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DO CONTRATO SOCIAL
%
ENSAIO SOBRE A
ORIGEM DAS LÍNGUAS
*
DISCURSO SOBRE AS
CIÊNCIAS E AS ARTES
*
Tradução de Lo u r d e s Sa n t o s Ma c h a d o
Introduções e notas de Pa u l . Ar b o u s s e -Ba s t id e e Lo u r iv a l Go m e s Ma c h a d o
de Paul Arbousse-Bastide
Origens
tudo do corpo humano, das raças e dos povos. Suas principais fontes, neste
ponto, são: Buffon, na sua monumental História Natural, da qual cita sobretudo
o capítulo sobre A Natureza do Homem; P. Dutertre, autor de uma História
Geral das Antilhas Habitadas pelos Franceses; e a História das Viagens, publi-
cação periódica, editada desde 1746. Foi daí que o filósofo extraiu o retrato,
desde então legendário, do “bom selvagem”. Convém lembrar Montaigne e,
especialmente, o capítulo dos Ensaios sobre Os Canibais2.
2 A esse respeito poder-se-á recorrer ao brilhante livro, copiosamente documentado, de Afonso Arinos de
Mello Franco: O índio Brasileiro e a Revolução Francesa, Ed. J. Olympio, Rio de Janeiro, 1937. (N. de
P.A.-B.)
INTRODUÇÃO 211
PREFÁCIO
DISCURSO
I) O homem físico
também de retrogradar; é a causa das infelicidades dos homens, que não soube-
ram permanecer nafelicidade do estado natural.
3) Asfaculdades intelectuais superiores nascem das faculdades inferiores.
a) A razão é posta em ação pelas paixões que, por sua vez, são suscitadas
pelas necessidades. As paixões elementares reduzem-se a três desejos e um
temor: o desejo de nutrição, o de reprodução e o de repouso; o temor da dor. O
homem, ignorante do que seria a morte, não poderia temê-la.
b) Essa opinião pode ser comprovada, de um lado, pela história do pro-
gresso intelectual, que está condicionado pelas paixões e pelas necessidades,
incessantemente aumentadas, do homem social; de outro lado, pela observação
dos selvagens, que não possuem desejos ou imaginação, e vivem inteiramente no
momento presente.
c) O progresso intelectual supõe trabalho, curiosidade, previdência — coi-
sas próprias não do homem natural mas do homem social. O progresso intelec-
tual supõe também duas condições que são as convenções sociais: a linguagem e
a divisão de terras.
4) Rousseau trata do problema da origem das línguas na intenção de pro-
var, de acordo com Condillac, que a língua supõe a sociedade e, portanto, não
pôde nascer naturalmente. Rousseau, consciente da dificuldade do problema e da
precariedade de todas as soluções, descreve os seguintes estágios na formação da
língua:
a) O grito é a primeira linguagem natural.
b) As inflexões da voz servem, pouco a pouco, para designar os objetos.
c) Surge, por fim, a instituição dos sinais, simbolizando as articulações da
voz. Limitada, a princípio, por palavras-frases, decompõe-se em infinitos e em
nomes próprios, depois estende-se aos adjetivos, que são abstrações, e às idéias
gerais. Compreende, então, as primeiras classificações lógicas e biológicas, como
as de Aristóteles.
5) Conclusão: a sociabilidade não está inscrita na natureza humana origi-
nal. O homem não tem necessidade de outrem. Não sofre nem a dor, nem a misé-
ria, que o tornariam digno de piedade. O estado de natureza caracteriza-se pela
suficiência do instinto, o estado de sociedade pela suficiência da razão.
1) Amoralismo integral: o homem não é então nem bom, nem mau, ignora
tanto as virtudes quanto os vícios. O estado de natureza é mais vantajoso para
ele e lhe proporciona maisfelicidade do que o estado social.
2) O primeiro princípio da moral natural: o instinto de conservação de si
mesmo. O erro de Hobbes, nesse ponto, consiste em ter acreditado que, para
conservar-se a si mesmo, impunha-se lutar com os outros e matá-los ou torná-los
escravos. Ora, a ausência da bondade não implica a maldade. O direito sobre as
coisas de que tem necessidade não leva o homem natural a um domínio univer-
sal. Pode-se muito bem zelar pela própria conservação sem prejudicar a de
outrem. O erro de Hobbes deve-se a ter levado em consideração necessidades tar-
dias para julgar o estado original do homem. Ora, o homem primitivo não pode-
ria ser mau, uma vez que não sabia o que era bom e mau.
214 INTRODUÇÃO
causa do progresso humano, tanto no que tem de bom quanto no que tem de
mau, mas engendram mais males do que bens.
3) Retrato da humanidade no seu último estágio. Rousseau, sem o dizer,
descreve o quadro do Antigo Regime: opressão, impostos, guerras, duelos, frivo-
lidade de costumes, luxo e estetismo.
4) O despotismo fecha o círculo da evolução. Com efeito, reencontra todos
os caracteres do estado de natureza: os homens, então, são iguais por não vale-
rem nada: o direito do mais forte vence; a moralidade reduz-se a uma obediência
cega; não existe mais virtude de costumes, nem noção do bem. Um tal estado
legitima todas as revoluções.
Conclusão geral:
Importância do discurso
1) Diferentemente do primeiro discurso, o Discurso sobre a Desigualdade
não foi premiado pela Academia de Dijon. Conferiu-se o prêmio a outro discur-
so, que foi impresso, de autoria do Padre Talbert, notável autor de sermões, de
inúmeros elogios, de peças e de poesias, e frequentemente laureado pelas acade-
mias de província. O Padre Talbert e suas obras há muito tempo caíram no mais
completo esquecimento. Do mesmo modo, a Dedicatória à República de Gene-
bra não produziu, naquela cidade, o efeito esperado por Rousseau, como o prova
uma carta a Perdriau, datada de 28 de novembro de 1754. O autor, com efeito,
descrevera muito mais a cidade de seus sonhos do que a realidade da vida polí-
tica genebrina e até incorrera em certos erros no quadro dessa vida, que
esboçara.
2) Mas, ao contrário do primeiro discurso, o segundo encontrou, não
somente entre os literatos, mas no grande público, um êxito imediato e triunfal.
Mornet, que passou em revista quinhentas bibliotecas particulares do século
XVIII, nelas encontrou somente quinze vezes o primeiro discurso, enquanto o
segundo aparece setenta e seis vezes, e a Nova Heloísa, cento e sessenta e cinco
vezes. Em dois pontos especiais, a repercussão do discurso foi considerável: a)
Rousseau instaurou, definitivamente, na literatura, o mito do selvagem livre,
feliz, robusto e puro, a superioridade da vida simples na natureza em oposição à
vida doentia das cidades civilizadas; b) voltou a darforma à doutrina da igualda-
de, ao ideal de vida comunitária, que foi o dos espartanos e dos primeiros
cristãos.
INTRODUÇÃO 219
1 “Não é entre os povos depravados, mas entre os que bem se conformam à natureza, que se deve examinar
o que é natural.” Aristóteles, Política, Livro I, cap. II. (N. de P. A.-B.)
AD\ ERTÊNCIA SOBRE AS NOTAS
Juntei algumas notas a este trabalho, de acordo com meu hábito preguiçoso
de trabalhar em intervalos irregulares. Essas notas2, por vezes, distanciam-se
bastante do assunto e não servem, por isso, para serem lidas com o texto. Colo-
quei-as, pois, no fim do Discurso, no qual me esforcei por seguir, do melhor
modo que pude, o caminho mais reto. Os que tiverem a coragem de recomeçar
poderão distrair-se, na segunda vez, levantando a caça e tentando percorrer as
notas. Não terá importância que os outros não as leiam.
Essas notas de Rousseau, seriadas por letras, encc.ntram-se nas páginas 295-320. (N. do E.)
A Re pu b l ic a d e Ge n e b r a
atordoam os fracos e delicados, que uma república que de modo algum ten-
absolutamente não lhes são afeitos. Os tasse a ambição de seus vizinhos e que
povos, uma vez acostumados a possuí- com justiça pudesse contar, na necessi-
rem senhores, não conseguem viver dade, com socorro. Conclui-se que,
sem eles. Se tentam sacudir o jugo, numa posição tão feliz, ela nada teria a
distanciam-se a tal ponto da liberdade temer a não ser de si mesma e que, se
que, tomando por ela uma licença esses cidadãos fossem adestrados nas
desenfreada que lhe é oposta, as suas armas, antes seria para manter entre
revoluções quase sempre os entregam a eles o ardor guerreiro e a altivez da
sedutores que só fazem agravar suas coragem, que assentam tão bem à
cadeias. O próprio povo romano, esse liberdade e alimentam o seu gosto, do
modelo de todos os povos livres, não que pela necessidade de atender à pró-
foi capaz de governar-se ao sair da pria defesa.
opressão dos Tarqüínios. Aviltados Teria procurado um país no qual o
pela escravatura e pelos trabalhos direito de legislação fosse comum a
ignominiosos que eles lhes impuseram, todos os cidadãos'12, pois quem me-
a,princípio não foi senão a uma popu- lhor do que eles pode saber quais as
laça estúpida que se precisou dirigir e condições em que lhes convém viver
governar com a maior sabedoria a fim juntos numa mesma sociedade? Mas
de que, acostumando-se pouco a pouco não aprovaria plebiscitos como os dos
a respirar o ar salutar da libeídade, romanos, nos quais os chefes de Esta-
essas almas abatidas, ou antes, embru- do e os mais interessados em sua
tecidas pela tirania, adquirissem paula- conservação estavam excluídos das
tinamente a severidade de costumes e a deliberações de que frequentemente
altivez da coragem, que por fim o tor- dependia a sua salvação, e, por incon-
nariam o mais respeitável de todos os seqüência absurda, privavam-se os ma-
povos. Eu teria, pois, procurado para gistrados dos direitos usufruídos pelos
minha pátria uma república feliz e simples cidadãos.
tranquila, cuja ancianidade de certo Teria desejado, pelo contrário, para
modo se perdesse na noite dos tempos, sustar os projetos interessados e mal
que só tivesse experimentado os golpes
necessários para suscitar e fortalecer 12 Não é exato para a Genebra de então. A
em seus habitantes a coragem e o amor população dividia-se aí em quatro classes,
pela pátria, e na qual os cidadãos, desiguais em seus direitos, sob todos os aspec-
habituados de há muito a uma inde- tos. Somente a classe dos cidadãos ou burgue-
pendência sábia, fossem não somente ses, que correspondia a 1 600 pessoas em
24 000 habitantes, tinha entrada no Conselho
livres mas dignos de sê-lo. Geral, depositário do poder legislativo. Mesmo
Desejaria ter escolhido para mim esse Conselho Geral, depois das reformas
uma pátria despida, por feliz impotên- introduzidas por Calvino (1541-43), perdera a
cia, do feroz amor das conquistas, e iniciativa das leis e a designação direta dos
síndicos, em favor de Conselhos restritos,
garantida, por situação ainda mais recrutados por cooptação e representação da
feliz, do temor de tornar-se suscetível Igreja. Aliás, toda a história de Genebra é
da conquista por um outro Estado; marcada pela luta entre o governo da Igreja e a
uma cidade livre, colocada entre nume- assembléia popular. Rousseau é, pois, exces-
rosos povos, nenhum dos quais com sivo em seus elogios e, por isso, eles seriam
mal-acolhidos na própria Genebra. Rousseau
interesse de invadi-la e cada um dos mudaria de opinião sobre Genebra e denun-
quais com interesse de impedir os de- ciaria o poder arbitrário dos síndicos na Séti-
mais de invadi-la; em uma palavra, ma Carta da Montanha. (N. de P. A.-B.)
226 ROUSSEAU
mente o repouso e a paz de que me pri- sois nem suficientemente ricos para
vara uma juventude imprudente, pelo enlanguescer-vos com a preguiça e per-
menos alimentaria em minha alma der com delícias vãs o gosto da verda-
esses mesmos sentimentos que não deira felicidade e o das virtudes sóli-
poder ia ter aproveitado em meu país, das, nem tão pobres para necessitardes
e, imbuído de uma terna e desinte- de socorro estrangeiro que vossa in-
ressada afeição por meus concidadãos dústria não exige. E quase nada vos
distantes, dirigir-lhes-ia, do fundo de custa conservar essa liberdade precio-
meu coração, mais ou menos o se- sa, que só se alcança nas grandes
guinte discurso: nações com impostos exorbitantes.
“Meus caros concidadãos, ou antes, “Possa durar sempre, para a felici-
meus irmãos, uma vez que tanto os dade de seus cidadãos e exemplo dos
laços de sangue quanto as leis nos povos, república tão sábia e felizmente
unem quase que a todos, é-me agradá- constituída! Tal o único voto que vos
vel não poder pensar em vós sem ao falta fazer e o único cuidado que vos
mesmo tempo pensar em todos os bens resta a tomar. E, só a vós, de agora em
de que gozais e cujo valor talvez ne- diante, caberá, não constituir vossa
nhum de vós alcança melhor do que felicidade' 5, pois vossos antepassados
eu, que os perdi. Quanto mais reflito já vos pouparam esse trabalho, mas
sobre vossa situação política e civil, sim torná-la duradoura pela sabedoria
menos consigo imaginar que a natu- que tiverdes de bem utilizar-vos dela. É
reza das coisas humanas possa com- da vossa união perpétua, de vossa
portar outra melhor. Em todos os de- obediência às leis, do respeito que
mais governos, quando se trata de tiverdes pelos seus ministros, que de-
assegurar o maior bem do Estado, penderá vossa conservação. Se subsis-
iodas as coisas se limitam sempre a tir entre vós o menor germe de amar-
projetos de idéias ou, pelo menos, a gor ou de desconfiança, apressai-vos
simples possibilidades; em vosso caso, em destruí-lo como um fermento funes-
vossa felicidade é completa — basta to, do qual, cedo ou tarde, resultariam
somente usufruir dela — e, para vos vossas infelicidades e a ruína do Esta-
tornardes bastante felizes, basta so- do. Conjuro-vos a que penetreis todos
mente contentar-vos com sê-lo. Vossa o fundo de vosso coração e consulteis
soberania adquirida ou conquistada à a voz secreta de vossa consciência' 6.
ponta de espada e conservada, durante Alguém dentre vós conhecerá no uni-
dois séculos, graças a vosso valor e verso corpo mais íntegro, mais esclare-
sabedoria, é enfim plena e universal- cido, mais respeitável do que o de vos-
mente reconhecida. Tratados dignos sos magistrados? Todos os seus
fixam vossas fronteiras, asseguram membros não vos dão o exemplo de
vossos direitos e fortalecem vosso moderação, de simplicidade de costu-
repouso. Vossa constituição é excelen- mes, de respeito pelas leis e de reconci-
te, ditada pela mais sublime razão e liação a mais sincera? Rendei, pois,
garantida por potências amigas e res- sem reservas, a chefes tão sábios, esta
peitáveis; vosso Estado é tranquilo,
não tendes nem guerras, nem conquis- 1 5 Rousseau é obsediado pela palavra “felici-
tadores a temer, não conheceis outros dade”, que incessantemente aparece nessa
Dedicatória, e, neste trecho, é repetida três
senhores senão as sábias leis que fizes- vezes em doze linhas. (N. de P. A.-B.)
tes, administradas por magistrados ín- 1 6 Alusão à especificidade e à condição de
tegros que são de vossa escolha; não inata da consciência moral. (N. de P. A.-B.)
228 ROUSSEAU
rido recebendo, com frutos bem par- prazer, ama naturalmente respeitar-
cos, as instruções ternas do melhor dos vos, e os mais ardentes em sustentar
pais. Se os desvarios de uma juventude seus direitos são os mais inclinados a
louca me fizeram, durante um certo respeitar os vossos.
tempo, esquecer lições tão sábias, Não surpreende que os chefes de
tenho afelicidade de, por fim, demons- uma sociedade civil prezem-lhe a gló-
trar que, ainda que se tenha alguma ria e a felicidade; mas chega a inquie-
tendência para o vício, dificilmente tar os homens testemunharem que os
ficará perdida para sempre uma educa- que se consideram magistrados, ou
ção na qual o coração estiver presente. antes, os senhores de uma pátria mais
Tais são, Ma g n íf ic o s e Ho n r a - santa e mais sublime, demonstrem
d ís s im o s Se n h o r e s , o s cidadãos algum amor pela pátria terrestre que os
e até os simples habitantes nascidos no alimenta. Como me é agradável poder
Estado em que governais; tais são abrir em nosso favor exceção tão rara
esses homens instruídos e sensatos dos e colocar, à altura de nossos melhores
quais, sob o nome de operários e de cidadãos, esses depositários zelosos
povo, se têm nas outras nações idéias dos dogmas sagrados autorizados
tão baixas e falsas. Meu pai, confesso- pelas leis, esses veneráveis pastores de
o com alegria, não se distinguiria de almas, cuja eloquência viva e agradá-
modo algum entre seus concidadãos, vel leva com mais facilidade ao cora-
não era mais do que todos eles eram, e, ção as máximas do Evangelho, posto
tal como era, não havia região em que que sempre começam por praticá-las
o seu convívio não fosse procurado, eles mesmos / Todo o mundo sabe com
cultivado, mesmo com proveito, pelas que sucesso a grande arte da tribuna é
pessoas mais honestas. Não me cabe, cultivada em Genebra. Mas, acostu-
e, graças ao céu, não tenho necessi- mados demais a ouvir dizer de um
dade de falar-vos da consideração que modo e ver agir de outro, poucas pes-
podem esperar de vós homens dessa soas sabem até que ponto reinam entre
têmpera — vossos iguais tanto pela nossos ministros21 o espírito do cris-
educação quanto pelos direitos da tianismo, a santidade dos costumes, a
natureza e do nascimento, vossos infe- severidade para consigo mesmo e a
riores por vontade própria —, pela suavidade para com o próximo. Talvez
preferência que devem a vosso mérito, caiba somente à cidade de Genebra
que reconheceram, e pelo qual, por mostrar o exemplo edificante de união
vossa vez, lhes deveis certo reconheci- tão perfeita numa sociedade de teólo-
mento. Sei, com viva satisfação, com gos e de letrados; é, em grande parte,
quanta doçura e condescendência tem- em sua sabedoria e sua moderação
perais, para eles, a gravidade que con- reconhecidas, em seu zelo pela prospe-
vém aos ministros das leis, como lhes ridade do Estado, que baseio a espe-
retribuís em estima e atenções o que rança de sua tranquilidade eterna, e
vos devem em obediência e respeito:
conduta cheia de justiça e de sabedo- 21 Aos olhos de Rousseau, Genebra reproduz
ria, propícia a distanciar cada vez mais a vida dos primeiros cristãos, que, para ele, é a
a memória dos acontecimentos infeli- ideal e que somente o protestantismo pode per-
zes, que é preciso esquecer para jamais mitir que tornemos a encontrar. Compare-se
com a ironia de Imbert de Ia Tour: “A pri-
rever; conduta ainda mais criteriosa na meira criação de Calvino foi um livro, a Insti-
medida em que esse povo eqüitativo e tuição, a segunda foi uma cidade, Genebra.
generoso transforma seu dever num Livro e cidade completam-se”. (N. de P. A.-B.)
