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Organização

lgnacio Antonio Neis e Michel Peterson


Nascido em Montpellier em 1899, e
falecido em Bar-sur-Loup em 1988,
Francis Ponge assistiu à maior
parte dos grandes movimentos
poéticos franceses do século XX,
do Surrealismo a Tel Quel. Dos
textos curtos, aparentemente
fechados a sete chaves, do
Partido das coisas (1942)
até os imensos dossiês de
reescritura, dos quais La Table (1981)
representa de certa
forma o testamento, é
com uma notável
tenacidade que o autor
se impõe como tarefa
limpar a língua de sua
sujeira, confrontando o
mundo das coisas com
o da linguagem pelo
viés de uma prática
que visa a fundar uma
nova Palavra, próxima
do provérbio.
Saudado, entre
outros, por Bernard
Groethuysen,
Jean-Paul Sartre,
Maurice Blanchot,
Alain Robbe-Grillet e
Philippe Sollers,
o discipulo de Jean
Paulhan propõe um
trajeto metapoético no
qual o ato de escrever
constitui o próprio
escrever, objeto de
uma ciência em que o
dicionário Littré e a
Bíblia luterana vêm
moldar o espaço
mental.
Alternadamente
comunista, resistente,
sindicalista, agente de
seguros e professor na
Aliança Francesa,
recipiendário dos
mais prestigiosos
prêmios literários
e amigo íntimo de
vários artistas
renomados, entre
os quais
Georges Braque
e Alberto Giacometti,
Ponge é,
incontestavelmente,
um dos escritores
maiores do século que
finda. Fenomenólogo,
sem dúvida, por
momentos, ele
permanece contudo
um humanista
incontornável,
apaixonado por urn elo
espiritual entre o
Homem, a Natureza e
a História.

Michel Peterson
Francis Ponge

O PARTIDO DAS COISAS

Organização
Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

Introdução
Michel Peterson

Traduções de
Adalberto Müller Jr. Carlos Loria,
Ignacio Antonio Neis,
Júlio Castañon Guimarães, Michel Peterson
Título original: Le parti pris des choses

Copyright O: Editions Gallimard, 1942

Copyright O desta edição e tradução: Editora Iluminuras Ltda.

Capa e ilustração de contracapa: Fê


sobre Mandolin e clarineta (1914), pintura sobre madeira de pinho [58 x 36 x 23
cm], Pablo Picasso (Paris). Cortesia do Musée Picasso, Paris. No marcador,
Francis Ponge diante de porta pintada por Dubuffet (foto de Roland d'Ursel).

Revisão: Maria Regina Ribeiro Machado

Filmes de capa: Fast Film - Editora e Fotolito

Composição e filmes de miolo: Iluminuras

ISBN: 85-7321-116-4

Apoio cultural: via net.works

Cet ouvrage, publié dans le cadre du programme de participation à la


publication, bénéficie du soutien du Ministère Français des Affaires Etrangères, de
l'Ambassade de France au Brésil et du Consulat Général de France à São Paulo.

Este livro, publicado no âmbito do programa de participação a publicação,


contou com o apoio do Ministério Francês das Relações Exteriores, da Embaixada
da França no Brasil e do Consulado Geral da França em São Paulo.

2000
EDITORAILUMINURASLTDA.
Rua Oscar Freire, 1233 - CEP 01426-001 - São Paulo - SP - Brasil
Tel. : (0xxl1)3068-9433 / Fax: (0xxl1)282-5317
E-mail: iluminur@iluminuras.com.br
Site: http://www.iluminuras.com.br
SUMÁRIO

O PARTIDO DO POETA ................................................................ 9


Michel Peterson

NOTA SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO ..................................... 32

INTRODUÇÕES AO PARTIDO DAS COISAS............................ 37


Francis Ponge

O PARTIDO DAS COISAS / LE PARTIPRIS D ES CH O SES

Chuva (Pluie) ........................................................................... 47


O fim do outono (La fin de l’automne) ..................................... 51
Pobres pescadores (Pauvres pêcheurs) ..................................... 55
Rum das filifolhas (Rhum des fougéres) ................................... 57
As amoras (Les mûres) ............................................................. 59
O engradado (Le cageot) .......................................................... 61
A vela (La bougie) .................................................................... 63
O cigarro (La cigarette) ........................................................... 65
A laranja (L’orange) ................................................................ 67
A ostra (L’huître) ..................................................................... 71
Os prazeres da porta (Les plaisirs de la porte) ......................... 73
As árvores se desfazem no interior de uma esfera de nevoeiro. 75
(Les arbres se défont à l’intérieur d’une sphère de brouillard)
O pão (Le pain) ........................................................................ 77
O fogo (Le feu) ........................................................................ 79
O ciclo das estações (Le cycle des saisons) ................................. 81
O molusco (Le mollusque) .......................................................... 83
Caracóis (Escargots) ................................................................... 85
A borboleta (Le papillon) ............................................................ 93
O musgo (La mousse) .................................................................. 95
Bordas do mar (Bards de mer) .................................................... 97
Da água (De l’eau) .................................................................... 103
O pedaço de carne (Le morceau de viande) .............................. 107
O gymnasta (Le gymnaste) ....................................................... 109
A jovem miie (La jeune mère) .................................................. 111
R. C. Seine Nº (R. C. Seine Nº) ................................................. 113
O restaurante Lemeunier na rua da Chaussée d’Antin ............. 119
(Le restaurant Lemeunier rue de la Chaussée d’Antin)
Anotações para uma concha (Notes pour un coquillag ............ 125
As três lojas (Les trois boutiques) ............................................. 131
Fauna e flora (Faune et flore) .................................................... 135
O camarão (La crevette) ............................................................ 147
Vegetação (Végétation) ............................................................. 153
O seixo (Le galet) ...................................................................... 157

NOTAS ............................................................................................. 173

CRONOLOGIA ................................................................................... 179


O pardal Ponge pousou em 27 de março de 1899 no rebordo
do mundo. Levantou vôo em 6 de agosto de 1988.

Christian Bobin

Os organizadores prepararam este livro para homenagear Francis


Ponge por ocasião do centenário de seu nascimento.

Sentem-se os organizadores desta edição imensamente reconhecidos


pela inestimável colaboração que receberam de três outros tradutores:
Júlio Castañon Guimarães, que nos cedeu a tradução de quatro textos,
e Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria, que prepararam conjuntamente a
tradução de dez textos do Partido das coisas.
O PARTIDO DO POETA
Michel Peterson

À primeira vista, nada mais simples do que uma coisa. Quando,


após ter sido pego por seu perfume, tê-la contemplado enlevado e,
a seguir, cruel, ter quebrado seu caule, tomo, por exemplo, na mão
a flor que aqui está, cor e signo do inefável, elegância ática ou
estigma miraculoso, encontro uma existência que posso considerar
em seu conjunto ou em suas partes. Meu órgão toca certamente, não
um fungo, cifrando sua frutificação, mas o de um vegetal superior,
ostensivamente exibido. Fosse eu cego, e um treino, por mais distraído
que pudesse ter sido, teria sem dúvida alguma submetido à minha
mão a educação requerida para que eu me fiasse, tão seguro quanto
qualquer vidente, a minha memória ou a uma recordação digna de
meu espírito. Conjugando então minhas sensibilidades superficial e
profunda, eu viveria na tensão, capaz de nomear e de reconhecer
minha flor, apalpando no opaco as pregas de sua carne, localizando
os estimulos cutâneos que ela provoca em meus dedos, na palma de
minha mão, em meus músculos e até em minhas articulações e em
meu sangue. Poderia mesmo avaliar e comparar seu peso com o de
alguma outra flor que houvesse previamente, porventura ou por
ventura, encalhado em minha pele. Em suma, sua qualidade
diferencial seria incondicional.
Reacendamos por um instante o sol, e veremos que, além da
linguagem comum, que toma tudo e seu contrário por uma coisa, a
causa está longe de ser entendida. É preciso, sem dúvida, tomar seu
partido, sobretudo após o advento da Internet. No momento em que
as propriedades de nossos sentidos se vêem transformadas sob nossos

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olhos, pois sentire ressentir convocam doravante combinatórias ainda
ontem de manhã inéditas, a coisa já não se opõe simplesmente ao
fato, como na teoria clássica do conhecimento, mas lhe é por assim
dizer contígua. Os internautas bem que o sabem, eles que se riem
menos dos fenômenos do que se tartameleia tantas e tantas vezes.
Virtual ou não, a flor, real ou digitalizada, sempre necessitará de
intenção para advir à existência, para que eu possa designi-la como
tal, significar seu estar-em-flor, seu tornar-se-flor no horizonte da
consciência humana.
Aliás, que criança não está hoje instruída de que os sapatos de
amanhã já não terão mau cheiro, mas piscarão, ao passo que os
óculos dos grandes já não terão a função de corrigir a visão, mas de
exprimir, graças a minicaptadores, os sentimentos e as emoções de
quem os houver calçado? Para convencer-se disso, basta visitar o
site do MediaLab do MIT (Massachusetts Institute of Technology).
Os wearable computers (isto é, os computadores portáteis) que ali
são desenvolvidos dão a imaginar um mundo que não deixa de ter
afinidades com aquele no qua1 tu, leitor, vais entrar agora com teu
passo, com teu ritmo. Todavia, enquanto Francis Ponge queria dar
a palavra às coisas do mundo mudo, os pesquisadores aquilinos
parecem por assim dizer visar mais penetrante: doar-lhes o
pensamento. Eis o novo projeto: substituir as Things That Talk do
artesão por Things That Think. Velho debate, retransmitido, entre a
linguagem e o pensamento.
Os freqüentadores assíduos da obra do autor do Partido das coisas
dirão que ele jamais teria ousado forçar a flor que acabamos de
acariciar a dizer, e ainda menos a pensar. Terão razão, questão
elementar de ética e de direito. Sem pretender ingenuamente que a
coisa seja sui juris, dever-se-ia pelo menos, afirmará ele ao longo de
toda a vida, ouvir sua lição antes de possuí-la e de explorá-la, dando-
lhe até mesmo a Palavra, sem especular antecipadamente sobre o
investimento. Em suma, encontrar seu nó, tarefa problemática, por
vezes cumprida, freqüentemente adiada. Todavia os fracassos, tão
numerosos serão eles em função do proverbial objetivo, longe de
assegurarem o absurdo, desencadeiam um altivo movimento
energético que de minha parte considero como o umbigo do Partido:
trazer à luz as forças que fazem convergir o querer-viver e o querer-

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gozar do Universo, atitude humilde, mais que gesto, que consiste
em prestar ouvido às vibrações dos tampos harmônicos da Natureza.
Serena raiva e sutil silêncio do sujeito que um budista conseqüente,
persuadido como o discípulo de Crátilo da impermanêcia do mundo
fenomenal, respeitaria mas rejeitaria, pois conservam a potência do
eu e, conseqüentemente, o sofrimento congênito do homem. Artaud
talvez fosse mexicano, Michaux, chinês, Char, grego. Mas, como
Homero ou Paulo Leminski, o exotismo de Ponge é ocidental, só
que..., só que o ocidentalismo que ele professa e que conta com a
solidez dos fenômenos implica um soterramento do sujeito da
escritura que passa pela exibição de suas ferramentas, de sua tela, de
scu atelie.
O escrevedor da coletânea que se vai ler, combatendo a atrofia
de teus sentidos, cultiva um orgulho raro que consiste em eleger
como sujeitos de experiência coisas ao alcance da percepção e da
língua, sendo o alcance da palavra coisa de imediato tão amplo que
recorta aqui todos os reinos significantes: o mineral, o vegetal e o
animal, com todas as virtualidades de cruzamentos que se podem
sonhar, o que nos faz compreender que a mineralogia, a botânica e
a zoologia se desdobram em última análise numa verdadeira
antropologia. Pois relata-se, na quarta parte dos Proemas, intitulada
"Notas primeiras d’‘O homem’”: “O homem julga a natureza
absurda, ou misteriosa, ou madrasta. Bem. Mas a natureza não existe
a não ser pelo homem”. Os alunos que estejam freqüentando o pátio
do Partido objetivando perceptualmente todos os objetos que ali
encontram deixem, por favor, o recreio para repassar suas lições: o
homem é um sujeito amplo, sem dúvida; é a ele, porém, que o novo
classicísmo de Ponge, denegando a lógica pascaliana do coração,
aspira multiplicando os movimentos brownianos.
Judicioso, recusando violentamente a arte de persuadir pelo que
ela comporta de arrebatamento, o escritor que quer o Homem da
pós-revolução funda sua exploração nos quatro elementos: a terra, a
água, o ar e o fogo. Presidindo à obra, as divisões estabelecidas por
Lineu autorizam, todavia, tantas transgressões quantas classificações
(peixes-voadores surgem, por exemplo, no imperfeito nos Proemas).
Ora, esse arranjo confortável para o olho desatento é constantemente
ultrapassado por uma concepção mais oriental das relações entre os

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elementos, que se elevam a cinco: a madeira, o fogo, a terra, o
metal e a água. Estimulado por essa cinestesia, o Homo faber começa
então por transformar-se a si próprio interiormente a fim de acolher
a diversidade lucreciana do fenomenal. Encontra ele assim suas
razões para viver feliz para “egozijar” -se, no idioma de Segalen
e para extinguir-se sem ilusão, cinza aos quatro ventos? Forçados
a retorquir sorvendo o que é mais urgente, abramos agora a coletânea,
e veremos logo uma terra fervilhante de vermes a agitar-se sob o
monumento.

A extração de uma migalha

Ao percorrer estes trinta e dois textos escritos entre 1924 e 1939,


fica-se impressionado por sua dimensão mortífera. Esta pode ser
explicada de diversas maneiras, especialmente pela necessidade
terapêutica do neurótico à beira da descompensação por incapacidade
de assumir o trabalho do luto a não ser pela escritura em gestação.
Quando seu pai, Armand Ponge, morre em maio de 1923, a crise
golpeia assustadoramente, a tal ponto que o filho abandona seu
emprego de secretário na fabricação da NRF (Nouvelle Revue
Française) e se refugia em fantasmas sob a folhagem da árvore-
fantasma. A crítica tem ressaltado que outros motivos, igualmente
fecundos, certamente haviam levado Ponge a redigir O partido. Jean-
Charles Gateau resume-os, acrescentando à sublimação (a evitação
do suicídio) ou à “reeducação verbal” (cf. a primeira introdução da
coletânea aqui publicada) o exercício lúdico, a escuta proustiana
das coisas do mundo mudo, o desejo desenfreado de conseguir um
lugar junto a Malherbe no panteão da literatura francesa e universal,
bem como a fundação de um novo humanismo estabelecido contra
a angústia kierkegaardiana. Sobre esse último objetivo, a cláusula
dos “Caracóis” não deixa pairar dúvida alguma: “Mas qua1 é a noção
própria do homem: a palavra e a moral. O humanismo”.
Mesmo confundidas e calibradas todas as raz6es diferentemente
deacordocomasidades,mesmoassociadoshumanismoeobjetivismo
num mesmo projeto, o certo é que a morte obseda cada página do
livro. Sua tematização talvez constitua uma passagem obrigatória

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do artesão verde que procura escapar ao fato, puramente exorbitante
para o ser, de que as palavras nos usam vulgarmente, nos falam
mais do que nós as falamos. Como então dar-lhes crédito, como dar
a palavra às coisas? Nessa perspectiva, o dom só é possível se se
levarem em conta as palavras, sem soçobrar na ilusão cratilista de
sua adequação às coisas. Ponge roçarà a armadilha mùltiplas vezes
(a crítica se arremessará nela freqüentemente às cegas), mas as
“variantes”eas“repetições”serãojustamenteoqueoimpedirásempre
de cair nela. Retomarei o assunto logo mais.
Em dezembro de 1935, Jean Paulhan, então secretário da NRF,
já tem em mãos vários dos textos que comporão a obra. Julho de
1937, o livro está finalmente pronto. Intitula-se então Sapates
(Sapatos). Vários outros títulos foram entrementes experimentados:
Approbation de la nature (Aprovação da natureza), Art poétique
(Arte poéica), Façons d’être (Maneiras de ser) e ate, de feitio menos
inaterialista e mais existencialista, Étres (Seres), simplesmente. Dito
isso, a rejeição de Sapates é, sem dúvida alguma, uma sábia decisão,
pois o termo, definido por Littré como “Presente considerável, dado
sob a forma de outro que o é muito menos, um limão, por exemplo,
e há dentro um grande diamante”, de qualquer forma só teria
englobado certos textos (cujo protótipo é “A ostra”) da coletânea,
que poderia igualmente ter sido intitulada, como confessa o próprio
Ponge, Trente arts poétiques (Trinta artes poéticas) ou Trente fables
avec leurs morales (Trinta fábulas com suas morais).
O que acontece a seguir?A crítica ainda tenta reconstituir a história
dos mal-entendidos que contribuiram para o atraso da publicação
da obra cem vezes retomada. No estado atual da pesquisa, tem-se
como certo que somente em 1938 Paulhan teria respondido a Ponge,
entregando-lheeste o manuscrito final (tal como o havia pessoalmente
concebido) em 1939. Em junho do mesmo ano, Paulhan queixa-se
da introdução proposta, “Introduction aux sapates” (”Introdução aos
sapatos”), a qua1 é imediatamente retirada e só será publicada nos
Proemas sob o título “Préface aux sapates” (”Prefácio aos sapatos”).
A guerra adia a publicação e, em 1941, Paulhan escreve a Ponge
que o manuscrito foi perdido. Pânico: Ponge não possui cópia! Mas
o grande manitu reencontra-o “milagrosamente” e, sobretudo,
reformula-o segundo seu gosto, suas chaves, seus padrões e sua

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concepção parnasiana da coletânea. Corta, costura, faz tudo o que é
possível (felizmente, e evidentemente, sem sucesso) para riscar o
“eu”. Elimina igualmente todas as peças em versos, retendo apenas
as prosas, o que não impede que vários poemas conservem a memória
métrica e constituam até o que Ponge denominará uma “feno-
menologia da estrofe”, fenomenologia que só pode ser entendida no
âmbito mais amplo de um projeto propriamente anárquico de limpeza
da língua.
Surpreso, mas infinitamente reconhecido, o jovem vê finalmente
seu livro publicado em 1300 exemplares, em maio de 1942
(encadernado segundo maqueta de Paul Bonet), na prestigiosa
coleção “Metamorphoses” (n. 13) da NRF. Naquele momento, é
chefe de escritório para Le Progrès, de Lyon, em Bourg-en-Bresse,
e acolhe em sua casa resistentes da Frente Nacional dos Escritores.
Escreve em pleno período surrealista, sendo sua obra, portanto,
publicada sob a Ocupação, o que explica, além de certas “defasagens”,
as dificuldades encontradas para sua difusão, bem como a lentidão
da crítica em se manifestar. A reedição, em 1945 (desta vez em
1525 exemplares), quando Ponge já reside em Paris, no apartamento
da rua Lhomond que lhe foi cedido por Jean Dubuffet, fará com
que o livro saia um pouco do circulo restrito dos admiradores. Será
necessário, todavia, esperar a terceira tiragem, em 1949 (3300
exemplares), para que o pequeno objeto alce vôo. Retomado em
1965 no Tome premier, na coleção “Blanche” de Gallimard, e a
seguir na coleção de bolso “Poésie/Gallimard”, em 1967, ele
encontrará finalmente seu público.
Como se fosse preciso exagerar, acrescentemos a esse “azar
editorial" (a expressão pertence a Danièle Leclair) o lado caracol ou
até tartaruga de Ponge. Seus contemporâneos Michaux, Breton,
Éluard, Char, Leiris, Aragon e outros publicam naquela época
sem trégua. Entretanto, Ponge escreve muito. Sua reserva deve-se
pelo menos tanto ao pudor e ao rigor do escritor atormentado pela
dúvida quanto às contingências do processo editorial. A publicação
do Partido não desvenda, alias, senão uma pequena parte da massa.
Será preciso esperar até quarenta anos para descobrir certos textos.
Um conjunto tão capital para a compreensão do método pongiano
quanto “O sol colocado em abismo” só virá à luz em 1961, em

