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A música como linguagem

• A rte e utopia — Teixeira Coelho


• A Cultura contra a Democracia? — A. M a tte /a rt/
K. D e/court/ M. M atte/art
• Música na Modernidade — Origens da música do
tem po — J. Jota Moraes

C ole ção T udo é H is tó ria


Holianda/ Marcos A. Gonçalves

C oleçã o P rim e iro s Passos


• 0 que é Indústria Cultural — Teixeira Coelho
• 0 que é Jazz — Roberto M u ggiati
• 0 que é Música — J. J o ta Moraes
• 0 que é Política Cultural — M artin César Feijó
• 0 que é Rock — Pauto Chacon
Ernest F. Schurmann

A música como linguagem


uma abordagem histórica

201012 34068
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1630459

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1989 CONSELHO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO
CIENTÍFICO £ TECNOLÓGICO
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quaisquer sem autorização prévia do editor.

ISBN: 85-11-13088-8
Primeira edição, 1989

Revisão: Maria C. Araújo e Rosemary C. Machado


Capa: Moema Cavalcanti
Ilustração de capa: Frontispício da ópera
“JulioCesar”, Museu Britânico, Londres

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IMPRESSO NO BRASIL
Sumário

Introdução .......................................................................... 9

Estado selvagem, barbárie e civilização ............................... 13


O estado selvagem...................................................... 14
A barbárie ................................................................. 20
A civilização............................................................... 30

A m onodia.......................................................................... 38
Princípios gerais......................................................... 39
Dominação cultural e conflitos entre a civilização e a
barbárie................................................................... 49
A monodia no sistema feudal ..................................... 55
O Canto Gregoriano .................................................. 58

A polifonia.......................................................................... 64
A heterofonia............................................................. 64
As organa da Escola de Notre-Dame .......................... 69
O m otete da ars antiqua.............................................. 77
A Escola de Borgonha................................................ 86
Princípios gerais......................................................... 96
O Renascimento italiano............................................ 105
O estilo Palestrina................................................ Ill

O sistema tonal ................................................................... 120


A homofonia e a polifonia tonal ................................. 121
Princípios gerais.......................................................... 123
Aplicação às práticas tonais......................................... 141
A linguagem da música tonal e os ‘ ‘atos de musicar’ ’ . 154
Linguagem e ideologia............................................ .. 163
A ideologia musical burguesa..................................... 170

Epílogo........................................ ...................................... 173


6 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

A vanguarda burguesa................................................ ..175


O culto do passado........................................................177
Cultura popular......................................................... ..179
A música de consumo ............................................... ..180

Conclusão.............................................. ............................. ..185


Introdução

Falar em linguagem musical implica necessariamente consi­


derar-se a música, ou pelo menos um conjunto de certas manifes­
tações musicais, como pertencente a um campo de fenômenos mais
amplo, chamado linguagem. Implica ainda uma distinção entre a
linguagem musical e eventuais outras linguagens não musicais.
Ora, como o termo linguagem normalmente sugere um sistema
vinculado às atividades de fala, parece lícito reservar, entre as lin­
guagens não musicais, um lugar de destaque a este sistema, que
viria constituir então o corpo do que designamos pelo termo lin­
guagem verbal.
Numa primeira aproximação, deparamo-nos com o fato de tra-
trar-se, tanto na linguagem musical como na verbal, de formas de
expressão essencialmente sonoras, distintas de outras baseadas,
por exemplo, na percepção visual. A partir desta distinção é que se
pode falar em linguagem gráfica, pictórica, cinematográfica, etc.,
em referência a meios de expressão não essencialmente sonoros.
No domínio geral da linguagem, portanto, se localizaria um campo
específico das linguagens sonoras, um âmbito no qual caberia dis­
tinguir entre a linguagem verbal e a musical.

LINGUAGENS SONORAS
LINGUAGEM
OUTRAS LINGUAGENS
N Ã O SONORAS

Sem pretender aqui aprofundar uma sistematização classifica­


dora desta natureza, é preciso observar, entretanto, que a inclusão
da música no conceito de linguagem se apresenta como um posi­
cionamento certamente sujeito a controvérsias. Muitos consi­
deram que uma das condições necessárias para a existência de uma
10 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

linguagem residiria na sua propriedade de ser discursiva e, atri­


buindo esta propriedade exclusivamente à linguagem verbal, con­
cluem necessariamente que fora desta não podem existir outras
linguagens.' Já outros ampliam a noção de linguagem, de forma
que esta venha a compreender praticamente tudo o que possa ser­
vir para a expressão de idéias e sentimentos.2 Enquanto os pri­
meiros se posicionam de forma exclusiva e fechada na sua vincu­
la,ção à linguagem verbal, os segundos apresentam uma noção tão
geral e vaga que muitas vezes se torna problemática a utilização
operacional do conceito linguagem a nível teórico.
Note-se, portanto, que uma abordagem coerente e eficaz do fe­
nômeno específico da linguagem musical carece ainda de funda­
mentação adequada. Como ponto de partida, acreditamos poder
nos basear em alguns dos princípios desenvolvidos nas teses de
Althaus e Henne' relativas à comunicação social. A comunicação
social aí é definida como todo e qualquer relacionamento que se
estabelece entre os membros de uma sociedade com intenções e
efeitos comunicativos, isto é, a totalidade das atuações mútuas do­
tadas de função sígnica ou simbólica. Neste domínio distinguem-se
dois campos: o da comunicação lingüística, onde se aplica o termo
linguagem, e o da comunicação não lingüística, que é denominada
comunicação acionai.

1. Assim, por exemplo, S. K. Langer: “ Embora nos refiramos muitas vezes


aos diferentes meios de representação não verbal como ‘linguagens ’ distintas, trata-
se realmente de uma terminologia frouxa. A linguagem, na sua acepção estrita, é
essencialmente discursiva; possui unidades permanentes de significado combináveis
em unidades maiores; possui equivalências fixas que possibilitam a definição e a
tradução; suas conotações são gerais, de modo que ela requer atos não verbais,
como apontar, olhar, ou inflexões enfáticas de voz, para consignar denotações espe­
cíficas a seus termos. Em todas essas características salientes, ela difere do simbo­
lismo sem palavras, que é não discursivo e intraduzível, não admite definições den­
tro de seu próprio sistema, e não pode transmitir diretamente generalidades. Os
significados fornecidos através da linguagem são sucessivamente entendidos e reu­
nidos em um todo pelo processo chamado discurso; os significados de todos os
outros elementos simbólicos que compõem um símbolo maior e articulado são en­
tendidos apenas através do significado do todo, através de suas relações dentro da
estrutura total. Seu próprio funcionamento como símbolos depende do fato de es­
tarem envolvidos em uma apresentação simultânea e integral. Essa espécie de se­
mântica pode chamar-se ‘simbolismo apresentativo’, para caracterizar sua distinção
essencial em face do simbolismo discursivo, ou ‘linguagem’ propriamente dita” .
(Philosophy in a New Key, Nova Iorque, Mentor House, 1941; Filosofia em Nova
Chave, São Paulo, Perspectiva, 1971, pg. 103.)
2. E. Buyssens, La Communication et VArticulation Linguistique, Bruxelas,
Presses Universitaires, 1967; Semiologia e Comunicação Linguistica, São Paulo,
Cultrix, 1972.
3. H . P. Althaus & H. Henne, “ Sozialkompetenz und Sozialperfomanz.
Thesen zur Sozialkommunikation ” , in: Dialektologie und Linguistik, ano 28,
abril, 1970.
INTRODUÇÃO 11

O seguinte exemplo poderá esclarecer esta distinção. Ao apro-


ximar-me de uma pessoa à qual quero bem, posso dizer-lhe: ‘ ‘amo-
te imensamente” . Uma tal verbalização de meus sentimentos,
como ato comunicativo, inscreve-se logicamente no campo da co­
municação lingüística. Por outro lado, porém, posso também ex­
pressar os mesmos sentimentos por atitudes não lingüísticas, por
ações comunicativas, por exemplo, por meio de um beijo. Neste
caso, tratar-se-á de uma manifestação própria ao campo da comu­
nicação acionai.
Pode parecer que, também nesta distinção, a comunicação lin­
güística se refere exclusivamente à linguagem verbal, estabele­
cendo-se uma espécie de dicotomia entre fala e ação. Na medida,
entretanto, em que passamos a levar em consideração certas mani­
festações musicais, abre-se uma outra perspectiva. Ao ouvir atenta­
mente, por exemplo, uma obra como o “ Siegfried Idyll” de Ri-
chard Wagner, notar-se-á que esta música, concebida por Wagner
como saudação para sua mulher Cosima, por ocasião do nascimento
de seu filho Siegfried, sem a interferência de qualquer verbalização,
constitui um imenso poema sobre uma ampla gama de sentimentos
que envolvem amor, gratidão, orgulho paternal e confiança num
futuro grandioso, muito mais do que poderia ser expresso por uma
simples ação como um beijo. É neste sentido que entendemos po­
der incluir não toda a música, mas certamente algumas manifes­
tações musicais bem determinadas, no campo da comunicação lin­
güística, onde viriam a figurar no âmbito de uma autêntica lin­
guagem musical.
É verdade que nos falta ainda uma conceituação teórica adequada
que permita estabelecer de maneira objetiva os critérios envolvidos
ao considerar-se certas manifestações musicais como pertencentes
â comunicação lingüística. Esta conceituação não se encontra nem
em Althaus e Henne, nem nas melhores obras sobre lingüística,
que tratam quase sempre especificamente da linguagem verbal,
deixando conseqüentemente pouco espaço para a possibilidade de
que eventuais outras manifestações comunicativas possam ter algo
em comum com a linguagem.
Partindo, porém, dos conceitos já desenvolvidos na lingüística
e procurando perceber os vínculos entre estes e certas propriedades
musicais definíveis com auxílio de uma análise adequada das suas
funções sociais, isto é, a nível da comunicação social, nos parece
possível a formulação de alguns princípios aplicáveis numa abor­
dagem lingüística de certos fenômenos musicais. Procuraremos
mostrar aqui que as manifestações normalmente englobadas sob o
termo música constituem um universo tão amplo e heterogêneo
que nele podemos encontrar, ao lado de certas espécies qualifi­
cáveis como lingüísticas, muitas outras que absolutamente não se
12 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

adaptam ao conceito de linguagem, ou por pertencerem à comuni­


cação acionai, ou mesmo por nada terem em comum com a comu­
nicação social.
Tais propósitos, sem dúvida, exigem um aprofundamento ade­
quado nos processos históricos envolvidos na origem e no desen­
volvimento das manifestações musicais a serem analisadas. E neste
sentido que procuramos aqui esboçar uma abordagem histórica,
não com o objetivo de formular uma nova “ história da música” ,
mas especificamente a fim de encaminhar o estudo de algunl fenô­
menos musicais de forma a contribuir para o esclarecimento das
razões de seu surgimento e das funções de seu uso a nivel de co­
municação social. Quanto à validade científica desta abordagem,
estamos conscientes de que as reflexões aqui desenvolvidas não
passam de um conjunto relativamente coerente de hipóteses, as
quais, entretanto, ainda carecem da objetividade própria à ciência.
De fato, nas nossas tentativas de interligar os diversos fenômenos
musicais com as informações disponíveis sobre as realidades sócio-
culturais que envolvem ou envolveram a sua existência, não nos
preocupamos de forma alguma em limitar a carga subjetiva da nos­
sa análise, determinada pelo condicionamento ideológico de que
inevitavelmente somos portadores. Entendemos que esta nossa
atitude se justifica na medida em que no presente trabalho não
pretendemos apresentar uma teoria completa e fechada, mas cogi­
tamos somente em abrir novas perspectivas de análise.
Estado selvagem, barbárie
e civilização

Partimos de dois pressupostos: 1) de que, desde que o homem


organizara a sua existência a nível social, fizera-se necessária al­
guma comunicação entre os membros da sociedade; e 2) de que
toda comunicação social decorrente desta necessidade possa ser
considerada como o produto de uma evolução das relações man­
tidas pelos seres vivos em geral com o mundo que os circunda.1
As diversas modalidades de comunicação e expressão desenvol­
vidas neste processo evolutivo da produção e do uso de sinais co­
municativos — comunicando-se o homem com o mundo, os ho­
mens entre si e, mais recentemente, os homens com os instru­
mentos e as máquinas por eles criadas —, designaremos pelo termo
modos de comunicação. Tudo indica que a elaboração do que hoje
qualificamos como linguagem , com seus modos de comunicação
específicos e altamente desenvolvidos, pressupõe a existência pré­
via de um longo período de gestação, durante o qual devem ter sido
praticados outros modos de comunicação mais simples.

1. Mesmo entre os vegetais, pode-se observar o fenômeno do tropismo, pelo


qual uma planta, ao direcionar seu crescimento de acordo com as condições de lu­
minosidade e ar, apresenta uma capacidade de dar respostas a estímulos externos,
isto é, de se relacionar com o seu meio. Esta capacidade adquire formas mais com­
plexas nos seres mais desenvolvidos, onde, por exemplo, nos animais superiores, os
reflexos condicionados também são respostas a estímulos externos, respostas estas,
entretanto, que já envolvem uma forma superior de inteligência e aprendizado.
Todos estes fenômenos são de caráter comunicativo, embora não se possa falar
ainda em comunicação social. E somente no ser humano que finalmente vem-se
verificar não apenas a real capacidade de atuar sobre o meio, mas ainda, em função
da importância que adquire a vida em sociedade, o emprego consciente e deliberado
de sinais comunicativos, produzidos com a finalidade específica de transmitir men­
sagens.
14 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

O estado selvagem

Segundo os trabalhos pioneiros de L. H. Morgan,2 a formação


da linguagem verbal remonta à fase inferior do estado selvagem,
isto é, a um período do plistoceno que antecede a era paleolítica.1
É provável, entretanto, que o modo de comunicação a que Morgan
se refere ainda não era o que acima qualificamos de comunicação
lingüística. De fato, neste período provavelmente não deve ter
existido ainda a necessidade de uma linguagem propriamente dita,
uma vez que as necessidades de comunicação entre os membros
daquelas hordas humanas ainda pouco diferiam das que existiam
entre muitos dos animais superiores. Supõe-se que usavam apenas
alguns sinais sonoros e gestuais, cujo emprego define o que aqui
denominamos o modo de comunicação plistocênico. Tais sinais,
entretanto, já devem ter servido para o homem se referir a fatos
particulares do mundo circundante. * Julgamos poder enquadrar
este modo de comunicação, pelo menos hipoteticamente, no do­
mínio da comunicação acionai.
A evolução de todos os outros modos de comunicação a partir
destes sinais, entretanto, não pode ser desvinculada das transfor­
mações pelas quais passou a atividade essencial da espécie humana,
que é o trabalho em função da obtenção dos bens necessários à sua
subsistência.s De fato, a evolução dos processos envolvidos no tra­

2. Anciení Society, or Researches in the lines of Human Progress from Sava-


gery to Civilization, Londres, MacMillan, 1877. As teses de Morgan têm sido reto­
madas por F. Engels, em “ Origem da Família, da Propriedade Privada e do Es­
tado” , ed. port. in: K. Marx & F. Engels, Obras Escolhidas, São Paulo, Alfa
Omega, vol. 3.
3. Acreditava Morgan que, nesta longa fase de infância da humanidade, os
homens ainda habitavam os bosques tropicais e semitropicais e viviam, pelo menos
parcialmente, nas árvores. Só assim se poderia explicar a sua sobrevivência em meio
às feras selvagensj Para alimentar-se, coletavam os alimentos disponíveis, como
frutos, nozes e raízes. (Cf. F. Engels, op. cit., pg. 21.)
4. Cf. V. Gordon Childe: “ As condições fisiológicas permitem ao homem
emitir uma grande variedade de sons articulados distintos. E um determinado som,
ou grupo de sons, uma palavra, pode associar-se com um fato particular ou um
grupo de fatos do mundo exterior” . (Man Makes Himself, Londres, Matts, 1965;
A Evolução Cultural do Homem , Rio, Zahar, 1966, pg. 43.)
5. Tomamos aqui o conceito trabalho sob a forma que este assumiu no Mate­
rialismo Histórico, a partir de Marx e Engels, segundo o qual se trata da atividade
necessária para que o homem convertesse as primitivas relações com o mundo cir­
cundante, que ainda visavam uma adaptação do ser vivo a esse mundo, em relações
novas e contrárias, passando o homem a adaptar o mundo a ele, operando uma deli­
berada e artificial transformação da realidade exterior. Neste sentido, segundo A.
Vieira Pinto, o trabalho não é outra coisa que “ a mediação pela qual o homem re­
solve a contradição fundamental da sua existência, em virtude de ser a espécie ani-
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 15

balho humano deve ter sido o principal fator pelo qual o homem
tivera que criar a linguagem." Isto significa que a linguagem só po­
deria ter sido estabelecida a partir do momento em que ela se tor­
nasse necessária no processo do trabalho. No caso da linguagem
verbal, esta necessidade deve ter surgido quando o homem, tendo
em vista o trabalho, passara a utilizar, produzir e aperfeiçoar uten­
sílios, ferramentas e outros instrumentos de trabalho, dando início
ao longo e complexo processo histórico que propriamente caracte­
riza a espécie humana.
Procuraremos esboçar aqui um sucinto quadro hipotético da
maneira como supomos ter tido origem a necessidade para o desen­
volvimento da linguagem verbal. Em relação a este quadro, obser­
ve-se primeiramente que a evolução histórica da sociedade humana
se dá na medida em que evoluem as forças produtivas, ou seja, os
instrumentos de trabalho e a experiência, as habilidades e os há­
bitos adquiridos no seu manuseio. A evolução das forças produ­
tivas, por sua vez, periodicamente vem exigir transformações nas
relações de produção, isto é, nas formas de relacionamento que se
estabelecem entre os membros da sociedade enquanto empenhados
na produção.
Ora, sabe-se que na fase média do estado selvagem o homem já
usava certos instrumentos de trabalho de madeira, de osso e de
pedra lascada, bem como o fogo que aprendera a manipular. E na­
tural que se tenha desenvolvido toda uma habilidade — uma es­
pécie de tecnologia — no uso de tais meios. Tratava-se, portanto,
de forças produtivas. E estas vieram exigir não apenas uma coope­
ração mais efetiva entre os membros da sociedade, mas também a

mal que se diferenciou pela aquisição da capacidade de construir um mundo para si.
Se esta capacidade constitui a essência do processo de hominização, o trabalho cons­
titui o modo em que é levada a cabo. A ocorrência, na natureza, de transfor­
mações não espontâneas mas induzidas pelo homem define o trabalho” . {Ciência e
Existência, Rio, Paz e Terra, 1969, pgs. 325 e segs.)
6. F. Engels procura mostrar, a partir de uma comparação com os animais,
como a explicação da origem da linguagem através do trabalho é a única acertada:
“ O pouco que os animais, inclusive os mais desenvolvidos, têm a comunicar uns
aos outros pode ser transmitido sem o concurso da palavra articulada. Nenhum
anima! em estado selvagem sente-se prejudicado por sua incapacidade de falar ou de
compreender a linguagem humana. Mas a situação muda por completo quando o
animal passa a ser domesticado pelo homem. O contato com o homem [que exige
dele uma participação no trabalho] desenvolveu no cão e no cavalo um ouvido tão
sensível à linguagem articulada que esses animais podem, dentro dos limites de suas
representações, chegar a compreender qualquer idioma. Quem conhece bem esses
animais dificilmente poderá escapar à convicção de que, em muitos casos, essa
incapacidade de falar passa a ser experimentada agora por eles como um defeito” ,
( “ Sobre o Papel do Trabalho na Transformação do Macaco cm Homem " , in K
Marx & F. Engels, op. cit., pg. 273-74.)
16 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

possibilidade de que essa tecnologia fosse constantemente transmi­


tida de uma geração para outra. Exigia-se, portanto, uma alteração
das relações de produção, alteração esta que implicava a necessi­
dade de um tipo específico de instrumento, que permitisse aos
membros da sociedade uma comunicação para a qual já não era su­
ficiente o antigo modo de comunicação plistocênico. Tudo nos leva
a supor que tenha sido em atendimento a esta necessidade que o
homem tivera que criar, entre os outros instrumentos de trabalho,
instrumentos de natureza diferente, sob a forma de sinais, cuja
função específica residiria na transmissão de mensagens. E já não
se tratava apenas dos primitivos sinais anteriormente suficientes
para se referir a determinados itens do mundo. A fim de atender
às novas necessidades precisava-se de sinais mais complexos resul­
tantes de uma combinação daqueles, de forma que esta combinação
pudesse corresponder a uma combinação análoga de suas referên­
cias. O desenvolvimento das forças produtivas e a conseqüente
transformação das relações de produção, portanto, levaram o ho­
mem a produzir os atos de fala. Ao antigo modo de comunicação
plistocênico viera acrescentar-se um novo, já sob a forma de lin­
guagem verbal.
O termo ato defala representa um conceito usado na lingüística
moderna’ para explicitar as condições necessárias para a realização
da comunicação lingüística verbal. Ora, tudo indica que os atos de
fala produzidos na fase média do estado selvagem já correspondiam
perfeitamente às condições aí estipuladas. Para exemplificar, to­
memos um ato de fala que supomos ser semelhante àqueles então
produzidos:
“ atenção — onça” .
Analisando este enunciado, pode-se concluir que por meio dele
de fato se realizam os seguintes atos distintos:8
1) Um ato locutório. Com as duas palavras — atenção e onça
— o locutor se refere respectivamente a um estado de alerta e a um
determinado animal selvagem. A combinação das duas palavras,
por sua vez, conduz a uma combinação análoga das respectivas
referências: o estado de alerta orientado para a presença do animal.

7. Por exemplo, por J. L. Austin (How to do Things tvith Words, Oxford,


1962) e J. R. Searle (Speech Acts. An Essay in the Philosophy of Language, Cam-
bridge, 1969).
8 . De acordo com a sistematização de J. L. Austin (op. cit.), citada em: Ducrot
e Todorov, Dictionnaire Encyclopédique des Sciences du Langage, Paris, Seuil,
1972; ed. port.: Dicionário das Ciências da Linguagem, Lisboa, Dom Quixote, 2?
ed., 1974, pgs. 401 e segs. Cf. também S. J. Schmidt, Texttheorie, München,
Wilhelm Fink, 1973; Lingüística e Teoria de Texto, São Paulo, Pioneira, 1978.
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 17

2) Um ato elocutório. O ato de fala é produzido visando-se


a uma atuação social que consiste, no caso do nosso exemplo, em
alertar os companheiros próximos. De acordo com as situações
subentendidas no seu enunciado, trata-se de um ato de alertar. É o
ato elocutório, portanto, que determina a relevância do ato de fala
a nível da comunicação social.
3) Um ato perlocutório. A produção do ato de fala, como atua­
ção social, certamente terá suas conseqüências. E possível que es­
tas conseqüências correspondam, pelo menos aproximadamente,
às expectativas do locutor. Também pode ocorrer, entretanto, que
se venha a dar uma considerável discrepância entre os resultados e a
intenção prevista. A maior ou menor correspondência, então, que
se verifica entre o ato perlocutório e o elocutório vem determinar a
assim chamada competência social do ato de fala. Foi exatamente
tendo em vista o seu rendimento a nível desta competência social,
que os atos comunicativos lingüísticos passaram a assumir a estru­
tura dos atos locutórios.
Esta breve análise nos permite agora esclarecer porque esses
atos de fala, como unidades básicas da comunicação lingüística,
tiveram sua origem somente na fase média do estado selvagem. É
que anteriormente, na fase inferior do estado selvagem, em si­
tuação semelhante, em lugar do enunciado “ atenção — onça”
ter-se-ia produzido provavelmente algum tipo de grunhido como
sinal de alerta. Uma tal manifestação, inserida ainda no modo de
comunicação plistocênico, embora pudesse ter objetivos e conse­
qüências semelhantes às que caracterizam o ato de fala, não apre­
senta nenhuma articulação que lhe pudesse conferir um nível de
determinação como aquele do ato locutório. E exatamente desta
carência que resulta a fragilidade da sua competência social. De
fato, nada garante que as conseqüências de um tal grunhido ve­
nham corresponder realmente aos objetivos presentes no momento
da sua produção. Tudo indica que, num estágio mais evoluído da
sociedade, na medida em que as forças produtivas tivessem atin­
gido um nível que permitisse uma atuação coletiva eficiente, seja
de defesa, seja de captura da onça, passava-se a exigir do ato de aler­
tar pelo menos uma relativa garantia de que dele viesse a resultar
de fato uma atenção coletiva do grupo social envolvido e que esta
atenção estivesse efetivamente orientada para a presença da onça.
Exigia-se, portanto, uma maior competência social, competência
esta que só podia ser alcançada mediante a estrutura do ato de fala a
nível de ato locutório.
Os atos de fala, como instrumentos de comunicação necessá­
rios para desempenhar seu papel no processo de trabalho, bem
como a experiência, a habilidade e os hábitos adquiridos no seu
18 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

manuseio, tiveram sua origem, portanto, como parte integrante


das forças produtivas. Esta pertinência, entretanto, não é imediata.
Não é diretamente que os atos de fala servem para a produção dos
bens necessários à subsistência. Entre a comunicação social e o
trabalho produtivo situam-se, como mediadoras, as relações de
produção.
O estreito vínculo existente entre os diversos modos de comu­
nicação e as forças produtivas é bem característico de todo este pe­
ríodo de infância da cultura humana. Somente muito mais tarde é
que a linguagem verbal, juntamente com outros modos de comu­
nicação, pôde ingressar em uma outra classe de manifestações cul­
turais, como, por exemplo, as obras literárias, as quais, acompa­
nhadas de muitas outras, hoje se enquadram no conceito de obras
de arte e cujas funções sociais ainda merecerão uma análise mais
aprofundada.9
Como já observamos, nas primitivas manifestações sonoras,
que, na fase inferior do estado selvagem, faziam parte do modo de
comunicação plistocênico, se tratava de meios pertencentes ao
campo da comunicação acionai e, portanto, não classificáveis como
atividades de fala. Ao mesmo tempo, porém, em que estas mani­
festações, quando usadas e articuladas com referência a determi-
, nados itens da realidade, deram origem à linguagem verbal, en-
tende-se que numerosas articulações sonoras outras devem ter
continuado a ser produzidas sem este uso especificamente lin­
güístico, vindo a constituir um campo de atuações e manifestações
classificáveis como musicais. O modo de comunicação plistocê-

9. Cabe observar que o conceito cultura, em se tratando da sociedade vigente


no estado selvagem, forçosamente se reveste de características pelas quais a sua
vinculação com as forças produtivas e as relações de produção ainda é de natureza
eminentemente imediata. Assim, A. Vieira Pinto considera a cultura como sendo
“ uma criação do homem, resultante da complexidade crescente das operações de
que este se mostra capaz no trato com a natureza material, e da luta a que se vê
obrigado para manter-se em vida. Os animais, mesmo os de complexidade orgânica
relativamente alta, não produzem a própria existência, mas apenas a conservam
com o uso dos instrumentos naturais de que seu corpo é dotado e que lhes permitem
um conhecimento da realidade suficiente para a procura e identificação do alimento,
o encontro de abrigo e a tomada de atitudes defensivas, que lhes asseguram, com
caráter constante, as condições de vida. No homem, esta situação se alterou; a
capacidade de resposta â realidade cresceu de intensidade e qualidade, porque, ao
longo do processo de sua formação como ser biológico, as transformações do orga­
nismo lhe foram permitindo, em virtude do desenvolvimento da ideação reflexiva,
inovar as operações que exerce sobre a natureza, e com isso praticar atos inéditos,
desconhecidos no passado da espécie. Tais atos vão-se acumulando na consciência
comunitária graças á hereditariedade social dos conhecimentos adquiridos, porque,
em virtude dos favoráveis resultados que propiciam, são recolhidos, conservados e
transmitidos de uma geração a outra” . (Op. cit., pgs. 121 e segs.)
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 19

nico, portanto, foi o tronco comum do qual, no campo sonoro, se


destacaram dois ramos distintos: a linguagem verbal e zmúsica.
Com o termo música, como aqui o usamos, designamos global­
mente todas as manifestações sonoras praticadas pelo homem com
os mais diversos fins, com exclusão apenas dos atos de fala.
É importante observar ainda que, dentro do âmbito da música
assim concebida, durante a fase superior do estado selvagem, mui­
tas articulações sonoras se desvincularam da sua original função
comunicativa, para integrar-se num Outro campo — também mu­
sical — onde passariam a funcionar como instrumentos de trabalho
mágicos, mais diretamente ainda inscritos, portanto, na categoria
das forças produtivas.
Trata-se de manifestações que hoje constituem um importante
objeto de estudo da etnomusicologia. Segundo as pesquisas de B.
Nettl, por exemplo, entre as funções da música primitiva desta­
cam-se sobretudo a religiosa e a mágica}0 A função mágica, sendo
mais antiga do que a religiosa, provavelmente dominava em grande
parte não apenas as manifestações musicais, mas também as repre­
sentações pictóricas rupestres que ainda se preservam da era paleo­
lítica. Tais representações, quase exclusivamente de animais, ca­
racterizam-se por um naturalismo surpreendente e, pelo que tudo
indica, serviam a uma prática de magia. Supõe-se que o homem
paleolítico acreditava que a produção da imagem de um animal
contribuísse diretamente para a aquisição de poder sobre o mes­
mo.11 Ora, se estiver correta esta hipótese, conclui-se que muitas

10. Music in Primitive Culture, Cambridge, Harvard University Press, 1956.


11. Cf. A . Hauser: “ Sabemos que esta arte é uma arte de caçadores primitivos,
que viviam num nível econômico parasitário, improdutivo, e que tinham que re­
colher ou capturar seu alimento em lugar de criá-lo por si mesmos; uma arte de
homens que, segundo todas as aparências, viviam dentro de moldes sociais instáveis,
quase inteiramente inorganizados, em pequenas hordas isoladas, numa fase de pri­
mitivo individualismo, e que provavelmente não acreditavam em nenhuma divin­
dade, em nenhum mundo ou vida além da morte.
Nesta fase de vida puramente prática é óbvio que tudo girasse ainda em torno da
sua aquisição do sustento. Nada pode justificar a presunção de que a arte servisse
para outro fim que não seja o de conseguir o alimento. Todos os indícios aludem a
que esta arte servia de meio para uma técnica mágica e, como tal, tinha uma função
inteiramente pragmática, dirigida totalmente a imediatos objetivos econômicos.
Mas esta magia, sem dúvida, não tinha nada em comum com o que hoje entendemos
por religião; não se tratava nem de rezar, nem de reverenciar seres sagrados; não
tinha relações com nenhuma espécie de crenças, nem com nenhuma entidade espi­
ritual transcendente. Faltavam-lhe, portanto, todas as condições que têm sido assi­
naladas como mínimas para uma autêntica religião. Era uma técnica sem mistérios,
uma mera prática, um simples emprego de meios e procedimentos, que nada ti­
nham a ver com misticismos ou esoterismos, semelhantes às nossas atitudes ao
montar uma ratoeira, adubar a terra ou tomar um remédio” . (The Social History
20 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

manifestações culturais paleolíticas não se inserem no conceito da


comunicação social, uma vez que eram praticadas não com o fim
de estabelecer relações comunicativas, mas com o objetivo de atuar
como instrumentos de trabalho julgados eficazes para a obtenção
dos bens necessários para a subsistência. E muito provável que a
música tenha sido tão naturalista quanto a pintura e que, com uma
determinada manifestação sonora, imitando, por exemplo, o re­
linchar de um cavalo selvagem, o homem julgasse apossar-se não
apenas do relinchar, mas também do próprio cavalo. Estas práticas
de magia representavam provavelmente, se não as únicas, pelo
menos as mais importantes manifestações musicais do estado sel­
vagem.

A barbárie

Vimos, nas considerações acima desenvolvidas sobre as prá­


ticas de magia, que para o homem do estado selvagem o ato de
representar um animal equivalia praticamente à sua posse. Em lu­
gar de representação desse animal, talvez seja mais adequado fa­
larmos em sua reprodução, no sentido de que a reprodução de um
objeto de certa forma pressupõe uma espécie de identidade com
o objeto que lhe servira de modelo. Para uma representação, no
verdadeiro sentido da palavra, seria necessária uma consciência
relativamente desenvolvida da distinção entre o objeto e sua ima­
gem. Ao que tudo indica, esta consciência ainda não existia no
estado selvagem, onde, por exemplo, a reprodução de um bisão
atingido por uma flecha se identificava praticamente com o ato sub­
seqüente de abater o bisão por meio de uma flechada. Para a aqui­
sição de uma tal consciência seria necessária a evolução cultural da
sociedade humana para outras e novas formas e, de acordo com os
princípios já expostos, isto só poderia ocorrer em conseqüência da
evolução das forças produtivas e de transformações substanciais
das relações de produção.
Ora, o início da barbárie, período que, segundo a sistemati­
zação de Morgan,12 sucede ao estado selvagem, nos apresenta o
panorama inteiramente novo da arte neolítica. Em toda a prática
pictórica e gráfica desaparecem quase por completo as preocu

of Art, Londres, Beutledge & Kegan Paul, 1951; Historia Social de Ia literatura y
el Arte, Madrid, Guadarrama, 1969, vol. 1, pgs. 19 e segs.)
12. L. H . Morgan, op. cit.
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 21

pações com uma fiel reprodução da realidade. Tudo leva a crer que
se tratava de manifestações que já não serviam para reproduzir o
objeto, mas para referir ao mesmo e, com isto, a arte acabava por
adquirir um caráter eminentemente simbólico.11
Para o observador de hoje, os processos simbólicos já estão de
tal maneira incorporados à arte e à própria vida que dificilmente se
percebe o seu real significado. A fim de esclarecer sobre a natureza
de tais processos, Langer propõe uma análise baseada na obser­
vação de dois desenhos os quais, mediante um simples delinea­
mento dos contornos, representam um coelho e um gato. O de­
senho do coelho se distingue daquele do gato exclusivamente pelas
dimensões das orelhas e do rabo. E Langer observa que, na reali­
dade, “ os gatos, porém, não se parecem com coelhos de rabo lon-

13. Cf. A.Hauser: “ Os desenhos rupestres do Neolítico interpretam a figura


humana por meio de duas ou três simples formas geométricas, por exemplo, me­
diante uma reta vertical para o tronco e dois semicírculos, voltados um para cima e
o outro para baixo, para os braços e as pernas. Os menires, nos quais se tem preten­
dido ver retratos abreviados dos mortos, mostram na sua plástica a mesma abs­
tração avançada. Sobre a lápide plana dessas tumbas, a cabeça, que mantém com a
natureza nem sequer a mínima semelhança da forma redonda, está separada do
tronco, isto é, da parte oblonga da própria pedra, só por uma linha; os olhos são
indicados por dois pontos; o nariz é unido à boca ou às sobrancelhas formando uma
só figura geométrica. O homem se identifica pelo acréscimo de armas, a mulher por
dois hemisférios que indicam os seios.
A mudança de estilo que conduz a estas formas de arte completamente abstratas
pressupõe uma revolução total da cultura, que representa talvez o corte mais pro­
fundo que se tem verificado na história da humanidade” . (Op. cit., pgs. 26 e segs.)
22 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

80 e orelhas curtas. Nenhum dos dois é plano e branco, com uma


textura de papel e um contorno preto à volta. Mas todas essas
características do gato são irrelevantes, porque se trata de um mero
símbolo e não de um pseudogato” . 1' O desenhista, através da re­
presentação gráfica, pretende produzir não um novo exemplar do
8ato e do coelho, mas uma espécie de símbolo gráfico capaz de ser­
vir-lhe no ato de referir ao gato e ao coelho.
São procedimentos desta natureza que começaram a ser ampla­
mente empregados na cultura bárbara, onde as práticas de repre­
sentação em abandonando o naturalismo próprio ao período ante­
rior passaram a desenvolver um sentido nitidamente simbólico. O
símbolo, porém, com seu potencial de referência, só tem razão de
ser quando se trata de atos comunicativos. As manifestações pró­
prias ao período paleolítico, que eram instrumentos mágicos com
°s quais se visava a apropriação dos elementos da natureza, dispen­
savam qualquer comunicação com outros seres. Na arte neolítica,
Porém, tudo indica tratar-se de uma resposta a necessidades novas,
necessidades de comunicação, onde, além das potencialidades ofe­
recidas pela linguagem verbal, se tornaram desejáveis outros meios
não verbais capazes de servir para a emissão de mensagens de outra
natureza. Os receptores aos quais se destinavam tais atos comu­
nicativos tanto podiam ser os próprios membros da sociedade — e
neste caso se tratava de comunicação social — , como seres sobre­
naturais, pois foi na barbárie que o homem começou a desenvolver
suas relações com espíritos e divindades, dando origem á arte reli-
Siosa ou mística.
Quais podem ter sido as evoluções das forças produtivas ca-
Pazes de dar origem a tais novas necessidades?
A resposta a esta pergunta nos é dada pelo fato de que a pas­
sagem do estado selvagem à barbárie — passagem esta à qual Gor-
don Childe aplica o termo revolução neolítica 15 — se caracteriza
Pelo acréscimo ao antigo trabalho de coleta, caça e pesca de um
novo que consistia na produção social dos itens essenciais à sobre­
vivência através de atividades como a domesticação e criação de
animais e o cultivo de vegetais ,16 E facilmente se percebe que a

14. S. K. Langer, Filosofia em Nova Chave, pg. 78.


15. V. GordonChilde, op. cit., pg. 77.
16. F. Engels relaciona os seguintes dados fornecidos pela pesquisa histórica e
antropológica:
1) No continente americano, entre os indígenas que se encontravam na fase
mferior da barbárie, existia, já na época do descobrimento, o cultivo do milho, da
at>óbora e de outras plantas, que constituíam parte essencial de sua alimentação. Já
os índios dos assim chamados pueblos no Novo México; os mexicanos, os centro-
arnericanos e os peruanos na mesma época haviam atingido a fase média da bar­
bárie; cultivavam, em plantações artificialmente irrigadas, o milho e outros vege-
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 23

introdução — certamente revolucionária — destas atividades,


como base de novas forças produtivas, forçosamente haveria de
exigir o desenvolvimento de numerosas outras espécies de tra­
balho.17 É evidente ainda que uma tal ampliação dos processos
de trabalho produtivo implicava não apenas um grande volume de
conhecimentos, hábitos e habilidades a serem adquiridos na prática
e transmitidos de uma geração a outra, mas também em transfor­
mações consideráveis das relações de produção. A nova tecnologia,
que se ia adquirindo, bem como a própria natureza do trabalho,
vieram exigir um novo nível de cooperação entre os membros da
sociedade envolvidos na produção.18
Tudo isto, entretanto, pressupõe o desenvolvimento e aperfei­
çoamento de estruturas sociais adequadas. Deve-se a L. H. Mor­
gan 19um estudo pioneiro da estrutura gentílica que, tendo tido
seus inícios ainda na fase superior do estado selvagem, se tornara
característica da sociedade bárbara.20 Segundo as conclusões de

tais comestíveis e tinham domesticado alguns animais, como o lhama, o peru e


outras aves.
2) No Oriente, a formação de rebanhos levara, nos lugares adequados, à vida
pastoril, como entre os semitas, nas pradarias da Mesopotâmia, e entre os arianos,
nos campos da índia. Supõe-se que o cultivo de cereais tenha tido sua origem aten­
dendo à necessidade de proporcionar forragem aos animais, adquirindo só poste­
riormente a sua importância na alimentação do homem.
3) Na Europa, encontramos, já na fase superior da barbárie, os gregos da época
heróica, as tribos itálicas de pouco antes da fundação de Roma, os germanos des­
critos por Tácito e os normandos do tempo dos vikings. Já se usava o arado de ferro
puxado por animais e, por conseqüência, a lavoura da terra em grande escala — a
agricultura. Cf. F. Engels, Origem da Família, Op. cit., pgs. 23 e segs.
17. Gordon Childe chama a atenção sobre o fato de que o preparo e armaze­
namento de cereais exigia a produção de recipientes adequados. Atendendo a essa
necessidade deve ter-se desenvolvido a cerâmica. Paralelamente evoluíra a manu­
fatura têxtil, que pressupunha a plantação de algodão e a criação de animais espe­
ciais para a produção de lã. O uso de metais — cobre e principalmente o ferro — na
produção de instrumentos destinados à lavoura viera exigir um considerável desen­
volvimento da siderurgia. Cf. V. Gordon Childe, op. cit., pgs. 97 e segs. e 120 e segs.
18. Foi observado, pesquisando os trabalhos de cerâmica em diversas aldeias
africanas próximas ainda da barbárie, que náo se tratava de trabaihos individuais e
isolados, mas de uma atividade eminentemente socializada, com uma constante
troca de experiências e comparações entre os produtos, resultando uma tecnologia
comum a todos os produtores. Supõe-se que, no período neolítico o trabalho se
tenha baseado em semelhantes relações de produção nitidamente cooperativas. Isto
viria explicar então a extraordinária uiiiíoimidade dos produtos, que trazem muito
mais a marca de uma longa tradição coletiva do que a da individualidade.
19. Op, cit.
20. Morgan mostra que os grupos de indivíduos consangiiíneos, designados por
nomes de animais nas tribos de índios norte-americanos, são essencialmente idên­
ticos às genea dos gregos e às gentes dos romanos e que essa gens se nos apresenta
como uma instituição comum a todos os povos bárbaros, até sua passagem à civili
zação. CfEngels, op. cit., pg. 69.
24 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Morgan, os membros de uma gens eram indivíduos livres, cada


um responsável pela defesa da liberdade de todos. Não existiam
ainda diferenças entre direitos e deveres: teria sido um absurdo
questionar-se se era um direito ou um dever a participação de todos
nos assuntos de interesse comunitário, da mesma forma como
hoje, para nós, dificilmente se questiona se comer, dormir e amar
são deveres ou direitos. Todos formavam no conjunto uma comu­
nidade fraternal unida pelo parentesco de sangue. É perfeitamente
admissível a hipótese de que uma grande parte dos valores éticos e
morais, que hoje se consideram importantes para a dignidade hu­
mana, como o amor ao próximo, a lealdade, a coragem, a hones­
tidade, a sinceridade etc., tenha tido sua origem na barbárie, uma
vez que, contrariamente ao que habitualmente se vê na nossa civi­
lização atual, a organização social estava inteiramente baseada em
tais valores, sem os quais nenhuma gens téria tido condições de
subsistir.21
E verdade que freqüentemente se encara a natureza democrá­
tica da vida social dos bárbaros sob o prisma de um idealismo ilu­
sório que dificilmente corresponde à realidade daquele tempo.22

21. Não é de admirar o entusiasmo de Marx e Engels ao tomar conhecimento


das pesquisas de Morgan: “ Admirável essa constituição da gens, com toda sua in­
gênua simplicidade! Sem soldados, policiais, nobreza, reis, governadores, prefeitos
ou juizes, sem cárceres ou processos, tudo caminha com regularidade. Todas as
querelas, todos os conflitos são dirimidos pela coletividade a que concernem, pela
gens ou pela tribo, ou ainda pelas gens entre si. São os próprios interessados que
resolvem as questões; e, na maioria dos casos, costumes seculares já tudo regulam.
Todos são iguais e livres, inclusive as mulheres. Que homens e que mulheres pro­
duziu semelhante sociedade é o que podemos ver na admiração de todos os brancos
que já lidaram com índios não degenerados, diante da dignidade pessoal, da retidão,
da energia de caráter e da intrepidez desses bárbaros” . (Ibid ., pg. 79.)
22. Engels mesmo já observava que nem sempre esta estrutura pode ser assim
idealizada: “ Os povos pastores, que iam ganhando terreno, haviam adquirido ri­
quezas que precisavam apenas de vigilância e dos cuidados mais primitivos para
reproduzir-se em proporções cada vez maiores e fornecer abundantíssima alimen­
tação de carne e leite. A quem, no entanto, pertenceria essa riqueza nova? Não há
dúvida de que, na sua origem, pertenceu á gens. Mas bem cedo deve ter-se desen­
volvido a propriedade privada dos rebanhos. Nos umbrais da história autenticada, já
encontramos em toda parte os rebanhos como propriedade particular dos chefes de
família, com o mesmo título que os produtos artísticos da barbárie, os utensílios de
metal, os objetos de luxo e, finalmente, o ‘gado humano’ que eram os escravos. O
escravo não havia tido valor algum para os bárbaros da fase inferior, onde a força de
trabalho do homem ainda não produzia um excedente apreciável sobre os gastos de
sua manutenção. Ao generalizar-se, porém, a criação do gado, a elaboração dos
metais, a arte do tecido e, por fim, a agricultura, as coisas ganharam outra fisio
nomia. Principalmente depois que os rebanhos passaram definitivamente, á proprie­
dade da família, deu-se com a força de trabalho o mesmo que havia suc edido com as
mulheres, antes tão fáceis de obter e que agora já tinham seu valor de troca c eram
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 25

Isto, entretanto, sem dúvida não invalida o inestimável valor cul­


tural com que se nos apresenta a estrutura gentílica.
É evidente que uma sociedade assim organizada necessitava de
cuidados muito especiais para preservar-se de interferências indi­
viduais que poderiam comprometer a coesão entre seus membros.
Era preciso zelar pelo espírito coletivo, embora uma incipiente di­
visão social do trabalho já favorecesse o individualismo. Ainda que
o homem da barbárie talvez não tivesse tomado consciência da ne­
cessidade de preservação da estrutura social atingida, não há dú­
vida de que desenvolvera toda uma concepção do mundo — uma
ideologia — que, se por um lado era reflexo da organização social e
econômica, por outro lado era uma garantia para a manutenção da
mesma.
Esta concepção do mundo, que contribuía substancialmente
para assegurar a estabilidade da estrutura gentílica, consistia no
assim chamado animismo. Contrariamente à concepção própria ao
estado selvagem, onde o homem se julgava capaz de atuar por
meios mágicos diretamente sobre a natureza, agora ele passava a
considerar que devesse dirigir sua atenção primariamente sobre os
espíritos que a governavam. Assim, as práticas de magia, próprias
ao estado selvagem, foram sendo substituídas por sortilégios e
conjurações, por meio dos quais o homem perseguia o objetivo de
seduzir os espíritos para que o auxiliassem dando soluções aos pro­
blemas surgidos no seu trabalho e contribuindo, dessa forma, para
o processo de progressiva conquista de domínio sobre a natureza.-'
Uma atitude mística semelhante se observava quando se tratava da
acumulação e transmissão dos conhecimentos, habilidades e há­
bitos, necessárias para dar continuidade ao desenvolvimento das
forças produtivas. A julgar pelos processos produtivos em uso en­
tre povos que hoje ainda vivem num nível cultural próximo à bar­
bárie, pode-se verificar que o modo de transmissão dessa tecnologia
normalmente implica a prática de verdadeiros rituais que rigida­
mente acompanham todas as operações envolvidas nos respectivos
ofícios.

compradas. A família n2o se multiplicava com tanta rapidez quanto o gado. Agora
eram necessárias mais pessoas para os cuidados com a criação; podia ser utilizado
para isso o prisioneiro de guerra que, além do mais, poderia multiplicar-se tal como
o gado ” . (Ibid., pg. 46.)
23. Segundo A. Ponce, ‘ ‘uma vez que na organização da comunidade primitiva
não existiam graus nem qualquer hierarquia, o homem supôs que a natureza tam­
bém estivesse organizada desse modo: por este motivo, a sua religião foi uma re­
ligião sem deuses. Os primitivos acreditavam ém forças difusas que impregnavam
tudo o que existia, da mesma maneira como as influências sociais impregnavam
todos os membros da tribo” . (Educación y Lucha de Clases, Buenos Aires, Hector
Matera, 1957; Educação e Luta de Classes, São Paulo, Fulgor, 1963, pg. 18.)
26 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

Em todos estes ritos era importante o papel desempenhado pe­


las práticas musicais, às quais se atribuíam grandes poderes, rele­
vantes sobretudo em se tratando tanto de convocar os espíritos,
como de assegurar as condições necessárias para a preservação das
estruturas sociais. A título de ilustração, transcrevemos aqui duas
lendas, uma da China e a outra do Egito, que fazem alusão aos
poderes atribuídos à música, bem como às preocupações com a
manutenção das estruturas.
1) ‘ ‘Nos primeiros tempos, Dshu-Siang-Shi dominava o mun­
do. Eram muitos os ventos que sopravam. As forças da luz se con­
centravam e todas as coisas derretiam. Os frutos e as sementes já
não chegavam a amadurecer. Então veio Shi-Da e construiu a har­
pa de cinco cordas, para conclamar as forças da escuridão, a fim de
consolidar a vida de todos os seres”
2) “ Nos tempos em que reinava o deus-sol Re, habitava em
Bigge, na região desértica oriental do Nilo, na Núbia Superior, a
sua filha Tefnut que, em forma de leoa, percorria a região. Seus
olhos lançavam chamas e era de fogo o hálito da sua boca. Seu co­
ração ardia de cólera. Aconteceu que o deus-sol sentia desejo de ter
junto a si esta sua filha, que nunca havia deixado o deserto e não
conhecia o Egito: a sua presença lhe seria útil para amedrontar os
seus inimigos. Re, então, encarregou a Shu, irmão da deusa, e a
Thot, que persuadissem Tefnut a vir ao Egito. Prontamente ambos
se transformaram em macacos e se dirigiram para a Núbia. Inicial­
mente o seu pedido encolerizou a deusa. Thot, entretanto, usando
de seus poderes de persuasão, consegue convencê-la. Ele promete
que no Egito lhe seriam construídos muitos templos. Todos os
animais do deserto lhe seriam imolados nos seus altares. A música
e a dança nunca cessariam diante dela. E quando finalmente Thot
lhe oferece gazelas e manda tocar música, a cólera de Tefnut se
abranda e ela se declara disposta a acompanhá-lo ao Egito. Na fron­
teira, a deusa é recebida pelos sacerdotes ao som de harpas, flautas,
sistros e tambores. Após banhar-se, no santuário de Abaton, Tef­
nut se transforma então em uma bela jovem. Com júbilo seu pai a
abraça. Seu espírito selvagem, entretanto, não se transforma junto
com sua aparência. É por isto que nunca se pode parar de cantar e
dançar diante de Tefnut, a fim de não se permitir que a sua antiga
ira torne a se levantar” .iS
Note-se que Shi-Da, desde que munido da harpa de cinco cor
das, estava em condições de conclamar as forças espirituais favo-

