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Michel Peterson
Francis Ponge
Organização
Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson
Introdução
Michel Peterson
Traduções de
Adalberto Müller Jr. Carlos Loria,
Ignacio Antonio Neis,
Júlio Castañon Guimarães, Michel Peterson
Título original: Le parti pris des choses
ISBN: 85-7321-116-4
2000
EDITORAILUMINURASLTDA.
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SUMÁRIO
Christian Bobin
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olhos, pois sentire ressentir convocam doravante combinatórias ainda
ontem de manhã inéditas, a coisa já não se opõe simplesmente ao
fato, como na teoria clássica do conhecimento, mas lhe é por assim
dizer contígua. Os internautas bem que o sabem, eles que se riem
menos dos fenômenos do que se tartameleia tantas e tantas vezes.
Virtual ou não, a flor, real ou digitalizada, sempre necessitará de
intenção para advir à existência, para que eu possa designi-la como
tal, significar seu estar-em-flor, seu tornar-se-flor no horizonte da
consciência humana.
Aliás, que criança não está hoje instruída de que os sapatos de
amanhã já não terão mau cheiro, mas piscarão, ao passo que os
óculos dos grandes já não terão a função de corrigir a visão, mas de
exprimir, graças a minicaptadores, os sentimentos e as emoções de
quem os houver calçado? Para convencer-se disso, basta visitar o
site do MediaLab do MIT (Massachusetts Institute of Technology).
Os wearable computers (isto é, os computadores portáteis) que ali
são desenvolvidos dão a imaginar um mundo que não deixa de ter
afinidades com aquele no qua1 tu, leitor, vais entrar agora com teu
passo, com teu ritmo. Todavia, enquanto Francis Ponge queria dar
a palavra às coisas do mundo mudo, os pesquisadores aquilinos
parecem por assim dizer visar mais penetrante: doar-lhes o
pensamento. Eis o novo projeto: substituir as Things That Talk do
artesão por Things That Think. Velho debate, retransmitido, entre a
linguagem e o pensamento.
Os freqüentadores assíduos da obra do autor do Partido das coisas
dirão que ele jamais teria ousado forçar a flor que acabamos de
acariciar a dizer, e ainda menos a pensar. Terão razão, questão
elementar de ética e de direito. Sem pretender ingenuamente que a
coisa seja sui juris, dever-se-ia pelo menos, afirmará ele ao longo de
toda a vida, ouvir sua lição antes de possuí-la e de explorá-la, dando-
lhe até mesmo a Palavra, sem especular antecipadamente sobre o
investimento. Em suma, encontrar seu nó, tarefa problemática, por
vezes cumprida, freqüentemente adiada. Todavia os fracassos, tão
numerosos serão eles em função do proverbial objetivo, longe de
assegurarem o absurdo, desencadeiam um altivo movimento
energético que de minha parte considero como o umbigo do Partido:
trazer à luz as forças que fazem convergir o querer-viver e o querer-
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gozar do Universo, atitude humilde, mais que gesto, que consiste
em prestar ouvido às vibrações dos tampos harmônicos da Natureza.
Serena raiva e sutil silêncio do sujeito que um budista conseqüente,
persuadido como o discípulo de Crátilo da impermanêcia do mundo
fenomenal, respeitaria mas rejeitaria, pois conservam a potência do
eu e, conseqüentemente, o sofrimento congênito do homem. Artaud
talvez fosse mexicano, Michaux, chinês, Char, grego. Mas, como
Homero ou Paulo Leminski, o exotismo de Ponge é ocidental, só
que..., só que o ocidentalismo que ele professa e que conta com a
solidez dos fenômenos implica um soterramento do sujeito da
escritura que passa pela exibição de suas ferramentas, de sua tela, de
scu atelie.
O escrevedor da coletânea que se vai ler, combatendo a atrofia
de teus sentidos, cultiva um orgulho raro que consiste em eleger
como sujeitos de experiência coisas ao alcance da percepção e da
língua, sendo o alcance da palavra coisa de imediato tão amplo que
recorta aqui todos os reinos significantes: o mineral, o vegetal e o
animal, com todas as virtualidades de cruzamentos que se podem
sonhar, o que nos faz compreender que a mineralogia, a botânica e
a zoologia se desdobram em última análise numa verdadeira
antropologia. Pois relata-se, na quarta parte dos Proemas, intitulada
"Notas primeiras d’‘O homem’”: “O homem julga a natureza
absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe
a não ser pelo homem”. Os alunos que estejam freqüentando o pátio
do Partido objetivando perceptualmente todos os objetos que ali
encontram deixem, por favor, o recreio para repassar suas lições: o
homem é um sujeito amplo, sem dúvida; é a ele, porém, que o novo
classicísmo de Ponge, denegando a lógica pascaliana do coração,
aspira multiplicando os movimentos brownianos.
Judicioso, recusando violentamente a arte de persuadir pelo que
ela comporta de arrebatamento, o escritor que quer o Homem da
pós-revolução funda sua exploração nos quatro elementos: a terra, a
água, o ar e o fogo. Presidindo à obra, as divisões estabelecidas por
Lineu autorizam, todavia, tantas transgressões quantas classificações
(peixes-voadores surgem, por exemplo, no imperfeito nos Proemas).
Ora, esse arranjo confortável para o olho desatento é constantemente
ultrapassado por uma concepção mais oriental das relações entre os
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elementos, que se elevam a cinco: a madeira, o fogo, a terra, o
metal e a água. Estimulado por essa cinestesia, o Homo faber começa
então por transformar-se a si próprio interiormente a fim de acolher
a diversidade lucreciana do fenomenal. Encontra ele assim suas
razões para viver feliz para “egozijar” -se, no idioma de Segalen
e para extinguir-se sem ilusão, cinza aos quatro ventos? Forçados
a retorquir sorvendo o que é mais urgente, abramos agora a coletânea,
e veremos logo uma terra fervilhante de vermes a agitar-se sob o
monumento.
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do artesão verde que procura escapar ao fato, puramente exorbitante
para o ser, de que as palavras nos usam vulgarmente, nos falam
mais do que nós as falamos. Como então dar-lhes crédito, como dar
a palavra às coisas? Nessa perspectiva, o dom só é possível se se
levarem em conta as palavras, sem soçobrar na ilusão cratilista de
sua adequação às coisas. Ponge roçarà a armadilha mùltiplas vezes
(a crítica se arremessará nela freqüentemente às cegas), mas as
“variantes”eas“repetições”serãojustamenteoqueoimpedirásempre
de cair nela. Retomarei o assunto logo mais.
Em dezembro de 1935, Jean Paulhan, então secretário da NRF,
já tem em mãos vários dos textos que comporão a obra. Julho de
1937, o livro está finalmente pronto. Intitula-se então Sapates
(Sapatos). Vários outros títulos foram entrementes experimentados:
Approbation de la nature (Aprovação da natureza), Art poétique
(Arte poéica), Façons d’être (Maneiras de ser) e ate, de feitio menos
inaterialista e mais existencialista, Étres (Seres), simplesmente. Dito
isso, a rejeição de Sapates é, sem dúvida alguma, uma sábia decisão,
pois o termo, definido por Littré como “Presente considerável, dado
sob a forma de outro que o é muito menos, um limão, por exemplo,
e há dentro um grande diamante”, de qualquer forma só teria
englobado certos textos (cujo protótipo é “A ostra”) da coletânea,
que poderia igualmente ter sido intitulada, como confessa o próprio
Ponge, Trente arts poétiques (Trinta artes poéticas) ou Trente fables
avec leurs morales (Trinta fábulas com suas morais).
O que acontece a seguir?A crítica ainda tenta reconstituir a história
dos mal-entendidos que contribuiram para o atraso da publicação
da obra cem vezes retomada. No estado atual da pesquisa, tem-se
como certo que somente em 1938 Paulhan teria respondido a Ponge,
entregando-lheeste o manuscrito final (tal como o havia pessoalmente
concebido) em 1939. Em junho do mesmo ano, Paulhan queixa-se
da introdução proposta, “Introduction aux sapates” (”Introdução aos
sapatos”), a qua1 é imediatamente retirada e só será publicada nos
Proemas sob o título “Préface aux sapates” (”Prefácio aos sapatos”).
A guerra adia a publicação e, em 1941, Paulhan escreve a Ponge
que o manuscrito foi perdido. Pânico: Ponge não possui cópia! Mas
o grande manitu reencontra-o “milagrosamente” e, sobretudo,
reformula-o segundo seu gosto, suas chaves, seus padrões e sua
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concepção parnasiana da coletânea. Corta, costura, faz tudo o que é
possível (felizmente, e evidentemente, sem sucesso) para riscar o
“eu”. Elimina igualmente todas as peças em versos, retendo apenas
as prosas, o que não impede que vários poemas conservem a memória
métrica e constituam até o que Ponge denominará uma “feno-
menologia da estrofe”, fenomenologia que só pode ser entendida no
âmbito mais amplo de um projeto propriamente anárquico de limpeza
da língua.
Surpreso, mas infinitamente reconhecido, o jovem vê finalmente
seu livro publicado em 1300 exemplares, em maio de 1942
(encadernado segundo maqueta de Paul Bonet), na prestigiosa
coleção “Metamorphoses” (n. 13) da NRF. Naquele momento, é
chefe de escritório para Le Progrès, de Lyon, em Bourg-en-Bresse,
e acolhe em sua casa resistentes da Frente Nacional dos Escritores.
Escreve em pleno período surrealista, sendo sua obra, portanto,
publicada sob a Ocupação, o que explica, além de certas “defasagens”,
as dificuldades encontradas para sua difusão, bem como a lentidão
da crítica em se manifestar. A reedição, em 1945 (desta vez em
1525 exemplares), quando Ponge já reside em Paris, no apartamento
da rua Lhomond que lhe foi cedido por Jean Dubuffet, fará com
que o livro saia um pouco do circulo restrito dos admiradores. Será
necessário, todavia, esperar a terceira tiragem, em 1949 (3300
exemplares), para que o pequeno objeto alce vôo. Retomado em
1965 no Tome premier, na coleção “Blanche” de Gallimard, e a
seguir na coleção de bolso “Poésie/Gallimard”, em 1967, ele
encontrará finalmente seu público.
