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Ministério da Cultura, Filmes de Quintal e UFMG apresentam

16 0 festival do filme documentário e etnográfico - fórum de antropologia e cinema


˜ | 05
Apresentacao
´
˜ de Abertura | 19
Sessao
ˆ
Mostra Canone ˆ
e Contra-canone | 23
ˆ
A Mulher e a Camera | 39
´ | 69
Juri
Competitiva Nacional | 71
Competitiva Internacional | 95
˜ especial | 113
Sessao
Lancamentos | 117
´
˜ de Encerramento | 129
Sessao
´
FOrum de debates | 133
Oficina/curso | 143

´
sumario
Ensaios | 157
Xapiri e a imagem-eco do xamanismo | 159
Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra
As explosões necessárias | 166
Maurício Gomes Leite
A$suntina Das Américas | 169
João Batista Lanari
Lui cinema | 173
Silvio Back
O Bandido da Luz Vermelha | 175
José Lino Grünewald
Sina do Aventureiro | 177
Luís Alberto Rocha Melo
Cassy Jones, Magnífico Sedutor | 179
Andrea Ormond
Panca de valente: a crise que a rainha não viu | 181
Jairo Ferreira
Reichenbachianas brasileiras:
A cinepoesia corsária de Carlos Reichenbach | 183
Jair Tadeu da Fonseca
Boca do Lixo, Sociedade Anônima: notas sobre
O Bandido da luz vermelha | 190
Mateus Araújo
Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais e as questões
interligadas da identidade e da diferença | 199
Trinh T. Minh-ha
O vermelho não se faz de sangue | 205
Aurore Délavy
Jeanne Dielman e a travessia visual da espectadora | 207
Roberta Veiga
Kashima Paradise por Chris Marker | 213
Kashima Paradise par Chris Marker

˜ | 217

˜
ProgramaCAO
´
´IndIces | 225
´
´
CREDITOS | 230 apresentacao
forumdoc.bh.2012
Ruben Caixeta

Belo Horizonte recebe a décima sexta edição do forumdoc em uma ocasião


muito especial e, ao mesmo tempo, dolorosa: de um lado, comemoramos os
20 anos de demarcação da maior terra indígena do Brasil, a Terra Indígena
Yanomami, de outro lado, constatamos a luta desesperada dos índios Guarani
Kaiowá para a sobrevivência num pequeno pedaço de terra no Mato Grosso
do Sul. Queremos fazer desta apresentação um manifesto tanto a favor da
luta destes índios no Brasil hoje quanto a favor da necessidade urgente de
alargar nossa escuta e nossa visão (aquelas do homem ocidental) em direção
ao que nos mostram e dizem os índios nos seus filmes e fora deles: para
o índio a humanidade, em sua origem, foi destinada a viver e a cuidar da
terra; ao contrário, o pensamento dos brancos fixa-se sem descanso nas suas
mercadorias, como se fossem suas namoradas; e “nossa civilização” cava o
buraco de sua própria morte ao abrir crateras atrás de minérios, ao atear fogo
na floresta e transformá-la em pasto, ao fazer secar as águas dos rios onde
vivem os peixes, onde bebem água os animais e nós, humanos.

Desde o seu início, em 1997, o forumdoc tem um lugar especial para a cine­
matografia indígena. Não só um lugar para apresentar os filmes sobre os índios
ou “dos” índios, mas para promover um debate sobre sua própria concepção de
cinema e documentário, suas estratégias de realização, seus princípios éticos,
enfim, mas não menos importante, sobre todo o universo fora de campo que
atravessa tais filmes. Se isto é válido para outras cinematografias, aqui, no
contexto indígena, torna-se uma realidade insofismável: a estética e a ética
não podem ou não devem andar separadas; a “imagem” dos índios ou sobre os
índios é inseparável da sua dimensão política ou ontológica. Há muito o que
se falar (e opiniões divergentes) sobre o que é cinema indígena, mas há algo
para nós muito claro: não se faz cinema indígena apenas buscando as belas
imagens ou movimentos de câmera ou montagem bem “aparada” (de acordo
com nossas – ocidentais – preferências e gostos estéticos) ou, menos ainda, por
meio da exploração dos clichês e exotização dos corpos e das falas dos índios.

Na abertura do forumdoc.bh.2012 exibiremos um filme produzido coletivamente


(por índios e brancos) na terra indígena Yanomami: trata-se de Xapiri. Segundo

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Bruce Albert,1 um dos realizadores, este filme foi concebido de forma totalmente não-humanos que devem ser captados pelos humanos por intermédio dos xamãs,
experimental – construído como um tipo de simulador de voo xamânico, pois é nisto que consiste o trabalho do sentido: literalmente, “são as palavras
longe dos cânones do filme etnográfico, mas também dos filmes concebidos dos xapiripë que aumentam nossos pensamentos." [...]
dentro da série “vídeo nas aldeias”. É provável que este filme – que dará muito
Luz, não imagens. Os xapiripë são de fato imagens (utupë), mas seus espelhos
o que pensar - não necessariamente será muito bem aceito seja por todos
não os constituem como tal — estão do lado da pura luz. Cristais.
os Yanomami, seja pelo público ocidental. Seria possível a nós, ocidentais,
experimentar através das imagens o mesmo tipo de sensação adquirida pelo “Imagem” de acordo com o sentido que nós (ocidentais) lhe atribuímos, de fato,
xamã yanomami nas suas viagens cósmicas realizadas durante as sessões não tem nenhuma conexão com aquele sentido que os Yanomami lhe atribuem.
rituais? Provavelmente, não. Entretanto, tal como acontece com qualquer Na verdade, a partir do momento em que, hoje, parte dos Yanomami está
filme etnográfico, Xapiri nos abre a porta para melhor conhecer o xamanismo manuseando pequenas máquinas digitais para fotografar ou filmar, alguns
e a cosmologia yanomami, e, além disso, nos convida a participar de um tipo deles experimentando o processo inteiro de realização fílmica, isto tudo
de conhecimento que é necessariamente sensorial, aquele que é adquirido e promove um deslocamento de sentido da categoria “utupë” ou “imagem”.
transmitido pelo xamã indígena. De fato, as imagens e os filmes são hoje vistos por boa parte dos Yanomami
como objetos inquietantes que servem para multiplicar entre eles a troca de
No seu texto “A Floresta de Cristal”, Eduardo Viveiros de Castro diz que a
informações, que favorecem a comunicação e a troca entre distintos grupos
palavra xapiripë
yanomami, entre humanos e espíritos. Certamente, tal circulação de imagens
designa o utupë, imagem, princípio vital, interioridade verdadeira ou essência (tais objetos inquietantes) fazem eco com a concepção de pessoa yanomami.
dos animais e outros seres da floresta, e ao mesmo tempo as imagens imortais de De acordo com a esplêndida tese de Bruce Albert (Temps du Sangue, Temps des
uma primeira humanidade arcaica, composta de Yanomami com nomes animais Cendres, p. 403), a fotografia tem entre os Yanomami uma ligação direta com
que se transformaram nos animais da atualidade. o “nome e a alma de uma pessoa”. Na verdade, a fotografia representa um
dos “traços” de uma pessoa, tal como também o é o nome. Por isso, ali você
Mas o termo xapiripë se refere também aos xamãs humanos, e a expressão nunca deve pronunciar o nome de uma pessoa em referência a ela mesma, da
“tornar-se xamã” é sinônima de “tornar-se espírito”, xapiri-pru. Os xamãs se mesma forma que não deve guardar uma fotografia de um parente. Quando
concebem como de mesma natureza que os espíritos auxiliares que eles trazem uma pessoa Yanomami morre, toda uma máquina ritual é colocada em ação
à terra em seu transe alucinógeno. O conceito de xapiripë assinala portanto uma pelos seus parentes consanguíneos para apagar aqueles “traços” deixados por
interferência complexa, uma distribuição cruzada da identidade e da diferença ela quando vivia aqui na terra: sons e palavras, rastros no chão, objetos de uso
entre as dimensões da “animalidade” (yaro pë) e da “humanidade” (yanomae pessoal, plantas cultivadas. Bruce Albert diz que os Yanomami observam e
thëpë). De um lado, os animais possuem uma essência invisível distinta de suas comentam interminavelmente, com um certo prazer e humor, os detalhes mais
formas visíveis: os xapiripë são os “verdadeiros animais” — mas são humanóides. ínfimos daquelas fotografias de gente estrangeira ou parentes classificatórios.
Isto é, os verdadeiros animais não se parecem demasiado com os animais que os Contudo, aquelas que os representam pessoalmente ou as pessoas muito
xapiripë, literalmente, imaginam. De outro lado, os xamãs se distinguem dos próximas, provocam imediatamente uma atitude de constrangimento: então,
demais humanos por serem “espíritos”, e mais, “pais” dos espíritos (que, por sua eles tentam por todos os meios obtê-las para guardá-las ou subutilizá-las a
vez, são as imagens dos “pais dos animais”). O conceito de xapiripë, menos ou fim de conservá-las ou destruí-las para que não subsistam longo tempo após
antes que designando uma classe de seres distintos, fala assim de uma região a morte. Vejamos:
ou momento de indiscernibilidade entre o humano e o não-humano (principal
mas não exclusivamente os “animais”): ele fala de uma humanidade molecular Fixando a identidade de uma pessoa (a singularidade de seu aspecto) e circulando
de fundo, oculta por formas molares não-humanas, e fala dos múltiplos afetos fora de sua presença entre os estrangeiros, a fotografia é aqui assimilada a um
nome próprio; mas um nome tanto quanto mais perigoso pelo fato dele não ser
1
Também, por sugestão de Bruce Albert, exibiremos na mesma sessão o filme Chasseurs et uma simples sinédoque mas uma verdadeira réplica em miniatura do indivíduo
Chamans, realizado por R. Depardon junto aos Yanomami.

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(ou estar associado à sua imagem vital) e dele constituir um “traço” material e Mato Grosso do Sul e ocuparam as terras dos índios eram, na sua maioria,
não simplesmente uma mnésica. É por isso que, apesar dela constituir o análogo provenientes dos estados do sul (RS, SC e PR). O confinamento dos guarani
do nome do indivíduo, a fotografia de uma pessoa é mais frequentemente já em pequenas reservas se intensificou nos anos de 1970, alguns deles foram
tomada como um nome da morte potencial, a qual teme-se, por antecipação, a parar em acampamentos em beiras de estrada, outros se dispersaram no meio
permanência. dos brancos ou em terras estrangeiras, enquanto aumentaram as fazendas de
gado, plantações de cana, soja e outras lavouras de grande extensão.
Nesta brevíssima discussão sobre qual é a noção de pessoa, morte, espírito
e fotografia entre os Yanomami, podemos antever o quanto é complexo o • Numa carta de 17 de março de 2007, os professores e líderes Kaiowá disseram:
uso e a interpretação que se pode fazer do filme (e da imagem) entre e sobre “O fogo da morte passou no corpo da terra, secando suas veias. O ardume do
um povo indígena: a questão vai necessariamente muito além (e num certo fogo torra sua pele. A mata chora e depois morre. O veneno intoxica. O lixo
sentido contrário) ao uso e ao sentido que nós (ocidentais) damos à fotografia, sufoca. A pisada do boi magoa o solo. O trator revira a terra. Fora de nossas
à memória (e, portanto à vocação da imagem fotográfica como suporte de um terras, ouvimos seu choro e sua morte sem termos como socorrer a Vida.” E
referente ou de um ente querido), enfim, à relação entre vivos-mortos e entre um aluno guarani de José Ribamar Bessa, ao entrevistar um velho guarani da
humanos-animais-espíritos. aldeia de Cantagalo, ouviu o seguinte depoimento: “Esta terra que pisamos é
um ser vivo, é gente, é nosso irmão. Tem corpo, tem veias, tem sangue. É por
***
isso que o Guarani respeita a terra, que é também um Guarani. O Guarani
Nos últimos dois meses fomos sacudidos e chocados por imagens e palavras não polui a água, pois o rio é o sangue de um Karai. Esta terra tem vida, só
vindas do Mato Grosso do Sul: de um lado, a terra como um “ente vivo” e que que muita gente não percebe. É uma pessoa, tem alma. Quando um Guarani
merece respeito e cuidado pelos humanos; do outro, a terra como objeto a ser entra na mata e precisa cortar uma árvore, ele conversa com ela, pede licença,
usado e transformado em mercadoria pelo homem. Sigamos, numa escrita pois sabe que se trata de um ser vivo, de uma pessoa, que é nosso parente e
paralela, os fragmentos da cronologia deste confronto de práticas e visões de está acima de nós”.
mundo sobre a ocupação da terra – visões que não deixam de estar por trás,
• Os índios Guarani Kaiowá têm sofrido na pele a violência. Os números podem
por um lado, do uso da violência pelos colonizadores para expropriar a terra
ser até relativizados pelos fazendeiros e pelo Estado, mas não podem deixar
indígena e, por outro, da resistência pacífica dos índios.
de nos indignar ou revoltar: segundo um relatório do Conselho Indígena
• No seu blogue “Taqui pra ti”, publicado em 28 de outubro de 2012, José Missionário (CIMI), entre 2003 e 2010 foram assassinados 452 indígenas no
Ribamar Bessa Freire conta-nos que os Guarani, no primeiro século da era Brasil, destes, foram 250 somente no Mato Grosso do Sul. Segundo o Mapa
cristã, saíram da região amazônica, onde viviam, e caminharam em direção da Violência, elaborado pelo Instituto Sangari e pelo Ministério da Justiça,
ao sul do continente. Dois mil anos depois, um italiano, nascido em 1948, com dados relativos à década de 1998-2008, a proporção de suicídios no
em Toscana, atravessou o oceano Atlântico com sua família, veio para Porto país é de 4,9 para 100 mil pessoas; já para o população indígena do estado
Alegre, de lá para Curitiba, se naturalizou brasileiro e se instalou, finalmente, do Amazonas é de 32,2 para 100 mil pessoas (seis vezes maior que a média
do Mato Grosso do Sul, onde encontrou os Guarani, que lá viviam há quase dois nacional), e para a população indígena do estado do Mato Grosso do Sul é de
milênios: o italiano, André Puccinnelli, recém-chegado se tornou governador 166 para 100 mil pessoas (34 vezes a média nacional). Entre a população jovem
do Estado em 2007. indígena, a taxa de suicídio é ainda mais elevada: no estado do Amazonas
há 101 casos para 100 mil pessoas; e no Mato Grosso do Sul, há 446 casos
• A partir do ano de 1915 os índios do Mato Grosso do Sul começaram a ser para 100 mil pessoas. Para se ter uma noção da gravidade desta situação, a
reduzidos em pequenas reservas pelo Estado brasileiro, através do Serviço de Organização Mundial de Saúde (OMS) considera que a taxa de 12,5 para cada
Proteção ao Índio (SPI), com vistas a disponibilizar suas terras para o avanço 100 mil pessoas é muito elevada. Por isso mesmo, o Mapa da Violência chegou
das frentes de colonização pastoril e agrícola. Tal como o governador André à conclusão de que os índices de suicídios dos indígenas no Mato Grosso do
Puccinnelli, os fazendeiros, pecuaristas e agronegociantes que chegaram no Sul “não têm comparação nem no contexto internacional entre os países

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com taxas de suicídio consideradas trágicas; não resta dúvida de que, neste um ano, estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercado de pistoleiros e
campo, deveríamos ter condições de formular, de forma rápida e emergencial, resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia
políticas e estratégias em condições de enfrentar esse flagelo”. a dia para recuperar o nosso território antigo Pyelito kue-Mbarakay".

• Enquanto tais políticas não são formuladas e muito menos colocadas em prá­ 2. "(...) ali estão o cemitérios de todos nossos antepassados. Cientes desse fato
tica pelo Estado, os índios Guarani Kaiowá, no desespero, enfrentam a bala e histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos
o poder político e econômico dos fazendeiros num movimento de reocupação antepassados aqui mesmo onde estamos hoje, por isso, pedimos ao governo e à
de suas terras. A partir do século XXI, de forma mais intensa, os Guarani Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas solicitamos
prepararam-se para voltar a habitar as margens de cinco rios no MS: Brilhantes, para decretar a nossa morte coletiva e para enterrar nós todos aqui. Pedimos,
Dourados, Apa, Iguatemi e Hovy. Foi isso que aconteceu com um grupo de 170 de uma vez por todas, para decretar a nossa dizimação/extinção total, além de
índios Kaiowá, que ocuparam há um ano dois hectares de mata na beira do rio enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar os
Hovy, perto da fazenda Cambará, município de Iguatemi de Mato Grosso do nossos corpos. Esse é nosso pedido aos juízes federais".
Sul, num lugar denominado por eles de Pyelito Kue-Mbarakay, que significa na
• Depois desta mobilização, a ordem de despejo foi cancelada ou adiada. O
língua guarani “terra dos ancestrais”. Como disse Tonico Benites, índio Guarani-
governo corre de um lado para o outro tentando não deixar a violência
Kaiowá, mestre e doutorando em antropologia pela UFRJ, “O modo tradicional
“manchar” sua imagem. Claro, não se discute ou vislumbra tocar nos pontos
de ocupação do espaço pelas famílias extensas ou comunidades guarani e
essenciais que permite tal violência: que é o modelo de desenvolvimento em
kaiowá é difuso no território, morando fundamentalmente na proximidade
curso, a estratégia de exportação de bens primários (dentre outros, soja e
de fontes de água boa (minas d’água, córregos, rios etc.), que permitiam o
minérios), e, nesta lógica do crescimento acelerado, para fazer dos país uma
assentamento destes indígenas. Além disso, estes lugares possibilitavam o
potencia mundial ou, melhor, para incluir o Brasil na órbita central do sistema
desenvolvimento das atividades pesqueiras, de caças e coletas.”
capitalista e financeiro mundial, é preciso “desentravar” terras ocupadas
• No mês de setembro de 2012, um Juiz Federal, Sergio Henrique Bonacheia, pelos índios, quilombolas, ribeirinhos, ou por todos aqueles que não estão
determinou a expulsão dos indígenas da terra reocupada, alegando que não dispostos a se render a qualquer custo ao mercado ou a transformar suas
importava"se as terras em litígio são ou foram tradicionalmente ocupadas pelos terras, águas, rios e florestas em lagos para hidrelétricas, em plataformas
índios ou se o título dominial do autor é ou foi formado de maneira ilegítima". de exploração de minério, em pastos para bois ou lavouras de cana de açúcar
e soja, enfim, em tudo isso que os grandes grupos e oligopólios nacionais e
• Este foi o estopim para que os Guarani Kaiowá se mobilizassem e escrevessem internacionais estão obcecados em “explorar” – e para isso investem todo seu
uma carta, que teve ampla circulação nas redes sociais, na qual declaravam o poder onde for necessário: desde o sistema político local até o sistema judiciário,
desejo de resistência e, ao mesmo tempo, escancaravam quais eram as intenções os ministérios das Minas e Energia, do Transporte, da Agricultura. Enquanto
da “nossa” justiça e do nosso tipo de sociedade hegemônica: se de fato era isso, o governo pretende “apagar as marcas” da violência do sistema capitalista-
para expulsá-los de suas terras, marginalizá-los em alguma beira de estrada, desenvolvimentista ou acalmar os movimentos de base e minoritários ao
considerá-los irrelevantes ou obstáculos ao “progresso e ao desenvolvimento”, conceder migalhas financeiras e de poder àqueles órgãos responsáveis por
então que os fazendeiros e a justiça assumissem sua real face, sua violência, proteger e fazer respeitar os grupos minoritários e os direitos difusos: Funai,
seu desprezo para com os indígenas. Duas passagens desta carta: Fundação Cultural Palmares, Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade
1. “(...) avaliamos a nossa situação e concluímos que vamos morrer todos
Racial.
mesmo em pouco tempo, não temos e nem teremos perspectiva de vida digna • Enquanto isso, os ruralistas e mineradores apertam o cerco à terra dos índios
e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos acampados e ameaçam seus direitos conquistados: dizem, “não precisamos consultar
a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram quatro mortes, sendo que dois os índios para explorar suas terras”, “não podemos abrir mão das riquezas
morreram por meio de suicídio e dois em decorrência de espancamento e tortura minerais depositadas no solo das terras indígenas”, “precisamos da terra deles
de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de

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para alargar nos lavoras de soja e pastos de soja”. Para isso, para defender o • Quando escreveu no seu blogue de 28 de outubro de 2012, aqui comentado,
seus próprios interesses, os latifundiários e empresas mineradoras se aliam a talvez Bessa Freire não imaginasse que estava indo além da metáfora quando
uma certa esquerda caduca e erguem a bandeira da época da ditadura militar: disse que a relação que o índio tem com a terra é uma relação de “cuidado”
acusam os índios e seus aliados dos movimentos sociais e ambientalistas como se cuida de uma flor, enquanto que a relação engendrada pelo colonizador
de estarem a serviço de uma conspiração internacional contra a soberania ocidental com a terra é pensada numa analogia ao estupro: que deve ser
da nação! Numa estratégia bem construída e cínica, calam-se em relação às “desbravada”, “desflorada”, “penetrada”. A reportagem do UOL, no dia 05 de
grandes multinacionais das sementes e defensivos agrícolas, da exploração novembro de 2012, ouviu de uma índia guarani de 23 anos, da aldeia Pyelito
mineral. Dizem, as terras indígenas somam 12 ou 13% do território nacional. Kue-Mbarakay, que, no final de outubro de 2012, foi coagida por oito pistoleiros
Omitem que a maior parte destas terras indígenas está localizada na Amazônia, para que ela os levasse até os líderes indígenas, e, como se negou, foi vítima
em região de difícil acesso (e, por enquanto, inacessível à exploração mineral de um estupro coletivo.
e agrícola), e que, para todo o resto do país, apenas 1,5% das terras foram
demarcadas para os índios, sendo que, no Mato Grosso Sul, onde vive boa parte • Enquanto isso, no dia 02 de novembro de 2012, no Acre, a Polícia Civil prendia
dos Guarani Kaiowá, por exemplo, o território demarcado para os indígenas Assuero Doca Veronez, acusado de fazer parte de uma rede de prostituição
representada apenas 0,4% da superfíe do Estado. infantil. Assuero é nada mais do que o presidente da Federação de Agricultura
e Pecuária do Estado do Acre e atual vice-presidente da poderosa Confederação
• A fome dos ruralistas pela terra não tem limite – seu apetite é insaciável. Depois Nacional da Agricultura (CNA), liderada pela senadora Kátia Abreu. A polícia
da tragédia anunciada pela carta dos índios Guarani de Pyelito Kue-Mbarakay, gravou, com autorização judicial, mais de 2,8 mil horas, as quais revelam uma
a representante maior dos ruralistas, Presidente da Confederação Nacional rede intricada de exploração sexual de mulheres, dentre elas meninas entre
de Agricultura (CNA), assim escreveu (Folha de S. Paulo, 03/11/2012):"É 14 e 17 anos, sendo que alguns envolvidos chegavam a oferecer mais de R$ 2
simplificação irreal e equivocada resumir o drama pelo qual passam os 170 mil para manter relação sexual com virgens. No dia 05 de novembro de 2012,
índios da etnia guarani-kaiowá a uma simples demanda por terra. [...] Falar por determinação do desembargador Francisco Djalma, oficiais de justiça
em terra é tirar o foco da realidade e justificar a inoperância do poder público. cumpriram mandados de soltura em favor do pecuarista Assuero Doca Veronez.
[...] Mais chão não dá a ele [ao índio] a dignidade que lhe é subtraída pela falta
de estrutura sanitária, de capacitação técnica e até mesmo de investimentos • Em julho de 2010, ao lado do ex-governador do Acre, Binho Marques (PT) e
para o cultivo." Como disse o nosso amigo Henyo Barreto, não deixa de ser dos atuais senadores Jorge Viana (PT) e Kátia Abreu (PSD), Assuero Veronez
impressionante como o argumento dos ruralistas é expropriatório: a terra é teria dito na inauguração da sede da Federação da Agricultura do Acre: “Eu vejo
uma questão e necessidade para eles, não para os índios. Mais do que isso, a as imagens da boiada do Acre correndo pelos pastos e eu sinto o meu coração
Senadora Abreu está convicta que os “empreendedores do setor agropecuário” estalar. Eu sinto o peito encher de orgulho e admiração pelo meu país, pelo
são vítimas: “ocorre aí uma expropriação criminosa de terras produtivas, e que nós conseguimos com essa pecuária maravilhosa, construída pelo esforço
o fazendeiro, desesperado, tem que abandonar a propriedade com uma mão único e exclusivamente dos pecuaristas do Brasil”. E, em seguida, ouviu as
na frente e outra atrás”. E faz uma ameaça: “Se for da vontade do governo e elogiosas palavras da amiga Kátia Abreu: “Pode existir alguém no país que
do povo brasileiro dar mais terra ao índio, que o façam. Mas não à custa dos conheça de meio ambiente igual ao Assuero. Nunca ninguém mais do que ele.
que trabalham duro para produzir o alimento que chega à mesa de todos nós”. Há 13 anos este homem luta incansavelmente para ver a legislação ambiental
modificada. Quero declarar ao Acre a gratidão de 5 milhões de produtores
• Dito sem sofismar, o que a ruralista está querendo é que os seus pares sejam rurais a um acreano de coração, que é o Assuero Doca Veronez”.
indenizados se porventura a terra que eles ocuparam dos índios for revertida
para o uso dos índios. E, lógico, não pronunciam uma palavra sequer sobre a A título de contraponto, e para concluir nossa já longa apresentação, retornemos
indenização aos índios pelas mortes, expropriação, migração forçada e tantas às palavras dos índios Guarani e Yanomami, as quais justificam porque estão
outras sequelas que lhes foram deixadas pelo “empreendedor” agrícola com preocupados com o futuro da humanidade e porque querem guardar-cuidar
a conivência do Estado. bem da terra que lhes foi deixada pelos ancestrais.

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Tonico Benites: parte sob a terra para retirar os minérios, eles vão se perder e cair no mundo
escuro e podre dos ancestrais canibais.
Os guarani e os kaiowá têm conexão direta com os territórios específicos,
consideram-se uma família só, dado que o território é visto por estes indígenas Nós, nós queremos que a floresta permaneça como é, sempre. Queremos viver
como humano. Eles possuem um forte sentimento religioso de pertencimento ao nela com boa saúde e que continuem a viver nela os espíritos xapïripë, a caça
território, fundamentado em termos cosmológicos, sob a compreensão religiosa e os peixes. Cultivamos apenas as plantas que nos alimentam, não queremos
de que foram destinados, em sua origem como humanidade, a viver, usufruir e fábricas, nem buracos na terra, nem rios sujos. Queremos que a floresta permaneça
cuidar deste lugar, de modo recíproco e mútuo. Portanto, eles podem até morrer silenciosa, que o céu continue claro, que a escuridão da noite caia realmente e
para salvar a terra. Há um compromisso irrenunciável entre os guarani e kaiowá que se possam ver as estrelas.
e o guardião/protetor da terra, há um pacto de diálogo e apoio recíproco e mútuo:
os guarani e kaiowá protegem e gerenciam os recursos da terra e, por sua vez, o Vários textos e artigos nos informaram e inspiraram nesta escrita, ver es-
guardião da terra vigia e nutre os guarani e kaiowá. pecialmente:
David Kopenawa Yanomami:
• A floresta de cristais, de Eduardo Viveiros de Castro, disponível em:
Se no centro desta cidade [em referência a Nova Iorque, quando por lá passava] http://amazone.wikia.com/wiki/A_Floresta_de_Cristal
as casas são altas e belas, nas suas bordas, elas estão em ruinas. As pessoas
que vivem nestes lugares não têm comida e suas roupas são sujas e rasgadas. • Antropólogo guarani-kaiowá analisa relação dos índios com sua terra, de
Quando andei no meio delas, me olharam com os olhos tristes. Isso me dá dó. Tonico Benites, disponível em: http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/
Os brancos que criaram as mercadorias pensam que são gentes engenhosas posts/2012/10/27/antropologo-guarani-kaiowa-analisa-relacao-dos-in-
e de valor. No entanto, eles são avaros e não têm nenhuma preocupação com dios-com-sua-terra-472239.asp
aqueles que, dentre eles, são desprovidos de tudo. Como eles podem pensar ser Ver também:
grandes homens e se achar tão inteligentes? Eles não querem saber de nada • http://www.taquiprati.com.br/cronica.php?ident=1004
destes miseráveis que, no entanto, fazem parte deles. Eles os jogam fora e os
deixam sofrer sozinhos. Eles nem mesmo os olham, e se contentam, de longe, • http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/narrativas-indigenas/
em lhes atribuir o nome de pobres. narrativa-yanomami

[Os brancos não pensam]: Se destruirmos a terra, será que seremos capazes de • http://genijogapedra.blogspot.com.br/2012/10/o-silencio-feminista-
recriar uma outra?. Quando conheci a terra dos brancos isso me deixou inquieto. -sobre-o-estupro-da.html
Algumas cidades são belas, mas seu barulho não para nunca. Eles correm por
elas com carros, nas ruas e mesmo com trens debaixo da terra. Há muito barulho
• http://terramagazine.terra.com.br/blogdaamazonia/blog
e gente por toda parte. O espírito se toma obscuro e emaranhado, não se pode • http://editora.expressaopopular.com.br/noticia/
mais pensar direito. É por isso que o pensamento dos brancos está cheio de batalha-das-ideias-ser-%C3%ADndio-em-tempos-de-mercadoria
vertigem e eles não compreendem nossas palavras. Eles não fazem mais que
dizer:"Estamos muito contentes de rodar e de voar! Continuemos! Procuremos • http://www.bbc.co.uk/portuguese/
petróleo, ouro, ferro! Os Yanomami são mentirosos!”. O pensamento desses noticias/2012/10/121024_indigenas_carta_coletiva_jc.shtml
brancos está obstruído, é por isso que eles maltratam a terra, desbravando-a
• http://www.cimi.org.br/pub/CNBB/Relat.pdf
por toda parte, e a cavam até debaixo de suas casas. Eles não pensam que ela vai
acabar por desmoronar. Eles não temem cair no mundo subterrâneo. Porém, é • http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/1179734-marcelo-leite-muita-
assim. Se os “brancos-espíritos-tatus-gigantes” [mineradoras] entram por toda -terra-pouco-indio.shtml

18 19
˜ de
sessao
abertura
Chasseurs et Chamans
Caçadores e Xamãs
França, 2003, cor, 32´
Direção director Raymond Depardon
Fotografia photography Raymond Depardon
Montagem editing Roger Ikhlef
Som sound Raymond Depardon, Dominique Vieillard
Produção production Claudine Nougaret, Palmeraie et désert
Contato contact contact@palmeraieetdesert.fr

Raymond Depardon viaja ao Amazonas ao encontro dos índios Yanomami.


Raymond Depardon travels to the state of Amazonas to meet Yanomami indians.

cine humberto mauro, 21 nov, 19h30

23
ˆ
Xapiri

canone e
ˆ
Brasil, 2012, cor, 54’
Direção director Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra, Bruce Albert

contra-canone
Fotografia photography Leandro Lima
Montagem editing Leandro Lima, Gisela Motta
Som sound Marcos Wesley de Oliveira, Leonardo Rosse
Trilha sonora soundtrack Xamãs Yanomami, Comunidade de Watoriki
Produção production Cinemateca Brasileira, Instituto Socioambiental
Realização Laboratório de Cultura e Tecnologia em Rede/i21, Hutukara Associação Yanomami

Xapiri é um termo yanomami para designar tanto os xamãs, os homens espíritos


(xapiri thëpë) quanto espíritos auxiliares (xapiri pë). Xapiri é um filme experimental
sobre o xamanismo yanomami, realizado por ocasião de um encontro de 37 xamãs
na aldeia de Watoriki, Roraima, em março de 2011. O filme foi concebido de modo a
levar em conta duas noções diferentes de imagem: a dos yanomami e a nossa. Não se
trata, pois, de explicar o xamanismo, seus métodos ou procedimentos, mas de tornar
visível e sensível, para públicos de culturas diferentes, o modo segundo o qual os xamãs
“incorporam” os espíritos, seus corpos e suas vozes.
Xapiri is a Yanomami term that characterizes the shamans, male spirits (xapiri thëpë)
and also auxiliary spirits (xapiri pë). Xapiri is an experimental film about Yanomami
shamanism that was filmed during a meeting of 37 shamans at the Watoriki Village,
Roraima, in March of 2011. The film was designed to take into account two different
notions of image: those of the Yanomami and ours. Therefore, it does not set out to
explain shamanism, its methods or procedures, but to allow different cultures to visualize
and feel the way in which the shamans “embody” the spirits, their bodies and voices.

cine humberto mauro, 21 nov, 19h30


´
auditorio 2/face-ufmg, 23 nov, 9h30
24
Cânone e Contra-cânone:
Para aquém da marginalidade e do compromisso
Ewerton Belico

Levantai as saias das pudicas,


falai de seus joelhos e tornozelos.
Mas sobretudo, ide às pessoas práticas –
Dizei-lhes que não trabalhais
e que viverei eternamente.
Ezra Pound, Hugh Selwyn Maubely

A narrativa acerca do cinema brasileiro moderno é mais do que conhecida,


como conhecidos são seus personagens, momentos cruciais e alinhamentos:
o ocaso da tentativa de constituição de um cinema de moldes industriais
nos anos cinquenta, com o fim dos grandes estúdios paulistas e cariocas, os
primeiros empregos de atores naturais, o nascedouro de uma estética da
câmera na mão, as reivindicações de autoria – também enquanto ruptura e
retomada, em nova chave, da tradição – a perspectiva da transformação social
por meio do engajamento político, a busca pela representação do popular
em suas imagens; mas ainda a ruptura, na qual a alegoria revolucionária é
substituída pela figuração da marginalidade urbana, pela exasperação de uma
violência anárquica e individualizada, pelo hermetismo neovanguardista e
contracultural; ou ainda, pela conciliação com o grande mercado exibidor,
seja no pacto com a ditadura encarnado na Embrafilme, ou na pulverização
de pequenos produtores votados a um cinema que encarna e reprocessa os
clichês da comunicação de massa. Mas tanto as cisões internas entre aquelas
que seriam as personificações do moderno no cinema brasileiro (cinema
novo/cinema marginal) quanto a aparente oposição entre um cinema que
agressivamente se oporia à massificação e aquele que se volta ao grande público
vem se revelando – tanto em reavaliações históricas e críticas mais recentes1,

1
Ver XAVIER, Ismail. O Avesso dos anos 90. In: Caderno MAIS! – Folha de São Paulo, São Paulo,
10/07/2001, p. 4-7; BERNARDET, Jean-Claude. Cinema Marginal?. In: Caderno MAIS! – Folha
de São Paulo, São Paulo, 10/07/2001, p. 8-11; GAMO, Alessandro Constantino. Vozes da Boca.
Campinas: Unicamp, 2006 e ROCHA MELO, Luís Alberto. A Boca e o Beco. In: GATTI, André
Piero; FREIRE, Rafael de Luna. (Org.). Retomando a questão da indústria cinematográfica brasilei-
ra. v. 1. Rio de Janeiro: Associação Cultural Tela Brasilis, 2009. p. 58-75

27
quanto na retomada mais abrangente da exibição desse conjunto de filmes2 – Dividimos a mostra “Cânone e Contra-cânone” em quatro blocos que visam
atravessada por um conjunto de personagens e bifurcações que a taxonomia contemplar alguns dos fragmentos da bifurcação entre indústria e invenção
mais habitual da modernidade cinematográfica brasileira não contemplava. que apontamos: Com O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, e
Perdidos e Malditos, de Geraldo Veloso, filmes no qual Paulo Villaça encarna as
O trânsito de personagens aparentemente secundários – produtores, como personificações da ruptura e da marginalidade, buscamos figurar a retomada
Galante e Palácios; montadores, como Reinoldi, Laurelli e Dadá; ou ainda paródica da intriga policial que, trazida para nosso ambiente ditatorial,
fotógrafos, como Meliande e Oliveira3 – entre filmes com esquemas de produção resultaria na representação do fascismo na instância mesma da lei.
e faturas estéticas marcadamente distintas, assim como a constituição de
espaços de sociabilidade que tornaram possíveis tal circulação (como a Boca do Por meio de Casssy Jones – magnífico sedutor, de Luís Sérgio Person, e Império
Lixo, em São Paulo, ou ainda o Beco da Fome, no Rio de Janeiro); assim como do Desejo, de Carlos Oscar Reichenbach, expor o curto-circuito em torno
o estabelecimento de clivagens espaciais e geracionais entre os dois grandes daquela que é a metonímia do cinema de massas no Brasil dos anos setenta,
centros de produção brasileiros apontam para a necessidade de compreender a ficção erótica, parodiada na falência de um elenco de personas arquetípicas
mecanismos diversos de articulação tanto entre as formas de produção do macho galanteador – Vinícius de Morais, presente em retrado na parede do
independentes e industriais (assim como suas relações com o Estado e com a bar; Carlos Imperial, autor da trilha sonora; os filmes de ídolos juvenis, como
censura) quanto entre as proposições estéticas cinemanovistas e “marginais”. os de Roberto Carlos ou dos Beatles, retomados insistentemente – figuradas
no Don Juan caído e apaixonado, Cassy Jones; mas também retomada com
Retomando a noção de “invenção”, tal como formulada por Jairo Ferreira4, e dimensão trágica e politicamente anárquica em Império do Desejo, filme
considerando a mesma uma espécie de paideuma crítico5, em especial o que em que Reichenbach leva para um formato mais explicitamente erótico e
poderíamos chamar da antecâmara de suas formulações mais pessoais, suas convencionalmente narrativo suas protagonistas femininas independentes e
críticas do São Paulo Shimbun6 – que buscam fortemente possíveis viabilidades amorais; e no qual o rigor de seu enquadramentos e movimentações de câmera
de mercado para um cinema de caráter independente a se produzir no Brasil assumem o papel de postergar a expectativa implícita pela explicitação das
– procuramos com a mostra “Cânone e Contra-cânone” apresentar uma breve sequências eróticas, em negociação/ruptura com o horizonte de expectativas
amostra de filmes exemplares tanto da apropriação que poderíamos chamar implicado no gênero.
“erudita”7 de alguns dos protocolos mais característicos do cinema popular de
massas que se configura nos grandes centros urbanos brasileiros, entre os anos A$suntina das Amérikas, de Luís Rosemberg Filho; Lobisomem, o terror da meia-
cinquenta e oitenta, quanto de autores com trajetórias invulgares, e por isso noite, de Elyseu Visconti e Malandro, termo civilizado, de Sylvio Lanna, são
mesmo exemplares, que atravessam os circuitos estéticos e de sociabilidades exemplares de uma revisão crítica do cinema brasileiro extremamente pessoal,
para além de clivagens apenas superficialmente sólidas. no qual se retoma a chanchada e a comédia musical. Rosemberg, Visconti
e Lanna estão dentre os três mais ousados desenhistas de som do cinema
2
Em especial as Mostras “Cinema Marginal: a representação em seus limites”, realizada por brasileiro, responsáveis, respectivamente, pela retomada do(s) discurso(s)
HECO/CCBB, curada por Artur Autran, Eugênio Puppo e Jean-Claude Bernardet; “Marginália nacional-popular cinemanovista em chave polifônica; por uma característica
70 - Experimentalismo no Super-8 Brasileiro”, realizada pelo Itaú Cultural, curada por Rubens
montagem de som arqueológica de fragmentos de uma memória do Rio antigo e
Machado Jr; e “O cinema da Boca do Lixo”, realizada por HECO/CCBB, curada por Artur Au-
tran, Eugênio Puppo e Jean-Claude Bernardet. de um primeiro samba, presente tanto no filme que exibimos quanto em Barão
3
Sobre essas trajetórias, ver GAMO, Alessandro Constantino. Vozes da Boca. Campinas: Uni- Olavo, o horrível, de Júlio Bressane, com desenho de som feito por Visconti; ou
camp, 2006.
ainda por um dos mais radicais experimentos de descontinuidade entre som
4
Ver FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Max Limonad, 1986 e COELHO, Renato.
Jairo Ferreira – Cinema de invenção. São Paulo: CCBB, 2012. e imagem da cinematografia brasileira, Sagrada Família, que Lanna realizou
5
Ver FONSECA, Jair Tadeu. Jairo Ferreira: Poéticas, Películas, Políticas. In: Catálogo –forum- em 1970.
doc.bh 2011. Belo Horizonte: Associação Filmes de Quintal, 2011.
6
Ver FERREIRA, Jairo. Críticas de Invenção – os anos do São Paulo Shimbun. Org. de Alessandro Por fim, Panca de Valente, de Luís Sérgio Person retoma, em chave cômica,
Gamo. São Paulo: Imprensa Oficial, 2006.
7
Dada a origem social de seu diretores, sua sanção pelo discurso crítico e a natureza paródica o filme de aventuras em espaço sertanejo que, trazendo para o mundo do
de sua releitura.

28 29
western personagens como jagunços e cangaceiros, constituiu um dos mais
populares gêneros de cinema no Brasil dos anos cinquenta e sessenta, vindo
a se fundir, na década seguinte, com a então nascente produção erótica8. E,
juntamente com Panca de Valente, apresentamos o filme, também sertanejo,
que abre nossa mostra, mas que, contrariamente aos demais, não apresenta
uma reapropriação da invenção do cinema popular, mas se constitui como
espaço de invenção por ser uma espécie de síntese de uma cinefilia popular,
materialização de um discurso crítico selvagem, que cintila solitário e ainda
contra-canônico: Sina do Aventureiro, de José Mojica Marins.

Ressalto ainda o apoio imprescindível do Instituto de Arte Contemporânea


Inhotim, parceiro na telecinagem e exibição de duas das obras integrantes
da mostra Perdidos e Malditos, de Geraldo Veloso, e Malandro, termo civilizado,
de Sylvio Lanna, sem o qual sua projeção não seria possível, tendo em vista
a impossibilidade de exibição das cópias em seus formatos originais. O que
exige, aliás, propor ações contínuas de preservação e restauro que garantam
a circulação destas e outras obras fundamentais para o cinema brasileiro.
Panca de Valente

Brasil, 1968, p&b, 95’


Direção director Luís Sérgio Person
Roteiro screenplay Luís Sérgio Person
Fotografia photography Osvaldo de Oliveira
Montagem editing Glauco Mirko Laurelli
Contato contact lauperfilms@gmail.com

Um grupo de bandidos mata o delegado da cidade de Espalha Brasa. Apresentam-se ao


prefeito da cidade como inocentes e exigem que Jerônimo, um atrapalhado e inofensivo
habitante da cidade assuma o posto. Terezinha, a namorada de Jerônimo, queixa-se
com seu pai, o coronel Euclides, sobre a nomeação de seu namorado. Jerônimo conta
com a ajuda do garoto Pitu e de seu amigo Faz Tudo para aprender a montar a cavalo e
atirar, mas enfrenta muita dificuldade para adaptar-se à nova função.
A group of criminals kill the chief of police of Espalha Brasa. They present themselves
to the mayor of the city as innocent and demand that Jerônimo, a clumsy and harmless
inhabitant of the city, assumes the position. Terezinha, Jerônimo’s girlfriend, complains
to her father, colonel Euclides, about the nomination of her boyfriend. Jerônimo
counts on the help of a boy called Pitu and his friend Faz Tudo to learn how to ride a
horse and shoot, but has great difficulty adapting to the new function.