24. Segundo H. Pfrogner, Musik; Geschichte ihrer Deuíunf;, Emliuix Mtln


chen, Karl Alber, 1954, pg. 3.
25. Ibid. , pg. 8.
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 27

ráveis à vida, da mesma forma como certos rituais, em que parti­


cipavam o canto e a dança, eram capazes de abrandar a cólera da
deusa Tefnut. As práticas musicais, portanto, muitas vezes asso­
ciadas a outras manifestações, eram os ingredientes de determi­
nados tipos de rituais que se configuravam num modo de comuni­
cação específico, através do qual se estabelecia contato com seres
sobrenaturais, com o objetivo de conjurá-los para atuarem favora­
velmente à sociedade humana. Devem ter sido muitas as manifes­
tações musicais da barbárie vinculadas a tais rituais. Como seus
remanescentes, conhecemos aqueles ainda em uso, por exemplo,
no âmbito das religiões afro-brasileiras, onde o som de batucadas e
cantorias contribui com a dança para a invocação dos orixás.
Entendemos tratar-se, nesta música ritual, de práticas comu­
nicativas que só podem ser inseridas na categoria da comunicação
social na medida em que se admite a hipótese de que os seres espi­
rituais, aos quais elas são dirigidas, tenham sido considerados
membros efetivos da comunidade social. Entendemos também que
não se pode falar aí propriamente em linguagem musical, uma vez
que os elementos musicais envolvidos carecem inteiramente de
qualquer articulação à semelhança dos atos locutórios. Uma co­
municação lingüística envolvida em tais práticas só pode existir a
nível dos textos cantados ou declamados, isto é, sob a forma de
uma espécie de melodia cantada, prática esta que, como ve­
remos mais adiante, encontraria sua plena realização nas manifes­
tações do canto monódico.i(' Já na barbárie, entretanto, esta me­
lodia cantada viera a assumir um papel importante, principalmente
na prática de contar estórias. Era por meio de tais estórias que se
mantinham vivos os valores éticos indispensáveis para a estrutura
social gentílica. B. Nettl ~7 observa que, na grande maioria das
tribos primitivas ainda existentes, o contador intercala canções na
sua narrativa e os ouvintes passam a cantar junto com ele. Este há­
bito leva freqüentemente a um tipo de manifestação musical quali-
ficável como canto responsorial, por meio da qual se acaba por
garantir a participação ativa de todos os membros da comunidade.
Na fase superior da barbárie, entre os povos europeus de antes da
fundação das cidades, desenvolveram-se os cantos de poetas-mú-
sicos ambulantes — os bardos, escaldos e rapsodos — que, em suas
declamações musicais, louvavam a memória de deuses e heróis,
narrando façanhas notáveis e enaltecendo a bravura, a lealdade, o
espírito aventureiro e a coragem. Foi no âmbito de tais narrativas

26. O conceito de melodia e o uso do canto monódico serão objeto de uma


análise mais aprofundada no Capítulo destinado àMonodia(pg. 39 e segs.)
27. Ofi. cit.
28 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

que tiveram origem não apenas uma grande variedade de mitos e


lendas, mas também os grandes poemas épicos, como a Ilíada e a
Odisséia. Dando seqüência a essas práticas, designadas pela palavra
címbrica liais, cujo significado se situa mais ou menos entre os
nossos conceitos de voz e de canto, surgiria entre os gauleses o
laiodh, laidh ou laoi, que acabaria por ser adotado pelos anglo-
saxões como ley e, posteriormente, pelos trovadores medievais,
como lai.
Note-se que as funções sociais da música na barbárie foram
perdendo sua vinculação imediata com as forças produtivas, verifi­
cando-se uma progressiva aproximação a uma outra categoria de
relações sociais que freqüentemente já não faziam parte das re­
lações de produção. É evidente, neste sentido, que as manifestações
musicais envolvidas na narração de estórias, por exemplo, já não se
destinavam ao trabalho necessário para a obtenção dos meios de
subsistência. E, embora essa prática tenha tido uma relevante im­
portância para a preservação dos princípios gentílicos, é mais do
que provável que não tenha sido praticada intencionalmente com
este fim. Coisa semelhante ocorria com inúmeras outras atividades
coletivas, como, por exemplo, as de caráter lúdico, as quais em
muitos casos envolviam procedimentos musicais.-8 Também aí se
tratava de manifestações que evidentemente desempenhavam seu
papel na sociedade — de integração social, bem como de treina­
mento nas habilidades de observação e domínio do meio ambiente.
As razões de terem sido praticadas, entretanto, residiam, muito
provavelmente, na necessidade de atender às tendêncais lúdicas
que, a nível de instinto, também existem entre os animais, mas que
devem ter assumido outras formas e proporções na sociedade hu­
mana.
Note-se ainda que, na barbárie, a música quase nunca se apre­
sentava como uma atividade exclusivamente musical, mas apenas
como um dos ingredientes de modos de comunicação mais com­
plexos. Assim, na prática de contar estórias, ela comparecia como
uma maneira específica de veicular a linguagem verbal, enquanto
nas práticas lúdicas ela funcionava como um instrumento usado
com o fim de proporcionar vantagens no jogo. Este fato por si já

28. B. Nettl faz referência aos primitivos jogos de esconder ainda praticados rm
diversas aldeias indígenas norte-americanas. Formam-se dois grupos de jogadores:
enquanto um trata de esconder um pequeno objeto, o outro se empenha em en
contrá-lo. O jogo freqüentemente vem acompanhado de música, na medida em que
o primeiro grupo canta canções com o objetivo tanto de invocar uma ajuda sobre
natural para dificultar a tarefa dos adversários, como de camuflar as expressões
faciais dos jogadores, a fim de evitar que o esconderijo seja revelado por gestos, risos
ou outras atitudes involuntárias. ( Op. cit., pg. 7.)
ESTADO SELVAGEM, BARBARIE E CIVILIZAÇÃO 29

nos parece suficiente para descartar qualquer tentativa de análise


de tais manifestações musicais a nível de uma eventual linguagem
musical. No caso das narrativas, o que se qualifica como lingüís­
tico não é a música mas o texto verbal, enquanto no caso dos jogos
a música apenas participava de um determinado modo de comuni­
cação lúdico.
O fato de não encontrarmos, na barbárie, nenhuma manifes­
tação que possa ser identificada a nível de linguagem musical, en­
tretanto, não deve induzir-nos a aceitar certas concepções lamen­
tavelmente muito correntes, segundo as quais se trataria de uma
música apenas incipiente, caracterizada por uma espontaneidade
ainda ingênua. Muito pelo contrário, as pesquisas etnomusicoló-
gicas mais aprofundadas, em abordando, por exemplo, as práticas
musicais na cultura indígena brasileira, mostram que elas obe­
decem a uma organização surpreendentemente complexa, baseada
em tradições seculares, dando a entender que absolutamente não
seria possível explicá-las no âmbito teórico de uma suposta “ ima­
turidade cultural” . Assim, Rafael de Menezes Bastos mostra a es­
treita vinculação de todas as manifestações musicais dos Kamayurá
aos rituais."9 Esta música exige dos participantes uma preparação
altamente especializada, necessária para que possa exercer sua
função na comunicação social. Para fazermos uma idéia da impor­
tância que assume a música indígena nessa comunicação social,
basta lembrar que esta, ao contrário do que se observa na nossa
civilização, não é confiada quase integralmente à linguagem ver­
bal. 10Tudo indica que na cultura indígena se desenvolvera, muito
mais do que entre nós, uma consciência a respeito dos atos de ouvir
e de ver, no sentido de que, embora partam das mesmas concep­
ções primárias de percepção auditiva e visual, passaram a englobar,
respectivamente, os atos de entender e conhecer.31 Ora, esta con-

29. “ O toryp, ‘ritual’, para esses índios é algo de extremamente importante,


podendo-se dizer que, quando não estao em toryp, estão se preparando para fazê-
lo” . (R. J. Menezes Bastos, A Musicológica Kamayurd: Para uma Antropologia da
Comunicação no Alto-Xingu, Brasília, FUNAI, 1978, pg. 54.)
30. “ O Kamayurá parte do princípio de que falar só se deve o estritamente
necessário, tal admirável sabedoria nada tendo a ver com falta de amabilidade, ao
contrário, apontando para um respeito que os ouvidos alheios devem merecer.
Observe-se que, do muito falador, dizem os Kamayurá serem eles ayuruawite, ‘se­
melhantes a papagaios’, aos mesmos inclusive ajuizandó como causadores de uma
certa tyapyua 'y , ‘dor de ouvido’ ” . {Ibid., pg. 187.)
31. Acredita Menezes Bastos que ‘ ‘ tal valorização explicita uma modalidade de
reconhecer a importância dos canais sensoriais muito diferente da ocidental, apon­
tando ela tanto para a verdade da diferença objetiva do mundo Kamayurá com
relação àquele, ocidental, quanto para uso distintivo do aparelhamento sensorial ’ ’.
{Ibid., pg. 79.)
30 a m ú s ic a c o m o lin g u a g e m

ceituaí30 torna evidente que as práticas musicais nunca poderiam


reduzisse a meras manifestações espontâneas, mas teriam que se­
guir Çor um complexo caminho onde se viabilizasse o ato de comu-
nícar socialmente a compreensão de toda uma ideologia que se en-
cçntf3 na ^ase da estrutura gentílica.

A civilização

A Passagem da barbárie à civilização deve-se ao fato de que a


partir de determinado estágio da evolução, as forças produtivas
havia#1 atingido um P°nto em que a sociedade já não encontrava
seu necessário apoio na antiga estrutura gentílica. Vários fatores
novos tinham surgido, para cuja sucinta abordagem nos baseamos
aqui principalmente em Gordon Childe. ”
1) A evolução das forças produtivas durante o período da bar­
bárie v' favorecera de tal forma a dominação da natureza que a
crescei^ possibilidade ae sobrevivência do homem, através da sa­
tisfaça0 cada vez mais fácil de suas necessidades imediatamente vi­
tais, tivera como decorrência um considerável crescimento dos
ríúcleos sociais existentes. fcmbora uma gens, na medida em que se
tornava excessivo o numero de seus membros, normalmente se
cindia em vários núcleos, o crescimento acabava por assumir tais
propoTÇ&es que a tendência agora já era a substituição das aldeias
por ódaàes, o que imPhcãvã na transformação de uma vida ainda
tipicamente rural em uma vida urbana. Ora, é evidente, já em
termos demográficos, Que um dos pressupostos básicos da organi­
zação gentílica, que era a sua união fundamentada na consangüi­
nidade de seus membros, nao poderia ser mantida. É exatamente
devido â importância <3ue se atribui a essa formação de cidades que
se qual>(lca: de acordo com Gordon Childe, a passagem da bar­
bárie à civilização corV° revolução urbana. 11
2) O aumento da produtividade, como conseqüência evidente
da evolução das forças produtivas, veio a dar origem a um excedente
àe produção cada vez maior, excedente este que agora se tornava
necessário não apenas Para a acumulação de um estoque a ser con-
sufflido em períodos de escassez, mas principalmente para possibi-

32 . OP- c it-
33 “O homem aprendeu a usar a força do boi e dos ventos, inventou o arado o
carro àe fOdas e ° barco a vela, descobriu os processos químícos da fundição dos mi­
nérios e 35propnedades fisicas dos metais, e começou a desenvolver um calendário
solaraperfe'Çoa<fc” . {Ibid., pg- 11L)
34. ífiíd-’ P8S-142esegs-
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 31

litar que certos membros da comunidade se dedicassem com exclu­


sividade a atividades específicas, atendendo a interesses coletivos,
atividades estas que hoje qualificamos como obras públicas. " Isto
viera exigir novas formas de divisão social do trabalho, as quais
dificilmente poderiam ser desenvolvidas no âmbito da estrutura
social gentílica.
3) JE evidente que a evolução das forças produtivas implicava
também o desenvolvimento da indústria artesanal. Esta indústria,
entretanto, viera exigir alguma forma de sistema regular de abas­
tecimento das matérias-primas. Teriam que organizar-se, por­
tanto, as atividades envolvidas no comércio e no transporte.3'’ E,
como bem observa Gordon Childe, “ dentro em pouco havia neces­
sidade de soldados para proteger os comboios e apoiar os merca­
dores pela força, escribas para manter registros de transações que
se tornavam cada vez mais complexas, e funcionários para con­
ciliar interesses em choque” .r Ora, é evidente que tais necessi­
dades já não podiam ser atendidas sem que se criassem dispositivos
inteiramente nçvos e incompatíveis com a organização da antiga
gens.,fí •■


>0 ■ : .
4) A crescente divisão social do trabalho, que resultava de uma
diversificação cada vez maior das atividades, viera implicar não so­
mente um complexo conjunto de camadas sociais, ocupadas em
trabalhos específicos e diversificados, caracterizados por interesses
também específicos e muitas vezes contraditórios, mas sobretudo

35. Na região do Nilo, “ os pântanos tinham de ser drenados, a violência das


águas da cheia tinha de ser controlada, as florestas tinham de ser abertas e os ani­
mais ferozes que nelas viviam tinham de ser exterminados. A terra sobre a qual as
grandes cidades da Babilônia surgiriam tinha, literalmente, de ser criada. A tena­
cidade com a qual a lembrança dessa !uta persistiu na tradição é indício do esforço
que ela exigiu dos antigos sumerianos. E, á medida que as obras produtivas da co­
munidade se tornavam mais ambiciosas, também aumentava a necessidade de um
estoque acumulado de excedente de alimentos. Essa acumulação era condição preli­
minar para o crescimento da aldeia até transformar-se em cidade, conquistando
novos territórios â sua volta, que antes eram pântanos e desertos” . (Ibid., pgs. 112
e segs.)
36. “ E o comércio não se limitava às matérias-primas. As cidades da Suméria
mantinham relações comerciais com outras, no Nilo e Indo. As mercadorias manu­
faturadas peías indústrias especializadas de um centro urbano eram vendidas nos
bazares de outro” . {Ibid., pg. 150.)
37. Ibid., pgs. 143-44.
38. “ Nos pontos terminais e nas estações intermediárias, as caravanas e os
barcos mercantes deviam fazer paradas prolongadas. Representantes do país expor­
tador, provavelmente colonizadores, deviam receber a mercadoria em seu destino e
agenciar uma carga para ser transportada na voita, assistindo, nesse meio tempo, os
viajantes. Tal como há colônias permanentes de comerciantes britânicos no Porto,
Istambul e Xangai, assim podemos imaginar colônias de comerciantes indianos em
Ur e Kish ’ ’. {Ibid., pgs. 150-51.)
32 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

a acumulação de riqueza e poder nas mãos de certas camadas em


detrimento de outras. Surgiram as assim chamadas classes sociais,
inteiramente estranhas â estrutura da gens.39
Assim chegara o momento em que a estrutura gentílica da so­
ciedade, onde os membros de uma comunidade, todos como ho­
mens livres e participantes de um todo homogêneo, se reuniam em
assembléias verdadeiramente demoçráticas para discutir, resolver e
encaminhar os seus assuntos comunitários, já não podia enfrentar
os conflitos gerados em conseqüência do surgimento de tais fatos
novos. Tornara-se necessária uma nova organização social capaz
de consolidar novas relações de produção baseadas na divisão da
sociedade em classes antagônicas, onde os conflitos só poderiam
ser controlados por um poder soberano, considerado como situado
acima das classes sociais. Este poder, essencial para a organização da
sociedade na civilização, seria o Estado.
É evidente que a transformação das aldeias bárbaras em cidades
civilizadas representa um longo processo histórico de transição.
Muitas das características da civilização já se encontravam, às ve­
zes em estado embrionário, no fim da barbárie, assim como outras
próprias á barbárie ainda sobreviveriam por um considerável es­
paço de tempo na civilização. Entre a maioria dos povos que che­
garam a atingir a fase superior da barbárie, já se havia desenvolvido
uma espécie de aristocracia, como incipiente classe detentora de
riqueza e poder. Muitos desses povos também se submetiam a um
rei, rico e poderoso, cujas funções já não se limitavam exclusiva­
mente aos assuntos de interesse puramente comunitário.
Assim, também no que diz respeito à música, a prática tan­
to dos escaldos nórdicos como dos bardos celtas e dos rapsodos
gregos a que já nos referimos, freqüentemente já se qualificava

39. “ Com a expansão do comércio, o dinheiro, a usura, a propriedade terri­


torial e a hipoteca progrediram rapidamente; a centralização e a concentração das
riquezas surgiram nas mãos de uma classe pouco numerosa, o que se Ir/. acom­
panhar do empobrecimento das massas e do aumento numérico dos pobres,’ ’ (En-
gels, A Origem da Fpmilia, pg. 133.)
40. “ A riqueza passa a ser valorizada e respeitada como bem supremo e as
antigas instituições da gens são pervertidas para justificar-se a aquisiçflo de ri­
quezas. Faltava apenas uma coisa: uma instituição que não só assegurasse as novas
riquezas individuais contra as tradições da constituição gentílica, que nlo só consa­
grasse a propriedade privada, antes tão pouco estimada, e fizesse dessa consagração
santificadora o objetivo mais elevado da comunidade humana, mas também impri
misse o selo geral do reconhecimento da sociedade às novas formas de aquisiçBo da
propriedade, que se desenvolviam umas sobre as outras — a acumulaçgo, portanto,
cada vez mais acelerada, das riquezas; uma instituição que, em um* palavra, nSu só
perpetuasse a nascente divisão da sociedade em classes, mas também o direito dr a
classe possuidora explorar a não possuidora e o domínio da primtira sobre a se
gunda. E essa instituição nasceu. Inventou-se o Estado” . (Ibid ., pg». 87 8 )
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 33

como uma manifestação que se destinava menos às comunidades


gentílicas do que a uma nobreza que nelas se havia instalado. Este
fenômeno deve ter-se verificado na maioria das culturas antigas,
como no Egito e na China, e a etnomusicologia pôde detectá-lo em
diversos reinos africanos que na época da pesquisa ainda se encon­
travam na barbárie.1' E provável que assim se tenha originado
uma nova função da música, ou seja, a de entretenimento de uma
classe favorecida em termos de riqueza e poder. O caráter nitida­
mente classista que já se observa nesses fenômenos, entretanto,
não poderia encontrar sua plena realização, a não ser após o esta­
belecimento de novas formações sociais próprias à civilização.
F. Engels mostra como ‘ ‘em nenhuma parte melhor do que na
antiga Atenas podemos observar como o Estado se desenvolveu
com a transformação e substituição gradual dos órgãos da consti­
tuição gentílica pela introdução de novos órgãos, até completa­
mente instauradas autoridades com poderes realmente governa­
mentais — quando uma ‘força pública’ armada, a serviço dessas
autoridades, usurpou o lugar do verdadeiro ‘povo em armas’, que
havia organizado a sua autodefesa na gens” .
A estas transformações obviamente haveria de corresponder
uma alteração substancial de todas as manifestações que hoje qua­
lificamos como artísticas. Segundo Hauser, “ com o estilo arcaico,
que é produto de um comércio florescente, de cidades enriquecidas
e colonizações fortunosas, tem início um novo período de arqui­
tetura representativa e de plástica monumental. Trata-se de uma
arte própria a uma sociedade cuja classe dirigente se elevara do
nível rural ao dos magnatas urbanos, própria a uma aristocracia

41. Cf. B. Nettl: “ A música como entretenimento ocorre somente nas regiões
onde tanto a cultura como o estilo musical adquiriram uma relativa complexidade.
Uma dessas regiões é a África Negra, onde certos potentados reais, como os sobe­
ranos de Ashanti e Dahomey, empregam músicos profissionais que atuam exclusi­
vamente para o regozijo do rei” . (Op. cit., pg. 9 .)
42. ‘ ‘Na época neróica, as quatro tribos atenienses ainda estavam instaladas em
diferentes territórios da Ática. A constituição baseava-se na assembléia do povo, no
conselho e no basiléu. Até -"'-de alcança a história escrita, encontramos a terra já
repartida e como propriedade pr vada, o que corresponde à produção e ao comércio
de mercadorias relativamente desenvolvido da fase superior da barbárie. Como con­
seqüência da compra e venda da terra e da crescente divisão do trabalho entre a
agricultura e os ofícios manuais, o comércio e a navegação, nos territórios dessas
tribos passaram a fixar residência habitantes que, embora fossem do mesmo povo,
não faziam parte daquelas corporações e, por conseguinte, eram estranhos a elas e
ao local. Isso desequilibrou de tal modo a organização gentílica que se tornou neces­
sário modificá-la e adotou-se a constituição atribuída a Teseu. A principal mudança
foi a instituição de uma administração central em Atenas. A segunda instituição de
Teseu foi a divisão de todo o povo em três classes: os eupdtridas, ou nobres, os
geâmoros, ou agricultores, e os demiurgos, ou artesãos, garantindo-se para os no­
bres a exclusividade do exercício das funções públicas ’ ’. (Ibid., pgs. 88-9 .)
34 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

que começara a gastar suas rendas na cidade e se ocupava da in­


dústria e do comércio. Esta arte já não conservava nada da estrei­
teza e do caráter estacionário do camponês; era uma arte urbana,
tanto por seus temas monumentais como por seu antitradiciona-
lismo e sua dependência de influências externas” . *3 Verificara-se
aí a superação definitiva do estilo geométrico que havia caracteri­
zado o período da barbárie.
Quanto à música, da mesma forma como na barbárie uma de
suas principais funções dissesse respeito à manutenção do sistema
da sociedade gentílica, agora se lhe exigiria uma função vinculada à
natureza do Estado, ou seja, uma função específica, que contri­
buísse para a formação e consolidação da estrutura de classes. Esta
estrutura, porém, necessariamente pressupunha a instituição de
um sistema de dominação. Não se pode perder de vista o fato de
que os membros de uma classe minoritária detinham não apenas a
riqueza, mas também o poder para dominar os membros das outras
classes — majoritárias — , incumbindo-os das tarefas indispen­
sáveis para a produção, isto é, do trabalho produtivo necessário
para criar a própria riqueza. E evidente tratar-se de um sistema que
se assenta num tipo inteiramente novo de relações de produção,
cuja consolidação, entretanto, já não correspondia aos interesses
de toda a comunidade. A garantia aos privilégios da classe domi­
nante forçosamente teria que entrar em choque com os interesses
das classes dominadas e exploradas. E esta garantia, sob a forma de
segurança civil, só o Estado poderia proporcionar.
O Estado, portanto, a fim de consolidar de forma duradoura o
sistema de dominação de classe, acabaria por criar os meios de
coerção capazes de impedir que as classes dominadas, revoltadas
com a exploração que lhes era imposta, viessem tomar consciência
de sua situação e de suas possibilidades políticas e organizar-se para
subverter a ordem estabelecida. Foi através desses meios de coerção
que caberia ao Estado, pelo poder emanado da sua soberania, impor
o respeito à sua autoridade em relação às normas instituídas. Entre
tais meios destacava-se tanto a repressão, de ordem militar e po­
licial, como a persuasão, de ordem ideológica, sendo que, nas pri­
meiras formações sociais da civilização, principalmente no âmbito
desta última caberia um papel relevante à cultura em geral e à arte
e à música em particular. Foi assim que, instituída ora como essen­
cial, ora como complementar, se passaria a exercer a dominação
cultural. “

43. Op.cit., pg. 100.


44. No âmbito das artes plásticas, M . Pedrosa mostra como “ a imanem, ao
longo dos séculos, está destinada a difundir os símbolos do podtr e a ‘persuadir’ o
povo a aceitar a autoridade estabelecida. Desde a época egípcia «Ir1 fins cia Idade
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 35

A nível da persuasão, a dominação cultural consistia na divul­


gação e imposição de uma concepção do mundo, ou interpretação
da realidade — de uma ideologia, portanto — que, uma vez aceita
por todos, mesmo pelas classes dominadas, teria a capacidade de
esvaziar quaisquer idéias contrárias que pudessem favorecer uma
alteração fundamental do sistema vigente.,s Mas, embora tenha
sido sobretudo neste sentido, no âmbito exclusivo da persuasão,
que se praticava — e ainda se pratica — a dominação cultural, não
há dúvida de que, principalmente nas primeiras formações sociais
civilizadas, ela em muitos casos se aproximava consideravelmente
da coerção repressiva.16
Assim se explica o fato de que, desde o início da civilização
européia, a partir das Cidades-Estados da Antigüidade Grega, a
cultura oficial do Estado era rigidamente regulamentada e imposta
a todos os cidadãos, ficando toda tendência inovadora, para pro­
cessos que hoje chamaríamos de liberdade de criação ou criativi­
dade, sujeita a uma severa marginalização. '■E. Brunning, por

Média, as figuras aparecem representadas em tamanhos diferentes, numa escala


hierárquica, que é uma forma simbólica de representar a autoridade e de transmitir
ao povo a idéia do poder. Vejam-se os retratos dos faraós, dos funcionários da Su-
méria ou dos reis de Assur, ou da imagem de Deus no Código de Hamurábi, que é
ainda maior que a do rei: o maior tamanho expressa o maior poder” . (“ Arte Culta
e Arte Popular” , in: Arte em 'Revista, n? 3, São Paulo, 1980.)
Também na prática da narração de estórias observa-se que, paralelamente á
epopéia herdada da barbárie, se desenvolvia uma lírica que deve ter sido mais eficaz
para atender aos interesses do Estado. Segundo A . Hauser, tratava-se de “ poetas
gnômicos, como Sólon, elegíacos, como Tirteu e Teógnis, líricos corais, como
Simónides e Píndaro, que se dirigiam, desde o início, à nobreza, já não com diver­
tidas estórias de aventuras, mas com severos ensinamentos morais, conselhos e
advertências.-Sua poesia era, ao mesmo tempo, expressão de sentimentos pessoais,
propaganda política e filosofia moral. Os poetas eram os educadores e os guias espi­
rituais, e ji não mais os simples homens que divertiam seus concidadãos e outros
membros da sua classe: sua missão residia em manter acesa na nobreza a consci­
ência dos perigos e tornar a evocar na sua memória as recordações da sua gran­
deza” . ( Op. cit., pgs. 102-3.)
45. Para uma discussão mais aprofundada do conceito de ideologia, cf. M.
Chauí, O que é Ideologia, Brasiliense, 1980.
46. M . Pedrosa cita as estátuas da cultura oficial do Império Romano, como a
de Augusto e a eqüestre de Marco Aurélio: “ Originalmente, sob o cavalo havia a
figura de um inimigo ferido, de um bárbaro caído. Além disso, as estátuas eqüestres
dos imperadores tinham um poder extraordinário. Diante delas eram realizadas as
execuções públicas e os prisioneiros podiam obter perdão e apelar para o imperador
se conseguissem tocá-las” . {Op. cit.)
A l. Platão chega a propor uma efetiva repressão de tais tendências, dizendo que
“ é preciso que os Conselheiros de Estado cuidem para que este não se deteriore,
para que não se introduzam inovações contrárias á ordem nem na ginástica e nem
na música. Deve-se evitar o surgimento de uma nova espécie de música, porque
esta colocaria em perigo o todo. Nunca se pode alterar a essência da música sem que
daí resultem abaladas as leis fundamentais do Estado ’ ’ .
36 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

exemplo, mostra que, para os gregos, a música era dirigida a toda


a população, “ por ocasião de todas as comemorações nacionais,
sobretudo nos Jogos Olímpicos, a música ocupava sempre um lu­
gar de destaque” , 18fato este que A. Hauser comenta com a obser­
vação de que Olímpia era ‘ ‘o local mais importante de propaganda
na Grécia, o local onde se formava a opinião pública do país e a
consciência de unidade nacional da aristocracia” . *9
Na avaliação de tudo isto, é importante observar que, com a
cisão da sociedade em duas partes, sob a forma de classe dominante
e classes dominadas ou populares, teve início também a cisão da
cultura. À cultura dominante, além de entretenimento da classe
dominante, é atribuída a função autoritária de dominação cultural,
enquanto a cultura popular constitui um instrumento das classes
populares, com que estas procuram dar respostas às suas próprias
necessidades culturais. Embora dominada, e restringindo-se 'fre­
qüentemente a reproduzir à sua maneira a cultura dominante, está
sempre inerente à cultura popular a tendência de se emancipar.'0
E, nos casos em que esta tendência encontrava sua realização efe­
tiva, levando a uma real aquisição dó potencial de enfrentar a do­
minação cultural, a cultura popular — ou pelo menos a cultura de
um determinado segmento das classes populares — podia perfeita­
mente chegar a contribuir para objetivos mais amplos, ou seja,
para a emancipação das próprias classes populares ou do respectivo
segmento das mesmas. ^ Neste sentido, acreditamos ter deixado
claro que tanto a função de dominação como a de emancipação se
apresentam como formas de atuação cultural a nível eminente­
mente político.
Cabe observar ainda que é somente na medida em que surge a
civilização que se pode aplicar o termo cultura popular com o seu
real significado de cultura das classes populares}’- termo este que

48. “ Oudheid en Gregoriaansch” , in: A . Smyers, Algemeene Muziekges-


chiedenis, Utrecht, De Haan, 1947, pg. 13.
49. Op.cit., pg. 101.
50. Esta oposição — ou, melhor, contradição — entre cultura dominante e
popular tem sido objeto de importantes discussões. Para maior aprofundamento,
aconselhamos a leitura do excelente trabalho de M . Chauí, “ Cultura do Povo e
Autoritarismo das Elites ’ ’, in: Cultura e Democracia, São Paulo, Moderna, 2? ed.,
1981.
51. Como exeplo deste fenômeno, abordaremos mais adiante (pg. 69 t srss.), a
função da polifonia medieval da arsantiqua dentro do contexto de uma nascente bur
guesia progressista empenhada na luta por sua emancipação diante do sistema leudal
vigente.
52. Usamos «quí ü termo lultura popular sempre nos referindo i cultura do
povo e não, tomo hoj* frtqUcntçmefltc occitie, a um conjunto de produtos culturais
destinados ao consumo d> m illi.
ESTADO SELVAGEM, BARBÁRIE E CIVILIZAÇÃO 37

se opõe não a conceitos vagos e indeterminados, como cultura


erudita, mas à cultura dominante, e que pressupõe, como con­
dição necessária para sua existência, o processo da dominação cul­
tural.
A monodia

O registro hoje disponível da música praticada na clássica civi­


lização helénica, embora insuficiente para uma análise aprofun­
dada, não deixa de fornecer indicações que justificam a hipótese de
que as principais dessas práticas se baseavam nos tradicionais can­
tos provenientes da barbárie. Seria neles que a cultura oficial do Es­
tado encontraria os modelos de estruturas musicais, as quais, ten­
do sido consideradas anteriormente como sendo de origem sobre­
natural ou divina, agora podiam ser utilizadas e adaptadas para
exercer as novas funções de portadoras de determinados valores
éticos favoráveis às relações de produção vigentes. Tratava-se dos
assim chamados n'omoT)1 É provável que se tenha procedido a al­
guma espécie de seleção entre os modelos disponíveis, de forma
que os valores éticos que se lhes atribuía correspondessem às de­
mandas decorrentes da necessidade de garantir a manutenção da
nova organização social própria á estrutura de classes, pela qual o
Estado havia assumido a responsabilidade. Ora, é natural que esta
exigência haveria de implicar em que a estrutura musical se tor­
nasse apropriada para favorecer substancialmente a competência
social dos atos de fala verbais existentes nos respectivos textos e, na
medida do necessário, influir sobre os mesmos para que, a nível de
atos elocutórios, viessem a funcionar como atos de persuadir}

1. Nom os (plural: nomoi). Cf. J. Subirá: “ Os primitivos compositores gregos


eram verdadeiros compositores — e de nenhuma forma autênticos criadores — ,
pois se limitavam a elaborar suas concepções musicais em cima de tipos consa­
grados, em lugar de produzir obras alimentadas pela própria invenção. Utilizando
um nomos tradicional, adaptavam-lhe poesias distintas e possivelmente mesmo lhe
aplicavam novos ritmos. Suas tarefas, neste sentido, não podiam produzir nada il<‘
muito extraordinário, uma vez que o nomos grego, esquema music al revelado pelos
deuses, obedecia aos mesmos princípios que o sanutn dos antigos lantorr* d l Imlia r
o raga dos indianos modernos” . (Historia de la Mtísita, Dirctlont, Salvat, l(M/.
vol. 1 , pus. 101 2 .)
2. 1’aiti la/rniiDi unia idíin dos priicrwi* »1 rnvolvído!, b u l i flfrWVlf tnttin,
tambfni ti g nnMa iiiltiir* (otidUns atual, tim rmim isdo vcriut, par »Mitifiln
A M O N O D IA

É provável que tenha sido a partir do desenvolvimento de tais


cantos que resultara, no período clássico da cultura grega, aquele
modo de comunicação que hoje é designado pelo termo canto mo-
nódico ou monodia e que, durante um longo tempo, constituiria a
principal manifestação musical da cultura dominante.
Tendo em vista as suas características básicas, entendemos que
o canto monódico, como modo de comunicação específico, não po­
derá de forma alguma ser considerado como pertencente à lin­
guagem musical, uma vez que ele não era senão um modo especial
de veicular a linguagem verbal com auxílio de determinados proce­
dimentos musicais capazes de atuar sobre os atos de fala de forma a
ampliar ou modificar os mesmos na sua qualidade de atos elocu-
tórios.

Princípios gerais

Foram extraordinários os esforços desenvolvidos na Antigüi­


dade helénica no sentido de estabelecer-se uma sistematização ra­
cional da monodia. Os trabalhos científicos e filosóficos de pensa­
dores como Pitágoras, Euclides, Aristoxeno e outros contribuíram
de modo decisivo para a formalização de uma teoria, que incluía
tanto um sistema de gêneros teórico-musicais, dando origem às
seqüências de sons sob a forma da escala,3 como um sistema rít­
mico que se referia ao mesmo tempo à música e à versificação.
Todo este trabalho naturalmente deve ter-se baseado em certos
pressupostos básicos, os quais sem dúvida correspondiam em
grande parte a muitas das práticas herdadas da barbárie. Ora, pode-
se observar que, apesar das substanciais transformações a que esti­
veram sujeitas as práticas musicais no decorrer do processo histó­
rico que vincula a cultura antiga a épocas mais modernas, uma
parte considerável desses pressupostos permaneceram inalterados,
verificando-se apenas uma ampliação do sistema básico mediante
sucessivos acréscimos de certos pressupostos novos em atendi­
mento a novas características próprias às especificidades peculiares
a cada formação social. De fato, os princípios em que se baseava o
canto monódico, na sua essência, continuariam válidos para a
maior parte da música praticada até os nossos dias.

“ acorrentado ninguém pode amar” , quando cantado adquire um poder expressivo


que vai muito além daquele que existe quando emitido sem a intervenção da mú­
sica.
3. Harmonia , na Grécia; modus, em Roma; èebos, em Bizâncio.
40 A MÚSICA C O M O LINGUAGEM

Julgamos oportuno proceder aqui a um balanço de alguns dos


referidos pressupostos do canto monódico, especialmente aqueles
que, devido à sua permanência na música por nós hoje praticada,
têm sido incorporados à atual teoria da música. Neste balanço
não nos ateremos à procura de uma fiel reconstrução histórica no
sentido de pesquisar estes pressupostos em base nas hipóteses exis­
tentes sobre a natureza das práticas musicais na Antigüidade, mas
tentaremos esboçar uma formulação teórica que seja adequada para
responder às necessidades de análise de uma ampla gama de mani­
festações musicais próprias à civilização européia em geral, procu­
rando corrigir ao mesmo tempo certas deformações metodológicas
e conceituais que freqüentemente se introduziram nos compêndios
de teoria musical. E nesta perspectiva que os pressupostos serão
apresentados e discutidos aqui sob a forma de cinco princípios ge­
rais, dizendo respeito:
a) Aos parâmetros sonoros especificamente musicais;
b) Aos repertórios de sons musicais;
c) Às entidades musicais;
d) Ao espaço mélico;
e) Ao conceito de melodia.
a) Primeiro princípio geral. Na estrutura dos atos comunica­
tivos usados nos diversos modos de comunicação, sempre é pos­
sível, na sua análise teórica, partir dos elementos sensoriais pri­
mários dos quais essas estruturas se compõem. É verdade que este
ponto de partida pode não ser o mais adequado, uma vez que fre­
qüentemente representa um processo analítico que tende a ato-
mizar as estruturas, ou seja, a destruí-las pelo seu retalhamento,
em lugar de considerá-las como um todo vivo. Não há dúvida,
entretanto, de que a abordagem de tais elementos primários muitas
vezes é capaz de esclarecer certos aspectos teóricos importantes,
desde que não se percam de vista as limitações metodológicas im­
plicadas em tal procedimento.
Considerando-se, então, os sons individuais como os elementos
primários envolvidos nos modos de comunicação sonoros, de cuja
articulação resulta qualquer espécie de ato comunicativo, seja ele
verbal ou musical, observamos que estes sons podem ser determi­
nados a nível sensorial mediante a definição de quatro fatores — ou
variáveis — que constituem seus parâmetros — ou traços distin­
tivos: altura, intensidade, duração e timbre. Conforme a natureza
dos diversos atps comunicativos e de acordo com os diferentes mo
dos de comunicação nos quais eles se inscrevem, são distintos
também os valores atribuídos a esses parâmetros.
Na linguagem verbal, pelo menos em se tratando dos idiomas
próprios às culturas ocidentais, é o timbre que normalmente reprc
A M O N O D IA 41

senta o traço distintivo essencial. É através dele que a fonética es­


tabelece a distinção entre os diversos fonemas. Este parâmetro
essencial é secundado pela inten^dade, parâmetro pelo qual se dis­
tinguem os sons fortes dos fracos, e que adquire a sua importância
na prosódia, onde se classificam as sílabas em tônicas e átonas. Os
demais parâmetros, embora também desempenhem as suas fun­
ções na fala, apresentam-se como fatores menos relevantes. A al­
tura, que se refere à distinção entre sons agudos e graves, é um
parâmetro acessório que interfere apenas para imprimir determi­
nadas características auxiliares na especificação dos atos elocu-
tórios.4 Quanto à duração, nas línguas clássicas ela desempenhava
um papel bem mais relevante do que nas modernas: em lugar da
distinção entre sílabas tônicas e átonas, consideravam-se as sílabas
como longas e breves. Para os nossos idiomas atuais, entretanto,
bem como para o latim medieval, também a duração não passa de
um parâmetro acessório, auxiliar para o reforço dos atos elocu-
tórios.
São exatamente estes dois parâmetros, acessórios na linguagem
verbal — altura e duração —, que se tornaram essenciais no mo­
mento em que se tratava de instituir uma declamação musical com
o propósito de imprimir determinadas propriedades aos atos de
fala, de forma a atuar sobre a sua competência social. Foi neste
sentido, portanto, que, com o objetivo de desenvolver e alterar essa
competência, a altura e a duração foram qualificadas como os pa­
râmetros especificamente musicais dos sons e, como tais, têm sido
incorporadas a toda música própria à civilização européia.5 Note-se
que, em função da importância assumida por estes parâmetros, a
teoria musical passou a desenvolver-se em dois domínios distintos:
um onde se sistematizam as durações sonoras — ou a disposição
dos sons no tempo —, e que é chamado rítmica, e outro que se
ocupa da organização das alturas sonoras, que aqui designamos por
mélica.b

4. É mediante a organização das alturas dos sons que intervêm nos atos de fala
que se distinguem, por exemplo, os atos de interrogar daqueles de afirmar.
5. Este fato se reflete imediatamente na notação gráfica da música que gradati-
vamente se desenvolvera no decorrer da Idade Média: o som, como elemento sen-
sorial primário, é representado por uma figura (mínima, semínima, colcheia, etc.),
que se refere â sua duração; e esta figura é disposta num pentagrama, de forma que
sua localização, como nota (DO, RE, M I, etc.), sirva para indicar a sua altura.
6 . Esta oposição teórica entre rítmica e mélica, que se nos apresenta de forma
perfeitamente coerente na teoria grega, onde se usavam os termos rithmos e meios,
na nossa atual teoria musical tem sido retomada de forma algo deformada, fazendo-
se uma distinção entre aspectos rítmicos e melódicos. A inadequação do termo
melódico quando usado neste sentido ficará evidente na discussão do conceito de
melodia, do qual nos ocuparemos no quinto princípio geral. Teremos ocasião aí de
42 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

A cultura da civilização européia, portanto, passaria a consi­


derar o som, enquanto elemento sensorial primário das manifes­
tações musicais, como constituído essencialmente de uma altura
sonora associada a uma duração sonora.
b) Segundo princípio geral. Para o estabelecimento das bases
teóricas da monodia fizera-se necessária a elaboração de esquemas
que viessem permitir uma associação dos elementos musicais àque­
les do texto verbal. E, na medida em que o trabalho teórico se
baseava nos elementos sensoriais primários, isto é, nos sons indi­
viduais, tratava-se de organizá-los num repertório adequado, de
forma que cada elemento pudesse ser associado a um elemento
correspondente — geralmente uma sílaba — do texto. Esta neces­
sidade devia-se ao fato de que, na prática do canto monódico, cada
sílaba do ato de falaj que já vinha lingüisticamente determinada a
nível da fonética e aa prosódia,' teria de adquirir uma definição a
nível musical através da determinação dos parâmetros especifica­
mente musicais. Foi exatamente neste sentido que a teoria da mú­
sica acabaria por definir o som musical como ‘ ‘um som de altura e
duração fixa” ,7 distinto do ruído, que se caracteriza pela indeter-
minação de pelo menos um desses parâmetros. Exigia-se, portanto,
de todo som individual, como condição para ser incluído no reper­
tório dos sons musicais, que apresentasse uma altura fixa e uma
duração determinada, pois, desta forma, cada elemento do reper­
tório se tornaria capaz de uma oposição especificamente musical a
todos os outros elementos do mesmo repertório, por meio de traços
distintivos bem determinados.8Na prática, entretanto, se observa
que muitos sons, embora freqüentemente usados na música, não
satisfazem a uma tal definição do som musical.9 Assim, tornou-se

mostrar que este conceito implica necessariamente a presença de aspectos tanto


mélicos como rítmicos (cf. pg. 45).
7. Cf. W . Apel, Harvard Dictionary of Mustc, Cambridge, Mass., Harvard
University Press, 1945.
8 . A determinação dos parâmetros especificamente musicais como traços dis­
tintivos leva a um critério seletivo dos sons enquanto elementos do repertório mu­
sical. A partir daí, quaisquer outros fenômenos sonoros, por exemplo aqueles em
que se verifica uma variação contínua da altura, como o toque dajirene, o ulular do
vento e o uivar do cão, teriam que ser excluídos deste repertório para serem consi­
derados ruídos. O mesmo se daria com outros que não correspondem á exigência de
uma duração determinada, isto é, nos quais não é claramente perceptível o mo­
mento de seu começo e de seu fim.
9. Entre estes poderíamos salientar, por exemplo, o som da maioria dos instru­
mentos da percussão, aos quais falta uma definição exata da altura, bem como ou
tros, como aqueles produzidos pela harpa e pelo piano, cuja duração n3o pod<‘ ser
exatamente fixada, uma vez que, embora o seu início no tempo esteja bem marcado
(ataque), se prolongam para extinguir-se gradualmente.
A M O N O D IA 43

necessário que na teoria se fizesse a ressalva de que nem todos os


sons que comparecem nas estruturas musicais necessariamente
têm que ser classificáveis como sons musicais.10 Entendemos que
este aparente paradoxo se deva a uma das limitações teóricas ine­
rentes à perspectiva onde se procura a definição dos fenômenos
musicais exclusivamente nos seus elementos primários, ou seja,
nos sons individuais. Esta limitação, entretanto, não impediria que
praticamente todos os procedimentos que têm sido utilizados na
estruturação da música na civilização européia se baseassem numa
organização desses sons musicais realmente concebidos como al­
turas e durações sonoras fixas.
Quanto à natureza do repertório dos sons musicais, cabe obser­
var ainda que, uma vez que são dois os parâmetros que definem os
traços distintivos, devem ser dois também os repertórios a serem
considerados, ou seja, um de ordem mélica, onde os traços distin­
tivos dizem respeito à altura sonora, e o outro de ordem rítmica,
onde estes traços se referem à duração sonora.11' ! .
c) Terceiro princípio geral. Estaríamos equivocados se, em
virtude da importância que a teoria tradicional atribui aos sons
individuais como elementos primários da estrutura musical,
procurássemos localizar nestes sons quaisquer valores musicais.'
Muito pelo contrário, a prática nos mostra que tais elementos pri­
mários só adquirem uma relevância na medida em que entrem em
oposição uns aos outros, ou seja, na medida em que entre eles se
estabeleçam determinadas associações definíveis a nível musical.
E um fenômeno semelhante ao que se verifica na linguagem
verbal, onde os atos de fala também podem ser analisados como
resultantes da associação de unidades primárias. É neste sentido

10. Observe-se que certos sinais gráficos usados na notação musical se referem
exatamente a elementos sonoros que a rigor são estranhos ao repertório. Um exem­
plo é a fermata ( ^ ) que, colocada acima de uma figura, indica a indefinição do
respectivo som quanto à duração.
11. De acordo com a atual teoria musical tratar-se-ia de um repertório de notas
e um repertório de figuras ou valores• Quanto ao termo valor, usado na maioria dos
compêndios para designar a duração sonora, não encontramos nenhuma justifica­
tiva. A incoerência terminológica, no campo dessa teoria musical, assume freqüen­
temente proporções lamentáveis. A título de exemplo, transcrevemos aqui a con-
ceituação do termo valor que se, encontra no Dicionário Ilustrado de Lello. O res­
pectivo verbete nos informa quejo valor seria a ‘ ‘ duração que deve ter cada nota (sic)
segundo a sua “ figura” . Ora, como é que uma nota, que nâo é senão a represen­
tação gráfica de uma altura sonora, pode ter uma duração? Não seria o mesmo que
falar na “ duração de uma altura” ? E, além disto, essa nota teria ainda uma fi­
gura?... Não vemos nenhum motivo por que não utilizar os termos de modo mais
simples e coerente, referindo-nos, por exemplo, à ‘ duração do som” ou â “ du
ração sonora ’ ’ .
44 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

que a lingüística tem definido o sintagma como produto da combi­


nação entre dois ou mais elementos menores,12 ou como produto
de uma articulação de monemas, entendendo-serpor monema a
unidade mínima portadora do assim chamado significado lingüís­
tico. 13 ,
Este significado lingüístico; entretanto, que na linguagem ver­
bal está intimamente relacionado com o ato de referir,i4 nas estru­
turas musicais dificilmente encontra o seu correlato perfeitamente
equivalente. Numa primeira aproximação, nos parece existir uma
relativa correspondência com o que aqui denominamos relevância
musical. De forma análoga, então, como os fonemas da linguagem
verbal só adquirem seu significado lingüístico a partir do momento
em que são articulados para dar origem aos monemas£ps sons mu­
sicais viriam adquirir sua relevância musical só a partir do mo­
mento em que entre eles se efetuam associações capazes de dar
origem ao que aqui chamamos entidades musicais^ Com o termo
entidade musical referimo-nos, portanto, a quaisquer estruturas
sonoras dotadas de relevância musical. Observe-se que tais enti­
dades musicais podem ser concebidas em diversos níveis, ou seja,
tanto a nível de produtos de associações elementares efetuadas so-
^ bre os sons individuais, como a nível de associações compostas
efetuadas sobre entidades já anteriormente determinadas. Além
disto, como teremos ocasião de verificar mais adiante,15 o termo
entidade musical se aplica ainda a outros tipos de estruturas porta­

12. Segundo F. de Saussure, “ no discurso, os termos estabelecem entre si, em


virtude de seu encadeamento, relações baseadas no caráter linear da lingua, que
exclui a possibilidade de pronunciar dois elementos ao mesmo tempo. Estes se ali­
nham um após outro na cadeia da fala. Tais combinações, que se apóiam na ex­
tensão, podem ser chamadas de sintagmas. O sintagma se compõe sempre de duas
ou mais unidades consecutivas (por exemplo: re-ler; contra todos; a vida humana;
Deus é bom; se fizer bom tempo sairemos, etc.). Colocado num sintagma, um
termo só adquire seu valor porque se opõe ao que o precede ou ao que segue, ou a
ambos” . (Cours de Linguistique Générale, Paris, Payot, 1916; Curso de Lingüís­
tica Geral, São Paulo, Cultrix, 1969, pg. 142.)
13. Também A. Martinet considera que “ a primeira operação consiste em
analisar os enunciados ou fragmentos de enunciados em suas unidades significativas
mínimas, que chamamos de monemas” . (Eléments de Linguistique Générale, Pa­
ris, Armand Colin, 1960; Elementos de Linguistica General, Madrid, Gredos,
1968, pg. 127.)
14. Cf. Ducrot e Todorov: “ Como a comunicação lingüística (verbal) tem
muitas vezes por objeto a realidade extralingüística, os locutores têm de poder de­
signar os objetos que a constituem: é a função referencial da linguagem. Ou os
objetos designados por uma expressão formam o seu referente” . (Dicionário das
Ciências da Linguagem, pg. 297. Cf. também S. J. Schmidt, Lingüística e Teoria de
Texto, pgs. 80esegs.)
15. No quinto princípio geral (pgs. 47 e segs.).
A M O N O D IA 45

doras de relevância musical, os quais já não são acessíveis a uma


abordagem teórica adequada baseada na associação dos elementos
sensoriais primários.
Numa análise das entidades elementares, produtos de associa­
ções efetuadas em primeiro nível, isto é, entre os sons individuais,
entretanto, fica evidente que essas associações, para dar origem a
entidades musicais, devem ser de ordem musical, ou seja, que elas
sejam efetuadas sobre os parâmetros especificamente musicais dos
respectivos sons. Ora, uma vez que os sons musicais são organi­
zados em dois repertórios distintos — um rhélico e o outro rítmico
— , as entidades elementares devem ser produtos de associações
efetuadas sobre os elementos de um ou de outro destes repertórios,
distinguindo-se, portanto, entre associações mélicas e associações
-rítmicas. E verdade que na prática as associações musicais se efe­
tuam não separadamente sobre as alturas e as durações sonoras,
mas de uma forma mais global que compreende ambos os parâ­
metros. Entretanto, como sistematização analítica — e levando em
consideração as limitações implícitas a este método — não deixa de
ser válida a distinção entre as entidades produtos destes dois tipos
de associação, as quais designaremos aqui pelos termos entidades
mélicas e entidades rítmicas respectivamente.
d) Quarto princípio geral. Os modos de comunicação sonoros
caracterizam-se pelo fato de que suas mensagens se estruturam de
forma essencialmente temporal. Tanto nos processos musicais
como nos da linguagem verbal se trata de estruturas que basica­
mente pressupõem a sua existência no tempo e que são distintas,
por exemplo, das estruturas gráficas, as quais se realizam essen­
cialmente no espaço. Ora, nas estruturas musicais esta forma tem­
poral diz respeito direta e exclusivamente á sua organização rít­
mica. E no tempo que se localizam as durações sonoras e que se
efetuam as associações rítmicas; são as entidades rítmicas que de
fato se caracterizam por uma estrutura temporal. O mesmo abso­
lutamente não ocorre nas entidades mélicas, uma vez que as asso­
ciações entre as alturas sonoras são efetuadas independentemente
do tempo.16 Se o tempo, então, é uma categoria essencial para as
estruturas rítmicas, é natural indagar-se qual a categoria em que se
baseiam as estruturas mélicas.
A fim de poder encaminhar uma resposta a esta indagação, é
preciso aprofundar um pouco mais,a análise de pelo menos uma das