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Piéces, terceiro tomo do Grand recueil. Deve-se dizer que, neste
caso, o dossiê de escritura, empreendido já em 1928, só é terminado
em 1954. Mas esse fenômeno está longe de constituir a regra.
Excetuando-se “La guêpe” (“A vespa”), acabado em 1943, e “O
cravo”, que se conclui em 1944, todos os textos do diário poético
que é La rage de l’expression estão terminados antes da publicação
do Partido das coisas. Da mesma forma, 25 dos 58 textos que
formam o primeiro tomo (Lyres) da mesma obra são escritos entre
1923 e 1942, ao passo que os onze primeiros textos do Nouveau
rccueil (1967) se escalonam de 1921 a 1941. A petite suite vivaraise,
publicada em 1983, é composta em julho-agosto de 1937, e, além
de uma série consagrada a Aragon que data dos anos 20, encontram-
se em Pratiques d’écriture, revelado em 1984, algumas pranchas do
mesmo período. A isso devem-se acrescentar os Souvenirs
interrompus, publicados em 1979 na NRF, mas consignados como
de 12 de setembro de 1939 a 9 de junho de 1940, bem como o
conjunto do primeiro tomo do Nouveau nouveau recueil (1992),
que reúne esboços de 1923 a 1942. Em suma e este é um aspecto
absolutamente essencial de sua recepção , se é verdade que o
Partido forma uma coletânea homogênea, cuja perfeição formal se
tornou quase marca comercial, deve-se a qualquer preço lê-lo pelo
que é: o traço de um magma lógico em ebulição.
Somente considerando essa estranha cronologia é que se
compreenderá por que será preciso esperar o artigo publicado por
Sartre em 1944 (”L’homme et les choses”) para que nasça um
leitorado. Não surpreende que O partido se veja, num primeiro
momento, classificado na corrente fenomenológica. Se é muito
duvidoso que Ponge já tenha lido os filósofos alemães no momento
em que lança suas primeiras migalhas no papel, não deixa de ser
verdade que ele se inscreve no amplo movimento da época que rejeita
o psicologismo e o pragmatismo, movimento esse que se instala no
fim dos anos 20, no momento em que Levinas, após haver assistido
à celebre polêmica entre Cassirer e Heidegger sobre Kant, leva
Blanchot (com quem Ponge entreterá em toda sua obra uma discreta
conversação) a descobrir a ciência eidética. A contemplação lógica
de Ponge, que pode parecer beata, interroga, na realidade, como
Husserl, as condições do conhecimento do mundo. Também ele

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prescruta com o olho na lupa, procura deitar um olhar novo sobre
as coisas. Exceto num detalhe, e de monta: a linguagem. Como
Blanchot, Ponge, quando traçar signos, lembrar-se-á de Nietzsche e
de Freud. A presença da consciência a si própria, ensinada pelo
mestre de Friburgo, levantará então espinhosos problemas de
expressão e de estética. Mas o estilo fenomenológico impregnará
sempreaatitudedosdoisescritores.Consolidadoporessaassimilação,
por Sartre, à fenomenologia, O partido, que será igualmente puxado
para o lado do absurdo, poderá então voar doravante com suas
próprias asas. Nos anos 60, Robbe-Grillet fará dele um símbolo das
teorias apregoadas pelo Novo Romance, e depois Tel Quel por sua
vez se apoderará dele nos anos 70, até que Ponge rompa violentamente
com o movimento e, sobretudo, com sua prática.

A parte das coisas

Um exame rápido da estrutura definitiva do Partido das coisas


revela três camadas cronológicas. Enquanto as prosas que têm por
tema coisas ligadas à aquática (a ostra, o camarão, a concha, o seixo)
datam todas de 1926 a 1931, aquelas que têm por tema objetos
materiais (o engradado, o cigarro, a vela, o escritório, o restaurante),
alimentos (as amoras, o pão, a laranja, o pedaço de carne) ou objetos
humanos (o ginasta, a jovem mãe, o funcionário), algumas das quais
entram em mais de uma categoria, são escritas entre 1931 e 1936.
Ponge vive agora na cidade e é admitido nas Messageries Hachette,
onde passa a ser representante sindical e militante comunista. Os
textos posteriores “Chuva”, “Vegetação”, “Caracóis”, “Fauna e
flora” marcam um retorno à natureza e uma espécie de retiro
reflexivo. Excetuando-se os objetos humanos, temos aí uma natureza
mediterrânea, vista numa perspectiva infantil; por isso, uma
preferência pelos pequenos objetos, animados e inanimados, que se
podem pegar no côncavo da mão. Tivera razão, portanto, Maurice
Blanchot ao comparar, muito cedo, O partido das coisas com as
Histórias naturais de Jules Renard. Mas essa aproximação, quase
puramente circunstancial no grande escritor (e que os comentadores,
como tantas vezes, se apressaram em retomar sem grande

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preocupação com sua potencialidade heuristica), irritava Paulhan,
para quem ela dava demasiado relevo ao pitoresco. Isso equivale,
com efeito, a obliterar o aspecto mais “cientifico” de Ponge, a
propósito do qua1 a crítica até hoje não emitiu senão alguns lugares-
comuns referentes às modalidades de observação, à precisão lexical
das descrições e ao recurso sistemático à etimologia. Um estudo
mais aprofundado acabaria sem dúvida por revelar uma vasta rede
intertextual do Partido (e mais, da obra pongiana) que até o momento
permanece na sombra, a saber, a poesia científica do século XVI e,
especialmente, as Pequenas invenções de Rémi Belleau. Como o
farnoso Conhecimento do Leste, do respeitado Claudel, esta coletânea
contém, de fato, poemas cujos títulos e desenvolvimentos temáticos
“Le papillon” (“A borboleta”), “Le coral” (“O coral”), “L'huistre”
(“A ostra”), “L'escargot” (”0 caracol”), “La tortue” (“A tartaruga”),
“Le vers luisant de nuict” (“O vagalume de noite”), “La cerise” (“A
cereja”), “Sur les graines” (“Sobre as sementes”), etc. - não podem
deixar de chamar nossa atenção. Até que ponto Ponge conhecia a
poesia científica (entendendo-se esse termo no sentido de didática)
da Plêiade, é o que se deveria estabelecer, se se desejasse prosseguir
nesta via. É certo que as preocupações de Belleau, como também as
de Ronsard, Pontus de Tyard, Peletier, Baïf, Du Bartas, Scève e
Lefevre de La Boderie, encontram em nosso autor notáveis ecos. A
descrição do universo, os meteoros, a astronomia, a matemática, a
história natural ou a concepção do homem como microcosmo já
aparecem no Partido das coisas, mas será em Pour un Malherbe,
publicado em 1965, que a aliança entre poesia e ciência, tão
importante na Renascença, passará a ser um dos paradigmas da obra.
De qualquer forma, constata-se que certamente teria sido ingênuo
dispor simplesmente os poemas segundo o principio da progressão
cronológica. Vista de outro ângulo, a coletânea, bivalve como um
molusco, oferece duas partes facilmente identificáveis, pois cada
uma comporta exatamente a metade dos textos. A primeira, que se
encerra com “O molusco”, compreende sobretudo textos curtos, mais
acabados, caracterizados por cláusulas que realçam claramente o
fim das descrições-definições lestamente realizadas. Composta de
textos mais extensos, a segunda parte deixa entrever as primeiras
dilacerações da obra por vir, os primeiros sinais da fragmentação,

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da poética do tatear. Mais concretos, os textos breves são bombas,
fechadas sobre si mesmas, como se quisessem atingir assim sua
máxima densidade. Mais abstratas, menos autotélicas, as notações
em espiral dos textos longos estimulam as reflexões teóricas e
retóricas a respeito da escritura e da palavra. Mas, em ambos os
casos, o trabalho sobre o significante permanece incontornáve1, e o
referente, sempre duplo: ao mesmo tempo a coisa e o texto/
linguagem. A diferença é que a potência das bombas linguageiras
estará cada vez mais sujeita a caução, ao passo que se tornará cada
dia mais palpável a potência desconstrutora dos rascunhos. Como
ressalta Danikle Leclair: “A publicação do Partido foi, portanto, o
catalisador de uma radicalização da escritura dos cadernos e de uma
revolução na composição dos livros". É por isso que as repetições
irão se multiplicando e distenderão as molas das maquinarias bem
reguladas dos textos curtos, o que possibilita concebê-los, em última
análise, como hipertropos que subsumem o conjunto das estratégias
retóricas e dos procedimentos estilísticos utilizados.
Instalado bem no centro do Partido, “O molusco” vem
compartilhar o sólido e o líquido, significar a oposição entre as
conchas (signos de proteção, de resistência, de forma, de casa, de
compostura, de classicismo) e a moleza de corpo dos seres arcaicos
da evolução (que conotam a fraqueza, a informidade, a frouxidão).
Entroncamento ambíguo, os moluscos favorecem a ereção moral,
mas seu caráter invertebrado os torna inaptos ao cumprimento total
da sabedoria. As duas extremidades do Partido assinam essa
dicotomia: “Chuva” atualiza a indolência até recusar a forma e
obedecer à gravidade, e “O seixo” reduz as águas, embora aceitando
seu poder de polimento, sem renunciar jamais à dureza, à firmeza e
à densidade.
A mecânica ativada pelo meteoro (a chuva) nunca pára ao longo
de toda a coletânea, pois ela inspira tanto a existência do homem-
máquina ou a engrenagem burocrática do modesto funcionário quanto
a pequena cosmogonia portátil que fecha como que provisoriamente
a coletânea, propondo num tom de eloqüencia clássica épuras das
numerosas obras incultas. O relógio universal marca assim o tempo
de uma sabedoria por cuja magia o monismo idealista de Platão é
rejeitado em prol de uma prática que assimila simultaneamente os

18
atomistas e os grandes moralistas. A brevidade da vida engaja a
viver somente no aguardo de uma volta à natureza bem merecida:
“O tempo que a madeira leva para apodrecer ou a pedra para
esboroar-se: é este o tempo verdadeiro, a duração que nos convém.
E viva afinal de contas o verme ágil e lustrado, o agente do Cronos,
envolto de energia, chefe de perfuração de nossos corpos!"
("Interview sur les dispositions funèbres", in: Lyres). Esta morte
viva, sim, reaviva-a igualmente “O seixo”, mas também o
antiverlainiano “O fim do outono” ou “O ciclo das estações” e “O
pedaço de came”, para só citar esses textos. Ou ainda as fossas diletas
dos caracóis, cujas marcas luzentes de expressão são outros tantos
epitáfios gravados no monumento que eles transportam. Lentidão,
humildade e paciência desses moluscos cantados por Prévert e que
marcam na terra úmida o branco do desaparecimento paginal e
virginal, a obscenidade orgulhosa do traço do inconsciente.

Da realidade do gozar

Dir-se-á que insisto demais no motivo da morte, que amplio


propositalmente seus traços e que com isso reduzo os do humor.
Ora, não somente tenho a pretensão de absolutamente não trair o
segundo em favor da primeira, mas acredito, além disso, oferecendo
as bochechas, fechar a boca, ao esclarecer a ponte entre o riso e o
longo rio do esquecimento. Desde os Doze pequenos escritos,
primeira coletânea publicada em 1926, até A mesa, imenso dossiê
testamentário dado à luz em 1981, a ceifeira espia de fato cada
grama do... vamos! Solta a palavra!... poeta.
Pois o que é um poeta, por mais breve que Ponge o renomeie
segundo ele próprio? Alguém que monumentaliza as coisas mais
banais, as mais cotidianas e das quais o poema faz intensamente
parte , desfazendo-as de sua utilidade pública para alçá-las ao
nível da perenidade. Assim sepultadas, elas adquirem enfim a solidez
necessária para oferecer sua lição de moral. Bibelôs sonoros lançados
à eternidade, elas referendam a obra do tempo. Com isso, medindo
se com os maiores (entre os quais Homero, Virgílio, Montaigne,
Góngora, Malherbe, La Fontaine, Rameau, Lautréamont e Joyce),

19
e até com Deus, o escrevedor entra no templo do renome. A atração
do jovem Francis pelas inscrições romanas e pelos monumentos
funerários atualiza-se, por conseguinte, em páginas-epitáfios, textos
portadores de vida e de beleza, que permitem “dar a gozar ao espírito
humano” e... ao corpo. Em outros termos, como é dito em Pour un
Malherbe, “engravidar as coisas”, doar palavra à “feminidade do
mundo” contra/com (?) a Lei do Pai e através d’alíngua.
Levanta-se então uma problemática literalmente impossível de
ser explorada aqui, mas que não posso impedir-me de chamar, para
voltar a ela em algum outro lugar. Penso na relação entre realidade
e gozo, a qua1 se coloca sem dúvida (não, não estou sonhando...)
em Ponge. Não insisto, cito simplesmente alguém que tem algumas
palavras a dizer a esse respeito: “A realidade é abordada com os
aparelhos do gozo”. Entre esses aparelhos, a linguagem figura
evidentemente em bom lugar, o do Outro. Que Francis, abalado
pela morte de Armand, tome o partido das coisas não tem nada de
surpreendente. Uma vez que a Coisa pongiana concerne à mesma
verdade, a da mulher, da mãe, absolutamente silenciosa para quem
não tem orelha para tudo o que se deve à tensão heraclitiana e à voz
órfica da poesia. Pois, na verdade, a mulher não é em Ponge tão
barrada quanto se poderia crer, o que deixa entender isto, de Lacan,
que se terá reconhecido: “Começo por minhas fórmulas difíceis, ou
que suponho deverem ser tais o inconsciente não é que o ser
pense, como implica, no entanto, o que se diz na ciência tradicional
o inconsciente é que o ser, ao falar, goze, e, acrescento eu, não
queira saber de nada mais. Acrescento que isso quer dizer - não
saber absolutamente nada”1. Fácil como o bê-á-bá: ser de Palavra,
Ponge fala do que lhe diz respeito, a saber, das coisas, e parte do
princípio de que não sabe nada, ou de que nã0 sabe nada a não ser o
que diz nos termos em que diz o que diz, para chegar, ele próprio
Coisa, a seu poder: “Em suma, é preciso desejar, amar, ter tesão e
gozar (tudo isso tão ardentemente quanto possível). /Com esse poder,
é possível mais ou menos rapidamente gozar na ordem temporal.
Depende do estado do gosto. Depende do estado da língua na época
em que se trabalha, da relação dos valores eternos da língua que se

1) Le Séminaire, Livre XX: Encore. Paris: Seuil, 1975, p. 95.

20
usa com os valores então atuais” (Pour un Malherbe). É na
modificação desse estado e dessa relação que Ponge trabalha. Falar
gozo é, por conseguinte, por meio da língua, falar tanto
comportamentos quanto pulsões.
O partido do poeta torna-se então dos mais límpidos: louvar o
mundo para gozá-lo sem possuí-lo, sem saber do que se trata. Gozo,
floculação, jubilação, suflação, eis a chave do enigma, eis como
retornar e voltar a si mesmo para se aperfeiçoar. Lição de caracóis:
“Aperfeiçoa-te moralmente e farás belos versos. A moral e a retórica
se encontram na ambição e no desejo do sábio”. Você disse desejo?
Sabedoria socrática, epicurista e estóica. Desejo de reencontrar em
vcrsos o gosto que ofereceremos aos versos que nos limparão até os
ossos. Na origem de cada poema houve uma emoção, e é esta que
importa renovar para morrer melhor. Reconhecer o choque do
encontro real, concreto, situável no tempo e no espaço, não é possível
se se recair na choradeira verlainiana ou na tagarelice hugoana, e
isso por uma razão mui simples: a execução em ateliê desse trabalho
de matéria e de memória leva a assumir a lógica principial do Ser,
isto é, o nó, fortalecido por urn não-saber portador de amor pelo
mundo.
Qualifique-se, pois, a poesia pongiana como se quiser: científica
e sensual, descritiva e proverbial, anarquista e pompidouísta, barroca
e clássica, preciosa e natural, objetivista e autobiográfica, narcisista
e cética, analítica e prolixa, mimética e inventiva, concretista e
abstrata, formalista e gnômica, protestante e auto-irônica, ou sei lá
mais o quê? Multipliquemos as designações: oracular, encomiástica,
didática, pedagógica, iniciatória, (auto)limpadora, reflexiva,
textualista, referencial, Pouco importa, pois todos esses qualificativos
são justos e bons. O essencial é que O partido das coisas oferece,
pelo corpo/a/corpo do significante, a sintese impossivel, através do
verbiário da morte (o qua1 comporta inúmeros segredos), do saber e
da verdade.
Da caveira de Francis, Príncipe da Dinamarca, à sua mãe a mesa,
a obra se arquitextura como uma espécie de Tratado do Bardo,
perpétua meditação sobre a transição e sobre o devir que traz
progressivamente um domínio de si, um reforço do sopro até a
aquisição definitiva de uma sabedoria epicurista que reconduz o

21
homem à Natureza. Tanatologia em ato, sistematizada e
supermotivada em Joca Seria. Notes sur les sculptures d’Alberto
Giacometti, texto de 1951 no qual Ponge, depois de ter evocado
aqueles que retornam às próprias coisas (Husserl) ou à terra
(Nietzsche), afirma mergulhar por sua parte “verdadeiramente no
mundo, na natureza, na terra”. Ora, essa entrada na cova pelo homem
representa de certa maneira sua entrada na cena, na sociedade, isto
é, num conjunto organizado (a tradição filosófica da abelha vê-se
então convocada no motivo do “caos-colmeia”) designado aqui por
uma série de expressões que velam, no aquém dos sistemas
pronominais, a impossível síntese, em um nós, dos eu e dos ele/ela:
“campo de concentração”, “forno crematório”, “câmara de gás”,
“prisão e carneiro”. Dever-se-á insistir na inquietadora estranheza
de tais formulações, nutridas pela guerra ainda bem recente no
momento em que o texto é redigido? O fato de a dimensão hética
das esculturas de Giacometti constituir no espaço uma prova quase
especulativa da procrastinação do direito explica apenas em parte o
dever de memória ao qual Ponge parece obedecer diante da amplidão
da deportação, do desastre que atinge a humanidade, seus lábios,
seus corpos de línguas, seus códigos e seus jogos de linguagem.
Indubitavelmente, esse pavor, essa escâncara mortífera do
coletivo participam relação longe de ser benigna da Natureza,
do mundo exterior. Mas de que Natureza?: “Caos de passado e futuro:
de cemitério e germes, de cadáveres em decomposição e vermes
envoltos de energia”. No cruzamento da ontogênese com a filogênese,
os termos são doravante indefectivelmente atados, a sobrevivência
da espécie, sob os auspícios de Eros, e a sobrevivência do Indivíduo,
sob os de Tânatos: “Sim, é preciso mergulhar nela [na Natureza]
[...]. Morrer e renascer. (Que o mundo renasça, o mínimo)”. Que as
passagens aqui citadas assinalem um “desvario (talvez) passageiro”
de uma “fase (épica)” da obra importa pouco diante do fato de que
os traços cendrados portam, não obstante, em germe o sêmen do
mundo. Espermas e mamas engendram uma “palavra em estado
nascente” numa espessura historiográfica prenhe de signos a
transportar a carga explosiva que ativa o processo das auroras do
biblion. Trata-se, sem dúvida, além de todos os horrores repetidos
da História inacabável, de um inconcebível retorno à origem mítica,

22
de acordo com a estrutura inaudita do recalque originário que Freud
tentará tanto articular e que tem a ver com o próprio fundamento do
inconsciente: como pode uma representação primeira ter sido
recalcada? Outra maneira de colocar a questão da existência: como
nomear o não-reconhecido, aquilo que ainda não tem rosto para
meu espírito, forma informe, incapaz de ser criada pelos nomes que
lhe atribuirei com base em minha ignorância?

