Você está na página 1de 17

27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

Confins
Revue franco-brésilienne de géographie / Revista franco-brasilera de geografia

44 | 2020

Número 44
Dossiês
Geografia regional

Regionalizações brasileiras:
antigos legados e novos desafios
Régionalisations brésiliennes : anciens héritages et nouveaux défis
Brazilian regionalizations: old legacies and new challenges

Rogério Haesbaert
https://doi.org/10.4000/confins.26401

Résumés
Português English Français
Este artigo problematiza a regionalização brasileira a partir de questões trazidas por antigas
regionalizações e dos desafios contemporâneos para sua realização. São consideradas tanto as
tendências de continuidade quanto as de ruptura, seja em termos analíticos quanto da realidade
empírica. São apontados alguns processos mais recentes, como o da megarregião Rio-São Paulo,
o das regiões e/ou redes regionais em áreas de modernização agrícola, as regiões
transfronteiriças e, sobretudo, as regionalizações “a partir de baixo”, construídas através de
processos de resistência de grupos subalternos.

This article problematizes the Brazilian regionalization from issues coming from old
regionalizations and the contemporary challenges to its realization. Both continuity and rupture
tendencies are considered, both analytically and empirically. Some recent processes are pointed
out, such as the Rio-São Paulo mega-region, the regions and/or regional networks in areas of
agribusiness, the cross-border regions and, above all, ” regionalizations “from below”, produced
through processes of resistance of subaltern groups.

Cet article problématise la régionalisation brésilienne à partir des questions posées par les
anciennes régionalisations et les défis contemporains pour sa réalisation. Les deux tendances de
continuité et de rupture sont considérées, à la fois en termes analytiques et dans la réalité
empirique. Quelques processus plus récents sont signalés, comme celui de la méga-région Rio-
São Paulo, celui des régions et/ou des réseaux régionaux dans les domaines de la modernisation
agricole, les régions transfrontalières et, surtout, les régionalisations « d'en bas », construites par
des processus de résistance des groupes subalternes.

Entrées d’index

https://journals.openedition.org/confins/26401 1/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

Index de mots-clés : région, régionalisation, Brésil


Index by keywords: region, regionalization, Brazil
Índice de palavras-chaves: região, regionalização, Brasil

Texte intégral

Afficher l’image
1 O principal objetivo deste artigo é problematizar a regionalização brasileira à luz de
questões trazidas por antigas regionalizações e de novos desafios que emergem a partir
de transformações geográficas mais recentes. A atualização dessa regionalização passa
também por uma reavaliação das ferramentas teóricas de que dispomos para
compreender o que denominamos des-articulação regional. Antigas regionalizações,
como veremos, não devem ser completamente rejeitadas, na medida em que podem
evocar processos que somente hoje emergem com maior relevância. É o caso, como
veremos, da consolidação de um “multi-centro” em torno da área Rio-São Paulo,
“região core” do país.
2 Sem a pretensão de trazer uma resposta consolidada para uma nova regionalização
do país, levantamos algumas evidências empíricas que balizam novos desafios teóricos,
como no que tange ao papel revigorado e multidimensional das redes – que em
determinado momento são tratadas como “redes regionais” – e a emergência de
“regionalizações de baixo para cima”, como aquelas que envolvem as novas
territorializações dos chamados povos tradicionais e que refletem igualmente a
necessidade de um pensamento descolonizado sobre a região.
3 Hoje, dentro de uma constelação geográfica de conceitos (Haesbaert, 2014), pode-se
afirmar que temos três grandes perspectivas para conceber a região: em primeiro lugar,
no sentido analítico mais amplo, temos a região “lato sensu”, como recorte com base na
diferenciação espacial que pode mudar conforme a escala e os propósitos e critérios
indicados pelo pesquisador. Se essa região considerar uma certa integração das
múltiplas dimensões do espaço, ela pode se confundir com a própria ideia de espaço
geográfico na perspectiva da articulação de suas diferenciações.
4 Finalmente, caso se parta de uma determinada relação/composição da região com
outros conceitos (como território, lugar e paisagem) e se considere a ampla tradição de
diálogo do conceito geográfico de região com a Economia, temos a região como o
conceito que melhor responde às problemáticas ligadas à dimensão econômico-
funcional do espaço. De qualquer forma, não é demais lembrar que o caráter
homogêneo da região há muito foi questionado, e o pressuposto da coesão ou, como
preferimos, da des-articulação regional, é a perspectiva mais consistente para
compreender o que podemos denominar os complexos regionais contemporâneos.

Algumas regionalizações brasileiras


5 O Brasil, país de extensão e diversidade geográficas continentais, expressa o dilema
da regionalização em múltiplas escalas. Aliás, não podemos esquecer que regionalizar é
também uma questão de escala – durante muito tempo foi sobretudo uma questão
escalar, definida estritamente no nível intermediário entre o nacional e o “local”. Assim,
apenas para ilustrar, o IBGE acabou legitimando três níveis de regionalização,
dividindo o país em macro, meso e microrregiões. As mesorregiões nasceram como

https://journals.openedition.org/confins/26401 2/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

