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ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS EM

COMUNIDADES TRADICIONAIS PARANAENSES:


ABORDAGENS TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Conselho Editorial
Arnaldo José da Luz
Alcimara Aparecida Foetsch
Carla Holanda da Silva
Daniel Sedorko
Maisa França Teixeira
Marcos Alberto Torres
Zairo Carlos da Silva Pinheiro
ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS EM
COMUNIDADES TRADICIONAIS PARANAENSES:
ABORDAGENS TEÓRICO-METODOLÓGICAS

Renato Pereira Tanize Tomasi


Nicolas Floriani Dimas Floriani
(Organizadores)
Copyright © 2021

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Editores: Renato Pereira e Tanize Tomasi


Projeto gráfico, diagramação e revisão: Editora Panaro
Foto de capa: Tanize Tomasi

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


P436e Pereira, Renato; Tomasi, Tanize; Floriani, Nicolas; Floriani, Dimas
Etnoconhecimentos, saberes e práticas em comunidades
tradicionais paranaenses: abordagens teórico-metodólogicas/
Renato Pereira, Tanize Tomasi, Nicolas Floriani, Dimas Floriani
(organizadores). – 1. ed. – Santo Augusto : Editora Panaro, 2021.
186p., 210mm
ISBN 978-65-994880-6-1

I. Geografia. II. Geografia Regional. III. Comunidades


Tradicionais. IV. Título. V. Org.

CDD : 305.8
CDU : 82-1

Índices para catálogos sistemáticos:


1. Geografia : Teoria e Metodologia

Editora Panaro
editorapanaro.com.br
Às comunidades tradicionais.
SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO .................................................................................... 9
Nicolas Floriani, Dimas Floriani

TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS E


TRADICIONAIS: REFLEXÕES PARA POSSÍVEL APROXIMAÇÃO
TEÓRICA ENTRE O NOSSO E OUTROS MUNDOS.............................17
Adnilson de Almeida Silva, Charlot Jn Charles, Josué da Costa Silva

MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO EM COMUNIDADES


TRADICIONAIS DO PARANÁ: LIDERANÇA, ENGAJAMENTO E
TERRITORIALIDADES........................................................................... 39
Tanize Tomasi, Renato Pereira

SABERES VERNACULARES DE AGRICULTORES FAXINALENSES


COMO FONTE PARA ELABORAÇÃO DE CARTILHAS E MAPAS
ETNOPEDOLÓGICOS............................................................................ 63
Vanderlei Marinheski, Nicolas Floriani

SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA FAXINALENSE”: UMA


GEOMARCA SOCIAL PARA OS FAXINAIS DO PARANÁ..................... 83
Nicolas Floriani, Ronir de Fátima Gonçalves

O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO: UMA EXPERIÊNCIA DA


COMUNIDADE CAIÇARA DO GUARAGUAÇU....................................107
Antônio Marcio Haliski, Keila Cássia Santos Araújo, Paulo Rogério Lopes,
Nicolas Floriani

AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS CONSTITUTIVAS


DE TERRITORIALIDADES TRADICIONAIS QUILOMBOLAS E
FAXINALENSES NO CONTEXTO DA REGIÃO DOS CAMPOS GERAIS
DO PARANÁ...........................................................................................123
Cleusi T. Bobato Stadler
ENTRE VALOS E VEDOS: (TRANS)TERRITORIALIDADES DAS
COMUNIDADES TRADICIONAIS DA ESTRADA DA LOMBA – PARANÁ
................................................................................................................147
Renato Pereira, Tanize Tomasi

A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA A PARTIR DO ESPAÇO VIVIDO E BEM


VIVER.....................................................................................................167
Jefferson Henrique Cidreira, Josué da Costa Silva

ORGANIZADORES.....................................................................181
AUTORES CONVIDADOS.......................................................... 183
Apresentação - Da invisibilização à valorização dos
saberes locais de natureza: na construção social
de uma cosmopolítica com sujeitos (seres e coisas)
de direitos

Nicolas Floriani, Dimas Floriani

Esta obra emarca-se como crítica ao processo de dominação do


sistema ideológico logocêntrico da ciência sobre outras formas culturais
de representação da realidade, com base no processo de transformação
(tradução) científica dos conhecimentos autóctones, cujo procedimento
seria a catalogação, incorporação em uma base de dados, e hierarquização
segundo seus supostos valores úteis às ciências, reflete o “aspecto político
da classificação e organização científica dos conhecimentos autóctones”
(AGRAWAL, 2012, p. 4).
Esse processo evidencia uma ordem representacional do mundo
ancorada em uma profunda clivagem entre sociedade e natureza: uma
leitura dicotômica e disjuntiva do tempo e do espaço, do indivíduo e do
coletivo, do sujeito e do objeto, da sociedade e da natureza, do tradicional
e do moderno, do nativo e do exótico, do silvestre e do domesticado,
da economia e do monetário, etc, que se apresenta como uma crise
epistemológica em que se inscrevem também o dualismo entre saberes
científicos e não científicos (CASTRO, 2002; LATOUR, 2004).
Contrariamente ao processo de invisibilização de saberes, o jogo
político de valorização de cosmologias reflete o conjunto de ações e
discursos sociais de novos sujeitos históricos que emergem da ruptura da
própria contradição fundamental do sistema capitalista, que se radicaliza
no quadro de crise das “modernidades múltiplas”.
O processo político de (i)legitimação e consequente (in)visibilização
das formas de imaginação de mundo pode ser visto, também, a partir
do que Agrawal (2002) entende por conhecimentos autóctones e da
sua relação com a ciência: para o autor, os conhecimentos locais são
uma trama complexa de conexões sociais, culturais e metafísicas, cuja
realidade os programas de pesquisa dedicados à interpretação deste tipo
de saber tropeçam ao tentarem separar o material do ideal, o necessário
do supérfluo, o específico do seu contexto, ou seja, quando tratam de
torná-los objetos manipuláveis, transformando-os (ou como diria Bruno
10 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Latour, purificando-os), ao passo que outros saberes seriam relegados


ao esquecimento acadêmico, ao que qualificaríamos como putrificação
ontológica1.
Trata-se, portanto, segundo Descola (2011), de escolhas concernentes
ao lugar das fronteiras ontológicas e, portanto, da estrutura das
cosmologias, ou seja, da instauração de sistemas de valor que orientam as
relações práticas à outrem, humano ou não-humano e, que, quando eles
adquirem localmente uma posição dominante, confere a uma sociedade
seu estilo distintivo. Por extensão, trata-se de valorizar, portanto, certos
dispositivos de classificação por meio dos quais os elementos do mundo
são repartidos em nomenclaturas mais ou menos extensivas2 (DESCOLA,
2011). Nesse processo político, Descola exemplifica a escolha e valorização
das seguintes estruturas cosmológicas:
[…] Continuidades entre humanos e não-humanos tratados
segundo regimes de sociabilidade idêntica, transferência
analógica das propriedades de objetos naturais às taxonomias
sociais, correspondência ou ação à distância entre elementos
do macrocosmo e elementos do microcosmo, separação entre
a esfera dos homens e o resto do mundo, […] a exigência de
reciprocidade, a apropriação predadora, o don desinteressado, a
proteção, a produção, etc.¨ (DESCOLA, 2011, p. 35).

Não obstante, o evidenciamento dessa problemática nos leva a


um outro impasse, desta vez de ordem metodológica, isto é, de como
interpretar ou traduzir as dimensões complexas dos fenômenos
socioecológicos que emergem de processos históricos em distintas
escalas, dada a multiplicidade de sistemas de práticas socioculturais3
1 Conforme Raffle (2012), esta prática metodológica corrente entre as comunidades
científicas que partilham os saberes aparece como um complexo procedimento de
classificação, portanto, de escolhas “[…] cujo objetivo é simples mas crucial: a produção
do que conta como ciência. É um processo pelo qual se estabelecem as hierarquias
do saber e no qual o descritivo se distingue do analítico, o anedótico do sistemático, o
mítico do factual, a informação dos dados (RAFFLE, 2002, p. 56)”.
2 Segundo Diegues (2005), para muitas dessas sociedades, sobretudo para as indígenas,
existe uma interligação orgânica entre o mundo natural, o sobrenatural e a organização
social. Nesse sentido, para estas, não existe uma classificação dualista, uma linha
divisória rígida entre o “natural” e o “social” mas sim um continuum entre ambos
(DIEGUES, 2005, p. 30).
3 Citando Firth (1951), Viveiros de Castro (2002) apresenta o esquema de decomposição
da realidade social em pelo menos três componentes conexos: populacional,
institucional-relacional e cultural-ideacional do grupo. Victor Toledo (2002) sugere
DA INVISIBILIZAÇÃO À VALORIZAÇÃO DOS SABERES 11

(econômicas, tecnológicas, simbólicas e de poder) que influenciam as


lógicas de valorização das espacialidades-temporalidades de um dado
grupo, ou ainda, das ações e das imagens sociais de Natureza que se
materializam e são simbolizadas no espaço e significadas na memória de
uma coletividade?
Desse contexto de disputas pelos sentidos representacionais do
mundo, são produzidas práticas divergentes e/ou convergentes de
apropriação simbólica e material de naturezas possíveis de serem
concebidas e produzidas, configurando aquilo que Dimas Floriani (2017)
chama de ‘ecologia de práticas de natureza’, ou ainda nas palavras de
Escobar (2013), uma ‘ontologia política’, cujo esforço seria o de buscar
inverter a lógica estabelecida nas hierarquias do conhecimentos, ou
ainda conforme Latour, a ‘cosmopolítica’.
Destarte, configuram-se estratégias de abertura ao diálogo entre
os saberes, tratando-se, segundo Dimas Floriani (2010), de um método
interpretativo das narrativas (científicas e dos saberes locais) acerca das
múltiplas escalas e dimensões – os fenômenos espacial (território da
comunidade) e temporal (tempo social e tempo biológico) – envolvidas
na configuração das diversidades socioterritoriais.
Para o autor, o conhecimento científico-acadêmico é apenas um dos
elementos da longa cadeia de conexões de uma nova cultura científica
apoiada na construção de uma epistemologia socioambiental e, para
operar com um novo registro epistemológico sobre a relação sociedade-
natureza, é importante saber ir além do exercício intramuros da ciência
convencional, devendo-se para tanto:
[...] [Aproximar-se] de outros sistemas de conhecimento e de
práticas socioculturais, em especial com aqueles que possuem uma
longa tradição de coexistência de gestão dos recursos naturais e
de sua reprodução, em condições tais que não colocam em risco
esses recursos nem as formas de organização social e os diversos
estilos de vida que emergem dessas interações (FLORIANI, 2013,
p. 28).

o modelo KCP (Kosmos, Corpus e Praxis) para compreender as dimensões ou eixos


contituientes dos conhecimentos locais: aos aspectos estruturais da natureza ou que se
referem a objetos ou componentes e sua classificação (etnotaxonomías), e as dimensões
dinâmicas (de padrões e processos), relacionais (ligados às relações entre os elementos
e os eventos naturais) e utilitárias dos (objetos e) recursos naturais.
12 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Em outros termos, se estabelece a necessidade de um método


capaz de unir, em um mesmo plano investigativo, a interpretação
das Práticas e dos Imaginários da entidade Território-Paisagem, de
maneira a compreender como se estrutura o corpo de conhecimentos
e são dinamizadas as ações de uma dada coletividade na ‘con-figur-
ação’ (figura e ação) de sua territorialidade-naturalidade, e quais são as
possíveis interfaces que se produzem entre os saberes de natureza.
A Cosmopolítica ou as Políticas de Natureza (LATOUR, 2004)
configura-se a partir de cenários de tensões, disputas e conflitos
pelo reconhecimento e legitimação de regimes de natureza (ou
territorialidades), nos quais emergem diversos atores sociais (academia,
poder público, movimentos sociais, ONGs, etc), incluindo a construção
coletiva de novos direitos e sujeitos de direito, no seio dos territórios
tradicionais (ESCOBAR, 2012; SHIRAISHI NETO, 2014).
No contexto das modernidades múltiplas, a identidade
sociopolítica das comunidades tradicionais acessa uma rede semântica
que conecta o imaginário de Natureza-Território a outros imaginários
coletivos, tais como Conviver, Habitat, Cuidar, conferindo virtualmente
em sua complexidade, uma territorialidade da convivencialidade que se
tensiona no espaço e no tempo com o projeto de modernização e da
mercantilização do mundo da vida, negociando e disputando sentidos e
valores às naturezas em configuração.
No mesmo sentido, Raffle (2002) ao situar as práticas e os
saberes tradicionais de Florestas como processos relacionais, pois estes
exigem um locus, um habitat, um território, ele refere-se a uma teia
de relações no sentido mais amplo de sua articulação, conectando una
série de interlocutores: os mateiros, os acadêmicos, os sindicalistas, os
ecologistas, as famílias, os amigos, as árvores, os solos e os animais: a
lista, segundo o autor, é extensa e o que conta como conhecimento deve
ser o resultado ativo das relações socioecológicas saturadas de poder da
vida cotidiana e impregnadas de objetividades e subjetividades.
Destarte, no campo da produção social dos conhecimentos de
naturezas, o saber local apresenta dimensões conexas, que o diferenciaria
do conhecimento científico: o afeto e a arte são dispositivos responsáveis
pela ancoragem da dimensão subjetiva na experiência racionalizada,
posto que permite deslocar a centralidade colonizadora do logos nas
construções e produções sociais de realidades (das naturalidades).
DA INVISIBILIZAÇÃO À VALORIZAÇÃO DOS SABERES 13

De acordo com Deleuze e Guattari (2010), o Afecto e o Percepto -


elementos constituintes do pensamento afetivo e criador - colocam em
evidência e agenciam os sentimentos dos sujeitos em relação ao seu
ambiente e ao conjunto de coisas que o constitui. Contra a percepção e a
afecção - sintomáticas da saturação do projeto ocidental racionalizador
do mundo da vida, disjuntivas das dimensões econômica, simbólica e
politica do ser humano (porque contaminadas pela logopatia conceitual)
- o percepto e o afecto permitem o desdobramento do pensamento
afetivo sobre a razão.
Nesses termos, o poder da arte e da espiritualidade expressam a faceta
sentimental do pensamento (ou do sentirpensar como nos recordam
Arturo Escobar e Edgar Morin) a ser evidenciada na compreensão
das relações entre coletivos humanos e destes com os não humanos,
porque praticam figuras de linguagem negadas e subjugadas (embora
subterraneamente praticadas) pela razão dominante. A reconexão da
analogia e da metáfora (da linguagem poética) no pensamento complexo
permitiriam, assim, reconectar (recomunicar) as coisas e os seres vivos
num hábitat comum inter(trans)subjetivado (DELEUZE; GUATTARI,
2010; MORIN, 2015; LATOUR, 2004; BERQUE, 2000; RAFFLE, 2012;
BOFF, 2014; ESCOBAR, 2014).
Trata-se, pois, de realimentar a espiritualidade reconectando-a
à prática que, de acordo com Leonardo Boff, significaria recuperar o
núcleo valorativo-emocional do ser humano ante a natureza de maneira
a desenvolver a capacidade de convivência e de escuta de mensagens que
todos os seres emanam. Nesses termos, conforme o teólogo:
[…] A nova filosofia (uma nova ecologia da mente, conforme o
autor) apresenta-se holística , ecológica e espiritual. Ela funda
uma alternativa ao realismo materialista, com capacidade de
devolver ao ser humano o sentimento de pertença à família
humana, à Terra […] a religação do sentimento do Sagrado face
ao Cosmos e a cada um dos seres […] (BOFF, 2014, p.16).

Religar, assim, o sentimento ao pensamento e deste com o território


implica pensar, de acordo com Arturo Escobar (2014, p. 16), desde o
coração e desde a mente, o co-racionar. Esta filosofia é a forma em que
as comunidades territorializadas têm aprendido a arte de viver e habitar.
Este é um chamado, pois, aos sujeitos sentipensarem (e diríamos
14 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

também, sentipraticarem) com os seres vivos, as coisas, os territórios,


e o outro.
Assim, com base nessa reflexão, gostaríamos de apresentar essa
obra que coaduna nos oito anos de existência do Grupo de Pesquisa
e Extensão Interconexões: saberes, práticas e Políticas de Natureza,
chancelado pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e pelo
Conselho Nacional de Pesquisa (CNPq).
Fundamentados em uma ecologia de práticas e de saberes, os
trabalhos ora reunidos nessa obra trataram de dar visibilidade, por meio
dos mecanismos da pesquisa-extensão universitária, à trama complexa
das realidades socioambientais regionais estudadas, de maneira a
contribuir com uma epistemologia socioambiental decolonial emergente
e em construção, que leve em conta
[...] As trajetórias constitutivas de uma história da ciência, mas
também dos saberes culturalmente enraizados e reinventados
pela diversidade do pensamento vivo e corporificado em práticas,
saberes críticos e tecnologias inventadas pela engenhosidade
humana, em tenso diálogo, contraditório, criativo e crítico
sobre os processos de interação entre as sociedades e a natureza
(FLORIANI, 2013, p. 27).

Incluímos na categoria Saberes Locais o patrimônio material e


imaterial de coletividades que, desde seus territórios, buscam resistir e
reafirmar suas identidades frente à modernização e racionalização de
suas realidades.
Desde sua criação, o grupo de pesquisa teceu redes entre academia,
setores do poder público e organizações sociais, formando não somente
acadêmicos de graduação e pós-graduação, mas também formando
lideranças locais. Assim, as pesquisas refletem esse cuidado de devolver
aos grupos beneficiários de projetos e ações extensionistas os resultados
em termos de de valorização de suas identidades culturais, e busca de
soluções alternativas aos problemas sociais e ambientais que assolam o
cotidiano desses grupos.
Dar visibilidade social para garantir as suas distintas territorialidades
passou a constituir um projeto coletivo apoiado por diversos atores sociais
representados por setores da academia, ligados à pesquisa, extensão, e
setores do poder público engajados no reconhecimento dos direitos dos
DA INVISIBILIZAÇÃO À VALORIZAÇÃO DOS SABERES 15

povos tradicionais e na efetivação de estratégias de desenvolvimento


socioambiental e regularização fundiária do território.

Referências
AGRAWAL, A. Introducción: a favor de la indeterminación. In: Revista
Internacional de Ciencias Sociales, El conocimiento Indígena,
set. 2012, n. 173. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0012/001284/128436s.pdf. Acessado em: 7 set. 2018.
BOFF, L. Saber Cuidar. Ética do humano - compaixão pela terra.
Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes. 20ed., 2014. p. 248.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O que é filosofia? Tradução: Bento
PRADO. B. J; MUÑOZ, A. A.. Rio de Janeiro: Editora 34, Col. Trans, 3ed.,
2010, 288 p.
DESCOLA, P.; INGOLD, T. Étre au monde: quelle expérience
commune? LUSSAULT, M. (org.). Lyon: Presse Universitaire de Lyon,
2014, 75 p.
ESCOBAR, A. Sentirpensar con la tierra: nuevas lecturas sobre
desarrollo, territorio y diferencia. Medellin: Unaula, 2014, 184 p.
ESCOBAR, A. Una minga para el postdesarrollo: lugar, medio ambeinte
y movimientos sociales. Lima: Ediciones Desde Abajo, 1a reimpressão,
2013. 177 p.
FLORIANI, D. Crítica da razão ambiental. Pensamento e ação para a
asustentabilidade. São Paulo: Annablume, 2013. 244 p.
FLORIANI, N. et al. “Medicina popular, catolicismo rústico,
agrobiodiversidade: o amálgama cosmo-míticoreligioso das
territorialidades tradicionais na região da serra das Almas, Paraná,
Brasil”. Geografia (Rio Claro. Online), v. 41, p. 331-351, 2016.
INGOLD, T. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos
num mundo de materiais. Horiz. antropol., Porto Alegre, v.18, n.37,
p. 25-44, jun. 2012. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
php?script=sci_arttext&pid=S0104-71832012000100002&lng=en&nr
m=iso >. Acessado em 2 jul. 2018.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia
simétrica. Tradução: COSTA, C. I. da. 2ed. Rio de janeiro: Editora 34,
2009. 152 p.
16 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

LATOUR, B. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia.


Tradução: SOUZA, C. A. M. de. São Paulo/Bauru: Edusc, 2004. 412 p.
MORIN, E. O Método 3: o conhecimento do conhecimento. Porto
Alegre: Ed. Sulina, 5ed., 2015. 286 p.
RAFFLES, H. El conocimiento íntimo. In: Revista Internacional
de Ciencias Sociales, El conocimiento Indígena, set.
2012, n. 173. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/
images/0012/001284/128436s.pdf. Acessado: 8 set. 2018.
SAHLINS, M. Cultura e razão prática. Tradução: LAMARÃO, T. N. Rio
de Janeiro: Zahar, 2003, 230 p.
SHIRAISHI NETO, J. O Direito das Minorias: passagem do
“invisível” real para o “visível” formal? Manaus: UEA Edições, 2013.
188 p.
VIVEIROS DE CASTRO, E. B. A inconstância da alma selvagem e
outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002,
552 p.
Territorialidades, identidades originárias e
tradicionais: reflexões para possível aproximação
teórica entre o nosso e outros mundos

Adnilson de Almeida Silva, Charlot Jn Charles, Josué da Costa Silva

Ao nos propormos abordar sobre a territorialidade/espacialidade


temos a compreensão que ela se conecta com uma série de significados,
representações e relações, especialmente ao se tratar de populações
originárias – os indígenas – e os povos tradicionais, em decorrência
de suas práticas e a vinculação com o meio ambiente. Neste sentido,
estão presentes as relações de trabalho, como exercício das experiências
e modos de vida, e se somam a esse conjunto os fenômenos da
espiritualidade, como um fio condutor, um guia-mestre para as
explicações dos microuniversos – aqui entendido como a relação que
esses povos estabelecem com seu e além-mundo.
É também objeto de estudo os seus modos de vida, os quais tão
distintos daqueles adotados pela sociedade ocidental que detêm os meios
e modos de produção, isso porque se ancoram em perspectivas com outras
intencionalidades. É pertinente considerar que os modos de vida dos
povos originários e tradicionais são dotados de outros contextos históricos
e geográficos, nos quais cada um dos mais variados agrupamentos se
formaram, visto que neles se encontram territorialidades permeadas
por valores sociais, morais, culturais e espirituais que resultaram em
culturas e identidades próprias, únicas e/ou coletivas.
É sabido que o processo de ocupação das terras do continente
americano resultou em milhões dessas populações que passaram por
pressões de toda ordem e até ao genocídio/etnocídio. A implantação de
um modelo de desenvolvimento baseado na exploração humana e dos
recursos naturais contidos nas territorialidades desses povos, com suas
peculiaridades, resultaram em movimentos de resistência na luta pela
posse de suas terras e em relação ao dominador.
Entendemos que além disso é uma questão que não está resolvida,
mediante a conflitos constantes ligados à terra por toda América Latina,
mas que também ocorre com outras populações do Planeta, que se opõem
ou não aceitam o modo de exploração existente. Isso não quer dizer que
esses povos pretendem viver no isolamento, como afirmam alguns, e
18 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

tampouco abdicar de seus direitos, de modo que adotam estratégias


distintas, ora de aproximação, ora de recuo.

Introdução

No Brasil o processo de colonização adotado ao longo de sua


história oficial propiciou que muitas etnias fossem extintas ou
incorporadas na sociedade – ou seja, perderam suas raízes e identidades.
Restam na contemporaneidade cerca de 220 povos originários com
aproximadamente 800 mil pessoas ao todo1.
Neste sentido, as políticas de “desenvolvimento” projetadas para o
Brasil e particularmente na Amazônia e regiões de fronteira, não levaram
em consideração as populações ali residentes, diante do massacre e do
embate entre sociedades com percepções opostas de mundo (entendidas
como desenvolvimento, progresso e de outro lado o apego à preservação
ambiental e territorial).
Devemos considerar que as concepções indígenas e dos povos
tradicionais quanto à natureza, ao meio ambiente, ao desenvolvimento,
dentre outros conceitos, os quais possuem grande variância, visto que
cada etnia, cada coletividade, apresenta um modo singular de concebê-
lo e de apreender as relações que constitui como territorialidade
ou espacialidade, pois é nesta que estabelece seu modo de vida, sua
identidade.
Por outro lado, nem mesmo com a criação da Fundação Nacional
do Índio e de outros órgãos voltados à problemática da terra pelo
Governo Federal, com objetivo de desenvolver estratégias que permitam
a continuidade da existência desses povos, apesar da importância da
demarcação de terras foram suficientes para cessar os conflitos. Não é
algo simples de se resolver, pois existem os mais variados grupos de
interesses internos e externos com narrativas que tentam justificar
suas ações e o Estado muitas vezes encontram-se impotentes frente à
problemática. A esse respeito é oportuno a reflexão de Almeida e Pereira
(2009, p. 103):

1 Situação que se repetem com os povos tradicionais (ribeirinhos, caiçaras, raizeiros,


dentre outros) que sofrem pressões, visto que são despojados de seus territórios, são
invisíveis para o Estado e para a sociedade e se marginalizam – de ficar à margem – na
cidade e no campo.
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 19

Esse quadro, configurado por uma concentração do poder


decisório nas mãos do Estado, do qual se esperam resultado
e soluções para todos os problemas, retrata-se na dinâmica
empreendida ao se governar, ficando o povo subjugado à mercê
dos interesses e pressões de grupos mais poderosos. A divisão de
poder, portanto, não existe, o controle social mostra-se inócuo e
não apresenta resultados no que tange às inquietudes de alguns
segmentos, abrindo dessa forma espaço para reações diante das
insatisfações.

O olhar dos povos originários e tradicionais sobre o meio ambiente


é de respeito e gratidão pela possibilidade de retirar os alimentos que
darão continuidade a sua existência e de seus descendentes. Ademais,
estão intimamente ligados pelos valores ancestrais ou secularmente
construídos e por inúmeras referências, a todos os organismos que vivem
e integram o ambiente onde estabeleceram seus vínculos. Também por
esse motivo existem grandes expectativas ao modelo de desenvolvimento
sustentável, baseado na manutenção das necessidades presentes sem
comprometer o acesso a esses recursos pelas sociedades futuras.
A maneira de como esses povos, especialmente os indígenas,
constroem e entendem o trabalho se opõem ao que pensam os brancos2,
visto que estes, em sua maioria possui como objetivo enriquecer muitas
vezes utiliza mão de obra tão aviltante análoga à escravidão. As populações
tradicionais por sua vez têm o trabalho, como maneira de ganhar o pão
sem precisar por isso, tratar o outro como objeto. Filosoficamente e
eticamente ao usar o outro ser humano para conquistar lucros em favor
de uma pessoa e/ou um grupo é completamente errado. Porque, tal
atitude fere a condição humana.

A(s) territorialidade(s) tradicionais e originárias

Aqui nesse tópico trataremos sobre algumas características da


territorialidade. Digamos algumas, porque o conceito territorialidade
é muito complexo, para melhor entendimento a seu respeito, nossa
discussão inicia-se, por nossa escolha, com as abordagens desenvolvidas
por Sack (1986), em sua obra “Territorialidade Humana: sua teoria e
história”, em que desenvolveu entre vários assuntos aqueles relacionados

2 Terminologia usa pelos povos indígenas para diferenciar-se dos não indígenas.
20 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

aos povos tradicionais da Comunidade dos Chippewa da América do


Norte.
A definição de Sack (1986) para a territorialidade se inscreve nos
aspectos físicos, na delimitação por fronteira, isto é, uma classificação
por área, uma divisão territorial de um país para outro(s), como
exemplo a fronteira entre Brasil, Bolívia e Peru. Também pode ser a
demarcação de terras dos agrupamentos, coletividades comunidades
situadas no interior de uma determinada área, assim nessa perspectiva
existente uma territorialidade entre os brasileiros (os não indígenas) e as
coletividades tradicionais ou originárias.
Nessa mesma visão de estudar a territorialidade como algo físico
tem-se a contribuição de Friedrich Ratzel (1990) que nos dá o aporte
teórico para compreender melhor a definição de território como uma
determinada porção da superfície terrestre pertencente a um grupo de
pessoas.
No mundo todo, e especialmente no nosso país, assistimos desde o
início do processo de colonização a luta constante de povos tradicionais
e indígenas que reivindicam por suas territorialidades – as quais são
constantemente violadas – de modo que tem ocasionado tensões e
conflitos de toda ordem.
A partir dessas definições entendemos que ali existe uma fronteira
visível, palpável nessas divisões de territorialidade. Nesta mesma lógica
pode-se dizer que a territorialidade para os seres humanos é considerada
como uma estratégia geográfica poderosa que se permite ter o controle
sobre uma nação, um grupo de pessoas e coisas através de influência3
sobre uma determinada área por meio de leis ou tratados nacionais ou
internacionais. Os territórios políticos e a propriedade privada da terra
podem ser as suas formas mais familiares, mas a territorialidade ocorre
em vários graus e em inúmeros contextos sociais, conforme define Sack
(1990).
Outra definição de territorialidade e a qual consideramos a mais
ampla de abordar e de mais fácil compreensão sobre a territorialidade
dos povos originários e populações tradicionais é que se trata também
uma construção social, algo que é só possível entre as pessoas, ou seja, é
3 Essa argumentação é válida ao tratarmos de incorporações nacionais ou
internacionais, as quais exercem domínios territoriais sobre determinadas porções
terrestres, marcadas pela força e poderio do capital político-financeiro, mercadológico,
publicitário, dentre outros.
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 21

uma característica própria aos seres que têm condição de transformar o


território, o espaço, o lugar, em algo além. Com isso têm-se a qualificação
do espaço/território ao simbolismo ou representação simbólica dá
sentido a existência de línguas, comunicações, culturas e cria-se uma
relação harmoniosa entre as pessoas que habitam num determinado
lugar, rodeado de coisas e a própria natureza em si. Essas relações
são tecidas de tempo em tempo, horas em horas, tem um caráter de
complexidade e dinamismo, de maneira adquirem novos significados e
sentidos.
Ao inquirirmos sobre complexidade, temos claro que isso se
operacionaliza, pois nós vivemos em sociedades; cada pessoa raciocina
de maneira diferente, logo, não é fácil atingir um consenso de levar em
consideração o bem-estar do conjunto das pessoas que ali residem, mas
por ser o desejo de viver algo bem expressivo que um simples projeto
particular, resulta no predomínio de ações coletivas/comunitárias.
Ao estudarmos as territorialidades dos povos tradicionais e
populações originárias devemos entender que existe a necessidade de
mergulharmos profundamente nos fenômenos e elementos de suas
culturas, de seus valores constituídos, de suas relações estabelecidas
pessoais e coletivas que partilham territorialidades plenas de marcas
singulares de cada povo, dos seus entendimentos sobre a natureza, as
plantas, os animais, etc.
Para além disso, cada povo que vive no meio das florestas ou
bosques possui um contato mais íntimo com a natureza, isto é, com
menos intervenção do ser humano no seu sentido natural. Essas e outras
características de percepção, vivência, experiências, conhecimentos e
saberes, as quais contribuem para a distinção de identidades de um povo
a outro, visto que a relação estabelecida com o meio e com os valores
apreendidos por sucessivas gerações faz com que também se diferenciem,
até como contexto ético, daqueles praticados nas territorialidades de
matrizes ocidentais (TURNER, 1990).
Em razão das percepções, das vivências e das experiências nas
territorialidades, entendemos e concordamos com Claval (2000), em que
a vida de grupos de pessoas e seus afazeres não são puramente físicos ou
materiais. De modo que carregam elementos identitários e culturais de
seus lugares habitados e/ou vividos. Isso passa a não ser simplesmente
22 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

uma relação física, mas é também um fator subjetivo como emocional e


psicológica, é a lembrança, é a memória, é o pertencimento.
Em tais aspectos, as relações, os códigos de linguagem, os valores
familiares, os valores coletivos e emoções aparecem aí como elementos e
fenômenos de resistência e resiliência que corroboram com os sentimentos
de pertencimento às territorialidades. Assim, compreendemos que
territorialidades e identidades constituem um conjunto indissociável em
virtude do processo construído singularmente em cada povo.
Acreditamos que a língua nativa, valores espirituais, sociais e
culturais dos povos originários e populações tradicionais funcionam de
uma maneira geral, como “marcadores territoriais”, como elementos
de territorialidade na convivencialidade de cada um desses coletivos
humanos. Sobre “marcador territorial” Almeida Silva (2010, p. 105)
define esse conceito da seguinte maneira:
São experiências, vivências, sentidos, sentimentos, percepções,
espiritualidade, significados, formas, representações simbólicas
e presentificações que permitem a qualificação do espaço e
do território como dimensão das relações do espaço de ação,
imbricados de conteúdo geográficos.

A partir dessas considerações oportunizadas por Almeida Silva, ao


identificarmos a língua nativa, os valores intrínsecos a cada povo como
elementos estruturantes de “marcadores territoriais”, passamos a cultura
e a identidade são indispensáveis ao ser no processo de construção da
territorialidade como componentes centrais das (re)existências para
manter firme suas condições de apreensão cultural que se distingue em
relação a outro povo, mesmo que habite o mesmo território.
Na territorialidade é possível compreender a maneira como as pessoas
se relacionam entre si, o usufruto que fazem com a terra e a percepção
de como se organizam no espaço, o sentido que dão aos espaços/lugares
habitados por elas habitados. Para entender essa relação que existe entre
o ser humano, sua morada e a natureza faz-se necessário abordar as
perspectivas de Dardel (2001 [1952]), em que apresenta a geografia
dentro da abordagem fenomenológica. Outras abordagens teóricas e
metodológicas são possíveis para se analisar territorialidades, no entanto,
por escolha adotamos no presente capítulo, aquela que julgamos como
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 23

sensível, que contêm elementos e fenômenos da subjetividade e com isso


possui um predomínio na narrativa discursiva proposta por nós.
Através dessa concepção fenomenológica, Dardel nos possibilita um
estudo aprofundado acerca dos objetos e dos ambientes que integram
o espaço onde este passa a ser vivido e construído a partir das relações
de seres sociais, os quais carregam sentimentos, conhecimentos e
saberes através da compreensão de cada singularidade ou de cada objeto
presente na espacialidade/territorialidade. Nas constatações do autor
fica claro que o ser humano tem ou deve ter uma relação estreita com a
Terra, como fonte de vida. Esta parece ser a percepção e o sentido dado
pelas populações tradicionais e indígenas nos mais variados recantos do
Planeta.
Os geógrafos e filósofos passam a estudar o espaço geográfico desde
muito tempo não mais como o “espaço imutável” proposto por Isaac
Newton no século XVII, isto é, sem a intervenção humana ele é o que
é. A definição newtoniana do espaço, não era muito enriquecedora, por
ser estático, até pode-se dizer que sem vida, o que não possibilitava ao
ser humano de se mostrar o que realmente é na sua essência, isto é, na
sua capacidade de criar e recriar. Assim não precisava da presença do ser
humano para existir, pois o espaço seria o que sempre foi.
A partir do filósofo alemão Kant (1724) no século XVIII a noção
geográfica passa a ser estudada como uma construção social, em vista
de depender das relações sociais, ou seja, aquelas que os seres humanos
estabeleciam entre si para viver melhor num mundo como condição
de um ser pensante. Essa ruptura epistêmica permite ao ser humano
criar um espaço onde possa viver como pessoas responsáveis sobre o
andamento do mundo no qual está inserido, ou seja, sai do imobilismo
e torna-se protagonista dessa (re)construção ou (re)configuração. É o
espaço e o ser humano em movimento. É a territorialidade e a identidade
que se conectam dinamicamente.
Em tal sentido, a concepção do espaço como uma construção social
reafirmado por Moreira (2009) diz respeito que “é um fator social”, e
com isso nos remete à ideia de que o espaço é um produto do ser humano
através de convivência. Possível dizer também que o espaço construído
é algo histórico porque ele é realizado num determinado tempo e lugar
por um grupo de pessoas, o qual atribui qualidades e que resulta numa
territorialidade. Os vários ambientes da terra dotados de informações
24 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

a serem descobertas possibilitam o estudo dos ambientes naturais e


daqueles materializados com o tempo. A quebra de paradigmas colocados
por tanto tempo sobre os ambientes terrestres é o grande objetivo de
Dardel (2001 [1952]).

Breve nota sobre os povos indígenas

Durante muitos anos a costa atlântica brasileira foi ocupada por


povos originários, que de modo muito singular organizavam suas
coletividades étnicas e estabeleciam relações de sobrevivência e formação
cultural e espiritual com a natureza. Com a implantação do modelo de
colonização ocidental, seus modos de vida foram ressignificados, isto é,
agregaram-se novos valores culturais, sociais e morais, os quais entraram
em conflitos com aqueles ancestralmente construídos internamente e os
provenientes de outros povos originários.
No início do processo civilizatório ocidental existiam agrupamentos
linguísticos indígenas numerosos em termos étnicos e quantitativos
como os falantes Tupi, Gê, Aruake e outros menores (RIBEIRO, 1995), de
modo a compor grande diversidade étnica, consequentemente, culturas
significativas. A colonização não só transformou a natureza onde
essas coletividades originárias, como também significou a perda das
territorialidades, em função da pressão física (inclusive com genocídio
e etnicídio), a subjugação/negação de seus arranjos sociais, culturais
e espirituais, de modo que muitos dos que sobreviveram tiveram que
aprender e se adaptar a língua e aos valores impostos pelos dominadores.
Nesse processo marcado por diferentes tragédias pessoais e coletivas
com repercussão nas territorialidades, os colonizadores ocasionaram na
vida desses povos originários uma série de problemas como a escravidão
da mão de obra, a disseminação de doenças não conhecidas por esses
povos, massacres, dentre outros fatores que resultaram na diminuição
dos efetivos humanos de muitas etnias e até a eliminação de várias
outras. É imperativo mencionar que várias frentes de resistências dessas
populações originárias ao longo da história brasileira, todavia, não
será nosso objetivo em detalhá-las, em função das especificidades que
ocorreram em cada uma delas.
O processo intenso de exploração das terras brasileiras baseado
na extração dos recursos naturais obrigou que grande parte desses
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 25

indígenas, como estratégia, deixasse seu território e fosse para outro –


muito mais distante e com menor pressão. Caso contrário, teriam que se
adaptar com o colonizador e participar desse processo de transformação
espacial e construção do espaço geográfico.
Essas migrações forçadas, entretanto, não ocorreram de forma
pacífica, foram momentos de luta e resistência dos indígenas, na tentativa
de não só manter suas terras protegidas, bem como os meios vitais à
sua sobrevivência, de modo a perpetuar sua ancestralidade, o modo de
vida dos povos, à sua própria narrativa histórica e a seu pertencimento
identitário.
Porém, o fato de migrarem para outras porções territoriais
apresentava embates com outros originários que estavam estabelecidos
anteriormente, o que resultou em conflitos e guerras “tribais” sérias,
fenômeno esse que se repete atualmente em regiões de fronteiras,
especialmente na Amazônia, como é o caso de indígenas peruanos que
por serem ameaçados por grupos econômicos em seu país adentram o
território brasileiro, no Acre, e se deparam com outros povos indígenas,
com outras línguas e outros valores culturais, com outros modos de
organização social, dentre outras questões inerentes a essas populações.
Se no passado esses povos originários marcavam suas
territorialidades de modo perene, com o estabelecimento do Estado-
Nação e suas fronteiras (geo)políticas, essas territorialidades se
reconfiguram, se redefinem, se estabelecem com relações marcadas ora
por aproximações, ora por animosidades.
A Figura 1 demonstra as etnias indígenas existentes e dispersas
geograficamente no território nacional antes da chegada dos portugueses
(áreas coloridas), em contrapartida os círculos indicam os remanescentes.
O processo de transformação e ocupação dessas terras foi inevitável
frente ao colonizador e a partir dos ciclos econômicos estabelecidos.
A ocupação tardia do oeste brasileiro proporcionou a algumas etnias
indígenas a possibilidade de se manterem dentro de seus territórios e
manterem suas culturas e identidades, apesar que, em alguns casos, com
elevada influência da sociedade envolvente.
Fato que as coletividades originárias na contemporaneidade não
têm a mesma formação cultural, muito menos a mesma visão sobre
os não indígenas e vice-versa. Durante o período da colonização
portuguesa os indígenas faziam parte dos planos dos colonizadores e
26 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

foram dominados culturalmente, economicamente e politicamente.


