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Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p.

117-130, 2010 117

UMA LEITURA CRÍTICA DA INTERDISCURSIVIDADE:


O CASO DA PUBLICIDADE DE MEDICAMENTO

Viviane Ramalho

RESUMO

Neste artigo investigamos sentidos potencialmente ide-


ológicos na publicidade de medicamentos brasileira. O
objetivo é problematizar o papel do discurso na susten-
tação de relações assimétricas de poder na modernidade
tardia. Com base em pressupostos teórico-metodoló-
gicos da Análise de Discurso Crítica (Chouliaraki &
Fairclough, 1999; Fairclough, 2001, 2003), mapeamos
conexões entre aspectos semióticos e não semióticos do
problema social investigado.

PALAVRAS-CHAVE: discurso; ideologia; interdiscur-


sividade.

Apresentação

E
ste artigo reúne resultados de uma pesquisa de doutorado sobre o
discurso da publicidade de medicamentos brasileira (RAMALHO,
2008)1. Nessa pesquisa, investigamos sentidos ideológicos em textos
publicitários com o objetivo de problematizar o papel do discurso na susten-
tação de um grave problema social, amplamente discutido na atualidade, que
pressupõe relações assimétricas de poder, sobretudo entre “leigos” e “peritos”.
Os principais pressupostos teórico-metodológicos utilizados na pesquisa
e abordados aqui provêm da Análise de Discurso Crítica (ADC) de vertente
1
RAMALHO, Viviane. Discurso e ideologia na propaganda de medicamentos: um estudo crí-
tico sobre mudanças sociais e discursivas. Tese de doutorado. Universidade de Brasília. Pro-
grama de Pós-Graduação em Linguística, 2008.
Ramalho, Viviane.
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britânica (Chouliaraki & Fairclough, 1999; Fairclough, 2001, 2003)2. Para


esta corrente de estudos, linguagem e sociedade são indissociáveis e mantêm
ligações dialéticas, de modo que questões sociais são vistas como, em parte,
questões de linguagem, e vice-versa. Com base nessa abordagem científica,
investigamos conexões entre aspectos sociais e discursivos envolvidos no pro-
blema da promoção comercial de medicamentos.
De modo geral, na parte mais social do estudo, pesquisamos aspectos da
história da propaganda de medicamentos no Brasil; da instauração de proble-
mas de saúde ligados à promoção de medicamentos; das políticas de controle
da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e outras características e
instituições relacionadas à “sociedade de consumo”. Na análise discursiva, tra-
balhamos com um corpus documental composto por exemplares de anúncios
impressos de medicamento, produzidos de 1920 a 2006.
Para apresentar resultados dessa pesquisa, sobretudo no que concerne à
questão da interdiscursividade, organizamos o presente artigo em três seções
principais. Na primeira seção, comentamos brevemente a proposta científica
da Análise de Discurso Crítica. Na segunda, contextualizamos o problema
social da promoção de medicamentos e, na terceira seção, apresentamos uma
análise sucinta de um dos textos estudados na pesquisa, intitulado, aqui, de
“Sexo seguro na vida adulta”. Por fim, tecemos algumas considerações sobre
a potencialidade do discurso da publicidade de medicamentos para sustentar
anseios relacionados ao que hoje se entende por saúde e, também, enfatizamos
a necessidade de um olhar interdisciplinar nos estudos em Linguística.

1. Linguagem e poder: a Análise de Discurso Crítica

As diversas correntes de estudos do discurso, que começaram a se con-


solidar em meados de 1960, têm em comum a preocupação com o uso da
linguagem sócio-historicamente situado e relacionado a questões de poder.
Diferem-se, sobretudo, pelas perspectivas (sociológicas, filosóficas, epistemo-