230 ROUSSEAU
naturalmente tão iguais entre si quanto Que meus leitores não pensem que
o eram os animais de cada espécie ouso iludir-me julgando ter visto o que
antes que várias causas físicas tives- me parece tão difícil de ser visto. Ini-
sem introduzido em algumas espécies ciei alguns raciocínios, arrisquei algu-
as variedades que nelas notamos. Com mas conjeturas, antes com intenção de
efeito, não é concebível que essas pri- esclarecer e de reduzir a questão ao seu
meiras mudanças, sejam quais forem verdadeiro estado do que na esperança
os meios pelos quais se deram, tenham de resolvê-la. Outros poderão, desem-
alterado, a um só tempo e da mesma baraçadamente, ir mais longe na
maneira, todos os indivíduos da espé- mesma direção, sem que para ninguém
cie; porém, tendo-se uns aperfeiçoado seja fácil chegar ao término pois não
ou deteriorado e adquirido várias qua- constitui empreendimento trivial sepa-
lidades, boas ou más, que de modo rar o que há de original e de artificial
algum eram inerentes à sua natureza, na natureza atual do homem, e conhe-
ficaram outros por mais longo tempo cer com exatidão um estado que não
em seu estado original. Foi isso que mais existe, que talvez nunca tenha
determinou entre os homens a primeira existido, que provavelmente jamais
fonte de desigualdade, que é mais fácil existirá2 6, e sobre o qual se tem, con-
tudo, a necessidade de alcançar noções
demonstrar assim em geral do que
assinalar-lhe com precisão as verda-
deiras causas. 2 6 Rousseau tem como objetivo reencontrar,
por meio da hipótese, a história da evolução,
no decorrer da qual os homens se elevaram até
cie de fatalismo conformista capaz de excluir o estado social. O método empregado por ele é
qualquer distinção entre o bem e o mal e psicológico; o estado de natureza, como o defi-
desaconselhando qualquer esforço de regenera- ne aqui, é o homem, fazendo-se abstração da
ção. Rousseau, pelo contrário, defende o crité- vida social; o problema é, então, saber quais
rio ético acima de todos os valores e só o crê são, no homem, os elementos que derivam da
realizável por uma ação voluntária. Mas, para constituição do indivíduo. Esse método foi cri-
julgar e para agir, impõe-se conhecer o objeto ticado pelos sociólogos modernos que, pelo
dessas operações — daí a busca da verdadeira contrário, pensam que a sociedade possui uma
lei natural, que “não constitui empreendimento natureza específica e que não se limita a uma
fácil”, pois está em “separar o que há de origi- soma de unidades individuais. (N. de P. A.-B.)
nal e de artificial na natureza atual do homem [Vale, não obstante, registrar que a noção de
e conhecer com exatidão um estado que não só foi encontrada por Durkheim
mais existe, que talvez jamais tenha existido, (que se confessava constante leitor de Rous-
que provavelmente jamais existirá”. seau) no século XX. Mesmo os fundadores da
Esse empreendimento implicará desfazer ciência social — salvo a honrosa exceção de
dois pontos obscuros. O primeiro é puramente Karl Marx — continuaram, ainda depois de
metodológico e Rousseau acaba de enunciá-lo: conceberem uma essência social distinta da
se a ciência é um produto social, todo o esfor- individual ou da simples soma das realidades
ço que se fizer para aprimorar o método trará, individuais, a considerar a existência de duas
por igual, um afastamento do objeto. O segun- realidades, lado a lado. Tal ambiguidade de’
do diz respeito ao próprio objeto, pois, lutando pensamento é notória nos “evolucionistas” e
contra os pontos de vista firmados em seu “biologistas” que, como Rousseau, só se inte-
tempo, Rousseau procurará, como indicamos, ressaram por traçar a evolução que nos trouxe,
refutar uma noção fatalista da ordem natural homens e sociedades, do mais simples ao mais
— na qual se confundem o originário e o complexo. Atualmente, já bem assimilado o
adquirido —, mas também cuidará de afastar conceito de síntese, os sociólogos não temem
as noções a tal propósito postas em circulação versar problemas que se julgavam reservados à
por certos cultores do direito natural. Voltare- psicologia, destacando-se, entre os trabalhos
mos ao ponto em nota subseqiiente, para me- sociológicos contemporâneos, os dedicados ao
lhor acompanhar o pensamento de Rousseau. estudo da influência do social na formação da
(N. de L. G. M.) personalidade. (N. de L.G.M.)]
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 235
exatas para bem julgar de nosso estado na. Essa ignorância da natureza do
presente. Àquele que pretender deter- homem é que lança tanta incerteza e
minar exatamente as precauções a obscuridade sobre a definição verda-
serem tomadas para fazer sobre esse deira do direito natural, pois, como diz
assunto observações sólidas, tornar-se- o Sr. Burlamaqui28, a idéia do direito
á mesmo necessário mais filosofia do e, mais ainda, a do direito natural, são
que se pensa e não me parecería indig- evidentemente idéias relativas à natu-
na dos Aristóteles e dos Plínios de reza do homem. É, pois, dessa mesma
nosso século uma boa solução do natureza — continua ele — de sua
seguinte problema: “Quais as experiên- constituição e de seu estado, que se
cias necessárias para chegar-se a co- devem deduzir os princípios dessa
nhecer o homem natural e quais os ciência.
meios para fazer tais experiências no Não é sem surpresa e sem escândalo
seio da sociedade?”2*7 Longe de tentar que se nota a pequena concordância
resolver esse problema, creio ter medi- que reina sobre esse importante assun-
tado bastante sobre o assunto para to entre os diversos autores que já tra-
ousar de antemão responder que os taram dele. Entre os escritores mais sé-
maiores filósofos não serão suficiente- rios, encontram-se com dificuldade
mente bons para dirigir essas experiên- dois que sejam da mesma opinião
cias, nem os mais poderosos soberanos sobre esse ponto. Sem falar dos antigos
para fazê-las28, não sendo razoável filósofos, que parecem ter-se esforçado
contar com tal concurso, sobretudo para se contradizer entre si sobre os
com a perseverança ou, antes, a suces- princípios mais fundamentais, os juris-
são de luzes e de boa vontade necessá- consultos romanos submetem o
rias, tanto duma quanto doutra parte, homem e todos os outros animais à
para alcançar bom êxito. mesma lei natural, por atribuírem esse
Essas pesquisas, tão dijícies de nome antes à lei, que a natureza impõe
fazer-se e sobre as quais se pensou tão a si mesma, do que à que prescreve, ou
pouco até aqui, constituem todavia os melhor, por causa da acepção particu-
únicos meios que nos restam para lar que esses jurisconsultos dão à pala-
remover uma multidão de dificuldades, vra lei que, segundo parece, só empre-
que nos ocultam o conhecimento dos garam, nessa ocasião, como expressão
fundamentos reais da sociedade huma- das relações gerais estabelecidas pela
natureza entre todos os seres animados
2 7 Aristóteles, entre os gregos, e Plínio, entre
visando à sua conservação comum. Os
os romanos, foram os dois sábios da antigui- modernos só reconhecem como lei
dade que acumularam as observações e as uma regra prescrita a um ser moral,
experiências da história natural. O método de isto é, inteligente, livre e considerado
Rousseau é claro: para alcançar o homem nas suas relações com os demais seres,
natural, com o qual se deve reconstruir a socie-
dade, impõe-se isolar nele tudo o que existe de limitando consequentemente ao único
social. “Caso contrário, corre-se o risco de animal dotado de razão, isto é, ao
incorrer no erro daqueles que, raciocinando homem, a competência da lei natural;
sobre o estado de natureza, carreiam para ele definindo, porém, esta lei cada um a
as idéias tomadas da sociedade.” (N. de P.
A.-B.)
28 Rousseau pensa, ao mesmo tempo, na 29 Burlamaqui (1694-1748), professor gene-
tradição do mecenismo científico dos príncipes brino, autor dos Princípios de Direito Natural
e no despotismo esclarecido próprios do século (1747) e dos Princípios do Direito Político
XVII, do qual oferece uma idéia a Carta ao (1751). Influiu muito diretamente em Rous-
Rei da Polônia. (N. de P.A.B.) seau. (N. de P. A.-B.)
236 ROUSSEAU
seu modo, estabelecem tudo sobre regras sobre as quais, para proveito
princípios tão metafísicos que há, comum, conviría que os homens con-
mesmo entre nós, muito poucas pes- cordassem entre si, e depois dá-se o
soas em situação de compreender esses nome de lei natural à coleção dessas
princípios, em lugar de poderem en- regras, sem outra prova além do bem
contrá-los por si mesmos. De forma que, segundo acham, resultaria de sua
que todas as definições desses homens prática universal. Aí está certamente
sábios, aliás em perpétua contradição um meio muito cômodo de compor
entre si, concordam unicamente quan- definições e explicar a natureza das
to a ser impossível compreender a lei coisas por conveniências arbitrárias.
da natureza e, consequentemente, obe- Enquanto, porém, não conhecermos
decê-la, sem ser grande pensador e pro- o homem natural, em vão desejaremos
fundo metafísico. Tal coisa significa, determinar a lei que ele recebeu ou
precisamente, que os homens tiveram aquela que melhor convém à sua
de utilizar, para o estabelecimento da constituição. Quanto podemos apreen-
sociedade, luzes que só se desenvolvem der bem claramente sobre o objeto
com muito trabalho e para poucas pes- dessa lei é que não somente é preciso,
soas, no próprio seio da sociedade. para ser lei, que a vontade daquele a
Conhecendo tão mal a natureza e que obriga possa submeter-se a ela
concordando tão pouco quanto ao sen- com conhecimento, como, também,
tido da palavra lei, seria muito difícil para ser natural, é preciso que se expri-
convir numa boa definição da lei natu- ma imediatamente pela voz da nature-
ral. Assim, todas as que encontramos za.
nos livros, além do defeito de não
serem uniformes, têm ainda o de serem Deixando de lado, pois, todos os li-
extraídas de vários conhecimentos que vros científicos, que só nos ensinam a
os homens, em absoluto, não têm natu- ver os homens como eles se fizeram, e
ralmente, e de vantagens cuja idéia só meditando sobre as primeiras e mais
podem ter depois de sair do estado de simples operações da alma humana,
natureza30. Começa-se por procurar creio nela perceber dois princípios
30 É a aplicação do método geral, exposto anteriores à razão., um dos quais inte-
no início do Prefácio, à teoria do direito natu- ressa profundamente ao nosso bem-es-
ral. Para Rousseau, a sociedade só pode ter
nascido de uma convenção; é o postulado exa- tar e à nossa conservação, e o outro
tamente oposto ao da escola do direito natural. nos inspira uma repugnância natural
Rousseau manifesta seu desacordo com os por ver perecer ou sofrer qualquer ser
Enciclopedistas e com o artigo Direito Natural sensível e principalmente nossos seme-
de Diderot. Essa tomada de posição fez com
que o classificassem de artificialista. |A con- conceito de sociabilidade por qualquer motivo
tenda entre as várias correntes de estudiosos ultrapassava a condição de mero instinto
do direito natural nunca esclarecería suficien- humano, isto é, de elemento puramente indivi-
temente qual a verdadeira base natural das dual. Rousseau, aceitando prontamente a con-
relações sociais. Grócio, sem dúvida, enun- cepção individualista, dispõe-se a apurar até
ciando uma “sociabilidade” que levaria os ho- que ponto se pode, com propriedade, falar de
mens a viverem em sociedade, “ainda que lei natural, posto que a palavra lei já implica
Deus não existisse”, avançara o mais que per- uma regra consciente e voluntária; consequen-
mitia a cultura iluminista. Concorreu, pois, temente, busca saber até onde ia a confusão
para a efetiva laicização do direito natural, entre, de um lado, o liame natural, originário,
mas, nem pelos seus escritos, nem pelos de fundamental e universal, e, de outra parte, as
seus discípulos e continuadores (nenhum dos regras resultantes das convenções sociais e
quais o igualou em força de penetração e inter- que, a seu ver, são artificiais, tardias, deriva-
pretação), fica-se sabendo, ao certo, se esse das e particulares. (N. de L. G. M.)|
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 237
tética dos governos representa, para o meios que pareciam dever cumular
homem, uma lição sob todos os aspec- nossa miséria.
tos instrutiva. Considerando aquilo em
que nos teríamos tornado se tivés- Quem te Deus esse
semos sido abandonados a nós mes- Jussit, et humana qua parte locatus es
mos, devemos aprender a bendizer in re, Disce33.
aquele cuja mão benfazeja, corrigindo Pérsio, Sátiras. ///, r. 71.
nossas instituições e dando-lhes uma
posição estável, preveniu as desordens 33 “Ouvi o que L>eus ordenou que sejais e
</ue deveríam resultar delas e fez com em razão de que partilha fostes estabelecido no
que de nossa felicidade nascessem os estado humano." (N. de P. A.-B.)
DISCURSO
SOBRE A ORIGEM E OS
FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE
ENTRE OS HOMENS
É d o h o m f m que devo falar e a virtude sempre se encontram, nos mes-
questão que examino me diz que vou mos indivíduos, na proporção do
falar a homens pois não se propõem poder ou da riqueza: tal seria uma boa
questões semelhantes quando se tem questão para discutir entre escravos
medo de honrar a verdade. Defenderei, ouvidos por seus senhores, mas que
pois, com confiança, a causa da huma- não convém a homens razoáveis e
nidade perante os sábios que me convi- livres, que procuram a verdade.
dam a fazê-lo e não ficarei descontente De que se trata, pois, precisamente
comigo mesmo se me tornar digno de neste Discurso? De assinalar, no pro-
meu assunto e de meus juizes. gresso das coisas, o momento em que,
Concebo, na espécie humana, dois sucedendo o direito à violência, sub-
tipos de desigualdade: uma que chamo meteu-se a natureza à lei; de explicar
de natural ou física, por ser estabele- por que encadeamento de prodígios o
cida pela natureza e que consiste na forte pôde resolver-se a servir ao fraco,
diferença das idades, da saúde, das for- e o povo a comprar uma tranqüilidade
ças do corpo e das qualidades do espí- imaginária pelo preço de uma felici-
rito e da alma; a outra, que se pode dade real.
chamar de desigualdade moral ou polí- Os filósofos que examinaram os
tica, porque depende de uma espécie de fundamentos da sociedade sentiram
convenção e que é estabelecida ou, todos a necessidade de voltar até o es-
pelo menos, autorizada pelo consenti- tado de natureza, mas nenhum deles
mento dos homens. Esta consiste nos chegou até lá. Uns3 4 não hesitaram em
vários privilégios de que gozam alguns supor, no homem, nesse estado, a
em prejuízo de outros, como o serem noção do justo e do injusto, sem
mais ricos, mais poderosos e homena- preocuparem-se com mostrar que ele
geados do que estes, ou ainda por faze- deveria ter essa noção, nem que ela lhe
rem-se obedecer por eles. fosse útil. Outros3 5 falaram do direito
Não se pode perguntar qual a fonte natural, que cada um tem, de conser-
da desigualdade natural, porque a res- var o que lhe pertence, sem explicar o
posta estaria enunciada na simples que entendiam por pertencer. Outros3 6
definição da palavra. Pode-se, ainda
menos, procurar a existência de qual- 3 4 Trata-se antes da opinião geral difusa, do
quer ligação essencial entre essas duas que de um determinado filósofo. Talvez Rous-
desigualdades, pois, em outras pala- seau pensasse também em Locke e em Montes-
vras, seria perguntar se aqueles que quieu. (N. de P. A.-B.)
3 5 Outros: Grócio, Pufendorf, Burlamaqui.
mandam valem necessariamente mais (N. de P. A.-B.)
do que os que obedecem e se a força do 3 6 Outros: Aristóteles, Hobbes e, de certa
corpo ou do espírito, a sabedoria e a forma, Grócio. (N. de P. A.-B.)
