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SAÚDE COLETIVA: UMA HISTÓRIA RECENTE DE UM PASSADO REMOTO

Everardo Duarte Nunes

A REFLEXÃO SOBRE A SAÚDE COLETIVA como um campo de conhecimentos e


práticas tem estado presente em muitos trabalhos ao longo dos anos que medeiam a sua
institucionalização no final dos anos 1970 e sua trajetória até os dias atuais. Não faremos uma
revisão detalhada desses estudos, mas muitos deles permearão esta apresentação, que pretende
não somente resgatar a história, como, também, trabalhar conceitualmente as principais
dimensões que configuram este campo.
Como sabemos, a compreensão conceitual somente se estabelece à medida que se
verifica a sua construção como uma realidade histórico-social.
À história recente da Saúde Coletiva subjaz um passado que ultrapassa as fronteiras
nacionais e que necessita ser explicitado a fim de se compreender o projeto nacional que
redundou na criação da Saúde Coletiva, tendo como cenário geral as mudanças trazidas com a
instalação de uma sociedade capitalista.
Assim, faremos uma incursão às origens da medicina social/saúde pública; traçaremos
um panorama da Saúde Coletiva no Brasil, completando com a sua conceituação.

ANTECEDENTES

Foucault (1979, p. 80) registra, em seu trabalho sobre as origens da medicina social, a
sua procedência vinculada à polícia médica, na Alemanha, à medicina urbana, na França e à
medicina da força de trabalho na Inglaterra. Essas três formas ilustram a tese defendida pelo
autor de que "com o capitalismo não se deu a passagem de uma medicina coletiva para uma
medicina privada, mas justamente o contrário; que o capitalismo, desenvolvendo-se em fins do
século XVIII e início do século XIX, socializou um primeiro objeto que foi o corpo enquan to
força de produção, força de trabalho".
Para Foucault, o investimento do capitalismo foi no biológico, no somático, no
corporal, mas o corpo que trabalha, do operário, somente seria levantado como problema na
segunda metade do século XIX. Justamente a partir dos anos 40 do século XIX é que se criam
as condições para a emergência da medicina social. Às vésperas de um movimento
revolucionário que se estenderia por toda a Europa, muitos médicos, filósofos e pensadores
assumiram o caráter social da medicina e da doença. "A ciência médica é intrínseca e
essencialmente uma ciência social e, até que isto não seja reconhecido na prática, não sere mos
capazes de desfrutar seus benefícios e teremos que nos contentar com um vazio e uma
mistificação", ou "se a medicina existe realmente para realizar suas grandes tarefas, deve
intervir na vida política e social; deve apontar para os obstáculos que impedem o
funcionamento normal do processo vital e efetuar o seu afastamento ". São as idéias de
Neumann e Virchow, voltadas para as reformas de saúde (Rosen, 1963, pp. 35, 36).
Essa foi uma época propícia para o levantamento de muitas questões, como o fim da
política da tradição, das monarquias, a regra da sucessão das dinastias como direito divino e
para situar inúmeros problemas, como o das precárias condições da classe operária, conforme
escrito por Engels (1975), em brilhante trabalho.

