sico do amor e bastante felizes para
seu sangue? ignorar essas preferências que irritam
ImpÕe-se convir, inicialmente, em o sentimento e lhes aumentam as difi-
que, quanto mais violentas são as pai- culdades, os homens devem sentir
xões, mais necessárias as leis para menos frequentes e menos vivamente
contê-las. Mas, se as desordens e cri- os ardores do temperamento e, em
mes, que essas paixões cotidianamente consequência, disputar com menor fre-
262 ROUSSEAU

qüência e crueldade. A imaginação, ro de fêmeas pareça cinco sextos


que determina tantos prejuízos entre menor. Ora, nenhum desses dois casos
nós, não atinge corações selvagens; se aplica à espécie humana, na qual o
cada um recebe calmamente o impulso número de fêmeas sobrepassa em geral
da natureza, entrega-se a ele sem esco- o de macho e na qual jamais se obser-
lha, com mais prazer do que furor, e, vou, mesmo entre os selvagens, as fê-
uma vez satisfeita a necessidade, extin- meas, como as de outras espécies,
gue-se todo o desejo. terem período de cio e de isolamento.
É, pois, incontestável que o próprio Além disso, entre inúmeros desses ani-
amor, assim como todas as outras pai- mais, entrando toda a espécie ao
xões, só na sociedade adquiriu esse mesmo tempo em efervescência, surge
ardor impetuoso que muito frequente- um momento terrível de ardor comum,
mente o torna tão funesto aos homens de tumulto, de desordem e de combate,
e c tanto mais ridículo figurar selva- momento que não aparece na espécie
gens esganando-se sem tréguas para humana, na qual nunca o amor é perió-
satisfazer à sua brutalidade, quanto dico. Não se pode, pois, concluir do
essa opinião é diretamente contrária à combate de certos animais pela posse
experiência. Os caraíbas, que são o das fêmeas que a mesma coisa aconte-
povo que até agora menos se distan- cesse ao homem no estado de natureza
ciou do estado de natureza, são justa- e, se de qualquer modo se pudesse che-
mente o mais calmo nos seus amores e gar a essa conclusão, como essas
o menos sujeito ao ciúme, apesar de dissensões não destruíram as outras
viver num clima abrasador que.sempre espécies, não se deve pelo menos julgar
parece emprestar a tais paixões uma sejam elas mais funestas à nossa. E
atividade muito maior. bem possível, nesse caso, que elas
Quanto às induções que se poderiam ainda causassem menos devastações
inferir, em muitas espécies de animais, do que em sociedade, sobretudo nos
dos combates dos machos que sempre países em que, valendo os costumes
ensanguentam nossos quintais ou que, ainda alguma coisa, o ciúme dos
por ocasião da primavera, fazem nos- amantes e a vingança dos esposos
sas florestas retinir com seus gritos ao determinam diariamente duelos, assas-
disputarem a fêmea, é preciso começar sínios e coisas piores, onde o dever de
por excluir todas as espécies nas quais uma fidelidade eterna só serve para
a natureza estabeleceu, no poder rela- proporcionar adultérios e onde as pró-
tivo dos sexos, relações nitidamente prias leis da continência e da honra
diferentes das nossas: assim, a briga expandem forçosamente a devassidão e
dos galos não serve como indução multiplicam os abortos.
para a espécie humana. Nas espécies Concluamos que, errando pelas flo-
em que a proporção é melhor observa- restas, sem indústrias, sem palavra,
da, esses combates não podem ter ou- sem domicílio, sem guerra e sem liga-
tras causas além da raridade das fê- ção, sem qualquer necessidade de seus
meas em relação ao número de machos semelhantes, bem como sem qualquer
ou os intervalos exclusivos nos quais a desejo de prejudicá-los, talvez sem se-
fêmea recusa constantemente a aproxi- quer reconhecer alguns deles indivi-
mação do macho, o que nos leva à pri- dualmente, o homem selvagem, sujeito
meira causa, pois, se cada fêmea só a poucas paixões e bastando-se a si
suporta o macho durante dois meses mesmo, não possuía senão os senti-
cm cada ano, isso faz com que o núme- mentos e as luzes próprias desse esta-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 263

do, no qual só sentia suas verdadeiras É fácil de ver, com efeito, que entre
necessidades, só olhava aquilo que as diferenças que distinguem os ho-
acreditava ter interesse de ver, não mens, inúmeras, consideradas como
fazendo sua inteligência maiores pro- naturais, são unicamente obra do hábi-
gressos do que a vaidade. Se por acaso to e dos vários gêneros de vida que os
descobria qualquer coisa, era tanto homens adotam em sociedade. Assim,
mais incapaz de comunicá-la quanto um temperamento robusto ou delicado,
nem mesmo reconhecia os próprios a força ou a fraqueza, que dele deri-
filhos. A arte perecia com o inventor. vam, resultam mais frequentemente da
Então não havia nem educação, nem maneira dura ou afeminada pela qual
progresso; as gerações se multipli- se foi educado do que da constituição
cavam inutilmente e, partindo cada primitiva dos corpos. A mesma coisa
uma sempre do mesmo ponto, desenro- acontece com as forças do espírito; a
lavam-se os séculos com toda a grosse- educação não só estabelece diferença
ria das primeiras épocas; a espécie já entre os espíritos cultos e os que não o
era velha e o homem continuava sem- são, como também aumenta a que exis-
pre criança79. te entre os primeiros na proporção da
Estendi-me desse modo sobre a cultura, pois, quando um gigante e um
suposição80 dessa condição primitiva anão andam pelo mesmo caminho,
porque, devendo destruir antigos erros cada passo, que um e outro dêem, trará
e preconceitos inveterados, achei que uma vantagem a mais ao gigante. Ora,
devia pulverizá-los até a raiz e mos- se se fizer uma comparação entre a
trar, no quadro do verdadeiro estado diversidade prodigiosa de educação e
de natureza, como a desigualdade, de gêneros de vida que reina nas várias
mesmo natural, está longe de ter nesse ordens do estado civil, e a simplicidade
estado tanta realidade e influência e uniformidade da vida animal e selva-
quanto pretendem nossos escritores81. gem, na qual todos se alimentam com
79 A incapacidade, que Rousseau aponta no
os mesmos alimentos, vivem da mesma
homem natural, para uma acumulação cultural maneira e fazem exatamente as mes-
por sobre e para além das gerações em suces- mas coisas, compreender-se-á quanto
são, representa a antítese teórica e conjètural deve a diferença de homem para
do sentido histórico da vida humana. Em ou- homem ser menor no estado de natu-
tras palavras: os feitos do homem, longe de
poderem ser atribuídos às suas capacidades de reza do que no estado de sociedade e
animal superior, resultam substancialmente da quanto aumenta a desigualdade natu-
vida em sociedade que supera e transfigura as ral na espécie humana por causa da
existências individuais. Por isso os historia- desigualdade de instituição.
dores modernos reconhecem em Rousseau um Mas, mesmo se a natureza mos-
precioso precursor que, principalmente através
de Herder, legou-nos uma visão inteiramente trasse na distribuição desses dons
inédita da História. (N. de L. G. M.) todas as preferências que se pretende
80 O autor lembra que esse quadro do estado que tenha, qual a vantagem alcançada
de natureza não passa de uma hipótese bem pelos favorecidos em prejuízo dos
fundamentada, pois sua eloquência fez com
que nos esquecéssemos disso. (N de P. A.-B.)
demais, num estado de coisas-que não
81 Hobbes via na força um método, mais admitiría quase nenhuma espécie de
curto e mais natural do que as convenções, relação entre eles? De que servirá a be-
para fundamentar uma sociedade: o mais forte leza onde não houver amor de espécie
submete seus súditos, seja como um pai sub- alguma? De que serve o espírito a pes-
mete os filhos a seu governo, seja como o ven-
cedor submete o inimigo vencido à servidão. soas que não falam e a astúcia aos que
não têm interesses? Ouço sempre dizer
ROUSSEAU

que os mais fortes oprimirão os fracos. Sem prolongar inutilmente esses de-
E preciso, porém, que me expliquem o talhes, cada qual deve ver como, por
que querem dizer com a palavra opres- serem os laços da servidão formados
são. Uns dominarão com violência, ou- unicamente pela dependência mútua
tros gemerão submetidos a todos os dos homens e pelas necessidades recí-
seus caprichos. Aí está precisamente o procas que os unem, é impossível sub-
que observo entre nós, mas não sei jugar um homem sem antes tê-lo colo-
como se poderia dizer isso de homens cado na situação de não viver sem o
selvagens, com os quais se teria mesmo outro, situação essa que, por não exis-
grande dificuldade para fazer com- tir no estado de natureza, nele deixa
preender o que é servidão e domina- cada um livre do jugo e torna inútil a
ção. Um homem poderá muito bem lei do mais forte83.
apossar-se dos frutos colhidos por um Depois de ter provado ser a desi-
outro, da caça morta por ele, do antro gualdade apenas perceptível no estado
que lhe servia de abrigo, mas como de natureza, e ser nele quase nula sua
chegaria ao ponto de fazer-se obede- influência, resta-me ainda mostrar sua
cer? E quais poderão ser as cadeias da origem e seus progressos nos desenvol-
dependência entre homens que nada vimentos sucessivos do espírito huma-
possuem? Se me expulsam de uma ár- no. Depois de ter mostrado que a
vore, sou livre de ir a uma outra; se me perfectibilidade, as virtudes sociais e
perseguem num certo lugar, que me as outras faculdades que o homem
impedirá de ir para outro? Se encon- natural recebera potencialmente ja-
trar um homem com força bem supe- mais poderão desenvolver-se por si
rior à minha e, além disso, o bastante próprias, pois para isso necessitam do
depravado, preguiçoso e feroz para concurso fortuito de inúmeras causas
obrigar-me a prover a sua subsistência estranhas, que nunca poderíam surgir e
enquanto nada fizer, será preciso que sem as quais ele teria permanecido
ele se resolva a não me perder de vista eternamente em sua condição primiti-
um só instante e ter-me amarrado com va, resta-me considerar e aproximar os
muito cuidado enquanto dormir, te-
mendo que eu escape ou que o mate, vários acasos que puderam aperfeiçoar
isto é, será obrigado a expor-se volun- a razão humana, deteriorando a espé-
tariamente a um trabalho muito maior cie, tornar mau8 4 um ser ao transfor-
do que deseja evitar e do que dá a mim má-lo em ser social e, partindo de tão
mesmo. Depois de tudo isso, sua vigi- longe, trazer enfim o homem e o
lância amaina um pouco, um ruído mundo ao ponto em que o conhece-
imprevisto faz com que volte a cabeça, mos.
ando vinte passos em direção à flores-
ta, meus grilhões se quebram e ele 83 Essa crítica da teoria do direito do mais
nunca mais me vê em toda a sua forte visa Hobbes, que baseava o direito na
relação senhor-escravo. O vencido teme a
vida82. morte e prefere a sujeição à escravidão. Para
Rousseau, por um lado, esse temor e essa sujei-
82 Para que se estabeleça entre os homens, a ção só podem ser permanentes no estado de
desigualdade de poder carece de uma base real natureza; por outro lado, não é legítimo que os
que Rousseau propende a apontar na institui- compromissos assumidos devido ao temor
ção da propriedade, sem a qual o esforço des- sejam obrigatórios. Toda a argumentação será
pendido na sujeição e vigia do semelhante retomada no Contrato Social, I, III, Do direito
escravizado não seria compensador, como do maisforte e da escravidão. (N. de P. A.-B.)
seria tê-lo a trabalhar numa acumulação de 84 Mau: no original, “méchant": mau, vicia
bens em proveito do escravizador. (N.de L. G. do, corrompido. Rousseau emprega igual-
M.) mente o termo dépravé. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

Confesso que os acontecimentos que sibilidade de, por um lado, destruí-


tenho de descrever podendo sobrevir rem-se certas hipóteses, no caso de
de inúmeros modos, só por conjeturas estar-se, de outro lado, impossibilitado
posso decidir-me na escolha. Mas, de lhes atribuir o grau de certeza de
além dessas conjeturas se tornarem fato; sobre a razão pela qual, sendo
verdadeiras razões quando são as mais dois fatos considerados como bastante
prováveis que se possam extrair da reais para ligar uma seqüência de fatos
natureza das coisas e os únicos meios intermediários, desconhecidos ou con-
que se possa ter para descobrir a ver- siderados como tais, cabe à história,
dade, as conseqüências que eu quero quando existe, apresentar os fatos que
deduzir das minhas conjeturas, por os ligam e porque, faltando a história,
isso não serão conjeturais, porquanto, à filosofia cabe determinar os fatos
sobre os princípios que acabo de semelhantes que podem ligá-los8 6, e
assentar não se poderia estabelecer porque, enfim, em matéria de aconteci-
qualquer outro sistema que me forne- mentos, a semelhança reduz os fatos a
cesse os mesmos resultados e do qual um número de classes diferentes muito
pudesse inferir as mesmas conclusões8 5.
Isso me dispensará de estender mi- menor do que se imagina. Basta-me
nhas reflexões sobre a maneira pela oferecer esses objetos à consideração
qual o transcurso de tempo compensa de meus juizes; basta-me ter agido de
a pequena verossimilhança dos aconte- modo a não terem os leitores vulgares
cimentos; sobre o poderio impressio- necessidade de considerá-los.
nante de causas minúsculas quando
agem sem interrupção; sobre a impos- 8 6 Quando, pela falta de dados objetivos, uma
série histórica se mostra incompleta, a filosofia
pode e deve interpolar uma interpretação coe-
8 5 Do método evolutivo e conjetural não rente — eis outro ponto em que o moderno
resultam, pois, meras conjeturas, mas certezas historicismo foi inspirar-se em Rousseau. (N.
consoantes à realidade. (N. de L. G. M.) de L. G. M.)

Pa r t e

O verdadeiro fundador da sociedade dei-vos de ouvir esse impostor; estareis


civil8 7 foi o primeiro que, tendo cerca- perdidos se esquecerdes que os frutos
do um terreno, lembrou-se de dizer isto são de todos e que a terra não pertence
é meu e encontrou pessoas suficiente- a ninguém !” Grande é a possibilidade,
mente simples para acreditá-lo. Quan- porém, de que as coisas já então tives-
tos crimes, guerras, assassínios, misé- sem chegado ao ponto de não poder
rias e horrores não pouparia ao gênero mais permanecer como eram, pois essa
humano aquele que, arrancando as idéia de propriedade, dependendo de
estacas ou enchendo o fosso, tivesse muitas idéias anteriores que só pode-
gritado a seus semelhantes: “Defen- ríam ter nascido sucessivamente, não
se formou repentinamente no espírito
8 7 Confrontar com o pensamento de Pascal: humano. Foi preciso fazer-se muitos
“Este cão é meu, diziam essas pobres crianças;
esse é o meu lugar ao sol — aí está o começo
progressos, adquirir-se muita indústria
e a imagem da usurpação de toda a terra”. (N. e luzes, transmiti-las e aumentá-las de
de P. A.-B) geração para geração, antes de chegar
266 ROUSSEAU

a esse último termo do estado de natu- na carreira, vigoroso no combate. As


reza. Retomemos, pois, as coisas de armas naturais, que são os galhos de
mais longe ainda e esforcemo-nos por árvore e as pedras, logo se encon-
ligar, de um único ponto de vista, em traram em sua mão. Aprendeu a domi-
sua ordem mais natural, essa lenta nar os obstáculos da natureza, a com-
sucessão de acontecimentos e de co- bater, quando necessário, os outros
nhecimentos88. animais, a disputar sua subsistência
O primeiro sentimento do homem com os próprios homens ou a compen-
foi o de sua existência, sua primeira sar-se daquilo que era preciso ceder ao
preocupação a de sua conservação. As mais forte.
produções da terra forneciam-lhe todos À medida que aumentou o gênero
os socorros necessários, o instinto humano, os trabalhos se multiplicaram
levou-o a utilizar-se deles. Como a com os homens. A diferença das terras,
fome e outros apetites o fizessem expe- dos climas, das estações pôde forçá-los
rimentar sucessivamente novas manei- a incluí-la na sua própria maneira de
ras de existir, houve um que o convi- viver. Anos estéreis, invernos longos e
dou à perpetuar sua espécie e essa rudes, verões escaldantes, que tudo
tendência cega, desprovida de qualquer consomem, exigiram deles uma nova
sentimento do coração, não engendrou indústria. A margem do mar e do rio,
senão um pacto puramente animal; inventaram a linha e o anzol, e se tor-
uma vez satisfeita a necessidade, os naram pescadores e ictiófagos. Nas
dois sexos não se reconheciam mais e florestas, construíram arcos e flechas,
o próprio filho, assim que podia viver e se tornaram caçadores e guerreiros.
sem a mãe, nada mais significava para Nas regiões frias, cobriam-se com as
ela. peles dos animais que tinham matado.
Essa foi a condição do homem nas- O trovão, um vulcão ou qualquer
cente; essa foi a vida de um animal acaso feliz, fez com que conhecessem o
limitado inicialmente às sensações fogo, novo recurso contra os rigores do
puras que, tão-só se aproveitando dos inverno; aprenderam a conservar esse
dons que a natureza lhe oferecia, longe elemento, depois a reproduzi-lo e, por
estava de pensar em arrancar-lhes al- fim, a preparar as carnes que antes
guma coisa. Mas logo surgiram dificul- devoravam cruas.
dades e impôs-se aprender a vencê-las; Essa adequação reiterada dos vários
a altura das árvores, que o impedia de seres a si mesmos e de uns a outros
alcançar os frutos, a concorrência dos levou, naturalmente, o espírito do
animais que procuravam nutrir-se homem a perceber certas relações.
deles, a ferocidade daqueles que lhe Essas relações, que exprimimos pelas
ameaçavam a própria vida, tudo o palavras grande, pequeno, forte, rápi-
obrigou a entregar-se aos exercícios do do, lento, medroso, ousado e outras
corpo; foi preciso tornar-se ágil, rápido idéias semelhantes, comparadas aó
azar da necessidade e quase sem pen-
88 Todo esse parágrafo apresenta a tese prin- sar nisso, acabaram por produzir-lhe
cipal do Discurso, cuja apresentação fora pre- uma certa espécie de reflexão, ou
parada pela I Parte, onde já a tínhamos esbo- melhor, uma prudência maquinai, que
çado na indicação relativa à dependência entre lhe indicava as precauções mais neces-
a desigualdade de poder e a desigualdade de
posses (Cf. nota 81 supra). Explicitamente
sárias à sua segurança.
enunciada, a tese terá agora indicados seus As novas luzes, que resultaram
porquês histórico-evolutivos. (N. de L. G. M.) desse desenvolvimento, aumentaram
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

sua superioridade sobre os demais ani- Ensinando-lhe a experiência ser o


mais, dando-lhe consciência dela. amor ao bem-estar o único móvel <las
Aplicou-se a preparar-lhes armadilhas, ações humanas, encontrou se cm situa
revidou-lhes os ataques de mil manei- ção de distinguir as situações raras em
ras e, embora inúmeros deles o sobre- que o interesse comum poderia laze Io
passassem em força no combate ou em contar com a assistência de seus seme
rapidez na corrida, daqueles que pode- lhantes e aquelas, mais raras ainda, em
ríam servi-lo ou nutri-lo veio a tornar- que a concorrência deveria fazer com
se, com o tempo, o senhor de uns e o que desconfiasse deles. No primeiro
flagelo de outros. Assim, o primeiro caso, unia-se a eles em bandos ou,
olhar que lançou sobre si mesmo quando muito, em qualquer tipo de
produziu-lhe o primeiro movimento de associação livre, que não obrigava nin-
orgulho; assim, apenas distin- guém, e só durava quanto a necessi-
guindo as categorias por considerar-se dade passageira que a reunira. No
o primeiro por sua espécie, dispôs-se segundo caso, cada um procurava
desde logo a considerar-se o primeiro obter vantagens do melhor modo, seja
como indivíduo. abertamente, se acreditava poder agir
Embora seus semelhantes não fos- assim, seja por habilidade c sutileza,
sem para ele o que são para nós e não caso se sentisse mais fraco.
tivesse mais comércio com eles do que Eis como puderam os homens insen
com os outros animais, não foram sivelmente adquirir certa idéia gros
esquecidos nas suas observações. As seira dos compromissos mútuos e da
conformidades, que o tempo pôde vantagem de respeitá-los, mas somente
fazê-lo perceber entre eles, sua fêmea e tanto quanto poderia exigi-lo o inte-
sua própria pessoa, levaram-no a ajui- resse presente e evidente, posto que
zar aquelas que não percebia e, vendo para eles não existia a providência e.
que todos se comportavam como teria longe de se preocuparem com um futu
feito em circunstâncias idênticas, con- ro distante, não pensavam nem mesmo
cluiu que suas maneiras de pensar e de no dia de amanhã. Se era caso de agar
sentir eram inteiramente conformes à rar um veado, cada um sentia que para
sua. Uma vez bem estabelecida em seu tanto devia ficar no seu lugar, mas, se
espírito, essa importante verdade le- uma lebre passava ao alcance de um
vou-o a seguir, por meio de um deles, não há dúvida de que ele a perse-
pressentimento tão seguro e mais rápi- guiría sem escrúpulos e, tendo alcan
do do que a dialética, as melhores re- çado a sua presa, pouco se lhe dava
gras de conduta que, para seu proveito faltar a dos companheiros.
e segurança, achou melhor manter Facilmente se compreende que um
para com eles89. tal comércio não exigia uma lingua-
gem muito mais rebuscada do que a
89 Aqui se esclarece um dos aspectos do das gralhas ou dos macacos que se reú-
muito discutido e nem sempre bem formulado
antirracionalismo de Rousseau. Menos do que nem quase do mesmo modo. Gritos
adverso à razão, recusa-se ele a conceber for- inarticulados, muitos gestos e alguns
mas superiores e inferiores do conhecimento ruídos imitativos compuseram durante
— o mais rudimentar empirismo equivale, em muito tempo a língua universal; jun-
eficácia prática, à melhor dialética do ilumi- tando-se-lhes, em cada região, alguns
nismo. E o conhecimento só pode servir para
conduzir o homem na vida, jamais cabendo sons articulados e convencionais —
justificá-lo como um fim em si, à maneira dos cuja instituição, como já disse, não é
enciclopedistas. (N. de L. G. M.) muito fácil explicar —, obtiveram-se
ROUSSEAU