“zonas fisiográficas” por ocasião da primeira divisão regional oficial do país, em 1941
(Guimarães, 1941). Iremos nos ater, aqui, apenas à escala das macrorregiões1, o
primeiro nível logo abaixo do nível nacional, comentando alguns exemplos, mas sem
nenhuma pretensão de tratamento exaustivo num tema tão vasto e já abordado, em
distintas perspectivas, por outros autores (ver por exemplo, para o caso das
regionalizações propostas pelo IBGE, Contel, 2014).
6 Para iniciar, nunca é demais lembrar o quanto o tratamento da regionalização está
impregnado dos processos de periodização, e vice-versa. Jamais podemos ignorar que
as regionalizações são sempre historicamente datadas, assim como as periodizações
têm sua validade regionalmente delimitada, pois nunca podem ser amplamente
generalizadas. Essa contextualização espaço-temporal, não podemos esquecer, refere-se
tanto às transformações histórico-geográficas concretas quanto – e às vezes de maneira
dissociada – no campo da história das ideias. Por diferentes motivos, entretanto,
algumas regionalizações, como veremos, podem resistir no tempo.
7 Uma das primeiras regionalizações do Brasil amplamente difundidas, sobretudo
através de livros didáticos, foi a do geógrafo Delgado de Carvalho, em 1913 (figura 1),
mais de cem anos atrás, portanto, identifica uma região Setentrional, e uma região
Central praticamente equivalentes às atuais regiões Norte e Centro-Oeste, não fosse a
variação na composição político-administrativa que criou, posteriormente, os
territórios – depois estados – de Rondônia (incluída na região Norte), Roraima e
Amapá2. Pautado em critérios de diferenciação físico-natural, Carvalho critica a
regionalização com base em divisões administrativas (como a de Manuel Said Ali Ida,
de 1905, que identificava, entre outras regiões, um Brasil Oriental de São Paulo a
Sergipe) e propõe a divisão por critérios “geográficos” – sinônimo, à época, de “quadros
naturais”.
8 Assim, visivelmente inspirado no “primeiro” Vidal de la Blache de 1897 (em “Divisões
fundamentais do território francês”), Carvalho considera que os geógrafos demoraram
tanto a “encontrar bases naturais para o estudo da geografia” porque ela permaneceu
“demasiadamente ligada à história”. Daí, afirma: “Para a classificação e a interpretação
dos fenômenos da Natureza [fundamento da Geografia] só mesmo a Natureza é que
pode oferecer quadros adequados, e estes são exatamente as regiões naturais”.
(Carvalho, 1925, apud Vlach, 1989, p. 153)

Figura 1. Regionalização do Brasil segundo Delgado de Carvalho (1913)

9 O destaque às “relações homem-meio”, sob influência de Vidal de la Blache em outro


momento de sua obra, aparece claramente, entre outros, nos clássicos “Tipos e aspectos
do Brasil”, publicados individualmente pela Revista Brasileira de Geografia a partir de
1939 com as famosas ilustrações em bico de pena de Percy Lau e somente reunidos em
livro em 1956. Segundo Angotti-Salgueiro (2005), numa época de construção da ideia
de nação, essa série de imagens regionais vincula tipo e lugar, demonstrando a
“territorialização das identidades que compõem o conjunto de regiões da nação (...)

https://journals.openedition.org/confins/26401 3/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

dentro da linha descritiva vidaliana: ‘solo-cultura-ocupação dos lugares-habitações-


traços psicológicos’” (p. 30). As características (sobretudo físicas) do meio – os
“aspectos” – vêm associadas aos “tipos”, formando unidades entre a região, a natureza e
o homem3.
10 Somente na segunda metade do século XX as regionalizações brasileiras passaram a
incorporar de modo enfático as características culturais e/ou econômicas. É
sintomático o debate envolvendo as propostas do Conselho Nacional de Geografia
quando da definição da primeira regionalização oficial do país, em 1941. Segundo Lira
(2017), travou-se à época um embate entre diferentes tradições da Geografia, “uma
vertente francesa e uma vertente norte americana, representando também diferenças
entre a escola paulista, formada por Monbeig, e a escola carioca, influenciada, após a
passagem de Deffontaines, pela escola americana”. A autora acredita, assim, que nesse
debate sobre a regionalização brasileira

... aparecem diferenças importantes entre as duas tradições: uma incorporação


diferente da perspectiva histórica e do determinismo geográfico, do ponto de vista
do método; uma diferença importante quanto ao grau de especialização na
formação dos geógrafos quanto à divisão da Geografia Física e da Geografia
Humana; uma cisão paradigmática quanto ao papel da Geografia e de sua
vinculação política ao projeto estatal brasileiro. (Lira, 2017, p. 182)

11 Fora de nosso ambiente disciplinar, mas numa leitura igualmente geográfica, o


sociólogo Manuel Diégues Júnior propõe, quase duas décadas depois, em 1960, uma
regionalização do Brasil em regiões culturais. Embora não seja a primeira (ele cita, por
exemplo, o trabalho “The Cultural Regions of Brazil”, do geógrafo Preston James, de
1951), ela aprofunda a análise e faz uma proposta conceitual importante, numa
interação explícita com a história, partindo dos processos de ocupação humana do
território brasileiro. Assim, para o autor:

... consideramos a região como um conjunto ecológico de pessoas, aproximadas


pela unidade das relações espaciais da população, da estrutura econômica e das
características sociais, dando-lhe, em conjunto, um tipo de cultura que, criando
modo de vida próprio, a difere de outras regiões. São, portanto, as regiões,
espaços territoriais definidos por certas características que dão unidade de
ideias, de sentimento, de estilos de vida, a um grupo populacional. (Diégues Jr.,
1960, p. 6-7)

12 Embora não sejam definidas com clareza expressões como “conjunto ecológico de
pessoas” ou “relações espaciais de população”, é evidente a relevância que o autor
concede às relações entre a sociedade e seu meio “ecológico” ao longo da formação
histórica de determinado espaço, especialmente em sua dimensão econômica. A própria
nomenclatura utilizada para definir as regiões culturais (v. figura 2) parece, na verdade,
dar um peso fundamental à atividade econômica predominante, fruto de uma
determinada relação com a natureza (base geológico-mineral, tipo de solo, clima e
vegetação).