A desrazão do logos

Ter-se-á compreendido por que razão pretendo que seria preciso


analisar, sob a aparente coerência, sob a ilusória compacidade e o
pretenso fechamento a sete chaves dos textos metalógicos (isto é,
metalingüísticos, pois o termo lógico equivale em Ponge ao conceito
da linguagem) que delimitam o campo do Partido, todos os efeitos
de malogros, de disrupções, de quebras e de engodos que presidem
à organização da coletânea? Passar-se-ia assim a compreender que a
bomba pongiana não é uma bomba de nêutrons, mas antes um projétil
retórico cujas conseqüências, longe de terem sido calculadas em sua
exata medida, começam finalmente a atingir uma ampla época da
literatura, aquela na qual ainda vivemos e na qual tenta manter-nos,
em seu conjunto, a instituição filosófica e tudo o que há de filosófico
do lado de cá o mais extenso do fechamento do literário. Que
a palavra bomba, como tampouco a palavra revólver, não fere
ninguém, com isso facilmente se concordará. Da mesma forma,
dever-se-á, porém, aceitar logo que a modificação das palavras e
das coisas pela palavra transforma a existência dos indivíduos e das
comunidades. Ao prospectar a terra, o operário não se considera
filósofo. A Camus, que o exorta a fazer carreira em filosofia, ele
replica, áspero: “Eu lhe diria [...] que a filosofia me parece ser da
alçada da literatura como um de seus gêneros... E que prefiro outros”.
Começa-se assim a ver com outros olhos a estratégia pongiana da
volta às próprias coisas, estratégia que consiste, ao sabor das
oportunidades verbais propiciadas pela teia do léxico, em empreender
“uma desafeição pelo quebra-cabeça metafísico”, pela ontologia,
em des-afeiçoar o filosófico, em manter uma tensão tal na razão

23
que ela venha a ressonar de des-razão. O eco dessa operação dupla
(que em minha outra língua só posso chamar de dis-regard of
philosophy), que consiste em dar o filosófico para melhor dele se
desviar no exato momento em que ele é oferecido, ouve-se à
maravilha quando o homem vaia raivosamente o ronrom poético, a
nostalgia romântico-surrealista e a metaforização do mundo. Des-
figurar o logos, quebrar sua cara, passa pela reificação das palavras
da língua, se não quisermos deixar-nos engolir pelas idéias: “Que o
imperfeito do signo peça ele próprio humildemente seu perdão. Que
se encare, que se confesse, que se humilhe. / Certarnente, a linguagem
e o ‘bom’ senso se defenderão, mas seus defeitos e suas fraquezas
são tão flagrantes que eles acabarão, de qualquer forma, suponho,
um tanto desfigurados” (”Hors les significations”). Tiremos as
máscaras! Deixemos enfim ver as pregas da expressão!

A objetiva e a memória

Dirão que não é isso o essencial do manual que se vai abrir agora
que tu, leitor, de certa maneira, espero, já abriste, como de
costume, como se se tratasse de um objeto no acusativo , que seu
aspecto bom-menino, lição-de-coisas, até nos textos mais
politicamente cáusticos (além de “Pobres pescadores”, a série dita
da humanidade, ou seja, os textos 23 a 26, que tomam por objeto
indivíduos ou grupos e, por sua força crítica, restabelecem relações
com os Doze pequenos escritos), infirma a leitura que deles proponho
aqui de maneira um tanto expedita. Concordo. Mas quem já
freqüentou as sendas pongianas da criação sabe que as citações
antecipadas, os incipits e as cláusulas, os títulos e os fragmentos que
impregnam cada um daqueles blocos aparentemente compactos não
formam coisas na devida forma; pelo contrário. Tudo se passa em
Ponge como se o referente designasse menos o noema da coisa-
poema do que, no movimento que leva do objeto à poética, o
impossível da Coisa, sua revelação constantemente adiada, a infinita
virtualidade de sua materialização. Basta percorrer as linhas do livro
para sentir até que ponto elas não remetem a nenhuma outra
anterioridade que não aquela que se dá no ato do texto. A armadilha

24
hiper-realista que Ponge nos trama consiste em fazer-nos crer que
poderíamos fotografar as coisas propostas. Ora, ao tentá-lo o
que terei à minha maneira procurado fazer em negativo ,
perceberemos rapidamente que o resultado será muito diferente
daquele com que contávamos e que, de qualquer forma, a mecânica
da reprodução fotográfica terá sido empatada. Bater uma chapa da
chuva, ou da laranja, ou do cigarro, ou da jovem mãe revela-se tão
incrível quanto fazer o retrato de um pássaro e serve tão-somente
para reafirmar, como o famoso poema “Fábula”, em Proemas, os
possíveis da gigantesca fábula do terminator. Será por acaso que,
para concluir sua leitura de uma fotonovela de Marie-Françoise
Plissart, Jacques Derrida propunha, após uma meditação crítica
inscrita nos traços de La chambre claire, de Roland Barthes, que se
imaginasse o que poderia ser a fotografia do poema “Fábula”, de
Francis Ponge2:

Com a palavra com começa, pois, meu texto,


Do qual a prima linha assevera a verdade,
Mas esse estanho embaixo de uma e de outro
Poderá ser tolerado?
Caro leitor já tu julgas
Por ai de nossas dificuldades...

(APÓS sete anos de azares


Ela quebrou seu espelho)

Tentação de um hermetismo que leva à afasia? Julga por ti mesmo,


afinal de contas! Desejo não adentrar muito neste texto que faz
parte daqueles que considero formarem o tufo genealógico da obra.
Remeto-te simplesmente aos Proemas, onde ele figura em bom lugar
entre “Drama da expressão” e um dos mais antigos poemas de Ponge,
“O passeio em nossas estufas”. Quero, todavia, confiar-te que ele
põeemcenaumaquestãoessencial,assimformulável:sealinguagem
somente enunciasse uma verdade quando ela se refletisse corpo a

2) Droit de regard, suivi d’une lecture pour Jacques Derrida. Paris: Minuit, 1985, p.
xxxv-xxxvi.

25
reflexo, de onde proviria ela, a partir de onde seria ela proferida?
Neste texto, provavelmente anterior aos do Partido das coisas
(1924?) e recolhido em Proemas, já o irrepresentável do recalque
originário se esboça, no cerne da tensão mimética entre a coisa e o
poema, entre o leitor e a do poema que quebra seu espelho, sua
mais bela imagem, telescopados no advérbio aí. De que coisa o
poema-coisa é a Coisa, para não dizer o joguete?
Sem dúvida, estamos aqui na orla de um trabalho psíquico comum
às retóricas pongianas e freudianas. Ter-se-á compreendido que
evoco toda a enorme questão de saber, não simplesmente, no eixo
psicológico, como o mundo exterior modula nossa visão e como
esta molda aquele, mas, além da simples sensorialidade, como se
organiza a percepção no próprio mundo interior. Em outras palavras,
como a percepção, como processo, leva a interrogar a realidade até
o ponto em que a representação das coisas e das palavras chega,
pela linguagem e a partir dela, a ceder como ilusão referencial
sem, no entanto, cair no fantasma. Aragon tinha, à sua maneira,
radicalmente diferente das de Breton e de Souppault, solucionado
esse problema da relação entre a realidade referencial, o
conhecimento que dele podemos ter e a criação fundada nesse
conhecimento,rejeitandoqualquerformadeidealismo,oqueolevava
inevitavelmente a recusar a teoria do acaso puro3. Em Ponge, em
todo caso, assiste-se à emergência de uma prática textual em cujo
movimento as palavras e as coisas, em razão da tensão inaudita que
as aproxima no mesmo momento em que as afasta inexoravelmente

3) Menciono aqui Aragon a quem Ponge, que nutria por ele um respeito
desconfiado (ver a última parte de Pratiques d’écriture, inteiramente consagrada
ao trabalho dele), dedicou momentaneamente, em 1944-1945, as páginas literárias
do jornal comunista Action para assinalar de passagem o interesse que haveria
em comparar as duas obras no que concerne à questão da relação entre o
conhecimento da realidade e o literário. Michael Nerlich escreve a esse respeito:
“[...] Aragon compreendeu que a questão da linguagem poética, da nominação
do mundo real nessa linguagem poética, que a criação artística é o avesso dialético
do conhecimento do mundo real e que, conseqüentemente, não se pode pensar
artisticamente fazendo abstração dos problemas filosóficos (do conhecimento),
no que ele confirma o postulado de lsidore Ducasse; e que, por outro lado,
Aragon ultrapassou definitivamente as concepções idealistas do conhecimento
em Kant: vira-lhes as costas”. “A l’assaut du reel: de Kant à d’Holbach dans
l’ceuvre d’Aragon.” La Pensée, n. 203, jan.lfev. 1979, p. 12.

26
no significante, jubilam com o irrepresentável absoluto de sua
situação ou, antes, de seu funcionamento em abismo, o que se traduz
literalmente pelo que eu desejaria nomear o sofrimento da memória.
Sabe-se como Freud, ao elaborar a segunda tópica e fazer por assim
dizer surgir as pulsões do Id dos abismos do sol, o qua1 impede
qualquerrepresentação,chegadiantedeumabarreirainstransponível:
“Na realidade, o abandono da representação é justificado pela
constatação terrível de que a rememoração encontra enormes
obstáculos e de que o agir lhe é preferido”4. É exatarnente este o
agir pongiano: projetar na objetiva da língua a memória etimológica
da coisa a fim de fazê-la existir fora suas significações, fora suas
representações dadas prontas. A cada captação, a cada fixação, ela
se desloca, inapreensível, sempre alhures, outra. A soberba chapa
que Édouard Boubat bate do poeta, a resposta é sem apelação. Lê-
se, no texto de acompanhamento intitulado “O passarinho que sair
da câmara escura será fuzilado”:

Pensava você então, realmente, que ele se ia


Deixar pegar?
Assim?
Instantaneamente?
Pois bem, não:
Veja.
Você terá tido, dele, apenas uma expressão
[inteiramente
Circunstancial.

Seria possível exprimir mais claramente o fato, capital, de que


O partido das coisas não fixa jamais senão um estado das coisas?
Reificando-se ele mesmo por seu próprio olhar no momento em
que o fotógrafo tenta capturar sua imagem, dissolve qualquer
possibilidadederepresentaçãoobjetiva.Mas,porfavor,nãomefaçam
dizer o que não digo: seria ridículo pretender que não há mais
representação em Ponge, por mais maltratada que ela seja. Por quê?

4) André Green. L’intrapsychique et l’intersubjectif en psychanalyse. Montréal: Lanctôt,


1998, p. 65-66.

27
Porque o mundo não existe sem representação nem, para falar como
Schopenhauer, sem vontade. O que a escritura de Ponge põe em
cena, através das incessantes repetições das quais diversos textos do
Partido fazem uso sem, contudo, traduzi-lo na forma de maneira
explícita, é a força, em instância de atualização no mundo, dos textos
e das coisas. Ponge chega assim a oferecer menos coisas representadas
do que redes de energias que permitem às coisas mover-se no tempo
incalculável da memória: “Graças à representação, a força se desloca;
ela é aproveitada para manter juntos os elementos da representação
e para fixar relativamente esta e permitir sua transformação.
Acrescentemos ser necessário que o sentido seja adrnissível”5. Essa
força corresponde ao que Ponge chama a tensão da corda mais esticada
do barroco ou a força de retenção atômica (Pour un Malherbe).
Com isso, o mundo acaba por ficar de pé, se o homem tem a firme
intenção de que assim seja.
Como chegar a isso? Pela simplicidade e por uma atenção de
todos os instantes nas coisas que nos cercam. É o que enunciam
literalmente, cada qua1 à sua maneira, as duas introduções que
precedem aqui O partido: a primeira, insistindo na noção de “coisa
prática”, a segunda, realçando a importância de uma revolução dos
sentimentos pelas coisas. Não figurando na edição francesa, esses
dois textos te são aqui oferecidos, por um lado, por terem sido
publicados numa coletânea Pratiques d’écritures que come
grande risco de jamais ser vertido para o português, mas, acima de
tudo, porque já enunciam o projeto de uma das obras capitais de
nosso tempo: fazer com que o homem se detenha no conhecimento
do mundo da natureza para chegar a beneficiar-se finalmente com
os “recursos morais (tanto quanto estéticos) do visível”. Garimpeiro
de sonhos, Ponge? Sem dúvida. Entretanto, mesmo hoje, entre
aqueles que a raiva mortífera do capital ainda não sufocou, perdura
a luz de Lucrécio.

5) Ibid., p. 76.

28
Pós-escrito: Túmulo do traduzir

Terei salientado quanto o imaginário necrológico tem a ver, como


deve ser, com a própria questão da tradução? Não. É o que eu agora
gostaria de esboçar.
Para tanto, recorrerei a Jacques Derrida: “Tr. Traduzir,
transportar, transferir: o que foi inumado nestes lugares são letras,
já não são mais corpos, mas ainda não são nomes. Os traços
entranham-se na terra úmida deste cemitério, entre as sepulturas, e
admiro a paciência da escritura, o que a análise interrninável supõe
de humildade no processo. A corrida ao tesouro arrasta-se neste
mundo, o mais perto possível do solo, humildemente, portanto,
deixando brancos no mapa para o que resta a vir do nome desde o
póstumo. O segredo enterrado, o cerra-a-terra destes lugares santos.
Terra prometida ao que permanece calado, Moisés não está longe,
ele é da família”6. Um dever de reserva dita-me não comentar este
texto e não remexer por ora as cinzas da tradução. No entanto,
como toda palavra do mundo já é traduzir, e como todo traduzir
abre para ela a casca da existência, eu não me perdoaria por não
tomar um pouco de tempo, pelo menos momentaneamente, para
rezar e, sem tocar os ossos dos defuntos, dizer que Derrida dá a
entender um ritmo funerário que convém literalmente àqueles que
Ponge experimenta no Partido e que chega a constituir, sem dúvida,
o baixo contínuo da coletânea.Ao invés de glosar, deixo uma concha
hércules das idades mais imponente em seu gênero do que Faraó
responder a Jacques, com toda a amizade: “Os monumentos do
homem se assemelham aos pedaços de seu esqueleto ou de qualquer
esqueleto, a grandes ossos descarnados: não evocam nenhum
habitante de seu tamanho”. Dessa constatação trágica surge a
necessidade ética da justa proporção: “Não sei bem por quê, desejaria
queohomem[...]dispensasseseuscuidadosemcriarparaasgerações
uma morada não muito maior que o seu corpo, em que estivessem
contidas todas as suas imaginações, suas razões; que ele empregasse
seu gênio ao ajustamento, não à desproporção ou, pelo menos,

6) Micaëla Henich, Jacques Derrida. Mille e tre, cinq. Lignées, fragment 918. Bor-
deaux: William Blake & Co., 1996.

29
que o gênio reconhecesse os limites do corpo que o suporta”
(”Anotações para uma concha”). Não sei bem por quê, mas eu
desejaria que tu, leitor, leitora, dispensasses teus cuidados em
compreender que vários tradutores ofereceram seu osso para esta
coletânea,queelessesoterraramnasletras,esqueletrasquearranham
o solo de duas línguas, às vezes mais, jamais menos, com uma
coragem que só é dada pela modéstia sem submissão. Não sei bem
por quê, mas desejo ardentemente que saibas que não lerás uma
tradução (sonho impossível...), mas diversas experiências. Em
anuência aos votos de Paulhan, de que o Partido das coisas7 fosse
umcofresemelhanteaosEsmaltesecamafeus,deThéophileGautier,
as traduções que seguem, por não serem moldadas pelas mesmas
mãos, introduzem vários distanciamentos na leitura, quebras de
coerência, dirão alguns. Assumidas pelo que são, isto é, leituras,
constatar-se-á, porém, que cada qua1 murmura o segredo de um
homem que fez de seus despojos a loucura de seu nome.

Apostila em forma de apóstrofe

Certamente pesada sob inúmeros aspectos, teria bastado resumir


mais refinadamente a precedente exposição chancelando
simplesmente a presente coletânea com certa epígrafe, assinada
Christian Bobin: “O pardal Ponge pousou em 27 de março de 1899
norebordodomundo.Levantouvôoem6deagostode1988.Deixou
sua canção perto de nós, no frescor da noite. Sua luz de canto puro”.
O pardal Ponge? Ter-lhe-ias tu falado unindo, como Francisco de
Assis, na ausência de teu olho, o artífice e o insubstituível volátil?
Deus não 1he assentava. Pouco importa. Tu sabias que ele também
foideargilaedesangue.Apertadoemtuaconchalaboriosa,estendeste
tuas antenas a fim de ouvir o canto mediterrâneo do nimês. Por isso
te agradeço.

7) Os organizadores desta edição, após terem considerado diversas possibilidades


de tradução do título da coletânea, decidiram-se pelo título definitivo em português
graças, em grande parte, a uma preciosa sugestão de Júlio Castañon Guimarães,
a quem exprimem aqui seu agradecimento.

30
Luz de pássaro, ouço teu passo radioso. Sim, Christian,
contemplo, tranqüilo, a vida. Uma vez colocado o sol em abismo,
vejo a morte vindo amar os viventes de eterno. Pois meu filho porta
teu nome. Como tu, como Francis, ele saberá é o que lhe ensino
que a palavra deve fazer crescer a carne para que nascimento
advenha. Digo: “Amai a água”, e respondo assim àqueles que
continuam a pensar: “Morrei!”. Bebo o azul, eu o sou, criança muda
sempre de leva.

Bibliografia
Embora O partido das coisas se tenha tornado um clássico da poesia francesa,
asobrascríticas,paradoxalmente,continuamsendopouconumerosaseaparentam-
se mais com manuais escolares ou corn introduções do que com verdadeiros
estudos em profundidade. Além dos artigos consagrados a diversos aspectos da
poética, da retórica ou da filosofia pongianas, o leitor poderá consultar:

GATEAU, Jean-Charles. Leparti pris des choses, suivi de Proêmes, de Francis


Ponge. Paris: Gallimard, 1997 (col. “Foliothbque”, 63).
LECLAIR, Danible. Le parti pris des choses de Ponge. Paris: Dunod, 1995 (col.
“Lire”).
VECK, Bernard. Le parti pris des choses, Francis Ponge. Paris: Bertrand Lacoste,
1994 (col. “Parcours de lecture”, 62).

O leitor poderá consultar também a edição do Parti pris des choses realizada
por Ian Higgins, London: The Athlone Press, 1979. Além de uma substancial e
estimulante introdução, essa edicão pulula de observações pertinentes a respeito
de vários problemas pontuais de interpretação. Para um conhecimento mais
aprofundado das paradas do Partido das coisas e do que concerne aos problemas
relacionados com a publicação da coletânea, remeto o leitor às seguintes obras:

Correspondance Jean Paulhan-Francis Ponge, 2 v. Paris: Gallimard, 1986.


Entretiens de Francis Ponge avec Philippe Sollers. Paris: Gallimard, Seuil, 1970.

Finalmente, o leitor que desejar conhecer os artigos publicados no mundo


inteirosobre a coletânea deverá reportar-se à obraorganizada por BernardBeugnot,
Jacinthe Martel e Bernard Veck: Francis Ponge. Paris: Memini, 1999 (col.
“Bibliographie des écrivains français”).

Traduzido do francês por Ignacio Antonio Neis

31
NOTA SOBRE A PRESENTE EDIÇÃO

Além da edição original, de 1942 (seguida de uma segunda


tiragem idêntica em 1945), e da edição revista e corrigida de 31 de
outubro de 1949 (que apresenta duas dezenas de diferenças
tipográficas em razão da recomposição e de algumas variantes de
pontuação), mais três edições de Le parti pris des choses estão
atualmente disponíveis:

Tome premier. Paris: Gallimard, 1965, 617 p. (Reúne Douze petits


écrits [1926], Le partipris des choses [1942], Proêmes [1948], La
rage de l’expression [1 952], Le peintre à 1’étude [1948] e La Seine
[1950].)
Le parti pris des choses suivi de Proêmes. Paris: Gallimard, 1967,
221 p. (col. “Poésie”).
Le parti pris des choses. Texte édité par Bernard Beugnot. In: Francis
Ponge. CEuvres complètes, v. 1. Paris: Gallimard, 1999, p. 13-56.

É a edição do texto tal como proposto na “Bibliothèque de La


Pléiade” (Paris: Gallimard, 1999) que foi minuciosamente adotada
aqui para o estabelecimento do texto francê, ao qual foram
acrescentadas as duas introduções, publicadas originalmente em
Pratiques d’écriture ou l’inachèvement perpétuel. Paris: Hermann,
1984, p. 79-81. Além das excelentes apresentações e das notas de
Bernard Beugnot, o leitor dispõe agora de textos reunidos na seção
Dans l’atelier du “Parti pris des choses” (p. 57-69), que contém
notas de Ponge e fac-similes do dossiê de “La jeune mère”. Poderá
assim completar as sucintas informações fornecidas na presente
edição.