línguas particulares, porém grosseiras, como o amor conjugal e o amor pater-


imperfeitas, quase como as que até no. Cada família tornou-se uma peque-
hoje possuem várias nações selvagens. na sociedade, ainda mais unida por
Salto multidões de séculos, forçado serem a afeição recíproca e a liberdade
pelo tempo que decorre, pela abun- os únicos liames e, então, se estabe-
dância das coisas que tenho a dizer e leceu a primeira diferença no modo de
pelo progresso quase insensível desses viver dos dois sexos, que até aí nenhu-
preliminares, pois, quanto mais lentos ma apresentavam. As mulheres torna-
são os acontecimentos em sua suces- ram-se mais sedentárias e acostuma-
são, tanto mais prontos para serem ram-se a tomar conta da cabana e dos
descritos. filhos, enquanto os homens iam procu-
Esses primeiros progressos puseram rar a subsistência comum. Os dois
por fim o homem à altura de conseguir sexos começaram, assim, por uma via
outros mais rápidos. Quanto mais um pouco mais suave, a perder alguma
esclarecia o espírito, mais se aperfei- coisa de sua ferocidade e de seu vigor.
çoava a indústria. Logo, deixando de Mas, se cada um em separado tornou-
adormecer sob a primeira árvore, ou se menos capaz de combater as bestas
de recolher-se a cavernas, encontrou selvagens, em compensação foi mais
alguns tipos de machados de pedra fácil reunirem-se para resistirem em
duros e cortantes, que serviam para comum.
cortar lenha, cavar a terra e fazer Nesse novo estado, numa vida sim-
choupanas de ramos, que logo resolveu ples e solitária, com necessidades
cobrir de argila e de lama. A essa muito limitadas e os instrumentos que
época se prende uma primeira revolu- tinham inventado para satisfazê-las, os
ção que determinou o estabelecimento homens, gozando de um lazer bem
e a distinção das famílias e que intro- maior, empregaram-no na obtenção de
duziu uma espécie de propriedade da inúmeras espécies de comodidades des-
qual nasceram talvez brigas e comba- conhecidas por seus antepassados; foi
tes. No entanto, como os mais fortes o primeiro jugo que, impensadamente,
possivelmente foram os primeiros a impuseram a si mesmos e a primeira
fazer habitações que se sentiam capa- fonte de males que prepararam para
zes de defender, é de crer que os fracos seus descendentes, pois, além de assim
acharam mais rápido e seguro imitá- continuarem a enfraquecer o corpo e o
los do que tentar desalojá-los e, quanto espírito, essas comodidades, perdendo
aos que já possuíam cabanas, nenhum pelo hábito quase todo o seu deleite e
deles certamente procurou apropriar-se degenerando ao mesmo tempo em
da de seu vizinho, menos por não lhe verdadeiras necessidades, a privação
pertencer do que por ser-lhe inútil e se tornou muito mais cruel do que doce
não poder apossar-se dela sem expor- fora sua posse, e os homens sentiam-se
se a um combate violento com a famí- infelizes por perdê-las, sem terem sido
lia ocupante. felizes por possuí-las.
Os primeiros progressos do coração Nesse ponto, podemos entrever um
resultaram de uma situação nova que pouco melhor como o uso da palavra
reunia numa habitação comum os se estabeleceu ou se aperfeiçoou insen-
maridos e as mulheres, os pais e os sivelmente no seio de cada família e
filhos. O hábito de viver junto fez com pode-se ainda conjeturar como várias
que nascessem os mais doces senti- causas particulares puderam aumentar
mentos que são conhecidos do homem, a linguagem e acelerar seu progresso.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

tornando-se assim mais necessária. xões recebe sacrifícios de sangue hu-


Grandes inundações ou tremores de mano.
terra cercaram com água ou com A medida que as idéias e os senti-
precipícios regiões habitadas; revolu- mentos se sucedem, que o espírito e o
ções do globo separaram e cortaram coração entram em atividade, o gênero
em ilhas porções do continente. Conce- humano continua a domesticar-se, as
be-se que, entre homens aproximados ligações se estendem e os laços se aper-
desse modo e forçados a viver juntos, tam. Os homens habituaram-se a reu-
teve de formar-se um idioma comum, nir-se diante das cabanas ou em torno
mais facilmente do que entre aqueles de uma árvore grande; o canto e a
que erravam livremente nas florestas dança, verdadeiros filhos do amor e do
da terra firme. Portanto, é muito possí- lazer, tornaram-se a distração, ou
vel que, depois de suas primeiras tenta- melhor, a ocupação dos homens e das
tivas de navegação, alguns insulares te- mulheres ociosos e agrupados. Cada
nham trazido até nós o uso da palavra um começou a olhar os outros e a
e é pelo menos bastante verossímil que desejar ser ele próprio olhado, pas-
a sociedade e as línguas tenham nasci- sando assim a estima pública a ter um
do nas ilhas e aí se aperfeiçoado antes preço. Aquele que cantava ou dançava
de serem conhecidas no continente. melhor, o mais belo, o mais forte, o
mais astuto ou o mais eloquente, pas-
Tudo começa a mudar de aspecto.
sou a ser o mais considerado, e foi esse
Até então errando nos bosques, os
o primeiro passo tanto para a desigual-
homens, ao adquirirem situação mais
dade quanto para o vício; dessas pri-
fixa, aproximam-se lentamente e por
meiras preferências nasceram, de um
fim formam, em cada região, uma lado, a vaidade e o desprezo, e, de
nação particular, una de costumes e outro, a vergonha e a inveja. A fermen-
caracteres, não por regulamentos e tação determinada por esses novos ger-
leis, mas, sim, pelo mesmo gênero de mes produziu, por fim, compostos
vida e de alimentos e pela influência funestos à felicidade e à inocência.
comum do clima. Uma vizinhança per- Assim que os homens começaram a
manente não pode deixar de, afinal, apreciar-se mutuamente e se lhes for-
engendrar algumas ligações entre as mou no espírito a idéia de considera-
famílias. Jovens de sexo diferente habi- ção, cada um pretendeu ter direito a
tam cabanas vizinhas; o comércio ela e a ninguém foi mais possível dei-
passageiro, exigido pela natureza, logo xar de tê-la impunemente. Saíram daí
iaduz a outro, não menos agradável e os primeiros deveres de civilidade,
mais permanente, pela freqüentação mesmo entre os selvagens, e por isso
mútua. Acostumam-se a considerar os toda afronta voluntária tornou-se um
vários objetos e a fazer comparações; ultraje porque, junto com o mal que
insensivelmente, adquirem-se idéias de resultava da injúria ao ofendido, este
mérito e de beleza, que produzem nela via desprezo pela sua pessoa,
sentimentos de preferência. À força de frequentemente mais insuportável do
se verem, não podem mais deixar de que o próprio mal. Eis como, cada um
novamente se verem. Insinua-se na punindo o desprezo que lhe dispen-
alma um sentimento terno e doce, e, à savam proporcionalmente à impor-
menor oposição, nasce um furor impe- tância que se atribuía, as vinganças
tuoso; com o amor surge o ciúme, a tornaram-se tremendas e os homens
discórdia triunfa e a mais doce das pai- sanguinários e cruéis. Aí está precisa-
270 ROUSSEAU

mente o grau a que chegara a maioria os homens se tornassem menos tole-


dos povos selvagens que conhece- rantes e a piedade natural já sofresse
mos90 e, por não ter distinguido certa alteração, esse período de desen-
suficientemente as idéias e observado volvimento das faculdades humanas,
como os povos já estavam longe do ocupando uma posição média exata
primeiro estado de natureza, inúmeras entre a indolência do estado primitivo
pessoas apressaram-se a concluir ser o e a atividade petulante de nosso amor-
homem naturalmente cruel e ter neces- próprio, deve ter sido a época mais
sidade de polícia para abrandar-se. feliz e a mais duradoura. Mais se refle-
Ora, nada é mais meigo do que o te sobre isso e mais se conclui que esse
homem em seu estado primitivo, quan- estado era o menos sujeito às revolu-
do, colocado pela natureza a igual dis- ções, o melhor para o homem (p), que
tância da estupidez dos brutos e das certamente saiu dele por qualquer
luzes funestas do homem civil, e com- acaso funesto que, para a utilidade
pelido tanto pelo instinto quanto pela comum, jamais deveria ter acontecido.
razão a defender-se do mal que o O exemplo dos selvagens, que foram
ameaça, é impedido pela piedade natu- encontrados quase todos nesse ponto,
ral de fazer mal a alguém sem ser a parece confirmar que o gênero humano
isso levado por alguma coisa ou era feito para sempre nele permanecer,
mesmo depois de atingido por algum que esse estado é a verdadeira juven-
mal. Porque, segundo o axioma do tude do mundo91 e que todos os pro-
sábio Locke, “não haveria afronta se gressos ulteriores foram, aparente-
não houvesse propriedade”. mente, outros tantos passos para a
É preciso observar, porém, que a perfeição do indivíduo e, efetivamente,
sociedade iniciada e as relações já para a decrepitude da espécie.
estabelecidas entre os homens exigiam Enquanto os homens se conten-
deles qualidades diversas daquelas que taram com suas cabanas rústicas,
deviam à sua constituição primitiva; enquanto se limitaram a costurar com
que começando a moralidade a intro- espinhos ou com cerdas suas roupas de
duzir-se nas ações humanas, e consti- peles, a enfeitar-se com plumas e con-
tuindo cada um perante as leis o único chas, a pintar o corpo com várias
juiz e vingador das ofensas que rece- cores, a aperfeiçoar ou embelezar seus
bia, a bondade que convinha ao estado arcos e flechas, a cortar com pedras
puro de natureza não era mais a que agudas algumas canoas de pescador ou
convinha à sociedade nascente; que as alguns instrumentos grosseiros de mú-
punições se tornavam mais severas à sica — em uma palavra: enquanto só
medida que as ocasiões de ofensa se se dedicaram a obras que um único
tornavam mais frequentes e que cabe- homem podia criar, e a artes que não
ría ao terror das vinganças ocupar o solicitavam o concurso de várias
lugar de freio das leis. Assim, embora mãos, viveram tão livres, sadios, bons
e felizes quanto o poderiam ser por sua
90 Rousseau distingue, implicitamente, duas natureza, e continuaram a gozar entre
espécies de selvagens: 1) os bons selvagens, si das doçuras de um comércio inde-
que conservaram a simplicidade do estado de
natureza original — seriam antes “primiti-
vos”; 2) os maus selvagens, que aprenderam os 91 A expressão é de Lucrécio, Da Natureza,
vícios da corrupção social sem equilibrá-los Livro V. O tema é uma retomada daquele que
com as vantagens da civilização — seriam Rousseau desenvolveu ao começar a primeira
antes “bárbaros”. (N. de P. A.-B.) parte. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 271

pendente; mas, desde o instante em que matérias metálicas em fusão, deu aos
um homem sentiu necessidade do so- observadores a idéia de imitar essa
corro de outro, desde que se percebeu operação da natureza. Precisa-se ainda
ser útil a um só contar com provisões supor, nesses observadores, muita co-
para dois, desapareceu a igualdade, ragem e previdência para empreender
introduziu-se a propriedade, o trabalho um trabalho tão penoso e imaginar,
tornou-se necessário e as vastas flores- com tal antecedência, as vantagens que
tas transformaram-se em campos apra- dele poderiam tirar, coisa que só tenta-
zíveis que se impôs regar com o suor riam espíritos já mais desenvolvidos
dos homens e nos quais logo se viu a do que esses deveríam ser.
escravidão e a miséria germinarem e Quanto à agricultura, conheceu-se o
crescerem com as colheitas. princípio muito antes de ser a prática
A metalurgia e a agricultura foram estabelecida e absolutamente não é
as duas artes cuja invenção produziu possível que os homens, ocupados
essa grande revolução. Para o poeta continuamente em obter sua subsis-
foram o ouro e a prata, mas para o tência das árvores e das plantas, não
filósofo foram o ferro e o trigo que formassem rapidamente a idéia das
civilizaram os homens e perderam o vias empregadas pela natureza para a
gênero humano. Um e outro eram tam- geração dos vegetais; sua indústria,
bém desconhecidos dos selvagens da porém, só muito tarde voltou-se para
América que, por isso, sempre perma- esse lado, seja porque as árvores, que,
neceram nesse estado; os outros povos juntamente com a caça e a pesca, for-
parecem ter continuado ainda bárba- neciam sua alimentação, não necessi-
ros enquanto praticaram uma dessas tavam de seus cuidados, seja por falta
artes sem a outra. E talvez uma das de conhecer o uso do trigo, ou, ainda,
melhores razões por que a Europa foi, por falta de instrumentos para cultivá-
senão mais cedo, pelo menos mais lo, por não preverem uma necessidade
constantemente e melhor policiada do futura ou, afinal, por falta de meios
que as outras partes do mundo, é ser para impedir os outros de se apro-
ela, ao mesmo tempo, a mais abun- priarem do fruto de seu trabalho.
dante em ferro e a mais fértil em trigo. Tornando-se mais industriosos, pode-
É muito difícil conjeturar como os se imaginar que, com pedras agudas e
homens chegaram a conhecer e a paus pontudos, começaram a cultivar
empregar o ferro, pois não é crível que à volta de sua cabana alguns legumes
tenham imaginado por si mesmos ou raízes muito antes de saber prepa-
extrair a matéria da mina e dar-lhe o rar o trigo e de contar com instru-
preparo necessário para pô-la em mentos necessários para a cultura em
fusão, antes de saber o que resultaria grande escala, mesmo sem levar em
disso. Por outro lado, menos ainda se consideração que, para dedicar-se a
poderá atribuir essa descoberta a essa ocupação e semear as terras, é
algum incêndio acidental, posto que as preciso inicialmente resolver-se a per-
minas se formam em lugares áridos e der alguma coisa para depois ganhar
desprovidos de árvores e de plantas, mais — preocupação muito distan-
podendo-se até imaginar que a natu- ciada da tendência de espírito de um
reza tomara precauções para escon- homem selvagem que, como disse,
der-nos esse segredo fatal. Não resta, sente muita dificuldade para, de
pois, senão a circunstância extraordi- manhã, pensar nas necessidades da
nária de algum vulcão que, vomitando noite.
272 ROUSSEAU

A invenção das outras artes foi, em sua honra o nome de Tesmofo-


pois, necessária para forçar o gênero ria92, com isso quiseram dar a enten-
humano a dedicar-se à arte agrícola. der ter a partilha das terras produzido
Desde que se tornaram necessários ho- uma nova espécie de direito, isto é, o
mens para fundir e forjar o ferro, preci- direito de propriedade, diverso daquele
sou-se de outros para alimentar a estes. resultante da lei natural93.
Na medida em que se multiplicou o nú- Estando as coisas nesse estado, te-
mero de trabalhadores, menos mãos riam assim continuado se os talentos
houve para atender à subsistência fossem iguais e se, por exemplo, o
comum, sem que com isso houvesse emprego de ferro e a consumação dos
menos bocas para consumi-la, e, como alimentos sempre estivessem em exato
uns precisaram de comestíveis em equilíbrio. Mas a proporção, que nada
troca do ferro, outros por fim encon- mantinha, logo se rompeu; os mais for-
traram o segredo de empregar o ferro tes realizavam mais trabalho, o mais
na multiplicação dos comestíveis. Nas- habilidoso tirava mais partido do seu,
ceram assim, de um lado, a lavoura e a o mais engenhoso encontrava meios
agricultura e, de outro, a arte de prepa- para abreviar a faina, o lavrador sentia
rar os metais e de multiplicar-lhes o mais necessidade de ferro ou o ferreiro
emprego. mais necessidade de trigo e, traba-
Da cultura de terras resultou neces- lhando igualmente, um ganhava muito
sariamente a sua partilha e, da proprie- enquanto outro tinha dificuldade de
dade, uma vez reconhecida, as primei- viver. Assim, a desigualdade natural
ras regras de justiça, pois, para dar a insensivelmente se desenvolve junto
cada um o que é seu, é preciso que com a desigualdade de combinação, e
cada um possua alguma coisa; além as diferenças entre os homens, desen-
disso, começando os homens a alongar volvidas pelas diferenças das circuns-
suas vistas até o futuro e tendo todos a tâncias, se tornam mais sensíveis, mais
noção de possuírem algum bem passí-
vel de perda, nenhum deixou de temer 92 Dizia-se Ceres Tesmófora, isto é, legisla-
a represália dos danos que poderia dora, a fim de lembrar que ela revelara aos
causar a outrem. Essa origem mostra- humanos a arte da agricultura. As tesmoforias,
festas anuais em sua homenagem, só podiam
se ainda mais natural, por ser impos- ser celebradas pelas mulheres. (N. de P. A.-B.)
sível conceber a idéia da propriedade 93 Não se deve aferir os dados de Rousseau
nascendo de algo que não a mão-de- pela moderna antropologia cultural. Se tal
obra, pois não se compreende como, fizéssemos, o melhor que nosso autor poderia
para apropriar-se de coisas que não oferecer seriam simples pressentimentos, não
raro desmentidos pelas observações posterio-
produziu, o homem nisso conseguiu res, embora indicando distinções que mais
pôr mais do que o seu trabalho. tarde se precisariam, como essa dos bárbaros
Somente o trabalho, dando ao cultiva- compreendidos como povos em estágio de cul-
dor um direito sobre o produto da terra tura diferente dos primitivos. Mas, se tais
que ele trabalhou, dá-lhe consequen- pressentimentos puderem interessar ao leitor
moderno, melhor fará ele atentando para cer-
temente direito sobre a gleba pelo tas intuições verdadeiramente geniais de Rous-
menos até a colheita, assim sendo cada seau, entre as quais avulta a desta passagem
ano; por determinar tal fato uma posse sobre a relação entre trabalho e propriedade,
contínua, transforma-se facilmente em tema fundamental da economia e sociologia do
século XIX e, também, da política moderna.
propriedade. Quando os antigos, diz Cabe sublinhar a importância da noção num
Grócio, emprestaram a Ceres o epíteto trabalho dedicado ao problema da desigual-
de legisladora e a uma festa celebrada dade. (N. de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 273

permanentes em seus efeitos e, em dos quais num certo sentido se torna


idêntica proporção, começam a influir escravo, mesmo quando se torna se-
na sorte dos particulares. nhor: rico, tem necessidade de seus ser-
Tendo as coisas chegado a tal viços; pobre, precisa de seu socorro, e
ponto, facilmente se imagina o resto. a mediocridade não o coloca em situa-
Não me deterei descrevendo a inven- ção de viver sem eles. É preciso, pois,
ção sucessiva das outras artes, o pro- que incessantemente procure interes-
gresso das línguas, o ensaio e o empre- sá-los pelo seu destino e fazer com que
go dos talentos, a desigualdade das achem, real ou aparentemente, residir
fortunas, o uso e o abuso das riquezas, o lucro deles em trabalharem para o
nem todos os detalhes complementares seu próprio. Isso faz com que seja falso
que cada qual pode sem esforço imagi- e artificioso para com uns, e, para com
nar. Limitar-me-ei unicamente a lançar outros, imperativo e duro, e o coloca
um golpe de vista sobre o gênero hu- na contingência de iludir a todos aque-
mano posto na nova ordem de coisas. les de que necessita, quando não pode
Eis, pois, todas as nossas faculdades fazer-se temer por eles ou não consi-
desenvolvidas, a memória e a imagina- dera de seu interesse ser-lhes útil. Por
ção em ação, o amor-próprio interes- fim, a ambição devoradora, o ardor de
sado, a razão em atividade, alcan- elevar sua fortuna relativa, menos por
çando o espírito quase que o termo da verdadeira necessidade do que para
perfectibilidade de que é suscetível. Aí colocar-se acima dos outros, inspira a
estão todas as qualidades naturais pos- todos os homens uma negra tendência
tas em ação, estabelecidos a posição e a prejudicarem-se mutuamente, uma
o destino de cada homem, não somente inveja secreta tanto mais perigosa
quanto à quantidade dos bens e o quanto, para dar seu golpe com maior
poder de servir ou de ofender, mas segurança, frequentemente usa a más-
também quanto ao espírito, à beleza, à cara da bondade; em uma palavra, há,
força e à habilidade, quanto aos méri- de um lado, concorrência e rivalidade,
tos e aos talentos e, sendo tais qualida- de outro, oposição de interesses e, de
des as únicas que poderiam merecer ambos, o desejo oculto de alcançar lu-
consideração, precisou-se desde logo cros a expensas de outrem. Todos esses
tê-las ou afetar possuí-las. Para pro- males constituem o primeiro efeito da
veito próprio, foi preciso mostrar-se propriedade e o cortejo inseparável da
diferente do que na realidade se era. desigualdade nascente.
Ser e parecer tornaram-se duas coisas Antes que se tivessem inventado os
totaímente diferentes94. Dessa distin- sinais representativos das riquezas,
ção resultaram o fausto majestoso, a elas só podiam consistir em proprie-
astúcia enganadora e todos os vícios dades e animais, os únicos bens reais
que lhes formam o cortejo. Por outro que os homens podiam possuir. Ora,
lado, o homem, de livre e independente quando as heranças cresceram em nú-
que antes era, devido a uma multidão mero e em extensão, a ponto de cobrir
de novas necessidades passou a estar todo o solo, e tocaram-se umas às
sujeito, por assim dizer, a toda a natu- outras, uns só puderam prosperar a
reza e, sobretudo, a seus semelhantes expensas dos outros, e os supranume-
rários, que a fraqueza ou a indolência
9 4 Comparar com o primeiro discurso, come-
tinham impedido por seu turno de as
ço da primeira parte, sobre os malefícios da adquirir, tendo se tornado pobres sem
polidez. (N. de P. A.-B.) nada ter perdido, porque, tudo mudan-
274 ROUSSEAU

do à sua volta, somente eles não muda- tenham, afinal, refletido sobre tão
ram, viram-se obrigados a receber ou miserável situação e as calamidades
roubar sua subsistência da mão dos que os afligiam. Os ricos, sobretudo,
ricos. Daí começaram a nascer, segun- com certeza logo perceberam quanto
do os vários caracteres de uns e de lhes era desvantajosa uma guerra per-
outros, a dominação e a servidão, ou a pétua cujos gastos só eles pagavam e
violência e os roubos. Os ricos, de sua na qual tanto o risco da sua vida como
parte, nem bem experimentaram o pra- o dos bens particulares eram comuns.
zer de dominar, logo desdenharam Aliás, qualquer que fosse a interpre-
todos os outros e, utilizando seus anti- tação que pudessem dar às suas usur-
gos escravos para submeter outros, só pações, sabiam muito bem estarem
pensaram em subjugar e dominar seus estas apoiadas unicamente num direito
vizinhos, como aqueles lobos famintos precário e abusivo e que, tendo sido
que, uma vez comendo carne humana, adquiridas apenas pela força, esta
recusam qualquer outro alimento e só mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem
querem devorar homens. que pudessem lamentar-se. Os enrique-
Assim, os mais poderosos ou os cidos só pela indústria não podiam ba-
mais miseráveis, fazendo de suas for- sear sua propriedade em melhores títu-
ças ou de suas necessidades uma espé- los. Por mais que dissessem: “Fui eu
cie de direito ao bem alheio, equiva- quem construiu este muro; ganhei este
lente, segundo eles, ao de propriedade, terreno com meu trabalho”, outros
seguiu-se à rompida igualdade a pior poderíam responder-lhes: “Quem vos
desordem; assim as usurpaçoes dos deu as demarcações, por que razão
ricos, as extorções dos pobres, as pai- pretendeis ser pagos a nossas expensas,
xões desenfreadas de todos, abafando a de um trabalho que não vos impuse-
piedade natural e a voz ainda fraca da mos? Ignorais que uma multidão de
justiça, tornaram os homens avaros, vossos irmãos perece e sofre a necessi-
ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o dade do que tendes a mais e que vos
direito do mais forte e o do primeiro seria necessário um consentimento ex-
ocupante um conflito perpétuo que ter- presso e unânime do gênero humano
minava em combates e assassinatos para que, da subsistência comum, vos
(q). A sociedade nascente foi colocada apropriásseis de quanto ultrapassasse
no mais tremendo estado de guerra; o a vossa?” Destituído de razões legíti-
gênero humano, aviltado e desolado, mas para justificar-se e de forças sufi-
não podendo mais voltar sobre seus cientes para defender-se, esmagando
passos nem renunciar às aquisições com facilidade um particular, mas
infelizes que realizara, ficou às portas sendo ele próprio esmagado por gru-
da ruína por não trabalhar senão para pos de bandidos, sozinho contra todos
sua vergonha, abusando das faculda- e não podendo, dados os ciúmes mú-
des que o dignificam. tuos, unir-se com seus iguais contra os
inimigos unidos pela esperança
Attonitus novitate mali, divesque, mi- comum da pilhagem, o rico, forçado
[serque
Effugere optat opes, et quae modo vo- 9 5 “Tomados de estupor com a novidade do
[verat odit3 5 mal, tanto o rico quanto o pobre desejam esca-
par às riquezas e maldizem aquilo que um ins-
Ovídio, Metamorfoses, XI, v. 127 tante atrás invocaram com seus votos.” Oví-
dio, XI, verso 127, citado por
Não é possível que os homens não Montaigne, II, XII. (N. de P.A. -B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 275