Figura 2. Regionalização (cultural) do Brasil segundo Diégues Júnior (1960)

https://journals.openedition.org/confins/26401 4/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

13 Surgem assim regiões “pastoris” (“Mediterrâneo”, equivalente ao sertão nordestino;


Extremo-Sul) e “agrárias” (“Nordeste agrário” [da zona da Mata], região do Café [do
Espírito Santo ao norte do Paraná] e do Cacau [sul da Bahia]), além das regiões da
Mineração (do centro de Minas à Chapada Diamantina) e da pequena região do Sal
(litoral norte potiguar). Uma nomenclatura está claramente ligada ao processo
colonizador (região de “Colonização Estrangeira” no planalto Meridional) e,
surpreendentemente, continuam presentes uma “Amazônia” (expandida até o norte de
Mato Grosso, atual estado de Tocantins e quase todo o Maranhão) e um Centro-Oeste
(restringido ao Mato Grosso do Sul, sul de Mato Grosso, maior parte de Goiás e
cerrados mineiros).
14 Apesar de receberem a denominação de regiões culturais, trata-se, podemos afirmar,
de uma das primeiras regionalizações econômicas do país, pautada nas formas
predominantes de uso do solo, especialmente através do trinômio extrativismo-
pecuária-agricultura. Sua preocupação, entretanto, através das características da
ocupação econômica do espaço brasileiro, era traduzir uma regionalização não setorial
ou “simples”, já que o critério econômico (e da formação histórica que o traduz) seria
tomado como o elemento integrador por excelência da diferenciação regional.
15 Essa preocupação com a dimensão econômica e as formas de ocupação do espaço
brasileiro se traduz de modo ainda mais evidente na regionalização proposta pelo
geógrafo Pedro Geiger, em 1964. Para Geiger, o primeiro ponto a ser ressaltado nos
estudos regionais é que a região, como parte de um todo, nunca pode ser vista
isoladamente. A interrelação parte (região) – todo torna-se assim fundamental.
Definindo a Geografia como “a ciência do espaço organizado pelo homem”, coloca a
ação humana em primeiro lugar. Desse modo, “uma vez que o espaço geográfico é um
espaço humano, as regiões são humanas. Assim, as regiões são unidades decorrentes do
desenvolvimento humano, fundamentalmente, da divisão territorial do trabalho”. (p.
26, grifo do autor) Diante do “envolvimento de todo o globo por um mecanismo único,
integrado, de caráter econômico”, diz o autor, “se acentua uma nova forma de
diferenciação regional”. (p. 28)
16 Geiger incorpora a conceituação de Fany Davidovich (citado como “trabalho
inédito”), que define regiões geográficas como:

... continuidades e descontinuidades resultantes da convergência das atividades


presentes de um grupo humano, das condições legadas do passado e das
condições do meio físico. Na região, distinguem-se os elementos que lhe
conferem unidade e os laços que lhe dão coesão orgânica, refletindo aspectos da
vida regional no espaço e no tempo. (Davidovich, apud Geiger, 1964, p. 29)

https://journals.openedition.org/confins/26401 5/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

17 Depois de apresentar as sete “regiões físicas brasileiras” (onde, além das então
recorrentes regiões Amazônia, Central, Nordeste, Leste e Sul, aparecem o Meio-Norte e
o Planalto Paulista) e propor uma síntese do processo histórico de colonização e
formação econômica do país, o autor conclui que resultou daí um Sul e Sudeste “de
maior influência das migrações europeias modernas” onde estão as “partes mais
desenvolvidas, mais industrializadas e mais urbanizadas”. Esse raciocínio “moderno-
colonial” da época, contrapondo “atraso” e “progresso”, tradição e modernidade,
concede ao Norte e Nordeste “a parcela mais tradicional, menos industrializada” e com
menor influência da migração europeia (p. 34), mas o autor ressalta que o
“crescimento” do Sul-Sudeste também se fez “às expensas de correntes de migrações
internas” e que nossa “miscigenação étnica” evitou a existência de “problemas étnicos
profundos” (p. 35).

Figura 3. Regionalização do Brasil segundo Pedro Geiger (1964)

18 Ressaltando o crescente processo de industrialização e a consolidação da rede de


transportes, Geiger reconhece que ocorria uma “organização do espaço brasileiro
segundo uma hierarquização geográfica decorrente da polarização a partir dos núcleos
de primeira magnitude, Rio de Janeiro e São Paulo”. (p. 36) Como se observa na figura
3, o autor propõe regionalizar o Brasil identificando pela primeira vez a região Sudeste4
(composta pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, a então Guanabara, Espírito
Santo, o norte do Paraná e centro-sul de Minas Gerais), por sua vez “soldada” às regiões
Sul e Centro-Oeste, “territórios de economia complementar” para onde se propagam as
atividades do Sudeste, formando assim a “Grande Região Centro-Sul”. (p. 37) Dentro de

https://journals.openedition.org/confins/26401 6/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

cada uma dessas “grandes regiões” também são identificadas subdivisões regionais. Na
“região que comanda o país”, o Sudeste, aparece em primeiro lugar a “região industrial
e urbana”, resultante do “entrelaçamento da ação” das duas grandes metrópoles, Rio e
São Paulo. Ela se estende de Cabo Frio e Santos, de Rio a Juiz de Fora e de São Paulo a
Sorocaba e Piracicaba – praticamente aquele espaço que hoje Lencioni (2015) identifica
como megarregião Rio-São Paulo, e que será comentada mais à frente.
19 Outra regionalização que de certo modo dá sequência àquela proposta por Geiger,
sob outras bases teóricas, é a da geógrafa Bertha Becker, em 1972 (republicada em
Becker, 1982). A autora desenvolve uma regionalização através de “regiões segundo
interações espaciais” (fig. 4), fundamentada na teoria dos sistemas e na ideia de
desenvolvimento capitaneado por centros difusores de inovações, bem ao estilo da
“integração nacional” projetada pelos governos militares. Em suas palavras, “à medida
que as inovações se difundem pelo sistema espacial, o desenvolvimento é alcançado. A
incidência espacial do desenvolvimento é a integração nacional, realizada quando a
multiplicidade de core regions absorve a periferia”. (Becker, 1982, p. 16)
20 Reconhece-se, entretanto, o processo concentrador em torno das “core regions”,
representadas pelas duas grandes metrópoles, Rio de Janeiro e São Paulo, e suas
regiões metropolitanas. Para Becker, o “efeito cumulativo” das relações centro-periferia
“é fortemente favorável ao ‘centro’, que vem continuamente reforçando sua vantagem
relativa”. A região “core” das duas áreas metropolitanas “constitui o centro de decisão
da nação, sede das iniciativas que organizam o espaço”, sendo o “dinamismo do ‘centro’
que comanda o sistema espacial, ao qual a periferia se integra de formas diversas”. (p.
20) A partir daí a autora identifica (ver fig. 3) “regiões periféricas dinâmicas ou em
desenvolvimento”, “regiões periféricas em lento crescimento”, “regiões periféricas
deprimidas” e “fronteira de recursos ou regiões de novas oportunidades”.