Como se fosse preciso exagerar, acrescentemos a esse “azar
editorial" (a expressão pertence a Danièle Leclair) o lado caracol ou
até tartaruga de Ponge. Seus contemporâneos Michaux, Breton,
Éluard, Char, Leiris, Aragon e outros publicam naquela época
sem trégua. Entretanto, Ponge escreve muito. Sua reserva deve-se
pelo menos tanto ao pudor e ao rigor do escritor atormentado pela
dúvida quanto às contingências do processo editorial. A publicação
do Partido não desvenda, alias, senão uma pequena parte da massa.
Será preciso esperar até quarenta anos para descobrir certos textos.
Um conjunto tão capital para a compreensão do método pongiano
quanto “O sol colocado em abismo” só virá à luz em 1961, em
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Piéces, terceiro tomo do Grand recueil. Deve-se dizer que, neste
caso, o dossiê de escritura, empreendido já em 1928, só é terminado
em 1954. Mas esse fenômeno está longe de constituir a regra.
Excetuando-se “La guêpe” (“A vespa”), acabado em 1943, e “O
cravo”, que se conclui em 1944, todos os textos do diário poético
que é La rage de l’expression estão terminados antes da publicação
do Partido das coisas. Da mesma forma, 25 dos 58 textos que
formam o primeiro tomo (Lyres) da mesma obra são escritos entre
1923 e 1942, ao passo que os onze primeiros textos do Nouveau
rccueil (1967) se escalonam de 1921 a 1941. A petite suite vivaraise,
publicada em 1983, é composta em julho-agosto de 1937, e, além
de uma série consagrada a Aragon que data dos anos 20, encontram-
se em Pratiques d’écriture, revelado em 1984, algumas pranchas do
mesmo período. A isso devem-se acrescentar os Souvenirs
interrompus, publicados em 1979 na NRF, mas consignados como
de 12 de setembro de 1939 a 9 de junho de 1940, bem como o
conjunto do primeiro tomo do Nouveau nouveau recueil (1992),
que reúne esboços de 1923 a 1942. Em suma e este é um aspecto
absolutamente essencial de sua recepção , se é verdade que o
Partido forma uma coletânea homogênea, cuja perfeição formal se
tornou quase marca comercial, deve-se a qualquer preço lê-lo pelo
que é: o traço de um magma lógico em ebulição.
Somente considerando essa estranha cronologia é que se
compreenderá por que será preciso esperar o artigo publicado por
Sartre em 1944 (”L’homme et les choses”) para que nasça um
leitorado. Não surpreende que O partido se veja, num primeiro
momento, classificado na corrente fenomenológica. Se é muito
duvidoso que Ponge já tenha lido os filósofos alemães no momento
em que lança suas primeiras migalhas no papel, não deixa de ser
verdade que ele se inscreve no amplo movimento da época que rejeita
o psicologismo e o pragmatismo, movimento esse que se instala no
fim dos anos 20, no momento em que Levinas, após haver assistido
à celebre polêmica entre Cassirer e Heidegger sobre Kant, leva
Blanchot (com quem Ponge entreterá em toda sua obra uma discreta
conversação) a descobrir a ciência eidética. A contemplação lógica
de Ponge, que pode parecer beata, interroga, na realidade, como
Husserl, as condições do conhecimento do mundo. Também ele
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prescruta com o olho na lupa, procura deitar um olhar novo sobre
as coisas. Exceto num detalhe, e de monta: a linguagem. Como
Blanchot, Ponge, quando traçar signos, lembrar-se-á de Nietzsche e
de Freud. A presença da consciência a si própria, ensinada pelo
mestre de Friburgo, levantará então espinhosos problemas de
expressão e de estética. Mas o estilo fenomenológico impregnará
sempreaatitudedosdoisescritores.Consolidadoporessaassimilação,
por Sartre, à fenomenologia, O partido, que será igualmente puxado
para o lado do absurdo, poderá então voar doravante com suas
próprias asas. Nos anos 60, Robbe-Grillet fará dele um símbolo das
teorias apregoadas pelo Novo Romance, e depois Tel Quel por sua
vez se apoderará dele nos anos 70, até que Ponge rompa violentamente
com o movimento e, sobretudo, com sua prática.
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preocupação com sua potencialidade heuristica), irritava Paulhan,
para quem ela dava demasiado relevo ao pitoresco. Isso equivale,
com efeito, a obliterar o aspecto mais “cientifico” de Ponge, a
propósito do qua1 a crítica até hoje não emitiu senão alguns lugares-
comuns referentes às modalidades de observação, à precisão lexical
das descrições e ao recurso sistemático à etimologia. Um estudo
mais aprofundado acabaria sem dúvida por revelar uma vasta rede
intertextual do Partido (e mais, da obra pongiana) que até o momento
permanece na sombra, a saber, a poesia científica do século XVI e,
especialmente, as Pequenas invenções de Rémi Belleau. Como o
farnoso Conhecimento do Leste, do respeitado Claudel, esta coletânea
contém, de fato, poemas cujos títulos e desenvolvimentos temáticos
“Le papillon” (“A borboleta”), “Le coral” (“O coral”), “L'huistre”
(“A ostra”), “L'escargot” (”0 caracol”), “La tortue” (“A tartaruga”),
“Le vers luisant de nuict” (“O vagalume de noite”), “La cerise” (“A
cereja”), “Sur les graines” (“Sobre as sementes”), etc. - não podem
deixar de chamar nossa atenção. Até que ponto Ponge conhecia a
poesia científica (entendendo-se esse termo no sentido de didática)
da Plêiade, é o que se deveria estabelecer, se se desejasse prosseguir
nesta via. É certo que as preocupações de Belleau, como também as
de Ronsard, Pontus de Tyard, Peletier, Baïf, Du Bartas, Scève e
Lefevre de La Boderie, encontram em nosso autor notáveis ecos. A
descrição do universo, os meteoros, a astronomia, a matemática, a
história natural ou a concepção do homem como microcosmo já
aparecem no Partido das coisas, mas será em Pour un Malherbe,
publicado em 1965, que a aliança entre poesia e ciência, tão
importante na Renascença, passará a ser um dos paradigmas da obra.
De qualquer forma, constata-se que certamente teria sido ingênuo
dispor simplesmente os poemas segundo o principio da progressão
cronológica. Vista de outro ângulo, a coletânea, bivalve como um
molusco, oferece duas partes facilmente identificáveis, pois cada
uma comporta exatamente a metade dos textos. A primeira, que se
encerra com “O molusco”, compreende sobretudo textos curtos, mais
acabados, caracterizados por cláusulas que realçam claramente o
fim das descrições-definições lestamente realizadas. Composta de
textos mais extensos, a segunda parte deixa entrever as primeiras
dilacerações da obra por vir, os primeiros sinais da fragmentação,
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da poética do tatear. Mais concretos, os textos breves são bombas,
fechadas sobre si mesmas, como se quisessem atingir assim sua
máxima densidade. Mais abstratas, menos autotélicas, as notações
em espiral dos textos longos estimulam as reflexões teóricas e
retóricas a respeito da escritura e da palavra. Mas, em ambos os
casos, o trabalho sobre o significante permanece incontornáve1, e o
referente, sempre duplo: ao mesmo tempo a coisa e o texto/
linguagem. A diferença é que a potência das bombas linguageiras
estará cada vez mais sujeita a caução, ao passo que se tornará cada
dia mais palpável a potência desconstrutora dos rascunhos. Como
ressalta Danikle Leclair: “A publicação do Partido foi, portanto, o
catalisador de uma radicalização da escritura dos cadernos e de uma
revolução na composição dos livros". É por isso que as repetições
irão se multiplicando e distenderão as molas das maquinarias bem
reguladas dos textos curtos, o que possibilita concebê-los, em última
análise, como hipertropos que subsumem o conjunto das estratégias
retóricas e dos procedimentos estilísticos utilizados.
Instalado bem no centro do Partido, “O molusco” vem
compartilhar o sólido e o líquido, significar a oposição entre as
conchas (signos de proteção, de resistência, de forma, de casa, de
compostura, de classicismo) e a moleza de corpo dos seres arcaicos
da evolução (que conotam a fraqueza, a informidade, a frouxidão).
Entroncamento ambíguo, os moluscos favorecem a ereção moral,
mas seu caráter invertebrado os torna inaptos ao cumprimento total
da sabedoria. As duas extremidades do Partido assinam essa
dicotomia: “Chuva” atualiza a indolência até recusar a forma e
obedecer à gravidade, e “O seixo” reduz as águas, embora aceitando
seu poder de polimento, sem renunciar jamais à dureza, à firmeza e
à densidade.
A mecânica ativada pelo meteoro (a chuva) nunca pára ao longo
de toda a coletânea, pois ela inspira tanto a existência do homem-
máquina ou a engrenagem burocrática do modesto funcionário quanto
a pequena cosmogonia portátil que fecha como que provisoriamente
a coletânea, propondo num tom de eloqüencia clássica épuras das
numerosas obras incultas. O relógio universal marca assim o tempo
de uma sabedoria por cuja magia o monismo idealista de Platão é
rejeitado em prol de uma prática que assimila simultaneamente os
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atomistas e os grandes moralistas. A brevidade da vida engaja a
viver somente no aguardo de uma volta à natureza bem merecida:
“O tempo que a madeira leva para apodrecer ou a pedra para
esboroar-se: é este o tempo verdadeiro, a duração que nos convém.
E viva afinal de contas o verme ágil e lustrado, o agente do Cronos,
envolto de energia, chefe de perfuração de nossos corpos!"