pela necessidade, acabou concebendo res mútuos o poderoso e o fraco, repa-


o projeto que foi o mais excogitado rem de certo modo os caprichos da for-
que até então passou pelo espírito tuna. Em uma palavra, em lugar de
humano. Tal projeto consistiu em voltar nossas forças contra nós mes-
empregar em seu favor as próprias for- mos, reunamo-nos num poder supremo
ças daqueles que o atacavam, fazer de que nos governe segundo sábias leis,
seus adversários seus defensores, inspi- que protejam e defendam todos os
rar-lhes outras máximas e dar-lhes ou- membros da associação, expulsem os
tras instituições que lhe fossem tão inimigos comuns e nos mantenham em
favoráveis quanto lhe era contrário9 6 concórdia eterna”.
o direito natural. Fora preciso muito menos do que o
Com esse desígnio, depois de expor equivalente desse discurso para arras-
a seus vizinhos o horror de uma situa- tar homens grosseiros, fáceis de sedu-
ção que os armava, a todos, uns contra zir, que aliás tinham questões para des-
os outros, que lhes tornava as posses lindar entre si, que não podiam
tão onerosas quanto o eram suas dispensar árbitros e possuíam dema-
necessidades, e na qual ninguém en- siada ambição para poder por muito
contrava a segurança, fosse na pobreza tempo dispensar os senhores. Todos
ou na riqueza, inventou facilmente correram ao encontro de seus gri-
razões especiosas para fazer com que lhões9 7, crendo assegurar sua liberda-
aceitassem seu objetivo: “Unamo- de, pois, com muita razão98 * reconhe-
96
nos”, disse-lhes, “para defender os fra- cendo as vantagens de um
cos da opressão, conter os ambiciosos estabelecimento político, não conta-
e assegurar a cada um a posse daquilo vam com a suficiente experiência para
que lhe pertence; instituamos regula- prever-lhe os perigos: os mais capazes
mentos de justiça e de paz, aos quais de pressentir os abusos eram precisa-
todos sejam obrigados a conformar-se, mente aqueles que contavam aprovei-
que não abram exceção para ninguém tar-se deles, e até os prudentes com-
e que, submetendo igualmente a deve- preenderam a necessidade de
resolverem-se a sacrificar parte de sua
96 Na verdade, o contrato social é mais van-
tajoso para os ricos, cujos bens garante, do que liberdade para conservar a do outro,
para os pobres, aos quais nada mais oferece do como um ferido manda cortar um
que a segurança da pessoa. Cf. Contrato braço para salvar o resto do corpo.
Social, I, IX: “O mais singular dessa alienação Tal foi ou deveu ser a origem da
é que, aceitando a comunidade os bens dos sociedade e das leis, que deram novos
particulares, longe de despojá-los, não faz
senão com isso assegurar a posse legítima, entraves ao fraco e novas forças ao
cambiando a usurpação por um direito verda- rico (r), destruíram irremediavelmente
deiro, e o gozo pela propriedade”. Igualmente a liberdade natural, fixaram para sem-
Rousseau aplicará à fórmula de tal contrato pre a lei da propriedade e da desigual-
uma importante refutação: todo bem que não é
efetivamente trabalhado por seu possuidor, ou
cujo uso interessa à comunidade, pode ser 9 7 Chegamos ao passo em que o Contrato So-
definitivamente alienado. Impõe-se com- cial encontrará seu ponto de partida: “O
preender que, neste passo, Rousseau critica a homem nasceu livre e em todas as partes
idéia — exprimida por Diderot no artigo Di encontra-se a ferros”. (N. de P. A.-B.)
reito Natural — dum tratado social, ditado pe 98 Hobbes e Locke já haviam observado que
la natureza,duma sociedade geral do gênero hu a razão trabalhava por incitação da necessi-
mano. O verdadeiro contrato social é coisa bem dade de segurança e que permitia a realização
diversa. Cf. Manuscrito de Genebra, cap.II,que da passagem do estado de natureza para o es-
critica explicitamente Diderot. (N. de tado social. (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU

dade, fizeram de uma usurpação sagaz esses grandes corpos do que fora,
um direito irrevogável e, para lucro de antes, entre os indivíduos dos quais se
alguns ambiciosos, daí por diante compunham. Daí nasceram as guerras
sujeitaram todo o gênero humano ao nacionais, as batalhas, os assassinatos,
trabalho, à servidão e àmiséria. Vê-se, as represálias que levam a natureza a
com facilidade, como o estabeleci- agitar-se e chocam a razão, e todos
mento de uma única sociedade tornou
esses preconceitos horríveis que consi-
indispensável o de todas as outras e deram como virtude a honra de derra-
como foi preciso se unirem, por sua
mar o sangue humano. As pessoas de
vez, para enfrentar forças conjuntas.
As sociedades, multiplicando-se ou bem passaram a incluir entre seus
deveres o de degolar seus semelhantes;
estendendo-se rapidamente, logo cobri-
ram toda a superfície da terra e não viu-se, por fim, os homens se massa-
mais se pôde encontrar um único crarem aos milhares sem saber por que
ponto do universo em que se conse- e cometeram-se mais assassinatos num
guisse escapar ao jugo e subtrair-se ao só dia de combate e mais horrores na
gládio, frequentemente mal dirigido, tomada de uma única cidade do que se
que cada homem perpetuamente pas- cometera, no estado de natureza, em
sou a ver suspenso sobre a sua cabeça. toda a face da terra, durante séculos
Tornando-se, deste modo, o direito inteiros. Tais são os primeiros efeitos
civil a regra comum dos cidadãos, a lei que se discernem na divisão do gênero
natural só encontrou lugar, entre as humano em diferentes sociedades. Vol-
diversas sociedades", onde, sob o temos à sua instituição.
nome de direito das gentes, foi mode- Sei que muitos atribuíram outras
rada por algumas convenções tácitas origens às sociedades políticas, como
para tornar o comércio possível e fazer as conquistas do mais potente ou a
as vezes da comiseração natural que, união dos fracos. A escolha entre essas
perdendo entre as sociedades quase causas é indiferente ao que desejo esta-
toda a força que tinha entre os homens, belecer; no entanto, á que acabo de
só reside ainda em algumas grandes expor me parece a mais natural pelas
almas cosmopolitas capazes de trans- seguintes razões: l.° porque, no pri-
por as barreiras imaginárias que sepa- meiro caso, não sendo o direito de con-
ram os povos e, a exemplo do ser sobe- quista, de modo algum, um direito, não
rano que os criou, agasalham todo o
gênero humano na sua benevolên- 100 Coloca-se o problema do direito natural
cia99
100. em seus verdadeiros termos, que são de duas
Os corpos políticos, deste modo ordens distintas: 1) históricos, pois o jusnatu-
permanecendo, entre si, em estado de ralismo destinava-se precipuamente a restabe-
lecer a obediência à ordem natural, que, por
natureza, logo se ressentiram dos in- sua vez, melhor se exprimiría no estado de
convenientes que haviam forçado os natureza, como é óbvio; 2) morais, que interes-
particulares a sair dele, e tal estado savam especialmente a Rousseau, para quem o
tornou-se ainda mais funesto entre direito moral constituiría uma compensação à
fria mecânica da lei civil. Cf. o desenvolvi-
mento ulterior do tema nos parágrafos seguin-
99 Rousseau esboça o projeto de procurar o tes. Até hoje, esses dois sentidos do direito
fundamento de um contrato social entre todas natural são permanentes e, ao menos no que
as sociedades no seio da humanidade. (N. de tange ao direito internacional, operantes. (N.
P. A.-B.) de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 277

pôde fundamentar nenhum outro101, lhes mal; porque, consequentemente,


ficando sempre o conquistador e os tinham estes mais precauções a tomar
povos conquistados em estado de guer- para defender-se disso, e, porque, por
ra entre si, a menos que a nação, repos- fim, é razoável crer-se ter sido uma
ta em plena liberdade, escolha volunta- coisa inventada antes por aqueles a
riamente seu vencedor como chefe; até quem é útil do que por aqueles a quem
então, como só se basearam na violên- causa mal.
cia, umas poucas capitulações feitas, O Governo nascente não teve uma
sendo consequentemente por si mes- forma constante e regular. A falta de
mas nulas, não pode haver nesta hipó- filosofia e de experiência só deixava
tese nem verdadeira sociedade, nem perceber os inconvenientes presentes, e
corpo político, nem outra lei senão a só se pensava em remediar os outros
do mais forte; 2.° porque essas pala- na medida em que se apresentavam.
vras forte efraco são, no segundo caso, Malgrado todos os trabalhos dos mais
equívocas; porque, no intervalo que se sábios legisladores, o estado político
encontra entre o estabelecimento do permaneceu sempre imperfeito, porque
direito de propriedade ou do primeiro era quase obra do acaso e porque, ape-
ocupante, e o dos governos políticos, nas iniciado, o tempo, descobrindo os
as palavras pobre e rico dão melhor o defeitos e sugerindo os remédios,
sentido desses termos, porquanto, com nunca pôde corrigir os vícios de consti-
efeito, um homem não tinha, antes das tuição. Remendava-se continuamente,
leis, quaisquer outros meios de domi- quando fora preciso ter começado por
nar seus iguais senão atacando seus limpar a eira e afastar todo o material
bens ou lhes transmitindo certa porção velho, como fez Licurgo em Esparta,
do seu; 3.° porque os pobres, não para depois construir um edifício sóli-
tendo senão sua liberdade para perder, do. A sociedade, a princípio, consti-
seria uma tremenda loucura de sua tuiu-se somente de algumas conven-
parte destituir-se voluntariamente do ções gerais que todos os particulares se
único bem que lhes restava, para nada comprometeram a observar e das quais
ganhar em compensação; porque os a comunidade se tornou fiadora peran-
ricos, ao contrário, sendo por assim te cada um deles. Foi necessário que a
dizer sensíveis em todas as partes de experiência demonstrasse como uma
seus bens, era muito mais fácil causar- tal constituição era fraca e como os
infratores podiam facilmente evitar a
acusação ou o castigo das faltas, das
quais somente o público deveria ser
testemunha e juiz; foi preciso que se
iludisse a lei de mil modos, que os
inconvenientes e as desordens se multi-
plicassem continuamente para que, por
fim, se pensasse em confiar a particu-
lares a perigosa custódia da autoridade
pública e se delegasse a magistrados o
cuidado de fazer observar as delibera-
ções do povo. É suposição que não se
pode contraditar seriamente aquela
que diz terem sido os chefes escolhidos
antes de organizar-se a confederação, e
278 ROUSSEAU

os ministros escolhidos antes de existi- pelas coisas que vêem, julgam coisas
rem as próprias leis. muito diferentes, que não viram; atri-
Não seria mais razoável crer que os buem aos homens uma tendência natu-
povos se tenham inicialmente lançado ral à servidão pela paciência com a
nos braços de um senhor absoluto, sem qual aqueles, que têm sob os olhos,
condições nem compensações, e que suportam a sua, sem pensar que com a
lançar-se na escravidão fosse o pri- liberdade acontece o mesmo que com a
meiro meio que pudessem imaginar ho- inocência e a virtude, cujo valor só se
mens orgulhosos e desconfiados para percebe à medida que a própria pessoa
atender à segurança comum102. Com usufrui delas e cujo gosto se perde
efeito, por que se darem a superiores, assim que se as perdem. “Conheço as
senão para defender-se da opressão e delícias de tua terra”, dizia Brási-
proteger seus bens, suas liberdades e das10 4 a um sátrapa que comparava a
suas vidas que, por assim dizer, repre- vida de Esparta à de Persépolis, “mas
sentam os elementos constitutivos de não podes conhecer os prazeres da
seu ser? Ora, como nas relações de minha.”
homem para homem o pior que pode Assim como um corcel indomável
acontecer a um é ver-se à discrição do eriça a crina, bate com o pé na terra e
outro, não contrariaria o bom senso se debate impetuosamente só com a
começar por despojar-se, nas mãos de aproximação do freio, enquanto que
um chefe, das únicas coisas para cuja um cavalo domado aguenta paciente-
conservação necessitavam de seu auxí-
lio? Que equivalente poderia oferecer- mente o chicote e a espora, também o
lhes o chefe pela concessão de tão belo homem bárbaro não dobra sua cabeça
direito? E, se tivesse ousado exigi-lo, a ao jugo que o homem civilizado carre-
pretexto de defendê-los, não recebería ga sem murmurar e prefere a mais
logo a resposta do apólogo: “Que nos tempestuosa liberdade a uma tranquila
fará a mais o inimigo?” Incontes- dominação. Não é, pois, pelo avilta-
tável, pois, e máxima fundamental de mento dos povos dominados que se
todo o direito político, é que os povos devem julgar das disposições naturais
se deram chefes para defender sua do homem a favor ou contra a servi-
liberdade e não para serem dominados. dão, mas sim pelo prodígio realizado
“Se temos um príncipe” dizia Plínio a por todos os povos livres para se
Trajano, “é para que nos preserve de defenderem da opressão. Sei que os
ter um senhor.”1 03 primeiros nada fazem senão enaltecer
Os políticos fazem sobre o amor à continuamente a paz e o sossego de
liberdade os mesmos sofisrhas que os que gozam sob seus grilhões e que
filósofos sobre o estado de natureza — miserrimam servitutem pacem appel-
lant'0 5, mas quando vejo os outros
102 Essa era a opinião de Hobbes e de Gró- sacrificarem os prazeres e o repouso, a
cio. (N. de P. A.-B.) riqueza, o poder e a própria vida pela
1 03 Citação inexata. “Seis, ut sunt diversa na-
tura dominatio et principatus, ita non aliis esse
principem gratiorem, quam qui maxime domi- 104 Brásidas: general espartano; durante a
num graventur” (Plínio, Panegírico, XLV). guerra do Peloponesó, ganhou a batalha de
“Sabes que, assim como a tirania e o poder Anfípolis, na qual foi ferido mortalmente (422
legítimo são de natureza contrária, do mesmo a. C.). (N. de P. A.-B.)
modo não há homens mais apegados a seu 105 “Chamam de paz a mais miserável das
imperador do que aqueles a quem mais pesa servidões.” Tácito, Histórias IV, XVII. (N. de
um senhor.” (N. de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

conservação desse único bem tão des- volta. Os bens do pai, dos quais é
prezado por aqueles que o perderam, verdadeiramente senhor, são os laços
quando vejo animais, nascidos livres e que retêm seus filhos em sua dependên-
detestando o cativeiro, esmagarem a cia, e só pode fazê-los participar de sua
cabeça contra as grades da prisão, sucessão na medida em que se torna-
quando vejo multidões de selvagens rem merecedores do pai por contínua
nus desprezarem as volúpias européias deferência a seus desejos. Ora, longe
e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e de poderem esperar os súditos por
a morte para conservar somente sua qualquer favor semelhante de seu dés-
independência, concluo não poderem pota, por lhe pertencerem como um
ser os escravos os mais indicados para próprio seu —.eles e tudo o que pos-
raciocinar sobre a liberdade. suem —, ou pelo menos por pretender
Quanto à autoridade paterna, da ele que assim seja, vêem-se obrigados a
qual muita gente fez derivar o governo receber como favor o que lhes deixa de
absoluto e toda a sociedade, sem exa- seus próprios bens: faz justiça quando
minar as provas em contrário de Locke os despoja, presta-lhes um favor quan-
e Sidney10 6, basta observar que nada do os deixa viver.
no mundo mais se distancia do espírito Continuando assim a examinar os
feroz do despotismo do que a doçura fatos segundo o direito, não se encon-
dessa autoridade, que leva em conside- trará mais solidez do que verdade no
ração antes o benefício daquele que estabelecimento voluntário da tirania e
obedece do que a utilidade daquele que seria difícil mostrar a validade de um
comanda. Além disso, o pai, pela lei da contrato que só obrigaria uma das par-
natureza, só é senhor dó filho enquanto tes, no qual tudo caber ia a um lado e
necessário seu auxílio, tornando-se de- nada a outro, e que só resultaria em
pois disso iguais e, então, o filho, intei- prejuízo de quem nele se compromete.
ramente independente do pai, só lhe Esse sistema odioso está bem longe de
deve respeito sem nenhuma obediên- ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons
monarcas, e sobretudo dos reis de
cia, pois o reconhecimento representa
França, como se pode verificar em vá-
um dever que se deve cumprir, mas
rias passagens de seus editos, e, em
não um direito que se possa exigir. Em especial, no seguinte trecho de uma
lugar de dizer que a sociedade civil de- obra célebre, publicada em 1667, em
riva do poder paterno, dever-se-ia, pelo nome e por ordem de Luís XIV: “Que
contrário, dizer que dela tira esse em absoluto se diga não estar o sobe-
poder sua principal força. Um indiví- rano sujeito às leis de seu Estado, pois
duo só foi reconhecido como pai de que a proposição contrária é uma ver-
outros quando estes se reuniram à sua dade do direito das gentes, que a adu-
lação algumas vezes atacou, mas que
10 6 Algernon Sidney (morto em 1683), autor os bons príncipes sempre defenderam
dos refu-
tou, ponto a ponto, o de Filmer como uma divindade tutelar de seus
(publicado, postumamente, em 1653) que Estados. Quanto mais legítimo é di-
defendia o fundamento paternal da monarquia. zer-se com o sábio Platão, que a felici-
Locke, no primeiro de seus dade perfeita de um reino consiste em
repete Sidney. Rousseau retoma o ser o príncipe obedecido pelos seus sú-
assunto e o comentário a esses autores no iní-
cio do artigo sobre a “Economia Política”. (N. ditos, em o príncipe obedecer a lei e em
de L. G. M.) ser a lei justa e visar sempre ao bem do
280 ROUSSEAU

público!”107 Não me deterei procu- Locke, não poder ninguém vender sua
rando saber se, sendo a liberdade a liberdade senão ao ser submetido a
mais nobre das faculdades do homem, uma potência arbitrária que o trate de
não equivaleria a degradar a natureza acordo com sua fantasia. “Pois”,
pôr-se ao nível das bestas escravas do acrescenta ele, “isto séria vender sua
instinto, ofender mesmo o autor de seu própria vida, da qual não se é se-
ser quando se renuncia sem reservas ao nhor.”109 Perguntarei, somente, com
mais precioso de todos os seus dons, que direito aqueles que não temem
quando se submete a cometer os cri- aviltar-se até tal ponto, puderam sub-
mes proibidos para agradar a um se- meter sua posteridade à mesma igno-
nhor feroz e insensato, e ainda se o mínia e em seu nome renunciar a bens
operário sublime deverá ficar mais que ela não recebe de sua liberalidade
irado em ver destruir do que em ver e sem os quais a própria vida é onerosa
desonrar sua mais bela obra. Não leva- a todos dignos dela.
rei em consideração, em se querendo, a Pufendorf diz que, assim como por
autoridade de Barbeyrac108, que de- meio de convenções e de contratos se
clara precisamente, de acordo com transfere a fortuna a outrem, pode-se
abrir mão da liberdade em proveito de
1 0 7 Este trecho parece estar em contradição alguém. Eis o que me parece um racio-
com todos os princípios que, na realidade, cínio bastante falho, póis, em primeiro
guiaram Luís XIV em sua política de autori-
dade, de dominação e conquistas. Impõe-se
lugar, o bem que alieno torna-se-me
saber em que circunstâncias e com que desíg- coisa inteiramente estranha cujo abuso
nios foi escrito. É extraído do Traité des Droits me é indiferente, mas é de meu inte-
de la Reine Trés-Chrétienne sur Divers États resse que não abusem de minha liber-
de la Monarchie d’Espagne (1667). Quando, dade e não posso, sem tomar-me cul-
depois da morte de Filipe IV, rei da Espanha,
Luís XIV preparou-se, apesar das renúncias pado do mal que me forçarão a fazer,
formais consentidas no seu contrato d.e casa- expor-me a tornar-me instrumento do
mento, para invadir os Países-Baixos espa- crime. Além disso, o direito de proprie-
nhóis, publicou esse Traité. Fazendo-se passar dade sendo apenas de convenção e
como “submetido às leis de seu Estado”, isto é,
como colocado por elas na necessidade de instituição humana, qualquer homem
pegar em armas, Luís XIV pensava somente pode a seu arbítrio dispor daquilo que
em influenciar as potências estrangeiras e não possui; isso, porém, não acontece com
em governar seus próprios súditos: aliás, o os bens essenciais da natureza, tais
mesmo Traité apressa-se a prevenir as conse-
quências da verdade que acaba de anunciar:
“Os reis são os autores das leis nos seus Esta- 109 Idéia cara a Rousseau, que a desenvol-
dos. Isso não quer dizer que se duvide de terem verá no Contrato Social, I, IV, Da escravidão.
os reis o poder de fazer e de derrogar leis; esse “Afirmar que um homem se dá gratuitamente
direito é, indiscutivelmente, um dos mais belos constitui uma afirmação absurda e inconce-
florões de sua coroa”. Ao apresentar isolada- bível; tal ato é ilegítimo e nulo, precisamente
mente um trecho, Rousseau faz com que tome porque aquele que o faz não está no completo
um caráter inteiramente diverso; sem dúvida, domínio de seus sentidos.” Essa idéia repousa
desejou ele dar sutil lição ao governo então numa concepção da liberdade exposta na Pro-
existente. (N. de P. A.-B.) fissão de Fé do Vigário Saboiano, II. “Sem dú-
professor de direito em Gro- vida, não sou livre de não querer meu próprio
ningue, publicou no começo do século XVII bem; não sou livre de querer meu mal. . . (A
uma tradução francesa das obras de Pufendorf providência) não quer o mal que o homem faz
sobre O Direito da Natureza, Das Gentes e ao abusar da liberdade que ela lhe dá, mas ela
Dos deveres do Homem e do Cidadão. Rous- não o impede de fazer. Ela o criou livre a fim
seau o atacará no Contrato Social, II, II. (N. de que ele fizesse, não o mal, mas o bem,
de P. A.-B.) escolhendo-o.” (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 281