Figura 4. Regionalização do Brasil segundo Bertha Becker (1982[1972])

https://journals.openedition.org/confins/26401 7/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

21 Menos de uma década depois, Milton Santos e Ana Clara Torres Ribeiro ampliariam
a concepção da “região core” propondo o termo “região concentrada” num trabalho que,
por referência do próprio autor (Santos, 1993), não chegou a ser publicado (Santos e
Silveira, 1979). É interessante notar que em 1993 Milton Santos, que ainda não havia
acrescentado o qualificativo “informacional” ao seu então “meio científico-técnico”,
chega a espacializá-lo, propondo substituir o termo “região concentrada”, como se o
efetivo “meio científico-técnico” estivesse circunscrito espacialmente à região Centro-
Sul5. Mas logo a seguir ele reafirma:

Hoje, pode-se falar de uma região concentrada que abrange, grosso modo, os
estados do Sul (Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul) além de São Paulo e
Rio de Janeiro e parcelas consideráveis do Mato Grosso do Sul, Goiás e Espírito
Santo. Trata-se de uma área contínua onde uma divisão do trabalho mais intensa
que no resto do País garante a presença conjunta das variáveis mais modernas –
uma modernização generalizada – ao passo que no resto do país a
modernização é seletiva, mesmo naquelas manchas ou pontos cada vez mais
extensos e numerosos, onde estão presentes grandes capitais, tecnologias de
ponta e modelos elaborados de organização. (1993, p. 39-40)

22 Seis anos depois, em 1999, agora com Maria Laura Silveira (Santos e Silveira, 2001),
Milton Santos desdobra esse caráter concentrador, que – como na regionalização
proposta por Pedro Geiger – aparece caracterizando quase todo o Centro-Sul do país.
Trata-se ainda, em primeiro lugar, de reconhecer a “difusão diferencial do meio
técnico-científico-informacional” e as “rugosidades”, o acúmulo das heranças do
passado. Propõe-se, “grosseiramente – e como sugestão para um debate”, “quatro

https://journals.openedition.org/confins/26401 8/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

Brasis (ver fig. 5): uma Região Concentrada, formada pelo Sudeste e pelo Sul, o Brasil
do Nordeste, o Centro-Oeste e a Amazônia” (p. 268). O que mais importa não é a
configuração, questionável, de base político-administrativa, mas o conteúdo das
relações de e entre essas regiões.
23 A partir da interpretação de Santos e Silveira (1999) denominação “Região
Concentrada” traduz agora a leitura crítica que fundamenta uma regionalização onde a
polarização e a “centralidade” (comandada, segundo os autores, por São Paulo e
Brasília) é “criadora de conflitos”. A ênfase ao processo de concentração supera em
muito, portanto, a concepção desenvolvimentista presente nas interpretações dos anos
1960/1970 – o que não significa que o imaginário político nacional não continue, ainda
hoje, moldado por aquele ideário.
24 Os autores consideram, assim, novas lógicas centro-periferia, muito distintas da
interpretação sistêmico-desenvolvimentista de Becker, anteriormente comentada6.
Reconhece-se um crescimento econômico desigual e combinado em que o
aprofundamento das desigualdades pode ocorrer no próprio interior da “região
concentrada”. A informação e os serviços, desde os anos 1970, passam a comandar a
economia, reforçando a centralidade de São Paulo que, juntamente com Brasília, exerce
uma “regulação delegada”, subordinada às “forças centrífugas”, externas a sua
“competência territorial”. O padrão capitalista neoliberal vigente no final dos anos 1990
revela, por sua vez, um Estado também “centrifugador”, onde “sua regulação acaba por
ser desreguladora”, periferizando ainda mais o país na esfera internacional. (Santos e
Silveira, 1999:268)

Figura 5. Regionalização do Brasil segundo Santos e Silveira (1999)

25 Esse longo caminho de transformação do território brasileiro e das concomitantes


leituras geográficas de sua configuração regional, sintetizadas aqui em algumas poucas
propostas, traz lições que podem ser relidas à luz de transformações recentes, ocorridas

https://journals.openedition.org/confins/26401 9/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

nas últimas duas ou três décadas, e que permitem falar em novos desafios para a
regionalização do país. É o que focalizaremos no próximo item.