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Casa onde Francis Ponge nasceu, em Caen.

Francis Ponge, 1918.

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Capa da La Nouvelle Revue Française.

Francis Ponge na Rua Lhomond, outono de 1945 (foto Izis).

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Guache original de Braque.

Max Bense e Francis Ponge, agosto de 1959.

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Francis Ponge, 1960.

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INTRODUÇÕES AO
PARTIDO DAS COISAS
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INTRODUÇÃO AO
PARTIDO DAS COISAS

Por muito tempo eu me fiz as perguntas mais difíceis. Aplico-


me atualmente às coisas mais simples.
Trata-se para mim de fazer falar as coisas, pois eu mesmo não
consegui falar, isto é, justificar-me por meio de definições e de
provérbios.
Tratarei, pois, de formar as coisas em noções práticas. Mas práticas
em quê? Para a conversa mais terra-a-terra

Desistindo de modificar-me a mim mesmo, nem, aliás, as coisas,


desistindo igualmente de conhecer-me a mim mesmo, a não ser
aplicando-me às coisas. Formando-me do mundo uma imagem,
noções práticas.
Não me conhecerão, não terão uma idéia de mim senão através
de minha concha, de minha morada, de minhas coleções; ou antes,
pois são armas, de minhas panóplias. Através do acento de minha
representação do mundo.

Por muito tempo exprobrei as palavras por me burlarem.


Atualmente lhes sou reconhecido: elas me enganam, e, portanto,
me descobrem. Se eu sou algo, minha covardia inicialmente me
confundia com elas. Meu esforço contra elas ou, antes, apesar delas
me descobre. Minha maneira de rolar o rochedo de Sísifo, eis o que
tenho de mais pessoal.

Tenderei, pois, às definições.

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Será preciso, pois, perdoar-me um estilo didático: não busco
senão assegurar-me a mim mesmo de certas coisas. Disso que pareço
ensinar procuro persuadido estar: são noções que engulo para me
manter em pé.

Trad. lgnacio Antonio Neis e Michel Peterson

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INTRODUÇÃO AO
PARTIDO DAS COISAS

As qualidades que se descobrem nas coisas tornam-se rapidamente


argumentos a favor dos sentimentos do homem. Ora, numerosos são
os sentimentos que não existem (socialmente) por falta de argumentos.
Por isso raciocino que poderíamos fazer uma revolução nos
sentimentos do homem simplesmente aplicando-nos às coisas, que
logo diriam muito mais do que aquilo que os homens costumam
fazê-las significar.
Isso seria a fonte de muitos sentimentos desconhecidos ainda. Os
quais querer destacar do interior do homem me parece impossível,
ou bem mais difícil. Porém desejável. (Progresso das “luzes” tanto
naquilo que concerne às coisas quanto ao próprio homem.
harmonia entre o homem novo e a natureza que ele conhece e possui
cada vez melhor.)
Tais são os recursos morais (bem como estéticos) do
visível.
Sem falar das virtudes próprias da própria atenção.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O PARTIDO DAS COISAS
LE PARTI PRIS DES CHOSES
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CHUVA

A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos


muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede) descontínua,
uma queda implacável mas relativamente lenta de gotas provavelmente
bastante leves, uma precipitação sempiterna sem vigor, uma fração
intensa do meteoro puro. A pouca distância das paredes da direita e
da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas.
Aqui parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha,
adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre o parapeito
da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que na face inferior
dos mesmos obstáculos ela se suspende em balas convexas. Seguindo
toda a superfície de um pequeno teto de zinco abarcado pelo olhar,
ela corre em camada muito fina, ondeada por causa de correntes
muito variadas devido a imperceptíveis ondulações e bossas da
cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um
riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete
perfeitamente vertical, grosseiramente entrançado, até o solo, onde
se rompe e espirra em agulhetas brilhantes.
Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada
uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade,
como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como
uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em
precipitação.
O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as
minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo
tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza.
Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo
continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a

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maquinaria pára. Então, se o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o
brilhante aparelho evapora: choveu.

Trad. Júlio Castañon Guimarães

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O FIM DO OUTONO

Todo o outono no fim já não é mais que uma tisana fria. As


folhas mortas de quaisquer essências maceram na chuva. Não há
fermentação, criação de álcool: deve-se esperar até a primavera o
efeito de uma aplicação de compressas numa perna de pau.
A aputação se faz em desordem. Todas as portas da sala de
escrutínio se abrem e se fecham, batendo violentamente. Para o
lixo, para o lixo! A Natureza rasga seus manuscritos, demole sua
biblioteca, vareja raivosamente seus últimos frutos.
Depois levanta-se bruscamente da mesa de trabalho. Sua estatura
logo parece imensa. Descabelada, tem a cabeça na bruma. Com os
braços pendentes, aspira deliciosamente o vento gelado que lhe
refresca as idéias. Os dias são curtos, a noite cai depressa, o cômico
perde seus direitos.
A Terra no ar entre os demais astros retoma seu ar sério. Sua
parte iluminada é mais estreita, infiltrada de vales de sombra. Seus
sapatos, como os de um vagamundo, impregnam-se de água e fazem
música.
Nessa ranaria, nessa anfibigüidade salubre, tudo recupera
forças, salta de pedra em pedra e muda de prado. Os riachos se
multiplicam.
Eis o que se chama uma bela limpeza, e que não respeita as
convenções! Vestido tanto quanto nu, encharcado até os ossos.
Aliás, isso dura, não seca imediatamente. Três meses de reflexão
salutar nesse estado; sem reação vascular, sem saída-de-banho nem
luva de crina. Mas sua forte constituição resiste.
Assim, quando os pequenos rebentos recomeçam a apontar,
sabem o que fazem e do que se trata, e, se se mostram

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precavidos, entorpecidos e rubicundos, é com conhecimento de
causa.
Mas aí começa uma outra história, que depende talvez mas não
tem o cheiro da régua preta que vai me servir para traçar meu traço
abaixo desta.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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POBRES PESCADORES

Na falta de sirgadores duas correntes sem cessar puxando a rede


deles no canal do rei, a garotada no meio gritava perto das cestas:
“Pobres pescadores!”
Eis o extrato declarado às lanternas:
“Meia de peixes extintos por sobressaltos na areia, e três quartos
de retorno dos caranguejos em direção ao mar.”

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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RUM DAS FILIFOLHAS

De sob as filifolhas e suas belas filhinhas tenho a perspectiva do


Brasil?

Nem madeira para construção, nem esteres de fósforos: espécies


de folhas amontoadas no chão que um velho rum molha.

Vergonteando, caules com pulsações breves, virgens prodígios


sem tutores: uma vasta embriaguez de palmas que, tendo perdido
todo controle, escondem dois terços cada uma do céu.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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AS AMORAS

Nas sarças tipográficas constituídas pelo poema numa estrada


que não conduz para fora das coisas nem ao espírito, certos frutos
são formados por uma aglomeração de esferas que uma gota de
tinta preenche.

Pretos, rosados e cáqui juntos no cacho, oferecem antes o


espetáculo de uma família arrogante em suas idades diversas do que
uma vivíssima tentação para a colheita.
Vista a desproporção entre as sementes e a polpa os pássaros os
apreciam pouco, tão pouca coisa no fundo lhes resta quando do bico
ao ânus são por eles atravessados.

Mas o poeta, no curso de seu passeio profissional, colhe um grão


exemplo com razão: “Assim, pois, diz consigo, frutificam em grande
número os esforços pacientes de uma flor mui frágil embora por
um rebarbativo emaranhado de silvas defendida. Sem muitas outras
qualidades, amora, perfeito, madura se amora como também
este poema é feito.”

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O ENGRADADO

A meio caminho de engraçado e degradado a língua portuguesa


possui engradado, simples caixote de ripas espaçadas fadado ao
transporte dessas frutas que, com a mínima sufocação, adquirem
fatalmente uma moléstia.
Armado de maneira que no termo de seu uso possa ser quebrado
sem esforço, não serve duas vezes. Desse modo, dura menos ainda
que os gêneros fundentes ou nebulosos que encerra.
Assim, em todas as esquinas das ruas que levam aos mercados,
reluz com o brilho sem vaidade do pinho branco. Novinho em folha
ainda, e um tanto aturdido por se encontrar numa pose desajeitada na
via pública jogado fora sem retorno, esse objeto é, em suma, dos mais
simpáticos, sobre a sorte do qual, todavia, convém não repisar muito.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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A VELA

A noite por vezes reaviva uma planta singular cujo clarão


decompõe os aposentos mobiliados em maciços de sombra.
Sua folha de ouro mantém-se impassível no côncavo de uma
coluneta de alabastro presa por um pedúnculo mui negro.
As míseras borboletas assaltam-na de preferência à lua muito
alta, que vaporiza os bosques. Mas queimadas de imediato ou
esgotadas na escaramuça, fremem todas à beira de um frenesi vizinho
do estupor.
Entretanto a vela, com a vacilação das claridades sobre o livro
no brusco despreender das fumaças originais anima o leitor, depois
se inclina sobre seu prato e se afoga em seu alimento.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O CIGARRO

Recuperemos de início a atmosfera a um só tempo brumosa e


seca, desgrenhada, onde, desde que incessante a cria, o cigarro está
sempre enviesado.

A seguir, sua pessoa: uma pequena tocha muito menos luminosa


que perfumada, de onde se destacam e caem, em ritmo a determinar,
um número cálculável de pequenas massas de cinzas.

Por fim, sua paixão: esse botão em brasa, escamando em películas


prateadas, que uma bainha logo formada das mais recentes circunda.

Trad. Júlio Castañon Guimarães

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A LARANJA

Como na esponja, há na laranja uma aspiração a recobrar a


compostura após ter sido submetida à prova da expressão. Mas,
onde a esponja é sempre bem-sucedida, a laranja nunca: pois suas
células rebentaram, seus tecidos se rasgaram. Enquanto só a casca
se restabelece molemente em sua forma graças a sua elasticidade,
um líquido de âmbar se derramou, acompanhado de refresco, de
perfume suaves, sem dúvida, mas freqüentemente também da
consciência amarga de uma expulsão prematura de sementes.

Será preciso tomar partido entre essas duas maneiras de suportar


mal a opressão? A esponja não é se não músculo e se enche de
vento, de água limpa ou de água suja, conforme: essa ginástica é
ignóbil. A laranja sabe melhor, mas é por demais passiva, e esse
sacrifício odorante... é entregar-se realmente muito batato ao
opressor.

Mas não é bastante o que se disse da laranja ao lembrar seu modo


particular de perfumar o ar e de regalar seu algoz. É mister acentuar
a coloração gloriosa do líquido que disso resulte, e que, mais que o
suco do limão, obriga a laringe a abrir-se largamente tanto para a
pronúncia da palavra quanto para a ingestão do líquido, sem fazer
nenhum beicinho apreensivo com a anteboca, da qual não faz
eriçarem-se as papilas.

E fica-se, de resto, sem palavras para confessar a admiração que


merece o envoltório do tenro, frágil e róseo balão oval nesse espesso
mata-borrão úmido cuja epiderme extremamente delgada mas muito

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pigmentada, acerbamente sápida, é justo assaz rugosa para capturar
condignamente a luz sobre a perfeita forma da fruta.

Mas ao fim de um estudo por demais breve, realizado tão


redondamente quanto possível, é preciso chegar à semente. Esse
grão, da forma de um minúsculo limão, oferece por fora a cor da
madeira branca do limoeiro, por dentro um verde de ervilha ou de
germe tenro. É nele que se encontram, após a explosão sensacional
da lanterna veneziana de sabores, cores e perfumes que constitui o
próprio balão frutado, a dureza relativa e o verdor (aliás não
inteiramente insípido) da madeira, do galho, da folha: em suma,
pequena, embora com certeza a razão de ser da fruta.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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A OSTRA

A ostra, do tamanho de um seixo médio, tem uma aparência


mais rugosa, uma cor menos coesa, lustrosamente esbranquiçada. É
um mundo obstinadamente enclaustrado. Porém pode-se abri-la: é
mister então segurá-la no côncavo de um pano, usar de uma faca
morsegada e frustra, recomeçar várias vezes. Com isso, os dedos
curiosos se estrincam, estragam-se as unhas: é um trabalho grosseiro.
Os golpes que lhe são desferidos marcam seu invólucro com círculos
brancos, com uma espécie de halos.
No interior está à mostra todo um mundo, para beber e para
comer: sob um firmamento (propriamente falando) de nácar, os céus
de cima prostram-se sobre os céus de baixo, para já não formar mais
que uma poça, um sachê viscoso e esverdeado, que flui e reflui para
o olfato e a vista, franjado de uma renda anegrejada nos rebordos.
Por vezes raríssima uma fórmula perla em sua goela de nácar, e
encontramos logo com que nos adornar.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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OS PRAZERES DA PORTA

Os reis não tocam nas portas.

Não conhecem esta ventura: fazer avançar docemente ou com


rudeza um desses grandes painéis familiares, voltar-se em sua direção
para recolocá-lo no lugar, ter nos braços uma porta.

... A ventura de empunhar no ventre pelo nó de porcelana um


desses altos obstáculos de um cômodo o corpo-a-corpo rápido pelo
qual por um instante o passo se detém, o olho se abre e o corpo
inteiro se acomoda ao seu novo aposento.

Com a mão amiga a retém ainda, antes de reempurrá-la


decididamente e encerrar-se, o que o estalido da mola potente,
mas bem azeitada, lhe assegura agradavelmente.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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AS ÁRVORES SE DESFAZEM NO INTERIOR
DE UMA ESFERA DE NEVOEIRO

No nevoeiro que envolve as árvores, as folhas lhes são subtraídas;


folhas que, já descompostas por uma lenta oxidação e mortificadas
pelo retiro da seiva em proveito das flores e dos frutos, desde os
fortes calores de agosto se apegavam menos a elas.
Na casca, escavados, regos verticais, por onde a umidade até o
solo é conduzida a se desinteressar pelas partes vivas do tronco.
As flores são dispersadas, os frutos depostos. Desde a mais tenra
idade, a resignação de suas qualidades vivas e de partes de seu corpo
tornou-se para as árvores um exercício familiar.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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O PÃO

A superfície do pão é maravilhosa em primeiro lugar por causa


dessa impressão quase panorâmica que dá: como se tivéssemos à
nossa disposição ao alcance da mão os Alpes, o Tauro ou a
Cordilheira dos Andes.
Assim, pois, uma massa amorfa a arrotar foi introduzida para
nós no forno estelar, onde endurecendo se moldou em vales, cristas,
ondulações, gretas... E todos esses planos logo tão nitidamente
articulados, essas lajes delgadas onde a luz com aplicação deita seus
fogos, sem um olhar sequer para a moleza ignóbil subjacente.
Esse frouxo e frio subsolo que se chama miolo tem seu tecido
semelhante ao das esponjas: ali folhas ou flores são como irmãs
siamesas soldadas por todos os cotovelos a um tempo só. No pão
amanhecido essas flores murcham e encolhem: desprendem-se então
umas das outras, e a massa torna-se friável...
Mas partamo-la: pois o pão deve ser em nossa boca menos objeto
de respeito que de consumo.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O FOGO

O fogo estabelece uma classificação: primeiro, todas as chamas


se encaminham em uma direção...
(Só se pode comparar a andadura do fogo à dos animais: é preciso
que desocupe este lugar para ocupar aquele outro; caminha a um só
tempo como ameba e como girafa, o pescoço à frente, os pés
rampantes)...
Depois, ao passo que as massas metodicamente contaminadas se
aniquilam, os gases liberados vão-se transformando numa só rampa
de borboletas.

Trad. Júlio Castañon Guimarães

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O CICLO DAS ESTAÇÕES

Cansadas de se haverem contraído por todo o inverno, as árvores,


súbito, gabam-se de ser bobas. Não podem suportar mais: soltam
suas palavras, uma onda, um vômito de verde. Empenham-se em
chegar a uma foliação completa de palavras. Tanto faz! As coisas se
arranjarão de qualquer modo! E, de fato, se arranjam! Nenhuma
liberdade na foliação... Lançam, pelo menos o crêem, todo tipo de
palavras; lançam ramos para neles dependurar ainda mais palavras:
nossos troncos, pensam, aí estão para tudo assumir. Esforçam-se
por se esconder, por se confundir umas com as outras. Acreditam
poder dizer tudo, recobrir inteiramente o mundo com palavras
variadas: não dizem mais que “as árvores”. Incapazes até mesmo de
reter os pássaros que se vão, justamente quando se regozijavam de
haver produzido tão estranhas flores. Sempre a mesma folha, sempre
o mesmo modo de desdobramento, e o mesmo limite, sempre folhas
simétricas a si mesmas, simetricamente dependuradas! Tente mais
uma folha! A mesma! Mais uma! A mesma! Nada, em suma,
poderia detê-las, senão, de súbito, esta observação: “Não se sai das
árvores por meio de árvores.” Um novo cansaço, uma nova
reviravolta moral. “Deixemos isso tudo amarelecer, e cair. Venha o
taciturno estado, o despojamento, o OUTONO.”