16. É evidente que as alturas sonoras só podem ter existência real na medida em
que são alturas de sons reais, existentes no tempo, mas esta sua temporalidade diz
respeito não às características mélicas, mas à existência do próprio som como um
todo.
46 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

maneiras como são efetuadas na nossa percepção as associações


mélicas. Para esta análise, consideremos, entre as entidades mé-
licas, a mais elementar de todas que evidentemente é aquela que
resulta da associação de apenas duas alturas e que é conhecida sob a
denominação de intervalo musical. Na teoria tradicional, este in­
tervalo geralmente é definido como “ a diferença entre duas al­
turas” . 17Trata-se de uma definição que/embora não corresponda
ao nosso conceito de intervalo como entidade produto da asso­
ciação de duas alturas sonoras, implica uma concepção sem dúvida
importante. De fato, ao ouvir uma seqüência de dois sons de alturas
distintas, normalmente se tem a impressão de um passo ou, con­
forme o caso, de um salto. Isto significa que a associação realmente
pode efetuar-se como se se tratasse de vencer uma distância ou
uma diferença de alturas.18 Tais observações sugerem, portanto,
que as duas alturas envolvidas no intervalo existam efetivamente
dispostas no espaço, fato este que na realidade não ocorre, visto
que a altura sonora não é outra coisa que um parâmetro pelo qual
se distinguem os sons graves dos agudos. A referência específica a
diferenças ou distâncias parecem basear-se numa categoria de es­
paço que a rigor seria própria a outros objetos que não os sonoros.19
Tudo indica, entretanto, que a associação entre as alturas sonoras
se dá muito freqüentemente mediante uma conotação espacial, ge- •
rando-se assim uma aova categoria, que aqui designaremos pelo
termo espaço mélico, e que se refere a determinadas entidades mé­
licas que permitem a avaliação das distâncias assim concebidas
mediante o estabelecimento de uma unidade de medida, como o
tom ou o semitom.
- Desta forma, portanto, o espaço mélico se nos apresenta como
uma categoria abstrata em referência ao melo,'no sentido de com­
preendermos as alturas sonoras como localizadas neste espaço^ de
forma análoga como o tempo é uma categoria abstrata em referên-

17. W . Apel, op. cit.


18. Neste sentido, E. F. Richter já definia o intervalo explicitamente como “ a
relação de um som para outro no que diz respeito á distância” . (Lehrbuch der
Harmonie, Leipzig, Breitkopf & Hartel, 1897.)
Mesmo as conceituações menos acuradas, como, por exemplo, a que se en­
contra no Dicionário Ilustrado de Lello, segundo o qual o intervalo é “ a distância
que separa um som de outro” , normalmente se atêm a essa noção de distância.
19. A alusão ao espaço, em se tratando não apenas de intervalos, mas de quais­
quer associações de ordem mélica, é tão comum que há muito se encontra incor­
porada em muitos termos usuais na música. Fala-se, por exemplo, em intervalos e
escalas ascendentes e descendentes. O próprio termo “ altura” já revela uma refe­
rência ao espaço e o mesmo acontece com as palavras agudo e grave em vários
outros idiomas, como higb elow, em inglês, e hoch e tief, em alemão, significando
sempre alto e baixo.
A M O N O D IA 47.

cia ao ritmo, no sentido de compreendermos as durações sonoras


como nele distribuídas. Em conseqüência disto, os termos altura
sonega e duração sonora adquirem o significado, respectivamente,
de som no espaça e som no tempo... As categorias de espaço mélico
e tempo então vêm constituir duas dimensões do meio em que se
realizam tanto os sons como as entidades musicais.
e) Quinto principio geral. Uma das principais características
de toda a tradição musical européia reside na importância que nela
assume o fenômeno chamado melodia. Entendemos que o conceito
melodia, desde a sua origem, sempre estivera intimamente vincu­
lado ao ato de cantar, o qual, como acima já verificamos, consiste
em uma maneira especial de veicular determinados textos verbais
em se utilizando certos procedimentos especificamente musicais.
Na base de todo canto, portanto, está o texto verbal. Este texto
pressupõe que um locutor, fazendo uso de seu aparelho fonador,
organize a sua voz de forma a enunciar atos locutórios. Os proce­
dimentos musicais envolvidos no ato de cantar, por sua vez, carac­
terizam-se por sua potencialidade de dotar esta voz, além da orga­
nização lingüística, de uma estrutura a nível musical, mediante a
sua organização nas duas categorias de espaço mélico e tempo. Sob
o ponto de vista estritamente musical, então, abstraindo tudo que
se refere à componente lingüística verbal, a voz acaba por realizar
apenas uma entidade musical, à qual se aplica a denominação me­
lodia .
Discordamos aqui dos conceitos habitualmente encontrados
nos compêndios de teoria musical, que definem a melodia como
“ uma sucessão de sons musicais” .20 Toda tentativa de verificar
como na prática se processa de fato a percepção de qualquer for­
mação melódica certamente nos leva à conclusão de que em abso­
luto não se trata de uma sucessão de sons individuais, mas muito
antes de uma voz em movimento. E é exatamente nesta noção de
“ uma voz em movimento” que, segundo a nossa opinião, deve
basear-se o conceito de melodia.21
Note-se que o termo voz, aqui, já não se refere meramente aos
fenômenos sonoros produzidos com auxílio do aparelho fonador,

20. Cf. W . Apel, op. cit.


21. Não é difícil perceber que as noções de melodia e movimento estão intima­
mente vinculadas. Já E. Kurth afirmava: “ Melodia é movimento. Seria falho to­
mar apenas os fenômenos acústicos, mesmo incluindo todas as suas implicações
latentes, como sendo os momentos essenciais e propriamente significativos da me­
lodia, sem levar em consideração a sua vinculação com um processo dinâmico. Em
tudo que se refere aò fenômeno melódico evidencia-se a presença de fatores tanto
sonoros como cinéticos, bem como algo que ocorre no espaço, de um acontecer
quase palpável, na articulação e no decurso da estrutura melódica” . (Grunâlagen
des linearen Kontrapunkts, Bern, Krompholz, 1916.)
A MÚSICA COM O LINGUAGEM

mas adquire a conotação de um objeto sonoro — ou um som obje­


tivado — que é dotado de mobilidade. Por outra parte, as cate­
gorias de tempo e espaço mélico passam a servir de coordenadas do
meio no qual se realiza o movimento da voz, isto é, onde essa voz
descreve a sua trajetória. Chegamos, portanto, a um conceito bem
diverso daquele da teoria tradicional e definiremos a melodia como
sendo o movimento executado por uma voz que descreve a sua
trajetória num meio determinado pelas categorias de tempo e es­
paço mélico.
Cabe aqui uma menção especial aos eqüívocos da tradicional
teoria da música a este respeito. Acabamos de nos referir á concei-
tuação falha que reduz a melodia a uma seqüência de sons indivi­
duais e cremos que a discussão acima desenvolvida seja suficiente
para rejeitar definitivamente esta concepção. No entanto, isto
evidentemente não significa que os sons musicais, como alturas e
durações sonoras individuais, estejam excluídos da realidade meló­
dica. Muito pelo contrário, qualquer processo analítico operado
sobre a trajetória melódica, com o objetivo de determinar as alturas
e durações envolvidas na mesma, forçosamente levará à consta­
tação de sons individuais. E este processo tem sido de substancial
importância, por exemplo, para o desenvolvimento da notação
gráfica da música, onde de fato a melodia acaba por ser represen­
tada como uma sucessão de elementos primários. E não há dúvida
também de que a consideração de alturas sonoras individuais aca­
baria por ser necessária ao tratar-se de organizar a estrutura
musical, principalmente no âmbito da música polifônica e tonal.22
O referido eqüívoco se refere especificamente ao conceito básico de
melodia e, segundo a nossa opinião, reside possivelmente numa
espécie de vício mais generalizado, ou seja, o de reduzir os fenô­
menos musicais exclusivamente àqueles aspectos que comparecem
na sua notação gráfica.23
' Um outro equívoco consiste ria consideração da melodia em
oposição ao ritmo. O que ocorre na realidade é que a melodia,
concebida como movimento, necessita para sua realização tanjo do
melo como do ritmo.24 O que se opõe ao ritmo, isto é, ao elemento
exclusivamente temporal da música, portanto, não é a melodia,
mas o melo, ou seja, o fator que havíamos conceituado como se
referindo unicamente às alturas sonoras.

22. Cf. os capítulos referentes à polifonia e à música tonal.


23. A notação medieval do canto monódico da Igreja — a escrita neumdtica —
não favorecia este vício, uma vez que ela empregava sinais que diretamente se re­
feriam a unidades de movimento.
24. Toda vivência musical nos mostra que uma melodia sem organização tem­
poral, isto é, sem ritmo, é tão inconcebível quanto uma melodia sem organização
das alturas, istoé, sem melo.
A M O N O D IA 49

Dominação cultural e conflitos entre a civilização


e a barbárie

Na nossa tentativa de sistematização dos princípios gerais da mú­


sica própria à civilização européia que, por ocasião do surgimento
de uma classe dominante, devem ter norteado a prática do canto
monódico, demos uma ênfase especial não a eventuais aspectos de
ordem estética, mas aos fatores que consideramos essenciais para
uma explicação de determinados procedimentos como respostas
criativas a necessidades socialmente relevantes. Vimos que estas
necessidades, ainda no âmbito da cultura dominámérvisavaTfi em
grande parte à perpetuação da estrutura social de classes. Eram
necessidades que demandavam um considerável reforço da compe­
tência social de determinados atos de fala, especialmente daqueles
que a nível de atos elocutórios funcionavam como atos de persua­
dir. Eram necessidades às quais o canto monódico respondia com
perfeita adequação. É natural, portanto, que, na medida em que os
procedimentos envolvidos na monodia favoreciam a função social
pela qual o Estado era responsável, eles haveriam de ser não só
permitidos, mas também estimulados.
Assim se explica por que o canto monódico foi introduzido nas
manifestações teatrais da Antigüidade grega, onde passaria a exer­
cer uma função de elevada relevância. Tratava-se de uma promo­
ção que se justificava plenamente na medida em que era “ no teatro
das festas solenes que a pólis encontrava seu mais valioso instru­
mento de propaganda” .25\Também em Roma. para onde o canto
monódico, juntamente com muitos outros elementos culturais,
havia sido transplantado, dava-se uma grande importância à orga-
ntzaçãõ musical dos atos locutórios.26

25. Cf. A . Hauser, Historia Social de la Literatura y el Arte , vol. 1, pg. 122.
“ Os poetas trágicos eram remunerados pelo Estado, que lhes pagava pelas peças
representadas, mas que, evidentemente, só fazia representar aquelas que estavam
de acordo com sua política e com os interesses das classes dominantes. A tragédia
grega era no mais exato sentido da palavra um “ teatro político” ; a cena final dos
Eumênides, com sua ardente oração pela prosperidade do Estado Ático, dá uma
boa mostra dessa sua principal finalidade. O controle da política sobre o teatro está
relacionado com o fato de que ojppeta-músico, era considerado como guardião de
uma verdade sublime e como educador de seu povo,/ ao qual havia de conduzir a
uma esfera superior de humanidade” . (Ibid ., pgs. 122-3.)
26. J. Subirá faz referência ao fato de que era comum que “ os oradores, para
falarem em público, se faziam acompanhar de um flautista, cujas notas intermi­
tentes lhes iam indicando as alturas graves e agudas requeridas pela peroração” .
(Op. cit., vol. 1, pgs. 140-1.)
50 A MÚSICA COM O LINGUAGEM
■\

,0 canto monódico, portanto, como prática musical promovida


e regulãmênti3i pelo Estado, se-nos revela claramente como ins­
trumento de dominação cultural. Na civilização da Antigüidade
grega, esta dominação ainda era exercida diretamente pelo Estado,
com auxílio de seus intelectuais orgânicos — filósofos, cientistas e
artistas.27 TA no TmpárÍQ.Romano.. a partir do reçonhecimentQ.do
cnstjanjsmp pelo Estado e sua gradual transformação em religião
oficial, toda a atuação de dominação a nível ideológico passou a ser
delegada cada vez mais à Igreja. E, após a queda do Império, a
Igreja continuaria, por toda a Idade Média, a assumir muitas das
funções de Estado, principalmente aquelas que diziam respeito à
ideologia. Também nesta atuação, o canto monódico prosseguiria
por constituir um instrumento poderoso para garantir a hegemonia
no domínio cultural. *
É evidente que o canto monódico praticado pela igreja, como
elemento que integrava a cultura dominante, haveria de entrar em
conflito com a cultura tradicional dos povos dominados, isto é,
com uma cultura ainda diretamente vinculada à barbárie. Este con­
flito, que já se fizera sentir, mesmo anteriormente à intervenção da
Igreja, por ocasião das conquistas romanas, revestir-se-ia de for­
mas mais acentuadas por todo um largo período em que a ideologia
cristã era divulgada e propagada entre os povos bárbaros por mis­
sionários da Igreja.
A oposição entre a cultura dominante da civilização romana e a
cultura dos bárbaros configurava-se, de início, como um conflito
entre uma cultura urbana, regulamentada pelo Estado, e uma cul­
tura rural, que por tradição não conhecia a estrutura de dominação
de classe. Na medida, entretanto, em que os povos bárbaros con­
quistaram militarmente o Império, instalando nele seus próprios
reinos, a cultura bárbara começaria a urbanizar-se e, portanto, a
ingressar na civilização. Sob o aspecto de organização social, isto
significava que os reinos bárbaros abandonaram o que restava da
sua estrutura gentílica, para adotar a estrutura baseada nas classes
sociais, característica para a civilização. A classe dirigente desses -
reinos, constituída de uma aristocracia peculiar à fase superior da
barbárie, acabaria por aliar-se à classe dominante romana, de tal
forma que o sistema do Império, na realidade, não foi rompido. A
cultura dominante, da qual a Igreja se tornara portadora, mesmo

27. De acordo com A. Gramsci: “ Qualquer grupo social que surge como base
original de uma função essencial no mundo da produção econômica, estabelece
junto a ele, organicamente, um ou mais tipos de intelectuais que lhe dão homo­
geneidade não apenas no aspecto econômico, mas também no aspecto social e polí­
tico” . (A Formação dos Intelectuais, Venda Nova-Amadora, Rodrigues Xavier,
1972, pg. 10.)
A M O N O D IA 51

que freqüentemente incorporasse certos elementos da tradição bár­


bara, continuaria a exercer a sua função junto ao Estado.
Esta permanência do status quo forçosamente pressupõe seu
paralelo no campo econômico. De fato, a evolução das forças pro­
dutivas não havia chegado ainda a apresentar transformaçaões sufi­
cientemente profundas para exigir modificações das relações de
produção. Quanto à agricultura e indústria, as técnicas tradicio­
nais dos bárbaros pouco podiam contribuir para a cultura civili­
zada. E quanto ao comércio, como bem mostra H. Pirenne, o Me­
diterrâneo, em torno do qual girava toda a civilização romana, foi
veículo para onde convergia a maior, parte das atividades econômi­
cas de todos os territórios, tanto do antigo Império, como dos rei­
nos estabelecidos pelos bárbaros.28
Embora talvez insuficientemente documentado, nos parece su­
gestivo o quadro que G. Freytag esboça do primeiro contato dos
germanos com o cristianismo: “ Não tardava que qualquer ger­
mano se tivesse defrontado com algum dos proclamadores da nova
doutrina. Estes exigiam que ele obedecesse a seus ensinamentos.
Eram estrangeiros, homens versados e bem informados, que ha­
viam obtido a proteção do chefe da tribo. Viviam modestamente;
muitas vezes se abstinham de comida e bebida, mas falavam alti­
vamente do seu Deus e da salvação pela sua doutrina. Por ocasião
do culto sabiam agradar: dirigiam-se ao seu Deus cantando cantos
estranhos que eram respondidos por seus companheiros em coro;
ouvia-se um pequeno sino e o incenso docemente perfumado en­
chia o ambiente. Eles mesmos, que sempre andavam pobremente
vestidos, por ocasião do culto usavam magníficos hábitos repletos
de ouro e púrpura; belos tapetes enfeitavam o local consagrado.
Eram homens bons e dignos: tratavam dos doentes e ajudavam aos
pobres. Era somente contra os deuses locais que se levantava sua
ira. Obstinadamente desafiavam os espíritos para a luta e ousavam
contra eles os mais monstruosos sacrilégios. Sem temer qualquer
vingança, temerariamente difamavam os santuários dos deuses.
Dispondo-se a viver em paz com os homens, viviam em luta contra
os deuses.
“ Os germanos, diante desses ensinamentos chamados evange­
lhos, sentiam-se tocados por um misto de admiração e descon­
fiança. Sob muitos aspectos, o cristianismo correspondia perfeita­
mente às suas crenças nativas: o mistério como o Filho de Deus se
fizera Homem não lhes era desconhecido; também seus deuses ha­

28. Histoire Économique et Sociale du Moyen-Age, Presses Universitaires de


France, 1933 História Econômica e Social da Idade Média, São Paulo, Mestre Jou,
1963, pgs. 7-8.
52 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

viam andado entre os homens e gerado filhos de modo milagroso.


Mais profundamente do que os gregos e romanos, os germanos
conheciam o padecimento com a efemeridade desta vida e mais
ardentemente ansiavam por uma vida que perdurasse após a morte.
Também tinham conhecimento de um paraíso para os bons e um
inferno para os maus e acreditavam que o mundo terreno se situava
entre um reino de luz e outro de trevas. Ainda mais: a mitologia
germânica fazia referência a um deus luminoso que havia morrido
perseguido pelas forças das trevas e cuja morte era lamentada por
todos os seguidores, pois representava uma fatalidade para todos,
deuses e homens. Também nos antigos cantares narrava-se a tran-
sitoriedade da terra dos homens, o fim dos deuses e o renascimento
da vida. Foi com um misto de sobressalto e alegria que agora os
germanos recebiam a surpreendente hotícia de que o deus lumi­
noso já havia ressuscitado e reinava nas alturas, ao lado de um pai
celestial; de que, após todas as lutas e sofrimentos desta vida, um
novo reino bem-aventurado de alegria reuniria todos aqueles que
lhe eram devotos.
“ Por outro lado, porém, havia aspectos da nova religião que es­
tavam em franca contradição com a tradição bárbara. O cristia­
nismo não valorizava a vingança, nem o orgulho viril do homem
que se postava altivamente sobre a sua terra. Pelo contrário, exigia
uma atitude passiva e pusilânime que suportasse tolerantemente as
ofensas, impunha o amor em ocasiões onde se deveria odiar e con­
denava aquela lealdade pela qual mais valia o bem do amigo do que
a própria vida do inimigo.
‘ ‘E, afinal de contas, quem era esse Deus estrangeiro? Ele mes­
mo havia padecido o castigo mais ignominioso; havia sido crucifica­
do como se fosse um desertor ou um traidor insidioso. Nos seus se­
guidores não fazia diferença entre os grandes e os insignificantes;
nascera de uma estirpe sem nome, no seio de uma tribo fraca, cujos
filhos, como meros mercadores viajantes, ficavam à espreita diante
da porta do guerreiro, para lhe comprar os despojos da guerra. E
seria diante de um tal estrangeiro, sem glória, que os descendentes
dos deuses deveriam inclinar a cabeça e colocar-se entre sua gente?
Para que servir a um Deus que era incapaz de guerrear, que fora
vencido por seus inimigos? Como poderia ele dar a seus adeptos a
vitória sobre o inimigo e a felicidade nesta terra, se ele mesmo não
a obteve?
“ Mais grave ainda era o fato de que este Deus pretendia separar
seus adeptos, também após a morte, de todos os heróis do passado,
já que os seus sacerdotes afirmavam que todos os grandes guerrei­
ros, cuja glória era celebrada nos cantos épicos, estavam conde­
nados a apodrecer no inferno, junto aos covardes, traidores e per­
juros, por todos os séculos dos séculos. Era terrível, para os ger-
A M O N O D IA 53

manos, a perspectiva de uma separação eterna de toda a memória


grandiosa e querida do passado. ’ ’2‘;
Observe-se ainda que o cristianismo a que tiveram acesso
muitos dos povos bárbaros obedecia aos ensinamentos propagados
por Arius, bispo de Alexandria. Segundo esta doutrina, afirmava-
se a supremacia absoluta de Deus-Pai sobre as outras entidades que
mais tarde comporiam a Santíssima Trindade; o Filho não era con­
siderado um ser divino, mas uma criatura humana (“ Filho do Ho­
mem” ). Somente em 325 o Concílio de Nicéia viria oficializar o
dogma da doutrina trinitária, condenando os princípios arianos.
No entanto, nem esta condenação nem a excomunhão de Arius
seriam capazes de impedir que o cristianismo desses povos bárbaros
continuasse a aderir à doutrina ariana.30
A oposição ideológica entre o cristianismo e as crenças vigen­
tes entre os bárbaros, portanto, revelava-se como não essencial sob
o ponto de vista propriamente religioso ou místico. O discurso dos
missionários, principalmente na medida em que se revestia do
canto monódico, apresentava-se de forma perfeitamente adequada
enquanto, como atos elocutóríos, se tratava de atos de evangelizar.
A partir do momento, entretanto, em que se exigia deste discurso
que atuasse a nível de atos de persuadir, no sentido de fazer com
que os povos dominados aceitassem de bom grado o sistema de
dominação, a sua competência social se revelaria muitas vezes
como prejudicada, em virtude de que as respostas produzidas nem
sempre correspondiam àquelas previstas pelos locutores. Foi prin­
cipalmente a nível perlocutório, isto é, de respostas e atitudes dian­
te da doutrina cristã, que a cultura bárbara entrava em oposição ao
cristianismo.
Este fato necessariamente haveria de afetar também o canto
monódico. Também no domínio deste não existia propriamente .
uma oposição essencial entre o canto praticado pelos bárbaros e os
princípios básicos do canto civilizado da Igreja.31 A oposição si­
tuava-se muito mais nas atitudes assumidas oelos bárbaros perante

29- G. Freytag, “ Bilder aus der Deutschen Vergangenheit” , in: Gesamnelte


Werke, Leipzig, Hirzel, 2? série, vol. III: Aus dem Mittelalter, pgs. 221 e segs.
Conta-se também 0 caso de Radboud, chefe dos Frisões, que, depois de conver­
tido ao cristianismo, no último momento se negara ao batismo, porque, após a
morte, preferia juntar-se a seus antepassados: se estes estavam no inferno, melhor
era a sua companhia no suplício eterno do que 0 ingresso sem eles na bem-aven-
turança.
30. De fato, o que poderia significar para os bárbaros - que nada tinham a ver
com 0 processo histórico da formação da Igreja e sua transformação em instituição
política — as resoluções de um concílio?
31. Basta lembrar que 0 próprio canto monódico tivera sua origem em práticas
musicais da barbárie.
54 A MÜSICA COMO LINGUAGEM

este canto, atitudes que absolutamente não eram condizentes com


a posição dominante da Igreja. Já Ambros descrevera a perplexi­
dade experimentada pelos emissários da Igreja de Roma ao ouvir o
canto cristão como praticado nos primeiros mosteiros fundados em
território bárbaro. 32 De fato, os bárbaros gostavam de cantar e en-
tregavam-se a essa prática com todo entusiasmo. Para eles, a mú­
sica era parte integrante da vida comunitária e, como tal, estava
em oposição à civilização, onde se tratava de obedecer a normas
musicais que eram impostas em função da consolidação de uma
estrutura social de dominação.
Não há dúvida de que as tradições dos diversos povos bárbaros
tenham exercido uma considerável influência tanto sobre a litur­
gia em geral como sobre o canto eclesiástico em especial. Ambros
fala de uma “ época em que uma tempestade purificadora varria o
mundo e em que à civilização já dêcadente do Sul se impunha uma
cultura tosca, porém sadia, do Norte” .33 Ora, embora s'e possa
duvidar um pouco dessa tempestade purificadora, a referência a
uma cultura tosca, porém sadia sem dúvida corresponde à reali­
dade. A maneira como os monges bárbaros cantavam a monodia
litúrgica certamente deve ter tido este caráter de tosca e sadia e é
assim que se compreende tanto a primeira reação de perplexidade
por parte dos emissários de Roma como também o posterior inte­
resse pela vitalidade e vigor que emanavam desse modo de cantar.
No período que vai dos anos 300 a 600, aproximadamente, em
conseqüência de um processo de enfrentamento cultural, o canto
monódico, juntamente com toda a liturgia cristã, havia assumido
características bem diferenciadas nas diversas regiões dominadas
pela cultura da civilização romana. Na Itália setentrional, sob a in­
fluência tanto da antiga cultura grega,- como da cultura bárbara dos
celtas, praticava-se o Canto Ambrosiano; a influência céltica pre­
dominava sobretudo nas regiões meridionais da Gália, onde se de­
senvolvia o Canto Gálico; já na Península Ibérica estava em uso
o Canto Mozarábico; enquanto no sul da Itália florescia uma das
mais antigas manifestações da liturgia romana: a Liturgia Beneven-
tana. E quando, por volta do ano 600, sob o papado de Gregório I,
a Igreja finalmente conseguia uma relativa unificação da liturgia,
é certo que o Canto Gregoriano, como síntese de múltiplas tendên­
cias contraditórias, já incorporava uma considerável parcela de cul­
tura bárbara.

32. Cf. A . W . Ambros, Geschichte der Musik , Leipzig, Leuckart, 3? ed.,


1891, vol. II: Die Anfänge der Europäisch-Abendländischen Musik, p r s . 102 e
segs.
33. Op.cit., pg. 28.
A M O N O D IA 55

A monodia no sistema feudal

A unificação da monodia litúrgica ocorrera concomitantemente


com o início do gradual estabelecimento da ordem social e econô­
mica que conhecemos sob a denominação de feudalismo. Parece-
nos oportuno, portanto, dedicar aqui algumas linhas ao processo
histórico envolvido na implantação dess&JipYa,ordem?
H. Pirenne atribui uma importância decisiva à “ súbita irrup­
ção do Islã, na história, durante o século VII, em sua conquista das
costas orientais, meridionais e ocidentais do Mediterrâneo, para
colocá-lo em uma situação completamente nova, cujas conseqüên­
cias deveriam influir em todo curso ulterior da história” .31 Sob
esta perspectiva, não resta dúvida de que a conquista das principais
vias de comércio marítimo pelos sarracenos foi, em muitos sen­
tidos, um verdadeiro desastre para o comércio que a Idade Média
havia herdado do Império Romano.35 A isto acrescentava-se o fato
de que, também no domínio dos francos, os centros comerciais se
tornaram alvo das incursões de povos ainda bárbaros vindos do
Norte. Em fins do século IX , os importantes portos de Quentovic e
Duurstede, por exemplo, foram saqueados e destruídos pelos nor-
mandos. Assim, do permanente estado de insegurança, que preju­
dicava substancialmente todo o tráfego normal e regular das vias
comerciais marítimas e fluviais, resultaria um isolamento quase
total da Europa Ocidental. Toda fonte de subsistência e riqueza
teria necessariamente de resumir-se à própria terra e todos os es­
forços anteriormente empenhados no grande comércio haveriam
de concentrar-se agora nas atividades rurais. O latifúndio viria afir-
mar-se como sólida base de sustentação desse sistema de economia
fechada, auto-suficiente e já não mais voltado para mercados ex­
ternos.
Se, por uma parte, a auto-suficiência econômica desses latifún­
dios levara a uma descentralização do poder político, por outra
parte, a Igreja não pouparia esforços no sentido de impregnar o seu
domínio de uma cultura unificada, submissa — pelo menos a nível

34, Op.cit., pg. 8.


35. “ A partir do século VIII, o comércio europeu está condenado a desaparecer
nesse extenso quadrilátero marítimo. Os cristãos — como diz pitorescamente Ibn
Khaldun — não conseguem que flutue no Mediterrâneo nem uma tábua. Nestas
costas, que outrora se comunicavam, dividindo os mesmos costumes, necessidades,
e idéias, defrontam-se agora duas civilizações, ou melhor, dois mundos estranhos e
hostis, o da Cruz e o do Crescente. O equilíbrio econômico da Antigüidade, que
sobrevivera às invasões germânicas, rompe-se ante a invasão do Islã.” (Ibid ., pgs.
8-9.)
56 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

ideológico — ao poder central soberanamente exercido pela insti­


tuição papal. O isolamento econômico da Europa, em conseqüên­
cia do declínio do comércio externo, sem dúvida haveria de favo­
recer este processo de unificação.
A cultura dominante assim unificada, entretanto, haveria de
perder as suas características de cultura urbana. De fato, como a
sociedade feudal estava voltada quase exclusivamente a atividades
econômicas rurais, os centros urbanos deixariam de exercer as suas
funções comerciais e, conseqüentemente, acabariam por perder
também sua preeminência cultural. Assim, as antigas cidades, na
sua grande maioria, ou ingressariam em uma fase de absoluta deca­
dência, ou se transformariam em meros centros administrativos da
Igreja, assumindo as características das assim chamadas cidades
episcopais. Em conseqüência deste fato, a contradição entre cul­
tura dominante e popular, que, por ocasiãg dos primeiros enfrenta-
mentos dos bárbaros com a civilização romana, havia sido enco­
berta pela oposição entre cultura urbana e rural, viria agora tomar
a forma que se tornaria característica para a Idade Média, ou seja, a
forma de oposição entre cultura eclesiástica e profana. E evidente
que o termo cultura profana estava longe de equivaler ao nosso
conceito de cultura popular, uma vez que incluía todas as manifes­
tações culturais que ficavam à margem da Igreja, tanto as do povo
como as da nobreza latifundiária e das cortes monárquicas. Ocor­
ria, entretanto, que a Igreja, que de fato promovia a cultura domi­
nante, julgando-se a única detentora da verdadeira cultura e consi­
derando o povo como sendo inculto e ignorante, negava a própria
existência da cultura popular. A oposição cultura eclesiástica x
cultura profana, portanto, que não era outra coisa que uma forma
sob a qual se apresentavam as contradições culturais na perspectiva
da Igreja, em ignorando as classes populares, referia-se exclusiva­
mente a oposições existentes no âmbito da classe dominante. A
real existência de tais oposições, nas quais a cultura eclesiástica
sempre desempenhava o papel dominante, se esclarecem na me­
dida em que se observa que os principais centros culturais laicos
passaram — pelo menos em parte — a aderir à cultura eclesiástica
e, conseqüentemente, a desdenhar a profana.36
Quanto às classes populares, segundo as pesquisas de R. Bou-
truche, nesta sociedade essencialmente rural, a produção agrícola

36. Assim, por exemplo, um sábio que hoje qualificaríamos de “ intelectual


liberal” , como Alcuíno, na corte de Carlos Magno, desconsiderava com o maior
desprezo qualquer tipo de música que não fosse a da Igreja: “ Admitir jograis e
dançarinos em nossa casa equivale a admitir uma multidão de espíritos malignos” .
(Cf. H. Rayner, A Social History of Music, Londres, Narrie & Jenkins, 1972;
História Social da Música, Rio de Janeiro, Zahar, 1981, pg. 35.)
A M O N O D IA 57

se fundamentava ainda, em grande parte, no trabalho escravo.37


Só muito gradualmente foi tomando maior vulto o sistema de ser­
vidão feudal. É provável que a substituição do escravo pelo servo se
devesse principalmente ao fato de que uma grande parte dos tra­
balhos envolvidos na agricultura demandava uma maior concen­
tração de mão-de-obra nos períodos de semeadura e colheita. As­
sim, os escravos devem ter-se tornado excessivamente dispendio­
sos, uma vez que era necessário alimentá-los também durante os
meses de relativa ociosidade. Já os servos — os antigos colonos dos
romanos — , que cultivavam parcelas de terra que lhes haviam sido
confiadas pelos senhores, sustentando-se do produto do próprio
trabalho, nas épocas de maior acúmulo de serviço facilmente po­
diam ser arregimentados para participar do trabalho junto aos es­
cravos.’8 As relações de produção que se estabeleciam entre as
classes dominantes e trabalhadoras, as quais no sistema escrava-
gista ainda muito se assemelhavam a relações entre homens e ani­
mais de carga, tiveram pouco a pouco que adaptar-se às novas con­
dições. Em lugar da relação de posse da mão-de-obra, haveria de
estabelecer-se uma relação pela qual o servo que habitava e explo­
rava uma parcela de terra tinha que pagar por este direito ao senhor
proprietário do solo uma renda, geralmente sob a forma de mão-
de-obra ou de produtos in natura.
É importante observar-se que esta relação de servidão feudal
geralmente se fundamentava não numa espécie de contrato, sob a
forma de um acordo explicitamente firmado entre servo e senhor
para determinar os direitos e deveres de cada uma das partes, mas
no direito consuetudinário, isto é, num conjunto de normas a se­
rem tacitamente aceitas.
Ora, a consolidação dessas normas, necessária para a constante
reprodução de tais relações feudais, era uma tarefa a nível de Es­
tado, pela qual a Igreja havia assumido a responsabilidade. Caberia,
portanto, à Igreja o exercício de uma dominação cultural voltada,
entre outros objetivos, a definir inequivocamente a estrutura de

37. Seigneurie et Féodalité, Paris, 1959, pgs. 126 e segs. Cf. também J. Dhont:
“ A sociedade do império carolíngio, enquanto prolongamento da Antigüidade,
baseava-se no escravagismo, constituindo, na Europa, a última formação social
fundamentada nessa instituição. É verdade que, nessa época, a escravidão de certa
forma se havia suavizado, deixando entrever a tendência de converter-se na servidão
da gleba, isto é, na última forma jurídica na qual ainda não se reconhecia a liberdade
individual. Os documentos carolíngios, entretanto, ainda se referem inequivoca­
mente a escravos” . (Das frühe Mittelalter, Frankfurt, Fischer, 1967; “ La Alta
Edad Media” , in: Historia Universal Siglo Veintiuno, México, 4? ed., 1974, vol.
10, pg. 23.)
38. Cf. G. Duby, L 'Economie Rurale et la Vie des Campagnes dans l ’Occident
Médiéval, Paris, 1962.
58 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

classes, a garantir a autoridade dos representantes das classes domi­


nantes e a justificar as relações feudais como necessárias e imu­
táveis.39

O Canto Gregoriano

O Canto Gregoriano!, como canto monódico unificado de uma


Igreja que se responsabilizava por uma tal missão social, necessa­
riamente haveria de ser organizado de forma a favorecer a difusão
dessa ideologia. Neste sentido, K. Jeppesen observa corretamente
que o sistema modal, instituído para reger a organização mélica do
Canto Gregoriano, deve ser entendido como “ um princípio disci-
plinador” , com auxílio do qual se tratava de estabelecer uma or­
dem adequada no universo ainda caótico e incontrolável do mate­
rial sonoro musical.40Este princípio viria compreender um sistema
de oito escalas, isto é, de oito formas do repertório mélico, pelo
qual, seguindo o modelo dos modos da Antigüidade, se estabelecia
uma organização racional das alturas sonoras envolvidas na mo-
nodia.
A discrepância que se observa entre estes modos eclesiásticos e
aqueles da Antigüidade tem sido explicada como mera conseqüên­

39. Note-se, neste sentido, que Adalberon, bispo de Remos, em fins do século
X , achara por bem declarar que “ a ordem eclesiástica não compõe senão um só
corpo. Em troca, a sociedade está dividida em três ordens. Além da já citada, a lei
reconhece outras duas condições: a do nobre e a do servo, que não são regidas pela
mesma lei. Os nobres são os guerreiros, os protetores da Igreja, que defendem a
todo o povo, aos grandes da mesma forma que aos pequenos, e ao mesmo tempo se
protegem a si mesmos. A outra classe é a dos servos: esta raça de desgraçados que
não possuem nada sem sofrimento, que fornecem provisões e vestimenta a todos,
pois os homens livres não podem valer-se sem eles. Assim, poi.v, a cidade de Deus,
que é tomada como una, na realidade é tripla. Uns rezam, outros lutam e outros
ainda trabalham. As três ordens vivem juntas e não podem ser separadas. Os ser­
viços de cada uma dessas ordens permitem os trabalhos das outras duas e cada uma
por sua vez presta apoio às demais” . (In: J. Pinsky, Modo de Produção Feudal, São
Paulo, Global, 1982, pg. 71.)
Também nas Epístolas de São Paulo aos Romanos, lê-se o seguinte: “ Estais
todos submetidos às autoridades superiores, pois não há autoridade que não venha
de Deus e as que existem por Deus foram estabelecidas. Assim, quem enfrenta a
autoridade enfrenta a ordem estabelecida por Deus, e aqueles que a enfrentam
atraem para si sua própria condenação” . (Ibid., pg. 95.)
40. Contraponto, Copenhagen, Wilhelm Hansen, 1931; Counterpoint — The
Polyphonic VocalStyle of the Sixteenth Century, Englewood Cliffs, Prentice-Hall,
1939, pg. 59.
A M O N O D IA 59

cia de uma interpretação equivocada dos textos teóricos antigos


disponíveis, por parte dos intelectuais da Idade Média.41 E preciso
não se esquecer, entretanto, que, embora tais equívocos realmente
devam ter ocorrido, o sistema modal eclesiástico, de fato, fora uma
resposta teórica que havia de satisfazer a exigências, as quais, sob
muitos aspectos, diferiam daquelas das Cidades-Estados da Grécia
clássica. Os antigos nomoi haveriam de ser abandonados, não ape­
nas por sua origem pagã, mas sobretudo pelo fato de que os valores
éticos que lhes eram atribuídos já não correspondiam às novas exi­
gências ideológicas. Isto, no entanto, não impediria que certos usos
tradicionalmente vigentes em relação aos nomoi continuassem a
ser adotados. Principalmente em se tratando das formas de reci­
tação musical dos salmos, nota-se, por exemplo, que um mesmo
modelo de trajetória melódica freqüentemente servia de suporte
para vários textos inteiramente diversos. Por outra parte, também
era comum que um mesmo texto se sujeitasse a diversas formações
melódicas distintas.
Assim, por exemplo, o texto da assim chamada doxologia —
“ Gloria Patri, et Filio, et Spiritu Sancto. Sicut erat in princípio,
et nunc, et semper, et in saecula saeculorum; Amen” 42 — , que se
inseria nos salmos recitados no Introito da missa, era cantado em
oito versões distintas, de acordo com os oitos modos do sistema
eclesiástico. Trata-se de um texto que evidentemente desempenha
a função elocutória imediata de glorificar:n Note-se, entretanto,
que, além de uma glorificação, o texto faz referência a algo mais,
não bem definido, algo de misterioso que permanece, que sempre
foi e que eternamente será. Não se trata, portanto, de um mero ato
de glorificar as entidades espirituais que compõem a Santíssima
Trindade, ou, pelo menos, esta glorificação se reveste aí de um
caráter todo peculiar, que envolve a idéia de algo eterno, imutável e
necessário. O texto, portanto, em assumindo a peculiaridade de
uma fórmula ritual, faz alusão exatamente aos traços de necessi-

41. Originalmente, o sistema modal eclesiástico limitava-se a apenas quatro


modos, designados pelos numerais gregosprótos, deuteros, tritos e tetrdrdos. Pos­
teriormente, cada um destes modos passaria a apresentar-se sob duas formas dis­
tintas, uma chamada autêntica e a outra plagal. Resultaram, assim, as oito escalas
que, por volta do século X , acabariam por retomar os nomes dos antigos modos
gregos, porém de uma forma que difere do sistema da Antigüidade: as notas iniciais
das escalas autênticas nos modos dórico, frlgio, lídio e mixolídio passaram a formar
um tetracórdio ascendente a partir de RE, ao passo que na Antigüidade formavam
um tetracórdio descendente a partir de M I.
42. “ Glória ao Pai e ao Filho e ao Espírito Santo. Assim como era no princípio,
agora e sempre, e por todos os séculos dos séculos; assim seja” .
43. A palavra doxologia, em grego, já se refere diretamente ao ato de glorificar.
60 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

dade e imutabilidade que, como acima verificamos, haveriam de


ser atribuídos às relações feudais.
O texto, portanto, certamente contém elementos que eventual­
mente podiam favorecer o seu uso no processo de dominação cul­
tural, principalmente se a trajetória melódica viesse a assumir uma
forma capaz, de realçar adequadamente determinados aspectos pielo
menos em parte nele já existentes. E basta uma sucinta análise das
formações melódicas envolvidas para nos dar uma idéia dq desem­
penho dessa função social. Tomemos, para tal, a forma sob a qual
se nos apresenta a doxologia no primeiro modo — o dórico — ,
forma esta que aqui reproduzimos.44

- 1 = 5=
eX Í7> (a. So.e.- ou - - - lo row i A ~ m en.

A primeira coisa que nos chama a atenção quando observamos


esta estrutura melódica é o uso de uma determinada altura sonora
— LA — , na qual se concentra a maior parte do texto. Esta altura
que, pela sua constante recorrência, acaba por adquirir uma função
específica, sugerindo uma espécie de \dominação sobre as outras,
é designada pelo termo ^dominante: De fato, toda a trajetória per­
corrida pela voz parece estar vinculada a esta dominante, com a
qual mantém uma relação de íntima dependência. Ora, só este fato
de que a maior parte do texto é recitada nessa altura sonora domi­
nante já contribui para impregná-lo de um caráter autoritário favo­
rável ao desempenho da função social acima referida.
Observe-se em seguida que a estrutura global apresenta uma
articulação em três frases. A primeira e a segunda, ambas subdivi-

44. Cf. K. Jeppesen, op. cit., (pgs. 64-7), que apresenta todas as versões da
doxologia, de acordo com os oito modos eclesiásticos.
A M Ó N O D IA 61

didas em dois membros, um antecedente e outro subseqüente, são


quase idênticas. Em ambos os membros antecedentes, a voz trans­
creve uma trajetória em sentido ascendente, pela qual atinge a
dominante para nela permanecer. Nos membros subseqüentes, a
voz passa a oscilar em torno da dominante, imprimindo a esta uma
maior ênfase expressiva. A terceira frase, finalmente, inicia-se de
forma ainda idêntica, mas, ao atingir a palavra saeculorum, inten­
sifica o seu movimento para, por ocasiãò do amen, concluir sua
trajetória na altura RE, a assim chamada finatis.
Trata-se, portanto, de uma estrutura em que, repetidamente,
a voz alcança a dominante, permanece insistentemente sobre esta,
enfatizando-a ainda por um movimento oscilatório, para finalmente
ser reconduzida a um estado de repouso que é representado pela
finalis. Ora, parece óbvio que, nesta estrutura, o misterioso per­
manecer, bem como o sempre foi e o eternamente será, que já se
encontravam implicitamente presentes no texto, encontram na
trajetória melódica uma realização quase palpável.
A particularidade desta estrutura melódica, no entanto, reside
na forma como a voz atinge a dominante, como se configura o
movimento oscilatório em torno da mesma e como se dá a recon­
dução á finalis. São estes os aspectos que haveriam de ser sistema­
tizados por meio dos modos eclesiásticos. Cada modo, portanto,
visando esta sistematização, além de determinar uma escala, sob a
forma de um repertório ordenado de alturas sonoras, tinha que
definir os elementos portadores das funções de dominante e finalis.
É exatamente por esta determinação da escala e pela identifi­
cação de dominante e finalis que os diversos modos se distinguem
uns dos outros. No caso do modo dórico, próprio à estrutura aqui
analisada, ele obedece à escala RE-MI-FA-SOL-LA-SI-DO-RE,
caracterizando-se ainda pela localização da dominante no quinto e
da finalis no primeiro grau.
Observe-se, entretanto, que a trajetória melódica que aqui ana­
lisamos não faz uso da totalidade dos elementos desse repertório.
De fato, destes elementos selecionaram-se apenas cinco — RE-FA-
SOL-LA-DO — , cuja seqüência se nos apresenta como uma es'cala
pentatônica, isto é, uma escala desprovida de semitons e que con­
tém dois saltos de terça menor — RE-FA e LA-DO. A estrutura
desta escala pentatônica é perfeitamente simétrica em relação ao
eixo SOL. É o seu núcleo centrai — FA-SOL-LA — que oferece
o espaço para toda a parte da trajetória onde a voz se movimenta
por passos (ou graus conjuntos). No extremo superior deste nú­
cleo está situada a dominante, a qual é atingida, no membro ante­
cedente de cada frase, por um percurso do núcleo em sentido as­
cendente. Os extremos — inferior e superior — da escala pentatô­
nica, ou seja, as notas RE e DO, localizam-se á distância de uma
62 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

terça menor dos respectivos extremos do núcleo. Estas notas repre­


sentam as alturas sonoras que comparecem com menos freqüência
no decorrer da trajetória. A altura RE, de fato, como finalis, é atin­
gida apenas uma única vez, na conclusão final, e a nota DO Repre­
senta uma altura pela qual a voz passa somente por ocasião do
movimento oscilatório ao redor da dominante.
Ora, entendemos poder concluir que, tanto a simetria da es­
cala, como o fato de que os saltos que comparecem na trajetória são
sempre conseqüência direta da própria estrutura da escala, são fa­
tores que imprimem à melodia as características — perfeitamente
perceptíveis numa audição atenta — de impessoalidade e de depen­
dência de uma instância superior. E ocorre que, se analisarmos não
somente as outras versões da doxologia, mas também espécimes
inteiramente distintos do Canto Gregoriano, sempfe-semes -leva­
dos à verificação de que, de uma maneira ou de outra, estas estru­
turas melódicas são impregnadas 'de características muito simila­
res, as quais se nos apresentam, portanto, como sendo gerais para
todo o canto monódico próprio à Igreja medieval.
São características desta natureza que sem dúvida eram rele­
vantes sempre que se tratava de dotar a liturgia da austeridade pe­
sada e opressora necessária para o exercício do complexo sistema
cultural e ideológico que a Igreja havia edificado sobre as bases do
cristianismo a fim de poder desempenhar, como única detentora da
cultura dominante, a função social que lhe havia sido consignada.
Esta austeridade pesada e opressora também está presente nas
formas arquitetônicas do estilo românico, que se expandira a partir
dos mosteiros organizados de forma unitária principalmente sob a
regra dos beneditinos. A. Hauser considera que “ seria natural
relacionar não apenas as proporções, mas também as formas pesa­
das, amplas e poderosas da arquitetura românica com o poder polí­
tico de seus construtores, e considerar esta arquitetura como a ex­
pressão de uma rígida autoridade de classe e um espírito de casta
fechado” . 45

45. Historia Social de la Literatura y el Arte , vol. 1, pg. 242. A. Ponce nos dá
uma idéia do poder social exercido em nome dessa austeridade, em se referindo às
escolas monásticas, que eram as tfnicas instituições de ensino a que o povo tinha
acesso. Nestas escolas, entretanto, “ não se ensinava a 1er e nem a escrever. A
finalidade não era instruir a plebe, mas familiarizar as massas camponesas com as
doutrinas cristãs e, ao mesmo tempo, mantê-las dóceis e conformadas” . (Educação
e Luta de Classes, pg. 87.) De fato, não tinha sentido perder tempo com a educação
do povo, se, de acordo com a opinião dos monges, os trabalhadores, pelo simples
fato de serem analfabetos, “ apresentavam maior resistência à fadiga e eram capazes
de suportar uma tarefa mais longa e mais penosa” . (Cf. J. L. M. Besse, Les Moines
de l 'Ancienne France, pg. 249, citado ia: A. Ponce, op. cit., loc. cit.)
A M O N O D IA 63

De acordo com estas considerações, julgamos perfeitamente


válida a hipótese de que estão equivocados aqueles aficionados do
culto à música antiga, que ainda hoje se yêem na obrigação de assu­
mir como que um estado de êxtase estético diante do Canto Grego­
riano; pois, na verdade, estes cantos foram produzidos visando
nunca o deleite, mas sempre a função de dominação cultural.46 No
mesmo sentido estariam equivocados também os mais famosos
grupos corais que atualmente se ocupam em divulgar o Canto Gre­
goriano, os quais normalmente se esforçam por executá-lo de for­
ma a ressaltar a beleza das trajetórias melódicas; pois, na verdade,-
esta música fora concebida nunca para ser bela, mas sempre para
ser eficaz no desempenho da sua função social.

46. É neste sentido que Mário de Andrade afirmava que ‘ ‘se é certo que a gente
escuta com prazer a ‘Salve Regina’, por exemplo, quem escuta uma “ Missa Gre­
goriana” , com ouvidos simplesmente artísticos, se enfara e se distrai. E que o gre­
goriano não foi feito para a gente escutar; mas para a gente se deixar escutar. Ele
provoca insensivelmente o estado de religiosidade” . (Pequena H istória da M ú s ic a ,
São Paulo, Martins, 5? ed., 1958, pg. 41.) Na nossa opinião, entretanto, não se
trata de provocar apenas um estado de religiosidade, mas sobretudo um estado de
submissão.
A polifonia

Enquanto, por todo o primeiro milênio da era cristã, a monodia


exercia uma absoluta predominância em todas as atividades mu­
sicais, chegaria o momento em que se totnariam cada vez mais
freqüentes as fontes que se referem a manifestações polifônicas. O
canto monódico, onde um texto verbal era recitado em observância
a uma estrutura melódica, deixaria de ser a única prática musical
considerada como válida e o ato de cantar começaria a ser dispu­
tado pelo canto polifônico, onde são várias as melodias que simul­
taneamente servem de suporte ao texto. Tratava-se de um fenô­
meno de relevante importância, que viria abrir as perspectivas para
novos modos de comunicação e viabilizar o processo dinâmico ca­
racterístico tanto da música ocidental em geral quanto do posterior
surgimento de uma linguagem musical em particular.
É tendo em vista esta importância que julgamos oportuna aqui
uma breve discussão das condições envolvidas .no nascimento e
primeiro desenvolvimento da polifonia, observando que a expli­
cação que a tradicional História da Música nos oferece para este
fenômeno nos parece inteiramente insuficiente. Seria importante,
neste assunto, a abertura de novas perspectivas de análise que, pelo
menos a nível hipotético, possam esclarecer sobre a função social
desempenhada pela polifonia medieval por ocasião dos começos do
seu desenvolvimento.