Novos desafios por uma regionalização


do Brasil
26 Faremos agora uma incursão por algumas das problemáticas que, no nosso
entendimento, estão emergindo – ou emergiram nas últimas três décadas – e que
trazem importantes implicações para um processo de regionalização que dê conta da
atual geografia regional brasileira. Longe de ser uma proposição exaustiva, trata-se de
encarar, ainda que preliminarmente, algumas questões identificadas por sua relevância
a partir do desdobramento de evidências empíricas e/ou propostas conceituais e
metodológicas, algumas já insinuadas ou sugeridas nas regionalizações brasileiras aqui
comentadas.
27 Retomando essas regionalizações abordadas no item anterior, podemos afirmar que,
em maior ou menor nível de explicitação, cada uma envolve, além de fundamentos
teórico-conceituais e/ou metodológicos distintos, ênfases empíricas a dimensões e/ou
questões específicas. Enquanto Delgado de Carvalho, fundamentado numa Geografia de
raízes deterministas, enfatiza a base fisiográfico-natural do território brasileiro, Manuel
Diegues Júnior traz para primeiro plano o processo histórico-cultural de formação do
país em sua relação com o meio e as atividades econômicas aí associadas. Pedro Geiger,
por sua vez, coloca o foco na divisão territorial do trabalho que destaca o papel do
chamado Centro-Sul brasileiro, novamente presente, à luz das relações centro-periferia,
na proposta sistêmico-funcionalista de regionalização de Bertha Becker. Milton Santos
continua na mesma linha de ênfase na formação econômica e na intensificação da
divisão do trabalho, denominando a região central de região concentrada, numa leitura
que agrega elementos de fundamentação dialético-materialista.
28 Esse destaque de uma ampla região Centro-Sul ou, na ótica de Milton Santos,
concentrada, reunindo Sul e Sudeste (e partes do Centro-Oeste) adquire, na leitura de
Geiger, uma subdivisão onde se ressalta uma “região industrial e urbana” que se
estende de Cabo Frio, na região dos Lagos fluminense até Piracicaba, no interior de São
Paulo. Bertha Becker restringe essa “região core” às metrópoles Rio e São Paulo que, na
visão de Geiger, teriam o comando de sua “região industrial e urbana”. Esses
pressupostos antecipam de algum modo (inclusive na delimitação espacial) aquilo que,
numa outra base teórica, muito mais crítica e aprofundada, é identificado por Sandra
Lencioni (2015) como uma “megarregião Rio de Janeiro-São Paulo”. A “megalópole
Pasangua” (São Paulo-Santos-Guanabara), identificada em uma densa reportagem
sobre a urbanização e as metrópoles brasileiras, publicada pela revista “Realidade”, em
maio de 1970, parece ter se efetivado.
29 Considerando todas as controvérsias que o conceito de megalópole de Jean Gottman
implica, Lencioni (2015), inspirada em proposição de Saskia Sassen, propõe trabalhar
com o conceito de megarregião. Para a autora, a megarregião “constitui uma
macroestrutura fortemente integrada pelo capital e pelo trabalho, na qual as cidades e
os arredores são bastante conectados, além de apresentar fortes vínculos com a
economia global”. (p. 61) Assim, a megarregião Rio de Janeiro-São Paulo desempenha o
papel de centro, como nas antigas regionalizações aqui mencionadas, mas essa
condição megarregional não significa simplesmente que seja o centro econômico do
país, mas um centro “que coloca em conexão o capital que aqui se reproduz com o
conjunto da produção capitalista em escala global”. (Lencioni, 2015, p. 65) A imagem de
satélite que mostra a continuidade das áreas urbanizadas através da iluminação
noturna (figura 6) enuncia claramente esse processo.

Figura 6. Megarregião Rio de Janeiro-São Paulo: visão noturna


Image 10000201000004F3000003809EF10B4EBBDF9EB0.tif

https://journals.openedition.org/confins/26401 10/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios
(fonte: Lencioni, 2015:65, com base no Google Earth, 2014)

30 A megarregião-centro do país identificada por Lencioni, apesar de sua urbanização


difusa e de seu policentrismo, continua concentradora, especialmente no que se refere
ao capital financeiro e ao know-how de alta tecnologia. Ela se insere na passagem do
que a autora denomina um paradigma da “urbanização metropolitana”, mononucleada,
para o da “metropolização” ou “pós-urbanização” de regiões urbanas dispersas e
policêntricas, podendo incluir várias metrópoles (Lencioni, 2017). Esse processo
continua muito mais disseminado e dinâmico no Centro-Sul do país, expandindo-se
principalmente para áreas de projeção do agronegócio, já identificadas por Becker
naquilo que, à época, ainda se denominavam eixos de expansão das frentes pioneiras.
31 É nesses espaços que brota outro fenômeno regional que representa de certo modo
uma outra face (agroindustrial) da economia dinâmica brasileira das últimas décadas: a
agricultura capitalista tecnificada, vinculada à indústria e às finanças, num complexo
conjunto de atividades que genericamente se denomina agronegócio. Elias (2011)
propõe mesmo, aí, a formação de “regiões produtivas agrícolas”. Rompendo com o
tradicional recorte rural-urbano e dominadas por grandes corporações, elas “são
formadas seja por espaços agrícolas altamente racionalizados, seja por espaços não
metropolitanos, cidades de porte médio e cidades menores” (p. 165) – sem dúvida
acoplando também metrópoles pela alta conexão com os fluxos advindos de tentáculos
da megarregião, como ocorre, por exemplo, no eixo São Paulo-Campinas-Ribeirão
Preto-Uberlândia-Goiânia.
32 Essas “regiões produtivas agrícolas” compõem claramente o que denominamos
processos de des-articulação regional: participando de redes agroindustriais (que,
segundo Elias, integram todas as atividades ligadas ao agronegócio), elas fragmentam o
espaço através de especializações produtivas e conexões mais diretas com a dinâmica
globalizadora. Tal como na megarregião Rio-São Paulo, atuam como intermediadoras
em processos exógenos7.
33 Devemos acrescentar a essas regiões agrícolas (termo problemático na medida em
que, como a autora reconhece, são espaços de atividades muito complexas), outro
processo, intimamente conjugado, e para o qual propusemos a denominação “rede
regional” (Haesbaert, 1997). A concepção de rede regional coloca em xeque a concepção
tradicional de região-zona, contínua, representando sobretudo uma região-rede,
dominada muito mais pelos fluxos em rede do que pelas delimitações zonais. O caso
que analisamos vai além da consideração da expansão e concentração capitalista
agrícola, industrial e financeiro do agronegócio. Além do fluxo que se projeta a partir da
megarregião Rio-São Paulo temos aquilo que denominamos “rede regional gaúcha”
(“gaúcho” aqui no sentido como são denominados todos os migrantes provenientes da
região Sul do país).
34 Figura 7. A rede regional “gaúcha” através dos CTGs – Centros de Tradições Gaúchas

https://journals.openedition.org/confins/26401 11/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

(fonte: Haesbaert, R, 1997: 252)