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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O MOLUSCO

O molusco é um ser quase uma qualidade. Ele não necessita


de vigamento, mas de um anteparo apenas; algo como a cor no
tubo.
Aqui a natureza renuncia à apresentação do plasma em toda a
sua forma. Mostra apenas que lhe está apegada, abrigando-o
cuidadosamente num escrínio cuja face interior é a mais bela.
Não é, pois, um simples escarro, mas uma realidade das mais
preciosas.
O molusco é dotado de uma energia possante para se fechar. A bem
dizer, não é mais que um músculo, um gonzo, uma mola e sua porta.
A mola tendo secretado a porta. Duas portas ligeiramente
côncavas constituem toda a sua morada.
Primeira e última morada. Reside ali até depois de sua morte.
Nada se pode fazer para retirá-lo dali vivo.
A menor célula do corpo do homem se apega assim, e com essa
força, à palavra, e reciprocamente.
Mas, às vezes, um outro ser vem violar essa tumba, quando está
bem-feita, e nela se fixar no lugar do construtor defunto.
É o caso do paguro.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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CARACÓIS

Ao contrário das fagulhas, que são os hóspedes das cinzas quentes,


os caracóis gostam da terra úmida. Go on, avançam colados a ela
com todo o seu corpo. Carregam-na, comem-na, excrementam-na.
Ela os atravessa. Eles a atravessam. É uma interpenetração do melhor
bom gosto, pois por assim dizer de uma mesma tonalidade matizada
com um elemento passivo, um elemento ativo, onde o passivo
banha a um tempo só e nutre o ativo que se desloca enquanto
come.
(Há outra coisa a dizer dos caracóis. Primeiro, sua própria
umidade. Seu sangue frio. Sua extensibilidade.)
Observe-se, aliás, que não se concebe um caracol fora de sua
concha sem estar se movendo. Assim que repousa, volta logo ao
fundo de si mesmo. Inversamente seu pudor o obriga a mover-se
assim que mostra sua nudez, que entrega sua forma vulnerável.Assim
que se expõe, anda.
Durante as épocas secas retiram-se para os fossos, onde, aliás,
a presença de seu corpo parece contribuir para manter a umidade.
Sem dúvida ali avizinham com outras espécies de animais de
sangue frio, sapos, rãs. Mas quando dali saem não é com o mesmo
passo. Têm mais mérito em entrar, pois muito mais dificuldade
em sair.
Note-se, aliás, que, se gostam da terra úmida, não se afeiçoam
aos lugares em que a proporção passa a ser favorável à água, como
os pântanos, ou as lagoas. E certamente preferem a terra firme,
desde que seja rica e úmida.
Apetecem-lhes também os legumes e as plantas de folhas verdes
e carregadas de água. Sabem nutrir-se deles deixando somente as

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nervuras, e recortando o mais tenro. São, por exemplo, o flagelo
das alfaces.
Que são eles no fundo dos fossos? Seres que a eles se afeiçoam
por algumas de suas qualidades, mas que de lá pretendem sair. São
um de seus elementos constitutivos, mas vagabundo. Aliás, tanto lá
quanto na plena luz das aléias firmes sua concha preserva seu ar
reservado.
Certamente é por vezes incômodo carregar consigo por toda a
parte essa concha, mas eles não se queixam e até ficam bem contentes.
É precioso, onde quer que alguém se encontre, poder voltar para
casa e desafiar os importunos. Isso bem que valia a pena.
Eles babam de orgulho dessa faculdade, dessa comodidade. Como é
possével que eu seja um ser tão sensível e tão vulnerável, e ao mesmo
tempo tão a salvo dos assédios dos importunos, tão senhor de sua
felicidade e de sua tranqüilidade. Daé esse maravilhoso porte da cabeça.
Ao mesmo tempo tão colado ao chão, tão tocante e tão lento, tão
progressivo e tão capaz de me descolar do chão para voltar para dentro
de mim mesmo e então depois de mim o dilúvio, um pontapé pode
fazer-me rolar sabe Deus para onde. Estou seguro de que voltarei a
pôr-me de pé e a colar-me ao chão ao qual terei sido relegado pela sorte
e a encontrar nele meu pasto: a terra, o mais comum dos alimentos.
Que ventura, que alegria, portanto, ser um caracol. Mas dessa
baba de orgulho eles impõem a marca a tudo o que tocam. Uma
esteira prateada os segue. E os aponta talvez ao bico dos voláteis
que os apetecem. Eis o nó, a questão, ser ou não ser (vaidosos), o
perigo.
Só, evidentemente o caracol é bem só. Não tem muitos amigos.
Mas deles não precisa para ser feliz. Cola tão bem na natureza,
desfruta-a tão perfeitamente de tão perto, é amigo do chão que beija
com todo o corpo, e das folhas, e do céu ao qual levanta tão
altivamenteacabeça,comseusglobosdeolhostãosensíveis;nobreza,
lentidão, sabedoria, orgulho, vaidade, altivez.
E não digamos que nisso ele se assemelha ao marrão. Não ele
não tem aqueles pezinhos mesquinhos, aquele trotezinho inquieto.
Aquelanecessidade,aquelavilezadefugirdesairoso.Maisresistência,
e mais estoicismo. Mais método, mais altivez e sem dúvida menos
glutonaria, menos capricho; deixando este alimento para se lançar

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sobre aqueloutro, menos desvario e precipitação na glutonaria, menos
medo de deixar perder-se algo.
Nada é belo como esse modo de avançar tão lento e tão seguro e
tão discreto, à custa de que esforços esse deslizar perfeito com que
honram a terra! Tal qual um longo navio, de esteira prateada. Esse
modo de proceder é majestoso, sobretudo se se leva em conta uma
vez mais essa vulnerabilidade, esses globos de olhos tão sensíveis.
Será perceptível a cólera dos caracóis? Haverá exemplos dela?
Como ela não tem gesto algum, manifesta-se sem dúvida apenas
através de uma secreção de baba mais flocosa e mais rápida. Essa
baba de orgulho. Vê-se aqui que a expressão de sua cólera é a mesma
que a de seu orgulho. Assim ficam tranqüilos e impressionam o
mundo de maneira mais rica, prateada.
A expressão de sua cólera, bem como de seu orgulho, torna-se
brilhante ao secar. Mas também constitui seu traço e os aponta ao
raptor (ao predador). Além do mais, é efêmera e não dura senão até
a próxima chuva.
O mesmo ocorre com todos aqueles que se exprimem de maneira
inteiramente subjetiva sem arrependimento, e por traços somente, sem
o cuidado de construírem e de formarem sua expressão como uma
morada sólida, de várias dimensões. Mais duradoura que eles próprios.
Mas, sem dúvida, eles não experimentam tal necessidade. São
antes heróis, isto é, seres cuja própria existência é obra de arte,
que artistas, isto é, fabricantes de obras de arte.
Mas é aqui que toco num dos pontos principais de sua lição, que,
aliás, não lhes é exclusiva, mas que possuem em comum com todos
os seres providos de conchas: essa concha, parte de seu ser é ao
mesmo tempo obra de arte, monumento. Ela perdura mais tempo
que eles.
E é este o exemplo que nos dão. Santos, fazem obra de arte de
sua vida, obra de arte de seu aperfeiçoamento. Sua própria
secreção se produz de modo a se enformar. Nada de exterior a eles,
asuanecessidade,asuaprecisão,éobrasua.Nadadedesproporcional
por outro lado a seu ser físico. Nada que não lhe seja necessário,
obrigatório.
Assim traçam aos homens seu dever. Os grandes pensamentos
vêm do coração. Aperfeiçoa-te moralmente e farás belos versos.

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A moral e a retórica se encontram na ambição e no desejo do
sábio.
Mas santos em quê: obedecendo precisamente à sua natureza.
Conhece-te, pois, primeiro a ti mesmo. E aceita-te tal qual és. Em
consonância com teus vícios. Em proporção com tua medida.
Mas qual é a noção própria do homem: a palavra e a moral. O
humanismo.

Paris, 21 de março de 1936.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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A BORBOLETA

Quando o açúcar elaborado nos caules surge no fundo das flores,


como xícaras mal lavadas, um grande esforço se produz no solo
de onde, súbito, as borboletas alçam vôo.
Porém, como cada lagarta teve a cabeça ofuscada e enegrecida, e
o torso adelgaçado pela verdadeira explosão de onde as asas simétricas
flamejaram,
Desde então, a borboleta errática só pousa ao acaso do percurso,
ou quase isso
Fósforo voejante, sua chama não é contagiosa. E, além do mais,
ela chega muito tarde e pode apenas constatar as flores desabrochadas.
Não importa: comportando- se como acendedora de lâmpadas,
verifica a provisão de óleo de cada uma. Pousa no cimo das flores o
farrapo atrofiado que carrega e vinga assim sua longa humilhação
amorfa de lagarta ao pé dos caules.
Minúsculo veleiro dos ares maltratado pelo vento como pétala
superfetatória, vagabundeia pelo jardim.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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O MUSGO

As patrulhas da vegetação detiveram-se em tempos de antanho


na estupefação das rochas. Mil bastonetes do veludo de seda
assentaram-se então como alfaiates no chão.
E logo, desde a aparente crispação do musgo na própria rocha
com seus lictores, tudo no mundo pego num emaranhado inextricável
e encaracolado por baixo, se desvaira, tripudia, sufoca.
Bem mais, os pêlos cresceram; com o tempo tudo ainda
escureceu.
Ó preocupações com pêlos cada vez mais longos! Os profundos
tapetes, em prece quando neles nos assentamos, reerguem-se hoje
com aspirações confusas. Assim ocorrem não somente sufocações,
mas afogamentos.
Ora, escalpar simplesmente da velha rocha austera e sólida esses
terrenos de tecido-esponja, esses capachos úmidos, com a saturação
torna-se possível.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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BORDAS DO MAR

O mar até as proximidades de seus limites é uma coisa simples


que se repete onda a onda. Mas as coisas mais simples na natureza
não se abordam sem as mesuras necessárias, sem que sejam
preenchidas fôrmas e formalidades, nem as coisas mais espessas,
sem sofrer algum desgaste. Por isso é que o homem, e também por
rancor contra essa imensidão que o abate, precipita-se às bordas ou à
interseção das grandes coisas para defini-las. Pois a razão no centro
do uniforme balança perigosamente e se rarefaz: uma mente falta
de noções deve, como primeira abordagem, se aprovisionar de
aparências.
Enquanto o ar, mesmo atormentado, seja pelas variações de sua
temperatura ou por uma trágica necessidade de influência e de
informações a obter por si mesmo a respeito de cada coisa, folheia
aindaassimsuperficialmente,edobraocantodaspáginas,marcando-
as, do voluminoso tomo marinho, o outro elemento mais estável
que nos suporta nele mergulha obliquamente até sua guarda rochosa
grandesfacasdeterraquehabitamoprofundo.Porvezes,aoencontro
de um músculo enérgico, uma lâmina de mar ressai pouco a pouco:
é o que se chama uma praia.
Exilada ao ar livre, mas repelida pelas profundezas, embora até
certo ponto familiarizada com elas, essa parte da amplidão se alonga
entre os dois, mais ou menos fulva e estéril, e ordinariamente serve
apenasdesuporteaumtesourodedestroçosincansavelmentepolidos
e ajuntados pelo destruidor.
Um concerto elementar, mais delicioso porque discreto, e sujeito a
reflexão, tem lugar ali desde a eternidade para ninguém: desde a sua
formação, operada pelo espírito de insistência que sopra por vezes dos

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céussobreumaplanurasemlimites,opulsovindodelongesemtropeços
esemreproche,enfim,pelaprimeiravez,encontraaquemfalar.Porém,
uma só e breve palavra é confiada aos seixos e às conchas, que se
mostram, por isso, bastante revolvidos; e ele expira ao proferi-la; e os
que vêm a seguir, todos, expirarão também ao proferir a réplica, às
vezes a tempos apenas um pouco mais forte clamada. Cada um por
sobre o outro chegado à orquestra ergue um tanto soberbo o pescoço,
faz uma saudaçã, e se nomeia a quem foi endereçado. Mil homônimos
senhores são assim admitidos no mesmo dia da apresentaçã pelo mar
prolixo e prolífico em ofertas labiais a cada uma de suas bordas.
Também, não é qualquer camponês do Danúbio que ante o vosso
fórum, ó seixos, vem se fazer escutar com seu rude discurso: mas o
próprio Danúbio, misturado a todos os outros rios do mundo
perdidos sentido e pretensão , e profundamente recolhidos numa
desilusãoamarga,aogostoapenasdequemtivessezelode consciência
o bastante para apreciar-lhes, por absorção, a qualidade mais secreta,
o sabor.
É, com efeito, após a anarquia dos rios, ao seu relaxamento no
profundo e copiosamente habitado lugar-comum da matéria líquida,
que se deu o nome de mar. Eis a razão por que, às suas próprias
bordas, parecerá sempre ausente: aproveitando-se do afastamento
reciproco a impedi-las de se comunicar entre si senão através dele
ou por meio de longos desvios, faz com que todas acreditem,
indubitavelmente, que se dirige a cada uma em especial. Na realidade,
polido com todo mundo, e mais que polido: capaz, com relação a
cada uma delas, de todos os arrebatamentos, de todas as convicções
sucessivas, guarda no fundo da bacia, permanentemente, sua infinita
possessão de correntes. Não sai nunca dos limites, senão um pouco,
pondo ele próprio um freio ao furor de seus impulsos. E, como a
medusa que abandona aos pescadores por imagem reduzida ou
amostra de si mesmo, faz apenas uma reverência extática a todas as
suas bordas.
Assim é a antiga veste de Netuno, esse empilhamento pseudo-
orgânico de véus pelos três quartos do mundo uniformemente
derramados. Nem pelo punhal cego das rochas, nem pela mais
escavante tempestade a revirar maços de folhas ao mesmo tempo,
nem pelo olho atento do homem aplicado penosamente e aliás sem

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controle num meio interdito aos orifícios destampados dos outros
sentidos e que um braço mergulhado para agarrar turva ainda mais,
esse livro no fundo foi lido.

Trad. Adalberto Miiller Jr. e Carlos Loria

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DA ÁGUA

Mais abaixo que eu, sempre mais abaixo que eu se encontra a


água. É sempre com os olhos baixos que a vejo. Como o solo, como
uma parte do solo, como uma modificação do solo.
É branca e brilhante, informe e fresca, passiva e obstinada em
seu único vício: a gravidade, dispondo de meios excepcionais para
satisfazer esse vício: contornando, transpassando, erodindo, filtrando.
No interior dela própria esse vício também atua: desaba sem
cessar, renuncia a cada momento a qualquer forma, só tende a se
humilhar, deita-se de bruços no chão, quase cadáver, como os monges
de certas ordens. Sempre mais abaixo: tal parece ser sua divisa: o
contrário de excelsior.

Poder-se-ia quase dizer que a água é louca, por causa dessa


histérica necessidade de só obedecer à sua gravidade, que a possui
como uma idéia fixa.
Certamente, tudo no mundo conhece essa necessidade, que sempre
e em todos os lugares deve ser satisfeita. Este armário, por exemplo,
se mostra muito cabeçudo em seu desejo de aderir ao chão e, se ele
se encontrar um dia em equilíbrio instável, preferirá danificar-se a
infringi-lo. Mas enfim, numa certa medida, joga com a gravidade,
desafia-a: não desaba em todas as suas partes, sua cornija, suas
molduras não se conformam. Existe nele uma resistência em prol
de sua personalidade e de sua forma.
LÍQUIDO é por definição aquilo que prefere obedecer à gravidade
a manter sua forma, aquilo que recusa qualquer forma para obedecer

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à sua gravidade. E que perde toda compostura por causa dessa idéia
fixa, desse escrúpulo doentio. Desse vício, que o torna rápido,
precipitado ou estagnado; amorfo ou feroz, amorfo e feroz, feroz
terebrante, por exemplo; ardiloso, filtrante, contornante; de tal modo
que dele se pode fazer o que se quiser, e conduzir a água em canos
para a seguir fazê-la jorrar verticalmente a fim de gozar enfim de
sua maneira de se abismar em chuva: uma verdadeira escrava.
... No entanto, o Sol e a Lua invejam essa influência exclusiva, e
procuram exercer-se sobre ela quando está propiciando a tomada de
grandes extensões, sobretudo se está ali em estado de menor
resistência, dispersa em poças rasas. O Sol então arrecada um maior
tributo. Força-a a um ciclismo perpétuo, trata-a como um esquilo
em sua roda.

A água me escapa... me escorre entre os dedos. E olhe lá! Isso


nem é tão limpo (quanto uma lagartixa ou uma rã): ficam-me nas
mãos traços, manchas, relativamente demorados para secar ou que
se devem enxugar. Ela me escapa e, no entanto, me marca, e quase
nada posso fazer.
Ideologicamente é a mesma coisa: ela me escapa, escapa a
qualquer definição, mas deixa em meu espírito e neste papel traços,
manchas informes.

Inquietude da água: sensível à menor mudança da declividade.


Pulando as escadas com ambos os pés ao mesmo tempo. Brincalhona,
pueril de obediência, voltando imediatamente quando a chamamos
mudando a inclinação para o lado de cá.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O PEDAÇO DE CARNE

Cada pedaço de carne é uma espécie de fábrica, moinhos e lagares


de sangue.
Tubulações, altos-fornos, cubas vizinhos de martelos-pilões,
coxins de graxa.
O vapor jorra, fervente. Fogos sombrios ou claros encarnam-
se.
Sarjetas a céu aberto carreiam escórias e fel.
E lentamente, à noite, à morte, todas essas coisas se resfriam.
Breve, se não a ferrugem, pelo menos outras reações químicas se
produzem, liberando odores pestilenciais.

Trad. Júlio Castañon Guimarães

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O GYMNASTA

Como seu G indica, o ginasta usa barba de bode e o bigode


que quase se junta a uma grande mecha em vírgula na testa
baixa.
Moldado por uma malha que faz duas dobras na virilha, usa
também, como o seu Y, o viril do lado esquerdo.
Todos os corações ele devasta, mas se obriga a uma atitude casta,
e seu palavrão é BASTA!
Mais rosado que o natural e menos destro que um macaco, salta nos
aparelhos tomado de um zelo puro. Depois, com a cabeça do corpo preso
na corda-com-nós, interroga o ar como uma minhoca de seu torrão.
Para encerrar, cai por vezes dos cimbres como uma lagarta, mas,
de um salto, põe-se novamente de pé, e é então o protótipo adulado
da estupidez humana que vos saúda.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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A JOVEM MÃE

Alguns dias após o parto a beleza da mulher se transforma.


O rosto muitas vezes inclinado sobre o peito alonga-se um pouco.
Os olhos atentamente baixados sobre um objeto próximo, quando
se erguem vez por outra parecem um tanto perdidos. Mostram um
olhar cheio de confiança, mas solicitando continuidade. Os braços e
as mãos se encurvam e se reforçam. As pernas que emagreceram
muito e se debilitaram gostam de estar sentadas, com os joelhos
bem levantados. O ventre intumescido, lívido, ainda muito sensível;
o baixo-ventre adapta-se ao repouso, à noite dos lençóis.
... Mas logo em pé, todo esse grande corpo evolui apertado no
pavês útil em todas as alturas dos quadriláteros brancos da roupa,
que por vezes com sua mão livre ele pega, amarrota, tateia com
sagacidade, para voltar a estendê-lo ou dobrá-los a seguir conforme
os resultados desse exame.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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R. C. SEINE Nº

É por uma escada de madeira jamais encerada há trinta anos, na


poeira das baganas jogadas na porta, no meio de um pelotão de
funcionariozinhos ao mesmo tempo mesquinhos e selvagens, de
chapéu-coco, com o farnel na mão, que duas vezes por dia começa
nossa asfixia.
Uma claridade reticente reina no interior desse caracol em ruínas,
no qual flutua em suspensão a raspadura da madeira bege. Ao ruído
dos sapatos içados pelo cansaço de um degrau a outro, num eixo
imundo, aproximamo-nos com um andamento de grãos de café da
engrenagem trituradora.
Todos acreditam estar se movimentando em estado livre, porque
uma opressão extremamente simples os obriga, que não difere muito
da gravidade: do fundo dos céus a mão da miséria roda o moinho.

A saída, na verdade, não é para nossa forma tão perigosa. Esta porta
que se deve transpor só tem um gongo de carne do tamanho de um
homem, o guarda que obstrui a metade dela: mais que de uma
engrenagem, trata-se aqui de um esfíncter. Todos sao imediatamente
deleexpelidos,vergonhosamentesãosesalvos,muideprimidos,porém,
por intestinos lubrificados com cera, com fly-tox, com luz elétrica.
Bruscamenteseparadosporlongosintervalos,encontram-seentão,numa
atmosfera estonteante de hospital com duração de cura indefinida para
a manutenção das bolsas vazias, deslizando a toda velocidade através de
uma espécie de mosteiro-rinque cujos numerosos canais se cortam em
ângulos retos, onde o uniforme é o casaco surrado.

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Logo após, em cada serviço, com um barulho terrível, os armários
com cortinas de ferro se abrem, de onde as pastas, como
horrorosos pássaros-fósseis familiares, desanichadas de seus estratos,
descem pesadamente para pousar nas mesas onde se sacodem. Inicia-
se um estudo macabro. Ó analfabetismo comercial, ao ruído das
máquinas sagradas é então à longa, à sempiterna celebração de teu
culto que se deve servir.
Tudo se inscreve aos poucos em impressoss em várias vias, onde
a palavra reproduzida em malvas cada vez mais pálidos acabaria
sem dúvida por dissolver-se no desdém e no próprio tédio do papel,
não fossem os arquivos, essas fortalezas de papelão azul muito
resistente, perfurados no centro com uma lucarna redonda a fim de
que nenhuma folha inserida se esconda ali no esquecimento.
Duas ou três vezes por dia, no meio desse culto, o correio multicor,
radioso e tonto como um pássaro das ilhas, ma1 saído dos envelopes
marcados em preto pelo beijo dos correios, vem sem cerimônia
pousar diante de mim.
Cada folha estrangeira é então adotada, confiada a uma de
nossas pombinhas, que a guia a destinos sucessivos até sua
classificação.
Algumas jóias servem para tais atrelagens momentâneas:
cantoneiras douradas, grampos parisienses, clipes esperam em
escudelas por sua utilização.