A dominação e apropriação de suas terras não eram entendidas por
esses povos indígenas como como parte de uma política expansionista
europeia, marcada pela sua submissão e exploração de sua mão de obra,
quanto dos elementos da natureza. Mesmo porque a única experiência
desses povos em relação à disputa se limitava aos conflitos territoriais
entre diferentes etnias.

Figura 1 – Distribuição dos grupos indígenas no Brasil colônia e atual


Fonte: História (2017, p. 1).

O genocídio causado a tantos outros indígenas, que levou algumas


etnias ao extermínio, foi fator determinante para a criação de leis e áreas
demarcadas e protegidas pelo Governo Federal, como tentativa de manter
a história desses povos em todo território, entretanto, ressaltamos que
no caso da Amazônia, não estão imunes ao avanço da frente expansiva
que ocorre na região.
No caso das territorialidades consolidadas (terras demarcadas) os
problemas são outros, igualmente sérios, que muitas vezes vai de uma
territorialidade artificializada à pressão externa pelas riquezas (madeira,
minérios, dentre outros) e pressão interna em decorrência do território
reduzido, o qual resulta na escassez de alimentos (caça, pesca, etc.).
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 27

Deste modo, esses povos estrategicamente se reinventam em suas


territorialidades, como estratégia de sobrevivência, como considera a
perspectiva oportunizada por Latour e discutida por Viveiros de Castro
(2016, p. 10) que “os modos de existência necessitam serem instaurados,
isto é, receberem suas condições próprias de articulação”, essa se
operacionaliza pelo protagonismo político dessas populações dentro e
fora do país.
O protagonismo ocorre a partir da consciência adquirida dos
etnoconhecimentos herdados dos antepassados e se consolidam com o
posicionamento das novas gerações, como bem situa as lideranças atuais,
como bem expressa Luciano (2006, p. 17) que “os povos indígenas não são
seres ou sociedades do passado. São povos de hoje, que representam uma
parcela significativa da população brasileira e que por sua diversidade
cultural, territórios, conhecimentos e valores ajudaram a construir o
Brasil”.
Nesse processo é que as territorialidades se afloram e com ele o de
ressurgimento, de reindigenação dos povos invisibilizados, o que Linhart
et al. (2016?, p. 7) a partir das considerações de Palitot (2005) pontuam
como uma das estratégicas que resultou em uma consciência elevada
em relação aos diacríticos que separam o imaginário “indígena” do
“ocidental”, ou seja, dos elementos culturais considerados genuinamente
“indígenas” que os justapõem aos considerados “ocidentais”.
No entanto, é preciso considerar a trajetória histórica ocorrida no
país. No quadro 1 apresentamos os dados demográficos da população
indígena no Brasil entre os anos de 1500, ou seja, antes da chegada dos
portugueses ocorrido no século XVI, intensificado em 1534, até o ano
de 2010. Os dados foram divididos entre povos que residiam no litoral
brasileiro, uma extensa faixa de terras banhadas pelo Oceano Atlântico;
o outro que trata do interior é relativo aos indígenas da porção central e
norte do país.
Os dados revelam que o processo colonizador trouxe graves e
profundas mudanças para os povos originários, ao ponto de em 2010
representar pouco mais de 25% do que fora estimado na fundação do
Brasil; o efetivo populacional desse segmento apesar de experimentar um
crescimento nas últimas quatro décadas, estaticamente é muito ínfima
e apresenta aproximadamente 0,20% da população total brasileira. O
ano mais crítico em termos quantitativos foi o de 1957 com um total de
28 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

70.000 indígenas, o que significou a quase extinção dessas populações


(Quadro 1).
Dados demográficos da população indígena no Brasil

Indígenas/ Indígenas/
Ano Total % Pop. Total
Litoral Interior
1500 2.000.000 1.000.000 3.000.000 100,00
1570 200.000 1.000.000 1.200.000 95,00
1650 100.000 600.000 700.000 73,00
1825 60.000 300.000 360.000 9,00
1940 20.000 180.000 200.000 0,40
1950 10.000 140.000 150.000 0,37
1957 5.000 65.000 70.000 0,10
1980 10.000 200.000 210.000 0,19
1995 30.000 300.000 330.000 0,20
2000 60.000 340.000 400.000 0,20
2010 272.654 545.308 817.962 0,26
Quadro 1 – População indígena no Brasil (1500-2010)
Fonte: Azevedo e Marta Maria, 2013 apud Brasil, 2018.

A análise do quadro nos permite até chegar a dados importantes


no tocante as políticas de integração desenvolvidas no interior do país
a partir da década de 1950 com o objetivo de desenvolver e ocupar a
imensidão amazônica considerada um verdadeiro vazio demográfico.
Entre os anos de 1950 e 1957 a população indígena reduziu em mais de
50% sua população registrada no interior do país.
A abertura de estradas, loteamento de terras, incentivo à derrubada
da floresta para implantação de áreas agrícolas eram ações primordiais
e necessárias defendidas pelo Governo Federal para o desenvolvimento
amazônico e integração ao restante do país. Becker (1998) apud Ravena
e Cañetei (2007, p. 2) afirma que a região amazônica foi “sempre
pensada como um vazio demográfico a ser habitado pelo restante do
país, sem considerar suas populações residentes (caboclos, seringueiros,
ribeirinhos, pescadores, índios, quilombolas, camponeses, etc)”. Neste
contexto, cabem as colocações de Soares e Locatelli (2018, p. 6):
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 29

O espaço de mata nativa dá lugar ao desenvolvimento das


atividades dos setores primários, secundários e terciários. O
avanço da ocupação humana e introdução de suas técnicas de
produção e desenvolvimento causam cada vez mais pressão sobre
a floresta nativa e os povos que dela diretamente sobrevivem.

A situação da ação territorial na Amazônia não difere em muito


do verificado em outras regiões brasileiras, o diferencial é apenas a
temporalidade que ocorreu primeiro no litoral e depois se direcionou
para o “sertão” brasileiro, como expansão da fronteira econômica, de
modo que promoveu e promove os (re)arranjos territoriais, os quais
são marcados a partir de meados da década de 1950 pela urbanização
do país e consequentemente da modernização no meio rural, os quais
tem repercussões territoriais profundas, muitas vezes motivadas pelos
ambientes externos que compõem a economia internacional.
Apesar de toda a adversidade é indispensável fazer menção às políticas
voltadas aos povos originárias, que mesmo de material transviada são
importantes para compreender as territorialidades atuais. Assim, a
criação da Fundação Nacional do Índio - FUNAI pela Lei nº 5.371, de
05 de novembro de 1967, em substituição ao Serviço de Proteção ao
Índio, com todas as críticas e ressalvas à sua atuação constituiu-se como
importante aliada à manutenção da diversidade sociocultural desses
povos, assim como de outros órgãos voltados às populações tradicionais,
pois permitiram, mesmo que precariamente, na demarcação de terras
e territórios indispensáveis à continuidade de seus modos de vida e
garantia de direitos alienáveis como a vida.
Por outro lado, existem discursos que negam a importância dos
indígenas e povos tradicionais na construção do país, pois essas populações
são vistas na lógica do capital como obstáculo ao desenvolvimento. Desse
modo, ao pontuar sobre os povos originários e que podem ser estendidas
aos tradicionais, na mentalidade da sociedade, infere Luciano (2016, p.
17) infere que esses são:
[...] Preguiçosos, improdutivos, empecilhos para o
desenvolvimento. Outros os classificam como valiosos protetores
das florestas, dos rios, e possíveis salvadores do Planeta doente
em função da ambição de alguns homens brancos que estão
devastando tudo o que encontram pela frente.
30 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Tal crítica, por outro lado, resulta em resistência e a necessidade


de articulação política, visto que esses povos (indígenas e tradicionais)
compreendem que existe a necessidade de proteção territorial, o que
inclui a manutenção das áreas florestas, assim como das relações com o
meio ambiente, com a cultura e a organização social, política e dos vários
fenômenos, inclusive de referência espiritual.
Essas populações até pelos princípios estabelecidos na Constituição
de 1988 possuem direito do usufruto exclusivo das terras que
tradicionalmente ocupam e habitam, entretanto, é indispensável que
o Estado além de garantir os meios legais de posse, deveria assegurar
condições de segurança física (fiscalização e vigilância) territorial e
ambiental. Neste quesito, essas territorialidades, em tese, seriam espaços
produtivos necessários à subsistência (segurança) alimentar, cultural e
até como espaços de reprodução física e cultural dessas populações.
A regularização desses territórios não garante exclusivamente
a proteção dos povos originários e tradicionais com suas culturas,
espiritualidades, organizações sociopolíticas, mas também o uso
sustentável dos recursos naturais renováveis, o que inclui a biodiversidade,
indispensável à manutenção da vida humana e do Planeta.
Entretanto, trata-se de uma agenda política com grande complexidade
no sentido oportunizado na descrição moriniana, pois é uma via com
muitas mãos plenas de intencionalidades, as quais tem gerado inúmeros
tensões e conflitos, devido ao jogo de influências e interesses internos e
externos.
A apropriação indevida de territorialidades indígenas e tradicionais
para a retirada de recursos naturais, tem se constituído como um trunfo
de poder sobre os territórios (RAFFESTIN, 1980 [1993]) para subjugar
esses povos, de modo que demonstra as fragilidades dos órgãos estatais
na condução de políticas públicas.
Em outras palavras, trata-se da necropolitics, conceito desenvolvido
por Mbembe (2003), cujo sentido é relacionado ao poder, à soberania
– entendemos como interligado ao território e às territorialidades – na
qual enfoca o poder e capacidade de determinar aqueles que podem
viver ou morrer.
Na apreciação do que definem Raffestin e Mbembe, o território é
palco de movimentadas tensões e dinâmicas em que se manifestam
poder, logo, trata-se de um espaço de embates que se realizam com as
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 31

materialidades, como perspectiva da sobrevivência física e material) e


acrescentamos as subjetividades – entendidas como representações
necessárias à vida, por meio dos fenômenos e elementos simbólicos.

Relação dos indígenas e povos tradicionais com o meio ambiente e


trabalho

Por meio ambiente se compreende o espaço que permite o


desenvolvimento de todo tipo de vida na superfície terrestre. Não é
unicamente o espaço de onde os indígenas ou povos tradicionais retiram
seu sustento, por não concebem os recursos naturais tão-somente como
fontes que viabilizam a continuidade de sua existência, senão como
meio indissociável da subjetividade presente em cada pessoa. Ademais
cultuam valores espirituais que tem suas raízes fortemente entrelaçadas
em vários elementos presentes no meio ambiente e por eles demonstram
respeito e gratidão.
Neste sentido, é oportuno destacar como considera ISA (2018, p.
1) que os povos indígenas “[...] desenvolveram formas de manejo dos
recursos naturais que têm se mostrado fundamentais para a preservação
da cobertura florestal no Brasil”. Do mesmo modo, pode-se dizer que
as populações tradicionais possuem semelhante nível de apreensão no
trato com o meio ambiente, pois este é a fonte de sustento para sua
sobrevivência, como exemplo tem-se as quebradeiras de coco, os
raizeiros, os faxinalenses, as comunidades de fundo de pasto, os praieiros,
dentre outros, que desenvolveram técnicas que conciliam a preservação/
conservação com o desenvolvimento.
Não obstante a essa proximidade entre os indígenas, as populações
tradicionais com os recursos naturais e a demarcação territorial, serviu
também como forma de preservar as riquezas vegetais e minerais
presentes nesses espaços geográficos. Além disso, esse processo reflete
diretamente sobre outras esferas, como a conservação das nascentes de
água, diminuição do desmatamento e queimadas e a não modificação da
temperatura em esfera local, resultantes principalmente dos dois últimos
processos citados. Aqui abrimos um parêntese sobre a importância dos
povos originários – que poderia ser estendido às populações tradicionais
– de acordo com o contextualizado por ISA (2018, p. 1):
32 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

[...] Aos povos indígenas se deve reconhecer o crédito histórico


de terem manejado os recursos naturais de maneira branda.
Souberam aplicar estratégias de uso dos recursos que, mesmo
transformando de maneira durável seu ambiente, não alteraram
os princípios de funcionamento e nem colocaram em risco as
condições de reprodução deste meio.

Claro que diante dessa realidade o modelo econômico praticado


pela maioria dos povos indígenas e populações tradicionais é baseado
no desenvolvimento sustentável – mesmo que não exista um consenso
sobre esse conceito, que é utilizado sob maneira ao jogo de conveniências,
e que não objeto de nosso estudo retratá-lo no presente ensaio.
Entendemos que obviamente, seria uma contradição a demarcação
dessas áreas, caso a cultura e a forma de trabalho e utilização do solo e se
todos os elementos estivessem aliados ao modelo econômico hegemônico
vigente, ou seja, exploração e apropriação desenfreada desses recursos.
No modelo sustentável – em tese, a depender da percepção de quem
o comanda – há a preocupação de não exigir da natureza mais do que ela
é capaz suportar ecologicamente, com a finalidade de preservar os ciclos
naturais e com criatividade, usar o que a natureza proporciona como
fonte para obtenção renda. É essencial, de acordo com o MMA (2018, p.
1):
[...] Promover a gestão ambiental participativa das terras
indígenas, por meio de planos, projetos e estruturação da
capacidade de gestão etnoambientais, bem como atuar como
interveniente nos processos de licenciamento ambiental de
empreendimentos que possuam significativo potencial de
impacto sobre as terras e povos indígenas.

Não é surpresa a ninguém que o trabalho ocupa um lugar de grande


importância na vida de todas as pessoas ou de todas as sociedades tanto,
na sociedade envolvente ou abrangente quanto nas dos indígenas e
povos tradicionais. Porém, observa-se uma diferença significativa entre a
sociedade com perfil urbano-industrial daquelas que vivem em pequenas
coletividades situadas em grotões, pés-de-serras, florestas, bosques, rios,
mangues, dentre outras, com diferentes meios e tecnologias de produção.
No caso da nossa sociedade deparamo-nos com três categorias
diferentes ao mergulharmos no mundo dos trabalhadores. Na primeira
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 33

categoria estão aquelas que passam a vida inteira dedicada ao trabalho,


sem ter tempo pelo lazer, família e nem para si mesmo, pois respiram,
sonham, enfim passam a ser escravos do trabalho.
Na segunda categoria situam-se aquelas que usam o outro como
escravo para obterem seus lucros, pois veem o trabalho como exploração
e assim subjugam os demais, muitas delas para obter benefícios usam
de artifícios desonestos e desumanos, isto é, o fato de não conseguirem
enxergar no outro uma pessoa como a si mesmo, mas sim como objeto.
Situações essas estão muito presentes nos países pobres como é o caso
da Índia e em muitos países da África e América Latina onde o valor da
mão de obra é muito ínfimo.
Na terceira e última categoria estão as pessoas que compreendem
o trabalho como um modo digno de conseguir o que precisa para viver
dignamente, por exemplo: alimentação, moradia, meio de locomoção, etc.
O interessante dessa análise é que os indígenas e os povos tradicionais –
de maneira geral – se incluem nessa categoria. Na percepção da sociedade
hegemônica, nessa categoria estão os “não civilizados”, os quais são
tratados como indolentes, pelo fato de não acumularem riquezas ou
guardarem algo para seu futuro – esses valorizam o presente e acreditam
que a natureza mãe disponibilizará o que precisam, como tem feito ao
longo da trajetória histórica de sucessivas gerações.
Aqui podemos aprender duas coisas com a visão dos indígenas e
povos tradicionais sobre o trabalho. No primeiro momento é a confiança
que possuem na natureza, onde sempre haverá alimento no futuro, logo
não necessitam poupar e acumular riquezas. Pensar desse jeito, além
de confiar na natureza, implica também um cuidado com a mesma, por
isso se vêm tão conectados à ela que não fazem diferença, valorizam
tudo o que tem ao seu redor, e cada elemento presente é uma dádiva
oferecida por um ser superior – daí a forte marca da espiritualidade que
ocorre nessas coletividades em seus territórios; a ausência ou supressão
de um determinado elemento no território possui desdobramentos que
influencia todo seu conjunto de mundo, por isso o apego territorial.
Em tal nível de abordagem sobre a territorialidade, o trabalho e a
valorização da pessoa é que recorremos às análises da filósofa alemã
Hannah Arendt (2007), que nos motiva sobre a importância de valorizar o
“Ser”, ao invés do “Ter”, contudo, na contemporaneidade assistimos a um
grande vazio onde o ser humano pelas ganâncias esquecem o essencial
34 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

de ser humano. Nessa visão, Hannah Arendt vem nos servir de base para
dizer que o olhar dos indígenas e povos tradicionais sobre o trabalho é
muito mais humano na perspectiva situada na terceira categoria, em
que as pessoas vêm no outro um meio para chegar à felicidade – mesmo
que para a sociedade não coletiva pense ao contrário e considere os
desapegados de bens materiais como arcaicos ou fora do tempo.
Neste sentido, compete aos seres humanos a tomada de consciência
que deverão mudar a visão sobre o outro não como objeto e sim como
pessoa; assim seremos capazes de contribuir para um mundo melhor,
onde no trabalho exista respeito e valorização, pois é algo sagrado e
necessário ao desenvolvimento humano. Todo trabalho humano tem
vínculo direito com a natureza, conforme afirma Dardel.
Este autor (2011 [1952]) em sua obra “O Homem e a Terra: natureza
da realidade geográfica” esclarece-nos muito bem a relação que os seres
humanos têm com a Terra, e leva-nos a compreender que a partir da
geografia humanista a composição de vários ambientes terrestres com
seus elementos são indispensáveis à nossa própria sobrevivência e como
tal é inegociável.
Desse modo, entendermos a importância de olhar de cada um com
inteligência, significa aprender a valorizar o que está ligada à nossa vida.
Se descuidarmos de qualquer elemento que compõem a natureza nos
inviabilizamos a nós mesmos, nossas próprias vidas e nesse contexto as
vivências dos indígenas e populações tradicionais é um dos caminhos
possíveis para prosseguirmos como espécie na Terra.
Em tal sentido, é oportuna a afirmação de ISA (2018, p. 1):
A relação entre os índios e a natureza é pautada por dois
elementos básicos: respeito e equilíbrio. O relacionamento que
também envolve o afeto faz com que os índios vivam uma relação
mais próxima e sagrada, como se a terra fosse a grande mãe.

Respeito e equilíbrio parece-nos a estrutura basilar para termos o


entendimento intenso sobre territorialidades e identidades, pois é desse
conjunto que se explica e deveria ser o caminhar da humanidade.
TERRITORIALIDADES, IDENTIDADES ORIGINÁRIAS 35

Considerações últimas

Ao partirmos para as considerações últimas do presente ensaio,


acreditamos ter esclarecido várias características distintas entre
indígenas, populações tradicionais e sociedade envolvente/abrangente.
Uma das mais evidentes é sobre os modos de vida, apreensões de
territorialidades e de identidades, organizações sociais e culturais,
relações com a natureza – o que incluem as espiritualidades – de modo
que por terem outros valores, são considerados pela sociedade envolvente
como preguiçosos, improdutivos e que impedem o desenvolvimento.
Por outro lado, contam com aliados na mesma sociedade que os
excluem, devido seus entendimentos do meio ambiente, pela lição de
vida, por suas vivências e experiências e passam a ser classificados
como valiosos protetores das florestas, dos rios, e possíveis salvadores
do Planeta, o qual está doente em função de pessoas desumanas que
devastam tudo o que encontram pela frente, com o único objetivo de
ter e aferir lucros, sem pensar nas graves consequências que deixarão
às gerações vindouras. Não é um segredo a ninguém, que ao destruir a
natureza condenamo-nos a um futuro incerto.
A política da demarcação de terras indígenas e de povos tradicionais
não é uma simples questão de garantir somente a integridade física
dessas populações, seus valores e modos de vida, sobretudo, é uma ação
do governo para a preservação/conservação da natureza.
O cuidado e manejo realizado por esses povos em suas
territorialidades demonstra-nos desde tempos pretéritos até aos dias de
hoje que existe uma luta incessante sobre a importância com o meio
ambiente, pois é dele que extraem o necessário para viver sem causar-
lhe danos. É o princípio do respeito e do equilíbrio, visto que os objetos e
seres presentes nas territorialidades integram o mesmo universo – o da
vivência e exercício das identidades.
Na lógica desses povos observamos uma diferença muito enorme,
na produção de alimentos para suas coletividades em que seus membros
possuem a satisfação em trabalhar, muitas vezes de modo comunitário
e partilhar do que foi produzido ou adquirido em caçadas, pescarias,
dentre outras. Assim, veem o trabalho como uma forma digna de
conseguir o que precisa para viver dignamente, ou seja, extrair da
36 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

natureza apenas o necessário, sem a preocupação de armazenar para


especular economicamente.
Por outro lado, parte da sociedade envolvente/abrangente possui
outro nível de compreensão, o qual consiste em acumular riqueza a
qualquer custo, com isso deixa de ver no outro simplesmente uma força
de trabalho, mas como algo que elimina a liberdade das pessoas em
trabalharem dignamente.
A territorialidade dessas populações através dos seus modos de
ser, de enxergar e valorizar a vida e o outro, a relação com o trabalho,
convida-nos a buscar a ter uma relação digna e honesta, de modo que
cada ser humano se sinta valorizado na sua essência, um ser pensante
capaz de opinar sobre si e a coletividade, de respeitar os demais e o meio
como fonte de todos os tipos de vidas existentes.
Neste sentido, o conceito de marcadores territoriais nos oferece
condições de entender que cada povo independentemente da sua cor,
etnia, língua, cultura e espiritualidade e arranjo sociopolítico carrega
características peculiares materiais e simbólicas. São marcas que
os distinguem de outros povos, e para compreendê-los é necessário
respeitá-los e um dos caminhos para a visibilidade – caso entendam como
indispensável – é a realização de estudos específicos que os mostrem
como realmente são.
É possível afirmar que na convivência dessas populações o respeito
e o equilíbrio são condição sine qua non para uma melhor compreensão
de suas territorialidades e identidades. Esses dois elementos desses
povos explicam o grande afeto que estabelecem entre si, com outros e na
relação íntima que possuem com a terra e tudo que nela existe.

Apoio: Projeto “Geografia e marcadores territoriais: sentidos e


representações socioculturais amazônicas” – Edital: Chamada 003/2017
– PQR – Termo de Outorga: 042/2017; Processo: 01.1331.00031-
00.042/2017.

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Movimento político-identitário em comunidades
tradicionais do Paraná: liderança, engajamento e
territorialidades

Tanize Tomasi, Renato Pereira

Os movimentos de articulação político-identitária quilombola


iniciam-se em 1995 com a instituição da Coordenação Nacional das
Comunidades Negras Rurais Quilombolas – CONAQ, como estratégia
de defesa de seus territórios (LITTLE, 2002). No Estado do Paraná em
2010 houve a articulação das lideranças das associações quilombolas na
constituição da Federação das Comunidades Quilombolas do Paraná –
FECOQUI, em contrapartida a sua invisibilidade. Também começaram
a se consolidar no último lustro os “faxinais”. As lideranças locais das
associações faxinalenses instituíram em 2005 a Articulação Puxirão dos
Povos Faxinalenses - APF.
O impulso para a ascensão da categoria e diferenciação para
abarcar identidades coletivas tradicionais e os seus direitos às “terras
tradicionalmente ocupadas” se deu pela Convenção 169, da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), estendendo-se para além dos povos
indígenas, os seringueiros, quilombolas, extrativistas amazônicos,
ribeirinhos, pescadores artesanais, quebradeiras de coco babaçu, ciganos,
pomeranos, geraizeiros, povos de terreiro, comunidades de fundo e
fechos de pasto, faxinalenses e pantaneiros.
Os sujeitos tradicionais passaram a assumir o direito de reivindicar,
acima de tudo, sua identidade étnica, cultural, econômica e social. A
pluralidade implícita na noção de “povos” angariada pela convenção
possibilitou o reconhecimento da diversidade de agrupamentos tornados
invisíveis pelas pretensões oficiais de homogeneização jurídica da
categoria “povo” desde o período colonial. Com a política da expansão
das fronteiras, a categoria vinculou-se a resistência dos sujeitos aos seus
territórios frente à usurpação por parte do Estado-nação e outros grupos
sociais vinculados a este (ALMEIDA, 2008).
Contudo, com o movimento ambientalista centralizado na vertente
preservacionista até a década de 1930 a categorização das “comunidades
tradicionais” esbarrava na concepção de “áreas protegidas” enquanto
consagração, valoração e apreciação da natureza no seu estado “intocado”.
40 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Os sujeitos sociais residentes passam a ser vistos exclusivamente como


limitantes a implementação plena das metas dessas unidades. Apenas a
partir de 1980 no Brasil com o sobressalto da vertente socioambientalista
se tem a adoção de um viés em defesa ao desenvolvimento sustentável
e a presença dos povos tradicionais como autogestionários das reservas
legais (LITTLE, 2002).
Os critérios político-organizativos à acessão do direito constitucional
do território estão associados a política de desenvolvimento sustentado
acionada por uma memória coletiva e historicidade vivenciada
combinada com uma “política de identidades”, pelo autorreconhecimento
de uma identidade coletiva e da tradicionalidade de um território. Estas
justificam-se por ações pontuais e relativamente dispersas, focalizando
fatores étnicos, mas sob a égide de outras políticas governamentais, tais
como a política agrária e as políticas de educação, saúde, habitação e
segurança alimentar.
O fator identitário ressaltado pelas políticas públicas vigentes aos
sujeitos tradicionais transpõem-se ao agrupamento sob uma mesma
expressão coletiva, a autodeclaração, a afirmação de uma territorialidade
específica e ao encaminhamento pelo associativismo. Em contrapartida,
tais comunidades vivenciam um processo de desestruturação identitária
por movimentos externos político-administrativos e/ou a reestruturação
de uma identidade vinculada a distintas territorialidades, que tornam
seus territórios mais autônomos e estrategicamente abertos ao ir e vir,
ou, ainda a um estar/transitar entre territórios.
O movimento de (des)articulação que se observa hoje em torno
do processo de autodeclaração dos sujeitos sociais faxinalenses e
quilombolas por identidades coletivas no Paraná coexiste entre um
movimento externo acadêmico-político de autorreconhecimento que
vincula identidade a um território e/ou territorialidade bem definida. Os
desdobramentos nas formas de associação política a partir de 1988-89,
conforme Almeida (2008), desvinculam-se de uma entidade sindical ao
incorporar fatores étnicos, elementos de consciência ecológica, critérios
de gênero e autodefinição coletiva. As comunidades tradicionais,
faxinalenses e quilombolas, impulsionadas pelos aparatos legais passam
a agrupar-se em torno de associações internas, mesmo que para algumas
estas representem uma etapa mais recente.
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 41

No estado do Paraná na área rural dos municípios de Ponta Grossa


e Campo Largo, justapõem a este movimento recente de ascensão dos
territórios pelas identidades coletivas a Comunidade Remanescente
Quilombola Palmital dos Pretos e o Faxinal Sete Saltos de Baixo
(Cartograma 1). O recorte temporal compreende de 2005 até hoje quando
se iniciaram as atividades do Grupo de Trabalho Clóvis Moura com a
identificação e reconhecimento das comunidades quilombolas, e, de 1997
até hoje quando se efetiva as Áreas Especiais de Uso Regulamentado –
ARESUR legitimando o Sistema Faxinal. O recorte espacial e temporal
justifica-se por serem áreas circunvizinhas que vivenciam o fenômeno
da categorização de “comunidades tradicionais”, compartilham uma
mesma dinâmica regional-local, mas que permitem especificidades pelas
formas de (des)articulação político-identitária que emergem.

Cartograma 1 – Localização das comunidades tradicionais


Fonte: Pereira; Tomasi, 2018.

A problemática desvela-se em torno da legitimação do território-


identidade e do movimento político-administrativo. De que maneira
a efetivação das políticas territoriais justapostas às territorialidades
contribuem para o processo de (des)articulação político-identitário e das
distintas formas de associativismos e agrupamentos sociais? O argumento
de que o processo de autoafirmação étnica esbarra no reconhecimento
político pela categorização “Faxinal e Comunidade Remanescente de
Quilombos” acaba por redesenhar as distintas situações de organização
42 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

social, as estratégias das práticas e vivências de sujeitos transterritoriais


ou mesmo transidentitários.
Diante disso, tem-se o objetivo de entender o processo de (des)
articulação político-identitária na Comunidade Remanescente Quilombola
Palmital dos Pretos e Faxinal Sete Saltos de Baixo - PR pela insurgência
da categorização “povos ou comunidades tradicionais”. E como objetivos
específicos a pesquisa busca identificar as territorialidades engendradas
com o processo de reconhecimento político; entender em que escala
os sujeitos se engajam político-identitariamente; e, compreender a
dinamicidade que surge na troca das gestões das lideranças locais.
A (des)articulação dos sujeitos das comunidades tradicionais está
muito mais vinculada as estratégias de resistência e de autonomia
dos seus territórios, e diante disso, a defesa de territórios abertos e
fluídos que se estruturam em um processo de “estar entre” territórios,
constituídos por famílias que se autodeclaram simultaneamente
quilombolas-faxinalenses pelas suas redes sociais, territorialidades e
vivências cotidianas.
Para a investigação adota-se a prática de imersão a campo
utilizando-se da observação-participante como metodologia. Esta,
conforme Goffman (2012) possibilita ao pesquisador um caráter
participativo às atividades cotidianas ou eventos ocasionais vivenciados
pelos sujeitos pesquisados, ao adentrar à realidade pode-se conduzir a
participação conforme o olhar do pesquisador. Além dos pesquisadores
estabelecerem, segundo Thiollent (2011), relações comunicativas com
pessoas ou grupos da situação investigada com o intuito de serem mais
bem aceitos. A participação é sobretudo participação dos pesquisadores e
consiste em aparente identificação com os valores e os comportamentos
que são necessários para a sua aceitação pelo grupo considerado.
A observação-participante inscreve-se em uma abordagem na
qual o pesquisador, mais do que um observador, participa ativamente
nas atividades de levantamento das informações, em momentos de
interação face a face com os sujeitos pesquisados, tendo que se adaptar
as situações. O contato direto, frequente e prolongado no contexto
da comunidade acaba por eliminar o estranhamento, e assim, fatos,
situações e comportamentos, que não ocorreriam diante de uma inserção
pontual, projetam, neste caso, a dinâmica do grupo frente as lideranças
e os entrelaçamentos do movimento de articulação político-identitário.
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 43

O relacionamento estabelecido entre pesquisador-pesquisados que


permitiu a aproximação com a realidade destes sujeitos se deu pela
metodologia da observação de campo, com o registro das informações
em diário de campo. Estes registros constituíram-se em fonte primária
desta pesquisa.
Como referencial teórico se tem os conceitos de território/
territorialidade (HAESBAERT, 2015), identidade (HALL, 1999, 2001;
MASSEY, 2008; AGIER, 2001; BAUMAN, 2005) e “povos ou comunidades
tradicionais” (ALMEIDA, 2008; LITTLE, 2002).
Na primeira seção faz-se uma reflexão a partir da inserção em uma
comunidade da categoria “remanescentes de quilombos/quilombolas”
– Palmital dos Pretos – legitimada pela academia e pelas políticas de
identidade durante a disseminação do movimento político-identitário
externo, centralizado no Estado do Paraná pela breve atuação do Grupo
de Trabalho Clóvis Moura - GTCM. A visibilidade que o GTCM projetou
sobre o fenômeno despendeu a fixidez do território a sua identidade
coletiva.
Na segunda seção parte-se da (des)articulação político-identitária
faxinalense Sete Saltos de Baixo – como um movimento decorrente da
legitimação de um território-identidade pelo viés da política ambiental
sobreposto a um processo de desestruturação e/ou reestruturação da
identidade pelas territorialidades em torno de associativismos e/ou
agrupamentos sociais.
A institucionalização (político-administrativa e em alguns casos
acadêmica) da categoria tradicional das identidades faxinalense e
quilombola no Estado do Paraná justapõem-se ao movimento interno
construtor de territorialidades que perpassam o eixo central do Sistema
Faxinal, criadouro comum, e, do quilombo a presunção de ancestralidade
negra.

O associativismo político-identitário pela autodeclaração coletiva


de remanescentes de quilombos

A Constituição Federal de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições


Constitucionais Transitórias cria para os quilombolas o direito étnico,
e o próprio sujeito de direitos territoriais (fundiários e, de forma mais
geral, “culturais”) com a categoria de “remanescentes de comunidades
44 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

de quilombos”. O Decreto nº 4887, de 20 de novembro de 2003 atesta


as comunidades remanescentes dos quilombos de que trata o art. 68
do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias pela autodefinição
da própria comunidade. Coube a Fundação Cultural Palmares (FCP) a
emissão de certidão às comunidades quilombolas e sua inscrição em
cadastro geral para àquelas comunidades que assim se declaram.
No Paraná 36 certidões1 foram expedidas às comunidades
remanescentes de quilombos (CRQs) de 1997 a 2017 (FCP, 2018).
O período de maior expressão ocorreu entre 2005 e 2007, com 33
certificações. Este período coincide com a fundação e atuação efetiva
do Grupo de Trabalho Clóvis Moura2 (GTCM) na identificação das
comunidades quilombolas paranaenses. Em 1997, 2012 e 2017 só se teve
a expedição de uma certidão por ano, sendo que nestes últimos dois anos
já não se teve a atuação do GTCM.
A certidão de autorreconhecimento da Comunidade Quilombola
de Palmital dos Pretos, recorte espacial desta pesquisa, foi expedida no
dia 11 de maio de 2006, período de atuação mais intensa do Grupo de
Trabalho Clóvis Moura –, que buscou identificar, orientar e organizar as
comunidades em associativismo. Junto as comunidades o GTCM iniciou
a estruturação das associações adequando-se a Portaria FCP nº 98, de
26 de novembro de 2007, para a emissão da certidão de autodefinição, a
qual prevê o associativismo, seja na fase inicial com a ata de reunião em
que afirmam a autodeclaração ou a apresentação da ata de assembleia
com a assinatura da maioria dos membros.
Também atendendo a Portaria FCP, nesta primeira etapa, o GTCM
estimulou os sujeitos a um primeiro movimento identitário “quilombola”,
a ancestralidade negra de origem comum presumida na construção
do relato histórico de formação comunitária, os ramos familiares, as
manifestações culturais tradicionais, atividades produtivas, festejos e
religiosidade.
1 Uma das certidões expedidas em 2005 incluiu três comunidades: Serra do Apon,
Mamans e Limitão, o que contabiliza 38 comunidades certificadas no estado do Paraná
(FCP, 2018).
2 A criação do Grupo de Trabalho Clóvis Moura (GTCM) na estrutura intersecretarial do
Governo do Estado, instituído pela Resolução Conjunta 01/2005-SEED–SEEC–SEAE–
SEMA-SECS e posteriormente ampliado com a participação de outras Secretarias e
com prazos prorrogados pelas Resoluções Conjuntas 01/2006 e 01/2007-SEED–SEEC–
SEAE–SEMA-SECS-SESU-SEAB-SEJU-SETI-SETP-PMPR. As atividades do GTCM se
encerraram em 2010.
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 45

Na organização dos primeiros movimentos político-identitários


em Palmital dos Pretos seja na autodeclaração ou na legalização da
Associação da Comunidade Quilombola em 25 de setembro de 2009
se teve a participação efetiva do GTCM. Para os cargos de liderança na
primeira gestão relata-se que a cor de pele foi um dos pré-requisitos.
Assumiram dois sujeitos de um mesmo ramo familiar, sendo que a
principal liderança faleceu durante o mandato e esta passou a ser
assumida por apenas uma delas.
O relato da liderança no ano de 2014 em atividade acadêmica
promovida na Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG)
destacou a expedição da certidão de autodefinição como uma conquista
da comunidade à categoria “Remanescentes de Quilombolas”,
correlacionando-a ao Grupo de Trabalho Clóvis Moura (PALESTRA E.
M. L./UEPG, 2014).
Com a organização das comunidades em associações e a expedição
da certidão de autorreconhecimento pela FCP3 o GTCM orientou-as à
abertura do processo administrativo junto ao Instituto Nacional de
Colonização e Reforma Agrária - INCRA. Durante o período de atuação
do GTCM se teve a abertura de 33 processos de Regularização Fundiária
dos territórios quilombolas – sendo: 10 em 2005, 1 em 2007, 3 em 2008
e 19 em 2009 –, anteriormente a este se tinha 3 (2004) e posteriormente
2 (2013 e 2015) (INCRA, 2019). A Comunidade Quilombola Palmital dos
Pretos efetivou a abertura de seu processo de regularização fundiária
em 2009, com atuação intensa das lideranças, cuja geração era uma das
mais antigas pertencendo ambos os sujeitos a faixa etária de 50 anos.
No período de atuação do GTCM em Palmital dos Pretos os sujeitos
acionados para as investigações foram exclusivamente os de um ramo
familiar, desconsiderando os cinco que constituem a comunidade. As
frequentes demandas e inserções a campo do GTCM possibilitou que
os sujeitos deste ramo familiar fossem os únicos a serem reconhecidos
como quilombolas e ascendessem rapidamente ao poder com o
suporte do movimento político-identitário externo. Foram acionados
para a organização de práticas tradicionais (como mutirão), explanar
o cotidiano (artesanato, debulho e moagem de milho, trato com os
animais, confecção de paçoca de carne no pilão e canjica, as moradias,
entre outros), ou, para o resgate histórico de formação. As restrições na
3 Ver Procedimentos administrativos para abertura do processo - Instrução Normativa
nº 57, de 20 de outubro de 2009.
46 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

demanda gerada pelo GTCM acabaram por categorizar internamente os


sujeitos em “quilombolas e não-quilombolas”.
A categoria quilombola no Paraná é algo que se difundiu com
criação e atuação do GTCM no auge do Programa Brasil Quilombola,
uma política de âmbito nacional. Na comunidade Palmital dos Pretos
o próprio movimento político-identitário desencadeado pelo Grupo
intersecretarial imprimiu uma limitação diante da dinamicidade da
comunidade. A categoria quilombola até então externa aos sujeitos de
Palmital dos Pretos sobrepôs à autodefinição da própria comunidade
pelo reconhecimento direcionado pelo GTCM aos sujeitos de direito,
logo, uma política de identidade classificatória subjugou a etnicidade do
grupo – passagem de uma unidade afetiva para uma unidade política
de mobilização ou de uma existência atomizada para uma existência
coletiva.
O GTCM ao redefinir o grupo comunitário em termos de uma
política de identidades e não étnica, condicionou-os a imobilidade e a
impossibilidade de inclinar-se a autoafirmação identitária. Também
acabou por contribuir a um conflito externo (fazendeiros e vizinhança)
e um conflito interno confrontando as vivências e as territorialidades
vigentes que entrelaçam os ramos familiares na reivindicação de
uma origem comum pelo boato da desapropriação dos sujeitos “não
quilombolas”.
A antiga liderança reforça o relato anterior à Silva et al. (2013) que
o acesso aos primeiros passos da política fundiária emergiu conflitos
com os fazendeiros que estão inseridos dentro da comunidade e para
contornar a situação eles solicitaram a presença do GTCM.
A orientação da identidade étnica diferente das outras identidades
coletivas se volta para o passado (em que se representa a memória
coletiva), contudo, ela não é um conjunto intemporal, imutável de
traços culturais transmitidos da mesma forma de geração para geração
na história do grupo; ela provoca ações e reações entre esse grupo e os
outros em uma organização social que não cessa de evoluir. Ela não é
uma herança cultural, pois exprime um modo de identificação que não
remete a uma essência que se possua, mas a um conjunto de recursos
disponíveis para ação social. E assim de acordo com as situações
na quais o sujeito se localiza e as pessoas com quem interage poderá
assumir uma ou outras das identidades que lhe são disponíveis, pois o
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 47

contexto particular no qual ele se encontra determina as identidades e


as fidelidades apropriadas num dado momento (POUTIGNAT; STREIFF-
FERNART, 1998).
A atuação do GTCM com os sujeitos quilombolas de Palmital
dos Pretos não levou em consideração os critérios de autodefinição,
como os recursos que podem ser mobilizados para manter ou criar o
mito da origem comum. A crença na (e não o fato da) origem comum
constitui o traço característico da etnicidade, que projeta a identidade
e o próprio sentido da unicidade do grupo. E ainda há que se levar em
consideração que a identidade étnica não é exclusiva ao nascimento,
mas permite o recrutamento pelo casamento e de não-locais permitindo
traçar um parentesco fictício, e a reivindicação de uma origem comum
(POUTIGNAT; STREIFF-FERNART, 1998).
Portanto, o movimento político-identitário nesta primeira gestão se
revelou como um fluxo externo político-administrativo, centralizado em
um ramo familiar, cujo fortalecimento se deu pela demanda intensa criada
na atuação local do GTCM. O acesso as políticas públicas pela categoria
dos sujeitos de direito (quilombola) inclinaram-se na comunidade
para uma nova categoria os “não-quilombolas”. A exclusão de parte
da comunidade impôs uma barreira para a autoafirmação à categoria
quilombola, a fragilização pela ruptura do sentimento de coletividade e o
impedimento da reivindicação de uma origem comum.
No entanto, desde 2014 há indícios de um segundo movimento
de autoafirmação político-identitário, pós-encerramento do GTCM.
Agora a autodeclaração quilombola parte de um movimento interno de
resistência tomando para si a afirmação étnica, ao acionar os marcadores
de pertença por aqueles que reivindicam uma origem comum. A inclusão
dos sujeitos dos outros ramos familiares que permaneceram a margem
do primeiro movimento se desencadeia com a articulação interna
promovida pela antiga liderança ao sugerir para a candidatura ao cargo
de presidente da associação uma liderança jovem. A vice-liderança ficou
a cargo de um sujeito do núcleo familiar próximo deste. Esta segunda
gestão apesar de ser acompanhada por instituições públicas, Instituto
Paranaense de Assistência Técnica e Extensão Rural (EMATER-PR) e
Eletrosul – que na época desenvolviam projetos na comunidade –, não
sofreu a institucionalização do movimento político-identitário.
48 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