35 A rede regional gaúcha no interior do Brasil corre no sentido oposto ao da rede


migratória da força de trabalho nordestina que se desdobrou durante o período mais
importante de urbanização e industrialização do país, da região Nordeste para o
Sudeste, especialmente para a área denominada hoje megarregião Rio-São Paulo. Além
de ocorrer “pelos fundos”, do Sul ao Norte-Nordeste via Centro-Oeste, trata-se de um
intenso processo de difusão não apenas econômico, de capital, força de trabalho e
know-how agroindustrial, mas também político e cultural, especialmente no que se
refere à proliferação da cultura gaúcha e sua ética protestante de ascensão social pelo
trabalho. Assim, fenômenos empíricos mais diretos como a difusão dos CTGs - Centros
de Tradições Gaúchas (ver figura 7) são claramente representativos dessa nova
geografia.
36 Não há como entender hoje nossa regionalização sem compreender a força dos
capitalistas (e também pequenos e médios produtores) provenientes da região Sul – e
não apenas da megarregião Rio-São Paulo e seus eixos de expansão. Em muitas áreas
eles foram os principais responsáveis pela introdução da cultura da soja, carro chefe de
todo o conjunto de atividades agroindustriais e financeiras que se projetou para os
cerrados do Mato Grosso, Rondônia, Goiás, Tocantins, oeste baiano, sul do Piauí e
Maranhão e, mais recentemente, florestas do sul do Pará e sudeste do Amazonas. As
distintas des-articulações regionais daí advindas conformam um dos fenômenos mais
radicais de transformação na geografia brasileira nas últimas décadas.
37 Como decorrência, em parte, também, dessa migração sulista pelas novas áreas de
expansão agroindustrial temos a incorporação não apenas de terras dentro do território
nacional mas também fora dele. São tão intensas, muitas vezes, as articulações

https://journals.openedition.org/confins/26401 12/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

transfronteiriças que não há como efetivar uma regionalização do Brasil sem considerar
a intensidade dos laços travados ao longo das fronteiras (ver por exemplo as redes
transfronteiriças com os vizinhos do Mercosul identificadas em Haesbaert e Santa
Bárbara, 2001). O caso mais evidente é o do leste paraguaio, tomado pela migração
sulista que devastou a floresta e disseminou a cultura da soja, mas isso também se
reproduz, em escalas menores, em casos como os do Uruguai e Argentina (através da
rizicultura) e da Bolívia e Venezuela (também com a soja).
38 Para completar, uma regionalização que se preze, hoje, além de incorporar relações
transfronteiriças, não pode se eximir de considerar a incorporação econômica de áreas
marítimas, onde o caso mais destacado é o do petróleo, notadamente no caso do pré-
sal. O mapa apresentado por Lencioni (2015) como “o reverso” da megarregião Rio-São
Paulo representa bem a relevância dessa nova configuração territorial para além do
espaço continental brasileiro (figura 8)

Figura 8. Exemplo de áreas marítimas a serem incorporadas à regionalização

(fonte: Lencioni, 2015:66)

39 Finalmente, uma das questões mais importantes a ser considerada em novos


processos de regionalização do Brasil é a que envolve o que denominamos
“regionalização de baixo para cima”. Isso representa, também, de alguma forma, a
busca de uma “descolonização” do nosso pensamento sobre a regionalização brasileira.
Normalmente nosso raciocínio se dirige apenas às esferas hegemônicas da construção
do espaço: as grandes corporações capitalistas, os processos globalizadores, o “meio
técnico-científico-informacional”, as regiões das grandes empresas do agronegócio...
40 Parece, por vezes, que o espaço geográfico é moldado exclusivamente de cima para
baixo e a partir da imposição e/ou mediação de dinâmicas globalizadoras. Esquece-se
que há sempre espaços de resistência e/ou remanescentes profundamente marcados
pela ação de grupos subalternos que também podem articular-se espacialmente e,
portanto, regionalizar à sua maneira expressivas parcelas do território brasileiro. É o
que ocorre, por exemplo, com os chamados povos tradicionais.
41 Desconsiderar o papel das grandes áreas de preservação ambiental e também as de
resistência e/ou contenção (dependendo da perspectiva) como as de povos indígenas e
quilombolas, seria um grave equívoco em um processo de regionalização que leve em
conta, de fato, as distintas modalidades de diferenciação e/ou articulação do território
brasileiro. Neste caso, pelo menos, não há como não considerar suas configurações
zonais, já que se trata de áreas (em tese, pelo menos) linear e mais rigidamente
demarcadas. Em alguns momentos é quase como se voltássemos a considerar
elementos da “relação homem-meio” tão destacados em regionalizações tradicionais,

https://journals.openedition.org/confins/26401 13/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

como as aqui citadas de Delgado de Carvalho e Fabio Guimarães – e, sobretudo, nos


“tipos e aspectos do Brasil” ilustrados por Percy Lau.
42 Ao lembrarmos hoje as imagens de Percy Lau podemos não apenas identificar
remanescentes de um Brasil tradicional, mas também evocar as tentativas de retomada,
em novos moldes, dessas relações sociedade-natureza, tantas vezes mergulhadas num
projeto de “modernização” tido como inexorável. As lutas dos povos tradicionais pelo
território nas últimas décadas estão entre as principais responsáveis por essas
resistências e/ou transformações na geografia brasileira
43 Uma “regionalização de baixo para cima”, contudo, enquanto voltada também para
os espaços efetivamente vividos, não envolve apenas processos como o dos povos
tradicionais. Trata-se ainda de considerar as inúmeras dinâmicas, especialmente
migratórias, dos mais pobres, seja como força de trabalho, seja como grupos que
expandem traços políticos e culturais (como no caso de gaúchos e nordestinos) e que,
assim, mesclam os múltiplos regionalismos e regionalidades do país.
44 A maioria das regionalizações abordadas aqui tomaram como referência quase que
exclusivamente os macroprocessos socioeconômicos, (dis)funcionais, do capitalismo
(inter)nacional-global. Mesmo frações regionais dos grupos hegemônicos, como as que
reivindicam maior autonomia para o Sul ou o Nordeste ficaram praticamente
esquecidas. É imprescindível, finalmente, mesmo dentro da ótica dos processos
hegemônicos, um tratamento aprofundado desses (neo)regionalismos, hoje também
embrionários nos casos da Amazônia e do “Brasil Central do agronegócio” (com sua
forte política lobística em Brasília).