A heterofonia

Os tratados mais antigos de História da Música normalmente


localizavam o surgimento das primeiras manifestações de uma po­
lifonia ainda incipiente — o assim chamado organum, onde várias
vozes se movimentam por trajetórias paralelas — nas atividades
desenvolvidas no âmbito dos mosteiros. Trata-se de uma opinião
A POLIFONIA 65

que provavelmente se fundamentava no fato de que os documentos


mais antigos, que nos informam sobre tais práticas, realmente são
de origem monástica. Não se deve esquecer, entretanto, que, nessa
época, as instituições da Igreja eram as únicas que se encontravam
em condições de documentar quaisquer manifestações culturais,
sejam elas eclesiásticas ou profanas. Seria perfeitamente compreen­
sível, portanto, que a Igreja, através de seus intelectuais orgânicos
— que eram os monges —, tratasse de registrar certas manifes­
tações profanas, principalmente na medida em que estas diziam
respeito a um campo tão importante a nível ideológico como era o
caso da prática musical. Por outro lado, tudo indica que o clero,
que, na sua preocupação de desircumbir-se da melhor forma pos­
sível de suas atribuições de dominação cultural, havia instituído o
canto monódico, cuja eficácia por muito tempó ainda não dava os
mínimos indícios de desgaste, dificilmente assumiria atitudes ca­
pazes de conduzir a uma efetiva ruptura da predominância deste
modo de comunicação.
Assim, a explicação, por exemplo, que nos apresenta Ambros,
segundo a qual o organum teria sido um fenômeno peculiar para
cujo surgimento deviam ter contribuído principalmente as “ espe­
culações teóricas e experimentações práticas” efetuadas por alguns
monges excêntricos,1 hoje já não pode mais ser aceita. De fato,
os historiadores mais modernos freqüentemente atribuem a origem
do organum às tradicionais manifestações da cultura popular, que
gradualmente teriam sido absorvidas pela Igreja.
Neste sentido, P. Bekker considera que, provavelmente já por
volta do ocaso do primeiro milênio, o organum deve ter sido prati­
cado como um hábito popular, que consistia em acrescentar ao can­
to monódico uma segunda voz.2 Sem dúvida, para uma hipótese
desta natureza encontram-se fundamentos em certos documentos
da época, como, por exemplo, na descrição do pai? de Gales, feita
por Gérald de Barry no século X II, onde se afirma que já fazia
tempos que mesmo as crianças cantavam a duas vozes e que este
costume teria sido introduzido pelos normandos.3 Embora consi­
dere problemática a determinação da origem de tais hábitos, Bekker
tenta uma explicação que ele mesmo qualifica como demasiada­
mente “ naturalística” íe, por isto mesmo, insuficiente para justi­
ficar o fenômeno. O raciocínio baseia-se na suposição de que pre­
sumivelmente as vozes dos povos ocidentais, e principalmente
aquelas dos nórdicos, se teriam caracterizado por uma diferen-

1. Cf. A . W . Ambros, Gescbicbte d e r M u s ik , vol. II, pgs. 135 e segs.


2. M u sikgeschicbte ais Geschichte d e r M usikalischen F o rm w a n d lu n g e n ,
Stuttgart, Deutsche Verlags-Anstalt, 1926, pg. 40.
3. Citado em J. Subirá, H istoria de la M ú s ic a , vol. 1, pg. 241.
66 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

ciação mais acentuada entre vozes agudas e graves. Em virtude


disto, sempre que vários indivíduos cantassem juntos, facilmente
o fariam em movimento paralelo entre as vozes distintas.4
Por outro lado, encontramos em Ambros um notável levanta­
mento de instrumentos musicais que a Idade Média havia herdado
da barbárie.5Note-se, entretanto, que este autor se refere apenas
muito superficialmente à influência que tais instrumentos devem
ter exercido no processo do primeiro desenvolvimento das práticas
polifônicas/’ não lhe atribuindo absolutamente a devida impor­
tância, evidentemente por haver descartado toda perspectiva de
considerar a origem da polifonia no âmbito da cultura profana ou
mesmo popular. No entanto, julgamos fundamental observar que,
na medida em que a música da cultura dominante — que era a
monodia — se configurava como uma música essencialmente vo­
cal, o uso dos instrumentos só poderia ter sido próprio á música da
cultura popular. No caso de comprovar-se um papel decisivo das
práticas instrumentais nas primeiras manifestações polifônicas,
portanto, concluir-se-á também sobre a origem popular das mes­
mas.
Ora, ao lado da harpa, que havia sido o instrumento aristocrá­
tico da barbárie, usavam-se não apenas diversos tipos de instru­
mentos de sopro, mas também instrumentos de corda tocados com
arco — precursores dos nossos violinos, violas e violoncelos. A
denominação címbrica era crwth\ os anglo-saxões os chamavam
crudh\ os gauleses cruit\ e os ingleses crowth (crotta). Os árabes
usavam instrumentos similares, com os nomes de rebeca, ribible,
reberbe e rebebe. Em latim vulgar, de acordo com a palavra fides
( = corda), o instrumento veio a chamar-sefidula ou vidula e, mais
tarde, viella ou viola. O cavalete deste instrumento diferia daquele
do violino moderno, por ter sido plano em lugar de convexo, de
onde se pode concluir que necessariamente as cordas eram tocadas
todas simultaneamente. Um outro instrumento, derivado deste, o
organistrum, na França ainda é conhecido com o nome de vieille:
o arco é substituído por um mecanismo pelo qual a borda de uma
pequena roda fricciona as cordas — também todas ao mesmo tem­
po — na medida em que se aciona uma manivela. Paralelamente ao
espelho do instrumento é instalado um teclado por meio do qual se
controla o comprimento da corda mais aguda, permitindo que nes­
ta se possa executar uma melodia. Um outro instrumento ainda,
usado principalmente entre os povos de origem celta, era a gaita de

4 . Op. c it., lo c . cit.


5. O p . c it . , pg. 135.
6. Ib id . , pg. 135.
A POLIFONIA 67

foles (cornamusa), que sobrevive ainda em algumas culturas tradi­


cionais, como, por exemplo, na Escócia.7
Todos estes instrumentos têm em comum a particularidade de
sempre produzirem simultaneamente diversos sons de alturas dis­
tintas. Junto a uma melodia produziam-se sons continuos, de al­
tura fixa, ou seja, vozes que não se movimentavam.8 O resultado
era uma espécie de massa sonora, de características rudes e agres­
sivas inteiramente estranhas à limpidez civilizada do canto monó-
dico. Ao que tudo indica, trata-se de certas práticas, tanto na mú­
sica instrumental como no acompanhamento instrumental do can­
to, a que os gregos já faziam referência com o termo de hetero-
*fonia\ simultaneamente à execução — vocal ou instrumental — de
uma melodia, produziam-se outros sons distintos, sempre instru­
mentais, que, sem coincidir exatamente com essa melodia, acom­
panhavam a sua trajetória.
Quanto à inserção dessa heterofonia na cultura popular da Ida­
de Média, tudo indica que era uma música vinculada principal­
mente às festividades socialmente importantes na vida cotidiana do
povo e não há dúvida de que, por meio de tais práticas diretamente
provenientes da tradição bárbara, acabaria por estabelecer-se uma
real oposição aos valores instituídos pela cultura dominante.
Esta oposição, entretanto, nunca pôde impedir uma influência
mútua entre as culturas nela implicadas. Assim como as formas
civilizadas do canto monódico freqüentemente eram reproduzidas
no âmbito da cultura popular, acontecia também que a Igreja, prin­
cipalmente quando se tratava de mosteiros mais afastados da fisca­
lização cultural de Roma, nem sempre pôde ficar imune aos barba-
rismos instrumentais da música profana. Não se deve esquecer
que, afinal de contas, os membros do clero geralmente eram indi­
víduos provenientes de meios portadores da cultura profana. Assim
se explica não apenas a existência de inúmeras pinturas, gravuras e
talhes da época, que mostram coros de anjos que se acompanham
com harpas, rebecas, organistros, trompas e trombones, mas ainda
o fato de que, em pleno século IX , o monge Tuotilo, do mosteiro de
Saint-Gall, cantava os hinos gregorianos acompanhando-se ao
crowth.9
A infiltração da heterofonia na Igreja, entretanto, deve ser
considerada como um fenômeno mais ou menos esporádico, não se
configurando de forma alguma como uma tendência generalizada.
De fato, a Igreja não abriria mão da primazia daquele modo de

7. De acordo com Ambros, op. c it . , pgs. 33 e segs.


8. Trata-se do assim chamado bordão.
9. Citado em A . Salazar, op. cit.
68 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

comunicação que se havia mostrado tão eficaz na defesa da sua


posição dominante, que era o Canto Gregoriano.10 Enquanto isto,
as classes populares — os camponeses — , herdeiros legítimos da
tradição bárbara, não tardariam em encontrar nas práticas hetero-
fônicas um dos meios que lhes possibilitava aquela identificação so­
cial que, a nível de cultura, os distinguia da classe dominante.11 Na
medida, portanto, em que as manifestações heterofônicas se trans­
feriram das comunidades bárbaras para as classes populares da civi­
lização, elas haveriam de sofrer uma substancial alteração nas suas
funções sociais: em lugar de simplesmente contribuírem para ga­
rantir a manutenção da estrutura gentílica, agora passaram a cons­
tituir um importante elemento de sustentação no confronto com a
cultura dominante.12
É evidente que tais manifestações heterofônicas de forma al­
guma não se enquadram no conceito de polifonia, pois este con­
ceito implica estruturas musicais baseadas na simultaneidade de
duas ou mais vozes que se movimentam segundo trajetórias dis­
tintas. Não resta dúvida, entretanto, que certos princípios ine­
rentes à heterofonia — como a distinção entre consonâncias e dis­
sonâncias — podiam ser aplicados â música vocal, dando origem a
incipientes formas polifônicas e desencadeando um processo ino­
vador que implicaria profundas alterações do próprio modo de can­
tar. E este processo se deu, em diversas regiões geográficas, em
momentos históricos distintos, e resultando em formas de canto
também diferenciadas, entre as quais se destacam o gymel, ofaux-
boudon e o organumparalelo.
Entendemos que as novas formas de canto polifônico que aí
começaram a delinear-se não foram senão o resultado dos esforços
desenvolvidos pelas classes populares para dar respostas à crescente
exploração e injustiça a que o sistema feudal as submetia. O surgi-

' 10. M u ito pelo contrário, a Igreja se opunha violentamente à prática não só da
heterofonia, mas de toda música instrumental em geral. H. Raynor nos informa
que, na época carolíngia, a Igreja havia proibido os cristãos de tocarem harpa. (H is ­
toria Social da M ú sic a , pg. 34.)
11. Trata-se de um fenômeno que se assemelha de certa forma àquele que hoje
freqüentemente se enquadra no conceito de folc lore. “ As pessoas parece que estão
se divertindo, mas elas fazem isso para não esquecer quem são” . (C. R. Brandão, O
Q ue é F o lc lo re , Brasiliense, 2? ed., pg. 10.)
12. A título de mera hipótese, pode-se supor também que a heterofonia da Idade
Média tenha tido relevantes funções em certos tipos de rituais ligados às conspi­
rações populares, às quais a nossa tradicional “ História da Civilização” pratica­
mente não faz nenhuma alusão, mas cuja existência é confirmada pelas capitulares
expedidas pelo Estado carolíngio, muitas das quais se referem à repressão de orga­
nizações populares de caráter defensivo, visto que estas, muitas vezes, tendiam a
transformar-se em movimentos sociais de rebelião dos pobres contra os ricos. (Cf.
J. Dhont, La A lta E d a d M e d ia , pgs. 41-2.)
A POLIFONIA 69

mento dessas primeiras manifestações polifônicas vem qualificar-


se, portanto, a nível político, como a emergência de formas ainda
incipientes de movimentos sociais. É verdade que, no estado de
relativa dispersão em que se encontrava a população rural, estes
movimentos não dispunham ainda das condições necessárias para
aquela realização que, logo após, se verificaria por ocasião da reto­
mada intensiva do desenvolvimento das cidades. É exatamente esta
polifonia urbana que em seguida submeteremos às nossas inves­
tigações.

As organa da Escola de Notre-Dame

Voltando a nossa atenção para as formas que nos séculos X II e


X III tomaram as práticas polifônicas, principalmente na catedral
de Notre-Dame, em Paris, surpreender-nos-emos tanto com o ra­
dicalismo que viera a assumir a oposição ao Canto Gregoriano,
quanto com o fato de que estas práticas acabariam por integrar-
se no serviço litúrgico da Igreja. Como exemplo, transcrevemos
aqui um organum sobre o texto Aleluia, que havia sido acrescen­
tado à antífona Navitatis das segundas vésperas da festa da Nati­
vidade da Santíssima Virgem Maria. Junto a este organum, repro­
duzimos, para efeito de comparação, ainda a tradicional forma gre­
goriana do mesmo Aleluia. ’'
Observe-se que a melodia gregoriana serviu de modelo para a
vox principalis que se localiza na parte inferior do o rg anu m De
fato, são as mesmas notas que comparecem na mesma ordem e
como portadoras das mesmas sílabas da palavra Aleluia. Trata-se,
entretanto, apenas do aproveitamento da sucessão de alturas so­
noras e, de forma alguma, do emprego da melodia. Na realidade, a
melodia gregoriana deixou de existir: a trajetória acabou por ser
decomposta em elementos individuais e a estes foram atribuídas
durações absurdamente longas, de modo que a melodia, como enti­
dade cinética, de fato foi destruída.
Quanto ao texto, que se resume à palavra Aleluia, como ato
(■locutório ele sem dúvida consiste no ato de jubilar. Na versão
gregoriana, o movimento da voz imprime a este ato características
específicas. A trajetória que, numa espécie de recitação natural,

13. Este o rg a n u m , que data do século X II, é de autoria de Perotin. Mns.:


Montpellier, Faculté de Médicine, H 196, foi. 145-6. Fac-símile in : Y . Rokseth,
1‘olyphonies du X I I I eSiècle, Paris, 1935, vol. 1. Repr. in\ C. Parrish & J. F. Ohl,
Masterpieces o fM u s ic Before 1750, Nova Iorque, Norton, pgs. 24-6.
70 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

ORGANUM
A P O LIF O N IA
A POLIFONIA 73

não se afasta mais de uma quinta da altura inicial, caracteriza-se


pela predominância do movimento ascendente, percorrendo por
duas vezes as alturas FA-SOL-LA e, finalmente, sobre a sílaba -lu,
FA-LA-DO. Ora, é muito comum associarem-se os movimentos
melódicos ascendentes â alegria e os descendentes à tristeza. De
acordo com esta conotação, a preponderância dos movimentos as­
cendentes resulta como uma maior ênfase dada ao júbilo que já
vem expresso no texto.14 O fato, entretanto, de que esta ascensão
em nenhum momento chega a exceder o âmbito de uma quinta, faz
com que este júbilo permaneça contido dentro dos limites apro­
priados à austeridade monacal.
Já na versão polifônica, com a exagerada dilatação a que são
submetidas as sílabas A-Le-Lu-Ia, desaparece, na voz principal,
não somente o sentido lingüístico da palavra, mas também a rele­
vância musical dos movimentos melódicos ascendentes. O ato elo-
cutório, portanto, é completamente destruído e, com isto, a pa­
lavra Aleluia assim proferida perde a sua qualificação como ato de
fala. Como única função resta à vox principalis ainda a de servir de
suporte para as duas vozes superiores que lhe são acrescentadas e
que acabam por imprimir à estrutura global características inteira­
mente novas.
Nestas vozes, a constante recorrência de alguns poucos mo­
delos rítmicos extremamente curtos e bem marcados parece re­
cortar as respectivas trajetórias em pequenos fragmentos, produ­
zindo o efeito de gestos bruscos e angulosos, como numa alusão a
exclamações provenientes de uma multidão de indivíduos, excla­
mações estas que se multiplicam de forma confusa e caótica, resul­
tando, entretanto, no seu conjunto, também numa manifestação
de júbilo. Note-se como, de acordo com a palavra Aleluia, estas
exclamações se produzem inicialmente sobre a vogal A , depois su­
cessivamente sobre E, U, e finalmente de novo sobre A . Isto signi­
fica que o texto é usado agora unicamente em função dos timbres
de suas vogais, os quais servem de veículo para as vozes da estru­
tura polifônica. Já não é mais a música que serve como auxiliar
para promover a linguagem verbal, mas é uma estrutura verbal que
serve como auxiliar para promover a música. E este fato representa
sem dúvida um aspecto nitidamente revolucionário inerente a tais
estruturas polifônicas. Tudo indica, portanto, que o ato elocutório
de jubilar, em vez de ser confiado ao ato de fala enriquecido pela
melodia gregoriana, passou a ser expresso exclusivamente pela es­
trutura musical.

14. Note-se que na seqüência D ie s irae, cantada na missa de funerais, predo­


minam os movimentos descendentes da voz.
74 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Aparentemente poder-se-ia concluir então que este tipo de poli­


fonia, substituindo a linguagem verbal, assumiria totalmente a
função de uma linguagem musical. Mostraremos, entretanto, mais
adiante, que esta conclusão é falsa, ou seja, que estas manifestações
musicais de fato ainda não podem ser enquadradas na categoria da
comunicação lingüística. Antes disto, porém, cabe assinalar o fato
de que este júbilo polifônico absolutamente não foi uma caracterís­
tica exclusiva das estruturas musicais que se assentavam em textos
como o Aleluia e onde, portanto, se tratava de expressar um júbilo
já previsto pela liturgia. Muito pelo contrário, praticamente toda a
produção polifônica que se desenvolvera nos séculos X II e X III em
torno da catedral de Notre-Dame parecia participar deste júbilo, de
uma forma inteiramente independente do texto subjacente. Ao que
tudo indica, tratava-se de uma espécie de exultação que nada tinha
a ver com a liturgia, pois dificilmente se poderia admitir que, no
âmbito da Igreja, seriam tantos os textos litúrgicos que adquirissem
a qualidade de atos de jubilar.
Ora, tudo isto nos leva a supor que o desenvolvimento deste
tipo de polifonia urbana pressupunha a existência, naquele tempo e
naquele lugar, de uma formação social onde uma camada substan­
cial da sociedade tivesse motivos relevantes para se sentir num es­
tado permanente de exultação. Tudo parece apontar a hipótese de
tratar-se de um fenômeno que só podia ter sido produzido por uma
comunidade triunfante, como resultado de um processo histórico
vinculado ao surgimento, no âmbito urbano, de novas forças so­
ciais, distintas, e possivelmente opostas àquelas que eram próprias
à ordem feudal estabelecida.
Voltemos a considerar, então, os aspectos históricos que pos­
sam ter determinado a existência dessa comunidade.
A História nos mostra como se produzira, desde o período
carolíngio, um considerável desenvolvimento agrícola, que se ma­
nifestava tanto em inovações tecnológicas — no aperfeiçoamento
do arado, na invenção do sistema moderno de atrelar os animais de
tração, na ampliação e difusão do uso do ferro nas ferramentas e na
rotação trienal dos campos de cultura — , quanto no aumento
quantitativo das áreas cultiváveis — no arroteamento de terras
ainda incultas. A esta revolução agrícola15vinculava-se um consi­
derável crescimento demográfico. Por volta do ano 1000, as con­
dições para um comércio regular em grande escala começavam a se
restabelecer. Os povos do Norte, entre os quais os piratas vikings,
que anteriormente haviam saqueado e destruído inúmeros portos

15. Cf. J. Le Goff, D as H ocb m ittela lter, Frankfurt, Fischer, 1965; “ La Baja
Edad Media ” ,in \ H is to ria U n ive rsa lSiglo V e in tiu n o , voi. II, 4? ed., 1974, pgs. 31
e segs.
A POLIFONIA 75

da Europa Ocidental, passariam a assimilar a civilização e, como


bem observa H. Pirenne, “ a pirataria constitui a primeira etapa do
comércio” .16Por outro lado, os sarracenos, que haviam impedido
qualquer comércio regular no Mediterrâneo, foram atacados e
vencidos inicialmente pelos pisanos e genoveses e, como conse­
qüência da primeira cruzada, deu-se início à reabertura do Medi­
terrâneo à navegação ocidental.
Uma conseqüência imediata destes fatos foi a revitalização das
cidades. Paralelamente à produção rural, passou a desenvolver-se,
nas aglomerações urbanas, uma importante atividade voltada ao
comércio e à indústria artesanal. A natureza dessas cidades apre­
sentava características bem distintas daquelas próprias à Antigüi­
dade. Elas já não mais se identificavam com o Estado, mas, muito
pelo contrário, se desenvolviam apesar do Estado e, muitas vezes,
em oposição ao poder feudal e eclesiástico estabelecido.
Inicialmente, os habitantes dos aglomerados urbanos, com ex­
ceção do clero e de alguns nobres que aí haviam estabelecido sua
residência, não possuíam nenhum status jurídico que os diferen­
ciasse dos camponeses. Tratava-se, portanto, de indivíduos perten­
centes às classes populares. Na sua maioria eram servos rurais que
haviam fugido ao jugo feudal, procurando nas cidades proteção e
liberdade, e que passaram a dedicar-se à produção artesanal de
objetos de uso, bem como ao pequeno comércio. Por vezes, a po­
pulação urbana passou a ser designada pelo termo burgueses (bur-
gensis) e isto, segundo J. Dhondt, indica que se começava a tomar
consciência naquela época da natureza peculiar da cidade, não ape­
nas como local em vias de adquirir certa importância econômica,
mas também como um tipo inteiramente novo de comunidade so­
cial. 17 O reconhecimento de uma relativa autonomia das cidades,
entretanto, só pôde confirmar-se na medida em que estes burgue­
ses conseguiram mobilizar todos os meios de que dispunham para
enfrentar as classes dominantes. Para se ter uma idéia do grau de
violência que esse enfrentamento podia assumir, basta lembrar o
levante dos burgueses de Milão em 1045, a revolta comunal de Le
Mans em 1069 e as lutas travadas em Worms e Colônia em 1073 e
1074.18 Não resta dúvida de que estes enfrentamentos tiveram um
relevante papel no processo pelo qual a burguesia conquistava as
novas condições necessárias para o desenvolvimento das atividades
urbanas, condições estas que acabaram por ser adquiridas final­
mente sob a forma de privilégios e franquias.

16. H istó ria Econôm ica e Social da Idade M é d ia , pg. 27.


17. Ofi. cit., pg. 297.
18. Cf. J. Le Goff, op. cit., pgs. 8 e 72.
76 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Além de lutar por sua autonomia, as populações urbanas ti­


veram que tratar de sua organização, procurando as formas mais
adequadas de uma administração própria que regulamentasse as
atividades comerciais e industriais básicas para sua existência. E
claro que esta organização variava de uma região para outra, de
acordo com o grau de autonomia que a cidade havia alcançado. A
tendência geral, entretanto, foi uma administração municipal es­
treitamente vinculada aos diversos ofícios, tanto de artesãos como
de mercadores, os quais acabariam por organiza7-se em agremia­
ções: as corporações ou guildas.
Sob o ponto de vista cultural, é evidente que a vida urbana
apresentava apelos novos, desconhecidos nas regiões rurais. O
atendimento às necessidades específicas da cidade conduziria ao
desenvolvimento de práticas culturais que, por sua própria natu­
reza, eram inteiramente estranhas às normas que na época res­
pondiam às demandas da dominação cultural. Quanto às práticas
musicais, H. Raynor mostra que se tratava, a princípio, sobretudo
de autênticas tarefas de utilidade pública.'1' Os primeiros músicos
urbanos eram membros das guildas dos vigias que, como pifaneiros
municipais (Stadtpfeifer, pifferi), eram encarregados da segurança
pública. Alguns deles — os Türmer — tinham seu lugar na torre,
de onde vigiavam a cidade e os arredores, para, por meio de um
instrumento musical adequado, dar alarma por ocasião de perigos e
calamidades. Outros tocavam os sinos da igreja, ou, na ausência
destes, providenciavam uma música apropriada. Também, se na
torre da igreja não existisse um relógio com carrilhão, as horas
tinham que ser anunciadas por instrumentos musicais. E, além de
tudo isto, tratava-se de proporcionar a música para as mais diversas
festividades — para núpcias, bem como para funerais —, ampli­
ando-se estas atividades na medida em que cresciam as necessi­
dades decorrentes de uma vida urbana cada vez mais intensa.
Os primeiros músicos a atuarem nas cidades eram indivíduos
provenientes do campo e que de lá traziam seus hábitos e suas
habilidades musicais. Ora, foi no campo que os antigos cantos de
origem bárbara evoluíram, tanto para oferecer à aristocracia rural
um entretenimento adequado, como para atender às diversas de­
mandas das classes populares. Tais atividades, com o desenvolvi­
mento das línguas vulgares, a partir do século XII, deram origem a
um amplo movimento poético-musical que acabaria por ser patro­
cinado pela nobreza. Foi no âmbito deste movimento que os trova­
dores, trouvères e Minnesinger produziam a sua música, ora como
canto monódico, ora como canto acompanhado de forma hetero-

19. Op. cit., pg. 69.


A POLIFONIA 77

fônica, ora como incipiente polifonia. Eram versados em tais ativi­


dades os músicos que, migrando para as cidades, encontraram aí
uma oportunidade de se estabelecer para uma prestação de serviços
à municipalidade.
As raízes da música urbana, portanto, estavam muito mais
próximas da tradição popular do que da cultura dominante. Para a
adaptação dessas práticas rurais às condições urbanas foi necessário
um considerável trabalho coletivo, que pôde ser realizado graças à
união dos músicos em corporações próprias. Foi neste contexto,
então, que a atividade musical viria afirmar-se nas cidades, muito
mais do que no meio rural, como um verdadeiro ofício a nível
profissional.
É importante, a nosso ver, que se compreenda o grande surto
da polifonia nos séculos X II e X III como produto de um trabalho
artesanal coletivo, de cunho nitidamente corporativo, que se fun­
damentava em tradições de origem popular, e onde se procurava
dar respostas às necessidades culturais de uma nascente burguesia.
E nesta perspectiva, também, que se evidencia o fato de que a
emergente cultura urbana era capaz de oferecer condições incom­
paravelmente melhores do que a cultura rural para a evolução dos
movimentos sociais a que acima fizemos referência. E é neste con­
texto, ainda, que julgamos poder encontrar as razões do caráter
exultante e jubiloso que verificamos existir nessas manifestações
polifônicas.

O motete da ars antiqua

A Escola de Notre-Dame de Paris, onde, nos séculos X II e


XIII, florescera essa música que mais tarde se designaria pelo ter­
mo ars antiqua, constituía um núcleo que foi eminentemente re­
presentativo da cultura burguesa no momento em que esta inicia­
va a se manifestar.20 Foi aí que no século X II se praticavam os
organa, dos quais acima analisamos o exemplo do Aleluia. E foi aí
também que, no século seguinte, passaram a desenvolver-se outras
formas polifônicas, as quais se nos apresentam como estruturas em

20. Entendemos estar equivocada a concepção geral pela qual se costuma atri­
buir à ars antiqua a qualidade de mera precursora — ainda primitiva — da verda ­
deira polifonia, que viria a atingir sua plena realização no Renascimento. N a nossa
opinião, trata-se, muito pelo contrário, da arte plenamente desenvolvida de uma
época em que, mais do que em qualquer outra, a música tivera uma plena realização
pela sua participação ampla em todo um processo político-cultural de emancipação
da classe burguesa.
78 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

que a contestação do Canto Gregoriano é levada a um grau ainda


muito mais radical. Reproduzimos aqui um motete, que era uma
forma musical extremamente comum da ars antiqua do século
X III, a fim de dar uma mostra deste tipo de manifestação musical.
Neste exemplo21observe-se que o ritmo era rigidamente orga­
nizado mediante a mesma recorrência constante de modelos fixos
que havíamos notado na análise do exemplo anterior. Aqui, entre­
tanto, também a voz principal — agora chamada tenor — era sub­
metida a esse ritmo. Ao que tudo indica, tais modelos corres­
pondiam aos modos rítmicos que, na época, regulamentavam a or­
ganização da música trovadoresca. A estrutura polifônica do mo­
tete assentava-se sobre este tenor, cuja fonte se indicava pelas pa­
lavras eius in Oriente. Estas palavras constituíam o assim chamado
incipit, pelo qual, no caso do presente exemplo, se estabelecia a
referência ao início do texto de uma seqüência gregoriana. De fato,
a trajetória do tenor foi diretamente extraída da melodia da referida
seqüência. Esta trajetória, entretanto, perde, de forma ainda mais
drástica do que vimos ocorrer no caso do organum, as suas carac­
terísticas eclesiásticas, pelo fato de ter sido inteiramente adaptada
aos modos rítmicos. Na sua representação gráfica, o tenor não vem
acompanhado do texto e presume-se que ele tenha sido executado
exclusivamente por instrumentos. A cada uma das outras vozes —
chamadas duplum (ou motete) e triplum, respectivamente, — fo­
ram adaptados textos profanos em língua vulgar.22
Ora, facilmente se perceberá que na estrutura resultante a opo­
sição ao canto monódico da liturgia é levada ao extremo. Os textos,
tratando de cenas pastoris e do amor de Robin e Marion, como atos
elocutórios praticamente reduzem ao ridículo aqueles da liturgia.
Acontece, porém, que também estes textos, distintos um do outro,
na sua simultaneidade resultam dificilmente inteligíveis. Bem
observa Ch. Borren que, “ enquanto os organa ainda se nos apre­
sentam como uma possível conseqüência de uma mentalidade reli­
giosa específica aos séculos X II e X III, estes motetes, com seu
caráter bizarro e contraditório, nos deixam francamente embara­
çados” .23
Não dispondo de nenhuma documentação capaz de esclarecer
objetivamente sobre a função social desempenhada por tais mani­
festações, os historiadores, na sua maioria, se apóiam na opinião de
H. Besseler, segundo a qual se teria tratado de uma espécie de

21. M ns.: Montpelfier, loc. cit. Ia : C . Parrish & ]. F . O h l, op. c it . , pgs. 29-30.
22. O próprio termo m otete , como diminutivo de m ot = palavra — p a la vrin h a ,
portanto — , se refere a uma espécie de dito engraçado ou satírico.
23. Ch. van den Borren, Van H u c b a ld tot D u fa y. In : A . Smyers, A lg e m e e n e
M u ziekgesch ied en is , pg. 73.
A POLIFONIA 79

HOTETUS
A POLIFONIA 81

“ jogos recreativos” , ou de um “ esporte” , tendo por objetivo sa­


tisfazer a necessidades lúdicas mais “ elevadas” ou “ profundas”
do que aquelas que poderiam ser atendidas através de outros diver­
timentos e passatempos menos sofisticados.24 Não concordamos
com esta hipótese, pelo simples motivo de não podermos conceber
como uma nascente burguesia, seriamente envolvida no desenvol­
vimento do comércio e da indústria e, conseqüentemente, empe­
nhada numa árdua luta pelos direitos a esse trabalho, possa ter
dispendido praticamente todo o esforço de uma de suas corporações
de ofício numa atividade que se resumisse a um jogo recreativo.
Neste caso, também a escolástica, que se desenvolvera ao mesmo
tempo que a polifonia, deveria ser considerada como um mero “ es­
porte” . Ainda mais, segundo a hipótese de Besseler, o jogo aten­
deria apenas às necessidades lúdicas dos jogadores, isto é, dos pró­
prios produtores da música polifônica, de forma que todas estas
manifestações, naturalmente inseridas no universo da comuni­
cação social, ficariam restritas a uma comunicação travada exclu­
sivamente entre os músicos empenhados na sua produção.
Na nossa opinião, estamos mais inclinados a atribuir a estas
manifestações polifônicas uma função comunicativa mais ampla.
Acreditamos tratar-se de práticas que se caracterizavam por sua
inserção no domínio da comunicação social pelo fato de consti­
tuírem fatores de movimentos sociais urbanos. Mediante tais ma­
nifestações, a burguesia, em dizendo não ao canto monódico, con­
testava e se opunha de modo jubiloso à dominação cultural. Foi por
meio de tais manifestações que os músicos, como porta-vozes da
burguesia, afirmavam e reforçavam os anseios e impulsos desta,
direcionados à sua emancipação e autonomia.
Como explicar, entretanto, que tais manifestações de contes­
tação tenham sido produzidas justamente na catedral de Notre-
Dame, isto é, num espaço que evidentemente se destinava primor­
dialmente às práticas diretamente vinculadas à liturgia?
Uma primeira possibilidade de explicação para este fenômeno
se encontra em E. Faure, onde, em referência à arquitetura gótica,
se nos oferece uma imagem — embora a nosso ver demasiada­
mente romântica — de como os habitantes das cidades francesas
dessa época, imbuídos das forças sociais acumuladas em conse­
qüência dos êxitos obtidos nos seus empreendimentos, ansiavam
por um espaço no meio urbano que resumisse os seus esforços co­
letivos e expressasse o sucesso das suas realizações. A catedral gó­
tica seria a materialização desses anseios: “ a casa comunal, o ce­

24. H . Besseler, Studien z u r M u sik des M ittela lters, Archiv für Musikwissen­
schaft, 1925-1926; in : A . Smyers, op. cit., pgs. 73-4.
82 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

leiro da abundância, a bolsa do trabalho e o teatro do povo, o edi­


fício sonoro e luminoso que sempre estaria aberto ao povo, a gran­
de nave capaz de conter a cidade inteira, a arca cheia de tumulto
nos dias de mercado, cheia de danças nos dias de festa, cheia de
cantos nos dias de culto, cheia do repicar dos sinos nos dias de re­
volta, cheia da voz do povo em todos os dias’ ’ .25
A imagem que Faure aqui nos apresenta da sociedade urbana
certamente está impregnada de um otimismo idealista que parece
prejudicar uma análise mais objetiva. Não deixa de ser perfeita­
mente possível, entretanto, que um tal otimismo idealista tenha
alguma correspondência com o estado de espírito que de fato estava
reinando naquela época em uma considerável camada da população
urbana. Se assim for, resultaria perfeitamente justificada tanto a
amplitude da função social desempenhada pela catedral gótica,
como também o estado de exultação e júbilo dessa comunidade.
Concordamos com que as catedrais de muitas cidades, como a
de Paris, para cuja edificação haviam concorrido substancialmente
a iniciativa, a riqueza e o labor coletivo da burguesia, devem ter
sido usadas, por uma considerável parte da população urbana, não
apenas para os cultos religiosos, mas também como ponto de en­
contro social e convergência da produção cultural. Esta produção
cultural, entretanto, implicava manifestações de contestação ao
sistema feudal, por cuja manutenção a Igreja se havia responsabi­
lizado. Para compreendermos esta situação contraditória, é preciso
levar em consideração que a população urbana, embora profunda­
mente religiosa e devotada aos princípios cristãos, gradualmente
passaria a assumir uma espécie de posição anticlerical, uma vez
que era aos membros do clero que facilmente seriam atribuídas
todas as atuações da Igreja a nível político.
Acreditamos, no entanto, que os ideais de uma comunidade
urbana global e unificada, como esboçados por Faure, dificilmente
poderiam ter se realizado dentro da estrutura social que de fato
imperava nos aglomerados urbanos. E preciso que evitemos uma
demasiada idealização ao recriar uma imagem da sociedade que
ocupava o espaço daquelas cidades. É falsa a imagem decorrente da
suposição de que se tratava de uma comunidade perfeitamente uni­
da que, como um todo, se levantava a fim de combater a domi­
nação que lhe era imposta pelo sistema feudal. Esta união, que
antes talvez tenha existido nas aldeias da barbárie, havia-se tornado
inteiramente inviável na civilização urbana.
De fato, a partir do final do século X II, o poder econômico e
político das principais cidades começava a concentrar-se nas mãos

25. H isto ire de V A r t , Paris, Plon, 1939, vol. 2: L 'A rt M é d ié va l , pg. 120.
A POLIFONIA 83

de um pequeno número de famílias que vieram a constituir uma es­


pécie de aristocracia ou patriciado urbano. Este se compunha dos
mercadores mais ricos, sobretudo aqueles que se dedicavam ao co­
mércio em grande escala e a longa distância, e dos mestres das
principais corporações. Assim, em Colônia, por exemplo, este
emergente patriciado, que já em 1074 havia encabeçado uma re­
volta armada contra o arcebispado, se reafirmaria em 1106, vindo a
constituir uma comunidade congregada por um juramento mútuo
e que em 1112 seria reconhecida pelo próprio arcebispo.26
E, desde que o patriciado urbano passara a organizar-se para
pouco a pouco dar origem a uma nova classe, dominante dentro do
contexto da cidade, tornar-se-ia evidente que a comunidade urbana
não poderia ficar imune às contradições próprias a qualquer for­
mação social baseada numa estrutura de classes. É bem provável,
como observa A . Ponce, que o patriciado não se tenha constituído,
nesta época, como uma classe revolucionária que almejasse de al­
guma forma a tomada do poder de Estado. O certo é que essa
incipiente classe havia assumido uma espécie de liderança popular,
esforçando-se por conquistar e defender o direito de desfrutar livre­
mente das rendosas atividades que a cidade lhe oferecia.27 Ao
mesmo tempo em que se revoltava contra os abusos da nobreza e
do clero, tinha todo interesse em negociar os acordos que lhe pa­
reciam mais favoráveis. E esta negociação, que se celebrava à re­
velia das camadas mais populares, se tornava tanto mais viável
quanto mais se verificava o fato de que consideráveis setores da
nobreza, e sobretudo do clero, tendo em vista a crescente impor­
tância econômica que foram adquirindo as atividades urbanas, bem
como diante da constante pressão exercida pelas cidades, perce­
biam a conveniência não apenas de atender, pelo menos parcial­
mente, às reivindicações da burguesia, mas, até mesmo, de chegar
a participar ativamente das diligências lucrativas aí proporcionadas.
Cabe aqui ainda uma referência especial a um fenômeno que, a
nível cultural, viera contribuir de modo decisivo à faculdade, por
parte da burguesia, não apenas de viabilizar uma atuação realmente
eficaz no âmbito das manifestações contestadoras, mas também de
abrir perspectivas inteiramente novas no que diz respeito ao seu
relacionamento com as instâncias detentoras do poder. Trata-se do
gradativo deslocamento da formação intelectual das antigas escolas

26. Segundo um documento de 1165, o patriciado era “ a associação dos me­


lhores, sobre a autoridade dos quais repousava a prosperidade da cidade e que con­
centrava em suas mãos a maior parte de poder e fortuna” .. (Cf. J. Le Goff, op. c it . ,
pg- 74.)
27. Cf. A . Ponce, Educação e Luta de Classes , pg. 101.
84 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

monásticas para novas instituições urbanas, ou seja, para as escolas


catedralicias e as universidades. Foram as escolas catedralícias que,
a partir do século X I, vieram abrir o caminho para as universi­
dades, as quais, segundo F. Morin, eram consideradas pela bur­
guesia como “ uma espécie de comunas intelectuais” .28 A fun­
dação destas universidades — tanto em Paris, como em Bolonha,
>\'ford, Cambridge, Pádua, Nápoles, Toulouse, Coimbra, Sala­
manca e Montpellier — se deu sob a forma de novas cartas de
franquia outorgadas diante da pressão exercida pela burguesia. Na
sua organização de acordo com o modelo das corporações, elas vie­
ram permitir ao patriciado urbano uma participação intelectual que
até então havia ficado restringida ao clero. Embora ainda perma­
necessem sob a tutela da Igreja, foi importante a atuação nessas
instituições educacionais e culturais de um setor do clero que mais
se aproximava da intelectualidade urbana em vias de se delinear.
Eram as ordens mendicantes — como a dos franciscanos e a dos do­
minicanos — que haviam sido fundadas nessa época. A ascensão
dessa nova intelectualidade teve por conseqüência, daí em diante,
que a erudição, bem como todos os valores culturais a ela vincu­
lados, deixariam de ser um monopólio do clero tradicional.
Foi à intelectualidade urbana que coube a tarefa de lançar os
fundamentos de uma ideologia burguesa capaz de servir de base
teórica para todo um conjunto de atividades coletivas, muitas das
quais estavam voltadas às manifestações de contestação à ideologia
dominante. Norteados por um novo racionalismo, os intelectuais,
embora profundamente devotados à religião cristã, viram-se impe­
lidos a indagar sobre problemas inerentes, principalmente, à con­
tradição entre a razão e a fé.29 De fato, como poderia persistir a fé
cega dos tempos bárbaros numa sociedade urbana movida por in­
tensas atividades comerciais e industriais, onde se manipulavam as
vultosas riquezas por elas produzidas? Começar-se-ia a distinguir
entre a verdade filosófica e a religiosa, o que implicava necessaria­
mente suspeitar da impossibilidade de identificar a fé com o conhe­
cimento. Tornar-se-ia preciso encontrar as razões para a fé.
É perfeitamente compreensível que tais exigências viriam esti­
mular o surgimento das muitas heresias, as quais de fato chegaram
a proliferar nesse tempo. A Igreja as encarava como uma espécie
de tumores a serem extirpados, pois facilmente poderiam tornar-se
malignos. E é verdade que se tratava de movimentos sociais que,

28. “ Origine de la Démocratie: la France au Moyen-Age” , Paris, Pagnerre,


1868. In-, A . Ponce, op. c it. , pg. 95.
29- Foi no âmbito desta atuação dos intelectuais que se localizavam, por exem­
plo, aspreleções proferidas por Pedro Abelardo, em Paris, no início do século X II.
(Cf. J. LeGoff, op. cit., pgs. 149esegs.)
A POLIFONIA 85

pelo menos em alguns casos, chegariam a adquirir as caracterís­


ticas de uma autêntica luta contra as classes dominantes. De qual­
quer forma, tendo em vista a tarefa a nível de dominação assumida
pela Igreja, toda manifestação que contrariasse a sua ideologia aca­
baria por caracterizar-se como politicamente subversiva.30 A his­
tória nos mostra as dimensões que adquiriram os esforços despen­
didos para combater essas heresias. Basta lembrar, por exemplo, o
caso dos valdenses e, principalmente, o dos albigenses, os quais só
puderam ser dominados com a mobilização de uma cruzada — or­
denada pelo papa Inocêncio III — resultando _numa verdadeira
guerra de extermínio.
Mas também haveria de compreender-se que, em lugar de de­
sencadear violências repressivas desta ordem, mais valia a pena
prevenir o nascimento das heresias por meio da persuasão ideoló­
gica. E é muito provável que tenha sido com estes objetivos que a
Igreja, após um primeiro período de hostilidade, acabaria por não
só permitir, mas mesmo participar do desenvolvimento de uma fi­
losofia que, sem maiores prejuízos para a tradicional doutrina dog­
mática, procurava, se não explicar, pelo menos ilustrar ou clari­
ficar os artigos de fé por meio da razão. Esta filosofia — a escolás­
tica — passaria a exercer, nos séculos X II e XIII, numa vasta re­
gião em cujo centro estava localizada a cidade de Paris, um verda­
deiro monopólio da intelectualidade urbana.
As relações existentes entre a escolástica, no campo da filo­
sofia, e o estilo gótico, na arquitetura, como fenômenos não apenas
coetâneos, mas dialeticamente vinculados, têm sido objeto de es­
tudos aprofundados, sobretudo por parte de E. Panofsky.31 É sob
esta perspectiva que, na nossa opinião, deve ser compreendido
também o fenômeno da polifonia da ars antiqua. Enquanto a esco­
lástica, expressando a religiosidade medieval de acordo com a ideo­
logia burguesa se utilizava da comunicação lingüística, para pro­
curar contemporizar os conflitos ideológicos já deflagrados, a mú­
sica polifônica, que não fazia uso dos procedimentos discursivos,
era um? prática de efeitos mais imediatos capaz de expressar a ani­
mosidade da burguesia perante a dominação cultural. Não se tra­
tava aí de formas lógicas, pelas quais determinadas associações en­
tre elementos sonoros, cada um portador de alguma referência,
resultassem em associações análogas dessas referências. As estru­
turas polifônicas, portanto, estavam longe de se assemelhar aos

30. É neste sentido que Le Goff comenta que, uma vez que a Igreja era “ a m u­
ralha ideológica da sociedade feudal” , o fato de questioná-la significava minar os
próprios fundamentos dessa sociedade. ( O p . c it. , pg. 173.)
31. G o th ic A rc h ite c tu ra and Scholasticism , 1957; A rch itec ture G othiq ue et
Pensée Scolastique , Paris, M inuit, 1967.
86 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

atos locutórios. Muito pelo contrário, elas funcionavam pela sua


configuração global, pela qual se procurava praticamente arre­
bentar os valores inerentes ao canto monódico, aniquilando assim
os meios musicais tradicionalmente usados para a dominação cul­
tural. É neste sentido que entendemos tratar-se de fenômenos que,
distintamente daqueles que se enquadram no campo da comuni­
cação lingüística, constituem atuações perfeitamente classificáveis
no âmbito da comunicação acionai.
Foi com o concurso de tais manifestações que a intelectualidade
urbana passaria a desenvolver um potencial a nível ideológico ca­
paz de conferir à burguesia um papel decisivo no processo de ino­
vação da estrutura social vigente. E verdade que uma tal inovação,
para de fato efetuar-se, implicaria necessariamente transformações
das relações de produção, as quais, por sua vez, só poderiam surgir
em atendimento a novas necessidades emergentes em conseqüên­
cia de um substancial desenvolvimento das forças produtivas. Ca­
beria, porém, à própria burguesia a tarefa de promover este desen­
volvimento. Trata-se de um processo histórico que, nessa época,
ainda longe de sua efetiva eclosão, apenas dá a conhecer os pri­
meiros sinais de inquietação.

A Escola de Borgonha

As monarquias, que nesta época estavam em vias de desen­


volver uma potencialidade política independente, encontrariam na
burguesia — e especificamente no patriciado urbano — os meios
necessários para a realização de seu poder. Até então, os reis e
imperadores medievais, como supremos soberanos situados no
ápice da pirâmide hierárquica da nobreza feudal, haviam exercido o
seu poder numa dependência quase absoluta da Igreja, a qual, em
última instância, se identificava com o Estado. De fato, a única
instituição que se encontrara em condições materiais para exercer
uma administração a nível de Estado havia sido a Igreja. Fora so­
mente ela que dispúsera dos meios para a formação dos intelectuais
especializados, capazes de exercer funções específicas, como as de
estadistas. Os monarcas, pelo contrário, sempre se haviam quali­
ficado sobretudo como chefes militares e, como tais, freqüente­
mente haviam sido solicitados pelo poder estatal. Note-se que era à
Igreja que coubera tanto a coroação como a deposição de reis e
imperadores. E sempre quando a estes competia a organização de
um governo, necessariamente haviam de apelar a administradores,
conselheiros e outros especialistas, que somente o clero podia ofe­
recer. As monarquias, portanto, por mais amplo que fosse seu po­
A POLIFONIA 87

der, de fato nunca haviam passado de meros prolongamentos do


verdadeiro Estado que era a Igreja.
Esta situação viria alterar-se totalmente com o surgimento da
intelectualidade urbana, uma vez que os funcionários e estadistas
já não mais teriam forçosamente que ser recrutados no clero tradi­
cional. Sem dúvida, o processo de fortalecimento das principais
monarquias durante os séculos X II e X III foi consideravelmente
favorecido pela participação nos negócios de Estado dos intelec­
tuais urbanos, fossem eles realmente procedentes da burguesia, fos­
sem eles membros de um clero urbano não tradicional, comprome­
tido de certa forma com a intelectualidade urbana e sobretudo com
os interesses do patriciado.
No caso da França do século X II, por exemplo, foi de relevante
importância o papel desempenhado por um clérigo — o abade Su-
ger de Saint-Denis, superior da abadia real e conselheiro da coroa
— que tem sido considerado “ o pai da monarquia francesa” , ao
mesmo tempo em que tivera uma atuação decisiva nas primeiras
realizações da arquitetura gótica.32 Também no século seguinte,
Filipe IV, o Belo, nas suas lutas pelo fortalecimento da coroa fran­
cesa, aceitara de bom grado a colaboração de um próspero patri­
ciado urbano, pronto a oferecer seu apoio — tanto técnico-admi-
nistrativo como econômico — em troca de uma certa garantia de
defesa contra quaisquer forças adversas que ameaçavam prejudicar
a expansão dos seus negócios.
E, ao mesmo tempo em que a monarquia assim acabaria por
distanciar-se do resto da nobreza, também no âmbito das cidades, o
patriciado começava, cada vez mais, a afastar-se dos trabalhadores
urbanos. Foram muitas as cidades onde a indústria artesanal de de­
terminados produtos se havia desenvolvido a ponto de exceder
consideravelmente as demandas do consumo local. Este excedente,
evidentemente, tinha que ser absorvido pelo comércio a longa dis­
tância, a fim de abastecer outras regiões. Paralelamente às tradi­
cionais atividades dos artesãos, que vendiam as mercadorias por
eles produzidas diretamente à população da cidade e seus arre-
baldes, desenvolvera-se, pouco a pouco, uma outra faixa de pro­
dução, voltada exclusivamente ao comércio de exportação. Na
medida em que esta faixa foi assumindo escalas cada vez maiores,
passaria a utilizar-se uma mão-de-obra constituída de artesãos que
produziam somente para os grandes mercadores, recebendo destes
a matéria-prima a ser elaborada e entregando aos mesmos os pro­

32. Cf. E. Panofsky, op. cit. Na edição francesa, a primeira parte do livro é
dedicada a um estudo sobre o abade Suger de Saint-Denis.
88 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

dutos acabados. Assim gradativamente foi crescendo o número de


trabalhadores que, tendo perdido a sua antiga condição de artesãos
autônomos, passaram a um estado de completa dependência de
uma classe de comerciantes, detentora do capital comercial. Confi­
gurar-se-ia, desta forma, uma ainda incipiente contradição entre
capital e trabalho, a qual, nessa época, viria caracterizar o sistema
do assim chamado capitalismo mercantil.33
Tais transformações que tiveram lugar no mundo medieval,
envolvendo novas estruturas do poder de Estado viabilizadas em
virtude da emancipação das monarquias, bem como o surgimento e
a acumulação do capital mercantil nas mãos de um patriciado ur­
bano dedicado ao comércio de exportação, evidentemente não po­
deriam deixar de imprimir suas marcas na produção cultural. As
manifestações de contestação, que até então haviam caracterizado
os movimentos da intelectualidade de cidades como Paris, nos sé­
culos X II e X III, agora perderiam sua razão de ser, na medida em
que uma categoria de prósperos mercadores, que anteriormente
haviam liderado uma luta de toda a comunidade urbana por privi­
légios e franquias, uma vez atingidos estes objetivos, passara a dis­
tanciar-se da população menos favorecida e voltar seus interesses
para as perspectivas de enriquecimento cada vez maior, vindo a
assumir vantajosos compromissos com as instâncias detentoras do
poder.
De fato, observando o desenvolvimento da música polifônica
após o período da ars antiqua, notar-se-á que, por exemplo, a fa­
mosa Missa de Guillaume de Machaut,34 produzida no século
X IV , na era chamada ars nova, provavelmente para celebrar a co­
roação do rei Carlos V, em Reims, no ano de 1364, ainda faz lem­
brar, de certo modo, o ímpeto que caracterizava a polifonia do sé­
culo precedente. As missas polifônicas que começaram a brotar em
grande quantidade no século X V , entretanto, já se nos apresentam
como estruturas que parecem atender a solicitações de outra natu­
reza, não tendo mais nada a ver com aquele júbilo juvenil de uma
emergente burguesia em vigorosa ascensão.