242 ROUSSEAU
Pr ime ir a Pa r t e
Por importante que seja, para bem pio garras retorcidas, se era peludo
julgar o estado natural do homem, como um urso e se, andando com qua-
considerá-lo desde sua origem e exami- tro pés (c), seus olhares dirigidos para
ná-lo, por assim dizer, no primeiro a terra e limitados a um horizonte de
embrião da espécie, não seguirei sua alguns passos não assinalavam, ao
organização através de seus desenvol- mesmo tempo, o caráter e os limites de
vimentos sucessivos; não me deterei suas idéias. Não poderei formular
procurando no sistema animal o que sobre esse assunto senão conjeturas
poderia ter sido inicialmente para ter- vagas e quase imaginárias. A anatomia
se tornado o que é. Não examinarei se, comparada progrediu muito pouco até
como pensava Aristóteles41, suas hoje, as observações dos naturalistas
unhas compridas não foram a princí- ainda são muito incertas para que se
possa, sobre tais fundamentos, estabe-
41 O valor de Áristóteles como naturalista
lecer a base de um raciocínio sólido;
resulta do fato de ter ele introduzido sistemati- assim, sem ter recorrido aos conheci-
camente o método comparativo em biologia; mentos naturais que temos sobre esse
salientou a analogia em que diferentes classes ponto e sem levar em consideração as
zoológicas aparentam órgãos cuja estrutura e mudanças que se deram na conforma-
aspecto exterior são muito dessemelhantes. O
que a mão é para o homem, a,pinça o é para os ção, tanto interior quanto exterior do
crustáceos: o que a asa é para o pássaro, a bar- homem, à medida que aplicava seus
batana o é para o peixe, etc. (N. de P. A.-B.) membros a novos usos e se nutria com
244 ROUSSEAU
contando ainda com a vantagem de, risco de perecer com ela. Esse perigo,
não menos disposto do que os animais porém, é comum a muitas outras espé-
à caminhada e encontrando nas árvo- cies, nas quais os menores, durante
res um refúgio quase seguro, dispor algum tempo, não são capazes de pro-
sempre da aceitação ou recusa do curar por si mesmos a alimentação e,
embate, e da escolha entre a fuga ou o se a infância é mais longa entre nós, a
combate. Acrescentemos que, segundo vida sendo mais longa também, neste
parece, nenhum animal guerreia natu- ponto tudo é quase igual (g), havendo
ralmente com o homem, a não ser no não obstante sobre a duração da pri-
caso de sua própria defesa ou de uma meira idade e sobre o número das
fome extrema, nem lhe testemunha crianças (h) outras regras que não se
essas antipatias violentas, que parecem prendem ao meu assunto. Entre os
anunciar ser uma espécie destinada velhos, que agem e transpiram pouco,
pela natureza a servir de pasto a outra. a necessidade de alimentos diminui
Aí estão, sem dúvida, os motivos com a faculdade de atendê-la e, como a
pelos quais os negros e os selvagens vida selvagem distancia deles os reu-
dão tão pouca importância aos ani- matismos e a gota, e como a velhice,
mais ferozes que possam encontrar nos entre todos os males, é aquele que o
bosques. Os caraíbas da Venezuela, socorro humano menos pode aliviar,
entre outros, vivem, a esse respeito, na extinguem-se um dia, sem que nos
mais profunda segurança e sem o apercebamos que deixaram de viver e
menor inconveniente. Embora vivam quase sem que eles mesmos percebam.
quase nus, diz François Correal, não Quanto às doenças, não repetirei as
deixam de corajosamente expor-se nas declamações inúteis e falsas que faz
matas, armados unicamente de flecha e contra a medicina a maioria das pes-
arco. Jamais se ouviu falar, no entanto, soas de boa saúde, mas perguntarei se
que alguns deles tenham sido devora- há uma observação sólida da qual se
dos pelos animais. possa concluir que, no país em que
Outros inimigos, mais temíveis e em essa arte é mais descuidada, a vida do
face dos quais o homem não conta homem seja mais breve do que naque-
com os mesmos meios para defender- les em que a cultivam com o maior dos
se, são as enfermidades naturais, a cuidados. E como poderia acontecer,
infância, a velhice e as doenças de toda se nós nos causamos males mais nume-
espécie; sinais muito tristes de nossa rosos do que os remédios que a medi-
fraqueza, os dois primeiros são co- cina pode nos fornecer? A extrema
muns a todos os animais e o último desigualdade na maneira de viver; o
pertence principalmente ao homem que excesso de ociosidade de uns; o exces-
vive em sociedade. Observo até, em so de trabalho de outros; a facilidade
relação à infância, que, levando a mãe de irritar e de satisfazer nossos apetites
consigo o filho para todos os lugares, e nossa sensualidade; os alimentos
tem muito mais facilidade para alimen- muito rebuscados dos ricos, que os nu-
tá-lo do que as fêmeas de inúmeros trem com sucos abrasadores e que
animais que são forçadas, continua- determinam tantas indigestões; a má
mente e com muita fadiga, a ir e vir, de alimentação dos pobres, que frequente-
um lado para outro para procurar mente lhes falta e cuja carência faz que
pasto e, de outro, para amamentar e sobrecarreguem, quando possível, avi-
nutrir seus filhotes. E verdade que, se a damente seu estômago; as vigílias, os
mulher morre, o filho corre grande excessos de toda sorte; os transportes
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 247
homem tratados igualmente pela natu- mais exercitadas deverão ser aquelas
reza, todas as comodidades que o cujo objetivo principal seja o ataque e
homem a si mesmo oferece, mas não a defesa, quer para subjugar a presa,
aos animais, são outras tantas causas quer para defender-se de tornar-se a de
particulares que fazem com que mais um outro animal; os órgãos que só se
perceptivelmente degenere. aperfeiçoam pela lassidão e pela sen-
Não constituem, pois, para esses sualidade devem, ao contrário, perma-
primeiros homens, nem tão grande necer num estado de grosseria que
mal, nem, sobretudo, tão grande obstá- deles excluirá qualquer delicadeza;
culo à sua conservação, a nudez, a ficando seus sentidos, nessa direção,
falta de moradia e a privação de todas divididos, terá o tato e o gosto de uma
as inutilidades que consideramos tão rudez extrema, e a vista, a audição e o
necessárias. Se não têm a pele peluda, olfato de uma enorme sutileza. E esse o
de modo algum disso necessitam nas estado animal em geral e também, de
regiões quentes e, nas frias, desde logo acordo com os relatos dos viajantes, o
sabem apropriar-se da dos animais que da maioria dos povos selvagens. Eis
dominaram; se só têm dois pés para por que não devemos espantar-nos
com o fato de os hotentotes do cabo da
correr, têm dois braços para atender à
Boa Esperança descobrirem navios em
sua defesa e às suas necessidades. Seus
filhos talvez andem tardiamente e com alto mar a olho nu tão longe quanto os
holandeses os divisam com óculos,
dificuldade, mas as mães os carregam
nem, por igual, que os selvagens da
com facilidade, o que constitui uma
vantagem, que falta às demais espé- América sintam os espanhóis no seu
encalço como o poderíam fazer os
cies, nas quais, ao ser a mãe perse-
melhores cães, nem, também, que
guida, vê-se obrigada a abandonar seus'
todas essas nações bárbaras suportem
filhotes ou a regular seus passos pelos
sem sacrifício sua nudez, agucem seu
deles. Finalmente, a menos que se
paladar com pimenta e bebam licores
suponham esses singulares e fortuitos
europeus como água.
concursos de circunstâncias dos quais
falarei em seguida e que poderíam Até aqui levei em consideração
muito bem jamais ter acontecido, é somente o homem físico; esforcemo-
claro e sem contestação possível que o nos por encará-lo, agora, em seu
primeiro a arranjar vestes e uma habi- aspecto metafísico e moral.
tação ofereceu a si mesmo, desse Em cada animal vejo somente uma
modo, coisas pouco necessárias, pois máquina50 engenhosa a que a natureza
tinha passado até então sem elas e conferiu sentidos para recompor-se por
também por não se poder imaginar si mesma e para defender-se, até certo
como não poderia ele suportar, feito ponto, de tudo quanto tende a destruí-
homem, um gênero de vida em que la ou estragá-la. Percebo as mesmas
vivia desde a infância. coisas na máquina humana, com a
diferença de tudo fazer sozinha a natu-
Só, desocupado e sempre próximo reza nas operações do animal, en-
do perigo, o homem selvagem deve quanto o homem executa as suas como
gostar de dormir e ter o sono leve, agente livre. Um escolhe ou rejeita por
como os animais que, pensando pouco,
dormem, por assim dizer, todo o tempo
em que não estão pensando. Consti- dos50 Rousseau adota o mecanismo cartesiano
corpos. No parágrafo seguinte, segue a
tuindo a própria conservação quase teoria cartesiana do espírito, que o divide em
sua única preocupação, as faculdades entendimento e vontade. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 249
instinto, e o outro, por um ato de liber- e o animal, haveria uma outra quali-
dade, razão por que o animal não pode dade muito específica que os distin-
desviar-se da regra que lhe é prescrita, guiria e a respeito da qual não pode
mesmo quando lhe fora vantajoso haver contestação — é a faculdade de
fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, aperfeiçoar-se, faculdade que, com o
frequentemente se afasta dela. Assim, auxílio das circunstâncias, desenvolve
um pombo morreria de fome perto de sucessivamente todas as outras e se
um prato cheio das melhores carnes e encontra, entre nós, tanto na espécie
um gato sobre um monte de frutas ou quanto no indivíduo; o animal, pelo
de sementes, embora tanto um quanto contrário, ao fim de alguns meses, é o
outro pudessem alimentar-se muito que será_por toda a vida, e sua espécie,
bem com o alimento que desdenham, no fim de milhares de anos, o que era
se fosse atilado para tentá-lo; assim, os no primeiro ano desses milhares. Por
homens dissolutos se entregam a ex- que só o homem é suscetível de tor-
cessos que lhes causam febre e morte, nar-se imbecil?51 Não será porque
porque o espírito deprava os sentidos e volta, assim, ao seu estado primitivo e
a vontade ainda fala quando a natu- — enquanto a besta, que nada adqui-
reza se cala. riu e também nada tem de bom a per-
Todo animal tem idéias, posto que der, fica sempre com seu instinto — o
tem sentidos; chega mesmo a combi- homem, tornando a perder, pela velhi-
nar suas idéias até certo ponto e o ce ou por outros acidentes, tudo o que
homem, a esse respeito, só se diferen- sua perfectibilidade lhe fizera adquirir,
cia da besta pela intensidade. Alguns volta a cair, desse modo, mais baixo
filósofos chegaram mesmo a afirmar do que a própria besta? Seria triste,
que existe maior diferença entre um para nós, vermo-nos forçados a convir
homem e outro do que entre um certo que seja essa faculdade, distintiva e
homem e certa besta. Não é, pois, quase ilimitada, a fonte de todos os
tanto o entendimento quanto a quali- males do homem; que seja ela que,
dade de agente livre possuída pelo com o tempo, o tira dessa condição
homem que constitui, entre os animais, original na qual passaria dias tran-
a distinção específica daquele. A natu- quilos e inocentes; que seja ela que,
reza manda em todos os animais, e a fazendo com que através dos séculos
besta obedece. O homem sofre a desabrochem suas luzes e erros, seus
mesma influência, mas considera-se vícios e virtudes, o torna com o tempo
livre para concordar ou resistir, e é o tirano de si mesmo e da natureza (i).
sobretudo na consciência dessa liber- Seria horrível ter de louvar como um
dade que se mostra a espiritualidade de ser benfeitor o primeiro a sugerir aos
sua alma, pois a física de certo modo habitantes das margens do Orinoco o
explica o mecanismo dos sentidos e a uso dessas tabuazinhas que aplicam
formação das idéias, mas no poder de nas têmporas de seus filhos e que, pelo
querer, ou antes, de escolher e no senti- menos, lhes asseguram uma parte de
mento desse poder só se encontram sua imbecilidade e de sua felicidade
atos puramente espirituais que de original.
modo algum serão explicados pelas O homem selvagem, abandonado
leis da mecânica. pela natureza unicamente ao instinto,
Mas, ainda quando as dificuldades
que cercam todas essas questões dei- 51 Sofrendo no corpo e no espírito, Rousseau
xassem por um instante de causar dis- toma posição contra a filosofia do progresso e
cussão sobre diferença entre o homem das luzes. (N. de P. A.-B.)
250 ROUSSEAU
finalmente, neste último caso, como se exercerem, a fim de que não se tor-
poderíam estabelecer condições entre nassem supérfluas e onerosas antes do
si. Sei que incessantemente nos repe- tempo, nem tardias e inúteis ao apare-
tem que nada ter ia sido tão miserável cer a necessidade. O homem encon-
quanto o homem nesse estado 7 2; e, se trava unicamente no instinto todo o
é verdade, como creio tê-lo provado, necessário para viver no estado de
que só depois de muitos séculos pode- natureza; numa razão cultivada só
ría sentir ele o desejo e a oportunidade encontra aquilo de que necessita para
de sair dessa condição, tal acusação viver em sociedade.
fora de fazer-se à natureza e não àque- Parece, a princípio, que os homens
le assim constituído por ela. Mas, se nesse estado de natureza, não havendo
compreendo bem o termo miserável, é entre si qualquer espécie de relação
ele uma palavra sem sentido algum ou moral ou de deveres comuns, não
que só significa uma privação dolorosa poderíam ser nem bons nem maus ou
e sofrimento do corpo ou da alma. possuir vícios e virtudes, a menos que,
Ora, desejaria que me explicassem tomando estas palavras num sentido fí-
qual poderia ser o gênero de miséria de sico, se considerem como vícios do
um ser livre cujo coração está em paz e indivíduo as qualidades capazes de
o corpo com saúde. Pergunto qual das prejudicar sua própria conservação, e
duas — a vida civil ou a natural — é virtudes aquelas capazes de em seu
mais suscetível de tornar-se insupor- favor contribuir, caso em que se pode-
tável àqueles que a fruem. À nossa ria chamar de mais virtuosos àqueles
volta, vemos quase somente pessoas que menos resistissem aos impulsos
que se lamentam de sua existência, inú- simples da natureza72 73. Sem nos afas-
meras até que dela se privam assim tarmos do senso comum, é oportuno
que podem, e o conjunto das leis divi- suspender o julgamento que pode-
nas e humanas mal basta para deter riamos fazer de uma tal situação e des-
essa desordem. Pergunto se algum dia confiar de nossos preconceitos até que,
se ouviu dizer que um selvagem em de balança na mão, se tenha exami-
liberdade pensou em lamentar-se da nado se há mais virtudes do que vícios
vida e em querer morrer. Que se julgue, entre os homens civilizados; ou se suas
pois, com menos orgulho, de que lado virtudes são mais proveitosas do que
está a verdadeira miséria. Pelo contrá- funestos seus vícios; ou se o progresso
rio, nada seria tão miserável quanto de seus conhecimentos constitui com-
um selvagem ofuscado por luzes, ator- pensação suficiente dos males que se
mentado por paixões e raciocinando causam mutuamente à medida que se
sobre um estado diferente do seu. instruem sobre o bem que deveríam
Deveu-se a uma providência bastante dispensar-se; ou se não estariam, na
sábia o fato de as faculdades, que ele melhor das hipóteses, numa situação
apenas possuía potencialmente, só po- mais feliz não tendo nem mal a temer
derem desenvolver-se nas ocasiões de nem bem a esperar de ninguém, ao
tudes sociais que quer contestar nos homem prudente se distancia; a cana-
homens. Com efeito, que são a genero- lha, as mulheres do mercado, é que
sidade, a clemência, a humanidade, separam os contendores e impedem as
senão a piedade aplicada aos fracos, pessoas de bem de se degolarem
aos culpados ou à espécie humana em mutuamente7 8.
geral? Até a benquerença e a amizade Certo, pois a piedade representa um
são, bem entendidas, produções de sentimento natural que, moderando em
uma piedade constante fixadas num cada indivíduo a ação do amor de si
objeto especial, pois desejar que al- mesmo, concorre para a conservação
guém não sofra não será desejar que mútua de toda a espécie. Ela nos faz,
seja feliz? A ser verdadeiro que a sem reflexão, socorrer aqueles que
comiseração não passa de um senti- vemos sofrer; ela, no estado de nature-
mento que nos coloca no lugar daquele za, ocupa o lugar das leis, dos costu-
que sofre, sentimento obscuro e vivo mes e da virtude, com a vantagem de
no homem selvagem, desenvolvido ninguém sentir-se tentado a desobe-
mas fraco no homem civil, que impor- decer à sua doce voz; ela impedirá
tará tal idéia para a verdade do que qualquer selvagem robusto de tirar a
digo, senão para dar-lhe mais força? A uma criança fraca ou a um velho enfer-
comiseração, com efeito, mostrar-se-á mo a subsistência adquirida com difi-
tanto mais enérgica quanto mais inti- culdade, desde que ele mesmo possa
mamente se identificar o animal espec- encontrar a sua em outra parte; ela, em
tador com o animal sofredor. Ora, é lugar dessa máxima sublime da justiça
evidente que essa identificação deveu raciocinada — Faze a outrem o que
ser infinitamente mais íntima no esta- desejas que façam a ti —, inspira a
do de natureza do que no estado de todos os homens esta outra máxima de
raciocínio. É a razão que engendra o bondade natural, bem menos perfeita,
amor-próprio e a reflexão o fortifica; mas talvez mais útil do que a prece-
faz o homem voltar-se sobre si mesmo; dente — Alcança teu bem com o
separa-o de quanto o perturba e aflige. menor mal possível para outrem.
