Rousseau e a soberania inalienável No estado de natureza, o homem tinha uma vida
essencialmente animal. A rude existência das florestas Jean-Jacques Rousseau, suíço que viveu na França fez dele um ser robusto, ágil, com os sentidos aguçados, no século XVIII, criticou o absolutismo real e pouco sujeito às doenças, das quais a maioria nasce da fundamentou sua teoria com base no pacto social que vida civilizada. Sua atividade intelectual nestes tempos legitima o governo. O filósofo emprestou à ideia de pacto era nula. Assim vivendo, o homem era feliz e suas a originalidade do conceito de soberania inalienável; únicas paixões eram os instintos naturais, facilmente satisfeitos (sede, fome, reprodução sexual, preservação). QUEM É Esse é o ponto capital da argumentação de Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), filho de um Rousseau: a natureza não destinaria o homem primitivo relojoeiro de poucas posses, nasceu em Genebra à vida em sociedade. Durante muito tempo talvez, o (Suíça) e viveu desde 1742 em Paris. Ganhou o prêmio homem viveu solitário e independente, e este estado era da Academia de Dijon ao contrariar a pergunta: “O o elemento essencial de sua felicidade ou bem-estar. restabelecimento das ciências e das artes terá Portanto, só se distinguiria dos animais por sua maior contribuído para aprimorar os costumes?”. inteligência e pela consciência de ser livre. O homem Na contramão das esperanças iluministas depositadas natural se diferencia do animal por três razões, são elas: no poder da razão, Rousseau não via com otimismo o Primeiro, a preocupação com situações que, por vem- desenvolvimento da técnica e do progresso. Fez ami- tura, possam vir a afligi-lo, como: enfermidades, de- zade com Diderot, filósofo do grupo iluminista do qual sastres, velhice, etc., algo que os animais não fazem. participavam Voltaire, D’Alembert e D’Holbach. Convi- Segundo, o homem possui razão e os animais, dado a escrever os verbetes sobre música da Enciclo- instinto. Só a razão proporciona liberdade, pois só o pédia, circulava nesse meio como elemento destona- homem é capaz de escolher algo que realmente te. As principais ideias políticas de Jean-Jacques Rous- queira fazer, enquanto o animal o faz por instinto. O seau estão nas obras Discurso sobre a origem e os melhor exemplo aqui é pensar na montaria de um fundamentos da desigualdade entre os homens Emílio, cavalo. O cavalo não escolhe ser montado, é obra renovadora da pedagogia, Do contrato social etc. adestrado a servir o cavaleiro, enquanto o homem escolhe se irá montar ou não; Em sua obra Discurso sobre a origem da desigualda- Terceiro, o homem tem a capacidade do aperfeiçoa- de entre os homens, ele glorifica os valores da vida natu- mento, ou seja, evolui. O homem natural é capaz de ral e ataca a corrupção, a avareza e os vícios da socie- se manter em equilíbrio com a natureza quanto às dade civilizada. Exalta a liberdade que o selvagem teria questões de alimentação, da reprodução e da morte, desfrutado na pureza do seu estado natural, contra- não temendo esta última. Como em todos os seres da pondo-o à falsidade e ao artificialismo da vida civilizada. natureza que são ameaçados e possuem a capaci- Já em outra obra, Do contrato social, Rousseau foi dade de se defenderem, os homens naturais também mais além: procurou investigar não só a origem do poder o fazem, podendo ser agressivos nesta situação. político e a existência ou não de uma justificativa válida para os indivíduos, originalmente livres, terem submetido Assim, Rousseau cria a hipótese de um homem que sua liberdade ao poder político do Estado, mas também teria vivido tranquilamente antes de socializar-se, até ser a condição necessária para que o poder político seja introduzida a desigualdade, que o corrompeu. Trata-se, legítimo: portanto, de um falso pacto social que coloca as pessoas sob grilhões. Há que se considerar a possibilidade de O homem nasceu livre e, não obstante, está outro contrato verdadeiro e legítimo, pelo qual o povo acorrentado em toda parte. Julga-se senhor dos esteja reunido sob uma só vontade. demais seres sem deixar de ser tão escravo como A origem da propriedade também seria a origem da eles. Como se tem realizado esta mutação? verdadeira desigualdade entre os seres humanos. As di- Ignoro-o. Que pode legitimá-la? Creio poder ferenças naturais (dos atributos físicos) não deveriam ser responder a esta questão. (p. 37.) levadas em conta, pois a desigualdade social seria a úni- ca origem de uma distinção negativa entre as pessoas. Estado de natureza e contrato social Rousseau examina o estado de natureza de maneira “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tem- mais otimista do que seus antecessores contratualistas: do cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou os indivíduos viveriam em equilíbrio com suas poucas pessoas suficientemente simples para acreditá-lo. Quantos crimes, necessidades, cuidando da própria sobrevivência, até o guerras, assassínios, misérias e horrores não pouparia ao gênero surgimento da propriedade, quando uns passam a humano aquele que, arrancando as estacas ou enchendo o fosso, ti- trabalhar para outros, gerando escravidão e miséria. vesse gritado a seus semelhantes: „Defendeivos de ouvir esse im- postor; estareis perdidos se esquecerdes que os frutos da terra são Enquanto homem natural, não havia noção de propriedade, nem havia de todos e que a terra não pertence a ninguém!