33. É significativo o fato de que, quando nas florescentes cidades flamengas,


onde se havia desenvolvido uma intensa atividade industrial têxtil, estouraram os
conflitos entre os mercadores patrícios, possuidores do capital comercial, e os tra­
balhadores por eles explorados, a ponto de tornar iminente um enfrentamento ar­
mado, o patriciado não hesitaria em apelar à ajuda militar da coroa francesa, en­
quanto os trabalhadores confirmariam sua lealdade á nobreza local. Em 1302 deu-se
a surpreendente batalha de Courtrai, onde o exército francês foi derrotado pelos
trabalhadores têxteis de Bruges, Gand e Ypres, fato este que viria concorrer signi­
ficativamente para a preservação da independência de Flandres.
34. Cf. C. Parrish & J. F. Ohl, op. c it., pgs. 38-9.
A POLIFONIA 89

Observemos, a título de exemplo, o primeiro Kyrie da missa


Se laface ay pale, de Guillaume Dufay, que aqui reproduzimos.35 A
estrutura polifônica assenta-se sobre uma melodia profana, conhe­
cida na época sob a forma de um canto amoroso: ‘ ‘Se tenho a face
pálida, a causa é o amor...” . A esta melodia, usada como tenor,
acrescentam-se as outras vozes, as quais, em trajetórias melódicas
serenas e bem equilibradas, declamam o texto Kyrie Eleison do
Ordinarium da missa. A melodia profana que, ao que tudo indica,
era executada por instrumentos, perde o seu caráter original, pas­
sando a servir de mera base para o desenrolar da polifonia, resul­
tando uma estrutura perfeitamente adequada ao ato de fala litúr-
gico.
Notar-se-á que o procedimento é exatamente o inverso da­
quele que havia sido usado no motete acima analisado da Escola de
Notre-Dame. Já não é mais um tenor litúrgico que exerce a função
de portador para uma estrutura que expressa os anseios da bur­
guesia, mas trata-se de um tenor profano e burguês, servindo de
base para uma outra estrutura, que se revela como sendo capaz de
atuar favoravelmente sobre a competência social de um texto litúr­
gico. Antes era uma melodia litúrgica que servia de pretexto para
um ato de comunicação burguês; agora seria uma melodia burguesa
que serve de pretexto para um ato de comunicação litúrgico. Antes
era a cultura burguesa que se utilizava, à sua maneira, de um ele­
mento da cultura dominante; agora seria a cultura dominante que
se utiliza, também à sua maneira, de um elemento da cultura bur­
guesa. Tudo parece indicar que o desenvolvimento das técnicas
polifônicas acabara por vincular-se a um processo de cooptação,
pelo qual as práticas musicais urbanas, que haviam servido de ins­
trumento na luta de uma comunidade contra a dominação cultural,
passaram, após uma adequada adaptação, a ser admitidas e culti­
vadas no ambito da própria cultura dominante.
A História nos mostra tratar-se de um processo cujos pri­
meiros frutos tiveram sua origem nos domínios dos duques de Bor-
gonha, para daí se alastrar rapidamente por toda a Europa, resul­
tando no florescimento do que viria a ser designado pelo termo de
polifonia renascentista.
Observe-se que o ducado de Borgonha, no início do século X V ,
se havia reunido a outros domínios feudais, vindo a incorporar,
além dos territórios da Valônia, as prósperas regiões de Flandres e
dos Países Baixos. Durante o período do reinado dos duques de
Valois, a combinação da ambição feudal com a riqueza urbana fi­
zera com que este ducado se tornasse uma das maiores potências da

35. Segundo a transcrição em A. Smyers, op, cit. , pg. 108.


p

90 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

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A POLIFONIA 91
92 A MÚSICA COM O LINGUAGEM
A POLIFONIA 93

época e, finalmente, sob Filipe, o Bom, convertera-se a Borgonha


de um feudo francês em um Estado independente. Era esta uma
verdadeira façanha política, cuja viabilidade pressupunha, entre
outros fatores, uma certa readequação da contradição que existia
entre a antiga tradição de um feudalismo rural e a nova realidade
vinculada ao comércio e à indústria urbanos. Na verdade, esta
contradição nunca chegaria a ser superada. De um lado estavam os
duques da casa dos Valois, autênticos senhores feudais e ambi­
ciosos guerreiros imbuídos dos ideais cavalheirescos; do outro lado
a prosperidade dos laboriosos centros urbanos, como Bruges,
Ypres e Gand, onde florescia uma indústria têxtil cujos produtos
eram levados pelos grandes mercadores a praticamente toda a Eu­
ropa. Acontecera, entretanto, que, pelo lado feudal, quando em
1430 Filipe, o Bom, fundava a ordem do Toison d’Or, que seria a
instituição cavalheiresca de maior prestígio na época, já não res­
tavam dúvidas de que sua riqueza e esplendor dependeriam prima­
riamente da prosperidade das cidades. Ao mesmo tempo, pelo lado
da burguesia, a indústria de Flandres se vira ameaçada por uma
concorrência exercida por parte de novos empreendimentos sur­
gidos no Norte da Itália, onde se fabricavam produtos têxteis por
menores preços. Diante desta situação de crise iminente, muitos
membros do patriciado flamengo, embora a princípio sentissem
pouca simpatia pelos objetivos políticos dos senhores feudais, aca­
bariam por aceitar uma ajuda e proteção por parte do governo du­
cal. Ambas as partes, portanto, tinham interesses numa aproxi­
mação, fato este que viera favorecer a formação de uma poderosa
aristocracia, produto da aliança entre os setores preponderantes da
nobreza rural e do patriciado urbano.36
Esta aristocracia encontraria o seu centro de irradiação na corte
ducal, sediada inicialmente em Dijon e, a partir de 1419, em Bru­
ges, onde se desenvolvera um luxo e uma ostentação que na época
não eram superadas em nenhuma parte da Europa.37 A corte era
freqüentada não apenas pelos mais ilustres representantes do patri­
ciado enriquecido pelo comércio em grande escala e das principais

36. Quanto a este processo histórico, cf. G . Holmes, E u ro p e : H ie ra rc h y and


R e vo it, Londres, Collins, 1975; E u rop a : Jerarq uia y R evuelta, México, Siglo Vein-
tiuno, 2? éd., 1978, pgs. 339 e segs.
37. Sabe-se que tanto Filipe, o Bom, como Carlos, o Atrevido, foram prote­
tores das artes e das ciências e compreende-se que no fausto e na pompa exibidos na
sua corte não poderia faltar a música. Sobre Carlos, o Atrevido, conta-se, nas M e ­
m órias, de Olivier de la Marche, que ele demonstrava um grande interesse pela prá­
tica da música, tendo chegado mesmo a produzir algumas chansons-, “ Il aimoit la
musique,combien q u ’il eust mauvaise voix, mais toutesfois il avoit l ’art et fist le
chant de plusieurs chanssons bien faictes et bien notées” . (Citado em A . Smyers,
op. cit., pg. 114.)
94 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

instituições bancárias hanseáticas e italianas — como os Arnolfini,


Tani e Portinari — , mas também por importantes artistas e inte­
lectuais — como os músicos Guillaume Dufay e Johannes Ocke-
ghem,os pintores Jan van Eyck e Rogier van der Weyden, e o
chanceler, financista e diplomata Nicolas Rolin.
De fato, este meio requintado viera oferecer a músicos, escul­
tores, pintores, arquitetos e outros intelectuais condições econô­
micas e de prestígio muito mais vantajosas do que aquelas que es­
tavam ao alcance das instituições gremiais urbanas e da adminis­
tração municipal. A alta aristocracia passara, portanto, a assumir o
papel de um novo Mecenas, à semelhança daquele patrício romano
que, no século I a.C., se valera de sua influência junto a Augusto
para encorajar as letras e as artes.
Seria através deste mecenato que viera a desprender-se das ati­
vidades artesanais, que até então haviam sido praticadas sobretudo
no âmbito das corporações urbanas, uma modalidade específica de
produção, desenvolvida de forma eminentemente individual, e
destinada diretamente ao entretenimento e prestígio da aristo­
cracia, modalidade esta que daí em diante seria designada pelo ter­
mo arte. B. Arvatov chama a atenção sobre o fato de que os antigos
grêmios medievais estavam longe de se propor qualquer tarefa que
pudesse ser considerada como sendo artística. Muito pelo con­
trário, toda a regulamentação destes grêmios estava voltada funda­
mentalmente contra qualquer atitude de livre criatividade. A sua
produção tinha que obedecer a normas rigidamente estabelecidas,
as quais visavam, por um lado, uma proteção econômica ao artesão
e, por outro lado, a qualidade do produto como bem de uso. 38 Em
lugar da beleza estética, o que importava era a eficiência utilitária e
a manutenção de condições favoráveis para sua produção. Resul­
tara daí um conservadorismo que sem dúvida acabaria por proteger
o artesão das primeiras interferências do capital mercantil.
Enquanto o artesão trabalhava diretamente para o consumidor
— ou para a comunidade coletivamente consumidora —, ele real­
mente participava ativamente de todo o processo de produção e
distribuição. A partir do momento, entretanto, em que a produção
social tivera que sujeitar-se ao mercado de exportação, o artesão,
como produtor, haveria de perder a sua autonomia. A fim de es­
capar a este fenômeno, um pequeno contingente de artesãos ha­
veria de refugiar-se em esferas especificas da produção que ainda
não estivessem contaminadas pelo grande comércio. Estas esferas
eram aquelas ligadas à criação de objetos de luxo e ostentação,
onde o produtor ainda trabalhava em contato direto com a aristo­

38. Arte y Producción, Madrid, Comunicación, pgs. 13-15.


A POLIFONIA 95

cracia consumidora ou com os mecenas. Era nesta esfera que se


localizava, além de certas atividades como as do joalheiro e do ou­
rives, principalmente as do artista.
Na medida, portanto, em que certos setores da indústria arte-
sanal se convertiam em produção artística, os seus produtos ha­
veriam de distanciar-se de suas anteriores funções sociais. Desta
forma, é evidente, como afirma B. Arvatov, que “ o campo de
aplicação do artesanato artístico haveria de sofrer uma extraordi­
nária redução: ele se converteria em uma arte para a alta aristo­
cracia e não para a vida cotidiana; serviria ao cerimonial, à osten­
tação, a fim de demonstrar o poderio e a força de uma classe domi­
nante. O sentido desta transformação pode ser formulado como um
processo pelo qual a produção artística, que anteriormente desem­
penhava um papel sócio-tecnológico, agora passaria a cumprir uma
missão sócio-ideológica. O artista, que antes produzira objetos de
uso, agora passaria a transformar os objetos em meios em si, dire­
cionando a produção material para fins que lhe são inteiramente
alheios. A partir daí, estes objetos haveriam de satisfazer já não
mais âs necessidades da vida cotidiana, mas às necessidades da con­
templação. As cadeiras, as mesas, as cortinas, os trajes de gala, os
vasos de luxo, todos estes objetos já não serviriam mais para serem
utilizados, mas exclusivamente para serem expostos. As salas, os
salões e os vestíbulos adquiririam o aspecto de museus. Neste sen­
tido, não é de se estranhar que, posteriormente, os objetos de arte
passariam a ser colocados sob redomas de cristal. Com isto eles de
fato são sacrificados como objetos, vindo a funcionar a título de
espetáculo. Mais tarde ainda surgiriam os museus de objetos artís­
ticos, concluindo-se o processo pelo qual estes objetos são definiti­
vamente retirados de todo convívio cotidiano’ ’. 39
Coisa semelhante se daria com a música que, em lugar de con­
tinuar a servir como um meio de comunicação cotidiana, gradati-
vamente se converteria em obra de arte para ser exposta sob a for­
ma de espetáculo. Os músicos passariam então a exercer uma nova
função, que consistia em dotar a classe aristocrática de uma forma
de ostentação, pela qual esta pudesse afirmar, para si e para os
outros, a magnificência necessária para a legitimação do seu status
de detentora da riqueza e do poder. Com isto, os músicos, embora
continuassem a atuar socialmente a nível da comunicação acionai,
se converteram, de porta-vozes de uma ampla comunidade urbana
da qual eles próprios faziam parte, em uma espécie de funcionários
a serviço de uma classe social que os utilizava a fim de atingir obje­
tivos que lhes eram inteiramente estranhos.

39. Ibid., pgs. 22-3.


96 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Entendemos que a compreensão deste processo seja suficiente


para explicar as razões pelas quais a polifonia da assim chamada
Escola de Borgonha perdera o antigo ímpeto contestatório, para
acomodar-se às solicitações da cultura dominante preconizada pela
Igreja. É importante observar-se que, embora tratando-se evidente­
mente de um avanço sob o ponto de vista estético e artístico, a
nível de atuação como comunicação social este processo sem dú­
vida vem marcado de relevantes aspectos reacionários. E estes as­
pectos não tardariam a transcender os limites iniciais do condado
de Borgonha. Pois era tal o brilho que emanava dessa corte, espe­
cialmente em se tratando da música polifônica, que em pouco tem­
po também nas outras cortes e palácios da aristocracia haveria de
seguir-se o exemplo dos Valois. Chegara o tempo em que qualquer
casa que se prezasse necessariamente haveria de exercer o mece­
nato e, efetivamente, foram muitos os centros de riqueza e poder
espalhados pela Europa que, numa concorrência desenfreada, pas­
sariam a disputar os músicos de maior fama. Estes eram recrutados
principalmente nas cidades de Flandres e dos Países Baixos. Era
sobretudo na Itália que afluíam em grande número estes assim
chamdos fiamminghi.

Princípios gerais

Antes de abordar as condições específicas que permitiram às


grandes casas da aristocracia italiana promover em tal escala as ati­
vidades artísticas e culturais, de modo que a Itália acabaria por afir­
mar-se como ‘ ‘o berço do Renascimento” , cabe aqui voltar a nossa
atenção para as bases teóricas implícitas no desenvolvimento das
manifestações polifônicas.
Por ocasião da nossa abordagem do canto monódico, referimo-
nos a certos pressupostos teóricos, os quais não perderam sua vali­
dade no decorrer de todo um processo histórico de evolução e
transformação a que estiveram sujeitas as manifestações musicais.
Havíamos sistematizado estes pressupostos sob a forma de um
conjunto de cinco princípios gerais,40observando, entretanto, que,
na medida em que se verificassem alterações substanciais nas
estruturas dos modos de comunicação envolvidos, se tornaria ne­
cessária uma ampliação desse conjunto. Ora, no surgimento e de­
senvolvimento da música polifônica, sem dúvida se apresentaram
tais alterações e, portanto, não poderíamos deixar de analisar seus

40. Cf. pgs. 39-48.


A POLIFONIA 97

fundamentos, formulando novos pressupostos a serem acrescen­


tados àqueles referentes ao canto monódico. Passaremos, então, a
tratar aqui de mais três princípios gerais, os quais, sem invalidar os
primeiros, se tornaram essenciais para as estruturas polifônicas e
que dizem respeito:
a) à sistematização racional do ritmo;
b) aos relacionamentos harmônicos entre as alturas sonoras; e
c) à classificação dos intervalos harmônicos.
a) Sexto princípio geral. Na medida em que se acentuava a
diferenciação rítmica entre as trajetórias descritas simultanea­
mente pelas diferentes vozes que compõem a textura polifônica,
tornava-se necessária uma organização mais exata e racional do
tempo em que se situavam as durações sonoras, a fim de permitir
uma perfeita integração dessas vozes. A sistematização que viria
dar resposta a tais necessidades se tornaria possível a partir do mo­
mento em que se passou a medir não apenas as durações sonoras,
mas, de uma maneira mais global, o próprio tempo em que estas
decorrem. Trata-se de um processo que se tornaria usual desde o
fim do século X III, quando se originara a assim chamada música
mensurata, e que continuaria a ser usado em toda música tradi­
cional, até os nossos dias.
É evidente que este ato de medir pressupõe o estabelecimento
prévio de uma unidade de tempo, a qual na teoria da música usual­
mente é designada simplesmente pelo termo tempo. Quanto à es­
colha desta unidade, a prática musical logo mostrara que, no pro­
cesso de racionalização do ritmo, o fator relevante não é a duração
absoluta dos sons individuais, mas o estabelecimento das relações
existentes entre as diversas durações sonoras.41 É por este motivo
que, na escolha de uma unidade de tempo em função da música,
têm sido rejeitadas as unidades físicas — como o segundo — as
quais se destinam especificamente à medida de durações absolutas.
Em lugar destas passaram a ser utilizadas outras unidades, de natu­
reza mais flexível, a serem determinadas em função de cada estru­
tura musical particular, de forma que estas estruturas pudessem
adaptar-se a andamentos que, segundo o parecer do executante,
lhes fossem mais adequados.
Uma vez submetida a categoria abstrata do tempo a essa inter­
venção mensuradora, ela se concretiza, adquirindo a forma de uma

41. Observe-se que de fato são estas relações que caracterizam as entidades
rítmicas. Já muito antes de qualquer preocupação com a mensurabilidade musical,
na métrica clássica referente á versificação grega, os pés de verso haviam sido esta­
belecidos em base de uma distinção entre sílabas longas e breves, onde a breve cor­
respondia a uma duração igual à metade da longa. Também aí tratava-se, portanto,
de uma relação em que as durações absolutas não eram relevantes.
98 A MÜSICA COM O LINGUAGEM

sucessão regular de tempos, apta a servir de referencial para a loca­


lização exata e racional de todas as durações sonoras que se en­
contram numa estrutura musical, por mais complexa que seja.
A sistematização rítmica resultante deste tipo de mensuração,
entretanto, ainda estivera sujeita à interferência de um outro fator,
que se refere a propriedades semelhantes àquela que, a título de
prosódia, também intervém na linguagem verbal. Notara-se que a
seqüência regular de tempos se encontra submetida a uma espécie
de hierarquia, pelo fato de nela ocorrerem periodicamente certos
tempos que parecem preponderar sobre os outros. É neste sentido
que a teoria tradicional viria classificar os tempos em fortès e fra­
cos, termos estes que, embora de um modo talvez não muito ade­
quado, vieram substituir aqueles da teoria grega, ou seja, tesis e
arsis, os quais se referiam respectivamente a atos de apoiar e de
erguer.
Assim, a métrica musical passaria a ser exercida em obser­
vância a uma seqüência regular de tempos, entre os quais se veri­
fica uma recorrência também regular de tempos fortes.
Este princípio foi de relevante importância no processo histó­
rico do desenvolvimento da notação gráfica da música. Na época da
ars antiqua, as durações sonoras eram representadas basicamente
por quatro figuras: a máxima, a longa, a breve e a semibreve. A
máxima — também chamada duplex longa — tinha uma duração
equivalente a duas longas e a duração de cada uma destas podia ser
subdividida em duas ou três breves, as quais correspondiam à uni­
dade de tempo. Os tempos, portanto, eram dispostos em grupos de
dois ou três, dos quais o primeiro sempre era um tempo forte. Na
ars nova do século XIV tornar-se-ia mais usual a representação da
duração global destes grupos de tempos pela breve, designando-se
essa duração pelo termo tempus. A subdivisão do tempus, cha-
madaprolatio, era representada pela semibreve, que correspondia à
unidade de tempo, e que podia ser subdividida ainda em mínimas.
Conforme a sua composição por três ou duas semibreves, o tempus
era considerado perfeito ou imperfeito e, de forma análoga, con­
forme o prolatio comportava três ou duas mínimas, ele se chamava
maior ou menor.
Daí resultaram os seguintes esquemas rítmicos:
1) Tempus perfectum, prolatio maior: um tempus (represen­
tado pela breve) composto de três unidades (semibreves), compor­
tando cada uma (comoprolatio) três mínimas. Este esquema equi­
vale aos atuais compassos ternários compostos;
2) Tempus perfectum, prolatio minor: um tempus composto
de três unidades, comportando cada uma duas partes, num es­
quema equivalente aos compassos ternários simples;
A POLIFONIA 99

3) Tempus imperfectum, prolatio maior: um tempus com­


posto de duas unidades, comportando cada uma três partes, num
esquema equivalente aos compassos binários compostos;
4) Tempus imperfectum, prolatio minor: um tempus com­
posto de duas unidades, comportando cada uma duas partes, num
esquema equivalente aos compassos binários simples.
Note-se que estes esquemas já se assemelhavam consideravel­
mente àqueles que hoje são usados na nossa música tradicional.
Basicamente, as modificações que neles ainda haveriam de ser in­
troduzidas são as seguintes:

1) A figura da breve praticamente deixou de ser usada, empre­


gando-se, além da semibreve, mínima e semínima, outras figuras
correspondentes à subdivisão daquelas, como a colcheia, a semi­
colcheia, a fusa, etc.
2) Todas estas figuras, que representam durações chamadas
valores, normalmente admitem uma subdivisão binária. Em certos
casos, entretanto, a subdivisão é ternária: quando esta ocorre ape­
nas ocasionalmente, ela dá origem às assim chamadas quiálteras\
quando ocorre de forma sistemática, os valores a serem subdivi­
didos são representados porfiguras pontuadas.
3) Os tempos fortes são identificados, na notação gráfica, por
barras verticais que se antepõem às respectivas figuras, resultando
o compasso, que corresponde ao que antes era chamado tempus. O
compasso, portanto, consiste na quantidade de tempo constante
que decorre entre cada dois tempos fortes consecutivos.
4) As eventuais irregularidades que podem ocorrer na suces­
são dos tempos fortes freqüentemente assumem a característica de
deslocamentos desses tempos fortes, dando origem às assim cha­
madas sincopas.
5) Os compassos, conforme o número de tempos que com­
portam, são classificados em compassos binários, ternários e qua­
ternários.
6) As unidades de tempo podem ser representadas por quais­
quer figuras. De acordo com a subdivisão binária ou ternária dessas
unidades, os compassos se classificam em compassos simples e
compostos. Nos compassos compostos, portanto, a unidade de
tempo corresponde a uma figura pontuada.
b) Sétimo princípio geral. Por ocasião do enunciado do quarto
princípio geral,42 onde discutimos a natureza dos intervalos musi­
cais, verificamos tratar-se de entidades mélicas resultantes da asso-

42. Ver pgs. 45-7.


100 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

ciação de duas alturas sonoras. Havíamos analisado essas asso­


ciações como efetuadas em base à concepção de uma categoria de
espaço, à qual nos referimos com o termo espaço mélico. Cabe
observar agora que, enquanto nas estruturas monódicas esta real­
mente é a principal forma de associação a operar-se sobre as alturas
sonoras individuais, já na polifonia haveria de adquirir substancial
importância um tipo de associação inteiramente distinto. De fato,
note-se que, na simultaneidade de diversas vozes, teria que tornar-
se necessária a avaliação da natureza consonante ou dissonante de
que, em cada momento do decurso, se reveste a presença conco­
mitante de duas ou mais alturas. Ora, tais conceitos de consonân­
cia e dissonância, que haveriam de desempenhar um importante
papel nestas estruturas polifônicas, nos remetem a fenômenos ou­
tros que escapam inteiramente à categoria do espaço mélico, uma
vez que a consonância de um intervalo de maneira alguma não é
redutível à sua grandeza espacial. Tudo indica que se trata aí de
conceitos que concernem a uma outra categoria essencialmente
diversa; e que na música polifônica, além do espaço e do tempo —
categorias necessárias e suficientes para o fenômeno melódico —
está envolvido ainda um outro aspecto que, numa primeira aproxi­
mação, parece apresentar-se como uma espécie de terceira di­
mensão.
W. Apel, seguindo a linha da tradicional teoria da música, co­
meça por definir os termos consonância e dissonância em função de
‘ ‘efeito agradável’ ’produzido por certos intervalos, em oposição ao
“ desagradável” inerente a outros.'13 Tendo em vista, entretanto,
a evidente insuficiência teórica envolvida na redução a tais noções
subjetivas quando se trata de uma abordagem com que se pretende
explicar a natureza dos fenômenos implicados, Apel acaba por
complementar essa definição, mencionando algumas teorias sobre
a consonância, entre as quais merece um especial destaque aquela
dafusão sonora,44É esta uma explicação de ordem psicológica, ba­
seada na experimentação. A natureza consonante dos intervalos,
segundo esta teoria, seria mensurável pelo grau em que os diversos
complexos sonoros produzidos por dois sons simultâneos evocam
na mente de um ouvinte não especificamente treinado a impressão
de um som único. A porcentagem dos ouvintes que julgarem ouvir
um só som, sem distinguir a real presença dos dois, forneceria
então a medida do grau de consonância.45

43. H a rv a rd D ic tio n a ry o f M u sic.


44. “ T o n v e rs c b m e lzu n g ” . Trata-se de uma teoria desenvolvida por C.
Stumpf, em To n p sych ologie, Leipzig, Hirzel, 1890.
45. Observe-se que este conceito de consonância baseado no fenômeno da fusão
sonora já havia sido formulado por Euclides: “ A consonância é a fusão de dois sons
A POLIFONIA 101

A crescente importância que adquiriram os conceitos de con­


sonância e dissonância na música polifônica, portanto, fizera com
que se criasse esta nova categoria, chamada harmonia, que se ba­
seia na maior ou menor capacidade inerente aos elementos de de­
terminados conjuntos de alturas sonoras simultâneas de se fun­
direm em uma unidade de natureza semelhante â do próprio som.
Os intervalos musicais, então, como entidades que resultam da
associação operada sobre duas alturas sonoras, podem ser classifi­
cados em dois tipos, ou seja, por um lado aqueles em que as asso­
ciações são efetuadas à base do espaço mélico, e que aqui denomi­
namos intervalos espaciais, e por outro lado os que resultam de
associações a nível da fusão sonora, os quais serão chamados inter­
valos harmônicos.
Esta classificação difere daquela que normalmente se encontra
na teoria tradicional da música, onde habitualmente se definem por
uma parte os intervalos melódicos, como sendo aqueles que são
formados por sons consecutivos, e por outra parte os intervalos
harmônicos, conceituados como os formados por sons simultâ­
neos. A nossa discordância desta colocação fundamenta-se, em
primeiro lugar, no fato de que, a nosso ver, o intervalo não é for­
mado de sons, mas decorre como produto de uma associação efe­
tuada sobre as alturas dos mesmos. Em segundo lugar, enten­
demos que o fato de os sons serem consecutivos ou simultâneos diz
respeito, antes de mais nada, à sua disposição no tempo, consti­
tuindo, portanto, um fator de ordem rítmica. Não há dúvida de
que a simultaneidade favorece a associação a nível harmônico, tan­
to que os conceitos de consonância e dissonância se tornaram rele­
vantes exatamente a partir do momento em que se desenvolvia a
polifonia, a qual naturalmente implica essa simultaneidade. Isto,
entretanto, não é suficiente para justificar a definição dos inter­
valos harmônicos em base dessa simultaneidade. Uma observação
mais atenta mostrará que freqüentemente na associação de certas
alturas sonoras consecutivas que comparecem na trajetória meló­
dica de uma voz interfere também o aspecto harmônico, isto é, a
afinidade dessas alturas baseada na sua capacidade de fusão.
Acreditamos que a nossa classificação — em intervalos espa­
ciais e harmônicos — seja mais adequada, uma vez que coloca em
evidência as duas maneiras distintas de se efetuarem as associações
entre as alturas sonoras. É claro, entretanto, que também esta
classificação só pode ser válida a nível de uma análise teórica, pois

de alturas distintas; ao passo que a dissonância é a incapacidade de dois sons de se


fundirem, resultando seu efeito áspero” . (Citado em H . von Helmholtz, D ie Lehre
von den T o n e m p fin d u n g e n ais Pbysiologiscbe G run d la ge f ü r die T h e o rie d e r M u -
sik , Braunschweig, Vieweg; 6? ed., 1913, pg. 369.)
102 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

na prática se observa que as associações normalmente se efetuam


de uma forma global, envolvendo aspectos ao mesmo tempo espa­
ciais e harmônicos.
c) Oitavo princípio geral. Da mesma maneira como evidente­
mente não teria sentido classificar as alturas sonoras em dois con­
juntos distintos, um dos sons graves e o outro dos agudos, nem
distribuir os intervalos espaciais em classes estanques de intervalos
grandes e pequenos, também a classificação dos intervalos harmô­
nicos em consonantes e dissonantes, tão usual nos tratados de teo­
ria musical, a princípio carece de qualquer justificativa. De fato, a
rigor, tais conceitos — de consonância e dissonância — podem
servir apenas a nível de comparação qualitativa de entidades har­
mônicas, no sentido, por exemplo, de afirmar-se que o intervalo de
terça é mais consonante — ou menos dissonante — do que o de sé­
tima.46 No entanto, verifica-se que, na prática da música polifô-
nica, tem-se tornado desejável, em função de uma sistematização
operacional, a determinação de certos limites do grau da disso­
nância praticável na simultaneidade das alturas sonoras distintas.
Tais determinações naturalmente haveriam de resultar em uma
classificação dos intervalos em consonantes e dissonantes, embora
esta, na realidade, absolutamente não se justifique. Foi assim que
acabaram por definir-se os intervalos consonantes como sendo
aqueles que em qualquer ocasião são perfeitamente admissíveis na
simultaneidade das vozes, e os dissonantes como os que são tole­
ráveis apenas sob determinadas condições. Estas condições, então,
haveriam de ser estabelecidas mediante a elaboração de um con­
junto de regras concernentes ao tratamento das dissonâncias.
O fato de que tanto os critérios de classificação dos intervalos
harmônicos como as regras relativas ao tratamento das disso­
nâncias têm estado sujeitos a profundas alterações no decorrer do
processo histórico, que conecta a produção dos primeiros organa à
polifonia renascentista, vem confirmar que a própria existência
destes critérios e regras pressupõe a sua estreita vinculação com as
práticas musicais que se haviam tornado usuais nas diversas fases
pelas quais passara a prática da música polifônica. Esta diversidade,
entretanto, não impede que se possam encontrar, nesse processo,
certas características constantes, cuja natureza tem sido buscada
pela teoria através de várias tentativas de abordagem, todas de cu­
nho objetivo e científico.

46. Já Helmholtz criticava esta classificação, observando que “ entre as conso­


nâncias mais perfeitas e as dissonâncias mais rudes existe uma gama contínua de
gradações, de sorte a não verificar-se uma separação nítida entre a consonância e a
dissonância, sendo inteiramente arbitrário qualquer limite que se tente traçar entre
elas” . (Ibid., pg. 371.)
A POLIFONIA 103

É neste sentido que, já desde a Antigüidade clássica, os teóricos


haviam verificado que o grau de consonância dos intervalos era
redutivel a razões numéricas. Pitágoras, estudando a vinculação
das alturas sonoras com o comprimento de uma corda, acabara por
associar os intervalos de oitava, quinta justa e quarta justa respec­
tivamente às razões 1:2, 2:3 e 3:4. No posterior desenvolvimento
das ciências acústicas, principalmente a partir do século XVIII,
verificar-se-ia que essas razões correspondiam perfeitamente às ra­
zões entre as freqüências dos movimentos vibratórios, as quais fisi­
camente determinam as alturas dos sons.
Foi em base de tais correlações que puderam ser estabelecidas
as seguintes leis acústico-musicais:
1) A cada intervalo corresponde uma razão numérica. Esta
correspondência se estabelece, tomando como termos da razãò as
freqüências correspondentes às alturas sonoras de cuja associação
resulta o intervalo. Assim, sabendo-se, por exemplo, que as notas
FA3, D 0 4 e SOL 4 representam alturas sonoras correspondentes
respectivamente às freqüências de 348, 522 e 783 períodos por se­
gundo, o intervalo FA -DO corresponderá à razão 348:522 e
DO-SOL a 522:783.47
2) A razões iguais correspondem intervalos iguais. De fato, as
razões do exemplo acima, quando simplificadas, revelam-se como
sendo iguais (348:522 = 2:3 e 522:783 = 2:3) e realmente se trata
de intervalos também iguais (quintas justas).
3) A consonância dos intervalos harmônicos está condicionada
d simplicidade das razões correspondentes. Considerando-se, por
exemplo, as razões 2:3 e 15:16, que correspondem respectiva­
mente aos intervalos de quinta justa e segunda menor, observar-
se-á que à mais simples realmente corresponde o intervalo mais
consonante.
Tomando-se por base estas leis e conjugando-as às normas que
se tornaram usuais na música polifônica, pode-se estruturar então
todo um sistema matemático-musical.
Primeiramente, observar-se-á que o mais consonante de todos os
intervalos harmônicos sem dúvida é o uníssono, resultante da asso­
ciação de duas alturas sonoras idênticas e que corresponde à razão
1:1. Logo em seguida, prosseguindo-se numa primeira tentativa de
ordenar os intervalos de acordo com a consonância, virá a oitava
justa, que corresponde à razão 1:2. Na prática musical, entretanto,
pode-se notar que a oitava normalmente é percebida como sendo
tão consonante quanto o uníssono, fato este que justifica que estes

47. Por motivos de maior clareza, tomamos aqui estas razões observando sem­
pre uma ordem crescente dos termos.
104 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

intervalos, sob o aspecto da capacidade de fusão, são considerados


idênticos. Sem dúvida, devem ter sido observações desta natureza
que induziram Francisco Salinas, no século X V I, a estabelecer o
postulado da identidade da oitava: Os intervalos de oitava justa e
uníssono são idênticos ,48
Quanto às razões numéricas, resulta que 1:2 = 1:1, o que sig­
nifica que, no sistema matemático-musical, se verifica a igualdade
paradoxal 2 = 1.
Como corolário do postulado da identidade da oitava, torna-se
possível deduzir, de qualquer intervalo harmônico, um conjunto
de outros intervalos que lhe sejam idênticos, bastando para isto
tomar-se qualquer oitava de uma ou de outra das alturas sonoras
envolvidas no primeiro. Sendo a:b a razão correspondente ao inter­
valo dado, as razões relativas aos outros se obtêm então multipli­
cando-se um ou outro dos termos daquela por qualquer potência de
base 2 e de expoente inteiro:
a:b = 2na:2mb.'i‘)
Chamamos aqui de transformações às operações pelas quais se
deriva de um intervalo um outro que lhe seja harmonicamente
idêntico. São sobretudo dois tipos de transformação que acabaram
por assumir especial importância na prática musical e que mere­
ceram uma referência específica por parte da tradicional teoria da
música:
a) A primeira consiste na transformação de um intervalo sim­
ples no intervalo composto equivalente. Seja a:b a razão corres­
pondente a um intervalo simples, isto é, um intervalo que seja es-
pacialmente maior do que o unrisono e menor ou igual à oitava:
a:b, sendo a < b < 2a.
Substituindo-se agora o termo b, que corresponde à altura supe­
rior, por 2b, correspondente à oitava daquela, obtém-se o intervalo
composto equivalente:
a:b = a:2b.
b) Em segundo lugar, temos a transformação de um intervalo
simples na sua inversão. Sendo ainda a:b a razão correspondente ao
intervalo simples, obtém-se a sua inversão em substituindo o ter­
mo a, que corresponde à altura inferior, por 2a, de forma a inverter
a ordem dos termos:
a:b = b:2a.

48. E evidente que este postulado se refere exclusivamente aos intervalos har­
mônicos.
49. Este corolário, entretanto, perde a sua validade prática na medida em que os
valores atribuídos aos expoentes n e m forem demasiadamente grandes. O motivo
desta limitação reside no fato de que as distâncias espaciais entre as alturas sonoras,
quando excessivas, dificultam o processo de fusão sonora.
A POLIFONIA 105

Tais possibilidades de transformações vêm viabilizar agora a


seguinte classificação dos intervalos harmônicos, num esquema
que comporta cinco classes:

Classe Intervalo Intervalos Inversão Inversões


fundamental compostos compostas

I 1:2 1:4 1:1 —

(8? justa) 1:8.... (uníssono)

II 2:3 1:3 3:4 3:8


(5? justa) 1:6.... (4? justa) 3:16....

III 4:5 2:5 5:8 5:16


(3? maior) 1:5.... (6? menor) 5:32 ...

IV 5:6 5:12 3:5 3:10


(3? menor) 5:24.... (6? maior) 3:20....

V todos os intervalos restantes

As classes de ordem I a IV comportam cada uma, além de um


intervalo fundamental, todas as transformações do mesmo, de
modo que os intervalos pertencentes a uma mesma classe sejam
todos harmonicamente idênticos. Esta sistemática, entretanto, é
abandonada na classe de ordem V, que comporta todos os inter­
valos não pertencentes às classes anteriores.

O Renascimento italiano

Os pressupostos teóricos acima discutidos sob a forma desses


princípios gerais gradativamente passaram a ser aplicados na me­
dida em que crescia a complexidade das estruturas polifônicas. A
sua plena validade só pode ser verificada na música própria à época
em que a primazia da produção polifônica se havia transferido dos
antigos domínios da Borgonha à Itália e, principalmente, por oca­
sião do florescimento da Alta Renascença, no século XVI. Quanto
ao processo histórico dessa transferência do centro da produção
polifônica para a Itália, cabe ainda ressaltar os seguintes aspectos.
Muitas das cidades italianas, como Florença, Veneza e Gê­
nova, haviam-se desenvolvido numa certa independência em re­
106 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

lação às monarquias. A administração municipal encontrara aí as


condições necessárias para assumir um poder de Estado próprio,
caracterizado por formas de governo geralmente republicanas. O
grande comércio que então se desenvolvera era substancialmente
distinto daquele dos domínios de França e Borgonha. Os italianos
não comerciavam apenas com os produtos da sua própria indústria
ou com as matérias-primas necessárias para a mesma, mas pas­
saram a exercer uma espécie de monopólio sobre uma parte muito
substancial de todo o comércio internacional. Conseqüentemente,
criaram-se comunidades de mercadores italianos em inúmeras ci­
dades, desde Londres até Alexandria. Para se fazer uma idéia da
penetração deste comércio, basta lembrar que Marco Polo, que no
século X III descrevera a China para os ocidentais, pertencia a uma
família de mercadores venezianos e que, já em 1277, os navegantes
genoveses tentaram alcançar a Ásia por via marítima, contornando
a África, façanha que somente dois séculos mais tarde os portu­
gueses conseguiriam realizar. O comércio italiano havia dado ori­
gem a grandes empresas, tanto a nível propriamente comercial
como também bancário. Nos anos de 1360, a companhia Alberti,
de Florença, tinha suas ramificações em Londres, Bruges, Paris,
Avinhâo, Barcelona, Veneza, Gênova, Bolonha, Perúsia, Roma e
Nápoles. Os Corner, mercadores de Veneza, possuíam plantações
de cana-de-açúcar em Chipre e o alto patriciado genovês controlava
as minas de alume de Foécia, na Grécia. G. Holmes chega a com­
parar as relações econômicas que as cidades italianas mantinham
com outras partes da Europa com o imperialismo que, em épocas
mais recentes, viria caracterizar as formas de dominação dos países
economicamente avançados sobre outras regiões mais primitivas.50
Não resta dúvida de que tais atividades comerciais e bancárias a
nível internacional viriam revelar-se como extremamente favorá­
veis ao desenvolvimento do mecenato. De fato, o patriciado ita­
liano tinha as melhores condições para importar o que havia de
culturalmente mais famoso. E entre estes “ artigos de importação’ ’
figuravam, em primeira linha, os músicos de Flandres e dos Países
Baixos. Ainda no século XVI, o músico flamengo Johannes Tinc-
toris, que atuava na corte de Fernando de Aragâo, em Nápoles,
referindo-se ao florescimento da música, o atribuía sobretudo ao
fato de que a aristocracia italiana não recuava diante das maiores
despesas quando se tratava de manter uma capela musical de pres­
tígio,51

50. O p . cit., pg. 75.


51. “ Os cantores e os músicos, nas cortes principescas, são literalmente acu­
mulados de honrarias, glórias e riquezas... (Citado em A . Smyers, op. c it., pg.
114.)
A POLIFONIA 107

Na opinião de A. von Martin, a ostentação produzida pela arte


no Renascimento italiano contribuíra substancialmente para criar
no meio da população urbana uma ‘ ‘bela ilusão de democracia” .52
De fato, as obras de arte eram admiradas por essa população, que
honrava publicamente os artistas, reconhecendo neles os homens
de talento que, afinal de contas, haviam saído do seu próprio meio.
Tudo indica que se julgasse ver neles ainda os porta-vozes da co­
munidade como um todo, e que amplos setores da população ur­
bana manifestassem sua gratidão à aristocracia por proporcionar os
meios materiais para o florescimento dessa arte. A arte renascen­
tista — e conseqüentemente também a música polifônica que aí se
desenvolvera — viria se nos apresentar então como um poderoso
instrumento de dominação cultural, usado para ofuscar a verda­
deira natureza da realidade social vigente e garantir, desta forma,
que também as camadas menos favorecidas dessem seu apoio a in­
teresses alheios, acobertados pela ostentação da magnificência.
O clero, uma vez que muitas das instituições da Igreja se ha­
viam estabelecido, seja a nível feudal, seja como entidades voltadas
às atividades urbanas, naturalmente haveria de ter sua participação
neste processo. A imensa riqueza que havia sido acumulada nas
cortes pontificais permitiria a estas uma concorrência vantajosa em
relação aos outros centros de cultura, sobretudo quando se tratava
de exibir um luxo superior e manter no seu meio os músicos e ar­
tistas de maior fama. Para a Igreja, ainda mais do que para as cortes
seculares, era de vital importância a exibição de uma magnificência
que estivesse à altura do seu status. Tanto mais importante seria
essa exibição, quanto mais a intelectualidade das cidades renascen­
tistas viera a caracterizar-se por uma progressiva secularização, em
virtude da qual também a escolástica já havia deixado de apresentar
uma solução viável diante dos progressos verificados nas ciências e
nas artes. Na verdade, não só a escolástica, mas toda a ideologia
medieval preconizada pelo clero não tardaria a ser considerada
como pertencente a um tipo de feudalismo há muito superado. O
constante avanço da acumulação do capital mercantil, principal­
mente em conseqüência das grandes navegações, sem dúvida deve
ter contribuído em grande parte para o fato de que, em amplos seto­
res da população urbana, se verificasse um crescente afastamento da
ideologia ainda medieval da Igreja. Enquanto na Idade Média o
poder político consagrado pela religião gozava de absoluta pri­
mazia, agora o predomínio seria do poder econômico, legitimado
por argumentos intelectuais.53

52. S oziologie d e r Renaissance , Stuttgart, Enke, 1932; Sociologia dei Renaci-


m ento, México, Fondo de Cultura Económica, 6? ed., 1977, pgs. 45-6.
53. Ib id ., pg. 15.
108 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

Este fenômeno teria necessariamente como conseqüência um


surto de novas heresias, as quais, entretanto, haveriam de distin­
guir-se das anteriores, por encontrarem uma retaguarda adequada
na intelectualidade renascentista. A partir do início do século
X V I, estas heresias passaram a assumir a forma dos amplos movi­
mentos políticos e religiosos designados pelo termo Reforma. Foi
por meio de tais movimentos que, por uma parte, a burguesia pro­
curava emancipar-se definitivamente do domínio exercido pela
Igreja e, por outra parte, determinados setores progressistas do
clero se esforçaram por adaptar a austeridade cristã às novas exi­
gências da sociedade burguesa.
Diante das atitudes radicais adotadas pelos reformadores —
como Lutero, Zwingli e Calvino —, bem como diante da rápida
expansão dos movimentos de rebeldia, a Igreja vira-se diante da
necessidade imediata de promover uma espécie de reciclagem, a
fim de poder atender, pelo menos em parte, às necessidades cul­
turais das novas formações sociais próprias ao Renascimento.
Assim, de 1545 a 1563, foi convocado o Concílio de Trento, com o
propósito de implantar e consolidar a Contra-Reforma, mediante
uma revisão e reformulação fundamental no âmbito da organização
das práticas litúrgicas.
No que se refere à música da liturgia, os ideais da Contra-
Reforma chegaram a apresentar sérios obstáculos às manifestações
polifônicas, embora as primeiras regulamentações do concílio a
esse respeito, que datam de 1562, não passassem de generalidades
mais ou menos vagas.M Logo após, entretanto, verificar-se-ia que
as tendências da Contra-Reforma — de modo semelhante àquelas
da Reforma — eram eminentemente hostis à polifonia. E com ra­
zão, pois as exigências em termos de simplicidade e austeridade
haveriam de conceder uma patente preferência ao antigo canto
monódico.
Os músicos renascentistas, portanto, e principalmente aqueles
que se encontravam a serviço da Igreja, se viram seriamente amea­
çados e não tardariam a procurar defender a sua arte diante das
autoridades eclesiásticas. Ao que tudo indica, o músico romano

54. “ Todas as coisas devem ser organizadas de modo que as missas possam le­
var tranqüilidade aos corações e ouvidos. Todo tratamento musical deve contribuir
não para proporcionar prazer ao ouvido, mas para que as palavras sejam claramente
compreendidas por todos, e assim os corações dos ouvintes sejam levados ao desejo
de harmonias celestiais, na contemplação do gozo dos bem-aventurados...” . (Ci­
tado em H . Raynor, op. cit., pg. 148.)
55. Ainda em pleno século X V II, um escritor espanhol anônimo publicaria um
panfleto apregoando que “ conquanto o emprego do cantochão (monódico) seja cos­
tume louvável, jamais a polifonia deve ser permitida no âmbito do culto religioso ’ ’ .
(.Ib id ., pg. 146.)
A POLIFONIA 109

Giovanni Pierluigi da Palestrina, que estava a serviço da Capela


Sistina, produzira a sua Missa Papae Marcelli com o propósito de
demonstrar ao papa que mesmo uma complexa polifonia a seis vo­
zes podia perfeitamente satisfazer a todas as exigências litúrgicas
do Concílio de Trento. Com o mesmo objetivo, Jacubus de Kerle,
músico de Ypres que naquela época servia como mestre de capela na
catedral de Orvieto, produzira uma seqüência de preces speciales
polifônicas, as quais chegaram a ser ouvidas diariamente por oca­
sião das orações com que se dava início aos trabalhos do Concílio.
Mesmo assim, entretanto, a Comissão Litúrgica, designada pelo
Concílio para resolver, entre outros assuntos, sobre os destinos da
música religiosa, pronunciara-se, em 1563, radicalmente contra a
polifonia, recomendando a exclusão desta do âmbito da liturgia. Os
esforços desenvolvidos por músicos dos mais conceituados, como
Palestrina e Kerle, portanto, revelaram-se impotentes quando se
tratava de influir sobre as instâncias detentoras do poder de deli­
beração.
É evidente que os pronunciamentos da comissão visavam a re­
meter os atos litúrgicos aos seus originais objetivos religiosos, dei­
xando claro que a Igreja estava disposta a renunciar a um poderoso
meio de exibição da sua magnificência. Neste sentido, as recomen­
dações estavam perfeitamente fundamentadas na ideologia da Con-
tra-Reforma, segundo a qual cabia à Igreja antes de tudo a con­
dução espiritual do mundo cristão, função esta que absolutamente
não se coadunava com a ostentação de luxo e pompa à semelhança
das cortes mundanas.56
Diante desta extraordinária coerência da comissão em relação
aos ideais da Contra-Reforma, é de se estranhar o fato de que as
suas deliberações concernentes à exclusão da polifonia tenham
sido, logo após, revogadas pelo próprio Concílio. H. Raynor atri­
bui as causas aos veementes protestos levantados pelo imperador
germânico Fernando I, fundador da monarquia austríaca. Tendo
em vista as habituais atitudes belicosas deste monarca, a Igreja não
se teria sentido em condições de assumir os riscos envolvidos em
eventuais conflitos políticos de gravidade.
Na nossa opinião, entretanto, esta explicação, atendo-se exclu­
sivamente às posições assumidas pelos grandes personagens da His­
tória, não dá a devida importância aos fatores realmente sociais

56. Foi neste sentido também que o papa Paulo IV , diante das obras exuberan­
temente monumentais de Miguel Ângelo, na Capela Sistina, dera vazão ao seu
pasmo, questionando se “ se tratava de uma casa de Deus ou de uma casa de banhos
públicos” . (Citado em H . Riemann, H a n d b u c h der M u sikgeschichte , Leipzig,
Breitkopf & Härtel, 1920.)
110 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

envolvidos no processo. Acreditamos que devem ter sido argu­


mentos outros que acabaram por induzir os conciliados a voltar
atrás nos seus propósitos. A nosso ver, é provável que os membros
do Concílio, talvez também por influências externas — e aí o impe­
rador austríaco pode ter desempenhado um certo papel —, se ti­
vessem dado conta da inviabilidade prática, naquele momento, de
tornar a impor exatamente aquelas formas do canto monódico que,
antes, por iniciativa da intelectualidade urbana, haviam sido vito­
riosamente combatidas em favor da polifonia. Afinal de contas, a
polifonia já fazia parte de uma arte da qual toda a população urbana
se orgulhava, considerando-a como sendo a sua arte. E a perspec­
tiva de vê-la expulsa da sua Igreja haveria de ser considerada como
uma grave afronta. A burguesia, já habituada a participar ativa­
mente dos assuntos culturais públicos, certamente haveria de
reagir ao tomar conhecimento de tais resoluções. Além disto, é
perfeitamente viável a hipótese de que a Igreja, após um exame
mais aprofundado da questão a nível político, tenha chegado à con­
clusão de que uma total abdicação de toda ostentação de magnifi­
cência poderia pôr em risco a situação dominante que havia de ser
preservada. O próprio desenrolar do processo histórico haveria de
mostrar que mesmo as determinações muito mais brandas, que
finalmente foram decretadas em conseqüência ao Concílio, che­
garam a afetar muito pouco a efetiva produção da música litúrgica.
Entendemos, portanto, que a revogação das determinações da Co­
missão Litúrgica tiveram sua causa menos nos temores envolvidos
em eventuais desentendimentos com este ou aquele monarca, do
que na real inconveniência em coibir certas manifestações musi­
cais, levando em consideração as reais funções que elas desempe­
nhavam na sociedade renascentista.
De qualquer forma, estes acontecimentos nos dão uma idéia da
importância do papel desempenhado pelas manifestações musicais
nessa época. Foi a partir da legitimação da polifonia litúrgica que o
centro da produção musical acabaria por transferir-se definitiva­
mente para a Itália, fato este que concorreria substancialmente
para as realizações culturais da Alta Renascença no campo da poli­
fonia. Um grupo de músicos italianos foi encarregado pelo papa
Gregório X III da tarefa de revisar e aperfeiçoar a técnica polifô-
nica, de modo a adaptá-la aos ideais da Contra-Reforma. E deste
trabalho resultaria o chamado Estilo Palestrina, com o qual a mú­
sica litúrgica, fazendo uso dos amplos recursos técnicos que se ha­
viam acumulado, atingira, na segunda metade do século XVI, seu
período áureo.
A POLIFONIA 111