É a filosofia que o isola; por sua causa, Numa palavra, antes nesse sentimento
diz ele, em segredo^ ao ver um homem natural do que nos argumentos sutis
sofrendo: “Perece, se queres; quanto a deve procurar-se a causa da repug-
mim, estou seguro”. Nada, além dos nância que todo homem experimen-
perigos da sociedade inteira, atrapalha taria por agir mal, mesmo independen-
o sono tranquilo do filósofo e o arran- temente das máximas da educação.
ca do leito. Podem impunemente dego- Ainda que possa ser próprio de Sócra-
lar um seu semelhante sob sua janela, tes e dos espíritos de sua têmpera
ele só terá de levar as mãos às orelhas
e ponderar um pouco consigo mesmo 78 Nas Confissões, Rousseau afirma que esse
para impedir a natureza, que nele se retrato do filósofo que raciocina contra a.pie-
revolta, de identificar-se com aquele dade natural tapando os ouvidos é o de Dide-
rot. Aproveita-se disso para acusar Diderot de
que se assassina. O homem selvagem ter, devido à sua influência, dado às próprias
de modo algum possui esse talento obras “o tom duro e o aspecto negro” que de-
admirável e, por falta de sabedoria e de pois não mais apresentaram. Esse retrato tam-
razão, vemo-lo cada dia entregar-se bém visa Lucrécio (com o célebre trecho
“suave mari magno . . “é doce ver um nau-
temerariamente ao primeiro senti- frágio quando se está ao abrigo em terra
mento de humanidade. Nos motins, firme”) e o moralista inglês Shaftesbury. (N. de
nas arruaças, a populaça se reúne, o P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
do, no qual só sentia suas verdadeiras É fácil de ver, com efeito, que entre
necessidades, só olhava aquilo que as diferenças que distinguem os ho-
acreditava ter interesse de ver, não mens, inúmeras, consideradas como
fazendo sua inteligência maiores pro- naturais, são unicamente obra do hábi-
gressos do que a vaidade. Se por acaso to e dos vários gêneros de vida que os
descobria qualquer coisa, era tanto homens adotam em sociedade. Assim,
mais incapaz de comunicá-la quanto um temperamento robusto ou delicado,
nem mesmo reconhecia os próprios a força ou a fraqueza, que dele deri-
filhos. A arte perecia com o inventor. vam, resultam mais frequentemente da
Então não havia nem educação, nem maneira dura ou afeminada pela qual
progresso; as gerações se multipli- se foi educado do que da constituição
cavam inutilmente e, partindo cada primitiva dos corpos. A mesma coisa
uma sempre do mesmo ponto, desenro- acontece com as forças do espírito; a
lavam-se os séculos com toda a grosse- educação não só estabelece diferença
ria das primeiras épocas; a espécie já entre os espíritos cultos e os que não o
era velha e o homem continuava sem- são, como também aumenta a que exis-
pre criança79. te entre os primeiros na proporção da
Estendi-me desse modo sobre a cultura, pois, quando um gigante e um
suposição80 dessa condição primitiva anão andam pelo mesmo caminho,
porque, devendo destruir antigos erros cada passo, que um e outro dêem, trará
e preconceitos inveterados, achei que uma vantagem a mais ao gigante. Ora,
devia pulverizá-los até a raiz e mos- se se fizer uma comparação entre a
trar, no quadro do verdadeiro estado diversidade prodigiosa de educação e
de natureza, como a desigualdade, de gêneros de vida que reina nas várias
mesmo natural, está longe de ter nesse ordens do estado civil, e a simplicidade
estado tanta realidade e influência e uniformidade da vida animal e selva-
quanto pretendem nossos escritores81. gem, na qual todos se alimentam com
79 A incapacidade, que Rousseau aponta no
os mesmos alimentos, vivem da mesma
homem natural, para uma acumulação cultural maneira e fazem exatamente as mes-
por sobre e para além das gerações em suces- mas coisas, compreender-se-á quanto
são, representa a antítese teórica e conjètural deve a diferença de homem para
do sentido histórico da vida humana. Em ou- homem ser menor no estado de natu-
tras palavras: os feitos do homem, longe de
poderem ser atribuídos às suas capacidades de reza do que no estado de sociedade e
animal superior, resultam substancialmente da quanto aumenta a desigualdade natu-
vida em sociedade que supera e transfigura as ral na espécie humana por causa da
existências individuais. Por isso os historia- desigualdade de instituição.
dores modernos reconhecem em Rousseau um Mas, mesmo se a natureza mos-
precioso precursor que, principalmente através
de Herder, legou-nos uma visão inteiramente trasse na distribuição desses dons
inédita da História. (N. de L. G. M.) todas as preferências que se pretende
80 O autor lembra que esse quadro do estado que tenha, qual a vantagem alcançada
de natureza não passa de uma hipótese bem pelos favorecidos em prejuízo dos
fundamentada, pois sua eloquência fez com
que nos esquecéssemos disso. (N de P. A.-B.)
demais, num estado de coisas-que não
81 Hobbes via na força um método, mais admitiría quase nenhuma espécie de
curto e mais natural do que as convenções, relação entre eles? De que servirá a be-
para fundamentar uma sociedade: o mais forte leza onde não houver amor de espécie
submete seus súditos, seja como um pai sub- alguma? De que serve o espírito a pes-
mete os filhos a seu governo, seja como o ven-
cedor submete o inimigo vencido à servidão. soas que não falam e a astúcia aos que
não têm interesses? Ouço sempre dizer
ROUSSEAU
que os mais fortes oprimirão os fracos. Sem prolongar inutilmente esses de-
E preciso, porém, que me expliquem o talhes, cada qual deve ver como, por
que querem dizer com a palavra opres- serem os laços da servidão formados
são. Uns dominarão com violência, ou- unicamente pela dependência mútua
tros gemerão submetidos a todos os dos homens e pelas necessidades recí-
seus caprichos. Aí está precisamente o procas que os unem, é impossível sub-
que observo entre nós, mas não sei jugar um homem sem antes tê-lo colo-
como se poderia dizer isso de homens cado na situação de não viver sem o
selvagens, com os quais se teria mesmo outro, situação essa que, por não exis-
grande dificuldade para fazer com- tir no estado de natureza, nele deixa
preender o que é servidão e domina- cada um livre do jugo e torna inútil a
ção. Um homem poderá muito bem lei do mais forte83.
apossar-se dos frutos colhidos por um Depois de ter provado ser a desi-
outro, da caça morta por ele, do antro gualdade apenas perceptível no estado
que lhe servia de abrigo, mas como de natureza, e ser nele quase nula sua
chegaria ao ponto de fazer-se obede- influência, resta-me ainda mostrar sua
cer? E quais poderão ser as cadeias da origem e seus progressos nos desenvol-
dependência entre homens que nada vimentos sucessivos do espírito huma-
possuem? Se me expulsam de uma ár- no. Depois de ter mostrado que a
vore, sou livre de ir a uma outra; se me perfectibilidade, as virtudes sociais e
perseguem num certo lugar, que me as outras faculdades que o homem
impedirá de ir para outro? Se encon- natural recebera potencialmente ja-
trar um homem com força bem supe- mais poderão desenvolver-se por si
rior à minha e, além disso, o bastante próprias, pois para isso necessitam do
depravado, preguiçoso e feroz para concurso fortuito de inúmeras causas
obrigar-me a prover a sua subsistência estranhas, que nunca poderíam surgir e
enquanto nada fizer, será preciso que sem as quais ele teria permanecido
ele se resolva a não me perder de vista eternamente em sua condição primiti-
um só instante e ter-me amarrado com va, resta-me considerar e aproximar os
muito cuidado enquanto dormir, te-
mendo que eu escape ou que o mate, vários acasos que puderam aperfeiçoar
isto é, será obrigado a expor-se volun- a razão humana, deteriorando a espé-
tariamente a um trabalho muito maior cie, tornar mau8 4 um ser ao transfor-
do que deseja evitar e do que dá a mim má-lo em ser social e, partindo de tão
mesmo. Depois de tudo isso, sua vigi- longe, trazer enfim o homem e o
lância amaina um pouco, um ruído mundo ao ponto em que o conhece-
imprevisto faz com que volte a cabeça, mos.
ando vinte passos em direção à flores-
ta, meus grilhões se quebram e ele 83 Essa crítica da teoria do direito do mais
nunca mais me vê em toda a sua forte visa Hobbes, que baseava o direito na
relação senhor-escravo. O vencido teme a
vida82. morte e prefere a sujeição à escravidão. Para
Rousseau, por um lado, esse temor e essa sujei-
82 Para que se estabeleça entre os homens, a ção só podem ser permanentes no estado de
desigualdade de poder carece de uma base real natureza; por outro lado, não é legítimo que os
que Rousseau propende a apontar na institui- compromissos assumidos devido ao temor
ção da propriedade, sem a qual o esforço des- sejam obrigatórios. Toda a argumentação será
pendido na sujeição e vigia do semelhante retomada no Contrato Social, I, III, Do direito
escravizado não seria compensador, como do maisforte e da escravidão. (N. de P. A.-B.)
seria tê-lo a trabalhar numa acumulação de 84 Mau: no original, “méchant": mau, vicia
bens em proveito do escravizador. (N.de L. G. do, corrompido. Rousseau emprega igual-
M.) mente o termo dépravé. (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
Pa r t e
pendente; mas, desde o instante em que matérias metálicas em fusão, deu aos
um homem sentiu necessidade do so- observadores a idéia de imitar essa
corro de outro, desde que se percebeu operação da natureza. Precisa-se ainda
ser útil a um só contar com provisões supor, nesses observadores, muita co-
para dois, desapareceu a igualdade, ragem e previdência para empreender
introduziu-se a propriedade, o trabalho um trabalho tão penoso e imaginar,
tornou-se necessário e as vastas flores- com tal antecedência, as vantagens que
tas transformaram-se em campos apra- dele poderiam tirar, coisa que só tenta-
zíveis que se impôs regar com o suor riam espíritos já mais desenvolvidos
dos homens e nos quais logo se viu a do que esses deveríam ser.
escravidão e a miséria germinarem e Quanto à agricultura, conheceu-se o
crescerem com as colheitas. princípio muito antes de ser a prática
A metalurgia e a agricultura foram estabelecida e absolutamente não é
as duas artes cuja invenção produziu possível que os homens, ocupados
essa grande revolução. Para o poeta continuamente em obter sua subsis-
foram o ouro e a prata, mas para o tência das árvores e das plantas, não
filósofo foram o ferro e o trigo que formassem rapidamente a idéia das
civilizaram os homens e perderam o vias empregadas pela natureza para a
gênero humano. Um e outro eram tam- geração dos vegetais; sua indústria,
bém desconhecidos dos selvagens da porém, só muito tarde voltou-se para
América que, por isso, sempre perma- esse lado, seja porque as árvores, que,
neceram nesse estado; os outros povos juntamente com a caça e a pesca, for-
parecem ter continuado ainda bárba- neciam sua alimentação, não necessi-
ros enquanto praticaram uma dessas tavam de seus cuidados, seja por falta
artes sem a outra. E talvez uma das de conhecer o uso do trigo, ou, ainda,
melhores razões por que a Europa foi, por falta de instrumentos para cultivá-
senão mais cedo, pelo menos mais lo, por não preverem uma necessidade
constantemente e melhor policiada do futura ou, afinal, por falta de meios
que as outras partes do mundo, é ser para impedir os outros de se apro-
ela, ao mesmo tempo, a mais abun- priarem do fruto de seu trabalho.
dante em ferro e a mais fértil em trigo. Tornando-se mais industriosos, pode-
É muito difícil conjeturar como os se imaginar que, com pedras agudas e
homens chegaram a conhecer e a paus pontudos, começaram a cultivar
empregar o ferro, pois não é crível que à volta de sua cabana alguns legumes
tenham imaginado por si mesmos ou raízes muito antes de saber prepa-
extrair a matéria da mina e dar-lhe o rar o trigo e de contar com instru-
preparo necessário para pô-la em mentos necessários para a cultura em
fusão, antes de saber o que resultaria grande escala, mesmo sem levar em
disso. Por outro lado, menos ainda se consideração que, para dedicar-se a
poderá atribuir essa descoberta a essa ocupação e semear as terras, é
algum incêndio acidental, posto que as preciso inicialmente resolver-se a per-
minas se formam em lugares áridos e der alguma coisa para depois ganhar
desprovidos de árvores e de plantas, mais — preocupação muito distan-
podendo-se até imaginar que a natu- ciada da tendência de espírito de um
reza tomara precauções para escon- homem selvagem que, como disse,
der-nos esse segredo fatal. Não resta, sente muita dificuldade para, de
pois, senão a circunstância extraordi- manhã, pensar nas necessidades da
nária de algum vulcão que, vomitando noite.
272 ROUSSEAU
do à sua volta, somente eles não muda- tenham, afinal, refletido sobre tão
ram, viram-se obrigados a receber ou miserável situação e as calamidades
roubar sua subsistência da mão dos que os afligiam. Os ricos, sobretudo,
ricos. Daí começaram a nascer, segun- com certeza logo perceberam quanto
do os vários caracteres de uns e de lhes era desvantajosa uma guerra per-
outros, a dominação e a servidão, ou a pétua cujos gastos só eles pagavam e
violência e os roubos. Os ricos, de sua na qual tanto o risco da sua vida como
parte, nem bem experimentaram o pra- o dos bens particulares eram comuns.
zer de dominar, logo desdenharam Aliás, qualquer que fosse a interpre-
todos os outros e, utilizando seus anti- tação que pudessem dar às suas usur-
gos escravos para submeter outros, só pações, sabiam muito bem estarem
pensaram em subjugar e dominar seus estas apoiadas unicamente num direito
vizinhos, como aqueles lobos famintos precário e abusivo e que, tendo sido
que, uma vez comendo carne humana, adquiridas apenas pela força, esta
recusam qualquer outro alimento e só mesma poder-lhes-ia arrebatá-las sem
querem devorar homens. que pudessem lamentar-se. Os enrique-
Assim, os mais poderosos ou os cidos só pela indústria não podiam ba-
mais miseráveis, fazendo de suas for- sear sua propriedade em melhores títu-
ças ou de suas necessidades uma espé- los. Por mais que dissessem: “Fui eu
cie de direito ao bem alheio, equiva- quem construiu este muro; ganhei este
lente, segundo eles, ao de propriedade, terreno com meu trabalho”, outros
seguiu-se à rompida igualdade a pior poderíam responder-lhes: “Quem vos
desordem; assim as usurpaçoes dos deu as demarcações, por que razão
ricos, as extorções dos pobres, as pai- pretendeis ser pagos a nossas expensas,
xões desenfreadas de todos, abafando a de um trabalho que não vos impuse-
piedade natural e a voz ainda fraca da mos? Ignorais que uma multidão de
justiça, tornaram os homens avaros, vossos irmãos perece e sofre a necessi-
ambiciosos e maus. Ergueu-se entre o dade do que tendes a mais e que vos
direito do mais forte e o do primeiro seria necessário um consentimento ex-
ocupante um conflito perpétuo que ter- presso e unânime do gênero humano
minava em combates e assassinatos para que, da subsistência comum, vos
(q). A sociedade nascente foi colocada apropriásseis de quanto ultrapassasse
no mais tremendo estado de guerra; o a vossa?” Destituído de razões legíti-
gênero humano, aviltado e desolado, mas para justificar-se e de forças sufi-
não podendo mais voltar sobre seus cientes para defender-se, esmagando
passos nem renunciar às aquisições com facilidade um particular, mas
infelizes que realizara, ficou às portas sendo ele próprio esmagado por gru-
da ruína por não trabalhar senão para pos de bandidos, sozinho contra todos
sua vergonha, abusando das faculda- e não podendo, dados os ciúmes mú-
des que o dignificam. tuos, unir-se com seus iguais contra os
inimigos unidos pela esperança
Attonitus novitate mali, divesque, mi- comum da pilhagem, o rico, forçado
[serque
Effugere optat opes, et quae modo vo- 9 5 “Tomados de estupor com a novidade do
[verat odit3 5 mal, tanto o rico quanto o pobre desejam esca-
par às riquezas e maldizem aquilo que um ins-
Ovídio, Metamorfoses, XI, v. 127 tante atrás invocaram com seus votos.” Oví-
dio, XI, verso 127, citado por
Não é possível que os homens não Montaigne, II, XII. (N. de P.A. -B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 275
dade, fizeram de uma usurpação sagaz esses grandes corpos do que fora,
um direito irrevogável e, para lucro de antes, entre os indivíduos dos quais se
alguns ambiciosos, daí por diante compunham. Daí nasceram as guerras
sujeitaram todo o gênero humano ao nacionais, as batalhas, os assassinatos,
trabalho, à servidão e àmiséria. Vê-se, as represálias que levam a natureza a
com facilidade, como o estabeleci- agitar-se e chocam a razão, e todos
mento de uma única sociedade tornou
esses preconceitos horríveis que consi-
indispensável o de todas as outras e deram como virtude a honra de derra-
como foi preciso se unirem, por sua
mar o sangue humano. As pessoas de
vez, para enfrentar forças conjuntas.