Pouco a pouco, no entanto, enquanto a hora gira, a onda sobe


nas cestas de lixo. Quando vai transbordar, é meio-dia: uma campainha
estridente é convite para desaparecer instantaneamente desses locais.
Reconheçamos que ninguém precisa ouvi-lo duas vezes. Uma corrida
desvairada se disputa nas escadas, onde os dois sexos, autorizados a
se confundirem na fuga quando não o eram para a entrada, se chocam
e se acotovelam à porfia.
É nesse momento que os chefes de serviço tomam
verdadeiramente consciência de sua superioridade: “Turba ruit ou

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ruunt”; eles, com porte de sacerdotes, deixando passar o galope dos
monges e mongezinhos de todas as ordens, visitam lentamente seu
domínio, cercado por privilégio de vidraçarias despolidas, num
cenário em que as virtudes embalsamadoras são a soberba, o mau
gosto e a delação, e chegando a seu vestiário, onde não raro se
encontram luvas, uma bengala, uma echarpe de seda, largam
repentinamente o hábito de sua careta característica e se transformam
em verdadeiros homens do mundo.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O RESTAURANTE LEMEUNIER
NA RUA DA CHAUSSÉE D’ANTIN

Nada mais emocionante que o espetáculo que oferece, neste


imenso Restaurante Lemeunier, na rua da Chaussée d’Antin, a
multidão dos funcionários e das balconistas que ali almoçam ao meio-dia.
A luz e a música são dispensadas com uma prodigalidade que faz
sonhar. Espelhos biselados, douraduras por toda a parte. Entra-se
através de folhagens verdes por uma passagem mais escura junto a
cujas paredes alguns comensais apertados já estão instalados, e que
vai dar em uma sala de proporções enormes, com vários balcões de
pichepinho que formam um único andar em oito, onde nos acolhem
ao mesmo tempo baforadas de cheiros tépidos, o estardalhaço dos
garfos e dos pratos chocados, as chamadas das garçonetes e o barulho
das conversas.
É uma grande composição digna de Veronese pela ambição e
pelo volume, mas que se deveria pintar inteiramente no espírito do
famoso Bar de Manet.
As personagens dominantes são sem contestação primeiramente
o grupo de músicos no nó do oito, depois as caixas sentadas em
sobrelevação atrás de seus bancos, de onde os corpetes claros e
obrigatoriamente estufados emergem inteiros, enfim lastimáveis
caricaturas de maîtres que circulam com relativa lentidão, mas
são obrigados por vezes a pôr a mão na massa com a mesma
precipitação das garçonetes, não pela impaciência dos comensais
(pouco acostumados a serem exigentes), mas pela febrilidade de
um zelo profissional aguilhoado pelo sentimento da incerteza
das situações no estado atual da oferta e da procura no mercado
do trabalho.

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Ó mundo das fatuidades e das futilidades, atinges aqui tua perfeição!
Todaumajuventudeinconscienteaquimacaqueiadiariamenteaquela
frivolidade estardalhante que os burgueses se permitem oito ou dez
vezes por ano, quando o pai banqueiro ou a mãe cleptômana
conseguiram algum benefício suplementar realmente inesperado e
querem, como manda o figurino, embasbacar os vizinhos.
Cerimoniosamente ataviados, como seus pais no campo só se
mostram aos domingos, os jovens funcionários e suas com-
panheiras mergulham aqui com delícia, com total boa-fé a cada
dia. Cada um se apega a seu prato como o bernardo-eremita a
sua concha, enquanto a vaga copiosa de alguma valsa vienense
cujo rumor domina o tinido das valvas de faiança remexe os
estômagos e os corações.
Como numa gruta maravilhosa, vejo-os todos falar e rir, mas
não os ouço. Jovem balconista, é aqui, no meio da multidão de teus
semelhantes, que deves falar a tua companheira e descobrir teu
próprio coração. Ó confidência, é aqui que serás permutada!
Sobremesas de vários andares cremosos audaciosamente
superpostos, servidas em cúpulas de um metal misterioso, de pé alto
mas rapidamante lavadas e infelizmente sempre mornas, permitem
aos consumidores que decidiram que elas fossem dispostas diante
deles manifestarem melhor do que através de outros sinais os
sentimentos profundos que os animam. Para um, é o entusiasmo
que lhe proporciona a presença a seu lado de uma datilógrafa
magnificamente ondulada, pela qua1 ele não hesitaria em cometer
mil outras custosas loucuras do mesmo tipo; para outro, é a
preocupação em exibir uma frugalidade de bom-tom (comeu antes
apenas uma leve entrada) conjugada com um gosto promissor de
guloseimas; para alguns é assim que se mostra um desgosto
aristocrático por tudo aquilo que neste mundo não participa nem
um pouco sequer da fantasmagoria; outros, enfim, pela maneira
com que degustam, revelam uma alma nobre e embotada, e um
grande hábito e saciedade do luxo.
Aos milhares, entretanto, as migalhas loiras e grandes
impregnações rosadas apareceram ao mesmo tempo nos panos
esparsos ou estendidos.
Um pouco mais tarde, os isqueiros assumem o primeiro papel;

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de acordo com o dispositivo que aciona a roda serrilhada ou a maneira
com que são manipulados. Enquanto, levantando os braços num
movimento que descobre nas axilas sua maneira pessoal de arvorar
os emblemas da transpiração, as mulheres se penteiam ou maneiam
o tubo de maquiagem.
É o momento em que, num bulício recrudescente de cadeiras
removidas, de esfregões estalidantes, de crostas trituradas, vai se
cumprir o derradeiro rito da singular cerimônia. Sucessivamente,
de cada um de seus hóspedes, as garçonetes, das quais um bloco
habita o bolso e os cabelos um pequeno lápis, aproximam os ventres
apertados de maneira tão tocante pelas tiras do avental: entregam-se
de memória a uma rápida estimativa. E então que a vaidade é punida
e a modéstia recompensada. Moedas e cédulas azuis se trocam nas
mesas: parece que cada qua1 tira o corpo fora.
Fomentado, entretanto, pelas empregadas durante os últimos
serviços da refeição da noite, pouco a pouco se propaga e a portas
fechadas se conclui um levantamento geral do mobiliário, graças ao
qual as tarefas úmidas da limpeza são imediatamente empreendidas
e sem dificuldade terminadas.
É então somente que as trabalhadoras, uma a uma, sopesando
alguns vinténs que tilintam no fundo de seu bolso, com o pensamento
a refluir em seu coração de algum filho deixado com a babá no
campo ou cuidado por vizinhos, abandonam com indiferença esses
locais apagados, enquanto da calçada de frente o homem que as
aguarda já não distingue mais que uma vasta manada de cadeiras e
de mesas, de orelha em pé, umas por sobre as outras erguidas a
contemplar com hebetude e paixão a rua deserta.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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ANOTAÇÕES PARA UMA CONCHA

Uma concha é uma coisa pequena; mas posso desmesurá-la,


recolocando-a onde a encontro, pousada na vastidão da areia. Porque
então, apanhando um punhado de areia, ficarei a observar o pouco
que me resta na mão, depois que pelos interstícios de meus dedos
quase toda ela tiver escorrido. Observarei alguns grãos, depois cada
grão, e nenhum desses grãos de areia, nesse momento, me parecerá
mais urna coisa pequena; e, logo, a concha formal, essa casca de
ostra ou essa “tiara bastarda” que é a voluta, ou a assim denominada
“navalha”, me impressionará como um enorme monumento, ao
mesmo tempo colossal e precioso, algo como o templo de Angkor,
Saint-Maclou, ou as Pirámides, com uma significação bem mais
estranha que esses mui incontestáveis produtos de homens.
Se então me vier à mente que essa concha, que uma lâmina de
mar pode, sem dúvida, recobrir, é habitada por um animal; se
acrescento um animal a essa concha, imaginando-a recolocada sob
alguns centímetros de água, pode-se fazer uma idéia de quanto
aumentará, se intensificará de novo a minha impressão, e se tornará
diferente daquela que pode produzir o mais notável dos monumentos
que evoquei ainda há pouco!

Os monumentos do homem se assemelham aos pedaços de seu


esqueleto ou de qualquer esqueleto, a grandes ossos descarnados:
não evocam nenhum habitante de seu tamanho. As mais imensas
catedrais deixam sair tão-somente uma falange informe de formigas;

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e mesmo a mansão, o castelo mais suntuoso feitos para um só homem
são ainda mais comparáveis a uma colmeia ou a um formigueiro
com numerosos compartimentos do que a uma concha. Quando o
senhor sai de sua morada, causa por certo menos impressão do que
quando o bernardo-eremita deixa entrever sua pinça monstruosa na
embocadura do búzio soberbo que o alberga.
Posso me comprazer em considerar Roma, ou Nîmes, como o
esqueleto esparso, aqui a tíbia, ali o crânio de uma antiga cidade
viva, de um antigo vivente, mas será preciso, então, imaginar um
enorme colosso de carne e ossos, que não corresponde realmente a
nada do que se pode razoavelmente inferir do que nos ensinaram,
mesmo com o auxilio de expressões no singular, como o Povo
Romano, ou a Multidão Provençal.
Como eu gostaria que pelo menos uma vez me fizessem entrever
que um tal colosso realmente existiu, que nutrissem de algum modo a
visão por demais fantasmagórica e puramente abstrata, sem nenhuma
convicção que dele concebo! Que me fizessem tocar as suas faces, a
forma de seu braço e o modo como o colocava ao longo de seu corpo.
Com a concha temos tudo isso: nela estamos, carne em carne,
profundamente; não deixamos nunca a natureza: o molusco ou o
crustáceo nela estão presentes. Daí, uma espécie de inquietação que
decuplica o nosso prazer.

Não sei bem por quê, desejaria que o homem, em lugar desses
enormes monumentos que não testemunham senão a desproporção
grotesca de sua imaginação e de seu corpo (ou então de seus ignóbeis
costumes sociais, conviviais), em lugar ainda dessas estátuas feitas
em sua escala ou um pouco maiores (estou pensando no David de
Michelangelo) que apenas e tão-somente o representam, esculpisse
coisas em feitio de nichos, de conchas de seu tamanho; coisas, enfim,
hem diferentes de sua forma de molusco, mas, apesar disso, bem
proporcionais a ele (as palhoças das tribos africanas são, para mim,
bastantesatisfatórias,dessepontodevista);queohomemdispensasse
seus cuidados em criar para as gerações uma morada não muito
maior que o seu corpo, em que estivessem contidas todas as suas

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imaginações, suas razões; que ele empregasse seu gênio ao
ajustamento, não à desproporção ou, pelo menos, que o gênio
reconhecesse os limites do corpo que o suporta.
E não admiro nem mesmo aqueles como Faraó que fazem
executar por uma multidão monumentos para um apenas: preferiria
que ele empregasse essa multidão numa obra não muito maior ou
não tão maior que seu próprio corpo, ou o que teria sido mais
meritório ainda, que testemunhasse sua superioridade sobre os outros
homens pelo caráter de sua própria obra.
Desse ponto de vista, admiro sobretudo certos escritores
ou músicos comedidos, Bach, Rameau, Malherbe, Horácio,
Mallarmé , os escritores acima de todos os outros, porque
seu monumento é feito da verdadeira secreção do molusco homem,
da coisa mais proporcional e condicionada ao seu corpo, e,
contudo, a mais diferente de sua forma que se pode conceber,
isto é: a PALAVRA.
Ó Louvre de leitura, que poderá ser habitado, após o fim da
raça, talvez por outros hóspedes, alguns macacos, por exemplo, ou
algum pássaro, ou algum ser superior, como o crustáceo substitui o
molusco na “tiara bastarda”.
E depois, com o fim de todo o reino animal, o ar e a areia em
pequenos grãos lentamente aí penetram, enquanto no solo reluz ainda
e se desgasta, e vai brilhantemente se desagregar, ó estéril, imaterial
poeira, ó brilhante resíduo, embora interminavelmente revolvido e
triturado entre os laminadores aéreos e marinhos, ENFIM! não há
mais ninguém e nem é possível re-formar areia, nem mesmo vidro,
e ACABOU!

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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AS TRÊS LOJAS

Perto da Praça Maubert, lá onde a cada manhã cedo espero o


ônibus, há três lojas contíguas: Joalheria, Lenha e Carvão,Açougue.
Contemplando-as sucessivamente, observo os comportamentos
diferentes a meu ver do metal, da pedra preciosa, do carvão, da
acha, do pedaço de carne.
Não nos detenhamos por muito tempo nos metais, que são
apenas a conseqüência de uma ação violenta ou divisora do homem
sobre barros ou certos aglomerados que por si só jamais tiveram
semelhantes intenções; nem nas pedras preciosas, cuja raridade
justamente deve levar-nos a não lhes conceder senão poucas
palavras seletíssimas num discurso sobre a natureza
eqüitativamente composto.
Quanto à carne, um tremor a sua vista, uma espécie de horror ou
de simpatia me obriga à maior discrição. Recém-cortada, aliás, um
véu de vapor ou de fumaça sui generis furta-a até dos olhos que
desejariam demonstrar propriamente falando cinismo: terei dito tudo
o que posso dizer quando tiver chamado a atenção, por um momento,
para seu aspecto palpitante.
Mas a contemplação da lenha e do carvão é uma fonte de
alegrias tão fáceis quanto sóbrias e seguras, as quais eu folgaria
em compartilhar. Sem dúvida seriam necessárias para tanto várias
páginas, quando não disponho aqui senão da metade de uma única.
Por isso restrinjo-me a propor-lhes este assunto de meditações:
“lº) O TEMPO OCUPADO COM VECTORES VINGA-SE
SEMPRE, PELA MORTE. 2º PARDO, POR QUE 0 PARDO
FICA ENTRE O VERDE E O PRETO NO CAMINHO DA
CARBONIZAÇÃO, O DESTINO DA LENHA COMPORTA

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AINDA EMBORA MINIMAMENTE UMA GESTA, ISTO
É, O ERRO, O PASSO EM FALSO, E TODOS OS MAL-
ENTENDIDOS POSSÍVEIS.”

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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FAUNA E FLORA

A fauna se mexe, ao passo que a flora se desdobra à vista.


Toda uma espécie de seres animados é diretamente assumida pelo
solo.
Eles têm no mundo seu lugar assegurado, assim como na
antigüidade sua decoração.
Diferentes nisso de seus irmãos vagamundos, não são aditados
ao mundo, importunos ao solo. Não erram em busca de um lugar
para seu morto, se a terra como dos demais absorve cuidadosamente
seus restos.
Entre eles, não há preocupações alimentares ou domiciliares, nem
entredevoração: não há terrores, corridas desabaladas, crueldades,
queixas, gritos, palavras. Não são os corpos segundos da agitação,
da febre e do assassinato.
Assim que surgem à luz, têm mansão na rua, ou na estrada.
Sem nenhuma preocupação com os vizinhos, não entram uns
nos outros por via de absorção. Não saem uns dos outros por
gestação.
Morrem por dessecação e queda no solo, ou antes; abatimento in
loco, raramente por corrupção. Nenhum lugar de seu corpo parti-
cularmente sensível, a ponto que perfurado causa a morte de toda a
pessoa. Mas uma sensibilidade relativamente mais coceguenta ao
clima, às condições de existência.

Eles não são... Eles não são...


Seu inferno é de uma outra espécie.

Não têm voz. São mais ou menos paralíticos. Não podem chamar

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a atenção a não ser por suas poses. Não parecem conhecer as dores
da não-justificação. Mas não poderiam em absoluto escapar pela
fuga dessa obsessão, ou acreditar escapar dela, na embriaguez da
velocidade. Não há neles outro movimento que não a extensão.
Nenhumgesto,nenhumpensamento,talveznenhumdesejo,nenhuma
intenção, que não resulte num monstruoso crescimento de seu corpo,
numa irremediável excrescência.
Ou antes, o que é bem pior, nada de monstruoso por desventura:
malgrado todos os esforços para “se exprimirem”, não chegam jamais
senão a repetir um milhão de vezes a mesma expressão, a mesma folha.
Na primavera, quando, cansados de se reprimirem e não agüentando
mais, deixam escapar uma torrente, um vômito de verde, e acreditam
entoar um cântico variado, sair de si próprios, estender-se a toda a
natureza, enlaçá-la, ainda não conseguem realizar senão, em milhares
de exemplares, a mesma nota, a mesma palavra, a mesma folha.

Não se pode sair da árvore com meios de árvore.

“Não se exprimem a não ser por suas poses.”


Nada de gestos, multiplicam apenas seus braços, suas mãos, seus
dedos, à maneira dos budas. É assim que, ociosos, vão até o fim
de seus pensamentos. Não são mais que uma vontade de expressão.
Não têm nada escondido para si mesmos, não podem guardar
nenhuma idéia secreta, desdobram-se inteiramente, honestamente,
sem restrição.
Ociosos, passam o tempo complicando sua própria forma,
aperfeiçoando no sentido da maior complicação de análise seu próprio
corpo. Onde quer que nasçam, por mais escondidos que estejam, só
cuidam de levar a cabo sua expressão: preparam-se, adornam-se,
aguardam que venham lê-los.
Têm à sua disposição para chamar a atenção sobre si apenas suas
poses, apenas linhas, e por vezes um sinal excepcional, um
extraordinário apelo aos olhos e ao olfato sob forma de ampolas ou
de bombas luminosas e perfumadas, que se chamam suas flores, e
que são, sem dúvida, chagas.

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Essa modificação da sempiterna folha significa certamente
alguma coisa.

O tempo dos vegetais: parecem sempre hirtos, imóveis. Viramos


as costas por alguns dias, uma semana, sua pose ainda se precisou,
seus membros se multiplicaram. Sua identidade não deixa dúvida,
mas sua forma se realizou cada vez melhor.

A beleza das flores que murcham: as pétalas se retorcem como


sob a ação do fogo: é bem isso, aliás: uma desidratação. Retorcem-
se para deixarem ver as sementes às quais decidem dar sua chance,
o campo livre.
É então que a natureza se apresenta perante a flor, força-a a se
abrir, a se desabotoar: ela se crispa, se retorce, recua, e deixa triunfar
a semente que sai dela que a havia preparado.

O tempo dos vegetais se reduz a seu espaço, ao espaço que ocupam


pouco a pouco, preenchendo uma talagarça sem dúvida para todo o
sempre determinada. Quando isso acaba, então a lassidão os invade,
e é o drama de uma certa estação.
Como o desenvolvimento de cristais: uma vontade de formação, e
uma impossibilidade de se formar sem que seja de uma maneira.

Entre os seres animados podem-se distinguir aqueles nos quais,


além do movimento que os faz crescer, age uma força pela qual
podem mover todo ou parte do corpo, e deslocar-se à sua maneira
pelo mundo, e aqueles nos quais não há outro movimento senão
a extensão.
Uma vez libertados da obrigação de crescer, os primeiros se

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exprimem de vários modos, a respeito de mil preocupações de
alojamento, de alimentação, de defesa, de certos jogos, enfim, quando
lhes é concedido um certo descanso.
Os segundos, que desconhecem essas necessidades prementes,
não se pode afirmar que não tenham outras intenções ou vontade
senão de crescer, mas em todo caso qualquer vontade de expressão
de sua parte é impotente, salvo para desenvolver seu corpo, como se
cada um de nossos desejos nos custasse a obrigação doravante de
nutrir e de suportar um membro suplementar. Infernal multiplicação
de substância por ocasião de cada idéia! Cada desejo de fuga me
sobrecarrega com um novo elo!

O vegetal é uma análise em ato, uma dialética original no espaço.


Progressão por divisão do ato precedente. A expressão dos animais é
oral, ou mimada por gestos que se apagam mutuamente. A expressão
dos vegetais é escrita, de uma vez por todas. Inviável voltar atrás,
arrependimentos impossíveis: para se corrigir, é necessário acrescentar.
Corrigir um texto escrito, e publicado, por meio de apêndices, e
assim por diante. Mas, é necessário acrescentar que eles não se
dividem infinitamente. Existe para cada um uma baliza.
Cada um de seus gestos deixa não somente um traço como ocorre
com o homem e com seus escritos,deixa uma presença, uma nascença
irremediável, e não desprendida deles.

Suas poses, ou “quadros-vivos”:


mudas instâncias, suplicações, calma forte, triunfos.

Dizem que os enfermos, os amputados vêem suas faculdades se


desenvolverem prodigiosamente: dá-se o mesmo com os vegetais:
sua imobilidade faz sua perfeição, seu corte, suas belas decorações,
seus ricos frutos.

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Nenhum gesto de sua ação tem efeito fora deles próprios.

A variedade infinita dos sentimentos que o desejo faz nascer na


imobilidade propiciou a infinita diversidade de suas formas.

Um conjunto de leis extremamente complicadas, isto é, o mais


perfeito acaso, preside ao nascimento, e à localização dos vegetais
na superfície do globo.
A lei dos indeterminados determinantes.