‟. Grande é a possibi- noção de coisa alguma, senão aquela agregada aos instintos de lidade, porém, de que as coisas já então tivessem chegado ao ponto sobrevivência. O único sentimento do homem primitivo era a piedade, de não poder mais permanecer como eram, pois essa ideia de pro- mas, mesmo ela, não havia da forma como a conhecemos hoje. Assim priedade, dependendo de muitas ideias anteriores que só poderiam como nos animais, a piedade no estágio primata era a simples ter nascido sucessivamente, não se formou repentinamente no concepção de não querer mal ao outro, não significando espírito humano”. (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 2. necessariamente querer-lhe bem. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.2265. Coleção Os Pensadores). FILOSOFIA – CEPAP – PAULO TAVARES Ele considera que a fundação da sociedade civil se O conceito de vontade geral deu na primeira vez que um ser humano cercou um terreno e afirmou “isso é meu!”, e encontrou aceitação por parte de seus semelhantes. A origem da propriedade é a origem da sociedade, mas ainda sem bases jurídicas que são garantidas por um Estado. A instituição da propriedade teria dado inicio ao processo de acumulação de bens. Surgem as desigualdades, a escravidão, a ganância e a violência. Ao contrário de Hobbes e Locke Rouseau considera que o primeiro contrato social que instituiu o Estado não foi resultado da ação voluntária de todos os indivíduos, Rousseau preconiza a soberania popular, isto é, a mas do ato daqueles que tinham mais posse e com isso participação de todos os cidadãos nas deliberações puderam coagir os que não tinham, na tentativa de legislativas que dizem respeito à sua sociedade. resguardar suas propriedades. Distingue também dois tipos de participação na Com esse contrato a vida em sociedade, gera vícios comunidade: como soberano, o povo é ativo e que distancia os homens, logo repensar o modelo natural considerado cidadão, mas, ao exercer igualmente a é um modo de aproximá-los novamente. Com isso, surge soberania passiva, assume a qualidade de súdito Então, a necessidade de rever o Contrato, não para voltar ao o mesmo indivíduo é cidadão quando faz a lei e é súdito estado natural, o que Rousseau acredita ser impossível, quando a ela obedece e se submete. mas para tentar diminuir as desigualdades entre os Na qualidade de povo incorporado, o soberano dita a homens após o arbítrio da instituição da propriedade. A vontade geral, cuja expressão é a lei. O que vem a ser natureza fez o homem livre. Mas a sociedade existe, “o vontade geral? É melhor antes distinguir entre pessoa homem nasceu livre e por toda parte se vê agrilhoado”. pública (cidadão ou súdito) e pessoa priva Ao injusto contrato em que o forte subjuga o fraco, é preciso substituir por um novo contrato que assegure a A pessoa privada tem uma vontade individual cada cidadão a proteção da comunidade e lhe permita que geralmente visa ao interesse egoísta e à gestão de vantagens da liberdade e da igualdade. Enquanto alguns bens particulares. Se somarmos as decisões com base filósofos estudaram as formas históricas de governo, em benefícios individuais, teremos a vontade de todos Rousseau meditou sobre o que deve ser uma sociedade (ou vontade da maioria). justa e, ao colocar seus princípios absolutos (liberdade e A pessoa pública é o individual particular que igualdade natural), tirou daí suas conclusões de valor também pertence ao espaço público, participando de universal, que inspiraram a Revolução Francesa. um corpo coletivo com interesses comuns expressos pela vontade geral. Soberano e governo De acordo com Rousseau, o contrato social, para ser legítimo, origina-se do consentimento necessariamente Nem sempre, porém, o interesse da pessoa privada unânime. Cada associado se aliena totalmente ao abdi- coincide com o interesse da pessoa pública, pois o que car sem reservas de todos os seus direitos em favor da beneficia a pessoa privada pode ser prejudicial ao comunidade. O indivíduo abdica de sua liberdade pelo coletivo. A vontade de todos, portanto, não se confunde pacto, mas, como ele próprio é parte integrante e ativa com a vontade geral, pois o somatório de interesses do todo social, ao obedecer à lei, obedece a si mesmo e, privados tem outra natureza que a do interesse comum. portanto, é livre: “A obediência à lei que se estatuiu a si Encontra-se aí o cerne do pensamento de Rousseau, mesma é liberdade”. Isso significa que, para o filósofo, que reconhece autonomia e liberdade na capacidade de com o contrato o povo não perde a soberania, porque o se submeter a uma lei, erguida acima de si, mas por si Estado criado por ele não está separado dele mesmo. mesmo. A pessoa é livre na medida em que dá o livre Sob certo aspecto, essa teoria inovadora por consentimento à lei, como salienta: distinguir os conceitos de soberano e governo atribui ao povo a soberania inalienável. Cada associado nada Aquele que recusar obedecer à vontade geral a perde de fato, porque a soberania do povo, manifestada tanto será constrangido por todo um corpo, o que não pelo poder de legislar, é inalienável, isto é, não pode ser significa senão que o forçarão a ser livre, pois é essa representada. a condição que, entregando cada cidadão à pátria, o O ato pelo qual o governo é instituído pelo povo não garante contra qualquer dependência pessoal. ROUSSEAU, J.Jacques. Do contrato social . S.P.Abril Cultural, 1973. p. 42. submete este àquele. Não há um “superior”, pois os (Coleção Os Pensadores) depositários do poder não são senhores do povo, podendo ser eleitos ou Embora seja contratualista e se posicione contra o destituídos conforme a absolutismo, Rousseau ultrapassa o elitismo de Locke conveniência. Os ao propor uma visão mais democrática de poder, o que magistrados que empolgou políticos como Robespierre e leitores como constituem o governo Marx. Aspectos avançados do pensamento de Rousseau estão subordinados ao estão na denúncia dos que abusam do poder conferido poder de decisão do pela propriedade, bem como no conceito de vontade soberano e apenas geral executam as leis.