("Interview sur les dispositions funèbres", in: Lyres). Esta morte
viva, sim, reaviva-a igualmente “O seixo”, mas também o
antiverlainiano “O fim do outono” ou “O ciclo das estações” e “O
pedaço de came”, para só citar esses textos. Ou ainda as fossas diletas
dos caracóis, cujas marcas luzentes de expressão são outros tantos
epitáfios gravados no monumento que eles transportam. Lentidão,
humildade e paciência desses moluscos cantados por Prévert e que
marcam na terra úmida o branco do desaparecimento paginal e
virginal, a obscenidade orgulhosa do traço do inconsciente.
Da realidade do gozar
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e até com Deus, o escrevedor entra no templo do renome. A atração
do jovem Francis pelas inscrições romanas e pelos monumentos
funerários atualiza-se, por conseguinte, em páginas-epitáfios, textos
portadores de vida e de beleza, que permitem “dar a gozar ao espírito
humano” e... ao corpo. Em outros termos, como é dito em Pour un
Malherbe, “engravidar as coisas”, doar palavra à “feminidade do
mundo” contra/com (?) a Lei do Pai e através d’alíngua.
Levanta-se então uma problemática literalmente impossível de
ser explorada aqui, mas que não posso impedir-me de chamar, para
voltar a ela em algum outro lugar. Penso na relação entre realidade
e gozo, a qua1 se coloca sem dúvida (não, não estou sonhando...)
em Ponge. Não insisto, cito simplesmente alguém que tem algumas
palavras a dizer a esse respeito: “A realidade é abordada com os
aparelhos do gozo”. Entre esses aparelhos, a linguagem figura
evidentemente em bom lugar, o do Outro. Que Francis, abalado
pela morte de Armand, tome o partido das coisas não tem nada de
surpreendente. Uma vez que a Coisa pongiana concerne à mesma
verdade, a da mulher, da mãe, absolutamente silenciosa para quem
não tem orelha para tudo o que se deve à tensão heraclitiana e à voz
órfica da poesia. Pois, na verdade, a mulher não é em Ponge tão
barrada quanto se poderia crer, o que deixa entender isto, de Lacan,
que se terá reconhecido: “Começo por minhas fórmulas difíceis, ou
que suponho deverem ser tais o inconsciente não é que o ser
pense, como implica, no entanto, o que se diz na ciência tradicional
o inconsciente é que o ser, ao falar, goze, e, acrescento eu, não
queira saber de nada mais. Acrescento que isso quer dizer - não
saber absolutamente nada”1. Fácil como o bê-á-bá: ser de Palavra,
Ponge fala do que lhe diz respeito, a saber, das coisas, e parte do
princípio de que não sabe nada, ou de que nã0 sabe nada a não ser o
que diz nos termos em que diz o que diz, para chegar, ele próprio
Coisa, a seu poder: “Em suma, é preciso desejar, amar, ter tesão e
gozar (tudo isso tão ardentemente quanto possível). /Com esse poder,
é possível mais ou menos rapidamente gozar na ordem temporal.
Depende do estado do gosto. Depende do estado da língua na época
em que se trabalha, da relação dos valores eternos da língua que se
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usa com os valores então atuais” (Pour un Malherbe). É na
modificação desse estado e dessa relação que Ponge trabalha. Falar
gozo é, por conseguinte, por meio da língua, falar tanto
comportamentos quanto pulsões.
O partido do poeta torna-se então dos mais límpidos: louvar o
mundo para gozá-lo sem possuí-lo, sem saber do que se trata. Gozo,
floculação, jubilação, suflação, eis a chave do enigma, eis como
retornar e voltar a si mesmo para se aperfeiçoar. Lição de caracóis:
“Aperfeiçoa-te moralmente e farás belos versos. A moral e a retórica
se encontram na ambição e no desejo do sábio”. Você disse desejo?
Sabedoria socrática, epicurista e estóica. Desejo de reencontrar em
vcrsos o gosto que ofereceremos aos versos que nos limparão até os
ossos. Na origem de cada poema houve uma emoção, e é esta que
importa renovar para morrer melhor. Reconhecer o choque do
encontro real, concreto, situável no tempo e no espaço, não é possível
se se recair na choradeira verlainiana ou na tagarelice hugoana, e
isso por uma razão mui simples: a execução em ateliê desse trabalho
de matéria e de memória leva a assumir a lógica principial do Ser,
isto é, o nó, fortalecido por urn não-saber portador de amor pelo
mundo.
Qualifique-se, pois, a poesia pongiana como se quiser: científica
e sensual, descritiva e proverbial, anarquista e pompidouísta, barroca
e clássica, preciosa e natural, objetivista e autobiográfica, narcisista
e cética, analítica e prolixa, mimética e inventiva, concretista e
abstrata, formalista e gnômica, protestante e auto-irônica, ou sei lá
mais o quê? Multipliquemos as designações: oracular, encomiástica,
didática, pedagógica, iniciatória, (auto)limpadora, reflexiva,
textualista, referencial, Pouco importa, pois todos esses qualificativos
são justos e bons. O essencial é que O partido das coisas oferece,
pelo corpo/a/corpo do significante, a sintese impossivel, através do
verbiário da morte (o qua1 comporta inúmeros segredos), do saber e
da verdade.
Da caveira de Francis, Príncipe da Dinamarca, à sua mãe a mesa,
a obra se arquitextura como uma espécie de Tratado do Bardo,
perpétua meditação sobre a transição e sobre o devir que traz
progressivamente um domínio de si, um reforço do sopro até a
aquisição definitiva de uma sabedoria epicurista que reconduz o
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homem à Natureza. Tanatologia em ato, sistematizada e
supermotivada em Joca Seria. Notes sur les sculptures d’Alberto
Giacometti, texto de 1951 no qual Ponge, depois de ter evocado
aqueles que retornam às próprias coisas (Husserl) ou à terra
(Nietzsche), afirma mergulhar por sua parte “verdadeiramente no
mundo, na natureza, na terra”. Ora, essa entrada na cova pelo homem
representa de certa maneira sua entrada na cena, na sociedade, isto
é, num conjunto organizado (a tradição filosófica da abelha vê-se
então convocada no motivo do “caos-colmeia”) designado aqui por
uma série de expressões que velam, no aquém dos sistemas
pronominais, a impossível síntese, em um nós, dos eu e dos ele/ela:
“campo de concentração”, “forno crematório”, “câmara de gás”,
“prisão e carneiro”. Dever-se-á insistir na inquietadora estranheza
de tais formulações, nutridas pela guerra ainda bem recente no
momento em que o texto é redigido? O fato de a dimensão hética
das esculturas de Giacometti constituir no espaço uma prova quase
especulativa da procrastinação do direito explica apenas em parte o
dever de memória ao qual Ponge parece obedecer diante da amplidão
da deportação, do desastre que atinge a humanidade, seus lábios,
seus corpos de línguas, seus códigos e seus jogos de linguagem.
Indubitavelmente, esse pavor, essa escâncara mortífera do
coletivo participam relação longe de ser benigna da Natureza,
do mundo exterior. Mas de que Natureza?: “Caos de passado e futuro:
de cemitério e germes, de cadáveres em decomposição e vermes
envoltos de energia”. No cruzamento da ontogênese com a filogênese,
os termos são doravante indefectivelmente atados, a sobrevivência
da espécie, sob os auspícios de Eros, e a sobrevivência do Indivíduo,
sob os de Tânatos: “Sim, é preciso mergulhar nela [na Natureza]
[...]. Morrer e renascer. (Que o mundo renasça, o mínimo)”. Que as
passagens aqui citadas assinalem um “desvario (talvez) passageiro”
de uma “fase (épica)” da obra importa pouco diante do fato de que
os traços cendrados portam, não obstante, em germe o sêmen do
mundo. Espermas e mamas engendram uma “palavra em estado
nascente” numa espessura historiográfica prenhe de signos a
transportar a carga explosiva que ativa o processo das auroras do
biblion. Trata-se, sem dúvida, além de todos os horrores repetidos
da História inacabável, de um inconcebível retorno à origem mítica,
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de acordo com a estrutura inaudita do recalque originário que Freud
tentará tanto articular e que tem a ver com o próprio fundamento do
inconsciente: como pode uma representação primeira ter sido
recalcada? Outra maneira de colocar a questão da existência: como
nomear o não-reconhecido, aquilo que ainda não tem rosto para
meu espírito, forma informe, incapaz de ser criada pelos nomes que
lhe atribuirei com base em minha ignorância?
A desrazão do logos
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que ela venha a ressonar de des-razão. O eco dessa operação dupla
(que em minha outra língua só posso chamar de dis-regard of
philosophy), que consiste em dar o filosófico para melhor dele se
desviar no exato momento em que ele é oferecido, ouve-se à
maravilha quando o homem vaia raivosamente o ronrom poético, a
nostalgia romântico-surrealista e a metaforização do mundo. Des-
figurar o logos, quebrar sua cara, passa pela reificação das palavras
da língua, se não quisermos deixar-nos engolir pelas idéias: “Que o
imperfeito do signo peça ele próprio humildemente seu perdão. Que
se encare, que se confesse, que se humilhe. / Certarnente, a linguagem
e o ‘bom’ senso se defenderão, mas seus defeitos e suas fraquezas
são tão flagrantes que eles acabarão, de qualquer forma, suponho,
um tanto desfigurados” (”Hors les significations”). Tiremos as
máscaras! Deixemos enfim ver as pregas da expressão!