Considerações finais
45 Este texto foi estruturado em duas grandes partes: a primeira, que analisou algumas
regionalizações relevantes da história brasileira ao longo do século XX, e a segunda, que
se deteve em alguns dos principais desafios que se colocam para uma nova
regionalização do Brasil. O passado e o presente, é claro, não são excludentes, sendo
necessário um tratamento histórico consistente para entender as atuais transformações
em curso no nosso país. Embora a limitação de espaço neste artigo não tenha permitido
um maior detalhamento do processo histórico, o próprio percurso através da história
(incluindo a história das ideias) pelas distintas regionalizações aqui tratadas mostrou
um pouco das dinâmicas que, entre avanços e retrocessos, continuidades e
descontinuidades, desenhou o atual mapa regional do país.
46 A maioria de nossas regionalizações, geralmente vinculadas a interesses
administrativos (e do planejamento), foram delimitadas tomando como referência as
unidades político-administrativas. Delgado de Carvalho, entretanto, no início do século
XX, tal como o Vidal de la Blache do final do século XIX (Vidal de la Blache,
2012[1888]), considerava as divisões regionais com base administrativa “divisões
artificiais”, devendo-se pautar pelas “divisões naturais”. Com o tempo, ignoramos as
bases naturais na construção do espaço geográfico e passamos a regionalizar
considerando quase que exclusivamente as funções e/ou os fluxos econômicos
(comércio, indústria e serviços nas regiões funcionais, por exemplo) ou a dinâmica de
acumulação desigual capitalista (região como produto da divisão espacial do trabalho).
47 Por mais que enfatizemos hoje as redes técnicas, de natureza econômica, nas
configurações regionais, temos que considerar a força, crescente em muitos contextos,
do conteúdo mais especificamente político e/ou cultural das redes (como vimos no caso
das redes transfronteiriças e das redes regionais para o caso brasileiro). Além disso, não
podemos esquecer que toda construção geográfica compreende também as des-
articulações (com hífen, pois são processos concomitantes), cada vez mais
problemáticas, com o espaço natural. Além disso, percebido, concebido e vivido (nos
termos de Lefebvre) se entrecruzam através da ação de múltiplos sujeitos sociais que
produzem as regiões em cada contexto histórico-geográfico.

https://journals.openedition.org/confins/26401 14/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

48 É nesse sentido que propomos uma releitura do regional a partir de novos


fundamentos teóricos, especialmente através do chamado pensamento decolonial. Um
olhar sobre o regional que não leve em conta os processos de diferenciação geográfica
“de baixo para cima” ou a interferência do discurso e das práticas racializadas, por
exemplo, está fadado à extrema limitação, especialmente no caso dos países latino-
americanos. Mesmo autores que examinam a regionalização priorizando a produção
das desigualdades regionais, se considerarem apenas as distinções por condição
socioeconômica, terão uma perspectiva empobrecida da complexidade regional. Mas
deixamos aqui apenas essa constatação, pois “decolonizar” a região, é tema para um
próximo trabalho.
49 Para concluir, lembramos, para uma renovação da regionalização brasileira é
fundamental considerarmos que:

(...) a região pode ser vista como um “espaço-momento” cuja diferenciação


resulta muito mais da efetiva articulação espacial em rede, complexa,
amplamente aberta à transformação, cuja dominância em termos de densidade,
disposição e dimensão espaciais (econômica, política, cultural ou “natural”)
dependem dos grupos sociais e do contexto geo-histórico em que estiver
inserida. Enquanto espaço-momento, ela pode manifestar-se como um conjunto
mais articulado ou integrado na leitura e/ou vivência de um grupo e não na de
outro, colocando os sujeitos sociais, portanto, no centro da regionalização
enquanto ação (também) concreta de diferenciação espacial [a região como arte-
fato]. (Haesbaert, 2010, p. 196)

50 Agradecimento: a Sandra Lencioni, pela gentileza da cessão das imagens das figuras
6 e 8.

Bibliographie
ANGOTTI-SALGUEIRO, H. “A construção de representações nacionais: os desenhos de Percy
Lau na Revista Brasileira de Geografia e outras ‘visões iconográficas’ do Brasil moderno”. Anais
do Museu Paulista v.13, n.2, jul.-dez., p. 21-72, 2005.
BECKER, B. “Crescimento econômico e estrutura espacial do Brasil”. In: Becker, B. Geopolítica
da Amazônia: a nova fronteira de recursos. Rio de Janeiro: Zahar, p. 15-32, 1982 (1972)
CONTEL, F. “As divisões regionais do IBGE no século XX (1942, 1970 e 1990)”. Terra Brasilis
(Nova Série), n. 3, 2014.
DIÉGUES JÚNIOR, M. Regiões Culturais do Brasil. Rio de Janeiro: Centro de Pesquisas
Educacionais/INEP, Ministério da Educação e Cultura, 1960.
ELIAS, D. “Agronegócio e novas regionalizações do Brasil”. Revista Brasileira de Estudos
Urbanos e Regionais v. 13, n. 2, p. 153-167, 2011
GEIGER, P. “Organização Regional do Brasil”. In: Revista Geográfica, Rio de Janeiro, Tomo
XXXIII, n. 61, jul.-dez., p.25-53, 1964
GUIMARÃES, F. “Divisão regional do Brasil”. Revista Brasileira de Geografia v. 3, n. 2, p. 344,
1941
HAESBAERT, R. Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de in-
segurança e contenção. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2014
_________ . Regional-Global: dilemas da região e da regionalização na Geografia
contemporânea. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010
________ . Des-territorialização e Identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste. Niterói: EdUFF,
1997.
HAESBAERT, R.; NUNES, S. e RIBEIRO, G. Vidal, Vidais: textos de Geografia Humana,
Regional e Política. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012
HAESBAERT, R. e SANTA BÁRBARA, M. “Identidade e migração em áreas transfronteiriças”.
GEOgraphia v. 3, n. 5, 2001
LENCIONI, S. “Para além da urbanização metropolitana: metropolização e regionalização pós-
metropolitana”. In: Ferreira, A.; Rua, J. e Mattos, R. (org.) O espaço e a metropolização:
cotidiano e ação. Rio de Janeiro: Consequência, 2017.
________ . “Metropolização do espaço e a constituição de megarregiões”. In: Ferreira, A.; Rua,
J. e Mattos, R. (org.) Desafios da metropolização do espaço. Rio de Janeiro: Consequência, 2015

https://journals.openedition.org/confins/26401 15/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios
LIRA, L. “A controvérsia da regionalização do Brasil de 1941: Pierre Monbeig e os geógrafos do
Conselho Nacional de Geografia”. Revista Brasileira de História da Ciência, Rio de Janeiro, v.
10, n. 2, p. 169-185, 2017
SANTOS, M. A urbanização brasileira. São Paulo: Hucitec, 1993
SANTOS, M. e RIBEIRO, A. C. “O conceito de região concentrada”. Rio de Janeiro: UFRJ e
IPPUR (mimeo.), 1979
SANTOS, M. e SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. Rio de
Janeiro e São Paulo: Record, 2001
THRIFT, N. “For a new regional Geography” (1, 2, 3). Progress in Human Geography vols. 14, 15
e 17, 1991, 1992 e 1993