2
CHOULIARAKI, Lilie & FAIRCLOUGH, Norman. Discourse in late modernity: rethinking
Critical Discourse Analysis. Edinbourg: Edinbourg University, 1999. FAIRCLOUGH, Nor-
man. Discurso e mudança social. Trad./Org. Izabel Magalhães. Brasília: Universidade de Brasí-
lia, 2001. FAIRCLOUGH, Norman. Analysing discourse: textual analysis for social research.
London; New York: Routledge. 2003.
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lógicas) que as orientam. A vertente britânica de Análise de Discurso Crítica,


que fundamenta este trabalho, é uma proposta de abordagem científica para
estudo de problemas sociais parcialmente discursivos. Seu compromisso está
em “investigar criticamente como a desigualdade social é expressa, sinalizada,
constituída, legitimada pelo uso do discurso” (WODAK, 2004: 225)3.
A proposta insere-se na tradição da “ciência social crítica”, comprometi-
da em oferecer suporte científico para questionamentos de problemas sociais
relacionados a poder e justiça. Como ciência crítica, a ADC está preocupada
com efeitos ideológicos, voltados para projetos particulares de dominação, que
(sentidos de) textos possam ter sobre relações sociais, ações e interações, conhe-
cimentos, crenças, atitudes, valores, identidades (FAIRCLOUGH, 2003;
THOMPSON, 2002)4.
Fundamentada no Realismo Crítico de Bhaskar (1989)5, a ADC con-
cebe o mundo como um sistema aberto, em constante mudança, constituído
por diferentes domínios e diferentes estratos. Os estratos – físico, biológico,
social, semiótico etc. – possuem estruturas distintivas e mecanismos gerativos
que operam simultaneamente com seus poderes causais, gerando efeitos nos
outros domínios (RAMALHO, 2009a)6.
Nesses princípios, assenta-se a compreensão de que o discurso tem efei-
tos na vida social, que não podem ser suficientemente investigados levando-se
em consideração apenas o aspecto discursivo de práticas sociais. De acordo
com Chouliaraki & Fairclough (1999: 67), a lógica da análise crítica é relacio-
nal/dialética, “orientada para mostrar como o momento discursivo trabalha
na prática social, do ponto de vista de seus efeitos em lutas hegemônicas e

3
WODAK, Ruth. “Do que trata a ACD – um resumo de sua história, conceitos importantes
e seus desenvolvimentos”. Linguagem em (Dis)curso. CALDAS-COULTHARD, C. R. &
Figueiredo, D. de C. (Orgs.) Análise Crítica do Discurso, 4: esp., 2004, p. 223-243.
4
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de
comunicação de massa. Trad. (coord.) Pedrinho A. Guareschi. Petrópolis: Vozes, 2002.
5
BHASKAR, Roy. The possibility of Naturalism: a philosophical critique of the contemporary
Human Sciences. Hemel Hempstead: Harvester Wheatsheaf, 1989.
6
RAMALHO, Viviane. Análise de Discurso e Realismo Crítico: princípios para uma abor-
dagem crítica explanatória do discurso. In: Anais da XII Conferência Anual da IACR - Inter-
national Association for Critical Realism. Realismo e emancipação humana. Um outro mundo
é possível? Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói/RJ. CD ROM v. XII (s.p.).
Disponível em: http://www.uff.br/iacr/. Acesso em 30 set. 2009.
Ramalho, Viviane.
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relações de dominação”. O foco dessa abordagem relacional/dialética, igual-