A objetiva e a memória
Dirão que não é isso o essencial do manual que se vai abrir agora
que tu, leitor, de certa maneira, espero, já abriste, como de
costume, como se se tratasse de um objeto no acusativo , que seu
aspecto bom-menino, lição-de-coisas, até nos textos mais
politicamente cáusticos (além de “Pobres pescadores”, a série dita
da humanidade, ou seja, os textos 23 a 26, que tomam por objeto
indivíduos ou grupos e, por sua força crítica, restabelecem relações
com os Doze pequenos escritos), infirma a leitura que deles proponho
aqui de maneira um tanto expedita. Concordo. Mas quem já
freqüentou as sendas pongianas da criação sabe que as citações
antecipadas, os incipits e as cláusulas, os títulos e os fragmentos que
impregnam cada um daqueles blocos aparentemente compactos não
formam coisas na devida forma; pelo contrário. Tudo se passa em
Ponge como se o referente designasse menos o noema da coisa-
poema do que, no movimento que leva do objeto à poética, o
impossível da Coisa, sua revelação constantemente adiada, a infinita
virtualidade de sua materialização. Basta percorrer as linhas do livro
para sentir até que ponto elas não remetem a nenhuma outra
anterioridade que não aquela que se dá no ato do texto. A armadilha
24
hiper-realista que Ponge nos trama consiste em fazer-nos crer que
poderíamos fotografar as coisas propostas. Ora, ao tentá-lo o
que terei à minha maneira procurado fazer em negativo ,
perceberemos rapidamente que o resultado será muito diferente
daquele com que contávamos e que, de qualquer forma, a mecânica
da reprodução fotográfica terá sido empatada. Bater uma chapa da
chuva, ou da laranja, ou do cigarro, ou da jovem mãe revela-se tão
incrível quanto fazer o retrato de um pássaro e serve tão-somente
para reafirmar, como o famoso poema “Fábula”, em Proemas, os
possíveis da gigantesca fábula do terminator. Será por acaso que,
para concluir sua leitura de uma fotonovela de Marie-Françoise
Plissart, Jacques Derrida propunha, após uma meditação crítica
inscrita nos traços de La chambre claire, de Roland Barthes, que se
imaginasse o que poderia ser a fotografia do poema “Fábula”, de
Francis Ponge2:
2) Droit de regard, suivi d’une lecture pour Jacques Derrida. Paris: Minuit, 1985, p.
xxxv-xxxvi.
25
reflexo, de onde proviria ela, a partir de onde seria ela proferida?
Neste texto, provavelmente anterior aos do Partido das coisas
(1924?) e recolhido em Proemas, já o irrepresentável do recalque
originário se esboça, no cerne da tensão mimética entre a coisa e o
poema, entre o leitor e a do poema que quebra seu espelho, sua
mais bela imagem, telescopados no advérbio aí. De que coisa o
poema-coisa é a Coisa, para não dizer o joguete?
Sem dúvida, estamos aqui na orla de um trabalho psíquico comum
às retóricas pongianas e freudianas. Ter-se-á compreendido que
evoco toda a enorme questão de saber, não simplesmente, no eixo
psicológico, como o mundo exterior modula nossa visão e como
esta molda aquele, mas, além da simples sensorialidade, como se
organiza a percepção no próprio mundo interior. Em outras palavras,
como a percepção, como processo, leva a interrogar a realidade até
o ponto em que a representação das coisas e das palavras chega,
pela linguagem e a partir dela, a ceder como ilusão referencial
sem, no entanto, cair no fantasma. Aragon tinha, à sua maneira,
radicalmente diferente das de Breton e de Souppault, solucionado
esse problema da relação entre a realidade referencial, o
conhecimento que dele podemos ter e a criação fundada nesse
conhecimento,rejeitandoqualquerformadeidealismo,oqueolevava
inevitavelmente a recusar a teoria do acaso puro3. Em Ponge, em
todo caso, assiste-se à emergência de uma prática textual em cujo
movimento as palavras e as coisas, em razão da tensão inaudita que
as aproxima no mesmo momento em que as afasta inexoravelmente
3) Menciono aqui Aragon a quem Ponge, que nutria por ele um respeito
desconfiado (ver a última parte de Pratiques d’écriture, inteiramente consagrada
ao trabalho dele), dedicou momentaneamente, em 1944-1945, as páginas literárias
do jornal comunista Action para assinalar de passagem o interesse que haveria
em comparar as duas obras no que concerne à questão da relação entre o
conhecimento da realidade e o literário. Michael Nerlich escreve a esse respeito:
“[...] Aragon compreendeu que a questão da linguagem poética, da nominação
do mundo real nessa linguagem poética, que a criação artística é o avesso dialético
do conhecimento do mundo real e que, conseqüentemente, não se pode pensar
artisticamente fazendo abstração dos problemas filosóficos (do conhecimento),
no que ele confirma o postulado de lsidore Ducasse; e que, por outro lado,
Aragon ultrapassou definitivamente as concepções idealistas do conhecimento
em Kant: vira-lhes as costas”. “A l’assaut du reel: de Kant à d’Holbach dans
l’ceuvre d’Aragon.” La Pensée, n. 203, jan.lfev. 1979, p. 12.
26
no significante, jubilam com o irrepresentável absoluto de sua
situação ou, antes, de seu funcionamento em abismo, o que se traduz
literalmente pelo que eu desejaria nomear o sofrimento da memória.
Sabe-se como Freud, ao elaborar a segunda tópica e fazer por assim
dizer surgir as pulsões do Id dos abismos do sol, o qua1 impede
qualquerrepresentação,chegadiantedeumabarreirainstransponível:
“Na realidade, o abandono da representação é justificado pela
constatação terrível de que a rememoração encontra enormes
obstáculos e de que o agir lhe é preferido”4. É exatarnente este o
agir pongiano: projetar na objetiva da língua a memória etimológica
da coisa a fim de fazê-la existir fora suas significações, fora suas
representações dadas prontas. A cada captação, a cada fixação, ela
se desloca, inapreensível, sempre alhures, outra. A soberba chapa
que Édouard Boubat bate do poeta, a resposta é sem apelação. Lê-
se, no texto de acompanhamento intitulado “O passarinho que sair
da câmara escura será fuzilado”:
27
Porque o mundo não existe sem representação nem, para falar como
Schopenhauer, sem vontade. O que a escritura de Ponge põe em
cena, através das incessantes repetições das quais diversos textos do
Partido fazem uso sem, contudo, traduzi-lo na forma de maneira
explícita, é a força, em instância de atualização no mundo, dos textos
e das coisas. Ponge chega assim a oferecer menos coisas representadas
do que redes de energias que permitem às coisas mover-se no tempo
incalculável da memória: “Graças à representação, a força se desloca;
ela é aproveitada para manter juntos os elementos da representação
e para fixar relativamente esta e permitir sua transformação.
Acrescentemos ser necessário que o sentido seja adrnissível”5. Essa
força corresponde ao que Ponge chama a tensão da corda mais esticada
do barroco ou a força de retenção atômica (Pour un Malherbe).
Com isso, o mundo acaba por ficar de pé, se o homem tem a firme
intenção de que assim seja.
Como chegar a isso? Pela simplicidade e por uma atenção de
todos os instantes nas coisas que nos cercam. É o que enunciam
literalmente, cada qua1 à sua maneira, as duas introduções que
precedem aqui O partido: a primeira, insistindo na noção de “coisa
prática”, a segunda, realçando a importância de uma revolução dos
sentimentos pelas coisas. Não figurando na edição francesa, esses
dois textos te são aqui oferecidos, por um lado, por terem sido
publicados numa coletânea Pratiques d’écritures que come
grande risco de jamais ser vertido para o português, mas, acima de
tudo, porque já enunciam o projeto de uma das obras capitais de
nosso tempo: fazer com que o homem se detenha no conhecimento
do mundo da natureza para chegar a beneficiar-se finalmente com
os “recursos morais (tanto quanto estéticos) do visível”. Garimpeiro
de sonhos, Ponge? Sem dúvida. Entretanto, mesmo hoje, entre
aqueles que a raiva mortífera do capital ainda não sufocou, perdura
a luz de Lucrécio.
5) Ibid., p. 76.
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Pós-escrito: Túmulo do traduzir
6) Micaëla Henich, Jacques Derrida. Mille e tre, cinq. Lignées, fragment 918. Bor-
deaux: William Blake & Co., 1996.
29
que o gênio reconhecesse os limites do corpo que o suporta”
(”Anotações para uma concha”). Não sei bem por quê, mas eu
desejaria que tu, leitor, leitora, dispensasses teus cuidados em
compreender que vários tradutores ofereceram seu osso para esta
coletânea,queelessesoterraramnasletras,esqueletrasquearranham
o solo de duas línguas, às vezes mais, jamais menos, com uma
coragem que só é dada pela modéstia sem submissão. Não sei bem
por quê, mas desejo ardentemente que saibas que não lerás uma
tradução (sonho impossível...), mas diversas experiências. Em
anuência aos votos de Paulhan, de que o Partido das coisas7 fosse
umcofresemelhanteaosEsmaltesecamafeus,deThéophileGautier,
as traduções que seguem, por não serem moldadas pelas mesmas
mãos, introduzem vários distanciamentos na leitura, quebras de
coerência, dirão alguns. Assumidas pelo que são, isto é, leituras,
constatar-se-á, porém, que cada qua1 murmura o segredo de um
homem que fez de seus despojos a loucura de seu nome.
30
Luz de pássaro, ouço teu passo radioso. Sim, Christian,
contemplo, tranqüilo, a vida. Uma vez colocado o sol em abismo,
vejo a morte vindo amar os viventes de eterno. Pois meu filho porta
teu nome. Como tu, como Francis, ele saberá é o que lhe ensino
que a palavra deve fazer crescer a carne para que nascimento
advenha. Digo: “Amai a água”, e respondo assim àqueles que
continuam a pensar: “Morrei!”. Bebo o azul, eu o sou, criança muda
sempre de leva.