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Data desse momento a fixação de alguns princípios básicos que se tornariam parte
integrante do discurso sanitarista: 1) a saúde das pessoas como um assunto de interesse
societário e a obrigação da sociedade de proteger e assegurar a saúde de seus membros; 2) que
as condições sociais e econômicas têm um impacto crucial sobre a saúde e doença e estas
devem ser estudadas cientificamente; 3) que as medidas a serem tomadas para a proteção da
saúde são tanto sociais como médicas.
Sem dúvida, este ideário centralizado na corporação médica, como pregava Guérin, ou
marcado pelas relações entre o homem e suas condições de vida, como dizia Virchow,
impulsionaram a formulação da medicina social da metade do século XIX. Tanto assim que
Guérin, afirmava em 1848: "Tínhamos tido já ocasião de indicar as numerosas relações que
existem entre a medicina e os assuntos públicos [ ... ]. Apesar destas abordagens parciais e não
coordenadas que tínhamos tentado incluir sob rubricas tais como polícia médica, saúde pública,
e medicina legal, com o tempo estas partes separadas vieram a se juntar em um todo organizado
e atingir seu mais alto potencial sob a designação de medicina social, que melhor expressa seus
propósitos...” (Guérin, 1848, p. 183). Dentre as principais idéias desse médico e reformador
social, destacam-se as que viam a prática médica corno um todo, tanto assim que a medicina
social irá englobar desde a fisiologia social até a terapia social, passando pela patologia social e
higiene social.
Todas essas vozes que na Europa defendiam a saúde como questão política e social
viram-se sufocadas com a derrota das Revoluções de 1848. Bloom (2002, p. 15) comenta sobre
essa situação, afirmando que a ideologia do movimento da reforma médica e "Sua ampla con -
cepção da reforma da saúde como ciência social foi transformada em um programa mais
limitado de reforma sanitária e a importância dos fatores sociais em saúde rolou ladeira abaixo
enquanto a ênfase biomédica esmagadoramente ganhou domínio a partir da revolução científica
causada pelas descobertas bacteriológicas de Robert Koch". O renascimento da medicina
social, especialmente na Alemanha, iria ocorrer somente no início do século XX, assim como
aconteceu em outros países.
Muitas análises sociais, demográficas e políticas percorreram a história da saúde
pública e percebe-se que, desde as suas origens, ela esteve estreitamente vinculada às políticas
de saúde que se desenvolveram tanto nos países europeus, como nas Américas, e trouxeram em
seus conteúdos as especificidades de cada contexto histórico e suas circunstâncias.
As primeiras análises mais gerais tratando da medicina social na América Latina datam
dos anos 1980 e 1990 (Nunes, 1985, 1986; Franco, Nunes, Breilh & Laurell, 1991), com forte
ênfase nas possibilidades trazidas pelas ciências sociais na compreensão do processo saúde-
doença; assim como das relações com o campo da epidemiologia, da organização social da
saúde e das relações saúde e trabalho. Mais recentemente, Waitzkin, lriart Estrada & Lamadrid
(2001) traçaram um panorama geral da medicina social em diversos países latino-americanos.
Em relação ao Brasil, a sua história tem sido contada por muitos autores. Um dos
primeiros trabalhos foi publicado por Machado e colaboradores (1978), marco das pesquisas
que, na perspectiva arqueológica de Foucault, reconstitui a construção da medicina social e da
psiquiatria no Brasil. A este trabalho viria juntar-se o de Luz (1979), fundamental para a
compreensão das instituições médicas no Brasil como estratégia de poder. Outros estudos de
historiadores e sociólogos são fundamentais para a compreensão da trajetória da saúde pública
brasileira, destacando-se os de Castro-Santos (1985, 1987), Tellaroli (1996), Hochman (1998),
Chalhoub (1996) e muitos outros.

PARA ENTENDER A SAÚDE COLETIVA

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A contextualização acima procurou dar conta de uma história geral que está presente
quando se pensa a saúde no plano coletivo, social e público. Em realidade, a sua abordagem neste
trabalho garante-nos que para se estudar as origens e o desenvolvimento do campo da saúde, em
especial em suas dimensões sociais, é imprescindível que o tema seja tomado em suas múltiplas
relações. No caso específico do Brasil, toma-se essencial entender que as trajetórias de um
pensamento social resultou em diferentes aproximações em diferentes momentos.
Estas aproximações retomam as origens da saúde coletiva no projeto preventivista, que na
segunda metade dos anos 50 do século XX foi amplamente discutido, com o apoio da Organização
Pan-Americana da Saúde. Ele se associa à crítica de uma determinada medicina que, na teoria e na
prática, estava em crise. A crítica dirigia-se ao modelo biomédico, vinculado muito mais ao projeto
pedagógico, e não de forma direta às práticas médicas. Tanto assim que o saldo deste momento é a
criação dos departamentos de medicina preventiva e social nas escolas médicas e de disciplinas que
ampliam a perspectiva clínica, como a epidemiologia, as ciências da conduta, a administração de
serviços de saúde, a bioestatística. Instala-se a preocupação com uma perspectiva biopsicossocial do
indivíduo e a extensão da atuação pedagógica para fora do hospital, criando trabalhos comunitários.
Este projeto alternativo era resultado das transformações que se seguiram ao término da Segunda
Grande Guerra (1939-1945) e que nos anos 1950 e 1960 preconizava que o desenvolvimento dos
países do chamado terceiro mundo passava necessariamente por um programa de substituição de
importações, que possibilitaria o surgimento de um setor industrial, produtor de manufaturados,
permitindo a acumulação de capital. Ampliava-se a participação estatal e o aumento da
produtividade da força de trabalho, num projeto desenvolvimentista no qual a seguridade social e o
saneamento se fazem presentes. O conceito de controle e a progressiva utilização de antibióticos e
técnicas cirúrgicas consolidam a confiança na atenção médica individualizada. É a fase áurea das
teorias desenvolvimentistas e da idéia do círculo vicioso da pobreza, transformada em "causação
circular" pelo economista sueco Gunnar Myrdal (1898-1987).
Em meados dos anos 1960, o projeto preventivista torna-se uma realidade em muitas
escolas médicas, quando também se instaura na América Latina a questão do planejamento em
saúde, veiculada pela proposta Cendes/OPS, que, dentro de uma visão economicista, fIxava
como básica a determinação custo-benefício da atenção médica. A revisão do planejamento
seria tarefa para uma década mais tarde.
A década de 1960 é uma época de realizações e de grandes mudanças. Em 1960
inaugura-se Brasília; em 196L Jânio Quadros renuncia à Presidência da República; João
Goulart toma posse; instala-se o regime parlamentar de governo, vigente até 23 de janeiro de
1963, quando há o retorno ao regime presidencialista; em 1.0 de abril de 1964, o presidente
Goulart é deposto por um golpe militar e inicia"se um período de ditadura que irá durar mais
de duas décadas.
Ainda nos anos 1960, destaquem-se: a aprovação da Reforma Universitária, em 1968,
no mesmo ano em que é editado o Ato Institucional n. O 5 e o Ato Complementar n.O 38, que
decreta o recesso do Congresso Nacional. Agora, o governo passa a ter poderes absolutos sobre
a nação. Com o recesso, o Executivo fIca autorizado a legislar, suspender os direitos políticos
de qualquer cidadão e cassar mandatos parlamentares. Aproximava-se o fIm da década de 1960,
marcado por excessos ditatoriais no Brasil e, no mundo, por apelos de liberdade, como no
festival de Woodstock e emblematicamente por um vigoroso filme, Easy Rider (Sem Destino),
no qual a sociedade americana é criticada por sua intolerância.
Do ponto de vista do desenvolvimento econômico, os analistas apontam que os anos
iniciais de 1970 são de crescimento - "o milagre brasileiro", mas começa a diminuir em 1973,
com um aumento da inflação, cuja taxa é de 34,5%, em 1974. Ocorre um aumento da miséria
que pode ser constatado com o incremento da mortalidade infantil no estado mais rico da
federação, São Paulo, da ordem de 10%; 30% dos municípios da federação não tinham