como a vida e a liberdade, de que cada observância das leis nele estipuladas e
um pode gozar e dos quais é pelo que formam os liames de sua
menos duvidoso se tenha o direito de união110. Tendo o povo, quanto às
despojar-se. Destituindo-se de uma, relações sociais, reunido todas as suas
degrada-se o ser; destituindo-se de vontades numa só, tornam-se todos os
outra, anula-se quanto existe em si pró- assuntos, sobre os quais essa vontade
prio, e, como nenhum bem temporal se exprime, outras tantas leis funda-
pode dispensar-se de uma e de outra, mentais que obrigam todos os mem-
constituiría ofensa às leis da natureza e bros do Estado sem exceção, regula-
à razão renunciar a elas a qualquer mentando uma delas a escolha e o
preço. Mas, ainda que se pudesse alie- poder dos magistrados encarregados
nar sua liberdade como a seus bens, a de zelar pela execução das outras. Esse
diferença seria muito grande para os fi- poder se estende a quanto possa man-
lhos que só gozam dos bens do pai pela ter a constituição, sem chegar a mudá-
transmissão de seu direito, enquanto, la. Juntam-se-lhe honrarias que tornam
sendo a liberdade um dom que lhes respeitáveis as leis e seus ministros e,
advém da natureza pela qualidade de para estes, pessoalmente, prerrogativas
homem, seus pais não têm qualquer que os compensam dos trabalhos peno-
direito de despojá-los dele. De modo sos acarretados por uma boa adminis-
que, assim como para estabelecer a tração. O magistrado, por seu lado,
escravidão precisou-se violentar a na- obriga-se a só utilizar o poder que lhe é
tureza, foi necessário modificá-la para confiado segundo a intenção dos que
perpetuar esse direito e os juriscon- confiaram nele, a manter cada um no
sultos que pronunciaram gravemente gozo tranquilo do que lhe pertence e,
nascer escravo o filho de um escravo em todas as ocasiões, a preferir a utili-
resolveram, em outras palavras, que dade pública a seu próprio interesse.
um homem não nascería homem. Antes que a experiência o demons-
Parece-me, portanto, certo não so- trasse, ou o conhecimento do coração
mente que os governos não começaram humano fizesse prever os abusos inevi-
pelo poder arbitrário que não passa da táveis de uma tal constituição, ela cer-
corrupção, termo extremo e que afinal tamente pareceu a melhor, por serem
reduz os governos simplesmente à lei aqueles que estavam encarregados de
do mais forte, do qual foram inicial- sua conservação os mais interessados
mente o remédio, mas também que, nisso, pois, não se baseando a magis-
ainda quando tivessem assim começa- tratura e seus direitos senão nas leis
do, sendo esse poder por sua natureza fundamentais, assim que fossem estas
ilegítimo, não pôde servir de base aos destruídas, os magistrados deixariam
direitos da sociedade e, consequente- de ser legítimos e o povo não mais
mente, à desigualdade de instituição.
Sem entrar, nesse momento, nas pes-
110 Rousseau acabará as pesquisas, que aqui
quisas que ainda restam por fazer anuncia, no onde distinguirâ:
sobre a natureza fundamental de qual- 1) o contrato social, pelo qual se constitui um
quer governo, limito-me, seguindo a “corpo moral e coletivo”, que é o “corpo polí-
opinião comum, a considerar aqui o tico”, ou seja, o “Estado”, quando passivo, ou
estabelecimento do corpo político o “Soberano”, quando ativo (1. I, c. IV); 2) a
constituição de um governo, mero “corpo
como um verdadeiro contrato entre o intermediário entre os súditos e o soberano”,
povo e os chefes que escolhe, contrato no que não vai qualquer contrato (l.III, c. I).
pelo qual as duas partes se obrigam à (N. de L. G. M.)
ROUSSEAU

estaria obrigado a obedecer-lhes, e autoridade soberana um caráter sagra-


como não era o magistrado, mas a lei, do e inviolável que privasse os súditos
que constituira a essência do Estado, do direito funesto de dispor dela.
cada um de direito voltaria de novo à Ainda que a religião tivesse prodigali-
sua liberdade natural. zado somente este bem aos homens, já
Por menos que se reflita atenta- bastaria para que todos devessem ado-
mente sobre o assunto, tal coisa se rá-la e adotá-la, mesmo com seus abu-
confirmaria por novas razões e, pela sos, porquanto ela poupa muito mais
natureza do contrato, ver-se-ia que não sangue do que aquele que o fanatismo
poderia ser irrevogável, pois, se não faz correr112. Mas sigamos o fio de
houvesse poder superior capaz de nossa hipótese.
fazer-se fiador da fidelidade dos con- As várias formas de governo têm
tratantes, nem de forçá-los a cumprir sua origem nas diferenças mais ou
seus compromissos recíprocos, somen- menos profundas encontradas entre os
te as partes ficariam como juizes em particulares por ocasião da instituição.
causa própria e cada uma delas sempre Um homem era eminente pelo poder,
estaria no direito de renunciar ao con- pela virtude, riqueza ou crédito; só ele
trato assim que achasse que a outra foi eleito magistrado e o Estado tor-
estivesse infringindo as condições ou nou-se monárquico. Se inúmeros ho-
desde que estas cessassem de convir- mens, quase iguais entre si, se sobrepu-
lhes. Sobre tal princípio parece legí- nham aos demais, eram eleitos
timo fundamentar-se111 o direito de conjuntamente e fez-se uma aristocra-
abdicar. Ora, considerando apenas, cia. Aqueles, entre os quais a fortuna
como o fazemos, a instituição humana, ou os talentos eram menos despropor-
se o magistrado, que está com todo o cionais e se encontravam menos dis-
poder em suas mãos e se apropria de tanciados do estado de natureza, toma-
todas as vantagens do contrato, tivesse ram em comum a administração
o direito de renunciar à autoridade, suprema e formaram uma democra-
com muito mais razão deveria o povo, cia1 13. O tempo demonstrou qual des-
que paga por todas as faltas dos che- sas formas era a mais vantajosa para
fes, ter o direito de renunciar à depen- os homens. Uns submeteram-se unica-
dência. Mas as dissensÕes profundas, mente às leis, outros logo obedeceram
as desordens infinitas, que esse poder a senhores. Os cidadãos quiseram con-
perigoso necessariamente acarretaria, servar sua liberdade, os súditos só pen-
mostram, mais do que qualquer outra saram em arrancá-la de seus vizinhos,
coisa, como os governos humanos ti- não podendo conceber que outros
nham necessidade de uma base mais gozassem de um bem do qual eles pró-
sólida do que a pura razão e como era prios não mais gozavam. Em uma
necessário à tranquilidade pública que palavra, de um lado ficaram as rique-
a vontade divina interviesse para dar à zas e as conquistas, e, do outro, a feli-
cidade e a virtude.
111 Cf. Contrato Social, III, X, onde Rous-
seau examina os casos de dissolução do Esta- 11 2 Cf. importante capítulo sobre a Religião
do. “Desse modo, no momento em que o Civil, no Contrato Social, IV, VIII, no qual
governo usurpa a soberania rompe-se o pacto Rousseau enaltece o papel social da religião
social e todos os simples cidadãos, repostos natural e ataca o fanatismo e a insociabilidade
por direito em sua liberdade natural, são força- das religiões reveladas. (N. de P. A.-B.)
dos, mas não obrigados a obedecer.” (N. de P. 113 Cf. a mesma divisão, no Contrato Social,
A.-B.) III, IV, VI. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 283

Nesses diversos governos, todas as Se seguirmos o processo da desi-


magistraturas foram a princípio eleti- gualdade nessas diferentes revoluções,
vas e, quando a riqueza não a arreba- verificaremos ter constituído seu pri-
tava, a preferência distinguiu o mérito, meiro termo o estabelecimento da lei e
que dá um ascendente natural, e a do direito de propriedade; a instituição
idade, que dá experiência nos negócios da magistratura, o segundo; sendo o
e calma nas deliberações. Os antepas- terceiro e último a transformação do
sados dos hebreus, os gerontes de poder legítimo em poder arbitrário.
Esparta, o senado de Roma e a própria Assim, o estado de rico e de pobre foi
etimologia da palavra de nossa língua autorizado pela primeira época; o de
seigneur'1 4 mostram como outrora poderoso e de fraco pela segunda; e,
era a velhice respeitada. Quanto mais pela terceira, o de senhor e escravo,
as eleições recaíam sobre homens de que é o último grau da desigualdade e
idade avançada, tanto mais se torna- o termo em que todos os outros se
vam frequentes e as dificuldades ainda resolvem, até que novas revoluções
mais se faziam sentir; as tramas apare- dissolvam completamente o Governo
ceram, as facções se formaram, os par- ou o aproximem da instituição legíti-
tidos se exasperaram, as guerras civis ma.
se atearam, enfim, sacrificou-se o san- Para compreender a necessidade
gue dos cidadãos à pretensa felicidade desse progresso, é preciso considerar
do Estado e se esteve a ponto de cair menos os motivos do estabelecimento
na anarquia dos tempos anteriores. A do corpo político do que a forma que
ambição dos principais aproveitou-se assume na sua prática e os inconve-
dessas circunstâncias para perpetuar nientes que traz consigo, pois os vícios
seus mandatos em suas famílias; o que tornam as instituições necessárias
povo, já acostumado com a dependên- são os mesmos que tornam inevitável o
cia, com a calma e as comodidades da abuso. E como — salvo a exceção
vida, e já incapaz de quebrar seus gri- única de Esparta, onde a lei velava
lhões, consentiu em deixar aumentar a principalmente pela educação das
sua servidão para assegurar sua tran- crianças e onde Licurgo estabeleceu
quilidade. Assim, tendo se tornado costumes que quase o dispensavam de
hereditários, os chefes acostumaram-se acrescentar-lhes leis — as leis, menos
a considerar a magistratura como um fortes do que as paixões, contêm os ho-
bem de família e a si próprios proprie- mens sem mudá-los, seria fácil provar
tários do Estado, do qual a princípio que todo Governo que, sem se corrom-
não seriam senão funcionários; a cha- per nem se alterar, andasse sempre
mar seus concidadãos de escravos, a exatamente de acordo com a finalidade
incluí-los, como o gado, entre as coisas de sua instituição, teria sido instituído
que lhes pertenciam e chamar a si mes- sem necessidade e que um país, no
mos de iguais aos deuses e de reis dos qual ninguém ludibriasse as leis nem
reis. abusasse da magistratura, não teria
necessidade nem de magistrados, nem
114 Os gerontes, isto é, os velhos, constituíam de leis.
o Conselho dos anciãos. Daí a expressão As distinções políticas levam neces-
gerontocracia (governo dos velhos). A palavra sariamente às distinções civis. Cres-
francesa seigneur vem do latim sênior que sig-
nifica “mais idoso”, “velho”. Igual etimologia cendo a desigualdade entre o povo e
tem o vocábulo senhor em português. (N. de P. seus chefes, faz-se ela logo sentir entre
A.-B.) os particulares e nesse meio se modi-
ROUSSEAU

fica de inúmeras maneiras segundo as dade (s), desde que, reunidos em uma
paixões, os talentos e as ocorrências. O mesma sociedade, são forçados a com-
magistrado não poderia usurpar um parar-se entre si e a tomar conheci-
poder ilegítimo sem engendrar criatu- mento das diferenças reveladas no uso
ras às quais é forçado a dar certa parte contínuo que têm de fazer uns dos
dele. Aliás, os cidadãos só se deixam outros. Essas diferenças são de várias
oprimir quando,levados por uma ambi- espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou
ção cega e olhando mais abaixo do que a condição, o poder e o mérito pessoal
acima de si mesmos, a dominação sendo, em geral, as distinções princi-
torna-se-lhes mais cara do que a pais pelas quais as pessoas se medem
independência e quando consentem em na sociedade, provarei que o acordo ou
carregar grilhões para por sua vez o conflito dessas forças diversas são a
poder aplicá-los. É muito difícil redu- indicação mais certa de um Estado
zir à obediência aquele que não procu- bem ou mal constituído; mostrarei de-
ra comandar e o político mais esperto pois que, entre esses quatro tipos de
não conseguiría submeter homens que desigualdade, constituindo as qualida-
só desejassem ser livres. Mas a desi- des pessoais a origem de todas as
gualdade se expande, sem dificuldade, outras, a riqueza é a última a que por
entre almas ambiciosas e covardes, fim elas se reduzem, porque, sendo a
sempre prontas a correr os riscos da mais imediatamente útil ao bem-estar e
fortuna e a quase indiferentemente a mais fácil de comunicar-se, servem-
dominar ou servir, conforme lhes seja se dela com facilidade para comprar
a fortuna favorável ou contrária. Eis todo o resto. Essa observação permite
como, seguramente, veio um tempo no julgar com bastante precisão como
qual os olhos do povo foram fascina- cada povo se distanciou de sua institui-
dos a tal ponto que aos seus conduto- ção primitiva e do caminho que per-
res bastava dizer ao menor dos ho- correu até o termo extremo da corrup-
mens: “Sê grande, tu e toda a tua ção. Salientaria como esse desejo
raça”, para que logo ele parecesse universal de reputação, de honrarias e
grande aos olhos de todos e aos seus de preferências, que nos devora, a
próprios, e seus descendentes se elevas- todos adestra e põe em confronto os
sem ainda mais à medida que dele se talentos e as forças, excita e multiplica
distanciavam; quanto mais a causa as paixões e como, tornando todos os
fosse distante e incerta, mais aumen- homens concorrentes, rivais, ou me-
tava o efeito; quanto mais se pudesse lhor, inimigos, cotidianamente deter-
contar com indolentes11 5 numa famí- mina desgraças, acontecimentos e ca-
lia, tanto mais ela se tornava ilustre. tástrofes de toda espécie, fazendo com
que tantos pretendentes entrem num
Se aqui coubesse entrar em porme- mesmo combate. Mostraria que é a Caí
nores, explicaria facilmente como, sem ânsia de fazer falar de si, a esse furor
sequer imiscuir-se o Governo, torna-se de distinguir-nos, quase sempre nos
inevitável entre os particulares a desi- colocando fora de nós, que devemos o
gualdade de consideração e de autori- que há de melhor e de pior entre os
homens: nossas virtudes e nossos ví-
cios, nossas ciências e nossos erros,
nossos conquistadores e filósofos, isto
é, uma multidão de coisas más contra
um pequeno número de coisas boas.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

Provaria, por fim, que, se vemos um que se ouviria dizerem ao opressor de


punhado de poderosos e de ricos no seu país:
cume das grandezas e das fortunas,
enquanto a multidão rasteja na obscu- Pectore si fratris gladium juguloque
ridade e na miséria, é porque os pri- [parentis
meiros só dão valor às coisas de que Condere me jubeas gravidaeque in
gozam por estarem os demais privados [viscera partu
delas e porque, sem mudar de estado, Conjugis, invita peragam tamen
deixariam de ser felizes se o povo dei- [omnia dextra'1 6.
xasse de ser miserável. Lucano, F. I, v. 376
Mas tais pormenores sozinhos cons-
tituiríam assunto de uma obra conside- Da extrema desigualdade das condi-
rável, na qual se pesariam as vanta- ções e das fortunas, da diversidade das
gens e os inconvenientes de todos os paixões e dos talentos, das artes inú-
povos em relação aos direitos do esta- teis, das artes perniciosas, das ciências
do de natureza e no qual se mostra- frívolas, surgiría uma multidão de
riam todas as várias faces sob as quais preconceitos, igualmente contrários à
a desigualdade se apresentou até hoje e razão, à felicidade e à virtude; ver-se-ia
poderá apresentar-se nos séculos futu- fomentado pelos chefes tudo o que,
ros, segundo a natureza desses gover- desunindo-os, pudesse enfraquecer os
nos e as revoluções que o tempo neces- homens reunidos, tudo o que pudesse
sariamente lhes trará. Ver-se-ia a dar à sociedade um ar de concórdia
multidão premida interiormente pelas aparente e nela implantar um germe de
consequências das mesmas precau- divisão real, tudo o que pudesse inspi-
ções, que tomaria contra o que a amea- rar às várias ordens uma desconfiança
ça de fora; ver-se-ia a opressão crescer e um ódio mútuos graças à oposição
continuamente, sem que os oprimidos de seus direitos e de seus interesses, e,
pudessem jamais saber qual seu termo, consequentemente, fortificar o poder
nem quais os meios legítimos que lhes que os contém a todos.
restariam para sustá-la; ver-se-iam os É do seio dessa desordem e dessas
direitos dos cidadãos e as liberdades revoluções que o despotismo11 7, ele-
nacionais apagarem-se pouco a pouco vando aos poucos sua horrenda cabeça
e as reclamações dos fracos serem e devorando tudo o que percebesse de
consideradas como murmúrio sedicio- bom e de sadio em todas as partes do
so; ver-se-ia a política restringir a uma Estado, conseguiría por fim esmagar
porção mercenária do povo a honra de sob seus pés as leis e o povo, e estabe-
defender a causa comum; ver-se-ia daí lecer-se sobre as ruínas da república.
nascer a necessidade dos impostos, o Os tempos que precederíam esta últi-
agricultor desencorajado abandonar ma mudança seriam períodos de agita-
seu campo, mesmo durante a paz, e ções e de calamidades, mas, no fim,
deixar a charrua para cingir a espada;
ver-se-iam nascer as regras funestas e 11 6 “Se me ordenasses cravar minha espada
singulares relativas aos pontos de no seio de meu irmão, na garganta de meu pai
honra; ver-se-iam os defensores da pá- ou no ventre de minha esposa grávida, apesar
tria tomarem-se, mais tarde ou mais de a contragosto, tudo isso minha mão faria
até o fim.” Lucano, Farsália, I, verso 376. (N.
cedo, seus inimigos e manterem conti- de P. A.-B.)
nuamente um punhal alçado contra 11 7 Rousseau inicia aqui uma severa crítica
seus cidadãos, e chegaria o tempo em do Antigo Regime. (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU

tudo seria devorado pelo monstro e os dessas revoluções breves e frequentes,


povos não mais teriam nem chefes, ninguém pode lamentar-se da injustiça
nem leis, mas unicamente tiranos. de outrem, mas unicamente de sua pró-
Desde esse momento também deixa- pria imprudência ou de sua infelici-
riam de interessar os costumes e a vir- dade.
tude, pois em todo lugar onde reina o Descobrindo e seguindo, deste
despotismo, cui ex honesto nulla est modo, os caminhos esquecidos e perdi-
spes118, não suporta ele qualquer dos que levaram o homem do estado
outro senhor; desde que fale, não há natural ao estado civil, restabelecendo,
nem probidade nem dever a consultar, com auxílio das posições interme-
e a única virtude que resta aos escra- diárias que acabo de assinalar, aqueles
vos é a mais cega obediência. que o tempo premente me fez suprimir
É este o último grau da desigual- ou a imaginação não me sugeriu, qual-
dade, o ponto extremo que fecha o cír- quer leitor atento deverá impressio-
culo e toca o ponto de que partimos; nar-se com o espaço imenso que sepa-
então, todos os particulares se tornam ra esses dois estados. Ê nessa lenta
iguais, porque nada são, e os súditos, sucessão de coisas que encontrará a
não tendo outra lei além da vontade do solução de uma infinidade de proble-
senhor, nem o senhor outra regra além mas de moral e de política, que os filó-
de suas paixões, as noções do bem e os sofos não podem resolver120. Com-
princípios da justiça desfalecem nova- preenderá que o gênero humano de
mente; então tudo se governa unica- uma época não sendo o gênero huma-
mente pela lei do mais forte e, conse- no de outra, esta é a razão por que
quentemente, segundo um novo estado Diógenes não encontrava um
de natureza, diverso daquele pelo qual homem121, pois ele procurava entre
começamos, por ser este um estado de seus contemporâneos o homem de uma
natureza em sua pureza, e o outro, época já passada. Catão, dirá ele, pere-
fruto de um excesso de corrupção. ceu com Roma e com a liberdade, por-
Aliás, há tão pequena diferença entre
esses dois estados e o contrato de
Governo é de tal modo desfeito pelo
despotismo, que o déspota só é senhor
enquanto é o mais forte e, assim que se
pode expulsá-lo, absolutamente não
lhe cabe reclamar contra a violência. A
rebelião que finalmente degola ou des-
trona um sultão é um ato tão jurídico
quanto aqueles pelos quais ele, na vés-
pera, dispunha das vidas e dos bens de
seus súditos. Só a força o mantinha, só
a força o derruba; todas as coisas se
passam, assim, segundo a ordem na-
tural1 1 9 e, seja qual for o resultado

118 “Para quem não existe esperança alguma o Cínico (413-323 a.C.), des-
com o homem honesto.” (N. de P. A.-B.) prezava as convenções sociais e vivia num
119 Rousseau parece predizer, para depois do tonel. Certa vez passeou em pleno dia nas ruas
Antigo Regime, a Revolução de 1789, e até de Atenas com uma lanterna na mão; ao ser
invocá-la. (N. de P. A.-B.) interrogado, respondeu: “Procuro um homem”.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

que se encontrava deslocado no seu sé- honra de servi-los; jacta-se orgulhosa-


culo e o maior dos homens mente de sua própria baixeza e da pro-
simplesmente surpreendeu o mundo teção deles, e, orgulhoso de sua escra-
que deveria ter governado quinhentos vidão, refere-se com desprezo àqueles
anos antes122. Em uma palavra, expli- que não gozam a honra de partilhá-la.
cará como a alma e as paixões huma- Que espetáculo não seriam para um
nas, altemando-se insensivelmente, caraíba os trabalhos penosos e inveja-
mudam, por assim dizer, de natureza; dos de um ministro europeu! Quantas
por que nossas necessidades e nossos mortes cruéis não preferiría esse selva-
prazeres mudam de objeto com o gem indolente ao horror de uma tal
decorrer dos tempos; por que, desapa- vida que frequentemente nem sequer se
recendo gradativamente o homem na-
ameniza pelo prazer de bem proceder!
tural, a sociedade só oferece aos olhos
Mas, para aquilatar o objetivo de tan-
ao sábio uma reunião de homens artifi-
ciais e de paixões factícias que são tos cuidados, seria preciso que as pala-
obra detodas essas relações novas e vras poder e reputação tivessem um
não têm nenhum fundamento na natu- sentido para seu espírito e que sou-
reza. O que a reflexão nos ensina a besse existir uma espécie de homens
esse propósito, a observação o con- que dão valor aos olhos do resto do
firma perfeitamente123: o homem sel- mundo e se sentem satisfeitos consigo
vagem e o homem policiado diferem de mesmos mais pelo testemunho de ou-
tal modo, tanto no fundo do coração trem do que pelo seu próprio. Tal, com
quanto nas suas inclinações, que aqui- efeito, a verdadeira causa de todas
lo que determinaria a felicidade de um essas diferenças: o selvagem vive em si
reduziría o outro ao desespero. O pri- mesmo; o homem sociável, sempre
meiro só almeja o repouso e a liberda- fora de si, só sabe viver baseando-se na
de, só quer viver e permanecer na ocio- opinião dos demais e chega ao senti-
sidade e mesmo a ataraxia do estóico mento de sua própria existência quase
não se aproxima de sua profunda indi- que somente pelo julgamento destes.
ferença por qualquer outro objeto. O Não cabe no meu assunto mostrar
cidadão, ao contrário, sempre ativo, como de uma tal disposição nasce
cansa-se, agita-se, atormenta-se sem tamanha indiferença pelo bem e pelo
cessar para encontrar ocupações ainda mal, com tão belos discursos sobre a
mais trabalhosas; trabalha até a morte, moral; como, tudo reduzindo-se às
corre no seu encalço para colocar-se aparências, tudo se torna artificial e
em situação de viver ou renunciar à representado, seja a honra, a amizade,
vida para adquirir a imortalidade; cor- a virtude, frequentemente mesmo os
teja os grandes, que odeia, e os ricos, próprios vícios com os quais por fim se
que despreza; nada poupa para obter a encontra o segredo de se glorificar12 4;
como, em uma palavra, perguntando
sempre aos outros o que somos e não
ousando jamais interrogarmo-nos a
nós mesmos sobre esse assunto, em
meio a tanta filosofia, humanidade,
polidez e máximas sublimes, só temos
288 ROUSSEAU

um exterior enganador e frívolo, honra nossas faculdades e aos progressos do


sem virtude, razão sem sabedoria e espírito humano, tomando-se, afinal,
prazer sem felicidade. Basta-me ter estável e legítima graças ao estabeleci-
provado não ser esse, em absoluto, o mento da propriedade e das leis.
estado original do homem e que unica- Conclui-se, ainda, que a desigualdade
mente o espírito da sociedade e a desi- moral, autorizada unicamente pelo
gualdade, que ela engendra, é que direito positivo, é contrária ao direito
mudam e alteram, desse modo, todas natural sempre que não ocorre, junta-
as nossas inclinações naturais. mente e na mesma proporção, com a
Esforcei-me por expor a origem e o desigualdade física — distinção que
progresso da desigualdade, o estabele- determina suficientemente o que se
cimento e o abuso das sociedades polí- deve pensar, a esse respeito, sobre a
ticas, quanto possam essas coisas espécie de desigualdade que reina entre
deduzir-se da natureza do homem uni- todos os povos policiados, pois é
camente pelas luzes da razão e inde- manifestamente contra a lei da nature-
pendentemente dos dogmas sagrados, za, seja qual for a maneira por que a
que dão à autoridade soberana a san- definamos, uma criança mandar num
são do direito divino. Conclui-se dessa velho, um imbecil conduzir um sábio,
exposição que, sendo quase nula a ou um punhado de pessoas regurgitar
desigualdade no estado de natureza, superfluidades enquanto à multidão
deve sua força e seu desenvolvimento a faminta falta o necessário12 5.
In t r o d u ç ã o à s n o t a s d e Ro u s s e a u a o
“Dis c u r s o s o b r e a De s ig u a l d a d e ”
de Paul Arbousse-Bastide