A identidade-território-área tradicionalmente vinculada a fixidez dos


limites rígidos contrapõem-se a uma identidade efetivada pelas distintas
territorialidades que fazem conforme Haesbaert (2014) da intensificação
da mobilidade dos sujeitos e suas vivências uma transitoriedade ou/e um
“estar entre” territórios.
As vivências da nova e atual liderança e dos sujeitos do núcleo
próximo do seu ramo familiar, entrecruzam a comunidade ao contexto
circunvizinho – Jacuí, Sete Saltos de Cima e Imbuia. Este estar entre
territórios possibilitou-os reivindicar marcadores de presença inclusive
em Palmital dos Pretos, mesmo que não sejam nativos e tenham se
fixados nos últimos 15 anos – relembram da organização sócio-territorial
da comunidade, em um grande criadouro comunitário sem cercas
dividindo as casas, da unicidade do grupo, dos antigos moradores, das
casas de sapê.
Portanto, os sujeitos são os construtores de sua própria identidade,
desencadeadores de um processo de autorreconhecimento ou
autoafirmação dinâmico e multifacetado em um território aberto e
mais autônomo. A multiplicidade territorial que os envolve promove
conforme Haesbaert (2014) a intensificação do trânsito entre estes
diversos territórios, muitas vezes como uma estratégia de resistência e
que faz emergir uma dinâmica de territorialização ultrapassando a escala
local que se está acostumado a referenciar o território, e se efetiva em
uma escala regional-local para as práticas, relações e experiências. E, a
própria identidade quilombola é contornada pelos fluxos/mobilidade dos
sujeitos, assim, observa-se que Palmital dos Pretos integra sujeitos que
se autodeclaram quilombolas mesmo não tendo nascido na comunidade.
A vivência na vizinhança imediata possibilita para estes sujeitos não um
simples passar-por e sim um estar-entre territórios em uma contínua
conexão e compartilhamento, garantindo a reivindicação da crença na
origem comum.
A atual liderança, um sujeito não-nativo que viveu períodos fora
da comunidade, inclusive recentemente, assumiu o cargo quando o
movimento político-identitário se via enfraquecido com o encerramento
do GTCM, a morte de umas das primeiras lideranças e a subdivisão
interna. As primeiras ações para fortalecer o movimento foi criar uma
demanda junto a geração mais velha ao estimular a luta pelos direitos
de permanência da tradição, pois acredita que valorizando as raízes dos
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 49

modos de vida quilombola ter-se-á mais possibilidade de promover o


autorreconhecimento e autoafirmação identitária pela geração mais
jovem. A resistência pela autoafirmação poderá superar ou amenizar o
processo de desestruturação político-identitário vinculado as práticas e
laços empregatícios que cotidianamente os colocam extra-comunidade,
ou ainda, as migrações permanentes para a área urbana.
No seu movimento político-identitário empenha-se para que sua
propriedade seja um referencial na comunidade, com a construção de
uma casa de barro, sape, chão batido e sem energia elétrica; e a instalação
de um monjolo no curso de água que corta aos fundos. A promoção
à visibilidade dos aspectos da cultura quilombola despertou um fluxo
de visitas dos próprios moradores da comunidade, da vizinhança e de
instituições de ensino. A abertura política projetou a articulação da
liderança com outros moradores criando o suporte para estabelecer
a prática das visitas guiadas para pequenos e grandes grupos. Para
continuar realizando as visitas guiadas a liderança e outros sujeitos,
estimulados por aquele, têm participado do programa Agenda 21 do
Cerne, no projeto Trilhas da Gralha Azul em que a Associação Miríade
(Organização da Sociedade Civil) forma guias turísticos entre os jovens
dos distritos rurais.
A liderança atua entre a geração mais jovem buscando identificar
àqueles com potencialidade para compor a nova diretoria da associação
quilombola. Essa articulação permitirá que ele se mantenha em algum
cargo e estimule o entrelaçamento de pessoas engajadas alternando as
gerações para o fortalecimento e renovação da rede da associação.
Recentemente se fortaleceu politicamente ao assumir o cargo de
presidente da associação da água, expandindo sua atuação também
para a comunidade vizinha de Sete Saltos de Cima (Ponta Grossa). A
rede de relações sociais da liderança é sustentada por uma trama densa
com os vizinhos, com uma horizontalidade fundamentada em táticas
para permanecer, sobretudo pelo fortalecimento dos laços de amizade
e parentesco pelos político-identitários. Também evidencia a efetivação
de contatos com instituições de ensino de Ponta Grossa, Campo Largo e
Curitiba, com entidades vinculadas a questão identitária, a participação
em eventos e a articulação nos projetos da comunidade – construção de
14 moradias, manutenção e aumento do atendimento médico e projeto
de pesquisa acadêmico.
50 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

A mobilidade deste sujeito permitiu confirmar o argumento de


Haesbaert (2014) de que os territórios são moldados no interior de
específicas relações de poder ou pelos laços sociais que permite a
incorporação espontânea de outros sujeitos. Logo territorialidades são
forjadas pelos laços firmes (parentesco, compadresco e vizinhança) e
projetam reafirmações político-identitárias, pois a liderança e seu núcleo
familiar próximo apesar de não serem nativos, assumem a autodefinição
quilombola e estão à frente dos cargos políticos-identitários.
A identidade constantemente em construção refuta a legitimação do
Estado na definição territorial como a própria construção identitária. As
territorialidades e identidades são re-apropriadas e re-feitas na própria
prática e luta (contra-hegemônica) pela regularização de seus territórios,
autorreconhecimento identitário, acesso à terra e de resistência de seus
modos de vida tradicionais.
A postura da nova liderança quilombola diante da dinâmica de
compressão fundiária, com a presença crescente de grandes fazendas e
áreas de reflorestamento das empresas madeireiras contorna as barreiras
de confinamento impostas as limitações do território-identidade
político-administrativo. O transitar deste ator-chave por entre gerações
articulando-as cria um movimento político-identitário de reestruturação
da identidade quilombola, que não envolve apenas o passado, a memória,
mas o presente e sua percepção de entrelaçamento na luta de resistência
pela multiplicidade em que as relações são efetivadas e pelas “geometrias
de poder” (MASSEY, 2008) que as vinculam.

A (des)articulação político-identitária faxinalense: política


ambiental, associativismo e agrupamentos sociais

A visibilidade da identidade coletiva faxinalense no Estado do Paraná


está associada a um movimento político-administrativo para a gestão
participativa dos recursos naturais. A mudança de paradigma para as
políticas ambientais possibilitou a permanência das populações que
habitam estas áreas remanescentes, no entanto, a delimitação da reserva
legal justapôs-se a própria legitimação de um território-identidade
condicionando-os aos limites fixos da abordagem político-administrativa.
O Decreto Estadual n° 3446, de 14 de agosto de 19974, estabelece as Áreas

4 Disponível em: http://www.iap.pr.gov.br. Acessado em: 21 jan. 2019.


MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 51

Especiais de Uso Regulamentado - ARESUR , unidade de conservação de


uso sustentável, própria do Paraná. O “Faxinal” enquanto identidade-
território emerge pelo valor conservacionista ambiental reconhecido
às suas áreas. A política viabiliza a possibilidade da conciliação das
atividades agrosilvopastoris com a conservação ambiental, ou seja, a
produção camponesa tradicional baseada no uso coletivo da terra. A Lei
Estadual nº 15673, de 13 de novembro de 20075 reforça o critério da
territorialidade determinada ao criadouro comum, onde evidentemente
há remanescentes das florestas.
No âmbito das políticas de conservação ambiental para as
áreas administradas pelo IBAMA que se institui em 1992 (Portaria/
Ibama, nº 22-n, de 10 de fevereiro de 1992) o Conselho Nacional de
Populações Tradicionais pensando na implementação de uma política de
desenvolvimento sustentado. Em dezembro de 2004, por pressão dos
movimentos sociais, o governo federal decretou a criação da Comissão de
Desenvolvimento Sustentável das Comunidades Tradicionais com vistas
a implementar uma política nacional. E no ano de 2007, acompanhando a
variável da mudança de paradigma ambiental das políticas internacionais6
e a dimensão das lutas dos grupos étnicos pelas políticas por direito à
terra e acesso aos recursos naturais, a agenda ambientalista da sociedade
civil e poder público no Brasil publica o Decreto nº 6040, de 07 de
fevereiro de 20077, instituindo a Política Nacional de Desenvolvimento
dos Povos e Comunidades Tradicionais - PNPCT.

5 Disponível em: http://www.legislacao.pr.gov.br/legislacao/pesquisarAto.


do?action=exibir&codAto=105&indice=1&totalRegistros=1. Acessado em: 21 jan. 2019.
6 Resultado da emergência de um paradigma moderno para as Áreas Protegidas, em
que a população local não é mais vista como recipiente passivo, mas como parceiros
ativos e até mesmo iniciadores e líderes da gestão e política dessas áreas. Conforme
Rodrigues, Guimarães e Costa (2011) as Convenções Internacionais ao reconhecerem
a importância desses grupos para a produção de biodiversidade e do uso sustentável
dos recursos naturais, convocam os Estados Nacionais a aderirem as legislações
específicas para esses grupos, prevendo ainda subsídios econômicos (royalties), em
virtude da propriedade intelectual dos seus conhecimentos tradicionais. Em julho de
2.000, por meio da Lei 9.985 que cria o Sistema Nacional de Unidades de Conservação,
são reconhecidos os direitos das comunidades tradicionais em suas interfaces com as
unidades de conservação.
7 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2007/decreto/
d6040.htm. Acessado em: 21 jan. 2019.
52 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

A regulamentação do Faxinal Sete Saltos de Baixo efetivou-se com a


criação da ARESUR pela Resolução SEMA nº 021, de 28 de maio de 20138,
com superfície territorial de 106,30 ha (cento e seis hectares e trinta
ares) – até meados da década de 1980, este Faxinal abrangia um total de
250 alqueires somente nas áreas do criadouro comum (LÖWEN SAHR;
IEGELSKI, 2003). A resolução legitima como área integral do faxinal o
“criadouro comunitário ativo”, limitado às áreas de criar e a garantia
da legalidade da reserva legal, desconsiderando a parte circundante,
constituída pelas terras destinadas a agricultura.
A (des)articulação do movimento político-identitário de autodefinição
dos sujeitos faxinalenses de Sete Saltos de Baixo reproduz a centralidade
do “Sistema Faxinal” ao criadouro comunitário legitimado pela ARESUR.
A institucionalização do território-identidade aos limites fixos do
criadouro faz com que o movimento dos sujeitos ao reconhecimento
identitário (faxinalense) seja exclusivo àqueles que estão “dentro” do
criadouro comunitário. Os externos, nas áreas circundantes, terras de
plantar, não se afirmam faxinalenses por acreditar que estão “fora” do
“Faxinal”.
A disparidade na autoafirmação de uma identidade faxinalense
pelos sujeitos deste faxinal emerge de uma dualidade que se justapõem
aos processos históricos de apropriação de espaços transformados
em território pelos mais diversos agrupamentos sociais que foram
despontando na comunidade pelas pequenas narrativas e suas
territorialidades cotidianas e o redirecionamento promovido pela
política ambiental em que o criadouro comunitário, conecta a identidade
e o próprio território.
A reivindicação de uma identidade coletiva no Faxinal Sete Saltos
de Baixo esbarra no criadouro comunitário e seus mecanismos de
funcionamento como eixo norteador dos marcadores de pertença – a
localização do terreno; o cercamento das moradias; a instalação de
cercas eletrificadas e as cercas de arame sobrepondo as ancestrais cercas
de madeira deitada; o modo de se relacionar com a terra, organizando
espaço coletivo e particular; a forma de criar animais; as normas
costumeiras; e as festas de santo.
Portanto, toda declaração identitária (individual ou coletiva) é
múltipla, inacabada, instável, sempre experimentada mais como uma

8 Disponível em: http://www.legislacao.pr.gov.br/. Acessado em: 21 jan. 2019.


MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 53

busca do que como um fato (AGIER, 2001; HALL, 1999). Sendo ela fonte
de significado e experiências de uma pessoa ou de um povo, não se
sustenta no discurso simplista de caráter absoluto, autêntico e atemporal
(CASTELLS, 1999).
Primeiramente a organização sócio-territorial está condicionada aos
agrupamentos familiares, tornando-o um “Faxinal Familiar” (LÖWEN
SAHR; IEGELSKI, 2003), há os núcleos familiares em torno da matriarca
ou patriarca, com casas dentro do criadouro comunitário e os núcleos
familiares fechados fora do criadouro comunitário, nestes últimos as
cercas e as porteiras são mais evidentes.
A presença de agrupamentos familiares bem definidos pela disposição
das moradias, cercas e porteiras projeta-se sobre as terras de plantar
e do próprio criadouro comum com a extensão do ambiente familiar,
ou das relações construídas através dos vínculos familiares. Os laços de
parentesco, ou seja, o pertencimento a um agrupamento familiar cria
mecanismos para a manutenção de uma gama maior de relações sociais
dependentes a estes e não necessariamente ao grupo coletivo.
A divisão “fora” e/ou “dentro” que observamos atualmente no
movimento político-identitário faxinalense, pode ter início no ano de
1995 com a separação do criadouro coletivo em duas partes. O processo
de retomada do potreiro comunitário com a reconstrução dos valos e
porteiras, que haviam sido abandonados anos antes, não abrangeu toda
a área inicial do criadouro. Na primeira parte manteve-se a propriedade
coletiva em uma área de 200 alqueires, com o criadouro de animais à
solta, e, a maioria das casas mesclando famílias de dois ramos familiares.
E na segunda parte, com uma área menor de 50 alqueires construiu-
se um grande mangueirão para a criação dos porcos fechados, com a
permanência de apenas algumas famílias de um único ramo familiar
(LÖWEN SAHR; IEGESLKI, 2003).
Entre os núcleos familiares despontam sujeitos periféricos, que
possuem menor quantidade de terras de plantar (uso individual) nas
cercanias do criadouro comunitário, apenas terras de criar (uso coletivo)
dentro do criadouro comunitário ou não possuem terras nem dentro
e tampouco fora do criadouro comunitário, apenas a área de moradia,
sendo locatários ou agregados. As moradias se localizam em pontos
desvalorizados, como terras de banhados ou pontas de terreno.
54 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Há também propriedades centralizadoras individuais, dos


chacareiros, sujeitos neorrurais que adquirem grandes áreas, geralmente
dentro do criadouro comunitário, constroem casas bem estruturadas
e cercam toda a área, deixando-as exclusivamente para lazer. Outros
mantém o sistema de criadouro coletivo com propriedades sem cercas.
A autodeclaração e autorreconhecimento dos sujeitos enquanto
faxinalenses está condicionada ao Sistema de criadouro coletivo (área
de potreiro compartilhada) e a institucionalização deste em uma
organização social que se denomina “Comissão dos Vedos”. Somente
participam desta organização, os sujeitos que possuem terras dentro
do criadouro comunitário e as usam para a criação de animais à solta,
inclusive chacareiros. Estes têm a responsabilidade de colaborar na
manutenção dos “vedos” – cercas, valos, mata-burros e porteiras – que
se efetiva pela prática dos mutirões e uma taxa de serviços.
No entanto, há que se considerar a gênese do “Sistema Faxinal” que
se relaciona com o princípio organizacional do uso da terra aplicado pelos
ancestrais dos faxinalenses, segundo Nerone (2015) tem-se a propriedade
da terra dividida em terras de plantar e terras de criar, e, nestas tem-se a
propriedade das benfeitorias, a propriedade das lavouras, a propriedade
da criação e a propriedade da floresta.
A complexidade do Sistema do criadouro coletivo, coexiste a
propriedade particular da terra e a posse coletiva (compáscuo), e ainda,
pode-se ter o sujeito sem-terra, usuário do sistema, que tem a sua
subsistência na criação de animais. Atualmente, os sujeitos convivem
com a legitimação da ARESUR, propriedade da floresta, justapondo a
questão da propriedade particular à gestão participativa coletiva e ao
desmantelamento do Sistema coletivo, propriedade de criar. Embora
o criadouro comum seja o espaço de sobrevivência para alguns, para
outros proprietários de terra que não mais usufruem dos “comuns” se
tornou um empecilho, desvinculando qualquer elemento de pertença que
possa dar suporte para a afirmação político-identitária pela categoria
faxinalense.
Há em especial uma família que apresenta práticas e vivências
transterritoriais, com mobilidade e trânsito intensos entre a comunidade
quilombola Palmital dos Pretos (Campo Largo-PR) e o Faxinal Sete Saltos
de Baixo (Ponta Grossa-PR). Essa família possui moradia e propriedades
em ambas as comunidades, inclusive com terras no criadouro comunitário.
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 55

Cria animais à solta no Faxinal, o que os faz participantes da Comissão


dos Vedos. O casal agrupamento familiar no faxinal, dentro do criadouro
comunitário, o que os permite compartilhar dos rituais e circuitos das
festas de santo. E agrupamento familiar no quilombo, sendo o ramo dos
quilombolas fundadores da associação, requisitado e reconhecido pelo
GTCM. Participam das rezas cantadas durante as festas de padroeiro em
Palmital dos Pretos. Tal família se autodeclara quilombola-faxinalense.
A autoafirmação transidentitária pode ser viabilizada como uma
estratégia para as práticas cotidianas, a manutenção e expansão das redes
de relações sociais, a reivindicação de pertença, e, no passado recente
como argumento para ascensão de poder quando da atuação do GTCM.
Esta família apresenta uma multiplicidade de redes de relações
sociais, e, é esta que segundo Haesbaert (2014) pode criar uma
condição transidentitária que transgride os limites oficiais do Estado-
nação e projeta-se sobre uma condição transterritorial, enfatizando a
ideia de trânsito entre territórios e o acionar simultâneo de múltiplas
territorialidades. Esta condição é completamente aceita tanto
pelos sujeitos faxinalenses quanto pelos sujeitos quilombolas, cujo
reconhecimento permite o pertencimento a ambas as comunidades.
Outro movimento de autoafirmação político-identitário se legitima
em 2017, pela articulação das lideranças mais jovens, com o registro
no Cadastro Nacional de Pessoas Jurídicas enquanto Associação de
Moradores e Produtores do Faxinal Sete Saltos de Baixo. Esta passa a
possibilitar a agregação dos faxinalenses – sujeitos que moram fora e
dentro do criadouro comunitário –, e chacareiros. Os que se autodeclaram
faxinalenses e se associam a esta organização, ainda são em sua grande
maioria àqueles que já participam da Comissão dos Vedos, ou seja, estão
alocados dentro do criadouro comunitário e são as gerações mais antigas
da comunidade. No entanto, a participação das lideranças da Comissão
dos Vedos aqui é secundária, pois são as lideranças mais jovens quem
veiculam as ações e atuações desta associação. A inclusão dos sujeitos que
estão “fora”, ou seja, nas cercanias do criadouro comunitário ainda se dá
na grande maioria enquanto chacareiros ou sitiantes, os que participam
autodeclarando-se faxinalenses são lideranças.
Uma das lideranças jovem que reside “fora” do criadouro comunitário
e que articulou a insurgência deste movimento de visibilidade da
categoria Faxinal pela constituição e legalização da associação relatou
56 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

que o seu engajamento no movimento político-identitário surge


externamente já na fase adulta quando foi indagada por uma docente
do seu curso do ensino superior sobre a categoria “Faxinal”. A partir
daí buscou as referências teóricas para o conceito, investigou a temática
junto aos moradores e a abordou em sua dissertação de mestrado.
Atualmente a frente da associação e com cargo empregatício na diretoria
da instituição escolar que atende a comunidade e as comunidades
vizinhas busca a efetivação de uma articulação com instituições de ensino
e órgãos públicos que possam fortalecer o movimento de resistência a
desestruturação do Faxinal. Porém, como está “fora” do faxinal segundo
a concepção que se disseminou entre os moradores, nem sempre tem
apoio para debater assuntos que surgem no criadouro comunitário, ou
mesmo, para participar de projetos vinculados aos sujeitos que estão
dentro deste. Mas ainda assim apresenta-se como um ator-chave que
tem relações de poder interna e externamente, e, influência no processo
de adesão de outros sujeitos à afirmação identitária.
Também tendo como eixo o criadouro comunitário surge uma
organização de viés religioso-festivo que cria um circuito de eventos.
Marcadores de pertença – mastro colorido com a bandeira de um Santo
em frente as moradias ou altar com flores e imagens no interior da
residência –, revelam as famílias que promovem anualmente a Festa de
Santo. Em torno da coletividade que se reúne para prestigiar os eventos
durante o ano sustenta-se lideranças, geralmente pessoas mais velhas
que herdaram a prática de algum antepassado. Em Sete Saltos de Baixo
estas famílias são muito ativas na Comissão dos Vedos e na Associação de
moradores. A questão da continuidade das festas de santo é parâmetro
elencado no estatuto da associação de moradores, pois há a reivindicação
dessas vivências entre eles.
Outras formas de associativismo e/ou agrupamento acabam por
atingir um número maior de moradores como a Comissão da água,
a Comissão da Igreja e de forma mais seletiva o Clube de Mães. Logo,
tem-se muitos sujeitos aderindo a mais de um agrupamento social, com
efetiva participação, inclusive em mais de um cargo de liderança para
ampliar as relações de poder dentro da comunidade. Porém, o que se
evidencia é uma maior disposição dos moradores para participarem de
agrupamentos e/ou associativismo que não os exija uma categorização
político-identitária, pois a identidade faxinalense vinculada ao Sistema
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 57

Coletivo de criação ou a reserva legal (ARESUR) de fato não inclui todos


os moradores e suas demandas como as outras associações.
A realidade cotidiana dos sujeitos da comunidade faxinalense os
coloca como uma multidão de pequenas narrativas identitárias, que
ocupam o vazio deixado pelas grandes narrativas em crise. A identidade
Faxinalense segundo Löwen Sahr e Iegeslki (2003) sofre um processo
de desestruturação e/ou restruturação que resultou em apenas um
remanescente – Faxinal Sete Saltos de Baixo –, dos sete que existiam no
município de Ponta Grossa-PR. Segundo Agier (2001) estas pequenas
narrativas aparecem nos mais diversos contextos, em construções
híbridas, bricoladas, heterogêneas, enfim, são o resultado da iniciativa
dos indivíduos, dos pequenos grupos ou das redes que, frequentemente,
tem dificuldades em fazer compreender a especificidade que reivindicam
para si.
A partir desta complexidade se tem sujeitos dentro do criadouro
comunitário ausentes na Comissão dos vedos, e, sujeitos fora do
criadouro comunitário reivindicando uma origem comum e criando um
fluxo externo pelo engajamento político-identitário, com a legalização
da associação de moradores, a articulação às instituições de ensino e do
associativismo identitário faxinalense com a rede Puxirão.
Mesmo em uma comunidade tradicional que resiste a outras formas
de organização evidencia-se uma complexidade em torno da identidade
faxinalense que ora faz acreditar em um processo de desestruturação
e ora na sua reestruturação. Assim, pode-se concordar que toda e
qualquer identidade é construída, uma vez que a identificação como
uma construção sempre “em andamento”, não é, nunca, completamente
determinada, devido que se pode, sempre, “ganhá-la” ou “perdê-la”.
Portanto, ela pode ser, sempre, sustentada ou abandonada, de acordo
com suas condições (recursos materiais e simbólicos) determinadas de
existência. A identificação é, ao fim e ao cabo, condicional e, uma vez
assegurada, ela não anulará a diferença (HALL, 2001).
As identidades segundo Massey (2008) não são algo inato, mas
construídas relacionalmente ao longo da vida pelas experiências de cada
sujeito. Portanto, conforme Bauman (2005) a identidade não tendo a
solidez de uma rocha, também não é garantida para toda a vida, pelo
contrário, é bastante negociável e revogável, sendo que as decisões que o
próprio indivíduo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age
58 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

– e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais


para a identidade.

Considerações Finais

A cada nova geração que se constitui tanto na Comunidade


Quilombola Palmital dos Pretos, quanto no Faxinal Sete Saltos de Baixo
nos revela que a identidade, mesmo em comunidades tradicionais não
é algo a ser reinventado e/ou descoberto; como alvo de um esforço, um
objetivo, apresenta-se como uma coisa que ainda precisa se construir
a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela
e protegê-la lutando ainda mais, mesmo que, para que essa luta seja
vitoriosa, a verdade sobre a condição precária e eternamente inconclusa
da identidade deva ser, e tenda a ser, suprimida e laboriosamente oculta
(BAUMAN, 2005). Pois mesmo sendo grupos étnicos, reconhecidos
legalmente como um agrupamento, a etnicidade requer a reivindicação
de uma crença da pertença, ou seja, cada sujeito precisa fazer o
movimento de afirmação de uma origem comum, portanto, teremos
nestas comunidades sujeitos que irão ou não se autodeclarar. Alguns
mais predispostos a identidade étnica, outros completamente aversos
qualquer identificação.
Em ambas as comunidades tradicionais se pode acompanhar como
os próprios sujeitos se autorepresentam e quais os critérios político-
organizativos que norteiam suas mobilizações e forjam a coesão em
torno de uma certa identidade. O movimento político-identitário das
principais lideranças reemerge após um período de institucionalização
político-acadêmica dos sujeitos de direito e ganha outras escalas de
atuação, com líderes regionais-locais e com ampla rede de contatos. E
constata-se a importância do trabalho destas lideranças para romper
com qualquer ranço deixado pelos movimentos externos.
Na Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos vivenciam agora a
segunda gestão da liderança da associação, com a inserção de lideranças
mais jovens, de um ramo familiar anteriormente considerado como
não-quilombola. Esta nova liderança desencadeou um movimento de
reestruturação político-identitário na comunidade, com a projeção
de novas reivindicações de pertença. Os sujeitos quilombolas têm se
autodeclarado por crerem no compartilhamento de uma origem comum,
MOVIMENTO POLÍTICO-IDENTITÁRIO 59

sustentados pelos entrelaçamentos de parentesco e compadresco, a


ancestralidade negra, as práticas socioambientais e os referenciais
simbólico-culturais.
No Faxinal Sete Saltos de Baixo identificou-se um processo de
desestruturação ou reestruturação que ainda está muito vinculado a
institucionalização da categoria Faxinal a ARESUR, ou seja, ao criadouro
comunitário. A mobilização interna entre os que são de “dentro” e
“fora” do Sistema de criadouro coletivo está no seu auge e perpassa
outras formas de organização e/ou associativismo. Mas assim como
no quilombo lideranças das gerações mais jovens despontam fora
do criadouro comunitário expandindo sua atuação e buscando apoio
para além dos limites da comunidade. E a própria vivência e a rede
de relações sociais efetiva-se transterritorialmente. Surgem famílias e
sujeitos transidentiários que acionam mais de um território em suas
territorialidades cotidianas.
A incorporação da identidade coletiva para as mobilizações e lutas,
por uma diversidade de agentes sociais, pode ser mais ampla do que
a abrangência de um critério morfológico e racial. A complexidade
das vivências tem demonstrado que o critério de raça não está mais
recortando e estabelecendo clivagens, como sucedeu no fim do século
XIX, mas as mobilizações de afirmação étnica e o critério político-
organizativo que amparam a identidade coletiva coextensiva à definição
dos “novos movimentos sociais”, apontam para o futuro mais que
para o passado. Estes não estão passando por consanguinidade,
por pertencimento à “tribo”, por características linguísticas e sinais
exteriores que tradicionalmente marcaram diferenças. Logo, as políticas e
pesquisas acadêmicas devem considerar que está em pauta uma unidade
social baseada em novas solidariedades, a qual está sendo construída
consoante a combinação de formas de resistência que se consolidaram
historicamente e o advento de uma existência coletiva capaz de se impor
às estruturas de poder que regem a vida social.
A pesquisa aqui desenvolvida sobre o movimento político-
identitário pelas lideranças comunitárias frente a institucionalização da
categorização pelas políticas de identidade demonstrou o engessamento
ou retração do movimento de autoafirmação étnica dos sujeitos, pois a
categorização que criou os sujeitos de direito acabou provocando-lhes o
estranhamento e o estímulo à novas categorizações internas vinculadas
60 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

àquelas. Assim chama-se a atenção para que essas categorias externas


não sejam o parâmetro, mas em colocar tal existência como problemática
a consubstancialidade de uma entidade social a uma cultura, território
e identidade pelos quais podem sim agora reivindicar a pertença
étnica, como crença subjetiva que tem seus membros de formar uma
comunidade e pelos sentimentos de compartilhar com outros tal crença.

Referências
AGIER, Michel. Distúrbios identitários em tempos de globalização.
Revista Mana, n. 7, v. 2, p. 7-33, out. 2001.
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Saberes vernaculares de agricultores faxinalenses
como fonte para elaboração de cartilhas e mapas
etnopedológicos

Vanderlei Marinheski, Nicolas Floriani

Introdução

A humanidade em seu processo histórico de evolução e adaptação


ao planeta estabeleceu relações com a natureza. Essas relações, em seu
início, eram mais harmoniosas com a geograficidade dos lugares, a busca
constante da sobrevivência em meio às descobertas e aprendizados junto
ao meio natural (DREW, 1989).
Com o aumento populacional e a maximização das interferências
nos principais elementos disponibilizados pela natureza (solo, água e
florestas) começaram a gerar os primeiros impactos ambientais. Assim,
perdeu-se parte daquele elo inicial de valorização da natureza, e ela
passou a ser vista como fonte de recursos naturais (TRICART, 1977).
A partir do processo de expansão dos meios de produção industrial,
e o advento da modernidade, a natureza, e principalmente o solo
começaram a ser pensados de modo separado das pessoas. Uma mudança
de percepção da natureza que estará mais ligada à sua produção a partir
do trabalho cada vez mais individual e pautado no lucro financeiro.
Por outro lado, há exceções, onde são encontradas populações que
vivem mantendo relações mais harmoniosas com o meio ambiente e com
percepção das coletividades. E no Brasil, verifica-se essas características
nas populações ou povos tradicionais, que apresentam peculiaridades
de convivência em manejos comunitários da agrobiodiversidade de seus
territórios. Entende-se a agrobiodiversidade como a expansão material
de um saber-fazer e utilizar a natureza, isto é, de sua reprodução e
socialização entre as gerações de famílias em comunidades rurais. As
paisagens enquanto produtos desses saberes-fazeres estão estreitamente
associadas aos projetos de cada família e às práticas culturais
historicamente configuradas. Tais projetos individuais e coletivos
revelam um conjunto complexo de intencionalidades de ordem objetiva e
subjetiva: lógicas e econômicas, a organização e penosidade do trabalho,
práticas de reciprocidade como mutirões e trocas de dias, estéticas como
64 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

a preservação de espaços de lazer, herança familiar, entre outros. A terra


e a vegetação do estabelecimento agrícola são ao mesmo tempo vista
como um recurso e um bem patrimonial a ser manejada e utilizada em
função de cada projeto familiar ou coletivo. Desse conjunto de saberes-
fazeres acerca da paisagem agrícola, figuram conhecimentos específicos
mais interligados ao solo, vegetação, água, insetos, aves etc.
No estado do Paraná têm-se destaque, entre essas populações
tradicionais, os faxinais que desenvolveram suas práticas de uso e
ocupação das terras a partir dos saberes adquiridos e transmitidos pelos
laços de convivência comunitária junto à paisagem. Segundo Chang
(1988, p. 13) o sistema faxinal:
[...] É uma forma de organização camponesa característica
da região Centro-Sul do Paraná que ainda se apresenta de
forma marcante. Sua formação está associada a um quadro de
condicionantes físico-naturais da região e a um conjunto de
fatores econômicos, políticos e sociais que remonta de forma
indireta aos tempos da atividade pecuária dos Campos Gerais no
século XVIII, e mais diretamente à atividade ervateira na região
das matas mistas no século XIX.

Em seu modo original, os faxinais apresentam as seguintes


características em relação ao uso do solo: as terras de plantar de uso
individual e as terras de criação dos animais, no qual, os recursos
naturais (terra, água e a floresta) são de uso coletivo para as pessoas que
residem nesse espaço (CHANG, 1988; LÖWEN SAHR; CUNHA, 2005;
ALMEIDA; SOUZA, 2009).
Desta forma, percebe-se que no sistema de faxinais existe uma divisão
das terras para o criadouro comunitário dos animais domesticados e as
terras de plantar, para agricultura. Assim, incute-se a ideia de que os
faxinalenses estabeleceram uma classificação da qualidade das terras,
através dos saberes que possuem da paisagem local, os indicadores
etnopedológicos, para conduzir os diferentes usos.
Segundo Alves e Marques (2005, p. 339) a “Etnopedologia é o
conjunto de estudos interdisciplinares [...] dedicados ao entendimento
das interfaces existentes entre os solos, a espécie humana e os outros
componentes dos ecossistemas.” Já para Barrera-Bassols e Zinck (2003,
p. 171) a etnopedologia é uma “disciplina híbrida alimentada por ciências
SABERES VERNACULARES 65

naturais e sociais, engloba os sistemas de conhecimentos do solo e da


terra das populações rurais, do mais tradicional para o moderno”.
A partir das revisões bibliográficas referente aos etnoconhecimentos
e suas contribuições para classificar a qualidade do solo em comunidades
tradicionais, procurou-se, através de metodologias participativas, elaborar
mapas etnopedológicos em dois faxinais do Paraná. Pois, segundo Silva
(2010, p. 67): “a construção de mapas é uma ferramenta importante
para visualização e principalmente para evidenciar a apropriação dos
conhecimentos que os agricultores têm de sua terra e a sua percepção
espacial sobre ela”. Assim, propor mapas de classificação da qualidade
das terras, levando-se em consideração o patrimônio socioecológico
dessas comunidades tradicionais, apresenta-se como um desafio quando
converge com as diferenças entre os sistemas vernacular e científico de
classificação dos solos.

Material e metodologia: caracterização da área de estudo

A operacionalização desta pesquisa ocorreu em dois faxinais


situados na Mesorregião Sudeste Paranaense, o faxinal Lageado de Baixo
em Mallet-PR e o faxinal Lageado dos Mello em Rio Azul-PR (Figura 1).
Esse recorte espacial para a operacionalização da pesquisa tem
uma peculiaridade que chama atenção de qualquer pesquisador, os
criadouros comunitários dos dois faxinais são separados pelo rio Lageado
e unidos por uma ponte que liga as duas comunidades tradicionais, e
consequentemente une os dois municípios, Mallet e Rio Azul.
Segundo Ferreira (2008) estima-se que a ocupação da região que
compreende o território dos faxinais, abordados nesta pesquisa, teve
início há cerca de 140 anos. E que no passado havia um único grande
faxinal, que integrava as áreas do Lageado de Baixo e do Lageado dos
Mello. E por volta de 1950, o rio Lageado “tornou-se o limite entre os
municípios de Mallet e de Rio Azul” (FERREIRA, 2008, p. 52).
O faxinal Lageado de Baixo tem o criadouro comunitário com 114,2
ha, como Área Especial de Uso Regulamentado (IAP, 2010). Já o criadouro
comunitário do faxinal Lageado dos Mello possui 97,62 ha Área Especial
de Uso Regulamentado (IAP, 2010). Segundo informações obtidas in loco,
com os agricultores faxinalenses de ambas as comunidades, o faxinal
Lageado de Baixo conta com 15 famílias que vivem dentro do criadouro
66 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

comunitário. No momento, o número de animais no sistema à solta em


Lageado de Baixo é de 120 cabeças de bovinos, 400 suínos, 50 ovinos e
15 equinos. Já no faxinal Lageado dos Mello, o número de pessoas que
residem no criadouro é maior do que as do Lageado de Baixo, com 48
famílias que compartilham o espaço comunitário. No momento o número
de animais no sistema à solta em Lageado dos Mello é de 110 cabeças de
bovinos, 360 suínos, 10 caprinos e 30 equinos.

Figura 1 – Localização da área de estudo – Faxinal Lageado de Baixo em


Mallet–PR e Faxinal Lageado dos Mello em Rio Azul–PR.
Org: Os autores.
SABERES VERNACULARES 67

Na pesquisa realizada nos dois faxinais, Lageado de Baixo–PR e


Lageado dos Mello–PR, para dissertação de Mestrado, Ferreira (2008, p.
54) observou as seguintes características:
O uso da terra para criação animal é coletivo, mas os animais e os
terrenos são de propriedade privada. As condições no entorno das
residências – paióis, defumador de carnes, cocheira, cercado para
fechar os animais graúdos durante a noite, galinheiro, estufa de
fumo etc. – são individuais e alocadas em parcelas de propriedade
de privada, embora esta não seja delimitada por cerca ou muro.
Ou seja, o criadouro comunitário sobrepõe-se o uso comum e o
uso individual da família.

Um modelo clássico nos faxinais é a delimitação do território do


criadouro comunitário das terras de plantar por cercas ou valas que
impedem a passagem dos animais. Nas estradas principais, ao invés de
portões, existem os mata-burros que permitem a circulação de veículos,
mas que impedem a passagem dos animais (Figura 2 a e b).

Figura 2 – Mata-burros: a) No criadouro do Faxinal Lageado dos Mello-


PR; b) No criadouro do Faxinal Lageado de Baixo-PR.
Org: Os autores.