Bibliografia
Embora O partido das coisas se tenha tornado um clássico da poesia francesa,
asobrascríticas,paradoxalmente,continuamsendopouconumerosaseaparentam-
se mais com manuais escolares ou corn introduções do que com verdadeiros
estudos em profundidade. Além dos artigos consagrados a diversos aspectos da
poética, da retórica ou da filosofia pongianas, o leitor poderá consultar:
O leitor poderá consultar também a edição do Parti pris des choses realizada
por Ian Higgins, London: The Athlone Press, 1979. Além de uma substancial e
estimulante introdução, essa edicão pulula de observações pertinentes a respeito
de vários problemas pontuais de interpretação. Para um conhecimento mais
aprofundado das paradas do Partido das coisas e do que concerne aos problemas
relacionados com a publicação da coletânea, remeto o leitor às seguintes obras:
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NOTA SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO
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Casa onde Francis Ponge nasceu, em Caen.
33
Capa da La Nouvelle Revue Française.
34
Guache original de Braque.
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Francis Ponge, 1960.
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INTRODUÇÕES AO
PARTIDO DAS COISAS
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INTRODUÇÃO AO
PARTIDO DAS COISAS
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Será preciso, pois, perdoar-me um estilo didático: não busco
senão assegurar-me a mim mesmo de certas coisas. Disso que pareço
ensinar procuro persuadido estar: são noções que engulo para me
manter em pé.
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INTRODUÇÃO AO
PARTIDO DAS COISAS
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O PARTIDO DAS COISAS
LE PARTI PRIS DES CHOSES
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CHUVA
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maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o
brilhante aparelho evapora: choveu.
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O FIM DO OUTONO
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precavidos, entorpecidos e rubicundos, é com conhecimento de
causa.
Mas aí começa uma outra história, que depende talvez mas não
tem o cheiro da régua preta que vai me servir para traçar meu traço
abaixo desta.
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POBRES PESCADORES
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RUM DAS FILIFOLHAS
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AS AMORAS
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O ENGRADADO
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A VELA
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O CIGARRO
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A LARANJA
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pigmentada, acerbamente sápida, é justo assaz rugosa para capturar
condignamente a luz sobre a perfeita forma da fruta.
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A OSTRA
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OS PRAZERES DA PORTA
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AS ÁRVORES SE DESFAZEM NO INTERIOR
DE UMA ESFERA DE NEVOEIRO
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O PÃO
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O FOGO
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O CICLO DAS ESTAÇÕES
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O MOLUSCO
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CARACÓIS
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nervuras, e recortando o mais tenro. São, por exemplo, o flagelo
das alfaces.
Que são eles no fundo dos fossos? Seres que a eles se afeiçoam
por algumas de suas qualidades, mas que de lá pretendem sair. São
um de seus elementos constitutivos, mas vagabundo. Aliás, tanto lá
quanto na plena luz das aléias firmes sua concha preserva seu ar
reservado.
Certamente é por vezes incômodo carregar consigo por toda a
parte essa concha, mas eles não se queixam e até ficam bem contentes.
É precioso, onde quer que alguém se encontre, poder voltar para
casa e desafiar os importunos. Isso bem que valia a pena.
Eles babam de orgulho dessa faculdade, dessa comodidade. Como é
possével que eu seja um ser tão sensível e tão vulnerável, e ao mesmo
tempo tão a salvo dos assédios dos importunos, tão senhor de sua
felicidade e de sua tranqüilidade. Daé esse maravilhoso porte da cabeça.
Ao mesmo tempo tão colado ao chão, tão tocante e tão lento, tão
progressivo e tão capaz de me descolar do chão para voltar para dentro
de mim mesmo e então depois de mim o dilúvio, um pontapé pode
fazer-me rolar sabe Deus para onde. Estou seguro de que voltarei a
pôr-me de pé e a colar-me ao chão ao qual terei sido relegado pela sorte
e a encontrar nele meu pasto: a terra, o mais comum dos alimentos.
Que ventura, que alegria, portanto, ser um caracol. Mas dessa
baba de orgulho eles impõem a marca a tudo o que tocam. Uma
esteira prateada os segue. E os aponta talvez ao bico dos voláteis
que os apetecem. Eis o nó, a questão, ser ou não ser (vaidosos), o
perigo.
Só, evidentemente o caracol é bem só. Não tem muitos amigos.
Mas deles não precisa para ser feliz. Cola tão bem na natureza,
desfruta-a tão perfeitamente de tão perto, é amigo do chão que beija
com todo o corpo, e das folhas, e do céu ao qual levanta tão
altivamenteacabeça,comseusglobosdeolhostãosensíveis;nobreza,
lentidão, sabedoria, orgulho, vaidade, altivez.
E não digamos que nisso ele se assemelha ao marrão. Não ele
não tem aqueles pezinhos mesquinhos, aquele trotezinho inquieto.
Aquelanecessidade,aquelavilezadefugirdesairoso.Maisresistência,
e mais estoicismo. Mais método, mais altivez e sem dúvida menos
glutonaria, menos capricho; deixando este alimento para se lançar
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sobre aqueloutro, menos desvario e precipitação na glutonaria, menos
medo de deixar perder-se algo.
Nada é belo como esse modo de avançar tão lento e tão seguro e
tão discreto, à custa de que esforços esse deslizar perfeito com que
honram a terra! Tal qual um longo navio, de esteira prateada. Esse
modo de proceder é majestoso, sobretudo se se leva em conta uma
vez mais essa vulnerabilidade, esses globos de olhos tão sensíveis.
Será perceptível a cólera dos caracóis? Haverá exemplos dela?
Como ela não tem gesto algum, manifesta-se sem dúvida apenas
através de uma secreção de baba mais flocosa e mais rápida. Essa
baba de orgulho. Vê-se aqui que a expressão de sua cólera é a mesma
que a de seu orgulho. Assim ficam tranqüilos e impressionam o
mundo de maneira mais rica, prateada.
A expressão de sua cólera, bem como de seu orgulho, torna-se
brilhante ao secar. Mas também constitui seu traço e os aponta ao
raptor (ao predador). Além do mais, é efêmera e não dura senão até
a próxima chuva.
O mesmo ocorre com todos aqueles que se exprimem de maneira
inteiramente subjetiva sem arrependimento, e por traços somente, sem
o cuidado de construírem e de formarem sua expressão como uma
morada sólida, de várias dimensões. Mais duradoura que eles próprios.
Mas, sem dúvida, eles não experimentam tal necessidade. São
antes heróis, isto é, seres cuja própria existência é obra de arte,
que artistas, isto é, fabricantes de obras de arte.
Mas é aqui que toco num dos pontos principais de sua lição, que,
aliás, não lhes é exclusiva, mas que possuem em comum com todos
os seres providos de conchas: essa concha, parte de seu ser é ao
mesmo tempo obra de arte, monumento. Ela perdura mais tempo
que eles.
E é este o exemplo que nos dão. Santos, fazem obra de arte de
sua vida, obra de arte de seu aperfeiçoamento. Sua própria
secreção se produz de modo a se enformar. Nada de exterior a eles,
asuanecessidade,asuaprecisão,éobrasua.Nadadedesproporcional
por outro lado a seu ser físico. Nada que não lhe seja necessário,
obrigatório.
Assim traçam aos homens seu dever. Os grandes pensamentos
vêm do coração. Aperfeiçoa-te moralmente e farás belos versos.
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A moral e a retórica se encontram na ambição e no desejo do
sábio.
Mas santos em quê: obedecendo precisamente à sua natureza.
Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal qual és. Em
consonância com teus vícios. Em proporção com tua medida.
Mas qual é a noção própria do homem: a palavra e a moral. O
humanismo.
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A BORBOLETA
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O MUSGO
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BORDAS DO MAR
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céussobreumaplanurasemlimites,opulsovindodelongesemtropeços
esemreproche,enfim,pelaprimeiravez,encontraaquemfalar.Porém,
uma só e breve palavra é confiada aos seixos e às conchas, que se
mostram, por isso, bastante revolvidos; e ele expira ao proferi-la; e os
que vêm a seguir, todos, expirarão também ao proferir a réplica, às
vezes a tempos apenas um pouco mais forte clamada. Cada um por
sobre o outro chegado à orquestra ergue um tanto soberbo o pescoço,
faz uma saudaçã, e se nomeia a quem foi endereçado. Mil homônimos
senhores são assim admitidos no mesmo dia da apresentaçã pelo mar
prolixo e prolífico em ofertas labiais a cada uma de suas bordas.
Também, não é qualquer camponês do Danúbio que ante o vosso
fórum, ó seixos, vem se fazer escutar com seu rude discurso: mas o
próprio Danúbio, misturado a todos os outros rios do mundo
perdidos sentido e pretensão , e profundamente recolhidos numa
desilusãoamarga,aogostoapenasdequemtivessezelode consciência
o bastante para apreciar-lhes, por absorção, a qualidade mais secreta,
o sabor.
É, com efeito, após a anarquia dos rios, ao seu relaxamento no
profundo e copiosamente habitado lugar-comum da matéria líquida,
que se deu o nome de mar. Eis a razão por que, às suas próprias
bordas, parecerá sempre ausente: aproveitando-se do afastamento
reciproco a impedi-las de se comunicar entre si senão através dele
ou por meio de longos desvios, faz com que todas acreditem,
indubitavelmente, que se dirige a cada uma em especial. Na realidade,
polido com todo mundo, e mais que polido: capaz, com relação a
cada uma delas, de todos os arrebatamentos, de todas as convicções
sucessivas, guarda no fundo da bacia, permanentemente, sua infinita
possessão de correntes. Não sai nunca dos limites, senão um pouco,
pondo ele próprio um freio ao furor de seus impulsos. E, como a
medusa que abandona aos pescadores por imagem reduzida ou
amostra de si mesmo, faz apenas uma reverência extática a todas as
suas bordas.
Assim é a antiga veste de Netuno, esse empilhamento pseudo-
orgânico de véus pelos três quartos do mundo uniformemente
derramados. Nem pelo punhal cego das rochas, nem pela mais
escavante tempestade a revirar maços de folhas ao mesmo tempo,
nem pelo olho atento do homem aplicado penosamente e aliás sem
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controle num meio interdito aos orifícios destampados dos outros
sentidos e que um braço mergulhado para agarrar turva ainda mais,
esse livro no fundo foi lido.