As sociedades, multiplicando-se ou bem passaram a incluir entre seus
deveres o de degolar seus semelhantes;
estendendo-se rapidamente, logo cobri-
ram toda a superfície da terra e não viu-se, por fim, os homens se massa-
mais se pôde encontrar um único crarem aos milhares sem saber por que
ponto do universo em que se conse- e cometeram-se mais assassinatos num
guisse escapar ao jugo e subtrair-se ao só dia de combate e mais horrores na
gládio, frequentemente mal dirigido, tomada de uma única cidade do que se
que cada homem perpetuamente pas- cometera, no estado de natureza, em
sou a ver suspenso sobre a sua cabeça. toda a face da terra, durante séculos
Tornando-se, deste modo, o direito inteiros. Tais são os primeiros efeitos
civil a regra comum dos cidadãos, a lei que se discernem na divisão do gênero
natural só encontrou lugar, entre as humano em diferentes sociedades. Vol-
diversas sociedades", onde, sob o temos à sua instituição.
nome de direito das gentes, foi mode- Sei que muitos atribuíram outras
rada por algumas convenções tácitas origens às sociedades políticas, como
para tornar o comércio possível e fazer as conquistas do mais potente ou a
as vezes da comiseração natural que, união dos fracos. A escolha entre essas
perdendo entre as sociedades quase causas é indiferente ao que desejo esta-
toda a força que tinha entre os homens, belecer; no entanto, á que acabo de
só reside ainda em algumas grandes expor me parece a mais natural pelas
almas cosmopolitas capazes de trans- seguintes razões: l.° porque, no pri-
por as barreiras imaginárias que sepa- meiro caso, não sendo o direito de con-
ram os povos e, a exemplo do ser sobe- quista, de modo algum, um direito, não
rano que os criou, agasalham todo o
gênero humano na sua benevolên- 100 Coloca-se o problema do direito natural
cia99
100. em seus verdadeiros termos, que são de duas
Os corpos políticos, deste modo ordens distintas: 1) históricos, pois o jusnatu-
permanecendo, entre si, em estado de ralismo destinava-se precipuamente a restabe-
lecer a obediência à ordem natural, que, por
natureza, logo se ressentiram dos in- sua vez, melhor se exprimiría no estado de
convenientes que haviam forçado os natureza, como é óbvio; 2) morais, que interes-
particulares a sair dele, e tal estado savam especialmente a Rousseau, para quem o
tornou-se ainda mais funesto entre direito moral constituiría uma compensação à
fria mecânica da lei civil. Cf. o desenvolvi-
mento ulterior do tema nos parágrafos seguin-
99 Rousseau esboça o projeto de procurar o tes. Até hoje, esses dois sentidos do direito
fundamento de um contrato social entre todas natural são permanentes e, ao menos no que
as sociedades no seio da humanidade. (N. de tange ao direito internacional, operantes. (N.
P. A.-B.) de L. G. M.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 277
os ministros escolhidos antes de existi- pelas coisas que vêem, julgam coisas
rem as próprias leis. muito diferentes, que não viram; atri-
Não seria mais razoável crer que os buem aos homens uma tendência natu-
povos se tenham inicialmente lançado ral à servidão pela paciência com a
nos braços de um senhor absoluto, sem qual aqueles, que têm sob os olhos,
condições nem compensações, e que suportam a sua, sem pensar que com a
lançar-se na escravidão fosse o pri- liberdade acontece o mesmo que com a
meiro meio que pudessem imaginar ho- inocência e a virtude, cujo valor só se
mens orgulhosos e desconfiados para percebe à medida que a própria pessoa
atender à segurança comum102. Com usufrui delas e cujo gosto se perde
efeito, por que se darem a superiores, assim que se as perdem. “Conheço as
senão para defender-se da opressão e delícias de tua terra”, dizia Brási-
proteger seus bens, suas liberdades e das10 4 a um sátrapa que comparava a
suas vidas que, por assim dizer, repre- vida de Esparta à de Persépolis, “mas
sentam os elementos constitutivos de não podes conhecer os prazeres da
seu ser? Ora, como nas relações de minha.”
homem para homem o pior que pode Assim como um corcel indomável
acontecer a um é ver-se à discrição do eriça a crina, bate com o pé na terra e
outro, não contrariaria o bom senso se debate impetuosamente só com a
começar por despojar-se, nas mãos de aproximação do freio, enquanto que
um chefe, das únicas coisas para cuja um cavalo domado aguenta paciente-
conservação necessitavam de seu auxí-
lio? Que equivalente poderia oferecer- mente o chicote e a espora, também o
lhes o chefe pela concessão de tão belo homem bárbaro não dobra sua cabeça
direito? E, se tivesse ousado exigi-lo, a ao jugo que o homem civilizado carre-
pretexto de defendê-los, não recebería ga sem murmurar e prefere a mais
logo a resposta do apólogo: “Que nos tempestuosa liberdade a uma tranquila
fará a mais o inimigo?” Incontes- dominação. Não é, pois, pelo avilta-
tável, pois, e máxima fundamental de mento dos povos dominados que se
todo o direito político, é que os povos devem julgar das disposições naturais
se deram chefes para defender sua do homem a favor ou contra a servi-
liberdade e não para serem dominados. dão, mas sim pelo prodígio realizado
“Se temos um príncipe” dizia Plínio a por todos os povos livres para se
Trajano, “é para que nos preserve de defenderem da opressão. Sei que os
ter um senhor.”1 03 primeiros nada fazem senão enaltecer
Os políticos fazem sobre o amor à continuamente a paz e o sossego de
liberdade os mesmos sofisrhas que os que gozam sob seus grilhões e que
filósofos sobre o estado de natureza — miserrimam servitutem pacem appel-
lant'0 5, mas quando vejo os outros
102 Essa era a opinião de Hobbes e de Gró- sacrificarem os prazeres e o repouso, a
cio. (N. de P. A.-B.) riqueza, o poder e a própria vida pela
1 03 Citação inexata. “Seis, ut sunt diversa na-
tura dominatio et principatus, ita non aliis esse
principem gratiorem, quam qui maxime domi- 104 Brásidas: general espartano; durante a
num graventur” (Plínio, Panegírico, XLV). guerra do Peloponesó, ganhou a batalha de
“Sabes que, assim como a tirania e o poder Anfípolis, na qual foi ferido mortalmente (422
legítimo são de natureza contrária, do mesmo a. C.). (N. de P. A.-B.)
modo não há homens mais apegados a seu 105 “Chamam de paz a mais miserável das
imperador do que aqueles a quem mais pesa servidões.” Tácito, Histórias IV, XVII. (N. de
um senhor.” (N. de P. A.-B.) P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
conservação desse único bem tão des- volta. Os bens do pai, dos quais é
prezado por aqueles que o perderam, verdadeiramente senhor, são os laços
quando vejo animais, nascidos livres e que retêm seus filhos em sua dependên-
detestando o cativeiro, esmagarem a cia, e só pode fazê-los participar de sua
cabeça contra as grades da prisão, sucessão na medida em que se torna-
quando vejo multidões de selvagens rem merecedores do pai por contínua
nus desprezarem as volúpias européias deferência a seus desejos. Ora, longe
e enfrentarem a fome, o fogo, o ferro e de poderem esperar os súditos por
a morte para conservar somente sua qualquer favor semelhante de seu dés-
independência, concluo não poderem pota, por lhe pertencerem como um
ser os escravos os mais indicados para próprio seu —.eles e tudo o que pos-
raciocinar sobre a liberdade. suem —, ou pelo menos por pretender
Quanto à autoridade paterna, da ele que assim seja, vêem-se obrigados a
qual muita gente fez derivar o governo receber como favor o que lhes deixa de
absoluto e toda a sociedade, sem exa- seus próprios bens: faz justiça quando
minar as provas em contrário de Locke os despoja, presta-lhes um favor quan-
e Sidney10 6, basta observar que nada do os deixa viver.
no mundo mais se distancia do espírito Continuando assim a examinar os
feroz do despotismo do que a doçura fatos segundo o direito, não se encon-
dessa autoridade, que leva em conside- trará mais solidez do que verdade no
ração antes o benefício daquele que estabelecimento voluntário da tirania e
obedece do que a utilidade daquele que seria difícil mostrar a validade de um
comanda. Além disso, o pai, pela lei da contrato que só obrigaria uma das par-
natureza, só é senhor dó filho enquanto tes, no qual tudo caber ia a um lado e
necessário seu auxílio, tornando-se de- nada a outro, e que só resultaria em
pois disso iguais e, então, o filho, intei- prejuízo de quem nele se compromete.
ramente independente do pai, só lhe Esse sistema odioso está bem longe de
deve respeito sem nenhuma obediên- ser, mesmo hoje, o dos sábios e bons
monarcas, e sobretudo dos reis de
cia, pois o reconhecimento representa
França, como se pode verificar em vá-
um dever que se deve cumprir, mas
rias passagens de seus editos, e, em
não um direito que se possa exigir. Em especial, no seguinte trecho de uma
lugar de dizer que a sociedade civil de- obra célebre, publicada em 1667, em
riva do poder paterno, dever-se-ia, pelo nome e por ordem de Luís XIV: “Que
contrário, dizer que dela tira esse em absoluto se diga não estar o sobe-
poder sua principal força. Um indiví- rano sujeito às leis de seu Estado, pois
duo só foi reconhecido como pai de que a proposição contrária é uma ver-
outros quando estes se reuniram à sua dade do direito das gentes, que a adu-
lação algumas vezes atacou, mas que
10 6 Algernon Sidney (morto em 1683), autor os bons príncipes sempre defenderam
dos refu-
tou, ponto a ponto, o de Filmer como uma divindade tutelar de seus
(publicado, postumamente, em 1653) que Estados. Quanto mais legítimo é di-
defendia o fundamento paternal da monarquia. zer-se com o sábio Platão, que a felici-
Locke, no primeiro de seus dade perfeita de um reino consiste em
repete Sidney. Rousseau retoma o ser o príncipe obedecido pelos seus sú-
assunto e o comentário a esses autores no iní-
cio do artigo sobre a “Economia Política”. (N. ditos, em o príncipe obedecer a lei e em
de L. G. M.) ser a lei justa e visar sempre ao bem do
280 ROUSSEAU
público!”107 Não me deterei procu- Locke, não poder ninguém vender sua
rando saber se, sendo a liberdade a liberdade senão ao ser submetido a
mais nobre das faculdades do homem, uma potência arbitrária que o trate de
não equivaleria a degradar a natureza acordo com sua fantasia. “Pois”,
pôr-se ao nível das bestas escravas do acrescenta ele, “isto séria vender sua
instinto, ofender mesmo o autor de seu própria vida, da qual não se é se-
ser quando se renuncia sem reservas ao nhor.”109 Perguntarei, somente, com
mais precioso de todos os seus dons, que direito aqueles que não temem
quando se submete a cometer os cri- aviltar-se até tal ponto, puderam sub-
mes proibidos para agradar a um se- meter sua posteridade à mesma igno-
nhor feroz e insensato, e ainda se o mínia e em seu nome renunciar a bens
operário sublime deverá ficar mais que ela não recebe de sua liberalidade
irado em ver destruir do que em ver e sem os quais a própria vida é onerosa
desonrar sua mais bela obra. Não leva- a todos dignos dela.
rei em consideração, em se querendo, a Pufendorf diz que, assim como por
autoridade de Barbeyrac108, que de- meio de convenções e de contratos se
clara precisamente, de acordo com transfere a fortuna a outrem, pode-se
abrir mão da liberdade em proveito de
1 0 7 Este trecho parece estar em contradição alguém. Eis o que me parece um racio-
com todos os princípios que, na realidade, cínio bastante falho, póis, em primeiro
guiaram Luís XIV em sua política de autori-
dade, de dominação e conquistas. Impõe-se
lugar, o bem que alieno torna-se-me
saber em que circunstâncias e com que desíg- coisa inteiramente estranha cujo abuso
nios foi escrito. É extraído do Traité des Droits me é indiferente, mas é de meu inte-
de la Reine Trés-Chrétienne sur Divers États resse que não abusem de minha liber-
de la Monarchie d’Espagne (1667). Quando, dade e não posso, sem tomar-me cul-
depois da morte de Filipe IV, rei da Espanha,
Luís XIV preparou-se, apesar das renúncias pado do mal que me forçarão a fazer,
formais consentidas no seu contrato d.e casa- expor-me a tornar-me instrumento do
mento, para invadir os Países-Baixos espa- crime. Além disso, o direito de proprie-
nhóis, publicou esse Traité. Fazendo-se passar dade sendo apenas de convenção e
como “submetido às leis de seu Estado”, isto é,
como colocado por elas na necessidade de instituição humana, qualquer homem
pegar em armas, Luís XIV pensava somente pode a seu arbítrio dispor daquilo que
em influenciar as potências estrangeiras e não possui; isso, porém, não acontece com
em governar seus próprios súditos: aliás, o os bens essenciais da natureza, tais
mesmo Traité apressa-se a prevenir as conse-
quências da verdade que acaba de anunciar:
“Os reis são os autores das leis nos seus Esta- 109 Idéia cara a Rousseau, que a desenvol-
dos. Isso não quer dizer que se duvide de terem verá no Contrato Social, I, IV, Da escravidão.
os reis o poder de fazer e de derrogar leis; esse “Afirmar que um homem se dá gratuitamente
direito é, indiscutivelmente, um dos mais belos constitui uma afirmação absurda e inconce-
florões de sua coroa”. Ao apresentar isolada- bível; tal ato é ilegítimo e nulo, precisamente
mente um trecho, Rousseau faz com que tome porque aquele que o faz não está no completo
um caráter inteiramente diverso; sem dúvida, domínio de seus sentidos.” Essa idéia repousa
desejou ele dar sutil lição ao governo então numa concepção da liberdade exposta na Pro-
existente. (N. de P. A.-B.) fissão de Fé do Vigário Saboiano, II. “Sem dú-
professor de direito em Gro- vida, não sou livre de não querer meu próprio
ningue, publicou no começo do século XVII bem; não sou livre de querer meu mal. . . (A
uma tradução francesa das obras de Pufendorf providência) não quer o mal que o homem faz
sobre O Direito da Natureza, Das Gentes e ao abusar da liberdade que ela lhe dá, mas ela
Dos deveres do Homem e do Cidadão. Rous- não o impede de fazer. Ela o criou livre a fim
seau o atacará no Contrato Social, II, II. (N. de que ele fizesse, não o mal, mas o bem,
de P. A.-B.) escolhendo-o.” (N. de P. A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 281
como a vida e a liberdade, de que cada observância das leis nele estipuladas e
um pode gozar e dos quais é pelo que formam os liames de sua
menos duvidoso se tenha o direito de união110. Tendo o povo, quanto às
despojar-se. Destituindo-se de uma, relações sociais, reunido todas as suas
degrada-se o ser; destituindo-se de vontades numa só, tornam-se todos os
outra, anula-se quanto existe em si pró- assuntos, sobre os quais essa vontade
prio, e, como nenhum bem temporal se exprime, outras tantas leis funda-
pode dispensar-se de uma e de outra, mentais que obrigam todos os mem-
constituiría ofensa às leis da natureza e bros do Estado sem exceção, regula-
à razão renunciar a elas a qualquer mentando uma delas a escolha e o
preço. Mas, ainda que se pudesse alie- poder dos magistrados encarregados
nar sua liberdade como a seus bens, a de zelar pela execução das outras. Esse
diferença seria muito grande para os fi- poder se estende a quanto possa man-
lhos que só gozam dos bens do pai pela ter a constituição, sem chegar a mudá-
transmissão de seu direito, enquanto, la. Juntam-se-lhe honrarias que tornam
sendo a liberdade um dom que lhes respeitáveis as leis e seus ministros e,
advém da natureza pela qualidade de para estes, pessoalmente, prerrogativas
homem, seus pais não têm qualquer que os compensam dos trabalhos peno-
direito de despojá-los dele. De modo sos acarretados por uma boa adminis-
que, assim como para estabelecer a tração. O magistrado, por seu lado,
escravidão precisou-se violentar a na- obriga-se a só utilizar o poder que lhe é
tureza, foi necessário modificá-la para confiado segundo a intenção dos que
perpetuar esse direito e os juriscon- confiaram nele, a manter cada um no
sultos que pronunciaram gravemente gozo tranquilo do que lhe pertence e,
nascer escravo o filho de um escravo em todas as ocasiões, a preferir a utili-
resolveram, em outras palavras, que dade pública a seu próprio interesse.
um homem não nascería homem. Antes que a experiência o demons-
Parece-me, portanto, certo não so- trasse, ou o conhecimento do coração
mente que os governos não começaram humano fizesse prever os abusos inevi-
pelo poder arbitrário que não passa da táveis de uma tal constituição, ela cer-
corrupção, termo extremo e que afinal tamente pareceu a melhor, por serem
reduz os governos simplesmente à lei aqueles que estavam encarregados de
do mais forte, do qual foram inicial- sua conservação os mais interessados
mente o remédio, mas também que, nisso, pois, não se baseando a magis-
ainda quando tivessem assim começa- tratura e seus direitos senão nas leis
do, sendo esse poder por sua natureza fundamentais, assim que fossem estas
ilegítimo, não pôde servir de base aos destruídas, os magistrados deixariam
direitos da sociedade e, consequente- de ser legítimos e o povo não mais
mente, à desigualdade de instituição.
Sem entrar, nesse momento, nas pes-
110 Rousseau acabará as pesquisas, que aqui
quisas que ainda restam por fazer anuncia, no onde distinguirâ:
sobre a natureza fundamental de qual- 1) o contrato social, pelo qual se constitui um
quer governo, limito-me, seguindo a “corpo moral e coletivo”, que é o “corpo polí-
opinião comum, a considerar aqui o tico”, ou seja, o “Estado”, quando passivo, ou
estabelecimento do corpo político o “Soberano”, quando ativo (1. I, c. IV); 2) a
constituição de um governo, mero “corpo
como um verdadeiro contrato entre o intermediário entre os súditos e o soberano”,
povo e os chefes que escolhe, contrato no que não vai qualquer contrato (l.III, c. I).
pelo qual as duas partes se obrigam à (N. de L. G. M.)