8
Ver PEREIRA, Rodrigo da Silva. Western Feijoada – o Western no cinema brasileiro. Bauru:
UNESP, 2002.
cine humberto mauro, 22 nov, 17h

30 31
Sina do Aventureiro Cassy Jones, Magnífico Sedutor

Brasil, 1958, p&b, 88’ Brasil, 1972, cor, 100’


Direção director José Mojica Marins Direção director Luís Sérgio Person
Roteiro screenplay José Mojica Marins Roteiro screenplay Luís Sérgio Person e Joaquim Assis
Fotografia photography Honório Marin Fotografia photography Renato Neumann e Osvaldo de Oliveira
Montagem editing Luiz Elias Montagem editing Glauco Mirko Laurelli e Maria Guadalupe
Contato contact lauperfilms@gmail.com

Após ser baleado fugindo de um tiroteio, o bandido Jaime cai à margem de um rio, onde Cassy Jones, um sedutor inveterado, amanhece no seu colchão de água ao lado da bela
é socorrido por duas belas jovens. Ele envolve-se romanticamente com Dorinha, filha modelo Gigi, enquanto o seu amigo Bubu, igualmente paquerador mas não tão bonito,
de um fazendeiro e, por amor a ela, entrega-se à polícia. Ao sair da prisão, Jaime tem tenta uma aventura com a criada coroa da casa que, indignada, promete voltar com o
que enfrentar Xavier, um bandido sanguinário que planeja vingar-se do pai de Dorinha. filho para tirar satisfações. Daí se envolvem numa aventura que vai desde a cadeia até
a conquista de uma garota, incorporando Don Juan e seus disfarces.
After being shot while escaping from a shootout, the outlaw Jaime falls on a riverbank
where is rescued by two beautiful young girls. He became romantically involved with Cassy Jones, an inveterate seducer, awakes on his water mattress beside the beautiful
Dorinha, the daughter of a farmer, and as a result of his love for her, he gives himself model Gigi, while his friend Bubu, also a renowned seducer but not so handsome, attempts
up to the police. After getting out of prison, Jaime has to face Xavier, a bloodthirsty an adventure with the older maid of the house who, outraged, promises to return with
villain who plans revenge on Dorinha’s father. her son to deal with him. Cassy gets involved with Ingrid, another emancipated beauty
who is also desired by Bubu, who never has any luck with beautiful women. Following
their release from a prison sentence, Cassy and Bubu watch a program on TV in which
the delicate Clara Mondal and her grumpy tutor Frida participate. The spirit of Don
Juan takes Power of Cassy, who becomes determined to conquer the girl and uses
various disguises to approach her.

cine humberto mauro, 22 nov, 15h cine humberto mauro, 23 nov, 19h

32 33
Império do Desejo* A$suntina das Amérikas

Brasil, 1980, cor, 95’ Brasil, 1976, cor, 90’


Direção director Carlos Reichenbach Direção director Luiz Rosemberg Filho
Roteiro screenplay Carlos Reichenbach Roteiro screenplay Luiz Rosemberg Filho
Fotografia photography Carlos Reichenbach Fotografia photography Renaud Leenhardt
Montagem editing Gilberto Wagner Montagem editing Severino Dadá, Luiz Rosemberg Filho
Contato contact heco@heco.com.br
*Sessão dedicada a Carlos Reichenbach, morto este ano

Viúva descobre que o marido mantinha uma casa na praia para encontros amorosos; A$suntina das Amérikas é uma comédia musical sobre uma prostituta, que no período de
decidida a reaver a propriedade e com a ajuda de um advogado, embarca para Ilhabela 24 horas, acorda, briga com a mãe, anarquisa o filho, namora Papai Noel, um Urso Azul
e durante a viagem dá carona a um casal de hippies. Desocupada por mandato judicial, e duas amiguinhas e por fim se encontra com o velho amante milionário. Então, os dois
deixa os jovens tomando conta da casa e volta para São Paulo. Porém, coisas estranhas sozinhos dentro de uma enorme sala conversam sobre o cotidiano, amam-se, dançam
passam a acontecer na casa: duas estudantes desaparecem; um milionário louco e poeta e por fim, matam-se. Baseado em Dependência e Desenvolvimento na América Latina de
ronda a vizinhança assustando a todos; uma jornalista chinesa é morta e devorada Fernando Henrique Cardoso, e Psicologia de Massas e o Fascismo, de Wilhelm Reich.
pelo poeta...
A$suntina das Amérikas is a musical comedy about a prostitute who, within a period of
A widow discovers that her husband has a house on the beach for romantic encounters; 24 hours, wakes up, fights with her mother, torments her son, has romantic encounters
having decided to repossess the property and with the help of a lawyer, she sets off with Santa, a Blue Bear and two female friends and finally meets her old millionaire
for Ilhabela and during the trip they give a ride to a couple of hippies. As the house is lover. Then the two of them talk about everyday things in an enormous room alo-
unoccupied resulting from a court order, she leaves the couple in charge of the house ne together, make love, dance and finally, kill each other. Based on Dependência e
and returns to São Paulo. However, strange things start to happen in the house: two Desenvolvimento na América Latina (Dependancy and Development in Latin America)
students disappear; a crazy millionaire and poet go around the neighborhood scaring by Fernando Henrique Cardoso, and Psicologia de Massas e o fascismo (Physcology for
everyone; a Chinese journalist is killed and devoured by the poet... the Masses and Fascism) by Wilhelm Reich.

cine humberto mauro, 23 nov, 21h cine humberto mauro, 25 nov, 17h
instituto inhotim, 24 fev, 2013, 15h
34 35
Lobisomem: o terror da meia-noite Malandro, Termo Civilizado

Brasil, 1968, p&b, 95’ Brasil, 1986, p&b, 25’


Direção director Elyseu Visconti Direção director Sylvio Lanna
Roteiro screenplay Elyseu Visconti
Fotografia photography Elyseu Visconti, Rogério Sganzerla
Montagem editing Mair Tavares, Manoel Oliveira

O filme trata dos fatos que envolvem um lobisomem da floresta tropical, que tem o Filme musical com a Moreira da Silva e Luiz Melodia.
seu covil entre palmeiras, jaqueiras frondosas e orquídeas. De lá comanda sua gangue
Musical with Moreira da Silva and Luiz Melodia.
e procura se sobrepor aos espíritos das matas, entre os quais destaca-se Satanás, que
se revela no interior de grutas pré-históricas, como um homem das cavernas. Entre
orgias com mulheres lindíssimas, gritos de pássaros exóticos, sambas carnavalescos e
chorinhos de Pinxinguinha, compõem-se o som tropical que, ecoando entre as árvores
úmidas, jorra com o sangue das vítimas.
The film deals with the facts that involve a werewolf in the tropical forest who has its
lair between palm trees, lush jack fruit trees and orchids. From there he commands
his gang and seeks to overcome the spirits of the forest, among which the devil is
the most powerful and reveals himself inside prehistoric caverns, as a caveman.
Between orgies with beautiful women, the screams of exotic birds, carnival sambas
and Pinxinguinha chorinhos, they compose the tropical sounds that, echoing through
the humid trees, gush with the blood of the victims.

cine humberto mauro, 25 nov, 19h cine humberto mauro, 25 nov, 19h
instituto inhotim, 23 fev, 2013, 15h
36 37
Bandido da Luz Vermelha Perdidos e Malditos

Brasil, 1968, p&b, 92’ Brasil, 1970, p&b, 75’


Direção director Rogério Sganzerla Direção director Geraldo Veloso
Roteiro screenplay Rogério Sganzerla Roteiro screenplay Geraldo Veloso
Fotografia photography Peter Overbeck Fotografia photography João Carlos Horta, Antônio Penido
Montagem editing Sylvio Renoldi Montagem editing Geraldo Veloso

“O terceiro mundo vai explodir!” Almeida atravessa crise de definição existencial: casado com Gisela, intelectual, filha
do dono do jornal que ele dirige, entra em choque com seu amigo Tavares, policial que
“The third world is going to explode!”
investiga assassinato provocado por uma série de reportagens do seu jornal sobre
o submundo do crime. Almeida obedece a ordens superiores e não pode atender ao
pedido de Tavares para que suspenda as reportagens, causando assim graves problemas
para ambos. Decidido a abandonar o jogo sujo de interesses ocultos, resolve então
reformular sua vida.
Almeida goes through an existential definition crisis: married with Gisela, an intel-
lectual and daughter of the owner of the newspaper that he directs, he has a conflict
with his friend Tavares, a Police officer who is investigating a murder provoked by a
series of reports in his newspaper on the underworld of crime. Almeida obeys orders
from his superiors and cannot fulfill the request of Tavares to suspend the reports,
therefore causing serious problems for them both. Having decided to abandon the
dirty game of hidden interests, his solution is to reformulate his life.

cine humberto mauro, 26 nov, 19h cine humberto mauro, 26 nov, 17h
instituto inhotim, 23 fev, 2013, 15h
38 39
a mulher
ˆ
e a camera
A mulher e a câmera
Carla Maia e Cláudia Mesquita

Um fato curioso: nas filas para cirurgias de transplantes do coração, há


pacientes do sexo masculino que preferem continuar a esperar a ter de receber
o órgão de uma mulher. Ao que parece, na opinião desses pacientes, receber
um coração feminino pode ser algo muito grave. Podemos dizer que é em
torno desse “centro de gravidade” que orbitam os filmes que compõem a
mostra/seminário “A mulher e a câmera”, dedicada a exibir e discutir obras de
assinatura feminina, nacionais e internacionais. Mais de quatro décadas após
o surgimento do movimento feminista, é preciso reconhecer que não estão
ultrapassadas as discussões relativas à mulher. Também é forçoso reconhecer
a dificuldade de definição dessa diferença que isola os corações – biológica,
sexual, cultural, social, ou seriam todas as alternativas? – e adiantamos que
não é um ímpeto de definição que nos move.

Antes, focamos a diferença como potência. A pequena, porém expressiva seleção


de filmes que compõe a mostra “A mulher e a câmera” – são dezessete obras,
sendo onze longas e seis curtas e médias metragens – atesta a diversidade
formal e temática que impede que cunhemos, para nomear a mostra, uma
noção definidora tanto da mulher como do cinema realizado por elas. Não
por acaso, o título faz clara alusão à mostra/seminário “O animal e a câmera”,
apresentada no forumdoc.bh.2011. Sempre com renovado interesse, o forumdoc
segue empenhado em pensar um mundo com alteridade: a mulher, o animal,
vêm assim ocupar o lugar de um Outro que desestabiliza os padrões de um
certo pensamento ocidental formulado e orientado por uma maioria de
homens, adultos, brancos, cidadãos, como escrevem Deleuze e Guattari. No
entendimento dos autores, as mulheres, independente de seu número, são uma
minoria, existem como devir-minoritário e, como todo devir, desafiam os modos
de compreensão do nosso tempo ao propor movimentos de desestabilização
dos padrões majoritários.

Se, como nota Paulo Maia na apresentação da mostra “O animal e a câmera”,


as relações entre o homem e o animal permitem problematizar as complexas
relações entre natureza e sociedade, sobretudo por desafiar a “máquina
antropológica da filosofia ocidental” denunciada por Giorgio Agamben como
aquela “que impõe a cesura (no interior do homem) entre o humano e o animal”,
trata-se agora de voltar a atenção para outra cesura – interior ou exterior? –
que separa os seres em dois gêneros.

43
Frente a tudo que já se disse e ainda há por ser dito sobre as mulheres, o que enigma”, como sugere Laura Mulvey em Riddles of the Sphinx (1977). O filme,
poderia o cinema? É evidente que trata-se, sim, de pensar sobre poderes. que abre a mostra, é uma forte referência para estudos de cinema vinculados
Sabemos bem que um filme nunca é apenas um filme: é um agente cognitivo e ao feminismo, ou vice-versa. O trabalho realizado por Mulvey ao lado de Peter
sensível, que pode trabalhar no sentido de reforçar os sistemas de significação Wollen investe num experimentalismo formal que problematiza a questão da
vigentes ou, contrariamente, inventar outros sentidos, outros mundos – entre um representação, fazendo implodir as convenções narrativas do cinema clássico:
pólo e outro, todas as nuances são possíveis. Sim, “o cinema não apenas apresenta lentas panorâminas em 360 graus, longas falas da própria Mulvey em planos
imagens, ele as cerca com um mundo” (DELEUZE, 2005, p. 87). O mundo que fixos lendo um texto tão denso quanto instigante – para citar apenas algumas
buscamos dar a ver com a presente mostra é um em que as mulheres têm vez e voz, das estratégias do filme – quebram com o esquema “mulher como imagem/
digamos, um mundo com as mulheres, aberto às suas mais diversas participações, homem como dono do olhar” que, de acordo com a autora, orienta a tradição
aberto inclusive às suas instabilidades e contradições: dito de outro modo, seguimos narrativa do cinema.
em defesa de um mundo com alteridade, onde ainda é possível atar laços e propor
outras partilhas. Em “Prazer visual e cinema narrativo”, texto seminal para os estudos da área,
Mulvey busca evidenciar como o contexto audiovisual é dominado por uma
Entretanto, trata-se, sobretudo, de atentar para o que não se pode. Não nos lógica masculina do olhar, que sensualiza o corpo feminino para satisfazer
caberá tecer generalizações, mas apontar configurações provisórias, coerentes ao desejo escópico. O problema maior, para a autora, reside na maneira como
em si mesmas – talvez no espaço e tempo de um filme, apenas – porém não “num mundo governado por um desequilíbrio sexual, o prazer no olhar foi
aplicáveis a todo e qualquer contexto. Os filmes que nos interessam dificultam dividido entre ativo/masculino e passivo/feminino” (MULVEY, 1983, p. 444).
muito, quando não impossibilitam, qualquer abordagem universalista ou Frente a esse cenário, Mulvey sugere que, uma vez esmiuçados, por meio da
essencialista do problema. Ainda assim, não ocultamos nosso interesse em psicanálise, os mecanismos do olhar escopofílico-voyeurista, restaria a tarefa
fazer desse pequeno conjunto de filmes a serem exibidos pontos de irradiação de destruir tais mecanismos, através de estratégias formais que pudessem
para a discussão de questões amplas e complexas sobre as mulheres e seu libertar o olhar da câmera “em direção à sua materialidade no tempo e no
“separatismo minoritário paradoxalmente doloroso e desejado” (DURAS, 1988, espaço”, e o olhar da platéia “em direção à dialética” (MULVEY, 1983, p. 453).
p. 169). Ou seja, seria preciso ir contra o “princípio do prazer”, convocando o espectador
a um trabalho ativo diante do filme.
Ao pensar tal separação entre os seres, o filósofo Emmanuel Levinas escreve
que “o feminino é outro para um ser masculino, não só porque é de natureza Mulvey defende assim que o cinema feito por mulheres seja algo como um
diferente, mas também enquanto a alteridade é, de alguma maneira, a sua contracinema, enfrentando o fetichismo e o voyeurismo próprios das estruturas
natureza” (LEVINAS, 1982: 58). A afirmação, certamente, pode e deve ser inconscientes, por sua vez, calcadas num sistema patriarcal. Através de formas
problematizada e matizada de diversas maneiras. É o mesmo Levinas quem, distintas de mise-en-scène, esse contracinema deveria exigir do espectador um
de saída, oferece algumas nuances ao seu próprio pensamento: outro tipo de engajamento, dificultando a satisfação imediata derivada da
escopofilia. É principalmente durante a década de 1970 que filmes orientados
Todas estas alusões às diferenças ontológicas entre o masculino e o feminino por semelhante perspectiva passam a ser produzidos, sobretudo na França
parecerão talvez menos arcaicas se, em vez de dividir a humanidade em duas e nos EUA.
espécies (ou em dois gêneros), elas quisessem significar que "a participação no
masculino e no feminino é própria de todo o ser humano. Será este o sentido do Não por acaso, sete dos filmes que compõem a mostra foram realizados
enigmático versículo do Gênesis 1:27: homem e mulher os criou?" (LEVINAS, na década de 1970. A começar pelo média-metragem Women’s film (1971),
1982, p. 58, grifamos) trabalho coletivo realizado pelo grupo Newsreel de São Francisco, no calor do
debate feminista emergente nos EUA. Apesar de não ousar muito em termos
Deixemos a pergunta aberta: é preciso, antes de tentar solucionar o problema, formais, o filme adquire estatuto de documento histórico ao se aproximar da
vê-lo. Escutemos a voz da Esfinge: “não a voz da verdade, não uma voz que vida de mulheres comuns, trabalhadoras de diversas cores, idades, classes
responde, mas seu oposto: uma voz que questiona, uma voz que propõe um

44 45
e nacionalidades, convocadas a refletir sobre sua condição feminina. Com em Jeanne é como se realmente a víssemos pela primeira vez. Ao espectador,
discursos ora hesitantes, ora inflamados, mulheres com aparentemente pouco é demandada uma postura paciente e atenta ao menor detalhe: reparem como
em comum e que não se identificavam propriamente com a militância das uma mecha do cabelo sai do lugar, como um botão falta na roupa... O filme nos
intelectuais e artistas da época (entre estas, as próprias proponentes do propõe, menos que uma narrativa, uma experiência temporal que nos lembra,
projeto, Louise Alaimo, Judith Smith e Ellen Sorrin), ganhavam visibilidade a todo tempo, de nossa condição de espectadores – e se já não podemos, dela,
e espaço para elaborar e apresentar suas visões de mundo. retirar prazer, podemos apenas suportá-la.

Enquanto isso, na França, Marguerite Duras realizava Nathalie Granger (1972), Ainda na França, no mesmo ano, Agnés Varda lança seu curta-metragem
filme marcado pelo uso inventivo não apenas das imagens, centradas no espaço Réponse de femmes (1975), filme-manifesto que, ainda que de um modo um tanto
da casa, mas sobretudo do som, criando uma “política do silêncio” (KAPLAN, didático, apresenta um grupo de mulheres frente às questões que, de um jeito
1995, p. 138). As protagonistas – interpretadas por Jeanne Moureau e Lucia ou de outro, rondam sua existência. Assim, gravidez, maternidade, casamento,
Bose – passam a maior parte do filme sem emitir qualquer som. Se raras vezes padrões de beleza e “feminilidade” são colocados sob suspeita, justamente
escutamos suas vozes, tampouco escutamos o ruído de seus passos ao caminhar através das diferentes posições de cada mulher em frente à câmera. Para fechar
pela casa ou os sons característicos das atividades que desempenham, como esse curto circuito de cineastas importantes para um pensamento acerca da
lavar a louça. O contraste sonoro se dá quando Gerard Depardieu entra em mulher no cinema – Duras, Akerman, Varda – apresentamos mais um filme
cena, no papel de um vendedor a domicílio: tudo que entre elas era silêncio, de Varda, Documenteur (1981). Dessa vez, a mulher já não surge como tema
com ele se torna ruidoso e audível. Essa estratégia formal, com toda sutileza, central, ao menos não de modo evidente. A personagem principal é uma mulher,
torna explícita a preocupação de Duras com “essa linha reta da vida de todas é verdade, envolvida com o fim de seu casamento e a necessidade de reinventar
as mulheres, esse silêncio da história das mulheres. Esse fracasso que levaria uma vida, em um país estrangeiro, ao lado do filho pequeno. O filme, entretanto,
a pensar no sucesso, esse sucesso que não existe, que é um deserto” (1988, p. não pode ser resumido ao redor das desventuras e aventuras de sua personagem,
171). Gritar na direção dos desertos é o que a autora sugere como forma de resistir que aliás, não são muitas – procurar uma casa, trabalhar, convencer o filho a
e existir – grito inaudito, entretanto, grito quase mudo, diminuto, que nada pode dormir na própria cama. Trata-se de um filme que, na esteira do que sugere
e – no entanto – sugere um outro possível. Mulvey, busca implodir a própria noção de representação ao ressaltar a ficção
(ou a mentira, expressa no termo “menteur”) que existe no coração de todo
É também em silêncio que conhecemos Jeanne, uma disciplinada viúva de documentário, e vice-versa. Ainda assim, com traços autobiográficos (a própria
classe média – vivida por Delphine Seyrig – que complementa o orçamento do Varda morava nos Estados Unidos e estava separada do marido quando fez
mês prostituindo-se em domicílio. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, o filme, além da personagem ser vivida por uma trabalhadora do cinema),
1080 Bruxelles (1975), a diretora Chantal Akerman realiza uma verdadeira Documenteur é afetado por uma sensibilidade ímpar, dotada de alto grau de
etnografia dos gestos cotidianos de uma mulher, sempre em planos fixos, introspecção e em parte devedora de uma instabilidade ou vulnerabilidade
frontais, rigidamente compostos. Na vida de Jeanne, receber os clientes que – pode-se argumentar – relaciona-se ao feminino.
torna-se uma tarefa entre tantas, como cozinhar, limpar, organizar, engraxar
sapatos. O tempo distende-se (e muito: o longa-metragem tem 200 minutos) Fugindo do eixo França-EUA que concentra boa parte da reflexão feminista
para apreender a duração de cada gesto, numa descrição minuciosa, quase desde a década de 1970, buscamos apresentar trabalhos de cineastas ainda
obsessiva, que explora a repetição enquanto marcação do ritmo cotidiano. O pouco conhecidas no circuito cinematográfico brasileiro, dada sua posição
filme é um evidente manifesto contra as atrações do mainstream: “acho mais periférica. A começar por um filme que, de tão pouco exibido, foi escolhido
fascinante ver uma mulher – que pode ser todas as mulheres – arrumando praticamente às cegas: La nouba des femmes du Mont-Chenoua, da cineasta
uma cama durante três minutos do que uma corrida de carros que dura vinte e escritora argelina Assia Djebar. O filme compartilha com Documenteur o
minutos”, afirma a diretora. O filme opera, ao sublinhar cada gesto, mesmo hibridismo entre documentário e ficção, embora de modo oblíquo e através
o mais banal, uma certa crise na representação: somos levados ao limite do de recursos e estilísticas bem distintos. Novamente, temos uma personagem,
que vemos. É certo que todos nós já vimos uma mulher cozinhar antes, mas a arquiteta Lila, que passeia por entre lugares e pessoas marcados pela guerra

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da Argélia. Ao ouvir as avós passarem suas tradições aos mais jovens, ao que realiza pesquisa e compilação de materiais diversificados, com o propósito de
reinscrever a história de um país na voz das mulheres que nele vivem, o filme revelar uma história negligenciada da mulher americana. Este último também
investe num registro da memória de um povo e de um lugar, sem contudo será exibido na mostra. Além de Solberg, outra Helena compõe a programação:
totalizar tal memória, deixando que nela resida ou resista algum silêncio, Helena Ignez, uma das grandes atrizes do cinema nacional, e também diretora,
femininamente (pensemos, novamente, em Duras). apresenta em sessão comentada seu longa-metragem (com Ícaro Martins) Luz nas
trevas (2011), continuação do clássico O Bandido da Luz Vermelha (1968), realizado
Ainda no continente africano, no Senegal, uma vietnamita afirmaria: “Não a partir de roteiro deixado por Rogério Sganzerla, com quem Helena foi casada
quero falar sobre, quero apenas falar ao lado de...” Em Reassemblage (1982), a diretora durante muitos anos. Completa a lista de filmes brasileiros o documentário A falta
Trinh Min-ha compõe sua etnografia em luz, gestos, movimentos, colocando que me faz, de Marília Rocha, um delicado relato do cotidiano de um grupo de
explicações e interpretações sob suspeita. Em lugar de falar “sobre”, falar “ao lado”: meninas em Curralinho, na região da Serra do Espinhaço, Minas Gerais. Marília
na mudança da preposição, repousa uma mudança de proposição, que evita a Rocha e Helena Solberg estarão juntas numa mesa redonda dedicada a pensar a
determinação em favor da relação. Mesmo ao voltar para casa para realizar seu ação e presença da mulher no cinema brasileiro, ao lado de Paula Alves, diretora do
segundo longa-metragem, Surname Viet Given Name Nam (1989) – o primeiro Femina – Festival Internacional de Cinema Feminino e pesquisadora com dissertação
foi Naked Spaces (1985), também filmado na África – Trinh Min-ha investe acerca da participação feminina no mercado de trabalho cinematográfico.
na alteridade (das pessoas que filma) em detrimento da autoridade (do lugar
da direção). Ao realizar as entrevistas com mulheres vietnamitas, a diretora A mostra é composta ainda por dois trabalhos de Claire Angelini, artista e cineasta
deixa que o ritmo de suas falas contamine musicalmente o filme, de modo a francesa que estará presente no forumdoc para conduzir uma oficina de documen-
enfatizar o que há de singular na voz e no acento de cada uma das mulheres. tário a partir de seu método de trabalho. Interessada em indagar “como a história
O tema das conversas reverbera preocupações afinadas com o pensamento retorna ao sensível” e em que medida “a memória do tempo passado” pode se
feminista, posto que, no Vietnã, ao menos no momento em que é feito o filme, exprimir no presente, Claire Angelini se volta uma vez mais, em La guerre est proche
vigora um modo de vida extremamente desigual para mulheres e homens. e Et tu es dehors, para a história sob a forma de rastro, de ruína, de reminiscência e
de sobrevivência das imagens. As veredas do ensaio, muitas vezes trilhadas pela
A resistência feminina a uma situação política opressiva aparece também de reflexão sobre o feminino no cinema, são aqui reinventadas para indagar, sob
maneira contundente em La Flaca Alejandra (1994), filme da diretora chilena diferentes formas e temáticas, a relação entre arte e história.
Carmen Castillo. A partir do doloroso e franco encontro com Maria Alejandra
Merino, ex-companheira de resistência, tornada colaboradora do regime O curta Tarachime, da diretora japonesa Naomi Kawase, fecha a lista de filmes.
militar chileno sob tortura, Carmen recupera, com a participação corajosa de No documentário, a diretora filma o filho recém-nascido e a avó, que a criou.
sua retratada, as violências particulares sofridas pelas mulheres no regime Gravidez, parto e maternidade, experiências eminentemente femininas, são
desumanizador de Pinochet. trazidas à cena, num filme que investe no auto-biográfico para, enfim, ensaiar
sobre o ciclo comum a todas as vidas: nascer, envelhecer, morrer. A diretora
Não poderíamos deixar de incluir, entre os países que expandem nosso recorte, afirma que, se a princípio quis fazer um filme sobre a gravidez e o nascimento
o Brasil. Diante do limite de sessões, na impossibilidade de tudo contemplar, do filho, ao fim acabou por perceber que não fazia um filme sobre “uma vida”,
optamos por focalizar a obra de uma das cineastas brasileiras mais engajadas mas, antes, sobre o laço que liga uma vida a outra. O nascimento pode ser
com a questão da mulher, Helena Solberg, diretora de Carmen Miranda: Bananas visto, portanto, como metáfora para algo que diz respeito a uma política:
is my business (1995) e Vida de menina (2004). Na mostra, exibiremos seu primeiro política como promessa, como quis Hannah Arendt (2010), anúncio e emergência
filme, o curta A entrevista (1966), que traz à tona questões relacionadas ao sexo, ao do novo, renovação do mundo pela espontaneidade e pelo exercício da liberdade.
casamento e à política, através de depoimentos de jovens de classe média alta do
Rio de Janeiro. Na década de 1970, vivendo nos Estados Unidos, Helena continua a De fato, embora bem distintos em forma e conteúdo, é em sua dimensão
explorar uma abordagem política ao tratar do universo feminino, através de filmes política que os filmes se aproximam. Entendemos a política, na esteira do que
como Simplesmente Jenny (1975), The double day (1975) e The emerging woman (1976), escreve Rancière, como relações de mundo, algo que está sempre por ser inventado,

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jogo que busca libertar os corpos de seus lugares pré-definidos. Para avançar na
reflexão de tais questões, teremos uma mesa para discutir a relação entre mulheres
e política, com a participação da pesquisadora Roberta Veiga e da professora da
Faculdade de Educação da UFMG, Inês de Castro. Além disso, teremos uma mesa
dedicada a pensar os deslocamentos do feminino à luz dos estudos antropológicos
em curso, com a presença das professoras e pesquisadoras Lia Zanotta, Erica Sousa
e mediação de Débora Breder. A discussão antropológica também abre o seminário,
com a conferência de Luisa Elvira Belaunde, que pretende discutir as imagens das
mulheres indígenas nos documentários amazônicos. Passando para trás da câmera,
convidamos Sueli Maxakali e Patrícia Ferreira para estarem presentes numa mesa
acerca da participação feminina no cinema indígena, com mediação de Renata Otto.

A curadoria agradece a todos as convidadas e cineastas que gentilmente possibi-


litaram a realização da mostra/seminário, seja por aceitarem os convites para o
seminário, seja por cederem seus filmes. Também agradecemos à Capes pelo
financiamento do projeto “A mulher e a câmera”, atividade do programa de
extensão forumdoc.bh UFMG em 2012, e a toda equipe de bolsistas do projeto
pela dedicação e empenho; ao Consulado Geral da França no Rio de Janeiro, The woman’s film
pelo apoio no transporte dos filmes franceses exibidos em película e à valiosa
parceria e apoio do Itamaraty/Ministério das Relações Exteriores na realização EUA, 1971, p&b, 40’
da Oficina de Documentário com Claire Angelini. Direção director Louise Alaimo, Judy Smith, Ellen Sorren
Contato contact www.newsreel.us

Referências
O filme foi realizado por mulheres do Newsreel em São Francisco. Foi um esforço cole-
ARENDT, Hannah. A promessa da política. Rio de Janeiro: DIFEL, 2010.
tivo entre as mulheres atrás e em frente à câmera. O próprio roteiro foi escrito a partir
DELEUZE, Gilles. A imagem-tempo. São Paulo: Ed. Brasiliense, 2005. de entrevistas prévias com as mulheres que estão no filme. Suas participações, críticas
e aprovações foram solicitadas em várias fases da produção.
DURAS, Marguerite. Os olhos verdes. Crônicas publicadas em Cahiers du cinéma.
Rio de Janeiro: Globo, 1988. Filme gentilmente cedido por Roz Payne, Newsreel Films.

KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema – os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: The film was made entirely by women in Sao Francisco Newsreel. It was a collective
Rocco, 1995. effort between the women behind and in front of the camera. The script itself was
written from preliminay interviews with the film’s participants. Their participation,
LEVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1982. their criticism and approval were sought at various stages of production.
MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER (org). A Film courtesy by Roz Payne, Newsreel Films.
experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.

´
auditorio 2/face-ufmg, 28 nov, 11h30

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Nathalie Granger Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles

França , 1972, p&b, 83’ Bélgica/França, 1975, cor, 200’


Direção director Marguerite Duras Direção director Chantal Akerman
Roteiro screenplay Marguerite Duras Fotografia photography Babette Mangolte
Fotografia photography Ghislain Cloquet Montagem editing Patricia Canino, Alain Marchal
Montagem editing Nicole Lubtchansky Som sound Bénie Deswarte, Françoise Van Thienen
Som sound Paul Lainé Contato contact loregablier@gmail.com
Contato contact Janine.deunf@diplomatie.gouv.fr

O filme mostra uma tarde na vida de duas mulheres fechadas em casa e em silêncio. Sobre Jeanne Dielman, diz a diretora: “é um filme hiperrealista sobre a ocupação do
Isabelle Granger está preocupada com o comportamento violento da filha Nathalie. tempo na vida de uma mulher limitada a seu lar, sujeita ao conformismo imposto dos
Do mundo exterior surgem ecos via rádio, e mais tarde, um vendedor de máquinas gestos cotidianos. Mas revalorizei todos esses gestos restituindo-lhes sua duração real,
de lavar. Na singularidade narrativa de Duras, destaca-se uma poderosa impressão de filmando, em planos sequências, em planos fixos, com a câmera sempre voltada para
tempo suspenso e angústia contida. a personagem, seja qual fosse sua posição. O que eu quis mostrar foi o justo valor do
cotidiano feminino”.
The film shows one afternoon in the life of two women closed in her house, in silence.
Isabelle Granger is concerned with the violent behavior of her daughter Nathalie. About Jeanne Dielman, says the director, “it is an hyperrealistic film about the use
Echoes arise from the outside world via radio, and later, a seller of washing machines. of time in the life of a woman confined to her home, subjected to the conformity
In the narrative uniqueness of Duras, there is a powerful impression of suspended of everyday gestures. But I revaluated all these gestures by restoring their actual
time and contained anguish. length, filming in sequence-shots in fixed plans, with the camera always focused on
character, whatever her position was. What I wanted to show was the fair value of
the feminine everyday”.

cine humberto mauro, 24 nov, 17h ´


auditorio 2/face-ufmg, 30 nov, 9h

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Riddles of the Sphinx La nouba des femmes du Mont-Chenoua

Reino Unido, 1977, cor, 92’ Argélia, 1979, cor, 115’


Direção director Laura Mulvey e Peter Wollen Direção director Assia Djebar
Roteiro screenplay Laura Mulvey, Peter Wollen Roteiro screenplay Assia Djebbar
Fotografia photography Diane Tammes Montagem editing Nicole Schlemmer
Montagem editing Carola Klein, Larry Sider Contato contact www.wmm.com
Som sound Peter Maxwell, Larry Sider
Contato contact Andrew.Youdell@bfi.org.uk

Riddles Of The Sphinx (Enigmas da Esfinge) é um marco da fusão entre feminismo e O filme mescla aspectos ficcionais e documentais ao narrar o retorno da arquiteta
experimentação formal, em busca de uma linguagem fílmica não-sexista. A figura do argelina Lila à sua região natal, 15 anos após o fim da guerra da Argélia. Lila é obcecada
título, a lendária criatura da antiguidade, aterroriza Thebes e se auto-destrói somente pelas lembranças da guerra de independência que definiu sua infância. Em diálogo com
após Édipo responder corretamente seu enigma. Evocando e desafiando interpretações outras mulheres argelinas, ela reflete sobre as diferenças entre a sua vida e a delas.
tradicionais da história de Édipo enquanto um movimento da cultura matriarcal para a
The film mingles narrative and documentary styles to document the return of the
ordem patriarcal, o filme desafia também a representação cinematográfica em si mesma.
Argelian architect Lila to her native region 15 years after the end of the Algerian war.
Riddles Of The Sphinx is a landmark fusion of feminism and formal experimentation Lila is obsessed by memories of the war for independence that defined her childhood.
that seeks to create a non-sexist film language. Its title figure, the legendary creature of In dialogue with other Algerian women, she reflects on the differences between her
antiquity, terrorized Thebes and self-destructed only after Oedipus correctly answered life and theirs.
her riddle. Invoking and challenging traditional interpretations of the Oedipus story
as a movement from matriarchal culture to patriarchal order, the film also probes
representation in film itself.

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auditorio 2/face-ufmg, 22 nov, 10h cine humberto mauro, 27 nov, 17h

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Reassemblage Surname Viet Given Name Nam

EUA, 1982, cor, 40’ EUA, 1989, p&b e cor, 108’


Direção director Trinh T. Minh-ha Direção director Trinh T. Minh-ha
Montagem editing Trinh T. Minh-ha Fotografia photography Kathleen Beeler
Produção production Jean-Paul Bourdier Montagem editing Linda Peckham, Trinh T. Minh-ha
Contato contact www.wmm.com Contato contact www.wmm.com

As mulheres são o foco - mas não o objeto - do primeiro filme de Trinh T. Minh-ha, O documentário explora o papel social das mulheres vietnamitas historicamente e
um complexo estudo visual da região rural do Senegal. Através da cumplicidade da na sociedade contemporânea. Usando dança, textos impressos, poesia popular e as
interação entre filme e espectador, Reassemblage reflete sobre o cinema documental e palavras e experiências de mulheres no Vietnã e nos Estados Unidos, o filme desafia a
a representação etnográfica das culturas. cultura oficial ao fazer ouvir as vozes dessas mulheres. Uma obra teórica e formalmente
complexa, Surname Viet Given Name Nam explora as dificuldades de tradução e os temas
Women are the focus but not the object of Trinh T. Minh-ha’s influential first film, a
de deslocamento e exílio, criticando tanto a sociedade tradicional quanto a vida depois
complex visual study of the women of rural Senegal. Through a complicity of interaction
da guerra.
between film and spectator, Reassemblage reflects on documentary filmmaking and
the ethnographic representation of cultures. The documentary explores the role of Vietnamese women historically and in contem-
porary society. Using dance, printed texts, folk poetry and the words and experiences
of Vietnamese women in Vietnam—from both North and South—and the United
States, Trinh’s film challenges official culture with the voices of women. A theoretically
and formally complex work, Surname Viet Given Name Nam explores the difficulty of
translation, and themes of dislocation and exile, critiquing both traditional society
and life since the war.

cine humberto mauro, 02 dez, 17h cine humberto mauro, 01 dez, 21h

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Réponse de femmes: Notre corps, notre sexe Documenteur

França, 1975, cor, 8’ França, 1981, cor, 63’


Direção director Agnès Varda Direção director Agnès Varda
Fotografia photography Jacques Reiss, Michel Thiriet Fotografia photography Nurit Aviv, Affonso Beato, Bob Carr
Montagem editing Marie Castro, Andrée Choty, Hélène Wolf Montagem editing Bob Gould, Sabine Mamou
Som sound Bernard Bleicher Som sound Jonathan Liebling
Contato contact cine-tamaris@wanadoo.fr Contato contact cine-tamaris@wanadoo.fr

O que significa ser uma mulher realmente? Como as mulheres vivem sob o status social Realizado durante a breve estadia de Varda em Los Angeles no início de 1980, o filme
reservado a elas? Um grupo de mulheres, bonitas ou não, jovens ou não, dotadas de tem no título um trocadilho com as palavras documentaire (documentário) e menteur
instinto maternal ou não, responde diante da câmera de Agnès Varda. (mentiroso), uma justaposição que tem guiado o cinema de Varda desde o início de sua
carreira. No filme, uma jovem francesa divorciada tenta encontrar uma moradia para
What to be a woman really means? How do women live under the social status reserved
ela e seu filho em Los Angeles.
for them? A group of women, beautiful or not, young or not, endowed with maternal
instinct or not, responds before the camera of Agnès Varda. Shot during the brief stay of Varda in Los Angeles in early 1980, the film has a title
with a pun on the words documentaire (documentary) and menteur (liar), a crucial
juxtaposition that has guided Varda’s cinema since the beginning of her career. In the
film, a young French divorcee tries to find a home for her and her son in Los Angeles.

cine humberto mauro, 27 nov, 19h cine humberto mauro, 27 nov, 19h

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La guerre est proche Et tu es dehors

França, 2011, cor, 80’ França, 2012, cor e p&b, 85’


Direção director Claire Angelini Direção director Claire Angelini
Contato contact clairangelini@hotmail.com Fotografia photography Stéphane Degnieau
Montagem editing Claire Angelini
Som sound Claire Angelini
Contato contact clairangelini@hotmail.com

Documentário sobre o campo de concentração de Rivesaltes, na França, construído em Documentário experimental sobre um homem que retorna à sua cidade natal e, num
1936, por onde passaram milhares de judeus rumo a Auschwitz, durante a Segunda quarto de hotel, tenta reunir os fragmentos de seu passado.
Guerra Mundial. Considerado hoje um acampamento militar abandonado, o local e suas
Experimental documentary about a man who returns to his hometown and, in a hotel
memórias são evocados a partir de seus edifícios e ruínas.
room, tries to gather the fragments of his past.
Documentary about the Rivesaltes concentration camp, in France, built in 1936, where
thousands of Jews have passed towards Auschwitz during World War II. Considered
today an abandoned military camp, the place and its memories are evoked from their
buildings and ruins.

cine humberto mauro, 29 nov, 17h cine humberto mauro, 30 nov, 19h

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A Entrevista The Emerging Woman
A Nova Mulher
Brasil, 1966, p&b, 19’9’’ EUA, 1975, p&b, 48’
Direção director Helena Solberg Direção director Helena Solberg
Contato contact radiantefilmes@terra.com.br Roteiro screenplay Roberta Haber, Melania Maholick
Montagem editing Jane Stubbs
Contato contact radiantefilmes@terra.com.br

Helena Solberg entrevista moças de formação burguesa sobre casamento, sexo e política, O documentário oferece um panorama histórico da luta das mulheres por igualdade,
enquanto a imagem de uma noiva se preparando para a cerimônia vai sendo desmistificada desde o começo do século 19. Antigas gravuras, fotografias, notícias e material de
pelo áudio dessas entrevistas. arquivo ilustram as várias experiências sociais, econômicas e culturais das mulheres
através da história.
Helena Solberg interview bourgeois girls about marriage, sex and politics, while the
image of a bride getting ready for the ceremony is being demystified by the audio of This documentary provides an historical overview of woman's struggle for equality
the interviews. since the early 1800's. Old engravings, photographs, newsreels and archival foot-
age further illustrate the varied social, economic and cultural experiences of women
through history.

cine humberto mauro, 28 nov, 19h ´


auditorio 2/face-ufmg, 28 nov, 11h30

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La Flaca Alejandra Tarachime
Nascimento / Maternidade
Chile/França, 1994, cor e p&b, 60’ Japão/França, 2006, cor, 43
Direção director Carmen Castillo, Guy Girard Direção director Naomi Kawase
Fotografia photography Maurice Perrimond Fotografia photography Naomi Kawase
Montagem editing Annick Breuil Montagem editing Naomi Kawase, Takefuji Kayo
Som sound Cormine Gigor Som sound Naomi Kawase
Contato contact carmen.castillo@yahoo.fr 
Produção production Sent Inc., Kumie e Arte France

Documentário sobre Maria Alejandra Merino, ex-chefe do MIR (Movimento da Esquerda Tarachime começa em 24 de Abril de 2004, quando Naomi Kawase teve o filho, Mitsuki.
Revolucionária) que, sob tortura, converteu-se em colaboradora da DINA (Diretoria de Assim que o cordão umbilical foi cortado, a cineasta pegou a câmara para filmar a sua
Inteligência Nacional) no governo de Pinochet. A cineasta Carmen Castillo esteve entre criança e a sua avó de noventa e dois anos. "Tarachime" significa mãe no japonês arcaico.
os militantes do MIR delatados por Maria Alejandra Merino.
Tarachime begins in April 24th, when Naomi Kawase gave birth to her first child,
Documentary about Maria Alejandra Merino, ex-chief of MIR (Revolutionary Left Mitsuki. Once the umbilical cord was cut, the filmmaker took the camera and start
Movement) who, under torture, became an informant of DINA (National Inteligence filming her baby and her grandmother aged 92 years old. “Tarachime” means “mother”
Directory) during Pinochet’s government. The filmmaker Carmen Castillo was one in arcaic japanese.
of the MIR members betrayed by Maria Alejandra Merino.