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DA ÁGUA
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à sua gravidade. E que perde toda compostura por causa dessa idéia
fixa, desse escrúpulo doentio. Desse vício, que o torna rápido,
precipitado ou estagnado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz
terebrante, por exemplo; ardiloso, filtrante, contornante; de tal modo
que dele se pode fazer o que se quiser, e conduzir a água em canos
para a seguir fazê-la jorrar verticalmente a fim de gozar enfim de
sua maneira de se abismar em chuva: uma verdadeira escrava.
... No entanto, o Sol e a Lua invejam essa influência exclusiva, e
procuram exercer-se sobre ela quando está propiciando a tomada de
grandes extensões, sobretudo se está ali em estado de menor
resistência, dispersa em poças rasas. O Sol então arrecada um maior
tributo. Força-a a um ciclismo perpétuo, trata-a como um esquilo
em sua roda.
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O PEDAÇO DE CARNE
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O GYMNASTA
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A JOVEM MÃE
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R. C. SEINE Nº
A saída, na verdade, não é para nossa forma tão perigosa. Esta porta
que se deve transpor só tem um gongo de carne do tamanho de um
homem, o guarda que obstrui a metade dela: mais que de uma
engrenagem, trata-se aqui de um esfíncter. Todos sao imediatamente
deleexpelidos,vergonhosamentesãosesalvos,muideprimidos,porém,
por intestinos lubrificados com cera, com fly-tox, com luz elétrica.
Bruscamenteseparadosporlongosintervalos,encontram-seentão,numa
atmosfera estonteante de hospital com duração de cura indefinida para
a manutenção das bolsas vazias, deslizando a toda velocidade através de
uma espécie de mosteiro-rinque cujos numerosos canais se cortam em
ângulos retos, onde o uniforme é o casaco surrado.
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Logo após, em cada serviço, com um barulho terrível, os armários
com cortinas de ferro se abrem, de onde as pastas, como
horrorosos pássaros-fósseis familiares, desanichadas de seus estratos,
descem pesadamente para pousar nas mesas onde se sacodem. Inicia-
se um estudo macabro. Ó analfabetismo comercial, ao ruído das
máquinas sagradas é então à longa, à sempiterna celebração de teu
culto que se deve servir.
Tudo se inscreve aos poucos em impressoss em várias vias, onde
a palavra reproduzida em malvas cada vez mais pálidos acabaria
sem dúvida por dissolver-se no desdém e no próprio tédio do papel,
não fossem os arquivos, essas fortalezas de papelão azul muito
resistente, perfurados no centro com uma lucarna redonda a fim de
que nenhuma folha inserida se esconda ali no esquecimento.
Duas ou três vezes por dia, no meio desse culto, o correio multicor,
radioso e tonto como um pássaro das ilhas, ma1 saído dos envelopes
marcados em preto pelo beijo dos correios, vem sem cerimônia
pousar diante de mim.
Cada folha estrangeira é então adotada, confiada a uma de
nossas pombinhas, que a guia a destinos sucessivos até sua
classificação.
Algumas jóias servem para tais atrelagens momentâneas:
cantoneiras douradas, grampos parisienses, clipes esperam em
escudelas por sua utilização.
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ruunt”; eles, com porte de sacerdotes, deixando passar o galope dos
monges e mongezinhos de todas as ordens, visitam lentamente seu
domínio, cercado por privilégio de vidraçarias despolidas, num
cenário em que as virtudes embalsamadoras são a soberba, o mau
gosto e a delação, e chegando a seu vestiário, onde não raro se
encontram luvas, uma bengala, uma echarpe de seda, largam
repentinamente o hábito de sua careta característica e se transformam
em verdadeiros homens do mundo.
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O RESTAURANTE LEMEUNIER
NA RUA DA CHAUSSÉE D’ANTIN
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Ó mundo das fatuidades e das futilidades, atinges aqui tua perfeição!
Todaumajuventudeinconscienteaquimacaqueiadiariamenteaquela
frivolidade estardalhante que os burgueses se permitem oito ou dez
vezes por ano, quando o pai banqueiro ou a mãe cleptômana
conseguiram algum benefício suplementar realmente inesperado e
querem, como manda o figurino, embasbacar os vizinhos.
Cerimoniosamente ataviados, como seus pais no campo só se
mostram aos domingos, os jovens funcionários e suas com-
panheiras mergulham aqui com delícia, com total boa-fé a cada
dia. Cada um se apega a seu prato como o bernardo-eremita a
sua concha, enquanto a vaga copiosa de alguma valsa vienense
cujo rumor domina o tinido das valvas de faiança remexe os
estômagos e os corações.
Como numa gruta maravilhosa, vejo-os todos falar e rir, mas
não os ouço. Jovem balconista, é aqui, no meio da multidão de teus
semelhantes, que deves falar a tua companheira e descobrir teu
próprio coração. Ó confidência, é aqui que serás permutada!
Sobremesas de vários andares cremosos audaciosamente
superpostos, servidas em cúpulas de um metal misterioso, de pé alto
mas rapidamante lavadas e infelizmente sempre mornas, permitem
aos consumidores que decidiram que elas fossem dispostas diante
deles manifestarem melhor do que através de outros sinais os
sentimentos profundos que os animam. Para um, é o entusiasmo
que lhe proporciona a presença a seu lado de uma datilógrafa
magnificamente ondulada, pela qua1 ele não hesitaria em cometer
mil outras custosas loucuras do mesmo tipo; para outro, é a
preocupação em exibir uma frugalidade de bom-tom (comeu antes
apenas uma leve entrada) conjugada com um gosto promissor de
guloseimas; para alguns é assim que se mostra um desgosto
aristocrático por tudo aquilo que neste mundo não participa nem
um pouco sequer da fantasmagoria; outros, enfim, pela maneira
com que degustam, revelam uma alma nobre e embotada, e um
grande hábito e saciedade do luxo.
Aos milhares, entretanto, as migalhas loiras e grandes
impregnações rosadas apareceram ao mesmo tempo nos panos
esparsos ou estendidos.
Um pouco mais tarde, os isqueiros assumem o primeiro papel;
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de acordo com o dispositivo que aciona a roda serrilhada ou a maneira
com que são manipulados. Enquanto, levantando os braços num
movimento que descobre nas axilas sua maneira pessoal de arvorar
os emblemas da transpiração, as mulheres se penteiam ou maneiam
o tubo de maquiagem.
É o momento em que, num bulício recrudescente de cadeiras
removidas, de esfregões estalidantes, de crostas trituradas, vai se
cumprir o derradeiro rito da singular cerimônia. Sucessivamente,
de cada um de seus hóspedes, as garçonetes, das quais um bloco
habita o bolso e os cabelos um pequeno lápis, aproximam os ventres
apertados de maneira tão tocante pelas tiras do avental: entregam-se
de memória a uma rápida estimativa. E então que a vaidade é punida
e a modéstia recompensada. Moedas e cédulas azuis se trocam nas
mesas: parece que cada qua1 tira o corpo fora.
Fomentado, entretanto, pelas empregadas durante os últimos
serviços da refeição da noite, pouco a pouco se propaga e a portas
fechadas se conclui um levantamento geral do mobiliário, graças ao
qual as tarefas úmidas da limpeza são imediatamente empreendidas
e sem dificuldade terminadas.
É então somente que as trabalhadoras, uma a uma, sopesando
alguns vinténs que tilintam no fundo de seu bolso, com o pensamento
a refluir em seu coração de algum filho deixado com a babá no
campo ou cuidado por vizinhos, abandonam com indiferença esses
locais apagados, enquanto da calçada de frente o homem que as
aguarda já não distingue mais que uma vasta manada de cadeiras e
de mesas, de orelha em pé, umas por sobre as outras erguidas a
contemplar com hebetude e paixão a rua deserta.
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124
ANOTAÇÕES PARA UMA CONCHA
125
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e mesmo a mansão, o castelo mais suntuoso feitos para um só homem
são ainda mais comparáveis a uma colmeia ou a um formigueiro
com numerosos compartimentos do que a uma concha. Quando o
senhor sai de sua morada, causa por certo menos impressão do que
quando o bernardo-eremita deixa entrever sua pinça monstruosa na
embocadura do búzio soberbo que o alberga.
Posso me comprazer em considerar Roma, ou Nîmes, como o
esqueleto esparso, aqui a tíbia, ali o crânio de uma antiga cidade
viva, de um antigo vivente, mas será preciso, então, imaginar um
enorme colosso de carne e ossos, que não corresponde realmente a
nada do que se pode razoavelmente inferir do que nos ensinaram,
mesmo com o auxilio de expressões no singular, como o Povo
Romano, ou a Multidão Provençal.
Como eu gostaria que pelo menos uma vez me fizessem entrever
que um tal colosso realmente existiu, que nutrissem de algum modo a
visão por demais fantasmagórica e puramente abstrata, sem nenhuma
convicção que dele concebo! Que me fizessem tocar as suas faces, a
forma de seu braço e o modo como o colocava ao longo de seu corpo.
Com a concha temos tudo isso: nela estamos, carne em carne,
profundamente; não deixamos nunca a natureza: o molusco ou o
crustáceo nela estão presentes. Daí, uma espécie de inquietação que
decuplica o nosso prazer.