ROUSSEAU
fica de inúmeras maneiras segundo as dade (s), desde que, reunidos em uma
paixões, os talentos e as ocorrências. O mesma sociedade, são forçados a com-
magistrado não poderia usurpar um parar-se entre si e a tomar conheci-
poder ilegítimo sem engendrar criatu- mento das diferenças reveladas no uso
ras às quais é forçado a dar certa parte contínuo que têm de fazer uns dos
dele. Aliás, os cidadãos só se deixam outros. Essas diferenças são de várias
oprimir quando,levados por uma ambi- espécies. Mas a riqueza, a nobreza ou
ção cega e olhando mais abaixo do que a condição, o poder e o mérito pessoal
acima de si mesmos, a dominação sendo, em geral, as distinções princi-
torna-se-lhes mais cara do que a pais pelas quais as pessoas se medem
independência e quando consentem em na sociedade, provarei que o acordo ou
carregar grilhões para por sua vez o conflito dessas forças diversas são a
poder aplicá-los. É muito difícil redu- indicação mais certa de um Estado
zir à obediência aquele que não procu- bem ou mal constituído; mostrarei de-
ra comandar e o político mais esperto pois que, entre esses quatro tipos de
não conseguiría submeter homens que desigualdade, constituindo as qualida-
só desejassem ser livres. Mas a desi- des pessoais a origem de todas as
gualdade se expande, sem dificuldade, outras, a riqueza é a última a que por
entre almas ambiciosas e covardes, fim elas se reduzem, porque, sendo a
sempre prontas a correr os riscos da mais imediatamente útil ao bem-estar e
fortuna e a quase indiferentemente a mais fácil de comunicar-se, servem-
dominar ou servir, conforme lhes seja se dela com facilidade para comprar
a fortuna favorável ou contrária. Eis todo o resto. Essa observação permite
como, seguramente, veio um tempo no julgar com bastante precisão como
qual os olhos do povo foram fascina- cada povo se distanciou de sua institui-
dos a tal ponto que aos seus conduto- ção primitiva e do caminho que per-
res bastava dizer ao menor dos ho- correu até o termo extremo da corrup-
mens: “Sê grande, tu e toda a tua ção. Salientaria como esse desejo
raça”, para que logo ele parecesse universal de reputação, de honrarias e
grande aos olhos de todos e aos seus de preferências, que nos devora, a
próprios, e seus descendentes se elevas- todos adestra e põe em confronto os
sem ainda mais à medida que dele se talentos e as forças, excita e multiplica
distanciavam; quanto mais a causa as paixões e como, tornando todos os
fosse distante e incerta, mais aumen- homens concorrentes, rivais, ou me-
tava o efeito; quanto mais se pudesse lhor, inimigos, cotidianamente deter-
contar com indolentes11 5 numa famí- mina desgraças, acontecimentos e ca-
lia, tanto mais ela se tornava ilustre. tástrofes de toda espécie, fazendo com
que tantos pretendentes entrem num
Se aqui coubesse entrar em porme- mesmo combate. Mostraria que é a Caí
nores, explicaria facilmente como, sem ânsia de fazer falar de si, a esse furor
sequer imiscuir-se o Governo, torna-se de distinguir-nos, quase sempre nos
inevitável entre os particulares a desi- colocando fora de nós, que devemos o
gualdade de consideração e de autori- que há de melhor e de pior entre os
homens: nossas virtudes e nossos ví-
cios, nossas ciências e nossos erros,
nossos conquistadores e filósofos, isto
é, uma multidão de coisas más contra
um pequeno número de coisas boas.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
118 “Para quem não existe esperança alguma o Cínico (413-323 a.C.), des-
com o homem honesto.” (N. de P. A.-B.) prezava as convenções sociais e vivia num
119 Rousseau parece predizer, para depois do tonel. Certa vez passeou em pleno dia nas ruas
Antigo Regime, a Revolução de 1789, e até de Atenas com uma lanterna na mão; ao ser
invocá-la. (N. de P. A.-B.) interrogado, respondeu: “Procuro um homem”.
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
seau chega até a traçar o plano das viagens ao fim das quais o filósofo poderá ela-
borar uma filosofia do homem.
O paralelo, habitual em Rousseau, entre o estado de natureza e o estado de
sociedade, particularmente na extensa nota i, torna-se convencional e dá lugar a
uma ênfase oratória que hoje nos parece excessiva; Jean-Jacques constrói um
quadro pormenorizado dos dois estados, na intenção de resolver o problema colo-
cado, há dois séculos, pelos metafísicos: neste mundo, a soma dos males será
superior ou inferior à soma dos bens? Pontos particulares desse paralelismo são
retomados nas notas 1 (os desejos são naturalmente limitados, mas acrescidos
pelos hábitos sociais), n (a instituição das línguas apresenta mais inconvenientes
do que vantagens), q (no estado de natureza, a dispersão era um refúgio contra a
violência; sua possibilidade desaparece, aos poucos, com o estado social), o (o
amor de si mesmo ou o instinto de conservação é natural e bom, o amor-próprio
é fictício e nefasto, r (a riqueza permite que se façam impunemente as madraça-
rias que se desejarem). Todavia, surge, timidamente, um terceiro tema: o de uma
regeneração da sociedade pervertida; será o tema mais fecundo, uma vez que
anuncia o Contrato Social. Na nota s, o problema é colocado segundo os mesmos
temas que no Contrato: trata-se de transpor para a sociedade civil a igualdade
rigorosa do estado de natureza e, para isso, “a condição dos cidadãos deve deter-
minar-se não pelo seu mérito pessoal, mas pelos reais serviços por eles prestados
ao Estado ”. Talvez não seja por acaso que Rousseau reservou para esse tema a
primeira e a última dessas notas (a e s).
O segundo interesse dessas notas está em precisar as fontes de Rousseau e
em descobrir em função de que nível de cultura ele emitiu sua teoria. De todos os
autores citados, o que mais aparece é Bujfon. Rousseau transcreve trechos intei-
ros de sua História Natural. O historiador grego Heródoto é também citado mui-
tas vezes, devendo-se incluir, também, Ctésias de Cnide e São Jerônimo. São
ainda consultadas por Rousseau as narrativas dos viajantes modernos: a História
das Viagens é citada duas vezes; Correal, Kolben, o Padre du Tertre, Gautier,
Buttel, Dapper, Merola, Purchas, Saint-John são citados uma vez. Finalmente,
Rousseau refere-se quer a sábios mais ou menos contemporâneos — os psicó-
logos Vossius, Condillac e Locke —, quer aos dois grandes mestres do pensa-
mento ocidental — os moralistas Platão e Montaigne.
No t a s
desse sentido interior que nos reduz às mais, que foi preciso atar-lhe pedaços
nossas verdadeiras dimensões e que de madeira que a obrigavam a man-
distingue de nós tudo que não nos per- ter-se ereta em equilíbrio sobre os dois
tence. No entanto, é desse sentido que pés. A mesma coisa sucedeu com a
devemos utilizar-nos se desejarmos criança que, em 1694, foi encontrada
conhecer-nos; somente por ele podere- nas florestas da Lituânia e que vivia
mos julgar-nos. Como dar, porém, a entre os ursos. Não apresentava, conta
esse sentido, toda a sua atividade e o Sr. de Condillac, qualquer sinal de
extensão? Como desembaraçar nossa razão, andàva sobre os pés e as mãos,
alma, na qual reside, de todas as ilu- não possuía qualquer linguagem e emi-
sões de nosso espírito? Perdemos o há- tia sons que de modo algum se asseme-
bito de invocá-la; ela ficou sem apro- lhavam aos de um homem. O pequeno
veitamento em meio do tumulto de selvagem de Hanôver, que há muitos
nossas sensações corporais, fanou-se anos foi conduzido à corte da Ingla-
ao fogo de nossas paixões; o coração, terra, sentia a maior das dificuldades
o espírito, os sentidos, tudo trabalhou para resignar-se a andar sobre os dois
contra ela.” Hist. Nat., Da Natureza pés e, em 1719, encontraram-se dois
do Homem. outros selvagens nos Pireneus que cor-
(c) As mudanças que pode produzir riam pelas montanhas como se fossem
na conformação do homem o prolon- quadrúpedes. Quanto à objeção de que
gado hábito de andar sobre dois pés, as tal coisa levaria a nos privarmos do
relações que ainda se observam entre uso das mãos, do qual nos advêm tan-
os braços e as pernas anteriores dos tas vantagens, além do exemplo dos
quadrúpedes e a indução feita sobre o macacos, que mostram poderem as
seu modo de andar fizeram com que mãos ser muito bem empregadas dos
nascessem dúvidas acerca da posição dois modos, isso só poderia provar que
que nos deveria ser mais natural. o homem pode dar a seus membros
Todas as crianças começam andando uma destinação mais cômoda do que a
com quatro pés e precisam de nosso da natureza e não que a natureza desti-
exemplo e de nossas lições para apren- nou o homem a andar de um modo
derem a manter-se de pé. Há mesmo diferente do que lhe ensina.
nações selvagens, como a dos hotento- Há, porém, parece-me, muito melho-
tes, que, descuidando bastante das res razões a apresentar para afirmar
crianças, deixam que andem tanto que o homem é um bípede. Primeiro,
tempo sobre as mãos, que depois têm mesmo que se fizesse ver que ele pode-
muito trabalho para endireitá-las; a ria ter anteriormente conformação di-
mesma coisa acontece com os filhos versa da que conhecemos e nesse ínte-
dos caraíbas das Antilhas. Há inúme- rim transformar-se por fim naquilo que
ros exemplos de homens quadrúpedes é, não seria o bastante para concluir
e, entre outros, poderia citar o exemplo que tal se teria passado dessa maneira,
daquela criança que encontraram, em porquanto, após ter mostrado a possi-
1344, perto de Hesse, onde fora criada bilidade dessas mudanças, seria preci-
por lobos e que depois dizia, na corte so ainda, antes de admiti-las, mostrar
do Príncipe Henrique, que, se depen- pelo menos sua verossimilhança. Além
desse unicamente dela, preferiría voltar disso, se os braços do homem parecem
a viver com os lobos do que continuar ter podido, quand© necessário, servir-
a viver entre os homens. De tal modo lhe de pernas, será essa a única obser-
se habituara a andar como esses ani- vação favorável a esse sistema contra
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 293
lançar uma pedra, escalar uma árvore. do seu andar ultrapassa a imagina-
Mas, se ele só sabe essas coisas, em çao.
compensação as sabe muito melhor do Admira-se de não se utilizarem mais
que nós, que delas não temos a mesma frequentemente para fins reprováveis
necessidade; como elas dependem uni- de sua habilidade, o que, não obstante,
camente do exercício do corpo e não acontece por vezes, como se pode ver
são suscetíveis de qualquer comunica- pelo exemplo que disso apresenta:
ção ou progresso de um indivíduo para “Um marinheiro holandês, desem-
outro, o primeiro homem pôde ser tão barcando no Cabo, encarregou”, conta
hábil quanto seus últimos descenden- ele, “um hotentote de segui-lo à cidade
tes. com um rolo de tabaco aproximada-
Os relatos dos viajantes estão cheios mente de vinte libras. Quando os dois
de exemplos da força e vigor dos ho- estavam a alguma distância do grupo,
mens nas nações bárbaras e selvagens; o hotentote perguntou ao marinheiro
não deixam de louvar, ainda e não se ele sabia correr. — Correr? — res-
menos, sua habilidade e ligeireza e, pondeu o holandês. — Sim, e muito
como bastam dois olhos para observar bem. — Vejamos — disse o africano e,
as coisas, nada impede que acredi- fugindo com o tabaco, desapareceu
temos nos testemunhos oculares a esse quase imediatamente. O marinheiro,
respeito. Extraio ao acaso alguns confundido com tal velocidade, não
exemplos dos primeiros livros que me pensou em persegui-lo e nunca mais
caem sob a mão. viu nem o seu tabaco nem o carrega-
“Os hotentotes”, disse Kolben128, dor”.
“conhecem melhor a pesca do que os “Possuem o golpe de vista tão pron-
europeus do Cabo. São igualmente há- to e a mão tão certa, que os europeus
beis na rede, no anzol e no arpão, tanto ficam em grande desvantagem. A cem
nas enseadas quanto nos rios. Não passos acertaram com uma pedra num
mostram menos habilidade para agar- alvo do tamanho de uma moeda de
rar o peixe com a mão. São de uma meio-soldo, e o que há de mais espan-
habilidade incomparável no nadar. Seu toso é que, em lugar de fixar como nós
modo de nadar tem qualquer coisa de os olhos no alvo, fazem movimentos e
surpreendente e que lhes é inteiramente contorsões contínuas. Parece que a sua
particular. Nadam com o corpo direito pedra é levada por uma mão invisível.”
e as mãos estendidas fora da. água, de O Padre du Tertre129 escreve sobre
modo que parecem andar sobre a terra. os selvagens das Antilhas quase a
Quando o mar está mais agitado e as mesma coisa que acabamos de ler
ondas como qúe formam montanhas, sobre os hotentotes do cabo da Boa
parecem dançar na crista das vagas, Esperança. Enaltece sobretudo a sua
subindo e descendo como um pedaço precisão para acertar com as flechas os
de cortiça.” pássaros em vôo e os peixes nadando.
“Os hotentotes”, diz ainda o mesmo Os selvagens da América setentrional
autor, “apresentam uma habilidade não são menos célebres pela sua força
surpreendente na caça e a velocidade e agilidade; segue-se um exemplo que
ROUSSEAU
que custou a vida e os bens a tantos interfere no combate, este acaba com
infelizes, fez a fortuna a mais de dez alguns murros; o vencedor come, o
mil pessoas. Sei que Montaigne censu- vencido vai tentar a sorte e tudo fica
ra o ateniense Éjémades132 por ter em paz. Mas, com o homem em socie-
mandado punir um artesão que, ven- dade, as coisas se passam muito
dendo esquifes caríssimos, ganhava diferentemente: trata-se, em primeiro
muito com a morte dos cidadãos. Mas, lugar, de atender ao necessário e,
alegando Montaigne razão para pu- depois, ao supérfluo; depois, vêm as
nir-se todo o mundo, é evidente que tal delícias e, depois, as imensas riquezas;
razão confirma as minhas. Penetre- depois, os súditos e os escravos. Não
mos, pois, através de nossas frívolas há um momento de descanso. O que há
demonstrações de benevolência, no de mais singular é que, quanto mais
que se passa no fundo dos corações e naturais e prementes são as necessida-
reflitamos sobre como deva ser um es- des, tanto mais aumentam as paixões
tado de coisas no qual todos os ho- e, o que é pior, o poder de satisfazê-las,
mens são forçados a agradár-se e a de forma que, depois de longas prospe-
destruir-se mutuamente, e no qual nas- ridades, depois de terem se devorado
cem inimigos por dever e traidores por muitos tesouros e arruinado muitos
interesse. Caso me respondam que a homens, meu herói acabará por tudo
sociedade é constituída de tal modo sufocar até que seja ele o único senhor
que cada homem lucra auxiliando os do universo. Esse, abreviadamente, o
outros, replicarei que isso seria muito quadro moral, senão da vida humana,
bom se ele não lucrasse mais ainda pelo menos das pretensões secretas do
prejudicando-os. Não há, absoluta- coração de todo homem civilizado.
mente, um lucro legítimo que não Comparai, sem prevenção, o estado
possa ser ultrapassado por aquele que do homem civil com o do homem sel-
se pode fazer ilegitimamente e o dano vagem e indagai, se puderdes, como,
que se faz ao próximo é sempre mais além de sua maldade, suas necessi-
lucrativo do que os serviços. Não se
dades e misérias, o primeiro abriu
trata, pois, senão de encontrar os
novas portas à dor e à morte. Se consi-
meios para assegurar-se a própria
derardes as penas do espírito que nos
impunidade e para isso os poderosos
consomem, as paixões violentas que
empregam todas as forças e os fracos
nos esgotam e nos arruinam, os traba-
todas as artimanhas. lhos excessivos com os quais se sobre-
O homem selvagem, depois de ter carregam os povos, a preguiça ainda
comido, fica em paz com toda a natu- mais perigosa à qual os ricos se aban-
reza e é amigo de todos os seus seme- donam, e que fazem que morram uns
lhantes. Caso, por vezes, tenha de
de suas necessidades e os outros de
disputar a alimentação, jamais avança seus excessos; se pensardes nas mistu-
desferindo golpes, sem antes ter com-
ras monstruosas de alimentos, nos
parado a dificuldade de vencer com a
temperos perniciosos, nas mercadorias
de encontrar em outro lugar sua adulteradas, nas drogas falsificadas,
subsistência, e, como o orgulho não
nas trapaças daqueles que as vendem,
nos erros daqueles que as administram,
13 2 Demades (cerca de 318 a. C.), orador ate-
niense, adversário de Demóstenes. A anedota no veneno das vasilhas em que são
se encontra nos Ensaios, I, XXL (N. de P. preparados; se prestardes atenção às
A.-B.) doenças epidêmicas oriundas do ar
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 299
confinado entre as multidões de ho- perdem a vida, tal fato não deixa de
mens reunidos, às que ocasionam a realmente duplicar a perda da espécie
delicadeza de nosso modo de vida, às humana. Inúmeros são os meios vergo-
passagens alternadas do interior de nhosos para impedir o nascimento dos
nossas casas para o ar livre, ao uso da homens e enganar a natureza; quer por
roupa vestida ou desvestida com pou- esses gostos brutais e depravados que
quíssima precaução e a todos os cuida- insultam sua obra mais encantadora,
dos que nossa sensualidade excessiva gostos qüe jamais foram conhecidos
transformou em hábitos necessários e tanto dos selvagens quanto dos ani-
cuja negligência ou privação nos custa mais e que nos países policiados nasce-
imediatamente a vida ou a saúde; se ram de uma imaginação corrompida;
levardes em consideração os incêndios seja por esses abortos secretos, dignos
e os tremores de terra que, consumindo frutos da depravação e da honra vicia-
ou revirando cidades inteiras, fazem da; seja pelo enjeitamento e assassínio
que os habitantes morram aos milha- de uma multidão de crianças, vítimas
res; em uma palavra, se reunirdes os da miséria de seus pais ou da vergonha
perigos que todas essas causas juntam desumana de suas mães; seja, enfim,
continuamente sobre nossas cabeças, pela mutilação desses infelizes, uma
vereis como a natureza faz que pague- parte de cuja existência e toda descen-
mos caro o desprezo que demos às dência são sacrificadas a canções vãs
suas lições. ou, o que é ainda pior, ao ciúme brutal
Neste ponto, não repetirei acerca da de alguns homens — mutilação que,
guerra o que já disse alhures, mas dese- neste último caso, ultraja duplamente a
jaria que as pessoas instruídas quises- natureza, tanto pelo tratamento que
sem ou ousassem, por uma vez, mos- recebem aqueles que são atingidos,
trar ao público a minúcia dos horrores quanto pelo uso a que se destinam!
