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© 2018 Nahra Mestre


Capa: Paulo E. V. Carmo
Revisão: Deborah A. A. Ratton
Editora Portal

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,
personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação da
autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera
coincidência.

Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.

Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa
obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.

Criado no Brasil.

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punido pelo artigo 184 do Código Penal.
A Viúva


Prólogo

Grove House, dezembro de 1854.

Diante do espelho, Viollet tentava encontrar a mulher que fora um dia.
Não se conhecia mais, sequer se via. Tal impossibilidade não se dava pelo
pesado veludo negro que cobria a penteadeira, nem mesmo pelo véu que lhe
tampava o rosto. Sua inquietação ia além do que os olhos podiam perceber.
Faltava-lhe algo, faltava-lhe vida.
Vida da qual não se julgava merecedora, não depois do que fizera. Era
uma mensageira da morte, uma assassina. Estaria sempre dentro de uma redoma
lúgubre.
Vida que tirara do marido.
Ao apertar o gatilho da arma de duelo, tornara-se o tipo de pessoa que
sempre havia abominado. Igualara-se a Phillip agindo de forma covarde, vil,
cruel. Sabia que deveria suportar as agressões que sofria, em silêncio, apática.
Jamais poderia ter agido com tamanha impulsividade.
Viollet afastou o véu, que lhe incomodava, mas, mesmo assim, não
conseguiu ver sua imagem refletida. Diante do tecido preto que cobria o espelho,
aos poucos, sua mente elucidava o que julgava óbvio. Todo o sofrimento que seu
marido a fizera passar era merecido, um castigo pregresso pelo crime que ela iria
cometer.
Ele sabia! Deus conhecia a predestinação de todos os seus filhos.
Oferecera-lhe a Justiça Divina antecipada e agora era misericordioso dando
abrigo a Viollet e a sua irmã, Flora, na casa da marquesa de Bristol. Ela não fazia
jus à tamanha benevolência, sabia que aquilo era indesculpável. Deveria estar
trancafiada na Torre de Londres, aguardando o dia em que sua cabeça rolaria
diante dos olhares de todos. Mas o Senhor sabia que ela ainda tinha a missão de
encaminhar a irmã para um bom casamento. Viollet acreditava que, depois que
Flora se casasse, teria sua merecida penitência.
A culpa não lhe deixara um só dia desde setembro. Três meses haviam se
passado e a cena do dia em que se tornara a viscondessa viúva era revivida
durante dias e noites. Apesar de toda a abundância em que agora vivia, Viollet
tinha consciência de que só não fora jogada na sarjeta porque Deus olhara por
Flora enviando Sarah para acolhê-las e acalentá-las.
Como se não bastasse o tormento de não se sentir digna de tamanha
bondade, era obrigada a conviver com John, que visitava a casa da irmã quase
que diariamente. John! Oh, Jack, por que não fui capaz de esperá-lo? Iludida
pela possibilidade de salvar o pouco que lhe restava de sua família, caíra na
armadilha de Lorde Phillip Smith. E, mesmo que não enxergasse razão para
continuar existindo, era por Flora que ainda se mantinha viva. Recebendo uma
ajuda que sequer merecia.
Em meio a lamúrias e preces, nem percebeu quando se pôs de joelhos,
agarrada ao rosário. Lembranças, lágrimas e orações se fundiam em um
murmúrio ininteligível que reverberava pelas paredes do ostentoso quarto em
Grove House.
A luz tomou o cômodo bruscamente.
Pequenas partículas de poeira bailaram pelo ar trazendo uma onda de
pânico. Os olhos de Viollet ardiam, os joelhos formigavam. Já não era tão
habilidosa em esconder as emoções, seus nervos pareciam fora de controle.
O pavor se tornou ainda maior ante a lembrança de que Phillip jamais
admitiria tamanho desleixo com a limpeza da casa. Ela esfregou a barra do
vestido contra o piso repetidas vezes. Mergulhava em dolorosas lembranças,
uma teia na qual havia anos se prendera.
Phillip jamais a perdoaria, seria açoitada e violada até que ele se desse
por satisfeito. Como poderia permitir tamanho descuido com a limpeza?
Seu corpo tremia, não conseguia se controlar. Sabia que tinha que se
manter firme, seu marido apreciava sua capacidade de suportar o medo e a dor,
entretanto, naquele momento, ela não encontrava forças.
Quando sentiu uma mão sobre um ombro, prendeu todo o ar que havia
aspirado e parou instantaneamente. Sabia o que aconteceria. Ele fingiria o
mínimo de empatia, tiraria sua roupa e castigaria seu corpo. Com os olhos
fechados, ela estava pronta para receber sua punição.
— Viollet! — ouviu ao longe a voz de Marie. O que ela estava fazendo?
Sabia que não podia gritar. — Viollet — a voz insistente deixava seu controle
por um fio.
Ondas de tremores tomaram-lhe o corpo. Sentiu a face banhada pelas
lágrimas, nem as percebeu cair. Os soluços presos lhe rasgavam a garganta. Ela
não seria poupada, seu castigo seria longo e doloroso.
— Viollet, minha querida, está tudo bem — a voz doce de Marie tentava
acalmá-la, Viollet podia sentir a mão que acariciava seus cabelos. — Nada mais
vai lhe acontecer, Philip está morto.
A viúva foi tomada por um lapso de razão não menos lancinante que a
própria realidade.
— Eu o matei.
— Não! — Marie afirmou incisiva. — Eu apertei o gatilho...
— Ele não morreu no primeiro tiro — contou o que lhe afligia com um
fio de voz. — Ele se mexeu, não estava morto quando você saiu. Atirei com a
segunda arma. Sou a assassina do meu próprio marido.
Capítulo I

A caminho de Grove House, Lorde John Anson, o visconde de Trentham,
filho do duque de Sutherland, mal conseguia conter a irritação. Seus pés tocavam
o assoalho da carruagem incessantes vezes, enquanto passava as mãos pelos
cabelos, deixando-os revoltos.
A inoportuna placidez de Sir Anthony, sentado à sua frente, deixava-o
ainda mais furioso. Era afrontosa aquela aparente tranquilidade diante do recado
que o médico recebera. Marie havia mandado chamá-lo para atender a
viscondessa viúva.
Conhecendo Viollet desde a infância, John sabia que a presença de um
médico só se fazia necessária em casos de extrema urgência. Temia um mal
súbito ou uma grave enfermidade. Remexeu-se no assento. Não suportaria se
algo lhe acontecesse.
Apesar da ansiedade para vê-la, somente a oportunidade de cuidar dela,
de protegê-la, trazia-lhe certo alívio. Agora ela não era mais a viscondessa de
Derby. Se tudo ocorresse como ele desejava, em breve Viollet se tornaria a
viscondessa de Trentham e, em um futuro distante, a duquesa de Sutherland.
— Não me faça arrepender de tê-lo trazido. — A serenidade que
Anthony exalava instantes antes deu lugar a um semblante austero. — Respire,
John, ou vai acabar sofrendo dos nervos também.
— Se continuar tranquilo desta maneira, vou fazê-lo respirar no inferno
— o visconde esbravejou. — Como pode ter a audácia de me pedir calma em
uma situação como essa? — Levantou a mão em punho, pronto para atacar o
amigo. — Quero que você e seus exercícios de respiração vão para o inferno.
— Sossegue, John — a voz firme de Ann o fez abaixar o braço.
Sua irmã mais velha, que até então mantinha-se calada, resolveu
interceder, ao ver John prestes a perder o controle.
— Por que infernos Sarah não foi morar em Mayfair? Grove House é do
outro lado do Tâmisa. — John continuava batendo o pé no chão da carruagem,
como se o movimento fosse ajudá-lo a chegar mais rápido a Roehampton.
— Garanto que deve ser mais uma crise de nervos — Anthony tentou
tranquilizá-lo.
— O que quer dizer com “mais uma crise”? — Os olhos do visconde
faiscavam furiosamente.
Ann tocou o ombro do médico, como se lhe pedisse em silêncio a
palavra.
— Não tem sido fácil para Viollet, John. Deus sabe o que acontecia entre
ela e Phillip — tentou medir as palavras. — Sir Anthony tem ido a Grove House
com frequência para acompanhá-la, algumas vezes tarde da noite. Vez ou outra
ela tem crises de nervos.
John estreitou os olhos para o amigo.
— Por que diabos não me contou? Sabe o que ela significa para mim.
— Precisava ter certeza de que estaria preparado. Diante de seu estado,
confesso que me arrependo de ter lhe contado e de ter permitido que me
acompanhasse.
Sem pensar duas vezes, o visconde avançou em direção ao médico,
segurando-o pelo colarinho.
— O que queria? — Ann gritou com firmeza, deixando os dois
boquiabertos. — Desde que Viollet se casou com Phillip, você virou um patife.
Mal conseguia dar conta de si mesmo, acha realmente que conseguiria ajudá-la?
— Ela olhou para o irmão com firmeza. — Solte-o! Ou eu mesma ordenarei que
o levem para Anson House e, por conta da sua teimosia, o atendimento de
Viollet terá que esperar. — Sem pensar duas vezes, John sentou-se, atordoado
com o rompante da irmã. — Acha mesmo que, no estado em que se colocou,
você teria condições de ajudar alguém? Foram três anos jogando sua vida pelas
valas. Talvez sua memória esteja afetada, mas não fui a única a ir a Paris para
uma desintoxicação do ópio. A diferença é que não escolhi, enquanto você sim!
Então comporte-se!
John não tinha argumentos, jamais a vira daquela maneira. A doce e
frágil Ann parecia Sarah, sua irmã mais nova. Ele coçou a cabeça tentando
organizar os pensamentos.
— Meu caro amigo. — Anthony já havia voltado para seu modo sereno,
ajeitava o colarinho e o lenço recentemente desfeito. — Se fui até Anson House
para chamá-lo é porque julgo que está apto a ajudá-la. Entretanto é necessário
que tenha o controle de si mesmo, lembre-se de que você também está em
tratamento.
— Ela é minha cura! — afirmou o visconde com determinação. — E eu
sou a cura dela.
Com um olhar condescendente o médico falou:
— Lamento informar, as coisas não serão tão fáceis quanto espera.
John não esperava que recuperar Viollet fosse uma tarefa fácil, contudo
jamais imaginara que seria tão difícil.
Quando chegou a Grove House, sua irmã Sarah, a marquesa de Bristol, o
impediu de entrar nos aposentos onde Viollet estava instalada. Apenas Anthony
entrou e, pelo que lhe foi informado, Marie estava com ela.
Buscando seguir o conselho do médico, o visconde foi para o jardim para
tentar amainar seu acalorado tumulto interior. O vento frio anunciava o fim do
outono, mas não parecia ser um empecilho para a criança que corria desajeitada
em volta da fonte. Logo atrás, estava David, primo de John, que parecia se
divertir mais do que o próprio menino.
De um jeito carinhoso e paternal, David pegou a criança nos braços e
caminhou em direção a John, que permaneceu estático enquanto absorvia a cena.
— Diga oi para Lorde John, Paul — David pediu assim que se
aproximaram.
— É um prazer conhecê-lo, meu senhor — com as palavras emboladas, o
menino fez uma desajeitada reverência.
— O filho de Marie? — John perguntou para o primo, encantado com o
garoto, que acenou em concordância, com um sorriso exultante. — Pode me
chamar de John, pequeno Paul. Não precisamos de formalidades.
— Lady Viollet disse que é educado.
Foi então que John se deu conta de que aquela criança fora criada por ela.
Pela sua Let. Num impulso, pegou a criança nos braços e a abraçou. Naquele
menino encontrava um pouco dela.
Caminhando de volta para dentro da casa, com o pequeno Paul no colo,
era como se o tempo não tivesse passado. John se viu revivendo uma época na
qual Viollet estava sempre sorrindo. Foi impossível não se lembrar do primeiro
beijo que deram, havia seis anos.
Viollet estava com as roupas sujas de tinta, tentava reproduzir os jardins
de Lilleshall. As cores vibrantes, salpicadas no vestido rosa-pálido, saltavam
aos olhos e a deixavam ainda mais encantadora. Eles se conheciam desde
sempre, seus pais eram amigos, os Thompsons eram os primeiros a serem
convidados para a temporada de caça.
Como de costume, enquanto se aproximava John bolava alguma
traquinagem para aporrinhar a menina franzina e travessa. Mas, naquele dia,
ele não conseguiu irritá-la. Hipnotizado pela beleza de Viollet, mudou de ideia.
De maneira alguma desejava cair em seu desagrado. Fora tomado por súbita
vontade de fazê-la sorrir.
— Achei que não viria, imaginei que Eton aprisionasse seus alunos e só
deixassem sair para o feriado de Natal. — Ela sorriu, fazendo com que todos os
músculos de John enrijecessem.
— Sempre há uma forma de fugir para ver belas damas.
Viollet gargalhou. Era magnífica. Os cabelos negros estavam
parcialmente soltos, dando a ele uma visão da mulher que ela estava se
tornando. Já não era uma menina.
Era o que ele achava, até ser surpreendido. Viollet esperou que ele
chegasse bem perto do rio e o empurrou. Antes que pudesse se recuperar da
queda, encharcado, ele a viu se despir; Viollet ficou somente com as roupas de
baixo para acompanhá-lo em um mergulho.
Ela tinha pressa, se fosse pega nadando de maneira tão escandalosa, sua
preceptora a mataria. Naquela manhã ela se vestira preparada para qualquer
aventura. John permanecia na água, completamente vestido, observando cada
movimento de Viollet.
— Não vai tirar os sapatos? — ela perguntou tão naturalmente que
parecia não se dar conta de que seu corpo já havia se transformado.
— Viollet, você... — Ele não teve tempo de alertá-la, ela entrou na água
e mergulhou na parte mais funda.
John retirou os sapatos, jogou-os na margem do rio e começou a nadar
em direção a ela. Deveria ser algo natural, não era a primeira vez que nadavam
juntos, escondidos. Apesar dos três anos de diferença, Viollet sempre fora uma
agradável e divertida companhia. Mas daquela vez tudo parecia diferente, ela
era a mesma menina, mas seu corpo era o de uma mulher.
— Eton não está lhe fazendo muito bem!
— Ainda bem que em breve irei para Cambridge. — Ele entrou na
brincadeira nadando para o fundo.
— Quanto tempo ficará por lá?
— Quatro ou cinco anos — John respondeu, estavam cada vez mais
perto um do outro.
— Então, em quatro ou cinco anos, estaremos em Paris! — Ela o
surpreendeu com um abraço.
John a envolveu entre os braços, a proximidade era tentadora.
— Paris?
— Iremos para a França, depois Itália. Você vai me levar para conhecer
o mundo. Quero fazer cursos de pintura. Vou ser a pintora mais conhecida de
toda a Europa.
— Por que eu? — ele perguntou com um tom divertido, sem soltá-la.
Viollet deu um sorriso, que fez com que tudo a volta dele desaparecesse.
— Porque você aprecia a minha arte.
— Não podemos viajar assim. — Ele estava hipnotizado com o contato,
seu corpo colado ao dela.
— Podemos! Vamos nos casar, teremos muitos filhos, que viverão sujos
de tinta. Mas saberão se portar perante a sociedade toda vez que voltarmos
para o Reino Unido, afinal serão filhos de um duque — Viollet falava com tanta
naturalidade que John não discordaria de nada.
— Vamos nos casar... — não era uma pergunta, ele somente repetia, para
absorver a avalanche de informações que a pequena Viollet declarava.
— Eu sabia que concordaria! — Ela o abraçou ainda mais, com
gratidão. — Espero você voltar de Cambridge.
— Vai se casar comigo porque vou levá-la para aprender a pintar por
toda a Europa? — com um sorriso torto ele a provocou.
— Não seja tolo, sabe que eu não me casaria com mais ninguém.
Não! Ele não sabia, jamais havia cogitado aquela possibilidade. Não até
aquele momento. John fechou os olhos, Viollet ainda o abraçava com tanta força
que ele temia que a situação ficasse ainda mais constrangedora.
— Não faça isso — ele pediu ainda com os olhos fechados e a respiração
entrecortada. — Quando me abraça assim, tenho vontade de beijá-la.
— Então beije-me. Será a maneira mais bonita de selar nosso acordo.

— Lorde John — a voz o pequeno Paul o trouxe de volta para a
realidade. — Não vamos entrar? — O menino apontava para a porta fechada.
A porta do quarto de Viollet.

***

Apesar de todas as emoções e lembranças que vivera naquela tarde,
Viollet sentia-se melhor. Dr. Anthony havia lhe recomendado caminhadas
matinais, além de alguns sais aromáticos. Marie e Flora estavam sentadas ao pé
da cama, conversando frivolidades. Nada que a fizesse ter vontade de participar,
mas o movimento em seu quarto era bem-vindo.
A porta se abriu, o pequeno Paul entrou. Viollet havia se afeiçoado ao
menino. Como ela havia ensinado, ele se aproximou fazendo uma reverência
ante as damas presentes e logo depois se aconchegou no colo da mãe. Era
comovente ver mãe e filho juntos depois de tudo que passaram; se havia algo de
que se orgulhava em sua vida eram os três que estavam diante dela. Eram a sua
família.
Antes que pudesse perguntar a Paul como ele havia chegado até ali, a
porta se abriu ainda mais. Era ele! John estava no quarto dela.
Por que, toda vez que o via, era como se algo dentro dela se revirasse?
Que poder ele tinha para que ela, mesmo que por alguns instantes, tivesse a
sensação de que tudo ficaria bem?
Embora parecesse constrangido, Jack não recuou. Entrou e permaneceu
calado, não se deu ao trabalho de cumprimentar ninguém. Seu olhar era agudo e
penetrante. Não demorou muito para que Flora sugerisse que Marie levasse Paul
para fazer um pequeno lanche. Ficaram apenas os três no quarto.
— Também ficará para o jantar? — Flora parecia curiosa e isso de
alguma maneira perturbou Viollet.
— Não perderia uma refeição preparada especialmente pela marquesa de
Bristol, querida Flora — John respondeu em um tom leve, mas logo depois se
virou para Viollet. — E você? Como está? Tem se alimentado bem?
Ela acenou em concordância, constrangida a cada passo que ele dava em
sua direção. De súbito se lembrou de que vestia apenas uma camisola negra, de
tecido leve minunciosamente trabalhado em renda. Um presente de Marie,
confeccionado por Heloise Morrice, a famosa modista de Londres. Uma
ostentação descabida para uma mulher enlutada.
Sentiu-se exposta, cobriu-se bem rápido, entretanto não conseguia deixar
de olhá-lo. Ficaram assim por alguns instantes, até que ela ouviu o som da
pesada porta, que se fechava. Flora, com suas artimanhas, havia lhes deixado a
sós.
John caminhou demoradamente pelo quarto, então pegou uma cadeira
disposta em frente à penteadeira coberta. Olhou para o tecido preto por alguns
instantes antes de se sentar ao lado da cama de Viollet.
— Já se passaram três meses e seis dias, a decoração não deveria ter sido
retirada?
— Ainda estou de luto — ela respondeu incisiva, fitando a colcha.
— Também vi que não utilizou o material de pintura que eu trouxe.
— As cores são vivas demais, inapropriadas para alguém em minha
situação.
John parou por um instante, e, em seu íntimo, Viollet temeu que ele
partisse, embora soubesse que era exatamente aquilo que ele deveria fazer.
— Fez um bom trabalho com o pequeno Paul, mas devo observar que é
um tanto quanto controverso.
— Controverso? — ela questionou confusa.
— Lembro-me de que me garantiu que nossos filhos viveriam sujos de
tinta e que estariam livres das convenções sociais.
— A menos que estivessem em Londres — ela lembrou com um discreto
sorriso.
— Ah, sim, tinha me esquecido desse importante pormenor. — Ele sorriu
vitorioso.
— Paul é uma criança encantadora — Viollet prolongou o assunto,
receava que a agradável conversa cessasse.
— Percebi nas primeiras palavras. Acho que ele tem potencial para subir
em árvores. Pensei em uma temporada em Lilleshall, o que acha?
Por um instante o coração de Viollet se aqueceu, estar em Lilleshall seria
um bálsamo para suas inquietações. Entretanto, sua animação durou poucos
segundos, o suficiente para que se desse conta de que o convite não era para ela;
e mesmo que fosse não poderia ir.
— Anthony pedirá Ann em casamento em breve, estavam aguardando
somente as informações sobre Marie. E, agora que tudo está bem, acredito que
não demore muito para que Lucy se torne a duquesa de Sutherland — John
continuava a falar como se não se importasse com o clima fúnebre do quarto.
— Pensei que seu pai só se casaria depois que todos os filhos
contraíssem matrimônio; mesmo se Ann desposar o médico, ainda faltará você.
— Acredito que tudo é uma questão de tempo, e isso não me preocupa;
nenhuma dama, em sã consciência, recusaria o pedido de um futuro duque,
mesmo que a família estivesse envolvida no pior dos escândalos.
Viollet engoliu em seco, quão presunçoso era John. Fitou o teto para
evitar olhá-lo.
— Acho que preciso descansar — ela afirmou com a voz embargada.
— Ah, claro, peço perdão por tê-la importunado. Vejo você no jantar.
— Mas eu não vou...
— Lembra-se da brasileira que está hospedada na casa dos Baldwins?
Ela virá jantar acompanhada de Edward. Tenho certeza de que você irá apreciar
a boa companhia de Izadora.
Capítulo II

Em seu íntimo, a última coisa que Viollet queria era sociabilizar,
entretanto a curiosidade a respeito da brasileira fora o suficiente para convencê-
la a descer para a refeição. Izadora era uma mulher interessante, a personificação
de uma alma livre, livre das convenções sociais. A brasileira havia deixado claro
que viera para o Reino Unido para a temporada, estaria disponível para ser
arrematada no concorrido mercado de casamentos.
A Viollet não passou despercebida a insatisfação do primeiro-ministro
perante a afirmação da estrangeira, ele parecia avaliar cada movimento daquela
mulher. Estava claro que seria necessário muito trabalho para que a jovem
conseguisse se enquadrar aos padrões do Reino Unido.
Teve vontade de enfiar um pão goela abaixo de Flora quando a irmã,
inocentemente, apontou-a como a dama mais adequada para treinar a brasileira.
O chá foi servido para as damas na sala íntima, enquanto os cavalheiros
fumavam seus charutos e conversavam. Flora, que havia algumas semanas
estava empenhada em aprender economia e política com a marquesa, fechou-se
na biblioteca para se dedicar aos estudos.
— Já marcaram a data do casamento? — Sarah perguntou para Marie,
entusiasmada.
— Não há por que nos apressarmos, o baile no qual fui apresentada
aconteceu somente há dois dias. Lady Baldwin — Marie fez uma pausa e deu
um largo sorriso —, quero dizer, minha mãe acredita que precisamos de pelo
menos algumas semanas para anunciar o acordo de casamento.
— Acho que Anthony pedirá minha mão — Ann anunciou tímida.
— O que acham de um casamento duplo em Lilleshall? — Sarah sugeriu
com tanta naturalidade, que foi impossível para Viollet conter o sorriso.
Antes que Ann pudesse pedir à irmã que controlasse os ânimos, os
cavalheiros entraram na sala entusiasmados.
— Devo admitir que é enfadonho discutir política sem a marquesa de
Bristol. — Thomas se aproximou da esposa com um meio sorriso nos lábios.
Viollet admirava os pares que se formavam. Ao longe o primeiro-
ministro, Lorde Edward Baldwin, observava Izadora, que parecia apreciar seu
chá em demasia. A brasileira, que falara durante quase todo o jantar, naquele
momento calou-se, parecia absorta em pensamentos.
O médico, Sir Anthony, contemplava Lady Ann com desmedida
admiração; Viollet estava convencida de que o pedido não tardaria em acontecer.
Entre amigos, Marie e Lorde David portavam-se como se já estivessem casados.
O duque não escondia a paixão que sentia por Lucy.
John permanecia recostado perto da janela, e Viollet sentiu-se
constrangida ao perceber que estava sendo observada.
Incomodada, permaneceu por mais algum tempo ouvindo a acalorada
conversa. Apesar de completamente fora dos padrões, aquela era, sem dúvidas, a
reunião social mais agradável em que estivera. Lady Sarah era uma mulher
revolucionária; entre suas convidadas, as damas solteiras portavam-se como se
fossem casadas.
Viollet deixou a sala de forma discreta. Apesar do clima descontraído, a
forma como John a olhava era desconcertante. Quando chegou ao topo da
escada, percebeu que alguém subia logo atrás dela.
— Let! — Era ele! — Por favor, espere.
A viúva terminou de subir e se virou para esperá-lo.
— Só queria desejar-lhe boa noite como merece.
Dito isso, ele tomou sua mão, depositando um beijo casto e demorado
sobre a luva negra.

***

No dia seguinte Viollet acordou inexplicavelmente bem-disposta. Apesar
de determinada a se manter reservada, considerou o conselho de Dr. Anthony de
dar uma volta pelo jardim. Naquela manhã, quando o desjejum foi servido em
seus aposentos, sua criada lhe entregara uma enorme caixa.
Dentro havia tintas e pigmentos em tons ocres e escuros; um pequeno
cartão denunciava a origem do presente.

O início do outono e o princípio
do inverno em Lilleshall
podem ser inspiradores.
Jack

Mesmo sabendo quão inapropriada era a invasão de John, a possibilidade
de retratar as paisagens de Shropshire era acolhedora. Viollet crescera naquelas
terras. A propriedade de seu pai, o conde de Devon, era vizinha de Lilleshall. Ela
frequentara a casa do duque de Sutherland desde a infância. Tinha esperanças de
que ali encontraria nem que fosse uma vaga lembrança da Viollet que havia se
perdido.
Agora, que era uma hóspede permanente da marquesa de Bristol,
acreditava ter que acompanhá-la nas festividades de fim de ano. Os natais dos
Ansons sempre foram animados, recordava-se de todos em que passara com o
pai, junto daquela família.
Depois de comer o suficiente para se manter de pé até a próxima
refeição, com ajuda de sua criada, Viollet vestiu um traje negro para um pequeno
passeio pelos jardins de Grove House. Embora não usasse o véu sobre a touca
quando descia para o jantar, achou apropriado usá-lo naquela manhã.
Pensou em chamar Flora para acompanhá-la, mas sabia que a irmã estaria
ocupada, preparando-se para a temporada. Apesar dos comportamentos um tanto
quanto duvidosos da marquesa, não podia se queixar, Lady Sarah se empenhava
em conseguir o melhor matrimônio para Flora.
Caminhou contemplando a belíssima paisagem da propriedade, era um
exercício agradável, e cogitou a hipótese de tornar aquele passeio um hábito
diário.
As poucas folhas que ainda resistiam tinham um tom acolhedor. Algumas
flores resistiam ao fim do outono, deixando a caminhada ainda mais revigorante.
Um trotar apressado despertou sua atenção, ela conhecia bem o barulho
de um cavalo montado por John. Ele era habilidoso, elegante, e qualquer animal
se rendia ao seu comando. Mantendo a cadência dos passos, ouviu quando ele
desmontou; o som das botas tocando o solo também já era um velho conhecido.
Como, em tantos anos, Viollet ainda era capaz de se lembrar de cada
som, cada cheiro, cada sensação? Jamais conseguiria compreender os efeitos de
John em seus instintos. E, por mais que a vida os tivesse separado, ele sempre
seria John, o seu Jack.
— Vejo que acordou bem-disposta, devo atribuir isso ao novo conjunto
de pintura?
— O dia está agradável — ela limitou-se a dizer, sem interromper os
passos.
— Let! Vim lhe fazer um pedido.
Ela titubeou por alguns instantes, não continuou seu caminho, mas
também não se virou para olhá-lo. Não foi preciso, em poucos segundos ele já
estava a sua frente. John vestia preto, e o lenço cinza-claro ajudava a destacar a
camisa impecavelmente alva. De alguma forma o véu sobre a face dela a fez
sentir-se protegida.
— O que quer, Jack? — Jack? Pronunciara mais uma vez, em voz alta, o
apelido que lhe dera quase uma década atrás?
— Quero posar para você.
Ela piscou algumas vezes tentando compreender aquele pedido.
— Não pinto pessoas — mentiu.
John sorriu malicioso, fora preparado para qualquer resposta. Nas
pequenas tiradas arrogantes, sabia que de alguma forma sua Let ainda estava ali.
— Eu estava enganado, lamento tê-la perturbado. — Deu meia-volta e,
com as mãos nos bolsos, começou a caminhar despreocupado.
Viollet demorou alguns instantes tentando entender o que havia
acontecido. Embora fosse certo manter uma distância segura de John, de alguma
forma ele era o sopro de vida que ainda lhe restava.
— John! — Ela se virou chamando-o.
— Para você não sou John, sou Jack, sempre fui. — Sequer virou-se para
olhá-la, somente parou; estando ele de costas, ela jamais veria o sorriso vitorioso
estampado em sua face. — Desde que estava nos cueiros.
— Sei que está rindo. — Ela desviou os olhos para o lago, temia outra
crise de nervos. Jack conseguia levá-la ao limite. — Por que age dessa maneira?
John se virou e lentamente se aproximou. Com delicadeza e habilidade,
ergueu o véu, queria vê-la. Encarou Viollet, não teve pressa, só se deu por
satisfeito quando seus olhos finalmente se conectaram.
— Passei tempo demais longe de você — declarou sério, aproximando-se
lentamente. — Tento aproveitar os pequenos momentos que compartilhamos.
Sinto falta do que fomos um dia.
Fitando o chão, Viollet se arrependeu da pergunta. Ele não fizera rodeios,
sequer disfarçara usando falsas lisonjas ou desculpas esfarrapadas. Jack era
direto, certeiro, cortante. Mas ambos eram assim, não eram? Foram acostumados
a ser honestos um com o outro, um pacto que fizeram na época em que
compartilhavam os banhos de rio e as subidas furtivas em árvores.
— Já não sou mais a mesma — declarou enquanto retorcia as mãos
coladas às saias do vestido.
— Sei que não. — Ele se aproximou tão rapidamente que Viollet nem
percebeu quando ficaram tão próximos. — Também não sou. Não imagina o
inferno que passei o tempo que estive longe de você — e sem pedir permissão
tocou-lhe a face com as pontas dos dedos. — Sei que minha Let está aí; até
mesmo quando se esconde por trás do véu, posso ver você.
Ela ergueu o rosto para olhá-lo, apesar de John parecer sincero, não
poderia acreditar. Let havia morrido fazia anos, desde a sua noite de núpcias, ao
chamar o marido de Jack e receber a primeira chicotada.
Estremeceu. Sentiu-se encolher diante das lembranças, o som do chicote
estalando e o ardor espalhando-se por seu corpo era vívido. Sem se dar conta,
viu-se entrando no labirinto de seu passado.
John a viu ainda mais pálida, os pés hesitantes e a boca trêmula.
Abraçou-a com ternura. Queria protegê-la de algo que nem mesmo sabia o que
era. Ela aceitou seus braços e isso o encorajou. Apertou-a ainda mais contra si,
enquanto lhe acariciava os cabelos.
O carinho de John de alguma maneira fez com que o vórtice em que ela
estava prestes a mergulhar desaparecesse. A mente de Viollet era um grande
vazio, só existia o som quase inaudível de suas respirações, uma ária, a velha e
reconfortante melodia.
— Let, meu amor. Deixe-me curá-la, ajudá-la, protegê-la. Não há nada
neste mundo que eu queira mais do que ver seu sorriso de novo.
Ela não podia! Sequer conseguia imaginar como havia permitido
tamanha proximidade. Jack era sua salvação, mas ela era a ruína de Jack.
Concentrou-se em buscar forças para se afastar, mas parecia existir um magnete
que a impedia. Buscou no poder da oração a sabedoria e a força para fazer o que
era preciso.
Quando conseguiu se afastar o suficiente para dizer-lhe que não havia
uma única chance para os dois, não conseguiu. Viu-se emudecida; mesmo que
todos os argumentos para desencorajá-lo latejassem, não seria capaz de magoá-lo
novamente.
— Não existe mais Jack e Let — forçou-se a continuar, mas as palavras
lhe feriam a boca —, não mais.
Enquanto observava Viollet se afastar, John concentrou-se na respiração.
Maldito o oriental que ensinara tamanha estupidez a Anthony, praguejava
dividido entre o impulso de segui-la ou de acalmar-se para pensar em alguma
estratégia eficaz. Pois desistir de Viollet não estava em seus planos.