Também existem passagens laterais aos mata-burros, que são


utilizados pelos agricultores que possuem carroças puxadas por cavalos.
Os mata-burros são símbolos dos faxinais, tanto no Faxinal Lageado de
Baixo como no Lageado dos Mello, existem 03 mata-burros em cada.
Ainda sobre a caracterização física da área de estudo, segundo
o ITCG, 2009 a vegetação que recobre o relevo da área de estudo é
68 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

caracterizada pela Floresta Ombrófila Mista (Floresta com Araucária,


Mata dos Pinhais), formação Montana.
Remanescentes de florestas frias destacam-se: o pinheiro do Paraná
(Araucaria angustifolia), a imbuia (Ocotea porosa), a erva-mate (Ilex
paraguariensis) e a bracatinga (Mimosa scabrella) (MAACK, 2002).
Ainda sobre o assunto, Veloso, Rangel Filho e Lima (1991) e IBGE (2012)
apontaram que nos três estados da região Sul, o pinheiro araucária
(Araucaria angustifolia) aparece em simbiose com imbuia (Ocotea
porosa).
De acordo com a classificação climática de Köppen, o clima da
região é o Cfb – subtropical úmido, sem estação seca e com chuvas bem
distribuídas durante as quatro estações do ano. Apresenta temperaturas
mais baixas no inverno com possibilidades de ocorrência de geadas, e as
temperaturas são mais elevadas no verão, com médias inferiores a 22°C
(NITSCHE et al., 2019).
Em relação à descrição das unidades litoestratigráficas, a área que
abrange os dois faxinais pesquisados é composta por rochas do Grupo
Passa Dois; Formação Rio do Rasto. Com a seguinte descrição: siltitos
e argilitos de cores esverdeadas, avermelhadas e arroxeadas, níveis de
calcários oolíticos, de sílex e de coquinhas (Membro Serrinha), (ITCG,
2006).
Segundo o ITCG (2008), na região do recorte espacial para o estudo
de caso, apresenta o seguinte domínio de solo: Primeiro Nível: Argissolo;
Classe: Associação Argiloso Vermelho-Amarelo Distrófico Típico +
Neossolo Litólico Distrófico Típico. As características sobre composição
das três classes vernaculares das terras identificadas nos dois faxinais
poderão ser observadas na seção dos resultados e discussão.

Metodologia

Para o reconhecimento dos tipos de terra e de sua espacialização


no faxinal, seguiu-se as recomendações metodológicas propostas pelo
(DRP) – Diagnóstico Rural Participativo (VERDEJO, 2006), e (BARRIOS;
COUTINHO; MEDEIROS, 2011). Com a participação dos integrantes da
comunidade, de forma coletiva e individual, em que os sujeitos puderam
explicitar seus conhecimentos e contribuir para uma cartografia social
representativa das duas comunidades (GEIFUS, 2002).
SABERES VERNACULARES 69

Segundo Verdejo (2006, p. 22) o principal objetivo do DRP é:


[...] Compreender a percepção da realidade da comunidade.
É crucial entender por que agem desta ou de outra maneira,
antes de opinar e de propor ‘a solução lógica’. Muitas vezes o
comportamento das/os agricultoras/es é muito mais lógico
do que parece inicialmente, só que não sabíamos o ‘porquê’.
Este frequentemente descobrimos quando participamos das
tarefas cotidianas. Por estas razões, a convivência em algumas
tarefas cotidianas pode esclarecer, muitas vezes, mais do que
dezenas de questionários. Enfim, a observação participante não
propõe mais do que ‘andar com os olhos abertos’ e aproveitar
as possibilidades de compartilhar alguns momentos do cotidiano
com os agricultores.

Os agricultores forneceram as informações referentes a qualidade


de suas terras com base nos conhecimentos que possuem sobre o
manejo da paisagem. Para desvendar esses conhecimentos vernaculares
dos sujeitos, em relação aos lugares de seus usos cotidianos, o
etnopesquisador crítico deverá ter empatia em relação à legitimidade
ou não das assertivas observadas. Macedo (2010, p. 35-36) destaca que:
“cada sociedade produz seu espaço, determina os ritmos, os modos de
apropriação. O lugar, portanto, guarda o âmbito prático-sensível, real e
concreto”.
As identidades e as lembranças trazem um imaginário da paisagem
percebida e assimilada pelos agricultores. A fertilidade das terras é um
saber que o bom “mateiro” possui (STANISKI, 2016). É um conhecimento
adquirido com as práticas de uso e ocupação do solo em suas práticas
cotidianas e crenças que os sujeitos locais possuem em relação à
paisagem.
Os faxinalenses trazem uma territorialidade específica junto às
florestas com araucárias no estado do Paraná, que vão além do uso
da terra para agricultura e a criação de animais. São várias práticas
socioambientais que essas famílias desenvolveram ao longo do tempo,
entre elas pode-se destacar as identidades de convivência comunitária
com o uso comum das terras de pastagem, tarefas coletivas de mutirão
e de puxirão nas festas das Igrejas, nas reformas das cercas, concertos
de mata burros, na extração da erva-mate e na ajuda com as colheitas
agrícolas.
70 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Diante dos pressupostos teóricos e metodológicos, nesta pesquisa,


adotou-se uma abordagem participativa com os sujeitos em suas
comunidades rurais. Foram realizados reconhecimentos das paisagens
nas áreas de estudo, percorrendo o território dos faxinais e conversando
com alguns agricultores. Os levantamentos em campo ocorreram em
etapas, com a perspectiva da aproximação e aceitação da pesquisa por
parte dos faxinalenses.
Não foi utilizado questionário fechado como ferramenta de pesquisa,
e sim um questionário semiestruturado, com roteiros de conversa e com
assuntos chave. O objetivo foi deixar o entrevistado bem à vontade para
a operacionalização das atividades.
O levantamento ocorreu conforme a disponibilidade dos faxinalenses
em participar das entrevistas e atividades de reconhecimento no
faxinal. Seguiu-se as orientações de Geilfus (2002) para não atrapalhar
o cotidiano dos agricultores e os momentos de maior exigência das
atividades agrícolas.
Com base nas indicações de Viertler et al. (2002) foram entrevistadas
as pessoas com mais idade e com maior tempo de vivência nos dois
faxinais. Assim, foram entrevistadas 8 pessoas no Faxinal Lageado de
Baixo e 8 pessoas no Faxinal Lageado dos Mello (Quadro 1).
O quadro 1 permite identificar que todos os entrevistados têm a
faixa etária superior aos 47 anos. Com 5 pessoas na casa dos 40 anos,
2 na casa dos 50 anos, 1 pessoa na casa dos 60 anos, 4 pessoas na casa
dos 70 anos e 4 pessoas com mais de 80 anos. Pessoas com bastante
experiência, que vivenciaram e trabalharam com métodos e ferramentas
tradicionais de usos e ocupação do solo.

Entrevistado Sexo Idade Faxinal


01 M 49 anos Lageado de Baixo
02 F 84 anos Lageado de Baixo
03 M 68 anos Lageado de Baixo
04 M 76 anos Lageado de Baixo
05 M 49 anos Lageado de Baixo
06 M 47 anos Lageado de Baixo
07 M 49 anos Lageado de Baixo
08 M 53 anos Lageado de Baixo
continua
SABERES VERNACULARES 71

09 M 76 anos Lageado dos Mello


10 M 56 anos Lageado dos Mello
11 M 77 anos Lageado dos Mello
12 M 80 anos Lageado dos Mello
13 M 47 anos Lageado dos Mello
14 F 81 anos Lageado dos Mello
15 M 83 anos Lageado dos Mello
16 F 72 anos Lageado dos Mello
Quadro 1 – Relação dos entrevistados nos faxinais.
Org: Os autores.

Realizaram-se observações e entrevistas com os sujeitos locais


para classificar e descrever as classes etnopedológicas dos solos nos
faxinais. Cada faxinalense explicitou as informações referentes às suas
terras e do faxinal num contexto geral. Pode-se obter as informações
dos principais atributos utilizados pelo faxinalense para classificar
suas terras e espacializar no território do faxinal. Obteve-se elementos
relacionados às classes vernaculares das terras, características de cada
classe, indicadores etnopedológicos de qualidade das terras, posição no
relevo em que cada classe tem maior abrangência e aptidão, segundo a
interpretação dos sujeitos locais, de uso de cada classe.
Através de etnocaminhadas no faxinal, junto com os sujeitos locais,
foram observados em barrancos de estradas e em aberturas de bacias de
captação das águas da chuva, as características das camadas de solo e os
atributos etnopedológicos usados pelos faxinalenses para diferenciá-las,
tanto no criadouro comunitário, como nas terras de plantar.
O mapa etnopedológico foi desenvolvido através de metodologias
participativas com os sujeitos locais, os agricultores (as) faxinalenses
(GEIFUS, 2002; VERDEJO, 2006; BARRIOS; COUTINHO; MEDEIROS,
2011). Após o levantamento e detalhamento dos tipos de terra do faxinal,
de posse de uma imagem da área (retirada do Google Earth) e de croquis
com as delimitações das terras de plantar e do criadouro comunitário,
pode-se identificar a localização dos diferentes tipos de terra na área de
estudo, isso com o apoio e feedbacks dos faxinalenses.
Segundo Guimarães et al. (2007, p. 19) em diagnósticos participativos
em comunidades rurais:
72 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Os mapas permitem a participação de todos os agricultores


da comunidade, possibilitando: identificar a percepção dos
agricultores quanto aos diferentes tipos de solos e seus atributos,
restrições e aptidão de uso e manejo; levantar o histórico e
tendências de ocupação do solo; complementar as informações
obtidas nos levantamentos de recursos naturais; auxiliar no
planejamento do uso da propriedade com os agricultores.

Na mesma linha de pensamento Tuan (1983, p. 86) destaca que:


“o desenho de mapas é evidência incontestável do poder de conceituar
as relações espaciais”. Relações representadas pelo histórico de
vivência e trabalho em territórios delimitados e definidos por relações
socioecológicas de uso comunitário.
A partir da operacionalização de croquis representativos, obteve-se
uma espacialização imaginária dos diferentes tipos de terras vernaculares
nos dois faxinais, proporcionando uma base cartográfica para gerar os
mapas etnopedológicos no software QGIS.

Resultados e discussão: classes etnopedológicas

A classificação do solo, a partir dos saberes locais, pode ser encontrada


desde o surgimento da agricultura. Através dos mais variados critérios, o
homem tentou identificar as terras de melhor fertilidade para o cultivo.
Conhecimentos que foram repassados de geração para geração através
das práticas de uso e ocupação das paisagens agrícolas. Segundo Cunha et
al. (2020, p. 120): “estudos etnopedológicos em unidade familiar tendem
a contribuir com a academia sobre a importância da troca de saberes,
proporcionando a compreensão da realidade local de uma comunidade”.
Nas duas comunidades, faxinais Lageado de Baixo-PR e Lageado dos
Mello-PR, os conhecimentos vernaculares sobre a classificação das terras
ainda estão presentes, mas que de certa forma os agricultores já utilizam
informações e conceitos do conhecimento científico. Exemplo: alguns
agricultores mencionaram termos como matéria orgânica e compactação
do solo. Ou seja, começam aparecer hibridismos de ideias e informações
nas práticas e nas relações, tanto com o solo, bem como a natureza.
A partir das abordagens metodológicas participativas nos dois
faxinais foram reconhecidas e caracterizadas três classes de terras
SABERES VERNACULARES 73

vernaculares. Duas classificações com solos de boa qualidade, e uma com


solo de baixa fertilidade para usos agrícolas locais (Quadro 2).
Segundo relatos dos agricultores faxinalenses, a Terra Branca é
de excelente qualidade para o plantio do fumo. Tem como principais
indicadores etnopedológicos a cor “esbranquiçada”, com a presença
de “piçarras” (fragmentos de rochas) “azuladas”. É uma terra que
gruda nas ferramentas (enxada, capinadeira e máquina de plantar)
de trabalho, o que dificulta seu manejo logo após a chuva. Ainda de
acordo com as informações etnobotânicas dos agricultores faxinalenses,
nesse tipo de terra predominam as seguintes espécies de vegetação:
sassafrás (Ocotea odorifera), corticeira (Erythrina falcata), farinha seca
(Albizia niopoides), tanchais (Plantago sp.) e jaguarandi (Piper sp.).
A Terra Preta é caracterizada como terra de elevada fertilidade e com
“gordura”, ou seja, solo com elevados índices de matéria orgânica. Tem
como principais indicadores etnopedológicos para sua identificação, a
cor “preta acinzentada”. Nesse tipo de terra predominam as seguintes
espécies de vegetação: tupixaba branca (Baccharis dracunculifolia), timbó
(Lonchocarpus subglaucescens), azedinho (Oxalis sp.), além dos diversos
tipos de cipós. Já a Terra Seca é considerada pelos faxinalenses como
terra fraca para a maioria dos cultivares locais. Não tem gordura (matéria
orgânica), terra solta, seca e precisa de muita correção para produzir.
Indicada para plantio de mandioca, arroz, batata e reflorestamento
com manejo da bracatinga (Mimosa scabrella). Entre os principais
indicadores etnopedológicos, da classe vernacular Terra Seca, estão a cor
cinza, “piçarra” (fragmentos de rochas) branca, vegetação com taquaras
(Merostachys multiramea), tupixaba preta (Eupatorium laevigatum),
carrapicho (Spermacoce sp.) e bracatinga (Mimosa scabrella).
Ainda de acordo com o quadro 2, verifica-se que a cor e a vegetação
são os principais indicadores etnopedológicos adotados pelos agricultores
das duas comunidades pesquisadas. Mesma evidência encontrada
por Strachulski e Floriani ao apontarem que: “os indicadores vegetais
são os parâmetros mais usados pelos agricultores, que conservam o
conhecimento agroecológico tradicional para identificar a fertilidade de
suas terras” (STRACHULSKI; FLORIANI, 2017, p. 140).
74 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

pedológica
Classe
etno-
Terra Branca Terra Preta Terra Seca

Terra de excelente Terra boa, leve, tem Terra fraca, seca, não
Características

qualidade, terra fir- gordura, não gruda tem gordura, terra solta
me, mas pode “ba- nas ferramentas de e onde tem “piçarra”
do solo

tumar” (encrostar) trabalho. (fragmentos de rochas)


com excesso de chu- branca, precisa de mui-
va, solo pesado, não ta correção para poder
precisa de calcário. produzir.

Cor em tom esbran- Cor escura, onde tem Cor cinza-avermelhada,


quiçado, terra que os diversos tipos de “piçarra” (fragmentos
Principais indicadores

gruda, onde tem “pi- cipós, tupixaba branca de rochas) branca,


çarra” (fragmentos (Baccharis dracuncu- taquara (Merostachys
etnopedológicos

de rochas) azulada. lifolia), timbó (Lon- multiramea), tupixaba


Vegetação: sassafrás chocarpus subglauces- preta (Eupatorium
(Ocotea odorifera), cens), azedinho (Oxalis laevigatum). carrapi-
corticeira (Erythrina sp.) cho (Spermacoce sp.),
falcata), farinha seca bracatinga (Mimosa
(Albizia niopoides), scabrella)
tanchais (Plantago
sp.), jaguarandi
(Piper sp.).
Pode aparecer em Pode aparecer em to- Pode aparecer em todas
Posição no relevo

todas as formas de das as formas de rele- as formas de relevo.


relevo, mas predomi- vo, mas predomina em Mas predomina em
na nos interflúvios e porções de vertente, baixa vertente na área
em porções de média também denominada de estudo.
e alta vertente. pelos faxinalenses de
serra.

Indicado para tudo, Indicado para tudo, Indicado para man-


menos batata, man- milho, feijão, melan- dioca, arroz, batata e
dioca, amendoim e cia, batata, mandioca, reflorestamento com
Solo indicado

batatinha, por ser amendoim e batatinha manejo de bracatinga


terra pesada. É um e fumo. (Mimosa scabrella).
excelente solo para
o fumo. O fumo,
plantado nesse tipo
de solo, é de boa
qualidade.
Quadro 2 – Cartilha com a classificação e descrição etnopedológico do
solo nos faxinais.
Org: Os autores.

Esses saberes etnobotânicos dos agricultores faxinalenses guiaram


a gestão dos agroecossistemas nessas comunidades tradicionais. Marcas
SABERES VERNACULARES 75

que refletem na paisagem local com a heterogeneidade de usos e


ocupações do solo.
A percepção que os sujeitos têm da paisagem local, ao classificar o
solo em um primeiro momento para diferentes usos, trazem informações
etnopedológicas de grande valia para identificar os indicadores adotados
nesse processo e para dar suporte na elaboração de mapas e cartilhas de
qualidade do solo local.

Mapa etnopedológico

Os saberes vernaculares dos faxinalenses em relação a qualidade


de suas terras, vem de um aprendizado repleto de costumes, tradições,
relações econômicas e sociais em um território com as diferenças
geomorfopedológicas e climáticas.
A espacialização, com os mapas, das classes vernaculares de
terras representa as percepções que os faxinalenses identificaram da
paisagem em seus territórios. A participação in loco foi de fundamental
importância para elaboração dos croquis com a separação e abrangência
das terras ao longo das duas comunidades (Faxinal Lageado de Baixo-PR
e Lageado dos Mello-PR).
Conforme a Figura 3 e Tabela 1, nos dois faxinais (Lageado de Baixo-
PR e Lageado dos Mello-PR) a classe vernacular Terra Preta tem maior
abrangência, com 63,95% da área. Predomina nas porções de média e
baixa vertente, e, nos fundos de vale, ocupa grande parte dos criadouros
comunitários.
A Terra Branca aparece em porções de alta vertente e nos interflúvios,
e tem menor representação nos criadouros comunitários, com pequena
espacialização na parte sudoeste do criadouro do Lageado de Baixo e
no nordeste do criadouro comunitário Lageado dos Mello (Figura 3). A
maior parte desta classe vernacular encontra-se na área das terras de
plantar e abrange cerca de 27,03% do total do território dos dois faxinais
(Tabela 1).
76 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Figura 3 – Mapa etnopedológico dos faxinais Lageado de Baixo-PR e


Lageado dos Mello-PR
Org: Os autores.

Já a Terra Seca, com menor área nos dois faxinais, cerca de 9,02%,
(Tabela 1), tem a maior parte das representações nos criadouros
comunitários, e em porções do relevo de baixa vertente e nos fundos de
vale (Figura 3).

Área
Classes Hectares Porcentagem
Terra Branca 287,94 27,03%
Terra Preta 681,19 63,95%
Terra Seca 95,97 9,02%
Total 1065,10 100,00%

Tabela 1 – Área e porcentagem das classes vernaculares das terras em


Lageado de Baixo-PR e Lageado dos Mello-PR (com base na Figura 3).
Org: Os autores.
SABERES VERNACULARES 77

O mapa etnopedológico (Figura 3), reflete as percepções da


espacialização das terras vernaculares no território dos dois faxinais
pesquisados. Mapa que foi elaborado em conjunto com agricultores
locais, em que as informações, os apontamentos e os feedbacks foram
fundamentais para representação deste produto cartográfico.
Através da interpolação dos resultados da cartilha com a
espacialização através do mapa etnopedológico, percebe-se que os
saberes vernaculares dos agricultores faxinalenses afirmam-se com
indicativos eficientes em relação à fertilidade das terras em território
faxinalense. Esses saberes foram colocados em teste ao longo de quase
um século de ocupação do território dos respectivos faxinais. Assimilados
cognitivamente e repassados através da fala de geração para geração
e das práticas cotidianas de trabalho agropecuário na paisagem da
Mesorregião Sudeste Paranaense.
A etnopedologia não se caracteriza como uma disciplina, e sim
como um conjunto de conhecimentos técnocientíficos e patrimoniais
que o agricultor utiliza para classificar e manejar a qualidades de suas
terras. No caso específico dos faxinais no estado do Paraná, as paisagens
agrícolas dessas comunidades tradicionais trazem as marcas desses
saberes historicamente arraigados ao território.
A avaliação da qualidade do solo a partir de indicadores
etnopedológicos em faxinais permite entender quais são os atributos que
o agricultor usa para diferenciar solos de baixa, média e alta qualidade
produtiva, sendo esse um saber concebido em função das experiências
produtivas com a geobiodiversidade da paisagem-território.
Desta forma, lembra-se aqui a importância de considerar esses
saberes vernaculares em comunidades tradicionais. Com a união dos
conhecimentos que os faxinalenses desenvolveram ao longo de suas
ações, práticas cotidianas e suas interpretações das paisagens locais.

Considerações finais

A classificação do solo, a partir dos saberes locais, pode ser encontrada


desde o surgimento da agricultura. Através dos mais variados critérios, o
homem tentou identificar as terras de melhor fertilidade para os cultivos.
Conhecimentos que foram repassados cognitivamente de geração para
geração através das práticas de uso e ocupação das paisagens agrícolas.
78 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Até mesmo a classificação científica tem nomes de solos com origem em


saberes locais, exemplo, o Tchernozion encontrado principalmente nas
planícies da Ucrânia e da Rússia, que tem alta fertilidade e seu nome foi
atribuído a cor escura. Outro nome de solo que pode ser destacado é a
Terra Roxa, no estado do Paraná, que recebeu essa denominação devido
a cor avermelhada.
O território faxinalense é um exemplo do resultado da ação dos
sujeitos na ocupação e na caracterização da paisagem agrícola. Através
de práticas tradicionais de uso do solo em duas divisões principais. As
terras de plantar destinada à agricultura, com diferentes cultivos e de
forma individual. E as terras reservadas ao criadouro comunitário, com
o uso do solo de forma coletiva para manter os animais e garantir a
conservação da floresta. O faxinalense, em seu modo de vida tradicional,
possui um profundo espírito de respeito à natureza e não tem em sua
índole a ideia de acúmulo. Nesse sentido, a percepção que o faxinalense
tem sobre a terra é de considerar ela como um espaço de trabalho para
garantir o sustento familiar.
Os faxinais são alguns dos exemplos que restaram dessa união
coletiva e conservação dos recursos naturais. A classificação do solo
a partir de indicadores etnopedológicos em faxinais é um resgate dos
saberes tradicionais que merece atenção especial por ainda preservar
parte da Mata de Araucárias que restou no Estado do Paraná, e por
manter muitos agricultores no campo.
A percepção que os sujeitos têm da paisagem local ao classificar
as terras, em um primeiro momento para diferentes usos, trazem
informações etnopedológicas de grande valia para identificar os
indicadores adotados nesse processo, e para dar suporte na elaboração
de mapas e cartilhas de qualidade do solo local, que podem ser utilizados
em propostas de etnoconservação em faxinais.
Os etnoconhecimentos ainda estão presentes nas práticas de uso e
ocupação do solo na Mesorregião Sudeste do Estado do Paraná, visto
que, nos dois faxinais existem classificações vernaculares e diferenciação
das terras a partir de saberes vernaculares.
As três classes vernaculares, Terra Preta, Terra Branca e Terra
Seca, identificadas nos dois faxinais são reconhecidas e categorizadas
pelos faxilaneses conforme suas aptidões produtivas para os cultivares
locais. Terra Preta é vista como de boa qualidade e tem como principais
SABERES VERNACULARES 79

indicações o plantio de milho e feijão. A Terra Branca também é avaliada


como de boa qualidade e indicada para o plantio fumo. E Terra Seca é
destacada com terra fraca, não sendo indicada para cultivos comerciais
atuais, e tem como sugestão de uso para o manejo de bracatinga e o
plantio de arroz.
Assim, cabe ressaltar que o Sistema Faxinal foi organizado com base
na racionalidade de convivência comunitária, nas práticas, nos costumes,
nas tradições, na religiosidade dessas populações, nas formas de manejar
a vegetação e na criação de animais em espaços de uso coletivo. E através
da etnopesquisa pode-se contribuir para à sensibilização da importância
que os faxinais têm para a conservação da sociobiodiversidade da
Mesorregião Sudeste Paranaense.

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Nicolas Floriani, Ronir de Fátima Gonçalves

Em comum, os habitantes das comunidades rurais tradicionais


reproduzem práticas agrossilvipastoris específicas baseadas em um saber-
fazer aderido às dinâmicas ecossistêmicas locais; práticas simbólicas que
reforçam a reciprocidade entre os indivíduos; e práticas institucionais
consuetudinárias de gestão coletiva dos bens naturais. Esses elementos
socioculturais configuram patrimônios paisagístico-territoriais sui
generis, que dão sentido às suas identidades socioterritoriais, isto é, às
suas territorialidades.
De uma maneira geral, as territorialidades rurais latino-americanas
apresentam aspectos convergentes no que tange à: i) formas de
organização socioterritorial: ambas populações tradicionais em foco
apresentam íntima relação de dependência com os bens naturais, cujos
esquemas de manejo e uso da diversidade agroflorestal ocorre sob regime
compartilhado, isto é, dos recursos comuns; ii) formas de resistência
e adaptação ao processo de modernização e expansão das relações de
produção capitalista sobre realidades rurais: os conflitos pelo uso e
apropriação da natureza entre atores sociais com distintas racionalidades
(agricultores familiares, empresas, poder público, Ongs, sindicatos, e
academia) produzem diferentes (re)arranjos socioterritoriais - dentro e
fora do grupo de agricultores tradicionais – com repercussões em nível de
representações, práticas e saberes de natureza. (FLORIANI; BARRERA-
BASSOLS, 2016).
Da mesma maneira que em outras regiões latino-americanas, o
espaço rural paranaense testemunha, atualmente, inúmeros e recentes
conflitos sociais decorrentes da expansão das relações de produção
capitalista sobre os territórios tradicionais, que, no seu conjunto,
abrangem as comunidades que habitam diferentes ecossistemas no
estado do Paraná: nas florestas e praias litorâneas (indígenas, caiçaras,
pescadores artesanais, quilombolas), nas florestas e campos dos planaltos
(indígenas, faxinalenses e quilombolas) do estado do Paraná.
Destaca-se, ademais, o surgimento de novos atores sociais no espaço
rural que incidem com suas práticas nos antigos territórios: figuram
84 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

atualmente como atores externos no meio rural paranaense, desde os


neorurais proprietários de chácaras de laser às empresas transnacionais
que se instalam e estabelecem contratos de uso dos recursos naturais
e sociais comunitários; evidencia-se também o expressivo aumento
de igrejas protestantes que introduzem novos hábitos e padrões
comportamentais (fundamentados no individualismo e na apropriação
privada dos bens comuns) provocando cisões nas comunidades, em
detrimento de práticas sociais consuetudinárias de reciprocidade, com
origem no catolicismo rústico, tais como os puxirões e as festividades
(FERREIRA; FLORIANI, 2015; FLORIANI et al., 2011).
Igualmente, os saberes e práticas vernaculares da agrobiodiverisade
e da medicina popular vêm sendo paulatinamente transformados
e, ou substituídos, gerando, por sua vez, uma relativa dependência
por produtos e tecnologias industriais, seja nas práticas alimentares,
nos cultivos agrícolas, e nas práticas da cura. Com isso, presencia-se
um aumento no consumo de alimentos industrializados, de remédios
alopáticos, de agrotóxicos e adubos sintéticos pelas famílias rurais, que
se deslocam frequentemente às sedes dos municípios ou às cidades-pólo,
à procura de serviços médico-farmacológicos e outros serviços básicos.
(FLORIANI et al., 2016).
Esses são alguns dos sintomas da perda da segurança alimentar,
autonomia tecnológica e viabilidade econômica dessas comunidades.
Tais sintomas revelam um processo profundo de transformação do
modo de vida rural que vem a desvelar um quadro conflitivo entre
racionalidades, entre visões de ruralidade e estilos de desenvolvimento.
Os conflitos sociais no campo entre essas comunidades e os antigos e
novos atores sociais antagônicos revelam, portanto, o processo histórico
de disputa pelos usos e apropriação do território e seus patrimônios
(FLORIANI et al., 2014).
Tais conflitos socioambientais, exprimem um duplo processo
de expropriação das condições materiais e culturais de existência e
de trabalho dessas populações, implicando a perda progressiva da
diversidade das formas de relacionamento desses grupos com a natureza
(VIEIRA; BERKES, 2004). No seu extremo, tais conflitos derivam em
fissuras internas entre os moradores, podendo no limite provocar a
desintegração da comunidade e a perda do patrimônio socioterritorial.
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 85

Por outro lado, o cenário de desestruturação socioespacial em


que vivem essas populações levou à mobilização e organização das
comunidades rurais tradicionais, evidenciando-se uma reação às
tentativas de impedir a observância dos direitos territoriais, fazendo com
que estas se mobilizem e se organizem em torno de seus direitos para
enfrentar as situações que lhes são adversas (SHIRAISHI NETO, 2009).
Assim, novos atores sociais do campo começam a apresentar-se
como projeto alternativo de ruralidade: pescadores artesanais, caiçaras,
pantaneiros, quebradeiras de coco, etc passam a demandar do estado
o reconhecimento de seus direitos socioterritoriais, de maneira que
No ano de 2006, as Comunidades e Territórios Tradicionais passam a
ser reconhecidos e definidos com da instituição a Política Nacional de
Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais
(Decreto 6.040/07), como
[...] Grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem
como tais, que possuem formas próprias de organização social,
que ocupam e usam territórios e recursos naturais como
condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral
e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas
gerados e transmitidos pela tradição (BRASIL, 2007).

Nessa recente conjuntura política, em 2007, com o intuito de realizar


um inventário da situação socioeconômica e ambiental dos territórios
tradicionais no estado do Paraná, realiza-se, com o apoio do Instituto de
Terras e Cartografia e Geografia (ITGG), o projeto ‘Cartografia Social’.
Dados relativos à Regularização Fundiária e Cidadania, Cadastro de
Imóveis Rurais, Mapeamento Sistemático e o Zoneamento Ecológico-
Econômico, aparecem como temas centrais para atender reivindicações
históricas feitas pelos faxinalenses, caiçaras e quilombolas (ITCG, 2015).
Ganhar visibilidade social para garantir a reprodução de suas
territorialidades passou a constituir um projeto coletivo das populações
tradicionais, apoiadas por distintos atores sociais: setores da Universidade
Pública, ligados à pesquisa-extensão, setores do poder público (Instituto
Ambiental do Paraná, Promotoria do Meio Ambiente, Instituto de Terras
e Cartografia, Instituto de Colonização e Reforma Agrária), ONGs
socioambientais e sindicatos de agricultores; todos eles engajados no
reconhecimento dos direitos dos povos tradicionais e na efetivação de
86 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

estratégias de desenvolvimento socioambiental – que inclui formas


alternativas de produção e comercialização, baseadas no paradigma
agroecológico – e regularização fundiária dos territórios.
De fato, no discurso desses novos sujeitos de direito aparece como
um dos temas centrais a reprodução da agrobiodiversidade do Território
Tradicional como elemento indissociável à reprodução de sua identidade;
especificamente, a Floresta Manejada (Agrofloresta tradicional) aparece
como elemento comum entre essas comunidades; coletivamente
apropriada, figura como símbolo da reprodução sociocultural do modo
de vida tradicional. No caso de populações tradicionais paranaenses
que habitam a Região dos Faxinais e onde se inserem também muitas
comunidades paranaenses remanescentes de quilombolas, o imaginário
da floresta-território pode ser interpretado como um símbolo organizador
da reprodução socioeconômica da comunidade rural, elemento de
resistência de suas territorialidades frente ao projeto modernizador do
mundo rural (FLORIANI et al., 2016; SKEWES; SILVA, 2013).
Em outros termos, fala-se do reconhecimento do direito das
comunidades tradicionais e agricultores familiares “ao acesso aos
recursos da biodiversidade e à repartição justa e equitativa de benefícios,
de maneira a promover a valorização e respeito da diversidade cultural e
conhecimento tradicional” (MOA; MMA; MOS, 2009, p. 13).
Poder público e academia se vêm, pois, impulsionados pelas
demandas sociais a desenvolver mecanismos de representação daquelas
realidades, forçando os muros quase herméticos dessas instituições a
se tornarem permeáveis. Tais demandas seriam agora pautadas pelas
políticas públicas, sofrendo, contudo, interpretações e traduções em
conformidade às estruturas democrática e do pensamento científico,
cujo reflexo estaria coadunariam em 2013 na instauração da Comissão
Estadual de Povos e Comunidades Tradicionais no Paraná (Lei Estadual
nº 17425/2012), semelhante à criada em 2006 na esfera nacional. Nessa
estrutura representativa (o colegiado com função deliberativa, consultiva
e fiscalizadora), 12 representantes de populações tradicionais figuram
como porta-vozes desses novos atores sociais do campo.
No último decênio, a partir de 2003, por conta da conjuntura
política favorável aos movimentos sociais do campo, o engajamento do
Ministério de Desenvolvimento Agrário abre-se para a construção de
uma política convergente para o Desenvolvimento Rural Sustentável
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 87

e Solidário. Assim, esse processo envolveu mediações e articulações


políticas mais complexas, pois a partir desse momento os atores
começaram a influenciar as propostas de acordo com suas demandas:
programas como PRONAF Agroecologia, Brasil Agroecológico, Cultivares
Crioulas, Mulheres Rurais, ATER Povos e Comunidades Tradicionais
geraram grandes embates políticos, e rupturas na forma de construção
das políticas relacionadas à agricultura familiar.
Essa conjuntura política convergiu, em 2012 na criação do Plano
Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica (PNAPO), significando
a abertura de espaços no que tange à representatividade de interesses
diversos no Âmbito político institucionalizado para a construção dessa
política. Em 2013, após amplo debate com setores da sociedade civil
organizada (congregados na Associação Nacional para a Agroecologia –
ANA) institui-se O Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica
foi instituído assinada pelos ministérios do Desenvolvimento Agrário,
da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, do Desenvolvimento Social e
Combate a à Fome, do Meio Ambiente, da Pesca e Aquicultura, da Saúde,
da Educação, da Ciência e Tecnologia, da Fazenda.
Dentre as metas da PLANAPO, figuram: a promoção da ATER
para a transição de sistemas sustentáveis de produção; fortalecimento
de rede de pesquisa com disponibilização de tecnologias agroecológica;
promoção da formação agroecológica com ênfase na agroecologia
para agricultores/as, jovens e técnicos de Ater; apoio a 30 redes de
agroecologia, extrativismo e produção orgânica de agricultores familiares;
Apoiar a conservação, multiplicação, disponibilização, distribuição
e comercialização de sementes e mudas crioulas e varietais; apoio a
promoção e comercialização dos produtos orgânicos e agroecológicos;
ampliação da participação dos produtos orgânicos e agroecológicos em
mercados locais, regionais e institucionais (BRASIL, 2016).
Não obstante, em que pese os recentes avanços do reconhecimento
dos direitos sociais e territoriais dessas populações e o incentivo à
conversão ao modelo de produção agroecológico – mesmo em instâncias
do sistema jurídico e dos organismos democráticos formais – mecanismos
institucionais pouco eficazes e de curto alcance não têm permitido às
populações rurais vulneráveis a usufruírem plenamente desses direitos e
o acesso às políticas públicas promotoras do desenvolvimento rural. Ora,
na contramão de outros países europeus e mesmo latino-americanos,
88 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

o Brasil mostra retrocesso na política agrária, figurando como o


maior consumidor de agrotóxicos do mundo e o segundo produtor
de monococultivos transgênicos (OLIVEIRA, 2009; NORDER, 2014;
HOFMANN, 2014).
Ademais, cabe destacar que o hermetismo dos sistemas técnicos
(jurídicos, econômicos, agronômicos, entre outros), especificamente, no
que tange ao sistema técnico-jurídico impede que esses atores consigam
compreender a lógica e a dinâmica dos dispositivos legais, de forma que
lhes é impedida, em primeira instância, sua inclusão social.
Essas barreiras institucionais formais mostram-se presentes tanto
na escala nacional como regional e local. E, sobretudo, nestas duas
últimas escalas, onde os atores sociais antagônicos têm ocupado posições
privilegiadas na tomada de decisão, impondo suas demandas sobre os
projetos coletivos dessas comunidades.
Por outro lado, pensar a reprodução socioterritorial dessas
comunidades rurais tradicionais – que apresentam como traço cultural
essencial a indissociabilidade das dimensões sociais, econômicas e
ecológicas – requer pensar projetos e iniciativas socioambientais
alternativas ao modelo de modernização hegemônico e homogeneizador
do espaço rural. Tais ações alternativas devem ser capazes de agenciar
as particularidades daquelas dimensões, equacionando as diferentes
modalidades de acesso aos recursos de uso comum (tais como as
florestas e as águas), às práticas produtivas ecologicamente sustentáveis,
à equidade social, e à viabilidade econômica.
Para além da estrita lógica econômica, a territorialidade tradicional
aparece como racionalidade contra-hegemônica quando se fundamenta
em valores substantivos socioambientais, aparecendo, assim, como
contraponto aos paradigmas convencionais de interpretação das
complexas realidades rurais (aparecendo inclusive, por isso, como
irracionalidades do ponto de vista econômico e tecnológico1) (LEFF,
2009; ESCOBAR, 1999; MATHIEU, 2016).

1 Não pretendemos nos ater neste tema amplamente debatido na sociologia rural (Henri
Mendras, Huge Lamarche, Eric Sabourin, Ricardo Abramovay, Nazaré Wanderley,
Marcel Jollivet, Nicole Mathieu, Van der Ploege, e muitos) antropologia econômica
(Marcel Mauss, Maurice Godelier, Karl Polany) e economia ecológica (Martínes Alier)
que aborda a especificidade da lógica produtiva camponesa como prática econômica
distinta da lógica da acumulação capitalista.
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 89

O modo de vida rural (sua espacialidade e temporalidade) passa


agora a ser entendido como espaço de reprodução da vida lato sensu,
para além da geração exclusiva da mais valia e contra a perpetuação
das estruturas jurídico-políticas baseadas na propriedade privada, a
partir das quais se territorializa a lógica homogenizante do capital
agroindustrial transnacional, processo este legitimado pelo discurso
hegemônico tecnocientífico de natureza.
Ora, conforme Claude Raffestin (1980), destruir a territorialidade
de um grupo social é destruir toda uma simbologia que sintetiza a
relação de um grupo com seu território, cujo desaparecimento impede
a manutenção de um diálogo com o meio espaço-temporal. Destruir
a territorialidade significa “o fim de um diálogo multidimensional
(traduzido na diversidade de interrelacionamentos entre humanos e
entre humanos e as coisas, acrescentamos): somente o diálogo alto versus
baixo é mantido (isto é, do Estado com o local), o diálogo horizontal é
anulado” (RAFFESTIN, 1980, p. 183).
Por outro lado, pensar a reprodução socioterritorial dessas
comunidades rurais tradicionais - que apresentam como traço cultural
essencial a indissociabilidade das dimensões sociais, econômicas e
ecológicas – requer pensar projetos e iniciativas socioambientais
alternativas ao modelo de modernização hegemônico e homogeneizador
do espaço rural. Tais ações alternativas devem ser capazes de agenciar
as particularidades daquelas dimensões, equacionando as diferentes
modalidades de acesso aos recursos de uso comum (tais como as
florestas e as águas), às práticas produtivas ecologicamente sustentáveis,
à equidade social, e à viabilidade econômica. Este novo entendimento de
rural exige uma nova abordagem de desenvolvimento, ganhando especial
relevo o papel dos agricultores, que passam, conforme Schneider (2004):
[...] A orientar suas práticas produtivas não mais segundo o
padrão agricultor-empresário profissional, mas, crescentemente,
para o modelo de um agricultor-camponês, que é autônomo,
domina tecnologias, toma decisões, controla e gestiona processos,
enfim, decide sobre seu modo de viver e trabalhar nos marcos de
uma sociedade capitalista (SCHNEIDER, 2004).

Assim, a noção de Desenvolvimento deve ser concebida como expansão


de liberdades substantivas (SEM, 2010) entendido como expressão
90 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

dos processos qualitativos histórico-culturais-espaciais, centrados em


valores éticos que fundamentem as relações socioambientais (VEIGA,
2010). Em última instância, conforme Veiga (2010, p. 10):
[...] O desenvolvimento depende da cultura, na medida em que
ele implica a invenção de um projeto. Este não pode se limitar
aos aspectos sociais e sua base econômica, ignorando as relações
complexas entre o porvir das sociedades humanas e a evolução
da biosfera; na realidade estamos na presença de uma coevolução
entre dois sistemas que se regem por escalas de tempo e escalas
espaciais distintas.

Jogam, portanto, papeis fundamentais para a nova abordagem


qualitativa de das dimensões plurais do desenvolvimento as disposições
sociais (contrato social) que envolvam muitas instituições (o Estado, o
mercado, o sistema legal, os partidos políticos, a mídia, os grupos de
interesse público, os foros de discussão, entre outros) podem contribuir
para a expansão e a garantia das liberdades substantivas dos indivíduos,
vistos como agentes ativos de mudança, e não como recebedores passivos
de benefícios (SEM, 2010, p. 11).
O papel do agente de desenvolvimento, conforme Lavôr et al. (2015),
é aquele do articulador, não só de ações de crescimento econômico,
mas, também, como um educador (ecoformador) que possa agregar
ecodesenvolvimento e desenvolvimento sustentável, no qual são
articulados os níveis de capitais social e natural das comunidades com o
poder público:
[...] O capital humano (os conhecimentos, habilidades e
competências da população local, as condições e a qualidade
de vida), o capital social (os níveis de confiança, cooperação,
organização social e os níveis de poder da população local), o
papel do governo no plano municipal (a capacidade gerencial do
governo local e os níveis de participação e controle social) e o
uso sustentável do capital natural (ambiente – abiótico e biótico)
são ferramentas indispensáveis para se ter um articulador
comprometido com o desenvolvimento local (LAVÔR et al., 2015).