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auditorio 2/face-ufmg, 27 nov, 11h30 ´
auditorio 2/face-UFMG, 27 nov, 11h30

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Luz nas Trevas – A volta do Bandido da Luz Vermelha A falta que me faz
Like water through stone
Brasil, 2011, cor, 83’ Brasil, 2009, cor, 85’
Direção director Ícaro C. Martins, Helena Ignez Direção director Marília Rocha

Roreito screenplay Rogério Sinai Sganzerla, Helena Ignez Fotografia photography Alexandre Baxter, Ivo Lopes Araújo

Fotografia photography José Roberto Eliezer Montagem editing Francisco Moreira, Marília Rocha

Montagem editing Rodrigo Lima Som sound O Grivo

Produção production Sinai Sganzerla Produção production Luana Melgaço

Contato contact smercurioproducoes@gmail.com Contato contact teia.distribuicao@gmail.com

Luz nas Trevas, continuação do filme O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, Durante um inverno, um grupo de meninas vive o fim da juventude. Um romantismo
traz Ney Matogrosso como protagonista. Seu filho Tudo-ou-Nada é o fio condutor que impossível deixa marcas em seus corpos e na paisagem a seu redor.
atravessa essa história. Adorado pelas mulheres, Tudo-ou-Nada segue a “carreira” de
During winter, a group of girls live the end of youth. An impossible romanticism
seu pai a fim de desfrutar de uma ampla variedade de prazeres mundanos.
leaves marks in their bodies and in the scenery around them.
Luz nas Trevas (Light in the Darkness), sequence of Rogerio Sganzerla’s O Bandido
da Luz Vermelha (The Red Light Bandit), brings Ney Matogrosso as the protagonist.
His son Tudo-ou-nada (All-or-Nothing) is the thread that guides this story. Loved
by women, Tudo-ou-Nada follows the “career” of his father to enjoy a wide variety
of worldly pleasures.

cine humberto mauro, 26 nov, 21h cine humberto mauro, 28 nov, 19h

66 67
competitivas
Júri

Mostra Competitiva Nacional

Debora Breder
Formada em cinema pela EICTV de San Antonio de Los Baños (Cuba) e doutora
em Antropologia pela UFF. Atualmente realiza pós-doutorado em Antropologia
na UFMG.

Luís Alberto Rocha Melo


Professor-adjunto do curso de Cinema e Audiovisual no Instituto de Artes
e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Escreveu textos
para diversos catálogos de mostras e retrospectivas de cinema. É redator das
revistas Contracampo e Filme Cultura.

Nísio Teixeira
Professor do Departamento de Comunicação Social da UFMG. É redator da
revista digital de cinema Filmes Polvo.

Mostra Competitiva Internacional

Alexandre Veras
Realizador e formador cultural é coordenador do Alpendre-Casa de Arte,
Pesquisa e Produção, em Fortaleza, onde desenvolve atividades de curadoria,
seminários, exposições.

Ansgar Vogt
Graduado em Performance Studies na New York University´s Tisch School of
the Arts, trabalhou como jornalista, autor e desenvolvedor de roteiros. Desde
2004 ele é membro do comitê de seleção da seção Forum do Festival de Berlim.

María Campaña Ramia


Naceu em Quito. Programadora de cinema, jornalista e blogueira. Mestre em
produção e realização de cinema documental pela Universidad Marc Bloch
de Estrasburgo. Integrante da equipe do Festival Internacional de Cinema
Documental Encuentros del Otro Cine que se realiza no Equador desde 2001.

71
mostra
competitiva
nacional
Sob o risco do cinema
Carolina Canguçu e Victor Guimarães

Sabemos bem da impossibilidade de considerar o documentário contemporâneo


como uma categoria definível, que possuiria uma identidade e características
previamente reconhecíveis. A riqueza desse cinema surge justamente dos
acontecimentos que se atualizam no e pelo filme, de sua imprevisibilidade e
de sua capacidade de envolver inúmeras e diferentes subjetividades.

No entanto, é preciso que se diga: a safra de filmes enviados a uma mostra como
esta competitiva nacional não é feita apenas de uma pluralidade inventiva,
composta de diversas abordagens, olhares, experiências cinematográficas. Em
nosso percurso de alguns meses em companhia dos 260 filmes inscritos, muitos
foram os momentos em que o que estava em jogo não era a multiplicidade, mas
a repetição incessante; em que o imperativo parecia ser não o de encontrar –
ou de inventar – algo no (ou com o) mundo, mas o de forjar, a qualquer custo,
uma estrutura onde coubessem todos os mundos.

Durante a seleção, nos deparamos com inúmeras reportagens, em que o único


interesse repousava sobre alguns fragmentos de falas que pudessem aumentar
quantitativamente nosso estoque de conhecimentos sobre determinado
assunto; outros tantos filmes institucionais, que buscavam, a partir de uma
tese preconcebida, legitimar certo grupo social, agremiação artística ou
estabelecimento comercial existente, adornando seus contornos com as glórias
da imagem; inúmeros filmes cuja única tarefa era a exaltação de um personagem
extraordinário, a partir de uma mesma receita baseada na articulação entre
depoimentos e imagens de arquivo (fosse um líder revolucionário do passado ou
um músico esquecido pela crítica musical, a fórmula parecia servir igualmente).

Em todos esses casos, a montagem parece não se interessar por quase nada
que possa vir da cena, além das melhores palavras de seus personagens ou
das imagens mais bem acabadas. Tudo se passa como se o cinema fosse um
conjunto de formas a serem preenchidas, de protocolos a serem seguidos. E
é importante ressaltar: esses filmes não são exceções em meio a um vasto
conjunto de experiências diversas, mas constituem um manancial hegemônico,
caudaloso o suficiente para atingir a parte mais numerosa dos documentários
inscritos.

75
Diante desse grande amontoado de filmes previsíveis, controlados e controla- os brancos e a investigação da cosmologia Guarani, a instabilidade torna-se
dores, sem arestas ou sobras, nosso mundo – o dos espectadores – permanece não um obstáculo, mas o ponto chave de uma maturidade cinematográfica.
igualmente inalterado: as fronteiras continuam estabelecidas, os sujeitos em
suas devidas posições. A esse mundo, acrescenta-se alguma informação rele- Há filmes que se fazem inteiramente na tensão com aquilo que os circunda,
vante, alguma bela imagem, mas não se ousa incidir sobre os nossos jeitos de mas que também os atravessa e passa a compor sua materialidade: aqui, a
ver e de ouvir, de pensar o mundo ou de filmá-lo. De informações relevantes pressão real do fora-de-campo é, a um só tempo, condição de existência e
e imagens bem acabadas, a televisão está cheia. escolha cinematográfica (Margens dos Marques). E há aqueles que ousam fazer
da performance a matéria-prima do documentário, seja para melhor investigar
Mas eis que, em algum momento, diante de nossas retinas e ouvidos já tão seus efeitos no mundo e no filme (A anti-performance), seja para embarcar,
fatigados, começam a surgir os filmes que se atrevem a nos retirar de um lugar por um breve instante, de olhos e ouvidos abertos na beleza física de sua
estabilizado e confortável: problematizam nosso olhar e nossa escuta diante indefinição (Lullaby).
de um mundo tomado pela repetição, enveredam por uma trilha inesperada,
convidam o documentário para dançar. Marcados por um duplo engajamento, Em Mr. Sganzerla – Os signos da luz, uma pretensa biografia de um cineasta
esses filmes embrenham-se no mundo e mergulham – verdadeiramente – no extraordinário torna-se o lugar de um pensamento que parte exclusivamente
cinema, ao fazer desse encontro o lugar de uma produção recíproca: o filme das imagens e a elas retorna, mas sob a forma de uma montagem que traça
como espaço de exposição às impurezas do mundo, mas também de invenção novas relações, estabelece comparações, desestabiliza sentidos. E assim como
de um cinema impuro, problemático, instável. uma biografia pode se enveredar por um ensaio sobre o próprio cinema, o
documentário pode ser inventivo o suficiente para se transformar em carta
À certa altura, um desses filmes resolve fazer da sala de cinema o lugar da de amor (Otto): torna-se possível imaginar que uma experiência profunda-
abertura de uma ferida de dimensões históricas, ao mesmo tempo em que mente subjetiva – conhecer uma nova mulher, ter um filho –constitua um
inventa um dispositivo formal dos mais arriscados de que se tem notícia no acontecimento cinematográfico admirável, que não conhece fronteiras entre
cinema recente (Doméstica). Em outro momento, há quem decida transformar o privado e público, entre o íntimo e o universal.
um espaço dos mais concretos – um prédio, com suas tubulações e suas
rachaduras – em uma metáfora crítica das contradições do país, sem medo De forma totalmente inesperada, surge um filme que se apoia nas vicissitudes
do artifício e nem da grandiloquência (HU). de um presidente de clube para narrar as angústias de um mundo do futebol
(muito) longe dos holofotes dos salários astronômicos (Espírito Santo Futebol
De repente, um mito indígena invade a tela sob vestes cinematográficas nada Clube): o que era um projeto aparentemente institucional ganha a potência
convencionais: a história ganha a forma de uma ficção composta por uma dos momentos em que se precipita na cena uma complexidade de sentimentos,
dramaturgia precisa, que não hesita em visitar o cinema de gênero (Porcos apostas existenciais, clichês ideológicos. É também dos clichês – e de sua
raivosos). De repente, um ensaio fílmico sem palavras se torna uma investigação desconstrução – que se trata Em busca de um lugar comum: provocativo e
cinematográfica altamente reveladora – e transformadora – de todo um regime instigante, o filme acompanha a exploração turística das favelas do Rio de
de profusão das imagens (Pele de Branco). Janeiro, a partir de um ponto de vista simultaneamente interior e distanciado,
cúmplice e profundamente crítico de um modelo de cidade e de vida social.
Profusão que se torna o disparador para um filme terrorista, que, a partir de Em A cidade é uma só?, é outra cidade – Brasília – que é colocada em questão e
um método planejado de entrega de câmeras em casas de classe alta, apropria- se atualiza, por meio do filme, no mesmo processo de exclusão que a originou.
se das reações que o real lhe oferece, aceita e transforma as consequências Em um filme profundamente heterogêneo e singular, passado e presente se
inesperadas de seu roteiro (Câmara escura). É também o que acontece em misturam e se contaminam, assim como ficção e documentário, verdade e
Tava – a casa de Pedra: ao contrário de tentar controlar e negar a cena como mentira, sonho e realidade, drama e comédia são categorias indefiníveis e
lugar da negociação, o filme assume o inesperado dos encontros previamente coexistentes.
planejados como parte de sua materialidade. Entre a história do contato com

76 77
Aos poucos, sempre como um parêntese benfazejo e desafiador, foram se At the risk of cinema
destacando esses filmes que não se deixavam apanhar por certa lógica tácita
Carolina Canguçu e Victor Guimarães
do “bom documentário”, baseada em um roteiro muito bem construído e em
soluções já amplamente testadas. Filmes que não eram isentos de problemas
e inconsistências, mas que não se davam por satisfeitos em compor uma It is not possible to consider contemporary documentaries as a definite category,
mise-en-scène adequada para acolher os assuntos ou os sujeitos filmados. Filmes which would have an identity and features previously recognizable. This
que, por vezes, aceitavam de bom grado o perigo de colocar-se também sob o cinema is so rich because it emerges from happenings that are updated in and
risco do artifício, do excesso, da ficção, da mistura improvável. through the film, its unpredictability and its capacity to involve numerous
A seleção que apresentamos a seguir é feita desses parênteses: dos que and different subjectivities.
insistiram em inventar, apesar de tudo; dos que não se furtaram à tarefa de However, it is to be said: the film lot subscribed in this national competi-
incidir – com as forças do cinema – sobre as imagens e os sons que compõem tive showcase does not represent an inventive plurality, made of different
nossa existência comum; dos que se atreveram a rearranjar, uma e outra vez, approaches, views and cinematographic experiences. During these past months
as coordenadas do mundo. watching the 260 registered films, there were many moments that we couldn’t
see a multiplicity but a constant repetition; it seemed that the films didn’t seek
to meet – or invent – something in (or with) the world, still they intended, at
any cost, to create a structure that would fit all worlds.

During the selection of the films we came across many reports, which had the
only interest in cutting people’s speeches so we could increase the number of
our knowledge stocks about a certain subject; many other institutional films
that through a preconceived thesis sought to legitimate a certain social group,
art association or a business establishment, beautifying its outlines with the
glories of image; various films that only intended to praise an extraordinary
character, all made out of the same procedure based on the articulation of
interviews and archive images (if it was a past revolutionary leader or an
old musician ignored by the media, the same formula seemed to fit always).

In all these cases, it seems that the editing doesn’t care about anything that
may come from the scene besides the best words from its characters or the
most beautiful images. The story goes as if cinema was a set of molds that
you could fulfill, protocols to be followed. It is important to be said: these
films aren’t exceptions among numerous different experiences, but they are a
hegemonic source and represent the majority of the documentaries registered.

In the presence of this mass of predictable films, controlled and controlling,


with no edges or residues, our spectator world also remains unchanged: the
boundaries are still the same, each person fits its place. We can add relevant
information to this world, or even beautiful images, but one is never incisive
about our ways to see, think and listen to the world, not even the ways to film
it. TV is full of relevant information and perfect images.

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But then, somehow, in front of our tired eyes and ears, films that dare to take In Mr. Sganzerla – The signs of light, an intender biography of an extraordinary
us from our comfortable and stabilized place emerge; they problematize the way filmmaker becomes a place of a thinking that emerges from images and returns
we look and listen to our repetitive world, they choose an unpredictable path to them, in which the editing draws new relationships, settles comparisons
and invite documentary to dance. They are twice engaged; they get involved and destabilizes senses. And as a biography can be an essay about cinema itself,
with the world and truly dive into cinema in making the film encounter as a documentary can be inventive enough to turn into love letter (Otto): it becomes
place for a reciprocal production: the film to be exposed to the world dirtiness, possible to imagine that a deeply individual experience – meeting a woman,
but also as a place to invent an unclean cinema, problematic, unstable. having a child – can constitute a wonderful cinematographic happening,
without boundaries between private and public, intimate and universal.
At a certain point, one of these films decides to open through cinema a historical
wound at the same time it is inventing a risky formal dispositive not often In an unexpected way we see a film that relies on the vicissitudes of a team
seen in recent documentaries (Housemaids). At another moment, one decides president to tell the anguish of a soccer world (very) far from the spotlight of
to make concrete spots – a building with its pipes and cracks – into a critical the astronomical salaries. (Espírito Santo Football Club): what seemed to be an
metaphor of the country contradictions, without fear of artifice or bombast institutional project gains the power of the moments that make emerge in the
(HU Enigma). scene a complexity of feelings, existential bets and ideological clichés. It is also
about clichés – and its destruction – that Em busca de um lugar comum talks
Suddenly, an indigenous myth enters into the screen wearing unconventional about: provocative and compelling, the film follows the tourist exploitation
film garments: the story takes the form of a fiction composed of a precise of the favelas of Rio de Janeiro from a point of view both inside and distant,
dramaturgy that doesn’t hesitate to visit genre cinema (Enraged Pigs). All of complicit and deeply critical of a model of city and social life. In Is the city one
a sudden, an essay film without words becomes a highly revealing cinemato- only? it is another city – Brasilia – that is put into question and it’s updated
graphic investigation - and also transforming – a whole system of profusion through the film by the same exclusion process that originated it. In a singular
of images (White Man Skin). and heterogeneous film, past and present mingle and contaminate each other,
A profusion that becomes the trigger for a terrorist film, which starts from a therefore fiction and documentary, truth and lies, dream and reality, drama
planned method of delivering cameras at upper-class homes and appropriates and comedy are indefinite and coexisting categories.
the reactions that reality offers to it; it accepts and transforms the unexpected Gradually, always as a beneficent and challenging parenthesis, some films
consequences of the script (Dark Chamber). It’s also what happens in Tava- the were being distinguished because they didn’t follow certain logic implied by
stone house: instead of trying to control and deny the scene as the negotiation the “good documentary” based on a well-done script or solutions widely tested.
place, the film assumes the unexpected of the encounters previously planned Films that weren’t exempt from problems and inconsistencies, but they did
as part of its materiality. Instability is not an obstacle but the key of cinema not get satisfied by composing an adequate mise-en-scène that would fit people
maturity as it is part of the history of contact with the Whites and the and subjects. Films that sometimes willingly accepted the risk of putting
investigation of Guarani’s cosmology. itself in artificial situations, excessive, fictional, or with unlikely mixtures.
There are films that are entirely made in tension with the surrounding, but The film selection we present is made out of these parenthesis: those that
it also passes through and becomes part of its materiality: here the pressure insisted to invent besides all; those that didn’t shy away from the task of
of the off-field is, at once, a condition of existence and a film choice (Marques incurring – with cinema strengths – the images and sounds made in our
Margins). There are also those that dare to make films out of performances, is common existences; those that dared to rearrange, once and again, the world
to better investigate its effects in the world and in the film (Anti-performance), coordinates.
is to better engage in, eyes and ears open upon the physical beauty of its
vagueness (Lullaby).

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A Anti performance A cidade é uma só?
Is the city one only?
Brasil, 2012, cor, 10’ Brasil, 2012, cor, 80’
Direção director Daniel Lisboa Direção director Adirley Queirós
Fotografia photography Daniel Lisboa Roteiro screenplay Adirley Queirós, Thiago Mendonça
Montagem editing Daniel Lisboa Fotografia photography Leonardo Feliciano
Som sound Daniel Lisboa Montagem editing Marcius Barbieri
Produção production Daniel Lisboa Som sound Francisco Craesmeyer
Contato contact dlisboa@hotmail.com Produção production Adirley Queirós, André Carvalheira

A cidade amanheceu cinza. A orla soprava o salitre violentamente. Coqueiros se en- Daí eu pensei em como fazer um filme bem legal, agradável e gângster: Brasília, I Love You.
vergavam para dar passagem aos ventos. O clima mudou, algo se movia. A cidade
And then I was thinking about how to make a really cool, pleasant and gangster
sentiu o deslocamento. O Exu assentado em corpo humano recebeu o chamado. Das
movie: Brasília, I Love you.
mais profundas entranhas do centro antigo, a ponta da lança foi percebida, as farpas
reluziram, e a cidade viu sua querida e odiosa entidade voar para a anti-performance.
Um fly movie, a TAMJETÓRIA.
Dawn broke, the city was gray. The saltpeter was violently blown by the waterfront.
The coconut palms bent, yielding to the wind. The weather had changed, something
was in motion. The city felt the gust. The Eshu incarnated in a human body received
the calling. From the deepest entrails of former downtown, the tip of the spear was
seen, the splinters glistened, and the city saw its cherished and loathsome entity fly
to the anti-performance. A fly movie, the TAMJETÓRIA.

cine humberto mauro, 25 nov, 15h cine humberto mauro, 24 nov, 19h

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Câmara Escura Doméstica
Dark Chamber Housemaids
Brasil, 2012, cor, 24’ Brasil, 2012, cor, 75’
Direção director Marcelo Pedroso Direção director Gabriel Mascaro
Fotografia photography Luiz Pretti, Marcelo Pedroso, Ricardo Pretti Montagem editing Eduardo Serrano
Montagem editing Marcelo Pedroso Produtor production Rachel Ellis
Som sound Rafael Travassos, Phelippe Cabeça, Guma Farias Contato contact gabrielmascaro@gmail.com
Produção production Símio Filmes
Contato contact marcelo.pedroso@gmail.com

“Quando as imagens dos objetos iluminados penetram num compartimento escuro Sete adolescentes assumem a missão de registrar por uma semana a sua empregada
através de um pequeno orifício e se recebem sobre um papel branco situado a uma certa doméstica e entregar o material bruto para o diretor realizar um filme com essas imagens.
distância desse orifício, veem-se no papel os objetos invertidos com as suas formas e Entre o choque da intimidade, as relações de poder e a performance do cotidiano, o
cores próprias”. (Leonardo da Vinci, Codex Atlanticus, sec. XVII) filme lança um olhar contemporâneo sobre o trabalho doméstico no ambiente familiar
e se transforma num potente ensaio sobre afeto e trabalho.
“When images of illuminated objects... penetrate through a small hole into a very
dark room... you will see [on the opposite wall] these objects in their proper form and Seven teenagers take over the task of filming their housemaids during a week , after
color”. (Leonardo da Vinci, Codex Atlanticus, 17th century) what they will deliver the footage to the director; the raw material will be edited and
made into a movie. Amid the impact caused by the exposure of privacy, the power
relations and the everyday performance, the film casts a modern glance on domestic
service within the family household, becoming a potent essay on affection and work.

cine humberto mauro, 24 nov, 21h cine humberto mauro, 24 nov, 21h

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Em busca de um lugar comum Espírito Santo Futebol Clube
In search of a common place Espírito Santo Football Club
Brasil, 2012, cor, 80’ Brasil, 2012, cor, 29’
Direção director Felippe Schults Mussel Direção director André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky
Fotografia photography André Lavaquial, Pedro Urano, Rodrigo Graciosa, Thiago Lima Silva Fotografia photography André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky
Montagem editing Felippe Schultz Mussel Montagem editing Tina Saphira, André Ehrlich Lucas
Som sound Felippe Schultz Mussel Produção production André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky
Produção production Angelo Defanti Contato contact andre@filmeslimitada.com
Contato contact angelo@sobretudo.art.br

Rio de Janeiro, 2011. Anunciadas mundo afora como principal palco das mazelas sociais Um retrato afetivo de um clube chamado Espírito Santo e sua luta para permanecer na
brasileiras, as favelas cariocas figuram, paradoxalmente, entre os mais sedutores cartões primeira divisão do futebol capixaba.
postais do Rio de Janeiro. Imerso nos tours pela Favela da Rocinha, o documentário
An affective portrait of a soccer team called Espírito Santo, and its struggle to remain
investiga os desejos e as imagens envolvidas na construção deste disputado destino
in the first division of the state championship.
turístico. Um mercado que, atento às demandas, não cessa em projetar seus novos
atrativos.
Rio de Janeiro, 2011. Presented to the world as the main stage for Brazilian social
ailments, the slums of Rio de Janeiro are, nonetheless, depicted in some of the city´s
most alluring postcards. Plunged into the tours inside the Favela da Rocinha, the
documentary examines the wishes and the images involved in the construction of
this famed tourist destination. A market that, aware of the demands, does not cease
to plan its new attractions.

cine humberto mauro, 25 nov, 15h cine humberto mauro, 23 nov, 15h

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HU Lullaby
HU Enigma Lullaby
Brasil, 2011, cor, 78’ Brasil, 2011, cor, 11’
Direção director Pedro Urano, Joana Traub Csekö Direção director André Lage
Fotografia photography Pedro Urano Fotografia photography André Lage
Montagem editing Marina Fraga Montagem editing Rita Pestana, André Lage
Som sound Edson Secco Som sound André Lage
Produção production Samantha Capideville Produção production André Lage
Contato contact pedro@pedrourano.com Contato contact andrelage71@gmail.com

Um edifício partido ao meio: de um lado, o hospital; do outro, a ruína. E no horizonte, Filha propõe ao velho pai português um desafio: cantar em inglês uma canção de Tom
a Baía de Guanabara, o Rio de Janeiro, a saúde e educação públicas. Inteiramente Waits.
filmado no monumental e apenas parcialmente ocupado prédio modernista do Hospital
A daughter offers her father, an old Portuguese man, a challenge: to sing, in English,
Universitário da UFRJ. Uma metáfora em concreto armado da esfera pública brasileira.
a song by tom Waits.
A building cut in half: on one side of it, the hospital; on the other, the wreckage. Standing
in the horizon, the Guanabara bay, the city of Rio de Janeiro, the state education and
the public health systems. Shot entirely at the monumental and only partially occupied
modernist building of the University Hospital of UFRJ (Federal University of Rio de
Janeiro). A metaphor in reinforced concrete for the public sphere in Brazil.

cine humberto mauro, 23 nov, 15h cine humberto mauro, 22 nov, 21h

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Margens dos Marques Mr. Sganzerla, Os signos da luz
Marques Margins Mr. Sganzerla, The Signs of Light
Brasil, 2012, cor, 55’ Brasil, 2011, cor, 90’
Direção director Mariana Andrade Direção director Joel Pizzini
Fotografia photography Leonardo Alvim Fotografia photography Luis Abramo
Montagem editing Pedro Hilário Montagem editing Felipe Rodrigues, Cláudio Tammela
Som sound Lucas Campolina Som sound Alexandre Contador
Produção production Carlos Eduardo Marques Produção production Sara Rocha
Contato contact plot.mari@gmail.com Contato contact j.pizzini@uol.com.br

A comunidade Quilombo de Marques habita as margens do vale do rio Mucuri, em Minas Mr. Sganzerla é um filmensaio que recria o ideário do cineasta Rogério Sganzerla, através
Gerais, no Brasil. A construção de uma Pequena Central Hidrelétrica irá fazer com que dos signos recorrentes em sua filmografia: Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Hendrix e
os descendentes de escravos sejam obrigados a abandonar suas casas e a repensar a Oswald de Andrade. O método de criação, a musicalidade do olhar, o estilo inovador
identidade que possuem. na montagem, o duo com Helena Ignez que revolucionou a mise-en-scène no cinema,
a parceria com Júlio Bressane na produtora Belair e a atitude iconoclasta do diretor
The community of Quilombo de Marques dwells in the margins of the valley of Mucuri
atravessam o filme numa linguagem que se contamina com a dicção vertiginosa do artista.
River, in Minas Gerais, Brazil. The construction of a small hydroelectric power plant
will force the descendants of slaves to leave their homes and to rethink their identities. Mr. Sganzerla is a movie-essay that re-creates the ideas and images of the filmmaker
Rogério Sganzerla through those symbols that are recurrent in his filmography:
Orson Welles, Noel Rosa, Jimi Hendrix e Oswald de Andrade. His creative method,
his melodic glance, his innovative montage style, the duo with Helena Ignez which
revolutionized the mise-en-scène in the cinema, the partnership with Júlio Bressane
in the film production company Belair and Sganzerla´s iconoclast disposition pervade
the movie, in a language that is imprinted by the the whirling diction of the artist.

cine humberto mauro, 23 nov, 17h cine humberto mauro, 24 nov, 15h

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Otto Porcos Raivosos
Otto Enraged Pigs
Brasil, 2012, cor, 71’ Brasil, 2012, cor, 10’
Direção director Cao Guimarães Direção director Isabel Penoni, Leonardo Sette
Fotografia photography Cao Guimarães, Florencia Martínez Fotografia photography Leonardo Sette
Montagem editing Cao Guimarães, Florencia Martínez Montagem editing Leonardo Sette
Som sound O Grivo Som sound Leonardo Sette
Produção production Cao Guimarães Produção production Aikax, Lucinda Filmes, Museu Nacional - DKK
Contato contact studio@caoguimaraes.com Contato contact porcosraivosos@gmail.com

Otto é um filme que acompanha o processo de gravidez de minha mulher e nascimento Um grupo de mulheres decide fugir ao descobrir que seus maridos se transformaram
de meu filho. Instintivo e visceral como um gesto. Intimista e confidente como um diário misteriosamente em porcos furiosos.
filmado. Uma celebração à vida, um filme de amor.
A group of women decides to flee when discovering that their husbands have been
Otto follows the course of my wife’s pregnancy with our first child and the birth of misteriously turned into rabid pigs.
my son. Instinctive and visceral as a gesture. Intimist and confessional as a diary on
film. A celebration of life, a movie of love.

cine humberto mauro, 22 nov, 21h cine humberto mauro, 23 nov, 17h

92 93
Pele de Branco Tava, a casa de pedra
White Man Skin Tava, the stone house
Brasil, 2012, cor, 25’ Brasil, 2012, cor, 78’
Direção director Takumã Kuikuro, Marrayury Kuikuro Direção director Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli
Fotografia photography Takumã Kuikuro Fotografia photography Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli
Montagem editing Takumã Kuikuro Montagem editing Tatiana Almeida, Vincent Carelli
Som sound Takumã Kuikuro Som sound Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, Patrícia Ferreira, Vincent Carelli
Produção production Aikax, Vídeo nas Aldeias Produção production Vídeo nas Aldeias
Contato contact takucineasta@gmail.com Contato contact olinda@videonasaldeias.org.br

No mundo contemporâneo a tecnologia ocupa um espaço cada vez maior na vida íntima e Interpretação mítico-religiosa dos Mbya-Guarani sobre as reduções jesuíticas do século
social das pessoas. “Kagaiha Atipügü (Pele de Branco) é um filme produzido por Takumã XVII no Brasil, Paraguai e Argentina.
Kuikuro, do Coletivo Kuikuro de Cinema, que aborda a visão indígena sobre este universo
A religious-mythic interpretation of the 17th-century Jesuit Reductions in Brazil,
tecnológico revelando como os índios do Alto Xingu (Mato Grosso, Brasil) relacionam-
Paraguay and Argentina, by the Mbya-Guarani people.
se com os instrumentos criados pelos ‘brancos’”. O filme traz a voz indígena sobre esse
processo e discute em que medida as novas tecnologias da memória e da comunicação,
ao mesmo tempo que ameaçam, também servem à preservação de culturas tradicionais.
In the contemporary world, technology plays an increasingly important role in our
daily lives – both private and social. “Kagaiha Atipügü” (White Man Skin), produced by
Takumã Kuikuro, member of the artist collective group Coletivo Kuikuro de Cinema,
deals with the way in which the technological universe is perceived by the indigenous
people from Alto Xingu (Mato Grosso, Brazil), and how they relate to the devices created
by the “white men”. The movie brings the indigenous voice on this process, and puts into
question to what extent these new technologies of memory and communication, often
regarded as a threat to traditional cultures, can also work as a means to preserve them.

cine humberto mauro, 23 nov, 17h cine humberto mauro, 22 nov, 19h

94 95
mostra
competitiva
internacional
Como não vivemos sob ditadura
Bráulio Brito Neves, Carla Italiano e Milene Migliano

Tarefa árdua encontrar critérios de seleção dentre os mais de 170 filmes


inscritos para a Mostra competitiva internacional do forumdoc.bh.2012.
Cumpre-nos, por isso, expor nossos partidos, já que são sempre situados,
parciais e arbitrários. Em defesa dos critérios que empregamos, devemos relatar
que vários dos filmes que se destacaram em meio à totalidade dos inscritos
indicavam eixos éticos e estilísticos recorrentes que, de certa maneira, se
tornaram critérios de pertinência à mostra. O documentarismo contemporâneo
busca atravessar épocas e terras para oferecer uma perspectiva transcultural
de justiça e liberdade à incipiente sociedade civil global, público sem pátria
que o documentarismo transnacional instaura no próprio ato de a ele se
endereçar. Diante destas circunstâncias, assumimos como critérios de nossas
escolhas: a estelarização dramática1, na abundância das situações encenadas
dos filmes, na sintetização de universos discursivos histórico-culturais; a
consistência ético-estilística da realização, na coerência rigorosa entre as
propostas retóricas e os dilemas éticos; e a pertinência política dos filmes na
perspicácia como os documentários expõem as graves condições políticas
deste mundo multipolar, cujos expoentes pouco esforço fazem para encobrir
em suas tendências autoritárias.

Nosso recorte investiu em temáticas e procedimentos, nos quais pudemos


identificar a presença de expedientes variados de resistência e invenção. A
presente curadoria tenta respeitar as singularidades e a potência das propostas
de realizar um cinema dos/sobre os deslocamentos através da história e entre
as nacionalidades, da Bélgica ao Congo e ao Japão, de um Portugal atual à
1975, de Burkina Faso à Costa do Marfim, por dramas pessoais saturados das
experiências de povos inteiros.

Em Chambres avec vue, vemos um procedimento sugerido pelo próprio filme ser
apropriado por seus personagens, imigrantes africanos, que ao olharem pela
janela de quartos em Paris constroem narrativas que fabulam suas memórias

1
Segundo Souriau (1950, p. 29-34), "trata-se do esforço de elaboração dramatúrgica neces­
sário para a instauração de um 'dispositivo estelar' no argumento narrativo, ou seja, um con-
junto de expedientes capazes de estabelecer e sustentar uma conexão fundamental entre um
macrocosmo - no caso dos documentários, alguma perspectiva do mundo socio-historico - e
aquele 'pequeno núcleo estelar de personagens' do filme." Souriau, E. Les deux cent mille situa-
tions dramatiques. Paris: Ed. Flammarion, 1950.

99
à medida que tecem críticas sobre a dura realidade em que vivem. Em um Linha Vermelha investiga o poder da imagem documentária, que transporta
quarto de uma ilha no Japão, o olhar se dirige para a intimidade familiar no para o presente um momento épico da queda da ditadura de Salazar e da
gesto de uma diretora que interpela o irmão em reclusão, no filme Eau douce, tomada de poder pelo povo em Portugal. O filme inquire o cinema como
eau salée. Seu cotidiano revela solidão, alcoolismo e dependência química registro, acerca da sua potência de interferir no curso da história. Em Zavtra,
que refletem a opressão simbólica, própria de grandes centros urbanos, a o documentário transfronteiriço pacientemente acompanha o cotidiano
que está condicionado. Joana, personagem central de Cama de gato, resiste à cinicamente desesperado de protagonistas que exploram o limite entre a
violência constante da vida na periferia de Setúbal nos percursos que faz com representação e o caos, difundindo um ativismo artísitico extremista que
sua filha. A mãe adolescente que encena desejos de consumo agenciados pela escarnece os padrões hierárquicos da sociedade pós(?)-soviética. Ao convocar
produção de sua própria imagem desvela os enfrentamentos ao preconceito os cidadãos russos à guerra (como se evidencia no próprio nome do coletivo
e à frustração de não alcançar os ideais de beleza e amor. de que trata o filme, Война: guerra) contra um regime de autoritarismo mal-
camuflado, o grupo de artistas desbarata as pretensões biopolíticas do Estado,
Uma espécie de luta velada perpassa outras histórias pessoais que refletem um produzem suas próprias imagens de confronto e com elas desenham uma
movimento migratório transnacional. A ruptura com a história do empreen- futura – impossível? - vida sem medo.
dimento colonial marca Bons Baisers de la colonie ao apresentar a trajetória de
Suzanne. A força e resistência ao processo do filme que visibiliza a sua própria Ao nos deslocarmos por esses caminhos estreitos, entre narrativas de lutas
história emergem ao longo dos encontros com a diretora, sua sobrinha, que menores (ou, mais exatamente, de “não não-lutas”) reencontramos a tradição do
investiga os mecanismos de recusa de um passado que une o íntimo ao social. documentário como criador de espaço político e de repertórios de expedientes
Em Espoir Voyage acompanhamos o irmão mais novo refazendo a trajetória para a resistência e para a inovação políticas, capaz de dirigir a atenção para
do mais velho que partiu de Burkina Faso para Costa do Marfim. A busca de a dimensão crítica da prática criativa cotidiana. As situações estão atreladas
pistas acerca desse movimento migratório retrata a determinação, e refaz ao contraste à opressão, por vezes velado, por vezes diretamente manifesto,
a saída dos jovens do território comunitário original. Ao encontrar outros que acabam por remeter às imposições do capital especulativo financeiro,
jovens no caminho percorrido pelo irmão anos atrás, o diretor encontra frequentemente amparado por governos autoritários à direita e à esquerda.
narrativas que passam a compor o imaginário afetivo que transborda para Esta crítica se faz na prática dos deslocamentos espaço-temporais que articulam
a experiência filmica. e conectam vivências que, sem deixar de serem únicas, particulares, díspares,
tornam-se estelares de macrocosmos históricos e culturais amplos, imagens
É possível identificar também certa ideia de dominação do capitalismo que apontam a insuficiência de sentido de sua localidade e momento. À parte as
especulativo, em sua esfera neoliberal, em filmes como Habiter/Construire, novidades da comunicação telemática – que nos dispensam de pacotes apenas
Narmada, La Friche. A intervenção pervasiva dos interesses de empresas globais para nos soterrar com protocolos técnicos e jurídicos –, a maior originalidade
à revelia das particularidades locais é verbalizada em Narmada, a partir da do documentário internacional contemporâneo provém do caráter cada vez
organização comunitária que apresenta a cena de dissenso. Em Habiter/ mais não-nacional da sua avidez por perspectivas transculturais de justiça,
Construire, o dano hierárquico ao qual estão submetidos aqueles habitantes do que apenas uma sociedade civil transnacional poderia redimir.
deserto do Chade é apresentado por meio da expressão corporal e gestualidade
produzidas, em grande medida, para a câmera. A estrada que cinde os modos
de sociabilidade estabelecidos no local designa reconfigurações dos espaços
compartilhados pelos grupos originários, impostas pela empresa, que em
última instância representa diretrizes impostas pelo capital. La Friche apresenta,
a partir do retrato da desindustrialização, da emigração e do planejamento
governamental o sentido proteiforme do espaço urbano contemporâneo.

100 101
How we do not live under a dictatorship the family intimacy in a filmmaker’s gesture of challenge towards her reclusive
brother, in the film Eau douce, eau salée. His everyday life reveals solitude,
Bráulio Brito Neves, Carla Italiano e Milene Migliano
alcoholism and chemical dependency reflecting the symbolic oppression,
characteristic of large urban centers, to which he is conditioned. Joana, main
Difficult task to find selection criteria among the more than 170 films character of Cat’s cradle, resists the constant day to day violence in the periphery
submitted to forumdoc’s International Competitive Showcase of 2012. We of Setúbal, Portugal, throughout the paths she crosses with her daughter. This
must, therefore, expose our parties, since they are always situated, partial teenage mother stages consumer desires related to her own image, revealing
and arbitrary. In defense of our selection, we should indicate that several of the confrontation against prejudicial acts and a frustration of not achieving
the films that stood out amidst the totality pointed towards recurrent ethical the ideals of beauty and love.
and stylistic axes, that in a certain way became pertinent selection criteria A form of concealed struggle crosses many personal stories which reflect
to this showcase. The contemporary documentary filmmaking aims to cross transnational migratory movements. A rupture with the colonial enterprise’s
times and lands in order to offer a transcultural perspective of justice and history is presented by Greetings from the colony, as it exposes Suzannes’s
freedom to the incipient global civil society, this stateless public which the life trajectory. Her strength and resistance against the film’s process, which
transnational documentary establishes in the very act of addressing it. Given makes her own story visible, emerge during the meetings with the director,
these circumstances, we have taken as criteria for our choices: the dramatic her niece, who attempts to investigate the denial mechanisms from a past that
stellarization1, in the abundance of dramatic situations in which historical and binds the intimate to the social. In Espoir Voyage we follow a younger brother
cultural discursive universes are summarized; ethical and stylistic filmmaking retracing the path of the departed older brother from Burkina Faso to the
consistency; the political relevance within certain documentaries expose the Ivory Coast. The investigation for clues of this migratory movement reveals
severe political conditions of this multipolar world, whose exponents make the determination, and retakes the course, of young men driven from their
little effort to conceal their authoritarian tendencies. original community territory. As the director encounters other young people
Our selection invested in themes and procedures, in which we could identify in the same journey made by his brother years ago, he finds narratives that
the presence of various resistance and creation expedients. This curatorship become part of an affective imagination which slips into the filmic experience.
attempts to respect the singularities and potency of these filmmaking It is also possible to identify a certain idea of domination by the speculative
propositions made on/about displacements through history and between capital in its neoliberal sphere in films such as Living/Building, Narmada,
nationalities, from Belgium to Congo and Japan, from a contemporary Portugal Wasteland. The pervasive intervention made by global companies at the
to 1975, from Burkina Faso do the Ivory Coast, from personal dramas saturated expense of local particularities is verbalized in Narmada, specially in the
by the experience of entire peoples. community organization that presents a scene of dissensus. In Living/Building,
In Rooms with a view, we see how a procedure suggested by the film is the damage imposed by the hierarchy to which inhabitants of the Chadian
appropriated by its characters, African immigrants, as in the act of looking desert are subjected is displayed through body and gesture expressions,
through windows of Parisian rooms, they create narratives around their largely produced because of the camera. The road that splits sociability modes
memories at the same time as they weave criticisms about the harsh reality previously established in that area reconfigurates the land shared by originary
in which they live. Inside a room in a Japanese island, our gaze is directed to groups, imposed by a company that ultimately represents capital imposed
policies. Wasteland uses as a starting point the portray of deindustrialization,
immigration and government planning to present the proteiform sense of
1
According to Souriau (1950, p. 29 - 34) it is the dramaturgic development’s necessary effort
space in the contemporary world.
in order to install a “stellar device” in the narrative plot, that is, a set of expedients capable of
establishing and mantaining a fundamental conection between a macrocosm - on the matter
of documentary films, a perspective of our social-historical world - and that “small stellar Red Line investigates the power of documentary images, transporting to
group of characters” in the film. Souriau, E. Les deux cent mille situations dramatiques, Paris: Ed. the present the epic moment of the fall of Salazar’s­dictatorship and the
Flammarion, 1950.

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people’s seizure of power in Portugal. The film inquires the Cinema as a form
of record and its potency to interfere in the course of history. In Tomorrow,
the transnational documentary patiently follows the cynically desperate
everyday lives of characters who exploit the limits between representation
and chaos, preaching an extreme artistic activism that mocks the hierarchical
standards of a post(?)-Soviet society. By calling the Russian citizens for war
(as evidenced by the group’s name, Война: war) against a poorly camouflaged
authoritarian regime, this group of artists disarranges the state’s biopolitic
ambitions, producing their own images of confrontation and designing an -
impossible? - life without fear.

