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AANova Aurora

de uma Antiga Manhã


NOVA AURORA DE
UMA ANTIGA MANHÃ
Philippe Bandeira de Mello

PHILIPPE BANDEIRA DE MELLO

A ANova Aurora
NOVA AURORA DE
deUMA
umaANTIGA
AntigaMANHÃ
Manhã
Surpreendentes diferenças entre as Plantas Sagradas e as drogas –
As propriedades misteriosas dos Enteógenos
Surpreendentes diferenças entre as Plantas Sagradas e as drogas –
As propriedades misteriosas dos Enteógenos
ÍNDICE

________________________ u ____________________________

I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar . . . . . . . . . . . . 7


a) A Crise para a Totalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7
b) No Sintoma está a Mensagem da Cura – A Decifração Indispensável . . . . 23

II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33


a) A Redescoberta dos Enteógenos e a Revolução da Consciência . . . . . . . . . . 33
b) As Religiões dos Enteógenos – A Via da Experiência Imediata: Uma Nova
Gnose . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 38
c) Distinção entre Alucinógenos e Enteógenos – Ilusão ou Percepção de
Realidades? . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 41

III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61


a) Vinho Novo em Odres sempre Renovados . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
b) As Propriedades Misteriosas do Santo Daime – O Avançado e Decisivo
Salto Qualitativo em Relação às Drogas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
1- O caráter pedagógico da experiência – a orientação proveniente de
uma “Inteligência Superior”; as fantásticas dimensões do real, dentro
e fora de nós . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 68
2- O caráter ético-religioso da experiência – confronto com a sombra e a
purificação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
3- Propriedades terapêuticas – uma revolução em Psiquiatria e
Psicoterapia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
4- “Paranormalidade” – experimentando e explorando as “novas” fronteiras
da Psicologia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128
5- Propriedade de dinamizar o desenvolvimento psicológico (desde a
infância até as maduras esferas do processo de individuação) . . . . . . . . 137
c) A Questão da Consciência e os Enteógenos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142
d) Conheciam os Antigos essa Ciência Sagrada? A “outra” História . . . . . . . . 151
e) Irradiações Sagradas da Luz Divina – Repercussões do Saber
Transpessoal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
f) A Nova Aurora – O Desafio de Sermos Parteiros do Amanhã . . . . . . . . . . . 188

IV – Conclusão – A Revolução da Consciência – Os Passos no Futuro. . . . . . . . . . 201

Posfácio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 207

Bibliografia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 211
I
O PROBLEMA DAS DROGAS NA ATUALIDADE OU O
INÍCIO DO DESPERTAR

________________________ u ____________________________

a) A Crise para a Totalidade

“Somos viciados em nossas crenças e agimos como viciados quando


alguém tenta arrancar de nós o poderoso ópio de nossos dogmas.”
Michael Talbot

“Como meios para sentir e pensar de forma original, os veículos


ilícitos de ebriedade são coisas capazes de afetar a vida cotidiana, e
em um mundo onde a esfera privada se encontra cada vez mais tele-
dirigida, qualquer mudança na vida cotidiana constitui potencialmente
uma revolução”.
Antonio Escohotado

“Nosso intelecto fez conquistas tremendas, mas ao mesmo tempo


nossa casa espiritual se desmoronou”.
C. G. Jung

O problema das drogas na atualidade é o grande bode-expiatório


atrás do qual se escondem muitos “fantasmas”, assuntos decisivos, que
urgem ser tratados com imparcialidade e sabedoria, e que devemos le-
var a fundo em suas últimas consequências e mais amplos desdobra-
mentos. Aqui demonstraremos como essa questão pode ser emblemá-
tica da solução a ser buscada em novos horizontes de consciência e de
compreensão de nós mesmos e do mundo que nos cerca.
Recorda-nos o grande psiquiatra Ronald Laing:

“Não consideramos um desvio patológico explorar uma floresta ou galgar


o Monte Everest. Achamos que Colombo tinha o direito de enganar-se na
ideia daquilo que havia descoberto ao chegar ao Novo Mundo. Estamos
muito mais fora de contacto com os pontos mais próximos das amplitu-
des infinitas do espaço interior do que as do espaço exterior. Respeitamos
o viajante, o explorador, o alpinista, o astronauta. Para mim faz muito mais
8 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

sentido como projeto, na verdade projeto de urgência desesperada em nosso


tempo, explorar o espaço e o tempo interiores da mente. Talvez isto seja uma
das poucas coisas que ainda fazem sentido no nosso contexto histórico.”

Continua ele: “Estamos a tal ponto desligados do reino interior,


que muita gente se pergunta a sério se ele existe. Não é, pois, de admirar
que a exploração deste reino perdido seja uma coisa perigosa.” Acres-
centaríamos que tal exploração parece especialmente arriscada quando
percebida à luz do paradigma newtoniano-cartesiano ou de alguns de
nossos parâmetros ocidentais modernos. Este paradigma, porém, está
desmoronando em face dos avanços da Ciência e, sobretudo, dos acha-
dos da Psicologia Transpessoal.
A crise que permeia o atual momento da nossa história e que se
caracteriza pela descrença, pela dessacralização da existência, pela con-
fusão moral e perceptual acerca do sentido da vida humana, é diagnos-
ticada acuradamente pelo psicólogo suíço C. G. Jung, quando afirma, já
em 1934, que “o problema psicológico de hoje é um problema espiritual,
um problema religioso.” Sedentos e famintos de uma relação mais har-
mônica e proveitosa com os recursos e as forças que habitam sua psique,
os homens modernos em geral, e especialmente os jovens, anseiam e
necessitam de uma experiência original, rechaçando as verdades tradi-
cionais e os pressupostos, numa “resistência invencível contra todas as
opiniões pré-fabricadas que se pretende impor”.
Em sintonia com esta posição, relembramos a lúcida apreciação de
Aldous Huxley. Ele considera que

“o problema da dependência à droga e da bebida em excesso não é apenas


uma questão de química e psicopatologia, de alívio da dor e da conformação
com uma sociedade ruim. É, também, um problema metafísico – um pro-
blema, poder-se-ia quase dizer, de teologia.”

Atualmente, após detectarmos as múltiplas disfunções, crises e do-


enças que a “sede de plenitude” (também denominada procura do Paraíso
ou de anseio inconsciente pela Unidade) opera em nosso mundo a partir
de nossa psique, empenhar-mo-nos em desvendar os sentidos, em vários
níveis e manifestações, saudáveis ou não, que o anseio pelo “Paraíso” per-
dido produz para, sobretudo, nos desvelar caminhos escondidos, para
nos levar à “Estreita Porta” da plenitude do desenvolvimento da psique.
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 9

A “Porta” mencionada refere-se à penetração no âmago do nos-


so ser, nossa identidade mais profunda, o Si-Mesmo, que é uma das
chaves deste estudo. Esse conceito intuitivo junguiano nos auxiliará a
decifrar importantes dimensões do universo das drogas e da própria
alma humana, descortinando-nos valiosas indicações terapêuticas para
inúmeros problemas do mundo moderno relacionados com a psique e
a consciência. Crise e oportunidade, esta é a lição do novo paradigma,
que sempre e sempre revisitada, guia muito de nossa investigação.
Para começar, vamos relembrar alguns mestres e conceitos, re-
conhecendo as primícias, assumindo o fato de que reflexões basilares
estão há muito presentes, e já confrontam a sociedade moderna desde
algum tempo.
É interessante observar como o ilustre psiquiatra que citaremos a se-
guir vai ao âmago da questão, quando, partindo de uma perspectiva com-
plexa, não reducionista, realiza uma saudável e oportuna crítica social.
Visitaremos então as opiniões de uma das maiores autoridades da
psiquiatria clássica, o Dr. Eugen Bleuler. Em seu Tratado de Psiquiatria,
iniciado em 1911 e publicado em 1916, ele apresenta uma perspectiva,
que consideramos inteiramente atual sobre o assunto:

“Tem-se tornado hábito culpar os ‘jovens’, mas crianças e adultos incorpo-


ram-se, cada vez mais, ao círculo dos que as drogas colocam em perigo. Os
jovens ameaçados pelo uso de drogas, geralmente, têm anseios de se liberar,
de alguma forma, da maneira tradicional de viver, do contacto com a famí-
lia, com a pátria; da formação profissional e do exercício de uma profissão
nos moldes tradicionais.”

Demarcando a tarefa da Psiquiatria em relação ao problema, ele


sugere que o psiquiatra “deve enxergar claramente que no julgamento
dos motivos e das maneiras do combate ao perigo das drogas as atitudes
e as experiências das sociedades desempenham um papel mais impor-
tante do que as experiências médicas. Não deve ter a pretensão de res-
ponder, como se soubesse tudo, a perguntas como as seguintes:

“Existem situações prejudiciais na nossa vida em sociedade que podem ser


combatidas, por julgar que causam a dependência das drogas? Que situações
são estas? Como podemos melhorar nossas condições de vida? Podemos ou
devemos impedir os jovens de se liberar de nossa ordem social e procurar
obter novos sentimentos vitais? Podemos utilizar medidas compulsórias, e
quais são? O que podemos responder a um jovem fumante de haxixe quan-
10 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

do ele nos joga na cara: Vocês me proíbem de fumar haxixe, mas a sua socie-
dade não reconhece o álcool, que é muito mais perigoso?”

Aqui no Brasil, poderíamos substituir o que ele fala do haxixe pela


Cannabis Sativa, popularmente denominada maconha.
É importante observarmos aí que as drogas “lícitas”, legalizadas e
acessíveis a todos, são as que mais matam, geram criminalidade e pro-
vocam acidentes. Precisamos assinalar que a legalidade ou a ilegalidade
das substâncias psicoativas, utilizáveis pelas pessoas, não corresponde
a sua destrutividade: aí temos uma falha, uma lacuna na avaliação do
grau de periculosidade das substâncias alteradoras da mente utilizadas
pelo homem, que demanda, inicialmente, informações mais precisas e
menos contaminadas pelos preconceitos ou pela manipulação ideoló-
gica. Em seguida, urge a formulação de nova jurisprudência acerca do
altamente relevante assunto.
As “drogas” lícitas que mencionamos são: o tabaco e o álcool. Con-
forme nos relata Valdemar Angerami-Camon, psicoterapeuta e profes-
sor de Psicologia da PUC-SP:

“O tabaco mata 100 vezes mais do que todas as outras drogas juntas, ex-
cluindo-se o álcool, que provoca muitas vítimas em ocorrências que pode-
mos definir como ‘efeitos colaterais’, como acidentes automobilísticos pro-
vocados por embriaguez, além de brigas, esfaqueamentos etc.
Mas, em relação a danos de doenças provocadas ao organismo, é o tabaco
que se mostra soberano, embora também seja arrasadora a destruição pro-
vocada pelo álcool no organismo”.