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abastecimento de água e o Brasil com o nono PNB do mundo, mas em desnutrição perde
apenas para Índia, Indonésia, Bangladesh, Paquistão e Filipinas.
Para o campo da saúde coletiva, os anos 1970 representam um momento em que o
campo inicia a sua estruturação formal especialmente na formação de recursos humanos, no
avanço das ciências sociais na saúde e no papel da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep)
no fomento ao desenvolvimento tecnológico e inovação.
Do ponto de vista teórico-acadêmico, ressalte-se a divulgação de alguns trabalhos como
os de Cecília Donnangelo (1975), Arouca [1975L (2003), Luz (1979), García (1981), Rodrigues
da Silva (1973) e a criação do primeiro curso de pós-graduação em Medicina Social no Rio de
Janeiro, em 1974. Iniciava-se um novo período de encaminhamento das questões de saúde. No
plano internacional, a Opas enfatiza que o projeto ambicioso de transformar as práticas de
saúde, em especial a atenção médica, mediante a formação de um profissional capacitado para
realizar essas mudanças, não se concretizou (OPS, 1976). A Organização assume que a
medicina social tem como objeto a análise das práticas e dos conhecimentos da saúde
relacionados com a sociedade (OPS, 1976).
Idéias, como as defendidas por Arouca [1975], (2003, p. 149) passam a ser veiculadas
pelos Departamentos de Medicina Preventiva e Social. Para ele, a Medicina Social era definida
"como o estudo da dinâmica do processo saúde-doença nas populações, suas relações com a
estrutura da atenção médica, bem como das relações de ambas com o sistema social global,
visando a transformação destas relações para a obtenção dentro dos conhecimentos atuais, de
níveis máximos possíveis de saúde e bem-estar das populações". Nas palavras de um pioneiro
da medicina preventiva e social no Brasil, Rodrigues da Silva (1973, apud Arouca, 2003, p.
149), "[ ... ] alguns departamentos de Medicina Preventiva passaram a adotar, tendencialmente,
uma posição potencialmente mais inovadora, uma posição de crítica construtiva da reali dade
médico-social e da prática da medicina, fundamentada bem mais no modelo de medicina social
do que no modelo original de Medicina Preventiva".
De forma mais detalhada, definia-se a Medicina social como" [ ... ] uma tentativa de
redefinir a posição e o lugar dos objetos dentro da medicina, de fazer demarcações conceituais,
colocar em questão quadros teóricos, enfim, trata-se de um movimento ao nível da produção de
conhecimentos que, reformulando as indagações básicas que possibilitaram a emergência da
Medicina Preventiva, tenta definir um objeto de estudos nas relações entre o biológico e o
psicossocial. A Medicina Social, elegendo como campo de investigação estas relações, tenta
estabelecer uma disciplina que se situa nos limites das ciências atuais" (Arouca, 1975).
Firmava-se, no desenvolvimento histórico que adotamos, o momento da medicina social
propriamente dita.
Em trabalho anterior, ao analisar esse momento, assinalei que "Não se esqueça,
também, que, ao apontar a crise na geração de conhecimentos, o horizonte que se vislumbrava
era o de instaurar novas práticas. Os estudiosos assinalam que a visibilidade social que a
problemática de saúde adquire nesse período deve-se em grande parte aos movimentos sociais
populares como o universitário" (Nunes, 1994, p. 13). Recorde-se que, na metade dos anos
1970, a Opas publica um documento sob a denominação de Formulación de Políticas de Salud,
elaborado pelo Centro Panamericano de Planificación en Salud. Inicia-se a crítica ao modelo de
planejamento dos anos 1960, rumo ao planejamento estratégico dos anos 1980. Fato a se
destacar no final dos anos 1970 e de grande repercussão para o campo da saúde foi a
Declaração Alma-Atá, em 1978, que fundamentaria muitas das questões sobre a saúde nos anos
seguintes, especialmente a do direito à saúde, o papel do Estado e a atenção primária como
porta de entrada do sistema de saúde.
Na construção da medicina social, a fase que se estende de 1974 a 1979, compreende
um momento importante na construção teórico-conceitual, com pesquisas sociais,