que são cometidos nos exércitos pelos Mas não haverá mil casos mais
arrendatários de víveres e de hospitais; frequentes e mais perigosos ainda, nos
ver-se-ia que suas manobras, não de- quais os direitos paternais ofendem
masiado secretas, devido às quais os abertamente a humanidade? Quantos
exércitos mais brilhantes se trans- talentos enterrados e inclinações força-
formam em menos do que nada, das pela coerção imprudente dos pais !
matam mais soldados do que ceifa o Quantos homens, que se teriam distin-
ferro do inimigo. Constitui ainda um guido numa situação apropriada, mor-
cálculo não menos impressionante o rem infelizes e desonrados numa dada
relativo aos homens que o mar traga situação para a qual não tinham o
todos os anos pela fome, pelo escorbu- menor gosto! Quantos casamentos
to, pelos piratas, pelo fogo ou, ainda, felizes, mas desiguais, foram rompidos
pelos naufrágios. E preciso ainda, está ou perturbados e quantas castas espo-
claro, lançar à conta da propriedade sas desonradas por essa ordem de con-
estabelecida e, consequentemente, da dições sempre em contradição com a
sociedade, os assassínios, os envenena- da natureza; quantas outras uniões
mentos, os assaltos nas estradas e as insuportáveis formadas pelo interesse e
próprias punições desses crimes. São condenadas pelo amor e pela razão!
punições necessárias para prevenir Até mesmo quantos esposos honestos e
males maiores, mas se, por causa do virtuosos se supliciam, mutuamente,
assassínio de um homem, dois ou mais por se terem unido mal! Quantas víti-
ROUSSEAU
fim tornar-se as mais descuidadas. Por sua caça; que nos expliquem como
aí se vê o que se deve pensar das verda- esses miseráveis tiveram simplesmente
deiras vantagens da indústria e do efei- a audácia de enfrentar pessoas tão há-
to real que resulta de seus progressos. beis como éramos, com tão bela disci-
Tais são as causas visíveis de todas plina militar, códigos tão perfeitos e
as misérias a que a opulência acaba leis sábias, enfim por que, depois de
por lançar as nações mais admiradas. aperfeiçoar-se a sociedade nas regiões
À medida que a indústria e as artes se do Norte e de ter-se tanto trabalho
estendem e florescem, o cultivador para nelas ensinar aos homens seus
desprezado, sobrecarregado de impos- deveres mútuos e a arte de conviver
tos necessários à manutenção do luxo agradável e tranquilamente, não mais
e condenado a passar uma vida de tra- se viu aparecer algo de semelhante a
balho e fome, abandona seus campos essas multidões de homens que outrora
para ir procurar nas cidades o pão que lá se produziam? Tenho muito receio
deveria levar para lá. Quanto mais as de que, afinal, alguém se disponha a
capitais enchem de admiração os olhos dizer-me que todas essas grandes coi-
estúpidos do povo, tanto mais se deve- sas, a saber: as artes, as ciências e as
ria sofrer vendo os campos abandona- leis, foram muito sabiamente inventa-
dos, as terras incultas e as estradas das pelos homens como uma peste
inundadas de infelizes cidadãos trans- salutar para prevenir a multiplicação
formados em mendigos ou ladrões, e excessiva da espécie, temendo que este
destinados a um dia acabarem a sua mundo que nos é destinado se tornasse
miséria no suplício ou num monturo. E por fim demasiado pequeno para seus
assim que o Estado, enriquecendo por habitantes.
um lado, se enfraquece e se despovoa Pois então será preciso destruir as
por outro, e as monarquias mais pode- sociedades, suprimir o teu e o meu, e
rosas, depois de muitos esforços para voltar a viver nas florestas com os
se tornarem opulentas e desertas, aca- ursos? E essa uma consequência à
bam por se tornar a presa das nações moda de meus adversários, que prefiro
pobres que sucumbem à tentação fu- antes prevenir do que possibilitar-lhes
nesta de invadi-las e que, por sua vez, a vergonha de formulá-la. Oh! vós, a
se enriquecem e se enfraquecem até quem a voz celeste não se fez ouvir e
que sejam, elas próprias, invadidas e que não reconheceis para vossa espécie
destruídas por outras. outro destino senão o de terminar em
Que se dignem explicar-nos o que paz esta curta vida; vós, que podeis
puderam produzir essas ondas de bár- deixar no meio das cidades vossas
baros que durante tantos séculos inun- funestas aquisições, vossos espíritos
daram a Europa, a Ásia, a África. Será inquietos, vossos corações corrom-
que deviam sua prodigiosa população pidos e vossos desejos desenfreados;
à indústria de suas artes, à sabedoria retomai, posto que depende de vós,
de suas leis, à excelência de sua polí- vossa antiga e primeira inocência, ide
cia? Que tenham os nossos sábios a aos bosques esquecer o espetáculo e a
bondade de dizer-nos por que, ao invés memória dos crimes de vossos contem-
de se multiplicarem desse modo, esses porâneos e não temais aviltar vossa
homens ferozes e brutais, sem luzes, espécie renunciando às suas luzes para
sem freio, sem educação, a cada renunciar a seus vícios. Quanto aos
momento não se entredevoram mutua- homens semelhantes a mim, cujas pai-
mente para disputar suas pastagens e xões destruíram para sempre a simpli-
ROUSSEAU
cidade original, que não podem mais mesmo têm barba. Houve, e talvez
alimentar-se de ervas e de bolotas, nem haja ainda, nações de homens com
viver sem leis e sem chefes; aqueles uma estatura gigantesca e, deixando de
que foram honrados, na pessoa de seu lado a fábula dos pigmeus, que pode
primeiro pai, por lições sobrenaturais; muito bem não passar de um exagero,
aqueles que verão, na intenção de dar sabe-se que os lapÕes e, sobretudo, os
inicialmente às ações humanas uma groenlandeses estão muito abaixo da
moralidade que não adquiriram ao fim estatura média do homem. Pretende-se
de muito tempo, a razão de um pre- ainda existirem povos inteiros que,
ceito indiferente em si mesmo e inex- como os quadrúpedes, possuem cau-
plicável por qualquer outro sistema, das. E, sem depositar fé cega nos rela-
em uma palavra, aqueles que estão tos de Heródoto e de Ctesias134,
convencidos de ter a voz divina cha- pode-se pelo menos aproveitar deles
mado todo o gênero humano às luzes e aquela opinião, muito plausível, de
à felicidade das inteligências celestes que, se fora possível praticar boas
— todos esses, pelo exercício das vir- observações nesses tempos antigos,
tudes que se obrigam a praticar ao quando os vários povos apresentavam
aprender a conhecê-las, esforçar-se-ão modos de vida mais diferentes entre si
por merecer o prêmio eterno que do que acontece atualmente, ter-se-ia
devem esperar; respeitarão os sagrados então notado, no aspecto e na complei-
laços da sociedade de que são mem- ção do corpo, variedades bem mais
bros; amarão seus semelhantes e os notáveis. Todos esses fatos, dos quais é
servirão com todas as suas forças; fácil fornecer provas incontestáveis, só
obedecerão escrupulosamente às leis e podem surpreender os habituados a
aos homens que são seus autores e olhar unicamente os objetos que os cir-
ministros; honrarão, sobretudo, os cundam, e que ignoram os efeitos
bons e sábios príncipes que saberão poderosos da diversidade dos climas,
prevenir, sanar ou paliar essa chusma do ar, dos alimentos, do modo de
de abusos e de males sempre prontos a viver, dos hábitos em geral e, sobretu-
oprimir-nos; animarão o zelo desses do, a força surpreendente dessas mes-
dignos chefes mostrando-lhes, sem mas causas quando agem continua-
temor e sem adulação, a grandeza de mente sobre muitas gerações seguidas.
sua tarefa e a austeridade de seu dever, Atualmente, quando o comércio, as
mas nem por isso desprezarão menos viagens e as conquistas mais unem os
uma constituição que só pode manter- vários povos e suas maneiras de vida
se com o auxílio de tantas pessoas aproximam-se incessantemente pela
respeitáveis, que mais frequentemente comunicação frequente, percebe-se
se deseja ter do que de fato se obtém e terem diminuído certas diferenças na-
da qual, malgrado todos os seus cuida- cionais e cada um, por exemplo, pode
dos, nascem sempre mais calamidades observar que os franceses de hoje não
reais do que vantagens aparentes. possuem mais esses grandes corpos
(j) Entre os homens que conhece- brancos e louros descritos pelos histo-
mos, por nós mesmos, pelos historia- riadores latinos, se bem que o tempo,
dores ou pelos viajantes, uns são juntamente com a mistura dos francos
negros, outros brancos e outros verme-
lhos; uns têm cabelos longos, outros só 13 4 Ctésias: historiador grego, médico de
têm lã encarapinhada; uns são quase Artaxerxes Mnémon (V século a. C.). (N. de P.
todos cobertos de pêlos, outros nem A.-B.)
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
e dos normandos, que também eram lhas não são cobertas de pêlo, com
brancos e louros, deverá ter restabele- exceção das sobrancelhas, que são
cido o que o convívio com os romanos muito longas. Ainda que tenham o
pudesse excluir da influência do clima resto do corpo muito peludo, o pêlo aí
na constituição natural e na cor da tez não é muito espêsso e sua cor é escura.
dos habitantes. Todas essas varieda- Por fim, a única parte que os dinstin-
des, que inúmeras causas podem pro- gue dos homens é a perna, que não tem
duzir e efetivamente produziram na barriga. Andam eretos, segurando com
espécie humana, fazem com que, quan- a mão o pêlo do pescoço; abrigam-se
to a vários animais semelhantes aos nos bosques e dormem em cima das ár-
homens — que os viajantes, sem um vores, onde constroem uma espécie de
exame acurado, consideraram como teto que os protege da chuva. Seus ali-
feras, por causa de algumas diferenças mentos são frutos ou nozes selvagens.
que notaram na conformação exterior, Jamais comem carne. Os negros que
ou unicamente porque tais animais não atravessam as florestas costumam
falavam — eu desconfie serem, com acender fogueiras durante a noite;
efeito, verdadeiros homens selvagens, notam eles que, pela manhã, depois de
cuja raça, dispersada antigamente nos sua partida, os pongos tomam o seu
bosques, não encontrara ocasião de lugar à volta do fogo e só se retiram
desenvolver qualquer de suas faculda- quando ele se extingue, pois, embora
des virtuais, não adquirindo nenhum sendo muito habilidosos, não têm inte-
grau de perfeição e encontrando-se ligência suficiente para alimentá-lo
ainda no estado primitivo de natureza. com lenha.
Demos um exemplo do que desejo “Algumas vezes andam em grupo e
dizer. matam os negros que atravessam as
“Encontra-se”, diz o tradutor da florestas. Chegam até a atacar os ele-
História das Viagens'3 5, “no reino do fantes que vêm pastar nas regiões habi-
Congo, um certo número desses gran- tadas por eles e os incomodam tanto
des animais que nas índias Orientais com socos ou pauladas que os forçam
chamam de orangotangos e que são a fugir soltando gritos. Nunca se agar-
como o meio-termo entre a espécie hu- ra um pongo vivo, porque são tão
mana e os bugios. Battel13 6 conta que robustos que dez homens não seriam
nas florestas de Mayomba, no reino de capazes de prendê-lo; mas os negros
Loango, se podem ver duas espécies de agarram muitos deles quando ainda
monstros: os maiores chamam-se pon- novos, matando a mãe, ao corpo da
gos e os outros enjocos. Os primeiros qual o filhote se agarra fortemente.
têm uma semelhança exata com o Quando um desses animais morre, os
homem, mas são muito mais largos e outros cobrem seu corpo com um mon-
de estatura muito alta. Possuindo um tão de ramos ou de folhas. Pur-
rosto humano, têm os olhos muito chass13 7 acrescenta que, nas conversa-
encovados. As mãos, as faces, as ore- ções que tivera com Battel, ouvira dele
próprio que um pongo lhe arrebatou
135 A História das Viagens (L 'Histoire des um negrinho que passou um mês intei-
Voyages): publicação periódica que existia
desde 1746. (N. de P. A.-B.) ro entre esses animais, pois eles não
13 6 André Battel (1565-1640): viajante inglês,
aprisionado pelos portugueses, explorou a 137 Samuel Purchass (1577-1628): colecio-
costa sudoeste da África e publicou uma nar- nador inglês e editor de narrativas de viagem.
rativa de suas viagens. (N. de P. A.-B.) (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU
fazem nenhum mal ao homem que os tanto jeito que poderia ser tomado
surpreende, pelo menos quando este como um homem na cama. Os negros
não os olha, como observara o negri- contam coisas estranhas sobre esses
nho. Battel não descreveu a segunda animais; asseguram que não só forçam
espécie de monstro. as mulheres e as moças, como também
“Dapper138 confirma que o reino ousam atacar homens armados. Em
do Congo está cheio desses animais uma palavra, há forte aparência de tra-
que na índia são chamados de orango- tar-se do sátiro dos antigos. Merol-
tangos, isto é, moradores dos bosques la139 talvez se refira a esses animais
e que os africanos chamam de quojas quando conta que os negros algumas
morros. Esse animal, diz ele, é tão vezes agarram nas suas caças homens
semelhante aos homens, que certos via- e mulheres selvagens.”
jantes chegaram a julgá-lo fruto de Fala-se ainda dessas espécies de ani-
uma mulher e de um macaco, quimera mais antropoformes no terceiro tomo
que os próprios negros rejeitam. Um da mesma História das Viagens, sob o
desses animais foi transportado do nome de beggos e de mandrills; mas,
Congo para a Holanda e apresentado para limitarmo-nos aos relatos prece-
ao Príncipe de Orange, Frederico Hen- dentes, encontra-se na descrição desses
rique. Era da altura de uma criança de pretensos monstros semelhanças cho-
três anos e de nediez medíocre, mas cantes com a espécie humana e dife-
atarracado e bem proporcionado, renças menores do que as que se pode-
muito ágil e vivo, as pernas carnudas e ríam notar de homem para homem. De
robustas, toda a parte da frente nua modo algum se encontram nessas pas-
mas o traseiro coberto de pêlos negros. sagens os motivos nos quais os autores
Seu semblante, à primeira vista, pare- se fundamentam para recusar a esses
cia-se com o de um homem, mas pos- animais o nome de homens selvagens,
suía o nariz achatado e recurvado; mas é fácil imaginar dever-se isso à
suas orelhas eram também como as da sua estupidez e, também, a não fala-
espécie humana; seu seio, pois era uma rem; são razões fracas para aqueles
fêmea, era carnudo, o umbigo enterra- que sabem que, apesar de o órgão da
do, os ombros muito juntos, suas mãos palavra ser natural ao homem, a pala-
divididas em dedos e polegares, a bar- vra em si, todavia, não lhe é natural e
riga da perna e o calcanhar gordos e até que ponto sua perfectibilidade pôde
carnudos. Comumente andava ereto elevar o homem civil acima de seu es-
sobre as pernas e era capaz de levantar tado originai. O pequeno número de li-
e carregar fardos bem pesados. Quan- nhas em que são feitas essas descrições
do queria beber, pegava com uma das permite-nos imaginar como esses ani-
mãos a tampa do vaso e com a outra mais foram mal observados e com que
segurava a base, enxugando em segui- preconceitos foram vistos. Por exem-
da, graciosamente, os lábios. Deitava- plo, são qualificados de monstros, mas
se para dormir pondo a cabeça sobre convêm em que eles geram. Num certo
um travesseiro e cobrindo-se com trecho, Battel diz que os pongos
matam os negros que atravessam as
florestas, num outro, Purchass acres-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
centa que eles não lhes causam ne- como creio, imitar a ação de um
nhum mal, mesmo quando os sur- homem. Seja como for, está bem
preendem, pelo menos quando os demonstrado que o macaco não é uma
negros não começam a olhá-los. Os variedade do homem, não somente por
pongos se reúnem em torno das foguei- não possuir a faculdade de falar, mas,
ras acesas pelos negros, quando estes sobretudo, porque se tem a certeza de
se afastam, e por sua vez se retiram, que sua espécie não é capaz de aperfei-
quando o fogo se extingue. Aí está o çoar-se, o que constitui o caráter espe-
fato; vejamos o comentário do obser- cífico da espécie humana; parece que
vador: “Pois, embora sendo muito essas experiências não foram feitas
habilidosos, não têm inteligência sufi- relativamente aos pongos e os orango-
ciente para alimentá-lo com lenha”. tangos com cuidado suficiente para
Gostaria de descobrir como Battel ou poder tirar a mesma conclusão. Have-
Purchass, seu compilador, pôde saber ría, no entanto, um meio pelo qual, se
que a retirada dos pongos era um o orangotango ou outros seres fossem
resultado antes de sua estupidez do que da espécie humana, as observações
de sua vontade. Num clima como o de mais grosseiras poderíam disso certifi-
Loango, o fogo não é uma coisa muito car-se, até mesmo demonstrando; mas,
necessária para os animais e, se os ne- além de uma única geração não ser
gros o acendem, é mais para amedron- suficiente para essa experiência, ela pa-
tar os animais ferozes do que contra o rece impraticável, porque seria neces-
frio, sendo pois muito possível que de- sário que aquilo que não passa de uma
pois de, durante certo tempo, ter-se suposição fosse demonstrado como
deleitado com a chama ou de ter-se verdadeiro, antes que a prova desti-
aquecido bem, os pongos se aborreçam nada a verificar o fato fosse tentada
de ficar sempre no mesmo lugar e se inocentemente.