Não sei bem por quê, desejaria que o homem, em lugar desses
enormes monumentos que não testemunham senão a desproporção
grotesca de sua imaginação e de seu corpo (ou então de seus ignóbeis
costumes sociais, conviviais), em lugar ainda dessas estátuas feitas
em sua escala ou um pouco maiores (estou pensando no David de
Michelangelo) que apenas e tão-somente o representam, esculpisse
coisas em feitio de nichos, de conchas de seu tamanho; coisas, enfim,
hem diferentes de sua forma de molusco, mas, apesar disso, bem
proporcionais a ele (as palhoças das tribos africanas são, para mim,
bastantesatisfatórias,dessepontodevista);queohomemdispensasse
seus cuidados em criar para as gerações uma morada não muito
maior que o seu corpo, em que estivessem contidas todas as suas
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imaginações, suas razões; que ele empregasse seu gênio ao
ajustamento, não à desproporção ou, pelo menos, que o gênio
reconhecesse os limites do corpo que o suporta.
E não admiro nem mesmo aqueles como Faraó que fazem
executar por uma multidão monumentos para um apenas: preferiria
que ele empregasse essa multidão numa obra não muito maior ou
não tão maior que seu próprio corpo, ou o que teria sido mais
meritório ainda, que testemunhasse sua superioridade sobre os outros
homens pelo caráter de sua própria obra.
Desse ponto de vista, admiro sobretudo certos escritores
ou músicos comedidos, Bach, Rameau, Malherbe, Horácio,
Mallarmé , os escritores acima de todos os outros, porque
seu monumento é feito da verdadeira secreção do molusco homem,
da coisa mais proporcional e condicionada ao seu corpo, e,
contudo, a mais diferente de sua forma que se pode conceber,
isto é: a PALAVRA.
Ó Louvre de leitura, que poderá ser habitado, após o fim da
raça, talvez por outros hóspedes, alguns macacos, por exemplo, ou
algum pássaro, ou algum ser superior, como o crustáceo substitui o
molusco na “tiara bastarda”.
E depois, com o fim de todo o reino animal, o ar e a areia em
pequenos grãos lentamente aí penetram, enquanto no solo reluz ainda
e se desgasta, e vai brilhantemente se desagregar, ó estéril, imaterial
poeira, ó brilhante resíduo, embora interminavelmente revolvido e
triturado entre os laminadores aéreos e marinhos, ENFIM! não há
mais ninguém e nem é possível re-formar areia, nem mesmo vidro,
e ACABOU!
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AS TRÊS LOJAS
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AINDA EMBORA MINIMAMENTE UMA GESTA, ISTO
É, O ERRO, O PASSO EM FALSO, E TODOS OS MAL-
ENTENDIDOS POSSÍVEIS.”
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FAUNA E FLORA
Não têm voz. São mais ou menos paralíticos. Não podem chamar
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a atenção a não ser por suas poses. Não parecem conhecer as dores
da não-justificação. Mas não poderiam em absoluto escapar pela
fuga dessa obsessão, ou acreditar escapar dela, na embriaguez da
velocidade. Não há neles outro movimento que não a extensão.
Nenhumgesto,nenhumpensamento,talveznenhumdesejo,nenhuma
intenção, que não resulte num monstruoso crescimento de seu corpo,
numa irremediável excrescência.
Ou antes, o que é bem pior, nada de monstruoso por desventura:
malgrado todos os esforços para “se exprimirem”, não chegam jamais
senão a repetir um milhão de vezes a mesma expressão, a mesma folha.
Na primavera, quando, cansados de se reprimirem e não agüentando
mais, deixam escapar uma torrente, um vômito de verde, e acreditam
entoar um cântico variado, sair de si próprios, estender-se a toda a
natureza, enlaçá-la, ainda não conseguem realizar senão, em milhares
de exemplares, a mesma nota, a mesma palavra, a mesma folha.
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Essa modificação da sempiterna folha significa certamente
alguma coisa.
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exprimem de vários modos, a respeito de mil preocupações de
alojamento, de alimentação, de defesa, de certos jogos, enfim, quando
lhes é concedido um certo descanso.
Os segundos, que desconhecem essas necessidades prementes,
não se pode afirmar que não tenham outras intenções ou vontade
senão de crescer, mas em todo caso qualquer vontade de expressão
de sua parte é impotente, salvo para desenvolver seu corpo, como se
cada um de nossos desejos nos custasse a obrigação doravante de
nutrir e de suportar um membro suplementar. Infernal multiplicação
de substância por ocasião de cada idéia! Cada desejo de fuga me
sobrecarrega com um novo elo!
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Nenhum gesto de sua ação tem efeito fora deles próprios.
Os vegetais à noite.
A exalação do ácido carbônico pela função clorofiliana, como
um suspiro de satisfação que durasse horas, como quando a corda
mais grave dos instrumentos de cordas, tão frouxa quanto possível,
vibra no limite da música, do som puro, do silêncio.
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ASSIMILAM OS SAIS MINERAIS. DAÍ A QUALIDADE
ESSENCIAL DESSE SER, LIBERTO AO MESMO TEMPO DE
QUAISQUER PREOCUPAÇÕES DOMICILIARES E
ALIMENTARES PELA PRESENÇA EM SUA VOLTA DE UM
RECURSO INFINITO DE ALIMENTOS: A imobilidade.
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O CAMARÃO
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às quais o olho, num tão puro espessor, que mal se distingue da tinta
de escrever, a despeito de todos os seus esforços, jamais percebe
nada ao certo. Uma diafaneidade tão útil quanto seus saltos obsta,
enfim, à sua presença, mesmo imóvel sob os olhares, toda
continuidade.
Achamo-nos, aqui, exatamente no ponto em que é importante,
por causa dessa dificuldade e dessa dúvida, que não prevaleça na
mente uma ilusão vacilante, graças à qua1 esse ser, pela atenção
ludibriado e quase em seguida rendido à memória, não se
conservaria senão como um reflexo, ou a sombra evolada e boa
nadadora dos tipos de uma espécie representada de modo mais
tangível nos baixios rochosos pelo lavagante, pela lagosta, pelo
lagostim e por uma espécie de camarão-lagosta dos riachos frios.
Não, sem nenhuma dúvida, ele vive tanto quanto essas carroças
desajeitadas, e conhece, embora em uma condição menos terra-
a-terra, todas as dores e as angústias que a vida em toda a parte
pressupõe... Se a extrema complicação interior que os anima não
deve, às vezes, impedir-nos de honrar as formas mais
características de uma estilização à qua1 eles têm direito, para
tratá-los, quando necessário, em seguida, como ideogramas
indiferentes, não é preciso, contudo, que essa utilização nos poupe
das dores simpáticas que a constatação da vida provoca
irresistivelmente em nós: uma exata compreensão do mundo
animado, sem dúvida, tem seu preço.
O que poderia, além disso, aumentar mais ainda o interesse por
uma forma, a não ser a observação de sua reprodução e disseminação
pela natureza aos milhões de exemplares à mesma hora e em toda parte,
tanto nas águas frescas e copiosas do bom como do mau tempo? Que
um grande número de indivíduos padeçam dessa forma, sofram sua
danação particular, no mesmo número de locais, essa é a conseqüência
que nos reserva a provocação do desejo de percepção clara. Objetos
pudicosenquantoobjetos,parecendoquerersuscitaradúvidanãotanto
cada um deles sobre sua própria realidade quanto sobre a possibilidade
aseurespeitodeumacontemplaçãoumpoucolonga,deumapossessão
ideal um pouco satisfatória; poder pronto, centrado em sua cauda, a
cortar a conversa a cada palavra: é, sem dúvida, na cinemática, mais
que na arquitetura, por exemplo, que um tal motivo poderá, enfim,
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ser utilizado... A arte de viver, antes de tudo, deveria tirar proveito
disso: era preciso que aceitássemos esse desafio.
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VEGETAÇÃO
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mesmo quando ela já não cai. Finalmente, encontra-se ainda água
em certas ampolas que eles formam e que carregam com uma
ruborescente afetação, e que se chamam seus frutos.
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O SEIXO
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conserve um público e objetos, mortos ou prestes a morrer, nem
por isso deixam de continuar em torno dela sua ronda, seu serviço
de espectadores.
Compreende-se que semelhante sacrifício, a expulsão da vida
para fora de naturezas noutros tempos tão gloriosas e tão ardentes,
não se tenha dado sem dramáticos transtornos internos. Eis a origem
do caos cinzento da Terra, nossa humilde e magnífica morada.
Assim, após um período de torsões e de dobras semelhantes às
de urn corpo que se agita dormindo sob os cobertores, nosso herói,
dominado (por sua consciência) como por uma monstruosa camisa-
de-força, não conheceu mais senão explosões íntimas, cada vez mais
raras, de efeito rompante sobre um invólucro cada vez mais pesado
e frio.
Ele morto e ela caótica estão hoje confundidos.
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Descreverei então algumas das formas que a pedra atualmente
esparsa e humiliada pelo mundo mostra a nossos olhos.
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rochosos dos gigantes espectadores em suas orlas dos esforços
espumantes de suas mulheres abatidas incessantemente arranca
blocos que guarda, enlaça, balança, acarinha, repisa, malaxa, bajula
e pole em seus braços contra o corpo ou abandona num canto da
boca como uma drágea, depois expele da boca, e depõe numa orla
hospitaleira em suave declive no meio de um rebanho já numeroso
a seu alcance, visando a retomá-la logo mais para dela cuidar mais
afetuosamente, apaixonadamente ainda.
Entretanto o vento sopra. Faz voar a areia. E, se uma dessas
partículas, forma última e a mais ínfima do objeto que nos ocupa,
chega a introduzir-se realmente em nossos olhos, é assim que a
pedra, pela maneira de ofuscar que lhe é característica, pune e encerra
nossa contemplação.
A natureza fecha-nos assim os olhos quando é chegado o
momento de inquirir no interior da memória se as informações que
uma longa contemplação nela acumulou não a teriam já provido de
alguns princípios.
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crer que inveja a solidez indestrutível do cenário que habita, na
verdade ela assiste à desagregação contínua desse cenário. E é esta a
unidade de ação que lhe parece dramática: ela pensa confusamente
que seu suporte pode um dia lhe falhar, enquanto ela própria se
sente eternamente ressuscitável. Num cenário que renunciou a se
comover, e só pensa cair em ruínas, a vida se inquieta e se agita por
não saber senão ressuscitar.