O Estilo Palestrina

A participação da música nos diversos modos de comunicação,


que tiveram papel relevante na cultura civilizada da Idade Média e
do Renascimento, havia-se caracterizado invariavelmente pela
predominância das práticas de música vocal. Isto significa que as
estruturas musicais nunca puderam deixar de relacionar-se de al­
guma forma com textos verbais, assumindo os atos de fala o as­
pecto de atos de cantar.
Na música monódica, o ato de cantar consistira basicamente na
declamação musical de textos, isto é, numa prática na qual a lin­
guagem verbal era veiculada de forma a serem aproveitadas as fa­
culdades inerentes às estruturas melódicas de atuar sobre a compe­
tência social dos atos de fala. Tais procedimentos absolutamente
não foram afetados pelas primeiras práticas polifônicas do orga-
num. Somente por ocasião das manifestações da ars antiqua, no
âmbito da Escola de Notre-Dame, deparamo-nos com uma verda­
deira ruptura radical no que diz respeito ao uso tradicional do ato
de cantar, na medida em que, numa evidente atitude de contes­
tação, as estruturas polifônicas passaram a despojar o texto verbal
de toda sua competência social. Esta contestação, entretanto, se
esvaziaria a partir do período de Borgonha, tornando a música a
aproximar-se do conteúdo verbal e passando a utilizar os atos de
fala como pretexto para o desenvolvimento de estruturas polifô­
nicas que de alguma forma fossem condizentes com as palavras. De
início, nos parece evidente tratar-se de exibir uma magnificência
que, embora não explícita a nível verbal, também não deixava de
adequar-se ao texto, atribuindo a este uma nova dimensão de gran­
diosidade. Pouco a pouco, porém, esta exibição deixaria de consti­
tuir uma função essencial, principalmente no caso da música litúr-
gica vinculada aos princípios da Contra-Reforma.
Assim, a polifonia da Alta Renascença viria a caracterizar-se,
entre outros aspectos, pelo desenvolvimento de procedimentos in­
teiramente novos de atuação sobre a competência social do texto.
Trata-se de uma atuação que já não se dava simplesmente pela
declamação musical de enunciados verbais, mas por um trata­
mento específico das palavras do texto a um nível polifônico que
escapava completamente às estruturas usuais na linguagem verbal.
Se, de uma parte, a textura polifônica, não obedecendo à lineari­
dade discursiva da linguagem verbal, sem dúvida prejudicava a
plena realização lingüística do texto, por outro lado, ela vinha
acrescentar-lhe características inteiramente novas, sob a forma de
algo a que os intelectuais renascentistas se referiam quando fa­
lavam em dare spirito vivo alie parole.
112 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Tentaremos aqui uma análise dessa música, tomando como


exemplo o final do Credo da Missa Papae Marcelli, de Palestrina.57
Uma primeira aproximação já nos mostra que o texto se re­
sume a uma única palavra: amen. Esta palavra, entretanto, aparece
por nada menos de 23 vezes, enunciados estes que na nossa repro­
dução vêm numerados. É verdade que, por duas vezes, aparecem
dois enunciados simultâneos que coincidem exatamente no tempo:
são os enunciados de ordem 11 e 12, como também os de ordem 21
e 22. Mas, mesmo diante do argumento de que tais enunciados
perfeitamente coincidentes possivelmente sejam percebidos como
um só, ainda resta uma seqüência de 21 enunciados consecutivos
da mesma palavra amen.
Se observarmos ainda as trajetórias melódicas a que obedecem
estes enunciados, notaremos que a maioria deles — em número de
14 — se movimenta por uma escala descendente de cinco graus.
São os enunciados de números 1, 2, 4, 5, 8, 9, 11, 14, 15, 17, 19,
20, 22 e 23 que seguem este modelo. Outros três — os de números
7, 10 e 13 — utilizam apenas um fragmento dessa escala descen­
dente, enquanto outros cinco ainda — de números 3, 6, 12, 16 e 21
— são direcionados em sentido inverso, baseando-se em fragmen­
tos de escala ascendentes. Somente um único enunciado — o de
número 18 — é de estrutura realmente diversa, consistindo de um
salto de terça descendente. Pode-se concluir daí que a escala des­
cendente de cinco graus funciona como elemento principal, ou
seja, como motivo melódico gerador da estrutura polifônica, ao
passo que os fragmentos de escala descendentes e ascendentes po­
dem ser considerados como sendo variantes daquele.
Todos os enunciados da palavra amen, com exceção daquele de
número 18, portanto, caracterizam-se por serem declamados se­
gundo trajetórias melódicas extremamente semelhantes. Tudo in­
dica, então, tratar-se de um caso de redundância inteiramente
absurda, cujo resultado só poderia ser, se não a completa des­
truição, pelo menos uma debilitação substancial da competência
social dessa palavra enquanto ato de fala. O resultado sonoro, en­
tretanto, se nos apresenta surpreendentemente como uma forma
de expressão eminentemente rica e, sobretudo, bela de veicular a
palavra. De fato, tem-se a impressão de que a estrutura polifônica,
com toda a sua redundância, é dotada da faculdade de dare spirito
vivo à palavra amen. É como se esta palavra acabasse por ser trans­
plantada para outras esferas, para um universo inteiramente idea­
lizado e distante do mundo cotidiano, onde ela adquirisse a capa-

57. A. Smyers, of, cit., pg. 148.


A P O LIFO N IA 113

MISSA PAPAE MA R C t L L I
114 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

cidade de desenvolver-se em formas de cuja existência até então


não se fazia a menor idéia. E este fenômeno não pode residir se­
não na maneira pela qual os 23 enunciados, independentemente
ia sua função lingüística verbal, são entrelaçados na estrutura po-
liíôniea.
A observação do exemplo acima nos mostra ainda que esta es-
truiui ; pressupõe uma distribuição adequada dos enunciados entre
as diversas vozes, de tal forma que sua associação não se dê como
uma mera seqüência linear, raas em procedimentos específicos,
pelos quais uns se sobrepõem aos outros. Evidentemente Isto vem
implicar não apenas uma perfeita coordenação rítmica, mas tam­
bém em um uso apropriado de consonâncias e dissonâncias entre as
alturas sonoras simultâneas que resultam dessa associação.
Note-se que os seis primeiros enunciados marcam as entradas
sucessivas das seis vozes implicadas na estrutura. O primeiro
enunciado localiza-se no 2? baixo e é retomado, imediatamente
depois de iniciado, como segundo enunciado confiado ao soprano.
Este enunciado do soprano, portanto, num procedimento habitual­
mente designado pelo termo imitação, sobrepõe-se àquele do 2?
baixo. Logo em seguida, antes mesmo de se terem concluído os
primeiros dois enunciados e sobrepondo-se ainda a estes, obede­
cendo ao mesmo processo imitativo, acrescentam-se os enunciados
de números 4 e 5 localizados, respectivamente, no 1? baixo e no
contralto. Situando-se estes novos enunciados à distância de uma
quinta justa abaixo dos primeiros, resulta uma complementari­
dade, pela qual o 1? baixo vem dar seqüência à trajetória descen­
dente iniciada pelo 2? baixo, da mesma forma como a escala des­
cendente do soprano encontra sua continuidade naquela do con­
tralto. A esta trama acrescentam-se ainda as variantes baseadas
nos fragmentos de escala ascendentes dos enunciados de núme­
ros 3 e 6, no 29 e 1? tenores respectivamente, também num pro­
cesso de imitação e de forma que um venha complementar a es­
cala do outro.
Percebe-se imediatamente, mesmo a partir das observações
ainda superficiais acima desenvolvidas, que se tratava de estruturas
polifônicas cuja complexidade técnica superava em muito todas as
outras que os haviam precedido, e que, sem dúvida, haviam de
implicar um sistema ordenado de normas que viabilizassem a pro­
dução de tais estruturas. Estas normas, baseadas evidentemente
nos pressupostos que acima estabelecemos, discutindo os princí­
pios gerais de números 6-8, acabariam por assumir a forma de uma
disciplina didática e normativa, pela qual se procurava garantir o
domínio dessa técnica envolvida na produção de tais estruturas.
Trata-se de uma disciplina que, até os nossos dias, se inclui nos
A POLIFONIA 11'

currículos acadêmicos das escolas de música e que se denomina


contraponto.58
Em referência ainda ao mesmo exemplo, cabem aqui as se­
guintes observações:
1) O esquema rítmico, de acordo com o estabelecido no sexto
princípio geral, pressupõe a figura de mínima — cJ — como uni­
dade de tempo, correspondendo as figuras de semibreve, semibreve
pontuada, breve e breve pontuada —o , o-, |o[e y » — a durações
correspondentes respectivamente a 2, 3, 4 e 6 tempos. A semínima
— ^ — corresponde a tempo e a mínima pontuada — cJ — a
1 ?
l y tempos.
2) Quanto à recorrência dos tempos fortes, cabe observar que
as barras de compasso, que se encontram na nossa reprodução do
exemplo, não constam do original, tendo elas sido acrescentadas
aqui somente a fim de facilitar a leitura por meio de uma grafia
mais atualizada. Para a indicação correta dos tempos fortes, entre­
tanto, essas barras não poderão servir de critério definitivo. De
acordo com as normas vigentes na época, era o início de cada semi­
breve que se identificava como tempo forte. Ora, uma observação
atenta do nosso exemplo de fato leva à conclusão de que esta norma
justifica, de um modo geral, a grafia aqui usada, onde, de acordo
com a teoria tradicional da música, os primeiros e terceiros tempos
dos compassos quaternários são fortes. A recorrência rigorosa­
mente regular que daí resulta, porém, é contrariada por duas ve­
zes, ou seja, por ocasião das semibreves RE e DO do enunciado
n? 14, bem como da semibreve SOL que inicia o enunciado n? 19.
Trata-se do caso peculiar de semibreves que, quebrando a recor­
rência regular, levam, numa só voz, a uma antecipação do tempo
forte, caracterizando-se, portanto, como sincopas.
3) Quanto ao emprego dos intervalos harmônicos na simulta­
neidade das trajetórias melódicas, os usos da época permitiam nos

58. O contraponto, portanto, se nos apresenta como uma espécie de gram ática
da polifonia renascentista. Em virtude disto, entendemos que essa disciplina deva
ter por objetivo principal esclarecer, utilizando uma atividade prática de caráter
eminentemente artesanal, como, num determinado momento histórico, as forças
produtivas envolvidas na produção musical puderam realizar-se de forma perfeita­
mente adequada para atender às solicitações culturais da época. É evidente, então,
que esta disciplina deve basear-se numa investigação aprofundada da realidade m u­
sical daquele momento histórico, sem pretender, por generalizações indevidas, uma
aplicação direta no âmbito da produção musical própria a outras realidades sócio-
culturais posteriores ao Renascimento. Neste sentido, entendemos ser perfeita­
mente correta a posição assumida por K. Jeppesen, quando considera o contraponto
como um estudo do “ estilo polifônico vocal do século X V I ” . (C o u n terp oin t)
116 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

tempos fortes apenas as consonâncias. Consideravam-se como


sendo consonantes os intervalos de classe I e II de acordo com o
quadro estabelecido no oitavo princípio geral, ou seja, as chamadas
consonâncias perfeitas, bem como os de classe III e IV, que se
denominavam consonâncias imperfeitas. As dissonâncias, isto é,
os intervalos de classe V, eram permitidas somente nos tempos
fracos e na medida em que se justificassem pelas trajetórias meló­
dicas da vozes. Tais justificativas acabariam por ser codificadas pe­
las regras referentes ao tratamento das dissonâncias, às quais acima
já nos referimos.
Finalmente, em relação ao fato de que uma das características
da polifonia renascentista residia numa alteração radical na sua
atuação sobre o texto, vimos que as palavras passaram a ser tra­
tadas a um nível predominantemente musical, essencialmente di­
verso daquele corrente na linguagem verbal. Caberia aqui, então,
um exame mais aprofundado sobre a natureza e as conseqüências de
tais alterações, a fim de verificar como se vieram situar estas estru­
turas musicais no âmbito geral da comunicação social e, especifi­
camente, até que ponto seria lícito falar-se em uma linguagem po-
lifônica.
Quanto às relações que se estabeleciam entre as estruturas poli-
fônicas e os textos verbais subjacentes, sabe-se que era freqüente a
intenção de ilustrar musicalmente determinados fragmentos do
texto, fazendo uso dos meios específicos inerentes à textura polifô-
nica. Assim, por exemplo, no motete a seis vozes Vidi Turbam
Magnam, de Palestrina, na segunda parte, que se inicia com as pa­
lavras Et omnes angeli stabant in circuit throni, o termo omnes
justifica o uso simultâneo de todas as vozes. Já quando o texto
prossegue com Et quatuor animalium , a trama musical é reduzida
a apenas quatro vozes. Por ocasião de Ascendit Deus, as traje­
tórias melódicas são ascendentes, enquanto o Descendit de coelis é
cantado em movimentos melódicos descendentes. São estes apenas
alguns exemplos v>que mostram o amplo uso que se fazia de proce­
dimentos eminentemente ilustrativos, os quais, aliás, já haviam
sido empregados em grande escala nos madrigais profanos, produ­
zidos para a aristocracia, e que se tinham revelado como perfeita­
mente adequados ao princípio do dare spirito vivo alie parole.
Ora, ao que tudo indica, estes procedimentos ilustrativos — ou
de comentário — do texto haviam sido alvo de uma preocupação
relevante na produção musical do Renascimento e, uma vez que o
ato de cantar se amoldara às estruturas polifônicas, com o objetivo
de ilustrar ou comentar o texto, estas estruturas haveriam de su­

59. Citados em A . Smyers, op. cit., pg. 148.


A POLIFONIA 117

jeitar-se a formas de expressão inteiramente distintas daquelas da


linguagem verbal.60Já não se tratava mais de uma linguagem ver­
bal que fazia uso de determinados procedimentos musicais, mas
de um modo de comunicação musical autônomo, substancialmente
distinto do verbal, cujos atos comunicativos percorriam um ca­
minho paralelo aos enunciados verbais. As estruturas polifônicas,
portanto, embora como comentários se referissem a textos verbais,
haveriam de ser elaboradas de acordo com princípios próprios, in­
teiramente desvinculados daqueles da linguagem verbal. É neste
sentido que entendemos poder afirmar que, com a polifonia renas­
centista, se operara a definitiva emancipação de um modo de co­
municação especificamente musical.61
Este modo de comunicação baseava-se em associações efetuadas
sobre entidades musicais, as quais, sob a forma de motivos, tinham
por traços distintivos as suas respectivas trajetórias melódicas. Era
da articulação desses motivos que podiam resultar estruturas por­
tadoras de um significado ilustrativo.
Ora, estas considerações naturalmente nos sugerem a tentativa
de uma análise em analogia às associações efetivadas na linguagem
verbal. De fato, os motivos, de cuja associação resulta a estrutura
polifônica, sem dúvida podem ser comparados aos monemas, de
cuja articulação resultam os sintagmas lingüísticos. E, se real­
mente se verificar como sendo procedente esta analogia, as estru­
turas polifônicas de fato viriam apresentar-se como atos comuni­
cativos similares aos atos locutórios.
O grande problema que apresenta esta analogia, entretanto,
reside no fato de que, nos atos de fala, os monemas — geralmente
sob a forma de palavras — têm a faculdade de propiciar referências
— sob a forma do significado — a uma ampla gama de itens do
conhecimento humano, de tal maneira que a articulação desses
monemas acaba por conduzir a uma articulação análoga das refe­
rências. Esta modalidade de significação, porém, como já tivemos
ocasião de verificar, dificilmetne encontra o seu correlato equiva­
lente nas estruturas musicais.
Acontece, entretanto, que a polifonia da Alta Renascença de
certa forma procurava superar exatamente as limitações desta na­
tureza. Sem dúvida, o emprego de movimentos melódicos ascen­
dentes e descendentes com o objetivo de ilustrar ou comentar pa-

60. De forma análoga como ocorre na ilustração gráfica, também a ilustração


musical pressupõe a elaboração de estruturas expressivas específicas, baseadas em
procedimentos próprios exclusivamente ao universo da música.
61. Esta emancipação, aliás, já havia sido experimentada de uma certa forma na
ars antiqua , com a diferença, entretanto, de que então absolutamente n io se tratava
de ilustrar o texto, mas, muito pelo contrário, de destruí-lo.
118 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

lavras como ascendit e descenuit, bem como outros procedimentos


como, por exemplo, o uso de movimentos rítmicos mais bruscos
sempre quando se tratava de fragmentos de texto do tipo Sonus re­
pente venit super eos, no motete Dum Complerentur Dies Pente­
costes, também de Palestrina, não representam senão uma tenta­
tiva de estabelecer, de uma maneira perfeitamente explícita a nível
sensorial, determinadas referências lingüísticas.
Tudo parece indicar, então, que a produção polifônica renas­
centista trazia as marcas da preocupação em submeter as manifes­
tações musicais âs exigências de uma ainda incipiente linguagem
musical, onde os atos de cantar viessem apresentar-se como verda­
deiros atos locutórios.
A plena realização dessa linguagem, no entanto, ainda perma­
neceria prejudicada pelas evidentes limitações quanto à referência,
cujo alcance de significação, baseado unicamente em princípios
ilustrativos, ficava muito aquém da referência verbal. Esta limi­
tação, porém, viria marcar as manifestações polifônicas por um
traço muito peculiar. Trata-se do fato de que, uma vez que os mo­
tivos, como monemas musicais, só podiam referir-se a elementos
do texto verbal, não poderia tratar-se senão de uma espécie de lin­
guagem, onde os atos comunicativos eram enunciados com o obje­
tivo de tornar acessíveis à sensibilidade musical certos aspectos re­
lacionados ao texto. Em virtude destes objetivos, poder-se-ia afir­
mar que os atos de cantar, nesta incipiente linguagem musical, a
nível de atos elocutórios assumiam o caráter de atos de ilustrar ou
de comentar.
Cabe questionar aqui a quem efetivamente se destinavam estes
atos comunicativos. Ora, sabe-se que o século X V I se mostrava
propício ao conceito estético de la musica comuna, termo este que
se refere a algo como uma música facilmente assimilável, isto é,
uma música natural, regular e preferivelmente de certa forma aca­
dêmica.62 O ideal da produção musical renascentista, portanto,
era uma arte que pudesse ser compreendida e apreciada por amplas
camadas da população urbana. As publicações promovidas pelas
numerosas editoras musicais, que haviam surgido na época do Re­
nascimento, sem dúvida concorreram para uma divulgação num
certo setor dessas camadas. É evidente, porém, que as classes real­
mente populares não tinham nenhum acesso a toda essa produção.
De fato, as amplas camadas acima referidas logicamente não in­
cluíam, de forma alguma, nem os camponeses e nem os trabalhado­
res urbanos menos favorecidos, os quais mais tarde viriam a consti­
tuir o proletariado. No entanto, tudo indica que também estes não

62. Cf. K. Jeppesen, op. cit. , pg. 23.


A POLIFONIA 119

deixavam de ter admiração pela cultura burguesa, como por algo su­
perior e intangível a que deveriam todo respeito.
Foi exatamente neste sentido que o princípio da musica co­
muna acabaria por atender aos interesses das classes dominantes,
diante da perspectiva de poder utilizar os produtos artísticos em
função da dominação. Assim caberia à música, juntamente com
outras atividades artísticas, concorrer para o estabelecimento de
uma aliança das classes dominantes com aquele setor da população
urbana que correspondia aproximadamente ao que hoje chamamos
de classe média, a fim de garantir, pelo menos no que concerne à
cultura, a dominação a ser exercida sobre as classes propriamente
populares.
Pode-se supor, entretanto, que uma tal função de dominação
não se constituía conscientemente como objetivo dos próprios mú­
sicos enquanto produtores das estruturas polifônicas, mas unica­
mente a um nível de aproveitamento dessas estruturas por parte
das instâncias detentoras do poder econômico e político. Caso se
verificar que esta suposição corresponde à realidade, concluir-se-á
que os atos de dominar não se situavam entre os atos elocutórios,
mas se qualificavam nitidamente como atos perlocutórios.
O sistema tonal

A linguagem musical, cujos primeiros indícios — como lin­


guagem propriamente dita — , de acordo com as análises que aca­
bamos de desenvolver, julgamos poder situar na polifonia renas­
centista, não chegara, entretanto, à sua plena realização senão após
a evolução de novos princípios musicais próprios ao chamado sis­
tema tonal. Na época em que se completava esta evolução, isto é,
na primeira metade do século XVIII, a música já era considerada
como sendo não apenas uma espécie de linguagem, mas sobretudo
um modo de comunicação que obedecia a certas determinações, as
quais acabaram por ser englobadas num sistema filosófico-musical
sob a denominação de teoria dos afetos. Segundo tais determi­
nações, a música viera estabelecer-se como a linguagem mais ade­
quada sempre que se tratava de expressar ou provocar certos senti­
mentos, emoções e paixões, ou seja, os afetos humanos.1
É verdade que, posteriormente, a teoria dos afetos viria a sofrer
sérias objeções, pondo-se em dúvida se realmente pudesse tratar-se
na música de expressar sentimentos, emoções e paixões, qualquer
que fosse sua natureza.2 Por mais bem fundamentadas que sejam

1. É o que mostram, entre outros, os seguintes fragmentos de textos de pensa­


dores da época:
Charles Batteux: “ A música fala por meios sonoros e esta linguagem é direta­
mente acessível. Já Cícero dizia que a cada afeto estão associados um som e um
gesto. Nada mais natural, então, do que concluir que de uma seqüência adequada
de tais sons ou gestos venha resultar um discurso coerente” . (T ra ité des B eaux
A rts-R é d u its à un m êm e Principe. In : H . Pfrogner, M u s ik — Geschichte ih re r
D e u tu n g , pg. 205.)
D ’Alembert: “ A música aos poucos tem-se tornado uma espécie de discurso,
uma linguagem, mediante a qual se expressam os diversos sentimentos ou paixões.
Qualquer música destituída dessa forma de expressão teria tão pouco sentido quanto
uma seqüência de palavras que, embora sonoramente harmoniosas, apenas se su­
cedem sem obedecer a uma ordem ou coerência lógica” . ( “ Discours Prélimi-
naire” , Enciclopédia Francesa, In : H . Pfrogner, op. c it ., pgs. 207-8.)
2. Cf. E. Hanslick, V o m M usikalisch-Schönen, Leipzig, 1;854.
O SISTEMA TONAL 121

essas críticas, entretanto, não resta dúvida de que, na época do es­


tabelecimento do sistema tonal, tanto os produtores como os usuá­
rios das estruturas musicais consideravam as mesmas como formas
de comunicação lingüística, as quais, a nível de atos elocutórios,
constituíam manifestações destinadas à expressão de afetos.

A homofonia e a polifonia tonal

O processo que conduziria ao estabelecimento do sistema tonal


tivera seu início por volta do ano 1600, data que marca um impor­
tante movimento de reação contra as complexas estruturas polifô-
nicas do Renascimento. Um grupo de músicos e intelectuais, que
se reunia no palácio do conde G. Bardi em Florença, viera cons­
tituir, sob a denominação de camerata fiorentina, uma espécie de
vanguarda cultural da aristocracia. Com a pretensão de um retorno
ao que se julgava ter sido a monodia da Antigüidade helénica, foi
lançada a proposta e produziram-se as primeiras realizações de uma
monodia acompanhada, hoje freqüentemente chamada de homo­
fonia . 5
A época em que florescia essa música homofônica caracteri­
zava-se também por relevantes trabalhos realizados no campo das
ciências. Após a criação da Geometria Analítica, por René Des­
cartes, parecia que já nenhum problema da natureza seria capaz de
resistir por muito tempo ao raciocínio científico. E, em obras como
o Discurso do Método e Regras para a Condução do Espírito, con­

3. Cf. R. Lenaerts: “ Por volta de 1580 formava-se em Florença junto ao conde


G . Bardi dei Conti Vernio um círculo de sábios e artistas (a Camerata) que, na sua
aspiração de dar nova vida à tragédia antiga, procuravam novas formas musicais que
estivessem mais aptas a reproduzir musicalmente as paixões individuais. Distin-
guem-se dois grupos nesta Camerata: o mais antigo, de G. Bardi, com V. Galilei,
G. Caccini, P. Strozzi e outros, e um mais novo com J. Corsi e J. Peri. O prestígio
alcançado por suas publicações, como o D ia lo g o delia M usica A n íic a e M o d e rn a ,
de Vicentio Galilei, e o D iscorso sopra la M u sica e il C antar bene, de Bardi, con­
tribuíra para a rápida divulgação deste estilo novo, ainda mais que a maioria dos
membros da Camerata eram músicos de talento. Os novos conceitos estilísticos
desta monodia acompanhada podem ser reduzidos aos seguintes: o stile recitativo
reproduz a recitação solística em geral, aproximando-se da palavra falada; o texto
teria de ser claramente compreensível e as repetições de palavras de preferência
teriam de ser evitadas; o stile rappresentativo é destinado ao teatro, consistindo de
melodias que representam musicalmente a ação dramática; o stile espressivo fala à
alma; o texto e a música se fundem na representação de moções espirituais plenas de
paixão” . ( “ Van Monteverdi tot Bach” , in : A . Smyers, A lgem eene M u zie k g e -
schiedenis, pg. 172.)
122 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

sumar-se-ia a definitiva ruptura da ciência com a escolástica. 4Em


Paris fundara-se a Academia das Ciências, a qual, em 1700, pela
primeira vez viera a reconhecer a Acústica como uma ciência autô­
noma. E era da Acústica que se exigia que desvendasse, por meio
da razão científica, os mistérios ainda envolvidos no domínio da
música.
Era a estreita vinculação de um trabalho prático de produção
musical com atividades teóricas de investigação científica que per­
mitiria o surgimento definitivo do sistema tonal, o qual acabaria
por encontrar sua fundamentação numa estrutura de conceitos
perfeitamente racional, edificada sobre os acordes e suas asso­
ciações. De acordo com o caráter naturalístico do racionalismo da
época, os acordes passaram a ser concebidos como projeções arti­
ficialmente explicitadas da própria natureza física do som. E foi
com base nessa concepção que Philippe Rameau desenvolvera o
primeiro Tratado de Harmonia.5 Com o termo harmonia, neste
tempo, não se designava ainda a atual disciplina normativa voltada
á produção musical no âmbito do sistema tonal, mas se referia à
própria essência da música concebida como lingugem dos afetos.
Embora a preocupação racional com os acordes e suas asso­
ciações tenha tido seu início como conseqüência das práticas ho-
mofônicas, isto é, a partir de uma reação contra a polifonia, já no
século XV III a evolução conduziria a uma reabilitação das estru­
turas polifônicas, agora sob a forma da polifonia tonal, em oposição
à primeira, que passaria a ser designada por polifonia modal. E que
agora todos os fenômenos melódicos envolvidos na trama das di­
versas vozes simultaneamente implicadas necessariamente teriam
que sujeitar-se ao novo sistema. Assim, enquanto na polifonia mo­
dal qualquer acorde não podia surgir senão como conseqüência
quase passiva das trajetórias melódicas das diversas vozes, na poli­
fonia tonal essas trajetórias já são conscientemente programadas
tendo em vista os acordes a serem alcançados.6

4. É interessante observar-se que a teoria da música desenvolvida nessa época


entrara quase inteiramente na órbita das ciências naturais. Foram inúmeros os cien­
tistas — geômetras, físicos, arquitetos e astrônomos — que passaram a ocupar-se
tanto dos fundamentos acústicos como de toda sorte de problemas teóricos que
diziam respeito á música. O próprio Descartes escrevera um tratado de música. (R.
Descartes, M usicae C om p en d iu m , redigido a partir de 1618, publ. post. G. Z ijll,
Utrecht, 1650.)
5. J. Ph. Rameau, T ra ité de 1’H a rm o n ie , R éduite d ses Príncipes N aturelles,
Ballard, Paris, 1722.
6. A teoria tradicional freqüentemente se refere a estes dois princípios com os
termos de estrutura h o rizo n ta l e vertical, tomando por base a notação gráfica, onde
de fato a melodia comparece como uma seqüência horizontal e o acorde como um
conglomerado vertical de notas.
O SISTEMA TONAL 123

Princípios gerais

Passaremos, a seguir, a uma abordagem dos novos princípios


gerais a serem acrescentados aos acima já discutidos e que, como
pressupostos teóricos que julgamos indispensáveis para um escla­
recimento adequado da natureza e do funcionamento do sistema
tonal, são relevantes não apenas como objeto da Harmonia, mas
também como contribuições decisivas quando se trata de deter­
minar as particularidades lingüísticas das manifestações concebidas
neste sistema. Os princípios gerais que aqui discutiremos re­
ferem-se:
a) ao conceito de acorde perfeito;
b) à tríade fundamental como entidade básica do sistema;
c) ao dualismo entre as tríades maiores e menores;
d) às funções tonais concebidas no espaço tonal;
e) à interpretação tonal das alturas sonoras individuais; e
f) ao decurso tonal.
a) Nono princípio geral. Entendemos por acorde a entidade
musical resultante da associação harmônica de três ou mais alturas
sonoras distintas, isto é, entre as quais não se dá a relação de oitava, a
qual verificamos ser idêntica ao uníssono/ O acorde será qualifi­
cado como consonante, ou perfeito, quando as associações harmô­
nicas de todas as alturas nele implicadas, tomadas duas a duas, de­
rem origem a intervalos consonantes.8 Consideremos, portanto,
que, representando-se por a:b:c... a entidade que resulta da asso­
ciação harmônica entre as alturas correspondentes às freqüências
a, b, c, ..., esta entidade será um acorde se entre pelo menos três
dessas alturas, por exemplo entre a, b e c, não se verificar ne­
nhuma relação de oitava:

b =# 2na )
c + 2na > para qualquer valor inteiro de n.
c =f= 2nb )

7. De acordo com o postulado da identidade da oitava. Cf. pg. 104.


8. Note-se que esta conceituação difere daquela que normalmente se encontra
nos compêndios de teoria musical, onde geralmente o acorde é definido como con­
junto de sons simultâneos. Assim, por exemplo, encontra-se em E. F. Richter o
seguinte conceito: “ Aos conjuntos de sons simultâneos, combinados de acordo
com determinados princípios a partir dos diversos intervalos, dá-se o nome genérico
de harm onias ou a c o rd e s" . (Lehrbuch d er H a rm o n ie , g. 9.) Esta discordância de­
corre de forma perfeitamente coerente da maneira por nós proposta de conceber os
fenômenos harmônicos não simplesmente a partir da simultaneidade, mas como
produtos de associações peculiares, de acordo com o exposto na discussão dos inter­
valos harmônicos (cf. pg. 101).
124 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Para tratar-se de um acorde perfeito é necessário ainda que os


intervalos a:b, b:c, a:c, ... sejam consonantes.
De maneira análoga como vimos acontecer com os intervalos
harmônicos, são praticáveis também as transformações dos acor­
des. De fato, do postulado da identidade da oitava decorre que um
acorde, como entidade harmônica, não se altera quando se substi­
tuírem quaisquer das alturas nele implicadas por quaisquer de suas
oitavas:

a : b : c : ... = 2na : 2mb : 2pc : ... .

b) Décimo principio geral. O conceito de acorde perfeito tem


sido relacionado com uma outra entidade de ordem mais propria­
mente acústica, ou seja, com a série harmônica. Já no século XVIII,
um dos fundadores da Acústica moderna, Joseph Sauver, chegara a
definir os harmônicos em relação a uma altura básica dada como
sendo aquelas alturas que correspondem a movimentos vibratórios
que apresentam números inteiros de períodos ao mesmo tempo em
que o correspondente à altura básica executa um único.9Os harmô­
nicos de uma altura sonora de freqüência a, portanto, são as alturas
que correspondem às freqüências 2a, 3a, 4a, ... na. Por outra parte,
as investigações empíricas mostraram ainda que, na realidade, todo
som musical contém, por sua própria natureza, uma boa parte de
seus harmônicos.10 Qualquer som musical, portanto, é um por­
tador em potencial de uma série de alturas sonoras, cujas fre­
qüências se relacionam segundo a razão dos números naturais:

1: 2: 3: 4 : .....: n.

É esta série que se designa por série harmônica. Como exemplo,


apresentamos aqui a série harmônica da altura DO. Observe-se que
entre os seis primeiros elementos dessa série não aparecem senão
intervalos consonantes. Trata-se do que aqui chamamos a parte
consonante da série harmônica.
Considerando-se a entidade que resulta da associação harmô­
nica das seis alturas aí contidas, verificar-se-á que as de ordem 1,2,
e 4 são harmonicamente idênticas, o mesmo ocorrendo com as de
ordem 3 e 6. As três alturas de ordem 1, 3 e 5, entretanto, são

9. Cf. H. Scherchen, Vom Wesen der Musik, Mondial Verlag, Zilrich, 1949,
pg. 36.
10. De fato, ouvindo-se um som musical de altura perfeitamente reconhecível,
uma audição atenta pode tornar perceptíveis, além dessa altura básica, também as
alturas correspondentes a muitos de seus harmônicos.
126 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

harmonicamente distintas, podendo-se concluir que da associação


harmônica dos elementos que compõem essa parte consonante da
série resulta um acorde perfeito.
Foi este fato que veio justificar, de acordo com o pensamento
próprio ao século XVIII, toda a concepção científico-naturalística
do sistema tonal, pois, uma vez que a série harmônica pode ser con­
siderada como sendo um fato objetivo implícito na natureza, ficara
legitimado também o acorde perfeito 1:3:5 como nada sendo senão
uma projeção artificialmente explicitada das propriedades naturais
inerentes ao som musical. Este acorde, por sua vez, é idêntico a
todas as suas transformações, como, por exemplo, 2:3:5, 3:4:5,
1:5:6, 2:5:6, 4:5:6,etc., que no seu conjunto vêm a constituir um
único acorde perfeito.
É evidente que a série harmônica pode basear-se num som de
qualquer altura. Esta altura base, então, que corresponde ao pri­
meiro elemento da respectiva série harmônica, reproduzindo-se
nos elementos de ordem 2 e 4, comparece no acorde na qualidade
defundamento.11 Já o terceiro elemento da série, que reaparece no
elemento da ordem 6, mantém um intervalo de quinta justa em re­
lação ao fundamento, comparecendo no acorde, portanto, como
quinta. De maneira análoga, o quinto elemento da série assume no
acorde o lugar de terça maior. A série harmônica, então, acaba por
identificar-se, na sua parte consonante, com um acorde perfeito,
resultante da associação harmônica de um fundamento, sua quinta
justa e sua terça maior.
Observa-se ainda que da associação entre os elementos de or­
dem 3 e 5 da série harmônica, correspondentes respectivamente à
quinta justa e à terça maior do acorde, resulta um intervalo har­
mônico equivalente a uma terça menor. Conseqüentemente, se as
alturas sonoras envolvidas forem dispostas segundo a razão 4:5:6, a
estrutura do acorde vem favorecer a sua concepção como uma su­
perposição de duas terças, uma maior e a outra menor — corres­
pondentes, respectivamente, às razões 4:5 e 5:6 —, de cuja soma
resulta uma quinta justa — 4:6 = 2:3.12 Foi exatamente sob
esta forma que o acorde perfeito, como tríade fundamental, acabou
por estabelecer-se como entidade básica do sistema tonal.

1 1 . É a este fundamento que a tradicional teoria da música, persistindo na sua


preocupação com a notação gráfica, chama usualmente de nota fundamental.
12. E esta uma concepção que já havia sido antecipada por Gioseffo Zarlino, em
suas Istitutioni Harmoniche (Veneza, 1558). Note-se, entretanto, que, a rigor, ela
está baseada numa falsa identificação entre as associações espaciais e as harmônicas.
De fato, é evidente que as noções de superposição e de soma só podem referir-se aos
intervalos enquanto concebidos como grandezas no espaço e, como tais, são inteira­
mente inadequadas para serem aplicadas aos acordes, que são entidades harmônicas.
O SISTEMA TONAL 127

c) Décimo-primeiro princípio geral. Tomando-se como mo­


delo a tríade fundamental — 4:5:6 — , concebida como superpo­
sição de duas terças, uma maior e a outra menor, naturalmente
haveria de verificar-se também a possibilidade de superposição
dessas mesmas terças, porém em ordem contrária, de forma que a
terça maior viesse situar-se em cima da menor. Assim chegava-se
à explicação de uma outra tríade, distinta da primeira, e que cor­
responde à razão 10:12:15.13Esta tríade, então, que pode ser con­
siderada como sendo uma das transformações de 3:5:15, vem a
constituir a tríade menor, em oposição à outra que acabou por ser
qualificada como tríade maior. Trata-se aqui de uma oposição ba­
seada na simetria verificada na estrutura dessas duas tríades.
A tríade menor, entretanto, logo viria a apresentar um sério pro­
blema teórico, uma vez que ela não se identifica com a parte con-
sonante da série harmônica. Pelo que tudo indica, este problema
representava um verdadeiro desafio a toda a concepção teórica da
época, segundo a qual o acorde perfeito só podia encontrar a sua
legitimação, quando explicável pela natureza física do som de
acordo com os conhecimentos disponíveis na acústica. De fato,
durante praticamente todo o século XVII, a teoria haveria de con­
tentar-se em marginalizar a tríade menor, a qual, como acorde
menos perfeito do que a fundamental, não passava de uma réplica
defectiva daquela.
Uma solução relativamente satisfatória para este problema só
seria encontrada no âmbito da mais recente teoria do dualismo to­
nal. |,; Partindo-se de uma série simétrica em relação à harmônica,
isto é, de uma série de estrutura idêntica àquela mas que se desen­
volva em sentido descendente, os seus elementos, em lugar de cor­
responderem a múltiplos do primeiro, passam a apresentar seus
submúltiplos. A associação harmônica dos primeiros seis ele­
mentos desta nova série, então, dá origem à tríade menor em sen­
tido descendente. O dualismo tonal implica, portanto, que as tría­
des menores sejam tratadas como acordes descendentes, os quais,
na sua configuração de acordo com a razão decrescente 15:12:10,
se caracterizam por ter seu fundamento na parte superior, acres­
centando-se a este uma terça maior e uma quinta justa inferiores.
A oposição entre as tríades maiores e menores acaba por adquirir
então a forma de uma oposição entre acordes ascendentes e des­
cendentes.

13. De fato, as razões 10:12 (= 5:6) e 12:15 (= 4:5) correspondem a duas


terças, sendo a primeira menor e a outra maior.
14. Esta teoria foi desenvolvida principalmente nas obras de H. Riemann, so­
bretudo em Die Natur der Harmonik., Waldersee, Leipzig, 1882.
128 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

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T rU d u d e s c e n d e n t*

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O SISTEMA TONAL 129

Em virtude das críticas a que está sujeita esta teoria do dua­


lismo tonal,15 bem como levando em consideração o fato de que,
em toda a prática da música tonal, as tríades — tanto as maiores
como as menores — têm sido tratadas como sendo construídas
sobre fundamentos inferiores, preferimos seguir as concepções
mais tradicionais, distinguindo entre as tríades maiores e menores
de acordo com a natureza das terças nelas envolvidas, conside­
rando estas sempre em relação ao fundamento.16
d) Décimo-segundo princípio geral. O sistema tonal, para po­
der basear-se totalmente nas tríades, naturalmente haveria de ser
estruturado de forma a comportar diversas tríades que, embora
obedecessem ao mesmo modelo, fossem capazes de assumir indivi­
dualidades distintas. É neste sentido que se passou a considerar o
sistema como determinado por uma tríade central, à qual se asso­
ciam duas outras tais que uma delas esteja situada de forma a coin­
cidir seu fundamento com a quinta daquela e a outra de forma a
coincidir sua quinta com o fundamento da primeira. São estas as
tríades que se designam, respectivamente, pelos termos de tônica,
dominante e.subdominante\

dominante

Subdom inante

A tônica, portanto, ocupa o centro tonal, lugar este que lhe é


designado com auxílio das duas tríades satélites que são a domi-

15. Note-se, por exemplo, que todo o fenômeno de simetria, que serve de base a
esta teoria, se realiza exclusivamente no espaço mélico, de forma que também aqui
se trata, a rigor, de uma incoerência, uma vez que os fenômenos espaciais acabam
por ser usados para a explicação das entidades harmônicas.
16. É esta a distinção que se encontra na grande maioria dos tratados teóricos,
como, por exemplo, em E. F. Richter: “ Enquanto muitas tríades são formadas por
terças maiores e quintas justas, há outras que contêm a terça menor e a quinta justa,
Trata-se, respectivamente, das tríades maiores emenores” . ( Op. cit., pgs. 9-10.) É
também nesta concepção que se baseia a terminologia usual, designando-se as tría­
des pela altura do fundamento e pela natureza da sua terça. Assim, por exemplo, a
tríade com terça maior, cujo fundamento está situado na altura DO — [DO:MI:
SOL] —, é chamada tríade de DO maior, enquanto aquela com terça menor e
fundamento RE — [RE-.FA-.LA] — será a tríade de RE menor.
130 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

nante e a subdominante. O sistema assim constituído, que com­


porta exatamente as sete alturas sonoras que compunham as es­
calas modais, tem assegurado a sua unidade interna pelo fato de
que tanto a dominante como a subdominante mantêm com a tônica
um elo de ligação, sob a forma de um elemento comum. E como se
a dominante dominasse a tônica por cima e a subdominante — ou
dominante inferior —, por baixo.17

j)omino.r>fe
Tû/ttcc.

-- ç-- -------------------------
* 3--G——----- ©--------------------
1r ----------------------------- --

-e-
------------------- o-----------

Note-se que esta concepção novamente implica uma alusão ao


espaço. Não se trata aqui, entretanto, do espaço mélico, uma vez
que as alturas sonoras de cuja associação resulta, por exemplo,
uma tríade identificada como Subdominante podem perfeitamente
situar-se em cima daquelas envolvidas nas tríades de tônica e domi­
nante. 18 Além disto, esta nova analogia com o espaço, embora

17. Esta forma de conceber o sistema tonal, como uma estrutura de tríades
interligadas por superposição, embora ausente na maioria dos tratados teóricos tra­
dicionais, comparece explicitamente em E. F. Richter: “ Na forma sob a qual se
apresenta naturalmente a tríade fundamental, isto é, como superposição de terças, o
fundamento comparece na extremidade inferior, como base, e a quinta na extre­
midade superior, como topo. Qualquer outra tríade que se queira relacionar com
esta deve, como entidade distinta, situar-se fora da realidade sonora desta, mas, ao
mesmo tempo, basear-se em um de seus elementos, para, desta forma, originar-se
como em conseqüência da primeira. Ora, este elemento-só pode ser encontrado nas
extremidades da tríade fundamental, ou seja, no seu fundamento ou na sua quinta.
A quinta da tríade fundamental, portanto, tornar-se-á fundamento de uma segunda
tríade, assim como o fundamento virá figurar como quinta de uma terceira” . (Op.
cit., pg. 10 .) * , ____ (____ _____
18. Como, por exemplo, na seguinte seqüência j - s -- j--— dr , que

representa uma sucessão das tríades de tônica, sabdominante, dominante e nova­


mente tônica.
O SISTEMA TONAL 131

justificada no esquema acima apresentado, dificilmente poderá ser


verificada através da percepção auditiva. Entendemos tratar-se de
uma nova categoria, inexistente antes do surgimento do sistema
tonal, para cuja designação o termo espaço certamente não é per­
feitamente adequado. Na falta de um outro, entretanto, e tendo em
vista que esta analogia pode ser de grande utilidade para o es­
clarecimento dos fenômenos mais relevantes envolvidos na mú­
sica tonal, empregaremos aqui o termo espaço tonal para de­
signar a categoria referente ao meio no qual se situam as tría­
des tonais.
E importante observar que qualquer tríade é perfeitamente ca­
paz de desempenhar a função de tônica, de dominante ou de sub-
dominante. Esta função depende exclusivamente do lugar que a
tríade ocupa num determinado segmento do espaço tonal definido
pela associação das três tríades constitutivas do sistema tonal, seg­
mento este que se denomina tonalidade.‘9 É costume designar-se as
diversas tonalidades de acordo com as tríades que, na função de
tônica, ocupam seu centro.20
Com os termos tônica, dominante e subdominante, portanto,
designam-se não propriamente as tríades, mas os relacionamentos
que se estabelecem entre estas e as tonalidades nas quais elas se
situam. Designando-se por A o conjunto das tonalidades — [x,,
x2, x,, ...] — e por B o conjunto das tríades — [y,, y,, y,, ...] — ,
estabelecem-se, então, determinadas leis que definem os relacio­
namentos dos elementos de A com os de B. É a estas leis que se dá
o nome de funções tonais, pois é por meio delas que cada tríade
pode ser definida como função de uma tonalidade:

y = f(x).2'

19. É evidente que a superposição de tríades, de forma a coincidir o fundamento


de uma com a quinta da outra, pode-se repetir em ambos os sentidos ad infinitum,
de modo que a extensão do espaço tonal se revela como sendo infinita. O sistema
tonal, entretanto, pressupõe que neste espaço se delimite um determinado segmento
que comporta apenas três tríades superpostas. É a tais segmentos que se aplica a
denominação de tonalidades.
20. Assim, as tonalidades de DO maior e LA menor, por exemplo, corres­
pondem àqueles segmentos do espaço tonal cujos centros sâo ocupados, respectiva­
mente, pelas tríades de DO maior e LA menor.
21. Assim, por exemplo, quando identificamos o acorde resultante da asso­
ciação harmônica entre as alturas SOL, SI e RE como sendo uma tríade maior que
se relaciona com a tonalidade de DO maior pela função de dominante, diremos que
[SOL:SI:RE] = D(DO).
De forma análoga, a expressão
[RE:FA:LA] = s(la),
132 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

e) Décimo-terceiro princípio geral. Tomando-se as sete alturas


distintas envolvidas no sistema tonal como elementos das três tría­
des superpostas e dispondo-as num segmento do espaço mélico de­
limitado entre o fundamento da tônica e sua oitava superior,
obtêm-se as escalas tonais. De acordo com a natureza — maior ou
menor — das tríades de tônica, essas escalas se classificam em
maiores e menores.22 Em conseqüência disto, os oito modos, que
haviam sido estabelecidos no sistema modal, se reduziram a apenas
dois, ou seja, o modo maior e o modo menor.
Os diversos graus das escalas tonais, então, vêm permitir uma
identificação em termos das alturas constitutivas das tríades que,
como funções tonais, compõem a tonalidade:

1? g rau = f u n d a m e n t o d a t ô n ic a = T 1ou t ',


o u q u in t a da S u b d o m in a n te = S^ou s^;
2? g rau = q u i n t a d a d o m in a n t e = D ’’ou d"";
39 g r a u = da t ô n ic a
te rça = T-^ou t ’’;
4P grau = fundamento da S u b d o m in a n te = S 1ou s
5 ? g rau = q u i n t a d a t ô n ic a = T sou t15;
o u f u n d a m e n t o d a d o m in a n t e = D 1 ou d1;
6 ? g rau = te rç a da S u b d o m in a n te = S ^ o u s '1;
7 ? g rau = te rç a d a d o m in a n t e = D 1o u d l

Ora, esta identificação naturalmente haveria de conduzir a uma


nova concepção da melodia, pela qual, em lugar de se percebê-la

onde as letras minúsculas se referem tanto às funções das tríades menores como às
tonalidades menores, significa que o acorde aí especificado foi identificado como
um a tríade menor que se relaciona com a tonalidade de LA menor pela função de
Subdominante.
22. Propomos, neste sentido, a distinção entre as seguintes escalas:
1) as escalas maiores naturais, com tônica, dominante e Subdominante maiores;
2) as escalas maiores harmônicas, com tônica e dominante maiores e Subdo­
minante menor;
3) as escalas maiores melódicas, com tônica maior e dominante e subdomi-
nantes menores (estas escalas se usam quase exclusivamente em sentido descen­
dente);
4) as escalas menores naturais, com tônica, dominante e Subdominante me­
nores ;
5) as escalas menores harmônicas, com tônica e Subdominante menores e do­
minante maior;
6) as escalas menores melódicas, com tônica menor e dominante e Subdomi­
nante maiores (estas escalas se usam quase exclusivamente em sentido ascendente).
Os termos aqui usados, de escalas naturais, harmônicas e melódicas, são os que
se encontram na teoria da música tradicional, onde, entretanto, são empregados
somente em referência ás escalas menores. Não vemos nenhum motivo por que não
ampliar seu uso também para as maiores, uma vez que tais escalas, embora com
menor freqüência, têm sido aplicadas na prática da música tonal.
O SISTEMA TONAL 133

jOO muior
134 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

unicamente como uma entidade determinada pela trajetória efe­


tuada por uma voz no espaço mélico, se vem superpor-lhe um se­
gundo aspecto baseado na interpretação tonal das alturas indivi­
duais nela implicadas. Qualquer estrutura melódica, na medida em
que é percebida desta forma, vem constituir então uma entidade
musical complexa em virtude de envolver dois espaços essencial­
mente distintos. É â melodia concebida desta maneira que apli­
camos aqui a designação de melodia tonal.
Como exemplo do processo de interpretação tonal envolvido na
concepção da melodia tonal, mostramos aqui uma simples análise
da melodia do Hino à Alegria, assim como foi utilizada por Bee-
thoven no final da Nona Sinfonia. Observa-se que as principais
alturas que comparecem na sua trajetória melódica se sujeitam a
uma interpretação como elementos das tríades de tônica e domi­
nante na tonalidade de RE maior. Resulta, neste caso, uma estru­
tura tonal que consiste em uma constante alternância entre essas
duas funções. É evidente que tais estruturas podem assumir uma
complexidade muito maior.

É esta interpretação tonal, então, que acaba por caracterizar


não apenas as melodias, mas também todas as outras estruturas
musicais concebidas no sistema tonal. Assim, na polifonia desen­
volvida neste sistema, as trajetórias executadas pelas diferentes vo­
zes simultâneas permitem interpretações análogas, como o mostra
o fragmento aqui apresentado extraído do Messias, de Händel.
Também nas estruturas homofônicas pode-se notar que os acordes
formados pelo acompanhamento não servem senão para explicitar
a interpretação tonal da melodia, como se observa no trecho aqui
reproduzido de um Quarteto de Haydn.
O SISTEMA TONAL 135

Qendel; MesSí^S

H a y d o : Q ü a.r te -to e>f>. J


136 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

f) Décimo-quarto principio geral. A interpretação tonal das


alturas sonoras envolvidas nas estruturas melódicas e polifônicas
vem dar origem agora a uma nova estrutura, essencialmente dis­
tinta daquelas, a qual, como estrutura tonal, acaba por sobrepor-
se às outras. C fato de que ela se nos apresenta sob a forma de uma
seqüência de funções dispostas no espaço tonal nos sugere imedia­
tamente que a categoria do espaço tonal, juntamente com aquela
do tempo, determine uma das coordenadas do meio em que se efe­
tua uma outra espécie de trajetória, que já não é a melódica, e
que pode ser qualificada como trajetória tonal. Deparamo-nos aqui,
portanto, com uma nova entidade musical que, embora se asse­
melhe à melodia pelo fato de ser também de natureza cinética, se
distingue da mesma por situar-se numa outra categoria de espaço.
Designaremos esta entidade pelo termo decurso tonal. De forma
análoga como a melodia havia sido definida como o movimento
executado por um objeto sonoro — chamado voz — que transcreve
a sua trajetória num meio determinado pelas categorias de tempo e
espaço mélico, o decurso tonal, então, não poderá ser conceituado
senão como o movimento executado por um objeto tonal que
transcreve a sua trajetória num meio determinado pelas categorias
de tempo e espaço tonal.23
O movimento no espaço tonal se verifica sempre que a inter­
pretação tonal das alturas sonoras envolvidas evidencia > lassagem
de uma função tonal para outra. Tais mudanças de fui ão, cha­
madas encadeamentos, constituem as unidades elementan 5do de­
curso tonal.

23. Observe-se que, no que se refere ao movimento no espaço mélico, o objeto


sonoro que percorre a trajetória tem sido de alguma forma reconhecido pela teoria
tradicional, aplicando-se-lhe o termo voz. Já em se tratando do movimento no es­
paço tonal, entretanto, o objeto tonal carece de qualquer referência. Até um certo
ponto, isto pode ser explicado pelo fato de que, enquanto com o termo “ voz” , na
prática musical, se denota uma realidade relativamente concreta e objetiva, o mes­
mo não se dá com o termo “ objeto tonal” , que se refere a algo decorrente de asso­
ciações operadas pela mente humana e que se qualifica, portanto, como um objeto
muito mais abstrato e subjetivo. Na nossa opinião, entretanto, a referida lacuna
tem sua origem sobretudo nas limitações das considerações teóricas usuais, onde,
no melhor dos casos, o espaço tonal é concebido como uma espécie de outra di­
mensão do próprio espaço mélico, o qual, então, como única categoria espacial apli­
cável à música, é designado pelo termo globalizante de espaço musical. O nosso
posicionamento diante desse fenômeno, pelo contrário, se caracteriza por uma rigo­
rosa distinção entre as duas categorias que de forma alguma devem ser confun­
didas. É exatamente nesta distinção que localizamos a peculiaridade inteira­
mente nova que 0 sistema tonal veio imprimir às manifestações musicais, ou seja,
o fato de que os fenômenos musicais acabaram por situar-se simultaneamente no
âmbito de duas categorias espaciais distintas, dando origem a entidades complexas
resultantes da interação de duas espécies essencialmente diversas de processos ciné­
ticos.
O SISTEMA TONAL 137

Como exemplo, mostramos aqui — em a) — um fragmento de


uma trajetória tonal, realizada de acordo com as normas da Har­
monia tradicional, usando-se quatro vozes que, numa textura pró­
pria à polifonia tonal, efetuam os movimentos melódicos mais
simples suficientes para explicitar a sua interpretação tonal, suces­
sivamente como elementos das tríades de DO maior e FA maior. O
movimento melódico das vozes, portanto, se dá de forma a resultar
um encadeamento que, no espaço tonal, é dirigido de DO para
FA.
Note-se que, neste encadeamento, não está definida a locali­
zação do centro tonal. No entanto, uma vez que intervêm apenas
duas tríades, é provável que uma delas exerça a função de tônica, a
não ser que outros encadeamentos, anteriores ou posteriores, con­
firam esta função a uma terceira tríade. São, portanto, duas as in­
terpretações tonais mais prováveis:

1) T(DO) - S(DO)
ou
2) D(FA) - T(FA).