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epidemiológicas sobre os determinantes econômicos da doença e do sistema de saúde,
associada à discussão de propostas alternativas ao sistema de saúde vigente. Somente na fase
seguinte, como assinala Levcovitz (1997, apud Levcovitz et aI., 2002), de 1980-1986,
denominada "político-ideológica", é que ocorrerá disseminação das propostas de reforma e
lia

aglutinação da coalizão sociopolítica de sustentação", que se expressam em importantes


eventos como a VII Conferência Nacional de Saúde (1979) e a VIII Conferência Nacional de
Saúde (1986), quando se inicia o processo de reforma da saúde pública. As fases antes citadas
completam-se ao longo do período até 2000: a de 1987-1990, denominada político-
institucional, com a "consolidação jurídico-legal e social dos princípios e diretrizes do projeto
de reforma setorial", tem como marcos três ocorrências: a criação do Suds (Sistema Unificado e
Descentralizado de Saúde), a Constituição Federal (1988), e a promulgação das Leis Orgânicas
de Saúde (8.080 e 8.142), em 1990; a fase de 1991-1998, denominada político-administrativa,
com as definições específicas das atividades nas esferas governamentais, período em que se
realizam a IX e X Conferência Nacional de Saúde (1992 e 1996) e, finalmente, a quinta fase
1999/2000, chamada de "complementação jurídico-legal", de caráter técnico-operacional, re-
gulamentação legislativa e normativa do financiamento estável e do mix público-privado
(Assistência Domiciliar), organização dos modelos de gestão e de atenção da rede regionalizada
de serviços.
Penso que a reprodução, mesmo sintética, desses momentos mostra que em três décadas
o País realiza um intenso projeto de conhecimento da saúde e de movimento em direção às
reformas. O repensar da saúde de maneira ampliada vai ser, portanto, a tarefa do final dos anos
1970, que vinha sendo preparada ao longo dessa década, quando são criados os cursos de pós-
graduação (mestrado e doutorado) em saúde pública e medicina social e que posteriormente
serão enquadrados no campo das ciências da saúde, com a denominação de Saúde Coletiva.
Esta terceira fase - a fase da saúde coletiva - que cronologicamente coincide com as
origens da própria instituição - a Abrasco, em 1979 - é marcada, nos primeiros anos da década
de 1980, por atividades que se voltam para a construção do próprio campo, recriando em novos
moldes (congressos, grupos de trabalho, pesquisas, ensino) um verdadeiro movimento sanitário,
e a partir de 1985, nos debates que culminaram com a VIII Conferência Nacional de Saúde
(1986), e, após o evento, participando ativamente da Comissão Nacional de Reforma Sanitária.
Dessa forma, esta fase coincide com o grande momento de reestruturação das políticas sociais,
ante sua universalização, num momento em que as condições econômicas para chegar a um
universalismo de fato se tornavam cada vez mais precárias (Médici, 2006).
Sem dúvida, os anos 1980 representam um momento especial na história da saúde no
Brasil, o da universalização das políticas sociais, mas ao mesmo tempo sujeitava-se à agenda
internacional, comandada pelo Banco Mundial. Para MeIo & Costa (1994), trata-se também do
advento de um novo paradigma - o da economia da saúde, ao revelar a dimensão fiscal e
financeira da atenção à saúde.
A próxima década assistirá à redução de alguns indicadores: entre 1992 e 1999, a
mortalidade infantil caiu de 44,3 para 34,6 crianças mortas por mil nascidas vivas e o
analfabetismo na população de quinze anos ou mais de idade diminuiu de 17,2% para 13,3%.
Infelizmente, os níveis de desigualdade continuavam elevadíssimos. Médici (2006) aponta que
"Dados de 1991 mostram que cerca de 30,7% das famílias brasileiras recebiam renda total
inferior a dois salários mínimos. No Nordeste, essa proporção atingia 53%. Os 10% mais ricos
no Brasil abarcavam 51,7% da renda, enquanto os 10% mais pobres ficavam somente com
0,7%. Cerca de 49,4% das pessoas ocupadas não contribuíam para nenhum instituto de
previdência social".