Para não romper a unidade de seu Discurso, Rousseau, como o fazem os


autores modernos de teses, apresentou na forma de notas a documentação bas-
tante erudita em que se apoiou. Como algumas dessas notas deram, porém, lugar
a desenvolvimentos muito abundantes, Rousseau resolveu colocá-las, todas jun-
tas, no fpn do Discurso, numa espécie de apêndice.
O interesse dessas notas reside no fato de, em primeiro lugar, levantarem,
pela repetição, os dois temas que parecem fundamentais a Rousseau: o caráter
científico de sua descrição do estado de natureza e o paralelo estereotipado entre
a bondade da natureza e a perversidade da sociedade. A descrição do estado de
natureza baseia-se nos resultados de numerosas ciências que eram então incluí-
das sob o nome de história natural: a geologia (a nota d fala da fertilidade natu-
ral da terra); a biologia animal (a nota g estabelece a lei de duração das espé-
cies; as notas e, h, m estudam a alimentação e a sexualidade animais: o homem
é naturalmente frugívoro, e, como os frugívoros, nunca tem mais do que dois.fi-
Ihos de cada vez; finalmente, a sociedade entre o macho e a fêmea não se funda-
menta naturalmente: “Não existe no homem qualquer motivo que o leve a procu-
rar a mesma mulher; na mulher nenhuma razão para procurar o mesmo
homem”); a psicologia animal (é mais natural para o homem andar sobre duas
patas do que sobre quatro — nota c; o conhecimento de si mesmo vai contra a
natureza — nota b; existe uma transição contínua, entre as formas superiores
dos animais, como o orangotango, e as formas inferiores do homem, como a
criança e o selvagem — notaj; a psicologia do primitivo, confirmando os dados
da psicologia animal: o selvagem éfrugívoro — nota e -—, apresenta uma grande
diversidade física — nota k —, é naturalmente robusto -— nota f —, prefere sua
vida à dos civilizados — nota p —, enquanto o homem de nossas sociedades é
carnívoro, uniformizado, enfraquecido e sua felicidade fictícia não resiste ao
apelo da vida natural). Rousseau, desse modo, reúne um feixe de provas conse-
quentes que dão certo valor científico à sua teoria — o selvagem, o animal, a
própria terra, tudo se mobiliza para lembrar ao homem a bondade original da
natureza. Mas o método é, em Rousseau, tão interessante quanto os resultados
dessa vasta informação. O escritor, particularmente na nota k, protesta contra o
postulado da identidade da natureza humana: a filosofia, até o presente, não
apresentou o caráter de universalidade que deve ser o seu; limita-se a ser uma
filosofia européia. Daí por diante, o filósofo deve tornar-se um viajante; Rous-
290 ROUSSEAU

seau chega até a traçar o plano das viagens ao fim das quais o filósofo poderá ela-
borar uma filosofia do homem.
O paralelo, habitual em Rousseau, entre o estado de natureza e o estado de
sociedade, particularmente na extensa nota i, torna-se convencional e dá lugar a
uma ênfase oratória que hoje nos parece excessiva; Jean-Jacques constrói um
quadro pormenorizado dos dois estados, na intenção de resolver o problema colo-
cado, há dois séculos, pelos metafísicos: neste mundo, a soma dos males será
superior ou inferior à soma dos bens? Pontos particulares desse paralelismo são
retomados nas notas 1 (os desejos são naturalmente limitados, mas acrescidos
pelos hábitos sociais), n (a instituição das línguas apresenta mais inconvenientes
do que vantagens), q (no estado de natureza, a dispersão era um refúgio contra a
violência; sua possibilidade desaparece, aos poucos, com o estado social), o (o
amor de si mesmo ou o instinto de conservação é natural e bom, o amor-próprio
é fictício e nefasto, r (a riqueza permite que se façam impunemente as madraça-
rias que se desejarem). Todavia, surge, timidamente, um terceiro tema: o de uma
regeneração da sociedade pervertida; será o tema mais fecundo, uma vez que
anuncia o Contrato Social. Na nota s, o problema é colocado segundo os mesmos
temas que no Contrato: trata-se de transpor para a sociedade civil a igualdade
rigorosa do estado de natureza e, para isso, “a condição dos cidadãos deve deter-
minar-se não pelo seu mérito pessoal, mas pelos reais serviços por eles prestados
ao Estado ”. Talvez não seja por acaso que Rousseau reservou para esse tema a
primeira e a última dessas notas (a e s).
O segundo interesse dessas notas está em precisar as fontes de Rousseau e
em descobrir em função de que nível de cultura ele emitiu sua teoria. De todos os
autores citados, o que mais aparece é Bujfon. Rousseau transcreve trechos intei-
ros de sua História Natural. O historiador grego Heródoto é também citado mui-
tas vezes, devendo-se incluir, também, Ctésias de Cnide e São Jerônimo. São
ainda consultadas por Rousseau as narrativas dos viajantes modernos: a História
das Viagens é citada duas vezes; Correal, Kolben, o Padre du Tertre, Gautier,
Buttel, Dapper, Merola, Purchas, Saint-John são citados uma vez. Finalmente,
Rousseau refere-se quer a sábios mais ou menos contemporâneos — os psicó-
logos Vossius, Condillac e Locke —, quer aos dois grandes mestres do pensa-
mento ocidental — os moralistas Platão e Montaigne.
No t a s

(a) Heródoto conta que, depois do por qualquer de seus descendentes12 6.


assassínio do falso Smerdis, tendo se (b) Desde meu primeiro passo,
reunido os sete libertadores da Pérsia apóio-me com confiança numa dessas
para resolver que forma dariam ao autoridades respeitáveis pafa os filóso-
Estado, Otanes opinou firmemente fos, por virem de uma razão sólida e
pela república, opinião tanto mais sublime que somente eles sabem en-
extraordinária na boca de um sátrapa, contrar e compreender12 7.
quanto, além da pretensão ao império “Qualquer que seja o interesse que
que poderiam ter, os poderosos temem tenhamos por nos conhecer a nós mes-
mais do que a morte uma espécie de mos, não sei se não conhecemos me-
governo que os force a respeitar os lhor tudo aquilo que não se refere a
homens. Otanes, como se pode imagi- nós. Providos pela natureza de órgãos
nar, não foi atendido e, vendo que se ia unicamente destinados à nossa conser-
proceder à eleição de um monarca, ele, vação, só os empregamos para receber
que não queria nem obedecer nem as impressões estranhas, só procura-
mandar, voluntariamente cedeu aos mos voltar-nos para fora e existir fora
outros concorrentes seu direito à de nós; demasiadamente ocupados em
coroa, pedindo como única compensa- multiplicar as funções de nossos senti-
ção serem, tanto ele quanto sua des- dos e em aumentar a extensão exterior
cendência, livres e independentes, ten- de nosso ser, raramente nos utilizamos
do-se-lhe concedido tal coisa. Ainda
que Heródoto não nos conte a restri- 126 A anedota se encontra nas Histórias de
ção que foi imposta a esse- privilégio, Heródoto, III, LXXXIII, e é contada por
ter-se-á necessariamente de supô-la, Montaigne, Ensaios, III, VIL Montaigne dâ a
conhecer a restrição em questão. “[Otanes]
pois, caso não existisse, Otanes, não renunciou em favor de seus companheiros a
reconhecendo nenhuma lei e não tendo seu direito de poder alcançar [o império] por
de prestar contas a ninguém, seria eleição ou por sorte, contanto que ele e os seus
todo-poderoso no Estado e até mais vivessem nesse império fora de qualquer sujei-
poderoso do que o próprio rei. Mas ção e domínio, salvo a das leis antigas, e tives-
sem aí toda a liberdade que não causasse pre-
não havia qualquer probabilidade de juízo àquelas [leis] — não desejoso tanto de
um homem, capaz de contentar-se em mandar quanto de não ser mandado.” O racio-
tal caso com esse privilégio, mostrar-se cínio de Rousseau é uma reminiscência da teo-
capaz de abusar dele. Com efeito, não ria de Hobbes, para quem o chefe é aquele que
conservou seus direitos naturais, enquanto
se sabe que tenha esse direito determi- todos os demais cidadãos renunciaram a ele.
nado a menor perturbação no reino, (N. de P. A.-B.)
nem causada pelo sábio Otanes, nem 12 7 Trata-se de Buffon. (N.. de P. A.-B.)
292 ROUSSEAU

desse sentido interior que nos reduz às mais, que foi preciso atar-lhe pedaços
nossas verdadeiras dimensões e que de madeira que a obrigavam a man-
distingue de nós tudo que não nos per- ter-se ereta em equilíbrio sobre os dois
tence. No entanto, é desse sentido que pés. A mesma coisa sucedeu com a
devemos utilizar-nos se desejarmos criança que, em 1694, foi encontrada
conhecer-nos; somente por ele podere- nas florestas da Lituânia e que vivia
mos julgar-nos. Como dar, porém, a entre os ursos. Não apresentava, conta
esse sentido, toda a sua atividade e o Sr. de Condillac, qualquer sinal de
extensão? Como desembaraçar nossa razão, andàva sobre os pés e as mãos,
alma, na qual reside, de todas as ilu- não possuía qualquer linguagem e emi-
sões de nosso espírito? Perdemos o há- tia sons que de modo algum se asseme-
bito de invocá-la; ela ficou sem apro- lhavam aos de um homem. O pequeno
veitamento em meio do tumulto de selvagem de Hanôver, que há muitos
nossas sensações corporais, fanou-se anos foi conduzido à corte da Ingla-
ao fogo de nossas paixões; o coração, terra, sentia a maior das dificuldades
o espírito, os sentidos, tudo trabalhou para resignar-se a andar sobre os dois
contra ela.” Hist. Nat., Da Natureza pés e, em 1719, encontraram-se dois
do Homem. outros selvagens nos Pireneus que cor-
(c) As mudanças que pode produzir riam pelas montanhas como se fossem
na conformação do homem o prolon- quadrúpedes. Quanto à objeção de que
gado hábito de andar sobre dois pés, as tal coisa levaria a nos privarmos do
relações que ainda se observam entre uso das mãos, do qual nos advêm tan-
os braços e as pernas anteriores dos tas vantagens, além do exemplo dos
quadrúpedes e a indução feita sobre o macacos, que mostram poderem as
seu modo de andar fizeram com que mãos ser muito bem empregadas dos
nascessem dúvidas acerca da posição dois modos, isso só poderia provar que
que nos deveria ser mais natural. o homem pode dar a seus membros
Todas as crianças começam andando uma destinação mais cômoda do que a
com quatro pés e precisam de nosso da natureza e não que a natureza desti-
exemplo e de nossas lições para apren- nou o homem a andar de um modo
derem a manter-se de pé. Há mesmo diferente do que lhe ensina.
nações selvagens, como a dos hotento- Há, porém, parece-me, muito melho-
tes, que, descuidando bastante das res razões a apresentar para afirmar
crianças, deixam que andem tanto que o homem é um bípede. Primeiro,
tempo sobre as mãos, que depois têm mesmo que se fizesse ver que ele pode-
muito trabalho para endireitá-las; a ria ter anteriormente conformação di-
mesma coisa acontece com os filhos versa da que conhecemos e nesse ínte-
dos caraíbas das Antilhas. Há inúme- rim transformar-se por fim naquilo que
ros exemplos de homens quadrúpedes é, não seria o bastante para concluir
e, entre outros, poderia citar o exemplo que tal se teria passado dessa maneira,
daquela criança que encontraram, em porquanto, após ter mostrado a possi-
1344, perto de Hesse, onde fora criada bilidade dessas mudanças, seria preci-
por lobos e que depois dizia, na corte so ainda, antes de admiti-las, mostrar
do Príncipe Henrique, que, se depen- pelo menos sua verossimilhança. Além
desse unicamente dela, preferiría voltar disso, se os braços do homem parecem
a viver com os lobos do que continuar ter podido, quand© necessário, servir-
a viver entre os homens. De tal modo lhe de pernas, será essa a única obser-
se habituara a andar como esses ani- vação favorável a esse sistema contra
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 293

um grande número de outras que lhe mento só rastejam. Os fatos particu-


são contrárias. As principais são: o lares pouco peso têm ainda contra a
modo pelo qual a cabeça do homem se prática universal de todos os homens e
acha ligada ao corpo, pois, em lugar de até das nações que, não dispondo de
dirigir seu olhar horizontalmente, nenhuma comunicação com as outras,
como o fazem todos os outros animais nada puderam imitar delas. Uma
e como ele próprio tem ao andar de pé, criança abandonada na floresta antes
ficaria ele, andando com quatro pés, de poder andar, e alimentada por algu-
com os olhos diretamente fixados na ma besta, terá seguido o exemplo de
terra, situação pouco favorável para a sua ama, tentando andar como ela;
conservação do indivíduo; o fato de dando-lhe o hábito algumas facilidades
lhe faltar a cauda, de que não precisa que de modo algum lhe advinham de
andando com dois pés, mas que é útil sua natureza e, como os manetas con-
aos quadrúpedes, não faltando a ne- seguem, à força de exercício, fazer com
nhum destes; estar o seio da mulher os pés tudo o que fazemos com as
muito bem situado para um bípede, mãos, conseguirá finalmente empregar
que carrega o filho nos braços, e tão as mãos como se fossem pés.
mal para um quadrúpede, que nenhum (d) Caso se encontre entre meus lei-
o tem colocado dessa maneira; que, tores algum físico suficientemente
sendo a parte traseira de altura exces- fraco para apresentar-me dificuldades
siva proporcionalmente às pernas da quanto à suposição dessa fertilidade
frente, isso determina que, quando natural da terra, desejo responder-lhe
andamos com quatro pés, nos arraste- com este trecho:
mos sobre os joelhos, formando tudo “Como os vegetais extraem, para se
isso um animal mal proporcionado e alimentarem, muito mais substâncias
que anda pouco comodamente; que, se do ar e da água, do que da terra, acon-
o homem colocasse espalmados tanto tece que, ao perecerem, dão à terra
o pé quanta a mão, teria na perna tra- muito mais do que dela extraíram;
seira uma articulação a menos que os aliás, uma floresta, retendo os vapores,
outros animais, a saber, aquela que
une o cânon à tíbia; que, pousando causa as águas da chuva. Assim, numa
somente a ponta do pé, como sem dú- floresta, em que durante muito tempo
vida seria obrigado a fazê-lo, o tarso, não se tocasse, muito aumentaria a ca-
sem falar da pluralidade dos ossos que mada de terra que serve à~ vegetação;
o compõem, parecería muito grosso mas os animais dando à terra menos
para ocupar o lugar do cânon e de suas do que extraem dela e tendo os homens
articulações, com o metatarso e a tíbia um consumo enorme de lenha e de
demasiado unidos para, nessa situa- plantas para o fogo e para outros usos,
ção, dar à perna humana a mesma conclui-se que a camada de terra vege-
flexibilidade que tem a dos quadrúpe- tal de uma região habitada deverá sem-
des. O exemplo das crianças, tomado pre diminuir e, por fim, ficar como a
numa época em que as forças naturais terra da Arábia Pétrea e como a de
ainda não se desenvolveram nem os tantas outras províncias do Oriente
membros ainda se fortaleceram, nada que, efetivamente, é a região há mais
conclui absolutamente; poder-se-ia, tempo habitada, e onde só se encon-
pelo mesmo motivo, dizer que os cães tram sal e areia, pois o sal fixo das
não são destinados a andar, porque plantas e dos animais permanece,
algumas semanas depois do seu nasci- enquanto todas as outras partes se
ROUSSEAU

volatilizam”. Hist. Nat. Provas da os frugívoros possuem-nos de certa


Teoria da Terra, art. 7.°. espécie, como o cólon,- que não se
Pode-se a isso juntar a prova de fato encontra entre os vorazes. Parece,
relativa à quantidade de árvores e de pois, que o homem, tendo os dentes e
plantas de toda a espécie, de que esta- os intestinos como os dos animais
vam repletas quase todas as ilhas frugívoros, deveria ser incluído nessa
desertas descobertas nestes últimos sé- classe; não somente as observações
culos e pelo que a história nos conta anatômicas confirmam essa opinião,
das imensas florestas que se precisou mas os monumentos da antiguidade
abater em toda a terra à medida que se depõem ainda favoravelmente. “Di-
povoou ou policiou. Sobre o assunto cearco”, diz São Jerônimo, “conta, nos
farei ainda as três observações seguin- seus livros de antiguidades gregas, que,
tes: a primeira é que, caso haja uma sob o reinado de Saturno, no qual a
variedade de vegetais que possa com- terra ainda era fértil por si mesma, ne-
pensar o desperdício de matéria vege- nhum homem comia carne e todos vi-
tal feito pelos animais, segundo o viam dos frutos e dos legumes que
raciocínio do Sr. de Buffon, serão cresciam naturalmente.” (Liv. II, Adv.
sobretudo os bosques, cujas copas e fo- Jovinian.) Essa opinião pode ainda
lhas acumulam e retêm uma quanti- basear-se nos relatos de inúmeros via-
dade maior de água e de vapores do jantes modernos; François Correau
que o fazem as outras plantas; a segun- afirma, entre outros, que a maioria dos
da consiste em que a destruição do habitantes das Lucaias, que os espa-
solo, isto é, a perda da substância nhóis transportaram para as ilhas de
apropriada à vegetação, deve acelerar- Cuba, de São Domingos e outros luga-
se à medida que a terra é mais culti- res, morreram por terem comido carne.
vada e os habitantes mais industriosos Pode-se ver, por aí, que deixo de lado
consomem em quantidade muito maior muitas vantagens que poderia salien-
seus produtos de toda a espécie. Minha tar. Porquanto, sendo a presa quase
terceira observação, e a mais impor- que o único motivo de luta entre os
tante, consiste em que os frutos das ár- animais carniceiros e vivendo os frugí-
vores fornecem ao animal uma alimen- voros entre si numa paz contínua, se a
tação mais abundante do que o podem espécie humana fosse deste último gê-
fazer os outros vegetais; é essa uma nero, sem dúvida houvera muito maior
experiência que eu mesmo fiz compa- facilidade para subsistir no estado de
rando os produtos de dois terrenos natureza e muito menos necessidade e
iguais em tamanho e em qualidade, um ocasiões para dele sair.
coberto de castanheiros e outro semea- (f) Todos os nossos conhecimentos
do de trigo. que exigem reflexão, todos aqueles que
(e) Entre os quadrúpedes, as duas só se adquirem pelo encadeamento de
distinções mais universais das espécies idéias e que só se aperfeiçoam sucessi-
vorazes baseiam-se uma na forma dos vamente, parecem estar completa-
dentes'e a outra na conformação dos mente fora do alcance do homem sel-
intestinos. Os animais que só vivem de vagem, por falta de comunicação com
vegetais têm todos os dentes chatos, seus semelhantes, isto é, por falta do
como o cavalo, o boi, o carneiro, a instrumento que serve a, essa comuni-
lebre; mas os vorazes, ao contrário, os cação e das necessidades que a tornam
têm pontudos, como o gato, o cão, o imprescindível. Seu saber e sua indús-
lobo, a raposa. Quanto aos intestinos, tria limitam-se a saltar, correr, lutar,
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

lançar uma pedra, escalar uma árvore. do seu andar ultrapassa a imagina-
Mas, se ele só sabe essas coisas, em çao.
compensação as sabe muito melhor do Admira-se de não se utilizarem mais
que nós, que delas não temos a mesma frequentemente para fins reprováveis
necessidade; como elas dependem uni- de sua habilidade, o que, não obstante,
camente do exercício do corpo e não acontece por vezes, como se pode ver
são suscetíveis de qualquer comunica- pelo exemplo que disso apresenta:
ção ou progresso de um indivíduo para “Um marinheiro holandês, desem-
outro, o primeiro homem pôde ser tão barcando no Cabo, encarregou”, conta
hábil quanto seus últimos descenden- ele, “um hotentote de segui-lo à cidade
tes. com um rolo de tabaco aproximada-
Os relatos dos viajantes estão cheios mente de vinte libras. Quando os dois
de exemplos da força e vigor dos ho- estavam a alguma distância do grupo,
mens nas nações bárbaras e selvagens; o hotentote perguntou ao marinheiro
não deixam de louvar, ainda e não se ele sabia correr. — Correr? — res-
menos, sua habilidade e ligeireza e, pondeu o holandês. — Sim, e muito
como bastam dois olhos para observar bem. — Vejamos — disse o africano e,
as coisas, nada impede que acredi- fugindo com o tabaco, desapareceu
temos nos testemunhos oculares a esse quase imediatamente. O marinheiro,
respeito. Extraio ao acaso alguns confundido com tal velocidade, não
exemplos dos primeiros livros que me pensou em persegui-lo e nunca mais
caem sob a mão. viu nem o seu tabaco nem o carrega-
“Os hotentotes”, disse Kolben128, dor”.
“conhecem melhor a pesca do que os “Possuem o golpe de vista tão pron-
europeus do Cabo. São igualmente há- to e a mão tão certa, que os europeus
beis na rede, no anzol e no arpão, tanto ficam em grande desvantagem. A cem
nas enseadas quanto nos rios. Não passos acertaram com uma pedra num
mostram menos habilidade para agar- alvo do tamanho de uma moeda de
rar o peixe com a mão. São de uma meio-soldo, e o que há de mais espan-
habilidade incomparável no nadar. Seu toso é que, em lugar de fixar como nós
modo de nadar tem qualquer coisa de os olhos no alvo, fazem movimentos e
surpreendente e que lhes é inteiramente contorsões contínuas. Parece que a sua
particular. Nadam com o corpo direito pedra é levada por uma mão invisível.”
e as mãos estendidas fora da. água, de O Padre du Tertre129 escreve sobre
modo que parecem andar sobre a terra. os selvagens das Antilhas quase a
Quando o mar está mais agitado e as mesma coisa que acabamos de ler
ondas como qúe formam montanhas, sobre os hotentotes do cabo da Boa
parecem dançar na crista das vagas, Esperança. Enaltece sobretudo a sua
subindo e descendo como um pedaço precisão para acertar com as flechas os
de cortiça.” pássaros em vôo e os peixes nadando.
“Os hotentotes”, diz ainda o mesmo Os selvagens da América setentrional
autor, “apresentam uma habilidade não são menos célebres pela sua força
surpreendente na caça e a velocidade e agilidade; segue-se um exemplo que
ROUSSEAU