Note-se ainda que, de acordo com a estrutura do sistema tonal,


entre as duas tríades do encadeamento existe uma altura sonora
comum, que funciona não apenas como elo de ligação, mas sobre­
tudo como fator de oposição. De fato, esta altura — DO, no caso
do exemplo — é fundamento da primeira e quinta da segunda
tríade. São as outras vozes que, por seus respectivos movimentos
no espaço mélico, fazem com que se opere essa mutação na inter­
pretação tonal daquela.24 E é exatamente na natureza dessa mu­
tação que reside a característica específica do encadeamento: a al­
tura do DO, após dominar a primeira tríade como fundamento,
acaba por ser submetida a um novo fundamento — FA — , sob o
domínio do qual passa a exercer o papel subalterno de quinta:

T 1 —► Ss ou D 1 — T\

E por meio desse elemento comum, portanto, que as duas funções


envolvidas passam a opor-se uma à outra.
A todos os encadeamentos em que a oposição entre as duas

24. Isto vem mostrar como, já nos mais simples fragmentos do decurso tonal,
se torna importante a interação dos dois tipos de movimento que se realizam, res­
pectivamente, no espaço mélico e no espaço tonal.
138 A MUSICA C O M O LINGUAGEM

(O.)
áEEEi
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l) j>0
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2) Fa

■j— +
r
3 ) d o

tríades se configura da forma acima descrita aplicaremos aqui a


designação de encadeamentos autênticos.
Já inteiramente diverso é o encadeamento que se nos apresenta
no exemplo b), o qual comporta as seguintes interpretações tonais:

3) T(DO) — D(DO)
e
4) S(SOL) — T(SOL).
O SISTEMA TONAL 139

O elemento comum às duas tríades — a altura SOL — sofre a


mutação de quinta para fundamento,

T —► D 1 ou Ss — T 1,

de forma que a segunda tríade surge em virtude do desapareci­


mento do fundamento da primeira, promovendo-se o elemento que
antes exercia o papel subalterno de quinta à função central de fun­
damento. Os encadeamentos desta natureza, onde a oposição entre
as tríades envolvidas se configura de forma essencialmente distinta
daquela verificada nos primeiros, serão chamados aqui de encadea­
mentos plagais.2’
Representando-se as funções tonais por três eixos horizontais
paralelos, correspondendo o eixo central à tônica, o superior à do­
minante e o inferior à subdominante, resulta um sistema gráfico
que permite a representação da trajetória tonal por meio de ve­
tores. A conotação espacial do decurso tonal fica assim explicitada
de forma perfeitamente coerente com o conceito já estabelecido de
espaço tonal, onde a tônica ocupa o centro, relacionando-se com
duas dominantes, uma superior e a outra inferior. Também a na­
tureza da oposição tonal acaba por encontrar uma simbolização
gráfica, correspondendo os vetores descendentes aos encadea­
mentos autênticos e os ascendentes aos plagais.26
Estes encadeamentos autênticos e plagais então, embora evi­
dentemente não sejam os únicos, sem dúvida desempenham um
papel da mais relevante importância na composição do decurso to­
nal. Quanto às peculiaridades da trajetória tonal, H. Helmholz

25. Entendemos ser de capital importância o princípio da oposição tonal aqui


desenvolvido, pois é por meio dele que se esclarece o caráter dinâmico que assumem
as estruturas tonais.
26. Também H. Schenker propõe uma apreciação espacial desses encadea­
mentos, chegando a denominá-los encadeamentos descendentes e ascendentes.
(Neue Musikalische TheorienundPhantasien,in\ A. Schõnberg, Hartnonielehre,
Universal-Edition, Leipzig-Wien, 1911, pg. 137.)
Já Schõnberg emprega os mesmos termos em sentido contrário, motivado pelo
fato de que o movimento mais usual do baixo na realização destes encadeamentos é
o salto de quarta ascendente e descendente respectivamente. ( Op. cit., pgs. 133 e
segs.) A nosso ver, trata-se de um equívoco por parte de Schõnberg, uma vez que
se baseia na falsa identificação do movimento do baixo, que se dá no espaço mélico,
com o encadeamento, que é um movimento realizado no espaço tonal. Quanto à
terminologia por nós usada, entendemos que os termos aqui propostos, de encadea­
mentos autênticos e plagais, embora não sejam usuais na teoria tradicional, se jus­
tificam por sua analogia com as designações tradicionalmente usadas para as ca­
dências, que normalmente se classificam em autênticas e plagais, exatamente de
acordo com os encadeamentos nelas envolvidos.
140 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

-J' <j 'tJ


b)

f= r T

J=
t— r

a)

«)
O SISTEMA TONAL 141

enuncia um princípio básico, segundo o qual o decurso musical,


qualquer que seja a sua natureza, sempre “ mantém uma relação
estreita e claramente perceptível com um centro, a partir do qual
ele se desenrola para finalmente retornar ao mesmo” . 27
Ora, as realizações de tais decursos, concebidos no sistema to­
nal, quando efetivados em extensão mínima, dão origem às ca­
dências. As cadências mais simples se obtêm partindo-se do centro
tonal por meio de um encadeamento plagal para retornar-se ime­
diatamente com um autêntico, ou, vice-versa, partindo-se me­
diante um encadeamento autêntico e voltando-se com um plagal.
São estas as cadências que aqui mostramos nos exemplos d) e b). A
experiência tem mostrado que o que mais caracteriza as diversas
cadências é o encadeamento de retorno à tônica e neste fato se
baseia a classificação em cadências autênticas eplagais, conforme o
retorno se efetuar com um encadeamento autêntico ou plagal. O
exemplo a) portanto, mostra uma cadência autêntica, e b) uma
plagal.
Sem pretender aprofundar nas múltiplas possibilidades que se
apresentam para a formação de cadências, mostramos aqui apenas
algumas realizações daquelas que usualmente são mais empregadas
na música tonal. Neste sentido, o exemplo c) corresponde a uma
outra realização da cadência autêntica, onde se envolve também a
função de Subdominante; em d) temos a semicadência, que é uma
cadência autêntica à qual falta o retorno à tônica e que, portanto,
se dirige à dominante; e e) mostra uma cadência de engano, isto é,
uma cadência autêntica que, em lugar de retornar à tônica, vem
conduzir a uma tríade intermediária situada entre a tônica e a Subdo­
minante.

Aplicação às práticas tonais

A nossa abordagem da música tonal está eminentemente nor­


teada para as concepções que têm sido desenvolvidas naquelas cor­
rentes teóricas onde, a nível da harmonia, se formulara, a partir de
Riemann, a chamada harmonia funcional. 28 Foi nestas tendências
que teve origem a abordagem das tríades sob a forma das funções
tonais, em oposição às teorias mais comuns no século X IX , que

27. Cf. H . von Helmholz, Die Lehre von den Tonempfindungen, F. Vieweg &
Sohn, Braunschweig, 1913, pg. 470.
28. Cf. H. Riemann, op. cit.
142 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

não viam nos acordes senão determinados conglomerados de notas


simultâneas, apoiadas em notas fundamentais que se localizavam
nos diversos graus das escalas. Na nossa opinião, a harmonia fun­
cional teve o grande mérito de reabilitar os princípios básicos vi­
gentes por ocasião do surgimento do sistema tonal, vindo a possibi­
litar assim melhor compreensão da sua verdadeira natureza.-0
Observe-se, neste sentido, que todo o conceito de decurso tonal,
essencial para a nossa abordagem, não poderia ser formulado senão
no âmbito de uma teoria que, como a harmonia funcional, favorece
a concepção da categoria que aqui designamos por espaço tonal.
Ora, a teoria do século X V III e, principalmente, os trabalhos
em que Rameau descrevia “ a ordem da expressão musical a partir
da Harmonia” , embora não especifique explicitamente o conceito
de decurso tonal, nos deixa entrever que provavelmente é exata­
mente a este conceito que se refere com o termo harmonia. E
quando Rameau afirma que “ somente a Harmonia tem a capaci­
dade de expressar as paixões, capacidade esta que inexiste no fenô­
meno melódico” , tudo leva a crer que foi no âmbito deste decurso
tonal que se viam realizados os propósitos da teoria dos afetos.30
Sem dúvida, é bastante comum associar-se as várias cadências
com determinados sentimentos. A cadência autêntica teria algo a
ver com a afirmação, a semicadência com a indagação ou a dúvida,
a cadência de engano com a surpresa ou o inesperado, e assim por
diante.31 Tais conotações, embora de natureza evidentemente
subjetiva, mas de cuja viabilidade uma simples audição dos exem­
plos acima apresentados é perfeitamente capaz de nos persuadir,

29. De fato, as considerações teóricas segundo as quais as tríades de tônica,


dominante e subdominante são tratadas, não meramente como três acordes situados
respectivamente no I, V e IV graus da escala, mas como portadoras das funções
principais de um sistema baseado numa associação coerente dessas mesmas tríades,
não fazem outra coisa que retomar os princípios em que se fundamentava a música
do século XV III. As descobertas acústico-musicais dessa época não só haviam dei­
xado clara a natureza da tríade fundamental como entidade harmônica dada pela
parte consonante da série, mas mostraram ainda que esta série continha, nos seus
elementos de ordem 3, 9 e 15, o acorde correspondente à tríade de dominante. A
relação tônica-dominante, portanto, também encontrou sua justificativa na série
harmônica. E, como esta relação é exatamente a mesma que aquela de subdomi-
nante-tônica, o sistema básico que associava entre si essas três tríades revelou-se
como perfeitamente legitimado pela ciência, correspondendo inteiramente à reali­
dade objetiva do próprio universo sonoro.
30. As citações são de H. Scherchen (op . c it. , pgs. 64 e 69), com referência a
duas obras de Rameau: Observation s u r notre Instinct p o u r la M u s iq u e , 1754, e
Code de M u siq u e P ractique, 1760.
31. Também Schònberg de certa forma sugere caracterizar os encadeamentos
autênticos e plagais como expressando, respectivamente, decisão e passividade.
{Op. cit., pgs. 132 e segs.)
O SISTEMA TONAL 143

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R e ' j o u t s , -^ons n p o s, S c y -ú n s ccn-tes> ts.
144 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

naturalmente haveria de ter sido um argumento convincente a fa­


vor da teoria dos afetos. H. Scherchen faz referência aos comen­
tários de Rameau na sua análise do Monólogo de Armida, de Lully,
obra esta que foi concebida como estrutura estritamente homofô-
nica: “ Não sofremos o mesmo sentimento de contrição que o pró­
prio personagem da tragédia, no momento em que, às palavras
tristes apprèts, a melodia descende de DO para a quinta inferior
FA? Experimente-se substituir este FA por SOL, deixando perma­
necer o acorde de tônica, e nada mais comoverá a alma; somente
um ritmo mais vivo e um texto mais alegre ainda poderiam impres­
sioná-la’ ’ .,2
Ora, não resta dúvida de que o ato de expressar sentimentos,
emoções e paixões se situa ao nível da comunicação social, a qual,
em princípio, tanto pode ser lingüística como acionai. " Trata-se
de averiguar se — e como — os fenômenos envolvidos no decurso
tonal, nos quais se via a efetiva capacidade de expressar os afetos,
são suscetíveis a uma abordagem de ordem lingüística. É com este
objetivo que passamos aqui à análise de uma estrutura tonal con­
creta, para, a partir desta, procurar definir as perspectivas de apro­
ximação a nível de linguagem musical.
Reproduzimos aqui um fragmento de uma sinfonia de Haydn,
característica do estilo próprio ao Classicismo Vienense da segunda
metade do século XVIII. Um exame deste fragmento poderá ser
útil para esclarecer sobre o uso dos fenômenos inerentes ao decurso
tonal na sua integração com a estrutura melódica. Veremos aí
como esta integração tem dado origem a uma forma articulada pe­
culiar, onde certas cadências, associadas a determinadas configu­
rações melódicas, adquirem uma função estrutural específica,
vindo a constituir uma espécie de modelos cadenciais normalmente
considerados como sendo portadores de um caráter conclusivo ou
semiconclusivo, favorecendo a formação de períodos efrases mu­
sicais, numa flagrante analogia com as estruturas da linguagem
verbal, principalmente quando esta assume a forma poética. A
importância desta função cadenciai, aliás, já vem sugerida pelo
próprio termo cadência
Já uma simples audição atenta do fragmento acima referido é
suficiente para se perceber a sua articulação em seis períodos, cada
um dos quais se estende por oito compassos e é composto de duas
frases de quatro compassos. Os períodos de ordem 1, 2, 4 e 6 são
praticamente idênticos entre si, distinguindo-se apenas por ligeiras

32. Cf. H. Scherchen, op. cit., pg. 64.


33. De acordo com as conceituações de Althaus e Henne. Cf. pg. 10.
34. A palavra cadência vem de cadere = cair, sugerindo a conotação de con­
cluir.
O SISTEMA TONAL 145

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146 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

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I

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O SISTEMA 147
A MÚSICA COMO LINGUAGEM
O SISTEMA TONAL 149

diferenças na sua instrumentação. Os outros, de ordem 3 e 5, tam­


bém idênticos entre si, apresentam um contraste em relação aos
primeiros. Representando-se então por A os primeiros e por B os
segundos, a estrutura global mostra a seguinte forma:

A + A + B + A + B + A,
ou, designando-se por a, e a_>as frases do período A e por b e b as
do período B,
- (a, + a^)] + [(b| + bj) + (a, V a^)] +
[(a! + a^) -+
+ [(b |+ b_,) + (a, + a ,)].

Sob o ponto de vista formal, portanto, nota-se certa analogia com


uma possível estrutura poética verbal que se compõe de três es­
trofes de quatro versos.
Analisando-se a trajetória melódica do período A quanto à in­
terpretação tonal das alturas sonoras individuais nela envolvidas,
notar-se-á que o decurso tonal é de extrema simplicidade, uma vez
que a trajetória no espaço tonal aborda apenas as funções de tônica
e dominante da tonalidade de DO maior. Embora esteja inteira­
mente ausente a subdominante, podendo-se prever, portanto, uma
certa indecisão quanto à tonalidade — DO maior ou SOL maior —,
na percepção auditiva não se verifica nenhuma ambigüidade: não
há a menor dúvida de que a tríade de DO ocupa o centro tonal.
Esta perfeita estabilidade deve-se, em grande parte, ao fato de que a
função de dominante, em lugar de vir expressa simplesmente pela
respectiva tríade [SOL:SI:RE], assume aqui a forma do assim cha­
mado acorde de sétima da dominante— [SOL:SI:RE:FA] — , cuja
estrutura interna tem a propriedade de atribuir-lhe inequivocamen­
te a função de dominante.
Verifica-se em seguida que as duas frases, de que se compõe
este período, se distinguem, quanto ao decurso tonal, por uma
semicadência, à qual se pode atribuir um caráter semiconclusivo de
interrogação, e uma cadência autêntica, conclusiva e afirmativa. O
fato de que a frase a, na realidade contém duas cadências autênticas
não é relevante, uma vez que somente a segunda é portadora de
caráter conclusivo. De fato, o movimento melódico deste período
se realiza efetivamente em duas trajetórias distintas e consecutivas,

35. Trata-se de um acorde que resulta da associação harmônica de uma tríade


maior com a sétima menor de seu fundamento. A sétima do acorde, então, acaba
por formar intervalos dissonantes tanto com o fundamento como com a terça (os
intervalos de sétima menor e quinta diminuta, respectivamente). São estes que
conferem ao acorde a sua peculiaridade de dissonância característica, pela qual se
identifica a sua função inconfundivelmente como sendo a de dominante e se im­
prime à tônica a ela relacionada o inequívoco lugar de centro tonal.
150 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

/“■eüfanyo.

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O SISTEMA TONAL 151

Perio4c< A

a‘
Im m

conduzindo a primeira à altura RE, interpretada tonalmente como


D\ ea segunda a DO, interpretado como T ,.
* Nessa articulação do período em duas frases distintas é impor­
tante o papel desempenhado pela estrutura rítmica da melodia. As
frases distinguem-se uma da outra não apenas pela interrupção da
trajetória — ou seja, pela pausa de semínima —, mas sobretudo
pela fórmula rítmica JDj|j£ , que contribui para a formação de mo­
delos cadenciais específicos. Enquanto em a, esta fórmula se realiza
nos dois últimos compassos, em a , ela está constantemente pre­
sente, iniciando-se por três vezes consecutivas, mas atingindo sua
meta final somente no término da frase. Em a, a fórmula comporta
uma trajetória mélica interpretada como D ’ —►D'5, isto é, uma
explicitação inequívoca da função de dominante. Já em a, ela apre­
senta a trajetória D s —► T o u seja, uma trajetória que se qualifica
como portadora do encadeamento autêntico final. Os modelos ca­
denciais, portanto, que são os elementos que propriamente arti­
152 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

culam o período, resultam de um tratamento especial da semica-


dência e da cadência autêntica, o que implica uma disposição típica
das funções nelas envolvidas no que diz respeito à organização me­
lódica, no tempo e no espaço mélico.
Já o período B, embora obedeça a um esquema formal que de
certa forma se assemelha ao de A, apresenta traços característicos
novos, pelos quais acaba por se opor àquele. Nota-se imediata­
mente que as duas frases de que se compõe estão muito mais inti­
mamente unidas, formando um todo praticamente inseparável. É
verdade que a frase bi, de maneira semelhante ao que vimos ocor­
rer emai , conduz à dominante por meio de uma semicadência.
Não se encontra aqui, entretanto, nem a interrupção da trajetória
melódica mediante uma pausa, nem uma fórmula rítmica capaz de
explicitar um modelo cadenciai. A melodia segue uma trajetória
marcada por uma seqüência ininterrupta de colcheias que, no final
da primeira frase, simplesmente desemboca numa mínima porta­
dora da função de dominante. Somente no decorrer da frase se­
guinte, onde é retomada repetidamente esta mesma mínima, pre­
cedida agora apenas pelas duas últimas daquelas colcheias, é que

se passa a atribuir à configuração rítmica J]|J o caráter de fórmula


envolvida num modelo cadenciai.
A principal peculiaridade de todo o período B, entretanto, con­
siste na predominância que nela adquire a função de dominante.
Já o baixo não abandona, em nenhum momento, a altura SOL, por
meio da qual afirma esta função, uma vez que se trata de uma
altura sujeita à interpretação como D 1. Esta predominância, final­
mente, acaba por ser acentuada ao máximo na segunda frase — b>
—, que apresenta um decurso tonal inteiramente diverso daquele
de a,. Em lugar de retornar por meio de uma cadência autêntica à
tônica, a trajetória conduz novamente à dominante, atingindo
esta, porém, já não mais sob a forma de uma semicadência, mas
mediante um encadeamento autêntico partindo da dominante dessa
dominante, ou seja, de um acorde correspondente à tríade de RE
maior - [RE:FA jf :LA] = D(SOL) = D[D(DO)] - , estranho ao
sistema determinado pela tonalidade de DO maior. Neste encadea­
mento, que se apresenta por quatro vezes consecutivas, a função de
dominante da dominante é exercida por um acorde que assume a
forma [FA $ :LA:DO] e que se revela como não sendo outra coisa
que um acorde de sétima da dominante com omissão de seu fun­
damento. Trata-se do acorde de quinta diminuta que, na prática da
música tonal, tem sido muito usado para desempenhar o papel de
dominante. É pela intervenção deste acorde, identificado por sua
própria estrutura interna como dominante, que a dominante ori­
ginal — a tríade de SOL maior — adquire o potencial de assumir a
O SISTEMA TONAL 153

Perl ceio 3

bl
- h

= o — .... i * r 7 - ^ r = f q
7 ■ « r T l
1

]>o:

função de tônica. A frase b2, portanto, vem se caracterizar por uma


cadência autêntica sobre a dominante.
Ora, sabemos que a qualquer tríade está inerente a possibili­
dade de ocupar o centro tonal e de determinar assim uma tonali­
dade. O que ocorre aqui, entretanto, é que a uma tríade que exerce
a função de dominante passa a ser consignada, pela sua própria do­
minante, a função de tônica. A sua possibilidade de vir a ocupar o
centro tonal, portanto, está prestes a realizar-se. Resulta daí um
estado de manifesta desestabilização da tonalidade. Já não se sabe
mais ao certo onde de fato se localiza o centro tonal, uma vez que
ele está sendo disputado por duas tríades rivais. Ao mesmo tempo
em que SOL é dominante da tônica DO, ocorre também que DO é
subdominante da tônica SOL. Trata-se, portanto, de ujna verda-
154 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

deira contradição tonal,36que vem a manifestar-se no momento em


que a dominante, através da intervenção de sua própria dominante
individual, passa efetivamente a exercer a sua faculdade de atrair
para si o centro tonal.
No trecho de Haydn que acima usamos, a manifestação da
contradição tonal, com a qual a tonalidade, perdendo a sua estabi­
lidade, é atraída para a dominante, não passa de um acidente pas­
sageiro sem maiores conseqüências imediatas. De fato, logo na re­
tomada do período A , a tônica primitiva volta a afirmar a sua legí­
tima função. São muito freqüentes, entretanto, os casos em que de
tais contradições resultam deslocamentos da própria tonalidade no
espaço tonal. Estes deslocamentos habitualmente são designados
pelo termo modulação ,y
Entendemos que aqui'não é o lugar adequado para proceder
a um levantamento completo e exaustivo dos processos modula-
tórios usuais na música tonal. O que queremos deixar claro — e
para isto julgamos suficiente a discussão acima desenvolvida — é a
importância que vem assumir o conceito de contradição tonal. É
através desta contradição que a música veio adquirir aquele ca­
ráter eminentemente dinâmico — que envolve energias, conflitos e
lutas, impregnando-a de múltiplas referências simbólicas — que é
concebível somente no âmbito da música tonal.

A linguagem da música tonal e os “ atos de musicar”

Embora as considerações acima pareçam justificar, pelo menos


até certo ponto, as concepções segundo as quais a música tonal
seria um modo de comunicação especialmente apto para expres­
sar e provocar sentimentos, emoções e paixões, entendemos que
as referências simbólicas aí envolvidas não se situam propria­
mente no nível explicitado pela teoria dos afetos. Antes de en­
caminhar, porém, a nossa perspectiva de abordagem lingüísti­

36. Quanto ao conceito de contradição, como aqui o empregamos, cf. M .


Chauí, O Que éIdeologia, pgs. 36 e segs.
37. Um dos poucos tratados de harmonia que analisam a modulação nesta pers­
pectiva é o de A. Schõnberg, que vê nos processos modulatórios uma espécie de
conflito entre regiões tonais, as quais podem comportar-se ora de forma neutra,
ora de forma revolucionária. O dinamismo que dai resulta seria percebido como
uma imagem das complexas engrenagens da sociedade humana; e é esta ana­
logia que nos permite considerar como vida aquilo que criamos como arte. (Ofi.
cit. , pgs. 169 e segs.) Note-se que esta concepção, embora afirmada no século X X ,
está em perfeita concordância com a teoria dos afetos.
O SISTEMA TONAL 155

ca, julgamos que será elucidativa uma sumária vista panorâmica


de alguns textos em que diversos pensadores discutiram este as­
sunto.
A teoria dos afetos havia sofrido um considerável abalo com a
publicação das idéias críticas de E. Hanslick. ’HEstas partem da
observação de que, mesmo que a maioria dos teóricos aceitasse
tacitamente o princípio pelo qual cabe à música a reprodução ou
representação de sentimentos determinados, muitos encontram
dificuldades na aplicação deste princípio, devido à inexistência, na
música, de determinações conceituais. Em virtude desta deficiên­
cia., muitos passaram a considerar que a música reproduziria não os
sentimentos determinados, mas os indeterminados. Isto significa
que a música deveria conter a emoção dos sentimentos, abstraindo
o conteúdo dos mesmos, isto é, aquilo que de fato se sente. Aí,
entretanto, segundo Hanslick, já não se trataria de uma repro­
dução ou representação, pois reproduzir ou representar algo inde­
terminado seria uma tarefa por demais contraditória. Os movi­
mentos abstratos, como movimentos em si, sem conteúdo, não
podem ser objeto da representação artística, uma vez que esta, sem
poder responder à pergunta do que realmente se move, fica impos­
sibilitada de qualquer atuação. A atuação artística consiste sempre
na individualização das idéias gerais, ou seja, na formulação do
determinado a partir do indeterminado. A teoria dos sentimentos
indeterminados, entretanto, exigiria exatamente o contrário, con­
duzindo a um absurdo maior ainda do que a assunção de que a
música reproduz ou representa algo, sem que se saiba qual o objeto
dessa reprodução ou representação. A partir desta problemática,
Hanslick propõe o reconhecimento de que na música não se trata
de reproduzir ou representar sentimento algum, seja ele determi­
nado ou indeterminado. A música não reproduziria senâo “ idéias
musicais” e seria nestas idéias que reside o “ belo na música” .
Assim, as estruturas musicais, não admitindo nenhuma abor­
dagem em termos de linguagem, teriam que encontrar seu fim —
sua razão de ser — em si mesmas.
Note-se que Hanslick, mostrando e criticando os pontos mais
vulneráveis da teoria dos afetos, acaba por expor uma magnífica
defesa do princípio da arte pela arte, mediante um raciocínio que,
de início, se nos apresenta como perfeitamente coerente, mas cuja
fragilidade se percebe no momento em que o próprio Hanslick se
vê compelido a reconhecer a existência de um simbolismo musical
altamente desenvolvido e significativo para a arte.

38. Op. cit.


39. H. Pfrogner, op. cit., pgs. 296 e segs.
156 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

No início do nosso século, H. Kretschmar, *° na tentativa de


reabilitar a teoria dos afetos e revidando as críticas formuladas por
Hanslick, desenvolve a teoria da hermenêutica, propondo nova­
mente, como necessidade para uma autêntica abordagem elucida­
tiva da música, a sua interpretação em termos de conteúdo. Consi­
dera Kretschmar absurda a tendência de querer reduzir toda a sin­
gularidade dos efeitos musicais exclusivamente a uma espécie de
caráter enigmático que lhes seria inerente. Também o conheci­
mento e a compreensão das estruturas formais, mesmo levando
em consideração a totalidade dos aspectos nelas envolvidos, não
representariam senão um instrumento auxiliar para uma verda­
deira apreciação da música, uma vez que as formas servem apenas
de meios para a expressão. O que realmente importa é aquilo
que efetivamente, por intermédio dessas formas, acaba por ser
expresso. Este conteúdo, então, teria que tornar-se acessível, pelo
menos nos seus traços gerais, por meio da estrutura sonora. E estes
traços gerais do conteúdo, segundo Kretschmar, se encontrariam
exatamente nos afetos.41
Já A. Schering42chama a atenção para o conceito de sentido,
que ele considera essencial para o esclarecimento de qualquer pro­
cesso simbólico. A simbologia musical estaria intimamente rela­
cionada com o ato de dar sentido, entendendo-se por sentido o fim
— consciente ou inconsciente — que o músico procura atingir
por meio das estruturas sonoras. O símbolo musical seria então
uma espécie de imagem sonora ou espelho sonoro desse sentido.
Segundo Schering, seria preciso penetrar profundamente na re­
lação que se estabelece entre a imagem sonora e o sentido, para se
poder apreciar devidamente a magia peculiar da música. Enquanto
não formos capazes de perceber esta relação, perde-se todo o
encanto: escuta-se a música num estado de completa passivi­
dade, sem conseguir atribuir-lhe um sentido, de modo semelhante
como o símbolo da cruz, por exemplo, careceria de todo sentido
enquanto não estivesse associado com a morte de Cristo. Schering
descreve este relacionamento entre a imagem e o sentido como um
processo que nunca se nos apresenta de forma perfeitamente com­
pleta e conclusiva. Muito pelo contrário, semprei permanece nele
algo de suspenso, de inesgotável, sugerindo e exigindo constante­
mente novos rumos de entendimento. O encanto do símbolo na
arte residiria exatamente neste fato, de que, mesmo quando reco­
nhecido como imagem de um sentido, nunca revela este sentido na

40. H. Kretschmar, Neue Anregungen zur Forderung musikalischer Herme-


neutik, Leipzig, 1905.
41. H. Pfrogner, op. cit., pgs. 338 e segs.
42. A. Schering, DasSymbolin derMustk, Leipzig, 1941.
O SISTEMA TONAL 157

sua totalidade, mas deixa sempre um espaço aberto para a nossa


imaginação, sempre a exigir e sugerir que lhe acrescentemos a sua
conclusão final. Desta forma, a simbologia musical desempenharia
o papel essencial de estabelecer um elo entre a realidade sonora e a
nossa mente imaginativa, elo este que geralmente assume um ca­
ráter misterioso e enigmático, às vezes místico, quase sempre irra­
cional.43
Ora, entendemos que estas considerações, tanto a de Krets-
chmar como a de Schering, embora aproximem as manifestações
musicais dos processos lingüísticos por mediação de conceitos
como os de conteúdo ou de sentido, no momento de mostrar expli­
citamente a natureza e o funcionamento destes conteúdos e sen­
tidos, se diluem em abstrações, movendo-se num meio de idéias
vagas e aéreas que, por mais sugestivas e belas que sejam, ainda
estão longe de apresentar uma abordagem objetiva capaz de mani­
pular concretamente os conceitos desenvolvidos.
Observamos, entretanto, que “ vago” e ‘ ‘aéreo’ ’ foi também o
conceito de relevância musical que havíamos usado para designar
tudo aquilo que, nas estruturas musicais, apresenta alguma corres­
pondência com o significado próprio às estruturas da linguagem
verbal.44 A indeterminação inerente a tais termos — como rele­
vância musical, conteúdo e sentido — talvez se deva, pelo menos
em parte, ao fato de que têm sido empregados para designar carac­
terísticas essenciais próprias á totalidade das manifestações musi­
cais, sem levar em consideração a diversidade existente entre os
vários modos de comunicação específicos. De fato, um conceito
instituído para ser aplicado indistintamente a fenômenos tão diver­
sificados como as batucadas rituais da barbárie, o canto monódico
da Igreja, a polifonia do Renascimento e a música tonal, necessa­
riamente não terá o mesmo potencial de determinação quanto
aquele que se refere especificamente a uma ordem de fenômenos
mais delimitada. Neste sentido, parece-nos que todo este problema
pode-se esclarecer muito melhor na medida em que nos dermos
conta de que os fenômenos musicais de ordem lingüística, que são
exatamente aqueles que implicam um uso sistemático de procedi­
mentos simbólicos bem determinados, devem ser buscados sobre­
tudo na música concebida no sistema tonal.
De fato, os procedimentos verificados nas estruturas tonais,
quando abordados de acordo com o exposto nos princípios gerais
acima discutidos, apresentam uma surpreendente analogia com
aqueles das estruturas próprias à linguagem verbal:

43. H. Pfrogner, op. cit., pgs. 386 e segs.


44. Cf. pg. 43.
158 A MÚSICA COMO LINGUAGEM

Linguagem verbal Música tonal


1) Uma voz se move no universo dos 1) Uma ou várias vozes descrevem tra­
fonemas (timbres) de tal forma que da jetórias no espaço mélico de tal forma
articulação destes resultem os mo- que da articulação das diversas alturas
nemas. sonoras atingidas resultem as tríades.
2} Os monemas tornam-se portadores 2) As tríades, concebidas como ju n ­
de significado, uma vez que se lhes atri­ ções tonais, tornam-se portadoras de
bui um potencial de referência aos ele­ sentido, vindo a constituir os elemen­
mentos de um universo de denotações. tos de um espaço tonal.
3) A articulação dos monemas conduz 3) A articulação das tríades não é ou­
a uma articulação análoga dos signifi­ tra coisa que uma articulação das fun­
cados, resultando deste processo os sin­ ções tonais, resultando desta as ca­
tagmas. dências.
4) Os sintagmas, ou as articulações de 4) As cadências, ou as articulações de
vários sintagmas, dão origem aos atos várias cadências, dão origem aos atos
de fala, os quais, como unidades do dis­ de musicar, os quais, como unidades
curso verbal, de acordo com sua exten­ do decurso tonal, de acordo com sua
são, podem assumir a forma de frases e extensão, podem assumir a forma de'
periodos. frases e períodos musicais.

De acordo com esta analogia, as tríades, sejam elas explícitas


ou subentendidas por intermédio da interpretação tonal das alturas
envolvidas numa melodia, correspondem aos monemas lingüís­
ticos. Da mesma forma como os monemas são as unidades verbais
mínimas portadoras de significado ou referência, as tríades consti­
tuem as unidades tonais mínimas portadoras de sentido — ou rele­
vância — musical que lhes é dado sob a forma das funções tonais. É
somente como função que uma tríade pode adquirir este sentido ou
esta relevância.
Esta mesma analogia acaba por nos levar ainda a uma extraor­
dinária ampliação do conceito de espaço tonal, pois com ele dei­
xamos de nos referir apenas a um espaço imaginário no qual um
objeto tonal descreve a sua trajetória. Muito além disto, o espaço
tonal vem constituir agora todo o universo da denotação musical.
Encontramo-nos aqui diante de uma conceituação inteiramente
nova, com a qual pretendemos, mais adiante, esclarecer um dos
aspectos essenciais da especificidade da linguagem musical. Por ora
contentemo-nos em observar que a comparação com a linguagem
verbal nos mostra que os respectivos universos de denotação assu­
mem características substancialmente diversas. Enquanto, na lin­
guagem verbal, a denotação é um processo pelo qual se estabe­
lecem referências aos elementos de um mundo real, objetivamente
existente, na linguagem musical se trata de referências aos ele­
mentos do espaço tonal, isto é, de um mundo ideal e irreal, criado
pela mente humana. É em se entendendo por denotação musical o
processo pelo qual as tríades se referem às funções tonais situadas
O SISTEMA TONAL 159

nesse espaço tonal que se pode concluir que as unidades do decurso


musical, embora obedeçam às suas peculiaridades próprias, de fato
se qualificam como realizações suigeneris de atos locutórios.
A fim de esclarecer tais processos por meio de exemplos con­
cretos, retomemos aqui a nossa primeira abordagem dos atos de
fala.45 Havíamos analisado o ato de fala primitivo “ atenção —
onça” , qualificando-o como ato locutório em virtude de que, com
os dois monemas ‘ ‘atenção’ ’ e ‘ ‘onça” , o locutor se referia a dois
itens do respectivo universo de denotação, ou seja, a um estado de
alerta e a um animal selvagem, de tal forma que da associação
destes monemas resultasse, a nível de sintagma, uma associação
análoga das referências: um estado de alerta orientado para a pre­
sença do animal. Consideremos agora um fragmento melódico
onde, por exemplo, uma voz se desloca da' altura SI para DO,
movimento este que se sujeita à interpretação tonal D 5 ---► T'
na tonalidade de DO maior. As duas alturas sonoras envolvidas,
neste caso, referem-se às duas funções tonais D(DO) e T(DO). A
associação dessas alturas, que se verifica exatamente no momento
em que a voz se desloca de uma para a outra, terá então como
resultado a associação das duas funções tonais, ou seja, um enca­
deamento autêntico que acaba por figurar como uma pequena ca­
dência autêntica. Na medida, portanto, em que o movimento me­
lódico SI-DO for concebido como cadência, ele adquire um sentido
ou uma relevância musical perfeitamente equiparável, sob o ponto
de vista formal, ao significado do ato de fala ‘ ‘ atenção — onça ’ ’ .

A qualificação de um enunciado como ato locutório, entre­


tanto, não é suficiente para inseri-lo no conceito de linguagem.
Havíamos visto que para tal é necessário que ele venha a constituir
também um ato elocutório, isto é, um ato comunicativo social­
mente relevante. No caso do ato de fala “ atenção — onça” , esta
condição foi cumprida pelo fato de se tratar evidentemente de um

45. Cf. pg. 16.


160 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

ato de alertar. Cabe questionar agora se — e de que forma — as


unidades do decurso musical comportam tais atos elocutórios.
Ora, por uma parte, parece impossível atribuir ao movimento
melódico SI-DO um objetivo semelhante ao que está implícito ao
ato de alertar. Por outra parte, porém, certamente haverá quem
julgue determinadas configurações musicais — por exemplo aquela
com que se enuncia o início da Quinta Sinfonia de Beethoven —
produzidas com um suposto objetivo de alertar. E, além disto, já
sabemos que as diversas cadências usadas na música tonal freqüen­
temente são consideradas como atos de afirmar, indagar, surpre­
ender, etc., atos elocutórios, portanto. Ocorre, todavia, que, em
ambos os casos, se trata de interpretações talvez demasiadamente
subjetivas, sendo perfeitamente razoável que se levante a hipótese
de que na música inexista de fato qualquer atributo objetivo
que corresponda a atos elocutórios claramente determinados como
o que se encontra no ato de fala “ atenção — onça” . Segundo
esta hipótese, então, os atos elocutórios, por sua própria natureza,
seriam inteiramente estranhos à música e, conseqüentemente,
também a música tonal não admitiria a abordagem lingüística que
aqui propomos.
Conta-se uma estória, segundo a qual Beethoven, por ocasião
de uma ceia nos salões de uma casa da alta aristocracia vienense,
teria atendido aos insistentes pedidos de tocar ao piano a sua última
sonata. Depois dos aplausos que se seguiram à execução, teriam-
lhe perguntado sobre ‘ ‘o que ele realmente queria dizer’ ’ com essa
música. E Beethoven, após uma breve reflexão, teria voltado a
sentar-se ao piano para tornar a tocar a sonata inteira, declarando
finalmente: ‘ ‘É isto que eu queria dizer’ ’ .
Note-se que também esta estória, embora sua autenticidade
seja mais do que duvidosa, parece mostrar a negação da existência
não só dos atos elocutórios musicais, mas também da própria lin­
guagem musical.
É preciso, no entanto, que não percamos de vista a problemá­
tica complexa com que a determinação dos atos elocutórios se tem
apresentado também no âmbito da linguagem verbal. E verdade
que, no ato de fala “ atenção — onça” , levando-se em conside­
ração as condições reais em que ele é proferido, se pode afirmar
com relativa certeza que se trata de um ato de alertar. Existem,
entretanto, outros atos de fala, e são sobretudo aqueles que são
usados na linguagem poética, nos quais a qualificação dos atos elo­
cutórios por meio de uma definição verbal — como atos de alertar,
de afirmar, de informar, de solicitar, de lamentar, de comandar, de
persuadir, etc. — se torna altamente problemática. Assim, por
exemplo, o poema Alva, de Cecília Meireles, se inicia com os se­
guintes versos:
162 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

‘ ‘Deixei meus olhos sozinhos


nos degraus da sua porta” .46
Ora, se fosse o caso de dizer a um amigo ‘ ‘Deixei minha caneta em
cima da tua mesa” , seria relativamente fácil classificar o ato elo-
cutório como um ato de informar. Já com os dizeres do poema, a
classificação não é tão imediata. De acordo com o contexto, pode­
ríamos eventualmente arriscar uma qualificação, considerando que
o ato elocutório se aproxima do ato de lamentar, mas certamente
reconheceremos que esta rotulação é inteiramente insuficiente
para caracterizar a intenção poética.47
É perfeitamente possível, então, que, se perguntássemos a Ce­
cília Meireles “ o que ela realmente quer dizer” com estes versos,
ela também se limitasse a repetir os mesmos, afirmando ser “ exa­
tamente isto que eu queria dizer’ ’ .
A abordagem da música tonal a nível da comunicação lingüís­
tica, então, inevitavelmente nos leva a uma aproximação desta à
linguagem poética. Parece que em ambas, se os atos elocutórios
tiverem uma existência real, estes assumem formas tão mais sutis e
individualmente diversificadas que já não admitem aquela nomi-
nação usada na classificação dos atos de fala mais cotidianos.
Na nossa opinião, estaríamos equivocados se, da relutância
observada nas configurações cadenciais em se deixar qualificar de
acordo com as normas dos atos de fala, deduzíssemos a inade­
quação da perspectiva de considerá-las como atos elocutórios.
Muito pelo contrário, parece-nos, de acordo com a experiência
musical, que essas configurações na verdade se nos apresentam
como impregnadas de um potencial elocutório peculiar — e possi­
velmente inefável — , que não admite outra expressão a não ser
aquela da própria música tonal. Isto, se por um lado explicaria a
atitude de um Beethoven na referida estória, por outro lado viria
situar os atos de musicar num universo distinto daquele dos atos de
fala. Ora, quando discutimos o problema da denotação musical, vi­
mos que também esta se situava nesse mundo ideal e irreal. Tudo
nos leva a considerar, portanto, que a abordagem lingüística da mú­
sica tonal tem por pressuposto a relevância assumida por este uni­
verso imaginário e ilusório.

46. C. Meireles, Obra Poética, Rio de Janeiro, José Aguilar, 1958, pg. 36.
47. Um lingüista como J. R. Searle enquadraria os atos de fala desta natureza
na classe dos atos de auto-expressão emotiva, classe esta que, sem dúvida, apresenta
sérios problemas quando se trata de determinar a especificidade dos atos elocu­
tórios envolvidos.
O SISTEMA TONAL 163

Linguagem e ideologia

Se, nas considerações acima desenvolvidas, remetemos repeti­


damente a um universo específico, de natureza ideal e irreal, no
qual se efetivam tanto a denotação musical como os atos elocu-
tórios musicais, não resta dúvida, entretanto, de que este universo
tão essencial pàra a linguagem musical até este momento se afigura
ainda de uma maneira demasiadamente vaga e indeterminada.
Acreditamos que ele só possa adquirir formas mais tangíveis na
medida em que o confrontamos com as condições sociais historica­
mente verificadas como sendo inerentes à época em que a música
tonal tivera uma função relevante a cumprir na cultura da bur­
guesia européia. Tendo em vista este confronto, passamos a desen­
volver a análise que segue.
Observe-se, em primeiro lugar, que o desenvolvimento cientí­
fico necessário para o estabelecimento do sistema tonal, desenvol­
vimento este que se apresenta como uma das características de
todo um período histórico normalmente designado pelo termo Ilu-
minismo, só poderia ter surgido em estreita vinculação com a evo­
lução das forças produtivas. O patriciado burguês, com a prática do
comércio em larga escala, havia acumulado consideráveis riquezas.
Na sua oposição à antiga classe dominante feudal, este patriciado
se afirmava a nível econômico, por assumir atitudes pelas quais,
em lugar de consumir os frutos das suas fortunas numa vida lu­
xuosa e ostentativa, como tradicionalmente o fazia a nobreza, se
preocupava em investi-los — como capital — em novos empreen­
dimentos lucrativos destinados a gerar sempre novas riquezas. As
grandes navegações e o descobrimento de novas rotas marítimas,
bem como a colonização de outras terras até então desconhecidas,
não foram senão o fruto de tais empreendimentos comerciais. A
intensificação do comércio com o Oriente e a extração de produtos
preciosos das Américas vieram resultar num imenso fluxo de ri­
queza, grande parte da qual acabava por acumular-se nas mãos dos
poderosos mercadores e banqueiros da burguesia européia. Ora,
este processo, se por uma parte dera origem a um capital sempre
crescente a ser novamente investido, por outra parte viera deter­
minar a necessidade de crescimento da produção de mercadorias, a
fim de abastecer um mercado cada vez mais extenso. Assim, ha­
veria de chegar o momento em que a antiga indústria artesanal já
se mostrasse insuficiente, evidenciando-se a necessidade de en­
contrar os meios para um desenvolvimento substancial das forças
produtivas.
Foi em função desta necessidade de desenvolvimento, que a
época viera a caracterizar-se, entre outros fatores, por uma crescen­
164 A MUSICA COMO LINGUAGEM

te procura de substituir a energia física necessária para o trabalho


produtivo, que originalmente se limitava à força muscular do ho­
mem, por outras fontes energéticas a serem conquistadas mediante
um maior domínio sobre a natureza. Sabe-se que, na Antigüidade,
não havia nenhuma necessidade em desenvolver uma ciência dire­
tamente aplicada ao domínio da natureza, que tivesse por objetivo
aliviar o trabalho físico do homem. Durante todo o tempo em que a
fonte básica de energia ainda se encontrava com abundância no
trabalho escravo, era suficiente exercer-se o devido domínio sobre
essa classe para garantir a constante reprodução das condições ne­
cessárias para o trabalho produtivo. Já na Idade Média, quando
caía em desuso o escravagismo, surgira um primeiro problema de
mão-de-obra, problema este que viera determinar, além do esta­
belecimento das relações de produção próprias ao feudalismo, a
procura de outras fontes complementares de energia. Lado a lado
com o crescente uso da força de tração do cavalo, desenvolvera-se o
aproveitamento da energia hidráulica. O moinho de água tornara-
se o gerador da força motriz usada não apenas para a moagem do
trigo, mas também para acionar a serra do carpinteiro e os foles do
ferreiro. E, a partir do Renascimento, verifica-se a utilização inten­
siva de uma outra energia da natureza, difundindo-se cada vez mais
o moinho de vento.48
O crescente uso de tais máquinas, embora aparelhos ainda pri­
mitivos em comparação com a maquinaria industrial moderna, vie­
ra favorecer c o n s id e r a v e lm e n t e a gradual substituição da antiga
produção artesanal pela produção manufatureira. E este processo,
que, a partir do fim do século XVIII, conduziria á revolução indus­
trial, tivera seus primeiros impulsos exatamente na fase inicial do
Iluminismo. O f lo r e s c i m e n t o das ciências, com o conseqüente au­
mento do poder de dominação do homem sobre as forças da natu­
reza, não foi outra coisa que uma resposta criativa dos cientistas
diante da exigência de criar as condições necessárias para o au­
mento da produtividade. E éperfeitamente possível verificar que os
grandes pensadores dessa época, como Bacon e Descartes, por
exemplo, tiveram plena consciência da utilidade prática do tra­
balho científico, vendo na ciência um instrumento eficaz para essa
evolução.49

48. Cf. J. Labastide, Producción, Ciência y Sociedad: de Descartes a Marx,


México,Siglo Veíntutio, 2?ed., 1971.pgs. 54-5 e60-l.
49- “ A meta verdadeira e legítima das ciências não é outra que a de dotar a vida
humana de novos inventos e recursos” . (F. Bacon, Novum Organum, Buenos
Aires, Losada, 1961, 1? parte, aforismo L X X X I, pg. 122.)
‘ ‘O que é mais útil na prática é o que é mais verdadeiro na ciência” . (J b i d 2?
parte, aforismoIV, pg. 177.)
O SISTEMA TONAL 165

Em segundo lugar, cabe levar em consideração o fato de que,


em decorrência da evolução das forças produtivas, tiveram que al-
terar-se também as relações de produção. De fato, o desenvolvi­
mento da indústria manufatureira implicava uma crescente domi­
nação do capital sobre o trabalho produtivo. Se, no início deste
processo, ainda na Idade Média, se tratava apenas de uma inter­
ferência do capitalista-mercador que, sem alterar substancial­
mente os procedimentos usuais nas oficinas artesanais existentes,
acabava por submeter o artesão somente por meio do fornecimento
da matéria-prima e da aquisição do produto para comercialização
em grande escala, agora o capitalista-empresário passava a instalar
suas próprias grandes oficinas, onde ele, sob seu mando e controle,
promovia a produção, empregando a mão-de-obra de grande nú­
mero de artesãos. E, na medida em que nestas oficinas se difundia
cada vez mais o emprego de máquinas, elas se convertiam em fá­
bricas, nas quais os antigos artesãos passaram a desempenhar o
papel de operários assalariados.
A época do iluminismo, portanto, corresponde a uma fase do
processo histórico, na qual gradativamente se estabeleciam as ba­
ses para o atual capitalismo industrial. A oposição entre as classes
sociais pouco a pouco viera a assumir a forma de uma contradição
entre a burguesia capitalista, detentora dos meios de produção, ou
seja, dos bens materiais necessários para o processo produtivo —
fábricas, maquinaria, matéria-prima, etc. —, e um proletariado,
que não possuía outra coisa senão sua força de trabalho. Esta força
de trabalho, por sua vez, adquiria a natureza de uma mercadoria,
em virtude do fato de que a exploração da classe dominada passava a
assumir uma forma pela qual o trabalhador, que já não era mais
dono nem dos meios de produção nem do produto do trabalho,
forçosamente havia que garantir a sua sobrevivência oferecendo,
no mercado de trabalho, essa única propriedade que ainda lhe res­
tava, para ser adquirida pelo capitalista em troca de um salário.
Em terceiro lugar, é preciso observar que tais alterações das
relações de produção necessariamente haviam de corresponder a
alterações correlatas das formas assumidas pela dominação de clas­
se. De fato, enquanto, no sistema escravagista, o trabalhador sim­
plesmente não desfrutava dos direitos do cidadão livre e, enquanto,