MAS, AFINAL, O QUE É A SAÚDE COLETIVA?

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Ao longo da exposição, procuramos destacar que a medicina social, a saúde pública e a
saúde coletiva foram paulatinamente criando um território próprio e delimitando (e ampliando)
as suas fronteiras .
Não se pode reduzir a história ao momento em que um grupo de intelectuais resolveu criar a
sua associação de classe, mas, sem dúvida, esta é uma ocasião importante no processo de
institucionalização do campo. Recordando essa ocorrência, sirvo-me dos detalhes contados por
Belisário (2002, p. 63), “A Abrasco foi criada por docentes, pesquisadores e pessoal de serviço
presentes à I Reunião sobre a Formação e Utilização de Pessoal de Nível Superior na Área de Saúde
Coletiva, realizada em Brasília, em 27 de setembro de 1979, promovida pelos Ministérios da
Educação, Saúde, Previdência e Assistência Social e Organização Pan-Americana da Saúde".
Assinada por 53 pessoas, a ata de fundação afirma que esse era um antigo anseio dos diferentes
cursos de pós-graduação, cuja idéia inicial data de 1978, na reunião realizada pela Alaesp
(Associação Latino-Americana de Escolas de Saúde Pública), em Ribeirão Preto.
Em 1982, são publicados os Princípios Básicos, que orientam os objetivos da Associação:
aprimoramento do ensino e da pesquisa, intensificação do intercâmbio entre as instituições,
obtenção de apoio financeiro e técnico, cooperação entre instituições de ensino, valoriza ção dos
programas de ensino, qualificação do corpo docente, elevação dos padrões de ensino, promoção e
disseminação dos conhecimentos da saúde coletiva. Não se trata de uma perspectiva exclusiva de
assuntos referentes ao ensino, mas de participação efetiva na definição e implementação de uma
política de recursos humanos em saúde coletiva, associada a uma análise das condições de saúde da
população e de incentivo à pesquisa. Assume uma posição política e técnica, ou seja, a necessidade
de reformulação do setor saúde e a concepção da saúde como um direito do cidadão e dever do
Estado.
Diante dessa história e do fato de, diferente de outros campos do conhecimento em saúde,
ter sido organizada em uma associação congregando o que havia sido produzido em medicina
preventiva, medicina social, planejamento em saúde, pesquisas epidemiológicas, políticas de saúde,
ciências sociais em saúde, tomou-se difícil um consenso acerca da sua conceituação. Em realidade,
a partir do momento em que se foram firmando as formas de tratar o coletivo, o social e o público
caminhou-se para entender a saúde coletiva como um campo estruturado e estruturante de práticas e
conhecimentos, tanto teóricos como políticos.
Muitas têm sido as tentativas de definir a Saúde Coletiva. Em seu trabalho publicado em
1983, Donnangelo lembrava que a delimitação do campo, com uma multiplicidade de objetos e
áreas de saber, que iam da ciência natural à ciência social, "Não é indiferente a permea bilidade
aparentemente mais imediata desse campo a inflexões econômicas e político-ideológicas. O
compromisso, ainda que genérico e impreciso, com a noção de coletivo, implica a possibilidade
de compromissos com manifestações particulares, histórico-concretas desse mesmo coletivo,
dos quais a medicina «do indivíduo» tem tentado se resguardar através do específico estatuto da
cientificidade dos campos de conhecimento que a fundamentam" (Donnangelo, 1983, p. 21).
A sua associação às ciências sociais foi vista por Teixeira (1985, p. 97), que também a
analisou, dizendo que "a matriz teórico-conceitual do Movimento Sanitário pode ser encontrada
na delimitação de sua área de conhecimento, expressa na adoção do conceito de «saúde cole-
tiva», uma originalidade nacional face à heterogeneidade de denominações habituais, tais como
saúde pública, medicina social, medicina preventiva, saúde comunitária" (Teixeira, 1988, p.
195).
Como afirmamos, não há um consenso na definição do campo, marcado, como lembra
Stotz (1997, pp. 280-2), por tensões epistemológicas, e apresentando características de
interdisciplinaridade, não havendo possibilidade de uma teoria unificadora que explique o con-
junto dos objetos de estudo.