Ressalta ele que o tabagista, além dos sérios danos causados aos ou-
tros pelo tabagismo passivo, compartilha com o alcoólatra uma respon-
sabilidade a mais: a de “(...) influenciar diretamente seus descendentes (e,
acrescentaríamos, seus circunvizinhos e amigos) no hábito de fumar”.
O curioso é que estamos falando de drogas lícitas, anunciadas na
mídia e que, conforme assinala Valdemar, “(...) sua propagação somente
agora começa a ser proibida nos grandes veículos de comunicação?!”.
Sendo evidente o nível de hipocrisia, de preconceito ou de distor-
ções nas abordagens de nossas sociedades modernas em relação a tais
assuntos, não é de admirar a desconfiança dos usuários destas drogas
em relação a quaisquer intromissões em sua liberdade de escolha, da
parte de autoridades que se julgam competentes. As questões e as solu-
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 11

ções propostas estão mal equacionadas. É imprescindível reexaminar as


várias dimensões dos problemas. Nossas reflexões incidirão sobre algu-
mas dessas dimensões, talvez as menos discutidas e conhecidas. Uma
análise mais acurada de tais drogas merecerá um capítulo à parte de
nossos estudos em outro momento, em outro livro.
Mas o que são as famigeradas “drogas”, afinal? Serão Pharmakon, re-
médio ou veneno, dependendo, como propõe o alquimista Paracelso, ex-
clusivamente da dosagem? Seriam “tóxicos” no sentido de sua derivação
do grego, que significa “arco”, referindo-se ao uso de flechas envenena-
das? Nesse sentido seriam um veneno, “substância que altera ou destrói
as funções vitais” ou, como definem Schultes e Hofmann, “(...) uma subs-
tância animal, vegetal ou química, que se ingere com um propósito não
alimentício, e que tem um notável efeito biodinâmico sobre o corpo”?
O mais certo é que encontraremos aí, além das sadias e esperadas
aproximações, também quase sempre um etnocêntrico juízo de valor. E, no
Dicionário Etimológico Nova Fronteira, deparamo-nos com duas definições,
que mencionam “nome genérico dos ingredientes próprios para tinturaria,
química, farmácia, etc.” ou “coisa de pouca ou nenhuma valia”. É neste últi-
mo sentido que tentaremos discriminar, dentre as diversas substâncias psi-
coativas, algumas das que podem ser, não apenas, mais inofensivas, como
também bem mais úteis para a saúde da psique e do corpo humanos.
Como diz Francis Huxley em seu livro O sagrado e o profano: “Não
há dúvida de que o homem tenha a sina de embebedar-se, tanto literal
quanto metaforicamente. Pode ficar tão ébrio de glória, poder, ideias,
desejos, dogmas religiosos quanto de álcool.”
A Dra. Marie Louise Von-Franz, discípula de Jung e talvez sua
maior colaboradora, vai nos recordar alguns pontos decisivos em toda
a questão. Ela faz uma leitura não reducionista, mais ampla do assunto
que estamos estudando, explicando outros fenômenos sociais. Em seu
livro Psicoterapia ela diz:

“É preciso mencionar aqui que as substâncias intoxicantes não são apenas


o único vício perigoso da nossa época. Outra forma perigosa de vício é a
possessão ideológica, que pode deixar o indivíduo tão ‘bêbado’, envaidecido
e dissociado como uma droga, e que, além disso, o leva a querer impor à
força suas ideias à sociedade.”

A psicologia do fanatismo nos faz reconhecer, amargamente, a for-


ça coercitiva e destrutiva deste “vício” igualmente perigoso. Muitas lutas,
12 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

muitas guerras, políticas e religiosas, têm vindo daí. Tudo está associado
à decadência arquetípica dos tempos históricos que estamos vivendo.
Marie Louise formula com precisão o fator espiritual psíquico pre-
sente nos bastidores de tudo o que estamos examinando. Continua ela:

“A energia que anteriormente era investida na ideia de Deus é derramada na


doutrina ideológica, política ou sociológica, na qual a pessoa passa fanati-
camente a acreditar. É geralmente o extrovertido que recorre a essa forma
de intoxicação, ao passo que o introvertido prefere ir em busca das imagens
interiores com a ajuda das drogas.”

Bem interessante essa interpretação, pois ela ressalta uma impor-


tante dimensão comum; é muito útil o seu entendimento para eluci-
darmos o que está por detrás do abuso de drogas, bem como da busca
mística, igualmente das armadilhas encontradas nos dois caminhos: “O
perigo, em ambos os casos, repousa na falta de liberdade espiritual do
indivíduo que é dominado por fantasias inconscientes esmagadoras.”
Temos aí mais um critério, para o que é saudável e o que é disfun-
cional no psiquismo. Por mais excessivamente generalizante que seja
esta hipótese, hoje, quando os mapas da Psicologia Transpessoal des-
crevem múltiplos e hipercomplexos níveis da experiência psicológica
nos estados de expansão de consciência obtidos por métodos religiosos
ou por drogas e outros psicoativos especiais, como as Plantas Sagra-
das, percebemos que existem certos estados de mente e captura pelas
imagens primordiais, que são aprisionantes, em contraposição a outros,
libertadores. Encontramos, tanto no caminho das drogas como no das
religiões, os dois fatores presentes de maneira inquestionável.
Uma das reflexões que permeia este livro é a de que o uso de drogas
e álcool, bem como a busca arcaica e universal de estados não ordiná-
rios de consciência por diversos meios, alguns saudáveis e espirituais, se
alicerça em uma “sede de plenitude”, no anseio por estados de consciên-
cia mais amplos e íntegros. O grande escritor brasileiro João Guimarães
Rosa, em seu livro Ave palavra, trabalho de avançada maturidade, de-
nomina “instinto da saudade”, e descreve com maestria essa dimensão
humana tão complexa e decisiva.
A cura da psique dissociada de nosso tempo é um processo que
visa individuação, assimilar o inconsciente, auxiliar a pessoa a tornar-se
mais inteira. As palavras em inglês wholeness, holiness e health, “totali-
dade”, “santidade” e “saúde”, são derivadas da mesma raiz. Conforme o
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 13

psiquiatra e guia espiritual Dr. Scott Peck nos lembra “(...) boa parte da
psicopatologia humana, incluindo o abuso de drogas, surge de uma ten-
tativa de voltar ao Éden”. O “anseio inconsciente de unidade”, expresso
de muitas maneiras, aparece sob múltiplas formas em nossa sociedade,
delineia quadros de equilíbrio psíquico, de sanidade e de patologias,
promove o crescimento ou a estagnação psíquicos, possui repercussão
social que ainda não temos condições de avaliar.
A perspectiva de C. G. Jung nos ajuda a entender melhor essa ques-
tão em uma linguagem moderna:

“Consciência e inconsciente não constituem uma totalidade, quando um é


reprimido e prejudicado pelo outro. Se eles têm de combater-se, que se trate
pelo menos de um combate honesto, com o mesmo direito de ambos os la-
dos. Ambos são aspectos da vida. A consciência deveria defender sua razão
e suas possibilidades de autoproteção, e a vida caótica do inconsciente tam-
bém deveria ter possibilidade de seguir o seu caminho, na medida em que o
suportarmos. Isto significa combate aberto e colaboração aberta ao mesmo
tempo. Assim deveria ser evidentemente a vida humana. É o velho jogo do
martelo e da bigorna. O ferro que padece entre ambos é forjado num todo
indestrutível, isto é, num individuum.”

Alertando-nos de que não existe “receita” para o procedimento por


meio do qual se realiza “a harmonização de dados conscientes e incons-
cientes”, Jung profere a formulação lapidar: “A meta de uma psicoterapia
que não se contenta apenas com a cura dos sintomas é a de conduzir a
personalidade em direção à totalidade.”
Dando continuidade natural e expandindo a abordagem junguia-
na, faz-se mister realizarmos que, para considerarmos e ampliarmos
esse horizonte, temos a proposta de uma Teoterapia por Peter Leme-
surier, sugerindo que “(...) as várias doenças psíquicas – talvez todas as
doenças – deveriam ser encaradas como caminhos de cura. Elas surgem
para nos indicar o caminho da obtenção da unidade final.” Esta é uma
das teses centrais deste livro. No próprio sintoma, em sua linguagem
enigmática, está a chave da decifração da enfermidade, disfunção, crise,
e de sua contribuição para o processo de individuação da pessoa.
Como nós, ele parte do pressuposto de que “(...) cada complexo,
cada família de sintomas, tende a lançar o seu próprio deus ou terapeuta
divino. Sua função é ao mesmo tempo encarnar e compensar os nossos
atuais problemas e necessidades psíquicas”.
14 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Convergindo com Jung, Stan Grof e muitos outros, ele enxerga a di-
mensão construtiva, terapêutica, e, até mesmo, espiritual, sagrada, da crise:

“Sempre que determinado arquétipo ou complexo vem à tona, podemos ter


a certeza de que algo precisa ser feito, de que uma nova iniciativa precisa
ser tomada. O deus tem necessidade de ser reconhecido, apreciado, obede-
cido, não apenas com relação a seus aspectos negativos, como também aos
positivos.”