retirem para o seu pasto, que exige Os julgamentos precipitados, que
mais tempo do que se comessem carne. não são fruto de uma razão esclare-
Aliás, sabe-se que a maioria dos ani- cida, estão sujeitos a chegar ao exces-
mais, sem excetuar o homem, é natu- so. Nossos viajantes sem-cerimonio-
ralmente preguiçosa e se furta a todas samente apresentam bestas, sob os
as espécies de cuidados que não sejam nomes de pongos, mandrills, orango-
de absoluta necessidade. Finalmente, tangos, que são os mesmos seres que
parece muito estranho que os pongos, os antigos, sob o nome de sátiros, fau-
cuja habilidade e força se enaltecem, nos e silvanos, consideravam divinda-
que sabem enterrar os seüs mortos e des. Verificar-se-á talvez, -depois de
construir abrigos com galhos, não sai- pesquisas mais exatas, não serem nem
bam lançar lenha ao fogo. Lembro-me bestas nem deuses, mas homens. Espe-
de ter visto um macaco fazer essa rando, parece-me haver muitos moti-
mesma manobra que não querem ad- vos para, nesse assunto, basearmo-nos
mitir poderem os pongos fazer; é ver- mais em Merolla, religioso culto, teste-
dade que, não estando então minhas munha ocular e que, com toda a sua
idéias voltadas para esse lado, cometi ingenuidade, não deixava de ser
eu mesmo a falta que censuro em nos- homem de espírito, do que no comer-
sos viajantes, e descuidei de verificar ciante Battel, em Dapper, em Purchass
se a intenção do macaco era, com efei- e nos outros compiladores.
to, manter o fogo ou simplesmente, Que julgamento cremos poderíam
ROUSSEAU
expender tais observadores sobre a Ora, não se deve esperar que as três
criança encontrada em 1694, de quem primeiras classes forneçam bons obser-
já falei atrás, que não apresentava ne- vadores e, quanto aos da quarta, pos-
nhum sinal de razão, andava sobre os suídos pela vocação sublime que os
pés e as mãos, não possuía nenhuma inspira, mesmo que não fossem como
linguagem e soltava sons que de modo todos os outros, sujeitos aos precon-
algum se pareciam com os de um ceitos próprios ao seu estado, pode-se
homem? crer que não se dedicariam de boa von-
“Passou-se muito tempo”, continua tade a buscas aparentemente de pura
o mesmo filósofo que me forneceu esse curiosidade e que os desviariam dos
fato, “antes de poder ela proferir algu- trabalhos mais importantes a que se
mas palavras ainda que de modo bár- destinam. Aliás, para pregar eficiente-
baro. Assim que pôde falar, interroga- mente o Evangelho, basta o zelo, e
ram-na quanto ao seu primeiro estágio, Deus dá o resto, mas, para estudar os
mas não se lembrava dele mais do que homens, são necessários talentos que
nós nos recordamos do que nos acon- Deus não se esforça para dar a nin-
teceu no berço.” guém e que nem sempre os santos pos-
Se, infelizmente para ela, essa crian- suem. Não se abre um livro de viagens
ça tivesse caído nas mãos de nossos em que não se encontrem descrições de
viajantes, não se pode duvidar que, de- caracteres e de costumes, mas fica-se
pois de ter notado seu silêncio e sua espantado ao verificar que essas pes-
estupidez, não tivessem resolvido man- soas, que tanto descreveram coisas, só
dá-la de volta para o campo ou presa disseram o que cada um já sabia, só
para um parque de aclimação e, souberam perceber, no outro lado do
depois, falariam dela, em belos relatos, mundo, o que poderiam notar sem sair
como de uma besta singularíssima que de sua rua e que os verdadeiros traços
se parecia muito com o homem. que distinguem as nações e atingem
Depois de, por trezentos ou quatro- olhos feitos para ver quase sempre
centos anos, os habitantes da Europa escaparam aos seus. Daí veio esse belo
inundarem as outras partes do mundo provérbio de moral, tão repisado pela
e incessantemente publicarem novos turba filosofesca — que os homens,
repositórios de viagens e de relatos, em todos os lugares, são os mesmos e
estou persuadido de que, quanto aos que, possuindo em todos os lugares as
homens, só reconhecemos os europeus; mesmas paixões e os mesmos vícios, é
parece até, devido aos preconceitos bastante inútil tentar caracterizar os
ridículos que ainda não se extinguiram vários povos —, o que é aproximada-
entre os letrados, que cada um, sob o mente tão bem raciocinado quanto se
título pomposo de estudo do homem, disséssemos não se poder distinguir
só faz o dos homens de seu país. Os Pedro de João porque ambos têm um
particulares podem satisfazer-se indo e nariz, uma boca e olhos.
vindo; parece que a filosofia não sai do Veremos, algum dia, renascer os
lugar, de modo que a de cada povo é tempos felizes em que os povos não se
pouco adaptável a um outro. A causa intrometiam querendo filosofar, mas
disso é manifesta, pelo menos para as quando os Platões, os Tales e os Pitá-
regiões distantes. Somente quatro tipos goras, tomados por um desejo ardente
de homens fazem viagens de longo de saber, empreendiam as maiores via-
curso — os marinheiros, os comer- gens unicamente para se instruir e iam
ciantes, os soldados e os missionários. longe sacudir o jugo dos preconceitos
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE 307
nacionais, conhecer os homens por Parece que a China foi bem observada
suas conformidades e diferenças, e pelos jesuítas. Kempfer dá uma idéia
adquirir seus conhecimentos univer- passável do pouco que viu no Japão.
sais, que não são exclusivamente os de Salvo esses relatos, não conhecemos,
um século ou de uma região, mas, em absoluto, os povos das índias
sendo de todos os tempos e de todos os Orientais, visitadas unicamente por
lugares, são, por assim dizer, a ciência europeus mais interessados em encher
comum dos sábios? suas bolsas do que suas cabeças.
Admira-se a magnificência de al- Ainda precisa ser observada toda a
guns curiosos que, com grandes despe- África e seus numerosos habitantes,
sas, fizeram ou custearam viagens ao tão singulares pelo seu caráter quanto
Oriente, com sábios e pintores, para lá pela cor; a terra toda está coberta de
desenhar ruínas e decifrar ou copiar nações das quais só conhecemos os
inscrições; custo, porém, a com- nomes, e ainda queremos julgar o gê-
preender como, num século que se van- nero humano! Suponhamos um Mon-
gloria de altos conhecimentos, não se tesquieu, um Buffon, um Diderot, um
encontrem dois homens bem ligados, Duelos1 43, um d’Alembert, um Con-
ricos, um em dinheiro e outro em dillac ou homens dessa têmpera, via-
gênio, ambos amando a glória e aspi- jando para instruir seus compatriotas,
rando à imortalidade, um dos quais observando e descrevendo, como o
sacrifique vinte mil escudos de sua for- sabem, a Turquia, o Egito, a Barbá-
tuna e outro dez anos de sua vida para ria144, o Império de Marrocos, a
uma célebre viagem em volta do Guiné, o país dos Cafres1 4 5, o interior
mundo, a fim de, pelo menos uma vez, da África e suas costas orientais, as
em lugar de estudar sempre pedras e Malabares1 4 6, o Mogol1 4 7, os rios do
plantas, estudarem os homens e os cos- Ganges, os reinos do Sião, de Pegu1 48
tumes e, depois de tantos séculos dedi- e de Ava1 49, a China, a Tartária1 50 e,
cados a medir e considerar a casa, se
resolvam por fim a conhecer-lhe os 1 43 Duelos (1704-1772): moralista francês,
habitantes. autor de Considerações sobre os Costumes.
Os acadêmicos que percorreram as (N. de P. A.-B.)
partes setentrionais da Europa e meri- 1 4 4 Barbária era, então, o nome de certas
regiões da África do Norte: a Argélia, a Tuní-
dionais da América tinham mais por sia e a regência de Trípoli; seus habitantes
objeto visitá-las como geômetras do eram piratas de renome. (N. de P. A.-B.)
que como filósofos. No entanto, como 1 4 5 Cafrária designa a região sudoeste da
eram simultaneamente tanto uma coisa África habitada pelos bantos e centralizada em
torno do Cabo. (N. de P. A.-B.)
como outra, não se pode considerar 146 Os malabares habitam a costa oeste do
como totalmente desconhecidas as re- Decã, no Indostão. (N. de P. A.-B.)
giões vistas e descritas pelos La Con- 147 O termo Mogol designa o império dos
damine1*40 e Maupertuis1 41. O joa- Mongóis ou do Grã-Mogol, fundado por Gên-
lheiro Chardin1 42, que viajou como gis Cã, reconstruído por Tamerlão; atingiu seu
apogeu sob Aureng-Zcyg (1659-1707); com-
Platão, nada pôde dizer sobre a Pérsia. preendia uma grande parte da China e da
índia. (N. de P. A.-B.)
1 40 La Condamine (1701-1774): sábio fran- 1 4 8 Pegu: nome de um reino da Birmânia e de
cês. (N. de P. A.-B.) sua capital. (N. de P. A.-B.)
1 41 P. L. Moreau de Maupertuis (1698-175 1); 1 49 Ava: nome de outro reino da Birmânia e
geômetra e naturalista francês. (N. de P. A.-B.) de sua capital. (N. de P. A.-B.)
142 Chardin (1643-1713): viajante francês, 1 50 A Tartária representava o Turquestão,
autor de uma Viagem à Pérsia e às índias fazendo desembocá-lo na Sibéria e no Afega-
Orientais. (N. de P. A.-B.) nistão. (N. de P. A.-B.)
ROUSSEAU
da, enquanto a presa de uma ursa ou saber, como ele pretende, que no esta-
de uma loba é devorada num instante e do de natureza a mulher comumente
ela, sem sofrer fome, tem mais tempo fica novamente grávida e gera um
para aleitar seus filhotes. Esse racio- novo filho muito antes que o prece-
cínio é confirmado por uma observa- dente possa por si mesmo atender às
ção sobre o número relativo de tetas e suas necessidades, seriam necessárias
de filhotes que distingue as espécies experiências que certamente o Sr.
carniceiras das frugívoras, e à qual me Locke não fez e ninguém está em situa-
referi na nota h. Caso a observação ção de fazer. A coabitação contínua do
seja justa e geral, a mulher, não tendo marido e da mulher é uma ocasião tão
senão dois seios e não gerando de cada tangível de expor-se a uma nova gravi-
vez mais do que um filho, constitui dez que é bem difícil de crer que o
isso mais um motivo para duvidar que encontro fortuito ou somente o impul-
a espécie humana seja naturalmente so do temperamento produza efeitos
carniceira, parecendo pois que, para tão frequentes no estado puro dè natu-
concluir como Locke, seria preciso reza quanto no da sociedade conjugal;
inverter inteiramente seu raciocínio. essa lentidão contribuiría talvez para
Não há maior solidez na mesma distin- tornar as crianças mais robustas, o que
ção aplicada aos pássaros, pois quem aliás poderia ser compensado pela
poderia se convencer de ser mais durá- faculdade de conceber, prolongada até
vel a união de macho e fêmea entre os uma idade mais avançada nas mulhe-
abutres e os corvos do que entre as res que abusassem menos na sua
rolas? Possuímos duas espécies de pás- juventude. Quanto aos filhos, há mui-
saros domésticos, o pato e o pombo, tos motivos para crer que suas forças e
que nos fornecem dois exemplos dire- órgãos se desenvolvam mais tardia-
tamente contrários ao sistema desse mente entre nós do que acontecia no
autor. O pombo, que só vive de grãos, estado primitivo de que falo. A fra-
fica junto de sua fêmea e ambos nu- queza original, que devem à constitui-
trem em comum os filhotes. O pato, ção dos pais, o cuidado que se tem de
cuja voracidade é bem conhecida, não envolver e embaraçar todos os seus
reconhece nem a fêmea nem os filhotes membros, a frouxidão em que são edu-
e em nada ajuda sua subsistência; cados, talvez o uso de um outro leite
entre as galinhas, espécie que de modo que não o da mãe, tudo contraria e
algum é menos carniceira, vê-se que o retarda neles os primeiros progressos
galo não tem nenhum trabalho com a da natureza. A aplicação que se lhes
ninhada. Se, em outras espécies, o obriga a dar a mil coisas nas quais
macho partilha com a fêmea o cuidado continuamente se fixa a sua atenção,
de nutrir os filhotes, tal acontece por- enquanto não se proporciona qualquer
que os pássaros, que a princípio não exercício às suas forças corporais,
podem voar e cuja mãe não pode alei- pode ainda caüsar um desvio conside-
tar, estão muito menos em estado de rável no seu crescimento, de forma
dispensar a assistência do pai do que que, se em lugar de primeiro sobrecar-
os quadrúpedes, a quem, pelo menos regar e fatigar seus espíritos de mil
durante algum tempo, é suficiente a modos, deixássemos seus corpos se
teta da mãe. exercitarem nos movimentos contínuos
3. Há muita incerteza quanto ao que a natureza parece pedir-lhes, po
fato principal que serve de base a todo de-se crer que estariam muito mais
o raciocínio do Sr. Locke, pois para cedo em estado de andar, de agir e de
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
melior longe quam nostra hac in parte conhecido o nome dos números, é fácil
videatur conditio, utpote quae promp- explicar o seu sentido e despertar as
tius, et forsan felicius, sensus et cogi- idéias que esses nomes representam,
tationes suas sine interprete significent, mas, para inventá-los, foi preciso,
quam ulli queant mortales, praesertim antes de conceber essas mesmas idéias,
si peregrino utantur sermone. (Is Vos- estar-se, por assim dizer, familiarizado
sius. De Poemat. Cant. e Viribus com as meditações filosóficas, exerci-
Rhythmi, pág. 66.1*5 4) tado na consideração dos seres unica-
(n) Platão, mostrando como as mente pela sua essência e independen-
idéias da quantidade discreta e de suas temente de qualquer outra concepção;
relações são necessárias nas menores é essa uma abstração muito penosa,
artes, zomba, com razão, dos autores muito metafísica, muito pouco natural
de seu tempo que pretendiam ter Pala- e sem a qual, no entanto, essas idéias
medes inventado os números no cerco jamais poderiam ter-se transportado de
de Tróia, como se, diz esse filósofo, uma espécie ou de um gênero para
Agamenon até então pudesse ignorar outro, nem se tornarem universais os
quantas pernas tinha1 5 5. Com efeito, números. Um selvagem poderia consi-
sente-se ser impossível que a sociedade derar, separadamente, sua perna direi-
e as artes tivessem alcançado o ponto ta e sua perna esquerda, ou olhá-las
em que já se encontravam no tempo do juntas sob a idéia indivisível de um
cerco de Tróia, sem que os homens par, sem jamais pensar que exitiram
possuíssem o uso dos números e do duas, pois uma coisa é a idéia repre-
cálculo. Mas a necessidade de conhe- sentativa que nos dá o objeto e, a
cer os números, antes de adquirir ou- outra, a idéia numérica que a determi-
tros conhecimentos, não facilita imagi- na. Menos ainda poderia ele calcular
nar-lhes a invenção. Uma vez até cinco e, quando aplicasse suas
mãos uma sobre a outra e notasse que
seus dedos se correspondiam exata-
mente, estaria bem longe de pensar na
sua igualdade numérica; não sabia me-
lhor o número de seus dedos do que o
de seus cabelos e se, depois de fazê-lo
compreender o que são os números,
alguém lhe tivesse dito que tinha tantos
dedos nas mãos quantos nos pés, tal-
vez ficasse muito surpreso ao verificar,
comparando-os, sor verdadeira tal
coisa.
(o) Não se deve confundir o amor-
próprio com o amor de si mesmo; são
duas paixões bastante diferentes tanto
pela sua natureza quanto pelos seus
efeitos1 5 6. O amor de si mesmo é um
sentimento natural que leva todo ani-
DISCURSO SOBRE A DESIGUALDADE
seria deixar aos magistrados a capaci- viços reais que prestam ao Estado e
dade de uma aplicação quase arbi- que são suscetíveis de julgamento mais
trária da Lei, mas, sim segundo os ser- exato.