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Certamente, a saúde coletiva não somente estabelece uma crítica ao universalismo
naturalista do saber médico, mas rompe com a concepção de saúde pública, negando o
monopólio do discurso biológico (Birman,1991).
Como podemos ver, estas idéias que se conformam em uma trajetória histórica,
apresentam uma tradição intelectual que, tendo um passado remoto, são recriadas ante as
conjunturas da modernidade e de seus problemas. Campo multiparadigmático, interdisciplinar,
formado pela presença de tipos distintos de disciplinas que se distribuem em um largo espectro
que se estende das ciências naturais às sociais e humanas, certamente possibilitará o
aparecimento de novos tipos de disciplinas, que nascem nas fronteiras dos conhecimentos
tradicionais, ou na confluência entre ciências puras e aplicadas, mas que se caracteriza como
um "«patchwork» combinatório, que visa a constituição de uma nova configuração disciplinar
capaz de resolver um problema preciso" (Pombo, 2003, pp. 8, 9). Estas interciências foram
definidas em 1957 pelo economista inglês Kenneth E. Boulding (1910-1993) como con juntos
disciplinares onde não há uma ciência que nasce nas fronteiras de duas disciplinas
fundamentais ou do cruzamento de ciências puras e aplicadas, mas que se ligam de forma
descentrada, assimétrica, irregular, como no caso das ciências cognitivas, das ciências da
complexidade. Parece-me uma boa idéia para se entender a Saúde Coletiva, mas a imagem que
associo ao entendimento do campo é a de mosaico - conjunto formado por partes separadas,
mas que se aproximam quando a compreensão dos problemas ou a proposta de práticas se
situam além dos limites de cada "campo disciplinar", exigindo arranjos interdisciplinares. Além
disso, como veremos a seguir, quando discutirmos os principais campos disciplinares que
configuram a grande área da Saúde Coletiva, observaremos que a sua composição está
associada ou àquelas ciências de fronteira, muitas vezes já consolidadas (por exemplo, psico-
logia social), ou às interdisciplinas (por exemplo, avaliação de serviços de saúde, planejamento
em saúde), ou às interciências (por exemplo, ecologia). Assim, entendemos que o campo não é
simplesmente um território opaco, um compósito de conhecimentos, saberes e práticas,
desarticulados, mas se compõem de acordo com as necessidades em descrever, explicar e/ou
interpretar a realidade de saúde que se deseja estudar, avaliar ou transformar. Para isso, os
conceitos, as categorias analíticas, as chaves interpretativas procedentes do núcleo duro das
ciências - o corpus teórico - lançam suas luzes para o entendimento dos objetos e sujeitos
investigados pelos pesquisadores. Agora, o mosaico se transforma em um vitral, no qual os
problemas estão filtrados pela teoria.
As idéias desenvolvidas até este momento pautam o campo da Saúde Coletiva como
extenso e diversificado, refletindo a própria concepção ampliada de saúde em suas inúmeras
interfaces. Assim, o próprio campo vem se especializando em muitas direções e tratando de
objetos os mais variados. A própria concepção deste livro abriga essa idéia e, ao mesmo tempo,
conduz o leitor a entender que há núcleos disciplinares que apresentam conjuntos de
conhecimentos construídos ao longo da história da ciência. Não por simples convenção, mas
porque se estabeleceram como parte do processo de constituição da área, são citados três
grandes espaços e formações disciplinares: as ciências sociais e humanas, a epidemiologia e a
política e o planejamento.
Não desenvolveremos em detalhes esses conjuntos de disciplinas, pois os seus aspectos
particulares serão objeto dos especialistas que compõem o quadro dos autores deste livro;
pontuaremos questões gerais, seguindo o espírito deste texto, que é o de contribuir com uma
visão histórica e conceitual da Saúde Coletiva.
Se retomarmos as idéias iniciais postas neste trabalho, verificamos que as questões
sociais, econômicas, políticas, culturais, de diferentes formas, estiveram presentes no trato da
medicina, da doença, do cuidado e da saúde, variando de acordo com determinadas conjunturas
às quais se associaram os progressos do conhecimento científico.