Em seguida resume ele o foco do trabalho curativo: “É preciso, em


resumo, honrar e servir a esse deus”. Se tivermos a ousadia de perceber
os “deuses” também enquanto arquétipos psíquicos, conheceremos a
face rejeitada deste “deus” em nós. Isso não significa uma posição “idó-
latra”, isto é, parcial-reducionista, nem tampouco desconsideração dian-
te de uma importante dimensão arquetípica da psique. Afinal, mesmo
para o monoteísta, Deus, apesar de Um, tem muitos nomes e atributos.
Múltiplos arquétipos e características serão indispensáveis para uma
descrição minimamente completa de Suas várias dimensões.
Inicialmente é preciso ter coragem de descobrir, reconhecer em
nós o que está negligenciado. Depois, temos de beijar o sapo, amar e
acolher exatamente o que foi rechaçado, aquilo com que temos mais
dificuldades, é o que nos pede esse processo holotrópico.1 Eis a “Pedra
fundamental rejeitada pelos construtores”, muitos dos que trabalham
tratando as pessoas escravizadas pelas drogas.
Fica mais claro aqui que o drogadicto busca na plenitude o que nos
falta. Por outro lado, parece que ele ouviu o galo cantar mas não sabe
onde. Ele está muito mal informado, e isto é responsabilidade das ina-
dequadas políticas públicas neste setor. Sua procura é ignorante e desas-
trosa. Assim, existe uma tendência a se culpabilizar aquele que procura,
ignorante ou não, tanto das substâncias mais apropriadas à realização de
sua meta quanto às tecnologias de alcançar e navegar eficazmente nos
estados de maior plenitude de consciência. Mesmo que o buscador apa-
reça sob a face sombria do usuário de drogas, ele pode ser o promissor
perscrutador da Luz que nos falta neste Vale de Lágrimas. Vivemos em
sociedades nas quais carecemos de todos os valores humanos, de toda

1 Holotrópico: Holos = totalidade; trepein = movimento em direção a – movimento


essencial da psique na direção da totalidade.
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 15

profundidade e ética, principalmente por parte dos indivíduos que nelas


têm posições de organizar e de administrar. A responsabilidade maior é
das autoridades que legislam e julgam, transformando em dogma, lei e
crime questões psicológicas altamente sofisticadas merecedoras de revi-
sada jurisprudência.
Nosso propósito agora é demarcar, com a máxima clareza possível,
as diferenças entre as Plantas Sagradas, com antigas tradições espiritu-
ais e terapêuticas de uso, e as substâncias cientificamente manipuladas
(manipulações efetuadas muitas vezes em laboratórios, empresas que
visam, quase que exclusivamente, interesses comerciais) ainda escas-
samente conhecidas em seus efeitos em longo prazo, que são obtidas
através da separação entre os “princípios ativos” e o restante dos compo-
nentes da planta, ou, da síntese do “princípio ativo” que resulta em uma
substância artificial, que pode quase nada mais ter a ver com a planta ou
o preparado original, a não ser por alguns efeitos similares importantes,
mas que podem ser contrastados com igualmente marcantes diferenças:
a estas denominamos “drogas”.
A partir daí, poderemos expor alguns princípios gerais para eluci-
dação da questão acerca do que são as drogas purificadas ou sintéticas,
alteradoras da mente, de diferentes graus de periculosidade, e as imen-
sas diferenças, entre elas e os Enteógenos, as Plantas Sagradas, de prepa-
ro simples, natural, com tradições de uso sacramental e/ou terapêutico,
sempre, no mínimo, seculares, e muitas vezes milenares, com resultados
infinitamente mais salutares e construtivos para a vida física, psíquica e
social dos indivíduos que as utilizam.
No histórico da cocaína temos um entrecruzamento de fatores que
nos auxilia a começar a entender a questão. Conforme informa o pro-
fessor Valdemar, na Bolívia, “(...) as pessoas mascam folhas de coca no
intervalo do trabalho, além de beberem chá feito com as folhas de coca,
e da mesma maneira não existe nenhum desses momentos em que eles
estejam consumindo algo que seja considerado como droga ou até mes-
mo ilegal.” É de ressaltar que esse uso não apresenta qualquer prejuízo
ao pragmatismo ou ao organismo das pessoas que seguem essa tradição
antiga. Neste contexto, o cultivo da folha de coca é legalizado, e é uma
das bases da economia local.
Tive a oportunidade de conhecer um indígena da tribo Aymara
que realizava leituras oraculares por meio das sagradas folhas. Seu olhar
para elas é profundamente respeitoso. Seu uso é perpassado por uma vi-
16 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

são espiritual, não sendo constatado nenhum malefício ou adicção com


a utilização prolongada e constante.
Já com a cocaína a situação é absolutamente outra. O processo de
transformação acrescenta solventes, outras substâncias que modificam
a utilização tradicional, com nefastas consequências para os usuários:
os fenômenos do abuso e dependência, chegando até a morte por over-
dose, são amplamente conhecidos. Embora em todas as hipóteses esta
seja uma questão do livre arbítrio de cada um, sendo, no máximo, uma
prática nociva à saúde e jamais um crime, e, portanto, de modo algum
um caso de polícia, as diferenças entre o uso da folha de coca e a cocaína
são assaz significativas.
Outro exemplo importante para o assunto que estamos tratando é
trazido pelo Dr. Andrew Weil, médico formado pela Harvard Medical
School, com currículo respeitável, e Presidente do Instituto de Pesqui-
sas de Plantas Benéficas na Califórnia. Considera o Dr. Andrew Weil
que “o ópio é um hábito relativamente inofensivo, pois que uma elevada
percentagem de usuários pode fumá-lo ao longo de anos sem desen-
volver problemas sérios de tolerância.” Continua ele, afirmando que “a
dependência em relação ao ópio, se estável, pode ser tão coerente com a
produtividade social quanto a dependência de café ou tabaco.”
O desdobramento de sua argumentação desemboca em uma situa-
ção similar à da relação entre a folha de coca e a cocaína:

“Mas quando a morfina, o princípio ativo do ópio, é isolada e tornada dis-


ponível, aparecem os problemas. Em particular, uma porcentagem impor-
tante dos usuários (muito embora ainda minoria) acha impossível atingir o
equilíbrio com o uso habitual da morfina ou com seu derivado ainda mais
potente, a heroína, e estes usuários instáveis eventualmente se comportam
de maneiras socialmente destrutivas.”

Embora não tenha experiência sobre os dados e posicionamentos


aportados pelo Dr. Andrew, recordo aqui um fato importante para refle-
tirmos acerca do assunto em questão. Sabemos que entre os maometa-
nos existe a proibição de bebidas alcoólicas. No mundo islâmico, porém,
também nos deparamos com o uso de psicoativos. Encontramos inclu-
sive evidências de que o tabaco turco, o haxixe e o ópio eram utilizados
por sufis, uma elite espiritual do islamismo. Existem grandes narguilés
no Museu Mevlana, em Konya, terra onde nasceu um dos maiores mes-
tres espirituais de todos os tempos: Jalaluddin Rumi.
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 17

Shams de Tabriz (que teve papel decisivo na missão e na traje-


tória de Rumi) seguia, segundo James Cowan, uma linha dissidente
do islamismo, e vinha da tribo dos Hashishins, que apresentava prá-
ticas rituais envolvendo o trabalho com ferramentas de expansão e
estados múltiplos de consciência, como o êxtase místico por meio
da dança. Esta via ficou incorporada definitivamente ou foi recriada
por Rumi. Conforme comenta José Jorge de Carvalho, tradutor para
o português do livro de Rumi, Poemas místicos, Marco Polo conheceu
os integrantes dessa “seita” e menciona, nos capítulos 23 a 25 de suas
Viagens, a utilização de “drogas”, isto é, de substâncias psicoativas,
provavelmente plantas, para alcançarem outros níveis e estados di-
ferentes do ser, onde nos deparamos com imagens que descrevem o
Paraíso corânico.
Vale a pena ressaltar também que várias ordens sufis são contra o
uso de psicoativos: sua avançada tecnologia espiritual propõe o alcance
dos estados de consciência amplificada por outros meios.
Embora não possamos precisar o alcance de tais práticas en-
tre os sufis, ou, tampouco dizer quais indivíduos, grupos e escolas
faziam uso destas plantas, vale a pena lembrar que eles eram e são
seguramente muito respeitados socialmente. Sua conduta espiritual,
estrita disciplina, maestria de ensinamentos e bons exemplos, de-
monstram que se trata de pessoas, não apenas saudáveis psicologica-
mente, mas também altamente conscientes, líderes e revolucionárias
em seu meio. Combatendo o fanatismo e o sectarismo, evidenciam,
até os nossos dias, maturidade e equilíbrio. Seu perfil está bem dis-
tante do dos drogadictos de hoje, muitos com conduta irresponsável,
por vezes pouco ou nada construtiva, acabando por se tornarem dis-
criminados socialmente.
Aqui principiamos a nos dar conta das decisivas diferenças entre
as plantas, substâncias naturais, conforme utilizadas na medicina in-
dígena e nas medicinas tradicionais antigas, como a egípcia, a grega,
a chinesa e a indiana, por exemplo, e as drogas que são usadas em
nossas sociedades: substâncias refinadas “em formas puras e podero-
sas”, tendo seus princípios ativos extraídos, separados de seus outros
componentes, ou sintéticas.
Praticamente inexistem nas sociedades e culturas tradicionais, a
dependência, a adicção, os abusos ou overdoses letais, quando são usa-
das as diversas Plantas Sagradas. O resultado de sua utilização como
18 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

remédio, oráculo ou Enteógeno,2 se configura como saudável, estrutu-


rante, útil à sociedade, geralmente de efeito altamente curativo. Seu ní-
vel de toxicidade é mínimo.
Apesar de serem, às vezes, chamadas de tóxicos, e terem, por al-
guns pesquisadores de renome, sua experimentação definida como “in-
toxicação”, observa-se aí que existe uma grande diferença entre as drogas
artificialmente obtidas e as Plantas Sagradas em relação a esse quesito.
Surpreende muito o caráter desintoxicante, isto é, o aspecto depurativo
dos Enteógenos em relação às drogas. Verificaremos mais extensamente
esse aspecto adiante em nosso estudo.
O fato é que o xamã é, não apenas um membro muito saudável
de sua comunidade, como também é procurado por todos para curas
e aconselhamento, o que comprova seu equilíbrio, sanidade mental e
capacidades especiais.
O Reverendo Jackson, líder da Igreja Nativa Americana,3 que usa
uma Planta Sagrada psicoativa, o Peiote, e que tem mais de 300.000
adeptos com o “(...) programa mais efetivo de combate ao alcoolismo
indígena”, quando interrogado por um juiz dos EUA com a pergunta,
“você usa uma droga?”, respondeu: “Não existe esta palavra em minha
língua. Eu utilizo Medicina.” Esta preciosa “Medicina”, que é o veículo
de uma mui antiga, profunda e avançada forma de espiritualidade e de
terapia psicoespiritual, é o peiote, um importante Enteógeno do qual
falaremos mais adiante.
Assim, também o xamã peruano Agustín Guzmán nos recorda:
“Alucinógeno é uma palavra que não existe na maioria dos idiomas an-
cestrais, existe a palavra ver. Então se usa enteógenos para ver.”
Antes de desenvolvermos esta importante distinção, vamos dar conti-
nuidade à nossa reflexão preliminar sobre o problema das drogas em geral.