poderá facilitar o julgamento da dos (h) Creio existir entre os animais


índios da América meridional: carniceiros e os frugívoros uma outra
“Em 1746, um índio de Buenos diferença ainda mais geral do que á
Aires, sendo condenado às galés em salientada na nota e, pois esta alcança
Cádiz, propôs ao governo resgatar sua até os pássaros. Tal diferença consiste
liberdade expondo a vida numa festa no número dos filhotes, que em geral
pública. Prometeu atacar sozinho o nunca excede de dois de cada vez para
touro mais furioso sem outra arma as espécies que só vivem de vegetais e
além de uma corda, derrubá-lo, amar- que. ordinariamente vai além desse nú-
rá-lo com a corda pela parte que lhe mero para os animais vorazes. É fácil
indicassem, selá-lo, bridá-lo, montá-lo conhecer, a esse respeito, a destinação
e combater, assim montado, dois ou- da natureza pelo número de tetas, que
tros touros dentre os mais furiosos que não passa de duas nas fêmeas da pri-
fizessem sair do Torillo e que ele mata- meira espécie, como a jumenta, a vaca,
ria a todos, um depois do outro, no a cabra, a corça, a ovelha, e que sem-
momento em que ordenassem e sem o pre é de seis ou de oito nas outras fê-
auxílio de ninguém. Foi-lhe concedido. meas, como a cadela, a gata, a loba e o
O índio cumpriu sua palavra e obteve tigre fêmeo, etc. A galinha, a gansa, a
bom êxito em tudo que prometera. pata, que todas são aves vorazes,
Sobre o modo como se saiu nisso e assim como a águia, a gaivota, a coru-
sobre os pormenores do combate, ja, também põem e chocam um grande
pode-se consultar o primeiro tomo in- número de ovos, o que jamais acontece
12 das Observações sobre a História com a pomba e a rola, nem aos pássa-
Natural do Sr. Gautier130, de onde ros que exclusivamente comem os
esse fato é extraído, na página 262. grãos, os quais só põem e chocam dois
(g) “A duração da vida dos cava- ovos de cada vez. O motivo que se
los”, diz o Sr. de Buffon, “é, como em pode dar para essa diferença reside no
todas as outras espécies, proporcional fato de que os animais, que só vivem
à duração do seu tempo de cresci- de ervas e de plantas, passam quase o
mento. O homem, que leva catorze
dia todo no pasto e, sendo forçados a
anos crescendo, pode viver seis ou sete
empregar muito tempo para se nutri-
vezes esse tempo, isto é, noventa ou
rem, não poderiam ser capazes de criar
cem anos; o cavalo, cujo crescimento
muitos filhotes, enquanto que os vora-
se realiza em quatro anos, pode viver
zes, que fazem seu repasto quase num
seis ou sete vezes quatro anos, isto é,
instante, podem, com mais facilidade e
vinte e cinco ou trinta anos. São tão
mais frequentemente, voltar aos seus
raros os exemplos que podem ser
contrários a essa regra, que nem rebanhos e à caça, reparando assim o
mesmo se deve considerá-los como gasto de uma quantidade tão grande de
uma exceção da qual se possam extrair leite. A respeito de tudo isso, poder -
consequências, e, como os cavalos rús- se-ia fazer observações especiais e
ticos crescem em menos tempo do que reflexões, mas, não sendo este lugar
os cavalos finos, vivem também menos apropriado para tanto, basta-me ter
tempo e estão velhos aos quinze anos.” mostrado nesta parte o sistema mais
Hist. Nat. — Do Cavalo. geral da natureza, sistema que fornece
uma nova razão para excluir o homem
da classe dos animais carniceiros e
para colocá-lo entre as espécies frugí-
voras.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 297

(i) Um autor célebre131 calculando suscetível e que a natureza benfazeja


os bens e os males da vida humana e tivera o cuidado de afastar dele.
comparando as duas somas, achou que Os homens são maus — uma expe-
a última ultrapassa de muito a pri- riência triste e contínua dispensa pro-
meira e que, afinal de contas, a vida vas; no entanto, o homem é natural-
era para o homem péssimo presente. mente bom — creio tê-lo
Não me surpreende essa conclusão. O demonstrado; o que, pois, poderá tê-lo
autor tirou todas as suas conclusões da depravado a esse ponto senão as
constituição do homem civil; se tivesse mudanças sobrevindas em sua consti-
se informado sobre o homem natural, tuição, os progressos que fez e os
pode-se imaginar que encontraria re- conhecimentos que adquiriu? Por mais
sultados muito diversos; percebería que se admire a sociedade humana,
que o homem só tem aqueles males que não será menos verdadeiro que ela
a si mesmo se infligiu e que a natureza necessariamente leva os homens a se
estâ justificada. Não foi sem esforço odiarem entre si à medida que seus
que conseguimos tornar-nos tão infeli- interesses se cruzam, a aparentemente
zes. Quando, por um lado, se conside- se prestarem serviços e a realmente se
ram os imensos trabalhos dos homens, causarem todos os males imagináveis.
tantas ciências profundas, tantas artes Que se poderá pensar de um comér-
inventadas, tantas forças empregadas, cio no qual a razão de cada particular
abismos superados, montanhas arrasa- lhe dita máximas diferentemente con-
das, rochas arrebentadas, rios tomados trárias às que a razão pública prega ao
navegáveis, terras arroteadas, lagos corpo da sociedade e onde cada um
sulcados, pântanos esgotados, enormes encontra seu lucro na infelicidade de
construções erguidas sobre a terra, o outrem? Não haverá, certamente, um
mar coberto de navios e de marinhei- homem de fortuna a quem herdeiros
ros, e, por outro lado, se procuram as ávidos e, frequentemente, seus próprios
verdadeiras vantagens que resultaram filhos não desejem intimamente a
de tudo isso para a felicidade da espé- morte; nenhum navio naufragado dei-
cie humana, não se pode deixar de xou de constituir uma boa notícia para
ficar impressionado com a imensa certo negociante; não há uma casa que
desproporção que reina entre essas coi- um devedor de má fé não gostaria que
sas, e deplorar a cegueira do homem se incendiasse com todos os papéis que
que, para alimentar seu louco orgulho contém; todos os povos se regozijam
e não sei que vã admiração por si pró- com os desastres de seus vizinhos.
prio, faz com que corra com ardor Assim, encontramos nossos lucros no
atrás de todas as misérias de que é prejuízo de nossos semelhantes e a
perda de um quase sempre determina a
prosperidade de outro. Mas o que exis-
te de mais perigoso ainda é que as
calamidades públicas constituem a
expectativa e a esperança de uma mul-
tidão de particulares; uns desejam
doenças, outros a mortalidade, outros
a guerra, outros a fome. Vi homens
indignos chorarem de dor sabendo da
possibilidade de um ano fértil, e o
grande e funesto incêndio de Londres,
298 ROUSSEAU

que custou a vida e os bens a tantos interfere no combate, este acaba com
infelizes, fez a fortuna a mais de dez alguns murros; o vencedor come, o
mil pessoas. Sei que Montaigne censu- vencido vai tentar a sorte e tudo fica
ra o ateniense Éjémades132 por ter em paz. Mas, com o homem em socie-
mandado punir um artesão que, ven- dade, as coisas se passam muito
dendo esquifes caríssimos, ganhava diferentemente: trata-se, em primeiro
muito com a morte dos cidadãos. Mas, lugar, de atender ao necessário e,
alegando Montaigne razão para pu- depois, ao supérfluo; depois, vêm as
nir-se todo o mundo, é evidente que tal delícias e, depois, as imensas riquezas;
razão confirma as minhas. Penetre- depois, os súditos e os escravos. Não
mos, pois, através de nossas frívolas há um momento de descanso. O que há
demonstrações de benevolência, no de mais singular é que, quanto mais
que se passa no fundo dos corações e naturais e prementes são as necessida-
reflitamos sobre como deva ser um es- des, tanto mais aumentam as paixões
tado de coisas no qual todos os ho- e, o que é pior, o poder de satisfazê-las,
mens são forçados a agradár-se e a de forma que, depois de longas prospe-
destruir-se mutuamente, e no qual nas- ridades, depois de terem se devorado
cem inimigos por dever e traidores por muitos tesouros e arruinado muitos
interesse. Caso me respondam que a homens, meu herói acabará por tudo
sociedade é constituída de tal modo sufocar até que seja ele o único senhor
que cada homem lucra auxiliando os do universo. Esse, abreviadamente, o
outros, replicarei que isso seria muito quadro moral, senão da vida humana,
bom se ele não lucrasse mais ainda pelo menos das pretensões secretas do
prejudicando-os. Não há, absoluta- coração de todo homem civilizado.
mente, um lucro legítimo que não Comparai, sem prevenção, o estado
possa ser ultrapassado por aquele que do homem civil com o do homem sel-
se pode fazer ilegitimamente e o dano vagem e indagai, se puderdes, como,
que se faz ao próximo é sempre mais além de sua maldade, suas necessi-
lucrativo do que os serviços. Não se
dades e misérias, o primeiro abriu
trata, pois, senão de encontrar os
novas portas à dor e à morte. Se consi-
meios para assegurar-se a própria
derardes as penas do espírito que nos
impunidade e para isso os poderosos
consomem, as paixões violentas que
empregam todas as forças e os fracos
nos esgotam e nos arruinam, os traba-
todas as artimanhas. lhos excessivos com os quais se sobre-
O homem selvagem, depois de ter carregam os povos, a preguiça ainda
comido, fica em paz com toda a natu- mais perigosa à qual os ricos se aban-
reza e é amigo de todos os seus seme- donam, e que fazem que morram uns
lhantes. Caso, por vezes, tenha de
de suas necessidades e os outros de
disputar a alimentação, jamais avança seus excessos; se pensardes nas mistu-
desferindo golpes, sem antes ter com-
ras monstruosas de alimentos, nos
parado a dificuldade de vencer com a
temperos perniciosos, nas mercadorias
de encontrar em outro lugar sua adulteradas, nas drogas falsificadas,
subsistência, e, como o orgulho não
nas trapaças daqueles que as vendem,
nos erros daqueles que as administram,
13 2 Demades (cerca de 318 a. C.), orador ate-
niense, adversário de Demóstenes. A anedota no veneno das vasilhas em que são
se encontra nos Ensaios, I, XXL (N. de P. preparados; se prestardes atenção às
A.-B.) doenças epidêmicas oriundas do ar
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 299

confinado entre as multidões de ho- perdem a vida, tal fato não deixa de
mens reunidos, às que ocasionam a realmente duplicar a perda da espécie
delicadeza de nosso modo de vida, às humana. Inúmeros são os meios vergo-
passagens alternadas do interior de nhosos para impedir o nascimento dos
nossas casas para o ar livre, ao uso da homens e enganar a natureza; quer por
roupa vestida ou desvestida com pou- esses gostos brutais e depravados que
quíssima precaução e a todos os cuida- insultam sua obra mais encantadora,
dos que nossa sensualidade excessiva gostos qüe jamais foram conhecidos
transformou em hábitos necessários e tanto dos selvagens quanto dos ani-
cuja negligência ou privação nos custa mais e que nos países policiados nasce-
imediatamente a vida ou a saúde; se ram de uma imaginação corrompida;
levardes em consideração os incêndios seja por esses abortos secretos, dignos
e os tremores de terra que, consumindo frutos da depravação e da honra vicia-
ou revirando cidades inteiras, fazem da; seja pelo enjeitamento e assassínio
que os habitantes morram aos milha- de uma multidão de crianças, vítimas
res; em uma palavra, se reunirdes os da miséria de seus pais ou da vergonha
perigos que todas essas causas juntam desumana de suas mães; seja, enfim,
continuamente sobre nossas cabeças, pela mutilação desses infelizes, uma
vereis como a natureza faz que pague- parte de cuja existência e toda descen-
mos caro o desprezo que demos às dência são sacrificadas a canções vãs
suas lições. ou, o que é ainda pior, ao ciúme brutal
Neste ponto, não repetirei acerca da de alguns homens — mutilação que,
guerra o que já disse alhures, mas dese- neste último caso, ultraja duplamente a
jaria que as pessoas instruídas quises- natureza, tanto pelo tratamento que
sem ou ousassem, por uma vez, mos- recebem aqueles que são atingidos,
trar ao público a minúcia dos horrores quanto pelo uso a que se destinam!
que são cometidos nos exércitos pelos Mas não haverá mil casos mais
arrendatários de víveres e de hospitais; frequentes e mais perigosos ainda, nos
ver-se-ia que suas manobras, não de- quais os direitos paternais ofendem
masiado secretas, devido às quais os abertamente a humanidade? Quantos
exércitos mais brilhantes se trans- talentos enterrados e inclinações força-
formam em menos do que nada, das pela coerção imprudente dos pais !
matam mais soldados do que ceifa o Quantos homens, que se teriam distin-
ferro do inimigo. Constitui ainda um guido numa situação apropriada, mor-
cálculo não menos impressionante o rem infelizes e desonrados numa dada
relativo aos homens que o mar traga situação para a qual não tinham o
todos os anos pela fome, pelo escorbu- menor gosto! Quantos casamentos
to, pelos piratas, pelo fogo ou, ainda, felizes, mas desiguais, foram rompidos
pelos naufrágios. E preciso ainda, está ou perturbados e quantas castas espo-
claro, lançar à conta da propriedade sas desonradas por essa ordem de con-
estabelecida e, consequentemente, da dições sempre em contradição com a
sociedade, os assassínios, os envenena- da natureza; quantas outras uniões
mentos, os assaltos nas estradas e as insuportáveis formadas pelo interesse e
próprias punições desses crimes. São condenadas pelo amor e pela razão!
punições necessárias para prevenir Até mesmo quantos esposos honestos e
males maiores, mas se, por causa do virtuosos se supliciam, mutuamente,
assassínio de um homem, dois ou mais por se terem unido mal! Quantas víti-
ROUSSEAU

mas jovens e infelizes da avareza dos telhadores, carpinteiros, pedreiros ou,


pais não se lançam ao vício ou passam ainda, aqueles que trabalham nas pe-
seus dias tristes entre lágrimas e dreiras; que se reúnam, digo, todos
gemendo sob laços indissolúveis, que o esses objetos e poder-se-ão ver, no
coração repele e que somente o ouro estabelecimento e no aperfeiçoamento
forjou! Felizes aqueles que, por vezes, das sociedades, os motivos da diminui-
a coragem ou a virtude arrancam da ção da espécie observada por mais de
vida antes que uma bárbara violência um filósofo.
os force a se entregarem ao crime ou O luxo, impossível de ser prevenido
ao desespero! Perdoai-me, pai e mãe entre homens ávidos de suas próprias
para sempre deploráveis; aumentei, comodidades e da consideração dos
contra minha vontade, vossas penas, demais, rapidamente termina a obra do
mas possam elas servir de eterno e ter- mal que as sociedades começaram e, a
rível exemplo a quem quer que ouse pretexto de permitir que vivam os
violar o mais sagrado de seus direitos, pobres, coisa que não devera fazer,
em nome da própria natureza! empobrece todo o resto e, cedo ou
Como só me referi a essas uniões tarde, despovoa o Estado,
mal formadas, produtos de nossa polí- O luxo é um remédio muito pior do
cia, poderieis pensar que aquelas que o que o mal que pretende sanar, ou
amor e a simpatia presidiram estejam melhor, ele mesmo, em qualquer Esta-
isentas desses inconvenientes. Que do, grande ou pequeno, é o pior de
aconteceria se tentasse mostrar a espé- todos os males que possam advir e,
cie humana atacada na sua própria para sustentar uma multidão de cria-
fonte e até no mais santo de todos os dos e de miseráveis engendrados por
laços, nos quais só se ousa ouvir a ele, oprime e arruina o operário e o
natureza depois de ter consultado a cidadão. É como aqueles ventos escal-
fortuna e onde, confundindo a desor- dantes do Sul que, cobrindo a erva e a
dem civil com as virtudes e os vícios, a verdura de insetos devoradores, sub-
continência se torna uma precaução traem a substância dos animais úteis e
criminosa e a recusa de dar a vida pelo levam a todos os lugares em que se
seu semelhante um ato de humani- fazem sentir a penúria e a morte.
dade? Mas, sem rasgar o véu que cobre Da sociedade e do luxo engendrado
tantos horrores, contentémo-nos com por ela, nascem as artes liberais e
indicar aquele mal a que outros devem mecânicas, o comércio, as letras e
dar remédio. todas essas inutilidades que fazem a
Que se acrescente, a tudo isso, esse indústria florescer, que enriquecem e
número de ofícios insalubres que abre- perdem os Estados. É muito simples o
viam a vida ou destroem o tempera- motivo dessa ruína. É fácil ver que, por
mento, como os trabalhos das minas, sua natureza, a agricultura deverá ser a
as várias preparações dos metais, dos menos lucrativa de todas as artes, pois
minerais, sobretudo do chumbo, do sendo seus produtos, quanto ao uso, os
cobre, do mercúrio, do cobalto, do mais indispensáveis para todos os
arsênico, do rosalgar133; esses outros homens, deverá o seu preço ser propor-
ofícios perigosos que todos os dias cus- cional às posses de todos os pobres.
tam a vida a inúmeros operários, como Do mesmo princípio pode-se extrair a
seguinte regra: as artes, em geral, são
lucrativas na razão inversa de sua utili-
dade e as mais necessárias deverão por
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 301

fim tornar-se as mais descuidadas. Por sua caça; que nos expliquem como
aí se vê o que se deve pensar das verda- esses miseráveis tiveram simplesmente
deiras vantagens da indústria e do efei- a audácia de enfrentar pessoas tão há-
to real que resulta de seus progressos. beis como éramos, com tão bela disci-
Tais são as causas visíveis de todas plina militar, códigos tão perfeitos e
as misérias a que a opulência acaba leis sábias, enfim por que, depois de
por lançar as nações mais admiradas. aperfeiçoar-se a sociedade nas regiões
À medida que a indústria e as artes se do Norte e de ter-se tanto trabalho
estendem e florescem, o cultivador para nelas ensinar aos homens seus
desprezado, sobrecarregado de impos- deveres mútuos e a arte de conviver
tos necessários à manutenção do luxo agradável e tranquilamente, não mais
e condenado a passar uma vida de tra- se viu aparecer algo de semelhante a
balho e fome, abandona seus campos essas multidões de homens que outrora
para ir procurar nas cidades o pão que lá se produziam? Tenho muito receio
deveria levar para lá. Quanto mais as de que, afinal, alguém se disponha a
capitais enchem de admiração os olhos dizer-me que todas essas grandes coi-
estúpidos do povo, tanto mais se deve- sas, a saber: as artes, as ciências e as
ria sofrer vendo os campos abandona- leis, foram muito sabiamente inventa-
dos, as terras incultas e as estradas das pelos homens como uma peste
inundadas de infelizes cidadãos trans- salutar para prevenir a multiplicação
formados em mendigos ou ladrões, e excessiva da espécie, temendo que este
destinados a um dia acabarem a sua mundo que nos é destinado se tornasse
miséria no suplício ou num monturo. E por fim demasiado pequeno para seus
assim que o Estado, enriquecendo por habitantes.
um lado, se enfraquece e se despovoa Pois então será preciso destruir as
por outro, e as monarquias mais pode- sociedades, suprimir o teu e o meu, e
rosas, depois de muitos esforços para voltar a viver nas florestas com os
se tornarem opulentas e desertas, aca- ursos? E essa uma consequência à
bam por se tornar a presa das nações moda de meus adversários, que prefiro
pobres que sucumbem à tentação fu- antes prevenir do que possibilitar-lhes
nesta de invadi-las e que, por sua vez, a vergonha de formulá-la. Oh! vós, a
se enriquecem e se enfraquecem até quem a voz celeste não se fez ouvir e
que sejam, elas próprias, invadidas e que não reconheceis para vossa espécie
destruídas por outras. outro destino senão o de terminar em
Que se dignem explicar-nos o que paz esta curta vida; vós, que podeis
puderam produzir essas ondas de bár- deixar no meio das cidades vossas
baros que durante tantos séculos inun- funestas aquisições, vossos espíritos
daram a Europa, a Ásia, a África. Será inquietos, vossos corações corrom-
que deviam sua prodigiosa população pidos e vossos desejos desenfreados;
à indústria de suas artes, à sabedoria retomai, posto que depende de vós,
de suas leis, à excelência de sua polí- vossa antiga e primeira inocência, ide
cia? Que tenham os nossos sábios a aos bosques esquecer o espetáculo e a
bondade de dizer-nos por que, ao invés memória dos crimes de vossos contem-
de se multiplicarem desse modo, esses porâneos e não temais aviltar vossa
homens ferozes e brutais, sem luzes, espécie renunciando às suas luzes para
sem freio, sem educação, a cada renunciar a seus vícios. Quanto aos
momento não se entredevoram mutua- homens semelhantes a mim, cujas pai-
mente para disputar suas pastagens e xões destruíram para sempre a simpli-
ROUSSEAU

cidade original, que não podem mais mesmo têm barba. Houve, e talvez
alimentar-se de ervas e de bolotas, nem haja ainda, nações de homens com
viver sem leis e sem chefes; aqueles uma estatura gigantesca e, deixando de
que foram honrados, na pessoa de seu lado a fábula dos pigmeus, que pode
primeiro pai, por lições sobrenaturais; muito bem não passar de um exagero,
aqueles que verão, na intenção de dar sabe-se que os lapÕes e, sobretudo, os
inicialmente às ações humanas uma groenlandeses estão muito abaixo da
moralidade que não adquiriram ao fim estatura média do homem. Pretende-se
de muito tempo, a razão de um pre- ainda existirem povos inteiros que,
ceito indiferente em si mesmo e inex- como os quadrúpedes, possuem cau-
plicável por qualquer outro sistema, das. E, sem depositar fé cega nos rela-
em uma palavra, aqueles que estão tos de Heródoto e de Ctesias134,
convencidos de ter a voz divina cha- pode-se pelo menos aproveitar deles
mado todo o gênero humano às luzes e aquela opinião, muito plausível, de
à felicidade das inteligências celestes que, se fora possível praticar boas
— todos esses, pelo exercício das vir- observações nesses tempos antigos,
tudes que se obrigam a praticar ao quando os vários povos apresentavam
aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão modos de vida mais diferentes entre si
por merecer o prêmio eterno que do que acontece atualmente, ter-se-ia
devem esperar; respeitarão os sagrados então notado, no aspecto e na complei-
laços da sociedade de que são mem- ção do corpo, variedades bem mais
bros; amarão seus semelhantes e os notáveis. Todos esses fatos, dos quais é
servirão com todas as suas forças; fácil fornecer provas incontestáveis, só
obedecerão escrupulosamente às leis e podem surpreender os habituados a
aos homens que são seus autores e olhar unicamente os objetos que os cir-
ministros; honrarão, sobretudo, os cundam, e que ignoram os efeitos
bons e sábios príncipes que saberão poderosos da diversidade dos climas,
prevenir, sanar ou paliar essa chusma do ar, dos alimentos, do modo de
de abusos e de males sempre prontos a viver, dos hábitos em geral e, sobretu-
oprimir-nos; animarão o zelo desses do, a força surpreendente dessas mes-
dignos chefes mostrando-lhes, sem mas causas quando agem continua-
temor e sem adulação, a grandeza de mente sobre muitas gerações seguidas.
sua tarefa e a austeridade de seu dever, Atualmente, quando o comércio, as
mas nem por isso desprezarão menos viagens e as conquistas mais unem os
uma constituição que só pode manter- vários povos e suas maneiras de vida
se com o auxílio de tantas pessoas aproximam-se incessantemente pela
respeitáveis, que mais frequentemente comunicação frequente, percebe-se
se deseja ter do que de fato se obtém e terem diminuído certas diferenças na-
da qual, malgrado todos os seus cuida- cionais e cada um, por exemplo, pode
dos, nascem sempre mais calamidades observar que os franceses de hoje não
reais do que vantagens aparentes. possuem mais esses grandes corpos
(j) Entre os homens que conhece- brancos e louros descritos pelos histo-
mos, por nós mesmos, pelos historia- riadores latinos, se bem que o tempo,
dores ou pelos viajantes, uns são juntamente com a mistura dos francos
negros, outros brancos e outros verme-
lhos; uns têm cabelos longos, outros só 13 4 Ctésias: historiador grego, médico de
têm lã encarapinhada; uns são quase Artaxerxes Mnémon (V século a. C.). (N. de P.
todos cobertos de pêlos, outros nem A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