Capítulo III

Sentado de frente para uma garrafa de puro malte escocês, John
ponderava entre a sobriedade e o torpor. Naquela noite, ao som dos barulhentos
aristocratas frequentadores do White’s, sua mão já estivera sobre o vidro
inúmeras vezes, prestes a derramar o líquido âmbar no cálice.
— Creio que uma única dose não lhe fará mal. — John havia se
esquecido da presença de Anthony ao seu lado. — Tudo na vida é uma questão
de equilíbrio.
— Às vezes me questiono se os chineses não lhe fizeram uma lobotomia.
— Virou-se para o médico num tom sarcástico, porém melancólico.
— Fico feliz que esteja falando — retribuiu a ironia. — Isso me poupa
qualquer intervenção cirúrgica. Há mais de hora observa a garrafa com tanto
desprezo e adoração que fica difícil decifrar o que se passa em sua mente
turbulenta.
— Não quero assustá-la — confessou empurrando para longe a garrafa.
— Ao mesmo tempo sinto que essa espera é pior que a forca.
— John, meu querido amigo John. Conheço você desde Eton, embora
tenhamos nos aproximado em Cambridge, depois que começou a apostar sua
vida nos dados. — Anthony pegou a garrafa e serviu duas doses. Logo em
seguida ofereceu uma a John e tomou seu cálice em um só gole. — Precisa ter
paciência e perseverança. Lady Viollet se encontra em estado de choque e,
depois de tudo que passou, é perfeitamente compreensível.
— E o que ela passou? Por que insistem em me esconder a verdade?
— Sei que está se esforçando, embora muitas vezes aja como um patife.
Mas era importante que encontrasse o equilíbrio.
John virou sua dose e sorriu descrente.
— Equilíbrio... — Bateu a pequena taça na mesa e se virou para o amigo.
— Até quando?
— David vai nos encontrar, acho importante ouvir o que ele tem a dizer.
— Trouxe-me aqui para contar? De todos os lugares em que podia me
revelar o que imploro para saber, escolheu o clube mais movimentado de
Londres. Teme que eu perca a cabeça?
— Não, meu caro, estava esperando você tomar a sua dose, mais uma e
vamos à casa dos Baldwins. David e Edward nos aguardam.
Durante todo o trajeto, John se concentrou nas lembranças, tentava
buscar alguma ligação entre os sorrisos de sua Let e os da viscondessa viúva. Era
quase imperceptível, mas ele sabia que Viollet ainda era a mesma, apesar de
parecer uma mulher completamente diferente. Nos olhos de Let, mesmo que
muitas vezes parecessem vazios, havia um brilho, uma luz que nada poderia
apagar.
A chegada de Anthony e John era esperada. O mordomo os conduziu até
a biblioteca logo que chegaram. O médico não entrou, e John não negaria que a
presença do amigo lhe traria segurança. Temia pela própria sanidade ao ouvir
quão grave era o motivo para que Viollet se fechasse para o mundo. Suspeitava
de agressões, mas naquela noite teve certeza de que subestimara a realidade.
Marie estava sentada em uma das poltronas no canto, em silêncio. A
antiga camareira de Sarah, de olhos fechados, segurava um rosário e
movimentava os lábios sem emitir nenhum som.
— Lamento perturbá-la, achei que encontraria David — John falou
cauteloso.
Marie se pôs de pé rapidamente e fez uma reverência.
— Pedi para falar com o senhor, Lorde John.
Por um instante John presumiu que Marie presenciara o que ele desejava
saber. Havia tantas perguntas, tantos questionamentos, que aceitou prontamente
quando ela lhe convidou para sentar-se.
— Acredito que podemos dispensar as formalidades, irá se casar com
meu primo.
Marie acenou em concordância.
— Desculpe-me a invasão, mas David me contou sobre sua história com
Viollet. Ela nunca comentou nada sobre o assunto, também não tive coragem de
questioná-la sobre as pinturas que tinham seu rosto. No primeiro momento não
fiz a associação, mas hoje, sabendo um pouco da história, tenho certeza de que é
você.
— Viollet tem retratos meus?
— Ficavam escondidos no quarto de vestir, certa vez a ajudei a se trocar.
— Parou por um instante. — Sei que não deveria estar contando algo tão íntimo,
mas o que me fez aceitar contar-lhe foi acreditar que aquelas pinturas têm algum
significado para ela. Viollet precisa de ajuda.
— Pretendo me casar com ela. Só preciso encontrar uma forma de
aproximação, Viollet está sempre com a guarda montada.
— John, acho que tenho permissão para chamá-lo assim. — Ele
concordou com um sorriso lacônico, mas as mãos apertavam o braço da
poltrona. — De onde vim, vi de quase tudo. O que vivi nos dias em que Philip
me raptou não foi novidade para mim. Vi muitas mulheres serem forçadas a
manter relações ou apanharem até o desmaio.
— O que está querendo dizer? Flora ficou responsável por observar tudo
que acontecia naquela casa. Sei que Philip era um covarde patife, que a
destratava e possivelmente a pegava com certa violência, mas...
— Philip era um homem que se satisfazia provocando dor. — Marie
engoliu em seco e respirou com pesar. — Como disse, eu já conhecia isso. Fui
iludida por ele e, mesmo sabendo de sua depravação, achei que era um preço
justo pela minha liberdade. Foi uma escolha que fiz. Já Viollet não conhece outra
forma. Acredita que o interlúdio íntimo entre um homem e uma mulher vem
sempre acompanhado por açoites, varas, chicotes...
John sentiu o estômago revirar, mas, ao ver que Marie chorava com a
lembrança, interrompeu-a:
— Você está bem? — Mesmo tomado pela fúria, ofereceu a ela um lenço.
— Como Flora nunca me contou? — Levou as mãos ao rosto, atordoado.
— Flora não sabia e nem sabe das coisas pelas quais Viollet passou. Eu
mesma não sei quase nada, sei do que vi, do que vivi e do pouco que ela me
falou. Ela não podia gritar, éramos obrigadas a nos manter em silêncio. Apesar
de muito fechada, Viollet é uma mulher maravilhosa com um coração de ouro.
Ela me deu duas vezes joias de família para que eu pudesse recomeçar minha
vida. — Marie fez o sinal da cruz e levou o rosário aos lábios. — Passei anos
acreditando que ela me jogara moedas para que eu sumisse depois que deixei o
pequeno Paul.
— Preciso me casar com ela. — Ele bateu as mãos nos braços da
poltrona. — Preciso cuidar de Viollet, protegê-la.
— John — Marie se inclinou pousando a mão sobre a dele —, vivi num
antro de perdição, aprendi todas as coisas erradas como certas, mas Deus me
trouxe David, que me ensinou o que é ser amada e protegida. Viollet está ferida,
sente-se culpada e as lembranças são vivas. A cada vez que revive o passado, ela
se vê presa nele. As recordações, as marcas para curar tudo isso, será necessário
certo tempo.
— Eu a amo. Morri quando descobri que ela havia se casado. Tenho
vontade de novamente perguntar-lhe por que fez isso. Lamento, não me peça
paciência, já perdi tempo demais.
— Não é fácil esquecer um passado tão doloroso — declarou Marie entre
lágrimas.
— Sinto muito. — Pela primeira vez John se deu conta de que Marie
também falava de si.
— Ainda acordo à noite vendo o rosto de Viollet, seus olhos implorando
clemência. Nos meses em que compartilhamos a dor, comungamos de muito
mais que isso. David me garantiu que seus sentimentos são verdadeiros — e,
para a surpresa de John, ela se pôs de joelhos. — Então lhe rogo, por tudo que é
mais sagrado, tenha paciência. Viollet precisa do seu amor, mas ela ainda não
está pronta para recebê-lo.

***

— Gostaria de trabalhar, milady. Eu me sinto bem melhor e posso ser a
ama de seu filho. Quero retribuir tudo o que tem feito por mim e pela minha
irmã.
Sentada junto a sua mesa, a marquesa de Bristol avaliava Viollet, em pé,
a sua frente.
— Por favor, sente-se, Viollet — convidou Sarah com um sorriso
amigável.
A viúva se acomodou na ponta da cadeira de forma a demonstrar que não
estava confortável, sequer tinha a intenção de demorar, e isso não passou
despercebido aos olhos de Sarah.
— Nossas famílias foram vizinhas e amigas por quase toda a vida, cresci
brincando com Flora embora nos últimos anos tenhamos nos distanciado. Uma
amizade tão grande não se perde com o tempo.
Viollet sorriu ironicamente e não segurou o comentário espirituoso.
— Devo relembrá-la de que nunca foi muito dada a brincadeiras, milady.
Desde nova era uma estudiosa, uma revolucionária. Creio eu que a brincadeira à
qual se refere sejam as aulas de história e política que dava à Flora. — Sarah
sorriu e Viollet sentiu-se encorajada a confidenciar. — Papai achava
inapropriado.
— Eu me declaro culpada! Nem todos têm a sorte de ter o duque de
Sutherland como pai — Sarah falou e se arrependeu no momento em que
lembrou o que havia acontecido com o conde de Devon. Tentando manter o tom
da conversa, não se abateu. — Meu pai faz questão de ter você e Flora nas
festividades de fim de ano.
— Não sei se devo, milady. — O olhar absorto de Viollet denunciava seu
constrangimento.
Por um instante, Sarah lembrou-se do que John havia lhe confidenciado,
Viollet se transformara em uma mulher fechada, visivelmente machucada.
Entretanto, nos momentos em que vislumbrava o passado anterior ao seu
casamento, ela demonstrava pequenos lampejos de sarcasmo, bom humor e a
sugestão de um breve sorriso. A marquesa estava a cada vez mais convencida de
que a ideia de John de levá-la para Lilleshall poderia ser um refresco no meio da
tempestade.
— Lucy precisa de nossa ajuda — Sarah confidenciou, já pensando em
persuadi-la. — Há anos estamos esperando que ela finalmente se case com meu
pai. Agora, com o matrimônio iminente de Ann, creio que não tardará para que
tudo se resolva.
Sarah avaliou a expressão da viúva, as sobrancelhas erguidas e o olhar
desafiavam-na a prosseguir. Percebeu, ali naquele instante, que a mulher a sua
frente jamais poderia ser subestimada, precisaria de muito mais para dissuadi-la.
— Claro que poderá escolher entre passar as festividades do Natal com
os Baldwins ou em Lilleshall... — Sarah ponderou tentando medir as palavras.
— Sabe, querida Viollet, meus ideais românticos sempre foram elevados. Ver
você e John desde novos juntos e o carinho e cumplicidade entre meu pai e Lucy
me fizeram acreditar que o amor era algo fácil, natural. Hoje vejo que estava
enganada, o amor é uma construção que envolve muito mais do que carinho e
respeito. Quero ajudar você e Lucy, vocês merecem ser felizes.
— Lamento decepcioná-la, milady, se de alguma maneira deixei que
pensasse algo que não deveria; fiz escolhas e devo pagar por elas. Infelizmente
não podemos voltar ao passado e, ainda que pudéssemos, magoaríamos as
pessoas que nos são importantes. Sou uma mulher viúva e pretendo passar o
resto de minha vida nesta condição.
Sarah tamborilou os dedos sobre a mesa, enquanto tentava pensar em
outra abordagem. Viollet não se abriria em relação aos seus sentimentos.
— Há pouco disse que quer trabalhar. Sente-se em dívida, embora eu
possa garantir que não há motivos para tal. Sempre ficou claro que a amizade
entre nossas famílias era um laço eterno de lealdade. Se quer ser uma
viscondessa viúva, terá o meu apoio — ofereceu sua falsa anuência. — O que
acha de reformarmos a casa de caça? Assim pode ficar melhor instalada, com
certa privacidade.
— Não é necessário...
— Faço questão, poderá ter um atelier e tranquilidade, já que deseja viver
uma vida de renúncias e privações. — Sarah levantou-se, deu a volta ao redor da
mesa, serviu um cálice de vinho do Porto e sentou-se em uma cadeira ao lado de
Viollet. — Mas, como amiga, gostaria de sua ajuda. — A marquesa saboreou a
bebida demoradamente, deixando Viollet com água na boca. — Lucy precisa de
nós, não me aceitará para orientá-la em sua nova posição social. Acredito que
Ann mereça gozar de sua liberdade agora que está curada e irá se casar. Lucy
tem um carinho enorme por você e por Flora. E eu gostaria de contar com sua
ajuda para ajudá-la.
Viollet a encarou. Mesmo percebendo a estratégia de Sarah, não negaria
aquele pedido.
— Apesar de desconfiar que de alguma forma estou sendo manipulada,
eu a ajudarei. Vou para Lilleshall.
Sarah sorriu amplamente, sentia-se vitoriosa mesmo que contrariada por
ter sido pega em flagrante em seu estratagema. Viollet fez uma reverência
obsequiosa e se levantou. Caminhou até a porta e, antes de deixar o cômodo,
falou:
— Não quero abusar de sua caridade, mas acredito que seja um assunto
de seu interesse. — Viollet se virou por completo. — Eu me preocupo com John.
Receio que, quando se convencer de que não cederei às suas investidas, ele volte
a ter uma vida desregrada. Ele será o duque, precisa ter credibilidade e ser
conhecido pela dedicação ao Parlamento. Se pudesse tentar conversar com ele,
quem sabe ajudá-lo... Sei que tem talento para os negócios e para política,
milady. É uma mulher admirada por quase toda a nobreza.
Sarah sorriu, o pedido de Viollet era bem mais do que uma ponderação,
era uma confissão.
— Vou ajudar meu irmão. Obrigada por se preocupar.
Sarah observou Viollet partir e voltou para a mesa.
— Pare de rir como um tolo, John. Já pode sair de trás da cortina.

***

Para John, estar em Lilleshall por muito tempo era doloroso. As
lembranças eram uma prisão da qual ele não conseguia se libertar. Cada sebe
trazia recordações, o sorriso de Viollet estava em cada flor. Foram muitos anos
comungando de deliciosos e divertidos momentos juntos, além de muitos outros
lamentando tê-la perdido.
Mas, ao chegar às terras em que fora criado, para as festividades do fim
de ano, tudo parecia ter um brilho diferente. Somente a presença de Viollet,
mesmo que distante, trazia um sopro de esperança. Era como se todas as
engrenagens tivessem voltado a funcionar como deveriam. Cavalgando ao lado
do pai, a sensação de acolhimento trazia a paz que havia muito John buscava.
O duque desmontou assim que se aproximaram dos estábulos. Seu
herdeiro o acompanhou, afagando a cabeça do cavalo logo em seguida. Um
criado correu depressa para pegar os animais e John jogou uma moeda para ele.
— Muito bom vê-lo de novo cheio de vida, meu filho.
— Estou tentando.
— Aprecio seu esforço. — O duque andava na direção oposta ao casarão,
seguindo pelo caminho que dava acesso ao jardim secreto. — Uma vez, quando
você era pequeno, lembro-me de que havia sumido por todo o dia. Ninguém o
encontrava, e Viollet também estava desaparecida. Você tinha dez anos, ela sete.
Foi logo depois que a condessa de Devon faleceu. Lucy havia sugerido que
Viollet e Flora passassem alguns dias aqui, estava apavorada porque vocês
haviam sumido.
O duque abriu a porta que dava acesso ao jardim. Ao fundo, do lado de
um pequeno lago, estava a velha cabana. John jamais imaginaria que ela estaria
em tão bom estado. Não estivera naquele recanto por quase quatro anos, seria
tormentoso, uma provação além de suas forças.
— Quando já não sabia onde procurar, vim até aqui — o duque
continuou nostálgico. — Vocês estavam aqui, nesta cabana, a pequena Viollet
chorava, deitada em seu colo. Você oferecia consolo, dizia que Lucy poderia ser
a mãe dela também. — O duque tirou o lenço do bolso para secar as lágrimas. —
Depois daquele dia o vi de forma diferente, como um nobre. Um verdadeiro
cavalheiro. Do mesmo modo, vi você definhar, entregar-se e desistir de tudo,
quando Viollet se casou. Não o julgo, não saberia viver sem Lucy, mas aprendi
que, enquanto as damas são a doçura e a sensibilidade, nós homens precisamos
ser o amparo e a segurança.
— O equilíbrio... — John divagou.
— Apesar de achar as ideias de Anthony um pouco abiloladas, confesso
que vejo um pouco de sentido.
O duque se sentou em um banco e John se acomodou ao lado do pai.
— Viollet afirmou que não cederá às minhas investidas e que
permanecerá de luto até o fim de sua vida.
— Ela lhe disse isso?
— Disse para Sarah, eu estava escondido no escritório quando ouvi.
Abandonando a melancolia de um instante antes, o duque chacoalhou-se
estourando em uma ruidosa gargalhada.
— John, meu filho. — Parou para recuperar o fôlego, com a mão no
peito. — Viollet conhece você melhor do que ninguém. Posso garantir que ela
sabia que estava ouvindo atrás da cortina. Preocupou-se ao menos em esconder
os pés? — Sem conseguir se conter, segurou a barriga esbelta, sentindo dores de
tanto rir.
— Inferno! — John não saberia dizer, mas era possível que ela o tivesse
visto.
— Viollet disse para você escutar. Mude a abordagem, meu filho. Não há
nada mais estimulante do que aquilo de que não temos controle.
Dito isso, o duque deixou o jardim divertindo-se à custa do filho.
Quando John se viu sozinho, caminhou em direção à cabana. Desejava
que o lugar, marcado pelas boas lembranças, fosse também a porta para o
recomeço.

Capítulo IV

No salão azul de Lilleshall, Lucy, Ann, Sarah, Viollet e Flora tomavam
chá, enquanto conversavam animadas sobre o pedido de Anthony naquela
manhã. O médico parecia ansioso e aproveitou o primeiro desjejum em
Shropshire para oficializar o acordo.
— Gostaria tanto que Marie estivesse aqui — Ann confessou enquanto
contemplava a aliança que recebera.
— Ela virá, minha querida — Lucy garantiu. — Escreveu-me
informando que virá logo depois do Natal. Eu compreendo Lady Cécile
Baldwin, quer oferecer o melhor Natal para a filha e, depois de tantos anos, elas
merecem.
— Poderíamos fazer um baile da criadagem inesquecível — sugeriu
Flora, que foi discretamente cutucada pela irmã. — Sinto tanta falta dos bailes
do Ansons.
— Sem dúvidas os de Lilleshall são bem mais animados do que os de
Londres — comentou Sarah, ajeitando o filho no cesto.
— Sarah, o pequeno Bronwen mal completou um mês de vida e você age
como se não estivesse de resguardo — reprimiu Ann. — Já foi a um baile,
alimentando todas as maledicências e agora o traz, ainda tão frágil, para
Lilleshall. — Olhou para o sobrinho demonstrando piedade.
— Não que lhe deva satisfação, querida irmã. Mas não estou de
resguardo, minhas atividades no leito conjugal estão bem, obrigada. Meu marido
tem desejos, assim como eu, e desconfio que ninguém cumpra um prazo tão
extenso. — A marquesa balançou a mão no ar. — Sobre a minha saúde e a saúde
de meu filho, graças a você temos um médico que nos acompanha, afastando
todos os riscos. Anthony orientou que eu me mantivesse em estado quase que
vegetativo durante um mês e só fui ao baile depois que completei o prazo
estipulado. — Sarah se colocou de pé e cruzou os braços. — Vocês não
imaginam o que passei tendo que ser carregada pelas escadas para receber
visitas, sem poder estudar, muito menos trabalhar. Meu filho permaneceu ao meu
lado durante todo esse tempo, seguimos todas as recomendações que foram
impostas para que pudéssemos gozar de um pouco de liberdade.
— Minha querida, Ann tem razão. Bronwen ainda é tão pequeno, precisa
de cuidados — Lucy falou docemente.
Pegando o cesto com a ajuda de uma criada, Sarah deixou a sala, irritada.
— Ela sempre foi assim — observou Viollet.
— Culpa de Augustus. Ele nunca conseguiu dizer não para Sarah —
completou Lucy.
— Quem consegue? — zombou Flora.
— Devo admitir que Sir Anthony elogiou toda a abnegação e o empenho
dela. Acompanhou pessoalmente a higiene da carruagem que os traria — disse
Ann.
— É um homem encantador — falou Flora desviando a atenção de um
bordado. — É muito bonito ver tamanha dedicação por um ofício. Sobre mantê-
la em repouso, acho que já conseguiram o impossível.
— Faça companhia a ela, minha querida — pediu Lucy à Flora. —
Quando Sarah estiver mais calma, levo alguns bolinhos para vocês.
— Vamos, eu a acompanho — convidou Ann.
Quando Lucy percebeu que estava sozinha com Viollet, sentou-se mais
perto.
— Não imagina o quanto estou feliz que estejam aqui.
— Lilleshall é uma segunda casa para mim. — Viollet deu um sorriso
sincero.
— Às vezes precisamos de um refresco. Deixar a mente vagar longe.
Acho que é disso que precisa. — Ela tocou com carinho o joelho de Viollet. —
Temos material de pintura, Augustus fez questão de que preparássemos tudo
para que se sentissem em casa.
— Será uma duquesa maravilhosa.
— Não me importo com o título. Minha única prioridade é ver meus
filhos felizes. — Beijou o topo da cabeça de Viollet e se levantou. — Preciso ver
como andam as coisas para o jantar e ver se Sarah já se acalmou. Por que não dá
uma volta? A velha cabana no jardim secreto está pronta para que retrate as
flores da estufa.
Aceitando a sugestão, Viollet seguiu pelo caminho que levava até a
cabana. Mesmo no inverno, a paisagem era acolhedora. Apertou o xale contra o
corpo ao sentir o vento frio tocar sua pele. Estava ansiosa para reviver os
momentos em que, da janela, podia ver as flores que resistiam a tão baixa
temperatura.
O jardim secreto era seu lugar preferido em Lilleshall. Desconfiava que
era um santuário. Uma vez que as portas se fechavam, só haveria luz e alegria. A
cura das dores, das angústias e de todos os males.
Agradeceu a Deus o fato de terem partido na manhã seguinte em que
Sarah a convencera a passar o Natal com os Ansons. Uma única noite naquele
paraíso fora suficiente para que Viollet se sentisse bem-disposta.
Permitiu-se vivenciar o encantamento logo que entrou. O trinco
escondido entre as sebes conferia a privacidade que ela tanto desejava.
Caminhou sem pressa, contemplando a paisagem que se fundia com as
lembranças. Era capaz de retratar aquele cenário de olhos fechados.
A velha cabana, incrivelmente bem-cuidada, era um espaço amplo, com
uma sala, cozinha, lavatório e um quarto. A lareira estava acesa e a sensação de
acolhimento foi tamanha que Viollet não se atentou para o detalhe de que alguém
estivera ali antes dela. Ou ainda estaria lá.
Atrás da pequena casa, John colhia algumas ervas para jogar na lareira e
perfumar a cabana. Era assim que Viollet gostava e, mesmo que ela não estivesse
ali, ele não conseguia controlar o impulso de agradá-la.
Certa vez, seu pai lhe contara, com desmedido saudosismo, que fora ali
que beijara Lucy pela primeira vez. Aquele recanto fora o palco dos encontros
furtivos entre o duque e a amante. John não se lembrava de quando, mas em
algum momento aquele oásis fora cedido para ele e Viollet.
Sob o teto da velha cabana, ficou determinado que se chamariam de Jack
e Let. Os apelidos foram criados para que a troca de cartas não fosse descoberta.
Era um pacto, um código secreto. Uma das muitas confidências e sonhos de que
comungaram ao longo dos anos.
— Jack! — a voz de Let resultou em um sorriso no rosto de John. — Não
sabia que estava aqui.
— Vim cavalgando com meu pai até os estábulos. — Com as mãos sujas
de terra, ele bateu os pés antes de entrar. — Depois viemos até aqui. Achei que
encontraria um pouco de paz.
— Está tudo bem? — ela perguntou preocupada, não era do feitio de
John se isolar.
— Nada para se preocupar. — Ele jogou as ervas no fogo, provocando
estalidos e o exalar de um aroma acolhedor.
— Sabe que pode me dizer. — Apesar da postura distante, John pôde ver
preocupação nos olhos dela.
Ele foi até a bacia e lavou as mãos, já não vestia o paletó. Jogou-se no
sofá, colocando os pés na mesa de apoio como sempre fazia. Aquele era um
terreno livre de qualquer regra.
— Acho que chegou a hora de levar minhas responsabilidades a sério.
Meu pai e Lucy merecem um pouco de tranquilidade depois de tudo. — Ele
levou as mãos à nuca, acomodando-se melhor no sofá, lembrando-se do que
ouvira no gabinete da irmã. — Sei que vou precisar da ajuda de Sarah, mas,
conhecendo bem a marquesa, o preço será alto.
— Acho que não é um bom momento, ela está particularmente agitada
após o tempo em que esteve de resguardo. — Viollet sentou-se na ponta do sofá,
com as mãos no colo.
— Foram meses difíceis para todos nós. — Ele passou as mãos pelos
cabelos. — Talvez eu procure Edward, preciso fazer jus ao título que carrego.
— Nunca se interessou por política.
— Não, nunca. Mas como Sarah diz, é a maneira mais sábia de ajudar
aos que precisam.
Viollet remexeu-se no sofá, aos poucos deixou que suas costas
relaxassem no encosto.
— Disse que seu pai o trouxe aqui. — Parou pensativa; John a conhecia,
sabia que ela estava medindo as palavras. — Lucy sugeriu que eu viesse... acha
que eles...
— Armaram para que nos encontrássemos? — perguntou despreocupado.
— Jamais ligaria os pontos, mas tem fundamento a sua dedução.
John fechou os olhos e respirou profundamente.
— O que o aflige, John?
Ele virou-se de forma que seus joelhos tocassem nos dela.
— Eu me sinto responsável pela felicidade de meu pai. Sei o quanto
espera para se casar. Quero vê-los felizes, já fizeram tanto por mim. — Abaixou-
se, cobrindo os olhos com as mãos. — Tenho medo de um dia perder as
esperanças, de decepcioná-los, de voltar para o lugar de que consegui sair.
— Do que está falando?
— Eu quis tirar minha própria vida várias vezes, Let, não encontrava
razão para existir sem você. Hoje vejo o quanto errei. Sei que tenho que me
manter firme, de pé. Ser útil de alguma forma, conseguir alguma renda razoável
para garantir o mínimo de conforto. Sou um homem que vive à sombra da
própria família, escondido. Talvez eu nunca seja o suficiente para você e o certo
seria aceitar essa condição. — Ele a olhou intensamente. — Mas não é fácil.
— É a pessoa mais bonita que já conheci.
— Então fique comigo, deixe-me cuidar de você.
Viollet estremeceu.
— Não posso, Jack, não seria justo. Você precisa de alguém inteiro,
também precisa ser amparado. Não pode achar que vou salvá-lo...
— Não é você quem vai me salvar, Let. E sim quem sou quando estou
com você. Sinto que também sente da mesma maneira.
— Carrego tantas coisas, tantas lembranças, tantas mágoas. Deixar que
nossas vidas se cruzem de novo seria marcá-lo com a minha desgraça.
Ele tomou a mão de Viollet, retirou a luva negra delicadamente e atraiu a
suave e pálida palma até o coração.
— Já estou marcado. Você está em todo lugar. E não há desgraça maior
do que estar longe de você.
A respiração de Viollet falhou, puxava o ar com dificuldade enquanto as
lágrimas lhe ardiam os olhos. Era demais para suportar, via-se à beira do abismo.
Precisaria escolher entre voar ou pular. Mas seu egoísmo era tamanho que não
seria capaz de abrir mão de John. Tinha dificuldade de elaborar um raciocínio
coerente. A sensação de que, independentemente do caminho que escolhesse,
morreria ali, naquele momento.
John, ao vê-la pálida e notando que inspirava com dificuldade, abriu-lhe
o vestido e desamarrou o espartilho para afrouxá-lo. Surpreendeu-se ao ver que
tudo que Viollet vestia era preto, até mesmo as roupas de baixo. Sussurrava
baixinho as instruções de respiração que ouvira repetidas vezes, sob o comando
de Anthony.
Ao perceber que Viollet estava melhor, envolveu-a em uma manta. Tudo
estava limpo e não havia dúvidas de que a cabana fora preparada para recebê-los.
Essa constatação trouxe certo conforto, era o apoio silencioso de seus pais.
Encorajando-o a conquistar a mulher que o devolveria à vida.
— Let, por favor, esqueça tudo que eu disse. Eu não deveria...
— Eu matei Philip. Depois que Marie fugiu com Paul, ele gemeu, disse
que deveria ter atirado antes. Não tive alternativa, senão atirar novamente. Não
posso manchá-lo com isso, Jack.
John a envolveu entre os braços. Segurava-a com força, querendo de
alguma forma protegê-la.
— Meu amor, está tudo bem agora. Tudo acabou, tem a chance de
recomeçar.
— Não mereço, sei que alguém levou a culpa por um crime que cometi,
um inocente. Mais cedo ou mais tarde, Deus irá me cobrar por isso.
John afastou-se apenas o suficiente para encarar Viollet, sem tirá-la dos
braços.
— Não vê que já sofreu demais, Let? Foi o maldito Phillip que pagou
pelos erros que cometeu, não você.
— Não posso — a voz de Viollet se fundia aos suspiros, John a embalou,
tentando acalmá-la.
Não insistiria, Let parecia esgotada. John a confortou até que ela se
acalmasse e adormecesse. Com delicadeza, apreciando o momento de
intimidade, retirou por completo o vestido e o espartilho, deixando-a apenas com
as roupas de baixo. Colocou-a na cama, certificou-se de que estivesse aquecida.
Voltou para a sala, vagando de um lado para o outro, sentia-se impotente.
Não sabia como agir.
Procurou por papel e tinta, como de costume tentava organizar as
informações, como se a situação em que vivia fosse uma de suas engenhocas.
Viollet havia sido abusada, humilhada e carregava a culpa pela morte do marido.
Por mais que buscasse uma forma de ajudá-la, entendia, mais do que nunca, que
ela precisava de tempo para que todas as lembranças se dissipassem. Queria
persuadi-la e interrogá-la. Desejava saber o motivo que a levara a se casar,
entretanto sabia que não poderia. Paciência, John.
Acreditava que o conde de Devon não havia deixado muitos recursos,
também não deixara dívidas. Viollet tinha as joias que herdara da avó. Era um
pequeno tesouro. Por mais que John se esforçasse, não conseguia encontrar mais
nenhuma pista para decifrar o que realmente havia acontecido.
O sol aos poucos se despedia, ele não a acordaria. Esperou por tanto
tempo para ter algum momento a sós com Viollet, que se sentia realizado mesmo
que ela estivesse adormecida. Os passos de um criado, do lado de fora, chamou
sua atenção. Viu um rapaz franzino, que carregava duas cestas sem dificuldade.
Logo que abriu a porta, o rapaz se adiantou:
— Milorde, vim com a autorização da Sra. Turner. Pediu que trouxesse
esses suprimentos e perguntou se precisava de algo.
John rabiscou um bilhete para Lucy, pediu uma muda de roupa para
Viollet e, ao notar que uma tempestade se formava no céu, informou que era
certo que só voltariam na manhã seguinte.
O visconde sabia que não era certo passar a noite com ela, mas não seria
a primeira vez que dormiriam naquela cabana. Às vezes fugiam escondidos no
meio da noite. Entretanto naquela noite, haveria a anuência de seus pais. Viollet
já não era uma donzela, era uma mulher viúva. E, mesmo que seu corpo
implorasse para se deitar ao lado dela e reivindicá-la como sua, ele não o faria.
Não daquela maneira.
As palavras de Marie ecoavam em cada canto da cabana. Viollet estava
ferida, precisava de seu amor e aos poucos se abriria para que ele entrasse
novamente em sua vida.
Ele dispôs na pequena mesa os alimentos que Lucy havia mandado.
Presuntos, frutas, pães e pequenos bolos. Uma garrafa de vinho e ervas para
preparar o chá. Organizou da melhor maneira que conseguiu, não era uma tarefa
na qual tinha habilidade, mas se esforçou para surpreendê-la.
O tempo se fechava à medida que a noite caía. O criado voltou trazendo
o que seu senhor havia pedido. Naquela noite seria impossível não saborear o
bom e velho brandy. John estava tenso, precisava de alívio. E, mesmo que nos
últimos tempos estivesse arredio em relação a qualquer bebida, ao lado dela
sentia-se seguro.
Deixou a muda de roupas negras na cadeira, ao lado da cama. Viollet
dormia como um anjo. Os trajes do luto eram uma lembrança dos erros do
passado e do tormento do presente, mas John não desistiria de acreditar no
futuro.
Sentou-se no sofá saboreando um trago. A chuva caía como se lavasse e
levasse embora tudo que estava lá fora. Era um ritual de libertação, um sopro de
esperança para os dias que viriam.
O cavalete disposto na frente da lareira era um convite. Let sempre dizia
que as cores traduziam o que a alma suplicava. Ele começou a salpicar no canto
inferior da tela, pequenas pinceladas em tons de verde. Era um trabalho
demorado, desajeitado, mas de alguma forma John sentia-se bem repetindo
aqueles movimentos.
— Precisa variar o tom da tinta, mais claro, mais escuro. A sobreposição
confere profundidade.
Foi surpreendido pela voz de Viollet atrás de si, ela estava com os
cabelos parcialmente soltos, libertos da usual touca negra, estava envolta em
uma manta branca. Linda!
— Há roupas na cadeira e um bom brandy para nos aquecermos.
— Três quartos — ela zombou ao conferir o nível da garrafa.
Viollet voltou para o quarto, enquanto John continuava seu trabalho
tentando misturar a tinta. A viúva voltou vestindo um pesado penhoar de veludo
preto. Ela se aproximou e começou o trabalho, as mãos habilidosas preparavam
inúmeros tons de verde com tanta precisão, que John deu um passo para o lado
para admirá-la.
— Estamos presos? Não acha que deveríamos voltar a tempo para o
jantar? — Ela continuava a misturar a tinta de forma habilidosa, enquanto olhava
pela janela.
— Lucy mandou um jantar improvisado, acredito que não se importarão
com nossa ausência. A chuva foi uma boa aliada para que tivéssemos uma noite
de refresco.
— John, eu...
— Jack, para você sempre Jack. — Ele retirou uma mecha de cabelo que
havia escorregado pela face dela. — Let, é como voltar no tempo. Amanhã
vivemos a triste e dura realidade. Hoje não. Vamos pintar, tomar brandy como se
estivéssemos muitos anos atrás.
Viollet sorriu e, sem conseguir se conter, passou o dedo sujo de tinta na
ponta do nariz de John.
— Isso não — ele pediu bem próximo, tentando conter o impulso de
beijá-la.
— Achei que hoje podíamos fazer de tudo — falou um pouco
encabulada, servindo a bebida para os dois.
— Tudo que a faça sorrir, nada mais.