2 A palavra significa “o advento do deus dentro de nós”, conceito desenvolvido por


pesquisadores e que, em uma alusão ao caráter sacramental de alguns psicoativos
especiais, descreve mais precisamente a função e significado que eles apresentam
em seus contextos originais e para os indivíduos de diversos tempos e lugares que
os utilizam com sentido religioso
3 Religião pan-indígena, com membros de todas as tribos da América do Norte. Nos
EUA, como na África com o Iboga, bem como no México, os Enteógenos ou Plantas
dos Deuses, têm servido como fatores decisivos de resistência cultural, como práticas
que fortalecem a identidade das antigas populações locais, com suas remotas tradições
sagradas, contra a colonização cultural imposta brutalmente pelo homem branco.
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 19

Buscaremos agora evocar alguns fatores pouco mencionados quan-


do se fala do abuso e dependência de drogas, e, por conseguinte, da bus-
ca de estados alterados de consciência por parte não só dos jovens, mas
de pessoas de todas as faixas etárias e de diversas culturas.
Apontando algumas das tensões entre a ordem social vigente e as
necessidades de muitos jovens, antecipando muitas das críticas que fa-
zemos hoje ao modus vivendi moderno, Bleuler menciona alguns dos
motivos que os levam à insatisfação:

“Nas aulas modernas de história e no estudo de literatura moderna os jovens


são confrontados, com muito maior número de vezes, com os dados sádi-
cos, miseráveis e obscuros do agir e do ser humano do que com a bondade,
a dedicação, o calor e a grandeza humanos”.

Apesar de sua linguagem, talvez antiquada, alguns dos pontos le-


vantados por ele mantêm espantosa atualidade:

“Os escritores, cujas obras se vendem mais, arrasam as ideias das pessoas
de mais idade, sem criar novos ideais. Além disso, o jovem vê, ouve e cheira
diariamente de que maneira ultra-rápida as nossas condições de vida cor-
rem para a destruição, como a natureza livre em seu esplendor, com seu
mundo vegetal e animal é, progressivamente estragada sem que a ‘sociedade’
se oponha a isso de modo eficaz. Portanto não há falta de motivos para de-
sejar uma sociedade ‘melhor’.”

Na verdade, poucas oportunidades têm os jovens e os insatisfeitos


com o modelo que aí está, de mudar a sociedade. Por isso, nada lhes
resta, a não ser alterar suas mentes perscrutando novas realidades en-
contrando, por vezes, mais sadias direções de vida.4
Ainda mais atual hoje que na época em que foi descrita, acres-
centaríamos a esta perspectiva de Bleuler a daninha ação da poderosa
“droga” chamada televisão e a mídia como um todo, com seu extraor-
dinário alcance e poder de forjar crenças, opiniões, valores e ideologia.
Tais veículos, de possibilidades ainda insuficientemente exploradas, são

4 Isso foi fartamente comprovado com o movimento hippie que, apesar de alguns
excessos e equívocos, trouxe valores e atitudes fertilizantes para a cultura ocidental:
o pacifismo, a volta à natureza, a exploração da mente, o universo interior, o resgate
da espiritualidade e das tecnologias psicoespirituais do Oriente, o questionamento
do sistema capitalista, do consumismo etc.
20 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

utilizados tanto para educar, gerar saúde mental e transformar para me-
lhor o ser humano quanto para alienar, corromper, neurotizar e incutir
destrutivos valores. É evidente sua extrema responsabilidade na cons-
trução social, bem como no problema das drogas. A falta de informação
lúcida sobre esses assuntos recai igualmente sobre seus ombros, e sobre
os das autoridades políticas que, por vezes bem intencionadas, realizam
campanhas pouco eficazes, seguramente por não tocarem as verdadei-
ras raízes das questões abordadas. Penetrar em tais raízes, que se encon-
tram nos domínios transpessoais da Alma, pode mudar completamente
alguns ângulos dos temas tratados, por vezes com superficialismo, por
vezes com preconceitos, o que influi decisivamente nos resultados fi-
nais, nas apreciações e na legislação formulada a partir deles.
Muito do que estamos dizendo começa na história que ensinamos
aos nossos jovens e às nossas crianças. Existe uma distorção na base, no
próprio sistema educacional, que, através de suas ênfases e ocultações
de dados, de suas escolhas acerca do que enfocar e do que ignorar, guia
as mentes em formação pelo caminho de valores que nutrem unilateral-
mente as dimensões decadentes e sectárias de nossa cultura, fomentan-
do alienação em face das perspectivas capazes de trazer renovação psi-
cológica e social por meio da promoção de mais ética e saúde mental.
Em sua palestra na UERJ (Universidade do Estado do Rio de Ja-
neiro), Stanislav Grof, uma das maiores autoridades em Psicologia
Transpessoal, nos recorda que os currículos, tanto escolares quanto das
universidades seculares, falam pouco ou nada de Buda, São Francisco,
Sócrates, Giordano Bruno, Paracelso ou de Jesus.
Tais personagens, se mencionados, o são de maneira preconceituosa,
ou, em versões manipuladas segundo interesses institucionais, jamais res-
saltando o caráter revolucionário e libertário de suas contribuições. A histó-
ria prioriza os impérios querendo engolir os outros à sua volta antes de cair,
os currículos discorrem sobre política, guerras, invasões, conquistas etc.
Pouco se fala dos grandes mestres espirituais, das vidas de cientis-
tas dedicados e de grandes benfeitores da humanidade. Pouco se infor-
ma sobre a história do ponto de vista dos povos e culturas vencidos, que,
muitas vezes, demonstram ser mais espirituais e avançados, psicológica
e culturalmente, que seus conquistadores. Afinal, que critérios são utili-
zados para se avaliar o que são grandes feitos ou não? Da mesma forma,
no noticiário e nos filmes da TV, parece que é dada prioridade aos fatos
ligados ao poder, à ambição, à agressividade e ao egoísmo humanos e,
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 21

muito menos, à generosidade, ao sacrifício pelo próximo ou por um


ideal. Nas escolas e universidades a posição de se considerar certos fatos
como pertencentes à esfera religiosa é usada como justificativa para se-
rem sistematicamente escamoteados da história, como se a religião fosse
um capítulo à parte que os materialistas prefeririam esquecer.
Hoje, mais que nunca, os aportes das Psicologias Junguiana e Trans-
pessoal convergem em uma perspectiva que sugere, para os crentes no
paradigma newtoniano-cartesiano, um surpreendente caminho. Jung
resgata a importância decisiva do imenso e ainda desconhecido con-
tinente arquetípico do espírito na psique humana, tão essencial quanto
a instintividade animal. Grande sintetizador e porta-voz de inúmeros
pesquisadores e terapeutas transpessoais, Stanislav Grof, após vasta in-
vestigação e debruçar-se sobre imensa quantidade de implacáveis dados
científicos, também conclui conosco que “(...) a espiritualidade é uma
dimensão crucial da psique”.
Quando examinamos a questão mais de perto, percebemos as in-
trincadas relações entre o vício e algo mais, um anseio da alma, que
pode ser uma virtude, um movimento para a plenitude, o “instinto da
saudade”, como nomeia Guimarães Rosa, o movimento para a meta (o
telos) do desenvolvimento humano, no sentido da sua autorrealização
(Abraham Maslow), seu amadurecimento, a individuação (Jung) e ex-
pansão de consciência.
Por um lado, temos a definição de “vício” que, segundo o Dicioná-
rio etimológico, é um “defeito grave que torna uma pessoa ou coisa ina-
dequada para certos fins e funções”, que não fica muito bem esclarecido
quais são os fins e funções, e em relação a qual expectativa, grupo ou
segmento da sociedade se define essa inadequação. Outra perspectiva
o coloca como “costume prejudicial e condenável”, novamente pouco
definindo os parâmetros em relação aos quais essa avaliação se faz.
Conforme nos ensina Enrique Ocanã:

“Segundo Baudelaire, os vícios do homem, por mui espantosos que pare-


çam, aportam uma prova de sua ânsia de infinitude. Assim, em qualquer lu-
gar e época, o ser humano recorreu à farmácia para escapar, ainda que fosse
somente por umas horas, de sua morada de barro e ‘alcançar de um salto o
paraíso’. Em seu extremo, o ébrio chega a endeusar-se, a sonhar-se Deus.”

Porém, o caminho entre esse “anseio de plenitude” e a sua realiza-


ção é eivado de perigos. Existem muitas vias que trazem riscos desne-
22 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

cessários, além de errarem completamente o alvo. Elas simplesmente


não proporcionam o resultado esperado de expansão, revitalização e
plenitude, mas a escravidão, a degradação e, algumas vezes, a morte.
Por isso é essencial informar corretamente os jovens e o público em
geral acerca desses decisivos e complexos assuntos. Somente reprimir e
condenar as drogas tem se mostrado uma estratégia de curto alcance e
mui restrita eficácia. Talvez esteja aí uma das maiores causas do gravís-
simo problema do tráfico de drogas e do ameaçador poder paralelo que
cresce cada vez mais em muitas das cidades contemporâneas. É preciso,
sobretudo, ministrar informação de boa qualidade, tarefa dificultada
pelos tabus e preconceitos acerca deste assunto, que preenchem as la-
cunas do desconhecimento com distorcidas perspectivas que somente
agravam os problemas.
Os jovens e a sociedade em geral estão, sobretudo, mal informados
acerca dos distintos efeitos e consequências, a longo e curto prazos, do
uso das diferentes substâncias psicoativas, e das cabais diferenças entre as
drogas e os Enteógenos, as Plantas Sagradas. A orientação, os incentivos
por parte da sociedade e contexto cultural são decisivos para cultivarmos
o incremento de iniciações espirituais educativas, construtivas e benéficas
à saúde, ou nutrirmos inadvertidamente práticas ignorantes, perigosas e
destrutivas, com resultados nefastos para a vida, a saúde e a sociedade.
Com a desinformação e as distorções que a clandestinidade ajuda
a promover, seu anseio de iniciação fica desviado e canalizado para ca-
minhos sem volta, levando a uma situação dramaticamente disfuncio-
nal, sob múltiplos pontos de vista. Um caminho equivocado de busca
de estados de expansão de consciência pode conduzir à dependência,
à morte e/ou completa deterioração de qualquer dignidade ou sentido
ético, trazendo malefícios óbvios para o indivíduo e para os que estão
ao seu redor. É importante que exista uma conscientização mais ampla
e maior cuidado da parte das autoridades encarregadas das políticas pú-
blicas neste setor.
Nossa cultura decadente e seu ignorante, alienado e perigoso uso
de drogas matizaram com preconceitos e perspectivas sombrias a lu-
minosa manhã do regrado e sadio sacramental uso de Enteógenos en-
contrado no passado da humanidade. Em todos os casos, porém, não
se trata de crime quando não há intenção de se causar dano a outrem;
não é caso, portanto, para intervenção policial. A polícia deve ocupar-se
com a verdadeira criminalidade. No máximo, auxílio psicológico, espi-
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 23

ritual, educacional e médico deve ser oferecido aos que desejarem sair
de caminhos perigosos e, especialmente, muita informação sobre o as-
sunto deve ser acessível a todos, para que saibam decidir suas vidas de
maneira mais consciente, inteligente e edificante.

b) No Sintoma está a Mensagem da Cura – A Decifração


Indispensável

“Algo que estávamos negando nos enfraqueceu.