mente informado pela ciência social crítica, está nas práticas sociais, isto é, no
nível em que entendemos a linguagem como interação social, como discurso.
Nas práticas sociais cotidianas, utilizamos o discurso de três principais
maneiras simultâneas: para agir e interagir, para representar aspectos do mun-
do e para identificar a si mesmo e aos outros. Essas principais maneiras como o
discurso figura simultânea e dialeticamente em práticas sociais correlacionam-
se, conforme a ADC, aos três significados do discurso: acional/relacional, ma-
neiras relativamente estáveis de agir e interagir na vida social; representacional,
maneiras particulares de representar aspectos do mundo, de pontos de vista
particulares; e identificacional, maneiras relativamente estáveis de identificar
a si e aos outros.
Essas maneiras relativamente estáveis de (inter-)agir, representar e
identificar(-se) em práticas sociais internalizam traços de outros momentos
não discursivos, assim como ajudam a constituir esses outros momentos. Se-
gue-se que a relação linguagem-sociedade é interna e dialética; a linguagem
constitui-se socialmente na mesma medida em que tem “conseqüências e efei-
tos sociais, políticos, cognitivos, morais e materiais” (FAIRCLOUGH, 2003: 14).
Mais preocupante para esta perspectiva crítica da linguagem são os efeitos
ideológicos que (sentidos de) textos possam ter sobre relações sociais, ações e
interações, conhecimentos, crenças, atitudes, valores, identidades.
Na esteira da ciência social crítica, “ideologia” aqui é um conceito ineren-
temente negativo, por se relacionar às maneiras como os sentidos servem para
instaurar e sustentar relações de dominação. Se, conforme Fairclough (1989:
85)7, a ideologia é mais efetiva quando sua ação é menos visível, o compromisso
da ADC está em fornecer subsídios científicos para apontar e desvelar sentidos
ideológicos, tendo em vista a possibilidade da superação de relações assimétricas
de poder e emancipação daqueles que se encontram em desvantagem8.
Neste trabalho, a ADC fundamenta a investigação de representações, ou
discursos, particulares que podem ser legitimadas em anúncios publicitários
e, em determinadas práticas, inculcadas na identidade do/a “consumidor/a de
medicamento”.
7
FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. London: Longman, 1989.
8
Sobre os processos metodológicos da ADC, ver RESENDE, Viviane de Melo & RAMA-
LHO, Viviane. Análise de Discurso Crítica. São Paulo: Contexto, 2006.
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2. Publicidade de medicamento: o discurso da perfeição em saúde

No Brasil, o debate sobre os riscos da propaganda de medicamentos não


é recente. As crescentes preocupações envolvem, por exemplo, os riscos da
automedicação, das intoxicações, do consumo inadequado e exagerado de me-
dicamentos. Tudo isso somado a desigualdades sociais e dificuldades de acesso
a serviços e tratamentos de saúde, dentre outros problemas.
A indústria de medicamentos está entre as mais lucrativas do mundo, e
seu investimento em propaganda – cerca de 35% da receita, conforme Angell
(2007)9 – é muito maior do que em pesquisa e desenvolvimento de novos me-
dicamentos. No Brasil, parte da população, por um lado, encontra-se desassis-
tida de tratamentos e serviços de saúde, enquanto outra considerável parcela
da sociedade é diariamente exposta a apelos comerciais que possuem potencial
para, em práticas específicas, levar as pessoas ao consumo desnecessário e des-
medido de medicamentos. Esses produtos farmacêuticos são representados na
mídia como “símbolos de saúde”, materialização de um conceito que, hoje,
significa a busca incessante pela expansão do potencial corporal e pela supera-
ção das naturais limitações humanas, conforme Bauman (2001)10.
Em 2005, quando iniciamos a pesquisa que deu origem a este traba-
lho, a propaganda de medicamentos – reconhecida como causa de diversos
problemas – já estava, havia cinco anos, submetida a controle sanitário, ou
seja, ao monitoramento de conteúdo pela Anvisa, amparada pela Resolução
de Diretoria Colegiada n. 102, de 2000 (BRASIL, 2000)11. Hoje, o que se
verifica e se discute nacionalmente são as preocupantes novas maneiras de pro-
mover medicamentos na mídia sem chamar a atenção da vigilância sanitária
e, consequentemente, sem se sujeitar a restrições impostas por esse mecanis-
mo de regulação. A legislação atual (RDC 96/2008, ANVISA, 2008)12 tenta
acompanhar as mudanças discursivas, observadas na pesquisa, e estudiosos
9
ANGELL, Márcia. A verdade sobre os laboratórios farmacêuticos: como somos enganados e o
que podemos fazer a respeito. Trad. Waldéa Barcellos. Rio de Janeiro: Record, 2007.
10
BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2001.
11
BRASIL. Resolução RDC nº 102, de 30 de novembro de 2000. Diário Oficial da União,
Brasília, 1º dez. 2000.
12
ANVISA. Resolução RDC nº 96, de 17 de dezembro de 2008. Disponível em: http://e-legis.
anvisa.gov.br/leisref/public/showAct.php?id=35664&word. Acesso em 15 abr. 2009.
Ramalho, Viviane.
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sanitaristas reiteram a necessidade de coibir este tipo de prática promocio-