Capítulo V

Desde a noite que passara na cabana com Jack, havia dois dias, Viollet
não estivera a sós com ele novamente. Ele não fora até seu quarto, sequer tentara
uma aproximação. Sabia que era o correto a fazer, fora um acordo, a noite na
cabana era apenas uma doce lembrança do que foram um dia. Talvez um ponto
final, e não a vírgula que seu íntimo tanto desejava.
Era véspera de Natal. Flora e Ann cantavam e tocavam canções típicas,
enquanto Thomas, o marquês de Bristol, embalava o filho nos braços. Anthony,
Lucy e o duque apreciavam a melodia, enquanto do outro lado Sarah e John
conversavam. Viollet se mantinha reservada no canto da sala.
— Ela está olhando — Sarah falou tentando ser discreta. — Não sei o
que está fazendo, mas parece que está dando certo.
— Papai falou que devo mudar a estratégia. — John se ajeitou de forma a
parecer confortável. — Estou fazendo exatamente o contrário do que tenho
vontade, mas não vi nenhum resultado.
Sarah balançou a mão no ar.
— Como pode ser tão cabeça oca? Pelo visto deixou de procurá-la.
— Não parece óbvio? — respondeu irritado. — Pelo que sei foi
exatamente assim que conquistou seu marido.
— E acha que ela procuraria você? — A marquesa colocou as mãos na
cintura. — Você tem que estar presente sempre que ela precisar. Quando ela for
cair, é você que tem que salvá-la.
— Sarah, como pode ser tão frustrante? Se ela mal sai do quarto, como
vou salvá-la de uma queda?
— Coloque uma pedra no caminho. — A marquesa piscou deixando o
irmão ainda mais confuso.
John temia pelo seu autocontrole, paciência era uma habilidade que não
possuía. Caminhou até as escadas e sentou-se no primeiro degrau. Retirou da
casaca o presente que Lucy havia lhe dado, um relógio de bolso. Não se tratava
de uma peça cara, mas era bem-trabalhada. Pertencera ao pai dela, que lhe dera
no Natal, antes de se casar. Seria um sinal?
Os longos dedos acariciavam a peça. Girando a coroa, brincou com o
tempo. Viu-se desejando que aquele objeto lhe transportasse para o passado ou
para o futuro. O último lugar em que queria estar era o presente. Este necessitava
de perseverança, paciência e tranquilidade, qualidades as quais John tinha
certeza de que, por mais que se esforçasse, nunca teria.
Debruçou-se sobre os joelhos, sem ânimo para participar das
festividades, queria estar ao lado de Let. Tocando sua mão, compartilhando
sorrisos como na noite que passaram na cabana.
— Um xelim por seus pensamentos — a voz suave que ele tanto desejava
o chamou.
— Gostaria de trocá-los por outra coisa.
Viollet olhou para baixo, e por um instante John temeu ter se excedido,
entretanto, quando ela ergueu a face, ele viu o vislumbre de um sorriso travesso.
— Tenho um presente de Natal para você — ela confidenciou. — Está na
cabana, terá que ir buscá-lo amanhã de manhã.
Naquele instante, tudo se iluminou. Era ela que lhe dava esperanças, que
o tornava forte. O olhar astuto, o sorriso contagiante, as respostas inesperadas,
era ela.
— Não se atreva a sair daqui — ele ordenou.
Por um instante Viollet pensou que Jack correria até a cabana, mas ele
andou apressado na direção oposta. Voltou poucos minutos depois com uma
trouxa na mão, mas ela nem teve tempo de perguntar o que era. John a pegou
pelo pulso e a puxou para fora. A noite fria era cortante, sequer havia uma capa
para protegê-la da névoa.
— Vai precisar correr! — John gritou enquanto acelerava os passos.
— O que está fazendo? É Natal, estão todos lá dentro.
— Não sou obrigado a ficar ouvindo os malsoantes de Flora e Ann.
Quando souber que elas estouraram os vidros da sala, irá me agradecer ter
poupado seus ouvidos.
— Elas não são tão ruins assim — começou a correr para evitar ser
arrastada.
— Tem razão, elas são péssimas, conseguem ser piores que você. — Ele
se virou sorrindo. — Corra na frente. Se deixar que eu a pegue, terá que acender
a lareira.
— Não, Jack! — Viollet acelerou gargalhando, conhecia bem aquela
brincadeira.
Ele era capaz das piores trapaças. Certamente jogaria água nas lenhas
para que ela não conseguisse. Estava frio, mas aos poucos a adrenalina
dominava. O espartilho dificultava seus movimentos, mas ela se esforçava. Era
libertador correr até a cabana. Algo tão tolo, mas tão cheio de significados.
Quando chegaram ao portão do jardim, ela levantou as mãos rendida.
Jack entregou-lhe a trouxa de comida que carregara pelo trajeto e destravou a
porta. Estava escuro e a neblina dificultava a visão, entretanto já tinham se
acostumado a seguir a trilha de pedras. Caminharam um ao lado do outro até
John perceber que Viollet ainda tentava recuperar o fôlego. Mais uma vez,
entregou a ela a trouxa e a carregou nos braços.
— O que está fazendo? — Deu um gritinho, surpresa, quase deixando
que a ceia caísse no chão.
— Desculpe a indelicadeza, por um instante esqueci que mulheres da sua
idade têm dificuldade de locomoção.
— Jack — ela deu um tapa no ombro dele —, não sou velha.
— Ah, é sim, uma verdadeira anciã — ele sorriu largamente — e quase
tão desafinada quanto a sua irmã.
John a carregou para dentro da cabana. Na verdade, sua vontade era
mantê-la nos braços todas as noites. Com certa dificuldade, abriu a porta e a
fechou com o pé.
— Pode me soltar agora — Viollet pediu com um discreto sorriso.
— Não quero soltá-la nunca mais. — Ele a olhou com intensidade.
— Jack... — Ela abaixou o rosto e ele a colocou no chão.
John se afastou e abriu a trouxa, colocando na mesa tudo que conseguira
pegar na cozinha. Pão, vinho do Porto, um pernil de cordeiro e velas. Viollet o
ajudou a dispor as velas, enquanto ele acendia a lareira.
— Deixei um penhoar, se quiser se trocar — ele informou, ainda
concentrado nas chamas. — Seu vestido deve estar molhado.
— Por que deixou aqui?
— Tinha esperanças de que voltasse a precisar. — Ele se levantou e
chegou bem perto. — Onde está meu presente?
— Atrás de você.
Ele não havia percebido o cavalete. Ansioso, retirou o pano que o cobria.
Era um retrato. Um retrato seu. Ela o havia pintado.
Apesar de Marie ter lhe contado que havia outras pinturas, aquele era o
primeiro que ele via. Era uma pista, um vislumbre de como Viollet o via. Tentou
interpretar nos sinais. O sorriso largo, talvez, denotasse a alegria que sentia em
sua presença; as pequenas marcas ao redor dos olhos, sobre as quais ela sempre
comentava, também foram reproduzidas.
— Let ...
— Espero que tenha gostado.
— Nunca tinha visto algo tão espontâneo, tão vivo. — Ele virou-se para
olhá-la. — Deveria tentar um autorretrato. Seria a mais bela das pinturas.
— Não tenho nada de belo para mostrar.
John não se conteve, a proximidade, a forma como o olhava. Daquela vez
seria um patife, não resistiria à vontade que o queimava feito brasa.
— Nem a mais bela flor poderia ser comparada a você. — Deslizou os
dedos sobre a face dela. — Nada do que já vi na natureza pode ser retratado
como o brilho dos seus olhos. — O polegar contornou preguiçosamente a boca.
— E nenhuma iguaria tem o sabor de seus lábios.
Viollet estava com os olhos fechados, entregue ao torpor provocado pela
voz e pelo toque de John. Nada mais existia, nem mesmo uma faísca de razão.
Sentiu os lábios de John sobre os seus, seu corpo a princípio enrijeceu,
mas a sensação de calmaria foi suficiente para que se entregasse e cedesse. Um
beijo lento, repleto de palavras não ditas. Um simples gesto que era capaz de
mostrar que seu coração ainda batia, mesmo que com um sopro de vida.
Ela não o abraçou, ele também não a envolveu entre os braços. O contato
se dava através de lábios, línguas, respirações. Ele gemeu, suspirando
profundamente e cessou a carícia. Let queria mais.
Antes de se afastar, John deu um beijo casto no canto de sua boca.
— Foi o melhor presente de Natal de toda a minha vida.
Ela o olhou, a confusão no rosto dela o fez ter certeza de que havia se
excedido. Viollet se afastou atordoada, e John a acompanhou enquanto ela
caminhava até a porta.
— Eu não podia, Jack. — A porta já estava aberta.
Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa para acalmá-la, ela partiu
apressada. John chegou até a pequena varanda, Viollet corria tão rápido que ele
temeu ter-lhe feito algum mal.
Tentou alcançá-la, não conseguiu. Desistiu ao vê-la entrar em casa.
Voltou para a cabana cabisbaixo.
Meia garrafa de vinho do Porto, amnésia providencial dos ensinamentos
de Anthony. O gosto doce ainda nos lábios, gravados para sempre em sua
memória. Mais um para sua coleção.
A única coisa que lhe restava era contemplar o retrato que ela havia
pintado. Jack pelos olhos de Let.

***


Nem todo o oxigênio do Reino Unido seria suficiente para amainar os
nervos de John. Já haviam se passado três dias desde a noite em que Viollet
fugira. Ela havia se trancado no quarto. Não saíra nem mesmo para compartilhar
as refeições.
Fora um beijo doce, e ele tinha quase certeza de que ela havia se
entregado; em sua memória um pequeno gemido de satisfação havia sido o
suficiente para encorajá-lo a prosseguir.
Mas ela havia fugido e se fechado. Talvez o beijo fora demais para ela.
Ele foi um patife. Deveria ter controlado os impulsos, embora soubesse que era
uma tarefa impossível.
— Não se culpe, meu amigo. Um passo de cada vez — Anthony
interrompeu seus pensamentos. — Talvez ela precise de um pouco mais de
tempo. Eu lhe disse que precisava ser paciente.
— Não há nada que possa fazer? — John perguntou impotente. —
Algum tratamento, qualquer coisa.
O médico sentou-se ao lado do amigo, em um dos bancos do jardim. O
céu estava cinza, e o inverno prometia ser rigoroso, mas nada importava. Mesmo
que sentisse o ar frio correr pelos pulmões, John não conseguiria ficar dentro de
casa controlando o impulso de adentrar os aposentos de Viollet.
— Existem algumas abordagens, mas acredito que não sejam
apropriadas, visto tudo que Lady Viollet passou.
— Do que está falando? Por que não tentamos? Lobotomia?
— Não há motivos para uma intervenção como essa. Pensei em uma
terapia muito usada para casos de histeria.
— O que é, Anthony? Precisa tentar.
— Trata-se de um estímulo corporal. Tem tido bons resultados.
— Então comece já. — John se colocou de pé rapidamente, havia um
sopro de esperança.
— Manipulação clitoriana — Anthony revelou receoso; os olhos
expectantes de John davam a entender que ele não compreendia do que se
tratava.
Anthony começou a explicar como funcionaria o tratamento. Consistia
em uma massagem nas partes íntimas. Enquanto ouvia o médico discursar com
propriedade, imaginou sua irmã, a doce e frágil Ann sendo acariciada. A imagem
do amigo tocando Viollet fez seu sangue ferver.
— Seu patife! — John desferiu um soco no médico. — Não vai encostar
na minha Let, está ouvindo?
Com a mão no olho ferido, Anthony cambaleou tentando se levantar.
— Calma, John, é muito usado e tem bons resultados. É tratado de
maneira profissional e como disse...
— Profissional! — A gargalhada maquiavélica de John fez o médico dar
um passo atrás. — Tão profissional que você e Ann vão se casar. Foi isso que fez
com minha irmã?
— O que está acontecendo aqui? — Lucy, com as mãos na cintura e
cenho franzido, interrompeu a discussão.
— Ann precisa casar antes de a temporada começar — John falou
olhando diretamente para Anthony. — Não admito que a reputação de minha
irmã seja maculada.
— John, entre — Lucy ordenou com o tom firme.
— Até a hora do jantar, quero que adiante a data do casamento. E não
encoste um dedo em Viollet, ou serei responsável pela viuvez de minha irmã
antes mesmo de ela se casar.
Anthony tentou argumentar, mas Lucy lhe pediu que esperasse John se
acalmar e garantiu que ela mesma conversaria com ele.


Capítulo VI

Pela sacada de seu quarto, Viollet acompanhou a diligência se aproximar.
Apesar do frio, era reconfortante contemplar a paisagem de Lilleshall. A viúva já
não tinha forças para lutar contra os pensamentos. O beijo que dera em Jack
desencadeara uma série de lembranças boas e más. Em seu íntimo acreditava que
todo matrimônio era constituído da mesma matéria.
Mulheres submissas, sofrendo agressões físicas e psicológicas. O ato
conjugal era um sacrifício ao corpo feminino. E, mesmo que Jack tentasse
convencê-la de que poderia ser diferente, jamais se enganaria. Sabia bem o que
vinha depois. Homens sentem prazer ao ver suas mulheres fragilizadas, ao seu
comando.
Respirou fundo, não queria se martirizar. Estava decidida, permaneceria
de luto até o fim de seus dias. Mesmo que, diante de sua situação financeira,
conseguisse uma autorização, não se casaria novamente.
Ainda na sacada de seus aposentos, Viollet viu o exato momento em que
os Baldwins chegaram. Estava feliz em poder rever Marie e o pequeno Paul. O
menino lhe traria animação. Cogitou a hipótese de levá-lo ao rio.
Animou-se com a ideia de um passeio, entretanto qualquer pensamento
se esvaiu quando viu aquela mulher descer da carruagem. O primeiro-ministro a
ajudou.
A brasileira! Viollet constatou assim que a viu. Ela usava um vestido
desapropriado para a longa viagem. O tecido caro, de tonalidade verde, era forte
demais para os padrões e principalmente para uma dama solteira. Contudo, não
podia negar que a incurial escolha ressaltava ainda mais sua exuberância.
As flores de seda, adornadas com plumas, em seus cabelos chamavam
atenção, não só pela beleza do arranjo, mas Viollet se perguntou como a
brasileira conseguira manter o penteado intacto ao longo de toda a viagem.
Talvez fosse obra da criada que inaceitavelmente estava na mesma carruagem. A
estrangeira não tinha a elegância clássica britânica, mas tinha algo mais que
Viollet não sabia explicar.
Movida pela curiosidade, resolveu sair do quarto, depois de dois dias
trancada. Pelos corredores da criadagem, atravessou até a estreita escada que
dava na biblioteca. Precisaria passar por uma única porta para que conseguisse
estar na sala a tempo de ver a estrangeira de perto.
Não queria ser vista, participar da recepção dos convidados não estava
em seus planos. Bastaria um passo na hora certa para, da porta, esconder-se atrás
da cortina. Não era a primeira vez que fazia aquela traquinagem. No passado, ela
e John fugiam assim, primeiro se escondiam entre a panaria, para depois utilizar
as passagens de acesso. Um ritual saudoso, cheio de boas recordações.
Ouvia cumprimentos calorosos e, pelo buraco da fechadura, pôde
calcular o momento exato de entrar no cômodo e se esconder.
Esperou alguns instantes enquanto Lady Baldwin exibia a Filha para
Lucy. Quando as senhoras deixaram a sala, Viollet deu a primeira espiada. Sarah,
Ann, Marie e a brasileira comungavam dos deliciosos biscoitos que a marquesa
preparava.
— Onde está Viollet? — Marie perguntou curiosa.
— Tem se sentido indisposta. Ficou reclusa logo depois do Natal — Ann
se adiantou.
— Ann, estamos entre amigas. — Sarah balançou a mão no ar. — John
deve ter enfiado os pés pelas mãos.
Constrangida com a falta de modos da irmã, Ann tentou manter o tom da
conversa agradável.
— Izadora, como é bom recebê-la. Marie fala tão bem de você que estou
ansiosa para passarmos algum tempo juntas.
De alguma forma a proximidade entre Marie e a estrangeira incomodou
Viollet.
— Soube que veio para temporada, é bom que saiba que as perspectivas
de encontrar um nobre interessante são baixas — Sarah avisou. — Para que
possa avaliar a má qualidade dos homens disponíveis no mercado, John é
considerado o melhor partido. Claro que existe o primeiro-ministro, mas o patife
do meu irmão é sem dúvidas o mais bem-cotado.
— Sarah! — Ann a recriminou. — O que Izadora vai pensar de nós?
— Que finalmente encontrei pessoas espontâneas em meio às regras e
códigos.
Ao ver os sorrisos sinceros para a espirituosa Izadora, foi impossível que
Viollet contivesse a própria diversão. Jamais admitiria, mas gostava da
estrangeira.
O clima leve entre elas era acolhedor; ao fundo podia ouvir Flora,
praticava piano na sala de música.
Viollet decidiu voltar para seu quarto, embora a vontade de permanecer
ouvindo a descontraída conversa fosse tentadora. Ao dar um pequeno passo para
o lado, sentiu um vulto e algo chocando contra si.
— Shhhhh! — A mão de John cobriu sua boca com delicadeza.
Ele se inclinou e falou baixinho ao seu ouvido.
— Se fizer qualquer barulho, seremos descobertos.
— Preciso voltar para o quarto.
— Antes, tenho algo para lhe mostrar.
Em perfeita sincronia, puxaram a cortina discretamente e passaram pela
porta escondida. Viollet caminhou em direção à escada que dava acesso aos
quartos, mas John a puxou, levando-a para o jardim lateral.
Sem contestar Viollet acompanhou os passos firmes e determinados dele.
Não teve tempo de opor-se, sequer se arrependeu ao ver o pequeno canteiro de
cravos em flor.
— Você sempre admirou o fato de que florescessem no inverno. — Ele
se colocou atrás dela, deixando seu corpo próximo, mas distante o suficiente
para tocá-la.
— São lindos. — Let admirou a profusão de tons de vermelho e rosa. —
Lembra do que disse? As cores devem imitar a natureza. — Ela se abaixou e
tocou uma das flores. — Do branco ao vermelho, a transição é tão sutil que nem
conseguimos perceber.
— Um deleite aos olhos em um tempo tão frio. — Ele estava ajoelhado
ao lado dela.
John colheu um cravo branco e Viollet segurou sua mão.
— Não faça isso. — Mesmo que tentasse não conseguiria impedi-lo.
— Para que servem as flores, senão para alegrar? — De forma cuidadosa,
porém desajeitada, ele enfeitou os cabelos de Viollet.
A viúva se levantou, temia que ele se aproximasse ainda mais. Não
estava pronta para qualquer contato.
— Preciso subir.
— Claro. — Ele fez uma mesura ainda de joelhos. — Nós nos vemos no
jantar.
Ela não respondeu, sequer sabia se desceria para o jantar. Precisava
voltar para o quarto, orar e tentar colocar os pensamentos em ordem.
***
A viscondessa Viúva sentia falta dos jantares festivos em Lilleshall. Em
especial aqueles de que Lucy participava. Lady Cécile Baldwin era uma mulher
incrivelmente graciosa e nunca escondeu sua afeição pela governanta. O duque
de Sutherland ficava visivelmente mais feliz e descontraído na presença da
amante. A relação entre Augustus e Lucy era algo que Viollet sempre admirara.
Não conhecia cumplicidade igual. Acreditava que não compartilhavam o leito,
ficando ela livre das obrigações matrimoniais.
Se houvesse qualquer possibilidade de manter um casamento sem
interlúdios íntimos com Jack, talvez não tivesse tanto medo. Aceitaria o pedido
de casamento antes mesmo de concluir o segundo ciclo do luto. Afinal, era
desprovida de qualquer recurso, salvo as joias que herdara da avó, que seriam
destinadas ao dote de Flora.
Uma dama viúva que não tivesse recursos poderia casar-se novamente,
como um meio de se manter. Não seria difícil passar pelos bons olhos, uma vez
que as dívidas de seu pai lhe deixaram sem nada. Mas não, definitivamente
sucumbir ao desejo insano de compartilhar seus dias com Jack não era uma
opção. Jamais permitiria que qualquer homem a tocasse de novo. Seu corpo era
manchado pelas marcas que Phillip deixara e pelo crime que ela cometera.
— Viollet, querida — a voz doce e suave de Lady Baldwin a trouxe de
volta para o jantar. — Não vai se juntar a nós para um chá?
A comida quase que intocada já não estava a sua frente. Viollet não
percebera que a refeição já havia terminado e que os cavalheiros aguardavam
que as damas deixassem o local. Poderia ficar, sabia disso. Em Lilleshall não
havia convenções a ser seguidas. A própria marquesa discursava sobre política,
Sarah era habilidosa com as palavras. Todos os presentes a ouviam com dedicada
atenção, inclusive a estrangeira, que na ocasião optara por um modelo muito
elegante. Viollet desconfiava que todo o enxoval de Izadora fora especialmente
desenhado por Marie.
Acompanhou Ann, Flora e Marie até a sala íntima. Sentaram-se afastadas
de Lucy e de Lady Baldwin. Ann as surpreendeu iniciando a conversa:
— Não acho que devo esperar até meu casamento para me entregar para
Anthony. — O constrangimento de Viollet era visível. — Apesar da pressão que
John fez para antecipar o casamento, acho que um mês ainda é um período muito
longo. Sinto falta dos toques...
Viollet rapidamente buscou um bordado na cesta e tentou se concentrar
em outra coisa. Era um bordado de Flora, conhecia os pontos relapsos da irmã.
Ponderou se não estava sendo permissiva demais ao deixar que ela dedicasse
tanto tempo ao estudo de política sob as orientações de Sarah.
— ... tenho certeza de que, se anteciparem o casamento, seu pai não irá
se opor — Marie falava com tranquilidade.
Por mais que Viollet não desejasse ouvir aquela conversa, era impossível.
— Anthony me faz sentir viva, pensei em levá-lo até a cabana do jardim
secreto. Foi lá que Lucy e papai começaram a flertar.
— Ai! — A agulha havia perfurado o dedo de Viollet, e ela o levou à
boca.
Pensou em se levantar e se retirar, mas viu na porta, adentrando a sala,
John e a brasileira, que conversavam animadamente. Respirou fundo, de alguma
maneira sabia que precisava controlar o impulso de se recolher.
A estrangeira, voluptuosa, cheia de encantos, estava no mercado de
casamentos, e John era o herdeiro de um duque, um partido bem-cotado para a
temporada, como a marquesa havia ressaltado. Mas ele não frequentaria os
bailes, não é mesmo? A conversa que antes a perturbava, naquele instante,
mesmo que se esforçasse, Viollet não conseguiria ouvir.
Não achava possível que não tivessem orientado Izadora para que não
tocasse os cavalheiros enquanto conversava. O toque era uma demonstração
íntima, não para pessoas que acabaram de se conhecer.
Jack sorria, estava se divertindo, patife. Quando a brasileira deixou cair
chá no vestido, ele prontamente ofereceu um lenço. Viollet não suportaria ficar
mais um minuto sequer naquela sala. Sentia-se sufocada.
Pediu licença educadamente e caminhou até a sala de música. Gostava
daquele piano, embora não tocasse muitas músicas. Havia uma em especial que
apreciava. Aprendera ainda menina, com a mãe. Os dedos longos deslizaram
sobre as teclas. Ela testou o som, fechou os olhos e deixou que a melodia a
conduzisse.
Um quarto de hora havia se passado, já era a terceira melodia que ela
dedilhava. Havia se esquecido de que seu repertório não era tão limitado. O
banco largo num instante pareceu estreito e a música ganhou outros acordes.
Era ele! Jack se juntara a ela e juntos tocavam em perfeita harmonia.
Enquanto aguardava o fim da melodia, Viollet pensava em como resgatar
a conexão que tinham. Queria provar para si mesma que o que havia entre eles
era muito mais forte do que uma conversa despretensiosa com Izadora.
— Você estava errado — Viollet falou assim que terminaram.
— Do que está falando?
— Das flores, elas não servem só para alegrar. Existem inúmeros
significados ocultos por trás de cada uma delas.
— Assim como os leques? — O amplo sorriso, que destacava as marcas
dos olhos, estava lá, e ela percebeu que não o havia perdido ainda.
— E várias outras coisas.
— Uma tolice infundada. Os significados foram criados para dizer o que
não pode ser dito. E sabemos que entre nós não existem restrições de
comunicação.
— É verdade. — Ela fitou os dedos no colo. — O que achou de Izadora?
— Uma dama misteriosa. Entende de negócios e discursa com maestria
sobre movimentos abolicionistas. Foi a atração do jantar.
Viollet sentiu a boca seca, fechou a tampa do piano com cuidado e
colocou as mãos no colo.
— Bem, preciso me deitar. Se o tempo estiver bom amanhã, quero levar
o pequeno Paul para um passeio no rio.
— Posso acompanhá-la até seus aposentos, milady? — John fez uma
reverência galante.
— Não é preciso. Sugiro que volte para a sala, talvez a senhorita Izadora
tenha casos interessantes a contar. Com licença.
Quando chegou a seu quarto, estava ofegante; naquele momento
percebera que havia corrido, algo completamente deselegante e inapropriado.
Um comportamento típico da estrangeira, que ainda por cima era inteligente.
Sentiu os olhos arderem. Havia dias não chorava, entretanto não seguraria mais;
nem que quisesse jamais controlaria a dor pulsante. John não ficaria solteiro. Ela
o perderia. Perderia para uma mulher fora dos padrões ingleses, uma brasileira.
Mais tarde naquela noite, do outro lado do casarão, a brasileira em
questão folheava uma publicação antiga na biblioteca, enquanto ouvia as duas
damas decidirem seu futuro.
Mesmo que John não quisesse ouvir, foi impossível. No momento em
que atravessava a passagem dos criados, a conversa animada de Sarah e Lady
Baldwin chamou sua atenção. Em um misto de curiosidade e hábito, abriu a
porta de acesso, colocando-se atrás da cortina. De onde estava podia ver Izadora,
que não parecia aprovar o estratagema que Sarah propunha.
— Vi como Edward a olhava no jantar. Ele tem interesse, talvez precise
somente de um empurrãozinho. — Ela estava entusiasmada e isso fez com que
John levasse a mão à testa.
— Também sinto o interesse de meu filho, mas Edward é teimoso como
uma mula. — Lady Baldwin mais uma vez sucumbia às insanidades de Sarah. —
Acha que John aprovaria?
— Gostaria de ser consultada. — Izadora fechou o livro. — Não acredito
que essa ideia possa surtir algum efeito. Edward não aceitaria qualquer mulher
que fugisse dos padrões ingleses.
— É aí que está a questão. Se outros cavalheiros se interessam por você,
ele verá com mais clareza seus atributos e perceberá que os padrões ingleses são
enfadonhos e previsíveis — Sarah ponderou.
Achando graça na conversa e curioso com sua participação no plano da
irmã, John decidiu que não ficaria nas sombras. Para a surpresa das damas
presentes, afastou a cortina, deixando todas perplexas, exceto sua irmã, que já
estava acostumada com as aparições inesperadas dele.
— Qual é o seu plano, Sarah?
— Sente-se, John. — A marquesa não era uma mulher que se intimidava
com facilidade e ele sabia bem disso; aceitou o convite com uma expressão
curiosa e ligeiramente sarcástica, encorajando-a a continuar. — Viollet precisa
de uma pequena ajuda para voltar a viver. Não que eu a julgue uma mulher de
bom gosto, mas é notório que você é o único capaz de fazê-la voltar a sorrir.
Lady Baldwin, com toda sua delicadeza, interveio:
— John, meu querido. Izadora tem um interesse particular em Edward.
Mas meu filho precisa enxergar que ela é...
— O que os ingleses têm que não conseguem se comunicar diretamente?
— Izadora falou impaciente. — A ideia de Lady Baldwin e Lady Hervey é
fingirmos interesse mútuo para que a viscondessa viúva e o primeiro-ministro
sintam-se enciumados.
A brasileira era uma mulher direta, e ele aprovou isso.
— Pode funcionar. — John coçou o queixo lembrando-se do comentário
enciumado de Viollet na sala de música.
— E o que sugere? — Izadora perguntou, intrigada com a inesperada
resposta.
— Vamos dar uma volta. — Ele se levantou e lhe ofereceu a mão, para
ajudar Izadora a se levantar. — Talvez as damas estejam interessadas em bordar
cueiros, ou em se recolherem. Afinal cuidar da vida alheia é algo inerente às
damas inglesas, o que as torna enfadonhas e previsíveis.
E, antes que Sarah pudesse soltar impropérios, o casal mais improvável
de toda a temporada deixou a biblioteca. John levou a brasileira para o gabinete
do pai, sabia que seria o melhor lugar para que pudessem acertar os detalhes
daquele acordo.
— Pelo pouco que vi, parece que não sucumbiria às ideias de minha
irmã.
Izadora sentou-se antes mesmo que ele oferecesse; ela o avaliou.
— Primeiro preciso saber quais são seus reais interesses em relação à
viscondessa viúva.
John coçou o queixo, constatou que a sua frente estava uma dama
determinada, que parecia saber bem o queria.
— Conheço Viollet desde que éramos crianças. — Ele sorriu saudoso. —
Apesar de ser três anos mais velho, sempre tivemos algo diferente. No início
achei que fosse um sentimento fraternal, mas, à medida que crescemos, percebi
que não existiria nenhuma outra mulher em minha vida.
— Está dizendo que nunca manteve relações com outras mulheres? — A
brasileira se inclinou curiosa.
— Sou um cavalheiro e tenho necessidades. Não que isso seja algo a ser
discutido, em especial com uma dama. Mas sim, durante muito tempo me
guardei para Viollet, cheguei a ir ao maior antro de Paris e me mantive firme,
pois sabia que ela me esperava. Mas ela se casou com o maior patife de todo o
Reino Unido. Depois disso, perdi o controle de tudo em minha vida.
— Quantas mulheres?
— O que é isso? Uma inquisição?
— Preciso saber se está apto para me ajudar.
— Três ou quatro, em completo estado de embriaguez — ele falou
cabisbaixo, com o orgulho ferido. — Somente as mulheres que se parecessem
com ela, mas nenhuma se compara à Let.
John fitou o tapete, nostálgico; confessara para aquela estrangeira o que
poucos sabiam.
— Acho que, se vamos fechar um acordo, precisamos ser honestos um
com o outro. — Ela se levantou e caminhou até a janela. — Não vim à Inglaterra
para a temporada, foi uma desculpa. Tenho algo realmente importante a fazer
aqui. — Voltou caminhando até a poltrona e sentou-se. — Não negarei meu
interesse por Edward, já o conheço há algum tempo. Nossas famílias são sócias
na extração de ouro.
— Por que veio então?
— Acho que será melhor para você não saber. — Ela cruzou os braços no
colo. — Não é segredo a admiração que Edward nutre por sua irmã. Mesmo que
ela esteja casada e pareça bastante feliz, acredito que o primeiro-ministro a tenha
como um modelo. Um padrão de dama perfeita.
— Sarah está longe disso — John garantiu. — Mas pode tomar aulas,
seguir um conjunto de regras não é algo com que vá ter dificuldades.
— Aí está a questão, quero aprender os costumes ingleses, mas para usar
o que me convier. Quero Edward caso ele me aceite como uma dama imperfeita,
e não como um padrão pré-determinado. A própria rainha, em seu íntimo, não
segue todas as convenções.
— Você o ama?
— O suficiente para cogitar a hipótese de me casar.
John se levantou.
— Izadora, acho que posso chamá-la assim. Edward Baldwin é um
grande amigo, alguém importante, que me estendeu a mão quando eu só
enxergava escuridão. Eu não aceitaria um acordo com alguém que não o amasse
o suficiente para fazê-lo feliz. — Tamborilou o braço da poltrona. — Suficiente
não é algo que caracterize o amor.
— Lorde John, não se pode alimentar um amor que não tem perspectiva
de futuro. Não posso me permitir devanear sobre meus sentimentos tornando-me
cega e tola. Sua irmã fechou Edward para todas as outras mulheres. Não posso
passar o resto de minha vida infeliz e suspirando caso ele não corresponda ao
meu interesse. Tenho vinte e um anos, poderia ter me casado com qualquer
homem no meu país, contudo estou disposta a tentar fazer com que ele me veja
com outros olhos. Para uma mulher como eu, isso é mais do que suficiente.
Naquele momento John percebeu que estava diante da mulher mais
determinada e sensata que conhecera. Nem Sarah era capaz de tratar os assuntos
do coração de maneira tão prática.