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Assim, a presença das ciências sociais e humanas (antropologia, sociologia, economia,
política, história, filosofia, ética, estética) foi se consolidando sendo consideradas como
fundamentais para a compreensão dos processos da vida, do trabalho, do adoecimento e da
morte, assim como dos cuidados aos doentes e pacientes e das relações profissionais. Tais
abordagens tornaram-se possíveis porque essas disciplinas utilizaram um arsenal teórico-
conceitual orientando as investigações e a busca de nexos de sentido entre o natural (o corpo
biológico), o social, e o cultural. As próprias concepções de coletivo, sociedade e estrutura e
seus respectivos pares, sujeito, representação, ação, serão categorias fundantes para análise da
saúde. Mesmo o núcleo central da prática médica - a relação médico-paciente - inscreve-se
como preocupação inicial de estudiosos da sociologia (Henderson, 1935), historiadores
(Sigerist, 1929), sociólogos (Parsons, 1951), filósofos (Gadamer, 1996) para citar alguns
precursores, de um tema que atravessaria o campo das ciências sociais em saúde e se estenderia
ao estudo da enfermagem e de outras profissões da saúde. Acrescente-se o estudo sociopolítico
das profissões de saúde; as dimensões socioculturais da doença e as questões das relações
estado-sociedade civil e o estudo das racionalidades médicas.
Em relação à epidemiologia, como campo de investigação científica, desenvolve-se a
partir do século XIX, quando, em 1854, o médico inglês John Snow estabeleceu os
fundamentos da moderna epidemiologia ao estudar o cólera em Londres. Com os estudos de
Pasteur e outros pesquisadores, novos conhecimentos foram trazidos para o campo da
epidemiologia, na medida em que se estudam as relações agente infeccioso, hospedeiro e
ambiente, no sentido de entender as causas das doenças em grupos de pessoas. Uma
aproximação histórico-conceitual das eras da epidemiologia pode ser vista no trabalho de
Susser & Susser (1996a); a era sanitária, no início do século XIX, a era das doenças
infecciosas, a era das doenças crônicas (a partir da segunda metade do século XX). Na
seqüência deste artigo, publicaram outro texto no qual evidenciam que, tendo o paradigma das
doenças crônicas atingido o seu clímax, já se poderia pensar em outro paradigma, abrindo um
novo período que denominam de era eco-epidemiológica (Susser & Susser, 1996b). Portadora
de complexas metodologias de investigação, especialmente quantitativas, à epidemiologia
viriam se associar outras metodologias procedentes de diversas disciplinas do social, da
demografia, da geografia e outros conhecimentos. Lembramos que nas análises críticas à
epidemiologia mais convencional iriam se destacar as procedentes dos autores latino-americanos e
que se tornariam referência internacional. De outro lado, as relações entre a epidemiologia e o
planejamento têm trazido um crescimento recíproco para as duas áreas. Muitas são as questões que
ainda atravessam as relações epidemiologia e ciências sociais e vice-versa, que certamente serão
postas em outros momentos deste livro. Citaríamos, como encaminhamento dessa questão, o artigo
de Minayo, Assis, Deslandes & Souza (2003) cuja proposta é discutir a apropriação dos conceitos e
das categorias de uma disciplina pela outra.
Também sobre política e planejamento estas são apenas algumas primeiras aproximações,
considerando-se que serão extensivamente analisados em diversos momentos deste livro.
Lembramos que as questões do planejamento acentuam-se a partir do término da Segunda Guerra
Mundial e chegam aos países subdesenvolvidos nas décadas de 1950 e 1960, com o objetivo de
orientar a economia e promover o desenvolvimento. A sua efetividade será contestada na década de
1970, diante dos graves problemas enfrentados pelas economias capitalistas. Salientamos que as
estreitas relações do planejamento com as questões políticas fazem com que, embora ele se
constitua de aspectos técnico-operacionais, seja imprescindível atentar para o seu caráter político.
Percebemos que, em sua trajetória, o planejamento tem incorporado um rico e extenso quadro
conceitual procedente das ciências sociais e humanas; no VII Congresso da Abrasco (2003), o
grupo Política, Planejamento e Gestão apresentou importantes questões sobre o tema, destacando
algumas das suas principais formulações na América Latina: o método Cendes/OPS, que teve em