Os vegetais à noite.
A exalação do ácido carbônico pela função clorofiliana, como
um suspiro de satisfação que durasse horas, como quando a corda
mais grave dos instrumentos de cordas, tão frouxa quanto possível,
vibra no limite da música, do som puro, do silêncio.

EMBORA O SER VEGETAL QUEIRA SER DEFINIDO DE


PREFERÊNCIA POR SEUS CONTORNOS E POR SUAS
FORMAS, HONRAREI NELE ACIMA DE TUDO UMA
VIRTUDE DE SUA SUBSTÂNCIA: A DE PODER CUMPRIR
SUA SÍNTESE À CUSTA UNICAMENTE DO MEIO
INORGÂNICO QUE O ENVOLVE. TODO O MUNDO EM
TORNO DELE É APENAS UMA MINA ONDE O PRECIOSO
FILÃO VERDE HAURE COM QUE ELABORAR CONTI-
NUAMENTE SEU PROTOPLASMA, NO AR PELA FUNÇÃO
CLOROFILIANA DE SUAS FOLHAS, NO SOLO PELA
FACULDADE ABSORVENTE DE SUAS RAÍZES QUE

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ASSIMILAM OS SAIS MINERAIS. DAÍ A QUALIDADE
ESSENCIAL DESSE SER, LIBERTO AO MESMO TEMPO DE
QUAISQUER PREOCUPAÇÕES DOMICILIARES E
ALIMENTARES PELA PRESENÇA EM SUA VOLTA DE UM
RECURSO INFINITO DE ALIMENTOS: A imobilidade.

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

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O CAMARÃO

Diversas qualidades ou circunstâncias fazem um dos objetos


mais pudicos no mundo, e, talvez, a mais esquiva caça de
contemplação, de um pequeno animal que importa, sem dúvida,
menos nomear desde logo que evocar com precaução, deixar
insinuar-se com o movimento que lhe é próprio no conduto de
circunlocuções, atingir, enfim, com a palavra, o ponto dialético
onde o situam sua forma e seu meio, sua condição muda e o
exercício de sua justa profissão.
Admitamos, de início, acontecer, às vezes, que um homem com
a vista turvada pela febre, a fome ou simplesmente a fadiga sofra
uma passageira e, sem dúvida, benigna alucinação: com saltos vivos,
sofreados, sucessivos, retrógrados seguidos de lentos retornos,
percebe, de um canto a outro do âmbito de sua visão, revolver-se de
modo característico uma espécie de pequenos sinais, bem pouco
pronunciados, translúcidos, em forma de bastonetes, de vírgulas,
talvez de outros sinais de pontuação, os quais, sem lhe esconder
totalmente o mundo, obliteram-no de algum modo, deslocam-se
superpostos, enfim, dão vontade de esfregar os olhos a fim de re-
fruir, com sua evicção, de uma visão mais límpida.
Ora, às vezes, no mundo das representações exteriores, ocorre
um fenômeno análogo: o camarão, no seio das ondas que habita,
não salta de maneira diversa, e, como as manchas de que eu falava
há pouco eram o efeito de uma turvação da vista, esse pequeno ser
parece, a princípio, função da confusão marinha. Mostra-se, aliás,
com mais freqüência nos lugares em que, mesmo em tempos serenos,
essa confusão está sempre em seu limite: na cavidade das rochas,
onde, sem cessar, as ondulações líquidas se contradizem, em meio

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às quais o olho, num tão puro espessor, que mal se distingue da tinta
de escrever, a despeito de todos os seus esforços, jamais percebe
nada ao certo. Uma diafaneidade tão útil quanto seus saltos obsta,
enfim, à sua presença, mesmo imóvel sob os olhares, toda
continuidade.
Achamo-nos, aqui, exatamente no ponto em que é importante,
por causa dessa dificuldade e dessa dúvida, que não prevaleça na
mente uma ilusão vacilante, graças à qua1 esse ser, pela atenção
ludibriado e quase em seguida rendido à memória, não se
conservaria senão como um reflexo, ou a sombra evolada e boa
nadadora dos tipos de uma espécie representada de modo mais
tangível nos baixios rochosos pelo lavagante, pela lagosta, pelo
lagostim e por uma espécie de camarão-lagosta dos riachos frios.
Não, sem nenhuma dúvida, ele vive tanto quanto essas carroças
desajeitadas, e conhece, embora em uma condição menos terra-
a-terra, todas as dores e as angústias que a vida em toda a parte
pressupõe... Se a extrema complicação interior que os anima não
deve, às vezes, impedir-nos de honrar as formas mais
características de uma estilização à qua1 eles têm direito, para
tratá-los, quando necessário, em seguida, como ideogramas
indiferentes, não é preciso, contudo, que essa utilização nos poupe
das dores simpáticas que a constatação da vida provoca
irresistivelmente em nós: uma exata compreensão do mundo
animado, sem dúvida, tem seu preço.
O que poderia, além disso, aumentar mais ainda o interesse por
uma forma, a não ser a observação de sua reprodução e disseminação
pela natureza aos milhões de exemplares à mesma hora e em toda parte,
tanto nas águas frescas e copiosas do bom como do mau tempo? Que
um grande número de indivíduos padeçam dessa forma, sofram sua
danação particular, no mesmo número de locais, essa é a conseqüência
que nos reserva a provocação do desejo de percepção clara. Objetos
pudicosenquantoobjetos,parecendoquerersuscitaradúvidanãotanto
cada um deles sobre sua própria realidade quanto sobre a possibilidade
aseurespeitodeumacontemplaçãoumpoucolonga,deumapossessão
ideal um pouco satisfatória; poder pronto, centrado em sua cauda, a
cortar a conversa a cada palavra: é, sem dúvida, na cinemática, mais
que na arquitetura, por exemplo, que um tal motivo poderá, enfim,

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ser utilizado... A arte de viver, antes de tudo, deveria tirar proveito
disso: era preciso que aceitássemos esse desafio.

Trad. Adalberto Müller Jr. e Carlos Loria

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VEGETAÇÃO

A chuva não forma os únicos traços-de-união entre o solo e os


céus: há os de outra espécie, menos intermitentes e muito mais bem
tramados, dos quais o vento, por mais fortemente que o agite, não
carrega o tecido. Se consegue por vezes em determinada estação
desprender-lhe algumas raras coisas, as quais se empenha então por
reduzir em seu turbilhão, percebe-se afinal de contas que não dissipou
absolutamente nada.
Observando mais de perto, encontramo-nos então numa das mil
portas de um imenso laboratório, ouriçado de aparelhos hidráulicos
multiformes, todos muito mais complicados que as simples colunas
de chuva e dotados de uma original perfeição: todos ao mesmo tempo
retortas, filtros, sifões, alambiques.
São justamente esses aparelhos que a chuva encontra em primeiro
lugar, antes de atingir o solo. Eles a recebem numa quantidade de
pequenas tigelas, dispostas em massa em todos os níveis de uma
maior ou menor profundidade, e que se entornam uns nos outros
até os do grau inferior, por quem enfim a terra é diretamente
reumedecida.
Assim amortecem o aguaceiro a seu modo, e guardam por muito
tempo seu humor e benefício no solo após o desaparecimento do
meteoro. Só a eles compete fazer brilhar ao sol as formas da chuva
ou, dito de outra maneira, expor do ponto de vista da alegria as
razões tão religiosamente admitidas quanto foram pela tristeza
precipitadamente formuladas. Curiosa ocupação, enigmáticos
caracteres.
Crescem em estatura à medida que a chuva cai; mas com mais
regularidade, mais discrição; e, por uma espécie de força adquirida,

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mesmo quando ela já não cai. Finalmente, encontra-se ainda água
em certas ampolas que eles formam e que carregam com uma
ruborescente afetação, e que se chamam seus frutos.

Tal é, ao que parece, a função física daquela espécie de tapeçaria


em três dimensões à qua1 se deu o nome de vegetação por outros
caracteres que ela apresenta e especialmente pelo tipo de vida que a
anima... Mas eu quis acima de tudo insistir neste ponto: embora a
faculdade de realizarem sua própria síntese e de se produzirem sem
serem instados (até mesmo entre os paralelepípedos da Sorbonne)
aparente os aparelhos vegetativos com os animais, isto é, com todas
as espécies de vagamundos, em muitos lugares, contudo,
permanentemente eles formam um tecido, e esse tecido pertence ao
mundo como um de seus assentos.

Trad. Ignacio Antortio Neis e Michel Peterson

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O SEIXO

O seixo não é uma coisa fácil de definir bem.


Se nos contentarmos com uma simples descrição podemos dizer
inicialmente que é uma forma ou um estado da pedra entre o rochedo
e o calhau.
Mas essa afirmação já implica da pedra uma noção que deve ser
justificada. Que não me recriminem nesta matéria por remontar
mais longe ainda que ao dilúvio.

Todas as rochas são oriundas por cissiparidade de um mesmo


ancestral enorme. Desse corpo fabuloso só se pode dizer uma coisa,
saber que fora do limbo não ficou de pé.
A razão somente o atinge amorfo e disperso entre os saltos
pastosos da agonia. Ela desperta para o batismo de um herói da
grandeza do mundo, e descobre o amassadouro horrendo de um
leito de morte.
Que o leitor aqui não seja muito apressado, mas admire antes, ao
invés de expressões tão espessas e tão fúnebres, a grandeza e a glória
de uma verdade que conseguiu por menos que fosse torná-las para
si transparentes e não parecer totalmente obscurecida por elas.
Assim, num planeta já baço e frio, brilha agora o Sol. Nenhum
satélite de chamas ilude mais a seu respeito. Toda a glória e toda a
existência, tudo o que faz ver e tudo o que faz viver, a fonte de toda
aparência objetiva a ele se recolheu. Os heróis dele oriundos que
gravitavam à sua volta voluntariamente se eclipsaram. Mas para
que a verdade cuja glória abdicam em prol de sua própria fonte

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conserve um público e objetos, mortos ou prestes a morrer, nem
por isso deixam de continuar em torno dela sua ronda, seu serviço
de espectadores.
Compreende-se que semelhante sacrifício, a expulsão da vida
para fora de naturezas noutros tempos tão gloriosas e tão ardentes,
não se tenha dado sem dramáticos transtornos internos. Eis a origem
do caos cinzento da Terra, nossa humilde e magnífica morada.
Assim, após um período de torsões e de dobras semelhantes às
de urn corpo que se agita dormindo sob os cobertores, nosso herói,
dominado (por sua consciência) como por uma monstruosa camisa-
de-força, não conheceu mais senão explosões íntimas, cada vez mais
raras, de efeito rompante sobre um invólucro cada vez mais pesado
e frio.
Ele morto e ela caótica estão hoje confundidos.

Desse corpo, que de uma vez por todas perdeu com a


faculdade de se comover a de se refundir numa pessoa inteira,
a história desde a lenta catástrofe do resfriamento não será mais
senão a de uma perpétua desagregação. Mas é nesse momento
que sobrevêm outras coisas: morta a grandeza, a vida faz ver
prontamente que nada tem em comum com ela. Prontamente,
com mil recursos.
Tal é hoje a aparência do globo. O cadáver em pedaços do ser
da grandeza do mundo já não serve a não ser de cenário para a
vida de milhões de seres infinitamente menores e mais efêmeros
que ele. A multidão deles é em certos lugares tão densa que oculta
inteiramente a ossatura sagrada que lhes serviu outrora de único
suporte. E somente uma infinidade de cadáveres deles,
conseguindo desde então imitar a consistência da pedra, pelo que
se chama terra vegetal, permite-lhes há alguns dias reproduzir-
se sem nada dever à rocha.
Por outro lado, o elemento líquido, de origem talvez tão antiga
quanto aquele de que trato aqui, tendo-se reunido em áreas mais ou
menos extensas, recobre-o, esfrega-se nele, e por lances repetidos
ativa sua erosão.

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Descreverei então algumas das formas que a pedra atualmente
esparsa e humiliada pelo mundo mostra a nossos olhos.

Os fragmentos maiores, lajes mais ou menos invisíveis sob as


vegetações entrelaçadas que a elas se agarram tanto por religião
quanto por outros motivos, constituem a ossatura do globo.
São verdadeiros templos: não construções erguidas arbitrariamente
sobre o solo, mas os restos impassíveis do antigo herói que esteve
outrora verdadeiramente no mundo.
Incitado à imaginação de grandes coisas entre a sombra e o
perfume das florestas que recobrem por vezes tais blocos misteriosos,
o homem somente pelo espírito supõe lá embaixo sua continuidade.
Nos mesmos lugares, numerosos blocos menores chamam sua
atenção. Disseminados na sombra pelo tempo, irregulares bolas de
miolo de pedra, amassadas pelos dedos sujos desse deus.
Desde a explosão de seu enorme ancestral, e de sua trajetória nos
céus abatidos sem recurso, os rochedos emudeceram.
Invadidos e fraturados pela germinação, como um homem que já
não se barbeia, cavados e preenchidos pela terra móvel, nenhum
deles incapacitados para qualquer reação pia mais.
Seus rostos, seus corpos se gretam. Nas rugas da experiência a
ingenuidade se aproxima e se instala. As rosas se assentam em seus
joelhos cinzentos, e fazem contra eles sua ingênua diatribe. Eles as
admitem. Eles, cujas florestas outrora o granizo desastroso aclarou,
e cuja duração é eterna no estupor e na resignação.
Riem ao ver a seu redor suscitadas e condenadas tantas gerações
de flores, de uma carnação, aliás, de qualquer forma apenas mais
viva que a deles, e de um rosa tão pálido e tão fanado quanto o cinza
deles. Pensam (como estátuas sem se darem ao trabalho de dizê-lo)
que essas tonalidades são tomadas dos clarões dos céus ao Sol poente,
clarões esses pelos céus ensaiados todas as noites em memória de
um incêndio bem mais resplendente, quando daquele famoso
cataclisma por ocasião do qual, projetados violentamente para os
ares, conheceram uma hora de liberdade magnífica terminada com
aquela formidável aterragem. Não longe dali, o mar aos joelhos

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rochosos dos gigantes espectadores em suas orlas dos esforços
espumantes de suas mulheres abatidas incessantemente arranca
blocos que guarda, enlaça, balança, acarinha, repisa, malaxa, bajula
e pole em seus braços contra o corpo ou abandona num canto da
boca como uma drágea, depois expele da boca, e depõe numa orla
hospitaleira em suave declive no meio de um rebanho já numeroso
a seu alcance, visando a retomá-la logo mais para dela cuidar mais
afetuosamente, apaixonadamente ainda.
Entretanto o vento sopra. Faz voar a areia. E, se uma dessas
partículas, forma última e a mais ínfima do objeto que nos ocupa,
chega a introduzir-se realmente em nossos olhos, é assim que a
pedra, pela maneira de ofuscar que lhe é característica, pune e encerra
nossa contemplação.
A natureza fecha-nos assim os olhos quando é chegado o
momento de inquirir no interior da memória se as informações que
uma longa contemplação nela acumulou não a teriam já provido de
alguns princípios.

Ao espírito com falta de noções que se nutriu inicialmente com


tais aparências, a propósito da pedra a natureza aparecerá enfim,
sob uma prisma talvez demasiadamente simples, como um relógio
cujo princípio é feito de rodas que giram com velocidades muito
desiguais, embora sejam postas em ação por um único motor.
Os vegetais, os animais, os vapores e os líquidos, ao morrerem e
ao renascerem, giram de maneira mais ou menos rápida. A grande
roda da pedra parece-nos praticamente imóvel, e, mesmo
teoricamente, não podemos conceber senão uma parte da fase de
sua lentíssima desagregação.
De modo que, contrariamente à opinião geral que faz dela aos
olhos dos homens um símbolo da duração e da impassibilidade,
pode-se dizer que, de fato, como a pedra não se reforma na
natureza, ela é na verdade a única coisa que nela morre
constantemente.
De sorte que, quando a vida, pela boca dos seres que recebem
sucessivamente e por um período bastante curto seu depósito, faz

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crer que inveja a solidez indestrutível do cenário que habita, na
verdade ela assiste à desagregação contínua desse cenário. E é esta a
unidade de ação que lhe parece dramática: ela pensa confusamente
que seu suporte pode um dia lhe falhar, enquanto ela própria se
sente eternamente ressuscitável. Num cenário que renunciou a se
comover, e só pensa cair em ruínas, a vida se inquieta e se agita por
não saber senão ressuscitar.
É verdade que a própria pedra se mostra às vezes agitada. É em
seus últimos estados, enquanto seixos, saibro, areia, poeira, ela já
não é capaz de desempenhar seu papel de continente ou de suporte
das coisas animadas. Desamparada pelo bloco fundamental ela rola,
voa, reclama um lugar na superfície, e toda vida então recua para
longe das melancólicas áreas onde alternadamente a dispersa e a
reúne o frenesi do desespero.
Observarei finalmente, como um princípio importantíssimo, que
todas as formas da pedra, que representam todas algum estado de
sua evolução, existem simultaneamente no mundo. Aqui não há
gerações, não há raças desaparecidas. Os Templos, os Semideuses,
as Maravilhas, os Mamutes, os Heróis, os Ancestrais ladeiam cada
dia os netos. Cada homem pode tocar em carne e osso todos os
possíveis desse mundo em seu jardim. Não há concepção: tudo existe;
ou antes, como no paraíso, toda a concepção existe.

Se quero agora examinar mais atentamente um dos tipos


peculiares da pedra, a perfeição de sua forma, o fato de poder agarrá-
lo e revirá-lo em minha mão, fazem-me escolher o seixo.
De qualquer forma, o seixo é exatamente a pedra na época em
que começa para ela a idade da pessoa, do indivíduo, ou seja, da
palavra.
Comparado com o banco rochoso do qual deriva diretamente,
ele é a pedra já fragmentada e polida num número muito grande de
indivíduos quase semelhantes. Comparado com o menor grão de
saibro, pode-se dizer que pelo lugar onde é encontrado, uma vez
que o homem também não costuma fazer dele um uso prático, ele é
a pedra ainda selvagem, ou pelo menos não doméstica.

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Ainda alguns dias sem significação em qualquer ordem prática
do mundo, aproveitemos suas virtudes.

Trazido um belo dia por uma das inúmeras carroças da onda,


que desde então, ao que parece, já não descarregam a não ser para as
orelhas seu vão carregamento, cada seixo repousa no amontoado
das formas de seu antigo estado, e das formas de seu futuro.
Não longe dos lugares em que uma camada de terra vegetal recobre
aindaseusenormesancestrais,nosopédobancorochosoemqueseoperao
ato de amor de seus pais imediatos, ele tem assento no solo constituído
do grão dos mesmos, onde a onda cavouqueira o busca e o perde.
Mas aqueles lugares para os quais o mar geralmente o relega são
os mais impróprios para qualquer homologação. Suas populações
ali jazem conhecidas apenas pela área. Cada qua1se crê perdido ali
por ser sem número, e por ver apenas forças cegas que possam levá-
lo em consideração.
E com efeito, onde quer que tais rebanhos repousem, cobrem
praticamente todo o solo, e suas costas formam um canteiro
incômodo tanto para o pouso do pé quanto para o do espírito.
Não há pássaros. Filetes de erva saem de quando em quando de
entre eles. Lagartos os percorrem, os contornam sem cerimônia.
Gafanhotos aos saltos mais se medem entre si do que os medem.
Homens vez por outra atiram distraidamente para longe um deles.
Mas esses objetos do último pouco, perdidos sem ordem em meio
a uma solidão violada pelas ervas secas, sargaços, velhas rolhas e
todas as espécies de detritos das provisões humanas, imperturbáveis
entre os turbilhões mais fortes da atmosfera, assistem mudos ao
espetáculo daquelas forças que correm às cegas até perderem o fôlego
pela perseguição a tudo fora de toda razão.
Porém, presos nenhures, permanecem em seu lugar qualquer na
área. O vento mais forte para desenraizar uma árvore ou demolir
um edifício não consegue deslocar um seixo. Mas, como faz voar a
poeira em derredor, é assim que às vezes os furões do furacão
desenterram algum desses marcos do acaso em seus lugares quaisquer
há séculos sob a camada opaca e temporal da areia.