Capítulo VII

Na manhã seguinte, Viollet resolveu encurtar o passeio. Não se sentia
preparada para trazer à tona emoções do passado, e ir até o rio lhe traria
dolorosas e doces lembranças. Jack tinha o poder de ferir e acalentar, de fazê-la
acreditar na felicidade e ao mesmo tempo lembrá-la de que não era merecedora.
Lady Baldwin, Lucy e Marie caminhavam logo à frente, enquanto o
pequeno Paul se distraía com as pedras e gravetos pelo caminho.
— Faço questão de desenhar o vestido de seu casamento — Marie
anunciou logo que Lady Baldwin comentou que, em breve, Lucy se tornaria uma
duquesa.
— Não tenho pressa, minha querida. Ainda me preocupo com John — a
governanta confessou enquanto pegava uma pedra para o menino. — Ele precisa
de uma ocupação, cuidar dos negócios, interessar-se por política.
— Talvez, se Edward o convidasse para trabalhar em seu gabinete... —
sugeriu Lady Baldwin.
— Lorde John gosta de modernidade, do funcionamento das coisas —
depois de se manter por quase todo o passeio quieta, Viollet se manifestou.
— E se ele ajudasse na tecelagem? — sugeriu Marie. — Confesso que
fiquei lisonjeada quando Sarah me deu parte do negócio que ganhou de Lorde
Granville, mas não sei bem o que fazer. Tenho o trabalho no atelier, Paul, o
casamento, David.
— Se ele tiver opções, talvez se interesse em se fazer útil. De qualquer
maneira, vou esperar até que ele se case — confessou Lucy.
Viollet preferiu não participar mais da conversa. Pensar no casamento de
John não era algo que poderia fazer com facilidade. Aos poucos ela se
aproximou de Paul e viu que Lady Baldwin e Lucy seguiam na direção oposta.
Caminhou entre as árvores, contemplando a criança, que se divertia. Recostou-se
a um robusto tronco e percebeu que não estava sozinha. Apesar de desejar
manter-se reclusa, aos poucos se entregou à conversa.
— Como tem passado? — Marie perguntou para a amiga.
— Estou bem, gosto de Lilleshall — Viollet se limitou a dizer.
Marie se recostou ao seu lado, parecia medir as palavras.
— Viollet, John parece nutrir um sentimento profundo.
— Não é fácil... — Deu um longo suspiro.
— Sei que não. — Marie ofereceu um meio sorriso. — Desculpe, não
queria ser invasiva.
— Como consegue deixar que outro homem a toque? Vai se casar, terá
que cumprir com suas obrigações matrimoniais.
— Assim como você, eu conheci o lado sujo do leito conjugal. Mas aos
poucos David me mostrou que tudo podia ser diferente, eu desejo que ele me
toque.
— Também tenho vontade de tocar John, mas não consigo. — Esfregou
os olhos teimosos, que insistiam em deixar as lágrimas escaparem. — Toda vez
que ele chega perto, tenho medo do que acontecerá depois. Não me sinto
preparada.
— John a ama e, embora se mantenha fechada, posso ver que seus
sentimentos por ele não são diferentes. Ele saberá esperar por você.
— Não é justo, John merece ser feliz. Não vê a pressão que ele sofre para
se casar? Lucy espera por isso. — Ela parou por alguns instantes. — Ele tem
necessidades que não posso satisfazer. — Ouviu um trotar e involuntariamente o
procurou. — Já passou da hora de Lucy se tornar a duquesa de Sutherland, tantos
anos...
O pequeno Paul começou a correr pela estreita trilha, em direção aos
cavalos. Marie se adiantou para pegar o filho. Viollet se manteve no lugar.
Estava apreensiva, mas não pelo menino, que naquele momento já estava nos
braços da mãe. Conhecia aquela melodia. Era ele.
Fechou os olhos buscando qualquer resquício de sanidade e razão; ao
abri-los sentiu uma pequena pontada. Jack não estava sozinho, estava com ela.
— Bom dia, miladies.
John as cumprimentou como um perfeito cavalheiro. Apeou e ajudou
Izadora a desmontar. Amarrou habilidosamente os animais na árvore, enquanto a
brasileira o observava com desnecessária atenção.
Farta de contemplar a instantânea conexão que demonstravam, Viollet
decidiu voltar para casa, entretanto foi surpreendida pela presença da brasileira
insolente, que caminhava ao seu lado.
— Não tem vontade de usar lavanda ou cinza? — Izadora perguntou de
forma descontraída.
— Não é apropriado, com licença. — Rapidamente colocou o véu sobre a
cabeça.
Fora ríspida. Não se importava. Quem aquela mulher pensava que era
para sugerir-lhe o que vestir? Se ela queria fisgar um bom partido e se tornar a
viscondessa de Trentham, que se casasse com John, mas Viollet não era obrigada
a conviver com uma mulher que não tinha papas na língua.
— Espere — Izadora a chamou quando já havia certa distância entre eles.
— Está na hora de minhas orações.
Apressando ainda mais os passos, Viollet seguiu em direção à capela.
Diante do altar, colocou-se de joelhos. Não era digna de rogar por nada, mas
pedia a Deus que não a deixasse pecar mais. Que não lhe permitisse alimentar
raiva da mulher a qual John desposaria. Precisava de conforto, não queria desejar
mal à mulher que daria filhos a ele. Não seriam sujos de tinta, mas certamente
não obedeceriam aos padrões sociais.
O que fizera com a própria vida? Viollet se questionava tentando se
recordar do momento em que abandonara seus pensamentos livres para seguir à
risca a etiqueta. Quando fora que se perdera? Era a única pergunta que se
dignava a fazer, pois tinha a convicção de que já não encontraria a Viollet que
fora um dia.
Deus era misericordioso, Viollet sabia que só Ele poderia libertar seu
coração de tamanho egoísmo. Não era justo que John a esperasse. Não havia
garantias.
— No dia ao que caiu do cavalo, eu vim para cá. — John estava
ajoelhado ao seu lado. — Não me deixaram entrar no quarto, fiquei aqui pedindo
a Deus que você estivesse bem até a hora que todos estivessem dormindo, para
que eu pudesse entrar escondido.
— Ficou comigo a noite toda.
— Eu me escondia debaixo da cama toda vez que sua criada entrava no
quarto.
— Ela era chata, Sra. Lowel.
— Mereceu cada minhoca que colocamos em seu travesseiro.
— Isso nos rendeu dois dias de banho de rio sem sermos procurados. —
Viollet sorriu ao se lembrar. — Mas Lucy ficou muito brava.
— Ela é sempre muito brava comigo, somente Sarah sempre pôde fazer o
que bem quis.
— Não seja injusto. Lucy o ama e se preocupa com você.
— É a melhor mãe que alguém poderia ter. — Cansado de ficar de
joelhos, ele se sentou e Viollet o acompanhou.
— Talvez seja o momento de procurar Edward, como sugeriu. Lucy
precisa estar segura de seu bem-estar, para decidir se casar. — Arrependeu-se.
Estava procurando uma maneira de impedir John de se casar?
— Meu pai marcou uma audiência com a rainha. Acredito que vá
conversar sobre a possibilidade do casamento.
Viollet se levantou e ajeitou as saias.
— Achei que acompanharia a Srta. Izadora até o casarão.
— Não trocaria sua companhia por nada. Ainda tenho esperanças de que
aos poucos possamos voltar a ser o que éramos.
John fora sincero, a ideia de causar ciúmes em Viollet não lhe parecia a
melhor das estratégias. Em seu íntimo desejava que ela desabrochasse aos
poucos, sem planos mirabolantes ou qualquer estratagema. Esperaria o tempo
que fosse necessário.
— Não posso pedir que me espere. Seria injusto de minha parte. — Ela
pareceu ler seus pensamentos.
— Case-se comigo. Teremos tempo para nos acertarmos, prometo não
voltar a tocá-la a menos que me deseje.
— É bem mais complicado do que pensa. Não posso dar-lhe garantias,
Jack. Quando estou ao seu lado é como se nada mais existisse, mas há momentos
em que a culpa que carrego é maior que tudo isso. Não tenho direito de ser feliz.
— Talvez devesse se confessar... — John ponderou, mas não se conteve.
— Anthony falou de um tratamento, ele disse que o estímulo nas partes íntimas
pode ter algum resultado. Podemos tentar.
Viollet deu um passo atrás, assustada.
— Não quero que ninguém toque em mim — afirmou tomada pelo pavor.
— Não deixaria que ele a tocasse. Poderíamos tentar, depois que nos
casássemos.
— Nunca poderei lhe dar o que deseja, John — falou entre lágrimas. —
Não alimente esperanças sobre nós.
— Let — ele a chamou quando ela deixava a capela, apressada.
— Entenda de uma vez por todas, nunca mais seremos o que fomos um
dia.
Ele a viu se afastar, olhou para o altar buscando respostas, mas não houve
nenhuma. Somente a paz. Uma serenidade tamanha, que ele não saberia explicar.
Naquele momento Deus estava lhe concedendo a maior das dádivas; a paciência.

***

Augustus admirava Lucy com desmedida adoração. Mesmo que vivesse
mil vidas, jamais teria tanta sorte. A governanta, que era sua companheira havia
quase trinta anos, estava ainda mais formosa, a cada dia.
— Não me olhe dessa maneira Augustus, John em breve irá entrar.
— Estava linda na noite de Ano Novo, querida.
— Não comece de novo com isso, há três dias diz isso. Não vou mudar
de ideia. Temos assuntos a resolver.
O duque fez uma careta desgostosa, não pela chegada iminente do filho,
mas por se dar conta de que seus planos de agarrar Lucy no gabinete teriam que
ser adiados. Precisaria de muito mais do que um elogio.
— Precisa falar com ele. Não é certo com Viollet. — Ela bufou com certa
irritação. — Você é permissivo demais com Sarah, e até Lady Baldwin embarcou
nesse plano descabido.
— Eu diria insanidade, milady. — John entrou no gabinete do pai e fez
uma reverência exagerada para Lucy.
Augustus observou o filho beijar as mãos dela com demasiado carinho.
— Meu filho, precisa dar um fim a essa loucura — a governanta pediu,
pousando as mãos no joelho de John, logo que ele se sentou.
— Não que seja do meu agrado, mas não vejo maneira melhor. — John
coçou o queixo. — A cada vez que consigo me aproximar de Viollet, ela se
afasta ainda mais. E nos últimos dias, depois das festividades de Ano Novo,
obtive mais progresso passando mais tempo com Izadora do que tentando me
aproximar de Viollet.
— Ela está se sentindo insegura, teme perder sua amizade — a
governanta tentou argumentar.
— Izadora precisa de minha ajuda — confessou John. — É uma boa
moça, espirituosa, perspicaz, inteligente e parece ter sentimentos profundos por
Edward. Nessas últimas noites em que estivemos mais próximos, vimos que
Edward e Viollet de alguma forma se incomodaram com isso.
— Augustus, diga alguma coisa! — implorou Lucy.
O duque se recostou à cadeira, levando as mãos à nuca.
— Nesse ponto concordo com John. Izadora precisa de nosso filho para
conseguir ganhar a simpatia de Edward Baldwin.
— Mas e a pobre Viollet? Ela está sentida com essa aproximação. Não se
queixa, mal fala, mas eu percebo os olhares.
— Viollet olha para mim? — perguntou John esperançoso. — Izadora diz
que sim, mas...
— Não seja tolo, John. Sabe que os sentimentos dela estão confusos.
O duque, sabendo que aquela súplica perduraria por toda a tarde,
resolveu intervir.
— Minha querida, deixe que eu converse com John.
— Você não vai me enrolar, Augustus! — Estava brava, as mãos na
cintura denunciavam sua fúria.
Sem pensar duas vezes, ele se levantou e a abraçou com carinho,
sussurrando ao ouvido dela.
John observou a cena encantado com o poder que seu pai tinha de dobrá-
la. Viu Lucy resmungar, mas ela não demorou a deixá-los a sós.
— Como consegue? — questionou curioso, queria conseguir convencer
Viollet com pequenos gestos.
— Paciência e anos de prática. — O duque serviu duas doses de puro
malte e ofereceu uma ao filho. — Mas não se engane, meu filho. Elas sempre
sabem o que estamos fazendo, as damas são sábias, escolhem a dedo as batalhas
que valem a pena ser lutadas.
John saboreou o uísque enquanto ordenava os pensamentos.
— Pai, preciso saber o que aconteceu com Viollet. Sei que já pedi isso
inúmeras vezes, mas me sinto pronto.
— Já tentou conversar com ela?
— Não quero pressioná-la, sinto, nos momentos em que ela se afasta, que
eu disse algo que não devia. Talvez, se eu descobrisse o que aconteceu, o que a
levou a aceitar se casar com o patife do Phillip, possa tentar agir sem intimidá-la.
O duque passou as mãos pelos cabelos e franziu o cenho.
— No dia em que voltou de Cambridge e descobriu sobre o casamento,
eu tive receio de perdê-lo. Não havia mais nada que pudesse ser feito. Viollet já
havia se casado e estava decidida. — O duque levantou os braços em rendição.
— Eu tentei.
— Por favor, diga, qualquer coisa.
— Quando soube do casamento, fui atrás de Viollet, mas ela parecia
determinada. Não havia nada que eu pudesse fazer.
— Ela se casou quinze dias depois que o pai morreu.
— John, vi você bater a cabeça e me senti impotente, morremos a cada
dia que chegava carregado por Edward ou David. Você passava noites em frente
à casa dela, bebia até cair na rua, metia-se em brigas e apostas absurdas. Perdeu
quase todo o seu dinheiro, tentou tirar a própria vida e se envolveu com o que
não devia. — O duque retirou o lenço do bolso e passou sobre os olhos. — Tive
vontade de arrancá-la de lá, de trazê-la para casa. Viollet sempre deixou claro
que era uma decisão dela. Assim como você, eu estava disposto a fazer qualquer
coisa. Qualquer coisa que trouxesse meu filho de volta. — O duque se recostou à
cadeira. — Lucy me impediu, proibiu-me de continuar pagando suas dívidas de
jogo, disse que você precisava aprender com os próprios erros, que teríamos que
estar aqui para ampará-lo, mas não podíamos fazer o que você mesmo deveria.
Ela tinha razão. Você precisava enfrentar as próprias batalhas.
— Fui um covarde egoísta. — Bateu as mãos na mesa. — Pensava em
meu próprio sofrimento enquanto ele a espancava. — Apertou as mãos do pai.
— Preciso que me ajude.
— Não, não precisa. O que precisa é de meu apoio e isso sabe que
sempre teve, sempre terá. Esteve em Paris para tentar se recuperar do uso
abusivo de ópio, está indo muito bem, meu filho, mas Anthony diz que ainda há
um longo caminho.
John se levantou irritado.
— É um duque, pode conseguir todas as informações de que preciso.
— Sim, sou um duque! Carrego o título que herdará um dia. Não é o
morgadio que faz um nobre, é muito mais do que isso, e já passou da hora de
você se preparar para fazer jus ao nome de nossa família. — O duque se
levantou e colocou uma mão em um ombro do filho. — Estarei aqui, John, como
sempre estive. Você precisa abrir as próprias portas. Comece por Lorde
Granville, ele certamente terá informações para lhe dar.
— Mas...
— Seria hipocrisia dizer que recrimino você por tê-lo procurado e aberto
mão de sua herança em nome de sua mãe. Foi um ato nobre, honrado, e me
orgulhei muito disso. Mas Willian não é um inimigo, somos da mesma família.
John se levantou. Não retrucaria o pai, admitia que no fundo ele tinha
certa razão. Sua irritabilidade ainda era uma batalha a vencer. Por que havia de
ser tão difícil? Caminhou até a porta em passos duros.
— John — seu pai o chamava com doçura, e ao se virar John viu um
sorriso acolhedor. — Não termine seu acordo com Izadora, o plano tem dado
certo. — O duque abaixou o tom de voz e continuou. — Usei o mesmo
estratagema para conquistar Lucy, posso garantir que funciona.
De alguma forma, deixou o gabinete do pai um pouco mais confiante,
mas nem toda a certeza seria capaz de conter seu humor agastado.

***


Enquanto todos se preparavam para deixar Lilleshall e voltar para
Londres, John observava as novas máquinas que estavam sendo construídas em
um velho galpão, que havia virado uma oficina.
— Meu pai não disse nada. — John passou o dedo sobre a lâmina afiada.
— Você nunca se interessou pelos negócios da família — Sarah retrucou
balançando a mão no ar. — James Harris, o filho de um dos arrendatários de
Ickworth House, tem desenvolvido novos maquinários para melhorar a
produção.
— Sugeriu ao papai que comprasse? — John inspecionava as máquinas
atento a cada detalhe.
— É um arrendamento para teste, se ele gostar poderá encomendar.
— Está investindo em produção de maquinário agrícola também? —
John questionou a irmã, curioso.
— Não se iluda, John, uso saias. Embora a princípio essa fosse a ideia,
seria humanamente impossível. Preciso ajudar meu marido nos negócios, cuidar
da tecelagem e me dedicar à política; não sobraria tempo para administrar uma
fábrica de maquinário.
— Esqueceu-se de falar do pequeno Bronwen — John ponderou com
ironia.
A marquesa colocou as mãos na cintura, irritada.
— Não me venha dizer como devo ou não criar meu filho. Antes que
pergunte, Thomas e Bronwen não são trabalho, são minha família. Quero que
meu filho cresça vendo os negócios prosperarem.
— Apesar de achá-lo um tanto quanto novo para isso, não vou contestar a
maneira como cuida de seu filho. — John se abaixou mais uma vez para
examinar as engrenagens. — Essas lâminas não parecem seguras.
— Para utilizá-la será feito um treinamento.
— O próprio James Harris virá treinar os arrendatários?
— Está preocupado com as condições de trabalho, querido irmão? Estou
adaptando um projeto de lei menos abrasivo aos olhos dos nobres, podia me
ajudar.
— Talvez... não respondeu minha pergunta.
— Não, ele enviará alguém. Está empenhado na melhoria das máquinas
da tecelagem.
— Gostaria de conhecê-lo.
— Podemos ir até a tecelagem quando chegarmos a Londres.
— Será interessante. — John avaliava as máquinas com atenção.
Visivelmente intrigada com o comportamento do irmão, Sarah começou a
caminhar em direção à saída. John a acompanhou, entretanto, antes de deixar o
galpão, ordenou ao funcionário responsável:
— Não permita que ninguém as utilize enquanto o Sr. Harris não vier
inspecionar a montagem e treinar os arrendatários. Virei para acompanhá-lo.
A cabeça de John fervilhava de ideias, as máquinas eram interessantes,
mas não tinham muita segurança. Seriam necessários uma carcaça mais
resistente e treinamento adequado.
— John, está estranho — Sarah ponderou.
— Do que precisamos para desenvolver melhor essas máquinas?
— São testes, estão dando resultado em Suffolk — a marquesa garantiu.
— Não são seguras. A montagem tem que ser inspecionada de maneira
minuciosa e vi peças que não estavam devidamente presas.
— O que entende disso?
— Talvez nada, mas precaução nunca é demais. Quanto precisaria de
investimento?
— Quer investir em uma fábrica de maquinários? — Sarah perguntou
perplexa.
— Não tenho recursos para isso, não é segredo para ninguém que
consumi boa parte de minha fortuna — John falou. — Minha renda mal cobre
meus custos. Quanto?
— Preciso apurar melhor, não sei dizer ao certo.
— Sarah, os materiais não são de boa qualidade. Talvez as máquinas
durem somente um ano, sendo otimista, dois.
— É um investimento alto, não pode durar só isso. — Ela parou por um
instante. — Como sabe tudo isso?
— Uma das poucas coisas a que me dediquei nesses últimos anos foi a
paixão por construir coisas.
— O que construiu?
— Nada de importante, mas tenho alguns esboços.
— Estou assustada, não sei nada sobre você. — Sarah parou de andar.
John continuou andando, com as mãos nos bolsos, obrigando a marquesa
a acompanhá-lo.
— Há muito pouco tempo começou a olhar para o lado, querida irmã.
Passou quase toda a vida obcecada em se tornar a marquesa, em conquistar
Thomas, em ter influência no Parlamento. — Com uma expressão resignada,
continuou. — Confesso que me surpreendeu bastante nos últimos tempos,
começou a enxergar melhor o que acontece a sua volta.
— O sumiço de Marie...
— E de Viollet.
— Sei que não fui uma boa...
— Escute, Sarah, não estou recriminando você. Só estou dizendo que
estou orgulhoso da mulher que tem se tornado.
— John, eu... sinto muito.
— Talvez agora, mas não antes. Também tenho visto coisas que não
enxergava, ou que me recusava a ver. — Ele abaixou os olhos e respirou fundo.
— Tenho medo de ficar obcecado por Viollet assim como você era por Thomas.
Quero fazer algo mais. De qualquer maneira, preciso de dinheiro para manter
uma família.
— É o filho de um duque, o herdeiro. Tudo isso será seu.
— Um dia. Mas sinceramente espero que demore bastante. Nossos pais
merecem ser felizes, Sarah. Quero que vejam os netos brincarem em Lilleshall
por longos anos.
— Assim como você, John.
— Minha felicidade tem nome, mas a minha vida não pode ter mais.
Preciso tomar as rédeas. Quanto?
— Parece realmente interessado, terá que pedir dinheiro ao papai, ou...
— Ou...
— Aceitar minha sociedade. Talvez, se prometer ficar à frente dos
negócios, posso investir.
— Não sei se daria certo. É muito impulsiva.
— Escute, podemos fazer um teste. Ajude Harris com a maquinaria da
tecelagem, se conseguirmos trabalhar juntos pensamos em nossa sociedade.
— Pensarei no assunto. — O visconde sorriu brevemente.
Sarah se jogou nos braços do irmão e o abraçou com ternura.
— Não gostava de vê-lo do jeito que ficava.
— Não vou ficar mais.
— Se Viollet não ceder e....
— Isso não irá acontecer, Viollet vai se casar comigo. Sou irmão de
Sarah Anson, quero dizer Sarah Hervey, a marquesa de Bristol. Desistir não é
uma palavra que pertença ao nosso dicionário.

Capítulo VIII

Quando a diligência parou em frente à porta principal de Grove House,
Viollet suspirou aliviada. Os últimos dias em Lilleshall foram uma provação
divina. Presenciar a troca de amabilidades entre John e a brasileira sem modos
era muito mais do que podia suportar.
Como uma donzela podia usar cores tão fortes? Por que sorria tão
desinibida, sem se importar com o mínimo de decoro? Alguém deveria informá-
la de que não é elegante tocar no outro enquanto fala.
A simpatia de Izadora era irritante, tudo naquela estrangeira era
enervante. Esperou que o marquês, a marquesa e o herdeiro entrassem na própria
casa, para depois subir para seu quarto.
— Viollet, por que está tão nervosa? — Flora perguntou se fazendo
inocente, mas Viollet a conhecia bem, sabia que estava sendo testada.
— Não estou nervosa! — esbravejou.
Viollet teve vontade de olhar para trás ao ouvir uma risadinha da irmã.
Mas se conteve, estava ansiosa para se trancar em seus aposentos e ter um pouco
de tranquilidade. Testando ainda mais seus nervos, ao chegar à porta de seu
quarto, foi interpelada pela criada que lhe fora designada desde o dia em que
chegara àquela casa.
Não que a jovem tivesse algo que a desabonasse, era prestativa e discreta,
mas naquele momento a viscondessa viúva não desejava ajuda, nem mesmo para
retirar suas roupas negras de viagem. Dispensou-a com um toque de acidez e
abriu a porta, decidida a se manter reclusa; não se considerava boa companhia
nem mesmo para um gato.
Ao entrar no quarto, foi recepcionada pelos tons avermelhados do pôr do
sol. As cortinas estavam abertas. A panaria preta fora substituída por tons de azul
bem claros. A decoração do quarto mudara. Havia flores sobre a penteadeira, que
agora ostentava o polido espelho de cristal, completamente inapropriado.
— Desculpe não ter avisado. — Ela nem percebeu quando Sarah se
colocou ao seu lado.
— Não há do que se desculpar, eu é que tenho abusado de sua
hospitalidade. Imagino que minhas novas instalações sejam a casa de caça,
minha senhora.
— Viollet, está em casa em Grove House. — A marquesa colocou as
mãos em um ombro dela. — Quis que se sentisse mais confortável, trazer-lhe um
pouco de alegria.
Viollet não contestaria, deveria viver em um ambiente fechado e ornado
para abrigar uma mulher enlutada, mas ali não tinha o poder de opinar sobre a
decoração.
— A flores não fazem mal? — foi a única coisa que conseguiu perguntar.
— Bobagem infundada. — A marquesa balançou a mão no ar. —
Anthony garantiu que não fazem mal algum. — Ofereceu um sorriso acolhedor.
— Seu material de pintura está na casa de caça, tenho certeza de que a nova
decoração será inspiradora.
Supreendentemente, Sarah lhe deu um beijo na bochecha antes de partir.
Viollet levou uma mão à face, depositando os dedos onde o contato fora feito.
Sorriu, grata pela demonstração de carinho. Um gesto tão natural e ao mesmo
tempo cheio de significados. Contemplou as novas instalações, agora podia ver
de uma maneira diferente.
Tudo havia sido trocado, com muito bom gosto e de acordo com suas
preferências. Pela primeira vez, sentiu-se realmente bem-vinda naquela casa.
Caminhou percorrendo os novos tecidos com as mãos, eram macios e cheiravam
a lavanda. Sentou-se junto à penteadeira para desfazer o coque e não se
reconheceu no espelho.
Estava abatida, pálida, e seu olhar, desfocado. Avaliou a imagem refletida
tentando encontrar mais uma vez a mulher que fora um dia. Insatisfeita com o
que via, concentrou-se somente em sua tarefa. Precisava descansar, talvez o novo
quarto ajudasse a melhorar seu humor instável.

***

Os convites exclusivos que chegavam a Grove House anunciavam o
período que antecedia o início da temporada. Tratavam de festividades restritas
para a nata da aristocracia. Os encontros aconteciam ainda no inverno, quando as
damas ofereciam pequenas festas, antes de Londres fervilhar com a invasão de
hordas de senhoritas solteiras e mães casamenteiras. Viollet não participaria dos
bailes e soirées, tinha consciência de que, se não fosse pela influência da
marquesa de Bristol, Flora não seria convidada.
A sala de visitas de Grove House estava cheia, tudo parecia ser motivo
para que as damas se reunissem. Se não fosse para supervisionar os vestidos de
Flora, Viollet estaria recolhida em seus aposentos. Mas não negaria que toda
aquela movimentação lhe fazia bem.
Sua irmã experimentava os trajes de baile desenhados por Marie e
confeccionados pela maior modista de Londres; Heloise Morrice.
— Não vai precisar de tantos vestidos — Viollet ponderou pensando no
custo.
— Não se preocupe com isso, Viollet — Marie tentou tranquilizá-la.
— São tecidos caros — a viúva replicou.
— Não há com que se preocupar — Ann garantiu. — Papai vai arcar
inclusive com o dote de Flora.
— Não é certo. — Ela retirou o véu do rosto, incomodada.
— O duque parece ter bastante apreço por você e sua irmã — Izadora
falou amigavelmente. — Flora será uma debutante linda.
— Uma pena que não irei ao baile da marquesa de Normanby esta noite
— Flora lamentou enquanto deixava a sala com Heloise, para provar mais um
modelo.
— Tive uma ideia para o baile de debutante de Flora — Sarah as
interrompeu chegando de forma intempestiva ao cômodo. — Farei uma festa de
aniversário, um baile de máscaras, assim apresentaremos Flora para a sociedade.
— Baile de máscaras? — perguntou Ann. — Não é original, Marie foi
apresentada da mesma forma.
— Minha querida irmã, bailes de máscara não têm como objetivo a
originalidade, foram criados para ser libertadores. — A marquesa balançou a
mão no ar, dando de ombros. — Foi a única maneira que encontrei para que
Viollet participasse.
— Não posso...
— Escutem isso — Izadora as interrompeu, lendo uma nota no jornal. —
O misterioso artista francês que pintou a Rainha Vitória estará em Londres na
próxima semana para entregar a tela. Há rumores de que o quadro não será
exposto à vista de todos, trata-se de um presente para o príncipe Albert. Fontes
informaram que não é um retrato convencional e que o artista foi escolhido por
sua ousadia em retratar damas de maneira não usual.
— Não usual... — repetiu Ann. — Fico pensando o que poderia
significar isso.
— Não seja tola, Ann. — A marquesa bufou. — Aposto que a pintura
remete à intimidade do casal.
Viollet observou cada uma das damas presentes. Pareciam refletir sobre a
tal intimidade. Pavor e medo eram os únicos sentimentos que experimentava só
de pensar em um momento íntimo entre um homem e uma mulher. Por que
alguém retrataria aquilo?
— Quero vê-lo — Sarah parecia decidida. — Uma foto minha, ousada.
Um perfeito presente de aniversário, posso dá-lo a Thomas.
— Você não teria coragem — afirmou Ann.
— Eu teria — confessou Izadora.
— Thomas jamais aprovaria. — Marie trouxe a marquesa de volta para a
realidade.
— Ele não precisa saber — Sarah garantiu.
— E o que vai dizer quando entregar o retrato? — Viollet estava
realmente curiosa para saber como a marquesa se explicaria.
Sarah parou, encarando Viollet pensativa.
— Não preciso dizer nada se você me pintar.
— Não posso, milady. Acredito que se trate de uma pintura obscena.
— Sensual — Sarah corrigiu. — Não vai me negar um pedido.
Não, Viollet não negaria. E a marquesa estava jogando sujo, sabia disso.
Anuiu em silêncio e escapuliu da reunião das damas perfeitas logo que
conseguiu. Era assim que pensava nelas. Damas Perfeitas. Cada uma com suas
particularidades, perfeitas em sua própria imperfeição.

***

A casa de caça havia se transformado em um elegante atelier. O quarto
foi redecorado para abrigar um requintado gabinete. Apreciava a atenção da
marquesa, entretanto não precisava de um escritório. Já achava um exagero ter
um lugar para praticar suas habilidades.
Na manhã seguinte, na qual fora coagida a pintar Sarah, os primeiros
traços foram criados. A marquesa estava sentada em uma cadeira, ombros à
mostra, decote generoso. Nada adequado para uma dama. Mas ali estavam
somente as duas, modelo e artista.
— Vire-se um pouco para a direita — Viollet pediu, concentrada em seus
esboços.
— Por favor, não esconda nada. Quero que meu marido me deseje — a
marquesa pediu.
— Não se sente exposta? — Viollet parou por um instante, aguardando a
resposta.
— Sinto-me à vontade com você. Quando penso no quão inapropriada é
esta roupa, tenho certeza de que Thomas irá gostar.
— Não tem medo? — a pergunta escapuliu.
— Do que exatamente?
— De que ele a fira, machuque.
— A única maneira com que Thomas me machucaria seria me deixando.
— Parece não se importar em oferecer seu corpo em sacrifício. — Viollet
nem se dava conta de que a conversa fluía naturalmente, nunca conversara tanto,
nem sobre tais assuntos, com sua anfitriã.
— Não há sacrifício. — Sarah olhou para baixo e Viollet pediu que ela
erguesse o queixo. — Quando meu marido me toca é como se nada mais
existisse. No começo eu sempre queria mais quando terminava, mas ele agora
parece saber o que me satisfaz.
— Gosta de açoites? — Viollet perguntou escandalizada.
— Não! — a marquesa respondeu incisiva e, ao se dar conta do pavor de
Viollet, tentou explicar. — Não há agressão, somente satisfação. Às vezes
Thomas me pega com mais intensidade, mas jamais me feriu ou bateu. Na
maioria das vezes me trata com tanta adoração...
— Vejo que o marquês a ama. Percebo pela maneira como ele a olha. —
Tentava processar a informação de que Thomas não era igual a Phillip. Talvez
um caso raro, pensou, assim como David.
Sem se importar com a pose, Sarah se ajeitou, de forma a ficar de frente
para Viollet.
— Já lhe disse uma vez, você e Lucy me mostraram o amor. Sei que
estou longe de ter um sentimento tão puro como o de vocês, tão natural. Mas
estou caminhando, eu e Thomas estamos aprendendo a nos acertar e a construir
algo tão bonito quanto.
A viúva se viu imersa em uma realidade que não era a sua. Eram somente
lembranças, mas na presença de Jack era como se o tempo não tivesse passado.
Num impulso, vencida pela razão, aconselhou a marquesa:
— A amizade, ela é a base de tudo. Jack e eu nunca tivemos segredos —
as palavras escapuliam. — Podemos falar sobre qualquer assunto, por pior que
seja. Lucy e seu pai parecem viver da mesma maneira.
— Como descobriu que amava John?
— Não descobri, eu sempre soube. Ele sempre esteve aqui. — Levou a
mão ao peito. — Sempre estará. — Engoliu em seco. — Amo-o tanto que não
quero vê-lo envolto em meus pesadelos, Jack merece ser feliz.
A marquesa se levantou e se aproximou.
— Estou feliz que esteja aqui. — Limpou as próprias lágrimas. —
Recentemente meu irmão me acusou de ser egoísta, negligente. Confesso minha
culpa, e poder estar presente para você e Flora me ajuda a me tornar uma pessoa
melhor.
— Serei eternamente grata.
— Não quero sua gratidão. Quero que volte a sorrir.
— Obrigada. — A viúva fitou os próprios pés.
— Acho que chega por hoje. — A marquesa pegou sua capa e a vestiu.
— Aproveite seu atelier — parou por um instante —, John e eu temos uma
reunião, vou ver os projetos dele. Eu o convidei para ajudar na tecelagem. Ele
está tentando.
— Eu também estou, mas não sei se irei conseguir.
— Sorrir, seu único objetivo é sorrir. — A marquesa beijou a face de
Viollet antes de partir.
Viollet sentou-se na cadeira havia pouco ocupada por Sarah. Por que se
abrira tanto? Não percebera nenhum estratagema da marquesa no sentido de
ouvi-la falar do amor que sentia. Ela parecia sincera. Conseguira arrancar a
confissão que Viollet não fizera nem a si mesma.
O espelho no canto do cômodo ainda não revelava quem ela fora um dia.
Ela sequer sabia quem era. Tantas coisas haviam acontecido e o que lhe restara
fora o amor que sentia por Jack. Um amor desgovernado, com o qual não sabia
lidar. Sequer tinha esperanças de suportar ser tocada um dia. Tentou se imaginar
como Sarah estivera minutos antes, mas jamais conseguiria se expor daquela
maneira.
O preto lhe trazia conforto, proteção. Era um escudo. Nem mesmo John
seria capaz de derrubar suas barreiras. Jack! Pensava que o melhor a fazer era
deixá-lo ser feliz, com quem quer que fosse. Inclusive com Izadora. A
estrangeira não era tão má assim.
Farta de refletir sobre a própria existência, apreciou o atelier que a
marquesa havia providenciado, era encantador. Assim como a decoração de seus
aposentos. Não negaria que todas as mudanças, no ano que começava, faziam
com que se sentisse melhor.
Começou a organizar suas tintas. Cogitou a ideia de trazer o baú com os
quadros para guardá-lo ali. Havia muitas pinturas de John, algumas de Flora, um
retrato de seu pai e várias paisagens. Flores em especial.
Trocou móveis de lugar, deixando o cavalete virado para a parede. Não
queria correr o risco de que alguém visse a pintura de Sarah. Aos poucos sentia-
se em casa. Era bom ter um lugar para pintar. Um desejo antigo que se realizava.
Sorriu com ironia para o véu negro em cima do canapé. Nesse momento, fez um
acordo consigo mesma; quando estivesse ali dentro, não estaria de luto, não
entraria com todo o fardo que carregava. Esse seria o refúgio onde buscaria
quem fora, ou quem seria.
Após julgar que tudo estava em seu devido lugar, voltou para o esboço de
Sarah. Movida pelo impulso de surpreender a todos, fez intervenções em um
papel. Decidiu que a marquesa estaria sentada em um banco, ao fundo um
canteiro de hortênsias em flor, uma profusão de cores e tons de azul, que
ressaltaria ainda mais sua beleza.
Começou a preparar a tinta para o fundo, não via a hora passar.
— Espero não estar interrompendo. — John entrou e, sem pedir licença,
acomodou-se no gabinete.
Um criado trouxe um pequeno baú e, sob a orientação de John, colocou-o
no escritório.
— O que é isso? — Viollet estava intrigada.
— Meu material de trabalho. Sarah me ofereceu o escritório da casa de
caça, acredita que terei tranquilidade para trabalhar.
— Trabalhar?
— Vou ajudar nos projetos dos novos maquinários da tecelagem.
Acabamos de nos reunir com James Harris, o responsável pelos projetos. —
John se sentou na cadeira e colocou os pés sobre a mesa. — Ele é bom, mas há
algumas deficiências básicas em seus planos.
— Vai trabalhar aqui? Todos os dias?
— Não! Somente alguns dias da semana, tenho muitas coisas para
resolver.
— Coisas?
— Vai ficar me olhando desse jeito, fazendo questionamentos
desconexos?
— Jack...
— Depois. — Tomou-lhe a mão e levou Viollet até a mesa. — Quero lhe
mostrar uma coisa.
Retirou um dos papéis em uma pasta e começou a explicar as falhas dos
projetos de Harris. Basicamente todos se referiam à segurança e aos materiais
utilizados. No início Viollet o encarou atônita, mas a empolgação com que ele
explanava era contagiante. John gostava de vê-la daquela maneira. Lembrou-se
do dia em que construíra um relógio.
— Não podemos trabalhar no mesmo lugar — ela falou por fim.
John se manteve animado, nada parecia abalá-lo.
— Não? — Ele ergueu uma sobrancelha, com um meio sorriso. — Por
qual motivo?
Ela deu um longo suspiro.
— Não parece óbvio?
Viollet viu John se levantar e estender a mão para que ela se
aproximasse. Estava sem as habituais luvas negras, tirara para pintar, ele também
tinha as mãos nuas. Era a segunda vez que ele a tocava de maneira tão íntima, e
ela novamente sentiu um pequeno arrepio quando suas mãos se tocaram.
— Jack, por favor.
— Não se preocupe, Let. — Ele se aproximou e a envolveu entre os
braços, contornando a cintura esbelta. Com delicadeza, puxou-a para si,
deixando-a completamente imóvel. — Andei pensando, não importa o que eu
faça, você sempre acaba fugindo. — Ela tentou dar um passo atrás e ele a
conteve. — Por isso resolvi aproveitar os momentos antes da sua fuga.
E sem pedir permissão, ele a beijou.
Viollet demorou algum tempo para absorver o assalto. Fechou os olhos.
Gemeu baixinho e abriu levemente a boca, o suficiente para que ele
aprofundasse o beijo. Jack a apertou contra si. Não era ruim, contudo era
invasivo. Foi tomada por um inconsequente impulso de abraçá-lo também.
Tocou os cabelos de Jack, deslizando os dedos trêmulos pelas mechas escuras.
Ele parou, ela não queria que ele parasse. Mas também não queria que
continuasse. Não sabia o que queria.
John demorou algum tempo antes de soltá-la.
— Não se dê o trabalho de fugir, já estou de saída. Preciso me preparar
para o baile da marquesa de Normanby.
— Vai ao baile?
— A senhorita Izadora pediu que eu a acompanhasse.
— Vai ao baile acompanhado de uma dama solteira?
— Claro que não, não seria de bom-tom. — Ele balançou a mão no ar
ironicamente, imitando a irmã. — Vou encontrá-la lá. — Fez uma reverência
exagerada. — Tenha uma ótima noite, milady.
Saindo da casa da irmã, John calculava sua primeira vitória, mas aquele
não era o motivo do sorriso em seu rosto. Fora o beijo, ela retribuíra com a
mesma intensidade.
Capítulo IX