As we move through these narrow paths, between narratives of minor struggles


(or, more precisely, of “non non-fights”) we find the documentary tradition as a
creator of political spheres, of approach repertoires towards ideas of resistance
and political innovation, able to draw attention to the critical dimension of
creative everyday practices. The situations are intertwined to an oppression,
sometimes covert, sometimes directly manifested, which ultimately refers
to the impositions of speculative financial capital, often supported by Bons Baisers de La Colonie
authoritarian governments. This criticism is made along spatiotemporal Lembranças da Colônia | Greetings from The Colony
shifts that connect and articulate experiences that remain unique, individual, Bélgica, 2011, Cor, p&b, 74’
but become stellar of bigger historical and cultural macrocosms, images that Direção director Nathalie Borges
Fotografia photography Nicolas Rincon Gilles
address their failure of meaning within their space and time. Aside from
Montagem editing Catherine Gouze
novelties in telematic communication– exempting us from packages just Som sound Maxime Coton
to bury us in legal and technical protocols –, the biggest originality in the Produção production Cyril Bibas, Centre Vidéo de Bruxelles
contemporary international documentary stems from the non-national Contato contact Philippe.Cotte@Cvb-Videp.Be
features of its eagerness for transcultural perspectives of justice, which only
Filha de um oficial belga e de uma ruandesa, Suzanne nasceu em 1926. Naquela época,
a civil transnational society could redeem. relações inter-raciais recebiam sanções. Suzanne deixa a África aos 4 anos de idade,
levada pelo pai para ser educada na Europa. Ela é o que chamavam, na época colonial,
de “uma criança mulata salva de um destino negro”. Suzanne é minha tia. Seu pai é
meu avô. No entanto, até os meus 27 anos eu desconhecia sua existência. Neste filme,
histórias de família e a história do colonialismo se entrecruzam, e o silêncio que encobria
as origens de Suzanne é quebrado.
The daughter of a Belgian territorial agent and a Rwandan woman, Suzanne was
born in 1926. In those times, mixed relationships lead to sanctions. At the age of
4, her father takes Suzanne away from Africa to give her a European education. She
is what people in the colonial era call “a mulatto child saved from a negro destiny”.
Suzanne is my aunt. Her father is my grandfather. However, I was not aware of her
existence until I was 27. This film breaks the silence that has shrouded Suzanne’s
origins, crossing family history and the history of colonialism.

cine humberto mauro, 01 dez, 17h

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Cama de Gato Chambres avec vue
Cat’s Cradle Quartos com vista | Rooms with a view
Portugal, 2012, Color, 58’ França, 2012, Cor, 16’
Direção director Filipa Reis e João Miller Guerra Direção director Léo Zarka-Lepage
Fotografia photography Vasco Viana Fotografia photography Aurélien Marra
Montagem editing Filipa Reis, João Miller Guerra Montagem editing Léo Zarka-Lepage
Som sound Rúben Costa Som sound Daniel Capeille
Produção production Filipa Reis, Vende-se Filmes Produção production Joséphine Mourlaque, Wawaïm M.
Contato contact producao@vende-sefilmes.com Contato contact leo.zarka.lepage@gmail.com

Conhecemos a Joana em Setúbal, no Bairro da Bela Vista. Ela apareceu como uma boneca De frente para a janela. A paisagem de sempre, imutável. É quase difícil descrevê-la. Da
de louça, frágil, branca, com um laçarote na cabeça. Aos poucos foi-se partindo ganhando casa dos vizinhos, trabalhadores imigrantes, a vista é bastante diferente.
uma complexidade encantadora. A dualidade entre a força e a fragilidade, a liberdade
Facing the Window. As ever the same landscape. Almost hard to depict. When visiting
e a prisão, a alegria e a tristeza conquistou-nos. A intimidade e cumplicidade com ela
the neighbours, a migrant workers household, the view seems quite other.
criadas permitiram fazer este filme. Em Cama de Gato partilhamo-la com os outros.
We met Joana in Setúbal, in the Bela Vista neighborhood. She resembled a porcelain
doll, fragile, white, with a ribbon in her hair. Little by little she disclosed herself,
revealing a charming complexity. We were won over by the duality between strength
and fragility, freedom and imprisonment, joy and sorrow. The intimacy and complicity
we shared with her enabled this movie to be made. In Cat´s Cradle, we share her with
others.

cine humberto mauro, 01 dez, 15h cine humberto mauro, 01 dez, 17h

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Eau Douce, Eau Salée Espoir Voyage
Água Doce, Água Salgada | Fresh Water, Salt Water
Bélgica/Japão, 2012, Cor, 50’ França/Burkina Faso, 2011, Cor, 82’
Direção director Aya Tanaka Direção director Michel K. Zongo
Fotografia photography Aya Tanaka Fotografia photography Michel K. Zongo
Montagem editing Aya Tanaka, Azilys Romane, Nathalie Chaveau Montagem editing François Sculier
Som sound Aya Tanaka Som sound Moumouni Jupiter Sodré
Produção production Atelier jeunes cinéastes Produção production Christian Lelong
Contato contact distribution@ajcnet.be

No verão de 2010, como em vários anos anteriores, fui passar férias na casa dos meus Em Burkina Faso, a emigração dos jovens para a Costa do Marfim é como um rito de
pais em Tsukishima, às margens do rio que deságua na Baía de Tóquio. Seria só mais passagem para a idade adulta. Geralmente, a regra é partir para voltar. Joanny, meu
uma dessas visitas rotineiras, não fosse o fato de eu ter decidido me encontrar com irmão mais velho, partiu em uma manhã de 1978. Depois de 18 anos de ausência,
meu irmão, pela primeira vez desde que ele se encerrou na penumbra de seu quarto soubemos, por um de nossos primos, que Joanny estava morto. Para tentar entender
minúsculo, e realmente ouvir o que ele tem a dizer. Mas quem eu vou encontrar? Será o que levou meu irmão a deixar sua família aos 14 anos de idade, fiz a mesma viagem
ele ainda o bêbado patético que tenho na memória, grunhindo palavras ininteligíveis? de Koudougou (Burkina Faso) até a Costa do Marfim, procurando por traços deixados
por ele e por sua história.
In the summer of 2010 as in many previous years I stay at my parents’ place in
Tsukishima at the bank of the river that joins the Tokyo Bay. It is just one of those In Burkina Faso, the young people emigration towards Ivory Coast is like a ritual, a
customary visits apart from the fact that I have decided to see my brother and to passage to the state of adulthood. But usually, the rule is to leave to come back. Joanny,
really listen to him the first time since he practically locked himself up in the twilight my older brother, left our family one morning of 1978. After 18 years of absence, one
of his narrow room. Who am I to meet? Will he be the hopeless boozer I pictured for of our cousins told us Joanny died. To try to understand what drives my Brother to
a long time, belling incomprehensible words at his sister? leave at 14, I make the same travel from Koudougou (Burkina Faso) to Ivory Coast,
looking for his traces and his history.

cine humberto mauro, 01 dez, 15h cine humberto mauro, 27 nov, 21h

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Habiter/Construire La Friche
Habitar/Construir | Living/Building Terreno Baldio | Wasteland
França, 2011| Cor, 117’ França, 2012, Cor, 45’
Direção director Clémence Ancelin Direção director Magali Roucaut
Fotografia photography Clémence Ancelin Fotografia photography Magali Roucaut
Montagem editing Laureline Delom Montagem editing Victoria Follonier
Som sound Malah Méllé Boukar Som sound Sébastien Noiré
Produção production Emmanuel Deswarte, Fin Avril Produção production Magali Roucaut
Contato contact contact@finavril.com Contato contact mroucaut@hotmail.com

No meio do deserto de Chadian, uma empresa francesa constrói uma estrada de asfalto. Um terreno abandonado em Paris, isolado da cidade por tapumes altos. Dentro dele,
Durante o período das obras, executivos estrangeiros, mestres de obra e trabalhadores ervas daninhas e vestígios de atividades que parecem pertencer a outro tempo. Em breve
africanos ficam alojados em trailers, em três acampamentos adjacentes, em contato com um espaço público, o descanso, a tranqüilidade. Através das memórias daqueles que ali
os habitantes das vilas ao redor, que vão ao local das obras em busca de trabalho ou para vivem e trabalham, tentei decifrar esses vestígios e reconstruir o lugar e seu passado.
montar um comércio. O sonho de uma vida melhor e o processo de aculturação de muitos
A wasteland in Paris, isolated from the city by high poles. Inside, wild plants and traces
dos moradores se misturam, enquanto a estrada avança, implacável, em direção à cidade,
of past activity that seems to belong to another time. And soon a public garden, leisure
nesta região selvagem por onde nômades ainda vagueiam, conduzindo seus rebanhos.
time, tranquility. From recollections of those who had been living and working there,
In the middle of the Chadian desert, a French construction company is building an I tried to decode these traces and reconstruct the place and its past.
asphalt road. Expat executives, African site managers and workers, live in three adjacent
trailer camps during the construction period, in contact with villagers from the area
who come to the worksite to seek jobs or set up shops. The hope for a better life meets
with acculturation among the various inhabitants, as the road relentlessly progresses
towards the city in this wilderness where nomads still wander with their herds.

cine humberto mauro, 29 nov, 21h cine humberto mauro, 28 nov, 17h

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Linha Vermelha Narmada
Red Line
Portugal, 2011, Cor, 80’ França/Índia, 2012, Cor, p&b, 45’
Direção director José Filipe Costa Direção director Manon Ott, Grégory Cohen
Fotografia photography Paulo Menezes, Pedro Pinho, João Ribeiro Fotografia photography Manon Ott, Grégory Cohen
Montagem editing João Braz Montagem editing Mathias Bouffier
Som sound Olivier Blanc, Ricardo Leal, Miguel Cabral Som sound Jocelyn Robert
Produção production João Matos, Terratreme Filmes Produção production Céline Loiseau, TS PRODUCTIONS
Contato contact jfilipecosta@iol.pt Contato contact manon@lesyeuxdanslemonde.org/ greg@lesyeuxdanslemonde.org

Linha Vermelha recua a 1975, quando o alemão Thomas Harlan realiza o documentário “As barragens serão os templos da Índia moderna”, disse Nehru quando o país proclamou
Torre Bela, sobre a ocupação de uma grande fazenda no Ribatejo, propriedade dos duques sua independência. Em breve será concluída a construção de um enorme complexo de
de Lafões. Esse filme transformou-se em ícone do período revolucionário português: barragens no rio Narmada, na Índia. Grupos de protesto se mobilizam. Na travessia do
a discussão acalorada sobre a quem pertence uma enxada da cooperativa, a ocupação vale do Narmada, nos deparamos com seus habitantes, com as crenças e as convicções
do palácio, o encontro dos ocupantes com os militares em Lisboa e o processo de que entram em conflito à medida que o rio sofre essa imensa transformação. Entre
formação de uma nova comunidade. 37 anos depois, revisitamos esse filme emblemático, mitos do Progresso e os mitos do Narmada.
reencontrando os seus protagonistas e a sua equipe.
“Dams will be the temples of modern India”, declared Nehru as the country proclaimed
Red Line goes back to the year of 1975, when the German filmmaker Thomas Harlan its independence. Construction on a vast complex of dams is soon to be completed on
shoots the documentary film Torre Bela, about the occupation of a large estate in the Narmada river in India. A social struggle is organized. As we cross the Narmada
the Ribatejo region, owned by the Dukes of Lafões. The movie became an icon of the River valley, we encounter the inhabitants, beliefs and convictions brought into
Portuguese revolutionary period: a heated argument about to whom a cooperative´s conflict as this river undergoes great transformation. Between myths of Progress
hoe belongs, the occupation of the palace, the meeting between the occupiers and and myths of the Narmada.
men of the military, in Lisbon, and the process of building a new community. Thirty-
seven years later, we revisit this emblematic movie, re-encountering its protagonists
and its crew.

cine humberto mauro, 30 nov, 17h cine humberto mauro, 28 nov, 17h

112 113
˜
Zavtra
Amanhã | Tomorrow
Rússia, 2012, Cor, 90’
Direção director Andrey Gryazev sessao
especial
Fotografia photography Andrey Gryazev
Montagem editing Andrey Gryazev
Som sound A.Dudarev
Produção production Andrey Gryazev
Homenagem a Yann Le Masson e Chris Marker
Contato contact cinemacraft@gmail.com

O filme trata do mais notável acontecimento na arte contemporânea russa: o coletivo


artístico Voina (Guerra). Vor (Ladrão) e Koza (Cabra), criadores do grupo, vivem na
clandestinidade com seu filho Kasper, de um ano, e suas intervenções ficam no limite
tênue que separa o artístico do criminoso. Ousadas, suas declarações políticas não
deixam ninguém indiferente (e causam um incômodo geral). Vivendo o momento
presente, esperam conseguir transformar o amanhã.
This film is about the most striking occurence in contemporary art in Russia, the art-
group Voina (War). Their founders — Vor (Thief) and Koza (Goat) live underground,
raise their one-year old son Kasper and carry out art actions on the fine edge between
art and criminal code. Their cou-rageous political statements leave nobody indif-ferent
(and disturb absolutely everybody). They live in the present, hoping that tomorrow
they can change everything.

cine humberto mauro, 30 nov, 21h

114
Kashima Paradise

França, 1973, p&b, 107’


Direção director Yann Le Masson, Bénie Deswarte
Fotografia photography Yann Le Masson
Som sound Bénie Deswarte
Montagem editing Isabelle Rathery, Sarah Matton
Narração narration Chris Marker
Produção production Les Films Grain de Sable
Contato contact conservation@lacinemathequedetoulouse.com

Kashima Paradise revela até que ponto o Japão contemporâneo se encontra preso entre
tradições diversas e as conquistas dos tempos modernos. Para permanecer como uma
das principais nações industriais, parques petroquímicos e de aço foram construídos em
antigas áreas rurais. Os fazendeiros quase não foram recompensados por entregarem
suas terras e, devido às circunstâncias, se viram obrigados a construir lotes para as novas
indústrias. Apesar de protestos contra a inauguração de mais aeroportos ou parques
industriais, nada pode parar o “progresso”.
Kashima Paradise shows to what extent contemporary Japan is caught between its
many traditions and the achievements of modern times. In order to remain one of
the leading industrial countries, massive petrochemical or steel plants have to be
built on former farmland. The farmers receive hardly any compensation for giving up
their land and due to the circumstances they are forced to work on building lots for
new plants. Despite protest against the opening of yet another airport or industrial
estate, nothing can stop “progress”.

cine humberto mauro, 02 dez, 19h

117
´
lancamentos
Shuku Shukuwe - a vida é para sempre
Shuku Shukuwe - life is everlasting
Brasil, 2012, cor, 43’
Direção director Agostinho Manduca Mateus Ika Muru Huni Kuin
Fotografia photography Adelson Paulino Siã Huni Kuin, Ana Carvalho, Carolina Canguçu,
Nivaldo Tene Huni Kuin, Ayani Huni Kuin, Isaka Huni Kuin, Tadeu Siã Huni Kuin
Montagem editing Agostinho Manduca Mateus Ika Muru, Ana Carvalho,
Carolina Canguçu, Tadeu Mateus Siã Huni Kuin
Som sound Adelson Paulino Siã Huni Kuin, Ana Carvalho, Carolina Canguçu,
Nivaldo Tene Huni Kuin, Ayani Huni Kuin, Isaka Huni Kuin, Tadeu Siã Huni Kuin
Produção production Aldeia São Joaquim Centro de Memória, Associação
Filmes de Quintal, Literaterras/UFMG
Contato contact filmes@filmesdequintal.org.br

por três vezes, yuxibu cantou shuku shukuwe, a vida é para sempre.
ouviram as árvores, as cobras, os caranguejos.
ouviram todos os seres que trocam suas peles e cascas.
por três vezes, yuxibu cantou shuku shukuwe.
mas a inocente não soube ouvi-lo em silêncio.
e a vida se tornou breve.
for three times yuxibu sang shuku shukuwe, life is everlasting.
it was heard by the trees, the snakes, the crabs.
it was heard by all the beings that shed their skins and shells.
for three times, yuxibu sang shuku shukuwe.
but the inocent was unable to hear him in silence.
and life became brief.
cine humberto mauro, 01 dez, 19h

121
O Livro Vivo traz as pesquisas dos pajés sobre a medicina tradicional Huni Kuin. Essas
pesquisas relatam o surgimento das doenças, suas categorizações e tratamentos. Para
os Huni Kuin, cada grupo de doença está relacionado a um grupo de animais e seu
tratamento é realizado a partir da combinação de ervas específicas. As “ervas medicina”,
como são denominadas pelos pajés, surgiram da transformação dos primeiros Huni Kuin
em famílias de plantas, cujo uso foi transmitido de geração em geração desde os tempos
antigos até os dias de hoje. As ervas estão divididas em quatro grupos, que representam
as quatro famílias originais Huni Kuin: Inu, Inani, Dua e Banu.
O projeto teve como objetivo principal a documentação, ampliação e difusão do
conhecimento Huni Kuin dentro da própria comunidade. Como resultados, foi publicado
Una Hiwea, o Livro Vivo, e realizado o vídeo Shuku Shukuwe, a vida é para sempre. As
duas obras mostram essa experiência, realizada com a participação de 36 pesquisadores
de ervas medicinais, ilustradores e cineastas, vindos de diferentes aldeias do alto e
baixo rio Jordão.
A publicação e o vídeo se dirigem, principalmente, a estudantes e agentes de saúde,
futuros pajés, jovens e crianças das aldeias Huni Kuin. O livro conta a história de Huã
Karu, o dono do Livro Vivo, e os jardins [do conhecimento] de cada um dos pajés e
pesquisadores do projeto. O filme narra a origem das doenças, das ervas medicinais e
o canto da vida eterna que os homens uma vez não souberam ouvir.
Una Hiwea/Livro Vivo: Medicina Tradicional Huni Kuin é uma realização das comunidades
Huni Kuin do Rio Jordão em parceria com a Associação Filmes de Quintal e o Grupo
de Estudos Trandisciplinares Literaterras (UFMG), com o apoio do IPHAN, Ministério
da Cultura e Ministério da Educação.

Una Hiwea
Livro Vivo
Pajé Agostinho Manduca Mateus Ika Muru (Org.)
Brasil, 2012, Literaterras/Faculdade de Letras – UFMG, 284 pp.

“Ter o livro, nosso Livro Vivo, porque os antigos, quando surgiu doença, se preocuparam
em se transformar em ervas para socorrer o seu povo. Como o primeiro pajé, que descobriu
como se transformar em ervas dos grupos Dua, Banu, Inani e Inu, para socorrer os
Huni Kuin, assim eu também me preocupei em deixar essa mensagem de conhecimento
para o meu povo, meus filhos e netos; para toda a comunidade e para os que vão ver
esse documento da identidade e do conhecimento do nosso povo antepassado” (Pajé
Agostinho Ika Muru)
O projeto Livro Vivo foi idealizado por Agostinho Ika Muru, pajé da aldeia São Joaquim
Centro de Memória, e Dua Buse, ˜ pajé e pesquisador da aldeia Coração da Floresta, Rio
Jordão, Acre.

cine humberto mauro, 01 dez, 19h

122 123
foto: Ana Carvalho
Paralelo 10 (DVD) Paz no mundo camará: a capoeira angola e a volta que o
mundo dá – Brasil (Associação Cultural "Eu sou Angoleiro" apresenta)
Direção director Silvio Da-Rin Brasil, 2012, cor, 54'
Fotografia photography Dante Belluti Direção director Carem Abreu
Montagem editing Joana Collier Fotografia photography Jorge Moreno, Claudio Rabelo e Lucas Moreira (Tião)
Som sound Altyr Pereira Montagem editing Tiago Espindola
Edição de som e música sound editing and music Edson Secco Som sound Alexandre Jardim (CTAv)
Produção production Beth Formaggini, Marcos Guttmann Produção production Mary Rodrigues
Contato contact falecom@atosimagens.com.br, http://paznomundocamara.blogspot.com.br/

Mais de um ano e meio afastado do Acre, o sertanista José Carlos Meirelles retorna, Capoeira angola é uma das mais tradicionais culturas de raiz afro-brasileiras. Hoje é
em companhia do antropólogo Terri de Aquino, à região do Paralelo 10 Sul, linha de praticada em todo mundo como instrumento de paz e integração social. Mas há menos de
fronteira com o Peru. A equipe de filmagem viaja com eles durante três semanas, subindo 100 anos era discriminada e percebida socialmente como uma prática da malandragem.
o Rio Envira, enfrentando vários tipos de obstáculo e se aproximando cada vez mais Quais teriam sido os movimentos realizados pela capoeira para mudar completamente a
das malocas de índios isolados. Nessa jornada, Meirelles rememora experiências, expõe sua percepção social? Nesse dvd mais de 40 mestres capoeiristas e das culturas populares
contradições de seu ofício e discute com índios Madijá e Ashaninka a melhor forma de da BA, RJ, PE, AL e MG ajudam a desvendar esse mistério.
se relacionar com os índios “brabos”, sem tentar contatá-los, permitindo que continuem
Capoeira angola is one of the most ancient african-brazilian cultural traditions.Today
a viver livres na floresta, protegendo o meio ambiente.
it is practiced all around the world as an instrument of peace and social integration.
The Brazilian Amazon is home to the largest number of isolated indigenous peoples But at least 100 years ago it was discriminated and taken as an act of trickery by the
in the world. Close to the 10th Parallel South, the frontiersman José Carlos Meirelles society. What were the movements made by Capoeira to completely change its social
founded the Ethno-environmental Protection Front of the Envira River. Without status? In this DVD over 40 masters from capoeira and other popular cultures from
making any contact, his team set up land limits so that the Indians could live in the states of BA, RJ, PE, AL and MG help solve this mystery.
freedom in the rainforest. We went up the Envira River, and recorded meetings among
Meirelles, Txai Terri de Aquino and the riverside populations. These meetings discussed
possible solutions for a peaceful coexistence, after a number of conflicts and thefts
involving the “wild” Indians, with some casualties, brought instability to the region.
cine humberto mauro, 29 nov, 19h cine humberto mauro, 02 dez, 15h

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Ao lugar de Herbais O profeta e o principal: a ação política ameríndia e seus personagens
To Herbais hamlet (LIVRO)
Portugal, 2012, cor, 31' Renato Sztutman
Direção director Daniel Ribeiro Duarte Brasil, 2012, Edusp, 576 pp.
Montagem editing Daniel Ribeiro Duarte
Narração narration Maria Poppe
Contato contact danielribao@yahoo.com

Caraíbas e morubixabas. Assim os antigos Tupi da costa brasílica chamavam seus grandes
Tendo como ponto de partida a casa de Sintra, onde está o espólio da escritora Maria pajés e chefes de guerra. Nas fontes dos séculos XVI e XVII estes eram muitas vezes
Gabriela Llansol, procura-se criar um trajeto por entre fotos, textos e objetos relacionados reconhecidos como profetas e principais. Como um problema relacionado a povos do
a Herbais, na Bélgica. Esta pequena vila de agricultores foi o lugar para o qual Llansol passado – a imbricação entre o que convencionamos chamar de “religioso” e “político” –
mudou-se, em 1980, com o objetivo de dedicar-se inteiramente à escrita. No isolamento, pode ser repensado agora, em vista das etnografias sobre povos atuais, com suas novas
escreveu como nunca antes e presenciou uma expansão desmedida do seu mundo figural. interrogações? Eis uma das questões lançadas por este livro, que toma como ponto de
Viveu ali até 1985, ano em que voltou a Portugal. partida as ideias de Pierre e Hélène Clastres sobre os mecanismos indígenas de recusa
e conjuração do poder coercitivo e de toda unificação ontológica.
Starting from the house in Sintra, where the assets of writer Maria Gabriela Llansol
lay, we search for a path through the photographs, texts and objects related to Herbais, Caraíbas and morubixabas. These were how ancient Tupi people from the Brazilian
Belgium. This small farmer’s village was the place Llansol settled, in 1980, aiming coast named their pajés and war chiefs. On XVI and XVII centuries sources, these were
to dedicate herself entirely to her writing. Isolated, she wrote in a way she had never acknowledged as prophets and principals. How can a problem related to ancient peoples
done before and witnessed an enormous expansion of her symbolic world. There she – the connection between what we conventionally call “religious” and “political” – can
lived until 1985, the year she returned to Portugal. be now rethought, given the existence of ethnographies on contemporary peoples,
with a new set of questions? This is one of the questions posed by this book, which
takes as a starting point the ideas of Pierre and Hélène Clastres on the indigenous
mechanisms of refusal and conjuration of coercive powers and ontological unification.
cine humberto mauro, 02 dez, 18h ´
auditorio baesse/fafich-ufmg 4 o andar, 22 nov, 11h30
´
seguido de lancamento na livraria quixote-ufmg
128 129
˜ de
Revista Devires - Cinema e Humanidades, v. 7, n. 1

A revista Devires – Cinema e Humanidades, no ensejo da mostra A Mulher e a Câmera, lança


novamente o v.7 n.1, dedicado à cineasta belga Chantal Akerman cuja obra se destaca
sessao
não apenas pelo rigor formal de sua escritura, mas também pelo gesto autobiográfico e a
constante presença feminina. Desde seu primeiro curta Saute ma ville (1968), passando
pelos pertubadores Je tu il elle e Jeanne Dielman...(1975), até o filme diário Là-Bas (2006),
Akerman apresenta o processo intermitente de re-construção do corpo feminino através
encerramento
de pequenas ações habituais e gestos repetitivos, num jogo entre ordem e caos.
The magazine Devires – Cinema e Humanidades, in occasion of the program The
woman and the camera, releases again the v.7 n.1, dedicated to Belgian filmmaker
Chantal Akerman whose work stands out not only by the formal rigor but also for
the autobiographical gesture and the constant presence of women. Since her first
short film Saute ma ville (1968), through disturbing Je tu il elle and Jeanne Dielman
... (1975), until the movie diary Là-Bas (2006), Akerman presents the process of re-
constructing the female body through small habitual actions and repetitive gestures,
playing among order and chaos.

cine humberto mauro, 28 nov, 21h

130
Lacrimosa

Brazil, 1970, p&b, 12’


Direção director Aloysio Raulino, Luna Alkalay
Fotografia photography Aloysio Raulino
Montagem editing Aloysio Raulino
Produção production Aloysio Raulino, Luna Alkalay
Contato contact contato@cinemateca.org.br

O retrato da cidade de São Paulo a partir de alguns itinerários. Pela Marginal Tietê e
outras vias da metrópole, terrenos baldios, construções de edifícios, fachadas de fábricas
e favelas compõem um triste cenário. E nesta lacrimosa paisagem urbana, crianças em
completa miséria.
A portrait of the city of São Paulo depicted through a number of itineraries. A
composition along the margins of the Tietê River and other streets and roads of the
metropolis, wastelands, building sites, factory facades and slums show a sad scenario.
It is in this tearful urban landscape we see children in complete misery.

cine humberto mauro, 02 dez, 21h

133
´
forum de
debates
˜ DE ABERTURA
SESSaO Deslocamentos do feminino
com Lia Zanotta, Érica Souza. Mediação: Débora Breder
Chasseurs et Chamans (Raymond Depardon, 2003, 30’)
´
29 nov | QUINTA-FEIRA | 10h | AUDIToRIO BAESSE | FAFICH - FACULDADE DE
Xapiri (Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella
ˆ
FILOSOFIA E CIeNCIAS HUMANAS /UFMG
Senra, Bruce Albert, 2012, 54’)
Sessão comentada por Renato Sztutman e Ruben Caixeta de Queiroz
˜ Comentadas
Sessoes
21 nov | QUARTA-FEIRA | 19h30 | CINE HUMBERTO MAURO
Luz nas Trevas – A volta do Bandido da Luz Vermelha
˜ ESPECIAL
SESSaO (Ícaro C. Martins, Helena Ignez, 2011, 83’)
Sessão comentada pela diretora
Xapiri (Leandro Lima e Gisela Motta, Laymert Garcia dos Santos e Stella
26 nov | SEGUNDA-FEIRA | 21h | CINE HUMBERTO MAURO
Senra, Bruce Albert, 2012, 54’)
Sessão comentada por Carlos Fausto Réponse de femmes (Agnés Varda, 1975, 8’)
23 nov | SEXTA-FEIRA | 9h30 | Documenteur (Agnés Varda, 1981, 63’)
´
AUDIToRIO ˆ
2 | FACE - FACULDADE DE CIeNCIAS ˆ
ECONoMICAS - UFMG Sessão comentada por Ilana Feldman
27 nov | TERcA-FEIRA | 19h | CINE HUMBERTO MAURO
´
MOSTRA / SEMINaRIO ˆ
A MULHER E A CaMERA ´
La guerre est proche (Claire Angelini, 2011, 80’)
ˆ
CONFEReNCIA ´
DE ABERTURA DO SEMINaRIO Sessão comentada pela diretora
Com Luiza Elvira Belaunde 29 nov | QUINTA-FEIRA | 17h | CINE HUMBERTO MAURO
Apresentação: Paulo Maia Et tu es dehors (Claire Angelini, 2012, 85’)
26 nov | SEGUNDA-FEIRA | 10h Sessão comentada pela diretora
´
AUDIToRIO LUIZ POMPEU | FACULDADE DE EDUCAcaO - UFMG 30 nov | SEXTA-FEIRA 19h | CINE HUMBERTO MAURO

Mesas de debates ˆ
MOSTRA CaNONE ˆ
E CONTRA-CaNONE
Mulheres e Política Mesa de Debates
Com Roberta Veiga, Carla Maia. Mediação: Inês Teixeira
Cânones e contra-cânones no cinema moderno brasileiro
27 nov | TERcA-FEIRA | 9h
´ com Hernani Heffner, Luís Alberto Rocha Melo. Mediação: Ewerton Belico
´
AUDIToRIO ˆ
2 | FACE - FACULDADE DE CIeNCIAS ˆ
ECONoMICAS - UFMG
25 nov | DOMINGO | 21h | CINE HUMBERTO MAURO
Cineastas indígenas
com Suely Maxakali, Patrícia Ferreira. Mediação: Renata Otto ˜ Comentadas
Sessoes
28 nov | QUARTA-FEIRA | 9h Malandro, termo Civilizado (Sylvio Lanna, 1986, 26’)
´
AUDIToRIO ˆ
2 - FACE / FACULDADE DE CIeNCIAS ˆ
ECONoMICAS - UFMG Lobisomem, o terror da meia-noite (Elyseu Visconti, 1974, 75’)
Mulheres no cinema brasileiro Sessão comentada pelos diretores
com Helena Solberg, Marília Rocha, Paula Alves. Mediação: Cláudia Mesquita 25 nov | DOMINGO | 19h | CINE HUMBERTO MAURO
Lançamento da Revista Devires Cinema e Humanidades v.7 n.1, dedicado à
Chantal Akerman Perdidos e Malditos (Geraldo Veloso, 1970, 70’)
28 nov | QUARTA-FEIRA | 21h | CINE HUMBERTO MAURO Sessão comentada pelo diretor
26 nov | SEGUNDA-FEIRA | 17h | CINE HUMBERTO MAURO

136 137
´ Aloysio Raulino
LANcAMENTOS
O Profeta e o Principal: A Ação Política Ameríndia e seus Personagens, Cineasta e diretor de fotografia. Realizou e fotografou, entre outros, Teremos
de Renato Sztutman (Edusp, 2012, 576pp) Infância, O Porto de Santos e Noites Paraguayas. É diretor de fotografia de mais
Conversa com o autor seguida de lançamento do livro de uma centena de títulos.
na Livraria Quixote UFMG
Carla Maia
´
22 nov | QUINTA-FEIRA | 11h30 | AUDIToRIO BAESSE - FAFICH /
ˆ
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIeNCIAS HUMANAS - UFMG Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação Social da UFMG.
Ensaísta e pesquisadora de cinema, atua também como curadora, professora e
DVD Paralelo 10 (Silvio Da-Rin, 2011, 87’) produtora. É diretora do documentário Roda, co-dirigido por Raquel Junqueira.
Sessão comentada pelo diretor Integra o coletivo Filmes de Quintal.
29 nov | QUINTA-FEIRA | 19h | CINE HUMBERTO MAURO
Cláudia Mesquita
Shuku Shukuwe – a vida é para sempre (Direção coletiva, 2012, 37’)
Sessão comentada por Tadeu Huni Kuin Professora do Curso de Comunicação Social da UFMG, onde participa do grupo
´
01 DEZ | SABADO | 19h | CINE HUMBERTO MAURO de pesquisa Poéticas da Experiência. Pesquisadora de cinema, fez mestrado
e doutorado na Universidade de São Paulo. De 2007 a 2010, foi professora do
Lançamento Una Hiwea – O Livro Vivo Curso de Cinema da UFSC.
(Centro de Memória Aldeia São Joaquim, Associação Filmes de Quintal,
Literaterras/UFMG) com a presença de Dani Huni Kuin Carlos Fausto
´
01 DEZ | SABADO | 19h | CINE HUMBERTO MAURO Professor do Museu Nacional/UFRJ, realiza pesquisas na Amazônia desde
Ao lugar de Herbais (Daniel Ribeiro Duarte, 2012, 31’) 1988 e coordena projetos de video-realização com o Vídeo nas Aldeias e a
Sessão comentada pelo diretor Associação Indígena Kuikuro do Alto Xingu.
02 DEZ | DOMINGO 18h | CINE HUMBERTO MAURO Débora Breder
˜ ESPECIAL DE ENCERRAMENTO
SESSAO Doutora em Antropologia pela Universidade Federal Fluminense, com estágio
doutoral na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Estudou Cinema na
Lacrimosa (Aloysio Raulino, 1970, 12’) Cópia restaurada
Escuela Internacional de Cine, Televisión y Vídeo (EICTV/Cuba). Atualmente
Sessão comentada pelo diretor
realiza Pós-Doutorado na Universidade Federal de Minas Gerais.
02 DEZ | DOMINGO | 21h | CINE HUMBERTO MAURO
Elyzeu Visconti
Produtor, roteirista e diretor, tendo realizado, dentre outros, Os monstros de
Babaloo, Lobisomem, o terror da meia-noite; e os documentários Ticumbi, Folia
do Divino, Bom Jesus da Lapa - Salvador dos Humildes, Festa de São Gonçalo.
Produziu Quadrinhos, de Rogério Sganzerla, e fez a direção de arte de Barão
Olavo - O horrível, de Júlio Bressane.

Érika Souza
Doutora em Ciências Sociais na área de Família e Relações de Gênero (IFCH/
UNICAMP) e Mestre em Antropologia Social (IFCH/UNICAMP). Professora
do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMG e integrante do
Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT (NUH) da UFMG.

138 139
Geraldo Veloso Lia Zanotta
Diretor, crítico, curador e montador. Dirigiu o Centro de Estudos Cinema­ Professora titular do Departamento de Antropologia da Universidade de
tográficos (CEC) e editou Revista de Cinema, do mesmo Centro. Coordenou Brasília. Doutora em Ciências Humanas/Sociologia e Mestre em Sociologia
várias das edições do Festival de Curtas de Belo Horizonte. Geraldo Veloso pela Universidade de São Paulo, fez pós-doutorado na École des Hautes Études
montou Anjo Nasceu, Matou a família e foi a cinema e Lágrima pantera, de Júlio en Sciences Sociales. Atua em áreas como gênero, família, violência, práticas
Bressane; BláBláBlá, de Andrea Tonacci, dentre outros; e dirigiu Perdidos e judiciais, estudos feministas e antropologia das políticas públicas de gênero,
Malditos, Homo Sapiens e O Circo das Qualidades Humanas. saúde e segurança.

Helena Ignez Luisa Elvira Belaunde


Atriz e diretora de cinema. Estreou no cinema sob direção de Glauber Rocha, Antropóloga, doutora em antropologia pela London School of Economics
no curta-metragem O pátio. Em 1968 participa do filme O bandido da luz - University of London, é professora da Pontificia Universidad Católica del
vermelha, de Rogério Sganzerla. Com a morte do diretor, assumiu a produção Perú e colaboradora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, desenvolve
do roteiro de Rogério Sganzerla, Luz nas Trevas – a Volta do Bandido da Luz pesquisas com ênfase em etnologia indigena e de gênero.
Vermelha (2011) com suas filhas Djin e Sinai Sganzerla, dividindo a direção
com Ícaro C. Martins. Luís Alberto Rocha Melo
Professor-adjunto do curso de Cinema e Audiovisual no Instituto de Artes
Helena Solberg e Design da Universidade Federal de Juiz de Fora (MG). Escreveu textos
Cineasta. Seus filmes mais recentes são Carmen Miranda: Bananas is my business para diversos catálogos de mostras e retrospectivas de cinema. É redator das
(1995), Vida de Menina (2004) e Palavra (En)Cantada (2009). Dirigiu ainda os revistas Contracampo e Filme Cultura.
documentários The Emerging Woman (1975), The Double Day (1975), Das Cinzas,
Nicaragua Hoje (1980) e Chile -Por la Razon o la Fuerza (1983), entre outros. Marília Rocha
Mestre em Comunicação Social pelo PPGCOM/UFMG e uma das integrantes
Hernani Heffner da Teia, centro de produção audiovisual. Diretora dos longas Aboio (2005),
Crítico de cinema e conservador-chefe da Cinemateca do Museu de Arte Acácio (2008) e A Falta que me faz (2009). Em 2011, teve uma retrospectiva no
Moderna, MAM-RJ. É professor de cinema na PUC-RJ e da FGV-RJ. Curou festival Dockanema, em Moçambique e foi homenageada no festival Visions
as mostras “Raízes do Século XXI” e “Miragens do Sertão”. du Réel, na Suíça.

Ilana Feldman Paula Alves


Pesquisadora, crítica e realizadora. É doutora em Ciências da Comunicação Bacharel em Cinema pela Universidade Federal Fluminense e Mestre em
(Cinema) pela ECA/USP, onde desenvolveu a tese Jogos de cena: ensaios sobre Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais pela Escola Nacional de Ciências
o documentário brasileiro contemporâneo, e mestre em Comunicação e Imagem Estatísticas. Diretora e produtora executiva do Femina – Festival Internacional
pela UFF. Curadora da retrospectiva “David Perlov: epifanias do cotidiano”, de Cinema Feminino.
realizada na Cinemateca Brasileira/SP e no Instituto Moreira Salles/RJ.
Patrícia Ferreira (Keretxu)
Inês Assunção de Castro Teixeira Nascida na aldeia guarani Tamanduá em Missiones, na Argentina, vive na
Professora Associada da Faculdade de Educação da UFMG. Atua na área de aldeia Koenju, em São Miguel das Missões/ RS, onde é professora. Hoje é a
Sociologia, com ênfase em Sociologia da Educação. Membro da KINO - Rede cineasta mulher mais atuante nos quadros do Vídeo nas Aldeias.
Latinoamericana de Educação, Cinema e Audiovisual.

140 141
Renata Otto Tadeu Huni Kuin
Doutoranda em Antropologia pela UnB, mestre em Antropologia pelo Museu Morador da aldeia São Joaquim do rio Jordão, no Acre. Professor formado
Nacional/UFRJ. Trabalha como antropóloga na Coordenação de Indios Isolados pela Comissão Pró Índio do Acre, pratica o ensino diferenciado nas aldeias.
e Recém Contatados da Funai. Co-dirigiu o filme Shuku Shukuwe - a vida é para sempre (2012).
Renato Sztutman
Paulo Maia
Professor do Departamento de Antropologia da USP e autor de O Profeta e o
Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em
Principal: a ação política ameríndia e seus personagens (Edusp, 2012).
Antropologia Social pelo PPGAS / Museu Nacional da Universidade Federal
Roberta Veiga do Rio de Janeiro, com ênfase em Etnologia Sul Americana, Educação Indígena
e Antropologia e Cinema. É também, um dos idealizadores do forumdoc.bh.
Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Foi professora visitante na
University of Texas at Austin, com a disciplina Brazilian Cinema and Marginality.
Integra a equipe de editores da Revista Devires. Pós-doutoranda junto ao grupo
de pesquisa “Cinema, Estética e Política”, UFMG.

Ruben Caixeta de Queiroz


Professor de Antropologia na UFMG. Coordena o Laboratório de Etnologia
e do Filme Etnográfico (LEFE) e é co-fundador do forumdoc.bh. Membro do
corpo editorial da revista Devires - Cinema e Humanidades.

Silvio Da-Rin
Cineasta, dirigiu cerca de 15 documentários, entre eles Paralelo 10, Hércules 56
e Igreja da Libertação. É mestre em Comunicação e Teoria da Cultura pela UFRJ.
Foi Secretário do Audiovisual do MinC entre outubro de 2007 e maio de 2010.

Sylvio Lanna
Cineasta e realizou, dentre outros, Roteiro do Gravador, Sagrada Família, Forofina,
ou a África e Malandro, termo civilizado.

Suely Maxakali
Fotógrafa e cineasta da etnia Tikmu’un, vive em Aldeia Verde, na porção
nordeste do estado de Minas Gerais. Co-dirigiu o filme Quando os yãmiy
vêm dançar conosco (2011) e colaborou com o catálogo de fotografias Koxuk
Xop / Imagem (Azougue, 2009). Professora formada pelo Curso de Formação
Intercultural de Educadores Indígenas (FIEI) UFMG.

142 143
oficina/curso
Filme documentário: entre memória, fala e território, um
procedimento político
Oficina com Claire Angelini

Realizada em parceria com o Ministério das Relações Exteriores /


Governo Federal

Belo Horizonte
26-30 novembro 2012

Apresentação
A ideia de que a linguagem cinematográfica possui uma gramática a respeitar
vai ao encontro da manutenção das supostas leis do cinema. Essas leis definem
o que se pode fazer e o que não se pode fazer, mas sobretudo o que não se
pode fazer. Elas são aplicadas por uma parte da crítica, dos especialistas e
semi-especialistas de maneira inalteravelmente repressiva (é proibido...). As
noções de linguagem e de leis do cinema servem de critério, a muitos deles, para
considerar bons os filmes ruins e ruins os bons filmes. Felizmente não existe
linguagem nem leis do cinema: tudo é permitido.
(Johan Van der Keuken, 1963)

Filmar é perceber lugares, paisagens, territórios através da espessura de sua


história: diante das camadas de tempo e dos estratos geológicos, trata-se de
se perguntar se o mundo no qual estamos é ainda imaginariamente habitável
mas, também, como a história retorna ao sensível e em que medida a linguagem
do cinema - imagem e som - permite interpretar o mundo e fornecer a essa
memória do tempo passado, que nos habita e nos opera, a possibilidade de
se exprimir no presente.