Destaca-se nessa lógica que o conceito de Novos de Arranjos


Institucionais figura como dispositivo agenciador de estratégias de
desenvolvimento e inclusão social local. Conforme Vieira e Berkes
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 91

(2004), apoiado no princípio de subsidiariedade – em contraposição


ao princípio de centralização burocrática dos processos decisórios – a
existência destes novos arranjos institucionais mostram as relações de
interdependência entre diversos atores sociais, envolvendo os níveis
comunitário, microrregional, regional e nacional.
Portanto, pensar o Desenvolvimento Rural Sustentável exige
pensar um novo paradigma para os saberes científicos e as práticas
institucionais formais de representação política. Um paradigma
baseado no pensamento complexo que seja capaz de interconectar as
dimensões da sustentabilidade pensadas e praticadas desde diferentes
óticas e segundo os diversos atores sociais envolvidos nesse processo,
possibilitando ampliar e tornar mais permeáveis e participativos os
processos decisórios e de governança, em diferentes escalas e dimensões.
Ora, o modo de viver e de habitar faxinalense apresenta-se
como projeto alternativo ao modelo urbano-industrial ancorado na
estrita racionalidade econômica, por assentar-se em estilos culturais
fundamentados na solidariedade comunitária das relações humanas e na
indissociabilidade destas com os coletivos-não humanos (o ecossistema
florestal). Com efeito, a agrofloresta faxinalense exprime e sintetiza essa
relação socioambiental sendo valorizada pelo projeto agroecológico ao
redirecionar os saberes-fazeres locais às dimensões da sustentabilidade.
Por outro lado, a certificação é um critério importante para
estabelecer uma relação harmônica e equitativa com os consumidores
atentos aos processos produtivos que atendam às normas sanitárias,
ambientais, trabalhistas e sobretudo a sua origem socioterritorial e
qualidade alimentar. É um processo que permite ampliar mercados,
expandir as vendas, diferenciar e qualificar os produtos, desenvolver a
confiabilidade dos consumidores.
O SISOrg (Sistema Brasileiro de avaliação da Conformidade
Orgânica, em sua Lei nº 10.831/2003 e o Decreto nº 6323/2007)
regulamenta e estabelece regras precisas no que tange à criação de Três
Mecanismos de Certificação: i) Auditoria externa (organismo público ou
privado de avaliação da conformidade); ii) Sistemas Participativos de
Garantia (entidade jurídica credenciada pelo MAPA); iii) Organizações
de Controle Social: permite Venda Direta pelos agricultores familiares
sem certificação (BRASIL, 2017).
92 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Nesses termos, a partir da problemática ora evidenciada, o


projeto “Selo Socioambiental “Produtos da Agrofloresta Faxinalense”:
Capacitação Sociotécnica e Empoderamento Jurídico e Cultural para
a Inclusão Socioeconômica de Comunidades Rurais Tradicionais do
Paraná” se insere nesse contexto de empoderamento e inclusão social
das comunidades rurais faxinalenses que encontram-se em situação de
vulnerabilidade socioterritorial, de maneira a permitir a viabilização
de alternativas socioculturais ao modelo modernizador do espaço rural
paranaense que produziu e vem produzindo profundas desigualdades
regionais, relegando as populações tradicionais rurais à margem do
processo de desenvolvimento socioespacial.
Por fim, destaca-se que a proposta em andamento visa dar
continuidade ao projeto de desenvolvimento socioterritorial das
comunidades tradicionais do Paraná, buscando por meio da criação
do Selo Socioambiental de produtos da Agrofloresta Faxinalense e de
sua certificação participativa da qualidade agroalimentares aproximar
produtores e consumidores e estimular a compra de alimentos de base
ecológica em Circuitos Curtos de Comercialização (CCC), incluindo
a oferta da diversidade de mercadorias ofertadas aos mercados
institucionais (Programa Nacional de Alimentação Escolar – PNAE e o
Programa de Aquisição de Alimentos – PAA).
Para a realidade faxinalense pesquisada, o modelo de Organizações
de Controle Social (OCS) é um sistema que se adaptaria à organização
social desta realidade rural baseada em relações de compadrio e de
vizinhança consuetudinariamente estabelecidas, ademais de apoiar-se
na lógica econômica familiar e em valores substantivos, tais como a ética
pelo zelo aos bens naturais (WANDERLEI, 2000; LAMARCHE, 1993;
CARMO, 1998; NAVARRO, 2014; QUEIROZ, 1973; NORDER et al., 2015,
entre outros).
Tais propostas, conforme Darolt (2013), são alguns desafios para
se criar um modelo de consumo alimentar ecologicamente sustentável,
aproximando atores em um novo arranjo institucional capaz de criar
condições para o desenvolvimento territorial rural (SCHNEIDER et al.,
2004).
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 93

Uma proposta metodológica inter-transdisciplinar para um


sistema de certificação da qualidade do processo agroalimentar
tradicional

Um processo de geração de credibilidade, necessariamente


reconhecido pela sociedade, deve ser agenciado na escala do território,
por um grupo de pessoas que trabalham e se relacionam com
público consumidor, os bens naturais e as famílias rurais, de maneira
comprometida com o bem-estar dessas coletividades. Tal processo de
certificação da qualidade agroalimentar deve estar em conformidade
com os princípios do modo de vida tradicional faxinalense e estabelecido
pela participação direta dos seus membros em ações coletivas educativas
para avaliar e garantir a conformidade dos seus produtos aos princípios
da produção agroflorestal de base ecológica.
Dada a complexidade de elementos e variáveis em jogo na criação
de um sistema participativo de certificação do processo produtivo,
torna-se imprescindível o agenciamento de uma equipe interdisciplinar
de pesquisa que seja virtualmente capaz de responder às questões
complexas que envolvem dimensões ecológicas, econômicas e culturais
próprias da realidade rural das comunidades tradicionais envolvidas
nestas ações de desenvolvimento territorial.
Das múltiplas variáveis em jogo no processo de adoção de modelos
alternativos de produção e comercialização, emergirão, em última
análise, (re)arranjos socioterritoriais com repercussões em nível de
representações, conhecimentos e práticas de agrobiodiversidade e
reprodutibilidade socioecológica (FLORIANI, 2016).
Portanto, o processo de criação de normas internas de produção e
comercialização deve respeitar os sistemas estadual e nacional vigentes,
mas também deve ser coerente com as realidades socioambientais
das comunidades envolvidas, de maneira que exige ações pedagógicas
viabilizadoras da construção de uma ética ambiental e agroalimentar
coletiva. Tais princípios e dimensões devem ser constituintes do sistema
participativo de certificação dos produtos da agrofloresta faxinalense.
Tratando-se de um processo de adoção e desenvolvimento de
tecnologias sociais, a idealização do projeto destacou como factual a
configuração de um complexo problema de pesquisa, configurado de
variáveis de seguintes ordens:
94 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

i) Ecossistêmica (as práticas e as representações da regeneração


da fertilidade e das vocações produtivas dos ecossistemas agrícolas,
florestais e pecuários);
ii) Sociocultural (as práticas e as representações de reafirmação de
solidariedade comunitária e regimes de propriedade da terra);
iii) Econômica (as tecnologias de exploração dos recursos,
organização do trabalho e repartição dos seus produtos);
iv) Política (a territorialização de políticas institucionalizadas de
ciência, assistência e extensão rural, bem como das dinâmicas globais
do capital e a efetividade de representatividade da comunidade nesses
espaços políticos).

Assim, a equipe interdisciplinar deve abranger profissionais do


direito, da agronomia, da engenharia de alimentos, da geografia, da
pedagogia, da administração, entre outros capazes de estabelecer um
diálogo com os saberes locais patrimoniais, equacionando as diferentes
modalidades de acesso aos recursos de uso comum (tais como as terras, as
florestas e as águas), às práticas produtivas ecologicamente sustentáveis,
à equidade social, e à viabilidade econômica.
Nesses termos, aparece como imprescindível a constituição de uma
equipe interdisciplinar, capaz de dialogar e atuar em nível de rede com
outros atores do território, envolvidos no projeto de desenvolvimento
local, e que seja virtualmente capaz de dar concretude às seguintes ações:
a) Elaboração de modelos explicativos da territorialidade tradicional
e dos problemas socioambientais em nível regional;
b) Elaboração de cursos e oficinas de capacitação sociotécnica em
agroecologia, que inclui o empoderamento jurídico e alternativas de
comercialização, em conformidade com as territorialidades doravante
caracterizadas; possibilitando;
c) A identificação dos aspectos (dimensões) mais relevantes e
decisivos para a efetivação ou não desse projeto agroecológico, isto é,
dos capitais socioculturais catalizadores de práticas alternativas de
produção (de base ecológica), de geração de renda (dinamização da
economia territorial) e empoderamento jurídico (efetivação dos direitos
socioterritoriais) dos agentes comunitários.
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 95

Com base nos objetivos dos projetos colocados em prática pelos


referidos atores sociais conforme as diferentes realidades socioterritoriais
vivenciadas nas comunidades rurais envolvidas, foi possível esboçar
uma proposta metodológica estruturada em 3 Metas, envolvendo
instrumentos e técnicas participativos de construção de cenários e de
projetos coletivos.
Assim, a Meta 1 envolve o “Diagnóstico Rural e os Levantamentos
Etnoecológicos”, tendo como produto principal a construção de “Bancos
de Sementes, Saberes e Fazeres Patrimoniais”, isto é, a elaboração de
modelos explicativos da territorialidade tradicional e dos problemas
socioambientais em nível regional (Quadro 1).

Quadro 1 – Metodologia e resultados esperados da meta 1.


Org.: Os autores.

A Meta 2, conta com “Oficinas Participativas de Capacitação


Sociotécnica em Agroecologia”, tendo como produto final a elaboração
de “Cartilhas Agroflorestais Locais” (Quadro 2).
96 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Quadro 2 – Metodologia e resultados esperados da meta 2.1


Org.: Os autores.

Quadro 3 – Metodologia e resultados esperados da meta 2.2.


Org.: Os autores.
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 97

A Meta 3 apresenta como finalidade a “Organização de Feiras


Acadêmico-Comunitárias” e a “Organização de dias de campo” para
a troca de experiências entre agricultore(a)s e técnicos (Quadro 3).

Quadro 4 – Metodologia e resultados esperados da meta 3.


Org.: Os autores.

Alguns resultados alcançados

O projeto “Selo Socioambiental Produtos da Agrofloresta


Faxinalense” apresenta como objetivos gerais: promover a capacitação
sociotécnica e o empoderamento jurídico e econômico de comunidades
tradicionais faxinalenses do Estado do Paraná por meio da criação do
Selo socioambiental “produtos da agroflorestal faxinalense”, de modo a
viabilizar propostas concretas de inclusão social para o desenvolvimento
sustentável dessas coletividades em situação de vulnerabilidade
socioterritorial.
Especificamente, quatro comunidades rurais tradicionais
faxinalenses foram beneficiárias das ações do projeto de empoderamento
e inclusão social: Faxinal Sete Saltos (Ponta Grossa), Marmeleiro
(Rebouças), Taquari dos Ribeiros (Rio Azul), Faxinal dos Seixas (São João
98 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

do Triunfo). Tais comunidades foram indicadas pelo movimento social


Articulação Puxirão de Povos Faxinalenses que representa 227 faxinais
mapeados entre 2005 e 2008 (SOUZA, 2008).
No decorrer do referido projeto, ações e instrumentos participativos
de diagnóstico das situações econômicas e sociais possibilitaram: a)
inventariar e elencar as potencialidades produtivas dessas comunidades,
b) reorganizar as associações comunitárias junto aos cartórios e
eleger novos representantes, c) criar o selo de produtos faxinalenses,
d) estabelecer circuitos alternativos de comercialização dos produtos
elencados em feiras municipais da Região.
Para tanto, além de contar com a própria Universidade Estadual de
Ponta Grossa (UEPG), especificamente com a Pró-reitoria de Extensão
e Assuntos Culturais (PROEX-UEPG) e o Programa de Pós-graduação
em Geografia (PPGEO-UEPG), o projeto buscou estabelecer parcerias
institucionais com o Ministério Público do Meio Ambiente (CAOPMA),
Ministério do Trabalho, Instituto Ambiental do Paraná (IAP), OnGs
como o Instituto Equipe de Educadores Populares (Irati), e Casa Latino
Americana (CASLA), Secretaria Municipal de Agricultura de Rebouças,
Secretaria do Meio Ambiente do Município de Ponta Grossa e Instituto
Federal do Paraná (IFPR), campus Irati, Universidade do Centro-Oeste
(UNIOESTE-Irati), Programa de Pós-graduação em Meio Ambiente e
Desenvolvimento (MADE-UFPR)2 .
Em termos operacionais, o objetivo geral derivou em ações específicas
para alcançar os resultados esperados no projeto:
a) Levantamento das potencialidades produtivas e alimentares;
b) Regularização jurídica das associações comunitárias;
c) Criação do selo de produtos da agrofloresta Faxinalense;
d) Criação de sítio eletrônico de produtos e comunidades
envolvidas;

2 O projeto contou com a participação da Equipe Técnica, constituída por Dr. Nicolas
Floriani (coordenador), Drª. Marilisa do Rocio Oliveira (PROEX-UEPG), Msc. Ronir de
Fatima Rodrigues (Pedagoga do projeto), Tamires Benki (Administradora do Projeto) e
Miriane Serratto (Estagiária de Geografia). O projeto também contou com importantes
parceiros institucionais, tais como: Dr. Saint-Clair Honorato Santos (MP-PR), Drª.
Gladys de Souza Sanchez (CASLA), Drª. Margit Hauer (IAP), Dr. Dimas Floriani
(MADE-UFPR), Dr. João Dremiski (IFPR-Irati), Dr. Ancelmo Schorner (UNICENTRO-
Irati), Msc. Andrea Mayer Veiga (CASLA), Msc. Tiago Augusto Barbosa (Interconexões,
UEPG), Msc. Michel Kuller (IEPP).
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 99

e) Viabilização de circuitos alternativos de comercialização


solidária.

Em termos cronológicos, a distribuição das atividades nos doze


meses previstos para o desenvolvimento do projeto foi representada nas
figuras a seguir:

Figura 1 – Cronologia das atividades previstas e executadas no projeto


(2016-2018)
Org.: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

Figura 2 – Continuação da cronologia das atividades


Org.: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

100 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Do conjunto de produtos inventariados e com potencial comercial,


figuram seis principais produtos em ordem de alimentos mais vendidos,
conforme a Figura 3.

Figura 3 – Alimentos dos faxinais com potencial de produção para venda


(2017).
Org.: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

A Regularização jurídica das associações comunitárias foi uma


ação essencial à continuidade do projeto. Tratando-se do conjunto dos
quatro faxinais assistidos, dois deles, o Faxinal do Salto (Rebouças) e
Sete Saltos de Baixo (Ponta Grossa), tiveram que passar por processos de
regularização contábil e atualização de seus regimentos, de maneira que
foram eleitos novos representantes e novas regras discutidas e redigidas.
O acordo comunitário foi um tema de extrema importância debatido
no Faxinal Sete Saltos de Baixo. A nova a constituição que rege os
direitos e deveres dos moradores antigos e novos (chacreiros de origem
urbana) passou a ser ampla e exaustivamente discutida. Incluiu-se no
debate do novo regulamento deste faxinal, temas como a concessão
de parcelas a serem temporariamente cercadas para regeneração da
Floresta Nativa, bem como o percentual máximo de área cercada dentro
dos estabelecimentos domiciliares (20%). Ademais, foi viabilizado em
comum acordo entre o IAP e a Prefeitura Municipal de Ponta Grossa
o cadastro ambiental rural das áreas localizadas dentro dos limites do
criadouro comunitário.
No período de dezembro de 2016 a março de 2018, alguns resultados
esperados foram sendo concretizados. No que tange ao rol de alimentos
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 101

inventariados nos Faxinais com potencial de produção para venda,


figurando seis principais produtos em ordem de alimentos mais
vendidos, os seguintes produtos (Figura 4):

Figura 4 – Gráfico dos produtos faxinalenses mais vendidos em feiras


Org.: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

Com base nas oficinas participativas realizadas para o inventário


dos Bens Naturais e da Organização Social nas comunidades, chegou-
se a um elenco de símbolos destacados nas falas dos agricultores e
agricultoras, o que possibilitou a criação arbitrária da Marca do Projeto.
Não obstante, muitos símbolos foram deixados de lado (abelhas, frutas e
folhas específicas, portões, etc).

Figura 5 – Marca do Projeto Selo Socioambiental Faxinalense


102 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Não obstante, é consensual entre os membros da equipe a necessidade


de cada comunidade possuir sua própria Marca, a ser impressa juntamente
com o selo faxinalense nos rótulos dos produtos comercializáveis. No
que tange à viabilização de circuitos alternativos de comercialização
solidária, é a ação mais importante esperada pelas comunidades e
pelas instituições envolvidas no projeto. Não obstante, é uma ação
que exige uma série de atores envolvidos em suas respectivas formas
de atuação e limitações. As organizações sociais, nesse sentido, foram
essenciais à abertura inicial às formas alternativas de comercialização.
As feiras de agricultores familiares ligados à agroecologia foram
os dispositivos acessados nesse projeto. Outra forma interessante de
estabelecer mecanismos solidários de economia foram os eventos
acadêmicos na região e na própria comunidade (Quadro 5).

15º Feira Regional de Sementes Crioulas e da Agrobiodiversidade, município de


Teixeira Soares, PR
5º Feira Regional de Sementes Crioulas, município de Quatro Barras, PR
6º Jornada de Agroecologia e Feira de Agrobiodiversidade Camponesa e Popular e
Culinária da Terra, Município da Lapa, PR
11º Encontro Acadêmico-Comunitário da Universidade Itinerante, Distrito de
Itaiacoca, município de Ponta Grossa, PR
Quadro 5 – Participações em feiras e eventos acadêmicos com exposição e
venda de produtos faxinalenses (2017)
Org.: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

Não obstante, em que pese as ações efetivas empreendidas nos


12 meses previstos para o projeto precedente, uma etapa não menos
importante não pôde ser concluída: trata-se da elaboração do sistema
de certificação da qualidade do processo produtivo de alimentos da
agrofloresta faxinalense.
Para tanto, um novo projeto em 2018 foi elaborado e aprovado pela
Secretaria de Ciência e Tecnologia do Estado do Paraná pelo Programa
Universidade sem Fronteiras: “Sistema Participativo de Certificação
Socioambiental da Agrofloresta Faxinalense: da diferenciação à
qualificação dos produtos de comunidades rurais tradicionais do Paraná”
(Figura 6 e 7).
SELO DE PRODUTOS DA AGROFLORESTA 103

Figura 6 – Produtos faxinalenses nas feiras


Fonte: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

Figura 7 – Participações do Projeto em Feiras


Fonte: Grupo de Pesquisas Interconexões, 2018.

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O saber-fazer agroecológico: uma experiência da
Comunidade Caiçara do Guaraguaçu

Antônio Marcio Haliski, Keila Cássia Santos Araújo,


Paulo Rogério Lopes, Nicolas Floriani

O termo Agroecologia, na visão de Altieri (1989, p. 29), “pode


significar muitas coisas”. Isso implica a Agroecologia para além de
uma ciência que possui princípios teóricos, práticos e metodológicos
que possibilitam a transição de sistemas convencionais de cultivo
para sistemas ecológicos de produção. Esta é ainda considerada um
movimento de cunho político e uma prática que, por sua vez, tem como
alicerce o respeito e a valorização às culturas e conhecimentos dos povos
tradicionais.
Os saberes dos povos indígenas, quilombolas, seringueiros, caiçaras,
ribeirinhos, camponeses, dentre outros, são essenciais para a conservação
da agrobiodiversidade e da sociobiodiversidade (LOPES; LOPES, 2011).
Esses saberes tradicionais geralmente são transmitidos por várias
gerações com o intuito de possibilitar a reprodução dos mesmos para as
gerações precedentes.
As práticas agroecológicas são provenientes dos saberes adquiridos
pelos diferentes povos e comunidades. Estas, trazem a conotação
multidimensional. De acordo Guimarães (2014), a multidimensionalidade
abrange sistemas mistos, denominados de naturais e culturais, entre
os quais ocorrem interações tanto da biogeosfera, como por processos
noosféricos, que implicam na transmissão através de informações
culturais. Isso implica que as dimensões sociais e ecológicas se encontram
entrelaçadas, interagem e se influenciam mutuamente, ou seja, os
indivíduos sofrem influência direta dos benefícios da natureza, bem como,
atua sobre a mesma, como uma via de mão dupla. Essa abordagem nos
possibilita entender a Agroecologia como uma prática milenar, pautada
nas relações sociais existentes entre os povos primitivos e seus territórios.
Relações estas oriundas do aprender fazer na perspectiva empírica que
deram origem aos sistemas antigos de captação e conservação da água e
de sementes, criação de animais, elaboração de técnicas e práticas para a
manutenção da vida de comunidades tradicionais.
108 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Dessa forma, o presente texto tem por objetivo descrever e


destacar os aspectos multidimensionais, ou seja, a relação entre os
aspectos culturais e naturais, de uma comunidade caiçara denominada
Guaraguaçu, situada em Pontal, litoral do estado do Paraná-PR. Além
disso, o capítulo aborda as práticas agroecológicas, saberes tradicionais,
construídos e reconstruídos pela comunidade, corroborando com a
compreensão da Agroecologia enquanto prática, movimento e ciência.
Destaca-se que as práticas e conhecimentos agroecológicos
englobam para além dos tratos culturais com a terra, mas implica nos
conhecimentos relacionados à culinária, às plantas medicinais, plantas
alimentícias, ao clima, ao solo, aos animais, à organização e gestão da
unidade familiar, dentre outros saberes. Esses saberes acumulados,
construídos e reconstruídos ao longo dos tempos são denominados
Etnoconhecimentos: Etnoedafologia (conhecimento tradicional acerca
do solo), Etnoveterinária (conhecimento tradicional veterinário),
Etnoclimatologia (conhecimento tradicional climático), Etnobotânica
(conhecimento tradicional acerca das plantas), etc.
Ao analisarmos a produção acadêmica de autores como Balestro
e Saur (2009), sobre a Agroecologia, constatamos um entendimento
comum que é exatamente a finitude dos recursos naturais e os impactos
nocivos do capitalismo sobre povos e culturas (nos planos econômico,
social, cultural, ambiental). Assim, temas como a transição agroecológica,
segurança e soberania alimentar, passam a serem tratados como condição
indispensável para a manutenção da vida no planeta.
A transição agroecológica seria a passagem de uma modelo
capitalista predatório concentrador de riquezas para a um modelo mais
equânime, justo, solidário, menos desigual, ecológico e ético caminhando
rumo a sociedades sustentáveis. Nesse modelo de desenvolvimento as
bases locais devem ser valorizadas, visto que a relação sociedade(s)/
natureza ganha destaque. Trata-se da valorização da tradição, dos
saberes vernaculares, da relação construída com a natureza, de práticas
e técnicas desenvolvidas pelo saber-fazer ao longo do tempo. Enfim, a
valorização da multidimensionalidade de práticas/ações/saberes nos
mais variados planos (econômico, político, cultural, ético, ambiental,
etc). Neste sentido, todo o conhecimento acumulado se transforma
numa rede de saberes que sustentam as bases da vida e da manutenção
do planeta Terra. Infelizmente ao invés destes saberes milenares serem
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 109

valorizados pelas ditas “sociedades modernas”, visto que podem ser


adaptados e/ou reconstruídos para corroboram com a sustentabilidade
atual, são desconsiderados e destruídos, seja pelas políticas públicas ou
pelos grupos econômicos, majoritariamente, exploradores e destruidores
dos recursos naturais. Neste sentindo, a Agroecologia surge como um
movimento de resistência e luta pelas diferentes formas de vida, culturas
e saberes. Sendo uma das pautas de reinvindicação da Agroecologia,
a “segurança e soberania alimentar dos povos”, ligadas ao direito de
produzirmos e nos alimentarmos de uma forma saudável, pois combate
desde o(s) monopólio(s) do agronegócio sobre a produção de alimentos,
saberes socioprodutivos de povos e comunidades, até aspectos como
desnutrição e obesidade.

Características gerais

O litoral é composto por sete municípios (Paranaguá, Morretes,


Antonina, Guaraqueçaba, Matinho, Guaratuba e Pontal do Paraná) que
apresentam além de áreas territoriais e paisagens muito díspares, uma
concentração populacional desigual.
Conforme Silva et al. (2013), na área montanhosa do litoral
prevalecem formações da Serra do Mar como um divisor entre o
planalto e o litoral. Destaca-se o fato da planície litorânea apresentar
dois compartimentos bem distintos: mais próximo à Serra do Mar,
esta planície é formada principalmente por sedimentos mais argilosos,
provenientes do desgaste das montanhas; e na proximidade do Oceano
Atlântico a planície litorânea é formada predominantemente por
sedimentos mais arenosos de origem marinha.
Por conta dessa trajetória geológica o que temos no município de
Pontal do Paraná é o predomínio do que os populares descrevem como
“areião”. Cientificamente é conhecido como Espodossolo, ou seja, solos
muito arenosos que possui muita permeabilidade e acúmulo de matéria
orgânica no horizonte B. tem restrições ao uso agrícola. Nestes espaços
vemos a proliferação de parques, em nosso caso, a Estação Ecológica
do Guaraguaçu. Em menor quantidade temos os Mangues ou Gleissolos
Sálicos e “terra de morro” ou Cambissolos. O primeiro possui como
característica fundamental o acúmulo de sais e matéria orgânica,
justamente por sua proximidade de rios ou baías. O segundo é pouco
110 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

profundo e possui característica de cultivo variável, conforme o tipo de


rocha de origem e relevo (regiões planas ou montanhas) (SILVA et al.,
2013). Esta fragilidade do solo arenoso é uma das justificativas para a
implantação de unidades de conservação que segundo Pierri et al. (2006)
representa cerca de 80% de todo o litoral.

A comunidade

A comunidade do Guaraguaçu é o ponto de entrada do município de


Pontal do Paraná (Croqui 1).

Croqui 1 – Localização da comunidade


Org.: Strachulski, 2019.

Segundo o Ipardes (2018) em Pontal do Paraná temos uma população


urbana de 20.743 e uma população rural de 177 pessoas. Certamente isso
representa um equívoco, visto que somente no Guaraguaçu encontramos
algo em torno de 120 famílias (moradores, sítios para lazer, marinas etc).
A origem da terra na comunidade está associada a um processo
de ocupação por parte dos moradores mais antigos. É muito comum
narrativas que enfatizam um ponto fixo para moradia, regulamentado
por termos de posse, e um uso de terras que extrapolavam esses limites.
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 111

Isso relaciona-se ao fato de que a comunidade se desenvolveu como


território de pesca e isso resultava em práticas de usos rotativos de solo
dentro de uma área usada. Assim uma pessoa possuía roças em outras
partes que não era necessariamente o ponto de sua morada. Ainda hoje
vemos práticas similares na Ilha do Mel, no período que corresponde a
pesca da tainha. Os moradores saem de suas casas e montam abrigos em
pontos estratégicos para a pesca e ali fazem sua pequena roça temporária.
Outro fato nessa relação de passado e presente são as práticas de
consumo e produção, pois relatam que a maioria das frutas, por exemplo,
ainda permanecem na comunidade: goiaba1, abacaxi, bacupari2, araçá,
guapiricica3, ingá, tamarindo, camarinha4, laranja, laranja, banana,
limão, pitanga, papanguera, carambola (recente), caju, guamixama5,
jaca, abacate, ameixa, jambo.
No que se refere á prática de fazer roças, vemos que no município
ainda prevalece a tradição do litoral. A diferença é que na comunidade
não temos plantios com foco apenas na comercialização e sim para o
consumo, por isso vamos ver propriedades com 2 pés de café. As roças
de “antigamente” eram de abacaxi, mandioca, arroz, café, feijão, banana,
cana de açúcar (para fazer melado ou cachaça) maracujá, pimenta
vermelha e amarela, cheiro verde. Na atualidade o único produto que
não vimos foi o arroz. A criação animal, principalmente a criação de
aves caipiras e manutenção de colmeias de abelhas nativas e africanas/
europeias tem sido praticada pelos moradores.

1 Os nomes estão escritos conforme citaram, pois sabemos que existem regionalidades
que alteram os nomes de plantas, animais, entre outros.
2 Ele é conhecido popularmente por vários nomes tais como baacuri-mirim, bacoparé,
bacopari-miúdo, bacuri-miúdo, escropari e limãozinho. Disponível em< https://www.
coisasdaroca.com/plantas-medicinais/bacupari.html>. Acessado em: 15 out. 2021.
3 Sinônimos: Amaioua brasiliana, Amaioua guianensis, Amaioua laureaster. Disponível
em: <http://flora.ipe.org.br/sp/19>. Acessado em: 15 out. 2021.
4 Nome indígena: CAMARI-NHÊMBA vem do Tupi Guarani e significa “folha ou erva de
ponta dura que dá frutos doces”. Também é chamada de Groselha do brejo, Camarinha
ou Lanterninha da praia. Encontrada em solos arenosos e úmidos. Disponível em: <
http://www.colecionandofrutas.org/gaylussaciabras.htm>. Acessado em: 15 out. 2021.
5 Grumixama (Eugenia brasiliensis) é uma árvore nativa da Mata Atlântica, prima da
nossa pitanga (Eugenia uniflora), ambas da família botânica das Myrtaceae, também
conhecida como grumixaba, grumixameira, cumbixaba, ibaporoiti. Disponível em: <
https://www.greenme.com.br/usos-beneficios/4781-grumixama>. Acessado em: 15
out. 2021.
112 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Sobre os saberes locais relacionados ao conhecimento de plantas


medicinais e seus usos (Etnobotânica), constatamos que permanecem
várias práticas. Isso é muito comum em comunidades tradicionais e nos
remetem a atualidade histórica destas práticas, pois resistem ao longo do
tempo (HALISKI, 2017). No geral as plantas utilizadas mais citadas foram
a Marcela, Capim-limão, Carqueja, Pata de vaca, Guanxuma (utilizavam
até para lavar o cabelo), casca de Bacupari (para infecção), Jerivá com
Picão (para combater amarelão), Erva de bicho, Figatil, Penicilina, Mão
Santa, Erva doce, Alfa vaca (tempero e chá), cipó Mil Homens (chamam
de milome e utilizam para combater vermes), Anis (para cólica), Guaco,
folhas de eucalipto e laranja (para tosse), Sálvia (folha de boca); vinagre
(para dor de cabeça), Embaúba pra tirar sapinho da boca (cicatrizante).
Dentre as práticas que não realizam mais estão a banha de lagarto (curava
até bronquite) e para estancar um sangramento era usado açúcar, café
e até carvão.
Esses saberes representam uma estratégia de sobrevivência de povos
e comunidades no Brasil. Geralmente eles estão associados a benzedeiras,
raizeíras, mateiros, curadores, etc. É uma relação entre conhecimentos
práticos e místicos que resultam no domínio da flora local e seus usos
para a cura.

Metodologia

Realizamos a imersão participativa e a técnica do grupo focal


com a comunidade Guaraguaçu. Até o momento realizamos 65
atividades na comunidade sendo que o primeiro contato ocorreu
em 01 de novembro de 2017, depois disso seguimos uma agenda de
reuniões para que inicialmente pudéssemos diagnosticar as demandas
socioambientais existentes e na sequência pudéssemos nos organizar
para encaminhamentos e possíveis resoluções dos conflitos citados pelos
sujeitos envolvidos. De imediato foram apontados pela comunidade cinco
objetivos: desenvolvimento da Agroecologia; b) reativação da Associação
de moradores; desenvolvimento de um mapa turístico; d) práticas de
cultura e lazer; e) melhorias no saneamento e saúde.
A metodologia de pesquisa apoiada na técnica dos grupos focais
considera os produtos gerados pelas discussões grupais como dados
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 113

capazes de formular teorias, testar hipóteses e aprofundar o conhecimento


sobre um tema específico (GONDIM, 2003, p. 158)
Ao todo temos um universo de aproximadamente 120 famílias na
comunidade do Guaraguaçu e que exercem distintas atividades como,
por exemplo, de moradia e que realizam trabalho em áreas urbanas de
Pontal do Paraná e Paranaguá, famílias que moram em áreas urbanas de
outros municípios e apenas possuem uma chácara de lazer, moradores
com atividades como o Café Caiçara ou para lazer como é o caso do
automodelismo ou mesmo de hospedagem como na propriedade do
Ecoguaraguaçu, marinas, casas com comércio na beira da rodovia PR407
e até uma aldeia indígena. Nesse sentido, o nosso grupo é heterogêneo.
Estamos envolvidos com 18 famílias. Destas, 10 frequentam
assiduamente as reuniões. Estamos entendo por família em nossas
reuniões a participação de um representante, ou seja, geralmente estamos
em grupos que variam de 8 a 12 pessoas. Chegamos nesse número a
partir de uma série de convites impressos e daqueles que realizamos
pessoalmente, enfim, esses seriam os interessados em nosso projeto e
por isso não adotamos critérios como idade, gênero, etc. Mesmo assim,
estamos com as “principais” lideranças e que possuem o respaldo dos
demais, como constatados em assembleias gerais para a comunidade,
como aquela em que realizamos para a reativação da associação de
moradores. A idade dos participantes está entre 20 e 65 anos e a maioria
são mulheres, sempre algo em torno de 80 porcento.
Nossa participação é como pesquisador/moderador fazendo com
que temas sejam debatidos a partir de um roteiro pré-elaborado, sempre
tomando como referência reuniões anteriores e demandas de ações
futuras, por exemplo, foi demandado a produção agroecológica e por
este motivo nossas atividades (expostas neste texto) foram centradas
nas formas de apropriação e utilização da natureza e ambiente na
comunidade: como era? o que mudou e o que permanece? quais os
principais conflitos e as possibilidades de resoluções?
Na atuação junto a comunidades os grupos focais estão auxiliando na
compreensão dos grupos sociais desfavorecidos e nas ações comunitárias.
Ou seja, os pesquisadores encontram nos grupos focais uma técnica que
os ajuda na investigação de crenças, valores, atitudes, opiniões e processos
de influência grupal, bem como dá suporte para a geração de hipóteses,
a construção teórica e a elaboração de instrumentos. Trata-se de uma
114 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

técnica que pode ser usada quando o foco de análise do pesquisador é o


grupo (GONDIM, 2003, p. 160).
É comum neste tipo de metodologia a utilização de filmagens e
gravação de áudios, mas em nosso caso optamos pelas notas de campo,
justamente pelo ambiente comunitário que estamos inseridos, pois ora
é na casa de um, ora na casa de outro, em igreja, às vezes em campo
aberto e assim por diante. A riqueza deste tipo de abordagem está na
construção coletiva dos temas e o aferimento “em tempo real” do que está
sendo debatido, sem falar que é um processo também de rememorações
onde um estimula o(s) outro(s) a se posicionar. É um processo de
compartilhamento de saberes e ideias cujo resultado é grupal. Também
frisamos que esta técnica não anula outras como aquelas de questionários
e entrevistas individuais e assim por diante, trata-se de um formato que
pode até mesmo agregar múltiplas metodologias e técnicas.

Modelo dos quintais produtivos em arranjos de agroflorestal

Como exemplo de agrofloresta e que retrata o que citamos


anteriormente, temos o caso o caso da dona Conceição. Aos 64 anos de
idade e todos vividos no litoral, ela nos mostra que é possível uma produção
com diversidade de espécies em uma área pequena (aproximadamente
400 metros quadrados).
Nos conta que as roças eram em diversos lugares, pois estava ligada a
uma lógica da pesca, ou seja, estava onde era preciso. A prática mais comum
era derrubar a mata e atear fogo, conhecida como coivara, condenada na
atualidade para a maioria dos sistemas produtivos camponeses devido
a diferenciação existente entre os tempos de manejo e uso do espaço,
bem como a delimitação de áreas (tamanho excessivamente menor das
unidades produtivas), porém, se habituou a levar espécies de orquídeas
e bromélias para casa. Isso demandou a necessidade de criar ambientes
favoráveis para as plantas sobreviverem. Tocos de árvores, folhas, cascas
de frutas, folhas, galhos velhos, casca de coco, salsa, enfim, tudo passou
a ser adubo para superar a pobreza de um solo arenoso (Figuras 1 e 2).
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 115

Figuras 1 e 2 – Características edáficas do solo local e organização dos


materiais orgânicos
Fonte: Haliski, 2018.

Na foto acima vemos o solo sendo preparado. No lado esquerdo vemos


a maior parte desprotegido e ao lado direito a técnica de compostagem
dos subprodutos advindos do próprio quintal, que, posteriormente, vai
servir como adubo orgânico utilizado para nutrição das plantas.
São diversas espécies que compõem a agrofloresta. Temos coqueiro,
orquídeas (dezenas), folhagens, salsa, cebolinha, coentro, pimenta
vermelha e de cheiro, açafrão, erva de aniz, maracujá, tomate, morango,
alfa vaca, limão Taiti e galego, café, bromélias, açucena, acerola, mimosa,
laranja, palmeira, palmito, xaxim, ora-pro- nóbis, graviola, ingá, banana,
urucum, flor de maio, abacaxi, mandioca, goiaba, abacate, aroeira,
figatil, cana de açúcar, taió. Denominamos essa elevada diversidade de
plantas em agrobiodiversidade. E justamente essa agrobiodiversidade
que promove a resiliência e sustentabilidade dos quintais produtivos
agroecológicos da comunidade Guaraguaçu (Figuras 3 e 4).
Sobre as experiências e saberes no cuidado com as plantas, a D.
Conceição relata que troca de lugar as plantas quando “estão tristes”,
poe no sol ou na sombra, enfim, vai realizando testes e ampliando o
conhecimento acerca das características e manejo da diversidade de
espécies que produz. De acordo com Lopes et al. (2018), os quintais
agroecológicos são multifacetados.
116 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Figuras 3 e 4 – Visão geral da agrofloresta e do quintal produtivo


Fonte: Haliski, 2018.

Os quintais produtivos são lugares multifacetados e com múltiplas


funções, pois além de garantir a soberania, a segurança alimentar e
a saúde das famílias, representam a oportunidade de perpetuação
dos saberes, culturas, sabores, simbologias, memórias, práticas e
reconstrução de novas estratégias de reprodução socioeconômica e
conservação da biodiversidade (LOPES et al., 2018, p. 181).
No lado esquerdo temos a produção de aipim e à direita a produção
de abacaxi nativo (Figuras 5 e 6). Como se vê o plantio consorciado, a
utilização de diversas espécies alimentícias, sombreadoras, ornamentais,
atrativas de insetos polinizadores, parasitoides e predadores se
configuram em práticas e saberes que promovem arranjos únicos, dando
essa singularidade em cada quintal produtivo.
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 117

Figuras 5 e 6 – Agrobiodiversidade presente nos quintais produtivos


Fonte: Haliski, 2018.

Esse uso da biodiversidade enquanto ferramenta de manejo dos


agroecossistemas promovem diversas interações ecológicas benéficas tais
como controle biológico, aumento da produção, ciclagem de nutrientes,
segurança e soberania alimentar (LOPES, 2014). é a prática utilizada e a
explicação é o controle de pragas e resistência que as plantas adquirem.