nal, exacerbadamente lucrativo para alguns setores da economia e igualmente
ameaçador para a sociedade em geral.
A propaganda de medicamento ocupa papel central tanto na instaura-
ção e manutenção de indústrias nesse mercado, quanto na criação, sustenta-
ção e expansão de comunidades de consumidores, e o faz por meio do que
Lefèvre (1991: 53)13 denominou “valor do medicamento como mercadoria
simbólica”, pelo qual a mercadoria-medicamento passa a incorporar, repre-
sentar, simbolizar “acesso mágico e imediato à saúde”, em comprimidos,
cápsulas, gotas.
Como símbolo de saúde, um conceito que agrega valores socioculturais,
o medicamento pode representar acesso mágico e imediato àquilo que o dis-
curso hegemônico define como “saudável”. Hoje, a grande mídia representa
a saúde não mais como um padrão mensurável, mas como um ideal inalcan-
çável e pós-humano: na magreza extrema; nos estados alterados de excitação,
velocidade, vigília, na juventude pretensamente eterna, e assim por diante
(RAMALHO, 2008). Nesse contexto de generalização de ansiedades e inse-
guranças relacionadas ao corpo, a publicidade atua como principal meio de
exploração do valor simbólico do medicamento.
Tal qual propagandas de roupas, celulares, perfumes, a propaganda de
medicamentos é um problema social porque, como observou Fairclough
(1989: 203), a publicidade em geral contribui para “construir posições sub-
missas para ‘consumidores’, como membros de comunidades de consumo,
de maneira a legitimar o capitalismo contemporâneo”. Entretanto, diferente-
mente das primeiras, a propaganda de medicamentos é potencialmente mais
nociva por posicionar o indivíduo como “consumidor de medicamento” e
incitar anseios relacionados à saúde. Ainda assim, não raro encontramos na
mídia ou mesmo nas ruas, como é o caso do texto analisado a seguir, propa-
gandas implícitas, que simulam informação, mas, de fato, buscam promover
medicamentos; muitas vezes produtos de venda sob prescrição médica, cuja
promoção nos meios de comunicação em massa é proibida no Brasil.

13
LEFÈVRE, Fernando. O medicamento como mercadoria simbólica. São Paulo: Cor-
tez, 1991.
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3. ‘Sexo seguro na vida adulta’: aproximação analítica

Como vimos, dados os reconhecidos riscos potenciais à saúde pública,


as práticas promocionais/comerciais de medicamento são regulamentadas e
fiscalizadas no Brasil desde 2000. A Anvisa é a instituição responsável pelo
controle de certos apelos em propagandas de medicamentos de venda livre,
ou, ainda, pela suspensão de propagandas vedadas ao público em geral, como
de medicamentos de venda sob prescrição.
Como resultado e também instrumento das mudanças sociais que in-
seriram a propaganda de medicamento na lista dos objetos ‘controlados’ pela
vigilância sanitária, verificamos mudanças discursivas na prática publicitária.
Dentre essas mudanças, discutidas em Ramalho (2008, 2009b)14, estão no-
vas “tecnologias discursivas”, isto é, manipulações estratégicas da linguagem
orientadas para projetos de dominação (FAIRCLOUGH, 2001).

3.1 Interdiscursividade e ideologia

No texto em análise, essas tecnologias discursivas referem-se a manipula-


ções estratégicas da linguagem capazes de dissimular propósitos promocionais
em textos publicitários, de modo que alcancem o/a consumidor/a potencial
como se fossem simples informações. Para ilustrar tais mudanças discursivas,
apresentamos a seguir um dos textos do corpus de pesquisa:

14
RAMALHO, Viviane. ‘Magra sem pesar no bolso’: discurso e ideologia na pro-
paganda de medicamentos. In: Silva, Denize Elena Garcia da; Leal, M. C. D.;
Pacheco, M. C. N. (Org.) Discurso em questão: representação, gênero, identidade,
discriminação. Goiânia: Cânone, 2009b, p. 189-200.
Ramalho, Viviane.
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Figura 1 – Sexo seguro na vida adulta

Distribuição gratuita, 2005.