Ao cruzar o trabalho de historiadores com certos aspectos, em primeiro lugar


uma atenção de ordem arqueológica ao rastro, e a busca de uma “escritura”
do tempo - de acordo, entretanto, com uma modalidade particular, atenta à
espessura plástica do real, a sua própria resistência, assim como às singulari-
dades dos lugares, eventos e sujeitos -, meus filmes se empenham em produzir
dispositivos fílmicos capazes de capturar, com determinação, essas expressões
tangíveis da história.
cine humberto mauro, 26-30 nov, 14h

147
Dessa forma, é em torno das noções de território – compreendido tanto no 2. Um território que “fala” ou “a invenção de uma geografia através da narrativa”
sentido geográfico quanto histórico – de fala – ouvida, suscitada por tes-
As narrativas nos concernem. Elas fabricam imagens e, ao fazê-lo, exigem
temunhas, ou carregada por “personagens” – de memória – enterrada, ou
imperiosamente a presença do território. Nessa conjunção inédita entre uma
sobrevivente – e, finalmente, de história – abordada como uma narrativa
subjetividade e o lugar, surge uma nova relação com a geografia.
política que se abre sobre o presente – que será construída a oficina: para, ao
fio de exemplos tomados dos meus filmes, mostrar como um procedimen- Uma fala sobre os lugares
to se constrói, buscando menos trazer respostas do que propor, através do Por que, nesse caso, o roteiro é necessário e como ele se escreve?
cinema, uma forma que permita ao espectador ativo questionar, por sua vez,
o mundo que o circunda. 3. Os pontos de vista: enquadrar o território
a. O trabalho do quadro como escritura do espaço
Como se produz a decisão de um enquadramento, de um local, de um
Preâmbulo movimento de câmera?
Conduzindo um processo de tipo “arqueológico”, para operar essa desconstrução (Apresentação de desenhos)
que visa colocar em evidência o processo de fabricação do meu cinema, eu
4. Escutar e restituir o lugar
explicitarei aqui cada escolha que pautou a elaboração, realização e produção
a. A atenção ao território: a parte sonora do lugar
de filmes, sem deixar de lado as etapas práticas e as condições econômicas
Como, e por quê, produzir blocos de imagens-sons?
que estão na origem de sua existência e, portanto, no fim das contas, de sua
própria forma. b. O fora do campo sonoro
Por que e como?
Os elementos iconográficos que irão completar minhas proposições serão
tanto fragmentos de filmes quanto imagens fotográficas, croquis, textos e II. Fala
até mesmo desenhos.
Partimos aqui do seguinte princípio de escritura: dois materiais de importância
idêntica, imagem e som, são destinados a fazer juntos o caminho do filme.
Sinopse do seminário
Qual será esse caminho? Oposições ou concordâncias, acompanhamento
I. Território ilustrativo da imagem pelo som ou tensão com ela?

Os territórios que habitamos não são, eles primeiramente, lugar de uma A concordância ou não concordância entre o visível e o audível não é minimamente
expressão concreta da história? O território carrega, de fato, os rastros do obrigatória, tanto para os documentários quanto para as ficções. Tanto as imagens
que foi, rastros enterrados, encobertos, escondidos, silenciados. Ora, se os sonoras quanto as mudas são montadas segundo princípios idênticos; a montagem
lugares nos falam, como fazê-los falar? pode fazê-las concordar ou não concordar ou, ainda, misturá-las em diversas
associações necessárias. (Dziga Vertov)

1. A topografia como escrita da história: A fala é o primeiro material sonoro. Mas como ouvi-la, restituí-la, deslocá-la?
a. Um território como “personagem” a. O “discurso livre reencontrado”
Como e por que um dado território torna-se “personagem” principal do b. A fala é um material indivisível
filme? c. Tempo e silêncios na fala
b. O levantamento topográfico como origem do filme d. A fala reelaborada
A recusa do roteiro em favor do terreno ou como uma filmagem pode se e. Questões “éticas” da mise-en-scène: fala e testemunho.
construir de outra maneira. Qual a diferença entre a fala sobre e a fala de?

148 149
III. Memória Sabemos que, por trás da opaca nuvem de nossa ignorância e da incerteza de
resultados detalhados, as forças históricas que moldaram o século continuam
Enzo Traverso, em O passado, modo de usar: a operar.
Raras são a palavras tão maltratadas quanto “memória”. (...) Citarei também aqui algumas frases escritas por Niklas Meierberg, em 1976,
(...) A memória é frequentemente utilizada como sinônimo de história e possui em prefácio a Die Erschießung des Landesverräters Ernst S. (conferir filme
uma tendência singular a absorvê-la tornando-se uma espécie de categoria homônimo de Richard Dindo):
meta-histórica. Assim, a memória apreende o passado em uma rede com malhas
A história considerada como um amontoado de fatos, um museu de curiosidades,
mais largas do que as da disciplina tradicionalmente denominada história,
uma exposição de datas, uma acumulação de reis, uma coleção de batalhas e um
depositando nela uma dose muito maior de subjetividade, de “vivido”. Em suma,
cemitério - não queríamos nada disso, que apenas nos desviava da vida concreta.
a memória aparece como uma história menos árida e mais “humana”. Ela invade
Tampouco queríamos a história como texto acabado, e sim ver como o texto se
atualmente o espaço público das sociedades ocidentais: o passado acompanha o
elabora, determinar a história a partir de suas próprias fontes reconstituídas,
presente e se instala em seu imaginário coletivo como uma memória amplificada
queríamos cozinhar e não apenas comer (...)
pela mídia de forma potente, frequentemente dirigida pelos poderes públicos.
Ela se transforma em “obsessão comemorativa”, e a valorização, ou até mesmo a A história - é assim que a definimos em comum - é nosso ambiente político:
sacralização dos “lugares de memória”, engendram uma verdadeira “topolatria”. como ele nasce e desaparece, como podemos mudá-lo, pois que ele é modificável.
Essa memória superabundante e saturada, baliza o espaço. (...) Tivemos que partir assim de coisas que podíamos cercar no plano concreto e
pessoal, tivemos que reexaminar os eventos, descobrir seu motor e proceder
Extraída da experiência vivida , a memória é eminentemente subjetiva. Ela
verdadeiras microanálises sobre um terreno circunscrito.
permanece ancorada em fatos a que assistimos, de que fomos testemunhas, ou
até mesmo atores, e em impressões que eles gravaram em nossa mente. Ela é Escrever a história
qualitativa, singular, pouco preocupada com comparações, contextualizações,
a. O deslocamento como escritura e a história como solo
generalizações. (...)
b. Escrever a história: uma questão de montagem, colagem, sobreimpressão
Por seu caráter subjetivo, a memória nunca é imóvel; ela se assemelha antes a c. Escrever a história : buracos e negros significativos
um canteiro aberto, em transformação permanente.

Traverso sublinha a subjetividade da memória. Em nosso caso, trata-se de nos Conclusão


interrogar sobre aquela das testemunhas de nossos filmes. Como abordar um
testemunho que é saturado precisamente dessa subjetividade? Um ponto de vista de autor.

1. Fala e memória R. Bresson, Notas sobre o cinematógrafo: “Evite os objetos excessivamente


O que testemunha a testemunha? vastos ou distantes sobre os quais ninguém te adverte quando você se perde.
2. A memória do invisível Ou então tome apenas o que poderia se confundir com sua vida e que pertença
3. O cinema como inscrição de uma memória a sua experiência.”

Claire Angelini
IV. História

Eric J. Hobsbawn nos evoca, no final de seu livro A era dos extremos, o breve
século XX:

150 151
Depoimento de Benoît Turquety tudo o que nos foi tomado pela guerra, passada ou porvir: quase tudo de nossa
língua, quase tudo daquilo que habitamos, quase tudo de nossas infâncias. É
por isso que falar várias línguas ao mesmo tempo, caminhar em um país que
é hoje um outro país em relação ao de antigamente, articular um discurso,
Almost all our language has been taxed by war. ouvir os dois lados de uma paisagem que acabou portando uma fronteira,
Allen Ginsberg, 1966 ver o muro de cimento e a seteira ainda no coração da floresta, explorar
pacientemente os cantos de muros fissurados, é simplesmente apresentar
uma série de problemas que se retornam inevitavelmente contra o espectador.
O trabalho de Claire Angelini não cessa de suscitar problemas. O que está em
jogo é precisamente isso: fundar uma forma não sobre postulados, princípios Pois que é a nós, em última análise, que as obras de Claire Angelini suscitam
ou regras, mas sobre um série precisa de problemas. Um deles se formula, por problemas. Não porque elas seriam “difíceis”: esses filmes, livros, fotografias
exemplo, assim: o que é isso aqui onde caminhamos? Um outro: de que é feita não poderiam ser mais simples - uma voz diante de um lugar, um corpo em
a língua que falamos? Um outro: como o movimento da história nos atravessa? uma paisagem, uma fala diante de um quadro, um percurso com uma duração.
Não, elas suscitam problemas por outras razões. Primeiramente, porque sua
O erro seria, é claro, abordar esses problemas separadamente. Poderíamos própria evidência nos leva a suspeitas: e se tudo isso que foi mostrado tivesse
dizer que o cinema é, dentre todas as artes, a mais inepta à análise, à distinção sempre estado aqui? E se dependesse apenas de nós - nós histórico e político,
franca e nítida - o que não significa que ele seja impreciso. As obras de Claire nós singular e íntimo - vê-lo e ouvi-lo? Em seguida porque é sem dúvida difícil
Angelini abordam o mundo - "o conjunto daquilo que ocorre", dizia Wittgenstein não se ressentir com relação a uma arte que não propõe soluções, que não
- através de blocos, e os problemas são aí formulados de maneira exata, à medida parece sequer buscá-las, mas se dedica, antes (ao contrário?), à complexidade,
que elas mantêm unido o que não é separável. Não apenas interrogar o lugar, à espessura, à fertilidade dos próprios problemas.
a fala e a história, mas suas articulações, agenciamentos e, também, a falta e
a perda desses elos, o desmoronamento dessas arquiteturas. Não são questões Tradução: Ana Siqueira
abstratas, e sim problemas simples, concretos, problemas que frequentemente
dizem respeito ao cinema. Por exemplo: uma fronteira possui uma existência
na fala? Caminhamos da mesma maneira quando o fazemos nos lugares
de infância? E se esses lugares tiverem sido desfeitos pela história? Qual é
a diferença entre ruínas e escombros? E um monumento? Ou um canteiro
de obras? E o que é um campo? E arames farpados, estão ali para impedir a
saída ou a entrada? E podemos ver e ouvir ao mesmo tempo? Senão, qual é
o tempo necessário entre os dois: um tempo na medida de nossos corpos ou
da história? Ou do cinema (se o há)?

Em outros tempos, Peter Nestler atribuiu a um de seus filmes o título Warum


ist Kreig?; Por que há guerra? É uma questão simples. Claire Angelini atribuiu
a um dos seus La guerre est proche (A guerra está próxima). Não é mais uma
questão, mas é ainda um problema. Essa frase, que é no entanto simples,
também enuncia e constitui um problema histórico: o dia em que ela se torna
possível, o momento em que é necessário dizê-la. Mas La guerre est proche não
é um filme de época, como Le retour au pays de l›enfance não é um western (se
bem que): eles são, ao contrário, exatamente contemporâneos, ao constatarem

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Et tu es dehors/ Und raus bist du / And out you go, 2012 humana e eugenia” de Berlim, já estão sendo elaborados os primeiros projetos
E você está de fora de esterilização de doentes metais, criminosos e indivíduos moralmente
retardados. As declarações sobre as vidas que não merecem ser vividas são lugares
Claire Angelini comuns nessa época. Schranker, o chefe da máfia no filme de Lang encarna
de certa forma o eco da voz do povo: "Você deve desaparecer", ele diz a M,
"você deve ser apagado como um fogo prejudicial". Os criminalistas da época
Et tu es dehors resulta de um encontro violento com M, primeiro filme sonoro
oferecem um respaldo teórico ao pensamento comumente admitido - e cuja
de Fritz Lang, no qual ele “inventa” uma maneira de articular som e imagem.
genealogia foi feita por Foucault - segundo o qual o louco é uma pessoa perigosa
A crítica costuma fazer desse filme uma denúncia prematura do advento de que precisa ser enclausurada ou mesmo suprimida. Na Alemanha, dez anos
Hitler e do regime de terror que ele instalou na Alemanha; ora, a escuta do depois do lançamento do filme de Lang, o programa T4 coloca em prática o
filme (entonações, vocabulário) e também seu foco em um caso - real - de assassinato de doentes físicos e mentais.
“assassino de crianças”, que concentra em si todas as pulsões de purificação pela
Hoje em dia, em um contexto que criminaliza de bom grado os "indesejáveis"
eliminação física da sociedade, seja a dita legítima (a população, a polícia), ou
de nosso tempo (pobres, estrangeiros migrantes e pessoas fisicamente frágeis,
a ilegítima (a máfia), deixa aflorar outras intenções. Minha percepção dessas
desviantes), um contexto de dificuldades econômicas e políticas, as questões
intenções foi renovada ao cruzá-las com a reflexão de Michel Foucault sobre a
colocadas por Lang são ainda atuais. Na França, foi instaurada uma grande
questão do biopoder. Foucault teoriza acerca da forma com que, desde o fim
reforma das estruturas psiquiátricas no meio hospitalar. Tal como ontem, é
do século XVIII, a emergência de um corpo coletivo (o da população), que deve
colocada a questão da reclusão perpétua dos doentes mentais criminosos. Na
ser protegido a partir de então contra a doença, a velhice e a degenerescência,
Europa, as pessoas indesejáveis e estigmatizadas são sobretudo os migrantes
é acompanhada por técnicas disciplinares cada vez mais complexas: uma
estrangeiros a quem recusamos o direito de abrigo.
evolução histórica de nosso sistema social que contribui para a biologização da
política, da qual uma das maiores preocupações torna-se a distinção crescente No filme-ensaio Et tu es dehors, uma narração se constrói lá onde esses
entre o normal e o anormal, o superior e o inferior, o são e o desviante etc. questionamentos buscam se encarnar, em uma história que reúna documentos
e ficção.
Ora, acontece que essa “segregação”, consubstancial ao “biopoder”, nítida em
M, encontra, a meu ver, um eco surpreendente em nossa sociedade. Conjugação de reminiscências e coincidências, exame das sedimentações
da memória, estilhaços de tempo e espaço, tudo contribui para o trabalho
Quem é M? dessa memória.

Apesar de sua doença e seus atos criminosos, Hans Beckert, vulgo M, nos é O filme se abre sobre o porto de Dunkerque, onde a fumaça das fábricas
apresentado como um homem ordinário. Ele é ainda mais inquietante por não petroquímicas assinala um mundo industrial desumanizador e remete às
ser notado. O primeiro momento de seu isolamento social diz respeito a um duas guerras, das quais o porto foi teatro. De volta à sua cidade natal, Helmut,
processo de identificação: um sinal distintivo é nele afixado. Trata-se de um cuja vida atravessou o “breve século XX”, procura reunir, em um quarto de
“M” escrito em giz, mas que não é diferente, em sua natureza discriminatória, hotel, fragmentos de seu passado. Um caleidoscópio de imagens serve-lhe de
daquilo que tantos homens e mulheres foram obrigados a usar, durante a memória; aquém das narrações em farrapos e de personagens anônimos, ele
guerra, nas ruas de Paris e de tantas outras cidades da Europa ocupada. encontra nas sombras e rasgos desbotados dos fotogramas de filmes que o
Compreendemos sobretudo que M é um doente mental. Théa von Harbou, atravessam, os ecos ensurdecidos, deformados de sua vida: em primeiro lugar,
roteirista do filme, interessava-se vivamente pela psiquiatria e o filme se sua diminuta infância, com a ocupação alemã do norte da França em 1917,
inscreve no conjunto de debates que agitam a República de Weimar, então depois Berlim, entre a República de Weimar e o início dos anos 30.
perto de seu fim, quanto ao status dos doentes mentais e a questão da pena
de morte. Pois que no Instituto Kaiser Wilhelm “de antropologia, genética

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Mas o fio da memória de Helmut é frágil e o espaço-tempo se rasga, deixando Claire Angelini, artista e cineasta (estudou na Ensba, Escola Nacional de Belas
aflorar violentamente o presente. Confrontado com aqueles que habitam Artes de Paris, e na HFF, Universidade de Televisão e Cinema, em Munique),
as margens econômicas, políticas e sociais do mundo de hoje, ele encontra interroga, através de instalação, filme, vídeo, fotografia, som e desenho, a
seus duplos. Ele, que foi sucessivamente o Outro, o Desviante, o Louco, o relação entre arte e história sob a forma do rastro, da ruína, da reminiscência e
Estrangeiro, o Migrante, compreende pouco a pouco que os crimes do século da sobrevivência das imagens. Em 2001, ela fundou o Laboratorium Geschichte,
a que ele escapou se enraízam em um discurso normativo de eliminação. onde produziu, em colaboração, projetos de instalações em espaços públicos e
Outras reminiscências o invadem, colisão de imagens passadas ou atuais: livros de artista. Suas obras foram apresentadas nos Etats Généraux du Film
Hartheim, castelo barroco da Alta Áustria, onde o discurso dos médicos Documentaire de Lussas, no Cinéma du Réel, em Paris, no Instituto Franco-
acerca das “vidas indignas de serem vividas” tomaram corpo no extermínio Japonês de Tóquio, na Viennale, em Viena, na Maison des Arts d’Amiens,
de fato dos anormais do Terceiro Reich, a Berlim em ruínas do pós-guerra e na Kunsthalle de Viena, na Architekturkammer de Munique, no Festival
a de hoje. Em seguida, as visões de Helmut nos levam novamente ao norte Internacional de videoarte de Gijon, na Nuit Blanche de Paris, no Festival
da França onde são convocados outros momentos de sua vida: no labirinto Underdox de Munique, no l’Institut Jean Vigo de Perpignan, na galeria
de um grande estabelecimento psiquiátrico, a equipe que ele havia conhecido Martine et Thibault de la Châtre, em Paris, no Filmmuseum de Munique, no
surge então do tempo para contar, no mesmo momento, o que já foi e o que Goethe-Institut de Roma, na Biennale de l’Image Contemporaine de Genebra
doravante é: uma enfermeira que outrora cuidou dele e, depois, um psiquiatra. e, como participante dos Rencontres Internationales Paris-Berlim-Madrid, no
Centre Georges Pompidou e no Musée du Jeu de Paume, em Paris, na Haus der
Helmut, ao longo dessa viagem no espaço e no tempo, descobre, ao final, na Kulturen der Welt de Berlim, assim como no Museu Reina Sofia de Madrid e,
periferia de Dunkerque, a presença de requerentes de asilo, esses invisíveis de recentemente, na Cinemateca Brasileira, em São Paulo.
nossa época. Entre corredores barulhentos, portas fechadas e muros tristes, a
responsável pelo lugar o introduz no cotidiano dos migrantes, sua sobrevivência, Claire Angelini, ligada ao coletivo pointligneplan, vive e trabalha em Munique
as batidas para deportação, os processos. e Paris.

Na cidade industrial de respiração pesada que cadencia as horas, Helmut,


cuja memória trabalha uma história que é, ainda e sempre, a nossa, quase
terminou sua busca e, ao fazê-lo, colocou em perspectiva o devir história do
cinema e o devir ficção do documentário.

Tradução: Ana Siqueira

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ensaios
Xapiri e a imagem-eco do xamanismo
Laymert Garcia dos Santos e Stella Senra

Xapiri é um termo yanomami para designar tanto os xamãs, os homens espí­


ritos (xapiri thëpë), quanto os espíritos auxiliares (xapiri pë).

Xapiri é um filme experimental sobre o xamanismo yanomami, que nasceu em


resposta a um desejo do líder e xamã Davi Kopenawa: realizar um encontro
de xamãs de todo o território yanomami localizado no Brasil, com vistas ao
fortalecimento da preservação e da continuidade da cultura tradicional desse
povo indígena. Em dezembro de 2010, Laymert Garcia dos Santos encontrou
uma oportunidade de fazer tal encontro acontecer, desde que fosse incluída,
num dos cinco projetos do Laboratório de Cultura e Tecnologia em Rede, do
Instituto Século 21, por ele coordenado, a realização de um filme sobre o
xamanismo yanomami. Conseguiu-se, assim, fundos da Cinemateca Brasileira
para a realização do encontro e de sua filmagem, com o objetivo posterior da
transformação desta em filme. Uma parceria selada entre essas instituições
e a Associação Hutukara Yanomami e o Instituto Sociambiental tornou o
projeto do filme factível.

O encontro de xamãs se deu em março de 2011, na aldeia de Watoriki Amazonas.


Em abril de 2012, a mesma equipe voltou para a aldeia, para mostrar aos
xamãs e à comunidade um primeiro corte, dentro da perspectiva de fazer um
filme com os índios, e não sobre eles. Davi Kopenawa vira esse retorno como
uma oportunidade para organizar um segundo encontro de xamãs, e assim
foi feito. O resultado foi um estoque de cerca de trinta horas de gravação de
imagens do xamanismo.

Xapiri se inscreve, portanto, numa estratégia de luta yanomami em defesa de


seu território e de sua cultura. Tal estratégia tem uma face interna, voltada
para a consolidação das conquistas dentro do território, desde a demarcação,
há vinte anos, e uma face externa, voltada para a divulgação, no mundo branco,
do alto valor da cultura yanomami e da necessidade de alianças com parcelas da
opinião pública ocidental para que estas apóiem sua preservação. Nesse sentido,
Xapiri é uma obra que se inscreve numa série de criações e expressões artísticas
que apostam no valor estético-político da cultura yanomami como forma de
luta. Tal série começou com as fotografias de Claudia Andujar, continuou com
exposições na Fondation Cartier pour l’art contemporain, em Paris, que abordavam
ou incluíam obras com, dos ou sobre os yanomami (em 2003, L’esprit de la forêt,

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em 2008, Ailleurs commence ici, em 2011, Mathématiques - Un dépaysement as dos ancestrais “humanimais” que viviam nos tempos das origens (...). De
soudain, em 2012, Histoires de voir), estendeu-se à forte participação dos xamãs tais imagens, diz-se que têm “valor de espectro” (...) dos seres primordiais,
e da comunidade de Watoriki na ópera multimídia Amazônia (direção artística dotados de uma “pele” (corpo) humana e de um nome (identidade) animal.
de Peter Ruzicka, Peter Weibel e Laymert Garcia dos Santos), apresentada na Elas são percebidas pelos xamãs sob a forma de uma infinita multiplicidade
Bienal de Teatro-Música de Munique, em maio de 2010 e no Sesc-Pompéia, de humanoides minúsculos, enfeitados com pinturas corporais e ornamentos
em São Paulo, em julho do mesmo ano. de luminosidade ofuscante.

Vários dos integrantes da equipe de Xapiri estiveram envolvidos nesses Tais seres-imagens corpusculares, espécie de quanta mitológicos, povoam
outros projetos. De modo que o contato, o conhecimento, a convivência e, o mundo em estado livre, envolvidos numa incessante atividade de jogos,
arriscaríamos, uma certa familiaridade com a aldeia, com os xamãs e com o trocas e guerras que sustenta a dinâmica dos fenômenos visíveis. Uma vez
xamanismo nos levaram a fazer determinadas opções e a estabelecer certos instalados, durante a iniciação, numa morada celeste associada ao jovem
critérios que nortearam a realização do filme. xamã, eles se tornam seus “filhos”, uma forma “aparentada” das imagens
humanimais do “primeiro tempo”. Segundo o jargão etnográfico, eles são
Com efeito, desde o início, Xapiri foi concebido de modo a levar em conta então “espíritos auxiliares” (xapiri pë). Assim domesticados, os xapiri pë são
duas noções diferentes de imagem: a dos yanomami e a nossa. Para nós, não selecionados e combinados em cada sessão xamânica, segundo seus atributos
se tratava, pois, de explicar o xamanismo, seus métodos ou procedimentos, e suas competências. Em função das necessidades do momento, eles servem
não queríamos fazer um trabalho acadêmico ou de vulgarização. Sabíamos ser como referentes interpretativos e vetores de intervenção para os xamãs que
impossível ver e mostrar o que os xamãs vêem; tais imagens permanecerão, com eles se identificam no transe (...).”1
para sempre, inacessíveis aos não-yanomami. Sabíamos, também, que seria
inócuo e contraproducente filmar os rituais de modo realista ou naturalista, Bruce Albert alerta para os malentendidos que o emprego da própria noção
porque a “realização” do xamanismo, o seu modo de se tornar real, escapa de “imagem” provoca nesse contexto, pois os Yanomami também utilizam
inteiramente dos padrões e critérios do documentário. Assim, nosso intuito o termo utupë para designar todas as nossas manifestações iconográficas
era tornar visível e sensível, para públicos de culturas diferentes, o modo (imagens no papel ou digitais, animadas ou não), bem como as representações
segundo o qual os xamãs “incorporam” os espíritos, como seus corpos e suas plásticas (desenhos, gravuras, pinturas, estátuas) ou modelos reduzidos (jogos
vozes se transformam tanto no contato com os espíritos quanto na “passagem” e miniaturas). Além disso, o termo também designa o reflexo de uma pessoa na
destes, e de um espírito a outro. água ou num espelho, a sombra ou o eco (a “imagem do som”) e as gravações
sonoras - “imagem de falas”. Por fim - escreve o antropólogo - “além de sua
Portanto, nosso filme tinha de ser experimental, no sentido forte do termo. De acepção relativa ao “valor de espectro” dos ancestrais humanimais, utupë
início, o experimento consistiu no esforço para entender a complexa noção de também designa um componente ontológico fundamental de todo existente” - a
imagem yanomami, muito diversa da que conhecemos; em seguida tratou-se imagem do corpo e a essência vital associada ao sangue e à energia corporal.”2
de gerar imagens e sons das performances xamânicas com o intuito de criar
“simulações” dessas “passagens de imagens” por meio de nossas tecnologias Por tudo isso, utupë é um tipo de imagem que não pode ser confundido
digitais. com nossas noções de representação. Segundo Bruce Albert, “esse modo
fundamental de ser-imagem (...) ao qual o “ver” xamânico do sonho e do
A imagem desempenha no xamanismo yanomami um papel central e espe­ transe dá acesso, constitui o centro de gravidade do pensamento ontológico
cialíssimo. O antropólogo Bruce Albert, que trabalha com essa etnia há mais e cosmológico yanomami.”3 Mas, adverte o antropólogo, mesmo procedendo
de trinta anos e que participou de nosso experimento a definiu com grande
precisão da seguinte maneira:
1
Albert, Bruce, “Images, traces et 'hyper images': impromptu d´ethnographie noctambule” in
“As imagens (utupë) que os xamãs yanomami “invocam”, “fazem descer” e imagine ambulat homo Augustin, La Trinité, livre XIV, 4, 6, p.1 e ss.
2
Idem
“fazem dançar” - no sonho ou no transe - são (essencialmente, mas não só) 3
Ibidem

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de sonhos ou induzida por alucinógenos, essa imagem também não deve ser conceitos de informação, transdução, resolução, realidade pré-individual e
compreendida como nossas usuais imagens mentais ou “visões interiores”. Com individuação. Em síntese: sobre a lógica operatória atuando no processo de
efeito, escreve Bruce Albert, as imagens dos seres primordiais descritas pelos concretização, de passagem do virtual para o atual.
xamãs com grande profusão de detalhes estéticos, o são antes de tudo a título
de percepções diretas de uma realidade externa absolutamente tangível (o Em seu livro Du mode d’existence des objets techniques, o filósofo Gilbert
“ver” é aqui autenticamente “conhecer”). Além disso, elas também são tornadas Simondon afirma que o primeiro técnico é o xamã, o medicine man que surge
visíveis para o público das “pessoas comuns” que assistem às sessões dos xamãs na mais originária fase da relação entre o homem e o mundo. Como escreve
quando estes se assimilam, durante o transe, aos seres-imagens mitológicos Simondon: “Podemos denominar essa primeira fase fase mágica, tomando a
que “fazem dançar” . Através dos cantos e da coreografia associados a cada palavra no sentido mais geral, e considerando o modo de existência mágico
um de seus xapiri pë eles próprios se tornam verdadeiros “corpos condutores” como aquele que é pré-técnico e pré-religioso, imediatamente acima de uma
dos ancestrais humanimais.”4 relação que seria simplesmente aquela do ser vivo com o seu meio.”6 O que faz
então o primeiro técnico? O filósofo aponta que ele traz para sua comunidade
Bruce Albert distingue, então, dois modos principais de identificação com os um elemento novo e insubstituível produzido num diálogo direto com o
seres-imagens primordiais durante as sessões xamânicas. Em nosso grupo mundo, um elemento escondido ou inacessível para a comunidade até então.7
de trabalho definimos a articulação desses dois modos como a “passagem da
imagem” pelo corpo do xamã. Com a palavra, o antropólogo: No caso dos xamãs yanomami que estamos abordando aqui, é interessantíssimo
perceber que o processo técnico de produção de seres-imagens é extremamente
“Tais modos constituem na verdade graus de “devir-imagem” imbricados complexo e preciso. Com efeito, tudo se passa como se, alterando a sua per­
um no outro, numa espécie de vai-e-vem ontológico. No primeiro modo os cepção através da inalação da yãkohana, ampliando seu estado de consciência,
xamãs efetuam a dança de apresentação genérica dos ancestrais humanimais os xamãs tivessem acesso ao que Simondon chama de realidade pré-individual,
convocados como auxiliares e seus cantos descrevem a aparência e as ativi­ àquilo que o filósofo considera como sendo “o centro consistente do ser”, plano
dades desses seres-imagens bem como as paisagens cosmológicas nas quais das intensidades, das potências e das virtualidades, plano a partir do qual se
evoluem (momento narrativo, interioridade/exterioridade das imagens). dá a tomada de forma, a concretização e a invenção. Tudo se passa como se os
No segundo modo, frequentemente mais curto e esporádico, seu corpo é de xamãs modulassem a recepção dos seres-imagens e fossem modulados pela
repente totalmente transformado por uma assimilação mais íntima com os manifestação destes, revelando, em pleno estado alucinatório, uma maestria
seres-imagens mitológicos: a gestualidade e os cantos - tornados sucessões de impensável para o mais versado dos ocidentais nos estados alterados de
onomatopéias - remetem então diretamente aos daqueles seres humanimais consciência.
específicos que são a cada vez invocados (momento intensivo, plenitude do
ser-imagem). Pode-se então considerar que durante esse processo os xamãs Para ilustrarmos o que se está dizendo, vale narrar um episódio que aconteceu
são tomados a título de suportes (meios) vivos pela linha de fuga dos seres- em agosto de 2009, durante um workshop organizado com um grupo de xamãs,
imagens que vão vendo e presentificando em suas sessões. Eles constituem em Watoriki, no âmbito da ópera Amazônia.
assim espécies de “corpos-telas” atravessados pela fita das formas ontológicas Como de hábito, os xamãs faziam seu ritual, inalando yãkohana, cantando,
(re)tornadas dos tempos míticos.”5 dançando, falando... Subitamente, Levi Hewakalaxima dirigiu-se a Bruce Albert,
Fica evidenciado, então, que o xamã opera, por assim dizer, em dois canais, ou apontou para nós, pôs a mão no próprio peito e disse, em yanomami:“Diga
melhor, passando de um ao outro, vale dizer modulando a passagem da imagem a eles que estou baixando em meu peito a imagem do canto-palavras do
e sendo modulado por ela. Ora, para compreender o que está acontecendo, nada
melhor do que a reflexão formulada pelo filósofo Gilbert Simondon sobre os
6
Simondon, Gilbert. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier/Montaigne, 1969,
4
Ibid. p. 156.
5
Ibid. 7
Simondon, Gilbert. L’individuation psychique et collective. Paris: Aubier, 1989, pp. 261-262.

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pássaro oropendola.” E de imediato “sintonizou” novamente o ritual, voltando vezes não, ao que se passa na imagem. O ritual vai se adensando, o clima vai
a cantar e a dançar. se transformando, uma nova rodada de alucinógeno indica que o processo
se intensifica, se estende no tempo e tem lugar no cotidiano da aldeia, até
Como entender esse episódio? Tudo se passa como se, durante essa espécie de que os cantos e as danças anunciam e executam a passagem dos xapiripë nos
download de um arquivo audiovisual, o corpo de Levi funcionasse ao mesmo xapiri thëpë, abrindo caminho para as curas de doentes, a sustentação do
tempo como hardware e como software, processando um programa que estava céu, a cura da terra... Uma longa sequência de Levi Hewakalaxima permite
sendo rodado pela mente do xamã como som-canto do xapiripë tornando-se ver o xapiri thëpë despojando-se de seus adornos e entregando-os aos outros
uma imagem que será “lida” como uma partitura pelo intérprete. De acordo xamãs, antes de acompanhar o xapiri pë que vai partir. Na sequência final,
com as palavras de Bruce Albert,“os sons-cantos do xapiripë vêm primeiro: as voltamos à terra-floresta, a seu povo, e à sua continuidade no futuro, através
imagens mentais induzidas pela yãkohana tomam forma a partir de alucinações da figura dos meninos.
sonoroas; o que significa um devir imagem do som.”
O dispositivo xamânico yanomami de produção de imagens e sons, dispositivo
Esse ponto apareceu-nos (a Bruce e Laymert) como uma verdadeira possibilidade audiovisual, se arma com a aspiração da yãkohana, portanto, numa alteração
de uma ligação entre o universo mágico yanomami e as experiências estéticas intensa dos estados de consciência, que se abrem para a recepção dos xapiri pë.
mais avançadas no campo das tecnologias digitais de produção de imagem. Por isso, a partir do momento em que os xamãs aspiram o alucinógeno, a visão
Trata-se do seguinte: com suas técnicas apuradíssimas, os xamãs vêem o que do espectador também começa a se alterar. Para dar conta disto, recorremos,
não podemos ver. Mas podemos ver como seus corpos, ao incorporarem os no dispositivo digital de Xapiri, não a efeitos especiais, mas a um procedimento
seres-imagens, expressam a passagem destes, ou seja, a metamorfose. Graças utilizado sistematicamente, que é a imagem-eco. Esta se justifica por diversas
a um acoplamento homem-máquina que atualize o máximo das potências razões: primeiro, porque desnaturaliza as figuras e a imagem como um todo,
do humano e dos aparelhos podemos transformar a passagem das imagens desconfigurando e reconfigurando incessantemente os seus contornos; em
em imagens de passagem, modulando o processo de concretização de tal segundo lugar, porque a imagem-eco se expressa como um eco das imagens
modo que o visível apareça como uma espécie de configuração-desfiguração- xamânicas que não podemos ver, mas cuja passagem se torna perceptível na
reconfiguração capaz de nos permitir, pelo menos, contaminar a geração de alteração dos corpos; em terceiro lugar, porque a imagem-eco, ao desrealizar
nossas imagens com alguns princípios operatórios análogos aos praticados a imagem, transforma-a em pura vibração, o que estabelece ressonâncias
por eles. É claro que tal procedimento não torna visível o invisível; mas abre com o próprio dispositivo audiovisual xamânico, no qual as imagens se dão
o visível para um movimento de ampliação da percepção e da mente que nos como potências do virtual que se atualizam, passam e arrefecem; finalmente,
permite esboçar uma impressão estética da riqueza, da complexidade, da porque a operação técnica implicada na produção da imagem-eco, que consiste
beleza, e até mesmo da vertigem, dos riscos inerentes à viagem xamânica. na fusão de dois planos ou duas sequências, uma no sentido temporal linear,
e a outra no sentido inverso, resulta numa imagem que contém, ao mesmo
Assim, Xapiri foi estruturado de tal modo que o espectador possa adentrar pouco tempo, seu passado, seu presente e seu futuro, isto é, um movimento que se
a pouco no ritual xamânico: primeiro, chegando em Watoriki, e encontrando dá, que já se deu e que vai se dar. Assim, a imagem-eco de Xapiri permitiria
esse povo que habita a terra-floresta e que é habitado por ela, povo de um que o espectador se deixe envolver por um outro espaço-tempo, ecoando o
mundo outro, cuja cor predominante é o vermelho; em seguida, vendo os mundo mágico do xamanismo.
xamãs se prepararem, executando a sua pintura corporal, inalando a yãkohana
e começando a dançar e a chamar os xapiripë; segue-se uma série de “retratos”,
que buscam incorporar os traços visíveis e invisíveis que caracterizam os Agradecimentos especiais
xapiri thëpë: a beleza dos ornamentos, a variedade e a força da expressão, mas
também a fulguração dos pontos de luz, dos espíritos auxiliares que irrompem Aos Xamãs Yanomami, à Comunidade de Watoriki, a Carlo Zacquini, a Morzaniel
da floresta, e sua inscrição dançante a povoar o peito de cada um. Na trilha Yanomami e Claudia Andujar.
sonora, o tempo todo são entoados os cantos, às vezes correspondendo, às

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As explosões necessárias Mulligan até que passa como – pelo menos – intenção simpática, embora
completamente frustrada. Mas os jovens cineastas do Terceiro Mundo são
Maurício Gomes Leite
inquietos, instáveis como sua economia, desesperados como seus personagens,
incertos como sua política. Ao nível da procura, e do fazer tudo, é que devem
Brasil, primeira metade de 1968. Um rebelde de 22 anos lança um manifesto ser recebidos e compreendidos – nunca como simples aventureiros, pois
cinematográfico. Gustavo Dahl conclui O Bravo Guerreiro, a guerrilha aparece logicamente sua grande dúvida nasce de uma reflexão profunda, somada
em Os Exilados, uma alusão clara a Régis Debray é feita em Jardim de Guerra, a um entusiasmo jovem que não é ardor nem malcriação. Entusiasmo que
Nélson vira a mesa com Fome de Amor, Glauber Rocha filma em 16mm e cinco leva Neville d’Almeida a fazer, quase sem dinheiro e sem película, Jardim de
dias O Câncer. Há filmes de todos os lados, idéias em carrinho, heróis e não- Guerra, um estudo sobre as conseqüências do tráfico revolucionário na América
heróis, câmera na mão e uma notável coincidência: todos os filmes citados são Latina, e que será certamente uma das grandes surpresas deste ano. Ou que
políticos, mesmo os que trazem a marca da história policial ou das aventuras joga Sérgio Bernardes Filho além de uma fácil existência mundana à qual
de sexo. Alguma coisa explode, no outono. A imagem clara de um ângulo do parecia destinado, pois SBF preferiu sofrer os dramas de um longa-metragem
Terceiro Mundo parece ser a grande preocupação dos jovens armados de luz provocador (Os Exilados) a padecer no paraíso. Entusiasmo novo marcado
e sombra que tentam um novo diálogo com o público – e isso é bom. pela reflexão: Nélson Pereira dos Santos se transforma, e Fome de Amor é um
dos mais bonitos jogos de luz que se poderia fazer com dois temas chamados
Há muita incerteza, pois o filme brasileiro novo não se define pela exatidão da fortes: a política nasce do sexo. O Bravo Guerreiro e Câncer fecharão o ciclo, e
mensagem ou bom comportamento dos personagens – tradições arquivadas entre eles passa, sem nome, O Bandido da Luz Vermelha, motivo final – e inicial
por todos os que preferem retirar da dúvida um começo de luta. Dúvida sobre – dessas previsões que tirei de várias frentes de trabalho, indo de roteiros a
as instituições, sobre o discurso moral da classe dominante, sobre os ideais filmagens de copiões a filmes prontos. O autor do Bandido, Rogério Sganzerla,
forjados por uma minoria que diz falar em nome da maioria, dúvida social tem a palavra (ou o último tiro), através do manifesto que lançou em São Paulo,
– e estética – refletindo a necessidade de abrir novas frentes no cinema e na maio de 1968, sob o título de Cinema Fora da Lei. Sei que os demais autores
vida. Tome-se um filme padrão qualquer, entre os lançamentos da última citados, no todo ou em parte, também encampariam o anticódigo de Rogério:
semana – Subindo por Onde se Desce, por exemplo – e veja-se até onde um
tema aparentemente social é freado, amenizado, simplificado e entregue “1 – Meu filme é um far-west sobre o III Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários
pronto para o consumo sem que nada seja pedido ao espectador, nenhum gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário,
acréscimo, nenhum debate, nenhum raciocínio. A heroína da fita de Robert policial, comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Do documentário, a
Mulligan, simpática em todas as horas, é vítima de um arranhão social, nunca sinceridade (Rossellini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo
de um câncer. Dedicada professora de visão suave e sensibilidade aguda anárquico (Sennett, Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos
envolve-se com os problemas de uma escola perigosa, tenta enfrentar a luta, (Mann). 2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto os tiras
quase desanima, mas, no último momento, tocada pelo ar de esperança que fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a incomunicabilidade.
sempre marcou boa parte dos filmes (e dos heróis) norte-americanos, levanta Quando um personagem não pode fazer nada, ele avacalha. 3 – Orson Welles
o nariz, abre um sorriso e segue em frente, mesmo que durante o filme nada me ensinou a não separar a política do crime. 4 – Jean-Luc Godadrd me ensinou
tenha enfrentado além de pequenas malcriações e um quase estupro. Para o a filmar tudo pela metade do preço. 5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema
espectador médio a quem se entregou a história média, o desgosto social foi de guerrilha feito à base de planos gerais. 6 – Fuller foi quem me mostrou
salvo pela mestra média, sua coragem de boneca e sua total incapacidade de como desmontar o cinema tradicional através da montagem. 7 – Cineasta do
enxergar a verdadeira raiz dos males da escola, no final atribuídos à burocracia excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou a poesia furiosa dos atores
e ao eterno ardor da juventude. do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e dos seus diálogos aparentemente
banais. Mojica e o cinema japonês me ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo
Dessa calma-padrão, felizmente, não sofrem os novos filmes brasileiros. Nos tempo – acadêmico. 8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo
termos do que se pode fazer num país como os Estados Unidos, o filme de acima de todos os travellings. 9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de

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Luís poeta e agitador Buñuel, anjo exterminador. 10 – Nunca se esquecendo A$suntina das Américas
de Histchcock, Eisenstein e Nicholas Ray. 11 – Porque o que eu queira mesmo
João Batista Lanari
era fazer um filme mágico e cafajeste cujos personagens fossem sublimes e
boçais, onde a estupidez – acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma
e do corpo subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante, Uma ópera, um músical, uma comédia, um gesto colorido
ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi que
tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido. Meus O cinema reflexão, o cinema antiespetáculo, um instrumento de conscienti­
personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80% do cinema zação; o cinema como ato político, ato político no sentido de participação, de
brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem de Boca de Ouro, criação; consequentemente, não é cinema, ou será que fazer cinema é somente
passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento. 12 – Estou filmando agradar aos menos exigentes?
a vida do Bandido da Luz Vermelha como poderia estar contando os milagres
Luiz Rosemberg Fliho, autor já no quinto filme A$suntina das Amerikas só teve
de São João Batista, a juventude de Marx ou as aventuras de Chateaubriand.
apenas um até agora (Jardim de Espumas) em exibição comercial no Brasil. E
É um bom pretexto para refletir sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel,
é nesse contexto que surge "A$suntina", uma ópera, um gesto colorido de
a política e o crime identificam personagens do alto e do baixo mundo. 13 –
liberdade criativa. Como vai "A$suntina", ou o mundo animado do cinema?
Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis dar um esforço
total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas “Tudo vai bem, quando todos pensavam que eu ja não faria mais um filme. E
panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos. O ponto de partida de nossos como instrumento de reflexão. E tudo vai bem num trabalho que e um pouco
filmes deve ser a instabilidade do cinema – como também da nossa sociedade, uma feroz crítica ao lado mitológico do cinema como espetáculo de padrão
da nossa estética, dos nossos amores e do nosso sono. Por isso, a câmara é internacional.
indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível
e por isso o filme pode explodir a qualquer momento.” Hollywood, na mitologia ocidental do passado sempre presente. O cinema
tupiniquim, na fantasia das massas domadas pela ideologia do consumo a
Jornal do Brasil, 1 de junho de 1968 la americana. Assunta. A$suntina das Amerikas uma ópera, um musical, uma
comédia, um gesto colorido de liberdade criativa.”