Desenvolvimento

O que parece estar em jogo, nas situações que evidenciamos, são


as estratégias de sobrevivência de grupos sociais de modo que seus
saberes/práticas/costumes, sejam respeitados, visto que possuem uma
rica experiência nos usos dos recursos naturais. É uma forma de se
posicionar frente a destruição ocasionada pelo capital e dos oportunismos
de algumas ONGs.
Um dos principais desafios está no processo de autoidentificação
(identidade/território) e conservação dos saberes tradicionais para
enfrentar, até mesmo, um processo de criminalização a que estão
submetidos. De um lado há um preservacionismo que desconsidera o
papel dos guardiões e guardiãs da biodiversidade e sociobiodiversidade,
o agricultor vira um criminoso ambiental e, do outro deixa, o capital
promove destruição, tudo em nome do progresso, conforme nos mostra
Porto-Gonçalves (2017) ao evidenciar os impactos de magaprojetos que
118 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

não respeitam a dinâmica da natureza (e seus tempos de constituição),


por isso destroem tudo em favor de investimentos.
Disso emerge a Agroecologia como paradigma capaz de congregar
forças por meio dos movimentos sociais para resistir e lutar contra o
avanço do capital e evidenciar uma via possível para a humanidade.
Entendemos que a Agroecologia como movimento revolucionário e que
esta é molecular porque, dentre outros motivos, o entendimento coletivo
da comunidade do Guaraguaçu foi que devemos conservar os saberes
empíricos adquiridos com os ancestrais, implantar e/ou potencializar
práticas agroecológicas de produção e cultivo na comunidade.
As práticas agroecológicas nos remetem à recuperação dos
saberes tradicionais, a um passado no qual o humano era dono
do seu saber, a um tempo em que seu saber marcava um lugar no
mundo e um sentido da existência [...] como sapateiros, alfaiates
ou ferreiros; como músicos e poetas. À época dos saberes próprios
(LEFF, 2002, p. 36)

Quando falamos em implantação é para aqueles que tem o desejo


de uma pequena horta com temperos, frutas e erva medicinais. Já
a potencialização é para aqueles que produzem, como a banana, mas
tem dificuldade no manejo. Neste caso, temos a Agroecologia enquanto
uma ciência que fornece os conhecimentos científicos para o manejo
agroecológico do solo, dos insetos, das bactérias, vírus, fungos, das
plantas e da unidade produtiva familiar como um todo. A ideia é o
fornecimento futuro para escolas, de modo que seja entregue um
alimento saudável. Outra situação ocorrente é daqueles que já possuem
uma horta ou quintal medicinal, mas querem apreender técnicas e
práticas agroecológicas que promovam o enriquecimento e aumento da
produção, tal como a compostagem.
No caso da adubação das plantas através da compostagem vemos que
a mesma se faz necessária e a explicação foi apontada pelos moradores.
Trata-se se uma agricultura itinerante “do tempo que era tudo pelo rio”,
onde as roças migravam de tempos em tempos conforme o itinerário
de pesca ou mesmo daquilo que chamam de período que “ninguém era
dono”, ou seja, não tinha cercas a exemplos das casas de pescadores ainda
hoje na colônia Maciel, no mesmo município, ou em casos como nos
faxinais no centro sul do Paraná. Em resumo, agricultura fixa desgasta
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 119

mais o solo e isso carece de correção. O processo de compostagem


acelera o processo de ciclagem e disponibilidade de nutrientes às plantas,
favorecendo a produção e sanidade dos cultivos. A ausência de espaços
produtivos coletivos, itinerantes e em pousio transforma as práticas
seculares de uso do solo pelas comunidades tradicionais, tal como
evidenciada na fala da agricultora. De qualquer forma se verificou que
a busca por de outros métodos de adubação e aumento da fertilidade
do solo acompanharam todo o processo, evidenciando as características
de adaptação e reestruturação dos camponeses, ribeirinhos e caiçaras,
que se reinventam e buscam alternativas para se manterem em seus
territórios.
Nesse sentido o que temos é uma valorização do diálogo de saberes,
acadêmicos (científicos) com os tradicionais, aqueles da comunidade.
Em outras palavras se observa o quanto a Agroecologia possibilita ao
território compatibilizar conservação da agro, socio e biodiversidade e
reprodução socioeconômica da agricultura caiçara, visto que considera
os conhecimentos construídos pelos agricultores e propõe a construção
de tecnologias sociais adaptadas às características ambientais e sociais
locais.
Os saberes agroecológicos são uma constelação de conhecimentos,
técnicas, saberes e práticas dispersas que respondem às condições
ecológicas, econômicas, técnicas e culturais de cada geografia e de
cada população. Estes saberes e estas práticas não se unificam em
torno de uma ciência: as condições históricas de sua produção
estão articuladas em diferentes níveis de produção teórica e de
ação política, que abrem o caminho para a aplicação de seus
métodos e para a implementação de suas propostas. Os saberes
agroecológicos se forjam na interface entre as cosmovisões,
teorias e práticas. A Agroecologia, como reação aos modelos
agrícolas depredadores, se configura através de um novo campo
de saberes práticos para uma agricultura mais sustentável,
orientada ao bem comum e ao equilíbrio ecológico do planeta,
e como uma ferramenta para a autosubsistência e a segurança
alimentar das comunidades rurais (LEFF, 2002, p. 37)

Trata-se de uma (re)valorização de saberes a partir de um prisma


que não seja a mercadologização de tudo a exemplo do que nos aponta
Skewes (2017) ao reivindicar uma indigenização do mundo. Por isso
120 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

é necessário que ao se praticar Agroecologia tenhamos a consciência


de que estamos negando a exploração de tudo (das sociedades, povos,
recursos naturais) em prol de uma forma sustentável de se produzir e
viver, mais do que isso, que a produção é cultural, tem uma história e os
camponeses são sujeitos desse processo.

Considerações finais

A vivência com a comunidade caiçara Guaraguaçu, notadamente


destacada neste capítulo, além de outras experiências locais, nos
permite evidenciar a Agroecologia, enquanto movimento, ciência e
prática, capaz de nortear um retrato da realidade vivenciada pelos
agricultores e agricultoras locais, trazendo um olhar profundo acerca dos
etnoconhecimentos e dos modos de vida construídos e reconstruídos por
meio da observação e construção diálogica de processos e tecnologias
adaptadas às características locais; bem como uma compreensão dos
aspectos políticos e métodos de resistência desenhados pela comunidade.
A valorização dos saberes ecológicos locais pela ciência se faz num
contexto de crise da modernidade e suas instituições. A ciência moderna
passa a ser questionada em seu poder de responder às crises ambientais
provocadas pelo próprio modelo tecnocientífico associado à lógica de
produção capitalista. Uma nova ciência passa a ser considerada como
necessidade de se entender os complexos problemas socioambientais
que assolam a sociedade moderna e a Agroecologia também passa a
se figurar como um movimento de transformação política dentro das
ciências agrárias e para tal, propõe um método sistêmico, holístico e
interdisciplinar que pode superar o fosso existente entre conhecimentos
produzidos na academia e aqueles produzidos em contextos culturalmente
enraizados, ou seja os etnoconhecimentos de natureza.
A Agroecologia, nesse contexto de crise paradigmática busca restituir
o conhecimento vernacular ao conhecimento científico a partir de uma
ecologia de saberes e de práticas de natureza, colocando ambos os saberes
em um mesmo nível de importância e legitimidade epistemológica. A
prática transdisciplinar, nesses termos teria um lugar de destaque no
campo da produção social de conhecimento de naturezas, baseada
no diálogo horizontalizado entre a diversidade de saberes populares
O SABER-FAZER AGROECOLÓGICO 121

(camponeses e indígenas) cultural e territorialmente enraizados com os


saberes científicos (FLORIANI; FLORIANI, 2011).
As práticas agroecológicas sustentam-se, portanto, em novo
paradigma de relação produtiva com os ecossistemas, apoiado em
práticas culturais ancestrais que configuram a diversidade territorial
do mundo rural, traduzidas em sistemas de usos e manejos da
fertilidade lato sensu (ou seja, da reprodução socioecológica entre
coletividades humanas e não humanas) da sociobiodiversidade. Tal
prática socioterritorial agroecológica, historicamente produzida, pode
ser traduzida na fórmula da sustentabilidade socioambiental, isto é, no
equilíbrio entre as dimensões da equidade social, da sustentabilidade
ecológica e da viabilidade econômica (FLORIANI; RÍOS; FLORIANI,
2013). Esse paradigma alternativo ao modelo de produção capitalista
abre possibilidade para a ressignificação da arte de cultivar alimentos
saudáveis em uma lógica harmoniosa com a natureza orientada ao
bem comum, respeitando e valorizando cada saber dos sujeitos que
acabam interagindo com o ambiente de forma positiva, atingindo níveis
de relações sociais baseados na alteridade com o outro (não-humano),
buscando o desenvolvimento da dimensão subjetiva das práticas de
fertilidade socioecológica baseado na ecoespiritualidade, que cumprem
seu papel de equilibradores ecológicos (BOFF, 2008).

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quilombolas e faxinalenses no contexto da região
dos Campos Gerais do Paraná

Cleusi T. Bobato Stadler

O Brasil foi um dos primeiros países a assinar a Convenção sobre


Diversidade Biológica (CDB) na ECO-92, sendo ratificada pelo Congresso
Nacional em maio de 1994. Essa Convenção vem reforçar a defesa da
Biodiversidade como o conjunto de toda a vida em nosso planeta,
incluindo o termo “diversidade”, como à pluralidade de formas de
vida, humana ou não, bem como à multiplicidade de arranjos sociais,
religiosos, tecnológicos e institucionais, necessários e adequados às
realidades de diferentes agrupamentos humanos e à sustentabilidade
ambiental da região onde vivem.
Neste contexto, destacamos o tema da agrobiodiversidade em
comunidades tradicionais com sementes crioulas, que incorporam
valores culturais, sociais e econômicos e promovem formas de manejo
sustentável dos recursos naturais. A CDB reconhece no seu preâmbulo,
a dependência de recursos biológicos de muitas comunidades locais com
estilos de vida tradicionais:
[...] Respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações
e práticas das comunidades locais e populações indígenas com
estilos de vida tradicionais relevantes à conservação e utilização
sustentável da diversidade biológica. [...] incentivar sua mais
ampla aplicação com a aprovação e participação dos detentores
desses conhecimentos (BRASIL, 2006).

Dentre esses saberes das comunidades locais estão os sistemas de


cultivo e manejo dos agrossistemas, que compõem a agrobiodiversidade.
A agrobiodiversidade engloba todos os elementos que interagem na
produção agrícola, não contemplado no texto da CDB, foi instituída na 5ª.
Conferência das Partes da Convenção1, realizada em Nairobi. É o resultado
da interação entre o meio ambiente, recursos genéticos e os sistemas
1 COP5 Decision V/5 – Agricultural biological diversity: review of phase I of the
programme of work and adoption of a multi – year work programme. May 2000
(CONVENÇÃO …, 2008).
124 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

de gestão e práticas utilizadas, incluindo a variedade e diversidade de


animais, plantas e microorganismos que são necessários para sustentar
as funções, estruturas e os processos do ecossistema agrícola. Então, o
conhecimento local e a cultura podem ser considerados integrantes da
agrobiodiversidade.
As intervenções humanas também são fundamentais para a
compreensão da agrobiodiversidade, pois é necessário compreender
as diferentes práticas de manejo dos agroecossistemas, os saberes e
os conhecimentos agrícolas tradicionais relacionados às festividades,
cerimônias religiosas, alimentação (uso culinário), ervas medicinais, etc.
Agrobiodiversidade é, portanto, o resultado da interação entre: sistemas
de cultivo, espécie, variedades, raças, diversidade humana e diversidade
cultural.
Neste processo estão as sementes crioulas, que fazem parte do
saber local, dos recursos naturais e agroecológicos. A conservação e
plantio de sementes crioulas fazem parte de sistemas agroecológicos
que se relacionam com a agrobiodiversidade, pois interage com valores
socioculturais, manejo ecológico dos recursos naturais e manejo integrado
dos agroecossistemas, o que trará a sustentabilidade. A utilização da
agrobiodiversidade, com enfoque agroecológico, é um dos componentes
fundamentais para a prática de uma agricultura sustentável.
Segundo Santilli (2012), a agrobiodiversidade é um conceito em
formação e que não encontrou ainda seu lugar e reconhecimento no
mundo jurídico. Não há nenhuma lei socioambiental específica consagrada
a agrobiodiversidade ou para a conservação da biodiversidade agrícola.
Para esta autora:
O conceito de ‘agrobiodiversidade’ reflete as dinâmicas e
complexas relações entre as sociedades humanas, as plantas
cultivadas e os ambientes em que convivem, repercutindo sobre
as políticas de conservação dos ecossistemas cultivados, de
promoção da segurança alimentar e nutricional das populações
humanas, de inclusão social e de desenvolvimento rural
sustentável (SANTILLI, 2012, p. 458).

Sendo a agrobiodiversidade a relação entre a ação das sociedades com


as sementes ou plantas cultivadas, ela inclui a diversidade de espécies,
como o milho, o arroz, o feijão, a abóbora, os legumes, verduras, bem
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 125

como, a diversidade genética, variedades diferentes de milho, feijão, ou


outras sementes. Mas também podemos incluir nesta agrobiodiversidade
as práticas e diversidades agrícolas, como os sistemas de corte, queimada
e pousio, também chamados de coivara ou itinerantes, e os sistemas
agroflorestais. São as práticas de manejo, cultivo e seleção de espécies,
principalmente as sementes crioulas, as responsáveis pela grande
diversidade de plantas cultivadas e de agroecossistemas de agricultores
tradicionais. A agrobiodiversidade está relacionada às práticas culturais
e socioeconômicas que a determinam e a condicionam.
A agrobiodiversidade pode se expressar nas plantas e sementes,
pela variação de cor, forma, altura, tamanho, formato das folhas,
e pelas variações genéticas. A extinção dos saberes, das práticas e
dos conhecimentos agrícolas com as sementes crioulas, pode ser
considerada, fatores de a diversidade agrícola estar ameaçada, e essas
práticas da agrobiodiversidade constituem a base da sobrevivência de
muitas populações rurais, principalmente as de baixa renda.
As comunidades tradicionais faxinalenses e quilombolas têm
em sua formação uma ampla rede de significados e saberes com a
agrobiodiversidade, com o conhecimento local, a cultura, que foram
transformando, alterando e moldando conforme as necessidades e
exigências. É ela com suas funções diferenciadas, atividade do plantio e
suas técnicas que compõem o conjunto de saberes dessas comunidades,
que molda e conserva esta biodiversidade. As espécies cultivadas que
compõem o agroecossistema, constituem um patrimônio o qual é a
base alimentar e a fonte de matéria-prima para inúmeras atividades de
populações locais. Essas populações contribuem no processo de seleção e
adaptação desses cultivos para a realidade local (OLIVEIRA, 2006).
No Brasil, a Lei de Sementes e Mudas (Lei nº 10.711/03) têm como
objetivo incentivar camponeses e populações tradicionais para a produção
de suas próprias sementes de variedades locais, chamadas também de
crioulas. As sementes crioulas são sementes que não sofreram nenhum
tipo de modificação genética por técnicas de melhoramento. As práticas
de manejo são desenvolvidas por pessoas mais antigas nas comunidades
tradicionais, como os Quilombolas e Faxinalenses.
126 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

As sementes e os sistemas agrícolas tradicionais na região dos


Campos Gerais

A semente traz consigo o significado de vida, o valor da sobrevivência,


da resistência, da continuidade, da perpetuação. Resultado de um
processo natural de seleção, ela só cresce se as condições ambientais
sejam favoráveis. A posse e o domínio das sementes vêm do período pré-
histórico onde o homem em processo de transformação e adaptação ao
meio em que vive, vai domesticar as plantas, selecionando e cultivando
aquelas que mais se adaptam ao seu ambiente.
Ao longo do tempo muitos agricultores vêm observando seu espaço,
o meio ambiente, a natureza, e de acordo com as transformações, muitos
deles estão inventando e reinventando sua realidade, construindo assim
mecanismos para crescer e frutificar as sementes crioulas. Dessa forma,
muitos estão retornando a práticas agroecológicas, separando variedades
que são produtivas, que são inéditas e exóticas no mundo contemporâneo,
as mais saborosas e que possam ser úteis no uso medicinal.
As sementes crioulas fazem parte do patrimônio material e imaterial
(com as práticas de manejo e cultivo) de diversos povos tradicionais,
que ao longo dos tempos vêm conservando, resgatando, selecionando e
valorizando variedades, mantendo a agrobiodiversidade adaptada a cada
região.
São os sistemas locais e tradicionais, chamados de “informais”,
manejados e controlados pelos próprios agricultores familiares, que na
produção, multiplicação, distribuição, melhoramento, e conservação
produzem suas próprias sementes crioulas, consideradas como parte
de um patrimônio genético e cultural de faxinalenses, quilombolas,
fundamentais para a conservação da agrobiodiversidade. É esse sistema
que vamos encontrar na região dos Campos Gerais do Paraná, em
Comunidades como Sete Saltos de Cima e de Baixo, Ponta Grossa-PR e
Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos, distrito de Três Córregos,
Campo Largo-PR.
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 127

Caracterização das Comunidades Faxinalenses e Quilombolas, nos


Campos Gerais do Paraná

Os Campos Gerais correspondem a uma região geográfica a oeste da


Escarpa Devoniana do Estado do Paraná, localizada no sul do Brasil, no
“segundo planalto” paranaense. Considera-se Campos Gerais a extensão
entre o rio Itararé, divisa com São Paulo no município de Sengés e o
rio Negro, divisa com Santa Catarina no município de rio Negro. A
oeste a região se estende até onde imperam os campos. É uma região
caracterizada pela ocorrência de extensos campos limpos (estepe de
gramíneas baixas), capões isolados de matas em faixas ao longo de rios
e córregos, que refletem a estrutura geológica e a natureza das rochas,
responsáveis por solos rasos e arenosos.
Porém, as identidades históricas e culturais desta região vêm do
século XVIII, devido aos pastos naturais, de invernadas com boa água e
relevo suave, que acabou sendo rota do tropeirismo do sul do Brasil. As
tropas de muares e gado de abate provenientes do Rio Grande do Sul
dirigiam-se aos mercados de São Paulo e Minas Gerais e passavam por
esta região, sendo Ponta Grossa seu ponto de entroncamento com outros
caminhos. Nessa época, os campos naturais da região tornaram-se muito
disputados, e a coroa portuguesa começou a expedir cartas de sesmarias
em favor de homens a ela fiéis e de prestígio político local. Junto a esses
homens e suas famílias vieram muitos negros escravos e que mais tarde
deram origem a formação de Comunidades Quilombolas.
Ainda no século XVIII, muitas famílias de imigrantes europeus,
portugueses e espanhóis, junto com nativos (caboclos) da região, foram
responsáveis por criarem o sistema de Faxinais, o qual foi expandido e
adaptado aos alemães, italianos e poloneses que chegaram aos Campos
Gerais no século XIX.
A região dos Campos Gerais e Centro-Sul do Paraná possui Floresta
com Araucárias, onde alguns sistemas agrosilvopastoris tradicionais – os
faxinais – ainda se mantêm, apesar das fortes pressões do mercado e da
modernização da agricultura. Para Neiverth e Sahr (2011) citadas por
Vilpoux (2017, p. 159), o modo de vida tradicional dos faxinais é baseado
em atividades agrosilvopastoris regidos por uma organização social
comunitária e por tradições e costumes específicos. As autoras citam os
128 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

mutirões, ou puxirões, as festas religiosas, a vivência comunitária e a


preservação da floresta com Araucária.
A Comunidade de Sete Saltos de Cima e Faxinal Sete Saltos de Baixo,
estão localizadas no Distrito de Itaiacoca a 60 km do centro de Ponta
Grossa-PR e faz divisa com o município de Campo Largo-PR. Tem uma
área de 3.817 ha. Situa-se na bacia hidrográfica do rio Sete Saltos, no
Primeiro Planalto Paranaense. Segundo Pereira (2002), a parte oriental
do município está organizada por três bacias: do rio Conceição, do rio
Sete Saltos e do rio Caçador. Esta região possui a mais forte cultura
cabocla e de faxinais do município.
O Faxinal de Sete Saltos de Baixo ocupa 26% da área da bacia
(992 ha), sendo 106 ha representados pelo criadouro comunitário, com
florestas, várzeas, edificações e estradas, e 890 ha pela área de plantar.
Quanto ao uso da terra na bacia onde se insere o Faxinal, quase 58%
da área se encontra coberta por florestas (MORO; LIMA, 2012). É o
único dentro do município de Ponta Grossa que continua com todos os
seus elementos tradicionais e físicos (criadouro comum) funcionando.
Mesmo entrando muitos proprietários particulares nestas regiões, estas
comunidades mantêm as tradições caboclas e a agricultura familiar de
subsistência. Este Faxinal conta com aproximadamente 57 famílias, 190
pessoas que ali moram e 7 chácaras, totalizando 64 residências. São
em torno de 48 proprietários e 15 arrendatários. Encontramos nele
elementos tradicionais marcantes: o criadouro coletivo ou potreiro,
terras de plantar e as cercas e valos. O criadouro comum conta com uma
área de aproximadamente 200 alqueires, mas já contou com cerca de
250 alqueires (LÖWEN SAHR; IEGELSKI, 2003). As propriedades dentro
deste criadouro são privadas, o que não impede o seu uso comum. No
potreiro são criados mulas, bois, cabritos, porcos crioulos, galinhas. As
moradias também se localizam dentro do criadouro comum.
As terras de plantar deste Faxinal localizam-se também nas partes
mais altas e acidentadas do terreno, áreas de cultivo, de roças, onde se faz
a plantação. Nestas áreas são principalmente cultivados produtos como
o feijão e o milho para subsistência. O feijão serve principalmente para
o consumo das famílias, e o milho para a complementação da dieta dos
animais. Algumas poucas famílias cultivam ainda batata, batata-doce,
arroz e mandioca em quantidades menores.
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 129

As cercas e os valos servem de separação entre o criadouro


comunitário e as terras de plantar. Precisam de constante manutenção
para garantir que os animais não invadam as plantações e as estraguem.
A restinga é uma faixa de 15 metros de mata, que se deixa entre as cercas
e as terras de plantar e serve para impedir os animais de passar para o
outro lado. As estradas são fechadas com porteiras e mata-burros que
servem para impedir a passagem dos animais.
A Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos tem 250 anos
de formação, teria começado a se formar antes mesmo da assinatura
da Lei Áurea. Com a fuga dos escravos das fazendas dos imigrantes
europeus de 1850 a 1950 que se localizavam na estrada do Cerne e
região de Palmeiras. Os escravos procuravam um local seguro para se
instalar e acabaram encontrando esta região situada a 83 quilômetros
do centro de Campo Largo, divisa com o Faxinal Sete Saltos de Baixo,
Ponta Grossa. Formados por famílias negras em sua maioria, oriundas
de várias regiões do Estado, a Comunidade de Palmital permaneceu por
séculos desconhecido do Poder Público, pois seus moradores não tinham
o reconhecimento das terras e nem documentos pessoais. Em 2013
contava com 32 famílias quilombolas, aproximadamente 150 habitantes,
de acordo com os pesquisadores do Grupo Clóvis Moura.
Para Clarindo e Floriani (2014) a formação desta comunidade está
relacionada à formação socioespacial dos Campos Gerais:
Os remanescentes quilombolas de Palmital dos Pretos surgem de
um processo histórico de formação socioespacial da região dos
campos gerais, que tem como especificidade a apropriação de
espaços marginais aos grandes latifúndios dedicados à exploração
extensiva de gado e a exploração da erva-mate, coexistindo com
uma população de caboclos e imigrantes europeus na formação
de sistemas voltados à pequena agricultura. Da coexistência de
categorias sociais ligadas a produção camponesa emergem os
grupos remanescentes de quilombolas que carregam aspectos
socioculturais herdados do hibridismo entre os descendentes
de negros, indígenas, faxinalenses e agricultores familiares de
origem europeia (CLARINDO; FLORIANI, 2014, p. 424).

Em imersão a campo na comunidade podemos perceber esse


hibridismo entre os descendentes de negros, indígenas, faxinalenses e
130 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

agricultores de origem européia, pois têm famílias de negros casados


com descendentes de imigrantes italianos e alemães.
A Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos localizado na zona
rural do distrito de Três Córregos, município de Campo Largo, com
acesso pela histórica Estrada do Cerne – estrada de chão – tem esse nome
em referência a grande quantidade de palmito da região. Essa espécie
de Palmito tem relação com a Uvaranas, muito comum na região, como
podemos ver na foto seguinte (Figura 1).

Figura 1 – Palmito “Uvarana”, na propriedade Srª. Augusta Marques.


Fonte: A autora, 2018.

Os moradores mais antigos relatam que a comunidade se formou


de famílias negras vindas de várias regiões do Paraná, principalmente de
regiões que fizeram parte do Caminho das Tropas e próximas a garimpos
e minas de ouro. Algumas famílias são originárias da Comunidade
Remanescente de Quilombo do Sutil e da Fazenda Santa Cruz, Ponta
Grossa, e outras famílias migraram das comunidades de Pugas e Bolo
Grande, no município de Palmeiras.
Algumas pessoas mais antigas na comunidade, contam que alguns
foram “apanhados no mato”, como negros fugitivos ou mestiços, e
que as famílias estão há mais ou menos 200 anos sobre a terra. Essas
famílias procuram manter os padrões de produção utilizados por seus
antepassados, baseados principalmente no cooperativismo e na prática
de uma economia de subsistência. Os principais produtos cultivados são
o milho, feijão e a mandioca, da qual se extrai a farinha feita de forma
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 131

artesanal, arroz e vários tipos de frutas e legumes. Pratica-se, também,


a criação de animais, como porcos, galinhas, cabeças de gado, cavalos. O
trabalho na roça nos últimos anos, em sua maioria está sendo realizado
pelas mulheres, pois os homens se deslocam para trabalhar nas fazendas
que estão ao redor da comunidade.
Nestas duas Comunidades vamos encontrar famílias preocupadas
com os sistemas de agrofloresta e com as sementes crioulas. Não
podemos nos reportar a comunidade toda, pois alguns trabalham para
empresas do agronegócio, ao redor das comunidades.
Na região onde estão localizadas estas duas comunidades existe
um número expressivo de propriedades de base familiar onde se
encontra uma importante variabilidade genética de diversas espécies de
alimentos, além de uma forte e diversificada agricultura. Os agricultores
familiares são responsáveis pela manutenção de um patrimônio genético
importantíssimo para a humanidade, por meio da conservação das
sementes crioulas, apesar do grande avanço da agricultura moderna.
Alguns agricultores familiares como Elenita, Antônio Ostrufk,
Fermina, Augusta, em sua simplicidade, conhecimento, e sensibilidade
acabam desenvolvendo técnicas empíricas de cunho sociocultural para
resgate, manutenção e distribuição das sementes crioulas, cujas práticas
são passadas de geração em geração. De acordo com Bevilaqua et al.
(2009), os agricultores familiares e suas entidades representativas são
responsáveis pela manutenção de um patrimônio importantíssimo para
a humanidade, por meio da conservação das sementes de cultivares
crioulas. “Os guardiões são um dos principais atores na funcionalidade
da agrobiodiversidade [...]” (ABRAMOVAY, 2010, p. ?).
Os guardiões de sementes nem sempre o são por iniciativa própria,
mas porque trabalham com a agrobiodiversidade e/ou agrofloresta. São
agricultores que possuem sementes crioulas de diferentes espécies e que
as multiplicam através do tempo, como é o caso de alguns moradores das
Comunidades de Sete Saltos de Cima e de Baixo e Palmital dos Pretos.
Nessas comunidades, mesmo estando apenas no início, os guardiões de
sementes crioulas estão em busca de conhecimentos, como construir
um banco de sementes, fazer um levantamento destas sementes, como
armazená-las e reproduzi-las nas comunidades.
Os saberes e práticas da cultura camponesa destas comunidades
são colocadas na prática cotidianamente pelo coletivo de moradores na
132 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

relação com o mundo, com a natureza e com seus grupos, tendo em


vista a reprodução de sua existência e de sua história. Para esses sujeitos
faxinalenses e quilombolas serem camponeses, trabalharem com as
sementes crioulas, traz uma identidade de agricultores, uma afetividade,
pertença àquela comunidade, como um resultado de processos sociais e
ambientais interconectados. Um sentido de lugar, como espaço percebido
e vivido, dotado de significado, através dos saberes, das práticas e da
história desses sujeitos como guardiões de sementes.
Para Edward Relph2 lugar é fundamental para a manutenção da
proteção dos seus sujeitos, manterem uma identidade “do lugar” e “com
o lugar” (RELPH, 1976, apud SOUZA, 2013, p. 114).
As abordagens fenomenológicas do lugar, por exemplo, têm
tendido a enfatizar os modos como os indivíduos e as comunidades
desenvolvem ligações profundas com os lugares por meio da
experiência, da memória e da intenção (RELPH, 1976, apud
SOUZA, 2013, p. 114).

A perspectiva de Relph vem de encontro as Comunidades de


Sete Saltos e Palmital dos Pretos, aonde o entendimento de lugar vai
muito além da simples localização e de individualidade do espaço, mas,
como defende Claval (2001, p. 55), “estão carregados de sentido para
aqueles que os habitam ou que os freqüentam.” São acrescentadas a
percepção, os símbolos, a religiosidade, os valores e as identidades
coletivas, características e heranças culturais dos indivíduos. O lugar é
o espaço vivido, dotado de significados próprios e particulares que são
transmitidos culturalmente.
E do ponto de vista cultural, a prática da estocagem de sementes
fortalece o sentido de “lugar” e de partilha entre esses camponeses,
que se unem nas comunidades, nas rodas de conversas, nas “feiras de
sementes” ou em dias de “festas da igreja”, para discutirem, trocarem
experiências sobre suas técnicas de produção e principalmente trocarem
sementes. Essas trocas têm um sentido tanto material, com a troca de
sementes, como cultural, com a troca de conhecimentos e práticas.
Didaticamente, a metodologia inicialmente utilizada para
identificar e contribuir na formação do banco de sementes crioulas e
2 No original: “Phenomenological approaches to place, for example, have tended to
emphasize the ways in which individuals and communities develop deep attachments to
places through experience, memory and intention (RELPH, 1976)”.
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 133

na identificação e registro das práticas constitutivas das Comunidades


Quilombola e Faxinalense nos Campos Gerais pode ser separada em
duas etapas: a primeira compreende a identificação dos agricultores
guardiões de sementes, envolvendo o mapeamento destes, em seguida
o inventário da agrobiodiversidade com o levantamento das sementes
crioulas existentes em cada comunidade e seu respectivo registro, e, por
fim, a seleção participativa e a reprodução destas sementes, de interesse
da comunidade e dos agricultores.
Com base no diálogo estabelecido pelo Grupo de Pesquisa
Interconexões da UEPG, coordenados pelo Professor Dr. Nicolas Floriani,
iniciou-se o processo de identificação e interação com vários desses
guardiões. A primeira tarefa foi ajudar na organização de uma amostragem
de sementes crioulas, recolhidas e catalogadas nas comunidades
com os guardiões destas sementes e juntamente com os membros do
Projeto, buscar alternativas para melhoria da agrobiodiversidade nestas
comunidades, bem como, cursos preparatórios, oficinas participativas e
ampliação do banco de sementes.
Juntamente com as atividades iniciais do Projeto, foram realizadas
entrevistas semiestruturadas e livres para identificar as práticas
cotidianas dos agricultores com relação ao modo de vida, tradições,
formas de plantio, técnicas utilizadas na agrobiodiversidade.
Paralelamente ao trabalho de identificação dos guardiões e inventário
das sementes crioulas, foram realizadas atividades de capacitação de
metodologia de base ecológica de produção, conservação de sementes,
ferramentas de seleção de plantas dos agricultores guardiões que serão
responsáveis pelas atividades locais de reprodução das sementes crioulas.
Essa ação é fundamental para retomar o conhecimento tradicional
perdido pelos agricultores familiares e populações tradicionais.
Com o projeto desenvolvido nestas comunidades, foi possível realizar
o mapeamento dos guardiões das sementes crioulas, indicando os locais
dentro das comunidades com agricultores que realizam a prática da
agrobiodiversidade. Desta forma identificamos na Comunidade Faxinal
de Sete Saltos de Baixo, quatro guardiões fundamentais: Antônio
Tiburcio Maia, 88 anos, Antônio Pires das Chagas, 68 anos, Otacilia Pires
das Chagas, 64 anos, (filha de Antônio Tiburcio Maia) e Cacilda Inglês
das Chagas Maia (59 anos).
134 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Na Comunidade de Sete Saltos de Cima, identificamos dois


guardiões de sementes, que se destacam em suas propriedades com a
agrobiodiversidade, Antônio Ostrufk (66 anos) e Maria Augusta Marques
(63 anos).
Na Comunidade Quilombola de Palmital dos Pretos onde ainda
está em formação o sistema de Agrofloresta – SAF’s – e Agroecologia,
encontramos grande número de sementes crioulas e quatro guardiões
das mesmas. Elenita Aparecida Machado de Lima (59 anos), Alceu do
Pilar (52 anos), Arildo Portela de Moraes (27 anos) e Fermina Rodrigues
(78 anos).
De maio a agosto de 2018, nas duas comunidades do Faxinal, para
fazer parte da amostra do Banco de Sementes, foram coletadas 26
espécies de sementes crioulas. No mesmo período na Comunidade de
Palmital dos Pretos, foram coletadas 25 espécies. Mas para compor um
Banco de Sementes mais variado e com maior número de espécies, foi
realizado intercâmbio com outras comunidades, como a do Faxinal dos
Galvão em Imbituva-Pr e Comunidade Caiçara Guaraguaçú em Pontal do
Paraná-Pr, compondo um Banco de Amostras com 120 espécies (Figura
2).

Figura 2 – Banco de amostras de sementes


Fonte: A autora, 2018.

Com todos os guardiões foi encontrado grande número de feijão


e milho, como principais espécies, mas também se encontra abóboras,
legumes e temperos, o que está relacionado à estratégia de conservação
de recursos genéticos básicos para sua alimentação (Figura 3).
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 135

Figura 3 – Diversidade no Banco de amostras de sementes


Fonte: A autora, 2018.

O Banco de Sementes selecionadas, trocadas e reproduzidas,


propiciarão, as comunidades tradicionais, a produção e comercialização
de quantidade expressiva de sementes, dentro dos padrões exigidos
de qualidade, melhorando os sistemas produtivos locais e o acesso às
sementes no momento adequado da semeadura.
Nestas comunidades tradicionais existem guardiões que vêm
desenvolvendo há décadas a função de guardadores e multiplicadores de
sementes crioulas, sem nem mesmo perceber sua importância cultural e
social. Esses conhecimentos são de cunho cultural, ou seja, passados de
geração em geração, sendo preciso definir ferramentas para reconhecer
e apoiar o trabalho das comunidades tradicionais que conservam a
agrobiodiversidade (SANTILI, 2009).
É de extrema importância conhecer a história desses agricultores e
valorizar o conhecimento empírico desses povos. O perfil dessas pessoas
consideradas como guardiãs de sementes é de pessoas com grande
experiência, com idade avançada, que têm um grande conhecimento das
sementes, das técnicas de cultivo, do solo, época de plantio, instrumentos,
ou seja, as práticas e os saberes destas comunidades.
A cultura nestas comunidades pode estar permeada de conhecimentos
repassados pela oralidade, que é também uma característica marcante
de cada comunidade, por guardar expressões próprias e peculiares, além
de nomes locais para plantas, animais, fenômenos etc. (DIEGUES et al.,
2000; NASCIMENTO et al., 2014).
Podemos considerar como práticas constitutivas na formação destas
comunidades todos os rituais relacionados à produção e cultivo, bem
136 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

como a cotidianidade, ou seja, as festividades, crenças espirituais (de


influência na vida cotidiana, orações, etc). A união desses elementos
forma as práticas do dia a dia das comunidades, seja na forma como
procurar, coletar e preparar os alimentos consumidos, a água, as
plantas medicinais, na construção de moradias, de ferramentas etc.
(ALBUQUERQUE, 2014; TOLEDO; BARRERA-BASSOLS, 2008).
Inicialmente foi possível identificar entre os Guardiões destas
Comunidades Tradicionais em estudo: as práticas produtivas (cultivos,
tratos culturais, distribuição das atividades no ano - plantio, semeadura,
adubação, colheita, capinas, calendário agrícola); as receitas, hábitos
alimentares da família e animais domésticos; sementes crioulas e rede
de trocas; sistemas de cultivo.
Os guardiões de sementes do Faxinal Sete Saltos de Baixo viviam
(vivem) dentro do criadouro comunitário, pois tinha muitos pinheiros
onde o pinhão sustentava os porcos. O sr. Antônio Tiburcio Maia nos
conta que o que mais faziam era criação de porcos. Plantava uns 30 a
40 alqueires, fora do criadouro, para comercialização de milho, feijão,
abóbora, amendoim, e usavam somente semente crioula - de paió. Ainda
utilizam essas sementes crioulas, mas atualmente plantam somente para
consumo próprio. Utilizavam o arado puxado a cavalos e a carpideira.
A prática que mais mantêm é a religiosidade, com as festas do Divino,
Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora Aparecida. Mantêm até
hoje essas festas e um altar construído dentro da casa. Da mesma forma
verificamos que sua filha Otacilia Pires das Chagas e esposo Antônio
Chagas, se dedicaram ao plantio de milho, feijão que plantavam na roça,
fora do Criadouro Comum, nas terras de plantar. O feijão era plantado
junto com o milho, pois suas bainhas subiam no milho. Roçava com
foice manualmente. Plantava geralmente em agosto/setembro e colhia
em dezembro. Era para subsistência, mas o que sobrava vendiam. O
milho plantava agosto/setembro e colhia em 6 a 7 meses. Era só para
subsistência e trato dos animais. No início moíam farinha e faziam o
fubá de milho. Tinham monjolo para moer a farinha. No criadouro tinha
cinco monjolos. Socava três alqueires de milho e fazia farinha de milho
e o fubá.
No início para o plantio em suas terras de plantar não usavam
adubo, faziam a queimada e a roça de toco. Usavam a tração animal, com
arado de lâmina de metal. A capoeira para se fazer era com 8 a 10 anos.
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 137

Tinha que ter terreno (bastante para revezamento). Plantavam feijão,


batata, criavam gado. Tiravam para subsistência e o que sobrava, vendia
pra Ponta Grossa, inclusive os porcos, para poder comprar mais terras.
Dona Otacília tinha um pedaço de terra fora do valo3 para plantar
amendoim, abóbora, pepino, mandioca, batata-doce. Trocavam sementes
crioulas com seus vizinhos e parentes. Todos os moradores do faxinal,
nas décadas de 70 e 80, faziam o que chamavam de reunião para o
trabalho (era o mesmo que puxirão ou mutirão).
Na alimentação se destaca a paçoca de farinha que aprenderam com
os pais (Figuras 4, 5 e 6). A carne de porco era frita na sua própria banha
e guardada na “banha de lata”, de onde era tirada a carne para socar no
pilão manual com farinha de biju (milho). Também faziam o virado de
feijão com farinha de mandioca. Com o milho que era torrado, tiravam
como se fosse um café, mas era só uma água escura, pois não usavam o
café.

Figuras 4, 5 e 6 – Fritura da carne de porco no tacho de cobre e fogão a


lenha. Prática de socar a carne de porco no pilão com farinha de milho
para fazer a “paçoca de pilão”
Fonte: A autora, 2018.