O folheto reproduzido foi coletado em um espaço público, em Brasília/DF,
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no ano de 2005. Nessa data, o controle sanitário sobre propaganda de medica-


mentos já estava consolidado e a Anvisa elaborava novo texto para atualização
da RDC 102/2000. Transcorridos cinco anos de vigência do primeiro regu-
lamento e diante de inovadas técnicas publicitárias não-ostensivas, a Anvisa
apresentou, em 2005, nova proposta de regulamento, hoje já publicada na
RDC 96/2008, para buscar acompanhar as mudanças operadas nos anúncios
publicitários.
Em termos linguístico-discursivos, tais novidades constituem mudan-
ças baseadas na interdiscursividade, isto é, na hibridização de gêneros, discur-
sos e estilos característicos de práticas sociais distintas. Embora convenções
discursivas tenham estabilidade apenas relativa, podemos observar, no texto
apresentado, hibridização de dois discursos principais: o de “utilidade pú-
blica” e o comercial/publicitário. Como alertam Chouliaraki & Fairclough
(1999: 62) em uma perspectiva crítica, hibridismos discursivos não devem
ser vistos apenas como uma questão textual, uma vez que podem constituir
também “estratégias de luta hegemônica”. Hibridismos de gêneros podem
servir, nessa perspectiva, para fins ideológicos, em virtude de implicar não
apenas questões linguísticas, mas também questões relacionadas a poder e
ideologia.
Exigências socioculturais que apontem para a necessidade de atuar cria-
tivamente sobre convenções discursivas, como no caso das legislações (regras)
que pesam sobre os anúncios de medicamentos, podem, dependendo de várias
circunstâncias, redundar em mudanças no gênero, o que é parte de mudanças
discursivas. Nos termos de Fairclough (2001: 128),

A mudança (social) deixa traços nos textos na forma de co-


ocorrência de elementos contraditórios ou inconsistentes –
mesclas de estilos formais e informais, vocabulários técnicos
e não-técnicos, marcadores de autoridade e familiaridade
(...). À medida que uma tendência particular de mudança
discursiva se estabelece e se torna solidificada em uma nova
convenção emergente, o que é percebido pelos intérpretes,
num primeiro momento, como textos estilisticamente con-
traditórios perde o efeito de “colcha de retalhos”, passando a
ser considerado “inteiro”.
Ramalho, Viviane.
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A exemplo do texto que analisamos aqui, que constitui uma simulação


de “campanha de utilidade pública”, na pesquisa mais ampla identificamos vá-
rios outros novos formatos de publicidade distribuídos para promover bens e
serviços mas por meio do approach de serviço público, que, conforme Sampaio
(2003: 184)15, possibilita “ensinar e divertir as pessoas enquanto vende – o
tempo todo e de modo quase subliminar”.
No caso da publicidade de medicamentos, tais formatos – que possibili-
tam alcançar o/a consumidor/a potencial em situações de descontração, logo,
mais suscetível – têm, ainda, outra aplicabilidade. Permite, à medida que pas-
sam a ser recebidos como “inteiros”, promover produtos farmacêuticos pela
simulação de serviço público ou campanha social, a exemplo do texto em tela,
uma publicidade que se destina a promover um medicamento por meio de
simulação de campanha de sexo seguro.
O texto em análise ilustra um tipo de tecnologia discursiva utilizada para
promover medicamentos no contexto de vigilância. Essa técnica da publicida-
de de recorrer a outros formatos, como a história em quadrinhos (HQ), para
atrair a atenção do leitor é bastante conhecida e amplamente utilizada. No
entanto, no caso do texto em foco, o uso das convenções da HQ parece não
se limitar a atrair o/a consumidor/a potencial por meio de uma história, que
diverte para vender. Essas finalidades são verificadas no texto, entretanto nele
se observam algumas peculiaridades.
Por exemplo, nas publicidades em geral, mesmo com formato de HQ,
uma história é contada para vender explicitamente um produto, o que não
ocorre com este texto, em que o produto que se promove não está explícito.
Da mesma forma, como discutimos em Ramalho (2008), anúncios publici-
tários em geral apresentam um bem/serviço como meio para resolver uma
carência, uma suposta necessidade. Aqui, a solução não é, ao menos explici-
tamente, uma mercadoria, mas sim supostas informações sobre sexo seguro.
Seguindo Vestergaard & Schroder (1994)15, notamos que esse texto, em
confronto com anúncios tradicionais, apresenta apenas um dos três persona-
gens mais convencionais de publicidades, qual seja, o “consumidor potencial”,
representado por “homens e mulheres maduros com vida sexual ativa”. O
“anunciante e o produto”, por sua vez, não figuram na narrativa. O primeiro