"A$suntina", antes que um assunto, uma personagem, uma política, ou um


símbolo de mulher?

"A$suntina" (Analu Prestes) é procurada pela câmara não como uma Mulher-
história (Glauce Rocha em Terra em Transe), portadora de determinadas
idéias políticas (Grécia Vanicori no Jardim das espumas). Inclusive, inexiste
a fidelidade a uma só imagem determinada da mulher. E em Iugar da verdadeira
MULHER, temos um objeto (Vera Fischer, Kate Lira ou "A$suntina") amargo,
fechado na procura de sua identidade. E por que a necessidade de uma política de
mentiras para suportar a vida? O que vem a ser hoje a honestidade existencial?
Razão ou anti-razão? Sigo perguntando como um aluno rebelde. Os meus
fantasmas se desdobram num tempo sofrido de procuras. A$suntina das
Amerikas é a história de uma procura externa, com pequenos dados ilustrativos
do mundo interior. "A$suntina" é o meu novo caminho, não sendo o único
caminho existente.

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Uma bandeira rota O antiformalismo, o abandono de uma lógica formal, politiza ou despolitiza um
filme? Até que ponto o espectador é atingido por uma orientação desse tipo?
A volta à realidade, ou a procura de uma realidade, personagem a procura
de uma justificação da existência? Um novo caminho, uma nova linguagem, “Em A$suntina das Amerikas, o formalismo não é possível, isto é, não sigo uma
um líder? lógica formal, mas uma política, isto é, uma lógica política. Não me importa
o resultado imediato, mas a reunião em torno de um objetivo a alcançar. É
“Não quero ser um líder, um mestre, um mestre escola. Mas um homem que põe indispensável localizar nessa nossa disposição uma tentativa de lograr uma
em questão a minha própria atividade. Ainda (que com todas as dificuldades nova maneira de agir diante do cinema, uma maneira que obrigue o espectador
de mercado), quero refletir sobre o cinema ou sobre a minha posição no ci­ a modificar sua maneira de apreender os filmes. Uma maneira que obrigue
nema. Isso porque escolhi uma política de fazer filmes políticos. Embora o espectador a diferenciar o que é um filme sobre política (uma A confissão
pareça um jogo real de palavras, eu optei pela real contestação dentro da qualquer) e um filme político (O Rei da Vela do Zé Celso). A política de fazer
pseudocontestação que sobrevive no cinema. filmes políticos é, evidentemente, diferente da política de fazer filmes sobre
Explicando melhor: “fazer cinema, assim como comprar um livro, é um ato política. Um filme sobre a política segue a regra de não quebrar a regra do
politico, ou seja, fazer da política de fazer filmes um programa de ação. Isto formalismo, enquanto um filme político repensa e recria a política de fotograma
é fazer cinema não se diferencia de chegar numa praça pública, representar a fotograma, um fotograma que é produto de uma teoria grupal que, a cada
Brecht e evitar uma manifestação elitista gangrenada. Eu não sou um cine­ filme, a cada fotograma, é modificada, repensada, atualizada.”
asta e sim faço cinema. Amanhã em lugar de fazer cinema, eu poderei estar Até onde essa política atua em nossos cineastas, em termos de análise do
representando os poemas de Mayakovski, no sacrosanto audtório de qualquer nosso processo histórico?
universidade. Um verdadeiro cineasta é tão solitário quanto um dedo solitário
que se arrepende no meio de um gesto de rebeldia.” “É nesse sentido que Uirá, São Bernardo, O Rei da Vela e A$suntina das Amérikas
são filmes políticos, filmes históricos, onde a história se dessacraliza, sai do
Uma posição de participação, isto é, o cinema como fazendo parte de um gabinete boroIento das revistas de atualidade e dos livros de recherche para
todo. O todo em relação direta com público, ou seja, o filme politizado, vivido, sua própria formulação. Isto é: A$suntina filme político é um dado histórico, e a
existido. Como situar essa penetração em nosso meio? história em ação, em movimento, em contínuo movimento dialético, num fluir
“Que fazer, se o filme é o supositório cultural do mundo moderno? O cinema é sempre ou seja: a história sendo vivida à medida que é feita. E isso é A$suntina,
uma bandeira rota, que continuara sempre rota, mas que e preciso empunhar, um filme que foi feito e vivido intensamente a cada novo momento. É um
mesmo a custa do sacrifício de não fazê-lo. Não dá pra transformar os tempos, grito de vida contra morte. Um filme sofrido analíticamente a 24 quadros por
mas dá pra despertar as consciências até ontem domadas por Hollywood. Já segundo. Este filme se chama A$suntina das Amerikas, mas poderia também
é alguma coisa, neste azul lago da tranquilidade latina. Isso é o meu cinema. se chamar: Uirá, O Rei da Vela, Guerra Conjugal, O Passe Livre ou O Casamento.
Isso é A$suntina das Amerikas. Um filme Político na política do existir e resistir.” São filmes novos no meio deste universo envelhecido, empobrecido, falido. A
falência transatlântica da cultura ocidental.”
Brecht foi citado, em uma praça pública. A expressão brechtiana, a estrutura
de situações, caminha junto com o seu cinema? Em que medida?

“Sinto a presença de Brecht na formulação e na prática do meu cinema. No


Jardim das Espumas, já salientava que mais e mais Brecht estava ao meu lado.
Não o Brecht autor, mas o Brecht teórico, o Brecht da conceituação do V-Effekt.
A conceituação do anti- formalismo”.

172 173
Lui cinema
Silvio Back

Um filme corsário

De repente, desfraldadas e coruscantes imagens de um filme paleolitico,


remanescente de um tempo que parecia soterrado pela excitação do tilintar
da caixa registradora e pelo alegre concubinato cultura e consumo. Nesse
horizonte, a indagação lapidar: hoje e possível dar a volta por cima?

Quem grudar o olho num binóculo, pode até se assustar: mais um filme Super
8, com todo seu pacote de retórica e falácias? Analu Prestes saracoteia a
exuberância do corpo antes de abrir uma garrafa que bóia na praia. Dentro, uma
verdadeira aquarela do Brasil. Tudo premeditado e a reversão das expectativas:
A$suntina das Amérikas, terceiro longa-metragem de Luis Rosemberg (ainda
inédito, aliás, como os demais, O Jardim das Espumas e Imagens), remonta-
nos, isto sim, aos melhores exemplares rebeldes da produção superoitista de
urn par de anos atrás. A$suntina das Amérikas, a reflexão grudenta em meio
a uma certa poluição sonora mas concernente de como um cineasta solitário
se digere enquanto luta contra a deserção, o adesismo e a descapitalização de
propostas. Ou, o retrato falado, a careta nacional, uma espécie de flagrante
tomado de um útero cósmico, captando o país das lantejoulas ao intestino
grosso. “O cinema é uma invenção sem futuro” (Lumière). “Todo mundo faz
cinema mas poucos fazem filme.” Rosemberg.

À medida que esta insólita nau cinematográfica se aproxima da costa, algumas


impressões iniciais se confirmam, e se erigem outras, inescrutáveis, como a
pedir escafandro para decifrá-las. Surpreendente, A$suntina das Amérikas
traz à tela brasileira um erotismo enclausurado por um discurso politico-
ideológico dela ausente antes por outras razões, do que enjôos inquisitoriais.

São três, quatro ou cinco sequências absolutamente contagiosas, discutíveis,


mas as mais contagiosas e libertárias destes anos em que temos colocado
dezenas de simulacros de homens e mulheres nas camas e palanques dos nossos
filmes. Recorrer a Pasolini não será extemporâneo quando entendermos em
A$suntina das Amérikas que se navega nas mesmas águas de Eros, Tanatos e
política, tão caudalosas nos filmes do mestre assassinado. Wilhelm Reich, à
moda cabocla, inoculado da febril energia dos trópicos. História, contracultura,
lendas, sagas, cordel e gozações, álibi para desencaminhar aquele espectador

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perfeitamente acomodado à sociabilidade do cinema. Cinema sinônimo de O Bandido da Luz Vermelha
“chá das cinco”. Cinema nota dez em comportamento e asseio.
José Lino Grünewald (Correio da Manhã, 13 de maio de 1969)
Ancorado diante de nós, A$suntina das Amérikas é um filme insolente, com
uma atriz debochada, com um ator irritante, com anjos, mães, dançarinas,
esqueletos, malfeitores e fantasmas atrevidos, com um diretor cínico Radiotelecinejornal, O Bandido da Luz Vermelha, Godard e Oswald de Andrade,
(traves­t ido, em ocasiões as mais sórdidas). Nada é sério no fllme de Luis cultura e mass media, Chacrinha e Marshall McLuhan, invenção e antropofagia.
Rosemberg: quem pode tolerar uma frequente subversão entre os códigos A tribo em transe.
da superfície (imagisson) e os abissais (a cabeça do espectador)? Uma coisa O próprio cineasta, Rogério Sganzerla, informa que misturou tudo inten­
e inquestionável: Rosemberg e seu cometimentoestão a desafiar a mansidão cionalmente: o western, a chanchada, o policial, o mau-gosto, o bolero, o
dos mares cinematográficos deste país. Marolas, não, entendeu, Rosemberg? expressionismo, o deboche, o strip-tease. Acima de tudo, e intensamente,
Citação do filme: “Pra vocês, o cinema é apenas um espetáculo, pra mim é cinema.
uma concepção do mundo” (Maiakovski). O Bandido da Luz Vermelha projeta-se como um dos filmes de estrutura mais
original entre os que apareceram ultimamente. E, isto, não apenas com relação
ao modestíssimo cinema brasileiro (onde, amiúde, a “genialidade” amadorística
ou mimética pulula no vazio da eficácia), mas tomando-se em conta o cinema
em geral, ao nível internacional. Por isso mesmo, como obra de invenção,
de surpresas (e que seria do cinema sem a surpresa?), provoca também a
incompreensão, até o despeito. O novo é quase sempre e fatalmente polêmico
em essência: basta lembrar as barbaridades que, aqui e no exterior, foram
ditas, há pouco, sobre 2001: Uma odisséia no espaço, de Kubrick.

Rogério Sganzerla não só absorveu inúmeros contrários ou heterogêneos de


fatores culturais ou extra ou anticulturais, como, ao mesmo tempo, procurou
inserir alguns elementos ou influências desfechadas pelas criações de vanguar­
da em outras áreas: da poesia, do teatro, do próprio cinema. E, aí, então, cria um
cinema rítmico, de montagem, cuja estrutura exatamente refere-se àquela da
comunicação de massas: rádio, jornal, cinejornal, televisão, anúncios luminosos,
publicidade, tudo calcado pela tônica do sensacionalismo, utilizada como um
recurso objetivo de enfoque das camadas da realidade política e cultural. O
filme funciona como se fosse um painel móvel do comportamento genérico
do bas-fond, do crime, da política, variando a ótica, da classe média, para
a popular. Dentro disso, o leit-motiv se constitui nas façanhas do bandido
famoso, que sacudiu São Paulo, cuja mentalidade esquizofrênica era extrato
de uma formação fatalmente deturpada: “Já que não podemos fazer nada,
vamos avacalhar.” Ou seja, “bagunçar o coreto” até as últimas consequências.

Flashes, fatias de uma ação, quase nunca apresentada de modo completo. A


não-linearidade, porém sem qualquer emprego ou concepção de flash-back,

176 177
pois, este, por mais complexo e engenhoso que seja, reporta-se sempre, em Sina do Aventureiro
última instância, à anedota, à lógica formal de uma manifestação conceitual.
Luís Alberto Rocha Melo
Em O Bandido da Luz Vermelha encontramos aquele distanciamento objetivo do
autor, proporcionado pela técnica do documentário, e onde inexiste qualquer
orientação subjetiva do cineasta, a fim de dar um sentido ético à conjunção das Neste filme, Jaime é um jovem e solitário bandoleiro que vaga pelos povoados do
sequências, em suma, a formulação discursiva dentro da manga ou da cartola. interior praticando assaltos. Em uma fuga, leva um tiro e é acolhido pela família da
Existe apenas a opção inicial pela seleção dos elementos. E, aí mesmo, foi ingênua Dorinha, por quem se apaixona. Mas o destino reserva surpresas amargas
que se revelou a personalidade do autor, a sensibilidade em inovar, em usar o para o aventureiro. Por amor a Dorinha, Jaime se entrega à polícia. Ao sair da prisão,
mau-gosto com bom-gosto. A começar pelos intérpretes: Paulo Villaça compõe, contudo, tem de enfrentar o sanguinário Xavier.
para o bandido, um tipo notável; Helena Ignez, como Janete Jane, impecável O primeiro longa-metragem escrito e dirigido por José Mojica Marins não
em todos os momentos; Luiz Linhares dá ao delegado um comportamento pertence ao gênero que o consagrou, o filme de terror. A sina do aventureiro
inesquecível; Pagano Sobrinho, como o político, leva às últimas consequências é um faroeste caboclo (ou “western feijoada”, na definição do pesquisador
o aspecto primitivo e carnavalesco da conduta de muitos líderes populares; e, Rodrigo Pereira), vertente prolífica, mas desprezada pela historiografia clássica
fabulosa, a caracterização de Roberto Luna, como Lucho Gatica. Em ambientes do cinema brasileiro. Insere-se, portanto, na tradição mais ampla dos filmes
do gênero, só mesmo o cinema americano consegue gerar uma fauna idêntica. rurais de aventura, território que compreende nomes tão heterogêneos quanto
Restaria dizer que, apesar de tudo, o filme não deixa de ser uma hommage às significativos como E. C. Kerrigan, Amilar Alves, Luiz de Barros, Humberto
aberturas que o Godard, de À Bout de Souffle ou Pierrot le Fou, deu ao cinema, Mauro, Eurides Ramos, Antoninho Hossri, Victor Lima Barreto, Carlos Coimbra,
sendo que, através da última fita, foi deveras citado no final por Sganzerla, Wilson Silva, Osvaldo de Oliveira, Reynaldo Paes de Barros, Edward Freund,
quando troca o enroscar-se nas bananas de dinamite de Belmondo pelos fios Ozualdo Candeias, Tony Vieira e Rubens Prado.
elétricos de Villaça. O intuito de dialogar com um dos gêneros mais populares do cinema aponta
o que a direção de cinema significa para Mojica: comunicação direta com o
público. Daí ser o próprio cinema o seu principal universo de referências. Se em
1958 – ano em que o filme foi lançado – isso ia de encontro ao ideário nacional-
popular defendido pelos realizadores independentes ligados à esquerda, por
outro lado, antecipava em pelo menos dez anos a corrente contracultural dos
cineastas ditos marginais, marcada pelo culto ao filme de cinema: “O natural
é tão falso como o falso. Somente o arquifalso é realmente real”, diria Rogério
Sganzerla, com admiração, sobre o criador de Zé do Caixão.

O “arquifalso” faroeste A sina do aventureiro compreende em sua estrutura


melodramática uma série de clichês facilmente assimiláveis por amplas ca­
madas do público espectador de filmes, leitor de folhetins e de histórias em
quadrinhos ou fiel seguidor de rádio/telenovelas. Embora esse compromisso
com o gênero pudesse ser relacionado a uma “camisa-de-força”, é justamente
o oposto que se dá com Mojica: é o clichê que o redime, é a “prisão” do gênero
que o liberta.

178 179
Tal relação visceral com o cinema certamente contribuiu para conferir ao Cassy Jones, Magnífico Sedutor
filme uma aparência, algo inusitada, de antologia. Enquadramentos e cenários,
Andrea Ormond
diálogos e músicas e determinadas soluções de montagem são colhidos de um
vasto repertório comum. Reorganizados por Mojica, às vezes dão a impressão
de unidade desamparada: Jaime, o aventureiro do título, nos é apresentado “Este filme é dedicado a pessoas que souberam rir e viver: Izaura Miranda
em uma espécie de trailer dentro do filme; grandes elipses modificam a carac­ Person, Jorge Affonso Bouquet, Sergio Porto, Glauce Rocha, in memoriam”.
terização de alguns personagens, mas mantêm intocados tantos outros; as
canções (cujas letras foram escritas pelo próprio Mojica) condizem com o A inscrição, vista na tela, representa uma elegia ao que iremos ver. A ambienta­
estilo épico, mas não são dóceis a ponto de se submeter à narrativa. ção, Rio de Janeiro, 1972. Imagina-se a Banda de Ipanema e a turba dos corsos
que passassem fora de época e viessem saudar o lendário Luiz Sérgio Person,
O que dá organicidade a esse conjunto desigual de atrações é que tudo parece diretor deste e de São Paulo S/A, um dos maiores filmes da cinematografia
estar submetido a um paradoxo fundamental: A sina do aventureiro é decupado brasileira. Nos concentremos em Cassy Jones e, ao fundo, desenhem o fim da
como um filme mudo e dialogado como um programa radiofônico. Entre o
tarde no Arpoador, as mocinhas de biquíni e um nonsense genial, que mataria
primado da imagem e o reinado da palavra, afirma-se um estilo.
John Cleese e Eric Idle de inveja.
Em A sina do aventureiro não há meios-tons, sutilezas ou perfumaria. Tudo
Produção da “Lauper Films”, os créditos, ironicamente, são escritos em inglês.
se passa como se o cinema fosse um território a ser constantemente violado.
Person também assina o roteiro, com Joaquim Assis; a música é de Carlos
Mojica assina não só a direção, o argumento e o roteiro como também a decu­
Imperial – o adorável e nojento canalha que faz ponta como o próprio e é
pagem. Esse destaque soa estranho, mas faz sentido: corresponde à ambição
citado várias vezes pelos atores. A “Eastmancolor” presta o auxílio luxuoso
de Mojica Marins em apossar-se da linguagem, abrindo veredas e clarões com
e – repetindo os anúncios da época – presenciamos “uma explosão de cores”
a violência convicta que é própria apenas daqueles espíritos originais, para
e uma decoração chiquérrima – com direito a cama d’água com peixinhos
quem a criação não é circunstância, mas caminho sem volta.
dentro – que remetem ao que de mais fervilhante havia naquele alvorecer
da década de 70.

Close no quadro de Tom e Vinícius pendurado num bar, são os pais espirituais
do que havia de belo num mundo perdido. Cassy Jones (Paulo José) é o garotão
boa vida, o sedutor magnífico, tremendo cara “bacanérrimo”, diz a canção
hipnotizante de Imperial. Rouboult – pronuncia-se “Rubú” – é interpretado
por outro ícone ipanemense, Hugo Bidet. O homem que, em 1977, dispararia
um tiro contra o céu da boca, sobreviveria, avisaria o crítico Alex Vianny – seu
vizinho – e iriam juntos ao hospital, para morrer nove dias depois. Mas em
Cassy Jones ele é o impagável Oliver Hardy de Paulo José, o amigo taradão,
que aparece vestido de rajá indiano, pianista com peruca marrom, motorista
de caminhão e, inexplicavelmente, torna-se de um dia para outro o produtor
musical do show de Clara (Sandra Bréa, em sua estreia no cinema).

Percebam então que esse clima de caos é contagiante e vertiginoso. Uma


mistura de deboches e referências – uma delas às comédias da Mutual, com
direi­to a bigodão slapstick de Mack Sennett. Outra, ao teatro de revista, ence­

180 181
nado por Clara, dando a deixa para a entrada de Grande Otelo, em rápida Panca de valente: a crise que a rainha não viu
aparição como bilheteiro.
Jairo Ferreira
Depois de um momento delusional em que pretende largar as mulheres e dar
um tempo, Cassy assiste à Clara na tv, em um quiz show à moda de O Céu é o
15 de novembro de 1968
limite, apaixona-se e persegue-a até seu palacete em Santa Tereza. No programa
ficamos sabendo que a menina é orfã, mora com Dona Frida (Glauce Rocha) O cinema brasileiro precisa de metalinguagem, isto é, filmes salutares que
e é muito cortês. consigam criticar a própria situação crítica, a total redundância, o caos desin­
formativo criado pelo cinema estrangeiro no País. Como se já não bastasse o
Glauce praticamente não fala – este é justamente o gancho de sua personagem,
western ianque a fundir a cuca das massas, tinha que vir o bangue-bangue al
assassinada numa confusa troca de tiros. O tom não é de tristeza, Frida era
sugo made in Italy, bom como a vulgar espionagem nascida do esvaziamento
megera, cai ao chão com uma fisionomia e linguagem corporal hilariantes. Este
do thriller. Facílimo ver a razão do êxito de tais besteiras; o público sempre
seria seu último trabalho no cinema. Faleceu em 1971, aos 41 anos de idade.
se babou com a irrelevante taxa de informação (dez por cento) dos filmes
Contraditório falar de uma comédia e enxergar nela um obituário acoplado. hollywoodianos. Caminha-se agora para a total entropia: o público já se con­
Mas o filme guarda em si estas lembranças, além de ser fruto do trabalho, tenta com cinco por cento de informação. Quando chegarmos ao zero por
sempre primoroso, de Person, falecido tragicamente. Herdeiro de uma fábrica cento a coisa explode.
criada pelo avô, dedicou-se ao emprego por um tempo, abandonou tudo e foi
Panca de Valente, bangue-bangue nacional, 100% chacriniano, cartaz do Cine
estudar na Itália.
Olido, direção de Luiz Sérgio Person! Estamos na pista de Django, Gringo,
Deu aulas na célebre Escola Superior de Cinema São Luiz, frequentada por Cjamango, et cetera, todos esses invasores de papelão que “apenas” sufocam
jovens como Carlos Reichenbach – de quem produziu o primeiro curta, Esta rua nosso mercado cinematográfico, para-não-dizer-que-não-falei-das-minhocas
tão Augusta” (1966), um exercício para sala de aula. Dirigiu, dentre outros filmes, (não das flores “conteudistas” de Vandré) que fazem nascer na mentalidade
São Paulo S/A (1964) – obra-prima, conjugando a crítica à industrialização, das massas. A vaca fria: LSP dispensa apresentação, responsável que foi por
antevista seminalmente por René Clair em A Nós A Liberdade, ao existen­ duas fitas excepcionais – São Paulo S/A e O Caso dos Irmãos Naves, mas seu
cialismo sartriano –, e O Caso dos Irmãos Naves (1967), cujo roteiro lembra Panca é 59 produto de circunstância (atenção: o país está em crise econômica,
os piores delírios trash, mas baseia-se em eventos reais, ocorridos durante o querem expulsar os marcianos, isto é, os partidários de Márcio Alves...), coisa
fascismo psicopático do Estado Novo. que Person deixou claro numa entrevista recente. Só que é perigoso endossar
uma frase ambígua como essa de que “o cinema morreu; viva o cinema”. Que
Não vejo em Cassy Jones o que parte da crítica acostumou-se a denominar é isso?!
“pornô-chique”. Novamente encontro dubiedade nestas classificações. Cassy
Jones é, sim, um happening, calcado no melhor do bom humor e no porto seguro Gênios como Dali têm o direito de ser palhaços, Welles pode aparecer em fitas
que representava a batuta de L. S. Person por detrás das câmeras. Instados de Maciste, Buñuel pode ser gagá, Godard pode destruir o cinema. Pombas,
pela pergunta, assim responderiam os gaiatos, amigos de Bidet, do canto Person também pode abraçar o diretor de Coração de Luto: há dúvidas se ele
qualquer de um bar hoje fechado e esquecido no tempo: “Cassy Jones? Cassy precisava se meter nessa de Jerônimo, anti-herói míope, feio, burro, etc. A fita
Jones é um desbunde, puro desbunde”. é uma contrafação, mas podia ser boa, como interessante foi a esculhambação
de Candeias em O Acordo. Houve descambada.

Pode-se descer ao nível de “Tereziiiiiiiinha”, mas como etapa comunicatória,


para daí elevar o repertório popular. Há o perigo de se afundar nessa descida.
Já se viu o que aconteceu com Panca, que teve que ser muito valente para

182 183
enfrentar certa platéia já escaldada de certo tipo de chanchada. No interior Reichenbachianas brasileiras:
talvez vá bem. Depositamos em Person um voto de confiança, que ele volte A cinepoesia corsária de Carlos Reichenbach
logo a fim de superar tal fase cafônica, coisas de engrenagem, não é Person?
Jair Tadeu da Fonseca
Por isso é preciso ver Panca de Valente, que é a nossa (do povo) miopia e fraqueza
para enfrentar os cowboys que bebem vinho ao invés de uísque. E não será
comendo bolo e bebendo gasolina Esso que expulsaremos o tigre de papel, porque estou arrependido
quá-quá-quá... vomitarei nas portas das igrejas
nos umbrais dos cemitérios defecarei
A classe-média, os bancários, os funcionários públicos, balconistas, funileiros, que tudo é pó diz o Testamento
sapateiros, todos esses e outros milhões de assalariados sabem que não é moleza e se quiserem saber por que estou arrependido
trabalhar, quando se detesta o tipo de trabalho e quando é preciso continuar não me perguntem.
para não morrer de fome. E é por isso que todos eles podem compreender a Orlando Parolini
situação de Person, cineasta, mas também um assalariado, que tem a nossa
sociedade semi-industrial consumista agrícola como patrão e que não nos Ao singrar os mares cinematográficos, Carlos Reichenbach pirateia, de modo
permite fazer o que gostamos, como Person confessa ter entrado na Panca muito próprio, tudo o que interessa à realização de seus filmes e diz respeito ao
por não poder realizar as fitas que gostaria. cinema: os gêneros populares e ainda o que escapa à categorização, desafiando
os estilemas do que se agruparia sob uma rubrica genérica. Só Carlão foi capaz
Welles em Depois que Tudo Terminou: “Não há emprego honesto”. A engrenagem de realizar o cruzamento de Godard com a pornochanchada. Antropofagica­
nos condiciona. O trabalho, ainda desapaixonado, é nosso: joguemos a empáfia mente, o próprio é o apropriado, o que é cinepoeticamente assimilado de modo
no lixo para reconhecer que Panca de Valente merece ser prestigiado, por ser a se transformar em outra coisa. No seu caso, a memória do cinéfilo e crítico
brasileiro, por ser honesto, que Jerônimo de índio de guerra é sinônimo, não é também a do leitor de poesia e ficção literária, a transfigurar elementos de
é mestre Dupret? E abaixo a ditadura do faroeste italiano! sua vivência pessoal e geracional em termos das pulsões eróticas, por exemplo,
Jairo Ferreira e convidados especiais : críticas de invenção: os anos do São que dão a ver as relações sociais de outros modos, possibilitando reconsiderar
Paulo Shimbun / organização Alessandro Gamo. – São Paulo: Imprensa Oficial o estético em termos de sua acepção mais básica, ampla e interessante: a
do Estado de São Paulo: Cultura – Fundação Padre Anchieta, 2006. relativa aos sentidos físicos, em seu papel fundamental na produção de sentidos,
significados. Nesse sentido (que significa também direção), o percurso do
corsário Reichenbach passa pelos Cahiers du Cinéma e pela Boca do Lixo, levando
em conta tanto o valor da experimentação estética e da formulação intelectual
refinadas quanto a transvaloração do que seria desprezível, por sua grosseria
e eficácia formulaica.

Carlão mostra que a produção da Boca não é só de lixo, e que mesmo este pode
e deve ser reciclado. Essa boca é capaz de mastigar antropofagicamente partes
importantes do corpo do Brasil, mas serve também ao gozo erótico. A iniciação
cinematográfica (e erótica) de grande parte do público brasileiro, do final da
década de 1960 aos anos 80, se deu através de um gênero popular, que pode
ter comido um pouco a comédia erótica italiana, mas transou mesmo foi a
sacanagem popular brasileira, seja por sua brejeirice, seja por sua hipocrisia, em
torno principalmente dos mitos da malandragem e da sensualidade do patropi,

184 185
que já caracterizavam a chanchada, gênero popular ao qual se acrescentou o (...) transita do campo para a cidade e muda constantemente de parceiros e
pornô. Sendo que este último termo vem do grego, significando prostituta, o ambientes. O filme a acompanha, dando oportunidade para Reichenbach exercitar
cinema no Brasil assume com a pornochanchada a precariedade e venalidade todo o seu vasto conhecimento cinematográfico, pois muda de gênero, e influência
com que se estabelece o gênero, marcado pela prostituição, tanto no sentido de cineastas, conforme a ambientação em que a personagem central encontra-se.
literal quanto metafórico do termo – o que vem a dar na mesma –, a qual só Viajamos assim pela ambientação do cinema japonês, pelo cinema policial e pelas
pode ser superada pelo amor. Não por acaso, Reichenbach, formado em parte influências decisivas de Samuel Fuller e Jean-Luc Godard. O filme, inclusive, é
na Boca do Lixo, como tantos cineastas brasileiros, chamou um de seus filmes atravessado por uma certa ironia, na forma como o cinema brasileiro tratou,
de Amor, palavra prostituta. A partir daí, podemos falar de “cinema, palavra exaustivamente, o meio rural. 3
prostituta”, pensando tanto na necessidade de que haja dinheiro para sua
Já no seu primeiro filme, o documentário de curta-metragem Esta rua tão
realização, e em sua vendagem, em geral, quanto no fato de significativamente
Augusta (1966-69), Reichenbach ataca corsariamente o filme institucional,
a Boca do Lixo ter sido também zona de prostituição, além de polo importante
através da paródia, ao relacionar imagens da rua famosa a uma voz locutora que
de realização cinematográfica. De todo modo, é importante para Reichenbach
à primeira audição soa como tradicional, mas se revela também literalmente
a ideia de que a prostituta é digna de amor, seja ela personificação alegórica
como “canto paralelo” ao das imagens e outros sons desse curta, de apenas
do cinema, uma pessoa, ou personagem de cinema. Em Godard, referência
sete minutos. O qual já apresenta, assim, algumas das características da
importante para nosso cineasta, essa equação entre cinema, amor e prostituição
cinematografia que Carlão iria constituir, entre elas a ironia (a começar pela
é também das mais importantes. Quanto ao tipo de filme que caracterizou a
ambiguidade do título do filme), o erotismo (“cuidado com as curvas”, “esta
Boca, escreve Jairo Ferreira em “Carlos Reichenbach – sinergia da cineutopia”:
rua tão mulher”), a presença de personagens fora dos padrões (o pobre pintor
“O filme de sexo é uma questão de abertura de diafragma”.1 Com isso o parceiro
de minissaia – Waldomiro de Deus – que expõe seus quadros pop-primitivos
de Carlão, na crítica e na realização cinematográficas, ao brincar eroticamente
na rua), elementos da cultura pop (os ritmos musicais, o comportamento
com as palavras, chama a atenção para o fato de a linguagem do cinema de
juvenil, as danças da moda) e o papel importante da poesia, embora num
seu colega se voltar para si mesma, e se autoquestionar, para questionar algo
cenário adverso (“a revolta do poeta”, encarnado por Lindolf Bell em sua
a que ela também se refere, para fora de si mesma.
“catequese poética”). Difícil não relacionar o papel do poeta ao do cineasta, em
Sendo o cinema moderno algo que se produz principalmente por cineastas seu percurso corsário na cidade grande, retomado em outro curta excelente,
cinéfilos, é compreensível que se dobre ainda mais sobre si mesmo, ao consi­ Sangue Corsário, de 1979, em que Orlando Parolini fala seus poemas videntes
derar o arquivo que se forma com a(s) história(s) do cinema, e lide com seus pelas ruas de São Paulo, em contraponto aos comentários do personagem
códigos e materiais expressivos, para alcançar o extracinematográfico, de ficcional de um bancário.
outro modo e outra forma, sem a falsa ingenuidade calcada no ilusionismo
Parolini (1936-1991) foi um importante poeta do que seria a contracultura
naturalista da referencialidade fácil. Isso é bastante evidente em grande
de São Paulo, em seus primórdios, junto com Jorge Mautner, Roberto Piva e
parte da obra de Reichenbach. Como escreve Zulmira Ribeiro Tavares, Lilian
Cláudio Willer, e atuou em diversos filmes importantes de Reichenbach, como
M: Relatório Confidencial (1975) é
Amor, palavra prostituta (1980), O império do desejo (1981), Filme demência
(...) em sentido amplo, uma paródia ou utilização crítica e burlesca de várias (1985) e Alma corsária (1993). Admirado pelo cineasta, Parolini, que nunca
modalidades formativas: a do filme de aventuras, da reportagem policial, do publicou seus ótimos poemas em livro, também foi cinéfilo e crítico de cinema.
comercial de publicidade para tevê. O filme absorve essa variedade na utilização Por outro lado, Reichenbach sempre admitiu a importância da poesia em
do espaço visual contemporâneo dentro da ficção cinematográfica.2 seus filmes, seja através das muitas citações feitas neles, seja por tematizar
o poético, através de muitos personagens de poetas, e mesmo através do
José Mário Ortiz observa a respeito de Lilian M, que a protagonista lançamento ficcional de um livro de poemas, que é o mote de Alma corsária
1
FERREIRA. Cinema de invenção, p. 65.
2
TAVARES. Apud MIRANDA. Dicionário de cineastas brasileiros, p. 273. 3
ORTIZ. In: RAMOS, MIRANDA. Enciclopédia do Cinema Brasileiro, p. 451.

186 187
(1994), com sua glosa de Augusto dos Anjos e Cesário Verde, reencarnados apocalíptica do “Canto da desaparição”, presente em Invenção de Orfeu, obra
espiritualmente por dois amigos poetas, os quais lançam Sentimento Ocidental extraordinária de Jorge de Lima. Do mesmo livro é a epígrafe de Viagem ao fim
na Pastelaria Espiritual, que ficaria na Boca do Lixo. Entretanto, o mais im­ do mundo (1967), de Coni Campos (“Pra unidade deste poema,/ele vai durante a
portante nisso tudo é o tipo de cinepoesia propriamente audiovisual que temos, febre”), nesse primeiro filme tropicalista que evidencia a formação religiosa do
por exemplo, na extraordinária sequência dos “dedos de Deus”, na qual se cineasta. Campos também cita Jorge de Lima, em sua fase dos poemas negros,
traduz essa expressão apenas com imagens e sons, nesse belo filme sobre a no filme Um homem e sua jaula (1969), com “Essa Negra Fulô”, ao lidar com a
memória pessoal, geracional e histórica, a fantasia e a reminiscência poética. relação erótica entre um artista branco, em crise, e sua empregada negra. Por
sua vez, Glauber inspira-se na “Fundação da Ilha”, de Invenção de Orfeu, ao se
Segundo Reichenbach, a poética de Pratolini remete “à idéia de evangelização”,4 referir à Terra Prometida pelo profeta messiânico de Deus e o Diabo na Terra
mesmo quando ela soa como blasfêmia, ou exatamente por isso. Para a com­ do Sol (“a Ilha”), e cita Mário Faustino, o grande discípulo de Jorge de Lima,
preensão dessa estranha mística poética em jovens artistas irreverentes, como em Terra em transe (1967), sendo alguns de seus versos a legenda alegórica
Reichenbach, marcados pela contracultura, nos anos 60 e 70, chamo a atenção do filme e o epitáfio do poeta, que é o protagonista, em seu transe e canto de
para a importância do poeta modernista Jorge de Lima (1893-1953) em suas morte, ou transe de desencanto místico, o qual coincide com o transe de sua
obras. Católico e surrealista, neobarroco e classicista, poeta do tumulto lírico, terra, após o golpe sofrido por ela.
Jorge de Lima é a eminência parda dessa geração de artistas, em que é muito
evidente a influência de Oswald de Andrade e sua antropofagia poética. No “Amo Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário Faustino”, disse Reichenbach em
entanto, a crítica não soube reconhecer o papel fundamental de Jorge de Lima entrevista, cujo trecho reproduzo abaixo:
na prosa poética caudalosa e escandalosa do pioneiro Jorge Mautner, bem
como nas obras de poetas tão diferentes como Pratolini e Torquato Neto, e de Mas não acredito nesse negócio de angústia da influência. O prazer é tratar
de todas as delícias da influência. Viram parte integrante da obra, disparam
cineastas tão diversos como Glauber Rocha, Paulo César Saraceni, Fernando
o gatilho do processo criativo. Uma coisa fascinante no ato de escrever, e isso
Coni Campos e Carlos Reichenbach. No caso deste último, em O Império do desejo,
eu posso falar porque escrevo meus roteiros, é você deixar se influenciar pelo
Pratolini encarna Di Branco, um poeta exibicionista de palavras, objetos e de
que está ao seu redor. O que torna fascinante você pensar em um novo filme é
seu sexo, que numa praia disputada pela especulação imobiliária prega um
deixar ser tomado pelo que você está lendo e ouvindo. Ser comido pelo que está
evangelho antropofágico. Ao comer – literalmente – uma bela jovem maoista,
consumindo, culturalmente falando, a delícia de reaver os seus gostos. Amo
que antes também havia oralizado seu evangelho vermelho, o poeta-profeta
Jorge de Lima, Murilo Mendes e Mário Faustino, que dizia “quando baixa o
tem como legenda um verso de Jorge de Lima, que vemos inscrito na parede
de seu barraco a ser incendiado: “Vim e irei como uma profecia”. 5 branco absoluto, abra o livro de seu poeta preferido”. Não como cópia, mas como
gatilho, apenas para disparar o imaginário. 6
Em O desafio, filme de 1965, dirigido por Saraceni, versos de um livro queimado
de Jorge de Lima também estão no cenário de uma casa incendiada, e é É muito significativo que para esse disparo do imaginário fílmico seja impor­
encontrado por uma intelectual em crise, após o golpe de 1964 – o que nos tante a poesia, sendo alguns poemas do grande parceiro modernista de Jorge
permite considerar, em filmes diferentes, essas alusões ao apocalipse, no de Lima, Murilo Mendes – outro católico do caos –, tema de Murilolendo, ví­
qual se projetam os pequenos desastres singulares e as grandes catástrofes deo de pouco mais de três minutos feito por Carlão para a TV Cultura, em
da história. “Aqui é o fim do mundo” constitui o refrão de “Marginália II” (um 1997. Também necessário a esse disparo do imaginário, o acesso ao arquivo
dos hinos da Tropicália, parceria de Torquato Neto e Gilberto Gil) – citação cinematográfico, sempre atualizado por Reichenbach, vem junto à ativação
da memória e da reminiscência, sendo a imaginação e a fantasia algo que
resulta dessa mistura de vivências. Em relação às muitas citações fílmicas na
4
REICHENBACH apud CALIXTO. Orlando Parolini: o evangelho segundo o inconformismo obra reichenbachiana, além das referidas, todas de caráter (auto)reflexivo e
e o desespero. In: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2010/10/serie-sonda-nas-jazi-
das-orlando.html
5
O verso correto do "Poema do cristão", de Jorge de Lima, é "venho e irei como uma profecia".
LIMA. A túnica inconsútil. In: LIMA. Poesias completas – Volume II, p. 51. 6
http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevistacarlos-reichenbach/

188 189
crítico-amoroso, que servem sempre à constituição de outra coisa, chama a Referências bibliográficas
atenção as de Rogério Sganzerla. Por exemplo, A ilha dos prazeres proibidos, já
pelo título, dialoga com A mulher de todos (1969), que também é referência para CALIXTO, Fabiano. “Orlando Parolini: o evangelho segundo o inconformismo
O império do desejo, o qual cita por sua vez Bang bang (1971), de Andrea Tonacci, e o desespero”. In: http://revistamododeusar.blogspot.com.br/2010/10/serie-
com um dos bandidos apresentando a voz da dublagem de Fred Flintstone – o sonda-nas-jazidas-orlando.html
que acentua o farsesco anti-ilusionismo de ambos os filmes, pelo pastiche do
FERREIRA, Jairo. Cinema de invenção. São Paulo: Limiar, 2000.
desenho animado e da comédia maluca. Sem falar nos estilemas de Godard,
Samuel Fuller e Orson Welles, nos clichês da ficção policial barata, no pop-rock LIMA, Jorge de. A túnica inconsútil. In: LIMA, Jorge de. Poesias completas –
da trilha sonora, além de clássicos da música americana em discos antigos. Volume II. Rio de Janeiro: Aguilar/INL-MEC, 1974.
Trechos do Relatório Hite na boca de uma atriz de pornochanchada, que encara MIRANDA, Luiz Felipe. Dicionário de cineastas brasileiros. São Paulo: Art, 1990.
a câmera e esculhamba o contrafeito garanhão de O império do desejo, devem MIRANDA, Luiz Felipe, RAMOS, Fernão. Enciclopédia do cinema brasileiro.
ter surpreendido o espectador aficcionado do gênero, ao receber outro tipo São Paulo: Senac, 2004.
de lição sexual, de um ponto de vista feminino. Aliás, os filmes de Carlão, REICHENBACH, Carlos. Entrevista à Revista Cult. “Carlos Reichenbach – Lição
sempre foram de grande consideração pelo gênero feminino, mesmo quando das coisas”. In: http://revistacult.uol.com.br/home/2010/03/entrevistacarlos-
lidaram com um gênero cinematográfico marcado pelo machismo, e que se -reichenbach/
lembre sempre desse grande cineasta, por seu empenho em construir uma
extraordinária cinedramaturgia sobre a vida e o imaginário das mulheres
trabalhadoras do Brasil, principalmente com Anjos do arrabalde: As professoras
(1986), Garotas do ABC (2004) e Falsa loura (2007). A relação desses filmes
já não se dá evidentemente com a pornochanchada – os gêneros artísticos
também morrem –, mas com o melodrama, de uma maneira ainda muito
original, e ainda amorosa em relação ao gênero feminino.