Até descobrirmos que esse algo éramos nós mesmos.”
Robert Frost

“Eu vim ao seio do mundo e apareci a eles na carne, mas encontrei-os


bêbados e não achei nenhum deles sedento de minhas águas de vida.
E me entristeço com os filhos dos homens, porque são cegos e não
podem ver com seus corações.”
Jesus Cristo – Evangelho de Tomé

“A aparição dos ditadores e de toda a miséria que eles trouxeram


provém de que os homens foram despojados de todo o sentido do
além, pela visão curta de seres que se acreditavam muito inteligentes.
Assim, o homem tornou-se presa do inconsciente.”
C. G. Jung – M. S. R.

É possível que, de certo modo, todos os que mergulham, de ma-


neira mais ou menos arriscada, no empenho por modificar os estados
ordinários de consciência, estejam no caminho daquilo que desespera-
damente nos falta, nessa decaída e pouco sábia cultura atual. Eles estão
cansados do conhecimento extrovertido, racional e materialista, repre-
sentado principalmente por setores hegemônicos da ciência moderna,
que não nos têm trazido a felicidade, uma ética mais madura, tampouco
a harmonia entre os homens ou com a natureza.
Muitos que se lançam nas drogas experimentam um anseio de ple-
nitude, de mudança de consciência, visam abrir novos caminhos den-
tro de si mesmos, encontrar renovadas perspectivas para compreender,
lidar e até melhorar o mundo, a sinistra “realidade” que aí está, criada
pelo próprio homem. Conforme nos diz Proust: “A verdadeira desco-
berta não consiste em procurar novas paisagens, mas em possuir novos
olhos.” Por impotência ou por experiência eles já sabem disso.
24 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

É necessário interpretar o problema como um sintoma na perspec-


tiva junguiana: uma reação da psique e do organismo social no sentido
do resgate de sua dimensão perdida, indispensável à totalidade, à cura
do indivíduo e da sociedade. Jung nos mostra que a neurose, definida
como “um estado de desunião consigo mesmo”, é também algo positivo,
“(...) pois na neurose está um pedaço ainda não desenvolvido da perso-
nalidade, parte preciosa da psique sem a qual o homem está condenado
à resignação, amargura e outras coisas hostis à vida”.
Modificando inteiramente a concepção usual do significado e fun-
ção da suposta “doença”, Jung levanta a suspeita de que ela é indispensá-
vel à completude e ao desenvolvimento psíquicos: “A doença não é um
peso supérfluo e, portanto, sem sentido, mas é ele mesmo; ele mesmo
como o ‘outro’ que, por comodismo infantil, por medo ou por outra
razão qualquer, sempre procurou excluir”.
Hoje, após longa experiência em psicoterapia, sabemos que atacar
sintomas, precipitada e indiscriminadamente, conduz à alienação em
relação às causas do problema, bem como às suas verdadeiras e defini-
tivas soluções. Quando mencionamos sintomas psicológicos, e o abu-
so das drogas pode também ser visto como um sintoma psicológico,
precisamos nos informar, não apenas sobre suas causas, como também,
acerca da sua significação e de qual é o seu propósito.
Jung nos fornece uma importante pista:

“Uma neurose estará realmente ‘liquidada’ quando tiver liquidado a falsa


atitude do ego. Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está
doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. Por isso podemos
aprender muita coisa da doença para a nossa saúde, e que aquilo que parece
ao neurótico absolutamente dispensável contém precisamente o verdadeiro
ouro que não encontramos em outra parte”.

Assim é que, a “pedra rejeitada pelos construtores”, o sintoma, a


neurose, o abuso, a dependência, pode se tornar a “pedra fundamental”
da construção de condições anímicas e sociais mais salutares.
Aplicando essa linha de abordagem para a nossa questão do abu-
so de drogas, temos uma importante verificação. Percebemos que, com
uma renovação da consciência, integrando mais e mais psique, o incons-
ciente, em nosso estreito ego, poderemos alcançar um novo patamar
de abrangência, plenitude e equilíbrio, de maior saúde por conseguinte.
Isso só ocorrerá se tivermos a atitude correta em face das disfunções,
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 25

desestruturações e tempestades da psique. Deparamo-nos, na realidade,


com processos de Emergência Espiritual.
São de Stanislav Grof as definições gerais que aqui adotamos desse
processo. Diz ele:

“As ‘emergências espirituais’ podem ser definidas como estágios críticos e


experiencialmente difíceis de uma transformação psicológica profunda, que
envolve todo o ser da pessoa. Tomam a forma de estados incomuns de cons-
ciência e envolvem emoções intensas, visões e outras alterações sensoriais,
pensamentos incomuns, assim como várias manifestações físicas.”

Stan percebe que

“(...) muitos estados que a psiquiatria tradicional considerava bizarros e incom-


preensíveis eram manifestações naturais da dinâmica profunda da psique huma-
na. E sua emergência para a consciência, tradicionalmente vista como indícios
de doença mental, podia na verdade ser o esforço radical do organismo para se
livrar do efeito de vários traumas, simplificar seu funcionamento e curar-se”.

Configuram “(...) um processo complexo e evolutivo que conduz a


um modo de vida mais realizado e maduro”. Esse processo

“(...) envolve uma ótima saúde emocional e psicossomática, maior liberdade


de escolha pessoal e uma sensação de ligação profunda com as outras pes-
soas, com a natureza e com o cosmos. Uma parte importante desse desen-
volvimento é um despertar progressivo da dimensão espiritual da pessoa e
no esquema universal das coisas”.

Esse conceito transdisciplinar, importantíssimo para a psicotera-


pia, infelizmente ainda não é conhecido pela maioria dos terapeutas;
tampouco é estudado nos cursos de Psicologia e na Psiquiatria, quer
na graduação ou na pós-graduação. As repercussões de sua formulação
para as práticas psicoterápicas e psiquiátricas são ainda insuficiente-
mente apreciadas. A redemarcação de fronteiras que por ele é impos-
ta na avaliação do que é normal e patológico em complexos processos
psicológicos, além de trazer um melhor entendimento das experiências
místicas, é uma questão mais que urgente da psicoterapia.
Evocamos o que nos recorda Einstein: “O mundo não vai supe-
rar a crise atual usando o mesmo pensamento que criou essa situação”.
Damo-nos conta de que os motivos das crises, exatamente por serem
26 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

inconscientes e desconhecidos, “(...) nos colocam, de tempo em tempo,


diante de coisas que precisamos repensar, disciplinar, aprender e trans-
formar”, como nos recordam Gustavo Boog e Maysa Marin. Tais crises e
disfunções, psíquicas e sociais, nos conduzem a uma saída da rotina, da
rigidez, das coisas aparentemente bem sabidas, onde nos movemos para
originais aprendizados, rompendo com os modelos superados, tirando-
nos da “paralisia” e acomodação. Estes consultores mencionados acima,
autores de um pequeno livro intitulado Crises! Como transformar as
crises em oportunidades de crescimento pessoal e profissional, aportam a
mesma conclusão que muitos de nós, terapeutas e pesquisadores de di-
ferentes áreas e formações, chegamos: “As crises nos re-ligam (religare)
a dimensões ao mesmo tempo mais elevadas e mais profundas, dando a
oportunidade de criar conexões muitas vezes ausentes em nossa existên-
cia”. Tais conexões podem ser lidas como referentes ao supraconsciente
e ao subconsciente, o que está acima e abaixo da psique consciente, do
ego, o passado e o futuro evolutivos, as raízes e a copa da árvore da psi-
que, hoje, aqui, nos transformando, nos individuando.
Essa necessária exploração das potencialidades da psique é a chave
da solução do problema do abuso de drogas. A alienação de consciência
nos custa muito mais caro do que parece. A crise é ampla e repercute ao
redor. Como diz Duane Elgin:

“Agimos somente com consciência parcial, por isso perturbamos o equilí-


brio e destruímos o tecido do universo, que agora retorna para reclamar sua
reparação ecológica. A degradação ambiental, a alienação, a decadência ur-
bana e a conturbação social são espelhos da estreiteza de nossa visão do ho-
mem e do universo. Nosso mundo exterior reflete nossa condição interior.”

É imprescindível o engajamento na aventura do descobrimento


dos continentes anímicos com o experienciar de todos os arquétipos
envolvidos nessa jornada universal. Por mais que se procure manter os
jovens e os audazes de todas as idades em “banho-maria”, em clima de
acomodação, morno e tedioso, a alma buscará viver individualmente os
arquétipos, de um modo ou de outro. Precisamos dar alternativas inte-
ligentes, sábias, saudáveis para todos.
Conforme nos adverte Jung:

“(...) Ninguém deve negar o perigo da descida ao inconsciente, mas é pos-


sível arriscar. Ninguém é obrigado a se arriscar, mas é certo que alguns se
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 27

arriscarão. Quem tiver de descer que o faça com os olhos abertos, pois é
um sacrifício que amedronta até os deuses. Porém, depois de toda descida
segue-se uma ascensão. As formas que desaparecem são reformadas, e uma
verdade só será válida no final (a longo prazo) quando se transforma e torna
a trazer seu testemunho através de novas imagens, em novas línguas, como
um novo vinho que é acondicionado em odres novos”.