É verdade que a própria pedra se mostra às vezes agitada. É em
seus últimos estados, enquanto seixos, saibro, areia, poeira, ela já
não é capaz de desempenhar seu papel de continente ou de suporte
das coisas animadas. Desamparada pelo bloco fundamental ela rola,
voa, reclama um lugar na superfície, e toda vida então recua para
longe das melancólicas áreas onde alternadamente a dispersa e a
reúne o frenesi do desespero.
Observarei finalmente, como um princípio importantíssimo, que
todas as formas da pedra, que representam todas algum estado de
sua evolução, existem simultaneamente no mundo. Aqui não há
gerações, não há raças desaparecidas. Os Templos, os Semideuses,
as Maravilhas, os Mamutes, os Heróis, os Ancestrais ladeiam cada
dia os netos. Cada homem pode tocar em carne e osso todos os
possíveis desse mundo em seu jardim. Não há concepção: tudo existe;
ou antes, como no paraíso, toda a concepção existe.
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Ainda alguns dias sem significação em qualquer ordem prática
do mundo, aproveitemos suas virtudes.
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E nada mais direi, pois essa idéia de um desaparecimento de
signos me leva a refletir sobre os defeitos de um estilo que insiste
por demais nas palavras.
Sumamente feliz apenas por ter sabido para esta estréia escolher
o seixo: pois um homem de espírito só poderá sorrir, mas sem dúvida
será tocado, quando meus críticos disserem: “Tendo empreendido
escrever uma descrição da pedra, ele se empedrou.”
171
NOTAS
173
Salvador, 14 set. 1996, Cademo A Tarde Cultural, p. 7; na Gazeta
do Povo, Curitiba, 2 fev. 1998, Caderno G, p. 8; e em Dimensão,
Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 123.
174
Francis Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 35; A.M.
Jr. e C.L. A Tarde, Salvador, 27 mar. 1999, Cademo A Tarde Cultural,
p. 2.
175
na Revista USP, São Paulo, Universidade de São Paulo, mar./abr./
maio 1989, p. 70.
176
O seixo [1927 ou 1928]. Outra tradução, publicada sob forma de
plaqueta: Francis Ponge. O seixo. Trad. Carlos Loria. Salvador:
Audience of One, 1994.
177
CRONOLOGIA
179
Publica “Plus-que-raisons” na revista Le surréalisme au
service de la révolution.
1931 - É admitido em Messageries Hachette. Casa-se com Odette
Chabannel, de 20 anos.
1935 - Nasce Armande, filha única de Odette e Francis Ponge.
1936 - Ponge torna-se líder sindical dos funcionários da Hachette.
1937 - Filia-se ao Partido Comunista Francês e é demitido pela
1938 - Hachette.
Passa a trabalhar em companhias de seguros.
1940 - Durante a Segunda Guerra, é membro ativo da Resistência.
Trabalhando nos escritórios da C.O.A. (Funcionários e
Operários de Administração), é mobilizado perto de Rouen.
1942 - Publicação de Le parti pris des choses pela Gallimard. Ponge
assume um posto de chefia no diário Progrès de Lyon, onde
publica 53 artigos anônimos sob o título Hors Sac.
1944 - Ponge dirige a seção literária de Action, órgão comunista
de Louis Aragon, até 1946, quando se desentende com o
Partido Comunista Francês, do qual se afastará no ano
seguinte.
1948 - Durante uma viagem à Argélia, Ponge redige, entre outros
textos, “My creative method”. Publicação de Proêmes pela
Gallimard.
1950 - Ponge profere conferência em Florença. Durante as duas
décadas a seguir, outras conferências serão proferidas na
França, na Bélgica, na Alemanha, na Itália, na Iugoslávia,
no Canadá e nos Estados Unidos.
1952 - Ponge leciona na Aliança Francesa, em Paris, função que
exercerá até 1964, quando se aposentará. A editora suíça
Mermod publica La rage de l’expression, que representa uma
virada na prática poética do autor.
1954 - Publicação do Texte sur l’électricité, que fora encomendado
pela E.D.F. (Électricité de France).
1956 - A Nouvelle revue française edita um número especial em
homenagem a Francis Ponge.
1959 - Ponge recebe um prêmio de poesia em Capri (Itália) e a
comenda da Legião de Honra da França.
180
1960 - Publicação de “La figue” como texto de abertura do n. 1 da
revista Tel Quel.
1961 - Francis Ponge adquire a casa de campo “Le Mas des
Vergers”, na Provença. Publicação, pela Gallimard, dos
três volumes de Le grand recueil: t. 1, Lyres; t. 2, Méthodes;
t. 3, Pièces.
1965 - Publicação, pela Gallimard, de Pour un Malherbe e do Tome
premier (que compreende Douze petits écrits, Le parti pris
des choses, Prôemes, La rage de l’expression, Le peintre à
l’étude e La Seine).
1966 - Ponge é professor visitante na Universidade Colúmbia, em
Nova Iorque, até o início do ano seguinte.
1967 - Publicação, pela Gallimard, de Le savon e do Nouveau
recueil. A rádio France-Culture difunde, de 18 de abril a 12
de maio, os diálogos de Francis Ponge com Philippe Sollers.
1970 - Publicação, pela Gallimard/Seuil, de Entretiens de Francis
Ponge avec Philippe Sollers.
1971 - Publicação de La fabrique du pré pela editora Skira, de
Genebra.
1973 - Ponge recebe o Prêmio Internacional de 1972 de The Ingram
Merrill Foundation.
1974 - Ponge publica o libelo Mais pour qui donc se prennent ces
gens-là? após sua polêmica com Tel Quel. Recebe da
Universidade de Oklahoma o Prêmio Internacional de
Literatura Books Abroad Neustadt.
1975 - Realiza-se, em agosto, no Centro Cultural Internacional de
Cerisy, o colóquio Ponge inventeur et classique, com a
presença do poeta.
1977 - Publicação de L’atelier contemporain pela Gallimard, de
Comment une figue de paroles et pourquoi pela Flammarion
e de L’écrit Beaubourg pelo Centre Georges Pompidou.
1981 - Ponge recebe o Grande Prêmio Nacional de Poesia da França.
A revista Études françaises realiza a primeira edição de La
Table.
1983 - Publicação de Nioque de l’avant-printemps pela Gallimard
e de Petite suite vivaraise pela Fata Morgana.
181
1984 - Publicação, pela editora Hermann, de Pratiques d´écriture
ou l’inachèvemebnt perpétuel.
1986 - Publicação, pela Gallimard, da Correspondance entre Jean
Paulhan e Francis Ponge, em 2 volumes.
1988 - FrancisPongemorrenodia6deagostoemBar-sur-Loup.É
inumado no dia 10 no cemitério protestante de Nîmes. Em
setembro, o número 12 da revista Paris. Tête d’affiche
consagra-lhesuapáginadecapa,comumahomenagemde
Jacques Chirac, então prefeito de Paris. No dia 20 de setembro,
é inaugurada uma praça Francis-Ponge em Montpellier.
1989 - Emissão, em 2 de fevereiro, pelos Correios da França, na
série “Poetas franceses do século XX” (Paul Éluard, André
Breton, Louis Aragon, Jacques Prévert, René Char), de urn
selo com a efígie de Francis Ponge.
1992 - Publicação, pela Gallimard, dos três volumes do Nouveau
nouveau recueil.
1998 - Publicação, pela editora Stock, da Correspondance Ponge-
Tortel.
1999 - Publicação, pela Gallimard, do volume 1 de Œuvres
complètes, na coleção “Bibliothèque de la Pléiade”.
182
Obras de Francis Ponge traduzidas em português
13 escritos. Júlio Castañon Guimarães (trad.). Ilha de Santa Catarina: Noa Noa,
1980.
O caderno do pinhal. Leonor Nazaré (trad.). Lisboa: Hiena, 1986.
O seixo. Carlos Loria (trad.). Salvador: Audience of One, 1994.
Alguns poemas. Manuel Gusmão (trad.). Lisboa: Cotovia, 1996.
Métodos. Leda Tenório da Motta (trad.). Rio de Janeiro: Imago, 1997.
No prelo:
A mesa. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson (trad.). São Paulo: Hucitec.
Doze pequenos escritos. Ignacio Antonio Neis, Michel Peterson e Ricardo Iuri
Canko (trad.).
183
SOBRE O AUTOR
NESTA EDITORA
FRANCIS PONGE
O OBJETO EM JOGO
OS AMORES AMARELOS
Tristan Corbière
Tradução de Marcos Antônio Siscar
CANTO DO DESTINO
Friedrich Hölderlin
Tradução de Antonio Medina Rodrigues
CARIBE TRANSPLATINO
Néstor Perlongher (org.)
Tradução de Josely Vianna Baptista
CREPÚSCULO
Stefan George
Seleção, ensaio e tradução Eduardo de Campos Valadares
CRISTAL
Paul Celan
Seleção e tradução de Claudia Cavalcanti
DE PROFUNDIS
Georg Trakl
Tradução de Claudia Cavalcanti
LITANIAS DA LUA
Jules Laforgue
Tradução e apresentação de Régis Bonvicino
MÚSICA DE CÂMARA
James Joyce
Tradução, introdução e notas de Alípio Correia de Franca Neto
POEMAS
Sylvia Plath
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça
POESIA
Mario de Sá-Cameiro
Fernando Paixão (org.)
O NU PERDIDO
René Char
Tradução de Augusto Contador Borges
OBRA COMPLETA
Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont
Tradução e apresentação de Claudio Willer
OBRA POÉTICA
Yves Bonnefoy
Tradução e apresentação de Mário Laranjeira
190
Este livro terminou
de ser impresso no dia
21 de fevereiro de 2000
nas oficinas do
Centro de Estudos Vida e
Consciência Editora Ltda.,
em São Paulo, São Paulo.