Para concluir, as referências ao Sganzerla cineasta, nos filmes de Carlão,


também nos levam a considerar as três seguintes categorias, criadas pelo
jovem crítico Sganzerla, já em 1965: “cineastas da alma”, “cineastas do corpo”,
e – para desconstruir a dicotomia que ele mesmo propôs – “corpo mais alma”.7
Esses conceitos influenciaram bastante os jovens cinéfilos Reichenbach e Jairo
Ferreira, sendo que este empregou tais categorias na classificação dos filmes
do amigo.8 As categorias classificatórias propostas por Sganzerla ajudam a
entender os inclassificáveis filmes de nosso cineasta, seu lugar especial na
cinematografia brasileira e mundial, não por eles se encaixarem nelas, mas
pelo tipo de instabilidade que eles provocam, por serem cinema de corpo
mais alma corsários. A alma é corsária do corpo; o sangue, corsário da alma.
O mais é cinema.

7
SGANZERLA. Textos críticos 1, p. 73-88.
8
FERREIRA. Cinema de invenção, p. 73.

190 191
novo mas re-embaralhava seus termos e alargava seus horizontes numa di­
Boca do Lixo, Sociedade Anônima:
reção insuspeitada.
notas sobre O Bandido da luz vermelha
Mateus Araújo1 Nas suas declarações da época sobre o filme, o próprio Sganzerla salientou
a mistura deliberada de gêneros, o empréstimo a muitas fontes, o diálogo
com um leque amplo de manifestações culturais, de Oswald de Andrade à
Lançado em 1968, O Bandido da luz vermelha foi muito bem recebido pelo chanchada, das peças de José Celso às canções de Caetano Veloso, de Primo
público, e saudado com entusiasmo por boa parte da melhor crítica brasileira. Carbonari ao rádio, de Mack Sennett a Orson Welles. Ele reconheceu de ante­
Embora não tenha deslanchado à época uma carreira internacional digna do mão o diálogo com Glauber, Saraceni e Mojica. As primeiras críticas entusiastas
seu alto valor estético, o filme atravessou as décadas gozando de merecido ao filme em 1968, do já maduro José Lino Grunewald e dos então jovens
prestígio junto à crítica brasileira, que ainda o considera como uma das obras- Carlos Reichenbach, Jairo Ferreira e Ismail Xavier2, entre outros, também
primas do nosso cinema moderno. Revisto hoje, quase trinta e cinco anos insistiram nestes diálogos. Estudos posteriores mais detalhados, do próprio
depois do seu lançamento, O Bandido conserva toda a sua audácia, e continua Ismail Xavier (o melhor dentre eles), de Jean-Claude Bernardet e de outros3,
a nos impressionar. também os incluíram em seu exame, que se concentrou mais especificamente
na relação do Bandido com Terra em transe num capítulo de uma proveitosa
Sem estatísticas de bilheteria à mão, e salvo algum lapso, eu me arriscaria a dissertação de mestrado de Alexandre Agabiti Fernandez4.
ver nele o momento mais feliz do diálogo travado pelo cinema de invenção
brasileiro com a sensibilidade popular, objeto da mostra “Cânone e contra- Olhando retrospectivamente para os filmes que o cinema brasileiro produziu
cânone” do forumdoc.bh 2012 curada por Ewerton Belico. Outros filmes naquela década, Terra em Transe também me parece, dentre todos, o que mais
terão alcançado públicos maiores, outros talvez tenham se aproximado mais antecipa a exuberância e o tumulto criativos do primeiro longa de Sganzerla,
do gosto popular, mas nenhum outro filme brasileiro com o seu nível de além de ser nele objeto de um diálogo constante. Sem repetir, porém, as
exigência estética me parece ter chegado a uma transfiguração tão exuberante análises e as comparações de Ismail, Jean-Claude e Alexandre, assinalo aqui,
da sensibilidade popular quanto aquela operada pelo Bandido. Ao invés de tolher ao modo de um adendo, um outro diálogo igualmente forte do Bandido, não
suas possibilidades expressivas e seu vigor político, o mergulho em tal universo mencionado nas declarações de Sganzerla e não explorado, que eu saiba, por
franqueou a Rogério Sganzerla, sua equipe e seus atores, a liberação de uma ninguém: o diálogo com São Paulo Sociedade Anônima (Luís Sérgio Person,
esfuziante energia criativa, fundada num uso muito arguto do estereótipo, 1965), que ele admirava e chegou a elogiar enfaticamente em dois artigos de
do clichê e da caricatura. 1965 aos quais voltarei.
*
Tão precoce quanto o Glauber Rocha de Barravento, Sganzerla tinha 22 anos
incompletos ao estrear em longa metragem com o Bandido, um filme tão ambi­ Esquematizando um pouco, podemos dizer que o Bandido conjuga uma narrati­
cioso em 1968 quanto Deus e o Diabo na terra do céu em 1963-4. Assim como va grotesca da carreira de um criminoso desglamurizado com uma exploração
Deus e o Diabo e Terra em Transe, O Bandido agenciava com mão de mestre
elementos muito heterogêneos, para produzir uma síntese poderosa de toda
2
As de Grunewald (Correio da Manhã, 13/5/1968) e Reichenbach (não publicada na época) são
transcritas por Jairo Ferreira em seu capítulo “Rogério Sganzerla, ponto de partida avançado”
uma vertente da melhor arte brasileira de então - misturada a manifestações (em Cinema de Invenção, São Paulo: Max Limonad, 1986, p.59-78). A do próprio Jairo, também
culturais abastardadas, como a imprensa sensacionalista, as emissões radio­ transcrita ali, saiu sob o título “Rogério, O bandido” no São Paulo Shimbun de 12/12/1968, e
fônicas popularescas etc. O resultado sui generis foi uma espécie de chanchada foi recolhida no seu volume póstumo Crítica de Invenção (São Paulo, Imprensa Oficial, 2006),
p.64-66. A de Ismail, “Lixo sem limites”, saiu no Diário de São Paulo de 10/12/1968.
política, de caráter pop e tropicalista, que dialogava com o legado do cinema 3
Ver sobretudo os capítulos de Ismail, “O Bandido da luz vermelha: alegoria e ironia” (em Alego-
rias do subdesenvolvimento, São Paulo: Brasiliense, 1993, p.71-108; reedição CosacNaify, 2012),
e de Jean-Claude, “O mundo sem limite” (em O Vôo dos anjos, São Paulo: Brasiliense, 1992,
p.155-218).
1
Doutor em filosofia pela Université de Paris I (Sorbonne-Panthéon) e pela UFMG, bolsista da 4
Os delírios do obscurantismo: Diálogos com Terra em Transe. São Paulo: ECA-USP, 1991, cap. 2,
FAPESP de pós-doutorado na USP. “Quando tudo está a um passo do Mandrake”, p.56-110.

192 193
audaz do espaço urbano de São Paulo. Neste, ganha destaque a região da Boca e a mediocridade disfarçados pelo complexo de seriedade e honestidade que
do Lixo (com sua galeria de personagens, seus padrões de sociabilidade e sua marcavam o cinema paulista.
iconografia típicos), embora as cenas rodadas ali se alternem bastante, no
fluxo da narrativa, com cenas filmadas noutros pontos da cidade, e mesmo Seus elogios ao filme de Person (em meio à crítica aos paulistas) soam hoje como
fora dela, para que se componha a aventura do bandido em ação. A conjugação um anúncio em filigrana do programa estético do Bandido, que ele finalizaria
destas duas séries, cerzidas pela montagem virtuosística de Sylvio Renoldi dois anos e meio mais tarde6. No primeiro artigo, depois de salientar “o ritmo
e cimentadas por uma mixagem sonora muito rica, produz uma vigorosa trepidante dos rolos iniciais, o verismo de muitas situações, a desenvoltura
alegoria do subdesenvolvimento. da montagem”, Sganzerla se concentra na cenografia urbana do filme: “Décor
escolhido: o maior possível – uma cidade de cinco milhões de habitantes.
No fluxo, vamos detectando in nuce uma série de obsessões que o cinema de Personagem: um integrante da sociedade anônima, um homem medíocre. [...]
Sganzerla não cessaria de reelaborar: as referências a Orson Welles, Glauber O diretor preferiu – isto é, filmou – a multiplicidade do décor, decompondo
Rocha, Jimi Hendrix e Noel Rosa, o diálogo com Godard e o cinema de gênero, a cidade em bares, escritórios, ruas, apartamentos reais, confiando o resto
a predileção por personagens caricatos (a bicha desvairada, as dançarinas de à montagem. [...] sua estrutura baseia-se nas rupturas de tempo, nos cortes
strip-tease, os políticos demagógicos, os delegados boçais etc). elípticos, que acumulam um grande número de personagens, locais, ações.
Glauko Mirko Laurelli realizou uma das mais brilhantes montagens do
Pensando em voz alta, em crise de identidade e sentindo-se fracassado, o nosso cinema. [...] O que mais interessa formalmente nesta obra é o seu tom
bandido de Sganzerla parece ecoar, em chave derrisória, os intelectuais de documental – absolutamente estranho nos filmes realizados em São Paulo.
esquerda Marcelo e Paulo Martins, que protagonizavam, respectivamente, O documentário-ficção, solução para o cinema paulista?” (TC 1, p.104-5).
O Desafio (Paulo César Saraceni, 1965) e Terra em Transe, em plena crise de
identidade provocada pela ressaca pós-golpe mostrada nos filmes. Mas ecoa No segundo artigo, Sganzerla retoma o elogio, notando que Person “filmou
também o engenheiro Carlos de São Paulo Sociedade Anônima, que também era S. Paulo como nunca até então – e como não será tão brevemente repetido –
mostrado numa crise de frustração existencial. Se Carlos, porém, se movia filmando tudo. Conduziu a equipe por mais de 88 ambientes diversos, empregou
no horizonte do decoro pequeno-burguês, tentando acertar no amor e na os mais ousados e modernos recursos, teve que recorrer a estilos diferentes.
profissão em meio ao ambiente desfavorável da metrópole alienante, o bandido [...] Hoje, vinte anos depois do neorrealismo e cinco depois da Nouvelle Vague,
emerge do coração da pobreza e aposta no crime, “deixando o vagão correr o cinema nas ruas, câmera na mão, ainda constitui novidade – pelo menos
solto”, como dizia Paulo Martins num outro contexto. Ao invés de se debater para a cinematografia local. Nossa maior fotogenia sempre esteve aí, diante
com o subdesenvolvimento, o bandido o encarna. de todos: no ritmo diário das avenidas, no tráfego congestionado, nas galerias
e bares. Quando iniciou sua película, Person percebeu a situação. Por isto
A radicalização pelo Bandido dos resultados de São Paulo S.A. fica ainda mais insistiu nas filmagens diretas, em exteriores reais. Soube levar a câmera às
nítida no que concerne ao tratamento do espaço urbano da capital paulista. ruas, fazê-la andar com estilo” (TC I, p.106-7). Insatisfeito com sua vida, o
Crítico atuante desde 1964, quando estreou aos 17 anos sua colaboração no protagonista de São Paulo S.A. pertenceria a uma imensa sociedade anônima,
Suplemento Literário do Estado de São Paulo, Sganzerla estava muito atento ao uma “pátria de frustrados inconscientes”, marcados por um desespero nascido
modo como a metrópole vinha sendo filmada pelos cineastas paulistas, que da engrenagem social. Person o trataria à européia: “assim, a estrutura da
ele critica duramente nos artigos “Filmar São Paulo” I e II (SL do ESP, 16 e fita corresponde aos conflitos da consciência hesitante do personagem, com
23/10/1965)5. No entanto, ao desancar os cineastas paulistas, Sganzerla saúda seus avanços e rupturas resnaisianos, suas obsessões fellinianas, com seu
com entusiasmo São Paulo S. A., um “filme-exceção” que, “além de reunir a cansaço antoniônico e, finalmente, com sua inquietação personiana” (p.108).
cosmologia local, vem redimir esta capital e sua cinematografia” (TC 1, p.101).
Segundo Sganzerla, o filme de Person estaria rompendo com o provincianismo
6
Exatamente como ocorrera nas críticas de Glauber de 1963 aos filmes de cangaço, que tra-
5
Reunidos agora em Rogério Sganzerla, Textos Críticos, Vol. 1 [doravante TC 1], Florianópolis, ziam em filigrana o programa de Deus e Diabo que ele rodaria naquele mesmo ano. Cf. Revisão
Ed. da UFSC, 2010, p.101-5 e 106-111. crítica do cinema brasileiro (São Paulo, Reed. Cosac & Naify, 2003, p.91-96).

194 195
Com este tratamento, Person teria desmistificado a cinematografia paulista, Depois de ver a metrópole do alto, o filme de Sganzerla mergulha em seus
enfrentando seus cacoetes, cuja velha tradição porém não morreria da noite bairros, esquinas, ruas, avenidas, casas, bares, calçadas, etc, multiplicando as
para o dia. “Por outro lado, mais cedo ou mais tarde a coisa explode (refiro- locações de modo a explorar horizontalmente sua geografia urbana e retomando
me ao ‘algo’ que há alguns meses começa a pairar na atmosfera paulistana, assim o gesto de Person que o jovem crítico elogiara no artigo de 1965. Entre
algo impreciso, ameaçador e, ao mesmo tempo, animador) e, com ela, talvez o muitos outros exemplos possíveis, lembremos os planos de prédios do centro
inevitável: gente nova por aí, nas ruas, apartamentos e automóveis – exatamente vistos ao fundo de viadutos [figuras 3 e 4].
como Person, com câmera na mão, a registrar o homem e a paisagem, a filmar
São Paulo” (Ibid.).

Ora, esta explosão anunciada ali veio exatamente com o Bandido, que radicaliza
o aporte de Person no tratamento do personagem medíocre em crise e do
espaço urbano de São Paulo, numa empostação menos europeizante e mais
sensacionalista, mais ligada à energia da cultura de massas, do filme noir, do
Godard de Acossado, de Mojica, das emissões radiofônicas etc. Em todo caso,
na cadeia de transformações que leva do velho cinema paulista criticado por
Sganzerla à novidade do seu Bandido, São Paulo S.A. nos aparece como um elo 3. (São Paulo S.A.) Carlos anda num viaduto. 4. (O Bandido) Um outro é enquadrado de viés.
decisivo, que Sganzerla não chegou a mencionar em 1968, mas cuja presença
em seu filme salta aos olhos. O motivo visual inicial do formigueiro de prédios parece ecoar em planos bem
posteriores de um formigueiro de carros estacionados, nova versão de uma
Como São Paulo S.A., o Bandido estabelece uma ampla exploração do espaço
figuração da metrópole como acumulação e gigantismo. Em plongée acentuada,
paulistano, alçando a metrópole à condição de co-protagonista do seu relato
o plano de Sganzerla nesse caso parece retomar ainda mais diretamente, como
ao lado do protagonista masculino (secundado pelas mulheres com as quais
uma homenagem consciente ou uma reminiscência, um plano de Person, não
ele se envolve). Otimizando as qualidades que elogiara em 1965 no filme de
por acaso situado na única sequência de São Paulo S.A. em que Carlos resvala no
Person (ritmo trepidante, verismo das situações, excelência da montagem,
crime, ao roubar um carro depois de abandonar mulher e filho num rompante
tom documental, multiplicação dos décors reais), Sganzerla trata a cidade
de fuga da vida familiar e profissional que o sufocava [figuras 5 e 6]
de modo bem próximo ao adotado pelo filme do colega: depois de um breve
prólogo, O Bandido mostra São Paulo de cima, com sua silhueta de prédios
altos desenhando uma selva de pedra, exatamente como em São Paulo S.A.
[figuras 1 e 2].

5. (São Paulo SA) Estacionamento no qual 6. (O Bandido) ... e seu eco n’O Bandido .
Carlos acaba roubando um carro...

Como se não bastassem todas estas convergências na construção de uma


iconografia da metrópole, o Bandido recorre ainda ao contraponto fornecido
1. (São Paulo SA). Vista aérea inicial da Selva 2. (O Bandido). Vista aérea análoga de São Paulo.
de pedra. pelas sequências do protagonista com uma namorada nas praias do litoral
paulista, as mesmas em que víamos Carlos escapar também com namoradas

196 197
em São Paulo S.A. Novamente, a própria composição da paisagem parece a de Inversão simétrica do olhar, espécie de contracampo do olhar de Carlos para
uma cena de Person, como se o bandido e sua namorada viessem invadir, de o lixo, de onde surge o bandido (resumindo sua vida em over, ele diz ter saído
carro, a mesma paisagem litorânea escolhida por Carlos e as suas, com a ilha jovem da favela do Tatuapé, pouco depois das primeiras cenas com crianças num
no centro do quadro e os prédios da orla no horizonte, ao fundo à esquerda. lixão) e de onde olha abmundo paulistano ao longo de todo o filme. Personagens
[figuras 7 e 8]. e cenas mostrados por Person em ambientes decorosos de classe média ganham
uma versão socialmente degradada no filme de Sganzerla, cujo pólo maior
de atenção é a região da Boca do Lixo: ao delegado discreto que vem apurar o
suicídio de uma ex-namorada de Carlos em São Paulo S.A., o Bandido responde
com a figura de Cabeção, um delegado desonesto e truculento envolvido com
criminosos; à cena de Carlos e Ana num salão dançante de caráter familiar, o
Bandido responde com outras em boates de strip-tease mal frequentadas na
Boca; se São Paulo S.A. traz cenas particulares com transmissão radiofônica
da corrida de São Silvestre ou com trecho de faroeste visto na tv dos pais da
7. (São Paulo SA) 8. (O Bandido)
noiva de Carlos, O Bandido inteiro se organiza como uma emissão radiofônica
sensacionalista, e chega a se definir como “um faroeste do terceiro mundo”...
Se estes exemplos, entre outros possíveis, nos bastam para evidenciar a clara
retomada pelo Bandido de uma iconografia que já aparecia em São Paulo S.A., Este submundo privilegiado por Sganzerla parece mais capaz ao mesmo tempo
resta notar que o exame das convergências buscadas por Sganzerla permite de lhe franquear uma alegoria do subdesenvolvimento. Deste, o filme de
perceber também, a contrario, a novidade do seu aporte. Person exprimia uma consciência amena, enquanto o de Sganzerla revela
uma consciência catastrófica, para lembrarmos uma distinção formulada por
Na verdade, Sganzerla vai mais fundo ao mergulhar numa cidade que parecia Antonio Candido noutro contexto7.
escapar ao olhar e ao perímetro do protagonista do filme de Person. A São
Paulo do Bandido é um pouco a que o filme de Person entrevia de relance mas A rigor, a questão do subdesenvolvimento não chega a aparecer como tal no
não chegava a apreender. As cenas mais emblemáticas deste deslocamento filme de Person (cuja história recua aos anos 1957-1961, em plena esperança
são talvez as que mostram pobres em lixões de beira de estrada. Enquanto desenvolvimentista), e os problemas da metrópole paulista pareciam nele
Carlos os via de fora e de relance ao passear de moto por uma periferia com mais ou menos os mesmos das metrópoles de países desenvolvidos: alienação,
Ana na garupa [figura 9], a câmera do Bandido mostra várias cenas de meninos angústia, solidão etc. É no filme de Sganzerla que o subdesenvolvimento
num lixão, agora visto de dentro, e deixando entrever de relance os carros vem mais claramente à tona, chegando a ser mencionado na banda sonora
que passam ao fundo [figura 10]. (como tal ou intercambiada com a noção de terceiro mundo) e ganhando uma
figuração visual e sonora bem carregada.

Assim, do heroísmo impotente dos intelectuais de esquerda que protagonizam


O Desafio (Marcelo, caracterizado por Sganzerla como “um bandido em
potencial que não chega a se manifestar inteiramente”8) e Terra em Transe (Paulo
Martins) à vilania vulgar do bandido boçal do filme de Sganzerla, a transição
passa também pelo engenheiro medíocre que tenta ser feliz na metrópole

9.(São Paulo SA). Os pobres no lixão vistos por Carlos 10. (O Bandido). Agora, num perfeito os pobres do
7
Cf. Antonio Candido, “Literatura e subdesenvolvimento”, em A educação pela noite & outros
e sua namorada, que passavam de moto pela estrada. lixão é que observam os carros passando na estrada ensaios. São Paulo: Ática, 1989. p.140-162.
de onde Carlos outrora os observara.
8
R. Sganzerla, “O marginal Paulo César”, em TC 1, p.114 (publicado originalmente no Suplemento
Literário do Estado de São Paulo, 21/05/1966.

198 199
pré-golpe de São Paulo S.A. Invertendo a aspiração heroicizante dos que se Diferente de você/Como você: mulheres pós-coloniais
opunham ao golpe nos filmes de Saraceni e Glauber, o bandido de Sganzerla e as questões interligadas da identidade e da diferença.
parece contrariar também a segunda parte da divisa de Hélio Oiticica “Seja
marginal, seja herói” (1968), ficando apenas com a primeira. Respondendo a Trinh T. Minh-ha
uma frase de Marcelo que dizia ter “a certeza de não poder fazer nada” para
modificar a realidade, o bandido de Sganzerla proclama que “quando a gente
Levantar a questão da identidade é reabrir a discussão da relação sobre o ser,
não pode fazer nada, a gente avacalha, avacalha e se esculhamba”. Seu filme
o outro e suas representações das relações de poder. Identidade é entendida
avacalha também o registro sério-dramático que vigorava nos de Saraceni e
no contexto de uma certa ideologia de dominação e por muito tempo tem
Person, para mergulhar fundo na dimensão do grotesco que aflorava no de
sido uma noção que se baseia no conceito de um núcleo autêntico essencial
Glauber. Ele reagia assim de modo original às três fontes cinematográficas
que permanece escondido para a consciência do ser e que requer a eliminação
brasileiras mais imediatas de sua aventura criativa.
daquilo o que é considerado estranho ou não verdadeiro, quer dizer, o não-
Nesta reação, se afirma ainda uma outra inversão que o cinema de Sganzerla Eu, o outro. Para um tal conceito, o outro é quase inevitavelmente oposto ao
não cessaria de desenvolver ao longo dos anos: a atribuição da potência do “eu” ou submetido à sua dominação. Está sempre condenado a permanecer
pensamento a personagens anti-intelectuais. Se o Marcelo do Desafio e o como sombra, enquanto intenta tornar-se seu equivalente. Identidade, assim
Paulo Martins de Terra em Transe eram escritores, trabalhavam na redação compreendida, pressupõe que uma clara linha divisória pode se interpor entre
de jornais ou revistas, preparavam livros e recitavam literatura, o bandido o “Eu” e o “não-Eu”, ele e ela; entre profundidade e superfície ou identidade
de Sganzerla revela um repertório mais precário, maltrata ostensivamente vertical e horizontal; entre nós aqui e os outros, lá. Quanto mais distante desta
ortografia e gramática, mistura gibis, volumes da Enciclopédia britânica e essência, menos a mulher tende a ser encarada como capaz de preencher seu
O Pequeno príncipe na matula roubada (quando não joga livros pela janela) e papel como “Eu” verdadeiro, a real Negra, Indiana ou Asiática, a real mulher. A
enuncia ao longo do filme um festival de disparates. Mas, apesar de tudo, é busca por uma identidade é, portanto, geralmente uma busca pelo ser perdido,
ele quem exprime com mais vigor a experiência do subdesenvolvimento, à puro, autêntico, verdadeiro, real, genuíno, original, por vezes situada num
qual o filme alude várias vezes. Nenhum traço de intelectualismo em seu processo de eliminação de tudo o que é considerado outro, supérfluo, falso,
comportamento, assim como nenhum no dos outros protagonistas dos filmes corrompido ou ocidentalizado.
posteriores de Sganzerla (A mulher de todos, Copacabana mon amour, Sem essa
Se identidade refere-se ao conceito de igualdade total do ser, o estilo de um
Aranha, Abismu.) – até o ciclo wellesiano, em todo caso.
“Eu” contínuo que permeia todas as mudanças a que se submete, então a
Nestes filmes, são os personagens de extração popular, ou vindos do cinema diferença se mantém na fronteira que distingue uma identidade da outra.
popular (Jorge Loredo, Wilson Grey, Mojica), no mais das vezes caricatos e Isto quer dizer que, por essência, X deve ser X, Y deve ser Y, e X não pode
extravagantes em seu carisma, que pensam em voz alta sobre o Brasil e o mundo. ser Y. Aqueles que saem por aí gritando que X não são X e que X podem ser
São eles, e não os intelectuais imediatamente reconhecíveis, que recebem a Y geralmente terminam em um hospital, num centro de reabilitação, num
incumbência de enunciar um pensamento sobre o Brasil, com resultados campo de concentração ou numa reserva. Todos os desvios do pensamento
frequentemente extravagantes. Deste ponto de vista, além de inaugurar a dominante - isto é, da crença em uma essência permanente da mulher e em
série, O Bandido é talvez o filme mais feliz de Sganzerla no recurso a este gesto sua identidade invariável, embora frágil, cuja perda é considerada um perigo
anti-intelectualista, pois as fórmulas e aforismos dos seus personagens (do especificamente humano - pode facilmente encaixar-se em categorias de
protagonista, mas não só) são também um emblema do subdesenvolvimento, insanidade mental ou subdesenvolvimento mental.
e não apenas uma tentativa de pensá-lo de dentro.
Provavelmente é difícil para uma mente normal e investigadora reconhecer que
buscar é perder, pois buscar pressupõe uma separação entre quem busca e o que
é buscado, o “Eu” contínuo e as mudanças que vivencia. Poderia a identidade,

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de fato, ser vista de outra maneira que não como um subproduto do manuseio ramente, gostaria de dar o exemplo do véu como realidade e metáfora. Se o
da vida pelos homens, mas um subproduto que, de fato, se refira não mais a ato de revelar possui um potencial libertador, assim também o possui o ato
um padrão consistente de igualdade e sim a um inconsequente processo de de encobrir. Tudo depende do contexto em que tal ato é conduzido, ou mais
alteridade? Como se deve perder, manter ou ganhar uma identidade feminina precisamente, em como e onde as mulheres veem a dominação. A diferença
quando é impossível para mim assumir uma posição fora desta identidade não deve ser definida nem pelo sexo dominante nem pela cultura dominante.
que eu presumidamente alcancei ou sinto? Diferença em tal contexto é o De modo que, quando as mulheres decidem erguer o véu, pode-se afirmar que
que enfraquece a ideia mesmo de identidade, distinguindo infinitamente as elas o fazem desafiando o direito opressivo dos homens sobre seus corpos. Mas
camadas da totalidade que formam o “Eu”. quando decidem manter ou colocar o véu antes retirado, elas podem fazê-lo
de modo a reapropriarem seu espaço e a reivindicarem uma nova diferença,
A hegemonia trabalha nivelando diferenças, padronizando contextos e expec­ desafiando uma padronização centralizada, hegemônica e sem gênero.
tativas nos mínimos detalhes de nossas vidas cotidianas. Desmascarar este
nivelamento de diferenças é, portanto, resistir àquela noção de diferença Em segundo lugar, o uso do silêncio. Dentro do contexto da fala das mulheres,
que, definida nos termos do Mestre, frequentemente recorre à simplicidade o silêncio tem muitas faces. Assim como o véu das mulheres acima mencionado,
das essências. o silêncio somente pode ser subversivo quando se liberta do contexto mas­
culinamente definindo de ausência, escassez e medo enquanto territórios
Divisão e conquista têm sido seu credo por séculos, sua fórmula de sucesso. femininos. Por um lado, corremos o perigo de inscrevermos a feminilidade
Mas um terreno diferente da consciência tem sido explorado já há algum como ausência, falta e vazio ao rejeitar a importância do ato de enunciação.
tempo, um terreno em que divisões claras e oposições dualísticas tais como Por outro lado, reconhecemos a necessidade de colocarmos as mulheres ao lado
ciência versus subjetividade, masculino versus feminino podem servir como da negatividade e de trabalharmos em tom suave, por exemplo, em nossas
pontos de partida para uma proposta analítica, mas não são mais satisfatórias, tentativas de enfraquecer os sistemas de valores patriarcais. O silêncio é tão
senão totalmente impalpáveis, para uma reflexão crítica. comumente colocado em oposição ao discurso. O silêncio como uma vontade
Frequentemente me perguntam sobre aquilo o que alguns espectadores iden­ de não dizer ou uma vontade de desdizer, como uma linguagem própria, tem
tificam como falta de conflitos em meus filmes. Conflitos psicológicos são sido parcamente explorado.
geralmente equacionados com substância e profundidade. Conflitos no con­ Em terceiro lugar, a questão da subjetividade. O domínio da subjetividade
texto ocidental geralmente servem para definir identidades. Minha sugestão entendido como horizonte sentimental, pessoal e individual oposto a um
para esta “falta” é: deixe a diferença substituir o conflito. A diferença como é horizonte ilimitado, societário, universal e objetivo é por vezes atribuído a
entendida em muitos contextos feministas e não-ocidentais, e a diferença como ambos as mulheres, o outro dos homens, e aos nativos, o Outro do Ocidente.
uma base para meu trabalho fílmico, não é oposta à igualdade, não é sinônima Às vezes parte-se do pressuposto, por exemplo, que o inimigo das mulheres é
de separação. Diferença, em outras palavras, não incita necessariamente o o intelecto, que suas apreensões da vida podem apenas girar em torno de uma
separatismo. Existem diferenças assim como similaridades no próprio conceito panela, de uma fralda de bebê ou das questões do coração. De modo similar,
de diferença. Alguém poderia ir além e dizer que diferença não é o que produz por séculos e séculos fomos ensinados que a mentalidade primitiva pertence
conflitos. É o que está além e lado-a-lado ao conflito. Isto é, onde a confusão à ordem emocional e afetiva, e que é incapaz de elaborar conceitos. O homem
frequentemente emerge e onde o desafio pode ser lançado. Muitos de nós primitivo sente e participa. Ele não pensa realmente, ou raciocina. Não possui
ainda nos apegamos à diferença não como uma ferramenta da criatividade conhecimento, “nenhuma ideia clara ou mesmo qualquer ideia sobre a matéria e
para questionar as múltiplas formas de repressão e dominação, mas como uma a alma”, como Levi-Bruhl afirmou. Hoje, esta racionalidade persistente assumiu
ferramenta de segregação, de exercício de poder à base de essências raciais e múltiplas faces, e seus resíduos ainda permanecem facilmente reconhecíveis
sexuais. A diferença do tipo apartheid. a despeito da refinada retórica daqueles que a perpetuam.
Deixem-me pontuar alguns exemplos de práticas de tal noção de diferença.
Existem várias, mas selecionarei três e talvez possamos discutí-las. Primei­

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Vale mais uma vez mencionar aqui a questão entre estrangeiro e nativo nas outros povos do terceiro mundo, nunca deixa de parecer questionável para
práticas etnográficas. A visão do nativo. O mundo mágico que suporta dentro muitos. A questão relativa à escolha da temática se levanta imediatamente,
de si mesmo um selo de aprovação. O que pode ser mais autenticamente outro às vezes por curiosidade, e outras, por hostilidade. O casamento não é mais
do que uma alteridade pelo outro, ela mesma? Ainda assim, toda fatia do bolo possível para o par exterior/interior, ou seja, objetivo versus subjetivo, e
doada pelo Mestre vem acompanhada por uma lâmina de dois gumes. Os sim algo entre o interior/interior – objetivo no que já se presume enquanto
africanistas dizem prontamente “você pode tirar um negro de um arbusto, objetivo. Portanto, sem conflito real.
mas não pode tirar o arbusto do negro”. O lugar do nativo é sempre bem
delimitado. A realização fílmica “correta”, por exemplo, implica geralmente A interdependência não pode ser reduzida a uma mera questão de escravização
que africanos mostrem a África, os asiáticos a Ásia, e os euro americanos, o mútua. Ela também consiste em se criar um terreno que não pertence a ninguém,
mundo. Alteridade tem suas leis e interdições. Uma vez que você não pode nem mesmo ao criador. A alteridade se transforma em empoderamento,
tirar o arbusto do negro, é o arbusto que lhe é de fato devolvido, e como as diferença crítica, quando não se é dada, mas recriada. Além disso, onde deveria
coisas geralmente caminham, é também deste mesmo arbusto que o negro cessar a linha divisória entre estrangeiro e nativo? Como deveria ser definida?
deve fazer seu território exclusivo. E ele deve fazê-lo com a total consciência Pela cor da pele, pela língua, pela geografia, pela nação ou pelas afinidades
de que uma terra infértil dificilmente é um presente. Pois, no tocante às políticas? E aqueles com identidades hifenizadas e realidades híbridas? É
desigualdades de poder, mudanças geralmente requerem que as regras sejam pertinente notar, por exemplo, uma matéria jornalística publicada na revista
reapropriadas de modo que o Mestre seja derrotado em seu próprio jogo. O Time intitulada “O Jogo Louco das Cadeiras Musicais”. Neste curto relato a
doador vaidoso gosta de doar quando há o entendimento de que ele está em atenção é voltada para o fato de que na África do Sul as pessoas são classificadas
posição de retomar quando bem quiser e quando quer que o presenteado por raça e lugar dentro de nove categorias raciais que determinam onde
ouse trespassar os limites por ele estabelecidos. Este último, no entanto, elas podem viver e trabalhar, embora possam ter sua classificação alterada
não vê nisso nenhum presente. Vocês imaginam algo como um presente que se provarem que foram colocadas no grupo errado. Logo, em um anúncio
é tomado? Então este último somente vê débitos, que uma vez devolvidos, de reclassificação racial pelos Ministros de Assuntos Internos, sabe-se que
devem permanecer como propriedade sua - embora a propriedade da terra nove brancos tornaram-se mestiços, 506 mestiços tornaram-se brancos, dois
seja um conceito estranho a ele, o qual se recusa a assimilar. brancos tornaram-se Malaios, 14 Malaios tornaram-se brancos, 40 mestiços
tornaram-se negros, 666 Negros tornaram-se mestiços, e a lista continua.
Através da resposta do público e expectativas sobre seus trabalhos, cineastas Contudo, diz o ministro, nenhum negro se inscreveu para tornar-se branco.
não-brancos são por vezes informados e relembrados em quais fronteiras E nenhum branco tornou-se negro.
territoriais devem permanecer. Uma nativa pode falar com autoridade so­
bre sua própria cultura, e é referida como a fonte da autoridade naquele No momento em que a nativa dá um passo além do “interior”, ela não é mais
assunto – não necessariamente como uma cineasta, mas como uma nativa, uma mera nativa. Ela necessariamente olha para dentro, a partir de fora. Nem
meramente. Este endosso automático e arbitrário de uma nativa como fonte de exatamente a mesma, nem precisamente outra, ela se mantém no patamar
conhecimento legitimado sobre suas heranças culturais e seu meio-ambiente indeterminado no qual constantemente se move, para dentro e para fora.
somente exerce seu poder quando se trata de uma questão de validação de Subvertendo a oposição interior/exterior, sua intervenção é necessariamente
poder. É um malabarismo paradoxal da mentalidade colonial. O que um estran­ aquela de ambas quase-nativa e quase-estrangeira. Ela é, em outras palavras,
geiro espera de um nativo é de fato a projeção de um sujeito onisciente que esta “outra” ou “mesma” inapropriadas que se move sempre entre dois gestos,
este habitualmente reputa ser ele mesmo e os seus pares. Nesta relação eu/ ao menos: o da afirmação “Eu sou como você” enquanto persiste na diferença
outro não reconhecida, contudo, o “outro” tende sempre a permanecer como dela mesma e na lembrança de que “Eu sou diferente” enquanto desconstrói
a sombra do “eu”. Porquanto, não realmente, nem exatamente onisciente. todas as definições de alteridade alcançadas.
Que um branco faça um filme sobre os Goba de Zambezi, por exemplo, ou Isto não quer dizer que o histórico “Eu” possa ser obscurecido e ignorado e que
sobre os Tasaday das florestas tropicais das Filipinas, dificilmente parece a diferenciação não possa ser produzida, mas que este “Eu” não é unitário, que
surpreender a qualquer um, mas que um membro do terceiro mundo filme

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a cultura nunca foi monolítica e está sempre mais ou menos relacionada ao O vermelho não se faz de sangue
julgamento do sujeito. Diferenças não somente existem entre uma estrangeira
Aurore Délavy
e uma nativa – duas entidades. Elas também operam no interior da própria
estrangeira ou da nativa ela mesma - uma entidade singular. Ela sabe que
não pode falar delas sem falar de si mesma, da História sem falar de sua Então, da ausência regular, um silencioso apelo. Febre ou fruto? Ainda não,
história, também sabe que não pode fazer um gesto sem ativar o movimento talvez. Seria antes preciso repetir os mesmos gestos diariamente ao afiar o
incessante da vida alimento como se um samurai no ar sua espada. Até um esquecimento. Tudo
A subjetividade no trabalho neste contexto de um outro inapropriado difi­ existe e está sobre a mesa, mas quem? Trabalhar cansa e a louça e amassa.
cilmente pode ser submetida ao velho paradigma subjetividade/objetividade. Depois, nada mais foi. Destruir? Não aqui, aqui não há ódio nem vingança.
Uma acurada consciência do sujeito político não pode ser reduzida a uma – Embora tampouco haja relógio, sinto muito: tempo. Há, pelo menos. É quando
questão de autocrítica em direção ao autodesenvolvimento, nem de auto- você chega. Senão, com os cacos deste copo que sem querer caiu, o que acontece
complacência em direção à autoconfiança. Tais diferenciações são úteis para em mim toda vez que há lua. De qualquer jeito, você não verá, não vê, você.
uma compreensão da subjetividade enquanto, digamos, ciência do sujeito ou Pra quê, se já sabe, se crê que? – Corta apenas. Ali, a lembrança do fogo. Água,
meramente relacionada ao sujeito, que tornam o medo da auto-assimilação placenta, mosto. O sangue que não escorreu, que tampouco coagulou, que
parecer absurdo. A consciência dos limites nos quais se trabalha não precisa sequer. – Deita, lembra?
apontar para nenhuma forma de indulgência quanto à parcialidade pessoal,
nem para a conclusão estreita de que é impossível entender qualquer coisa sobre Sangue não. Vermelho: vivo. Mas quem, quem se eu gritasse?
outros povos, uma vez que a diferença é de essência. Ao recusar a naturalização Com os cacos deste copo que fiz cair. Em minha ausência, não mais a lua.
do “Eu”, a subjetividade desvela o mito do núcleo essencial, da espontaneidade
e da profundidade da visão interna. Subjetividade, portanto, não consiste em
meramente falar sobre si mesmo, seja esta fala indulgente ou crítica. Em suma,
o que está em questão é a pratica de uma subjetividade ainda não ciente de
sua natureza constituinte, donde a sua dificuldade em exceder o par simplista
entre subjetividade e objetividade; uma prática de subjetividade que não
está consciente de seu contínuo papel na produção de significado, como se as
coisas fizessem sentido em si mesmas, de modo que a função do intérprete
consistiria somente em escolher dentre as diversas leituras existentes; que
ignora a representação como representação, isto é, a inter-realidade política,
sexual e cultural do realizador de cinema como sujeito, a realidade do filme
e a realidade do aparato cinemátográfico. E que ignora, por fim, a presença
deste inapropriado “outro” no interior de todo “Eu”.

Texto originalmente publicado por Center for Cultural Studies – UCSC.


Em: http://culturalstudies.ucsc.edu/PUBS/Inscriptions/vol_3-4/minh-ha.html

Tradução: Augusto de Castro


Revisão: Helga Prado e Roberto Romero – Vem, agora come sangrentamente essa carne; bebe de ternuras e sem mistérios
meus amar’gozos lábios.

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Depois, nada sempre existiu de instantâneo (Nem um grito) Jeanne Dielman e a travessia visual da espectadora
clique-claque
Roberta Veiga
sem querer
Um sonho uma folha seca entre as páginas de um livro uma palavra
fora de lugar a precipitação de um acontecimento É difícil falar de um filme cuja perplexidade da primeira assistência provocou um
Não a raridade de um debate fecundo na época, principalmente entre as feministas, e a complexidade
corpo;pau-brasil ensejou uma gama de análises rigorosas durante muito tempo. Jeanne Dielman
Coisas em que o vermelho só aparece no corte 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles (1975), de Chantal Akerman, é um filme
O que não chegou a ser sagrado (tampouco se fez de) .........flui imperceptível seco, que não se deixa habitar inteiramente. A estrutura parece simples, graças
; sua imagem usada mais tarde para vendar o vencido ao minimalismo da composição e a serialidade das sequências, no entanto, sua
relação com a narrativa, e a maneira como separa e ao mesmo tempo amalgama
cineasta, personagem e espectador, instiga o olhar analítico a descamá-la.
– Depois, nada mais foi
Dentre as várias camadas de possibilidades de exploração da obra, a que
compartilho aqui é aquela que não cessa de me inquietar: a da espectatorialidade.
Lanço, então, ao mesmo tempo um convite e um desafio, especialmente, às
espectadoras, de quebrar a aridez que Jeanne Dielman, em seu regime de
visibilidade, oferece e persistir no olhar. De sofrer a impossibilidade de ser
levada pelo filme, e não sucumbir à fadiga da atenção focada, mas realizar
esse exercício do ver tão preciso e controlado quanto as ações da diretora e da
personagem. A ideia é se deixar aprisionar para se apaixonar pelo ato de ver.
Ao lançar esse desfio, o meu é o de tentar explicar que contrato de visibilidade
é esse no qual a espectatorialidade exigiria ressalvas e regras?

Três dias da rotina de uma viúva transcorridos em grande parte no apartamento


onde mora com seu filho adolescente são acompanhados por uma câmera que
mantém quase sempre a mesma distância (a de um plano médio) e que oferece
os mesmos, pouquíssimos, pontos de vista. Trata-se de um enquadramento
primordial, como diria Ishagpour, aquelas grades rigorosas que emolduram
um modo de ver, muito geométrico e perspectivista, que contamina não só as
cenas, mas todo o filme, gerando uma ambiência que poderia ser resumida por
um fotograma a se reproduzir em abismo. Típico gesto de Chantal Akerman,
expressão de um cinema estrutural e corpóreo, profundamente contaminado
pelo serialismo de Robert Bresson, o minimalismo de Michael Snow, o hiper-
realismo de Andy Wharol, e o anti-ilusionismo de Godard, no qual o plano
formal é instituinte do sentido do qual depende toda a narrativa.