Talvez seja este o caminho que busca encetar o usuário de drogas.


É também este o caminho da renovação de nossas almas e da socie-
dade que percorrem religiosos e artistas. Uma importante diferença
está em que alguns não conseguem encontrar o caminho de volta, não
apenas em função da parca orientação que recebem nos desconheci-
dos domínios por onde navegam, mas, igualmente, pelos resultados,
muito diversificados, do uso de diferentes substâncias e ferramentas
psicoativas.
Após estas reflexões, retornamos ao curso central de nosso tema.
Conclui Bleuler:

“No tratamento dos jovens que estão em perigo pelo consumo de drogas
e dos que são dependentes destas, é imprescindível considerar a neces-
sidade de novas formas sociais e de novas experiências em comunidade
sem preconceitos. Sabemos hoje quão difícil é corresponder a tal neces-
sidade; (...).”

Como entendermos melhor o que acontece com a nossa deca-


dente sociedade e com sua célula, a família? Vamos buscar na pers-
pectiva religiosa algumas considerações decisivas para esclarecermos
melhor esta questão.
Ao expor sua concepção da falência espiritual da família em nos-
sos dias, um dos maiores expoentes da filosofia védica na atualidade,
Hrdayananda Goswami, levanta algumas reflexões de sumo interesse
para nossa discussão. Ao ser perguntado acerca do porquê vemos na
juventude hoje uma tendência a rejeitar os pais, ele responde: “Por-
que os filhos não estão recebendo o que os pais deveriam dar.” Assim
como é dever dos pais dar assistência, alimentar os filhos, cuidar física
e psicologicamente deles, é, também, seu dever dar a eles formação
e informação espiritual. Existem critérios bem definidos que preve-
em a interdição dos pais quando considerados incapazes de lhes dar
assistência mínima necessária em termos de cuidados materiais e/
28 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

ou psicológicos, mas nenhuma expectativa ou sequer orientação re-


cai sobre eles no que diz respeito às questões referentes à alma e suas
necessidades de religação, de educação para atenderem às dimensões
transpessoais da psique humana.
Todos nos damos conta de que existe algo errado no sistema edu-
cacional moderno. Nosso sistema educacional é essencialmente secular,
dessacralizado. Existem aspectos positivos aí que garantem nossa li-
berdade de pensamento e investigação, desvinculada dos dogmatismos
doutrinários, dos interesses institucionais, da religiosidade unilateral e
estreita. Mas percebemos que no caminho algo importante se perdeu.
A ideologia política da atualidade não abre espaço para as Tradições
Sagradas e as práticas espirituais nas escolas e universidades. Caímos
no outro extremo: a imposição de uma cosmovisão materialista. Rupert
Sheldrake, doutor em bioquímica, nos adverte para o fato de que “a edu-
cação moderna supõe uma iniciação na visão do mundo racionalista ou
humanista.” Considera, como nós, fundamental, um resgate do caráter
iniciático do sistema educacional, tal como é encontrado nas sociedades
tradicionais e tribais.
A iniciação é um processo que envolve toda a personalidade. É
uma educação que propicia um desabrochar holístico. Conforme o his-
toriador das religiões, Mircea Eliade, “o mistério da iniciação descobre,
pouco a pouco, ao neófito as verdadeiras dimensões da existência: intro-
duzindo-o no sagrado, o mistério obriga-o a assumir a responsabilidade
de homem”. Em outro texto ele escreve:

“Por iniciação se entende geralmente um conjunto de ritos e ensinamentos


orais que tem por finalidade a mudança radical da condição religiosa e so-
cial do sujeito iniciado. Filosoficamente falando, a iniciação equivale a uma
mutação ontológica do regime existencial.”

Em nossa visão a iniciação catalisa e canaliza um processo natu-


ral anímico. Sabemos pelo trabalho de Eliade que uma das diferenças
marcantes entre o mundo arcaico e o mundo moderno está no desapa-
recimento da iniciação. Podemos perceber esse dado como verdadeiro,
ao menos, no sentido da sua institucionalização em mais larga escala e
mais amplo acesso. O caráter multidimensional e os horizontes espiritu-
ais das iniciações decaíram. O pouco que restou no mundo moderno foi
dessacralizado, e não apresenta, nem de longe, o mesmo alcance exis-
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 29

tencial.5 Essa lacuna se faz sentir em nossa cultura e em nossas socieda-


des modernas de maneira pungente.6
Conforme nos ensina Jung, “cada vez que algum aspecto importan-
te é desvalorizado na consciência, vindo a desaparecer, surge por sua vez
uma compensação no inconsciente”. Se atentarmos aos bastidores, pode-
remos divisar, na atualidade, os mesmos elementos basilares da função
religiosa da psique, sobrevivendo distorcidos sob novas e empobrecidas
roupagens, perdendo muito de sua eficácia regeneradora de outrora.
O analista junguiano Edward Whitmont nos alerta:

“No passado, o prazer de viver era oferecido aos deuses na dança espontânea
da existência, (...). Hoje, esgota-se em rituais sem sentido para perdedores ou
vencedores. Mas os deuses destituídos dos seus altares tendem a se insinu-
ar de volta por vielas escuras. É por isso que nos encontramos prisioneiros
de ondas de um hedonismo compulsivo, que exageramos nos prazeres e nos
afogamos no álcool ou nas drogas. Pois, embora o homem moderno tenha a
liberdade de ignorar as mitologias e teologias, sua ignorância não o impedirá
de continuar alimentando-se de mitos decadentes e de imagens degradadas.”

Existe algo na vida moderna que carece de uma profunda reorien-


tação. Será nossa relação com o Sagrado? Será a descoberta das riquezas
de nossas dimensões interiores, que a Psicologia Transpessoal demons-
tra serem mais amplas que as assumidas pelas correntes hegemônicas da
Psicologia convencional?
Uma grande questão a ser evocada aqui nos auxilia ainda a redi-
mensionar o problema das “drogas”. Terence McKenna adverte:

“Antes de nos comprometermos irrevogavelmente com a quimera de uma


cultura livre de drogas, comprada ao preço de um abandono completo dos
ideais de uma sociedade planetária livre e democrática, devemos nos fazer
perguntas duras: por que, como espécie, somos tão fascinados por estados
alterados de consciência? Qual tem sido o impacto deles sobre nossas aspi-

5 Apesar de muito das Ciências Holísticas dos Sábios do passado ter se perdido, al-
gumas Escolas Iniciáticas e antigas tradições espirituais, como os Rosacruzes, a
Maçonaria, os Taoístas, os Gnósticos, os Xamãs e outros guardiões dessa Ciência
Sagrada ainda preservam certos aspectos e metodologias dessa avançada pedagogia
do passado.
6 A inexorável conclusão aí é que, exatamente na formação dos indivíduos, isto é,
na educação, que precisamos investir para, entre muitas outras importantes coisas,
trabalhar preventivamente, em saúde mental, psicossomática e física.
30 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

rações estéticas e espirituais? O que perdemos ao negar a legitimidade do


impulso de cada indivíduo para o uso de substâncias visando a experimen-
tar pessoalmente o transcendental e o sagrado?”

Em nossa perspectiva, pelo fato de o problema da drogadicção


relacionar-se possivelmente com a ausência de autênticas iniciações,
os métodos que incidem estritamente na repressão, na abstinência e na
desintoxicação, intentando trazer a pessoa de volta para uma realidade
ordinária, para uma sociedade alienada, estão, num prazo maior ou me-
nor, fadados ao fracasso, por atuarem apenas no âmbito dos sintomas
e não nas causas. Desconsiderando ainda menos o propósito, o “telos”,
o “para que” de toda essa questão das drogas, esta abordagem mascara
o problema e transforma em “caso de polícia e repressão” uma ferida
social, psicológica e a oportunidade de encontrarmos novas saídas para
a crise global que se agrava cada vez mais.
Talvez seja indispensável auxiliar a psique a transformar-se na dire-
ção para onde apontam os sintomas: para os estados de maior plenitude
anímica, para os estados de expansão de consciência. Durante o processo
de individuação, bem como na Emergência Espiritual, é preciso auxiliar a
pessoa a ir até o fim, a continuar até níveis de melhor estruturação e resolu-
ção, realizando novas sínteses. Atualmente temos excelentes mapas, anti-
gos e novos, para nos guiar dentro desses misteriosos caminhos do desve-
lar do verdadeiro Eu, de auxiliar o ego a seguir a orientação do Si-Mesmo,
o “Eu Divino”. A cura é a realização da meta do processo de crescimento
integral, pessoal e transpessoal: a integração bio-psico-socio-espiritual.
É fato notório que muitos dos métodos mais eficazes para os pro-
blemas das drogas e do alcoolismo apresentam propostas de ampla reno-
vação existencial, e possuem, geralmente, uma dimensão espiritual, tais
como as inúmeras formas de religiosidade (igrejas, xamanismo etc.), o
método “canalizado” dos Alcoólicos Anônimos e as várias modalidades
iniciatórias, como o trabalho de Mestre Muniz no Acre (com a metodo-
logia da União do Vegetal) e o da clínica peruana Takiwasi (dirigida por
Jacques Mabit e Jaime Torres, com tecnologia xamânica e psicológica,
tendo como eixo do tratamento Plantas Enteogênicas), vias espiritualis-
tas, técnicas de meditação ou trabalho analítico profundo.
Todos esses métodos convergem propugnando, de um modo ou de
outro, uma religação com o Si-Mesmo, com o inconsciente, com a dimen-
são espiritual da psique, e uma transformação mais profunda da persona-
Cap. I – O Problema das Drogas na Atualidade ou o Início do Despertar 31

lidade. Assinalamos a conclusão a que chega o analista junguiano Luigi


Zoja, quando interpreta a iniciação à droga, bem como a necessidade cres-
cente de experiências esotéricas e iniciáticas com que nos deparamos em
nossos dias (demanda que não é satisfeita inteiramente porque não encon-
tra práticas e instituições que lhe correspondam de maneira apropriada),
como anseio de regeneração, uma nostalgia do sagrado, para a qual a única
saída possível é operar uma metanoia, ir além do estado ordinário de cons-
ciência, revolucionar a mente e “direcionar a pessoa para uma dimensão
completamente nova”. É preciso, como ensina Jesus, “nascer novamente”.
Tanto o trabalho de Mestre Muniz no Brasil como o da clínica
Takiwasi são exemplos de como as Plantas Sagradas, os Enteógenos,
constituem eficiente terapia para os problemas das drogas e do alcoolis-
mo ajudando a pessoa a renascer em renovada identidade. Não é sufi-
ciente nascer neste plano: é preciso nascer de novo no espírito, para al-
cançar o “Reino dos Céus” que está dentro de nós. No fundo o problema
da droga é uma tentativa, ignorante e, por isso, muitas vezes, malograda,
de vivenciar um novo nascimento; uma busca de cura e renovação.
Conforme sugere Eva de Vitray-Meyerovitch, “somente a alma
nascida uma segunda vez pode compreender que existe um ‘outro uni-
verso’.” Para ela o tema do renascimento espiritual vai perpassar toda a
obra de Rûmî. Diz ele: “O corpo, como uma mãe, leva a criança do es-
pírito: a morte representa os sofrimentos e as angústias do nascimento.”
Vista como etapa a ser transposta, a Morte é o Portal que precisamos
atravessar rumo a um novo nascimento. Ensina o Mestre Rûmî:

“O corpo é semelhante a Maria, e cada um possui um Jesus em si. Na medi-


da em que Maria não sentiu as dores do parto, ela não se dirigiu para a árvo-
re da felicidade. Se experimentarmos em nós essa dor, nosso Jesus nascerá.”