No Faxinal de Sete Saltos de Baixo a religiosidade e a fé são muito


fortes entre as famílias, estão estritamente ligadas à conduta moral
das pessoas. Os encontros semanais realizados na capela são bastante
comuns entre os moradores das comunidades. Lá são realizadas as
missas ou rezas de terços e novenas. Cada família tem no interior de sua

3 Valo (valeta bem grande) que separava o criadouro comunitário das terras de plantar.
Eles conservavam esses valos para não ter a passagem dos animais fora do criadouro.
138 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

casa um altar erigido a seu santo devoto e realizam festas em louvor a


diversos santos como sinal de adoração.
Para Tavares (2008), a convivência entre os habitantes do faxinal
e integração com o meio ambiente facilitam a preservação do modo de
vida tradicional e da biodiversidade existente nos faxinais. Ele ressalta
algumas características específicas dos camponeses faxinalenses, que
podemos identificar também nas práticas dos moradores do Faxinal Sete
Saltos de Baixo:
Partilha de parte das terras no chamado “Criadouro Comum”;
criação, de forma coletiva, de animais de pequeno e grande porte, soltos
e misturados; prática de agricultura de subsistência com instrumentos
tradicionais; partilha de sementes, criações e produtos por meio de
trocas; prática de cultura de extrativismo (erva-mate, madeira e pinhão);
preservação e respeito das tradições, costumes e cultura (festas, danças
e rezas).
Relacionadas a essas tradições, podemos identificar com dona
Jesuvina Chagas Ferreira, 71 anos, algumas práticas que ela conserva até
hoje no Faxinal. Ela mantém pés de erva-mate nativos em seu quintal,
e no tempo certo, de acordo com as técnicas tradicionais, com um forno
de barro que ela mesma fez, corta os ramos, sapeca neste forno e soca no
pilão de madeira. Para ficar moída usa o moinho de quirera. Aprendeu
com o sogro e permanece com esta prática até hoje, após 30 anos. Ela
nos conta que também fazia a farinha no monjolo (Figuras 7 e 8).

Figuras 7 e 8 – Processo de socar a erva-mate. Forno de barro para


sapecar a erva-mate
Fonte: A autora, 2018.
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 139

A Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos não difere muito de


Sete Saltos de Baixo, o uso dos recursos naturais é baseado no trabalho
familiar e nas práticas tradicionais de cultivo da terra. O casal Antônio
e Tereza (pais de Elenita Machado de Lima), nas terras quilombolas
construíram valas para a criação dos animais (no estilo dos faxinais),
as casas para os filhos, plantação de milho e feijão, horta comunitária,
usavam a taquara para fazer as cercas. Plantaram árvores frutíferas e
uma roça de milho, feijão.
Elenita nos conta que quando chegaram às terras era mato fechado,
que foram entrando e fazendo suas roças e casas, mas que colocou em
prática muitos conhecimentos de seus avós e pais na terra. Fez muita
trança de cestos, farinha na mão (sururuca), canjica na cinza, guizá de
alho, torra de farinha de milho. Utilizou: monjolo de pé para fazer bijú,
quirera torrada; peneira, pilão de madeira, forno de barro. Ela ainda
utiliza o sistema tradicional de malhar (maiá) o feijão, na caixa de vara
(Figura 9), construída por seu esposo. Coloca-se o feijão na caixa e com
uma vara própria vai batendo até o feijão cair todo ele por entre os vãos
abertos da caixa.
Atualmente ela planta em suas terras com sementes crioulas:
feijão, milho, mandioca, abóbora, amendoim, alface, couve, abobrinha,
cebola, alho poró, pepino, batata-doce. Tem plantas medicinais para
chás e remédios – erva-doce, erva-cidreira, maçanilha, hortelã-preta,
melissa, capim-limão, alecrim, arruda, gincobiloba, guaco, pimenteira.
Na fruticultura tem laranja, ponkan, mexerica, limão, amora, pitanga,
abacate, uva, pêssego, ameixa amarela, lima, banana, pêra, pêssego,
nectarina.

Figura 9 – Caixa de vara


Fonte: A autora, 2018.
140 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

O sr. Alceu do Pilar, 50 anos, é uma pessoa de destaque na


Comunidade Quilombola, pois com sua sensibilidade e conhecimento
ecológico da mata da comunidade, ele tornou-se um grande incentivador
da preservação e reconhecimento enquanto comunidade tradicional.
Chegou a Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos onde comprou
o terreno em 1993, hoje é reconhecida como terras de Quilombo,
mas segundo ele, não dá pra fazer roça, não têm como sobreviver,
a não ser trabalhando em outras propriedades. Existia muito mato
fechado e capoeirão (onde a terra não é boa para o cultivo). Planta
somente no quintal. Não tem terras de cultivo. As terras são fracas
para o plantio, quando têm a presença de samambaias e aleluia. E
as terras “boas” quando tem bastante aroeira, couvetinga e xaxim.
Em sua primeira morada ainda no Faxinal Sete Saltos de Baixo (faz
divisa com Palmital), plantava em uma terra arrendada, nunca tiveram
terrenos. Em 1½ alqueire plantavam feijão, pepino, milho, mandioca,
arroz. O feijão malhava na caixa de vara. Sua maior colheita foi de 12
sacos de feijão. Os tipos de feijão que plantavam: feijão tibagi – tipo
chumbo/redondo, feijão Iapar – arbusto/preto, feijão manteiguinho –
cipó/preto, feijão zebrinha – cipó curto – branco/preto, feijão rosinha
– cipó – rosa/miúdo.
Os tipos de Milho: milho mexicano – alto- espiga comprida – branco,
milho híbrido – médio – 2 espigas – amarelo, milho tólifoco – alto –
½ espigas – vermelho comprido, milho maizena – médio – uma espiga
– branco. (bom para pães e bolos). Tipos de arroz: arroz amarelão –
amarelo, arroz agulhinha – ponta semente. A mandioca tinha dois tipos:
vassourinha – branca e aipim – amarela. A batata-doce tinha roxa de
cipó e vassourinha – árvore – branca. Abóbora – butijo – para doces.
Moganga – Jaciá. Moranga – branca e amarela. Com o milho se fazia
a quirera. Pinducava no monjolo, tirava (comiam com arroz), depois
demoiava na água – 8 dias na água e depois tirava a massa. Quando
jovem fazia a erva-mate no monjolo também. Sapeca e socava com o pé.
Tomavam chimarrão. Quanto aos animais, tinha porco, cavalo, galinha,
cabrito, soltos no mato/capoeira, como no sistema de criadouro comum.
Nas suas terras atualmente no quilombo com sua família planta no
quintal – couve, repolho, cebola, alho, couve-flor, batata-doce, chuchu,
rúcula, brócolis, laranja, araçá, mexerica, limão, amora, pitanga,
guavirova, uva Japão, pêssego – e utilizam as ervas medicinais no uso de
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 141

chás e remédios – erva-doce, maçanilha, hortelã-preta e branca, melissa,


capim-limão, coentro, rosário (faz defumação contra mau-olhado. A mãe
fazia rosário para oração).
Ainda em Palmital dos Pretos encontramos uma raridade com
relação às sementes crioulas. Dona Fermina Rodrigues, 78 anos, em sua
simplicidade nos repassou a semente de feijão Guaí (feijão de vagem) que
têm há mais de 60 anos. Trouxe a semente de seu pai, quando veio para a
comunidade. Seu pai plantava esse feijão em Iretama, norte do Paraná, e
ela planta até hoje. Em suas práticas ela conserva a forma de plantio em
setembro para colher em janeiro. Ela já usou enxadão, foice, machado,
enxada de orelha, monjolo de pé, pilão. No pilão ela socava o arroz (para
tirar a casca), erva-mate (para quebrar) e fazia canjica na cinza (para sair
a casca do milho e virar canjica). No monjolo com o milho fazia a farinha.
Também fazia cestarias, chapéu (de criciúma) e baixeiros de palha de
milho (para colocar na indumentária do cavalo). Mas também plantava,
amendoim, abóbora, mandioca, batata-doce e plantas medicinais.
Dona Domingas Ferreira da Silva – 96 anos, nasceu no Quilombo do
Palmital. No tempo de seus pais começaram com roça de milho e feijão
juntos. Roça de “toco”, queimando a capoeira. Morava com os pais em
casa de madeira de chão batido, na qual o fogão era de barro, chamado
de “Taipa”. Tinham tudo que precisavam para a subsistência. Comiam
feijão, arroz, carne de porco e banha de lata. Só compravam fora sal e
açúcar. Iam a pé para a cidade com “cargueiro”, o ginete (o pai) e os bois
de “cangalha” que iam à frente [...] eram 03 dias de viagem até Ponta
Grossa, Campo Largo ou Palmeira.
Trabalhavam na lavoura, faziam queimadas, roçavam capoeira,
faziam cerca, “plantavam no toco que daí não era arado, plantavam na
queimada, plantava milho e feijão, e dava bem” (fala de dona Domingas).
Na colheita, colhiam primeiro o feijão que amadurecia antes e depois
ficavam esperando para colher o milho. Trabalhavam os pais e os filhos.
Andavam todos de pé no chão, roupas surradas. Faziam farinha de
monjolo. Tinham sementes todas crioulas.
Tornou-se benzedeira. Foi por muito tempo “recomendadora de
quaresma”. Amanhecia nas Igrejas cantando e rezando. Batiam as
“matracas” (era um instrumento de madeira de três tabuinhas, que
batiam no ferro) e faziam a encomendação das almas na Cruz. Faziam
os pedidos ao pé da cruz e ali rezavam na quaresma. Foi benzedeira de
142 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

crianças com orações, fazia o pedido por meio da reza de um pai-nosso


e ave-maria, contra lombriga, febre, susto. Fazia muito chá de remédios.
Aproveitou muito os bailes na comunidade, que ia até as 09 horas do
dia seguinte, eram os “puxirão de carpida”. Segundo ela dançaram muito
xote e vanerão. Faziam as carpidas em troca do baile. Dançavam com os
“tamancos de madeira”.
A maior fonte de riqueza dessas comunidades, como de Palmital
dos Pretos, é o etnoconhecimento, a vivência popular, principalmente
dos mais velhos, em relação à agrobiodiversidade, as sementes, ervas e
plantas medicinais, pois constitui um legado passado de pai para filho há
muitas gerações.

Considerações finais

A agrobiodiversidade e as sementes crioulas, entre os guardiões


dessas Comunidades Tradicionais dos Campos Gerais, são um
patrimônio material e imaterial. A vida se mantém pela semente, que
é base de alimento, de sobrevivência, de multiplicação, de crescimento
econômico e social na agricultura. É através da agrobiodiversidade que
identificamos as práticas sociocultuais destas comunidades. A tradição
de “guardar” as sementes ao longo do tempo, do conhecimento dos
grãos e de suas variedades, faz com que as comunidades não estejam
sujeitas ao mercado capitalista e aos grãos produzidos artificialmente
que por vezes são submetidas a agrotóxicos, fazendo mal ao homem e
degradando o ambiente.
Estamos no início dos trabalhos de composição do Banco de
Sementes nestas comunidades, entretanto, no decorrer dos estudos
à campo e nas conversas com os moradores locais, percebemos o
entusiasmo e necessidade que eles tinham de se criar um Banco de
Sementes Crioulas. Esse dado exigiu de nosso trabalho um resgate da
história e práticas cotidianas dessas comunidades e, consequentemente,
dos camponeses que as compõe. Neste sentido se destaca o papel da
Universidade – UEPG, com o Projeto Interconexões e Rede SAPE – Rede
de Saberes Agroecológicos de Permanência), das organizações como
a AS-PTA-PR, no fortalecimento das Comunidades de Sete de Cima e
Palmital dos Pretos.
AS SEMENTES CRIOULAS E AS PRÁTICAS SOCIAIS 143

A agrobiodiversidade e as práticas culturais são construídas


cotidianamente e faz parte da vivência dos camponeses, desde as
representações simbólico-culturais e até mesmo a religiosidade. Nesse
processo, estão intrínsecos os valores que levam os camponeses a se
relacionarem com seu pedaço de chão e a desenvolverem uma relação
de afetividade com a terra onde suas famílias vão se desenvolver e ali
permanecer por gerações, construindo-se e reconstruindo-se de acordo
com a sua inter-relação com a natureza e com a sociedade.
Nesse sentido pode-se asseverar a grande importância do incentivo
da Universidade e de políticas públicas na valorização das práticas
culturais e sociais com sementes crioulas em decorrência do valor
histórico, cultural e social que estas carregam.

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Entre valos e vedos: (trans)territorialidades das
comunidades tradicionais da Estrada da Lomba –
Paraná

Renato Pereira, Tanize Tomasi

As comunidades tradicionais – Faxinal Sete Saltos de Baixo e


Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos –, estão localizadas na
área rural circunvizinha justapostas aos limites dos municípios de Ponta
Grossa e Campo Largo, no Paraná. A Estrada da Lomba é reivindicada
como marco de referência ‘(trans)territorial’ (HAESBAERT, 2014),
à medida que é acionada nas mobilizações e trânsito das vivências
cotidianas. A problemática surge em torno do território-identidade com
políticas de ordenamento e reconhecimento territorial que designam
as comunidades pelas extensões que ocupam e as autodefinições que
engendram o fator étnico, os laços de parentesco, as redes de vizinhança
e as identidades coletivas por um processo de reconfiguração territorial
e identitária.
As terras tradicionalmente ocupadas se distanciam das delimitações
físicas de determinadas unidades sociais que compõem os meandros
de territórios etnicamente configurados e assumem modalidades
de ocupação de uso coletivo, como saberes e etnoconhecimentos
consolidados em uma escala regional-local. O objetivo é compreender em
uma área circunvizinha as práticas de acionamento territorial requerido
pelos sujeitos das comunidades tradicionais – Faxinal Sete Saltos de
Baixo e Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos –, no passado e
presente, sob a perspectiva da escala regional-local.
A coleta dos dados em campo seguiu a aplicabilidade da metodologia
da observação-participante, em relação direta do pesquisador-observador
com os interlocutores no ambiente e cenário cultural onde se desenvolve
a interação (GOFFMAN, 2012), participando, escutando e questionando
os aspectos apresentados de sua vida social e documentando-os em
diário de campo. O observador-participante experimenta ser espectador
e ator de uma determinada situação, ao passo que participa e se vê a si
mesmo e aos outros, e, precisa registrar o que vê e o que experimenta
(MÓNICO et al., 2017).
148 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

De acordo com Almeida (2008), após a Constituição Federal de


1988, a categoria “comunidades tradicionais” deixou de figurar no
quadro natural e dos “sujeitos biologizados”, garantindo-se a designação
pela autodefinição a partir da coexistência coletiva, incorporado pelo
critério político-organizativo uma diversidade de situações, neste caso
temos duas modalidades diferentes em uma área circunvizinha, Faxinal
e Quilombo.
A identidade étnica passa a diferenciar-lhes de outras formas de
identidade coletiva, sendo orientada para o passado, porém político-
administrativamente a referência a uma origem comum presumida
impõe os limites de um território-identidade remanescente (O’DWYER,
2007). Em contrapartida, pesquisas que privilegiam os sujeitos enquanto
construtores de seus territórios/territorialidades trazendo a afiliação
étnica tanto por uma questão de origem comum quanto de orientação
das ações coletivas no sentido de destinos compartilhados.
Os grupos étnicos que existem ou persistem ao longo da história
como um “tipo organizacional” sobrepõem-se frente a diversidade
de modalidades de ocupação da terra – contemplando a propriedade
(quilombolas), a posse permanente (indígenas), o uso comum
temporário em cada safra (quebradeiras de coco babaçu); e o “uso
coletivo” (faxinal). A ocupação permanente de terras e suas formas
intrínsecas de uso caracterizam o sentido peculiar de “tradicional”,
embora, a temporalidade vivenciada por estes sujeitos transpõe a
“imemorialidade”, e há o surgimento de múltiplas formas associativas
agrupadas. O entrelaçamento ocorre por raízes locais profundas, laços
de solidariedade reafirmados mediante a implantação de “grandes
projetos de exploração econômica”, fatores político-organizativos,
autodefinições coletivas, consciência ambiental e elementos distintivos
de uma identidade coletiva (ALMEIDA, 2002).
As terras de uso comum, conforme Almeida (2002), não se
configuram em “terras coletivas” deliberadas de aparatos de poder,
nem em “terras comunais”, no sentido emprestado pela feudalidade. Os
sujeitos sociais as experenciam em diferentes situações de apropriação
de recursos naturais (solos, hídricos e florestais), combinando entre
uso e propriedade e entre o caráter privado e comum, perpassadas por
fatores étnicos, de parentesco e sucessão, por fatores históricos, por
ENTRE VALOS E VEDOS 149

elementos identitários peculiares e por critérios político-organizativos e


econômicos, consoante práticas e representações próprias.
As terras de uso comum e a configuração territorial têm uma
relação estreita com a prática de mutirões, perpassando a temporalidade
histórica (antepassados-remanescentes) dos sujeitos quilombolas de
Palmital dos Pretos e faxinalenses de Sete Saltos de Baixo pelas suas
territorialidades identitárias.
No Faxinal Sete Saltos de Baixo os mutirões restringem-se a
organização de uma “Comissão dos Vedos” que realiza a manutenção
de cercas e valos1 do seu criadouro comunitário. As terras de criar
apresentam-se como um elemento simbólico relacionando a identidade,
o território, à terra e a floresta, embora o uso coletivo e a dinamização
das práticas cotidianas não mais condicionem os sujeitos aos limites fixos
de um território-identidade, confirmando segundo Haesbaert (2014) um
paradigma territorial contra-hegemônico em que as territorialidades
condizem a um “estar entre” territórios.
Na primeira seção aborda-se a discussão das “terras tradicionalmente
ocupadas” (ALMEIDA, 2008) consolidadas a partir de identidades étnicas
frente às práticas e a organização territorial que vinculam saberes
tradicionais, recursos naturais, territórios e sujeitos (trans)territoriais e/
ou (trans)identitários. O uso coletivo, os núcleos familiares e o criadouro
comunitário apresentam-se como eixo central de um modo de vida
regional-local para os sujeitos faxinalenses e quilombolas da Estrada da
Lomba.
Na segunda seção aprofunda-se centrando-se na modalidade de
uso coletivo com o estabelecimento de criadouro comunitário e regras
consuetudinárias para a produção animal como configuração territorial-
identitária adotada pela Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos.

1 Os valos/vedos conforme Löwen Sahr, Iegelski e Silva (2003) foram escavados nas
encostas, dentro da mata mais densa quando da formação do Sistema, a mais de um
século. Eles costumam passar por manutenções periódicas organizadas pela própria
comunidade. A localização do valo costuma ser na borda externa da mata mais
densa. Deixa-se uma faixa de 10 a 15 metros de mata entre o valo e a roça. A esta
faixa denomina-se Restinga. Ela tem a função de evitar que a criação, sobretudo os
porcos, enxergue o milho na roça. As cercas são utilizadas praticamente apenas nas
áreas próximas às águas, onde o valo torna-se inviável.
150 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

A (trans)territorialidade das Terras tradicionalmente ocupadas

Ainda que os dispositivos jurídico-formais – artigo 68 do ADCT/1988


e Decreto nº 4883, de 20 de novembro de 2003 –, contemplem a
questão territorial para as comunidades quilombolas, ela se define
pela propriedade através da “titulação definitiva” que concebe o direito
pelo suposto reconhecimento, identificação e delimitação do território
político-administrativo. Este processo delimita a categorização territorial-
identitária a partir de uma condição fixa e fechada ao território, ao passo
que submete os sujeitos de direito ao processo de territorialização e
identidade exclusivamente por uma trajetória histórica própria, relações
territoriais específicas, presunção de ancestralidade negra relacionada
com a resistência à opressão histórica sofrida.
O Decreto Estadual n° 3446, de 14 de agosto de 1997, estabelece
as Áreas Especiais de Uso Regulamentado – ARESUR, unidade de
conservação de uso sustentável, própria do Paraná. O “Sistema Faxinal”
enquanto território-identidade emerge pelo valor conservacionista
ambiental reconhecido às suas áreas. A política legitima o uso coletivo da
terra conciliando a produção animal (atividades agrosilvopastoris) com
a conservação ambiental. A Lei Estadual nº 15673, de 13 de novembro
de 2007 reforça o critério da territorialidade determinada ao criadouro
comum, onde se evidencia as florestas remanescentes.
A categoria “terras de uso comum” como um paradigma constituinte
ao passo que se referencia como eixo de identificação política das
comunidades quilombolas em torno de uma reivindicação também
comum comporta, conforme Arruti (2008), a generalização que permitiu
a redução sociológica da grande variedade de casos empíricos em uma
mesma categoria.
As investigações nas comunidades tradicionais da Estrada da Lomba
– Faxinal Sete Saltos de Baixo e Comunidade Quilombola Palmital dos
Pretos –, revelam um viés regional-local em sua(s) territorialidade(s),
cujos moldes referenciais simbólico-identitário(s) em algum momento
igualam e entrecruzam as suas formas de enquadramento e organização
territorial.
O território criado pela autodefinição atesta o título coletivo
definitivo e pró-indiviso para as comunidades quilombolas, enquanto,
para os faxinalenses, é considerada a gestão participativa das Áreas
ENTRE VALOS E VEDOS 151

Especiais de Uso Regulamentado – ARESUR, no uso comum das


terras de propriedade particular/individual para a produção animal e
a conservação dos recursos naturais. A ARESUR se efetiva pelas terras
de criar, e apesar destas, de acordo com Nerone (2015), serem de uso
coletivo com a constituição do criadouro comum, a propriedade do
terreno ainda permanece particular, assim como as terras de plantar,
circundantes ao criadouro que são destinadas a agricultura.
As formas de organização territorial dos sujeitos faxinalenses e
quilombolas exprimem estratégias de resistência dos seus territórios
coadunando-os por práticas socioambientais compartilhadas. A
articulação ou abertura dos seus territórios tem se efetivado por esse
caráter “multi” ou “trans” territorial, que, segundo Haesbaert (2014),
envolve em diferentes níveis também um “estar entre” ou um acionar/
produzir distintas territorialidades em um jogo de múltiplas situações
identitárias e múltiplas relações de poder.
Os sujeitos faxinalenses de Sete Saltos de Baixo e os quilombolas de
Palmital dos Pretos experenciam formas autênticas de territorialização,
que contradizem a ordem hegemônica de legitimação da propriedade
(privado-estatal). Na Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos em
um passado recente, assim como ainda hoje no Faxinal Sete Saltos de
Baixo se tem o uso coletivo da terra vinculado ao regime da pequena
propriedade familiar.
A modalidade de uso comunal da terra em que os quilombolas de
Palmital dos Pretos compartilharam até meados da década 1980 se iguala
a concepção do “Sistema Faxinal2” . Este Sistema, conforme Nerone
(2015), se desenvolveu principalmente na região Centro-Sul do estado
do Paraná, cuja organização se fundamenta em leis consuetudinárias
nas terras de criar, onde se estabelece o criadouro comunitário. A
propriedade de uso agrícola familiar individual se efetiva nas terras
de plantar, nas cercanias do criadouro comunitário. A transposição de

2 Segundo tese de Nerone (2015) a gênese deste sistema remete à península ibérica,
zona fronteiriça entre Portugal e Espanha, mas que está presente em um número
expressivo de comunidades rurais no Paraná pelo processo de colonização da Espanha
e Portugal, com destaque para o modelo implantado nas Reduções Jesuíticas no início
do século XVII com a experiência comunitária já existente entre os Índios Guaranis.
Refuta assim, a implantação do sistema pelo processo de imigração, estes, teriam
apenas assimilado o sistema em terras paranaenses e não trazido consigo.
152 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

uma área para outra é feita por limitadores físicos – cercas, valos, mata-
burros3 e porteiras.
A assimilação do uso coletivo pelos sujeitos quilombolas de Palmital
dos Pretos ultrapassa o possível domínio jurídico coletivo resguardado
pelo processo de regularização fundiária dos territórios quilombolas ao
deparar-se com o usufruto econômico, a apropriação simbólico-cultural
e a propriedade particular/individual na gestão participativa.
As “terras de uso comum” para ambas as comunidades se configuram
na construção de criadouros comunitários para a criação de animais. E
em ambas as situações o controle dos recursos básicos não se exerce livre
e individualmente, mas está atrelado às normas específicas, combinando
o uso comum de recursos e apropriação privada de bens. As normas
gestadas consensualmente nos meandros das relações sociais entre
vários núcleos familiares, que compõem uma unidade social, possibilitam
que o uso comum seja um acesso estável à terra nas práticas agrícolas,
extrativistas, pastoril, sob a forma de cooperação simples e com base no
trabalho familiar.
O acesso coletivo aos recursos naturais destes sujeitos quilombolas
e faxinalenses projetou uma organização que logrou das tradicionais
estruturas intermediárias dos grupos étnicos como os agrupamentos de
parentes centralizados em torno do patriarca ou matriarca. Os laços de
compadrio entrecruzam e reforçam os laços consanguíneos por afinidade
e inserem-se nesta organização.
Estas coletividades, de acordo com Little (2004), funcionam em
um nível inferior no plano do Estado-nação, e ainda que incorporem
elementos comumente considerados privados, estes existem fora do
âmbito do mercado. Como os territórios/territorialidades desses grupos
fundamentam-se no arcabouço da lei consuetudinária, raras vezes
reconhecida e respeitada pelo Estado, as articulações entre esses grupos
são marginais aos principais centros de poder político.
A escala regional-local emerge no ordenamento territorial, tendo
o uso coletivo da terra, a efetivação de criadouros comunitários, como
uma prática e um modo de organização territorial que está atrelada
tanto a identidade faxinalense quanto a identidade quilombola em uma
horizontalidade de táticas e estratégias para permanecer. A perspectiva
regional-local projeta-se em termos de modos de organização,
3 Os mata-burros conforme Löwen Sahr, Iegelski e Silva (2003) são valos com travas
espaçadas, que permite o trânsito de veículos, mas vedam a passagem de animais.
ENTRE VALOS E VEDOS 153

estabelecimento de mutirões e leis comunitárias, a criação à solta,


resistência e sustentabilidade agrosilvopastoril como modo de ser.
O viés regional, “diferenciação espacial” proposta por Haesbaert
(2010) deve-se neste caso agregar-se ao local, pois defende-se uma
escala imediata à horizontalidade da modalidade de ocupação da
terra experienciada e reivindicada pelos territórios tradicionais. Não
condicionando as identidades aos territórios delimitados por áreas com
fronteiras físicas ao redor (divisões demarcatórias/diferenciação de
áreas). As (trans)territorialidades cotidianas das vivências e relações
sociais dos sujeitos tradicionais acionam os territórios em uma escala
muito maior do que se costumou defini-los.
A região como espaços-momento resulta efetivamente em uma
articulação espacial consistente (ainda que mutável e “porosa”),
complexa, seja por coesões de dominância socioeconômica, política e/ou
simbólico-cultural. A definição não se dá a priori por uma escala, visto
que, “[...] não é a escala que faz a região, mas a regionalização (enquanto
ação ao mesmo tempo concreta e abstrata de criação de regiões) que
define a escala a ser priorizada” (HAESBAERT, 2010, p. 155).
O transitar entre territórios faz com que haja uma regionalização-
local na efetivação dos territórios das comunidades tradicionais,
Faxinal Sete Saltos de Baixo e Comunidade Quilombola Palmital dos
Pretos. A região ativa-se como ‘um produto do contato’ (HAESBAERT,
2010) corroborando a escala da vivência cotidiana dos sujeitos sociais
pelo caráter integrador no trânsito de saberes e práticas territoriais e
identitárias.
A perspectiva da escala regional-local frente às comunidades
tradicionais estudadas – Faxinal Sete Saltos de Baixo e Comunidade
Quilombola Palmital dos Pretos – projeta a reivindicação de uma
modalidade territorial que transpõe os limites físicos e político-
administrativos em que estão inseridos. Estes sujeitos sociais em
determinado momento experenciam a mesma configuração territorial
e ainda em alguns casos correlacionam-se a esta ao adotarem uma
autodefinição (trans)identitária.
Destarte, estes sujeitos tradicionais desvencilham seus territórios
dos limites políticos do Estado, como sendo algum tipo de definição,
pois a fluidez de suas identidades objetiva-se na multiplicidade em que
são efetivados os seus territórios/territorialidades, com a insurgência
154 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

inclusive de famílias que se autodefinem quilombolas-faxinalenses e


vivem entre os territórios.
O regional-local inclui-se aqui como uma perspectiva em que se
manifesta a problemática dos territórios/territorialidades legitimados
pelas políticas de identidades que longe de serem pensados em um
contínuo território-identidade devem referenciar a mobilidade dos
sujeitos sociais para manter seus territórios.
Portanto, o regional-local é o próprio movimento territorial-
identitário de estratégia sustentável dos núcleos centrais familiares na
inserção aos modos organizativos, que, vinculam (trans)territorialidades
por um certo grau de coesão e solidariedade desenvolvido face a outras
formas antagonistas e conflituosas de uso dos recursos naturais.

O contornamento regional-local de acionamento territorial dos


quilombolas de Palmital dos Pretos

A construção ambivalente de territórios por meio de territorialidades


múltiplas – pela multiplicidade de situações identitárias e de poder que
se revezam e se mesclam em suas escalas estrategicamente efetivadas.
A integração dos sujeitos quilombolas de Palmital dos Pretos permite ao
mesmo tempo representar a condição de sua reprodução enquanto grupo
culturalmente distinto e, por outro lado, uma demonstração evidente de
subversão a ordem majoritária capitalista – usufruto comum da terra,
práticas coletivas, em uma relação distinta com a natureza.
Em termos de práticas e relações e não pelo recorte é que observamos
as escalas, porque muitas vezes não há um recorte bem claro de uma
escala para outra. Neste caso, os quilombolas e faxinalenses efetivam
seu território em nome do regional-local, práticas sociais de abertura
e fechamento, táticas cotidianas como formas de sobrevivência e como
processos de resistência. O contornamento dos grupos subalternos,
conforme Haesbaert (2014), envolve a capacidade de adaptar espaços,
de encontrar desvios ou de transitar entre múltiplos territórios, ou
melhor, de transterritorializar-se, não apenas em relação ao trânsito/
locomoção, mas em relação a transgressão dos domínios e das regras
territorialmente posicionadas e formalmente delimitadas.
A ambivalência em que esses territórios e identidades são construídos,
conforme Haesbaert (2014), conduz a abertura e a permanente
ENTRE VALOS E VEDOS 155

possibilidade de entrar, sair e/ou transitar. A condição de transitoriedade


desponta territórios com base no respeito à multiplicidade dos espaços
e da vida que os anima. Algumas vezes se justapõe a um processo de
resistência a expulsão e a desorganização das formas de ocupação efetiva
por conflitos ou pelo jogo de relações de poder.
A projeção recai em situações de reconfiguração territorial aos
usos tradicionais comuns de apropriação de espaços e dos recursos
naturais – extrativismo vegetal (cipós, fibras, madeira, ervas medicinais
da floresta), extrativismo animal (caça e pesca), criação de animais, e
pequena agricultura itinerante. Observa-se na (re)criação de formas de
apropriação individual com o enaltecimento da propriedade privada a
imposição de limites físicos a uma situação territorial que não mais se
sustenta nestas cercanias. A reação às ameaças ou à despossessão de
seus espaços comunais, faz com que repensem, redimensionem e até
reconstruam os “comuns”.
A complexificação da organização territorial de grupos que
arquitetam seus territórios a partir da cultura vernacular e ao mesmo
tempo sustentados pela imbricação de vínculos sociais saltam escalas
(SMITH, 2000) no trânsito simultâneo de múltiplas territorialidades
(HAESBAERT, 2014). Os sujeitos vivenciam a condição de “estar-entre”,
uma (trans)territorialidade mais espontânea, de certo modo voluntária,
desdobrada a partir de relações sociais mais igualitárias e/ou dentro de
estratégias de resistências por uma condição (trans)identitária.
A resistência destes territórios ainda que pelas relações sociais faz
com que os núcleos de parentesco sejam o eixo central das unidades
territoriais com base em limites étnicos, em vez de físicos, sustentados
na afiliação por parentesco, coparticipação de valores, de práticas
culturais e principalmente da circunstância específica de solidariedade
e reciprocidade. Estes limites passam a ser fluídos, pois acompanham
a fluidez com que as relações sociais são feitas e desfeitas, ou ainda,
se sustentam na quase indissociabilidade dos laços de parentesco e
compadresco, este último representando um tipo de parentesco por
afinidade, que muitas vezes acaba por fortalecer os laços já existentes.
Não se pode deixar de considerar também o possível enfraquecimento
dos laços sociais e de forma mais branda o rompimento destes.
Inclusive os laços de compadresco estabeleciam-se na configuração
territorial mediante uma “geometria de poder” (MASSEY, 2000),
156 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

com o controle do uso coletivo pela sobreposição de territorialidades


que efetivavam a propriedade particular/individual na criação de
animais em mangueirões dentro do criadouro comunitário. Um mapa
do poder indicava as territorialidades individuais fragmentando
uma territorialidade coletiva. Já a apropriação dos recursos naturais
estava vinculada às normas de usufruto consuetudinárias, da "lei do
respeito”, e de uma teia de reciprocidades sociais onde o parentesco e
o compadrio assumem um papel preponderante. Assim como ainda
hoje, apesar da dissolução do criadouro comunitário e a inserção das
grandes propriedades particulares, os sujeitos quilombolas recorrem a
consensualidade e aos entrelaçamentos sociais efetivando “carreiros”
para apropriação dos comuns nas áreas fechadas que antes constituía o
criadouro.
Para Massey (2000) o poder é sempre um produto relacional que
pode ser vislumbrado no exercício entre pessoas, entre as coisas, entre
os lugares. O conceito de geometria do poder tenta apreender no espaço
a cartografia das relações de poder.
Na diversidade de formas de reconhecimento jurídico das diferentes
modalidades de apropriação dos recursos naturais que caracterizam
as denominadas “terras tradicionalmente ocupadas”, o uso comum de
florestas, recursos hídricos, campos e pastagens aparece combinado,
tanto com a propriedade, quanto com a posse, de maneira perene ou
temporária, e envolve diferentes atividades produtivas exercidas por
unidades de trabalho familiar, tais como o extrativismo, a agricultura, a
pesca, a caça, o artesanato e a pecuária (ALMEIDA, 2008).
O mapeamento da diversidade de contornamento regional-local em
que o território é acionado na Comunidade Quilombola Palmital dos
Pretos possibilita repensar a reestruturação territorial vinculada a lógica
formal do mercado de terras, da modalidade de ocupação coletiva da
terra, do fator étnico-identitário, dos laços de parentesco-compadresco e
das redes de vizinhança.
A primeira modalidade de uso comum da terra e dos recursos naturais
relatada pelos sujeitos quilombolas de Palmital dos Pretos emergiu frente
a estruturação de núcleos familiares existentes no passado. A organização
fundiária em pequenas propriedades concentrava-se na área central por
um agrupamento dos núcleos familiares. A proximidade das moradias de
ENTRE VALOS E VEDOS 157

cada núcleo (Figura 1) dos distintos ramos familiares com sobrenomes


diferentes, resulta dos vínculos de parentesco ou compadresco.

Figura 1 – Estrutura fundiária pelos núcleos familiares


Fonte: Alceu Carneiro, morador quilombola
Org.: Os autores, 2018.

Nesta primeira situação de ocupação se tem as moradias às margens


dos cursos d’água, o que se justifica pelo estabelecimento de núcleos
familiares e da pequena propriedade. Pode-se referenciar à tipologia de
“aldeia nucleada”, que conforme Anjos (2009) tem a distribuição das
residências próximas a um elemento comunitário, formando núcleos de
povoamento. Neste caso, assim como do Faxinal Sete Saltos de Baixo, o
adensamento destes núcleos familiares em uma área central transpõe
a questão da propriedade individual para o uso coletivo dos recursos
naturais projetando um grande criadouro comunitário que a circunda.
As moradias estavam no interior do criadouro comunitário, que seguiu
os moldes regionais-locais na sua construção.
158 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Os valos como elementos aglutinadores ao sistema de uso comum


da terra

Os remanescentes dos grandes valos escavados na terra na


Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos estão hoje nas áreas
florestadas, alguns em áreas mais fechadas da mata, o que permite pensar
que no passado a conservação ambiental também estava associada ao
uso coletivo, como no Faxinal Sete Saltos de Baixo. Também há relatos
das cercas deitadas nas áreas de banhado, mata-burros e portões,
demarcando o uso comum da terra. O rebanho de animais em grande
volume permitia a efetivação de uma pecuária de comercialização com
atravessadores.
O criadouro comunitário com 51,2 hectares circundava os núcleos
familiares (Figura 2), estabelecendo uma área central, onde estavam
alocadas todas as moradias. Nas terras adjacentes havia apenas a presença
de cultivos agrícolas. O eixo central entrelaçava os núcleos familiares no
criadouro comunitário em um grande agrupamento.

Figura 2 – Cartograma de localização dos valos do antigo criadouro da


Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos (Campo Largo-PR)
Org.: Os autores, 2018.
ENTRE VALOS E VEDOS 159

A presença do grande criadouro comunitário e terras de


plantar adjacentes repete o modelo organizacional do “Sistema
Faxinal” (NERONE, 2015; CHANG, 1988) que ainda está presente na
circunvizinhança imediata, com o último remanescente de Faxinal de
Ponta Grossa, Comunidade Sete Saltos de Baixo, que apresenta conforme
Löwen Sahr, Iegelski e Silva (2003, s./p.) os três elementos básicos: “as
terras de criação, são denominadas na comunidade como Potreiro ou
Criadouro, as terras de plantar são conhecidas como Terra de Planta
ou Roça, e as cercas são, predominantemente, constituídas de Valos e
Vedos”.
Não exclusivo a este quilombo, os moldes do Sistema Faxinal
organizado por criadouro comunitário com a criação de animais à
solta e as terras de plantar adjacentes com produção agrícola familiar
individual se apresentou também, conforme Löwen Sahr et al. (2011),
como um sistema remanescente praticado até a década de 1950 na
Comunidade Quilombola de São João, no Vale do Ribeira. A estrutura
das terras conforme a autora se subdividida em terras de plantar e terras
de criar delimitadas por cercas horizontais (deitadas). As áreas próximas
aos vales dos rios se transformaram em grandes criadouros de animais,
sendo as áreas das encostas e espigões destinados às roças (capoava),
num sistema de coivara associado a rotação da terra e com cultivos de
subsistência. A existência dos rebanhos nesta comunidade na década
de 1950 correlaciona-se aos “tropeiros de porcos”, atravessadores que
levavam os animais as charqueadas da região. Ainda há na comunidade
um criadouro remanescente delimitado por cercas deitadas, porém de
caráter individual.
Em Ponta Grossa, nas Comunidades Quilombolas de Santa Cruz
e Sutil, ainda nos Campos Gerais, há por aproximadamente sete
quilômetros descontinuamente remanescentes de valos, que seguem
paralelamente uma das laterais da rodovia estadual PR-151. Em um
contexto antecedente as gerações atuais, Waldmann (1992) destaca-as
enquanto ‘valas caboclas’, praticadas pelos escravos da Fazenda Santa
Cruz (sesmaria), como divisas de terras, em detrimento do uso de cercas,
para os animais não passarem de um lado para outro.
Fora da categorização das comunidades tradicionais, mas ainda no
contexto regional-local da Estrada da Lomba, a Comunidade rural Sete
Saltos de Cima, vizinha do Faxinal e Quilombo, também tem em seu
160 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

território, nas áreas em que há remanescentes de florestas, a presença


de valos.
O Sistema Faxinal pode ser aqui defendido como uma configuração
territorial regional-local, ou mesmo transregional acionada no passado
recente pelas comunidades rurais da Estrada da Lomba – Faxinal Sete
Saltos de Baixo, Comunidade Sete Saltos de Cima e a Comunidade
Quilombola Palmital dos Pretos. E não muito distante destas, as
Comunidades Quilombolas de Santa Cruz e Sutil, e, distanciando um
pouco, a Comunidade Quilombola de São João. Um transterritorializar-
se ao modelo da propriedade/posse individual vigente, coexistindo a
propriedade particular pelo uso coletivo, representado pela articulação
entre terras de plantar e as terras de criar. O arcabouço cultural tem por
eixo o criadouro comum como estratégia de resistência que viabiliza ter
criações de animais inclusive por aqueles que não possuem terras.
Na década de 1995, segundo Löwen Sahr, Iegeslki e Silva (2003)
o Sistema Faxinal em Sete Saltos de Baixo enfrentou um processo de
reconfiguração territorial, tendo o fracionamento, desagregação ou
reestruturação do criadouro comunitário e do próprio Sistema. A
colocação de uma cerca separou o criadouro coletivo em duas partes. Na
primeira parte, manteve-se a propriedade coletiva com uma área de 200
alqueires destinadas ao criadouro de animais à solta. A maioria das casas
mesclavam famílias de dois ramos familiares. Na segunda parte, com
uma área menor de 50 alqueires, desfez-se o criadouro e construiu-se
um grande mangueirão para a criação dos porcos, nela permaneceram
apenas algumas famílias de um único ramo familiar. Atualmente,
observa-se uma nova reconfiguração territorial efetivando-se dentro do
criadouro comunitário, com a crescente das subdivisões internas com a
inserção de cercas de arame e/ou elétricas e porteiras com a presença de
atores neorurais como chacareiros e sitiantes.
Subdivisões internas também reconfiguraram o criadouro comunitário
na Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos. Demarcações paralelas
aos remanescentes do perímetro maior do criadouro comunitário
confirmam o argumento da coexistência justaposta de dois ou três
mangueirões de uso individual para a criação de porcos. Os criadouros
menores (“mangueirões”) pertenciam a grandes proprietários que
haviam se consolidado ao grupo pelos vínculos próximos de amizade
e compadresco. No entanto, os grandes proprietários desafiavam a
ENTRE VALOS E VEDOS 161

continuidade da territorialidade central de uso coletivo ao reservar para


si grande parte das terras para a criação individual de seus animais. O
processo de desestruturação ou reestruturação organizacional desponta
com a implementação do modelo das grandes propriedades individuais
e a pecuária extensiva.
Em um passado recente o acionar territorial pelos sujeitos
quilombolas de Palmital dos Pretos se efetivou pelas práticas de
mutirões (reuniões), reforçando o caráter coletivo de viés regional-local.
A manutenção dos valos, cercas e portões do criadouro comunitário
se sustentou nos laços de solidariedade entre homens e mulheres que
compartilhavam uma vez ao ano os dias de trabalho.
O mutirão transpassou os limites do criadouro comunitário para o
cultivo da roça de “toco”, onde se efetuava as atividades da roçada, queima
e do plantio. Ocasiões em que se exprimiam elementos culturais como as
canções de trabalho. Entre as canções está o “bambeado – canta, canta
o bambeado devagar e continuado”, uma composição rimada repetida à
exaustão durante o dia de serviço. Em Palmital dos Pretos, os mutirões
eram encerrados com fandango na casa da família Ribeiro.
Mesmo com a manutenção dos núcleos familiares, ocorreu a
desagregação do criadouro comunitário no auge da expansão das grandes
propriedades monocultoras com a inserção de grandes fazendeiros e
indústrias madeireiras, circundando e adentrando o território outrora
coletivo (Figura 3). A pecuária extensiva e as florestas de pinus aliadas
a padronização das vias de acesso com a retirada pela administração
pública municipal dos mata-burros e portões que protegiam o sistema
do criadouro comunitário, reconfiguraram as escalas de acionamento
territorial pelos sujeitos quilombolas.
162 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Figura 3 – Estrutura fundiária atual – Grandes propriedades


Fonte: Alceu Carneiro, morador quilombola
Org.: Os autores, 2018.