DOI : 10.1177/030913259301700107
VIDAL DE LA BLACHE, P. “As divisões fundamentais do território francês”. In: Haesbaert, R.;
Pereira, S. e Ribeiro, G. (orgs.) Vidal, Vidais: textos de Geografia Humana, Regional e Política,
2012 (1888)
VLACH, V. Carlos Miguel Delgado de Carvalho e a “orientação moderna” em Geografia. In:
Vesentini, J. W. (org.) Geografia e Ensino: textos críticos. Campinas: Papirus, 1989.

Notes
1 Mesmo se, como fizemos aqui para o caso brasileiro, priorizarmos a escala “macrorregional”,
não ignoramos a valorização, hoje, até mesmo do âmbito local no entendimento da região. O
famoso “localismo” de que Paul Vidal de la Blache foi equivocadamente acusado (a propósito, ver
Haesbaert et al., 2012), acabou voltando, renovado, nos anos 1990, no bojo do chamado
pensamento pós-moderno (v. por exemplo Nigel Thrift, 1991, 1992 e 1993).
2 É surpreendente que ainda hoje esse recorte se mantenha – talvez justificando a permanência,
também, de vínculos por vezes fortes entre a forma de ocupação socioeconômica de cada uma
dessas macrorregiões e seus traços naturais preponderantes.
3 “É a célebre questão da diversidade e da variedade que está em jogo, do genius loci, de uma
organização espacial dos contrastes típicos ao território do País (entendido aqui como nação). (...)
As figuras paisagísticas de cada região respondem a uma territorialidade marcada pela alteridade
de seus elementos naturais e por seus habitantes que os modificam ou se adaptam a eles”.
(Angotti-Salgueiro, 2005, p. 31)
4 A regionalização do país definida pelo IBGE que propôs a região Sudeste só viria a ser
oficializada em 1970. Para uma análise das regionalizações oficiais do Brasil de 1942, 1970 e 1990
ver Contel, 2014.
5 “Nesta ordem de ideias, a expressão meio científico-técnico poderia ser utilizada em
substituição àquela (que há alguns anos cunhamos juntamente com Ana Clara Torres Ribeiro) de
região concentrada”. (Santos, 1993, p. 39)
6 “... é difícil prosseguir falando de uma situação de polo-periferia, onde o polo seria uma área
circunscrita confundida com a própria extensão da principal aglomeração e sua região de
influência imediata como na proposta de Boudeville (1968) ou na de Friedmann (1971)”. (Santos,
1993, p. 39)
7 Para Elias: “... as RPAs [regiões produtivas agrícolas] devem ser estudadas como lugares
funcionais de circuitos espaciais da produção e círculos de cooperação da produção de
importantes commodities, cada vez menos resistente às ingerências exógenas e aos novos signos
do período histórico atual, comandado por algumas empresas hegemônicas do setor, tornando-se
lugares do fazer do agronegócio globalizado (representando suas áreas mais competitivas).
Assim, na definição das RPAs, estamos longe daquela solidariedade orgânica que era o próprio
cerne da definição do fenômeno regional” (Elias, 2011, p. 156)

Table des illustrations


Titre Figura 1. Regionalização do Brasil segundo Delgado de Carvalho (1913)
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-1.jpg
Fichier image/jpeg, 63k

Titre Figura 2. Regionalização (cultural) do Brasil segundo Diégues Júnior


(1960)
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-2.jpg
Fichier image/jpeg, 385k
Figura 3. Regionalização do Brasil segundo Pedro Geiger (1964)
https://journals.openedition.org/confins/26401 16/17
27/09/2022 19:10 Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios

Titre
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-3.jpg

Fichier image/jpeg, 469k

Titre Figura 4. Regionalização do Brasil segundo Bertha Becker (1982[1972])


URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-4.jpg
Fichier image/jpeg, 244k

Titre Figura 5. Regionalização do Brasil segundo Santos e Silveira (1999)


URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-5.jpg
Fichier image/jpeg, 250k
Titre Figura 6. Megarregião Rio de Janeiro-São Paulo: visão noturna
Crédits (fonte: Lencioni, 2015:65, com base no Google Earth, 2014)
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-6.tif
Fichier image/tiff, 4,3M

Crédits (fonte: Haesbaert, R, 1997: 252)


URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-7.jpg
Fichier image/jpeg, 140k

Titre Figura 8. Exemplo de áreas marítimas a serem incorporadas à


regionalização
Crédits (fonte: Lencioni, 2015:66)
URL http://journals.openedition.org/confins/docannexe/image/26401/img-8.png
Fichier image/png, 2,2M

Pour citer cet article


Référence électronique
Rogério Haesbaert, « Regionalizações brasileiras: antigos legados e novos desafios », Confins
[En ligne], 44 | 2020, mis en ligne le 15 mars 2020, consulté le 27 septembre 2022. URL :
http://journals.openedition.org/confins/26401 ; DOI : https://doi.org/10.4000/confins.26401

Auteur
Rogério Haesbaert
Professor dos Programas de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal
Fluminense e de Políticas Ambientales y Territoriales da Universidade de Buenos Aires,
rogergeo@uol.com.br

Droits d’auteur

Creative Commons - Attribution - Pas d’Utilisation Commerciale - Partage dans les Mêmes
Conditions 4.0 International - CC BY-NC-SA 4.0

https://creativecommons.org/licenses/by-nc-sa/4.0/

https://journals.openedition.org/confins/26401 17/17

Você também pode gostar