Viollet não conseguira pregar o olho naquela noite. Havia pensado na
possibilidade de convencer Flora a ir ao baile da marquesa de Normanby, mesmo
antes de seu debute. Precisava de alguém para vigiar Jack. Sabia que era uma
ideia descabida e, além do mais, nunca questionaria a irmã sobre o
comportamento de John. Para completar e desistir da ideia de uma vez por todas,
convencera-se de que seria um escândalo a presença de Flora em algum evento
antes de sua apresentação oficial.
Aguardava ansiosamente que a marquesa acordasse, tinha esperanças de
arrancar informações relevantes de Sarah. Por que John fora a um baile? Estar
em um evento organizado pela marquesa casamenteira era atestar sua
disponibilidade. A marquesa de Normanby não escondia o desespero por casar as
filhas, fato público e notório na sociedade inglesa.
Sentada à farta mesa de desjejum, Viollet especulava sobre o tempo que
Sarah demoraria para acordar. Não estava habituada a descer para o café da
manhã, mas a curiosidade e a agonia a consumiam de tal maneira, que era
impossível conter os ânimos.
Jack, seu patife! Viollet bateu as mãos na mesa, irritada. Deveria estar
reclusa em seu luto, entretanto não conseguia parar de pensar no que havia
acontecido na noite anterior.
Julgava-se inquieta para desfrutar a refeição, seu estômago revirava tanto
que ela temia uma congestão. Com passos firmes e sem se preocupar com a
touca e o véu, seguiu para o atelier.
Um lacaio acendia a lareira e as velas, deixando o ambiente acolhedor.
Ela agradeceu ao ver que ele deixara um bule de chá e alguns bolinhos. O criado
informou que, a pedido da governanta, Sra. Pattel, ele viria regularmente para
trazer algo de comer e manter a casa aquecida.
Antes de iniciar seu trabalho, ela serviu uma xícara de chá. Tentava se
acalmar, mas seus pés tocavam o assoalho repetidas vezes.
— Bom dia! — Sarah a tirou dos pensamentos.
— Não a vi no desjejum.
— Eu e Thomas fizemos a refeição no quarto. Bronwen dormiu conosco.
— Não vou nem dizer que isso é inconveniente em muitos níveis.
— Já conheço esse discurso, Pia não poupa palavras para contestar minha
maternidade. — Ela sorriu sonhadora. — Ele está a cada dia mais parecido com
Thomas.
— É muito novo para dizer. — Viollet serviu uma xícara para a
marquesa.
— As pessoas não me julgam uma boa mãe.
— Eu não diria isso. Só não estão acostumados a ver uma mulher
trabalhar e levar o filho para onde vai.
— Eu o alimento.
— É algo incomum não ter uma ama de leite.
— Não sou uma dama comum. — O sorriso travesso da marquesa era
contagiante.
— Não, definitivamente não é. — Fitou as mãos controlando o impulso
de perguntar sobre o baile.
— Não vai perguntar sobre ontem?
— Imagino que não tenha muito a contar, os bailes de Lady Howard são
conhecidos por serem tediosos e repletos de valsas — mentiu tentando não
transparecer a curiosidade.
— Tem razão. — A marquesa bebericou seu chá. — Podemos começar?
— Claro. — Viollet se colocou atrás do cavalete prontamente. — Pode
virar o tronco um pouco para a frente?
Viollet começou a marcar as linhas de expressão, ainda no carvão.
Trabalhando minuciosamente o esboço. Tentava se concentrar, precisava afastar
a inquietação que a consumia. Por que desejava tanto saber sobre o baile?
Sandice.
— Marie estava belíssima. Um dos pontos altos da noite.
— Houve mais algum?
— Nada relevante, só Izadora, que mais uma vez foi a atração. Ela tem
um carisma peculiar. Dançou a noite toda.
— Com John?
— Somente duas valsas — a marquesa respondeu com naturalidade, e
Viollet ferveu por dentro. Duas valsas! —, mas Edward não pareceu muito
satisfeito, monopolizou-a por duas danças e a levou embora.
— Ele parece gostar dela.
— É, acho que sim.
Sarah voltou para sua posição, e Viollet continuou olhando-a, esperando
mais informações.
— O que quer saber? — Sarah sorriu ironicamente.
— Nada, milady. — Tentou voltar para o trabalho.
— Como esperado, John foi o mais cobiçado da noite. A presença dele
em um baile despertou certa comoção. As más línguas afirmam com veemência
que o visconde de Trentham, futuro duque de Sutherland, está à procura de uma
esposa. — Sarah ergueu as sobrancelhas. — No seu lugar, eu não deixaria.
— O quer que eu faça? Ele parece bem interessado na estrangeira.
— John não esconde os sentimentos que tem por você.
— Lady Sarah, sei que confessei a reciprocidade dos meus sentimentos,
mas há tantas coisas em meu passado que não permitem que eu avance com essa
situação.
— Viollet, é sempre tão reservada, mas mesmo assim sinto você um
pouco diferente, parece-me bem melhor.
— Sim, eu me sinto. E devo muito a sua acolhida. Sinto-me em casa em
Grove House...
— O que quer saber? Seja direta.
A pergunta certeira da marquesa a deixou desconcertada, Viollet deixou o
carvão sobre a mesa e fitou o chão.
— Acha que John pode ser feliz com Izadora?
Sarah sorriu amplamente.
— Acho que John parece feliz e empolgado com o novo trabalho. Nunca
o vi assim. Ontem ele estava radiante, cheguei até a pensar que vocês tinham se
acertado. — Olhando para cima ela continuou. — É tão bom ver meu irmão
voltar à vida, interessar-se por algo. Ontem Edward me contou que John era um
aluno dedicado nas aulas de engenharia.
— Ele sempre foi bom construindo coisas. Uma vez me fez um cavalete
com um suporte, podia colocar todas as tintas nele.
— Eu desconhecia tal habilidade. Na verdade, acho que estou
descobrindo muitas coisas que não sabia.
— Nós nos beijamos ontem... — Parou de falar, não sabia dizer por que
estava revelando aquele segredo à marquesa, entretanto o olhar curioso de Sarah
a impelia a continuar. — Não foi a primeira vez...
— Suponho que não.
— Digo, depois que tudo aconteceu. — Viollet pegou uma cadeira e
sentou-se de frente para a mais nova amiga. — Eu o amo, não negaria isso. Foi
bom beijá-lo, mas acho que não conseguiria ir além. John merece alguém por
inteiro.
— Com o tempo poderá dar a ele o que ele precisa.
— Não entende. Talvez porque seu marido não lhe inflija dor, mas a
maioria dos homens é assim. Philip me disse.
— Viollet, Thomas apanhou do pai de maneira que não pode imaginar.
Sofreu agressões físicas e verbais durante toda a vida. Olhe para ele, para David.
São cavalheiros e jamais levantariam a mão para qualquer dama que fosse.
— Não são todos assim?
— Não, querida. Thomas me trata como se eu fosse a mais valiosa peça
de cristal. Às vezes desejo que me pegue com um pouco mais de força, mas ele
me trata com tanta reverência, carinho. Talvez seja disso que precise.
Viollet se levantou depressa e olhou para a janela.
— Acho que não conseguirei ser tocada novamente.
Sarah se aproximou para abraçá-la. A porta se abriu, revelando o
marquês.
— Querida, Bronwen parece faminto — Thomas interrompeu a conversa.
— Perdi a noção da hora, preciso ir. — Sarah beijou o rosto de Viollet.
— Vamos? — chamou o marido.
— Vou esperar por seu irmão, marcamos uma audiência aqui.
Sarah deu um beijo polido no marido e saiu apressada. Viollet suspirou e
limpou os olhos tentando se recompor.
— Aceita chá, milorde?
— Não, obrigado. — O marquês pigarreou e começou a andar pelo
cômodo. — Gostaria de sua ajuda, Lady Viollet.
— Em que posso servi-lo, meu senhor?
— O aniversário de Sarah está se aproximando, gostaria de dar algo que
surpreendesse minha mulher. — Ele deu um sorriso discreto. — Sarah não é o
tipo de mulher que se encanta com qualquer coisa. Vocês estão próximas, ela fala
muito bem de você, pensei que talvez pudesse dar alguma dica.
Viollet avaliou o belo cavalheiro a sua frente. Surpreender os dois seria
uma maneira de retribuir toda a atenção que ela e sua irmã recebiam.
— Tenho uma ideia, milorde. Mas terá que confiar em mim.
— Pretende não me contar?
— Só preciso que fique parado, por alguns minutos, aqui. — Posicionou-
o em pé ao lado da cadeira. — Com a mão assim.
— Vai me pintar? Já ouvi falar de seu talento...
— Por favor, não se mexa, só olhe para a cadeira, como se Sarah
estivesse sentada aí.
O marquês de Bristol posou para Viollet por quase uma hora, enquanto
esperava John. A viúva se manteve concentrada, trocaram poucas palavras.
Thomas era um bom modelo, mantinha-se longo tempo na mesma posição, sem
se queixar. Se fosse Jack, já teria reclamado e a tirado de seu foco. Riu sozinha
enquanto as mãos habilidosas trabalhavam.
Desabafar com Sarah um pouco do que sentia trouxera-lhe uma leveza
que havia muito não sentia. Os vínculos estavam se formando novamente, fugia
da reclusão e desejava participar dos encontros das damas perfeitas.
— E eu me enganando, acreditando que seria o único a ser pintado pela
melhor pintora de toda a Europa. — John chegou à cabana de caça trazendo
consigo uma pasta de couro entre os braços. — Por quanto tempo ele está parado
nessa posição?
— Quase uma hora — Thomas respondeu em um tom de reprovação. —
O tempo exato de seu atraso. — Ele se moveu, levemente desconfortável,
dirigindo-se para a artista. — Podemos encerrar por hoje?
— Obrigada, milorde, e desculpe o transtorno. Acredito que consiga
terminar daqui.
— Posso ver?
— Não agora, quando estiver pronto eu mostro.
Esse era um problema que até então ela não tinha mensurado; como
entregaria a Lorde Hervey uma pintura como aquela? Entregaria a Sarah, estava
decidida.
Concentrada no cavalete, voltou para o trabalho. Antes de ir para o
gabinete, John a olhou com intensidade. Viollet percebeu que ele deixara a porta
aberta propositalmente.
Ouviu Jack discorrer sobre materiais, mecanismos, ferramentas,
produção e muitas coisas que ela não entendeu. Estava animado, cheio de vida.
Gostava de vê-lo daquela maneira. O seu Jack brincalhão estava sério, mas com
o peculiar brilho nos olhos. O sorriso sarcástico fora substituído por uma
expressão de pura satisfação.
Observou o quanto o marquês aprovava os projetos, apesar de reservado
Thomas não poupou elogios. John fora incumbido de supervisionar todo o
trabalho de James Harris, o marquês alegou que o cunhado tinha um superior
conhecimento técnico.
Quando Thomas partiu, Viollet se concentrou ainda mais na pintura.
— Uau! Não acha que os seios de Sarah estão à mostra?
Viollet deu um pulo e cobriu o quadro rapidamente, quase derrubando o
cavalete.
— Não deveria ver isso — falou brava. — Sequer tinha o direito de
interromper meu trabalho.
— Não interrompi, só fiz uma observação.
— Não fiz observações sobre sua reunião. — Ela cruzou os braços,
fitando-o mortalmente.
— Mas prestou atenção em cada palavra — falou pausadamente.
— Não fechou a porta. — Ela deu de ombros.
— E você deixou a tela exposta. — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Não estava exposta. Viu o que não deveria. Foi importuno.
— Calma, não foi o primeiro par de seios que vi.
Viollet engoliu em seco, sentiu o sangue ferver.
— Não, não foi. Certamente o primeiro foi de uma francesa, quando
esteve em Paris.
John pareceu espantado e até ofendido com a acusação.
— Não toquei em nenhuma cortesã quando fui ao Palais des Plaisirs —
ele declarou sério.
— Phillip me contou. — Não recuou. — Relatou com detalhes o que fez
com a francesa, também gosta de infligir dor a mulheres. — Estava tão furiosa
que nem percebeu que gritava.
John a agarrou pelos braços contraindo os dedos. Viu Viollet paralisar,
empalidecer, temeu que ela desmaiasse. Afrouxou os dedos e a soltou. Fora um
idiota e a assustara.
— Escute, meu amor. Eu cumpri minha promessa. Não toquei em
ninguém, esperei por você. — Ele abaixou os olhos. — Somente depois que se
casou e me disse que não tinha volta que...
Parou ao perceber que Viollet não se mexia. Os olhos estavam vagos,
ausentes. Ele sentiu-se ainda mais culpado. Não devia tê-la segurado daquela
maneira. Ela deu um passo atrás. Let estava com medo, ele a conhecia.
— Desculpe, eu não devia ter...
— Deixe-me passar. — Estavam entre a parede e o cavalete.
— Não vai fugir. — Ele se arriscou passando a mão sobre a face alva
dela.
Uma lágrima, uma única lágrima escorreu pelo rosto de Viollet.
— Ele mentiu. Não estive com ninguém em Paris, também nunca
violentei nenhuma mulher. — Ele segurou o rosto dela com delicadeza. —
Jamais machucaria você, desculpe se a assustei. Só fiquei surpreso...
— Não importa. — Ela engoliu em seco.
— Claro que importa, Let. Estou fazendo de tudo para que possamos
ficar bem...
— Dançando duas valsas com a brasileira de curvas generosas? — Ela
balançou a cabeça várias vezes. — Achei que pudesse, mas não posso. Talvez
deva ficar com Izadora e...
Ele a surpreendeu colando-se a ela, a boca estava bem perto da dela,
Viollet podia sentir sua respiração.
— Só me caso se for com você, Let. — Ela estremeceu. — Já falhei uma
vez quando prometi que seria a única mulher em minha cama, mas você se
casou, pediu que eu a esquecesse — ele continuava a falar em um sussurro, com
os lábios colados aos dela. — Por favor, não se feche, já nos beijamos, já demos
esse passo. Pode me suportar assim tão próximo?
Balançando a cabeça desgovernadamente, ela negou, depois afirmou. Seu
corpo não respondia aos comandos, estava confusa.
— Acredite em mim — ele implorou com os olhos fechados.
— Não se deitou com uma cortesã em Paris? — perguntou com a boca
seca, a voz trêmula, desconfortável com a proximidade.
— Não, também nunca bati em nenhuma mulher, não consigo imaginar
que tipo de monstro faria uma coisa dessas.
Ela suspirou aliviada, foi a deixa de que ele precisava. Jack beijou Let
com adoração, ela não o abraçou, mas se entregou e era isso que ele mais
desejava.
Capítulo X


Phillip mentira. John não havia se deitado com uma cortesã e também
não gostava de açoitar mulheres. Como fora tola. Estava tão cega, desesperada,
que deixara-se enganar. Recostada no canapé do atelier, tentava organizar os
pensamentos.
— Ele lhe falou tudo isso antes ou depois de se casarem? — John estava
ao seu lado, sentado no canapé, segurava sua mão.
— Contou sobre Paris antes e, sobre bater em mulheres, no dia do
casamento. — Ela não conseguiu conter as lágrimas. — Eu o chamei de Jack
quando ele me tocou. Recebi o primeiro tapa.
Em seu íntimo, John ficou feliz por ela ter dito seu nome, entretanto era
uma barbárie tão grande que permaneceu impassível, tomado pela fúria,
esperando que ela continuasse. Ela não prosseguiu, não com palavras, mas com
um pranto silencioso. Apesar de se sentir impelido a questioná-la sobre os
motivos pelos quais ela se casara, temia que fosse demais.
— Entende o porquê de não poder ter esperanças, Jack? Consigo beijá-lo
e me sentir feliz ao seu lado, mas o que carrego nunca vai se apagar.
Ele não disse nada, só a abraçou. Queria garantir que tudo ficaria bem,
mas não havia garantias, somente esperanças. Contentou-se em abraçá-la, nada
mais podia ser questionado, não naquele momento.
John esperou com paciência até que Viollet se acalmasse.
— Sei que pode parecer inoportuno — ele arriscou mudar o foco da
conversa, enquanto afagava os cabelos dela. — Mas acho que chegou a hora de
contar tudo a Sarah. Ela tem nos ajudado tanto, parece tão diferente que me sinto
mal.
Viollet se ajeitou para olhá-lo.
— Por que agora? Achei que esperaria...
— Sarah não é mais uma menina, precisa saber.
— Ela tem se revelado uma grande amiga.
— Para nós dois, meu amor. — Ele acariciou a face de Viollet. — Escute,
não estou pressionando, mas Lucy e meu pai precisam se casar. Eu suporto
qualquer escândalo, o título está seguro na família. Se não quiser se casar de
novo, não casaremos. Mas não é justo que Lucy e meu pai continuem esperando,
o tempo está passando.
— O que quer fazer? — Ela o conhecia, sabia que ele se sentia
pressionado.
— Não sei ao certo, mas preciso confessar meu pecado a Sarah. Ela
precisa saber que Lorde Granville não nos deserdou e que foi um pedido meu.
— Foi o ato mais nobre que já praticou, Jack.
— Talvez a única coisa certa que fiz em minha vida.
— Não diga isso.
— Eu perdi você.
— Não foi culpa sua. — Ela engoliu em seco e olhou para baixo.
John não queria pressioná-la ainda mais.
— Preciso de você, vamos jantar amanhã em Anson’s House? Se estiver
ao meu lado, eu me sentirei seguro.
Viollet foi movida pelo impulso de acariciar os cabelos de Jack.
— Não podemos agir como se o tempo não tivesse passado.
— Compreendo que não queira se casar comigo, talvez com o tempo eu
aceite isso. Só não me peça para ficar longe de você novamente. — Ele segurou
a mão dela, que ainda lhe acariciava os cabelos. — Isso que temos nem toda
desgraça do mundo pode tirar, é só nosso.
— É confuso para mim. Você me confunde.
— E você me faz sorrir, me dá forças. — Sorriu.
— Vou com você, estarei ao seu lado. Não será fácil para Lucy também.
— Obrigado — ele agradeceu com um beijo casto nos lábios.

***

O jantar foi servido com toda a pompa. Apesar das louças de festa e
lacaios impecavelmente bem-trajados, Viollet podia sentir a tensão. O duque
estava calado, parecia ansioso. Jack apertava a perna dela vez ou outra, por
debaixo da mesa. Ele estava nervoso, ela sabia. Ann, Anthony, Thomas, Sarah e
Lucy conversavam animados sobre o posicionamento de John nos negócios. Ele
respondia brevemente, sem muita empolgação.
— Está se sentindo bem, John? — Lucy perguntou, preocupada, logo que
a sobremesa foi servida.
— Acredito que esteja cansado — Viollet tentou apaziguar colocando a
mão sobre a dele, que repousava nas saias do vestido. — Não está acostumado a
trabalhar — completou, arrancando um sorriso de todos.
— Na verdade, mãe, não é isso. — Ele piscou algumas vezes e respirou
fundo. — Acho que chegou a hora de Sarah saber...
— Não! — Lucy falou incisiva, seus olhos denunciavam seu desespero.
Todos se calaram, a tensão tomou o ambiente. Sarah olhou para o irmão
tentando entender o que estava acontecendo.
— Bem — o duque os interrompeu, levantando-se. — Já que tocamos em
um assunto tão delicado — falou olhando para o filho, erguendo brevemente as
sobrancelhas —, gostaria de anunciar que, graças à Srta. Izadora, a Sra. Lucy
Turner recebeu o título de baronesa — anunciou orgulhoso.
— Não acredito, papai, agora poderão se casar. — Sarah batia palmas
animada.
Enquanto todos comemoravam, Lucy piscava atônita, parecia organizar
os pensamentos. Ficou parada por alguns segundos, sua expressão era de
inexpressiva perplexidade.
A governanta respirou profundamente antes de interrogar o duque:
— Do que está falando, Augustus? Por que não me disse antes?
John virou a mão, e Viollet a apertou.
— Sarah — John chamou a atenção da irmã. — Sei que acredita que
fomos deserdados por Lorde Granville...
— John... — Lucy tentou interrompê-lo mais uma vez, e Viollet sabia
que, apesar de parecer furiosa, ela estava apreensiva.
— Deixe-o. — O duque se levantou e sussurrou no ouvido da amante.
Viollet observava atentamente cada movimento. Ela apertou a mão de
John para encorajá-lo.
— Foi um pedido meu, eu pedi a ele que retirasse meu nome e o seu do
testamento.
Sarah olhou para o pai aguardando uma confirmação.
— Por que fez isso? — perguntou confusa.
John olhou para Lucy aguardando aprovação; com os olhos cheios de
lágrimas, ela assentiu. A governanta cobriu os olhos com as mãos e o duque
acariciou o ombro da amante com carinho.
— Carregamos o nome dos Granville, mas não o sangue. Foi a maneira
que encontrei de honrar o sangue de nossa mãe.
Lucy se recostou à cadeira, e Ann secou a boca com o guardanapo.
Viollet percebeu que ela sorria. O duque estava visivelmente emocionado.
— O que está dizendo, John?
E mais uma vez todos ficaram em absoluto silêncio, ninguém se mexia.
Viollet acompanhava tudo, sem soltar a mão de Jack. Lucy estava com os olhos
fechados, ela suspirou alto antes de confessar:
— Fui eu que gerei você e John, minha querida. — Lucy não segurou as
lágrimas.
A princípio a marquesa sorriu amplamente. O início de uma gargalhada
foi interrompido por um soluço emocionado. Aos poucos ela recuperou a
respiração falha.
— Você sabia, Thomas? — Virou-se para o marido.
— Não, querida.
— Ann? — Esperou que a irmã confirmasse. — Viollet? — A viúva
respirou fundo antes de anuir. — Fui enganada toda a minha vida? — Mais uma
vez o silêncio se fez presente, ninguém se mexeu, todos esperavam uma reação
da marquesa. — Preciso de um pouco de ar. — Ela se levantou atordoada,
deixando a mesa.
Thomas a escoltou. Todos permaneceram sentados, acompanhando o
casal deixar a mesa. Augustus se levantou e Lucy disse, incisiva:
— Não, Augustus. — Virou-se para o filho. — John, venha comigo.
John observava a mãe enquanto caminhavam até a biblioteca. Nenhuma
palavra fora dita. Apesar da tensão do momento, John sentia-se aliviado por ter
dito toda a verdade.
Quando abriu a porta, Sarah estava encolhida no chão e Thomas ao seu
lado.
— Lorde Thomas, poderia nos deixar a sós? — a governanta pediu
educadamente.
Antes mesmo de o marquês deixar o cômodo, Lucy se jogou no chão
diante da filha. Esperara durante muitos anos por aquele momento. Sabia que
Sarah poderia reagir mal. Temia ser renegada.
— Querida, não queria que soubesse dessa maneira. — Olhou para John
rapidamente.
Ele se sentou ao lado da irmã.
— Foi bonito o que fez, John — Sarah disse entre lágrimas.
— Foi a estupidez mais nobre que seu irmão fez. — Lucy sorriu.
Sarah ficou em silêncio por alguns instantes, olhando para a mãe antes de
questioná-la. Lucy sentia-se apreensiva, suas mãos suavam e o coração trotava
desgovernado.
— Por que não me contaram? Esconderam isso por tantos anos. Lorde
Granville disse que a matemática de minha vida não fechava...
— Julliet morreu poucos dias antes de você nascer. Ela os amava, tinha-
os todos como filhos. — Lucy aceitou o lenço que John oferecia e secou as
lágrimas da filha. — Eu quis preservar a memória dela. A duquesa merece todo o
nosso respeito.
— Por que não me contaram?
— Você foi por muitos anos a chama de Julliet nesta casa, Sarah. Se
soubesse que eu era sua mãe, não honraríamos a memória dela. Você é
intempestiva, faria de tudo para me ver casada com seu pai, não agiria com
prudência — era tudo que podia dizer.
— Todo mundo sabia...
— Sarah. — John segurou a mão da irmã. — Passou tanto tempo presa
em suas próprias verdades que não olhou para os lados. A verdade sempre esteve
debaixo de seu nariz. Você via somente o que queria.
— Quero ser uma pessoa melhor, John. Quero que confiem em mim.
— Você é! Vê o que fez por Marie? O que tem feito por mim e por
Viollet?
Lucy admirou a interação de seus filhos orgulhosa.
— Tem se tornado uma mulher maravilhosa, minha filha. Apesar de toda
a proteção de seu pai. Você se tornou mãe e com isso nasceu uma nova mulher
— acrescentou Lucy emocionada. — Uma marquesa justa, que ajuda quem
precisa e que ama sua família.
— Você me ensinou isso, mãe. — Sarah se jogou nos braços de Lucy e
John as abraçou.
— Estou feliz por não precisar esconder mais isso, mãe. — John beijou
os cabelos de Lucy.
Lucy deixou que a emoção a tomasse. Por quanto tempo esperou para
que se abraçassem daquela maneira, sem segredos. Agradeceu a Deus enquanto
apertava os filhos entre os braços.
— Será uma duquesa encantadora, milady. — John deu um beijo na face
da mãe.
Ela sorriu limpando o rosto.
— Sei o que está fazendo John Anson, vocês dois são a cópia perfeita de
seu pai.

***

Na sala de jantar, o duque caminhava de um lado para o outro
apreensivo. Só voltou a respirar tranquilamente quando Lucy e seus filhos
voltaram abraçados. Ann, que estivera ao lado do pai, abraçou-o, oferecendo um
sorriso acolhedor a Lucy.
John se posicionou ao lado de Viollet, lamentou que todos estivessem de
pé, mas isso não foi um empecilho para que buscasse a mão nua de Let. Ela não
recusou o contato e, para a surpresa dele, deslizou o polegar num ato de carinho,
de acolhida.
— Sabe, você é a que mais se parece comigo, não é, Ann? — Lucy
beijava os cabelos dela.
— Não puxei o gênio forte do papai — Ann se gabou.
Num clima descontraído, tudo voltava ao normal.
— Bem — Sarah chamou a atenção de todos —, diante da recente
revelação, gostaria de informar que a apresentação de Lucy será no baile de
máscaras.
— E o casamento de Ann, dois dias depois — pressionou John olhando
para Anthony.
— Não vou ao baile, Sarah — Lucy logo se esquivou.
— Por que não? — Viollet surpreendeu a todos. — Até eu irei, faço
questão de participar da apresentação da futura duquesa de Sutherland —
confessou emocionada.
Lucy sorriu encabulada e andou em direção a Viollet para abraçá-la.
— Guardarei o título para você, minha querida — sussurrou ao seu
ouvido para que somente Viollet ouvisse.
Mas John também ouvira e a forma com que Viollet sorrira lhe enchera
de esperanças.
— Diante disso gostaria de informar que me casarei logo depois do baile
de Sarah — Ann falou num tom mais alto que o habitual. — Não porque John
exigiu, mas porque tenho pressa.
O duque se jogou na cadeira. Percorreu todos com os olhos. Uma mistura
de confusão e desespero.
— Onde foi que eu errei? Quando foi que permiti que as damas
comandassem esta casa? — questionava atordoado.
— Desde que deixou Sarah fazer o que bem entendesse, Augustus. Sua
filha é uma péssima influência para nós — Lucy falou em tom de brincadeira.
O duque riu entrando na brincadeira, mas tinha certeza de que, havia
muito tempo, quem comandava os Ansons era a Sra. Lucy Turner. Fora dela que
seus filhos herdaram o gênio intempestivo e determinado. Até mesmo Ann, que
se revelava a cada dia.