e dos normandos, que também eram lhas não são cobertas de pêlo, com
brancos e louros, deverá ter restabele- exceção das sobrancelhas, que são
cido o que o convívio com os romanos muito longas. Ainda que tenham o
pudesse excluir da influência do clima resto do corpo muito peludo, o pêlo aí
na constituição natural e na cor da tez não é muito espêsso e sua cor é escura.
dos habitantes. Todas essas varieda- Por fim, a única parte que os dinstin-
des, que inúmeras causas podem pro- gue dos homens é a perna, que não tem
duzir e efetivamente produziram na barriga. Andam eretos, segurando com
espécie humana, fazem com que, quan- a mão o pêlo do pescoço; abrigam-se
to a vários animais semelhantes aos nos bosques e dormem em cima das ár-
homens — que os viajantes, sem um vores, onde constroem uma espécie de
exame acurado, consideraram como teto que os protege da chuva. Seus ali-
feras, por causa de algumas diferenças mentos são frutos ou nozes selvagens.
que notaram na conformação exterior, Jamais comem carne. Os negros que
ou unicamente porque tais animais não atravessam as florestas costumam
falavam — eu desconfie serem, com acender fogueiras durante a noite;
efeito, verdadeiros homens selvagens, notam eles que, pela manhã, depois de
cuja raça, dispersada antigamente nos sua partida, os pongos tomam o seu
bosques, não encontrara ocasião de lugar à volta do fogo e só se retiram
desenvolver qualquer de suas faculda- quando ele se extingue, pois, embora
des virtuais, não adquirindo nenhum sendo muito habilidosos, não têm inte-
grau de perfeição e encontrando-se ligência suficiente para alimentá-lo
ainda no estado primitivo de natureza. com lenha.
Demos um exemplo do que desejo “Algumas vezes andam em grupo e
dizer. matam os negros que atravessam as
“Encontra-se”, diz o tradutor da florestas. Chegam até a atacar os ele-
História das Viagens'3 5, “no reino do fantes que vêm pastar nas regiões habi-
Congo, um certo número desses gran- tadas por eles e os incomodam tanto
des animais que nas índias Orientais com socos ou pauladas que os forçam
chamam de orangotangos e que são a fugir soltando gritos. Nunca se agar-
como o meio-termo entre a espécie hu- ra um pongo vivo, porque são tão
mana e os bugios. Battel13 6 conta que robustos que dez homens não seriam
nas florestas de Mayomba, no reino de capazes de prendê-lo; mas os negros
Loango, se podem ver duas espécies de agarram muitos deles quando ainda
monstros: os maiores chamam-se pon- novos, matando a mãe, ao corpo da
gos e os outros enjocos. Os primeiros qual o filhote se agarra fortemente.
têm uma semelhança exata com o Quando um desses animais morre, os
homem, mas são muito mais largos e outros cobrem seu corpo com um mon-
de estatura muito alta. Possuindo um tão de ramos ou de folhas. Pur-
rosto humano, têm os olhos muito chass13 7 acrescenta que, nas conversa-
encovados. As mãos, as faces, as ore- ções que tivera com Battel, ouvira dele
próprio que um pongo lhe arrebatou
135 A História das Viagens (L 'Histoire des um negrinho que passou um mês intei-
Voyages): publicação periódica que existia
desde 1746. (N. de P. A.-B.) ro entre esses animais, pois eles não
13 6 André Battel (1565-1640): viajante inglês,
aprisionado pelos portugueses, explorou a 137 Samuel Purchass (1577-1628): colecio-
costa sudoeste da África e publicou uma nar- nador inglês e editor de narrativas de viagem.
rativa de suas viagens. (N. de P. A.-B.) (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU

fazem nenhum mal ao homem que os tanto jeito que poderia ser tomado
surpreende, pelo menos quando este como um homem na cama. Os negros
não os olha, como observara o negri- contam coisas estranhas sobre esses
nho. Battel não descreveu a segunda animais; asseguram que não só forçam
espécie de monstro. as mulheres e as moças, como também
“Dapper138 confirma que o reino ousam atacar homens armados. Em
do Congo está cheio desses animais uma palavra, há forte aparência de tra-
que na índia são chamados de orango- tar-se do sátiro dos antigos. Merol-
tangos, isto é, moradores dos bosques la139 talvez se refira a esses animais
e que os africanos chamam de quojas quando conta que os negros algumas
morros. Esse animal, diz ele, é tão vezes agarram nas suas caças homens
semelhante aos homens, que certos via- e mulheres selvagens.”
jantes chegaram a julgá-lo fruto de Fala-se ainda dessas espécies de ani-
uma mulher e de um macaco, quimera mais antropoformes no terceiro tomo
que os próprios negros rejeitam. Um da mesma História das Viagens, sob o
desses animais foi transportado do nome de beggos e de mandrills; mas,
Congo para a Holanda e apresentado para limitarmo-nos aos relatos prece-
ao Príncipe de Orange, Frederico Hen- dentes, encontra-se na descrição desses
rique. Era da altura de uma criança de pretensos monstros semelhanças cho-
três anos e de nediez medíocre, mas cantes com a espécie humana e dife-
atarracado e bem proporcionado, renças menores do que as que se pode-
muito ágil e vivo, as pernas carnudas e ríam notar de homem para homem. De
robustas, toda a parte da frente nua modo algum se encontram nessas pas-
mas o traseiro coberto de pêlos negros. sagens os motivos nos quais os autores
Seu semblante, à primeira vista, pare- se fundamentam para recusar a esses
cia-se com o de um homem, mas pos- animais o nome de homens selvagens,
suía o nariz achatado e recurvado; mas é fácil imaginar dever-se isso à
suas orelhas eram também como as da sua estupidez e, também, a não fala-
espécie humana; seu seio, pois era uma rem; são razões fracas para aqueles
fêmea, era carnudo, o umbigo enterra- que sabem que, apesar de o órgão da
do, os ombros muito juntos, suas mãos palavra ser natural ao homem, a pala-
divididas em dedos e polegares, a bar- vra em si, todavia, não lhe é natural e
riga da perna e o calcanhar gordos e até que ponto sua perfectibilidade pôde
carnudos. Comumente andava ereto elevar o homem civil acima de seu es-
sobre as pernas e era capaz de levantar tado originai. O pequeno número de li-
e carregar fardos bem pesados. Quan- nhas em que são feitas essas descrições
do queria beber, pegava com uma das permite-nos imaginar como esses ani-
mãos a tampa do vaso e com a outra mais foram mal observados e com que
segurava a base, enxugando em segui- preconceitos foram vistos. Por exem-
da, graciosamente, os lábios. Deitava- plo, são qualificados de monstros, mas
se para dormir pondo a cabeça sobre convêm em que eles geram. Num certo
um travesseiro e cobrindo-se com trecho, Battel diz que os pongos
matam os negros que atravessam as
florestas, num outro, Purchass acres-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

centa que eles não lhes causam ne- como creio, imitar a ação de um
nhum mal, mesmo quando os sur- homem. Seja como for, está bem
preendem, pelo menos quando os demonstrado que o macaco não é uma
negros não começam a olhá-los. Os variedade do homem, não somente por
pongos se reúnem em torno das foguei- não possuir a faculdade de falar, mas,
ras acesas pelos negros, quando estes sobretudo, porque se tem a certeza de
se afastam, e por sua vez se retiram, que sua espécie não é capaz de aperfei-
quando o fogo se extingue. Aí está o çoar-se, o que constitui o caráter espe-
fato; vejamos o comentário do obser- cífico da espécie humana; parece que
vador: “Pois, embora sendo muito essas experiências não foram feitas
habilidosos, não têm inteligência sufi- relativamente aos pongos e os orango-
ciente para alimentá-lo com lenha”. tangos com cuidado suficiente para
Gostaria de descobrir como Battel ou poder tirar a mesma conclusão. Have-
Purchass, seu compilador, pôde saber ría, no entanto, um meio pelo qual, se
que a retirada dos pongos era um o orangotango ou outros seres fossem
resultado antes de sua estupidez do que da espécie humana, as observações
de sua vontade. Num clima como o de mais grosseiras poderíam disso certifi-
Loango, o fogo não é uma coisa muito car-se, até mesmo demonstrando; mas,
necessária para os animais e, se os ne- além de uma única geração não ser
gros o acendem, é mais para amedron- suficiente para essa experiência, ela pa-
tar os animais ferozes do que contra o rece impraticável, porque seria neces-
frio, sendo pois muito possível que de- sário que aquilo que não passa de uma
pois de, durante certo tempo, ter-se suposição fosse demonstrado como
deleitado com a chama ou de ter-se verdadeiro, antes que a prova desti-
aquecido bem, os pongos se aborreçam nada a verificar o fato fosse tentada
de ficar sempre no mesmo lugar e se inocentemente.
retirem para o seu pasto, que exige Os julgamentos precipitados, que
mais tempo do que se comessem carne. não são fruto de uma razão esclare-
Aliás, sabe-se que a maioria dos ani- cida, estão sujeitos a chegar ao exces-
mais, sem excetuar o homem, é natu- so. Nossos viajantes sem-cerimonio-
ralmente preguiçosa e se furta a todas samente apresentam bestas, sob os
as espécies de cuidados que não sejam nomes de pongos, mandrills, orango-
de absoluta necessidade. Finalmente, tangos, que são os mesmos seres que
parece muito estranho que os pongos, os antigos, sob o nome de sátiros, fau-
cuja habilidade e força se enaltecem, nos e silvanos, consideravam divinda-
que sabem enterrar os seüs mortos e des. Verificar-se-á talvez, -depois de
construir abrigos com galhos, não sai- pesquisas mais exatas, não serem nem
bam lançar lenha ao fogo. Lembro-me bestas nem deuses, mas homens. Espe-
de ter visto um macaco fazer essa rando, parece-me haver muitos moti-
mesma manobra que não querem ad- vos para, nesse assunto, basearmo-nos
mitir poderem os pongos fazer; é ver- mais em Merolla, religioso culto, teste-
dade que, não estando então minhas munha ocular e que, com toda a sua
idéias voltadas para esse lado, cometi ingenuidade, não deixava de ser
eu mesmo a falta que censuro em nos- homem de espírito, do que no comer-
sos viajantes, e descuidei de verificar ciante Battel, em Dapper, em Purchass
se a intenção do macaco era, com efei- e nos outros compiladores.
to, manter o fogo ou simplesmente, Que julgamento cremos poderíam
ROUSSEAU

expender tais observadores sobre a Ora, não se deve esperar que as três
criança encontrada em 1694, de quem primeiras classes forneçam bons obser-
já falei atrás, que não apresentava ne- vadores e, quanto aos da quarta, pos-
nhum sinal de razão, andava sobre os suídos pela vocação sublime que os
pés e as mãos, não possuía nenhuma inspira, mesmo que não fossem como
linguagem e soltava sons que de modo todos os outros, sujeitos aos precon-
algum se pareciam com os de um ceitos próprios ao seu estado, pode-se
homem? crer que não se dedicariam de boa von-
“Passou-se muito tempo”, continua tade a buscas aparentemente de pura
o mesmo filósofo que me forneceu esse curiosidade e que os desviariam dos
fato, “antes de poder ela proferir algu- trabalhos mais importantes a que se
mas palavras ainda que de modo bár- destinam. Aliás, para pregar eficiente-
baro. Assim que pôde falar, interroga- mente o Evangelho, basta o zelo, e
ram-na quanto ao seu primeiro estágio, Deus dá o resto, mas, para estudar os
mas não se lembrava dele mais do que homens, são necessários talentos que
nós nos recordamos do que nos acon- Deus não se esforça para dar a nin-
teceu no berço.” guém e que nem sempre os santos pos-
Se, infelizmente para ela, essa crian- suem. Não se abre um livro de viagens
ça tivesse caído nas mãos de nossos em que não se encontrem descrições de
viajantes, não se pode duvidar que, de- caracteres e de costumes, mas fica-se
pois de ter notado seu silêncio e sua espantado ao verificar que essas pes-
estupidez, não tivessem resolvido man- soas, que tanto descreveram coisas, só
dá-la de volta para o campo ou presa disseram o que cada um já sabia, só
para um parque de aclimação e, souberam perceber, no outro lado do
depois, falariam dela, em belos relatos, mundo, o que poderiam notar sem sair
como de uma besta singularíssima que de sua rua e que os verdadeiros traços
se parecia muito com o homem. que distinguem as nações e atingem
Depois de, por trezentos ou quatro- olhos feitos para ver quase sempre
centos anos, os habitantes da Europa escaparam aos seus. Daí veio esse belo
inundarem as outras partes do mundo provérbio de moral, tão repisado pela
e incessantemente publicarem novos turba filosofesca — que os homens,
repositórios de viagens e de relatos, em todos os lugares, são os mesmos e
estou persuadido de que, quanto aos que, possuindo em todos os lugares as
homens, só reconhecemos os europeus; mesmas paixões e os mesmos vícios, é
parece até, devido aos preconceitos bastante inútil tentar caracterizar os
ridículos que ainda não se extinguiram vários povos —, o que é aproximada-
entre os letrados, que cada um, sob o mente tão bem raciocinado quanto se
título pomposo de estudo do homem, disséssemos não se poder distinguir
só faz o dos homens de seu país. Os Pedro de João porque ambos têm um
particulares podem satisfazer-se indo e nariz, uma boca e olhos.
vindo; parece que a filosofia não sai do Veremos, algum dia, renascer os
lugar, de modo que a de cada povo é tempos felizes em que os povos não se
pouco adaptável a um outro. A causa intrometiam querendo filosofar, mas
disso é manifesta, pelo menos para as quando os Platões, os Tales e os Pitá-
regiões distantes. Somente quatro tipos goras, tomados por um desejo ardente
de homens fazem viagens de longo de saber, empreendiam as maiores via-
curso — os marinheiros, os comer- gens unicamente para se instruir e iam
ciantes, os soldados e os missionários. longe sacudir o jugo dos preconceitos
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 307

nacionais, conhecer os homens por Parece que a China foi bem observada
suas conformidades e diferenças, e pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia
adquirir seus conhecimentos univer- passável do pouco que viu no Japão.
sais, que não são exclusivamente os de Salvo esses relatos, não conhecemos,
um século ou de uma região, mas, em absoluto, os povos das índias
sendo de todos os tempos e de todos os Orientais, visitadas unicamente por
lugares, são, por assim dizer, a ciência europeus mais interessados em encher
comum dos sábios? suas bolsas do que suas cabeças.
Admira-se a magnificência de al- Ainda precisa ser observada toda a
guns curiosos que, com grandes despe- África e seus numerosos habitantes,
sas, fizeram ou custearam viagens ao tão singulares pelo seu caráter quanto
Oriente, com sábios e pintores, para lá pela cor; a terra toda está coberta de
desenhar ruínas e decifrar ou copiar nações das quais só conhecemos os
inscrições; custo, porém, a com- nomes, e ainda queremos julgar o gê-
preender como, num século que se van- nero humano! Suponhamos um Mon-
gloria de altos conhecimentos, não se tesquieu, um Buffon, um Diderot, um
encontrem dois homens bem ligados, Duelos1 43, um d’Alembert, um Con-
ricos, um em dinheiro e outro em dillac ou homens dessa têmpera, via-
gênio, ambos amando a glória e aspi- jando para instruir seus compatriotas,
rando à imortalidade, um dos quais observando e descrevendo, como o
sacrifique vinte mil escudos de sua for- sabem, a Turquia, o Egito, a Barbá-
tuna e outro dez anos de sua vida para ria144, o Império de Marrocos, a
uma célebre viagem em volta do Guiné, o país dos Cafres1 4 5, o interior
mundo, a fim de, pelo menos uma vez, da África e suas costas orientais, as
em lugar de estudar sempre pedras e Malabares1 4 6, o Mogol1 4 7, os rios do
plantas, estudarem os homens e os cos- Ganges, os reinos do Sião, de Pegu1 48
tumes e, depois de tantos séculos dedi- e de Ava1 49, a China, a Tartária1 50 e,
cados a medir e considerar a casa, se
resolvam por fim a conhecer-lhe os 1 43 Duelos (1704-1772): moralista francês,
habitantes. autor de Considerações sobre os Costumes.
Os acadêmicos que percorreram as (N. de P. A.-B.)
partes setentrionais da Europa e meri- 1 4 4 Barbária era, então, o nome de certas
regiões da África do Norte: a Argélia, a Tuní-
dionais da América tinham mais por sia e a regência de Trípoli; seus habitantes
objeto visitá-las como geômetras do eram piratas de renome. (N. de P. A.-B.)
que como filósofos. No entanto, como 1 4 5 Cafrária designa a região sudoeste da
eram simultaneamente tanto uma coisa África habitada pelos bantos e centralizada em
torno do Cabo. (N. de P. A.-B.)
como outra, não se pode considerar 146 Os malabares habitam a costa oeste do
como totalmente desconhecidas as re- Decã, no Indostão. (N. de P. A.-B.)
giões vistas e descritas pelos La Con- 147 O termo Mogol designa o império dos
damine1*40 e Maupertuis1 41. O joa- Mongóis ou do Grã-Mogol, fundado por Gên-
lheiro Chardin1 42, que viajou como gis Cã, reconstruído por Tamerlão; atingiu seu
apogeu sob Aureng-Zcyg (1659-1707); com-
Platão, nada pôde dizer sobre a Pérsia. preendia uma grande parte da China e da
índia. (N. de P. A.-B.)
1 40 La Condamine (1701-1774): sábio fran- 1 4 8 Pegu: nome de um reino da Birmânia e de
cês. (N. de P. A.-B.) sua capital. (N. de P. A.-B.)
1 41 P. L. Moreau de Maupertuis (1698-175 1); 1 49 Ava: nome de outro reino da Birmânia e
geômetra e naturalista francês. (N. de P. A.-B.) de sua capital. (N. de P. A.-B.)
142 Chardin (1643-1713): viajante francês, 1 50 A Tartária representava o Turquestão,
autor de uma Viagem à Pérsia e às índias fazendo desembocá-lo na Sibéria e no Afega-
Orientais. (N. de P. A.-B.) nistão. (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU

sobretudo, o Japão; depois, no outro senão as coisas que conhece e não


hemisfério, o México, o Peru, o Chile, conhecendo senão aquelas cuja posse
as Terras Magelânicas1 51, sem esque- tem ou é fácil de adquirir, nada deve
cer os patagões1 52 verdadeiros ou fal- ser tão tranquilo quanto a sua alma e
sos, o Tucumã1 53, Paraguai, se fosse nada tão limitado quanto seu espírito.
possível, o Brasil e, por fim, as Caraí- (I) Encontro no Governo Civil, de
bas, a Flórida e todas as regiões selva- Locke, uma objeção que me parece
gens. Seria a viagem mais importante demasiado especiosa para que possa
de todas e a que se deveria fazer com o ocultá-la:
maior cuidado. Suponhamos que esses “O fim da sociedade entre o macho
novos Hércules, de volta das jornadas e a fêmea”, diz esse filósofo, “não
maravilhosas, escrevessem depois, à sendo unicamente procriar, mas conti
vontade, a história natural, a moral e a nuar a espécie, tal sociedade deve per-
política do que tivessem visto: veria- durar até depois da procriação, pelo
mos nós mesmos sair de sua pena um menos durante o tempo necessário à
mundo novo e aprenderiamos assim a alimentação e à conservação dos pro-
conhecer o nosso. Afirmo que quando criados, isto é, até que sejam capazes
tais observadores, referindo-se a um de atender por si próprios às suas
certo animal, dissessem ser um homem necessidades. Podemos verificar que
e de um outro ser uma besta, dever-se- essa regra, estabelecida pela sabedoria
ia crer. Constitui, porém, enorme sim- infinita do Criador para as obras de
plicidade basear-se, a esse respeito, em suas mãos, é constante e exatamente
viajantes grosseiros, em relação aos observada pelas criaturas inferiores ao
quais se é algumas vezes tentado a homem. Entre esses animais que vivem
fazer a mesma pergunta que eles .se das ervas, a sociedade entre o macho e
metem a resolver acerca de outros a fêmea não dura mais do que o tempo
animais. da copulação, pois que, sendo as
(k) Tal coisa me parece eviden- mamas da mãe suficientes para nutrir
tíssima e eu não poderia conceber de os filhotes até que sejam capazes de
onde nossos filósofos puderam tirar pastar a erva, contenta-se o macho
todas as paixões que emprestam ao com gerar e, depois disso, não se preo-
homem natural. Excetuando-se, unica- cupa mais com a fêmea e os filhotes,
mente, a necessidade física, que a pró- para a subsistência dos quais nada
pria natureza exige, todas as nossas pode trazer. Mas, com relação às bes-
outras necessidades são devidas ao há- tas de presa, a sociedade dura um
bito, antés do qual não eram necessida- tempo maior, porque, não podendo a
des, ou aos nossos desejos, e não se de- mãe atender à própria subsistência e,
seja aquilo que não se está em ao mesmo tempo, alimentar os filhotes,
condições de conhecer. Conclui-se daí recorrendo unicamente à sua presa,
que o homem selvagem, não desejando que é uma via de se alimentar ainda
mais trabalhosa e mais perigosa do
1 51 Terras Magelânicas são as ilhas da Terra que a de se alimentar de ervas, a assis-
do Fogo, que o navegador português Maga- tência do macho torna-se inteiramente
lhães descobriu em 1520, bem como o estreito necessária para a manutenção de sua
que tem seu nome.
152 Os Patagões habitam o Sul do Chile e da
família comum — caso se possa
Argentina. (N. de P. A.-B.) empregar tal expressão —, a qual, até
1 53 Tucumã: atualmente, província da Repú- que possa procurar alguma presa, só
blica Argentina. (N. de P. A.-B.) poderia subsistir pelos cuidados do
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