Durante três horas as muitas e mesmas tarefas, e ações domésticas, que


Jeanne executa são escrutinadas por uma câmera sem piedade, que fixa a
cena na moldura retangular da tela, e concede tempo mais que necessário

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para que cada uma delas se desenvolva por inteiro, para que cada gesto seja são sonegadas, que só podem ser presumidas como parte do repertório já
minuciosamente executado. Arrumar a cama, lavar os pratos, preparar a comida, mapeado dos tempos, cadências, métodos empregados nas outras atividades.
escovar os cabelos, dobrar as roupas, guardar as vasilhas, tomar banho, colocar Isso quer dizer que o extracampo mais forte do filme – a relação de Jeanne com
a mesa, limpar a banheira, engraxar os sapatos do filho... cenas corriqueiras, os homens, o momento do sexo, do orgasmo que poderia levá-la ao descontrole,
repetidas, e orquestradas de tal maneira que em sua semelhança definem o do prazer que enfim se manifestaria naquele corpo disciplinado – é incapaz de
primo enquadramento, ditam o ritmo do filme, bem como uma duração comum. retirar o espectador da prisão visual que ele ocupa junto com a personagem
Jeanne executa essas tarefas meticulosa e sistematicamente, de forma que e a diretora. Nesse sentido, o sexo não pode senão entrar nessa cadeia de
padrões recorrentes são percebidos – a força, o tempo e a precisão empregada, atividades controladas, contaminado que está pela frontalidade, repetição e
por exemplo, no modo de enfileirar os talheres, dispor os guardanapos, enxugar angulação das outras cenas, e portanto ser tomado como reprodução mecânica,
os pratos, abotoar a camisa, esfregar o corpo no banho. Revelados juntos mais uma tarefa, que Jeanne executa de maneira disciplinada como um títere
pelo olhar direto, frontal e imóvel da câmera que esquadrinha atos e espaços, que não pode ser afetado.
esses padrões definem um impressionante controle sobre o corpo, de forma a
aproximar a personagem estética e fisicamente de um autômato. Ao construir um esquema perceptivo para o espectador através do enqua­
dramento primordial que concede essa textura homogênea ao filme e faz
As cenas corriqueiras são intercaladas por duas outras atividades que diferem equivaler todas as ações da personagem, Akerman iguala dois lugares femini­
e ao mesmo tempo contribuem para a textura homogênea do filme: uma que nos a princípio opostos: o da mulher do lar que cuida dos afazeres domésticos
parece infinita, de natureza ainda mais automática – a de ascender e apagar e se dedica à família; e o da mulher da rua, que vende seu corpo para “fazer
as luzes –; e outra mais esparsa, também automatizada por sua inserção nessa a vida”. Essa equivalência se dá às custas de um aparato seco e aprisionante
orquestração – a de se prostituir a tarde e guardar o dinheiro na sopeira da que ao revelar uma vida asséptica, monótona e sem afetos, acaba através da
sala. No primeiro caso, a frequência do ascender e apagar de luzes institui um reprodução formal da disciplinarização, denunciando os lugares femininos
micro mecanismo que reproduz, em um ritmo mais veloz, a redundância e a como lugares de opressão. A rotina e a prostituição são formas de confinamento,
meticulosidade das tarefas ordinárias, que por sua vez reproduzem a própria que retiram do corpo da mulher as potências da vida, e a tornam um corpo
serialidade do modo de filmar de Akerman. Essa estratégia bressoniana de fazer frio que apenas cumpre os protocolos e roteiros diários como se cumprisse
com que o filme ele mesmo expresse o mecanismo de corte, enquadramento uma ordem cujo mandatário está oculto. A escolha de Akerman pelo efeito de
e reprodução mecânica do cinema, em Jeanne Dielman faz coincidir artifício mise-en-abyme do filme, de orquestração das cenas que parecem se espelhar
e mise-en-scène, esqueleto e carne, estrutura e narrativa. É exatamente um ao infinito, de forma a refazer as grades próprias ao cinema e aprisionar o
aparato artificial de reprodução mecânica que, como queria Benjamin, se revela espectador, coloca as ações nesse plano no qual o controle, ou a disciplina,
ao deflagrar um outro tipo de reprodução, a que se dá na vida cotidiana: a do como já dissera Foucault, não tem mandatários. Talvez daí a dificuldade de
trabalho doméstico. E é nessa composição maquínica, da qual obviamente ler o filme por um viés exclusivamente feminista, e/ou psicanalítico (que a
fazemos parte, que a subjetividade daquela mulher dos anos 70 configura-se própria Akerman admite se esquivar), uma vez que as causas, os responsáveis,
ao modo de um autômato, ou seja, um ente ou dispositivo, sem consciência, os culpados – o falo, o homem, a estrutura social – nada disso pode ser inferido
que executa funções imitando um ser animado. numa perspectiva que concede ao gesto formal da diretora a justa implicação
narrativa e dramática na construção dos olhares e, portanto, dos sentidos.
O ato sexual não é mostrado. Vemos Jeanne receber o cliente num plano médio Porém se o olhar esquadrinhador de Chantal e os gestos automáticos de Jeanne
que os enquadra de perfil cortando a cabeça da protagonista e exibindo apenas compõem uma mesma máquina, poderíamos acreditar que a diretora em sua
parte dos braços do estranho, e depois a porta do quarto se fechar. Durante estrutura rigorosa corrobora com a disciplinarização da personagem. Mais
um tempo estamos do lado de fora observando uma parte do pequeno corredor que isso, ao lançar mão desse mecanismo, Akerman conduz o espectador,
escuro e a porta fechada ao fundo. Ao homogeneizar as tomadas, através dos sobretudo a espectadora, a desenvolver uma cumplicidade com a ordem ali
padrões nas atividades e nos modos de filmar e cortar, Akerman cria, como existente, que passa a ser o único lugar de conforto perceptivo para lidar com
diz Margulies, uma equivalência entre as cenas que o espectador vê e as que um filme no qual nada de significativo acontece. Ou seja, a diretora faria a

210 211
espectadora corroborar também com o lugar de Jeanne. Contudo, ao confinar do controle, irrisórias estranhezas, restos dos restos dos quais as sequências
o confinamento que o dia a dia de Jeanne a submete, o resultado é o inverso, são feitas, importam enormemente para se ver um micro, porém intenso,
o olhar que deflagra a disciplinarização não poderia compactuar com ela, mas transtorno no cotidiano limpo e organizado de Jeanne. Um mísero caos para
sim afirmar sua existência na pura materialidade cinematográfica. Apesar começar, como numa vagarosa reação em cadeia, a mudar a cadência que fazia
de ambas, Chantal e Jeanne, procurarem o controle, a primeira no rigor dos daquela estrutura uma ordem.
procedimentos cinematográficos e a segunda no rigor dos procedimentos
domésticos, a diretora tem o poder que institui o mecanismo de reprodução A partir daí, já no terceiro dia, as expressões de Jeanne que dificilmente
e Jeanne é refém desse mecanismo. se via variar com os estados do corpo, começam a abrigar finos estados de
ânimo: preocupação, certa melancolia, talvez um tédio ou uma dúvida se
Após dois dias de repetição dessas tarefas meticulosas e insignificantes, algo de esboce. Quando a ordem é quebrada gradualmente uma consciência parece
perturbador acontece: Jeanne queima as batatas que seriam o jantar daquela tomar conta do corpo autômato de Jeanne, ainda que debilmente. Até que
noite para ela e o filho. Se um fato tão banal surpreende por ser a força de o grande corte, o golpe cinematográfico, surge como que vindo do cansaço e
desestruturação da ordem diária e cinematográfica, é justamente porque em da tensão acumulada ali: pela primeira vez vemos a cena de sexo de Jeanne,
Jeanne Dielman toda a narrativa se constrói através de acontecimentos miúdos, o homem sobre ela e seu rosto dando as pistas do orgasmo, ela levanta e
aqueles que seriam cortados dos filmes tradicionais, os restos, as entre-imagens calmamente abotoa a camisa em frente ao espelho, no mesmo ritmo ela pega
que viram elipses nos melodramas domésticos, de onde Akerman rouba os um tesoura na penteadeira e de repente, a vemos golpeá-lo no pescoço. Corte
clichês femininos que irá desconstruir. É nesse cotidiano desdramatizado, de seco, golpe seco... um movimento ainda que na mesma cadência dos demais,
ações corriqueiras desierarquizadas, que o ato de queimar as batatas ganha sobra no meio dos restos, uma imagem surge nas entre imagens e escapa ao
valor narrativo, e se compara, num grau infinitamente menor, a um turning enquadramento primordial. Aquele acontecimento narrativo, ainda que sem
point, o evento diegético a partir do qual o rumo da história e das personagens drama, pela volúpia que o caracteriza como ação, não se encaixa ao controle
se transforma. Aqui a mudança – como todas as alterações de um filme no qual formal da diretora, é a erupção do insuportável da ordem.
cada tomada parece um “jogo de sete erros” em relação a outra – é minimal.
Uma vez que Jeanne se põe a andar pela casa como quem procura algo, a câmera A espectadora que chegou até o final, não teve outra opção senão se fazer
se movimenta para acompanhá-la, uma vez que ela passa a ficar sentada no cúmplice da personagem e portanto defensora da ordem como único locus
sofá ou na mesa da cozinha sem fazer nada, a câmera vai durar mais nessas existencial onde Jeanne era capaz de se mover. As batatas queimadas repre­
cenas do que nas tarefas diárias. sentaram a ameaça de aleatoriedade durante todo tempo temida por um
olhar já enquadrado numa cadeia estruturada e controlada de eventos. Nesse
Caso a espectadora não tenha cumprido a exigência da atenção focada, sentido, a espectadora esteve no lugar disciplinado, não apenas o da cadeira do
dificilmente terá chegado a esse momento do filme ou chegou de forma que cinema, mas aquele onde Jeanne estava, o do autômato. Ou seja, era preciso
prosseguirá sem notar as alterações sutis no comportamento de Jeanne e na fazer esse pacto de visibilidade, vencer a dificuldade da atenção focada, rever
escritura que daí decorre. Caso tenha enfrentado a resistência da obra, já sabe as formas de percepção e relação com a imagem, para estranhar e por isso
que, após as batatas, alguma coisa ficou fora da ordem: o cabelo de Jeanne se deixar marcar pelo lugar do feminino de Jeanne, e como diria Rolnik,
está despenteado, a roupa desalinhada e as tarefas descontroladas. É como produzir um outro corpo no desassossego. Não se trata de sofrer o pathos
se houvesse, como diz Margulies, um animismo dos objetos que se colocam da heroína, mas sim de uma travessia visual, da difícil incorporação de um
contra ela. O tempo parece sobrar, ela está adiantada na cena, e portanto na esquema perceptivo e do prenúncio de sua quebra. É portanto pela experiência
vida. Ela para, espera, se perde, esquece o que fazer, não tampa a sopeira após estética e não pela ideológica que a espectadora vive uma opressão feminina,
colocar o dinheiro do cliente, anda de um lado para o outro e depois desata a corporal e singular, que passa pelo grito abafado do corte, o golpe seco do
limpar estranhamente os bibelôs que estão guardados na cristaleira da sala enquadramento que mostra o assassinato, e chega à quietude, e novamente
de estar, pega e sacode várias vezes o bebê do qual toma conta recolocando-o ao nada, quando a câmera enquadra Jeanne assentada, silenciosa, num longo
no moisés sem conseguir fazê-lo parar de chorar. Pequenos movimentos fora plano de sete minutos. Mas o nada não é o mesmo que fazia da espectadora

212 213
confinada refém da ordem, mas é um fora, uma potência, mais um estado Kashima Paradise por Chris Marker
de corpo daqueles que como diz Deleuze “segregam a lenta cerimônia que
religa as atitudes correspondentes e desenvolvem um gestus feminino capaz
de captar a história dos homens e a crise do mundo.” (1990: 235) Kashima Paradise é um filme completo no sentido em que se pode dizer
de um homem que ele é completo, isto é, quando rompeu em si um certo
número destas barreiras impermeáveis que todos os poderes encorajam
para permanecerem como os únicos senhores da comunicação entre áreas
Referências
consideradas incompatíveis. Exemplos? Um sociólogo que vai para o Japão
elaborar uma tese de doutorado sobre o tema “Sociedade rural e industrializa­
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol.I. São Paulo: Brasiliense, 1994.
ção rápida em um país capitalista avançado”, eis aqui uma empreitada definida,
BERGSTRON, Janet. Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, de classificada, bem enquadrada em seus próprios limites.
Chantal Akerman. In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010.
DELEUZE, Gilles. Cinema II: a Imagem- tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, Um cinegrafista que vai ao Japão fazer um filme sobre a metamorfose de áreas
1990. rurais industrializadas, eis aí uma outra empreitada igualmente definida,
igualmente classificada. A lenta mutação profissional, psicológica, social de
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e organização MACHADO,
um agricultor japonês que vive as transformações um tanto alucinantes de
Roberto. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979.
seu ambiente – é uma aventura de outra ordem, que na melhor das hipóteses
ISHAGHPOUR, Youssef. O fluxo e o quadro. In: Devires – Cinema e Humanidades, cabe à observação fria e científica do sociólogo, para o uso de leitores frios
v.7 n.1, jan./jun. 2010. e científicos, e que a princípio escapa à observação dos cineastas, pessoas
MARGULIES, Ivone. Nothing Happens: Chantal Akerman’s Hyperrealist Everyday. apressadas e pouco equipadas para o estudo em profundidade.
Duke University Press, Feb 13, 1996.
Uma região que em um ano passa da agricultura quase medieval à surrealidade
ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir: uma perspectiva ético/estético/política
industrial, com a construção de um enorme complexo petroquímico, o maior
no trabalho acadêmico. Cadernos de Subjetividade, v.1 n.2: 241-251, PUC/SP. São
porto artificial do mundo, o maior conglomerado do Japão – trata-se ainda
Paulo, set./fev. 1993
de outra coisa, um assunto para economistas ou poetas épicos, se estes ainda
VEIGA, Roberta. Quantos quadros cabem no enquadramento de uma janela? existissem. Um casal que deixa Paris e sua falsa elite para viver o mais perto
In: Devires – Cinema e Humanidades, v.7 n.1, jan./jun. 2010. possível a vida cotidiana de uma sociedade real, e além disso rural – trata-
se definitivamente de outra coisa, uma aventura pessoal nos limites do
incomunicável.

Ora, eis que tudo se comunica: a socióloga veio ao Japão com o cineasta,
um sábio conselho os instala em um vilarejo que o desenvolvimento do
conglomerado modifica em todos os níveis, o camponês em quem se repercute
esta mudança mantém relações de confiança com o casal, e melhor ainda,
nesta corrente de comunicação que se estabelece, as ações se invertem, as
relações se intercambiam: os investigadores são questionados, a pesquisa
nutre o filme, o filme questiona a pesquisa a tal ponto que, na chegada, o
assunto será diferente, centrar-se-á em um tema nascido do filme, a própria
vida do casal transformada pela empreitada – ninguém mais será neutro, a
vida terá feito sua entrada, ela terá irrigado tudo, a sociologia, o cinema, o
vilarejo, a pesquisa, a usina, o filme...

214 215
Uma das chaves desta desordem, esta coisa que mais falta faz à maioria de Kashima Paradise par Chris Marker
nós, especialmente aos cineastas: o Tempo. O tempo de trabalhar, e também,
e sobretudo, o de não trabalhar. O tempo de falar, de escutar, e sobretudo
o de se calar. O tempo de filmar e de não filmar, de compreender, e de não Kashima Paradise est un film complet au sens où l’on peut dire d’un homme
compreender, de se espantar, e de esperar a vida que ressurge após o espanto, qu’il est complet, c’est-à-dire quand il a abattu en lui un certain nombre de ces
o tempo de viver. O tempo de se acostumar também, de um lado e de outro, e cloisons étanches que tous les pouvoirs encouragent pour rester seuls maîtres
isto não é pouco. Mesmo que a limitação da equipe de filmagem a duas pessoas de la communication entre des domaines réputés inconciliables. Exemples?
já reduza o extraordinário trauma que uma filmagem real provoca, o tempo Une sociologue qui se rend au Japon pour y élaborer une thèse de troisième
continua a domesticar, a familiarizar. cycle sur le sujet “Société rurale et industrialisation rapide dans un pays
capitaliste avancé”, voici une entreprise définie, classée, bien cadrée dans
Habitua-se a esta câmera que Yann carrega nos olhos como um míope caça seus ses propres limites.
óculos, para te ver melhor, minha netinha. Habitua-se a este microfone que
Bénie [Deswarte] carrega diante do interlocutor como uma corneta acústica de Un opérateur de cinéma qui se rend au Japon pour tourner un film sur la
nossas avós (simpática avó). Habitua-se à presença deles, a este míope e a esta métamorphose des campagnes industrialisées, voilà une autre entreprise
surda, ainda por cima desmemoriados, que anotam tudo, gravam tudo para également définie, également classée. La lente mutation professionnelle,
depois recontar lá, em seu país. São interrogados sobre este país distante, este psychologique, sociale d’un paysan japonais qui vit les transformations un
arquétipo da civilização técnica, que está batendo à porta. Aqui novamente, peu hallucinantes de son environnement, c’est une aventure d’un autre ordre,
outras comunidades, outras inversões. É a mulher que fala japonês neste país relevant au mieux de l’observation scientifique et froide du sociologue, à l’usage
de homens. O homem se cala e olha, mas olha intensamente. Habitua-se à de lecteurs scientifiques et froids, échappant par principe à l’observation des
presença falante, mediadora de um, à presença silenciosa, registradora do outro. cinéastes, gens pressés et peu outillés pour l’étude en profondeur.

Ao fim da aventura, Kashima Paradise, o filme das barreiras rompidas – onde Une région qui passe en un an de l’agriculture quasi médiévale à la surréalité
a beleza excepcional da imagem, o rigor do método, o conhecimento das industrielle, avec la construction d’un énorme complexe pétrochimique, le
forças em jogo, econômicas e políticas, a intimidade real com os homens, se plus grand port artificiel du monde, le plus grand combinat du Japon, c’est
sustentam mutuamente, onde a sensibilidade da imagem preserva a inteli­ encore autre chose, un sujet pour économistes ou poètes épiques, s’il en existait
gência de ser fria, onde a acuidade da análise protege o espetáculo de seu encore. Un couple qui quitte Paris et sa fausse élite pour vivre d’aussi près que
próprio encantamento – o arrebatamento visual de certos momentos, o enterro possible la vie quotidienne d’une société réelle, rurale de surcroît, c’est tout à
do militante com seus helicópteros felinianos, a batalha de Narita com seus fait autre chose, une aventure personnelle aux limites de l’incommunicable.
militares germânicos, vêm banhar tudo isso da única beleza autêntica, a que
Or voici que tout communique: la sociologue est venue au Japon avec le cinéaste,
é dada por acréscimo na medida em que, sobre uma empreitada humana que
un conseil judicieux les installe dans un village que le développement du
é primeiro uma busca de verdade, ela vem significar a aprovação dos deuses.
combinat modifie à tous les niveaux, le paysan en qui se répercute cette
Sabemos que o símbolo dos privilégios mágicos do cinema é frequentemente modification entretient des rapports de confiance avec le couple, et mieux
“a flor desabrochada com a imagem acelerada”, essa intrusão de um outro encore, dans ce courant de communication qui s’établit, les actions se
tempo no tempo familiar. Eis aí talvez o primeiro filme em que a história é renversent, les rapports s’échangent: les enquêteurs sont questionnés, la
filmada como uma flor. recherche nourrit le film, le film questionne la recherche à tel point qu’à
l’arrivée, le sujet sera différent, qu’il se centrera sur un thème né du film, la
Tradução: Débora Braun vie même du couple transformée par l’entreprise, plus personne ne sera neutre,
la vie aura fait son entrée, elle aura tout irrigué, la sociologie, le cinéma, le
village, l’enquête, l’usine, le film...

216 217
Une des clefs de ce bouleversement, cette chose qui manque le plus à la plupart
d’entre nous, particulièrement aux cinéastes: le Temps. Le temps de travailler,
et aussi, et surtout de ne pas travailler. Le temps de parler, d’écouter, et surtout
de se taire. Le temps de filmer et de ne pas filmer, de comprendre, et de ne pas
comprendre, de s’étonner, et d’attendre l’au-delà de l’étonnement, le temps
de vivre. Le temps de s’habituer aussi, de part et d’autre, et ce n’est pas rien.
Même si la limitation de l’équipe de tournage, à deux personnes, réduit déjà
le traumatisme martien que provoque un vrai tournage, le temps continue
d’apprivoiser, de familiariser.

On s’habitue à cette caméra que Yann porte à l’œil comme un myope chausse
ses lunettes, pour mieux vous regarder, mon enfant. On s’habitue à ce micro
que Bénie [Deswarte] porte au devant de l’interlocuteur comme un cornet
acoustique de nos grands- mères (agréable grand-mère). On s’habitue à leur
présence, à ce myope et cette sourde amnésiques en plus, qui notent tout,
enregistrent tout pour raconter là-bas, au pays. On les interroge sur ce pays
lointain, cet archétype de la civilisation technique, qui est en train de frapper
à la porte. Là encore, d’autres communautés, d’autres inversions. C’est la

˜
femme qui parle japonais dans ce pays d’hommes. L’homme se tait et regarde, ´
programacao
mais regarde fort. On s’habitue à la présence parlante, médiatrice de l’une, à
la présence silencieuse, enregistreuse de l’autre.

Au bout de l’aventure, Kashima Paradise, le film des cloisons abattues, où la


beauté exceptionnelle de l’image, la rigueur de la méthode, la connaissance
des forces en jeu, économiques et politiques, l’intimité réelle avec les hommes,
s’étayent mutuellement, où la sensibilité de l’image préserve l’intelligence
d’être froide, où l’acuité de l’analyse protège le spectacle de son propre
enchantement – l’éblouissement visuel de certains moments, l’enterrement
du militant avec ses hélicoptères felliniens, la bataille de Narita avec ces CRS
teutoniques, venant baigner tout cela de la seule beauté véritable, celle qui est
donnée par surcroît lorsque, sur une entreprise des hommes qui est d’abord
une recherche de vérité, elle vient signifier l’approbation des dieux.

On sait que le symbole des privilèges magiques du cinéma est souvent “la fleur
tournée en accéléré”, cette intrusion d’un autre temps dans le temps familier.
Voilà peut être le premier film où l’histoire est filmée comme une fleur."

218
CINE HUMBERTO MAURO
21 NOV | QUARTA-FEIRA Pele de branco
19h30 Sessão de abertura Takumã Kuikuro, 2012, 25’
Chasseurs et Chamans Margens dos Marques
Raymond Depardon, 2003, 32’ Mariana Andrade, 2012, 55’
Xapiri
19h Cânone e contra-cânone
Leandro Lima e Gisela Motta,
Cassy Jones, Magnífico Sedutor
Laymert Garcia dos Santos e Stella
Luís Sérgio Person, 1972, 100’
Senra, Bruce Albert, 2012, 54’
Sessão comentada por Renato Sztutman e 21h Cânone e contra-cânone
Ruben Caixeta de Queiroz Império do Desejo
Carlos Oscar Reichenbach, 1980, 95’
22 nov | QUINTA-FEIRA
15h Cânone e contra-cânone ´
24 NOV | SABADO
Sina do Aventureiro 15h Competitiva nacional
José Mojica Marins, 1958, 88’ Mr. Sganzerla, Os signos da luz
Joel Pizzini, 2011, 90’
17h Cânone e contra-cânone
Panca de Valente 17h A mulher e a câmera
Luís Sérgio Person, 1968, 95’ Nathalie Granger
Marguerite Duras, 1972, 83’
19h Competitiva nacional
Tava - A casa de pedra 19h Competitiva nacional
Ariel Ortega, Ernesto de Carvalho, A cidade é uma só?
Patrícia Ferreira, Vincent Carelli, Adirley Queirós, 2012, 80’
2012, 78
21h Competitiva nacional
21h Competitiva nacioanal Câmara Escura
Lullaby Marcelo Pedroso, 2012, 24’
André Lage, 2011, 11’ Doméstica
Otto Gabriel Mascaro, 2012, 75’
Cao Guimarães, 2012, 71’
25/11 DOMINGO
23 nov | SEXTA-FEIRA 15h Competitiva nacional
15h Competitiva nacional A Anti performance
Espírito Santo Futebol Clube Daniel Lisboa, 2012, 10’
André Ehrlich Lucas, Lucas Vetekesky, Em busca de um lugar comum
2012, 29’ Felippe Schultz Mussel, 2012, 80’
HU
Pedro Urano e Joana Traub, 2012, 78’ 17h Cânone e contra-cânone
A$suntina das Amérikas
17h Competitiva nacional Luís Rosemberg Filho, 1976, 90’
Porcos Raivosos
Isabel Penoni, Leonardo Sette, 19h Cânone e contra-cânone
2012, 10’ Malandro, termo Civilizado
Sylvio Lanna, 1986, 26’

221
Lobisomem, o terror da meia-noite 28/11 QUARTA-FEIRA 30 nov | SEXTA-FEIRA 02/12 DOMINGO
Elyseu Visconti, 1974, 75’ 14h Oficina com Claire Angelini 14h Oficina com Claire Angelini 15h Lançamento
Sessão comentada pelos diretores Paz no mundo camará: a Capoeira
17h Competitiva internacional 17h Competitiva internacional
21h Cânone e contra-cânone La Friche Angola e a volta que o mundo dá
Linha Vermelha
Mesa de debates: Magali Roucaut , 2012, 45’ Carem Abreu, 2012, 54’
José Filipe Costa, 2011, 80’
Cânones e contra-cânones no Narmada 17h A mulher e a câmera
cinema moderno brasileiro Manon Ott, Grégory Cohen, 2012, 45’ 19h A mulher e a câmera
Reassemblage
Hernani Heffner, Luís Alberto Rocha Et tu es dehors
19h A mulher e a câmera Claire Angelini, 2012, 85’ Trinh T. Minh-ha, 1982, 40’
Melo, mediação: Ewerton Belico
A Falta que me faz Sessão comentada pela diretora 18h Lançamento
Marília Rocha, 2009, 85’ Ao lugar de Herbais
26 NOV | SEGUNDA-FEIRA A Entrevista 21h Competitiva internacional
14h Oficina com Claire Angelini Zavtra Daniel Ribeiro Duarte, 2012, 31’
Helena Solberg, 1966, 20’ Sessão comentada pelo diretor
Andrey Gryazev, 2011, 90’
17h Cânone e contra-cânone 21h A mulher e a câmera
Perdidos e Malditos 19h Sessão especial
Mesa de debates ´
01 DEZ | SABADO
Geraldo Veloso, 1970, 70’ (Homenagem a Yann Le Masson e
Mulheres no cinema brasileiro 15h Competitiva internacional
Sessão comentada pelo diretor Chris Marker)
Helena Solberg, Marília Rocha, Paula Eau douce, eau salée Kashima Paradise
19h Cânone e contra-cânone Alves. Mediação: Cláudia Mesquita Aya Tanaka, 2011, 50’ Yann Le Masson, 1974, 107’
Bandido da Luz Vermelha Lançamento da Revista Devires Cama de Gato
Rogério Sganzerla, 1968, 90’ Filipa Reis, João Miller Guerra, 21h Sessão de encerramento
Cinema e Humanidades v.7 n.1,
Premiação das Mostras Competitivas
21h A mulher e a câmera dedicado à Chantal Akerman 2012, 45’
Lacrimosa
Luz nas Trevas Aloysio Raulino, 1970, 12’)
17h Competitiva internacional
Ícaro C. Martins, Helena Ignez, 29 nov | QUINTA-FEIRA Chambres avec vue Sessão comentada pelo diretor
2010, 83’ 14h Oficina com Claire Angelini Léo Zarka-Lepage, 2012, 16’
Sessão comentada pela diretora
17h A mulher e a câmera Bons Baisers de la Colonie ´
01 DEZ | SABADO
La guerre est proche Nathalie Borges, 2011, 74’ 23h Festa de Encerramento
27 nov | TERcA-FEIRA Claire Angelini, 2011, 80’ Clube Português
´ Claire Angelini
14h Oficina com 19h Lançamentos
Sessão comentada pela diretora Shuku Shukuwe – Rua Curitiba, 746 | 4o andar |
17h A mulher e a câmera a vida é para sempre Centro
19h Lançamento
La nouba des femmes du Paralelo 10 (DVD) Agostinho Ika Muru Huni Kuin,
Mont-Chenoua Silvio Da-Rin, 2011, 87’ 2012, 37’
Assia Djebar, 1979, 115’ Sessão comentada pelo diretor Sessão comentada por Tadeu Huni Kuin
19h A mulher e a câmera Una Hiwea – O Livro Vivo
21h Competitiva internacional
Réponse des femmes (Centro de Memória Aldeia São
Habiter/Construire
Agnés Varda, 1975, 8’ Joaquim, Associação Filmes de
Clemence Ancelin, 2012, 115’
Documenteur Quintal, Literaterras/UFMG)
Agnés Varda, 1981, 63’ Com a presença de Dani Huni Kuin
Sessão comentada por Ilana Feldman 21h A mulher e a câmera
21h Competitiva internacional Surname Viet Given Name Nam
Espoir Voyage Trinh T. Minh-ha, 1989, 108’
Michel Zongo, 2012, 82’

222 223
CAMPUS UFMG
´
AUDIToRIO 2 | FACE - FACULDADE 30 nov | SEXTA-FEIRA
ˆ
DE CIeNCIAS ˆ
ECONoMICAS - UFMG 9h A mulher e a câmera
Jeanne Dielman, 23 Quai du
22 NOV | QUINTA-FEIRA Commerce, 1080 Bruxelles
Chantal Akerman, 1975, 200´
10h A mulher e a câmera
Riddles Of The Sphinx /Enigmas
da Esfinge ´
AUDIToRIO BAESSE | FAFICH -
Laura Mulvey e Peter Wollen, 1977, 92´ FACULDADE DE FILOSOFIA E
ˆ
CIeNCIAS HUMANAS - ufmg
23 nov | SEXTA-FEIRA
9h30 Sessão especial 22 nov | QUINTA-FEIRA
Xapiri 11h30 Lançamento de livro
Leandro Lima e Gisela Motta, O Profeta e o Principal: A Ação
Laymert Garcia dos Santos e Política Ameríndia e seus
Stella Senra, Bruce Albert, 2012, 54’ Personagens
Sessão comentada por Carlos Fausto Renato Sztutman
(Edusp, 2012, 576pp)
27 nov | TERcA-FEIRA Conversa com o autor seguida de
9h A mulher e´ a câmera lançamento na
Livraria Quixote UFMG
Mesa de debates: Mulheres e Política
Roberta Veiga, Carla Maia.
Mediação: Inês Teixeira 29 nov | QUINTA-FEIRA
10h A mulher e a câmera
11h:30 A mulher e a câmera Mesa de debates:
La Flaca Alejandra Deslocamentos do feminino
Carmen Castillo, 1994, 60´ Lia Zanotta, Érica Souza
Tarachime /Nascimento, Mediação: Débora Breder
Maternidade
Naomi Kawase, 2006, 43´ ´
AUDIToRIO LUIZ POMPEU |
FACULDADE DE EDUCAcaO - ufmg
28 nov | QUARTA-FEIRA
9h A mulher e a câmera 26 nov | SEGUNDA-FEIRA
Mesa Cineastas indígenas 10h A mulher e a câmera
Suely Maxakali, Patrícia Ferreira. Conferência:
Mediação: Renata Otto Luiza Elvira Belaunde
Apresentação: Paulo Maia
11h30 A mulher e a câmera
ENDERECOS
The woman’s film
Louise Alaimo, Judy Smith,
´
Cine Humberto Mauro
Ellen Sorren, 1971, 40’ Avenida Afonso Pena | 1537 | Centro
Emerging Woman/A Nova Mulher
Helena Solberg, 1975, 48´ Campus UFMG
Avenida Antônio Carlos | 6627 | Pampulha

Instituto INHOTIM
Rua B | 20 | Brumadinho - MG
+55 31 3571-6598

224
´indices
´indice DE FILMES Narmada | 111
Nathalie Granger | 50
Otto | 90
A Anti performance | 80
Panca de Valente | 29
A cidade é uma só | 81
Paralelo 10 | 124
A Entrevista | 60
Paz no mundo camará: a Capoeira Angola e a volta que o mundo dá | 125
A Falta que me faz | 65
Pele de branco | 92
A$suntina das Amérikas | 33
Perdidos e Malditos | 37
Ao lugar de Herbais | 126
Porcos Raivosos | 91
Bandido da Luz Vermelha | 36
Reassemblage | 54
Bons Baisers de la Colonie | 103
Réponse des femmes | 56
Cama de Gato | 104
Riddles Of The Sphinx /Enigmas da Esfinge | 52
Câmara Escura | 82
Shuku Shukuwe – a vida é para sempre | 119
Cassy Jones, Magnífico Sedutor | 31
Sina do Aventureiro | 30
Chambres avec vue | 105
Surname Viet Given Name Nam | 55
Chasseurs et Chamans | 21
Tarachime /Nascimento, Maternidade | 63
Documenteur | 57
Tava - A casa de pedra | 93
Doméstica | 83
The Emerging Woman | 61
Eau douce, eau salée | 106
The woman’s film | 49
Em busca de um lugar comum | 84
Xapiri | 22
Espírito Santo Futebol Clube | 85
Zavtra | 112
Espoir Voyage | 107
Et tu es dehors | 59
Habiter/Construire | 108
HU | 86
Império do Desejo | 32
Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles | 51
Kashima Paradise | 115
La Flaca Alejandra | 62
La Friche | 109
La guerre est proche | 58
La nouba des femmes du Mont-Chenoua | 53
Lacrimosa | 131
Linha Vermelha | 110
Lobisomem, o terror da meia-noite | 34
Lullaby | 87
Luz nas Trevas | 64
Malandro, termo Civilizado | 35
Margens dos Marques | 88
Mr. Sganzerla, Os signos da luz | 89

228 229
´indice DE DIRETORES Joel Pizzini | 89
José Filipe Costa | 110
José Mojica Marins | 30
Adirley Queiroz | 81
Judy Smith | 49
Agnés Varda | 56, 57
Laura Mulvey | 52
Agostinho Manduca Mateus Ika Muru Huni Kuin | 119
Laymert Garcia dos Santos | 22
Aloysio Raulino | 131
Leandro Lima | 22
André Ehrlich Lucas | 85
Léo Zarka-Lepage | 105
André Lage | 87
Leonardo Sette | 91
Andrey Gryazev | 112
Louise Alaimo | 49
Ariel Ortega | 93
Lucas Vetekesky | 85
Assia Djebar | 53
Luís Rosemberg Filho | 33
Aya Tanaka | 106
Luís Sérgio Person | 29, 31
Bémie Deswarte | 115
Luna Alkalay | 141
Bruce Albert | 22
Magali Roucaut | 109
Cao Guimarães | 90
Manon Ott | 111
Carem Abreu | 125
Marcelo Pedroso | 82
Carlos Oscar Reichenbach | 32
Marguerite Duras | 50
Carmen Castillo | 62
Mariana Andrade | 88
Chantal Akerman | 51
Marília Rocha | 65
Claire Angelini | 58, 59
Marrayury Kuikuro | 92
Clemence Ancelin | 108
Michel Zongo | 107
Daniel Lisboa | 80
Naomi Kawase | 63
Daniel Ribeiro Duarte | 126
Nathalie Borges | 103
Ellen Sorren | 49
Patrícia Ferreira | 93
Elyseu Visconti | 34
Pedro Urano | 86
Ernesto de Carvalho | 93
Peter Wollen | 52
Felippe Schultz Mussel | 84
Raymond Depardon | 21
Filipa Reis | 104
Rogério Sganzerla | 36
Gabriel Mascaro | 83
Silvio Da-Rin | 124
Geraldo Veloso | 37
Stella Senra | 22
Gisela Motta | 22
Sylvio Lanna | 35
Grégory Cohen | 111
Takumã Kuikuro | 92
Guy Girard | 62
Trinh T. Minh-ha | 54, 55
Helena Ignez | 64
Vincent Carelli | 93
Helena Solberg | 60, 61
Yann Le Masson | 115
Ícaro C. Martins | 64
Isabel Penoni | 91
Joana Traub Csekö | 86
João Miller Guerra | 104

230 231
forumdoc.bh.2012

organização geral programa de extensão forumdoc.


Júnia Torres ufmg.2012
Rafael Barros
coordenador
Glaura Cardoso Vale
Paulo Maia
Carla Maia
Cláudia Mesquita coordenadores de projetos
Paulo Maia Cláudia Mesquita 
Ruben Caixeta Ruben Caixeta
Diana Gebrim César Guimarães
Carla Italiano
Roberto Romero bolsistas
Camila Gomes Cordeiro
mostra cânone e contra-cânone
Gabriel Pinheiro
Ewerton Belico
Túlio Diniz
Rafael Barros
tradução e legendagem
mostra a mulher e a câmera
Ana Siqueira
Carla Maia e Cláudia Mesquita
Augusto de Castro
(coordenação)
Carla Italiano
Paulo Maia
Carolina Canguçu
Ruben Caixeta
Catherine Carignan
mostra competitiva Débora Braun
Flávia Camisasca

forumdoc.bh.2012
internacional
Bráulio Britto Henrique Cosenza
Carla Italiano Laura Torres
Milene Migliano Marina Sandim
Lucas Sander
mostra competitiva Paula Santos
nacional Roger Pattison
Ana Carvalho
Carolina Canguçu legendagem eletrônica
Victor Guimarães 4estações

Sessão homenagem projeto gráfico


Yann Le Masson e Chris Marker Marilá Dardot
Bruno Vasconcelos
arte
Carla Italiano
Coisa Amarela
oficina/curso
concepção
Claire Angelini
Rafael Barros
tradução e assistência
catálogo
Ana Siqueira
Glaura Cardoso Vale (organização)
produção logística Júnia Torres
Pedro Leal Carla Maia

233
forumdoc.bh.2012 forumdoc.bh.2012

diagramação vice-presidente Albert, Instituto Socioambiental ISA,


Ana C. Bahia Bernardo Rocha Correia Marcos Wesley, Daniel Castanheira Pitta
chefe de gabinete Costa, Ismail Xavier, Rafael Sampaio,
vinheta Cleidisson Plautino Dornelas Renato Sztutman, Paula Morgado, Sylvia
Raquel Junqueira diretora artística Caiuby, Chantal Akerman, Laura Mulvey,
Luisa Rabello Edilane Carneiro Trinh Minh-ha, Luc Moullet, Michelle
diretora de ensino e extensão Pistolesi, Paule Maillet, Ilana Feldman,
site
Patrícia Avellar Zol Roberta Veiga, Carmen Castillo, Lia
Carlos Paulino (programação,
diretora de marketing, intercâmbio e Zanotta, Érica Souza, Débora Breder,
consultoria e gestão de banco de dados)
projetos especiais Helena Solberg, Marília Rocha, Paula
Gustavo Teodoro (webdesign e
Cláudia Garcia Elias Alves, Sueli Maxakali, Patrícia Ferreira,
programação)
diretora de planejamento, gestão e Renata Otto, Inês Teixeira, Luiza Elvira
Pedro Aspahan (coordenação e
finanças Belaunde, Helena Ignez, Sinai Sganzerla,
administração)
Cynthia Bernis de Oliveira Andrea Scansani, Aldeia São Joaquim
cabine de projeção diretora de programação Centro de Memória, Pajé Agostinho
Pedro Aspahan (coordenação) Sandra Fagundes Campos Manduca Ika Muru Huni Kuin, Pajé
Bernard Machado (coordenação) Manoel Dua Buse Huni Kuin, Dani Huni
gerência de cinema da fundação Kuin, Zezinho Yube, Joviano Mayer,
Warley Desali
clóvis salgado Renata Versiani, Daniel Queiroz, Livraria
Clareana Turcheti
gerente Quixote, Carlos Cunha, PET Ciências
assessoria de imprensa Rafael Ciccarini Sociais, Gabriel Sanna, Guilherme
Sinal de Fumaça Comunicação assessora Whiitaker, Leo Pyrata, Vebis Junior,
Sérgio Stockler Ursula Rösele Sara Silveira, Helvécio Marins, Matheus
Aline Ferreira assistente Sundfeld, Eugênio Puppo, Leandro
Alexandra Duarte Pardi, Hernani Heffner, Marina Person,
festival online e cobertura produtora Regina Jeha, Andrea Ormond, Rubens
Pedro Aspahan Flávia Camisasca Gomes Leite, Paulo Sacramento, Sylvio
Daniel Ribeiro assistente de produção Back, Sylvio Lanna, Elyzeu Visconti,
Milene Migliano Bruno Hilário Geraldo Veloso, Mateus Araújo, Jair
Pedro Marra auxiliar de serviços administrativos Fonseca, Affonso Uchoa, Rodrigo Moura,
Bernard Machado Luciene Raquel Lima Morgana Rissinger, Luís Rosemberg Filho,
Luís Alberto Rocha Mello, Catie Aubry,
momentos festivos porteiro
Salomé Aubry, Guillemette Laucoin, La
Rafa Barros José Horta de Oliveira
Cinématèque de Toulouse, Mathilde Le
Pedro Leal Masson, Raymond Depardon, Claudine
projecionistas
assessoria jurídica e financeira Mercídio Alvinho Scarpeli Nougaret, Sarah Froux, Palmeraie et
Diversidade Consultoria Rufino Gomes Araújo désert, Rafael Ciccarini, Ursula Rosele,
Diana Gebrim Flávia Camisasca, EICTV – Escuela
agradecimentos Internacional de Cine y TV, Maria Julia
motorista Diretoria FaE-UFMG, Cenex-FaE-UFMG, Grillo, Miguel Vassy, Fernando Ancil,
Luciano Ribeiro Diretoria FAFICH; UFMG, Cinemateca Carlos Olmedo, Gladston del Vale,
MAM - RJ, Cinemateca Brasileira, Isabel Frederico Trindade, Magda Menezes, associação filmes de quintal
fundação clóvis salgado Casemira, Ricardo, Belinha, Guidinha, Oswaldo Teixeira, Bruno Vasconcelos, Avenida Brasil | 75/sala 06
(participação) Toninho, Frederico Sabino, Mateus Araújo realizadores que se inscreveram nas Santa Efigênia | CEP 30140-000
presidente Silva, Hutukara Associação Yanomami, mostras competitivas. Belo Horizonte/MG | Brasil
Solanda Steckelberg Stella Senra e Laymert Garcia, Bruce +55 31 3889-1997 | 31 2512-1987
www.forumdoc.org.br

234 235
realização co-realização

participação

apoio institucional
Programa de Pós-Graduação
em Antropologia

Departamento de Ciências
Aplicadas à Educação
FAE/UFMG

Cenex FaE/UFMG

patrocínio

apoio cultural

cinemateca do mam
cinemateca brasileira

apoio logÍSTICO

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