***

Na manhã seguinte ao jantar, aos poucos recobrava a razão. Diante do
quarto redecorado, Viollet se sentia uma pecadora. Abusava deliberadamente da
piedade divina. Tirara a vida do marido e estava vivendo como se nunca tivesse
se casado, como se não tivesse apertado o gatilho da arma de duelo. Não era
certo. Não, não era.
A única marca de luto que ainda carregava eram as roupas, não havia
mais nenhum vestígio naquela casa que demonstrasse seu pesar; até mesmo o
véu era negligenciando.
Ao atirar, fora invadida por uma breve sensação de alívio, mas logo
depois viera o desespero, o medo, a culpa. Sentimentos que a sufocavam e dos
quais sabia que jamais se libertaria.
E agora vivia como se o passado pudesse ser apagado, fazendo planos
para o futuro. Jantando com os Ansons, dando-lhes esperanças de que se casaria
com Jack. Não podia agir daquela maneira.
Olhou para as joias da avó espalhadas na cama, cada peça era um
fragmento de sua história. Não sabia mais qual era real e qual era ilusória. Assim
como John, que a torturava e a confundia, levavam-na para um tempo em que só
havia flores mesmo no inverno.
Paige, sua criada pessoal, entrou no quarto para recolher o desjejum.
Havia algo diferente nela, e Viollet custou a perceber o que era.
— Não usa mais a faixa de luto no braço? — perguntou procurando pelo
pedaço de tecido negro.
— Lorde John Anson pediu que retirasse, minha senhora. Assim como
orientou sobre as novas cores. É um cavalheiro de muito bom gosto.
Jack! Respirou fundo.
— Por favor, Paige. Peço que volte a usá-la.
— As ordens dele foram endossadas pela marquesa. Mas se a senhora...
— Sendo uma ordem da marquesa, não há o que contestar. — Ela se
levantou e abriu a porta. — Por favor, gostaria de um pouco de privacidade para
as minhas orações.
Quando se viu no conforto de sua reclusão, pôs-se de joelhos e começou
sua prece. Uma conversa silenciosa, um pedido de perdão. Rogava para que
encontrasse forças para não sucumbir aos prazeres mundanos; pedia ao Pai que
lhe guiasse para o caminho da luz. Vagaria pela amargura e pelo arrependimento
até que Ele a libertasse de seus pecados.
Um par de horas depois, sentia-se em paz. Determinada em seu propósito
de remissão e purificação. Atendendo às suas súplicas, Deus enviou Marie para
lhe fazer companhia. Uma gratificação por sua subserviência.
— Espero não estar atrapalhando. — A amiga sentou-se ao lado dela.
— Não a esperava, mas gosto de sua companhia.
— Vim acompanhar Izadora. Ela teve um pequeno desentendimento com
Edward, ficará hospedada aqui até voltar para o Brasil.
— O que houve?
— Nada para se preocupar, meu irmão não assume os próprios
sentimentos e prefere afastá-la a ceder.
Viollet balançou a cabeça em negação e Marie tocou as joias em cima da
cama.
— Fico feliz que estejam com você novamente, parecem tão importantes.
— Tocou o anel que deixara como garantia em uma hospedaria meses atrás. —
Não entendo, esse saco parece o mesmo que me entregou no dia em que me
separei de Paul. Sempre quis perguntar sobre isso.
— O dia em que foi roubada, Jack — ela respirou fundo —, John... Ele
ficava horas na porta daquela casa. Ele recuperou o saco, agrediu os ladrões e o
entregou para Flora.
— John parece...
— Por favor, não — Viollet rogou. — O dia em que chegou a minha casa
carregando um bebê no colo foi o pior e melhor dia de minha vida. — Ela secou
os olhos antes mesmo de as lágrimas caírem. — Sabia que Phillip ficaria com a
criança, ele me acusava de ser seca. O visconde precisava de um herdeiro. Eu só
não esperava que a jogasse na sarjeta.
— Quando jogou o saco, achei que fossem moedas. Passei todo o tempo
achando que tinha vendido meu próprio filho. Mas depois entendi que Phillip
tinha o direito.
Viollet alisou as joias na cama.
— Muitas delas são falsas, mais uma artimanha de Phillip. Entreguei a
você as réplicas. Não daria muito, mas lhe garantiriam um teto e comida.
— No dia em que fugi da cabana também?
— Não — ela olhou para baixo —, dei todas, sabia que garantiria o
futuro de Flora. — Respirando fundo, continuou. — Não era para ter gastado a
munição com Phillip, era para mim, mas ele não me concedeu nem mesmo o
direito de morrer — confessou em um sussurro embargado.
— Você não faria isso. Não pensou em Flora?
— Flora ficaria bem, tem quem olhe por ela. — Depois de uma longa
pausa, continuou. — Naquela noite eu me desesperei, não pela morte de Phillip,
mas por continuar viva. Ele tinha duas armas, éramos três pessoas. Certamente o
único que sobreviveria seria o pequeno Paul.
Marie levou a mão à boca, assustada.
— Paul foi o sopro de esperança, um motivo a mais para lutar, em um
momento difícil. — A viúva tocou a mão da amiga. — Quando Sarah me
entregou as joias e sua carta, eu soube que a luz havia chegado para você.
— Pode chegar para você também, Viollet, estava tão bem. Todos
comentaram que nem mesmo o véu estava usando. John a ama.
— Não! Jack me confunde, ele me cega, faz com que nada mais exista
em volta. E eu tenho penitências, uma grande dívida com Deus.
— Você tem Flora, tem a mim, tem todos nós.
Viollet começou a guardar as joias na bolsa.
— Estou decidida, assim que Flora receber uma proposta de casamento,
vou para uma abadia.
Marie não disse nada, somente anuiu com pesar. Viollet guardou o saco
de veludo, impassível, com uma determinação que jamais sentira. Colocou a
touca e o véu sem se olhar no espelho.
— Por favor, gostaria de ver Izadora.


Capítulo XI

John estava confiante, o jantar da noite anterior lhe trouxera esperanças.
Em breve todos os Ansons estariam casados e gozando de um matrimônio
repleto de amor. Até mesmo o patife indecente de Anthony, que demonstrava
desmedida adoração por Ann, merecia seu afeto.
Na porta do gabinete de Lorde Willian Granville, pensara em desistir
inúmeras vezes. Mas precisava de respostas e, mesmo que essas viessem daquele
que todos acreditavam ser seu avô, não recuaria.
Ele bateu, não esperou ser atendido. Willian estava sentado, debruçado
sobre papéis, e se levantou imediatamente, logo que o viu.
— John. — Ele parecia emocionado, mas ao mesmo tempo receoso. —
Eu não o esperava, mas é um prazer recebê-lo. Um brandy?
— Não bebo a essa hora — falou enquanto se sentava.
— Esperei tanto para que pudéssemos conversar. — Lorde Granville se
acomodou em sua cadeira.
John se inclinou colocando os cotovelos sobre a mesa.
— Lorde Granville, não mudei de ideia em relação a nada que
conversamos. Quero honrar o sangue que carrego, devo isso a minha mãe. Quero
manter minha palavra. Não há nada que o desabone, mas permitir uma
aproximação seria uma traição. — Fez uma pequena pausa. — Aconselhado por
meu pai, vim procurá-lo, pois ele acredita que tem as respostas que procuro.
Willian se recostou à cadeira.
— Pergunte o que quiser.
— Lady Viollet Thompson, esse é o único motivo que me traz aqui.
Quero saber por que ela se casou.
— Não tenho essa resposta. Acredito que só ela poderá lhe dar.
John fez menção de se levantar.
— Espere. Não sei o motivo, mas tenho algumas informações que talvez
possam ser úteis.
— Por favor, não me torture.
Lorde Granville levou as mãos às faces, respirou fundo e encarou John
com uma expressão de culpa.
— Allan Smith, o falecido visconde de Derby, pai de Phillip Smith, fora
meu sócio por longos anos. — O banqueiro se levantou e serviu uma bebida. —
O que vou lhe contar não pode sair daqui.
— Só preciso de respostas.
— Joana se envolveu com ele, minha filha foi amante de Allan por
muitos anos, e isso fez com que nossa sociedade acabasse. O conde de Devon,
pai de Viollet, contraiu muitas dívidas quando sua esposa adoeceu. Ele não tinha
talento para os negócios e a perda da mulher fez com que seu prejuízo
aumentasse. Parte dessas dívidas ficou com Allan, nada significativo, boa parte
ficou comigo.
— Acha que Phillip pressionou Viollet a se casar por causa dessas
dívidas?
— Dessas não, mas dessas. — O velho retirou um envelope de couro da
gaveta. — Esses papéis foram roubados de meu gabinete e reapareceram logo
depois que Phillip se casou. Ele me vendeu as dívidas que me pertenciam.
— E não fez nada?
Willian cruzou as mãos diante da boca e deu um longo suspiro.
— Não estavam nominais, eram ao portador. — Ele estendeu o envelope
à frente. — Comprei-as de volta por saber o que a família Thompson representa
para você, em especial Lady Viollet.
— Não tenho como pagar por isso, não no momento. Se puder guardar...
— Escute, mesmo que me renegue, eu o tenho como neto. A minha
Julliet os amou como filhos, todos, até mesmo Sarah, que sequer chegou a
conhecer. Por favor, aceite.
John ficou parado sem saber o que fazer, temia estar traindo a própria
mãe.
— Não sei se devo.
— De qualquer maneira, elas serão queimadas se não aceitar. Acredito
que terá prazer em fazer isso. O conde de Devon recebeu um título de cortesia,
suas propriedades não estavam vinculadas ao título. Sei que Lady Viollet está
hospedada na casa de Thomas...
— Eu os aceitarei, por Viollet.
— John...
— Por favor, não insista.
— Tudo bem.
— Serei eternamente grato. Se tiver algo que possa...
— Só peço que me aceite.
John pensou em dizer que talvez pudesse aceitá-lo em sua vida, mas não
como um avô. De alguma maneira, sentiu que não deveria permitir uma
aproximação. Despediu-se em silêncio e partiu, com a pasta de documentos.

***

Logo que Viollet entrou nos aposentos em que Izadora fora instalada,
pediu que Marie as deixasse a sós. A brasileira não esboçou nenhuma reação ao
ver a viúva. Estava parada diante da janela, olhando para o lago congelado.
Viollet também não disse nada, ficou observando a elegante mulher a sua
frente; era bonita, apesar dos atributos fora dos padrões. Elegante, embora a
escolha de cores não fosse adequada, ressaltava sua exuberância. Izadora parecia
ser uma mulher forte, determinada. A brasileira lembrava quem Viollet fora um
dia, ou quem desejava ser.
— Desculpe, quer se sentar? — Izadora ofereceu um canapé do outro
lado do quarto.
— Gostaria de conversar com você.
— Imaginei. — Ela se sentou ao lado de Viollet. — John é um bom
homem, amigo, companheiro e sempre prestativo. Sabe ser um bom ouvinte,
uma virtude rara.
Apesar da dor que sentia, Viollet não recuou. Havia admiração entre eles
e esse era, sem dúvidas, um bom começo. Em uma breve e silenciosa oração,
pediu a Deus que lhe desse forças para cumprir o objetivo de sua visita.
— John é leal, pode parecer perdido em alguns momentos, mas é
dedicado. Precisa ter motivos para se focar. Tem uma queda especial por
desafios. — Respirou fundo para continuar. — É afetuoso, espirituoso, nenhum
momento ao lado dele é tedioso. Só tome cuidado para que ele não a confunda,
ele tem o dom de subverter a ordem. — Sorriu brevemente.
— Sem dúvidas é um cavalheiro louvável, nisso estamos de acordo.
Viollet se ajeitou melhor na poltrona.
— Os Ansons não são o que podemos chamar de exemplo de
tradicionalismo, mas são humanos e têm muito prestígio na sociedade.
Conseguem disfarçar com maestria, aos olhos de todos, o que realmente
acontece entre quatro paredes. — Ela tocou a mão de Izadora. — Lucy não
aceitará tornar-se duquesa enquanto não vir Ann e John casados. — Teve
vontade de dizer que se sentira pressionada, mas se conteve, seus sentimentos
não eram o foco daquela conversa. — Será uma esposa encantadora...
— John a ama.
— Não estarei aqui, eu me comprometo em me confinar para atender aos
desígnios de Deus. Não serei um empecilho para vocês. — Com o coração em
pedaços, garantiu. — Ele aprenderá a amá-la e você não terá dificuldades para se
apaixonar por John.
— Veio até aqui para me convencer a casar com John?
— É o melhor partido da temporada, não poderia fazer casamento
melhor. — Olhou para a janela, concentrada em se conter.
Izadora envolveu a mão de Viollet.
— Eu buscava respostas quando entrou aqui, e você me deu. — Sorriu
ternamente. — Ama-o tanto a ponto de abrir mão dele para vê-lo se casar com
outra?
— Não se trata de amor. — Viollet olhou para baixo.
— Não minta para mim, não poderia partir sem se importar com nada. E
não me diga que é por Lucy ou pelos Ansons.
— Sim, eu o amo. Mas há diversos motivos que me impedem de me
entregar a esse sentimento; eu fiz escolhas e devo arcar com as consequências.
— Você entrou aqui, parecia mais fria que o lago que vi da minha janela.
Vejo-a sempre séria, arredia. Por que acho que essa não é você?
— Não sei quem sou. — Retirou as mãos da dela. — Mas isso não
importa. Acho que podem ser felizes juntos.
— Não me casarei com John, sinto muito decepcioná-la, embora ache
que está feliz com isso. Amo Edward, vim para a Inglaterra com a esperança de
... — Ela tomou fôlego. — Como você mesma disse, fiz escolhas e devo arcar
com as consequências. Não me casaria com outro inglês senão Edward Baldwin.
Talvez nem me case e aceite seu conselho de viver em um convento. Mas não, eu
jamais me colocaria no meio de um amor tão puro e verdadeiro.
— Sinto muito, eu não devia...
— Você me deu a resposta que eu procurava. O amor verdadeiro abre
mão da própria felicidade pelo outro. Mas eu lhe garanto, John não será feliz
com mais ninguém. — Izadora se colocou de pé. — Parto logo depois do baile.
— Deveria ficar um pouco mais, quem sabe você e Edward não se
acertem.
— Só adiaria minha partida se fosse para presenciar seu casamento com
Lorde John. E, caso parta sem presenciar esse matrimônio, tenha certeza de que
mesmo distante continuarei torcendo por vocês.
Naquela tarde, Viollet voltou para seu quarto atordoada e ainda mais
confusa. Por que tudo parecia conspirar contra sua razão e bom senso?

***


Durante a semana Viollet se manteve reclusa, estivera somente no atelier
bem cedo, para pintar. Não queria correr o risco de encontrar-se com Jack.
Empenhava-se em terminar a pintura da marquesa, faltavam dois dias para o
baile de aniversário de Sarah.
Ao observar a tela, percebeu algo peculiar. Faltava o brilho nos olhos. A
forma como Sarah e Thomas se olhavam era uma silenciosa declaração. Fez
retoques tentando recordar-se dos detalhes que captava a cada vez que os via
juntos. Contemplando a imagem do casal, acreditava que a marquesa falava a
verdade, ele não seria capaz de agredi-la.
— Let.
Ele estava lá. Pelo tom de voz, Viollet soube que estava chateado com
alguma coisa. Era o momento ideal para colocar um fim em tudo. Ela o ignorou.
Buscava forças para perder a razão e afastá-lo de vez. Até que ele tocou seu
ombro, foi o gatilho de que precisava.
— Não toque em mim!
— O que houve? — Ele parecia preocupado.
— Quem lhe deu o direito de redecorar meus aposentos? De ordenar que
minha criada não respeitasse meu luto? — Aos poucos deixava que a raiva a
tomasse. — Não tem o direito de fazer de mim o que bem entende, não pode
mandar em minha vida. Eu não me casei com você.
Viollet estava confiante, sentia o corpo latejar, a fúria dominava seus
poros. Ela conseguiria.
Talvez realmente conseguisse se ele, mais uma vez, não a desarmasse. O
corpo robusto a pressionou contra a parede, ela não teria como reagir. Estava
apavorada? Amedrontada? Talvez anestesiada, como em uma longa tragada de
clorofórmio. Uma paralização momentânea de todos os sentidos. Era isso que ele
fazia.
— Não me casei com você, ainda. — Ele estava bem próximo. — Não
tenho direito a nada, mas tenho a obrigação de fazê-la feliz — e mais um beijo.
Um assalto. Uma surpresa. Um toque agora conhecido, que despertava
pavor, medo, angústia, mas que em pouco tempo se transforma em necessidade,
em fôlego, refresco. Ele a dominava, entorpecia, roubava-lhe a sanidade e a
razão. Viollet respirou fundo e o afastou.
— Não pode fazer isso — a voz, que antes bradava determinada, era
fraca. — Não vê o mal que me faz?
— Jamais faria qualquer coisa para magoá-la. Vou protegê-la...
— Eu não sou sua. Não pode fazer comigo o que bem entende.
Ele não se afastou, continuava pressionando-a.
— Não, você definitivamente não é minha, mas eu sou seu. — Ele deu
um passo atrás. — Não pode me culpar por confundi-la, eu só estou tentando
fazer com que se sinta melhor. O que foi aquilo no jantar? Eu a pressionei? Na
cabana em Lilleshall, eu a coagi a tomar brandy e a valsar comigo? Não, aquela
era a minha Let. Nada vai apagar o que vivemos.
Lentamente ele tocou a face de Viollet fazendo com que ela fechasse os
olhos, um beijo delicado no queixo, depois nos lábios.
— Eu a amo e sinto que me ama na mesma medida.
— Jack...
E, antes que ela pudesse retrucar, foram surpreendidos pela presença de
Izadora, que sorria enquanto fazia uma reverência. John não se afastou.
— Espero não estar atrapalhando — a brasileira se desculpou.
— Não, Lorde Anson já estava de saída. — Viollet o empurrou com as
mãos apoiadas nos ombros dele.
John segurou as mãos nuas e beijou demoradamente cada uma delas.
Com uma vênia exagerada, partiu deixando-as a sós.
— Está tudo bem? — Izadora perguntou ao ver que Viollet se mantinha
estática.
— Não... quer dizer, sim.
— Estou curiosa para ver a pintura de Sarah.
— Não posso deixá-la ver. — Aos poucos recobrava os sentidos. — É
uma pintura íntima.
— Não será novidade ver uma mulher nua. Por favor, preciso saciar
minha curiosidade. Há muitos rumores sobre seu talento.
— Não há nudez, isso seria inaceitável.
Izadora deu uma gargalhada contagiante. Viollet se viu sorrindo também.
Vencida pela insistência, permitiu que a estrangeira contemplasse a pintura.
— Está realmente magnífica, porém confesso que esperava algo mais
ousado vindo da marquesa.
— O contorno dos seios está à mostra, não vejo o que pode ser mais
ousado que isso.
Izadora sorriu e seu olhar se iluminou.
— Amanhã será o baile de máscaras, gostaria de partir em dois dias, no
mais tardar três.
— Deveria ficar para o casamento de Ann, ela aprecia tanto a sua
companhia.
— Só um motivo me faria adiar minha viagem.
— Qual seria?
— Quero que me pinte, fico até que termine.
Viollet, surpreendida com o pedido, caminhou até a bacia e começou a
lavar as mãos. Ainda se recuperava do embate com Jack e jamais esperaria um
pedido como aquele.
— Quero dar a pintura a Edward, minha última tentativa.
— Está me deixando em uma situação embaraçosa. Se me negar, estarei
virando-lhe as costas.
— É um pedido desesperado, não vejo mais nada que eu possa fazer
para...
— Pintarei você. Por favor, sente-se. Ficará mais confortável.
Izadora caminhou pelo cômodo fechando as cortinas e trancando a porta.
Para a surpresa de Viollet, a brasileira começou a se despir por completo.
— Não é necessário...
— Quero que me pinte nua, essa é a lembrança que quero deixar para
Edward.
— Mas...
— Por favor, ajude-me aqui.
Sem refletir sobre a loucura que estava prestes a fazer, Viollet ajudou
Izadora a se despir, deixando a brasileira somente de camisola. A viúva conferiu
todas as janelas, não correria o risco de que alguém as visse. Certa de que ficaria
constrangida e de que seria a situação mais embaraçosa de sua vida, foi até o
gabinete de John e pegou uma garrafa de brandy.
Serviu duas doses e ofereceu uma à estrangeira, que já estava nua,
deitada no canapé. Izadora não parecia se importar com o fato de que seus pelos
ficariam à mostra.
— Acho que, se fizermos somente os contornos, poderá ficar sutil —
sugeriu Viollet, segurando o próprio copo ainda intocado.
— Preciso que seja fiel a cada detalhe, não quero um esboço, quero um
retrato. Tão fiel quanto possível, quero que Edward me veja como sou, sem
roupas, sem máscaras sociais, quero dar a ele Izadora.
Viollet virou o cálice em um único gole e serviu outro. Izadora ergueu a
pequena taça no ar e a acompanhou. Foram necessárias três antes de começarem.
— As inglesas são muito melindrosas, soube que muitas tomam banho
vestidas — a brasileira observou, já no quarto cálice.
Viollet riu e serviu mais uma dose para as duas.
— Por favor, mate minha curiosidade. Suas roupas de baixo também são
negras? — Izadora estava a cada vez mais desinibida. — Deve ser instigante,
imagino como um cavalheiro deve reagir ao ver trajes negros por baixo da roupa.
— As meias também, não é de bom-tom usar nenhuma outra cor antes de
um ano. — A viúva se sentia relaxada.
— Quando conheceu John?
— Desde sempre, não me lembro exatamente quando. Os Ansons sempre
estiveram presentes em nossas vidas.
— Acho o duque um homem muito elegante.
— Sim, ele é, Jack se parece muito com ele.
— Jack — Izadora testou as palavras.
— Trocávamos cartas, inventamos Jack e Let para assinar e preservar
nossa identidade, mas acho que todos sabiam. Meu pai não era tão liberal quanto
os Ansons, mas Lucy sempre encontrava uma maneira de acobertar nossos
passeios no rio, as fugas para o jardim de inverno.
A viúva serviu mais uma dose generosa para as duas.
— E você? Desde quando conhece Lorde Edward?
— Há quatro ou cinco anos. Ele passou uma temporada no Brasil. Eu me
apaixonei, acreditava que era recíproco. Também tomamos banho no córrego e
nos beijamos, eu quis me entregar a ele. Mas Edward é um cavalheiro honrado,
não desvirtuaria uma donzela. — Ela gargalhou e se levantou para servir mais
uma dose.
— Parece muito à vontade com o próprio corpo.
— E você não?
— Tenho marcas, antes não ligava. Jack, quer dizer, John já o viu
algumas vezes com as roupas de baixo empapadas pelos banhos de rio. Mas hoje
acho que não teria coragem de mostrar a ninguém.
— O que houve?
— Varas, açoites. — Viollet deu de ombros. — Qualquer objeto que não
ultrapassasse a grossura de um dedo, essa é lei do polegar.
— Nunca teve vontade de enfiar uma vara no rabo dele?
Viollet caiu na gargalhada.
— Por onde saem as fezes? Não tive essa ideia, mas vou me lembrar dela
caso precise.
Izadora vestiu sua roupa de baixo e se sentou no tapete, trazendo a
garrafa para perto.
— Venha, sente-se; se estiver com a vista embaralhada como a minha,
não conseguirá mais pintar. — Izadora tomou um generoso gole direto da garrafa
e a ofereceu para Viollet. — Se pudesse fazer um único pedido, qual seria?
— Gostaria de voltar a ser quem fui um dia — a viúva declarou
nostálgica.
— Pois hoje será exatamente isso que fará. Quero conhecer a Let por
quem Jack se apaixonou.
Uma garrafa não fora suficiente para que se soltassem como desejavam.
Viollet precisou voltar ao escritório de John. Não havia mais brandy, só um puro
malte.






Capítulo XII


No gabinete do marquês e da marquesa de Bristol, a reunião seguia
acalorada. O primeiro-ministro observava Sarah discursar sobre o projeto de lei
que estava apresentando.
— ... me parece razoável, não encontraremos muita resistência —
Edward ponderou.
— Precisamos encontrar um tory para apresentar o projeto — Sarah
completou —, talvez meu pai. Ele tem prestígio...
— Quer colocar meu pai nessa ideia infundada? — questionou John.
— John, é um projeto de lei humano, garante assistência a trabalhadores
acidentados — Thomas intercedeu.
— O que endossa a construção de máquinas sem o mínimo de
responsabilidade e zelo. — John se virou para a irmã. — É isso que sonhou para
sua vida política, ser conhecida por dar assistência aos acidentados, mas que eles
se lembrem, toda vez que passarem na porta de sua tecelagem, que foi ali que
perderam seus braços?
O marquês coçou o queixo.
— Talvez, se apresentássemos um projeto para inspecionar as máquinas
das fábricas, verificar a segurança — Thomas sugeriu.
— Quem aprovaria? Os custos são altos, Thomas — Edward ponderou
novamente.
— É mais barato dar assistência ao acidentado, não é mesmo, Sarah? —
John alfinetou.
A marquesa não soube como responder. Thomas, percebendo a tensão
entre os irmãos, interveio:
— Por que não vamos jantar? Lady Viollet e Lady Izadora já devem estar
nos aguardando.
— Acho que preciso ir — o primeiro-ministro se adiantou.
— Por favor, fique Edward — Thomas insistiu. — John tem razão,
precisamos elaborar um pouco mais o projeto.
— Sim, acompanhe-nos no jantar. John tem ideias tão sensatas. Pode nos
ajudar a melhorar a proposta — Sarah insistiu.
Seguiram até a sala de jantar. Surpreenderam -se quando a governanta, a
Sra. Pia Pattel, informou que Izadora e Viollet ainda estavam na casa de caça.
— Vou buscá-las — John se adiantou. — Acompanha-me, Edward?
— Acredito que minha presença seja desnecessária.
John ignorou a recusa do amigo e o segurou pelo braço, quase que o
arrastando.
— Não é um bom momento para um novo embate com Izadora. — O
primeiro-ministro bufou.
— Talvez não aconteça um embate. Izadora é uma mulher espirituosa, se
saiu da sua casa acredito que justamente queria evitar qualquer desavença.
— Ela me tira o juízo.
— É uma bela dama, posso arriscar a dizer que tira o juízo de todos por
onde passa. — John ofereceu uma piscadela zombeteira.
— Ela faz para me provocar. — Ele caminhava em passos duros.
— Talvez você se sinta provocado sozinho, meu querido amigo. Andei
pensando, seria ela a mulher incrível que conheceu tempo atrás? Aquela pela
qual não escondeu a admiração até pouco antes de se tornar primeiro-ministro?
— Izadora não tem limites.
— Sarah também não, e você nutriu uma grande admiração por ela.
— Não quero falar sobre isso. Foi um grande erro.
— Está certo. — John ergueu as mãos em rendição.
Não demorou muito para que chegassem à cabana. John estranhou, pois
as cortinas estavam fechadas e a porta, trancada.
— Elas não devem estar aí — Edward falou, dando meia-volta.
John contornou a construção e espiou pela janela de seu gabinete. Voltou
rapidamente e bateu à porta.
— Let! Está aí?
— Vá embora, Jack, é uma reunião de damas. — Ele reconheceu a voz
trôpega de Viollet.
Ouviram as gargalhadas estridentes, abafadas pela pesada porta de
madeira.
— Let, abra a porta.
— Izadora? — Edward a chamou no impulso.
— Ó Edward, veio me ver? — Mais gargalhadas. — Arrependeu-se? —
a voz da brasileira parecia estar bem perto.
O primeiro-ministro bufou e fez menção de partir. John o segurou.
— Estão bêbadas, vou precisar de sua ajuda.
Poucos segundos depois, a porta se abriu. Izadora vestia as roupas de
baixo. John virou o rosto rapidamente e percebeu que Edward não desgrudava os
olhos da estrangeira de curvas voluptuosas.
John sentiu uma mão o empurrando.
— Não olhe para ela, seu patife. — Let estava descalça, sem os sapatos e
as meias. — Ela é de Edward e você é meu — as palavras emboladas mal saíam,
ela cambaleou para frente e John a segurou.
— O que andou bebendo?
— Muita coisa. — Ela tinha um sorriso travesso.
John retirou o casaco e rapidamente envolveu Viollet. Pegou-a no colo e,
sem se importar com Izadora e Edward, começou a caminhar em direção a casa.
— Suponho que por “muita coisa” você se refira à bebida que deixei em
meu gabinete. — Ele sorria. — Nunca a vi desta maneira.
— Izadora é uma péssima companhia. — Ela gargalhou e parou devido
ao soluço. — Avisei que não daria certo dividirmos a cabana.
— É, você avisou. Vou começar a levar em conta suas considerações.
Ela deu um tapa no ombro dele.
— Não me leva a sério?
— Só quando está descalça e sem meias. — Ele sorria amplamente. —
Está linda.
— Meus sapatos, preciso pegá-los.
— Mando pegar depois.
Viollet recostou-se ao ombro dele e fechou os olhos. Ele a levou até os
aposentos dela. John a depositou na cama e ela se remexeu.
— Vai me deixar dormir vestida? — Abriu os olhos logo depois que ele a
soltou.
— Vou chamar sua criada, milady. E pedir que lhe preparem algo de
comer.
— Não! — Ela se sentou desajeitada. — Você mesmo pode fazer isso.
John a avaliou por alguns instantes. Viollet parecia segura do que pedia.
Cautelosamente, ele começou a desabotoar o vestido, suas mãos tremiam. Diante
dele estava sua Let, e ele estava prestes a se livrar das roupas negras. Era uma
tentação despi-la, precisava de algo para se distrair. Optou por provocá-la.
— Receio que vá se sentir envergonhada com sua criada, milady... devido
ao seu estado de embriaguez.
— Não estou embriagada — ela contestou entre soluços, enquanto seu
corpo tombava para o lado.
John a ajudou e a segurou. Começou a desamarrar o espartilho preto,
deslumbrado com a oportunidade que mais uma vez lhe era concedida. Ela não
travou, parecia não se importar. Os olhos desfocados o observavam.
Quando John a viu somente com as roupas de baixo, teve certeza de que
não se controlaria. Ela vestia preto, uma fina mistura de tecido nobre e renda,
destacando a pele alva. Quando retirou as saias emboladas na perna, Viollet
estava recostada à cabeceira e ele viu as marcas. Várias cicatrizes. Sem
conseguir se conter, ele se abaixou. Beijou uma a uma. Sem pressa, como se o
carinho pudesse apagá-las.
Viollet gemeu sorrindo. Ele queria continuar, mas não podia. Sabia que
ela não estava plena de suas faculdades mentais, estava sob efeito de álcool. Ele
não podia.
— Por que parou? — O ombro à mostra era uma tentação.
— Não vai me perdoar se eu continuar. — Tocou-lhe a face com carinho.
— Não a quero por uma noite, eu a quero pelo resto de nossas vidas.
— Não vai me beijar?
— Quer que a beije?
— Não me importaria. — Ela deu de ombros.
Ele chegou bem perto, Viollet o abraçou.
— Se não se importa, pode se dar ao trabalho. Tenho beijado você
sempre, tenho saudades de quando você ...
Ele não terminou, ela não permitiu. Viollet o beijou. John sentiu o gosto
de uísque misturado a vinho do Porto. Ele a segurou sob o delicado tecido, ela o
abraçava com vontade, as mãos delicadas acariciavam-lhe os cabelos.

***
O valete ajeitava a gravata de John, que observava a própria imagem no
espelho. O beijo da noite anterior fora uma resposta. Anthony certa vez dissera
que a bebida trazia à tona a verdadeira essência e, se Viollet o beijara daquela
maneira, o tempo não apagara o amor que ela sentia.
— Não deveríamos tentar um lenço? — Naquela noite ele queria
impressioná-la, conquistá-la. — David tem usado e parece mais elegante.
— Não para a ocasião, milorde.
— Onde está minha máscara?
— Está em cima da cômoda, meu senhor. Parece agitado.
— Estou ansioso para vê-la.
O valete deu um breve sorriso. Pelo espelho, John viu o momento em que
sua mãe entrou no quarto, fez uma reverência pelo reflexo e virou-se para vê-la.
Lucy estava deslumbrante, em um vestido branco, ornado por rendas douradas.
Os cabelos impecavelmente presos ostentavam uma bela joia. O tempo parecia
não ser capaz de castigar tamanha beleza. Ele se aproximou e beijou-lhe a mão.
— Não me olhe assim, estou com os nervos à flor da pele.
— É a dama mais bela de todo o Reino Unido.
— Não diga bobagem, falará a mesma coisa para Viollet.
John sorriu. Não negaria. Sua mãe o conhecia como ninguém.
— Somente para as mulheres de minha vida.
Logo que o criado deixou o quarto, ela se adiantou:
— Querido, vim aqui lhe fazer dois pedidos.
— Peça o que quiser, milady.
Lucy caminhou até a cama e se sentou.
— Lorde Granville, esse é o assunto. Ele me procurou, disse que lhe
entregou as dívidas do pai de Viollet, mas que as posses das casas ainda estão
com ele.
— Eu vi, imaginei que tivessem sido vendidas.
— Ele quer lhe dar.
— Não posso aceitar, mãe.
— Precisa ceder, John. É o melhor presente que pode dar a Viollet, tenho
certeza de que Julliet ficaria feliz.
— Há algo em Lorde Granville...
— Não importa. Ele quer lhe dar, você não tem uma casa para morar caso
se case. Sei que não vai aceitar a ajuda de seu pai. Não seja orgulhoso.
— Estarei traindo nosso sangue.
— Livre-se desse fardo, é um pedido meu. Acredito que seja justo, por
isso o estou aconselhando a aceitar a oferta de Lorde Granville.
John anuiu e sua mãe beijou-lhe o rosto.
— Mas não vou permitir uma aproximação, não me sinto confortável.
— Não precisa aceitar nada além do que é seu por direito.
— Qual é o segundo pedido?
Ela sorriu balançando a cabeça.
— Não vou acompanhada de seu pai ao baile, ainda estou brava com ele
por ter me escondido o título e, com você, por ter dito tudo a Sarah, sem falar
comigo antes. — Ela deu de ombros e ofereceu um sorriso maternal. — Poderia
me acompanhar no baile esta noite?
John a olhou com admiração.
— Com todo o meu prazer, milady. Mas só a acompanharei se ceder ao
final da noite e acabar com a tortura do duque de Sutherland.
— Só o farei porque está pedindo. — Ela piscou.
— Não seja lisonjeira, Sra. Turner, sei que está com saudades do duque.
— Talvez. — Ela ajeitou a gravata do filho. — Talvez.