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*

Mas, pelo contrário, a água, que torna escorregadio e comunica


sua qualidade de fluido a tudo o que pode envolver completamente,
chega por vezes a seduzir essas formas e a arrastá-las. Pois o seixo
se lembra de que nasceu pelo esforço desse monstro informe sobre
o monstro igualmente informe da pedra. E, como sua pessoa ainda
não pode ser acabada senão em repetidas vezes pela aplicação do
líquido, ela lhe permanece para todo o sempre por definição dócil.
Baço no solo, como o dia é baço em relação à noite, no próprio
instante em que a onda o retoma propicia-lhe luzir. E, embora
ela não atue em profundidade, e mal penetre o finíssimo e
compactíssimo aglomerado, a tenuíssima embora ativíssima
aderência do líquido provoca em sua superfície uma sensível
modificação. Ela parece poli-la, e pensa assim ela própria as
feridas provocadas por seus precedentes amores. Então, por um
momento, o exterior do seixo se assemelha a seu interior: tem
em todo o corpo o olho da juventude.
Entretanto sua forma com perfeição suporta ambos os meios.
Mantém-se imperturbável na desordem dos mares. Sai deles apenas
menor, mas inteiro e, se quiserem, igualmente grande, pois suas
proporções absolutamente não dependem de seu volume.
Saído do líquido seca imediatamente. Quer dizer que, apesar dos
monstruosos esforços aos quais foi submetido, o vestígio líquido
não pode durar em sua superfície: ele o dissipa sem esforço algum.
Finalmente, dia a dia menor mas sempre seguro de sua forma,
cego, sólido e seco em sua profundidade, seu caráter é, portanto,
não se deixar confundir, mas sim reduzir pelas águas. Assim, quando
vencido ele é finalmente areia, a água já não penetra nele exatamente
como na poeira. Conservando então todos os vestígios, salvo
precisamente os do líquido, que se restringe a poder apagar os que
nele imprimem os outros, deixa através de si passar todo o mar, que
se perde em sua profundidade sem poder de modo algum fazer com
ele lama.

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E nada mais direi, pois essa idéia de um desaparecimento de
signos me leva a refletir sobre os defeitos de um estilo que insiste
por demais nas palavras.
Sumamente feliz apenas por ter sabido para esta estréia escolher
o seixo: pois um homem de espírito só poderá sorrir, mas sem dúvida
será tocado, quando meus críticos disserem: “Tendo empreendido
escrever uma descrição da pedra, ele se empedrou.”

Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson

171
NOTAS

As notas que seguem fornecem três tipos de informações: 1º -


entre colchetes, logo após o título, o ano de composição do poema;
2º quando a tradução aqui proposta já tiver sido publicada
anteriormente em jornal, revista ou livro, a referência; 3º outras
traduções do poema já publicadas, sendo então, se for o caso,
abreviados os nomes dos tradutores participantes da presente edição.

Introdução ao Partido das coisas, I e II [1928]. Primeira tradução.

Chuva [1935-1936]. Tradução publicada na Revista USP, São


Paulo, Universidade de São Paulo, mar./abr./maio 1989, p. 68. Outras
traduções: Cláudio Veiga. In: Antologia da poesia francesa. Rio de
Janeiro: Record, 1991, p. 375 e 377; A.M. Jr. e C.L. Dimensão,
Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 119.

O fim do outono [1936-1938]. Primeira tradução.

Pobres pescadores [1924]. Primeira tradução.

Rum das filifolhas [1925]. Tradução publicada em Poesia Viva,


Rio de Janeiro, Uapê, n. 8, nov. 1996 [p. 2].

As amoras [1934-1936]. Outra tradução: A.M. Jr. e C.L.


Dimensão, Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 121.

O engradado [1932-1934]. Tradução publicada em A Tarde,

173
Salvador, 14 set. 1996, Cademo A Tarde Cultural, p. 7; na Gazeta
do Povo, Curitiba, 2 fev. 1998, Caderno G, p. 8; e em Dimensão,
Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 123.

A vela [1930-1931]. Outras traduções: Cláudio Veiga. In:


Antologia da poesia francesa. Rio de Janeiro: Record, 1991, p. 381;
A.M. Jr. e C.L. Medusa, Curitiba, a. 1, n. 4, abr./maio 1999, p. 24.

O cigarro [1937-1939]. Tradução publicada in: Francis Ponge.


13 escritos. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1980, s. p. Outra
tradução: A.M. Jr. e C.L. Medusa, Curitiba, a. 1, n. 4, abr./maio
1999, p. 25.

A laranja [1935-1936]. Outras traduções: Manuel Gusmão. In:


Francis Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 29 e 31;
A.M. Jr. e C.L. Nanico, São Paulo, n. 14, out. 1996, p. 29;A.M. Jr.
e C.L. Dimensão, Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 125.

A ostra [1926-1929]. Outras traduções: Salete Catão Grisi, em


“Tensão pongiana: palavras e coisas”. In: Encontro Nacional da
ANPOLL. Porto Alegre: 1992, p. 343; Manuel Gusmão. In: Francis
Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 33; A.M. Jr. e
C.L. A Tarde, Salvador, 14 set. 1996, Caderno A Tarde Cultural, p.
7; A.M. Jr. e C.L. Gárgula, Brasília, n. 1, 1997, p. 58; A.M. Jr. e
C.L. Dimensão, Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 127; A.M. Jr. e C.L.
Gazeta do Povo, Curitiba, 2 fev. 1998, Caderno G, p. 8.

Os prazeres da porta [1933? ou 1936]. Tradução publicada em A


Tarde, Salvador, 14 set. 1996, Caderno A Tarde Cultural, p. 7; e em
Dimensão, Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 129.

As árvores se desfazem no interior de uma esfera de nevoeiro


[1931-1933]. Tradução publicada em Suplemento Literário, Belo
Horizonte, n. 46, abr. 1999, p. 11.

O pão [1927-1937]. Outras traduções: Manuel Gusmão. In:

174
Francis Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 35; A.M.
Jr. e C.L. A Tarde, Salvador, 27 mar. 1999, Cademo A Tarde Cultural,
p. 2.

O fogo [193...?]. Tradução publicada in: Francis Ponge. 13


escritos. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1980, s. p.; e na Revista
USP, São Paulo, Universidade de São Paulo, mar./abr./maio 1989,
p. 68. Outras traduções: Manuel Gusmão. In: Francis Ponge. Alguns
poemas. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 37; A.M. Jr. e C.L. Medusa,
Curitiba, a. 1, n. 4, abr./maio 1999, p. 24.

O ciclo das estações [1928?]. Tradução publicada em Dimensão,


Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 131. Outra tradução: Manuel Gusmão.
In: Francis Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia, 1996, p. 39.

O molusco [1928-1932]. Tradução publicada em Suplemento


Literário, Belo Horizonte, n. 46, abr. 1999, p. 11. Outra tradução:
Manuel Gusmão. In: Francis Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia,
1996, p. 41.

Caracóis [1936]. Outra tradução:A.M. Jr. e C.L. Gárgula, Brasília,


n. 1, 1997, p. 55-58.

A borboleta [1930-1939?]. Tradução publicada em Medusa,


Curitiba, a. 1, n. 4, abr./maio 1999, p. 22.

O musgo [1926-1928]. Primeira tradução.

Bordas do mar [1933-1934]. Tradução publicada em Dimensão,


Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 133 e 135.

Da água [1937-1939]. Outra tradução: A.M. Jr. e C.L. A Tarde,


Salvador, 27 mar. 1999, Caderno A Tarde Cultural, p. 3.

O pedaço de carne [1931-1932?]. Tradução publicada in: Francis


Ponge. 13 escritos. Ilha de Santa Catarina: Noa Noa, 1980, s. p.; e

175
na Revista USP, São Paulo, Universidade de São Paulo, mar./abr./
maio 1989, p. 70.

O gymnasta [1931-1932]. Tradução publicada em A Tarde,


Salvador, 14 set. 1996, Caderno A Tarde Cultural, p. 7; em Gárgula,
Brasília, n. 1, 1997, p. 58; e em Dimensão, Uberaba, a. 18, n. 27,
1998, p. 137.

A jovem mãe [1935]. Outra tradução: A.M. Jr. e C.L. Suplemento


Literário, Belo Horizonte, n. 46, abr. 1999, p. 11.

R. C. Seine Nº [1934-1936]. Tradução publicada em Zero Hora,


Porto Alegre, 7 dez. 1996, Caderno Cultura, p. 5. Revisada.

O restaurante Lemeunier na rua da Chaussée d’Antin [1931-1934].


Tradução publicada em Zero Hora, Porto Alegre, 7 dez. 1996,
Caderno Cultura, p. 6. Revisada.

Anotações para uma concha [1927 ou 1928]. Tradução publicada


em Dimensão, Uberaba, a. 18, n. 27, 1998, p. 139, 141 e 143. Outras
traduções: Leda Tenório da Motta. Notas para uma conchinha
(tradução parcial). Revista USP, São Paulo, Universidade de São
Paulo, mar./abr./maio 1989, p. 76; Manuel Gusmão. Notas para uma
concha. In: Francis Ponge. Alguns poemas. Lisboa: Cotovia, 1996,
p. 43, 45 e 47.

As três lojas [1933-1936]. Primeira tradução.

Fauna e flora [1936-1937]. Tradução publicada na Folha de S.


Paulo, 14 dez. 1997, Caderno mais!, p. 8. Revisada.

O camarão [1926-1928?]. Tradução publicada em Medusa,


Curitiba, a. 1, n. 4, abr./maio 1999, p. 27.

Vegetação [1932]. Outra tradução: A.M. Jr. e C.L. Suplemento


Literário, Belo Horizonte, n. 46, abr. 1999, p. 9.

176
O seixo [1927 ou 1928]. Outra tradução, publicada sob forma de
plaqueta: Francis Ponge. O seixo. Trad. Carlos Loria. Salvador:
Audience of One, 1994.

177
CRONOLOGIA

1899 - Francis Ponge nasce em Montpellier, no dia 27 de


março.
1900 - Após curta permanência em Nîmes, a família instala-se em
Avinhão.
1901 - Nasce Hélène, irmã de Francis.
1906 - Francis Ponge é iniciado precocemente na música, tendo
aulas de piano com uma amiga de sua mãe, Mme de Salinelle.
Aprende a tocar, entre outros, Schumann. Orgulhar-se-á mais
tarde dessa herança matema.
1909 - O pai transfere-se para Caen. Francis estuda no liceu Malherbe.
1916 - Ponge prepara-se para a École Normale Supérieure no Liceu
Louis-le-Grand, em Paris. Publica seu primeiro texto,
“Sonnet”, na revista Presqu’île.
1918 - Ponge estuda direito e filosofia na Sorbonne. Não obtém
aprovação na licenciatura em filosofia por não conseguir
falar no exame oral. Pela mesma razão, tampouco conseguirá
ser aprovado na École Normale Supérieure.
1922 - Publicação de “Esquisse d’une parabole” na revista Le mouton
blanc.
1923 - Publicação, na mesma revista, de “Fragments métatechniques”
e, na Nouvelle revue française, de ‘“Trois satires”. Ponge é
adrnitido no serviço da editora Gallimard.
1924 - Publicação de vários textos nas revistas Nouvelle revue
française e Commerce.
1926 - Publicação de Douze petits écrits pela editora Gallimard.
1929 - Ponge aproxima-se, mas por pouco tempo, dos surrealistas,
com os quais compartilha algumas convicções políticas.

179
Publica “Plus-que-raisons” na revista Le surréalisme au
service de la révolution.
1931 - É admitido em Messageries Hachette. Casa-se com Odette
Chabannel, de 20 anos.
1935 - Nasce Armande, filha única de Odette e Francis Ponge.
1936 - Ponge torna-se líder sindical dos funcionários da Hachette.
1937 - Filia-se ao Partido Comunista Francês e é demitido pela
1938 - Hachette.
Passa a trabalhar em companhias de seguros.
1940 - Durante a Segunda Guerra, é membro ativo da Resistência.
Trabalhando nos escritórios da C.O.A. (Funcionários e
Operários de Administração), é mobilizado perto de Rouen.
1942 - Publicação de Le parti pris des choses pela Gallimard. Ponge
assume um posto de chefia no diário Progrès de Lyon, onde
publica 53 artigos anônimos sob o título Hors Sac.
1944 - Ponge dirige a seção literária de Action, órgão comunista
de Louis Aragon, até 1946, quando se desentende com o
Partido Comunista Francês, do qual se afastará no ano
seguinte.
1948 - Durante uma viagem à Argélia, Ponge redige, entre outros
textos, “My creative method”. Publicação de Proêmes pela
Gallimard.
1950 - Ponge profere conferência em Florença. Durante as duas
décadas a seguir, outras conferências serão proferidas na
França, na Bélgica, na Alemanha, na Itália, na Iugoslávia,
no Canadá e nos Estados Unidos.
1952 - Ponge leciona na Aliança Francesa, em Paris, função que
exercerá até 1964, quando se aposentará. A editora suíça
Mermod publica La rage de l’expression, que representa uma
virada na prática poética do autor.
1954 - Publicação do Texte sur l’électricité, que fora encomendado
pela E.D.F. (Électricité de France).
1956 - A Nouvelle revue française edita um número especial em
homenagem a Francis Ponge.
1959 - Ponge recebe um prêmio de poesia em Capri (Itália) e a
comenda da Legião de Honra da França.

180
1960 - Publicação de “La figue” como texto de abertura do n. 1 da
revista Tel Quel.
1961 - Francis Ponge adquire a casa de campo “Le Mas des
Vergers”, na Provença. Publicação, pela Gallimard, dos
três volumes de Le grand recueil: t. 1, Lyres; t. 2, Méthodes;
t. 3, Pièces.
1965 - Publicação, pela Gallimard, de Pour un Malherbe e do Tome
premier (que compreende Douze petits écrits, Le parti pris
des choses, Prôemes, La rage de l’expression, Le peintre à
l’étude e La Seine).
1966 - Ponge é professor visitante na Universidade Colúmbia, em
Nova Iorque, até o início do ano seguinte.
1967 - Publicação, pela Gallimard, de Le savon e do Nouveau
recueil. A rádio France-Culture difunde, de 18 de abril a 12
de maio, os diálogos de Francis Ponge com Philippe Sollers.
1970 - Publicação, pela Gallimard/Seuil, de Entretiens de Francis
Ponge avec Philippe Sollers.
1971 - Publicação de La fabrique du pré pela editora Skira, de
Genebra.
1973 - Ponge recebe o Prêmio Internacional de 1972 de The Ingram
Merrill Foundation.
1974 - Ponge publica o libelo Mais pour qui donc se prennent ces
gens-là? após sua polêmica com Tel Quel. Recebe da
Universidade de Oklahoma o Prêmio Internacional de
Literatura Books Abroad Neustadt.
1975 - Realiza-se, em agosto, no Centro Cultural Internacional de
Cerisy, o colóquio Ponge inventeur et classique, com a
presença do poeta.
1977 - Publicação de L’atelier contemporain pela Gallimard, de
Comment une figue de paroles et pourquoi pela Flammarion
e de L’écrit Beaubourg pelo Centre Georges Pompidou.
1981 - Ponge recebe o Grande Prêmio Nacional de Poesia da França.
A revista Études françaises realiza a primeira edição de La
Table.
1983 - Publicação de Nioque de l’avant-printemps pela Gallimard
e de Petite suite vivaraise pela Fata Morgana.

181
1984 - Publicação, pela editora Hermann, de Pratiques d´écriture
ou l’inachèvemebnt perpétuel.
1986 - Publicação, pela Gallimard, da Correspondance entre Jean
Paulhan e Francis Ponge, em 2 volumes.
1988 - FrancisPongemorrenodia6deagostoemBar-sur-Loup.É
inumado no dia 10 no cemitério protestante de Nîmes. Em
setembro, o número 12 da revista Paris. Tête d’affiche
consagra-lhesuapáginadecapa,comumahomenagemde
Jacques Chirac, então prefeito de Paris. No dia 20 de setembro,
é inaugurada uma praça Francis-Ponge em Montpellier.
1989 - Emissão, em 2 de fevereiro, pelos Correios da França, na
série “Poetas franceses do século XX” (Paul Éluard, André
Breton, Louis Aragon, Jacques Prévert, René Char), de urn
selo com a efígie de Francis Ponge.
1992 - Publicação, pela Gallimard, dos três volumes do Nouveau
nouveau recueil.
1998 - Publicação, pela editora Stock, da Correspondance Ponge-
Tortel.
1999 - Publicação, pela Gallimard, do volume 1 de Œuvres
complètes, na coleção “Bibliothèque de la Pléiade”.

182
Obras de Francis Ponge traduzidas em português

13 escritos. Júlio Castañon Guimarães (trad.). Ilha de Santa Catarina: Noa Noa,
1980.
O caderno do pinhal. Leonor Nazaré (trad.). Lisboa: Hiena, 1986.
O seixo. Carlos Loria (trad.). Salvador: Audience of One, 1994.
Alguns poemas. Manuel Gusmão (trad.). Lisboa: Cotovia, 1996.
Métodos. Leda Tenório da Motta (trad.). Rio de Janeiro: Imago, 1997.

No prelo:
A mesa. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson (trad.). São Paulo: Hucitec.
Doze pequenos escritos. Ignacio Antonio Neis, Michel Peterson e Ricardo Iuri
Canko (trad.).

183
SOBRE O AUTOR
NESTA EDITORA

FRANCIS PONGE
O OBJETO EM JOGO

Leda Tenório da Motta


OUTROS TÍTULOS
DESTA COLEÇÃO

OS AMORES AMARELOS
Tristan Corbière
Tradução de Marcos Antônio Siscar

O BESTIÁRIO OU O CORTEJO DE ORFEU


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CANTO DO DESTINO
Friedrich Hölderlin
Tradução de Antonio Medina Rodrigues

CARIBE TRANSPLATINO
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Tradução de Josely Vianna Baptista

CREPÚSCULO
Stefan George
Seleção, ensaio e tradução Eduardo de Campos Valadares
CRISTAL
Paul Celan
Seleção e tradução de Claudia Cavalcanti

DE PROFUNDIS
Georg Trakl
Tradução de Claudia Cavalcanti

ILUMINURAS - Gravuras coloridas


Arthur Rimbaud
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça

LETRAS SOBRE O ESPELHO


Sor Juana Inés de la Cruz
Introdução, organização e notas de Teresa Cristófani Barreto

LITANIAS DA LUA
Jules Laforgue
Tradução e apresentação de Régis Bonvicino

O MATRIMÔNIO DO CÉU E DO INFERNO


E O LIVRO DE THEL
William Blake
Tradução de José Antônio Arantes

MÚSICA DE CÂMARA
James Joyce
Tradução, introdução e notas de Alípio Correia de Franca Neto
POEMAS
Sylvia Plath
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes e Maurício Arruda Mendonça

NAS INVISÍVEIS ASAS DA POESIA


John Keats
Tradução de Alberto Marsicano e John Milton

POESIA
Mario de Sá-Cameiro
Fernando Paixão (org.)

O NU PERDIDO
René Char
Tradução de Augusto Contador Borges

OBRA COMPLETA
Isidore Ducasse, Conde de Lautréamont
Tradução e apresentação de Claudio Willer

OBRA POÉTICA
Yves Bonnefoy
Tradução e apresentação de Mário Laranjeira

POESIA ARGENTINA - 1940-1960


Organização e tradução de Bella Jozef
POESIA EM TEMPO DE PROSA
T.S. Eliot & Charles Baudelaire
Tradução e notas de Lawrence Flores Pereira
Organização e ensaios de Kathrin H. Rosenfield

A PUPILA DO ZERO - En la masmédula


Oliverio Girondo
Tradução de Régis Bonvicino

SIJÔ - Poesiacanto coreana clássica


Organização e tradução de Yun Jung Im e Alberto Marsicano

TRILHA ESTREITA AO CONFIM


Matsuo Basho
Tradução de Kimi Takenaka e Alberto Marsicano

190
Este livro terminou
de ser impresso no dia
21 de fevereiro de 2000
nas oficinas do
Centro de Estudos Vida e
Consciência Editora Ltda.,
em São Paulo, São Paulo.

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