“ Pois estas noções me ensinaram que é possível chegar a conhecimentos muito


úteis para a vida e que, em lugar da filosofia especulativa, é possível encontrar uma
prática por meio da qual, conhecendo a força do fogo, da água, do ar, dos astros, dos
céus, e de todos os demais corpos que nos rodeiam, poderíamos aproveitá-la, para
desta forma nos convertermos em mestres e possuidores da natureza” . (R. Des­
cartes, Discours sur la Méthode. In: Oeuvres Completes, Paris, J. Vrin, 1956-
57, vol. VI, pgs. 61-2.)
166 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

no sistema feudal, o servo da gleba, para ter direito à terra que


cultivava, tinha que pagar tributos ao proprietário da mesma,
agora o trabalhador era livre, isto é, ele estava em pé de igualdade
com qualquer outro cidadão, por ter os mesmos direitos de com­
prar e vender mercadorias, incluindo-se nestas a sua própria força
de trabalho. E foi com o uso de tais lemas, como liberdade e igual­
dade que a burguesia capitalista, nas suas lutas pelo poder político
— por exemplo por ocasião da Revolução Francesa — , se assegu­
rava do amplo apoio da classe trabalhadora, uma vez que esta difi­
cilmente poderia perceber que, na verdade, se tratava de uma pura
ilusão. Embora essa concepção de liberdade e igualdade parecesse in­
dicar que a dominação de classe agora deixaria de existir, na reali­
dade esta dominação apenas havia assumido uma nova forma, pas­
sando a manifestar-se sobretudo por meios econômicos. Em lugar
de se dizer ao trabalhador “ trabalhe para nós, pois este é o seu
dever” , era como se se lhe dissesse: “ venda-nos livremente a sua
força de trabalho, pois esta é a única maneira que lhe resta para
sobreviver” .
Era preciso, portanto, que se cultivassem determinadas idéias
— as de liberdade e igualdade eram apenas algumas delas — , para
garantir que se reproduzisse constantemente a oposição trabalho x
capital, em que se baseava todo o sistema do capitalismo industrial.
Era preciso que tais idéias, que evidentemente eram próprias à
classe dominante, se convertessem em idéias dominantes,‘MEram
exatamente estas idéias dominantes que, no seu conjunto, for­
mavam a ideologia dominante. E esta ideologia veio adquirir uma
relevância toda peculiar nas formações sociais capitalistas.
Segundo N. Poulantzas, a ideologia consiste em “ um conjunto
relativamente coerente de representações, valores e crenças: tal
como os homens participam numa atividade econômica e política,
participam também em atividades religiosas, morais, estéticas e
filosóficas. A ideologia diz respeito ao mundo em que vivem os
homens, às suas relações com a natureza, com a sociedade, com os
outros homens, com a sua própria atividade econômica e política.
O estatuto do ideológico resulta do fato de que ele reflete a maneira
como os agentes de uma formação, enquanto portadores de suas

50. Cf. K. Marx e F. Engels: “ As idéias da classe dominante são as idéias


dominantes em cada época; ou, em outras palavras, a classe, que exerce o poder
material dominante na sociedade, exerce ao mesmo tempo seu poder espiritual do­
minante. As idéias dominantes não são outra coisa que a expressão ideal das re­
lações materiais dominantes: são estas próprias relações materiais dominantes con­
cebidas como idéias. Conseqüentemente, as relações que tornam dominante uma
determinada classe são também as que conferem o papel dominante às suas idéias” .
{La Ideologia Alemana, Montevideu, Pueblos Unidos e Barcelona, Grijalbo, 4?
ed., 1972, pgs. 50-1.)
O SISTEMA TONAL 167

estruturas, vivenciam as suas condições de existência, ou seja, da


relação ‘vivida’ dos agentes com essas condições. E, nessa medida,
as ideologias determinam não apenas uma relação real, mas tam­
bém uma relação imaginária, uma relação real investida numa re­
lação imaginária” .51
E, mais adiante, “ a ideologia tem por função reconstruir, num
plano imaginário, um discurso relativamente coerente que sirva de
horizonte à ‘vivência’ dos agentes, dando forma às suas represen­
tações segundo as relações reais e inserindo-as na unidade das re­
lações da formação social. Neste sentido, a ideologia passa a en­
globar o que freqüentemente se chama ‘cultura’ de uma formação
social. Assijn, a ideologia não compreende simplesmente os ele­
mentos de conhecimento dispersos, as noções, etc., mas sobretudo
o processo de simbolização, a transposição mítica, o ‘gosto’, o ‘es­
tilo’ a ‘moda’ e, em resumo, o ‘modo de vida’ em geral. O papel
específico da ideologia não consiste em instituir-se como unidade
de uma formação social, mas em refletir essa unidade, recons­
truindo-a num plano imaginário’ ’ .52
Observe-se que também esta explicitação do conceito de ideo­
logia nos remete a um plano imaginário, plano este que apresenta
evidentes semelhanças com o universo ideal e irreal em que vimos
efetuar-se a denotação e a elocução no domínio da linguagem mu­
sical. De fato, também as oposições, contradições e conflitos que se
verificam no decurso tonal refletem, de certa forma, as relações
conflitantes vivenciadas pelo homem na sociedade real. E também
a estrutura da música tonal sem dúvida pode ser concebida como
uma reconstrução da unidade de uma formação social num plano
imaginário. Tudo parece confirmar, portanto, a hipótese de que o
universo imaginário e ilusório, no qual se situam os atos de mu­
sicar, tenha sua existência exatamente ao nível da ideologia.53

51. Pouvoir Politique et Classes Sociales de l ’Etat Capitaliste, Paris, François


Maspero, 1968; Poder Político y Clases Sociales en el Estado Capitalista, México,
Siglo Veintiuno; 31? ed., 1976, pgs. 263-4.
52. Ibid., pgs. 265-6.
53. Neste sentido, N. Hadjinicolaou, partindo exatamente das concepções de
Poulantzas, considera a ideologia como dividida em diversas regiões ideológicas, ou
ideologias regionais, entre as quais se destacam, entre outras, a região moral, a
jurídica, a política, a religiosa, a econômica, a filosófica e a estética. A região esté­
tica, por sua vez, comportaria ainda diversas sub-regiões, de acordo com o sistema
das artes vigente na respectiva formação social, distinguindo-se, por exemplo, a
ideologia em imagens e a ideologia musical. Essas regiões e sub-regiões da ideologia,
embora relacionadas entre si já por pertencerem todas ao mesmo nível ideológico,
se desenvolveriam, entretanto, numa relativa independência umas das outras. Cf.
N. Hadjinicolaou, Histoire de l'A rt et Lutte de Classes, Paris, François Maspero,
1973; História da Arte e Movimentos Sociais, Lisboa, Edições 70,1978, pgs. 25-6.
168 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

Prosseguindo, entretanto, na nossa análise, passemos aqui a


comentar sucintamente alguns aspectos da ideologia burguesa dos
séculos X V III e X IX , baseando-nos no seguinte trecho da Estética,
de Hegel, que tem, como ponto de partida do seu raciocínio, a
concepção da moral:
‘ ‘É inerente à moral a consciência reflexiva que tem por objeto
o dever, bem como uma prática norteada por essa consciência. Por
dever entende-se uma lei da vontade livremente estabelecida pelo
homem que se propõe a praticar o bem, o que naturalmente pres­
supõe a sua firme convicção sobre o que realmente seja o bem. Esta
lei, então, o dever estabelecido de acordo com a livre convicção e
consciência interior, com o objetivo de direcionar uma prática, não
é senão o elemento abstrato e geral da vontade e, como tal, está em
oposição direta à natureza, aos impulsos sensuais, aos interesses
individuais, às paixões, e enfim a tudo o que, no seu conjunto, se
designa por calor humano. Esta contradição se apresenta para a
consciência não apenas no domínio restrito da prática moral, mas
comparece como uma oposição radical entre a essência e a reali­
dade exterior. A nível abstrato trata-se da contradição entre o geral
e o particular; a nível concreto está presente, na natureza, como
oposição entre a lei abstrata e a fartura dos fenômenos particulares,
e, no homem, como a contradição entre o sensual e o espiritual, a
luta do espírito contra a carne, do dever contra o interesse indi­
vidual, contra o calor humano, contra as inclinações sensuais,
como a árdua oposição entre a liberdade interior e a necessidade ex­
terior, como contradição entre o conceito morto e o concreto vivo,
entre a teoria racional e a existência e experiência objetiva. A edu­
cação e a razão fizeram aflorar esta oposição no homem, conver­
tendo-o em um ser anfíbio condenado a viver em dois mundos que
se contradizem. De fato, por um lado vê-se o homem prisioneiro da
mesquinhez do mundo, marcado pela transitoriedade terrena, opri­
mido pelas necessidades e pela miséria, acossado pela natureza,
dominado e arrastado por instintos e paixões; por outro lado este
homem se eleva a idéias eternas, a um domínio do pensamento e da
liberdade, atribuindo a si mesmo, por sua própria vontade, leis e
determinações gerais, despojando o mundo da sua realidade ani­
mada e florida para dissolvê-lo na abstração, afirmando o direito e a
dignidade do espírito em relação à ilegitimidade e crueldade da na­
tureza, á qual se propõe a devolver a miséria e maldade dela rece­
bidas. Diante de uma tal discrepância de vida e consciência, surge o
clamor pela resolução das contradições. A razão, no entanto, não é
capaz de renegar a solidez das mesmas, permanecendo a sua so­
lução ao nível de um mero desejo e movendo-se o homem numa
permanente inquietação de um lado para outro, na busca estéril de
uma conciliação. A filosofia não lhe oferece senão uma melhor
O SISTEMA TONAL 169

compreensão sobre a natureza das contradições. A sua solução


cabe exclusivamente à arte, predestinada a desvendar, mediante
suas configurações peculiares, a reconciliação dos termos em con­
flito” .54
Este texto mostra claramente como o pensamento de Hegel
estava firmemente fundamentado na tendência filosófica do dua­
lismo, que também havia sido adotada por Descartes. Segundo o
dualismo, e, ainda, de acordo com a doutrina cristã, o princípio do
ser humano é constituído por duas substâncias independentes en­
tre si, uma material e a outra espiritual. Seria da oposição entre
essas substâncias que resultam as contradições fundamentais, as
quais, desta forma, sempre se situam no domínio da consciência.
Em nenhum lugar da filosofia hegeliana se encontra um aprofun­
damento nas contradições próprias â estrutura social, à dominação
de classe, à oposição trabalho .r capital. Mesmo quando Hegel trata
de assuntos que dizem respeito à apropriação e exploração mate­
rial, sempre acaba por localizar o conflito no domínio da consci­
ência ou do espírito.55Nesta perspectiva, é evidente que também a
solução de tais conflitos pressupõe, em primeiro lugar, uma prática
a nível espiritual.
Trata-se, evidentemente, de uma ideologia que se revela como
sendo de grande utilidade para o sistema de dominação de classe.
Por seu intermédio, os membros da própria classe dominante
adquirem uma consciência pela qual as verdadeiras contradições
sociais parecem ter sua origem num universo espiritual, tomando a
forma de conflitos de consciência, para cuja solução se lhes oferece
uma arte sublime capaz de conciliar os contrários.

54. G. W. F. Hegel, Asthetik, F. Bassenge (ed.), Berlin/Wiemar, Aufbau-


Verlag, 2? ed., 1965, vol. I, pgs. 62-4.
55. M. Chaui resume da seguinte maneira a dialética hegeliana, tomando um
exemplo da Filosofia do Direito: “ O Espírito começa em seu momento natural, isto
é, como algo dado ou imediatamente existente: trata-se da existência dos indivíduos
como vontades livres que se reconhecem como tais pelo poder que têm de se apro­
priar das coisas naturais através do trabalho. Assim, no primeiro momento, exis­
tem os indivíduos definidos como proprietários. A regulação das relações entre os
proprietários conduz ao aparecimento do Direito, no qual o proprietário é definido
como pessoa livre. A pessoa é, portanto, o indivíduo natural que é livre porque .sua
vontade o faz ser proprietário. No entanto, esses indivíduos naturais livres não são
apenas proprietários. Isto é, sua vontade livre não se relaciona apenas com as coisas
exteriores e com outros indivíduos exteriores. Sua vontade livre é consciente de si e
faz com que cada indivíduo se relacione consigo mesmo, com sua interioridade ou
consciência. Esse indivíduo livre interior chama-se sujeito. As relações entre os
sujeitos constituem a Moral. Ora, o Direito e a Moral estão em conflito. Ou seja, os
interesses do proprietário estão em conflito com os deveres do sujeito moral. Há,
pois, uma contradição no interior de cada indivíduo, entre sua íace-pessoa (proprie­
tário) e sua face-sujeito (moral). Isto é, como proprietário ele se torna não moral e
como sujeito ele se torna não proprietário” . (O Que é Ideologia, prs. 47. 3.)
170 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

A ideologia musical burguesa

Do exposto pode-se concluir que a linguagem musical determi­


nada pelas práticas no âmbito do sistema tonal pressupõe, para a
sua própria existência, a sua inserção no campo da ideologia. Este
fato sem dúvida vem esclarecer as razões que devem ter levado, na
tradição da música tonal, ao estabelecimento de determinadas
normas de natureza essencialmente formal. Assim, por exemplo, a
chamada forma sonata que, a partir do classicismo vienense, aca­
baria por constituir um esquema formal de uso constante na pro­
dução musical, parece estar inteiramente fundamentada em prin­
cípios próprios à ideologia burguesa.
Esta forma implica uma estrutura articulada em três partes. Na
primeira parte, chamada exposição, apresentam-se sucessivamente
dois temas, caracterizados por traços musicais capazes de criar uma
oposição entre os mesmos. Baseando-se em motivos melódicos
essencialmente distintos, estes temas adquirem a aparência de in­
dividualidades contraditórias. Trata-se de uma contradição que
vem confirmada ainda, a nível tonal, pelo fato de que estes temas se
situam em tonalidades distintas, de forma que à oposição motívica
dos temas se venha acrescentar uma contradição tonal.56 A esta
exposição segue a segunda parte, designada pelo termo desenvolvi­
mento, que se nos apresenta como a deflagração dos conflitos de­
correntes daquela oposição. E esta a parte mais propícia para o
desenvolvimento da fantasia musical. Utilizam-se todos os meios
disponíveis para expressar essa luta dos contrários, intervindo, a
nível tonal, as trajetórias modulantes mais surpreendentes. Final­
mente, o desenvolvimento, como resultado da dinâmica envolvida
na sua estrutura, conduz à terceira parte, a reexposição, onde,
como conclusão do processo construtivo, se tornam a apresentar os
dois temas, os quais, embora ainda mantenham as suas respectivas
individualidades opostas, acabam por reconciliar-se, na medida em
que passam a se localizar, agora, numa mesma tonalidade.
Encontramo-nos aí, portanto, diante de uma forma eminente­
mente dialética, baseada numa contradição inicial entre uma tese e
uma antítese, contradição esta que vem provocar a luta dos con­
trários. A conseqüência final dessa luta, entretanto, em lugar de
apresentar-se como uma legítima síntese, acaba por assumir, de
acordo com a ideologia burguesa, a forma de uma reconciliação,
que consiste efetivamente não na superação, mas na eliminação da
contradição tonal.

56. Quanto ao conceito de contradição tonal, cf. pg. 154.


O SISTEMA TONAL 171

E este é apenas um dos exemplos que poderiam ser citados para


mostrar a existência de certos procedimentos musicais, usuais no
domínio do sistema tonal, que encontram seus correlatos na ideo­
logia burguesa.57Embora tais exemplos se constituam como argu­
mentos válidos para justificar a tese de uma relação íntima exis­
tente entre as estruturas tonais e a ideologia, conferindo ainda à
música concebida no âmbito do sistema tonal a marca inequívoca
de uma arte burguesa, cabe aqui, entretanto, levantar as seguintes
ressalvas:
1) Não podemos permitir que a constatação de correlações
desta natureza nos induza a assumir um princípio ingenuamente
imediatista, no sentido de procurar reduzir a produção musical
simplisticamente à ideologia global vigente na sociedade em que
ela tivera sua origem. A este respeito, entendemos dever con­
cordar com N. Hadjinicolaou, quando este afirma que “ não se
trata de deduzir a ideologia musical da ideologia global de uma
classe social, mas de efetuar um trabalho teórico em dois sentidos:
a) definindo uma ideologia musical, contribuir para a conceituali-
zação da ideologia global de uma classe; e b) utilizando a defi­
nição da ideologia global (que se estrutura através das definições de
ideologias literárias, estéticas, religiosas, políticas, econômicas,
musicais, etc.), contribuir para a definição da ideologia musical da
referida classe. Trata-se sempre de contribuir apenas, porque a de­
finição da ideologia musical se fará principalmente em base nas
investigações no domínio da própria produção musical” .58 E note-
se que foi exatamente através de tais investigações que acima pu­
demos estabelecer conceitos, como os de espaço tonal, trajetória
tonal e universo da denotação musical, os quais verificamos situar-
se no âmbito da ideologia musical da classe burguesa. E preciso,
portanto, evitar a identificação do conceito de ideologia musical
com o de ideologia geral. ‘ ‘A ideologia musical é irredutível. Assi­
milá-la ou reduzi-la à ideologia (como conceito globalizante), eis o
erro capital que desconheceria toda a especificidade da produção
musical. Não podemos insistir o suficiente nesta distinção que é
decisiva: só uma análise aprofundada pode permitir demonstrar a
relação problemática existente entre a ideologia musical e a ideo-

57. Um outro exemplo que nos parece significativo se refere à norma pela qual,
em qualquer estrutura tonal, por mais extensa que ela seja e por mais contraditórias
que sejam as tonalidades abordadas na sua trajetória tonal, na sua conclusão final
sempre se acaba por retornar á tonalidade inicial, qualificando-se esta ainda como
sendo a tonalidade principal.
58. Op. cit., pg. 102. Tendo em vista que o texto de Hadjinicolaou se refere
especificamente à produção de imagens no domínio das artes visuais, substituímos,
na citação acima, o termo ideologia imagítica por ideologia musical.
172 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

logia global de uma classe, ou ainda entre uma ideologia musical e


outros tipos ideológicos vigentes num determinado momento’ ’ . 59
2) Por outro lado, não podemos permitir também que o esta­
belecimento das bases para uma lingüística musical nos induza a
considerar que esta seja capaz de esgotar todas as peculiaridades
inerentes à música tonal. De forma análoga como numa abor­
dagem da poesia devem estar envolvidos inúmeros aspemos, que
dizem respeito, por exemplo, à versificação, à métrica, à rimú, <■,
formas poéticas e aos estilos, aspectos estes que dificilmente podem
ser considerados como sendo de natureza lingüística, coisa seme­
lhante ocorre também na música tonal. As características lingüís­
ticas, pelas quais se revelam as entidades tonais, as trajetórias, as
denotações e a dinâmica conflitual que se desenrolam no espaço
tonal, embora as consideremos como fatores de substancial rele­
vância na definição de certos aspectos essenciais, absolutamente
não são suficientes para esgotar os fenômenos envolvidos na mú­
sica tonal. Não resta dúvida de qüe existam outros fatores, alguns
dos quais tivemos a oportunidade de abordar discutindo a monodia
e a polifonia, que terão que ser organicamente incorporados a es­
tes, para se alcançar um total esclarecimento sobre a natureza des­
sa música. É neste sentido que numa conjugação entre os movi­
mentos essencialmente distintos efetuados no espaço tonal e no
espaço mélico, bem como numa conjugação entre o sentido mu­
sical no domínio de um universo de denotações ideológico, próprio
á linguagem da música tonal, e o significado ilustrativo, próprio à
polifonia, vem residir aquela imensa riqueza a nível de vivência
emocional que inegavelmente caracteriza essa música. Tendo em
vista exatamente esta riqueza é que H. Scherchen chega ao extremo
de afirmar que “ é sem razão que o século X V III tem sido quali­
ficado como a era matemático-filosófica; sua real importância está
no fato de que foi nele que na Europa se conseguira a consumação
da linguagem musical” .60

59. Ibid., pg. 179.


60. Op. cit., pg. 7.
Epílogo

Dois séculos de música tonal, numa sociedade cada vez mais


dominada pelo poder econômico e político do grande capital in­
dustrial, acabaram, no fim do século X IX , por consolidar uma si­
tuação cultural, onde as manifestações musicais, agora definitiva­
mente sob a forma de produção e consumo de uma mercadoria
chamada arte, serviam de alimento ideológico indispensável à bur­
guesia. Os músicos, produtores desta arte, os quais passaram a ser
denominados compositores, assumiam o papel de verdadeiros após­
tolos, cuja função residia em fornecer a essa burguesia consumi­
dora as suas obras, que haveriam de caracterizar-se como verda­
deiras revelações, sempre novas e mais convincentes, no âmbito do
universo ideológico musical.
Atendendo às necessidades da divisão social do trabalho, estes
compositores se ocupavam em produzir apenas os projetos de tais
obras, cuja execução ficava a cargo de outros músicos especiali­
zados na realização propriamente sonora das mesmas. Estes pro­
jetos, sob a forma d&partituras, com o uso da grafia musical que
havia atingido uma perfeição que anteriormente ainda podia ser
desprezada, continham agora todas as instruções julgadas neces­
sárias para que o executante — intérprete ou virtuoso — pudesse
dar testemunho de suas habilidades em dar-lhes vida sonora. Tanto
os compositores como os intérpretes, como profissionais altamente
especializados, na medida em que tinham pleno êxito no desem­
penho da sua função, passaram a ser considerados como gênios e
trabalhavam de forma inteiramente individual, não restando mais
nada da produção coletiva que havia caracterizado épocas mais re­
motas.
Foi extraordinária a riqueza desta produção musical que flores­
cera nos séculos XV III e X IX e que abrange os áureos períodos do
Barroco, Classicismo e Romantismo. Por volta do ano 1900, no
entanto, deparamo-nos com uma época de crise: a produção mu­
sical européia perde a sua homogeneidade, o sistema tonal passa a
174 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

ser questionado e surge uma multiplicidade de direcionamentos


novos e contraditórios entre si, que diversos grupos de músicos
procuram imprimir à sua produção.
São vários os motivos que têm sido alegados para explicar a
razão dessa crise. Uns a atribuem a um gradual esgotamento das
possibilidades expressivas que essa linguagem musical proporcio­
nava; outros consideram que as trajetórias tonais, que se haviam
tornado cada vez mais complexas, teriam levado a uma tal dila­
tação da tonalidade que ela forçosamente acabaria por romper-se.
Na nossa opinião, embora estes fatores sem dúvida possam ter
contribuído para a eclosão da crise, entendemos que não se deva
perder de vista a situação econômica e política que caracteriza
essa época. E preciso levar-se em consideração, por exemplo, o fato
de que as crises econômicas cíclicas do capitalismo, que nesse sé­
culo começaram a constranger o sistema vigente, a partir de 1857
passaram a atingir diretamente o próprio aparelho capitalista. Ao
mesmo tempo, a crescente exploração e opressão das classes traba­
lhadoras fizera com que a época se caracterizasse por uma eferves­
cência crônica, manifestada, entre outras, sob a forma de pro­
testos, motins e greves. Em 1871 irromperia a insurreição da Co­
muna, em Paris. E uma considerável parcela da intelectualidade
européia passaria a assumir um posicionamento de crítica para com
o sistema capitalista em geral e para com a ideologia burguesa em
particular.
Entendemos que estes fenômenos não poderiam deixar de exer­
cer substanciais influências sobre a linguagem musical baseada no
sistema tonal. Ao mesmo tempo em que o alimento ideológico por
ela proporcionado continuaria a ser uma mercadoria cujo con­
sumo atendia às justas demandas da burguesia, multiplicar-se-iam
os ataques contra a evidente alienação implicada no universo ilu­
sório por ela criado.
Em 1865, P. J. Proudhon afirmaria que a arte “ não nos foi
dada para nos alimentarmos de quimeras, nos embriagarmos de
ilusões, nos enganarmos e iludirmos com miragens, como pre­
tendem os clássicos, os românticos e todos os sectários de um vão
ideal, mas para nos livrarmos dessas ilusões perniciosas, denun­
ciando-as” .1Note-se que é por demais conflitante a oposição deste
posicionamento com o que vem expresso, por exemplo, ainda em
1949, em H. Scherchen: “ A obra de arte musical, portanto, não é
apenas um objeto cultural, cuja percepção, vivência e estudo nos
proporcionam satisfação; ela é, ao mesmo tempo, um sujeito cul­

1. Du Principe de l'A rt et de sa Destination Sociale, Paris, Garnier, 1865, pg.


225.
EPÍLOGO 175

tural que nos domina, penetra profundamente e nos forma. São


dois os seus modos de atuação que adquirem uma especial impor­
tância: por seu intermédio, o homem exercita aquelas faculdades
que, de outra forma, lhe são inacessíveis; e, por seu intermédio,
ainda, o homem vivência aqueles níveis sociais que a sociedade real
ainda não se mostrou capacitada a realizar” .2 “ No contato com
esta música ocorrem fenômenos, os quais nunca poderiam ser in­
duzidos na realidade da vida. Ela nos eleva a faculdades que nor­
malmente parecem acessíveis somente ao gênio’ ’ . 3
É neste sentido, então, que a época situada por volta do ano
1900 se nos afigura como uma espécie de encruzilhada, delineando-
se, a partir dela, diversas opções, as quais se nos apresentam sob a
forma dos movimentos artísticos diversificados que acabaram por
caracterizar a produção musical do nosso século. Uma análise real­
mente esclarecedora destes múltiplos movimentos, com o objetivo
de uma discussão sobre os destinos a que tem sido levaaa a musica
enquanto linguagem musical, demandaria um aprofundamento
que certamente escapa às propostas do presente trabalho. Con-
tentar-nos-emos aqui em assinalar apenas, de forma muito sumária,
algumas das opções aí envolvidas.

A vanguarda burguesa

No início do século X X , um pequeno grupo de músicos reu­


nidos em Viena, liderado por Arnold Schonberg, considerando
definitivamente superado o sistema tonal, desenvolvera uma pro­
dução musical em que sistematicamente são negados todos os pres­
supostos teóricos que de alguma forma se referiam às tradições to­
nais. Para Schönberg tratava-se de encontrar os meios que, abrindo
novas perspectivas, garantissem o continuísmo da supremacia mu­
sical não apenas da cultura burguesa, mas especificamente da cul­
tura germânica.4 Resultara daí o enunciado de novos princípios
que, artificialmente concebidos, deveriam orientar as estruturas
musiciais modernas. Estes princípios, reunidos no sistema dodeca-
fônico ,5visavam, em primeira instância, a remover qualquer espécie

2. Vom Wesender Musik, pg. 79.


3. Ibid., pg. 120.
4. “ Trata-se de assegurar a supremacia da nação germânica no domínio da
música” . (A. Schönberg, “ Musik” , in Von Neuer Musik, Köln, Marcan, 1925,
Pg- 31.
5. Para um maior aprofundamento no sistema dodecafônico, aconselharíamos
os interessados a realizar um trabalho prático, seguindo a excelente orientação de E.
Krenek exposta em: Studies in Counterpoint, Nova Iorque, Schirmer, 1940.
176 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

de hierarquia que se pudesse instaurar entre os elementos primá­


rios envolvidos nas estruturas musicais, especificamente aquela
gerada pelas funções tonais, as quais conferiam a determinadas al­
turas sonoras uma evidente supremacia sobre as outras.
Ora, tais preocupações nos sugerem imediatamente uma ana­
logia com os ideais democráticos que, na mesma época, domi­
navam uma substancial faixa do pensamento político. Esta analogia
nos faz encarar o fenômeno sob o ponto de vista de que as estru­
turas dodecafônicas realizavam, no universo do espaço mélico,
uma perfeiti liberdade e igualdade que, na realidade política, ainda
não passava de mera utopia. Neste sentido, o sistema dodecafônico
não faria outra coisa que substituir o universo ilusório da música
tonal por um outro universo, também ilusório, correspondente a
uma ideologia crítica, de natureza democrática, próxima àquela
preconizada pelos teóricos marxistas. Não é de estranhar, por­
tanto, o fato de que, no meio do grande público burguês, a não
aceitação dessa música tenha sido relacionada com a natural aver­
são desta classe social diante dos movimentos políticos de es­
querda. Assim delinear-se-ia uma tendência geral de identificar os
músicos dodecafônicos, juntamente com outros artistas como os
pir^ores cubistas e abstracionistas, com ativistas bolcheviques,6
Note-se que, embora tais relacionamentos demasiadamente
imediatos entre fenômenos culturais e políticos, devido à subesti-
mação das mediações aí envolvidas, freqüentemente levem a con­
clusões equivocadas, não há dúvida de que a ideologia musical pró­
pria à dodecafonia se opõe claramente àquela da música tonal. E o
reconhecimento desta relação certamente será útil quando se trata
de explicar o fato de que, contrariamente ao que previam os pro­
motores deste movimento de vanguarda, a produção musical de­
senvolvida em observância aos novos princípios não conseguiria
impor-se ao grande público da burguesia européia, restringindo-se
a apenas uma elite consumidora que de certa forma se considerava
iniciada nos processos nela envolvidos. O grande público, uma vez
que não encontrava nessa música o alimento ideológico necessário
para sua realização espiritual, recusar-se-ia a abdicar totalmente da
linguagem da música tonal.
Diante deste fato, o movimento viera a caracterizar-se, a nível da
comunicação social, como uma vanguarda cuja retaguarda certa-

6. Schõnberg não pouparia esforços para desfazer este equívoco, afirmando,


sempre que se oferecia oportunidade para tal, o seu não alinhamento ás idéias mar­
xistas, criticando, por exemplo, o fato de que “ o uso sensato dos cinco sentidos
estava ameaçado, tanto a partir da direita como da esquerda, pelo bolchevismo” .
(Op. cit., loc. cit.)
EPÍLOGO 177

mente era questionável. E a prática viria mostrar que a ruptura da


tonalidade se tornaria bem mais viável quando inserida num pro­
cesso gradual e menos sectário, como o confirmaria o sucesso jun­
to ao público obtido por compositores independentes, como Igor
Stravinsky, Paul Hindemith, Bela Bartók e outros.
As observações acima, entretanto, não devem ser tomadas em
sentido depreciativo. Muito pelo contrário, entendemos que o mo­
vimento da música dodecafônica, além de conter ainda um amplo
espaço para uma experimentação que se faz necessária na crise cul­
tural do nosso século, não deixaria de exercer uma marcante in­
fluência sobre a maioria dos movimentos posteriores no âmbito da
música burguesa. Nesta linha situa-se não apenas a chamada mú­
sica serial, mas também uma grande parte da mais recente música
eletrônica, nascida em virtude da aplicação à produção musical dos
inventos da eletrônica moderna.

O culto do passado

Com a não aceitação por parte do público das produções musi­


cais baseadas no sistema dodecafônico ou decorrentes do mesmo, e
com a óbvia diminuição da produção de novas obras tonais, haveria
de dar-se o fenômeno de uma atividade musical que, por intensiva
que fosse, não envolvia senão as obras produzidas no passado. Tais
atividades, entretanto, pressupunham, por um lado, uma intersi-
ficação desmedida do culto dos grandes mestres e, por outro lado, a
crescente importância do intérprete em detrimento do compositor.
Quanto ao culto dos mestres do passado, note-se que já no sé­
culo X IX estava em voga uma mistificação que, por exemplo, faria
Johannes Brahms declarar que “ aqueles são deuses, nós apenas
homens” .7 E, quanto à valorização dos intérpretes, na educação
musical voltada para a formação profissional, nos conservatórios, a
preocupação principal passaria a ser dirigida ao treinamento ins­
trumental e vocal, mantendo-se em segundo plano os cursos de
composição, os quais, na maioria dos casos, adquiririam um ca­
ráter de eminente academicismo.
A própria natureza das práticas musicais acabaria por sofrer
uma profunda alteração, na medida em que as execuções das obras-
primas, realizadas profissionalmente sob a forma de espetáculos ou
concertos, se tornaram incorrensuravelmente mais importantes do

7. P. Bekker, Musikgeschichte, pg. Z22.


178 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

que o simples ato de musicar. Note-se, neste sentido, que, ainda


no início do século X IX , um compositor como Beethoven, quando
produzia as suas sinfonias, além de preocupar-se com a sua apre­
sentação pública em concerto, tratava de providenciar a edição de
versões simplificadas a serem utilizadas no âmbito de uma prática
amadorística muito difundida no meio da própria burguesia consu­
midora. E este ato de musicar em ampla escala acabaria por ser
gradualmente abandonado no decurso do século X X , tornando-se
a música exclusivamente um objeto de consumo passivo. Este pro­
cesso naturalmente haveria de acelerar-se com o desenvolvimento
das técnicas envolvidas nas gravações fonográficas, no rádio e,
mais recentemente, na televisão.
Parece-nos evidente que tais aspectos culturais com que se nos
apresentam as atividades musicais desta época, com seus indissi-
muláveis ingredientes de espetacularidade e de saudosismo dos
bons velhos tempos, nunca poderiam qualificar uma situação de
estabilidade. E, de fato, tudo indica tratar-se de manifestos sin­
tomas de crise cultural e decadência.8 É verdade, entretanto, que
esta fase talvez não possa ser entendida propriamente a nível de
uma crise da cultura em geral, mas certamente como uma crise
cultural burguesa, decorrente do fato de que a burguesia, que nos
séculos anteriores havia promovido realizações culturais das mais
extraordinárias, agora entrara numa fase de indiscutível deca­
dência.

8. É significativa a imagem que, a nível de ficção, nos mostra Hermann Hesse,


em descrevendo os destinos desse modelo cultural quando levado às últimas conse­
qüências e assumindo a forma do “ Jogo de Avelórios” : “ Essas regras, a lin­
guagem figurada e a gramática do Jogo, representam uma espécie de linguagem
oculta altamente evoluída, de que participam várias ciências e artes, especialmente
a matemática e a música. Essa linguagem tem a possibilidade de expor o conteúdo e
os resultados de quase todas as ciências, e de relacioná-los entre si. O Jogo de Ave­
lórios contém, portanto, a suma e os valores da nossa cultura, manejando-os assim
como, na época do apogeu das artes, um pintor manejava as cores de sua paleta.
Todos os conhecimentos, pensamentos excelsos e obras de arte que a humanidade
produziu em suas épocas criadoras, tudo que os períodos posteriores produziram em
eruditas considerações sob a forma de conceitos, apropriando-se intelectualmente
daquele saber criador, todo esse imenso material de valores espirituais é manejado
pelo jogador de avelórios como o órgão é tocado pelo organista. O órgão de que se
trata é de uma perfeição quase inconcebível. Seus manuais e pedais tateiam o inteiro
cosmos espiritual, seus registros são quase incontáveis; teoricamente se poderia
reproduzir no jogo, com esse instrumento, todo o conteúdo espiritual do uni­
verso ’ ’ . (Das Glasperlenspiel, Zürich, Fretz & Wasmuth, 1943; O Jogo das Contas
de Vidro, Rio, Record, 1969, pgs. 3-4.)
EPÍLOGO 179

Cultura popular

Esta crise cultural da música burguesa, entretanto, não se faria


sentir na cultura das classes populares. Principalmente na área ru­
ral, menos acessível-para o exercício da dominação cultural, obser­
va-se uma notável fidelidade às tradições, as quais, sob muitos as­
pectos, remontam ainda à cultura da barbárie. Neste sentido, em
referência a uma ampla gama de práticas rurais brasileiras, J. de
Souza Martins baseia a sua análise nas relações de produção pecu­
liares à realidade caipira, chegando à conclusão de que “ a vida
material, social e cultural do caipira parece organizar-se e desen­
rolar-se como se estivesse cumprindo um ciclo natural, à margem
do ‘mundo’ de abstrações construído pela atividade humana acu­
mulada” .9
As manifestações musicais envolvidas, por exemplo, na Festa
do Divino, na Festa dos Santos Reis e na Dança de São Gonçalo se
caracterizam “ estritamente por seu valor de utilidade, enquanto
meio necessário para a efetivação de certas relações sociais essen­
ciais ao ciclo do cotidiano caipira” .10 Tais relações fundamentam-
se numa profunda interação entre as atividades de subsistência e as
concepções religiosas vigentes, resultando uma espécie de misti­
cismo que muito se assemelha ao animismo da barbárie.11
Não há dúvida de que as estruturas musicais que, nessas mani­
festações, se associam ora a práticas rituais, ora a atividades de tra­
balho e ora ao contar de estórias, embora praticadas em atendi­
mento a necessidades inteiramente autóctones, não poderiam ficar
totalmente isentas das influências exercidas pelos princípios que
vigoram na música da burguesia urbana. Verifica-se, neste sen­
tido, que as classes populares rurais passaram a reproduzir, à sua
maneira, as formações tonais da cultura dominante. Nesta repro­
dução, uma vez que evidentemente não havia nenhuma preocu­
pação com uma linguagem vinculada a um universo ilusório de
denotações, reduzia-se a um mínimo possível a complexidade das
trajetórias tonais. E provável que o uso de acordes se deva, pelo
menos em parte, aos instrumentos musicais disponíveis, como a

9. “ Música Sertaneja: A Dissimulação na Linguagem dos Humilhados ” , in:


Capitalismo e Tradicionalismo, São Paulo, Pioneira, 1975, pg. 107.
10. Ibid.,pg. 112.
11. ‘ ‘Esse ciclo do cotidiano está marcado por dois elementos de referência: de
um lado, o ciclo da natureza, com a sucessão das estações do ano, e de outro, o ciclo
das comemorações litúrgicas do catolicismo. As regularidades da natureza e as da
religião combinam-se em função do trabalho rural, da atividade humana sobre a
natureza” . (I b i d pg. 108.)
180 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

viola e a sanfona, os quais se prestam especificamente para a sua


execução. Os encadeamentos destes acordes de acordo com o sis­
tema tonal, porém, que haviam sido essenciais para a linguagem
musical da burguesia, perderiam aqui a sua função propriamente
lingüística, sendo que em alguns casos acabariam por ser inteira­
mente eliminados. Como exemplo deste fenômeno, observe-se a
prática dos repentistas do Nordeste brasileiro, onde os cantadores,
obedecendo a uma estrutura melódica constante e invariável,
criam improvisações poéticas, apoiadas em um único acorde.

A música de consumo

Uma semelhante aplicação simplificada do sistema tonal veri-


fica-se também no âmbito das manifestações musicais próprias a
uma cultura popularesça urbana que, como bem observa J. Ramos
Tinhorão, no Brasil tivera seu início “ nas duas principais cidades
coloniais — Salvador e Rio de Janeiro — no decorrer do século
XVIII, quando o ouro das Minas Gerais desloca o eixo econômico
do Nordeste para o Centro-Sul, e a coexistência desses dois impor­
tantes centros administrativos de áreas econômicas distintas torna
possível a formação de uma classe média urbana relativamente di­
ferenciada” .12 Foi no meio urbano e suburbano que, através da
música praticada por cantadores na sua maioria oriundos de uma
baixa classe média, tiveram origem tanto a modinha, o lundu, o
maxixe, o tango brasileiro e o choro, como as várias manifestações
vinculadas ao carnaval.13
Ora, trata-se aqui de manifestações substancialmente distintas
daquelas praticadas no meio rural às quais nos referimos. Enquanto
a música caipira, por exemplo, devido às características que assu­
mem sua produção e apropriação por parte da própria população, se
esgota na sua qualidade de valor de uso, a música popularesça ur­
bana logo seria absorvida pelo sistema do mercado capitalista, su­
jeitando-se aos processos de compra e venda, destinando-se a um
consumo não produtivo e qualificando-se, portanto, sobretudo por
seu valor de troca. Como mercadoria, entretanto, esta música ha­
veria de ser consumida não somente por um público de elite nu­
mericamente limitado, mas pelas grandes massas da população ur­
bana. E, de fato, as grandes empresas comerciais e industriais en-

12. Pequena História da Música Popular, Petrópolis, Vozes, pg. 5.


13. Para mais informações sobre a origem histórica dessas formações musicais,
cf. J. Ramos Tinhorão, op. cit.
EPÍLOGO 181

contrariam um rendoso mercado nas demandas culturais dessa


população. Na medida em que se desenvolviam, a nível da tecno­
logia moderna, os novos media de veiculação sonora, como o rá­
dio, o disco fonográfico, o cinema e a televisão, não tardariam essas
empresas a monopolizar a produção e distribuição de tal merca­
doria.
A cultura de massa, bem como a correlata indústria cultural ,
instalam-se, portanto, no campo da realidade musical urbana, ini­
cialmente com fins comerciais, isto é, em função dos lucros que
proporcionam aos empreendimentos que a elas se dedicam. Isto,
entretanto, vem acarretar implicações de relevante importância.
Em primeiro lugar, a indústria cultural favorece naturalmente,
no domínio da cultura em geral e no da música em particular, o
desenvolvimento desmedido da tendência de apenas consumir, em
detrimento de um autêntico ato de musicar. A música vem adap­
tar-se assim à moderna sociedade de consumo , fato este que acaba
por prejudicar qualquer função a nível da comunicação social.
Neste sentido, a cultura de massa implica necessariamente um
processo de massificação.14
Esta massificação, por sua vez, acaba por revelar-se como um
poderoso instrumento de dominação cultural, pois é evidente que
uma massa humana amorfa, mais do que uma comunidade de indi­
víduos vinculados por interesses concretos, está sujeita a ser mani­
pulada por parte do Estado. E através do consumo em massa de
produtos culturais oficialmente promovidos e divulgados pelas
mass media que se consegue refrear o desenvolvimento natural da
cultura popular, impedindo-se que esta venha a adquirir a potencia­
lidade de contribuir efetivamente para a emancipação das classes
populares.15
A função de dominação cultural que aí se verifica vem comple­
mentada por uma outra, paralela, que acaba por configurar-se
como uma função de exploração cultural. Trata-se do fato de que a
indústria cultural, para poder produzir os seus produtos de fácil
acesso às massas populares, tem necessariamente de lançar mão do
manancial da cultura popular. E em vista desta necessidade que as

14. Com o termo massa referimo-nos aqui, de acordo com D. MacDonald, a


“ uma grande quantidade de indivíduos incapazes de expressarem suas qualidades
humanas por não se relacionarem entre si nem como indivíduos e nem enquanto
membros de uma comunidade” . (“ Masscult and Midcult” , in: Partisan Review,
1960, n? 2, pgs. 208-9.)
15. Trata-se de evitar que certos segmentos das classes populares cheguem,
através das suas manifestações culturais, a repetir a façanha da nascente burguesia
que, nas cidades européias medievais, fora bem sucedida na conquista da sua auto­
nomia.
182 A MÚSICA COM O LINGUAGEM

instituições voltadas ao folclore tiveram que assumir a missão de


pesquisar e colocar à disposição da classe dominante os produtos
culturais autenticamente populares, para que estes possam ser de­
vidamente manipulados pela indústria cultural. Observe-se, quan­
to a essa missão, que um ilustre folclorista como P. de Carvalho
Neto chega a afirmar que “ O Folclore Educacional é a disciplina
que estuda medidas práticas para o melhoramento social de uma
comunidade, estabelecendo quais são os seus fatos folclóricos apro­
veitáveis, que devem ser protegidos e/ou restaurados e quais são os
seus fatos inaproveitáveis, que devem ser perseguidos e/ou aniqui­
lados, e como aproveitá-los ou persegui-los devidamente, sem le­
vantar protestos” .1'’ Com referência às deformações a que está su­
jeita a música ”da cultura popular rural quando manipulada pela in­
dústria cultural, J. de Souza Martins nos esclarece sobre a “ des­
truição das bases da criação artesanal livre, enquadrando-se a pro­
dução da música sertaneja por inteiro no contexto técnico (e evi­
dentemente ideológico) da indústria cultural’ ’ ,17
Nos tempos atuais, o panorama musical se apresenta sob a for­
ma de uma quase absoluta dominação da indústria cultural, cujos
produtos musicais designamos aqui pelo termo música de con­
sumo. Observe-se que este conceito de música de consumo en­
globa a totalidade dos produtos musicais que as mass media vei­
culam para o consumo de massa, incluindo, portanto, aquela pro­
dução que habitualmente é chamada de música popular. Quanto ao
nosso posicionamento, entretanto, opomo-nos veementemente a
essa denominação, pois entendemos que ela se presta substancial­
mente para camuflar o processo de dominação cultural inerente a
um tal tipo de produção. Música popular é um termo que, a nosso
ver, deve ser reservado para referir às manifestações musicais das
classes populares, onde, como protótipo, se localiza a música cai­
pira acima citada. Não concordamos também em chamar as mani­

16. Folclore e Educação, Rio de Janeiro, Forense-Universitária/Salamandra,


1981, p g .12.
17. Op. cit., pg. 127. O autor ainda informa que “ o programa de televisão
‘Viola com Sorteada’ (Canal 7, São Paulo, domingos, 9h), que é apresentado por
uma espécie de porta-voz da música sertaneja empresarial (aliás, por isso mesmo,
candidato a deputado federal pelo partido governista), tem uma parte dedicada a
calouros, julgados pelo indefectível “ júri” . Esse “ júri” é composto de quatro pes­
soas: um alfaiate, que observa os candidatos e atribui uma nota pelo vestuário; um
representante da sociedade de direitos autorais, que atribui nota pela letra; um
compositor, que analisa a instrumentação e por ela atribui nota; e outro compositor,
que avalia a interpretação. Sem dúvida, o aspecto mais importante é o da presença
do alfaiate, que tem concepções estéticas definidas para julgar, sobressaindo suas
avaliações favoráveis quando os candidatos estão trajados de modo ‘moderno’,
nos desenhos e cores da moda, combinando estas últimas de forma agradável” .
(Ibid., pg. 127.)
EPlLOGO 183

festações realmente populares de música folclórica, uma vez que


consideramos estar este termo demasiadamente ligado ao processo
de exploração cultural a que acima nos referimos.
Uma característica importante da indústria cultural, enquanto
produtora da música de consumo, reside na extraordinária capa­
cidade que nela se verifica de absorver as mais diversas manifes­
tações musicais, sejam elas da cultura popular, sejam da cultura
dominante.18Esta absorção, portanto, não se limita absolutamente
ao fenômeno acima abordado da exploração cultural em relação às
práticas populares rurais. Muito pelo contrário, trata-se de uma
absorção que se extende à totalidade das manifestações com que a
indústria cultural acaba por defrontar-se. Neste sentido, entre
muitos outros, podem ser observados os seguintes exemplos:
1) Em muitas manifestações da música de consumo encon­
tram-se reproduzidos os temas mais conhecidos da clássica música
tonal burguesa (Beethoven, Bach), ou então recriadas certas estru­
turas tonais concebidas de acordo com algumas das normas ine­
rentes a esse classicismo. E o que ocorre, por exemplo, nas pro­
duções de Rick Wakeman, onde tais estruturas, apresentadas com
o revestimento grandiloqüente de um sofisticado instrumental
proporcionado pela moderna tecnologia eletrônica, sem pretender
qualquer espécie de aprofundamento nos originais significados to­
nais, se destinam simplesmente a um consumo que apela apenas a
uma fruição epidérmica.
2) Também as técnicas desenvolvidas pela vanguarda musical
burguesa não escapariam de uma manipulação no âmbito da mú­
sica de consumo. Principalmente a partir das iniciativas de Pink
Floyd, além de um amplo uso — que muitos consideram um abuso
— de meios eletrônicos, sobretudo mediante a utilização dos mo­
dernos sintetizadores, comparecem nessa música montagens so­
noras que não deixam de lembrar as experiências francesas de mu­
sique concrète da década dè 40. Tudo isto é tratado de forma a pro­
porcionar um consumo fácil, sem demandar esforços, evitando-se
toda e qualquer exigência de participação interpretativa por parte
do ouvinte. Já bem mais complexas são as tentativas dé Arrigo
Barnabé, por exemplo, onde se procura retomar, dentro do pano­
rama de uma música que atinja amplas massas, uma textura à.se­
melhança ora do serialismo de Webern, ora de estruturas rítmicas
bizarras à maneira de Stravinsky.

18. D. MacDonald refere-se a esta capacidade de absorção com as seguintes


palavras: “ A cultura de massa é democrática por excelência. Ela se recusa a qual­
quer discriminação de coisas ou indivíduos. Para o seu moinho tudo é moenda e, de
fato, tudo resulta muito bem moído.” (Op. cit.)
184 A MÚSICA CO M O LINGUAGEM

3) É significativa, ainda, a absorção, na música de consumo de


certas práticas que originalmente haviam surgido à margem da in­
dústria cultural. Assim, por exemplo, as manifestações, pelas
quais, nos anos 50, um punhado de intelectuais pertencentes à
classe média carioca, em Copacabana, praticavam autênticos atos
de musicar tonais, obedecendo a trajetórias tonais consideravel­
mente mais complexas do que as populares, sem chegar, entre­
tanto, ao ponto de exigir aquelas referências ideológicas que carac­
terizavam a linguagem musical burguesa propriamente dita, não
tardariam a ser cooptadas, sob a denominação de bossa nova, pela
cultura de massa.
E assim portanto, que a música de consumo, mais do que qual­
quer outra, cumpre um papel decisivo na moderna sociedade de
consumo, isto é, numa sociedade na qual os indivíduos, todos devi­
damente massificados, praticamente não encontram outro objetivo
na vida que o de consumir. O consumo de música, então, tende a
processar-se em regime de tempo integral, como se qualquer ins­
tante em que não estivesse presente esse consumo representasse um
tempo perdido.w Tudo leva a crer que o homem massificado da
sociedade de consumo adquiriu um verdadeiro horror ao silêncio e,
em vista disto, já não pode deixar escapar nenhum momento sem
preencher esse vazio com os produtos que a indústria cultural lhe
oferece.
Com tudo isto, fica claro que a crise da cultura burguesa que
caracteriza o nosso século teve como conseqüência da mais rele­
vante importância um deslocamento cultural, marcado pelo fato de
que, a partir da pressão cada vez mais intensiva exercida pela in­
dústria cultural, agora é a cultura de massa que, num processo que
acaba por marginalizar a antiga cultura dominante, impreterivel­
mente vem assumir a função de dominação cultural.

19. Note-se que os membros dessa sociedade de consumo, mesmo nas ocasiões
em que, cansados das atribulações constantes da vida urbana, fogem da cidade em
busca de um lazer longe das angústias urbanas e mais próximo á natureza, um lazer
capaz de proporcionar-lhes uma certa paz, não deixam de se fazer acompanhar dos
aparelhos — como rádio e toca-fitas — que lhes permitem prosseguir, sem perda de
tempo, no consumo de exatamente a mesma música que incessantemente os ator­
menta na cidade.
Conclusão

É evidente que as considerações acima são demasiadamente su­


cintas para permitir uma análise em profundidade capaz de escla­
recer sobre as complexas relações envolvidas na atual crise cvltural
Acreditamos, entretanto, ter deixado claro o fato de tratar-, de
uma 'rise da cultura burguesa, cujo palco se limita ao âmbito i
cultura "bana.
Já n a . :ada de 30, Ch. Caudwell, num ensaio sobre o conceito
de beleza, chegara á conclusão de que a cultura burguesa “ está se
desintegrando” e que “ essa desintegração só pode ser superada
por uma transformação das relações sociais, as quais, nas próprias
raízes, estão destruindo as forças criadoras da sociedade” .' De
fato, não há dúvida de que as perspectivas de superação cultural
estão indissoluvelmente vinculadas a um processo de transfor­
mação da própria sociedade. Neste sentido, entretanto, seria pre­
ciso esclarecer-se sobre a forma como as transformações culturais
— e principalmente aquelas que dizem respeito â arte — se vin­
culam às transformações propriamente sociais.
Também quanto a este assunto, em lugar de nos embrenhar­
mos em análises mais aprofundadas, limitamo-nos aqui a concluir
com apenas alguns apontamentos.
Julgamos que, no que diz respeito à música, diante da desati­
vação de uma linguagem musical burguesa, que se dera, por um
lado, pela recusa de uma ilusão, por parte da sua vanguarda, e, por
outro lado, pela inserção dessa música na sociedade de consumo, as
novas perspectivas devam partir da procura de reconduzir aos au­
tênticos atos de musicar.1 É preciso dar-se conta do fato de que por

1. “ Beleza — Um Estudo de Estética Burguesa” , in: The Concept of Free-


dom, Londres, Lawrence & Wishart, 1965; O Conceito de Liberdade, Rio de Ja­
neiro, Zahar, 1968, pg. 104.
2 . De forma semelhante como seria absurdo se somente tivesse direito a falar
o intelectual especializado em arte literária, ficando todo o resto da popiilaçío,

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