15
SAMPAIO, Rafael. Propaganda de A a Z. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
Cadernos de Letras da UFF – Dossiê: Letras, linguística e suas interfaces no 40, p. 117-130, 2010 127

só aparece no logotipo/assinatura ao final do texto, ao passo que o produto


(medicamento Viagra) é apenas insinuado, e não referido explicitamente.
Ainda, conforme a Gramática Visual de Kress & van Leeuwen (1996)�,
podemos observar que no texto há poucas ações, gestos, movimentos corpo-
rais, entre os personagens da HQ. Não há especificamente “ações materiais”
direcionadas a outros participantes, mas sim “ações verbais”, “ações de dizer”.
Isso significa que, na composição da imagem, os participantes estão represen-
tados, principalmente, pela verbalização de seus conhecimentos, percepções,
desejos, emoções, que apontam para crenças e valores particulares característi-
cos de suas autoidentidades. As mensagens emitidas pelos personagens podem
ser vistas como verbalização de crenças e valores implicados em identificações,
tanto do mundo quanto dos próprios personagens.
Esse também é o caso da linguagem verbal, em que os verbos “conhecer”,
“querer”, “gostar”, “adorar” etc. concorrem para a caracterização dos persona-
gens, predominantemente representados no texto segundo o que sabem, são,
desejam, gostam. Tal seleção de processos contribui para construir o perfil
do/a consumidor/a do medicamento anunciado veladamente.

3.2 Processos de identificação do/a novo/a consumidor/a de


medicamentos

Vários estudos sociais têm apontado uma mudança das práticas de con-
sumo utilitaristas, próprias da sociedade industrial, para novas práticas funda-
das num consumismo hedonista, voltado menos para suprir necessidades do
que para satisfazer desejos, relacionados a prazer, bem-estar, felicidade, reali-
zação pessoal. É nessa perspectiva que, para Bauman (2001), o indivíduo não
mais “nasce em” sua identidade. Precisa escolhê-la, o que muitas vezes equivale
a ir às compras, sobretudo de viagens, vinhos, obras de arte, espetáculos. Essa
descrição aproxima-se do posicionamento atribuído ao/à consumidor/a do
medicamento anunciado no texto, que “deveria” buscar a expansão do poten-
cial do corpo, como forma de autorrealização.
Outrora, como verificamos em Ramalho (2008), os/as consumidores/
as potenciais de medicamento, representados em anúncios, eram chefes de
família e donas de casa, mães, esposas, “nascidos/as nestas” identidades. Hoje,
por outro lado, os consumidores “hedonistas” do séc. XXI, representados no
Ramalho, Viviane.
128 Uma leitura crítica da interdiscursividade: o caso da publicidade de medicamento