As terras de plantar passaram a ser destinadas também para as


moradias dos sujeitos quilombolas e apesar de haver ainda a composição
de núcleos familiares a sua retração vincula-se a morte de alguns
sujeitos quilombolas e a venda das propriedades para outros, impedindo
o agrupamento das moradias em uma área central como outrora e a
reconstituição de um criadouro comunitário que fosse acessível a todos
os moradores.
O território quilombola transpôs o acionar de uma territorialidade
coletiva de caráter regional-local ou mesmo transregional em (trans)
territorialidades em uma perspectiva regional-local que vincula os
sujeitos quilombolas a um ‘estar entre’ (HAESBAERT, 2014) territórios.
Os valos que antes representavam as barreiras para os animais
não adentrarem as terras de plantar, hoje, em seus remanescentes
apresentam-se como o limiar da transição da criação do “porco solto”
para a criação do “porco preso”. Contudo, o estabelecimento de vínculos
matrimoniais entre quilombolas e faxinalenses constitui famílias que
criam uma condição transidentitária ao se autoafirmar tanto quilombolas,
quanto faxinalenses. Aliadas a residência em ambas as comunidades, a
ENTRE VALOS E VEDOS 163

mobilidade e o trânsito cotidiano entre o Faxinal Sete Saltos de Baixo e a


Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos revela uma predisposição
para enquadrar as práticas de criação de animais à solta, agora restritas
ao Faxinal. As famílias já chegaram a praticar o aluguel de terras no
Faxinal para o cultivo de milho ou destinar estas atividades agrícolas para
as terras no Quilombo, complementando a alimentação dos animais que
estão no criadouro comunitário do Faxinal. A criação de porcos crioulos
se restringe atualmente a presença de um único mangueirão individual/
particular de um sujeito que se autodefine quilombola.
Outras territorialidades, remodelaram o uso tradicional dos comuns
e a dinâmica de acionamento do território. Atualmente também há
famílias quilombolas vivendo na Comunidade de Sete Saltos de Cima que
reivindicam a pertença étnica e marcadores territoriais que os vinculam
tanto a essa comunidade quanto a Comunidade Quilombola de Palmital
dos Pretos, como um contínuo ou mesmo uma (des)continuidade
integrada a identidade quilombola.
O desmantelamento do criadouro comunitário contribuiu para que
muitas famílias deixassem de ter criações; o fechamento das propriedades
com cercas e porteiras restringiu o acesso às áreas florestadas, que na
sua grande maioria pertencem às grandes propriedades; a inserção de
sujeitos externos contribuiu para a transposição da estrada principal e
inacessibilidade de estradas subjacentes.
O contornamento das barreiras impostas pelas grandes propriedades
fez ressurgir os “carreiros” entrecortando as propriedades para a extração
dos recursos naturais – lenha, capim estrepe, taquara, plantas medicinais
–, resgate da mobilidade interna e acesso aos marcadores simbólico-
cultural – taperas de antigas moradias (história dos antepassados).
Traços culturais se mantém na memória coletiva que incorpora
dimensões simbólicas e identitárias na relação do grupo com sua
área, mas nota-se que este suposto território passa a ser acionado em
escalas que até então não eram acionadas para o território. Os sujeitos
quilombolas de Palmital dos Pretos ainda valorizam a incorporação de
laços consistentes, principalmente os de parentesco que acabam por
fortalecer o trânsito e as relações de poder em determinado território.
164 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

Considerações finais

A pesquisa buscou compreender as práticas de acionamento


territorial dos sujeitos de duas comunidades tradicionais rurais, Faxinal
Sete Saltos de Baixo (Ponta Grossa-PR) e Comunidade Quilombola
Palmital dos Pretos (Campo Largo-PR), considerando sua escala de
acionamento (trans)territorial, conforme Haesbaert (2014).
A problemática apresentada reforça a importância do tripé
sociocultural, território-identidade (faxinal/quilombo), identidade
coletiva (etnicidade, laços de parentesco, redes de vizinhança) e
uso comum da terra, na definição das políticas de ordenamento e
reconhecimento territorial.
Evidenciou-se que a escala de acionamento (trans)territorial
desses sujeitos tradicionais é potencializada à medida em que se criam
estratégias de resistência aos limites impostos pela própria definição
da categoria “comunidades tradicionais”. Por outro lado, sugere que
as práticas culturais tradicionais de ajuda mútua são reforçadas pela
indissociabilidade e permanência em uso comum da terra.
Os valos remanescentes do antigo criadouro na Comunidade
Quilombola Palmital dos Pretos corroboram com a ideia de (re)
ordenamento territorial a partir dos sujeitos, considerando-se a
especificidade de suas práticas territoriais, como o mutirão.
As territorialidades específicas podem ser entendidas aqui como
resultantes dos processos de territorialização, apresentando delimitações
mais definitivas ou contingenciais, dependendo da correlação de força
em cada situação social de antagonismo.

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A invenção da Amazônia a partir do espaço vivido e
bem viver

Jefferson Henrique Cidreira, Josué da Costa Silva

Introdução

Dardel e Heidegger destacam que necessita uma relação entre a


natureza e o ser, ou seja, por meio do existencialismo humano dentro
de um mundo circundante, que vai além do físico, é onde o ser mantém
sua vivência consigo, com a terra e com o outro, pois, segundo os autores
supracitados por meio do dialogismo, “para a ciência há uma presença
do terrestre que é o ser-no-mundo, e entre o homem e a terra permanece
e continua uma espécie de cumplicidade no ser” (DARDEL, 2011, p. 6).
Besse, em uma releitura de Dardel, enfatiza que é
O mundo da existência, um mundo que agrupa certamente as
dimensões do conhecimento, mas também, e, sobretudo, aquelas
da ação e da afetividade. A geografia está implicada em um
mundo vivido, um mundo ambiente da existência cotidiana dos
homens (BESSE, 2011 apud DARDEL, 2011, p. 114).

Consonante a esta ideia, o ser em imbricação com seu espaço passa


a vivê-lo, a dar sentido após ser por ele também significado e, dessa
maneira, abre-se um caminho para o bem viver. Esse espaço é múltiplo
e o ser também.
A cidade, como espaço vivido, é permeada de heterogeneidade,
de costumes, crenças, comidas típicas, linguagens, enfim, de muitas
culturas. É justamente na variedade, na multiplicidade que a urbe
mantém suas singularidades diante de outras, o que ocorre, com maior
ênfase, em regiões diferentes.

Cidades amazônicas: palcos do bem viver

Na região amazônica é comum encontrar semelhanças entre cidades,


pois cultivam uma ligação íntima entre o urbano e a mata, os rios que,
para Loureiro (2001, p. 65), a cultura do “mundo ribeirinho se espraia
168 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

pelo mundo urbano, assim com aquela é receptora das contribuições da


cultura urbana. Esses mundos interpretam-se mutuamente”.
Ancorados nessa visão, observamos como os laços culturais são
fortes, a exuberância da natureza, a alimentação que seduz esses dois
meios coexistentes, o que conota a cidade não como um modelo único.
“O extrativismo gerou cidades (fenômeno mais recorrente na Amazônia
com a exploração da borracha), não só no espaço físico, produziu
subjetividades muito fortes entre seus habitantes” (IBAÑEZ, 2015, p. 95),
as quais geram um fascínio, um encantamento entre o ser e o seu espaço.
Além desses fortes vínculos, há, em muitas cidades amazônicas,
a inserção desse “espaço ribeirinho”: o rio, o ser, a pesca, a colheita,
as canoas, barcos, etc. A natureza gera fascínio no ser urbano,
chama-o, ressignifica-o, e faz com que alguns se tornem resilientes e,
posteriormente, constituem-se subversivos aos discursos do capital e
dos outros micropoderes que dele e da sociedade se edificam perante ao
homem/mulher.
A cidade passa a ganhar então espaços privilegiados de afetividade,
emoções, que se tornam fugas, dispersão das teias de poder.
O homem passa a ser “ordinário”, insurgir com microrresistências,
tornando a cidade não mais inimiga pela vida corriqueira do trabalho,
de produzir mais, do consumismo, da ansiedade, pelo contrário, seus
espaços passam a se relacionar com o ser, e vice-versa, e estes com
outros, por meio da tomada de consciência, a empatia, a “aceitação” de
si e do diferente, da austeridade à natureza, sem espoliá-la em nome de
um desenvolvimento que não chegou a todos.
A natureza “não está aqui para nos servir, até porque nós, humanos,
também somos natureza e, sendo natureza, quando nos desligamos dela
e lhe fazemos mal, estamos fazendo mal a nós mesmos” (ACOSTA, 2016,
p. 15).
Destarte, conforme asseverado, o ser só se fará reinvenção de si e da
sociedade, conforme destacam César, Cincotto Júnior e Oliveira (2018, p.
45), “através dela” (a natureza).
Antes de darmos prosseguimento, é relevante esclarecemos o que
seria essa passagem do homem ao ordinário, e as microrresistências.
Para tal empreendimento, utilizaremos aqui os estudos de Michel
de Certeau (1994) em seu livro a Invenção do Cotidiano, os quais se
harmonizam às concepções de Foucault quanto ao pensar o poder, em
A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA 169

conformidade com Silva e Silva (2016, p. 10), como “fluxo, um movimento,


nem localizável e nem pertencente a algum grupo, tensionado, ora usado
para constituir estratégias de opressão e ora requisitado nas táticas de
sobrevivência”.
Logo, se apropriaremos de seu pensamento de resistência não só
diante do poder da governabilidade, das amarras do capital, mas das
tensões em sociedade, das invenções, dos regimes ou efeitos de poder.
Homem ordinário. Herói comum. Personagem disseminada.
Caminhante inumerável. […] Este herói anônimo vem de muito
longe. É o murmúrio das sociedades. De todo o tempo, anterior
aos textos. Nem os espera. Zomba deles. Mas, nas representações
escritas, vai progredindo. Pouco a pouco ocupa o centro de nossas
cenas científicas. Os projetores abandonaram os atores donos de
nomes próprios e de brasões sociais para voltar-se para o coro
dos figurantes amontoados dos lados, e depois fixar-se enfim na
multidão do público (CERTEAU, 1994, p. 57).

Essas resistências estão correlacionadas ou são manifestadas no


cotidiano do sujeito amazônico. É justamente o ser que passa a tornar-
se ordinário através das invenções cotidianas, da arte do fazer. Logo,
ele pode estar nas rodas de conversa, nas brincadeiras e/ou reuniões
de amigos, no encontro do barzinho, do sentar-se e contemplar o rio,
no namoro na praça, no aconchego do lar, nos braços da pessoa amada
numa noite lancinante; na observação atenta à natureza, entre tantas
outras formas.
Podemos testemunhar tais fugas ou microrresistências a começar
de imagens e algumas falas breves desse ser, pois a figura fala por si só,
evoca pensamentos, lembranças, lugares, afetividades, emoções, etc. De
igual modo, o contemplar a natureza em meio à cidade enfatiza mais
ainda essa arte do fazer cotidiano em embate com o poder da sociedade
do consumismo, do desempenho e das figurações e/ou invenções
da Amazônia a partir do outro, de discursos “de fora”, que apenas
observaram-na, mas não a viveram, pois,
O espaço percebido pela imaginação não pode ser o espaço
indiferente entregue à mensuração e à reflexão do geômetra.
É um espaço vivido. É vivido em sua positividade, mas com as
parcialidades da imaginação (BACHELARD, 1993, p. 19).
170 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

O espaço amazônico, nessa acepção, não deve ser aquele visto


com indiferença, ele tem que ser imaginado enquanto vivência e não
por olhares alheios de quem não o viveu ou não o vive. Dessa maneira,
as imagens a seguir dão a tonalidade das experiências nesses palcos
amazônicos por meio da interação ser e natureza.
Evocamos Relph (1979), para quem os espaços possuem lugares da
memória, e vamos adiante, ao pensar que os lugares, as imagens, os
sons, o sabor, etc, vão levando o ser para suas memórias mais antigas e
felizes, acionam dispositivos que remontam ao seu lugar, à sua terra, à
sua vivência, à saudade, parecendo que esses a transfiram para lá, como
o bater dos calcanhares de Alice. Todavia, ao olhar, ao sentir, ao ouvir, ou,
ainda, recorrendo a Tuan (1986) sobre o que ele chamará de memória do
bem viver, podemos observar que ela se manifesta a partir de algumas
imagens que traduzem o contato, como o afetivo.
Quando refletimos sobre a viagem que a imagem, um espaço, um
som, etc, pode trazer ao ser, pensamos na figura acima. Nessa fotografia
(Figura 1), datada de 2016, Andressa Silva era estudante em Rio Branco-
AC, e relata brevemente o que significava olhar àquele lugar, saudades
de casa, da minha família, nesse momento que olhava para o rio Acre era
levada ao seu lar, era como se “eu estivesse olhando para o rio Muru, no
seringal onde nasci, Novo Porto, perto do Jordão, no Acre, e se sentisse
em casa, no meu lugar, onde era feliz e sentia paz1”.

Figura 1 – Contemplação do rio Acre na capital acreana.


Fonte: Banco de dados do autor.

3 Relatos e/ou depoimentos do banco de dados do autor, coletados entre os anos 2017
e 2020.
A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA 171

Ora, o rio Acre, com suas águas barrentas, o som de sua correnteza,
com seus barrancos floridos pelo verde da mata a levara às águas do
Muru, a fez viajar quilômetros, concebendo a ela se sentir no aconchego
do lugar apenas ouvindo e olhando para ali.
Além disso, manifesta-se seu modo de vida no seringal, da criação
de animais, do andar pela mata, no mover-se de barco, o gosto da comida
de caça, ou seja, emerge o modo de vida do ser, de sua subsistência, a
qual tinha ali, um bem viver, que fora acessado pela natureza da cidade.
O ser ordinário emerge dessa relação afetiva que a transfere para
seu lugar, momento de fuga. Assim, podemos notar essas resistências
na Figura 2.

Figura 2 – Pessoas reunidas no calçadão da Gameleira-Acre.


Fonte: Ascom-UFAC.

A imagem elucida bem essas “fugas” do ser amazônico. Nela são


observadas várias pessoas à beira rio, mais precisamente, no Calçadão
da Gameleira, localizado em Rio Branco-Acre, às margens do rio Acre. As
pessoas encontram sossego, encontram paz ao olhar às águas barrentas
em movimento, ao resistir e/ou fugir da sociedade de desempenho,
provocando tensões e, por consequência, rupturas.
Exemplo disso é o depoimento de uma dessas pessoas, a professora
de Ensino Fundamental da Rede Estadual de Educação do Acre, Rilane
Fernandes, de 45 anos, nascida na estrada de Boca do Acre, BR 317, km
58, rodovia que liga os estados do Acre e Amazonas. De acordo com
ela, logo após sair da aula, no período vespertino, sempre vai sentar na
beirada do rio e ver os movimentos de suas águas. “Gosto da paz que a
água me transmite, até mesmo andar no rio sinto tranquilidade, uma
172 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

alegria inexplicável [...] quando estou cansada ou estressada, olhar para


a água me acalma. Não trocaria esse lugar por nenhum outro2”.
Muitas pessoas vão, a cada dia, se transmutando, ganhando
consciência que tudo o que tem já é motivo de felicidade, que não
precisam de mais, de enriquecer, da ganância. Que são felizes com o
que fazem, se aceitam do jeito que são, que é o essencial para viver, não
meramente; da natureza se nutrem, se tornam parte dela, palco fértil
para o desenvolvimento e/ou florescimento de um bem viver, visto que,
“o espaço, o grande espaço, é amigo do ser, portanto, é preciso dizer
como habitamos o nosso espaço vital de acordo com todas as dialéticas
da vida, como nos enraizamos, dia-a-dia (sic), num ‘canto do mundo’”
(BACHELARD, 1993, p. 211).
Esse espaço que Bachelard cita acima se refere a um espaço vivido
que só pode existir a partir do ser em ação que, para Heidegger (2015), é
onde o ser-aí é lançado para efetivar-se como um ser-no-mundo. Logo,
esse espaço vai ganhando uma conotação, o que chamamos de lugar.
Ele é aquele em que o indivíduo se “encontra ambientado, no qual está
integrado. O lugar não é toda e qualquer localidade, mas aquela que tem
significância afetiva para uma pessoa ou grupo de pessoas” (COSTA;
ROCHA, 2010, p. 37), pois “o mundo não é aquilo que eu penso, mas
aquilo que vivo” (MARANDOLA JUNIOR, 2012, p. 14).
O ser só pode exteriorizar seu mundo pela sua relação com a natureza
e com o outro que coabita com ele. É dessa relação que emerge uma
tonalidade afetiva, um viver bem que enfrenta as invenções amazônicas
a partir do outro, haja vista que “a realidade geográfica [...], a ‘geografia’
permanece, habitualmente, discreta, mais vivida que exprimida”
(DARDEL, 2011, p. 34), com grifo nosso. Deste modo, Dardel nos embasa
para enfatizar que a figura da Amazônia terá, apenas, uma nuança de
realidade através do próprio homem em sua existência. E essa será a
terra fértil para florescer um bem viver que vai de encontro às outras
ideações de fora desse espaço, fazendo surgir uma invenção de dentro.
O bem viver ainda é um processo, é um conceito ainda em construção,
cremos, que seja uma contínua criação em meios aos acontecimentos e
rupturas históricas. Nesse bojo, ele também incorpora a contemplação.
As imagens de lugares, como o pôr do sol (conforme Figura 3), o céu
estrelado, as matas, rios, a arte visual (vide Figura 4) e tantos outros
cenários esplendorosos que as Amazônias oferecem ao observador.
2 Relato e/ou depoimento do banco de dados do autor, coletados entre os anos 2017 e 2020.
A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA 173

Nesse sentido, pelas falas do ser amazônico, seus modos de vida,


seus sorrisos, seus lugares múltiplos, essas experiências saltam aos olhos
de outras pessoas, uma vez que, para Tuan (1986), existe um brilho de
reconhecimento no olho do outro, que não nos deve surpreender. Esse
brilho pode ser visto e refletido por meio dessas ilustrações da paisagem
humana, ou da arte, em conformidade com as Figuras 3 e 4.

Figura 3 – Pôr do sol em Xapuri-Acre


Fonte: Denilson Almeida, 2020.

Figura 4 – Arte visual de um menino à beira do açude


Fonte: Artista plástico Leandro Costa, 2016.

A arte visual é uma enunciação carregada de vivência do ser e o


ambiente, do seu contexto geográfico e histórico, destarte, é também
ideológica, conforme Bakhtin já dizia, “um instrumento [ou imagem]
pode ser convertido em signo ideológico” (BAKHTIN, 1995, p. 32). Ele
faz referência ao caso da foice e do martelo como emblema da bandeira
da União Soviética, visto que “a foice e o martelo possuem, um sentido
puramente ideológico” (BAKHTIN, 1995, p. 32).
174 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

A tela vem até nossos olhos curiosos, nossa imaginação sedenta


com ressonância de um terreno vivido pelo artista. Podemos observar
um menino à beira de um açude ou igarapé, sentado sobre o capim,
com os pés descalços, com um livro nas mãos, sem blusa, vestido apenas
com um calção, fazendo nos transportar a um cenário que o envolve,
uma paisagem comum da/na Amazônia, assim como o lindo pôr do sol
(Figura 3).
Mergulhos alternados com a leitura para afugentar o calor do sol
que queima a pele em brasa e, ao mesmo tempo, o prazer de viajar por
outros mundos através da apreensão, de flutuar pelas águas que lavam
muito além do corpo, banham a alma. Dão sentindo e ânimo num prazer
que se relaciona com essa natureza. Ao entardecer, o vento mais frio
prenuncia o anoitecer e ele sente o sol dizer-lhe: “até breve!”. Os animais
que cantam ao seu redor, a natureza o abraça e ele se sente aconchegado,
protegido, parte dela. Desprendido de preocupação, de um mundo
legislado pelo capital. Sente-se feliz com esse mundo que o circunda, faz
parte dele, o concebe sorrir, é seu.
O lugar é contemplativo e relacional ao ser, logo, assim como
essas ilustrações, a poesia também transita, imana para o outro, a
partir dessas experiências, o transmuta para um viver bem, um gozo,
uma experimentação através da imaginação empática que o guia. Para
aclararmos isso, recorremos aos dizeres poéticos do amazonense Thiago
de Mello.

O animal da floresta
Demadeira lilás (ninguém me crê) se fez meu coração.
Espécie escassa de cedro, pela cor e porque abriga em seu âmago
a morte que o ameaça. Madeira dói?,
No crepúsculo estou da ribanceira
entre as estrelas e o chão que me abençoa as nervuras.
Já não faz mal que doa meu bravo coração de água e madeira3.

O poema acima transcrito nos mostra a relação de imbricação,


embrionária entre ser e natureza, quando o poeta declama “da Madeira
lilás, (ninguém me crê) se fez meu coração”, harmoniza com a afirmativa
de Dardel (2011, p. 112), “em que o terrestre e o humano se ajustam a
3 Poesia de Amadeu Thiago de Mello. Disponível em: http://www.jornaldepoesia.jor.
br/ tmello.html#ani. Acessado em: 14 abr 2020.
A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA 175

uma medida original”. Mello, também, caminha pela linha de frente da


resistência, do embate do bien vivir, quando denuncia e convoca o ser
para uma conscientização que a modernidade destrutiva e exploratória
ameaça a natureza amazônica, quando afirma que a “espécie escassa de
cedro, pela cor e porque abriga em seu âmago a morte que o ameaça”.
Além disso, o poeta nos conduz pelo imaginário empático que
suscita sua experiência ao nosso pensar, sentir. É como se fechássemos
os olhos, e fôssemos transfigurados dentro de seus ecos como um bem
viver acessível a ele e, através dele, a nós, quando tece “pergunta quem
me vê os braços verdes, os olhos cheios de asas. Por mim responde a
luz do amanhecer que recobre de escamas esmaltadas as águas densas
que me deram raça e cantam nas raízes do meu ser”. Haja vista que “a
experiência pode [...] ter a mais ampla ressonância, como os poetas têm
mostrado” (TUAN, 1986, p. 7).
É justamente do ser lançado à natureza, que a vive, que reluz a ele
uma espécie de revelador das práticas sociais, que passa a ser a referência
central”, que repousa o bem viver. Pois, entender em qual condição vivem
homens e mulheres da Amazônia “não pode ser pretendido apenas sob
o olhar de dados, números, mapas, catalogação de espécies. Há algo
subjetivo e muito maior que se dá no interior dos habitantes tradicionais”
(MARQUES, 2010, p. 80).
Além das fugas, das aversões, das imagens e/ou da natureza que se
apresenta ao sujeito, do sentido e sentimento de lugar, das lembranças,
das transformações em seu ser, sua empatia, etc, que concebem o bem
viver se presentificar na cidade, há outros modos para sua aparição
através dos grupos que são formados com o interesse de se integrar
(CÉSAR; CINCOTTO JUNIOR; OLIVEIRA, 2018).
Os quais provocam relações dos sujeitos consigo mesmos, e com o
mundo urbano, através de um coletivo que defende ou realize espécies de
projetos ambientais, como revitalização de praças, nascentes; turmas de
ciclistas ou de caminhadas à observação, sensação de interagir andando
pela localidade, etc., buscando “direcionar o olhar para a cidade não
ficcional, sem descuidar do lúdico; miram a cidade real, suas contradições
e segregados socioeconômicas e espaciais” (CÉSAR; CINCOTTO JUNIOR;
OLIVEIRA, 2018, p. 45). Para os autores esses são exemplos de bem viver.
Nas cidades amazônicas há diversos desses grupos que poderíamos
citar. Os das bikes, como a Equipe Capivara em Rio Branco-AC, que faz
176 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

pedal pelas lugaridades da urbe do Acre, ou os moto clubes da Amazônia,


como os Abutres 1%, que constitui o mesmo passeio pelas cidades
amazônicas, trabalho social, entre outros (Figuras 5 a 7), embora,
nossas aspirações de bem viver não estão centradas nestes. Entretanto,
trouxemos algumas imagens com o intuito de elucidarem vocês, leitores,
além de embasarem nossas tessituras.

Figura 5 – Passeio até o Aeroporto Internacional Plácido de Castro, Rio


Branco
Fonte: Grupo da Equipe Capivara.

Figura 6 – Reunião dos Motoclubes Abutres da região Norte


Fonte: Página dos Abutres 1%.
A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA 177

Figura 7 – Trabalho Social nos bairros


Fonte: Página dos Abutres 1%.

Vale lembrar que o bem viver, segundo Acosta, “não pode excluir
possíveis contribuições da vida comunitária não indígena dentro dos
próprios sistemas de dominação dominantes de uma colonização que já
dura mais de quinhentos anos” (ACOSTA, 2016, p. 77).

Empatia: caminho para o bem viver

É importante, nesse momento, destacarmos e elucidarmos um


elemento crucial que ganha notoriedade nos estudos sobre bem viver, que
é a questão da empatia, do seu desenvolvimento; da transformação até
a transfiguração do sujeito em ser pensante da alteridade na praticidade
do dia a dia.
Para Tuan (1986); César, Cincotto Junior e Oliveira (2018); Rifkin
(2012); Acosta (2016) no ser, a imaginação empática ou empatia se
dará de forma sempre relacional dentro da existencialidade dele que,
é um ser-aí lançado num mundo circundante (HEIDEGGER, 2015), ou
seja, numa relação com a natureza e com o outro, pois é “ela (empatia)
que nos religa com a comunidade, à humanidade, às outras espécies, à
biosfera” (CÉSAR; CINCOTTO JUNIOR; OLIVEIRA, 2018, p. 43); que “é
uma consciência vivida de ser tanto um ‘eu’ particular quanto um ‘eu’
com o universo”, acrescenta Tuan (1986, p. 18).
Byung-Chul Han (2017) endossa o coro nesse relacional humano
que precisa de alteridade para se libertar das amarras narcisistas do
consumismo, do mundo capital que é capaz por meio do eros.
178 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

O sujeito (narcisista) mergulha e se afoga em si mesmo. O eros,


ao contrário, possibilita uma experiência do outro em sua alteridade,
que resgata de seu inferno narcisista. Ele dá curso a uma degeneração
espontânea do si mesmo, um esvaziamento voluntário de si (HAN, 2017,
p. 11).
Nesse mundo de esvaziamento, nos advêm os sentimentos, o
erotismo, as paixões, que são esse eros numa “relação com o outro, que
se radica para além do desempenho e do poder” (HAN, 2017, p. 25), que
se dão num espaço vivido como experiência do amor, do erotismo e que
farão desse um lugar de memória, de um bem viver. Assim como enfatiza
Maturana (1997, p. 185) “a socialização é o resultado do operar no amor,
e ocorre somente no domínio em que o amor ocorre”. Podemos observar
e/ou propor, de tal modo, um diálogo entre Han e Tuan, já que, para
este último, “a memória do bem viver é necessariamente preenchida
com imagens do contato humano - erótico, afetivo, cortês e intelectual”
(TUAN, 1986, p. 17). Esse contato, ou experiência, pode ser do outro, ou
até mesmo nossa, a partir dessa relação que o bem viver se constitui no
sentir-se por ele e por mim enquanto imaginado, pensando.
Logo, esse amor, o erotismo se torna uma subversão e rompe os
discursos do capital baseado num falso desenvolvimento, na exploração
da natureza, ou em outros micropoderes que aprisionam o ser da cidade.
O erotismo apresenta esse espaço como acontecimento de sua experiência
de bem viver e, logo, a partir desse bem viver em sua localidade como
campo de suas realizações e afetividades.

Considerações finais

Pensando de tal modo, percebemos emergir na cidade esse bem


viver. Pois, a urbe urge, serena e profana, entre risos e prantos estranha
e encanta. Na urbe arde sedenta, sangra, na madrugada fria, queima
e insana. As luzes acesas, frenesi em todo lugar, de repente o silêncio
rompe, e a escuridão cai a abrigar os enamorados que se afagam, olhos
cheios de ternura a se fitar, os abraços que se entrelaçam na urbe a se
amar. Ela inflama, instiga e atemoriza, entre amores e paixões, a urbe
ganha vida.
Nesse ganhar vida e no despertar do amor, dos abraços acalorados,
dos olhos a se fitar, do sentir-se incendiando, o ser amazônico desperta
A INVENÇÃO DA AMAZÔNIA 179

em bem viver e com isso vai se desprendendo dos discursos frívolos


que ressoam efígies estereotipadas, onde esse sujeito estava destinado
a não se realizar e nada produzir, não ter cultura, não ser feliz, não ter
harmonia, preso num inferno verde, atrasado, isolado.
Esse espaço de vivência, aqui em destaque a cidade, e de todas as
experiências de alteridade, empatia, do amor e dos lugares da memória
que essa despertou em muitos homens e mulheres da Amazônia, sente-
se o bem viver.
É nela que esses seres amam, são felizes, se realizam, mantêm suas
afetividades consigo, com o outro e com seu lugar, rompendo com «o
inferno do igual, que vai igualando” (HAN, 2017, p. 8), (homogeneizando)4,
cada vez mais a sociedade e o espaço amazônico; indo ao embate dessas
visões distorcidas do outro, exógenas, fazendo, desta forma, ecoar suas
próprias lutas, resistências, experiências, invenções, seus efeitos de
verdade a partir de um espaço vivido, de um bem viver que contrasta os
outros discursos de representação da Amazônia.

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4 Han (2017) faz alusão ao inferno do igual ao eu narcisista fruto de uma sociedade
consumista para fazer referência aos outros – de fora. Logo, apropriando-se do
autor, vemos esse eu narcisista de outro lugar que inventa e reinventa a Amazônia
a todo instante recorrendo ao seu lugar, as suas ideologias, ao que é vinculado
erroneamente pelas mídias, pelos memes, por um espaço imaginado sem vivenciá-lo,
sem experimentá-lo.
180 ETNOCONHECIMENTOS, SABERES E PRÁTICAS

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TUAN, Y. F. The good life. Madison: The University of Wisconsin, 1986.
ORGANIZADORES

Renato Pereira
Natural de Wenceslau Braz-PR, norte pioneiro do Estado do
Paraná, constituída historicamente de emigrantes do sul do Estado
de Minas Gerais. Mudou ainda criança, junto de sua família, para
o município de Ponta Grossa-PR, onde atua como professor,
genealogista e gestor cultural. É licenciado em Geografia e
em Pedagogia. É Especialista em Educação, pela Universidade
Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), em Docência para a
Educação Profissional e Tecnológica, pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo (IFES) e em
Mídias na Educação, pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte (UERN). Obteve o título de Mestre em Geografia (Gestão
do Território) e atualmente, está em fase de doutoramento pelo
Programa de Pós-Graduação em Geografia, pela Universidade
Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Atualmente, encontra-se em
processo de conclusão do MBA em Gestão Pública, pela Unicentro.
Pesquisador do Grupo de Pesquisa Interconexões UEPG-CNPq,
participa de estudo cujas problemáticas envolvem as comunidades
rurais e tradicionais paranaenses, sobretudo, nos temas agricultura
familiar, territorialidades e ancestralidade. E-mail: rinatopereira@
gmail.com

Tanize Tomasi
Doutora em Geografia pela Universidade Federal do Paraná. Bacharel
e Mestre em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Licenciada em Geografia e Pedagogia. Especialista em História das
Revoluções e Movimentos Sociais pela Universidade Estadual de
Maringá e Especialista em Educação: Métodos e Técnicas de Ensino
pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Pesquisadora
e extensionista com Doutorado em Geografia, cujas pesquisas
contemplam problemáticas das comunidades tradicionais do estado
do Paraná, sobretudo, faxinalenses, quilombolas e menonitas.
Atua há onze anos em projetos acadêmicos e extensionistas, como
bolsista e pesquisadora, com ênfase no trabalho de imersão a
campo. Recentemente realizou o estágio Pós-doutoral vinculado
ao Programa de Pós-Graduação em Geografia tendo como recorte
espacial as comunidades tradicionais Faxinal Sete Saltos de Baixo
(Ponta Grossa) e Comunidade Quilombola Palmital dos Pretos
(Campo Largo). No ano de 2010 participou da realização do
Relatório Antropológico da Comunidade Quilombola de São João
com vistas à regularização fundiária (INCRA-PR). Realiza estudos
comparativos entre comunidades tradicionais do Vale do Ribeira e
Campos Gerais Paranaenses na investigação de problemáticas que
envolvem os sujeitos sociais, interações, espacialidades, relações,
redes sociais, genealogia, regionalizações cotidianas, práticas
agroecológicas, (trans)territorialidades e (trans)identidades.
Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Interconexões UEPG-CNPq.
E-mail: tanizetomasi@gmail.com

Nicolas Floriani
Doutor em Meio Ambiente e Desenvolvimento (UFPR). Realizou
pós-doutorado financiado pela CAPES (U Los Lagos/U Alberto
Hurtado/U Paris 10) enfocando a relação das comunidades
rurais tradicionais e as florestas do sul do Chile e sul do Brasil.
Fez doutorado sanduíche no Laboratoire Dynamiques Sociales
et Recomposition des Espaces (Paris 10). Mestre em Ciências do
Solo e Engenheiro Agrônomo ambos pela UFPR. Prêmio Nacional
‘Melhor Tese’ em Ambiente e Sociedade (ANPPAS, 2008). Professor
Adjunto da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG).
Atua como professor no Programa de Pós-graduação (Mestrado
e Doutorado) em Geografia da UEPG. Atua como pesquisador
colaborador internacional do projeto FONDECYT 1171827 Coastal
Behaviors Settings: Por una Antropología de la Recomposición
Territorial en el Archipiélago de Chiloé? ligado ao Programa ATLAS -
Analisis Territorial Local Aplicado y Sustentabilidad (Universidade
de Los Lagos, Chile). Sua pesquisa está direcionada atualmente
à investigação dos saberes e das práticas locais de territórios
rurais alternativos (agroecológicos) e tradicionais (faxinalenses e
quilombolas). Para tanto, apóia-se em uma abordagem complexa
que lhe permita pôr em diálogo a geografia, a antropossociologia e
a agroecologia com os saberes locais de natureza. Líder do Grupo
de Pesquisa Interconexões UEPG-CNPq. E-mail: florianico@uepg.
br

Dimas Floriani
Doutor em Sociologia (U.C.L. Louvain, Bélgica, 1991) e pós-doutor
(El Colégio de México e PNUMA, 2002). Professor Titular e
aposentado Sênior nos programas de Ciências Sociais (UFPR) e no
Doutorado Interdisciplinar em Meio Ambiente e Desenvolvimento
(UFPR), do qual foi coordenador. Coordenador da linha e do
grupo de pesquisa em Epistemologia e Sociologia Ambiental. Co-
editor da Revista Desenvolvimento e Meio Ambiente. Participa do
GT em Teoria e Ambiente da ANPPAS e é professor visitante do
CEDER-ULagos do Chile. Coordenador acadêmico da Casa Latino-
americana (CASLA) de Curitiba. Co-autor premiado nacionalmente
na categoria livro didático, pelo Prêmio Jabuti – 2001 e na categoria
acadêmica em 2012. Editor da coleção bilingue (Semeando Novos
Rumos – Sembrando Nuevos Senderos com 6 títulos publicados
pela Editora da UFPR (Rede Internacional Casla-Cepial). E-mail:
floriani@ufpr.br

AUTORES CONVIDADOS

Adnilson de Almeida Silva


Pós-Doutor em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa. Doutor em Geografia pela Universidade Federal do Paraná.
Mestre em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia.
Docente do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-
Graduação – Mestrado e Doutorado em Geografia – PPGG/UNIR.
E-mail: adnilson@unir.br

Antonio Marcio Haliski


Doutor em Sociologia pela UFPR. Professor da graduação em
Ciências Sociais e do Programa de Mestrado em Ciência, Tecnologia
e Sociedade (CTS) do Instituto federal do Paraná-Paranaguá.
E-mail: antonio.haliski@ifpr.edu.br
Charlot Jn Charles
Haitiano graduado em Filosofia pela Faculdade Católica de
Rondônia. Discente de Mestrado no PPGG-UNIR.
E-mail: jcharlot64@yahoo.com

Cleusi Bobato Stadler


Doutoranda em Geografia pelo PPGG da UEPG/PR. Mestre
em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste –
UNICENTRO-PR. E-mail: cleusibobatost@gmail.com

Jefferson Henrique Cidreira


Doutor em Geografia pela Universidade Federal de Rondônia.
Professor da Faculdade Centro Integrado de Pesquisa e Educação
da Amazônia-CIPEAMA e Secretaria de Educação do Acre - SEE.
E-mail: jeffersonhenriquecidreira@gmail.com

Josué da Costa Silva


Doutor em Geografia pela Universidade de São Paulo. Professor
da Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de
Rondônia. E-mail: jcosta1709@gmail.com

Keila Cássia Santos Araújo


Doutora em Geografia pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita
Filho. Professora do Departamento de Geografia da Universidade
do Estado de Minas Gerais. E-mail: keila.lopes@uemg.br

Paulo Rogério Lopes


Doutor em Ecologia Aplicada pela Universidade de São Paulo.
Professor da Câmara de Agroecologia da Universidade Federal do
Paraná - campus Litoral. E-mail: paulolopes@ufpr.br

Ronir de Fátima Gonçalves


Mestre em Educação pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Professora da Rede de Ensino Municipal de Ponta Grossa.
E-mail: ronirdefatima@gmail.com
Vanderlei Marinheski
Doutorando em Geografia pela Universidade Estadual de Ponta
Grossa-UEPG, Bolsista-CAPES. E-mail: marinheskigeo@hotmail.
com

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