Terence McKenna descreve o que está sucedendo mais acentuada-


mente há algumas décadas em nosso mundo moderno:

“O renascimento arcaico é um clarim chamando-nos para recuperarmos


nosso direito de nascença, por mais desconfortáveis que possamos ficar com
isso. É um chamado para percebermos que a vida na ausência da experiên-
cia psicodélica sobre a qual se baseia o xamanismo primordial é uma vida
trivializada, negada, escravizada ao ego e ao seu medo de se dissolver na
misteriosa matriz de sentimento que está ao nosso redor. É no renascimento
arcaico que reside nossa transcendência ao dilema histórico.”
32 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Descortinamos uma importante chave para o acesso ao ingredien-


te decisivo descrita pela pesquisadora Roselle Angwin:
“Lado a lado como nosso mundo há um outro tempo, um outro espaço, um
outro mundo; uma realidade à parte com suas próprias leis, horas e possibi-
lidades. Esse mundo não é menos forte por ser invisível a nossos olhos co-
tidianos ou intangível a nossos sentidos habituais. Ele está tão perto de nós
que quase podemos tocá-lo, e tão longe que às vezes levamos a vida inteira
para chegar lá. Existe uma entrada, mas é protegida. A senha para passar é
deixar para trás o seu eu de todo dia.”

Neste ponto deparamo-nos com um alerta para o fato de que, não


é por acaso, a investigação e a prática do xamanismo e das antigas Tra-
dições Sagradas da humanidade ganharam em nossos crísicos dias um
extraordinário impulso. Aí também vamos descortinar a razão da de-
cisiva contribuição que a pesquisa dos Enteógenos apresenta para uma
abordagem lúcida e realista do assunto.
É impressionante que, como se confirmassem as nossas interpreta-
ções, investigadores com diferentes formações e experiências, convergem
para uma perspectiva estranhamente similar da questão. O diagnóstico for-
mulado pelo médico, perito no assunto, Dr. Andrew Weil, é bastante claro:
“A irrupção das drogas no mundo racional, de classe média, é um análogo
social do surgimento da experiência não ordinária na consciência ordinária
de uma pessoa. Representa, acima de tudo, a tendência do universo de atin-
gir o equilíbrio e harmonia equilibrando forças contra seus opostos. (...)”

Conclui ele:
“A aparência exterior antagonista das drogas na América esconde uma força,
que é, para nós, o oposto que falta. Nada mais é senão a realidade e a força
do não material, do não racional e do não ordinário, que negamos por tanto
tempo, e usando a máscara que adotou, força-nos a levá-la em consideração
e integrá-la em nossos conceitos conscientes.”

Já vislumbramos aí uma fagulha do potencial curativo e revolu-


cionário da consciência que encontramos no horizonte da investigação
científica dos psicoativos. Chegou o momento de aprofundarmos na
contribuição ímpar que os Enteógenos têm a trazer, para uma ampla
compreensão dos problemas e para muitas das soluções e mudanças se-
guras que podemos alcançar nas práticas de expansão da mente, visan-
do aprimorarmos nossa cindida e conflitada cultura moderna.
II
A NOVA AURORA DE UMA ANTIGA MANHÃ

________________________ u ____________________________

a) A Redescoberta dos Enteógenos e a Revolução da Consciência

“A Águia pretendia que ao serem capazes de lembrar de si próprios


novamente, encontrassem sua totalidade. Só então teriam a força
e a antiguidade necessárias para procurar e enfrentar sua viagem
definitiva.”
Carlos Castañeda

“Tu queres comer, tu queres beber. Vem à refeição da Sabedoria, que


convida todos os homens com uma grande proclamação, dizendo:
Vinde, comei meus pães e bebei o vinho que eu misturei. Ouve a Igreja
que te exorta não somente com seus cânticos, mas com o Cântico dos
cânticos: Comei, amigos, bebei, embriagai-vos, meus bem-amados. Mas
esta embriaguez torna sóbrio, esta embriaguez engendra alegria, não da
demência, mas da graça. A Sabedoria construiu uma casa, erigiu sete
colunas. O Senhor Jesus ensina que há numerosas casas em casa de seu
Pai. Nesta Casa, tu então festejarás com os alimentos da alma e as bebidas
do espírito, de sorte que, em seguida, nunca mais terás fome nem sede”.
Santo Ambrósio

“Enquanto a religião restringir-se à fé e à forma exterior, e a função


religiosa não for uma experiência da própria alma, nada de essencial
poderá ocorrer”
C. G. Jung

Investigando sem preconceitos, além das fronteiras dos dogmas


“científicos”, “psicológicos” e “religiosos”, concluímos que o impulso de
alterar periodicamente o estado consciente é um impulso normal en-
contrado em várias sociedades e povos do mundo. Sociedades das mais
variadas formas e graus de complexidade cultural e, ao que parece, se-
gundo os testemunhos arqueológicos e históricos, em todas as épocas
da história da humanidade, apresentaram práticas diversas de modifica-
ção do estado ordinário de funcionamento da mente.
34 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

As experiências de ampliação da consciência podem ocorrer de vá-


rias maneiras: técnica e intencionalmente por meio de jejuns, privação
sensorial, meditação, exercícios de yoga, rituais psicodramáticos, nos
transes induzidos por ritmos, palavras, música, dança, tambores, pelo
uso ritualístico de Plantas Sagradas ou espontaneamente nos êxtases re-
ligiosos, estados emocionais exacerbados, estados de expansão intuitiva
e supraconsciência, “experiências de cume” etc.
A experiência visionária tem sido considerada em alta conta entre
os povos da antiguidade, nas várias tradições sagradas e nas sociedades
tribais de diversos tempos e lugares. Sua ocorrência ao longo da história
tem sido por vezes a de eixo de práticas fundamentais de determinados
grupos e culturas.
Como nos recorda Stanislav Grof, tais sociedades se empenharam
muito em desenvolver métodos eficazes e seguros de alcançar os estados
visionários. Na Bíblia vemos a condição de realidade prioritária que im-
portantes tradições sagradas, comunidades e povos podem atribuir a esses
estados visionários da alma. Reconhecendo como problema filosófico ine-
xorável o de nos perguntarmos afinal qual o status metafísico, ontológico
das visões, consideradas no mundo moderno como alucinações, Aldous
Huxley as considera algo além do campo da Psicologia de seu tempo.
Conclui ele:

“Mas por enquanto podemos dizer, eu acho, que o valor, à parte o valor
intrínseco, por assim dizer o valor ético, sociológico e espiritual da experi-
ência visionária, é que se for bem usada ela pode resultar numa mudança
importante e significativa no modo de consciência, e talvez também numa
mudança de comportamento para melhor.”

Os Enteógenos, elevando implacavelmente a ética e expandindo a


consciência de seus usuários, contribuem de maneira mais segura para
esse fim.
Enquanto o interesse científico pelos Enteógenos (Plantas Sagra-
das que apresentam as propriedades misteriosas descritas mais adiante)
é relativamente recente, seus usos ritualísticos, religiosos, divinatórios e
terapêuticos podem ser remontados às origens da história humana. Des-
de um tempo imemorial, em diversas culturas que parecem apresentar
variadas formas e níveis de complexidade, plantas contendo substân-
cias com grande poder de modificar a mente têm sido utilizadas para o
diagnóstico e a cura de doenças, para o desenvolvimento de faculdades
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 35

“paranormais”, para propósitos estritamente espirituais ou mágicos, e


até mesmo pragmáticos.
Conforme dois grandes investigadores destas plantas especiais, o
botânico Richard Evans Schultes e o químico Albert Hofmann, “algumas
destas plantas capazes de alterar a mente, e seus princípios químicos ativos,
podem ter efeitos muito positivos se forem compreendidas de maneira
completa.” Confirmando que estas plantas não causam adicção, que têm o
poder de expandir a mente, de promover a experiência mística, reconhe-
cem também a possibilidade de descobrirmos nelas “(...) novas ferramen-
tas farmacêuticas para a experimentação e o tratamento psiquiátrico”.
Apesar de admitirem que “(...) nem todas estas plantas produzem
verdadeiras alucinações”, eles igualmente insistem no uso do termo que
gera confusão e desentendimento acerca da matéria. Tais “Plantas dos
Deuses”, como eles mesmos também as denominam, têm sido nomea-
das pela ciência oficial de “alucinógenas”, o que lhes tem acarretado a
situação de ainda serem tratadas como “drogas” perigosas, como algo
que leva a um estado da mente alucinatório, falso, irreal, alienado. Ora,
isso é como confundir o veneno com o remédio, conforme demonstra-
remos a seguir.
Em primeiro lugar, percebemos que a aplicação desta terminolo-
gia pode produzir, no discurso que procura ser científico, formulações
ambíguas e imprecisas, como as de Schultes e Hofmann sobre o uso dos
Enteógenos:

“Que método mais direto para permitir ao homem liberar-se dos limites pro-
saicos de sua existência mundana, e entrar temporariamente nos fascinantes
mundos de indescritíveis maravilhas que os alucinógenos abriam para ele?”