texto em análise, por exemplo, são a mulher madura e solteira, que não tem
filhos, que está em busca de relacionamentos amorosos, que expressa desejos;
e o homem (cujo expoente seria o gatão de meia-idade, de Miguel Paiva), se-
parado, que tem filhos mas não é chefe de família, que também está em busca
de prazer, e assim por diante.
Essa representação também está associada a uma imagem ‘elitista’ de pes-
soas com poder aquisitivo, haja vista elementos como “bar da moda”, “cur-
riculum”, e comportamentos como “falar baixo”, “malhar, fazer check-up”, e
outros. As propagandas atuais posicionam o/a consumidor/a de medicamen-
tos como aquele/a que possui poder aquisitivo para alcançar mais prazer e
felicidade com a expansão do potencial corporal, possibilitada pelo consumo
de drogas.
Como, conforme Castells (2001)16 e Fairclough (2003), a identidade
é construída, também, com base em sentidos que circulam em nosso meio
sociocultural, a disseminação de discursos sobre um ideal de saúde suposta-
mente alcançável pelo consumo de medicamentos pode contribuir para (auto)
identificações projetadas nesse ideal. Na definição de Silva (2000: 14)17, para
processos de identificação projetados em “superatletas. Supermodelos. Clones.
Seres ‘artificiais’ que superam, localizada e parcialmente (por enquanto), as
limitadas qualidades e as evidentes fragilidades dos humanos”.
Assim, como vimos, nos anúncios em geral, uma história é “contada
para vender”; aqui, peculiarmente, além daquele fim, a história é contada
para simular uma campanha de utilidade pública com vista a promover, de
modo velado, um medicamento de venda sob prescrição. Para fugir a proi-
bições legais que pesam sobre esse tipo de propaganda, no texto articulam-se
convenções discursivas da HQ de condicionamento de atitudes, caracterís-
tica de campanhas de utilidade pública, segundo Eisner (1989)18. Isto é, as
tipificações da HQ (personagens, imagens, balões de fala) são articuladas
no texto para dissimular propósitos promocionais e estratégicos, fazendo-se

16
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. Trad. Klauss B. Gerhardt. São Paulo:
Paz e Terra, 2001.
17
SILVA, Tomaz Tadeu da. (Org./Trad.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do
pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
18
EISNER, Will. Quadrinhos e arte seqüencial. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo:
Martins Fontes, 1989.
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passar por “informação” e resultando num híbrido de “campanha de saúde


e publicidade”.
Este é o caso, previsto na RDC 96/2008, de “publicidade indireta”,
“aquela que, sem mencionar o nome dos produtos, utiliza marcas e (ou) sím-
bolos (e ou) designações e(ou) indicações capaz de identificá-los (...)”. Trata-
se, portanto, de uso estratégico da interdiscursividade, ou seja, de convenções
do gênero “folheto de campanha de utilidade pública” para dissimular a fina-
lidade comercial do texto. A finalidade de desencadear a ação de “comprar e
consumir o medicamento” é representada como se fosse orientada para a ação
de “prevenir doenças sexualmente transmissíveis”.
Muitos outros aspectos discursivos, que extrapolam esta discussão ini-
cial, são tratados em Ramalho (2008), em que tomamos o texto aqui analisado
como exemplar de uma série de outros anúncios publicitários que dissimulam
sua função precípua de promover comercialmente medicamentos, fugindo,
assim, ao menos durante o tempo suficiente para atingirem o/a consumidor/a
potencial, do controle da vigilância sanitária e conseguindo circular livremen-
te na mídia.

Considerações finais

Neste trabalho, discutimos, com base no estudo de Ramalho (2008), a


emergência de novas “tecnologias discursivas”. Partindo da análise do texto
Sexo seguro na vida adulta, distribuído gratuitamente em 2005, vimos que a
hibridização discursiva em textos promocionais de medicamentos consiste em
uma tecnologia discursiva, isto é, uma manipulação estratégica da linguagem
orientada para projetos de dominação, sobretudo no que toca a relações entre
“leigos/as” e “peritos/as”, tanto da saúde quanto da linguagem.
Os sentidos criados no texto analisado ilustram sua potencialidade
para obscurecer fronteiras entre publicidade/informação, permitindo que,
de modo dissimulado, o discurso particular da publicidade seja legitimado
em anúncios híbridos e inculcado em identidades projetadas na imagem do/a
consumidor/a de medicamento.
Ramalho, Viviane.
130 Uma leitura crítica da interdiscursividade: o caso da publicidade de medicamento

ABSTRACT

In this paper we investigated potentially ideological


meanings in Brazilian medicine advertisements. The
aim was to problematize the role of discourse in main-
taining asymmetrical power relations in late modernity.
Based upon Critical Discourse Analysis theoretical-
methodological concepts (Chouliaraki & Fairclough,
1999; Fairclough, 2003), we traced causal connections
between semiotic and non-semiotic aspects in the social
issue considered here.

KEYWORDS: discourse; ideology; interdiscursivity.

Recebido: 08/04/2010
Aprovado: 09/06/2010

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