***

Viollet permanecia deitada. Passara o dia anterior indisposta pelo excesso
de bebida que consumira. Estava envergonhada por ter se embriagado e por ter
sido carregada por John. Temia que alguém os tivesse visto.
Do lado de fora, o movimento de Groove House era audível, faltava
pouco mais de um quarto de hora para o baile começar.
Quando viu a irmã entrar em seus aposentos, um sorriso genuíno brotou
em seu rosto. Flora estava belíssima. A viúva levantou-se rapidamente para
cumprimentá-la.
— Ainda não se vestiu?
— Vou me trocar daqui a pouco. Deixe-me ver você. — Viollet estava
orgulhosa e Flora deu um giro. — Como está linda. Espere. — Ela seguiu para o
quarto de vestir e pegou a bolsa de joias.
Viollet separou um delicado broche que sua mãe sempre usava em
ocasiões especiais. Ela o colocou na gola do vestido da irmã.
— Fique com ele. — A viúva contemplou a peça, nostálgica.
— Não é justo, Viollet, sei que precisamos vendê-lo. O duque e a
marquesa têm arcado com minhas despesas, mas você precisará de um lugar para
morar depois que eu me casar. Não aceitaria viver comigo.
— Não se preocupe com isso, Flora. Mamãe ficaria feliz em ver você
usá-lo. Não era uma das joias da vovó, esse o papai deu a ela no dia em que se
casaram.
— É lindo. — A debutante acariciou a peça e beijou a irmã. — Preciso ir,
Sarah está me esperando. Por favor, não demore.
Antes de Flora sair, a porta se abriu e Izadora entrou. A brasileira usava
um vestido verde, com detalhes prateados. Como sempre estava elegante e
ousada, uma mistura característica dela. A estrangeira esperou a debutante sair
para comentar:
— Não se fala em outra coisa. O retrato de Sarah e Thomas é um
sucesso.
— Não acredito que mostraram para alguém.
— Pelo que sei, ninguém viu, mas o marquês não para de elogiar.
Quando foi que o entregou?
— Hoje de manhã finalizei e entreguei com a tinta ainda úmida. Ontem
mal consegui me levantar da cama.
— Não me lembre disso. — A brasileira levou a mão à testa, fazendo
uma careta.
— Você é uma péssima influência. — Viollet sentou-se na cama e cruzou
as pernas.
— Não fui eu que saqueei as bebidas de John. — Izadora pegou a cadeira
e se sentou elegantemente.
— Mas tomou quase todas.
— Metade. — Ela sorriu desavergonhada. — Onde está seu vestido? Sua
máscara?
— No quarto de vestir, estregaram esta tarde.
— De que cor é?
— Naturalmente preto, mas ainda não o abri.
— Como pode ser assim? Uma obra-prima de Heloise, desenhada por
Marie, sendo negligenciada dessa forma. Vamos, vou ajudá-la a se vestir.
— Não é necessário, posso chamar Paige.
— Lembre-se de não beber, o álcool não lhe faz muito bem. — Izadora
seguiu para o quarto de vestir e voltou com roupas de baixo e meias.
— Ande, vista-se sozinha. Quando a levar para o Brasil, vai perceber que
é uma ostentação descabida ter alguém para lhe calçar meias.
— Não vou para o Brasil. — Viollet começou a vestir as meias de seda
transparentes. — Essas meias não são pretas.
— Marie nunca me decepciona. — A brasileira piscou. — Estive
pensando, se não se casar mesmo com seu Jack, virá comigo. Posso garantir que
irá se divertir muito.
— Sou uma mulher enlutada, Izadora. E não consigo imaginar que tipo
de diversão seria essa. — Viollet fez uma careta. — É uma libertina descarada.
— A viúva estava se divertindo.
— A melhor espécie de companhia, minha cara. Bem, vamos ver o que
temos aqui.
Izadora retirou o tecido que cobria o vestido. Roxo com rendas douradas,
uma verdadeira obra-prima.
— Não vou usar isso.
— Ainda não percebeu que não terá escolha? É um baile para poucos
convidados, somente amigos íntimos.
— Você não acreditou nisso, não é mesmo? Discrição não é algo que
combine com Sarah.
— Estará de máscara, qual é seu medo? Jogar-se nos braços de Jack
novamente?
Viollet cobriu o rosto envergonhada. Izadora estava extasiada com a
máscara de filigrana dourada.
— Você não fez diferente. — Ela se levantou e começou a colocar as
anáguas. — Veste-se mesmo sozinha?
— Não, mas isso nunca matou ninguém, um pouco de independência às
vezes é libertador.
— Você não me disse tudo o que aconteceu anteontem.
— Não quero falar nisso. Só comprovei o que já desconfiava. Edward
admira meu corpo, mas não quem sou. Uma libertina descarada está muito longe
dos padrões ingleses.
— Não é uma libertina. — Viollet colocava o vestido com dificuldade.
— É impossível vestir tudo isso sozinha. Não vi espartilho.
— Sem espartilho, mulheres livres não precisam de jaula. — Apesar de
seu próprio vestido dificultar seus movimentos, ela ajudava a amiga. — Sei que
não sou uma libertina, mas talvez seja assim que ele me veja. E você,
naturalmente.
— Falei para provocá-la. — Viollet avaliou a própria imagem refletida
no espelho. — Isso é inapropriado em muitos níveis.
Izadora fechava os botões um a um, aos poucos, deixando o colo quase
todo à mostra.
— Ainda não terminamos. — Uma ostentosa gola dourada, feita de
renda, com uma trama fechada trabalhada com primor, combinava perfeitamente
com a barra do vestido. — Uma verdadeira princesa. Dentro do tão esperado
decoro inglês.
— É lindo.
— Viu? Tem que deixar de ser tão rancorosa. — Izadora deu um passo
atrás para avaliá-la. — Talvez devamos chamar a minha criada para arrumar seus
cabelos, nada de orelha coberta, precisa de um brinco.
Viollet pegou o saco que jazia na cama e espalhou as joias para escolher
uma peça para usar. Izadora se aproximou e avaliou cada peça.
— São imitações muito bem-feitas, belíssimas.
— Algumas são verdadeiras.
— Não, não são. Talvez esse camafeu ou essa corrente. Mas confie em
mim, de ouro eu entendo. Vou pegar algo para você e trazer a criada.
Viollet desabou na cadeira. Estava enganada, não sobrara nada. Phillip
havia substituído todas as peças. Seu tesouro fora dilapidado.


Capítulo XIII

Enquanto descia as escadas ao lado de Izadora, Viollet sentiu um breve
arrependimento de ter concordado em participar da festividade. Não se sentia
preparada para reencontrar John, não depois de tê-lo agarrado e permitido que
ele beijasse suas pernas. Um rubor tomou-lhe as faces com a lembrança do
momento íntimo.
Na base das escadarias o duque de Sutherland a aguardava. Era um
homem elegante, imponente e seu porte não fazia jus às suas cinco décadas e
meia. Ao lado dele, estava Edward que não tirou os olhos de Izadora um só
momento.
— Comporte-se — Viollet sussurrou ao ouvido da brasileira antes de
aceitar a mão do duque, que estava estendida.
— Minha querida, como está linda. Permita-me acompanhá-la uma vez
que John monopolizou a futura duquesa.
— O senhor não parece muito satisfeito com isso, vossa graça. — Ela
aceitou o braço com carinho.
— Não sou muito bom em disfarces, estava contando com a máscara. —
Ele piscou e sua expressão era de puro sarcasmo.
— Não tenho palavras para agradecer tudo que tem feito por mim e por
Flora.
— Talvez uma valsa? Ou duas.
Viollet viu no duque o mesmo sorriso de John. E foi impossível não
imaginar como Jack seria em alguns anos. Era bom se sentir amparada, a
insegurança de voltar ao convívio social evaporara. Estar na presença de
Augustus era nostalgicamente reconfortante.
Entraram juntos no salão de baile de Grove House. Izadora e Edward
estavam logo atrás. Não havia tantas pessoas como esperava, Sarah pareceu ter
selecionado a dedo os convidados, amigos próximos, constatou à medida que
tentava reconhecer os presentes.
— Lucy deve estar nervosa.
— Comigo está furiosa, mas tivemos o cuidado de escolher somente os
convidados que já a aceitavam. Muitos ali sequer sabiam de sua existência. Para
todos os efeitos, uma baronesa.
— Uma linda baronesa e a futura duquesa de Sutherland.
— Assim como você, milady. — O duque beijou a testa de Viollet e se
afastou.
Izadora e Viollet ficaram em um canto, enquanto Edward e Augustus
buscavam os cartões de baile. A viúva percebeu que a brasileira observava um
lacaio, que carregava uma bandeja cheia de taças de vinho.
— Não pense nisso.
— Somente um gole, a proximidade de Edward me deixa tensa.
— Vi como ele a olhou.
— Não se iluda, essa proximidade é só para garantir que não vou fazer
nada para envergonhá-lo. Ele me considera uma selvagem.
— Libertina, descarada e selvagem — Viollet brincou. — Quando me
permiti andar em tão má companhia?
— No dia em que aceitou que somos feitas da mesma matéria. Temos
mesmo que ficar paradas aqui?
— Sabe que nem deveria entrar no baile acompanhada de Edward, não
sabe? A sorte é que estava na presença do duque e de uma dama de companhia.
— E quem seria a dama de companhia?
— Está olhando para ela.
Izadora fez menção de gargalhar e Viollet pisou no pé da amiga.
— Contenha-se.
— Que tipo de dama de companhia bebe brandy?
Viollet não teve tempo de responder. Os cavalheiros haviam voltado.
Sarah dançava a primeira valsa com o marido, abrindo oficialmente o
baile. Não demorou muito para que o duque tirasse Viollet para dançar. Ela sabia
que deveria declinar, mas jamais recusaria aquele convite.
— Sabe que eu não poderia estar valsando, vossa graça.
— Eu também não poderia estar apresentando minha amante para a
sociedade como uma baronesa. — O duque deu de ombros.
— Mas ela será uma duquesa.
— Assim como você, não se preocupe com as más línguas. Elas em
breve se calarão, diante de seus próprios interesses.
— Uma fofoca velada.
— Nunca pareceu se importar com as pautas das fofoqueiras. Eu a
conheço desde que nasceu. — Ele a rodopiou. — E olhe ao seu redor, Sarah foi
enfiada goela abaixo no Parlamento; Marie é uma viúva misteriosa, que irá se
casar com o filho mais novo do marquês de Bristol; Lucy, a governanta que se
transformou em baronesa; e Izadora... bem, Izadora é uma dama incomum.
— Ela é maravilhosa, uma mulher com vários atributos.
— De caráter irretocável, Edward está perdendo tempo.
— Talvez ele espere um comportamento dentro dos padrões exigidos.
— Padrões são enfadonhos. Damas com personalidade forte têm seu
encanto.
— John e Sarah tiveram a quem puxar, vossa graça. Sua irreverência é
louvável.
— Vou considerar isso um elogio, e não uma impertinência, como
suponho que seja. — Depois de mais um rodopio, ele continuou. — Meus filhos
são mais parecidos com Lucy do que comigo. Até mesmo Ann tem se revelado
um tanto quanto irreverente.
A conversa seguiu animada e Viollet se divertia.
Ao longe, o filho do duque de Sutherland, que acabara de dançar com a
mãe, observava a interação entre o pai e Viollet. Lucy agora dançava com
Thomas. John seguiu até a mesa de refrescos aguardando o momento de
reivindicar a valsa que havia anos esperava.
— John — uma voz conhecida o chamou.
— Lorde Granville, espero que esteja bem de saúde.
— O aceitável para uma pessoa em minha idade. — Ele pausou por
alguns instantes. — Suponho que a Sra. Turner tenha conversado com você.
— Sim, minha mãe conversou.
— Espero que resolva aceitar, os documentos já estão no gabinete de
Thomas. Ele os entregará.
— Agradeço muito sua generosidade. Gostaria de ressaltar que aceito por
Lady Viollet Thompson e por ser um pedido de minha mãe. Ela nutre um
desmedido carinho por sua filha Julliet. Agora, se me der licença.
— Claro.
John percebeu que a segunda dança terminava. Seu pai parecia não se
importar com as regras e continuava conduzindo Viollet; foi necessário chegar
bem perto para que Augustus a soltasse.
— Acredito que, depois de duas danças com um mesmo cavalheiro, de
péssima reputação diga de passagem — ele sorriu para o pai, que retribuiu na
mesma medida —, não me negará uma dança.
Ele não esperou a resposta. Tomou-a nos braços, trazendo-a para perto.
— Sarah parece influenciada pela marquesa de Normanby — Viollet
quebrou o silêncio.
— Talvez uma tendência casamenteira das damas inglesas. Está surtindo
algum efeito? Edward e Izadora já dançaram quantas valsas? Três?
— Duas, Lorde Baldwin reivindicou a segunda. Está querendo promover
o casamento dos dois, Jack?
— Eu não seria o único. Você, por exemplo, depois de se esbaldar em
minhas bebidas com Izadora, pareceu apreciar a companhia subversiva dela.
— Patife.
— Linda. — Ele a girou com elegância. — Está deslumbrante.
— Não vou dançar com você de novo — Viollet garantiu.
— Eu não estaria tão certo disso.
— Não me provoque — ela retrucou.
— Gosto de ver você assim, Let. Aos poucos está de volta.
Ela pisou deliberadamente no pé de John, antes dos últimos acordes. Sem
se importar, saiu em direção à mesa de refrescos. Observou que Flora se divertia
e que Lucy, dançando com Augustus, apesar de constrangida estava radiante.
Izadora já não estava em suas vistas, nem Edward. Sorriu imaginando
onde poderiam estar. Lorde Granville a cumprimentou a certa distância,
enquanto John a olhava sem disfarçar.
Decidida a se sentar, tentou ir até o fundo do salão, mas foi interpelada
por um robusto cavalheiro.
— Lady Viollet Smith. — O homem fez uma reverência, e ela não o
reconheceu. — Permita-me uma dança?
— Meu cartão está completo, com licença.
— Isso é muito inapropriado para uma dama que enterrou o marido há
pouco mais de quatro meses, não acha?
— O que quer?
— Concede-me o prazer?
— Se quer falar comigo, não precisa de uma dança.
— Vejo que seu temperamento faz jus às suas ações. Somente uma dama
tão direta atiraria no próprio marido.
Viollet sentiu as pernas falharem. Ele sabia, mas quem era ele e como
obtivera aquela informação?
Como se pudesse ler seus pensamentos, o homem respondeu:
— Meu pai entregou a arma, ele a viu atirar. Foi ele que pagou pelo
crime que você cometeu.
— O que quer?
— Por enquanto nada, só queria que soubesse que seu segredo está
guardado comigo.
Viollet olhou para o lado temendo que mais alguém tivesse ouvido,
Lorde Granville estava muito próximo. Sentiu a bile subir pela garganta.
Caminhou apressada até o jardim, precisava de ar.
Não demorou muito para John, que a observava de onde estava, alcançá-
la. Lorde Granville veio logo atrás.
— Quem era? — John perguntou preocupado.
— Não sei, mas ele sabe, Jack — ela desabou. — Ele sabe o que fiz.
— Vou atrás dele.
John toucou a face de Viollet e se virou para ir atrás do homem
desconhecido.
— Fique, John — a voz firme de Lorde Granville os interrompeu. —
Cuide de Lady Viollet, eu resolvo.
John estava preocupado demais para negar ajuda. Contornando a
passagem dos criados, tomou cuidado para que não fossem vistos. Pegaram o
caminho mais longo até a casa de caça. Viollet estava atônita, não esboçava
nenhuma reação, somente caminhava, encolhida. John retirou a casaca e a
envolveu, abraçando-a.
Tão logo chegaram à cabana, ele a ajudou a se sentar e tentou encontrar
alguma bebida no escritório.
— Estou arruinada, Jack, talvez tenha chegado a hora de pagar pelo
crime que cometi. — Ela escondia o rosto entre as mãos.
— O que ele quer?
— Não disse, mas se for dinheiro não tenho como pagar.
— As joias, meu amor. As joias de sua avó são seu tesouro. Não vou
permitir que entregue a quem quer que seja, só não diga que não tem recursos.
— São falsas, Izadora constatou. Phillip retirou uma a uma e substituiu
por réplicas. Eu achava que ainda sobrara uma ou outra, mas...
— Vou mandar verificar isso. — Ele se acomodou, fazendo com que ela
se deitasse em seu ombro. — Estava tão bem, por favor não deixe que isso a
perturbe. Tem conseguido muitos avanços, Let.
— Não vê que a desgraça se instalou em minha vida? — Ela se afastou
para olhá-lo. — Aquele homem não vai me deixar em paz.
— Não vou permitir.
— O que vai fazer? Não estará todo o tempo ao meu lado, e você
precisa...
John se pôs de joelhos e deslizou os dedos suavemente nos lábios dela,
para que ela se calasse.
— Case-se comigo. Deixe-me cuidar de você, protegê-la.
— Já falamos sobre isso. — As mãos delicadas acariciaram os cabelos
dele. — Não vou conseguir permitir que me toque, Jack.
— Não me importo, já conseguimos avançar muito. Teremos o resto da
vida.
— E se eu não conseguir? Não é justo com você, tem o direito de ser
feliz, meu amor. Eu não me perdoaria...
— Let, precisamos um do outro. Sempre foi assim. Mesmo que nunca
seja capaz de se deitar comigo, estaremos juntos, abraçados. Discutindo, rindo,
brigando. Eu a amo e sei que você me ama, posso ver isso.
Viollet olhou para baixo, tentando conter a emoção.
— Como pode ver se nem mesmo me reconheço no espelho?
— Posso sentir com o coração. Não vou permitir que nada de mau nos
aconteça. Aceite, vamos fazer o que deveríamos ter feito anos atrás.
Viollet se levantou, ponderava sobre a proposta. Jack era seu refúgio,
parte dela mesma. Se ele estivesse realmente disposto a abrir mão do leito
conjugal, não seria capaz de machucá-la. Esfregou os olhos na esperança de
poder clarear os pensamentos.
— Não pense demais. — Ele estava atrás dela; com as mãos nos
delicados ombros, sussurrava.
— Jack — ela se virou e o encarou —, sabe que não é tão simples,
precisaríamos de uma autorização para que eu pudesse deixar o luto.
— Eu tenho. Izadora pediu pessoalmente à rainha.
Viollet ficou parada tentando absorver a informação. John explicou:
— Ela prestou um serviço de significativa relevância para a coroa. Seria
agraciada com um título e condecorações, mas trocou pelo título de Lucy e sua
autorização para deixar o luto.
— Não acredito, ela... Quando?
— Pouco depois que voltamos de Lilleshall.
— Está com esse documento? Por que não me disse nada, nem ela? —
Viollet sentou-se.
— Não queria pressionar você.
O silêncio tomou a velha cabana. John a olhava expectante. Viollet
precisava dizer uma única palavra para que sua vida mudasse. Let seria a dama
mais feliz de todo o mundo e ele dedicaria cada dia da própria vida a fazê-la
sorrir.
— Suponha que eu aceite — ela parou por um instante e o rosto de John
se iluminou —, o que pretende fazer com aquele homem?
Ele chegou bem perto e tocou o rosto dela com delicadeza.
— Não quero que se preocupe com isso. Também não quero que se case
comigo somente por esse motivo.
Ela sorriu brevemente.
— E por qual outro motivo eu me casaria? — ela perguntou e ele
percebeu que estava bem próximo de vencer aquela batalha.
— Porque me ama?
— Prepotente. — Ela bateu no ombro dele. — Talvez por não suportar a
ideia de vê-lo se casando com qualquer uma.
John levou as mãos aos bolsos e ofereceu um sorriso irônico.
— A senhorita Janis Howard não é qualquer uma.
— A filha mais velha da marquesa de Normanby? — Ela levou a mão à
boca, incrédula. — Não se atreveria.
— Há também a senhorita Izadora.
— Ela não se casaria com você.
— Flora? — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Patife.
Ela fez menção de bater no ombro de Jack mais uma vez. Ele a segurou,
colando o corpo ao dela e, com a boca bem perto, suplicou:
— Case-se comigo?
Viollet sorriu amplamente.
— Talvez.

***
Pela janela, Viollet observava o movimento no jardim de Grove House.
Todos os criados pareciam trabalhar sem descanso e em perfeita sincronia para
organizar o casamento de Ann. De sua janela, podia ver a capela. Imaginava o
quanto ela deveria estar feliz, mas não descera para se juntar às damas perfeitas;
sequer trabalhara na pintura de Izadora no dia anterior. Estava com medo de sair
do quarto. Temia reencontrar o homem desconhecido.
— Devia ser proibido ir a um casamento vestida de preto. Parece um
urubu. — Como de costume, Izadora invadiu o quarto de Viollet de forma
intempestiva.
— Também faço votos de um agradável dia.
— Vai ficar trancada aí? Estão todos prontos para ir para a capela.
— Estou receosa, aquele homem que...
— Ouvi o marquês, John e Lorde Granville conversarem lá embaixo. O
banqueiro garantiu que já resolveu o infortúnio e que não voltará a ser
importunada.
— O que mais ouviu?
— Somente isso, John pareceu não aprovar Lorde Granville.
— Ele nunca gostou dele.
— Deve ter seus motivos. — A brasileira seguiu até o quarto de vestir. —
Por que não se troca, Marie mandou alguns vestidos.
— Por que se incomoda tanto com o que eu visto?
— Porque preto não combina com você. Talvez apenas nas roupas de
baixo. — Izadora ofereceu uma piscadela.
Viollet calçou suas luvas negras. Surpreendeu-se quando Izadora a
abraçou.
— Ficarei mais um tempo em Londres, aprecio muito sua amizade e
companhia. Não imagina o bem que me faz saber que a tenho como amiga.
— Somos amigas? — Viollet riu com sarcasmo. — Quando foi que isso
aconteceu?
— Talvez entre uma dose de brandy, de uísque e de vinho do Porto.
Vamos?
— Por que está tão apressada?
— Quero conseguir um bom lugar. Gosto de casamentos, eles são
surpreendentemente românticos.
— Uma libertina de coração mole. — Viollet levou a mão à testa de
forma dramática. — Pelo que sei será uma cerimônia íntima, os Herveys, os
Ansons e os Baldwins.
— Não se esqueça da família de Sir Anthony.
— Coitados, não sabem onde o filho está se metendo.
As duas gargalharam e juntas desceram para a capela.
Uma cerimônia singela, mas muito bem-organizada. Viollet contemplou
os presentes e não se surpreendeu quando John sentou-se ao seu lado. Ele não
disse nada, sequer a cumprimentou. Desde a conversa que tiveram na cabana,
não se falaram mais.
Ela percebeu que John batia o pé no chão repetidas vezes, não imaginara
vê-lo tão nervoso no casamento da irmã. Ann estava linda, em um vestido rosa-
pálido. E Anthony não conseguia esconder a admiração pela noiva.
Lucy e o duque assistiam à cerimônia emocionados. Viollet reparava em
cada detalhe. Enquanto John continuava intercalando movimentos repetitivos.
— Fique quieto, está me desconcentrando — ela sussurrou para que
somente ele ouvisse.
— Também não está prestando atenção na cerimônia — ele se limitou a
dizer.
Depois dos votos, o reverendo deu a benção e, antes que os noivos
deixassem a nave, David se levantou.
— Reverendo, eu tenho uma licença especial. — David balançou o papel
no ar e se virou para os pais de Marie. — Desculpem-me, mas não posso mais
esperar.
A alegria de Marie no altar fez com que Viollet se emocionasse. O
pequeno Paul estava de pé entre eles. Talvez Izadora tivesse razão, os
casamentos poderiam ser surpreendentemente românticos.
Enquanto sorria como uma tola, viu que John a observava. Ela virou o
rosto e logo em seguida sentiu que ele continuava a tremer os joelhos repetidas
vezes. Estava prestes a pisar no pé de John. A inquietação dele a desconcentrava,
mal conseguiu ouvir os votos e a benção do reverendo.
Ao fim da cerimônia, o pequeno Paul se empolgou batendo palmas e
surpreendentemente todos se levantaram para aplaudir o casal. Marie estava
linda e David parecia o homem mais feliz de todo o Reino Unido.
De repente, ela sentiu as mãos de Jack nas suas, ele a arrastou até o altar.
— O que está fazendo?
— Confie em mim.
Foi tudo o que ele disse.
— Reverendo, queridos amigos — cumprimentou a todos, ainda
segurando a mão de Viollet. — Aproveitando a cerimônia de minha irmã e de
meu primo, gostaria de oficializar meu compromisso com Lady Viollet.
Ante a comoção coletiva dos convidados, ainda enternecida com o
casamento anterior, Viollet gelou. Jack oficializaria um noivado na frente de
todos? Seu valete lhe entregou alguns documentos e ele imediatamente os
repassou ao reverendo. Viollet tentava compreender o que estava acontecendo e
só se deu conta quando a cerimônia se iniciou.
— Meus caros irmãos, Lorde John Anson já havia me procurado. Ele tem
uma licença especial e uma autorização para que Lady Viollet deixe o luto, pois
é uma jovem mulher que não tem recursos para se manter. Diante disso,
celebraremos mais uma cerimônia em nome de Deus Pai Todo Poderoso e com a
autorização de nossa soberana.
Viollet cambaleou e John a amparou.
— Não desmaie, isso não é do seu feitio e ninguém irá acreditar — ele
sussurrou enquanto o reverendo dava continuidade à cerimônia.
— Vou matar você.
Ele a avaliou demoradamente.
— Vejo que já veio vestida para isso.
Viollet pousou os pés sobre o dele e o esmagou com toda a força que
tinha.
Ela não teria coragem para impedir o casamento. Em seu íntimo, mesmo
que jamais admitisse, havia gostado da surpresa. Ao fim da cerimônia, o
reverendo perguntou com ironia se alguém mais desejava se casar. O duque se
levantou rapidamente, mas Lucy o puxou de volta para a cadeira.
Capítulo XIV

John sequer esperou o fim do desjejum nupcial. Uma carruagem os
aguardava. Viollet, perdida no meio de tantos acontecimentos, não conseguia
reagir. Na breve festividade, tivera a sensação de que todos já sabiam o que
aconteceria. Sentia-se entorpecida e olhava, alheia a tudo que acontecia a sua
volta. Logo que David e Anthony anunciaram a partida, John já estava de pé.
Pronto para ir.
— Para onde estamos indo? — Levantou as saias negras para entrar na
carruagem.
— Lilleshall, não encontrei lugar melhor para passarmos a lua de mel.
— Jack, não tenho roupas, sequer pedi que preparassem meu baú.
— Baús, minha querida. Sua criada partiu logo depois da cerimônia e
está levando seu novo enxoval.
— Planejou isso tudo? Como pôde? Estou furiosa com você, devia...
Ele a beijou longamente. Beijaram-se por tanto tempo que nem
perceberam que a carruagem já estava em movimento. Um beijo demorado,
carinhoso, urgente.
— Você aceitou, eu não podia correr o risco de que mudasse de ideia.
— Não aceitei, disse talvez!
— Um talvez vindo de você é mais do que um consentimento. Além do
mais, poderia ter se negado no altar, mas não o fez.
Ela o encarou determinada.
— E agora?
— Agora? Estamos casados. Vou trabalhar muito para levá-la para
conhecer o mundo, como sempre sonhou. Talvez sem a parte dos filhos sujos de
tinta...
— Você precisa de um herdeiro. — Ela olhou para baixo.
— Não pense nisso.
— Se não consumarmos o casamento, ele não terá validade. — Viollet
estava apreensiva.
— Let, estou me lixando para as regras. Eu sou seu marido e você é
minha esposa. O que fazemos ou não no leito conjugal não é da conta de
ninguém. Somos o visconde e a viscondessa de Trentham; nós nos amamos, é
isso que importa.
— Você faz tudo parecer tão simples, Jack.
E foi na simplicidade que John a fez relaxar. Ao longo do caminho,
relembraram vários momentos que passaram juntos. Era uma conversa solta,
despretensiosa. Não quiseram parar em uma hospedaria, fizeram somente
pequenas pausas e as trocas de cavalos.
Chegaram a Lilleshall no dia seguinte, na hora do almoço. Jack a
encantou levando-a à cabana no jardim secreto. O refúgio estava preparado para
recebê-los. Viollet se surpreendeu ao ver que suas roupas novas estavam no
quarto, assim como as de Jack. A mesa estava farta, com suas comidas
preferidas.
— Como preparou tudo isso?
— Tive ajuda de todos. No dia em que aceitou, eu mandei um
mensageiro.
— Naquela noite decidiu que nos casaríamos no mesmo dia que Ann?
— Não, que nos casaríamos na primeira oportunidade. — Ele se sentou
na poltrona e começou a tirar os sapatos. — Como sabe, a cabana não é muito
grande e só teremos criados para nos atender quando necessário. Vai precisar de
sua criada para se trocar e se banhar? Posso dar uma volta enquanto isso.
— Não seria mais confortável se ficássemos na casa? — Ela sorriu se
lembrando do treinamento dele.
— Seria impessoal. Lembra quando disse que queria morar aqui? Como
faríamos?
— Talvez você mesmo devesse me ajudar no banho. — Ela olhou para
baixo enrubescida.
— Se quiser, podemos tentar. Há uma banheira grande o suficiente para
nós dois.
— Jack, seria um passo grande demais.
— Já fizemos isso no rio. Precisamos tentar, meu amor. Só assim
saberemos seus limites.
Ela assentiu receosa.
Enquanto desfrutavam a refeição, o valete de John e a criada de Viollet
preparavam o banho e roupas de dormir. John orientou-os para que deixassem
tudo à mão e que não precisariam mais dos serviços deles naquele dia, uma vez
que descansariam da longa viagem.
— Vamos dormir juntos? — Ela sofria por antecipação. Não sabia quanta
aproximação conseguiria suportar.
— Já fizemos isso antes, mas, se de alguma forma se sentir
desconfortável, posso dormir na sala.
— Obrigada. — Ela voltou a se concentrar na comida.
Tão logo os criados deixaram a cabana, Viollet sentiu um frio na espinha.
Estavam sozinhos. Nem toda a segurança que aquele refúgio lhe trazia seria
capaz de apagar seus receios. John se despia, ficou somente de ceroulas. Ela o
observava com atenção.
Havia quanto tempo não o via sem camisa? John estava mais forte. O
corpo de Jack não lhe causava repulsa, se fosse honesta consigo mesma
confessaria que se sentia atraída. Tinha vontade de abraçá-lo sem as roupas.
Ele a olhava com cautela, os pés descalços caminhavam sem pressa ao
encontro dela. Levou-a até a cama e a fez se sentar. Ajoelhou-se para retirar os
sapatos dela e se surpreendeu quando Viollet afagou-lhe os cabelos. John fechou
os olhos, saboreou o carinho. Beijou-lhe os tornozelos e estendeu a mão para
ajudá-la a se levantar.
Ele estava à mercê dela e precisava calcular cada passo para que sua
mulher se sentisse confortável. Não seria hipócrita em negar que a desejava e
que queria estar dentro dela. Mas a queria entregue, e os olhos receosos
demonstravam que ela ainda não estava pronta para esse passo.
Viollet estava concentrada em desatar os botões do vestido negro. Seria o
último que ela usaria, ele garantiu para si mesmo.
Jack a ajudou a retirar o espartilho e parou para contemplá-la, enquanto
Let soltava os cabelos.
Era a visão do pecado, sua mulher, de roupas de baixo negras, e os
longos cabelos emolduravam o rosto pálido. Ele sorriu, como era linda.
Viollet, apesar de atordoada, vivenciava uma segurança que jamais
sentira. Aceitou a mão de Jack, que a ajudou a entrar na banheira com cuidado.
Ela abraçou os joelhos logo que entrou, a água quente era um bálsamo. Inclinou
o corpo para a frente permitindo que ele se encaixasse atrás.
— Let. Temo não conseguir controlar meu corpo ao me sentar aí — ele
falou, colocando uma perna na água. — Acho que, se ficarmos de frente um para
o outro...
— Não quero que me veja. — Ela escondeu o rosto. — Acho que
consigo lidar com a situação de sentir seu desejo, não será a primeira vez. Só
preciso que me garanta que...
— Não farei nada.
Ela assentiu e ele entrou na banheira por completo. Viollet se recostou
em John, tomando cuidado para que as nádegas não encostassem nele.
Ele não sabia o que fazer, ficou parado por alguns segundos, tentando
pensar na melhor maneira de agir. Viollet o surpreendeu quando começou a se
lavar sozinha. Por debaixo das roupas molhadas, as mãos dela percorriam
caminhos que ele mesmo adoraria explorar.
Ela se virou de repente. Olhou para ele com um misto de insegurança e
curiosidade. Ali Jack viu sua Let, o sorriso travesso estava de volta.
Com a esponja parada no ar, ela se aproximava do torso nu, sem deixar
de olhá-lo. Ele assentiu, atento a cada movimento. Ela o ensaboou. John fechou
os olhos se deliciando com o carinho, ela não foi breve, era delicada. Viollet
passou a mão sobre a espuma logo que terminou. Ela o enxaguou. Ele tinha
desejos. Não podia se demorar, temia pela própria sanidade.
Ele se levantou e se enrolou em uma toalha. Foi até o quarto, trocou a
ceroula e colocou uma camisa de dormir.
No banheiro, Viollet estava em pé, ainda na banheira. As roupas de baixo
coladas ao corpo. Respirou fundo.
— Vou lavar seus cabelos. Recebi o melhor banho de toda a minha vida,
nada mais justo que retribuir.
Let se sentou encolhida. Estava com medo. Sabia que os homens
gostavam de longos cabelos e tinha prazer em puxá-los. Jack usou uma cuia para
molhá-los. Ela aguardava o momento em que ele o puxaria, mas não aconteceu.
O cheiro de mel invadiu a sala de banho; apesar de desajeitado, ele massageava
suavemente, uma carícia bem-vinda, enquanto ela esperava a dor.
John repetiu os movimentos por alguns instantes, o corpo de Viollet aos
poucos relaxava. Uma sensação de vazio a tomou quando ele terminou o
trabalho. Ela se levantou, e ele mais uma vez a ajudou. Deu privacidade para que
Viollet se vestisse.
Uma camisola em um tom de azul cor do céu e um penhoar da mesma
cor. Era seu novo enxoval, constatou. Quando se virou, John estava lá, com a
toalha na mão, pronto para secar os cabelos dela.