macho e da fêmea. Observa-se a indústria do homem e da mulher e seus


mesma coisa entre todas as aves, exce- interesses mais unidos, visando formar
tuando-se algumas aves domésticas provisões para seus filhos e deixar-lhes
que se encontram nos lugares em que a algum bem, nada podendo ser mais
abundância contínua de alimentação prejudicial aos filhos do que uma con-
isenta o macho do cuidado de alimen- junção incerta e vaga ou uma dissolu-
tar os filhotes; vê-se que, enquanto os ção fácil e frequente da sociedade
filhotes, no ninho, têm necessidade de conjugal”.
alimentos, o macho e a fêmea a eles os O mesmo amor da verdade, que me
levam, até que eles possam voar e aten- fez expor sinceramente essa objeção,
der à sua subsistência. incita-me a acompanhá-la de algumas
“E, a meu ver, isso constitui a prin- observações, senão para resolvê-la, ao
cipal, senão a única razão por que o menos para esclarecê-la.
macho e a fêmea no gênero humano 1. Observarei, em primeiro lugar,
são obrigados a uma sociedade mais que as provas morais não têm uma
longa do que a mantida pelas outras grande força em matéria deíísico e que
criaturas. Esse motivo consiste em ser servem, antes para dar conta dos fatos
a mulher capaz de conceber e nova- existentes do que para verificar a exis-
mente engravidar e gerar um novo tência real desses fatos. Ora, é esse o
filho muito antes que o precedente gênero de prova que o Sr. Locke
possa dispensar o socorro de seus pais emprega no trecho que acabo de apre-
e por sua parte atender às necessida- sentar, pois, ainda que possa mostrar-
des. Desse modo, sendo um pai obri- se vantajoso para a espécie humana ser
gado a tomar cuidado daqueles que permanente a união entre o homem e a
gerou e a ocupar-se disso durante mulher, não se conclui que tal tenha
muito tempo, está também na obriga- sido estabelecido pela natureza; de
ção de continuar a viver na sociedade outro modo, dever-se-ia dizer que ela
conjugal com a mesma mulher de que também instituiu a sociedade civil, as
os teve e de permanecer nessa socie- artes, o comércio e tudo que se pre-
dade por muito mais tempo do que as tende seja útil aos homens.
outras criaturas entre as quais, poden- 2. Ignoro onde o Sr. Locke desco-
do os filhotes subsistir por si mesmos briu que, entre os animais de presa, a
antes que chegue o tempo de uma nova sociedade entre o macho e a fêmea
procriação, o laço entre o macho e a dura mais do que entre os qüe vivem
fêmea se rompe por si mesmo e ambos de erva e que um ajuda o outro a ali-
ficam em inteira liberdade, até que a mentar os filhotes, pois não se vê o
estação que costuma solicitar os ani- cão, o gato, o urso ou o lobo reconhe-
mais a ficarem juntos os obriga a esco- cerem melhor sua fêmea do que o
lherem novas companhias. E aqui não cavalo, o carneiro, o touro, o veado ou
se poderia admirar suficientemente a todos os demais animais quadrúpedes
sabedoria do Criador que, tendo dado reconhecem a sua. Ao contrário, pare-
ao homem qualidades próprias para ce que, se fora necessário à mulher o
atender tanto ao futuro quanto ao pre- socorro do macho para atender à
sente, quis e obrou de modo a que a conservação dos filhotes, o seria sobre-
sociedade do homem durasse muito tudo nas espécies que vivem de ervas,
mais tempo do que a do macho e da porque a mãe leva muito tempo para
fêmea entre as outras criaturas, a fim pastar e, durante todo esse intervalo,
de que assim fosse mais excitada a vê-se forçada a descuidar de sua ninha-
ROUSSEAU

da, enquanto a presa de uma ursa ou saber, como ele pretende, que no esta-
de uma loba é devorada num instante e do de natureza a mulher comumente
ela, sem sofrer fome, tem mais tempo fica novamente grávida e gera um
para aleitar seus filhotes. Esse racio- novo filho muito antes que o prece-
cínio é confirmado por uma observa- dente possa por si mesmo atender às
ção sobre o número relativo de tetas e suas necessidades, seriam necessárias
de filhotes que distingue as espécies experiências que certamente o Sr.
carniceiras das frugívoras, e à qual me Locke não fez e ninguém está em situa-
referi na nota h. Caso a observação ção de fazer. A coabitação contínua do
seja justa e geral, a mulher, não tendo marido e da mulher é uma ocasião tão
senão dois seios e não gerando de cada tangível de expor-se a uma nova gravi-
vez mais do que um filho, constitui dez que é bem difícil de crer que o
isso mais um motivo para duvidar que encontro fortuito ou somente o impul-
a espécie humana seja naturalmente so do temperamento produza efeitos
carniceira, parecendo pois que, para tão frequentes no estado puro dè natu-
concluir como Locke, seria preciso reza quanto no da sociedade conjugal;
inverter inteiramente seu raciocínio. essa lentidão contribuiría talvez para
Não há maior solidez na mesma distin- tornar as crianças mais robustas, o que
ção aplicada aos pássaros, pois quem aliás poderia ser compensado pela
poderia se convencer de ser mais durá- faculdade de conceber, prolongada até
vel a união de macho e fêmea entre os uma idade mais avançada nas mulhe-
abutres e os corvos do que entre as res que abusassem menos na sua
rolas? Possuímos duas espécies de pás- juventude. Quanto aos filhos, há mui-
saros domésticos, o pato e o pombo, tos motivos para crer que suas forças e
que nos fornecem dois exemplos dire- órgãos se desenvolvam mais tardia-
tamente contrários ao sistema desse mente entre nós do que acontecia no
autor. O pombo, que só vive de grãos, estado primitivo de que falo. A fra-
fica junto de sua fêmea e ambos nu- queza original, que devem à constitui-
trem em comum os filhotes. O pato, ção dos pais, o cuidado que se tem de
cuja voracidade é bem conhecida, não envolver e embaraçar todos os seus
reconhece nem a fêmea nem os filhotes membros, a frouxidão em que são edu-
e em nada ajuda sua subsistência; cados, talvez o uso de um outro leite
entre as galinhas, espécie que de modo que não o da mãe, tudo contraria e
algum é menos carniceira, vê-se que o retarda neles os primeiros progressos
galo não tem nenhum trabalho com a da natureza. A aplicação que se lhes
ninhada. Se, em outras espécies, o obriga a dar a mil coisas nas quais
macho partilha com a fêmea o cuidado continuamente se fixa a sua atenção,
de nutrir os filhotes, tal acontece por- enquanto não se proporciona qualquer
que os pássaros, que a princípio não exercício às suas forças corporais,
podem voar e cuja mãe não pode alei- pode ainda caüsar um desvio conside-
tar, estão muito menos em estado de rável no seu crescimento, de forma
dispensar a assistência do pai do que que, se em lugar de primeiro sobrecar-
os quadrúpedes, a quem, pelo menos regar e fatigar seus espíritos de mil
durante algum tempo, é suficiente a modos, deixássemos seus corpos se
teta da mãe. exercitarem nos movimentos contínuos
3. Há muita incerteza quanto ao que a natureza parece pedir-lhes, po
fato principal que serve de base a todo de-se crer que estariam muito mais
o raciocínio do Sr. Locke, pois para cedo em estado de andar, de agir e de
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

atender, por si próprios, às suas neces- concepção do filho, torna-se ainda


sidades. maior o obstáculo de sua sociedade
4. Por fim, o Sr. Locke prova, no com o homem, pois então não tem
máximo, que bem poderia haver no mais necessidade nem do homem que a
homem um motivo para permanecer li- fecundou, nem de qualquer outro. Não
gado à mulher quando ela tem um há, pois, no homem, motivo algum
filho, mas não prova, de modo algum, para procurar a mesma mulher, nem
que a ela se prendeu antes do parto e na mulher razão alguma para procurar
durante os noves meses de gravidez. Se o mesmo homem. O raciocínio de
tal mulher é indiferente ao homem Locke se esfacela e toda a dialética
durante esses nove meses, se até se desse filósofo não o poupou do erro
torna desconhecida para ele, por que a que Hobbes e outros cometeram. Ti-
socorreria depois do parto? Por que a nham de explicar um fato relativo ao
auxiliaria a criar um filho, que não estado de natureza, isto é, a um estado
sabe se lhe pertence unicamente e de em que os homens viviam isolados e
quem não resolveu nem previu o nasci- no qual um homem não possuía qual-
mento? O Sr. Locke evidentemente dâ quer motivo para permanecer ao lado
por suposto aquilo que está em ques- de um tal outro, nem talvez os homens
tão, pois não se trata de saber por que de permanecerem ao lado uns dos
o homem ficaria ligado à mulher de- outros, o que é bem pior — e não lem-
pois do parto, mas por que a ela se braram de se transportar além dos sé-
ligaria depois da concepção. Satisfeito culos de sociedade, isto é, daqueles
o apetite, o homem não tem mais tempos em que os homens sempre tive-
necessidade de tal mulher, nem a mu- ram um motivo para permanecerem
lher de tal homem. Este, talvez, não uns perto dos outros e nos quais um
tem a menor preocupação, nem talvez homem, frequentemente, possui um
a menor idéia das conseqüências de motivo para permanecer ao lado de
sua ação. Um vai para um lado, o outro homem ou de outra mulher.
outro para outro lugar, e não há proba- (m) Terei o cuidado de não me
bilidades de que, ao fim de nove meses, aventurar às reflexões filosóficas que
tenham lembrança de se terem conhe- se poderiam fazer sobre as vantagens e
cido. Essa espécie de lembrança, devi- os inconvenientes dessa instituição das
do à qual um indivíduo dá preferência línguas; não será a mim que se torne lí-
a um outro indivíduo por causa do ato cito atacar erros vulgares, e o povo
da geração, exige, como o provo no letrado respeita demais seus precon-
texto, mais progresso e corrupção na ceitos para suportar pacientemente
compreensão humana do que se pode meus pretensos paradoxos. Deixemos,
supor existir no estado de animalidade pois, falar as pessoas nas quais não se
de que se trata aqui. Uma outra mulher considerou crime tomar algumas vezes
pode, pois, satisfazer os desejos do o partido da razão contra a opinião da
homem tão comodamente quanto a multidão.
que já conheceu e, do mesmo modo, Nec quidquam felicitati humani ge-
um outro homem contentar a mulher, neris decederet, si, pulsa tot linguarum
supondo-se que ela sinta o mesmo ape- peste et confusione, unam artem calle-
tite durante o estado de gravidez, do rent mortales, et signis, motibus, gesti-
que razoavelmente se pode duvidar. Se busque, licitum foret quidvis explicare.
no estado de natureza, a mulher não Nunc vero ita comparatum est, ut ani-
sente mais a paixão do amor depois da malium quae vulgo bruta creduntur
ROUSSEAU

melior longe quam nostra hac in parte conhecido o nome dos números, é fácil
videatur conditio, utpote quae promp- explicar o seu sentido e despertar as
tius, et forsan felicius, sensus et cogi- idéias que esses nomes representam,
tationes suas sine interprete significent, mas, para inventá-los, foi preciso,
quam ulli queant mortales, praesertim antes de conceber essas mesmas idéias,
si peregrino utantur sermone. (Is Vos- estar-se, por assim dizer, familiarizado
sius. De Poemat. Cant. e Viribus com as meditações filosóficas, exerci-
Rhythmi, pág. 66.1*5 4) tado na consideração dos seres unica-
(n) Platão, mostrando como as mente pela sua essência e independen-
idéias da quantidade discreta e de suas temente de qualquer outra concepção;
relações são necessárias nas menores é essa uma abstração muito penosa,
artes, zomba, com razão, dos autores muito metafísica, muito pouco natural
de seu tempo que pretendiam ter Pala- e sem a qual, no entanto, essas idéias
medes inventado os números no cerco jamais poderiam ter-se transportado de
de Tróia, como se, diz esse filósofo, uma espécie ou de um gênero para
Agamenon até então pudesse ignorar outro, nem se tornarem universais os
quantas pernas tinha1 5 5. Com efeito, números. Um selvagem poderia consi-
sente-se ser impossível que a sociedade derar, separadamente, sua perna direi-
e as artes tivessem alcançado o ponto ta e sua perna esquerda, ou olhá-las
em que já se encontravam no tempo do juntas sob a idéia indivisível de um
cerco de Tróia, sem que os homens par, sem jamais pensar que exitiram
possuíssem o uso dos números e do duas, pois uma coisa é a idéia repre-
cálculo. Mas a necessidade de conhe- sentativa que nos dá o objeto e, a
cer os números, antes de adquirir ou- outra, a idéia numérica que a determi-
tros conhecimentos, não facilita imagi- na. Menos ainda poderia ele calcular
nar-lhes a invenção. Uma vez até cinco e, quando aplicasse suas
mãos uma sobre a outra e notasse que
seus dedos se correspondiam exata-
mente, estaria bem longe de pensar na
sua igualdade numérica; não sabia me-
lhor o número de seus dedos do que o
de seus cabelos e se, depois de fazê-lo
compreender o que são os números,
alguém lhe tivesse dito que tinha tantos
dedos nas mãos quantos nos pés, tal-
vez ficasse muito surpreso ao verificar,
comparando-os, sor verdadeira tal
coisa.
(o) Não se deve confundir o amor-
próprio com o amor de si mesmo; são
duas paixões bastante diferentes tanto
pela sua natureza quanto pelos seus
efeitos1 5 6. O amor de si mesmo é um
sentimento natural que leva todo ani-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE

mal a velar pela própria conservação e anos em que os europeus se atormen-


que, no homem dirigido pela razão e tam para fazer com que os selvagens
modificado pela piedade, produz a das várias regiões do mundo passem a
humanidade e a virtude. O amor-pró- viver do seu modo, não conseguiram
prio não passa de um sentimento rela- ainda conquistar um único, nem
tivo, fictício e nascido na sociedade, mesmo à custa do cristianismo, pois os
que leva cada indivíduo a fazer mais nossos missionários algumas vezes
caso de si mesmo do que de qualquer fazem cristãos, mas jamais homens
outro, que inspira aos homens todos os civilizados. Nada pode dominar a
males que mutuamente se causam e repugnância invencível que eles têm de
que constitui a verdadeira fonte da aprender nossos costumes e viver
honra. como nós. Caso esses pobres selvagens
Uma vez isso entendido, afirmo que, sejam tão infelizes quanto se pretende,
no nosso estado primitivo, no verda- qual será a inconcebível depravação de
deiro estado de natureza, o amor-pró- julgamento pela qual constantemente
prio não existe, pois cada homem em recusam a policiar-se a nosso modo ou
especial olhando-se a si mesmo como o a aprender a viver felizes entre nós,
único espectador que o observa, como enquanto em. inúmeras obras se lê que
o único ser no universo que toma inte- franceses e europeus se refugiaram
resse por si, como o único juiz de seu voluntariamente entre essas nações e aí
próprio mérito, torna-se impossível passaram a vida inteira sem mais
que um sentimento, que vai buscar sua poder renunciar a uma maneira de
fonte em comparações que ele não tem viver tão estranha, e que ainda se
capacidade para fazer, possa germinar vejam missionários sensatos lastimar,
em sua alma. Pelo mesmo motivo, esse com tristeza, os dias calmos e inocen-
homem não poderia ter nem ódio nem tes que passaram entre esses povos
desejo de vingança, paixões que só desprezados. Caso se responda não
podem nascer da opinião de alguma terem eles luzes suficientes para julgar
ofensa recebida e, como é o desprezo sadiamente o seu e o nosso estado, eu
ou a intenção de prejudicar e não o replicaria que o julgamento da felici-
mal que constitui a ofensa, homens que dade é menos uma questão de razão do
não sabem apreciar-se ou comparar-se que de sentimento. Aliás, essa resposta
podem infligir-se muitas violências pode voltar-se contra nós com mais
mútuas, quando disso lhes advem algu- vigor ainda, pois vai maior distância
ma vantagem, sem jamais se ofende- de nossas idéias à disposição de ânimo
rem reciprocamente. Em uma palavra, imprescindível para conceber o gosto
cada homem só vendo os seus seme- que sentem os selvagens por seu modo
lhantes como veria animais de outra de vida, do que das idéias dos selva-
espécie, pode tomar a presa do mais gens àquelas que podem fazer com que
fraco ou ceder a sua ao mais forte, concebam o nosso. Com efeito, depois
considerando suas rapinagens como de algumas observações, é fácil de ver
acontecimentos naturais, sem o míni- que todos os nossos trabalhos se diri-
mo movimento de insolência ou de gem para dois únicos objetos, a saber,
despeito e sem outra paixão além da alcançar para si as comodidades da
dor ou da alegria de um bom ou mau vida e a consideração dos demais. Mas
êxito. qual o meio que temos para imaginar a
(p) Constitui coisa extremamente espécie de prazer que um selvagem
notável o fato de que, depois de tantos experimenta passando a vida só, no
ROUSSEAU

meio dos bosques, na pesca ou a tocar tou educar e alimentar na Dinamarca e


numa flauta ruim sem jamais saber que a tristeza e o desespero fizeram
tirar um único som e sem preocupar-se com que todos morressem, seja de
com aprendê-lo? tédio, seja no mar por onde tentaram
Por diversas vezes levaram selva- alcançar a nado seu país, contentar-
gens a Paris, a Londres e a outras cida- me-ei em citar um único exemplo bem
des; esforçaram-se para exibir-lhes atestado e que entrego ao exame dos
nosso luxo, nossas riquezas e todas as admiradores da polícia européia.
nossas artes mais úteis e curiosas; tudo “Todos os esforços dos missionários
isso só despertou neles uma admiração holandeses do cabo da Boa Esperança
estúpida, sem o menor movimento de jamais conseguiram converter um
cobiça. Entre outras, lembro-me da único hotentote. Van der Stel, governa-
história de um chefe de alguns ameri- dor do Cabo, tendo tomado um deles
canos setentrionais que, há uns trinta desde a infância, fez com que fosse
anos, levaram à corte da Inglaterra. educado nos princípios da religião
Passaram mil coisas diante de seus cristã e na prática dos costumes da
olhos, procurando fazer-lhe algum pre- Europa. Foi vestido ricamente, ensina-
sente que pudesse agradar-lhe, sem ter ram-lhe inúmeras línguas e seus pro-
encontrado nada que parecesse interes- gressos corresponderam inteiramente
sâ-lo. Nossas armas pareciam-lhe pe- aos cuidados que se tomaram com a
sadas e incômodas, nossos sapatos sua educação. O governador, espe-
feriam-lhe os pés, nossas vestes o atra- rando bastante de seu espírito, man-
palhavam, tudo o incomodava; por dou-o às índias com um comissário
fim, viram que parecia experimentar geral que o empregou utilmente nos
algum prazer ao pegar uma coberta de negócios da companhia. Depois da
lã e envolver seus ombros com ela. morte do comissário, voltou ao Cabo.
“Concordais, pelo menos”, disseram- Poucos dias depois de sua volta, numa
lhe logo, “quanto à utilidade desse visita que fez a alguns hotentotes
objeto?” “Sim”, respondeu ele, “isso parentes seus, resolveu despojar-se de
me parece quase tão bom quanto a pele sua vestimenta européia para vestir-se
de um animal.” Não o teria dito se com uma pele de ovelha. Assim posto,
tivesse usado uma e outra na chuva. voltou ao forte, carregando um pacote
Talvez dirão que é o hábito que, que continha suas vestes antigas e,
prendendo cada um à sua maneira de apresentando-as ao governador, fez-lhe
viver, impede os selvagens de sentirem o seguinte discurso: ‘Tende a bondade
o que existe de bom na nossa; nessas de reconhecer que renuncio para sem-
condições, deve pelo menos parecer pre a estes ornamentos; renuncio tam-
bastante extraordinário que o hábito bém, para toda a vida, à religião cristã;
tenha mais força para fazer com que os minha resolução é viver e morrer na
selvagens prefiram a sua miséria do religião, nos costumes e nos usos de
que os europeus o gozo de sua felici- meus antepassados. A única graça que
dade. Mas, para dar a esta última obje- vos peço é deixar-me o colar e o cutelo
ção uma resposta à qual não há uma que uso; guardá-los-ei a ambos como
única palavra para se responder, sem recordação de vós’. Em seguida, sem
citar todos os jovens selvagens que esperar a resposta de Van der Stel,
inutilmente se buscaram para civilizar, fugiu e jamais foi visto no Cabo.” His-
sem falar dos groenlandeses e dos tória das Viagens, tomo 5, pág. 175.
habitantes da Islândia a quem se ten- (q) Poderíam objetar-me que, numa
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 315

tal desordem, os homefis, em lugar de devem ser distinguidos e favorecidos


se degolarem obstinadamente uns aos na proporção de seus serviços. É nesse
outros, ter-se-iam dispersado, se não sentido que se deve compreender o tre-
houvesse limites para a sua dispersão. cho de Isócrates1 5 7, no qual louva os
Mas, em primeiro lugar, esses limites primeiros atenienses por terem sabido
ter iam sido os do mundo. Caso se distinguir muito bem a mais vantajosa
pense na excessiva população que das duas espécies de igualdade, uma
resulta do estado de natureza, poder- das quais consistia em fazer com que
se-á concluir que a terra, nesse estado, todos os cidadãos participassem indi-
não teria demorado a cobrir-se de ho- ferentemente das mesmas vantagens e,
mens que assim se veriam forçados a outra, em distribuí-las segundo o méri-
viver reunidos. Aliás, ter-se-iam dis- to de cada um. Esses hábeis políticos,
persado, se o mal fosse rápido e se acrescenta o orador, banindo a injusta
fizesse uma mudança do dia para a igualdade, que não estabelece qualquer
noite. Nasciam eles, porém, sob o diferença entre os maus e os honestos,
jugo; quando sentiam seu peso, já ti- comprometeram-se irrecorrivelmente
nham o hábito de carregá-lo e conten- com aquela que recompensa e pune a
tavam-se com esperar ocasião de sacu-
cada um de acordo com o seu mérito.
di-lo. Por fim, já acostumados a mil
Mas, em primeiro lugar, jamais existiu
comodidades que os forçavam a per-
sociedade, seja qual for o grau de cor-
manecer reunidos, não lhes era tão
rupção a que possa ter chegado, na
fácil a dispersão quanto nos primeiros
tempos, quando, cada um tendo neces- qual não se faça diferença entre os
sidade somente de si mesmo, tomava maus e os honestos; em matéria de
seu partido sem esperar o consenti- costumes, na qual a Lei não pode fixar
mento de outrem. uma medida suficientemente exata
(r) O Marechal de Villars contava para servir de regra ao magistrado, ela
que, numa de suas campanhas, tendo proíbe, muito sabiamente, para não
as excessivas trapaças de um interme- deixar à própria discrição a sorte ou a
diário de víveres feito com que o exér- classificação dos cidadãos, o julga-
cito sofresse e reclamasse, ele o re- mento das pessoas, para só deixar-lhe
preendeu abertamente e o ameaçou de o das ações. Somente costumes tão
enforcá-lo. “Essa ameaça não me atin- puros quanto os dos cidadãos romanos
ge”, respondeu-lhe acintosamente o podem suportar censores; semelhantes
velhaco, “e sinto-me muito à vontade tribunais logo teriam posto tudo em
para dizer-lhe que não se enforca um desordem entre nós. É a estima pública
homem que dispõe de cem mil escu- que deve estabelecer a diferença entre
dos.” Não sei como isso aconteceu, os maus e os bons. O magistrado só é
acrescentou ingenuamente o marechal, juiz do direito rigoroso; mas o povo é
mas na realidade não foi enforcado o verdadeiro juiz dos costumes; juiz ín-
ainda que merecesse sê-lo cem vezes. tegro e até esclarecido quanto a esse
(s) A justiça distributiva opor-se-ia ponto, de quem às vezes se abusa, mas
até a essa igualdade rigorosa do estado a quem jamais se corrompe. A posição
de natureza, ainda que fosse praticável dos cidadãos deve ser, pois, regulada,
na sociedade civil e, como todos os não segundo o mérito pessoal, o que
membros do Estado lhe devem servi-
ços proporcionais a seus talentos e às 1 5 7 Areopagítica, parágrafo VIII. (N. de P.
suas forças, os cidadãos, por sua vez, A.-B.)
ROUSSEAU

seria deixar aos magistrados a capaci- viços reais que prestam ao Estado e
dade de uma aplicação quase arbi- que são suscetíveis de julgamento mais
trária da Lei, mas, sim segundo os ser- exato.

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