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Mário Testa um destacado formulador; as revisões dos anos 1980, enfatizando a vertente política e
inaugurando a fase estratégica do planejamento; a crise do Estado, dos anos 1990 e suas
repercussões sobre o planejamento e sua retração e a necessidade de inovações nesse campo.
A exposição acima delineia o que consideramos os espaços e as formações disciplinares
mais consolidados. Há, entretanto, uma idéia que nos parece perfeitamente aplicável à saúde
coletiva. Inicialmente desenvolvida por Pombo (2003), aponta para a possibilidade de novas
configurações disciplinares a partir dos recursos postos pela interdisciplinaridade. Assim, há
práticas de importação, entendidas como as desenvolvidas "nos limites das disciplinas
especializadas e no reconhecimento da necessidade de transcender as suas fronteiras", cooptando
metodologias e linguagens já comprovadas.
Em outras situações, há práticas de cruzamento, em que "não teríamos uma disciplina
central que vai buscar elementos [em outras, que a favoreçam], mas problemas que, tendo a sua
origem numa disciplina, irradiam para outras".
Nas chamadas práticas de convergência realizam-se análises que se situam em um
terreno comum, que envolvem convergência das perspectivas nas quais há objetos dotados de
uma certa unidade.
De outro lado, há práticas de descentração, quando as disciplinas tradicionais não
conseguem tratar de problemas altamente complexos, exigindo um policentrismo de disciplinas
ao serviço do crescimento do conhecimento.
Há, ainda, as práticas de comprometimento, "aquelas que dizem respeito a questões
vastas demais, problemas que têm resistido ao longo dos séculos a todos os esforços, mas que
requerem soluções urgentes". São citados: a origem da vida ou a natureza dos símbolos. Para
essas práticas, a sugestão é a de uma interdisciplinaridade envolvente, circular, de polinização
cruzada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
o presente trabalho procurou situar os principais momentos da trajetória da saúde
coletiva, caracterizando-o como um campo amplo de práticas. Salientamos que, apesar da sua
recente constituição, menos de quatro décadas, considerando-se a sua institucionalização em
cursos, congressos e produção científica, tem uma história mais antiga, visto que seus
pressupostos inscrevem-se em momentos anteriores, quando se inicia um pensar sobre a saúde,
que transcende a questão da doença em si mesma. Essa transcendência que acompanha o
enfoque sobre a saúde tem, entre nós, a marca dos movimentos preventivistas e de medicina
social, que culminariam com revisões sobre as questões da prevenção e do acercamento de uma
dimensão ampliada das próprias políticas de saúde em direção à promoção da saúde. De outro
lado, procuramos destacar a importante contribuição teórica trazida pelos mais diferentes
campos disciplinares para entendimento das questões e problemas das coletividades expostas a
riscos e agravos. Desde sua institucionalização, a saúde coletiva vem se fortalecendo como um
movimento que se expressa de várias formas, além da sua permanente atenção às questões
políticas da assistência à saúde. Três são essas formas:
1. Cursos: hoje a saúde coletiva faz parte do ensino de graduação, especialização,
residência, pós-graduação. Na graduação, foi inserida em cursos que se distribuem em rubricas
diversas: atenção à saúde no Brasil, saúde e sociedade, ciências sociais e saúde, epidemiologia,
planejamento, avaliação de serviços, saúde comunitária. Na pós-graduação, encontra-se
consolidada em 29 programas de mestrado e doutorado, também em dois mestrados
profissionalizantes.
2. Congressos: prestes a realizar o oitavo congresso, teve em seu VII Congresso,
realizado em 2003, a possibilidade de comprovar a sua extensão, profundidade e vitalidade.
Denominado o "congresso da diversidade, da inclusão e da criatividade", nele foram

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apresentados quase cinco mil trabalhos na modalidade de pôster (92 deles receberam menções
honrosas), desenvolvidas 159 comunicações coordenadas, 127 painéis, 29 palestras, 13
colóquios, nove grandes debates e três conferências magnas. Nesse conjunto de apresentações
orais, foram apresentados 1.085 trabalhos científicos, envolvendo profissionais de serviços,
professores e pesquisadores nacionais e internacionais.
3. Publicações: a literatura da área é na atualidade extensa e diversificada, exigindo
para a sua revisão um capítulo especial. Citaríamos as principais revistas especializadas nas
temáticas desenvolvidas pela área: Ciência e Saúde Coletiva; Revista de Saúde Pública,
Cadernos de Saúde Pública, Physis - Revista de Saúde Coletiva, Revista Brasileira de
Epidemiologia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Belisário, S. A. Associativismo em saÚde coletiva: um estudo da Associação Brasileira de Pós-
Graduação em Saúde Coletiva - Abrasco. Doutorado). Campinas: Faculdade de Ciências
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Benchimo\' Jaime Larry & Luiz Antonio Teixeira. Cobras, lagartos e Olltros bichos: uma
historia comparada dos lnstitutos Oswaldo Cruz e Butantan. Rio de Janeiro: UFRJ, 1993,228
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Bloom, S. W. The Word as a Scapel: a History of Medical Sociology. Nova York: Oxford
University Press, 2002.
Boulding, K. General Systems Theory. The Skeleton of Science. In: L. von Bertalanffy Ced.).
General Systems. Yearbook of the Society for the Advancement of General Systems Theory.
Los Angeles: University ofSouthern California Press, 1, pp. ll-I7, 1956.
Braga, J. C. de S. & S. G. de Paula de. Saúde e previdência: estudos de política social. São
Paulo: Hucitec, 1986.
Castro-Santos, L. A. de. Power, ldeology and Public Health in Brazil, 1889 1930. Doutorado em
Sociologia. Cambridge: Harvard University, Department of Sociology, 1987, 357 pp.

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