***

Acordar nos braços de Jack era como desfrutar de uma velha sensação de
acolhimento. Estavam abraçados, ela deitada sobre o torso nu. Acariciou
delicadamente o peito dele, temia acordá-lo. Era uma sensação nova e
maravilhosa tocá-lo.
— Isso faz cócegas — John resmungou ainda de olhos fechados.
— Desculpe.
Ela tentou tirar a mão, mas ele a impediu.
— É gostoso, mas não faça tão de leve.
Encorajada pela mão forte sobre a sua, ela arriscou tocando-o com um
pouco mais de firmeza. Viollet gostou da sensação.
— O que quer fazer? — Ele se sentou na cama e a trouxe para perto. —
Que tal um passeio? Podemos ir até o rio.
— Talvez mais tarde, gosto de ficar assim — ela confessou.
— Sentia falta. Sempre ficávamos abraçados quando fugíamos para cá.
— Às vezes tenho a impressão de que o tempo não passou.
— Talvez não tenha passado. — Ele beijou-lhe os cabelos.
— Jack, como funciona o desejo de um homem por uma mulher?
Ele a afastou para olhá-la.
— Não se pode explicar com facilidade. Mas o corpo pede, não é algo
que conseguimos controlar.
— Você controlou ontem.
— Não, meu amor, não era meu corpo que pedia por você. Era a minha
alma e, só em saber que agora é minha mulher, eu me sinto diferente.
— Obrigada por ter paciência comigo.
Ele a beijou castamente.
— Vamos nos levantar, essa proximidade é um teste para minha
sanidade. Podemos tomar café e passear no rio. O que acha?
Passaram a tarde cavalgando. Quando chegaram ao rio, John apeou e
ajudou Viollet a desmontar. De mãos dadas reviviam boas lembranças. Tomada
por uma alegria infantil, Viollet sorria e brincava. Quando John a beijou, ela
aproveitou que estavam à beira do rio e o empurrou.
Travessa, saiu em disparada de volta para a cabana. Jack correu atrás dela
ensopado. Naquela noite, tomaram banho juntos novamente e desfrutaram meia
garrafa de vinho do Porto.

***

Com o passar do tempo, Viollet se dava conta de que casar-se com John
fora o melhor que poderia ter feito. Os dias ao lado dele eram agradáveis e
divertidos. Um sopro, um recomeço.
Estava na carruagem, John havia lhe prometido uma surpresa. À medida
que se aproximava da casa em que vivera toda a sua vida, seu coração apertava.
Quando o cocheiro parou, Viollet não conseguiu se conter.
— O que estamos fazendo aqui?
John não respondeu, tomou-a pela mão e caminhou até a entrada. Diante
da porta, ele a encorajou a abrir.
Uma miríade de lembranças vagou pela cabeça de Viollet. Não pisava
naquela casa, em que morara quase toda a vida, desde que se casara com Phillip.
Estava bem-cuidada, os móveis preservados, e, à medida que ela
percorria os cômodos, era mais difícil conter a emoção. Era um misto de
saudosismo e péssimas recordações. Quando se casara, não tivera nem a chance
de se despedir daquele lugar.
— Phillip me disse que vendeu a casa, como tudo pode estar do mesmo
jeito?
— Ele vendeu para Lorde Granville. Recebi como herança essa casa e a
de Londres.
— Quando? — Ela o olhava atordoada.
Aos poucos Viollet era tomada por uma angústia dolorosa.
— Estive com ele pouco antes do baile; Lorde Granville me entregou as
dívidas de seu pai e, no baile de máscaras, os títulos das propriedades de Londres
e Shropshire.
— Aceitou a herança de Lorde Granville?
John levou as mãos ao rosto. Viollet sentiu-se enganada. Estava
novamente na mesma situação de anos antes. Fora manipulada, sem nem mesmo
saber que estava sendo coagida.
— Eu não tive alternativas.
— Não — ela bufou —, claro que não. Você não deixaria escapar o
grande trunfo que teria nas mãos, não é mesmo, John Anson? Precisava de
qualquer arma para se casar comigo.
— Eu aceitei por você. Essa casa é sua, assim como Thompson’s House.
— E eu deverei ser eternamente grata, não é mesmo? Quero sair daqui.
— Let...
— Não me chame assim!
Ela entrou na carruagem, apressada. John ordenou que o cocheiro os
levasse de volta a Lilleshall.
— Eu tinha agendado com um novo administrador. Vamos precisar
contratar criados e ...
— Acho que pode cuidar de tudo sozinho.
— Por que está tão furiosa?
Com o dedo em riste, em altos brados ela declarou:
— Você não é diferente de Phillip. Foi exatamente o que ele fez comigo,
foi doce e me iludiu, depois roubou tudo que eu tinha. Mas não vou permitir que
isso aconteça novamente. Perdeu seu tempo, não tenho mais nada e há muito já
me conformei com isso.
— Let, não diga isso.
— Não, eu não direi. Serei a esposa submissa e dedicada que os
cavalheiros desejam.
John bufou, não argumentaria, não enquanto ela estivesse daquela
maneira. Quando chegaram aos limites de Lilleshall, a carruagem parou com
brusquidão. Um toque insistente na janela fez com que John descesse sem
delonga. Era um dos inquilinos.
— Meu senhor, mil perdões. As máquinas novas, um dos homens se feriu
gravemente.

***


Era tarde da noite quando Viollet viu, pela janela, John entrar no jardim
secreto. As roupas amassadas, sujas de sangue e o olhar abatido denunciavam
que algo grave havia acontecido. Se ele se portasse da mesma maneira que
Phillip, exigiria que ela estivesse pronta para servi-lo. Mas, pelo menos nesse
ponto, John parecia respeitá-la. Ela sentou-se na sala.
O embate que ensaiara deveria ser adiado.
John limpou os olhos logo que entrou. Sua expressão vaga e ausente a
comoveu. Os olhos dele procuraram os de Viollet. Ela se levantou. O visconde se
aproximou e a abraçou, descansando a cabeça no ombro dela.
— Não sei se ele vai sobreviver, perdeu muito sangue.
— O que aconteceu?
— Testaram as máquinas, não estavam seguras, eu avisei. O filho de um
arrendatário perdeu o braço.
— Meu Deus.
Viollet levou as mãos à boca. John começou a retirar as roupas e a se
lavar. Ela rapidamente serviu-lhe uma dose. Ele recusou.
— O que vai fazer?
— Precisamos voltar para Londres. Não posso permitir que essas
máquinas continuem sendo produzidas. Se Sarah quer correr o risco, ela que
assuma as consequências.
— Você precisa descansar.
— Ainda está brava?
— Conversamos depois sobre isso. Não é o momento.
Viollet se adiantou e começou a pegar uma manta para colocar no sofá.
— Por favor, não me peça para dormir longe de você. — Ele engoliu em
seco. — Não hoje. Não vou conseguir esquecer a cena que vi.
Viollet não contestou. Viu John adormecer ao seu lado,
involuntariamente o acariciou.

Capítulo XV


Dois dias mais tarde, quando chegaram a Londres, John, que se
mantivera quieto e calado por quase toda a viagem, perguntou:
— Estamos indo para Thompson’s House. Seu lar novamente. Algum
problema em relação a isso?
— Não senhor. — Ela abaixou a cabeça.
John não tinha forças para discutir, a imagem do braço dependurado do
inquilino ainda o perturbava. E temia que qualquer conversa que iniciasse
gerasse um desentendimento. Não tinha forças para fazer brincadeiras ou para
tentar resolver aquela situação.
Quando a carruagem parou, ele fez o que julgava certo:
— Está em casa, milady. Caso deseje, posso seguir para Anson’s House e
providenciar os papéis da anulação.
— Não seja ridículo, John. — Ela passou por cima dele para descer da
carruagem.
Estava de volta a sua casa, respirou fundo. Não conseguia deixar de lado
a sensação de que reviveria um passado não muito feliz.
A casa não estava como a de Shropshire. Apesar de reformada e limpa,
não tinha muitos móveis. Uma governanta, uma cozinheira, o valete de Thomas,
Paige e um lacaio os receberam. Ela olhou cada detalhe.
— Lamento não ter providenciado todos os móveis — John se adiantou.
Ainda não tenho recursos suficientes para isso, nem para contratar os treze
criados, o que é adequado. Mas resolverei essa situação.
— Não se preocupe. Sei gerir uma casa com poucos recursos. Meus
maridos geralmente me incumbem de tal responsabilidade. Quem fez as
contratações?
Ela olhou para o lado, não queria vê-lo.
— Lucy, ela me ajudou. Os quartos estão reformados e estão prontos.
Pode descansar se quiser.
— Aonde vai? — Viollet se virou para ele rapidamente.
— Vou à casa de meu pai, não conseguirei dormir enquanto a situação
das máquinas não for resolvida. Quer vir comigo?
— Não, obrigada.
John beijou a testa de Viollet antes de partir. Ela se jogou no único sofá
da sala. Estava prestes a iniciar uma nova vida. E, por mais que estivesse
magoada, em seu íntimo sabia que tudo seria diferente.

***

Quando John chegou em Anson’s House, foi direto para o gabinete do
pai. Augustus se surpreendeu ao ver o filho.
— Achei que ficaria mais alguns dias em Lilleshall. — O duque se
levantou para saudar o filho.
— Houve um acidente. Contestaram minhas ordens e utilizaram as
máquinas sem inspeção. O filho do Sr. Hill perdeu o braço, encontra-se entre a
vida e a morte.
Augustus se jogou na cadeira, tratava-se de um antigo arrendatário muito
querido para ele.
— Mandei recolher as máquinas e desmontá-las. Também deixei o
médico à disposição.
— Fez bem, meu filho.
— Não pode permitir que Sarah faça as coisas dessa maneira. São vidas,
pessoas que querem garantir seu sustento e que lutam diariamente com as
dificuldades da vida no campo.
— Sua irmã tem boas ideias, o projeto só precisa de ajustes.
— Não é de ajustes que precisam, e sim de planejamento.
— Deveria investir, posso lhe dar um bom dinheiro...
— Não! Não quero dinheiro de ninguém, o senhor mesmo me disse que
devo lutar minhas próprias batalhas. No momento minha prioridade é dar a
minha mulher uma casa à altura dela. Investir nessas máquinas custa caro e vai
requerer uma boa economia.
— Certo. — O duque se recostou à cadeira, levando as mãos à nuca. —
Esperei muito tempo para vê-lo assim novamente, não contestarei sua decisão.
Quando herdei esse título, Lilleshall estava falida, eu recomecei usando o dote
de Julliet.
— Viollet não tem dote, também não tem recursos. Mas temos o que há
de mais valioso, o amor.
— Estou feliz por você.
A porta se abriu rapidamente e Lucy entrou eufórica, jogando-se nos
braços do filho.
— Como você está, meu filho? Por que Viollet não veio com você?
— Nós nos desentendemos, mãe. Viollet acha que a enganei assim como
Phillip. Ela me acusou de ter aceitado a herança de Lorde Granville para tê-la
sob meu jugo.
Lucy acariciou os cabelos do filho com delicadeza.
— Ela não pensa isso de você. Só está assustada. — Parou por um
instante. — Estive falando com seu pai, Thompson’s House ainda precisa de uns
ajustes, achei que voltariam na próxima semana. Vou encomendar cortinas e
móveis.
— Não, minha querida — o duque a interrompeu. — John quer construir
suas próprias vitórias — e, com a voz embargada, continuou. — Nosso filho está
de volta.
Num abraço caloroso, eles se despediram. John estava ansioso para voltar
para casa.

***

Logo que John saíra, Viollet continuou inspecionando todos os cômodos.
Havia quatro anos não pisava naquela casa, que já não se parecia com aquela que
vira seu pai morrer. Jamais se esqueceria daquela noite.
Richard Thompson, o conde de Devon. Um cavalheiro devoto à família.
Dedicou-se a proteger, cuidar de suas filhas, desde que ficara viúvo. Era um
homem forte, um conservador, e Viollet nunca entendera como ele e Augustus
poderiam ser tão amigos. Na noite em que ele partira fora um golpe duro, jamais
esperara que o pai morresse de um mal súbito.
— Milady — a governanta a chamou. — Lorde Granville, o conde de
Snowdon, deseja vê-la.
— Onde ele está?
— Na biblioteca.
— Por que não o levou para a sala?
A criada se desculpou e Viollet desceu para recebê-lo.
— Lady Viollet. — O conde fez uma breve reverência.
— Lorde Granville, a que devo a visita?
Viollet não o convidou a sentar-se; assim como John, tinha certa
resistência ao banqueiro.
— Vim lhe entregar isto. — De dentro da casaca, retirou um robusto saco
de veludo.
Viollet o olhou por alguns instantes e, vencida pela curiosidade, abriu-o.
Ali estavam joias idênticas às falsas que ela tinha. As que estavam em sua mão
tinham um brilho diferente, a mesma luz que a encantara quando o pai lhe
entregara.
— Como estas joias foram parar em suas mãos?
O velho abaixou a cabeça, parecia travar uma guerra contra si mesmo.
— Joana, eu as peguei antes de ela ir para a Escócia.
Viollet fechou o saco rapidamente e o apertou contra o peito. Queria
dizer que não aceitaria, mas eram suas, uma herança de sua avó, que lhe fora
dada por seu pai, como garantia caso algo acontecesse a ele. Teve vontade de
interrogá-lo, mas o desejo pela privacidade era maior.
— Obrigada — a voz não falhou.
A governanta entrou trazendo uma bandeja de chá. Viollet não havia
pedido. Observou quando a senhora serviu a xícara para o banqueiro, colocando
duas gotas de limão. O conde tomou um gole de seu chá ainda de pé e devolveu
a xícara para a bandeja.
— Bem, preciso ir. — Willian tinha um olhar triste e fez uma vênia.
— O que aconteceu com aquele homem?
— Está preso.
— Era um criminoso?
— Um cavalheiro de bem não importunaria uma dama como a senhora.
Ela o olhou desconfiada. Deixou que ele partisse. A governanta o
acompanhou até a porta e Viollet a esperou perto das escadas; viu o momento
exato em que ela guardava algo no bolso.
— Como foi contratada?
— Eu já trabalhava aqui, minha senhora. A casa era alugada para a
temporada.
— Por que levou o convidado para a biblioteca e trouxe chá sem que eu
pedisse?
— Sinto muito, milady, mas o conde é avô do visconde e eu pensei que...
— Como sabe? Por que serviu o chá e não esperou que eu mesma
fizesse? E as duas gotas de limão? Pelo visto conhece bem as preferências de
Lorde Granville.
— Mais uma vez me perdoe, é que Lady Joana não gostava de...
— Pode arrumar suas coisas e procure seu acerto com Lorde Granville.
Certamente era ele que bancava seu salário enquanto Lady Joana se encontrava
com meu marido nesta casa.
Viollet respirou fundo, aos poucos a verdade se revelava. Mas ainda
faltavam algumas peças.

***

A velha conhecida estava diante dele. Era sedutora, ilusória e, mesmo
que soubesse que não era a melhor companheira, não tinha dúvidas de que nos
momentos difíceis era uma reconfortante companhia.
O cristal trabalhado refletia a luz emanada pela chama das velas, e o
líquido âmbar se tornava ainda mais belo, um convite para a fuga. Não seria só
um trago, ser comparado a Phillip Smith merecia pelo menos meia dúzia de
garrafas como aquela que estava diante de John, cegando-o e o hipnotizando.
O copo limpo, a bebida intocada. Estava lutando contra si mesmo.
A dor cortante no peito não se amainava. Mesmo que ele soubesse que
havia se casado com a sua Let, ela o desprezava.
— Jack? — a voz doce foi capaz de estilhaçar em mil pedaços a tentação,
a amargura e as incertezas.
Ele ergueu os olhos, ela já não vestia preto. O semblante preocupado
dava-lhe esperança. Talvez ela não o achasse tão desprezível assim.
— Está tudo bem? — Ela se sentou ao lado dele. — Faz algum tempo
que está aí parado, olhando para essa garrafa.
— Não sou como ele.
— Eu sei que não. — Ela olhou para baixo. — É complicado, tudo veio à
tona novamente. Eu não queria ser assim.
Ele a olhou com ternura e admiração.
— Não queria que fosse de qualquer outro jeito.
Ela sorriu sem jeito.
— Lorde Granville esteve aqui.
— Como ele sabia que já havíamos chegado?
— A governanta. — Viollet serviu duas doses e ofereceu uma a ele. —
Aceite, acho que vamos precisar.
John pegou o cálice, relutante, mas nos olhos de Let encontrou a coragem
e o limite de que precisava. Seriam somente algumas doses, e não várias
garrafas.
— Vi que ele entregou uma moeda para ela na saída. Desconfio de que
ela mandou avisá-lo. A mulher deixou escapar que Lorde Granville frequentava
esta casa, assim como Lady Joana. Decerto era aqui que ela tinha encontros
íntimos com Phillip.
John a olhou confuso.
— O que está dizendo?
— Lady Joana e Phillip eram amantes. Eu não imaginava que se viam
com regularidade, mas o conde veio entregar as minhas joias, estavam com ela.
— Não é possível, Willian me contou que o pai de Phillip era amante de
Joana.
— Pelo visto, a amante fazia parte da herança.
John coçou a cabeça, confuso.
— Sei que já lhe perguntei antes, mas agora mais do que nunca preciso
saber. Diga-me, por que se casou?
Ela balançou a cabeça, respirando fundo.
— Meu pai estava bem, estávamos aqui nesta casa. Você tinha voltado
para Cambridge, seu pai estava em Lilleshall. Uma noite ele recebeu alguns
cavalheiros, não vimos quem eram. No outro dia acordou morto. Dr. Lewis disse
que foi um mal súbito.
John segurou a mão de Viollet a encorajando a continuar.
— Fiquei apavorada, pensei em juntar minhas coisas para voltar para
Shropshire, mas Phillip apareceu. Era seu amigo, tinham viajado juntos um mês
antes. Ele me ajudou com o funeral, eu paguei com uma das joias. — Viollet
limpou os olhos tentando se manter firme. — Dois dias depois ele voltou, trouxe
papéis, eu não sabia que meu pai tinha tantas dívidas. Ele me aconselhou, disse
que eu precisava vender nossa casa em Shropshire. Algumas dívidas pertenciam
a Phillip, mas ele disse que meu pai devia muito mais. Entreguei metade das
joias, ele voltou dizendo que eram falsas e me devolveu, certamente as réplicas.
— Como descobriu?
— Não tínhamos dinheiro, ele estava falido. Precisei pagar a modista e
ela recusou dizendo que não tinha valor. Precisei devolver os vestidos.
— Por que não procurou meu pai?
— Eu estava indo, então Phillip voltou trazendo uma pasta. Nela havia
dois acordos de casamento assinados por meu pai. Tive que escolher entre mim e
Flora, uma das duas se casaria com ele.
— Mas Flora era muito nova.
— Ele não se importava. Foi o golpe final. Eu não entregaria minha irmã
a ele. Estava desesperada, Jack, ele me disse que você tinha se deitado com
várias mulheres em Paris. Estava desesperada, tinha perdido tudo.
— Por que não anulou o casamento?
— Não tinha como, o acordo já estava assinado e já tinha sido
consumado.
John a abraçou com força.
— Podia ter me dito. — Ele chorava se sentindo impotente.
— Phillip era um homem violento. A viscondessa viúva vivia com medo,
alertou-me, ensinou-me a usar esponjas, implorou que eu não gerasse um filho
dele. Eu não queria que nada de mal acontecesse a você.
— Nada poderia ser pior do que a sensação de perder você.
— Sinto muito.
— Por favor, meu amor. — Limpou as lágrimas dela. — Você não teve
culpa. Acabou, temos a chance de recomeçar.
— Eu o amo Jack, sempre amei você.
— Sei disso, sempre vi nos seus olhos.
Um beijo casto, um abraço de libertação. Ali começava um casamento,
em que dois corações quebrados se reconstruiriam.

***

Naquela noite dormiram juntos, abraçados, ou pelo menos tentaram
dormir. Com Let deitada em seu peito, John fitava o teto tentando organizar as
informações.
— Seu pai jamais assinaria um acordo de casamento daquela maneira,
você e Flora eram tudo para ele.
— Com o tempo desconfiei de que o documento era falso, mas na hora
não consegui pensar. Ele me batia, Jack, de maneira que nem pode imaginar.
John acariciava-lhe os cabelos.
— O que mais me intriga é o fato de Lorde Granville ter dito que as
dívidas de seu pai estavam com ele. Ele me contou que foram roubadas antes de
seu casamento e que ele as comprou depois. — John sentou-se. — Ele aceitou
comprá-las sem questionar e não falou durante todos esses anos.
— Creio que para proteger a filha. Não sei se acredito na benevolência de
Lorde Granville.
— Também não, ele distribuindo sua fortuna dessa maneira é algo
incomum.
— Mas aceitou as casas e, pelo que entendi, as dívidas de meu pai.
— De alguma maneira, eu sentia que seu casamento tinha relação com
esses papéis. Minha mãe insistiu, eu aceitei por você.
Viollet se virou para John e o beijou nos lábios brevemente.
— Desculpe, Jack. Quando me levou para Shropshire, eu me senti mal;
aquela casa é um pedaço de mim e eu a perdi. Era como se tudo de vivi tivesse
voltado.
— Vamos nos libertar do passado e recomeçar de onde paramos.
— Precisamos vender as joias.
— Não vamos tocar na sua fortuna, vou procurar Edward, conseguir um
trabalho.
Ela se sentou, virada para ele. A camisola deslizou deixando o ombro à
mostra. John engoliu em seco, Let era linda, merecia ser pintada para ser
idolatrada todos os dias.
— Não quero mais aquelas joias. Hoje vejo que meu pai as deixou para
que eu pudesse saldar as dívidas e ter recursos para viver. Elas só trouxeram
desgraça. Vamos vendê-las, arrumar Thompson’s House e investir na fábrica de
maquinários.
— Não pode fazer isso. São suas.
— São nossas, Jack. Não desisti de viajar o mundo com você.
John deitou-se sobre ela. A respiração de Viollet falhou. Lentamente ele a
tomou em um beijo.
— Deixe-me tentar uma coisa?
— Sim, eu confio em você.
John se levantou e entrou no quarto de vestir. Voltou com uma pluma na
mão e imediatamente Viollet a reconheceu. Pertencia a um dos seus novos
chapéus. Ela riu, mas se encolheu na cama quando ele se aproximou.
— Tire suas ceroulas e suba a camisola até o ponto em que se sinta
confortável.
Olhou-o receosa, mas obedeceu, deixando a camisola embolada no meio
das coxas. A pluma acariciou-lhe com delicadeza a planta dos pés, Viollet sentiu
cócegas e deu uma gargalhada infantil. Jack continuou sua tortura subindo pela
panturrilha, enquanto ela se contorcia e gargalhava.
Ele sorria amplamente, ela estava relaxada, entregue. Viollet se contorcia
e implorava a ele que parasse. John cessou a brincadeira.
— Machuquei você? — Ele sorria.
— Não, Jack. — Ela ainda se recuperava da crise de risos.
Ele deixou a pena sobre a cama e tomou o pé dela com delicadeza.
Começou a beijar sem pressa cada perna, até chegar ao limite estipulado por ela.
Viollet aos poucos descobria uma nova sensação. Um ardor inesperado, uma
vontade de ir além. Corajosa, subiu as saias um pouco mais e, à medida que ele
alcançava a bainha, ela subia.
John estava concentrado em lhe dar prazer; a cada vez que ela cedia e se
entregava, ele temia pelo próprio autocontrole. Quando a beijou na virilha e ela
fechou as pernas, instintivamente parou e deitou-se ao lado dela.
— Desculpe, não consigo mais. Não agora. — Ela parecia se sentir
culpada.
— Já avançamos muito, meu amor. Um dia de cada vez.


Capítulo XVI


Logo depois do desjejum, Viollet entregou a John a bolsa de joias. Ele
tentou persuadi-la a ficar com elas, mas a viscondessa não cedeu.
— Por favor, escolha uma, a que julgue mais valiosa.
Viollet o surpreendeu com um beijo suave, ela depositou a mão sobre o
lado esquerdo do peito dele.
— Já escolhi. Você é o que tenho de mais valioso.
John desfrutava uma alegria que jamais imaginara que pudesse existir.
Queria passar o dia todo ao lado dela, mas precisava sair, tinha muitas coisas
para resolver.
Viollet informou que iria a Grove House, visitaria a marquesa, Izadora e
traria Flora para morar com eles. Estava animada para voltar a pintar e manteve
certo suspense sobre uma encomenda que tinha que terminar.
Ao entrar em Grove House, abraçou Sarah com gratidão. Devia a ela a
acolhida e mais do que isso; uma amizade que aos poucos nascia e florescia.
— Não imagina o quanto estou feliz. — A marquesa estava com o
pequeno Bronwen nos braços. — Agora somos oficialmente irmãs.
— Onde está Flora?
— No atelier de Heloise. Chegaram novos tecidos, Marie prometeu fazer
novos desenhos.
— Está mimando demais a minha irmã.
— Não vamos falar disso. Como está John? Papai me disse que ele está
furioso comigo.
— Não sei se é com você, mas ele ficou muito abalado com a situação.
— Ela acompanhou Sarah até a sala íntima. — Acho que na verdade sente-se
culpado por ter negligenciado os negócios da família e vai culpá-la, afinal foi
você que esteve do lado do seu pai.
— Eu me sinto tão mal com tudo isso. Achei que estava fazendo o certo.
— Errar é a melhor maneira de aprender, o que importa são as chances de
recomeçar, de fazer o certo.
— Pelo visto encontrou esse caminho.
— Obrigada, sem seus planos mirabolantes eu não me permitiria.
Um alvoroço no hall anunciou a chegada de Izadora; em pouco tempo
Lucy, Flora e a brasileira se juntaram a elas. A estrangeira não escondeu a alegria
ao ver Viollet.
— O casamento lhe fez muito bem. Não me diga que também está
grávida? — Izadora não perdeu a piada.
Viollet a olhou com reprovação.
— Acho que somente a doce e frágil Ann cometeria tal proeza nesta
família — Sarah brincou.
— Não diga isso, Sarah, seu pai ainda não sabe — Lucy a recriminou.
— Ou não quer ver — Flora entrou na brincadeira.
— Flora! — Viollet chamou a atenção da irmã. — Vou proibi-la de
passar algum tempo com Izadora.
— Estava com tantas saudades assim, Let? — a brasileira debochou
fazendo uma cara meiga.
A conversa seguiu animada, Lucy se sentou ao lado de Viollet.
— Estou feliz que finalmente você e John se acertaram.
— Também estou feliz, mãe. — Deu um beijo no rosto da sogra. — Acho
que preciso de sua ajuda. Será necessário contratar uma nova governanta e mais
criados. Thompson’s House precisa ser um lar à altura do visconde de Trentham.
— John está relutante em aceitar ajuda — Lucy falou com certo pesar.
— Lorde Granville me entregou as joias de minha avó. As verdadeiras
estavam com Joana. Vou pagar por todas as despesas de Flora e faço questão de
arcar com o dote.
Lucy engasgou e se recostou ao sofá.
— John está intrigado com Lorde Granville.
— Minha querida, eu lhe rogo. Não permita que John procure o que não
deve ser achado. Sigam adiante, tudo que era seu está de volta. Ninguém em sã
consciência brinca com Joana.
— Vou tentar esquecer tudo isso.
— Faça isso, amanhã começamos a transformar Thompson’s House.

***
Aos poucos a casa ganhava alma. As damas perfeitas se empenhavam
juntas para transformá-la. Com exceção de Ann e Marie, que ainda estavam em
lua de mel.
John conseguira um bom dinheiro com a venda das joias e já iniciava os
primeiros protótipos das máquinas. Sarah havia lhe encomendado novos projetos
para a tecelagem, e juntos aprendiam a trabalhar respeitando suas diferenças.
Enquanto finalizava a pintura de Izadora, Viollet refletia sobre o quanto
sua vida havia mudado. Não tinha medos, nem culpa. Ainda carregava o peso de
ter atirado no próprio marido, mas dedicaria o resto de sua vida a se redimir.
Embora não conseguisse se entregar a Jack, a cada dia avançava um
passo.
— Suas pernas são mais atraentes.
Ela quase derrubou o cavalete quando viu que John contemplava o
retrato de Izadora.
— Não devia ver! Seu patife.
Ele se virou de costas e sorriu amplamente.
— Há um pintor francês na cidade, dizem que pintou a rainha. Montou
um atelier.
— Não sabia que ele tinha se mudado para Londres. Ele foi o motivo
para que eu começasse a pintar as damas perfeitas. Lucy ontem me pediu um
retrato, quer uma lembrança antes de se tornar a duquesa.
— Não vai pintar minha mãe nua.
— Não. — Ela gargalhou. — Somente Izadora teria tamanha audácia.
— Vou levá-la para que ele a pinte.
— Não vou, o que faria com um retrato meu?
— Você nada, mas eu contemplarei toda vez que não puder estar perto.

***

Viollet estava no quarto de vestir, acabara de sair do banho e estava nua,
vestia somente um penhoar. A pintura do artista francês fora entregue naquela
tarde. Ainda estava coberta.
Ela precisava se trocar para jantar em Grove House, Marie e Ann haviam
voltado da lua de mel, e Sarah organizava uma grande reunião. Viollet havia
pedido privacidade para Paige, estava curiosa para abrir a tela. E, quando retirou
o tecido que a envolvia, paralisou.
Diante dela estava uma bela mulher, as marcas nos ombros à mostra não
tiravam a beleza do retrato; eram marcas, obstáculos que vivera para ser quem
era. O sorriso no rosto denunciava que, enquanto ela estava sendo pintada, Jack
estava sentado à sua frente. Ela sorria para ele, para o amor.
O tempo não roubara sua juventude, somente lhe deixara mais madura,
pronta para a vida, mas foi no brilho dos olhos que Viollet encontrou o que havia
tempos procurava. Ela se reconheceu, não a Let que sonhava em se casar com
Jack, mas a mulher que lhe daria uma família.
Emocionada, voltou para o quarto. O valete terminava de ajeitar a
gravata de John, não demorou muito para perceber que o casal desejava
privacidade.
— Tem alguma reunião importante depois do jantar? — ela perguntou
com as mãos na fita que fechava o penhoar.
— Não, somente me encontraria com Edward para...
— Não vamos. — Ela abriu o penhoar e deixou que ele deslizasse pelo
corpo. — Estou pronta para você, Jack. Estou pronta para nós.


FIM
EPÍLOGO

Enquanto observava o vai e vem de pessoas na rua, pela janela Edward
Baldwin refletia sobre sua infelicidade. Era o primeiro-ministro do Reino Unido,
respeitado, um jovem brilhante, como muitos julgavam.
Apesar de estar exatamente onde planejara, ele não contava com a dura
realidade. Seu pai já o havia alertado; conseguir tamanha influência requeria
certas abdicações. O que Edward não esperava era ter que abrir mão da própria
vida.
Os móveis de madeira avermelhada, impecavelmente polidos, os caros
tapetes orientais, a imponência estava em cada canto do gabinete do parlamentar
de mais alta patente. Nada parecia fazer sentido.
Um toque suave à porta, uma única batida.
Edward se pôs de pé. A porta se abriu. Era ela: Izadora Senior. A mulher
que lhe roubava a razão, o equilíbrio e a sanidade.
Instintivamente, seu corpo se enrijeceu. Deveria estar pronto para o
embate. Mas a brasileira irreverente não parecia ter vindo para guerra. Os olhos
avermelhados denunciavam que ela possivelmente havia chorado.
Edward deu um passo em sua direção. Izadora carregava um embrulho,
um presente, supôs.
— Estou de partida. — Ela sustentava um olhar determinado. — Mas
queria lhe entregar isso.
Edward pegou o grande embrulho das mãos dela, era pesado. Espantou-
se ao constatar que ela o carregara sozinha.
— Quando vai partir? — Ele depositou o misterioso objeto na mesa e
começou a desembrulhar.
— Imediatamente, meus pertences estão na carruagem. Não abra agora,
espere que eu saia.
Edward olhou para Izadora, incerto. Deveria deixá-la partir? Era o certo a
fazer, sabia disso. Ela era uma ameaça a seus planos. Suportaria viver tão longe
novamente?
Ele tocou as mãos dela, beijou-as demoradamente. Queria verbalizar que,
tão logo concluísse sua missão, iria para o Brasil atrás dela. Mas não podia
prometer nada.
— Faça uma boa viagem de volta.
Izadora retirou as mãos rapidamente. Ele não entendeu o rompante.
Observou-a deixar o gabinete com passos firmes. Se pensasse com coerência,
concluiria que ela se ofendera.
Curioso para ver o regalo que a brasileira havia lhe dado, Edward abriu o
pacote rapidamente e paralisou. Piscou algumas vezes para ter certeza do que
via.
Um retrato, uma mulher nua. Supunha que fosse Izadora, mas jamais
poderia saber. A tela emoldurada não revelava o rosto da mulher de contornos
fascinantes. Somente o corpo e seu pescoço esguio.




Em breve
Agradecimentos

Sou grata pela família que tenho, pelos blogs parceiros, pelos leitores
maravilhosos e por todas as pessoas que me apoiam nessa caminhada. Em
especial, meu agradecimento aos que contribuem diretamente para que as
histórias virem livros: Line, Paulinho, Kim, Deh, Stellinha, Pati, , Bah, Gil,
Ângela, Elis... e tantas outras. Obrigada.


Que tal colocar a Série Damas Perfeitas na sua estante?

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