É evidente o caráter paradoxal desta assertiva. Afinal, são reali-


dades ou alucinações aquilo de que estamos falando? Será que nossos
excelentes peritos não se dão conta das contradições presentes em suas
palavras? Eles dizem:

“Se aceitamos que a realidade é o produto da interação entre um emissor


e um receptor, a percepção de uma realidade distinta sob a influência de
alucinógenos pode ser explicada pelo fato de que o cérebro, que é onde se
encontra a consciência, sofre dramáticas mudanças bioquímicas. O receptor
se vê ajustado para receber outras longitudes de onda, distintas daquelas
associadas com a realidade normal e cotidiana. Sob esta perspectiva, a ex-
36 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

periência subjetiva da realidade é infinita, dependendo da capacidade do


receptor que pode ser transformada amplamente através de modificações
bioquímicas na esfera cerebral”.

É impressionante que não percebam como as definições dadas


levantam dúvidas fundamentais sobre o significado mais imediato do
termo “alucinógeno”. Sem questioná-las, eles não mencionam quão im-
portantes para o futuro da investigação imparcial de tais plantas são a
terminologia e as definições utilizadas para abordá-las. Examinaremos
algumas reflexões que podem aprofundar essa discussão.
Algumas questões interessantes são formuladas pelo filósofo Alan
Watts em seu livro Que é a realidade. Referindo-se à confusão feita pe-
los psiquiatras (com seus sistemas metafísicos inconscientes que corres-
pondem à filosofia das ciências dominante no século XIX: um materia-
lismo condutista de ingênua ótica darwiniana reduzindo a grosseiros
processos biológicos as dimensões espirituais da mente humana) entre
manifestações importantes de religiosidade com profundas mudanças
psicológicas e as versões remetidas à patologia, ele escreve:

“Deveríamos pensar sobre estas coisas desde um outro ponto de vista, ou


seja: Será certo que alguém que experimentou semelhante mudança em seu
sentimento de identidade pessoal entrou em um estado alucinatório? Não
poderia também ser defendida a posição de que nosso sentido comum e
ordinário de identidade pessoal é um estado alucinatório?”

Encontramos aí uma inversão completa na interpretação de inú-


meros fatos e manifestações da psique, capaz de aportar consequências
fundamentais para nossas crenças acerca do que é a realidade.
Em seu livro, Plantas dos Deuses, Schultes e Hofmann reconhecem
o inexorável: “As plantas alucinógenas são estranhas, místicas, descon-
certantes”.
É decisivo que não percamos de vista o significado que tais plantas
têm para os seus maiores usuários e conhecedores, os que as utilizam há
milênios, os xamãs e iniciados, que com elas têm trabalhado ao longo da
história. Apesar de importantes tradições sagradas do passado aparen-
temente terem se perdido de maneira irremediável, algumas delas nos
chegaram suficientemente preservadas por milênios; outras renasceram
de modo espantosamente similar aos cultos e práticas do passado remo-
to. Conforme nos recorda o antropólogo Piers Vitebsky:
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 37

“Para os xamãs, as plantas são em realidade espíritos mestres, e ingerindo-


as os xamãs assumem suas propriedades. O que revela a planta não é um
desvio da realidade, senão uma autêntica realidade que em um estado de
consciência normal permanece oculto.”

A confusão descrita anteriormente tem desembocado na suspei-


ção, no medo e nos preconceitos desinformados, acerca de seu inapreci-
ável potencial terapêutico e transformador evolutivo da psique humana,
fazendo com que as distorções ideológicas, bem como as proibições e
restrições legais, se constituam em entraves à pesquisa inadiável desse
imenso e desconhecido território, capaz de trazer cura e renovação para
toda a humanidade. Este estudo é um esforço de fazer justiça à comple-
xidade e importância dessa questão nos dias atuais.
Conforme nos recorda o presidente do “Council on Spiritual Prac-
tices”, Robert Jesse:

“I invite you to consider the impact that the drug laws inadvertently have
on the free exercise of religion, affecting people for whom certain prohibited
substances are an essential feature of their spiritual practices. That impact ef-
fectively constitutes religious persecution, even though most of the people con-
ducting it have no desire to persecute and no idea that they are doing so.”7

Seguiremos um pouco mais adiante desta colocação. Deparamo-


nos com a posição de uma autoridade mundial na investigação e expe-
riência nesses dois campos, o das drogas e o das plantas, e percebemos
que ela aporta contribuições convergentes com as nossas, assaz impor-
tantes para a nossa reflexão nesta etapa.
Quando indagado sobre a questão da artificialidade da experiência
psicodélica (manifestadora da mente), Terence McKenna respondeu:

“Não há nada de artificial na experiência psicodélica. Essas substâncias


fizeram parte da cadeia alimentar humana desde o princípio. É no rótulo
que começa o equívoco – elas são chamadas de ‘drogas’, e ‘droga’ é pala-
vrão. Sofremos de uma histeria contra as drogas. Toda a nossa sociedade
parece estar se dissolvendo sob a arremetida de sistemas de distribuição de

7 Trad.: “Eu convido você a considerar o impacto que as leis acerca das drogas inadver-
tidamente tem no livre exercício da religião, afetando pessoas para quem certas subs-
tâncias proibidas são um aspecto essencial de suas práticas espirituais. Este impacto
efetivamente constitui perseguição religiosa, mesmo que muitas das pessoas que a
conduzam não desejem perseguir e não tenham consciência de que o fazem.”
38 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

drogas criminosamente organizados. O que precisamos fazer para enfrentar


esse fato é tornarmo-nos um pouco mais sofisticados em nossas definições.
Acredito que a nossa verdadeira objeção contra as ‘drogas’ é que ficamos
alarmados diante de certo comportamento obsessivo, impensado e autodes-
trutivo. Quando vemos alguém agindo dessa maneira, recuamos, chocados.
É esse o comportamento provocado pelo vício de uma droga pesada como
cocaína ou morfina. No entanto, o que as substâncias psicodélicas fazem é
justamente quebrar hábitos e modalidades de raciocínio. Fazem com que os
indivíduos examinem e julguem as estruturas de sua vida (...)”.

É muito interessante o dado de que a ibogaína, substância sinteti-


zada a partir da planta sagrada Iboga, que é utilizada sacramentalmente
na África e integra elementos autóctones e cristãos, tem demonstrado
propriedades terapêuticas, não só em relação aos sintomas de abstinên-
cia dos opiáceos, heroína e outras drogas, que focalizaremos adiante,
mas, sobretudo, no entendimento da adicção.
A consciência e a transformação gnóstica são as chaves da cura de-
finitiva para o uso destrutivo das drogas. Estou convencido de que a ilu-
minação traz a nossa libertação/saciedade em face da sede de plenitude.
Buscar, no lugar apropriado e da maneira correta, os estados de expansão
psíquica e autorrealização talvez seja o fator decisivo. Conforme nos exor-
ta Robert Adrey: “A psique faminta tomou o lugar da barriga vazia.”
É muito provável que as plantas sejam os mais seguros e produti-
vos “psicodélicos” (“manifestadores da mente”), que conhecemos hoje.
Mas, apesar de essa terminologia (psicodélico) estar ultrapassada, o fato
é que as diferenças nos resultados, a curto, médio ou longo prazos, tra-
duzidos em mudanças de vida promovidas, catalisadas, pelos Enteóge-
nos, as Plantas Sagradas, ou pelo uso de drogas, substâncias purificadas
extraídas das plantas ou as sintéticas, são absolutamente gritantes.
Enquanto seres vivos, as Plantas dos Deuses são a porta decisi-
va para novos níveis de compreensão e elaboração de nosso processo
psicológico-existencial-espiritual, nossos apegos, nossos esforços para
alcançarmos vida nova, novas experiências, vinho novo.

b) As Religiões dos Enteógenos – A Via da Experiência Imediata:


Uma Nova Gnose

“Chamo Reforma Enteogênica à reconexão do ser humano atual com


sua herança cultural mais importante: o nexo com a tradição espiritual
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 39

de experiência direta com o divino, que informou nossa cultura desde


suas origens. (...) Agora estamos reconectando com a verdadeira
religião, que é a experiência direta do divino, ver o universo mais como
energia do que como matéria, e esta experiência é a que catalisam
os enteógenos. Eu vejo os enteógenos mais como os anticorpos do
ecossistema contra o câncer do materialismo.”
Jonathan Ott

“(...) A mentalidade dominadora sempre resistiu à mudança, quase


como se ela sentisse a possibilidade de um tipo de mudança que lhe
usurparia o poder definitivamente. No fenômeno dos alucinógenos
indóis esse medo presciente gerou frutos abundantes – nada menos do
que o fruto da Árvore do Conhecimento. Comê-lo é tornar-se Deus,
e isso certamente significa o eclipse do estilo dos dominadores. Esta
seria a esperança de qualquer renascimento arcaico.”
Terence McKenna

“Os guerreiros têm um propósito ulterior para seus atos, que não tem
nada a ver com o ganho pessoal. O homem comum age apenas se há
a oportunidade para o lucro. Os guerreiros não agem pelo lucro, mas
pelo espírito.”
Carlos Castañeda

Se desde a aurora dos tempos conhecidos nos deparamos com o


movimento arquetípico da busca de estados do ser diferentes dos usu-
ais, onde, dentre as inúmeras vias de religação, encontramos o arcaico
uso sacramental de Enteógenos, surpreendemo-nos na atualidade com
o ressurgimento destas práticas que parecem corresponder profunda-
mente aos anseios de renovação do homem moderno. A expansão de
cultos que fazem uso de Enteógenos, como, por exemplo, o Santo Dai-
me, a Barquinha e a União do Vegetal, nascidos no Brasil, bem como
do xamanismo, nos grandes centros urbanos e por parte de camadas,
sob certo aspecto, mais bem aquinhoadas em termos socioculturais, isto
é, pessoas que tiveram acesso a um mais amplo nível de informação e
formação, constitui um sintoma importante rumo ao encontro de saídas
para a situação de crise da modernidade.
Num primeiro momento, em uma interpretação psicológica pode-
ríamos dizer que estes cultos, originados, nutridos e orientados a partir
da experiência direta com o inconsciente, com as esferas transpessoais
da psique, e, principalmente, com o Si-Mesmo, Eu Superior, o Cristo
Interior, Atman, Self, Eu Sou, (e outros diversos nomes para a mesma
40 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

dimensão fundamental da alma humana) etc. configuram a dinâmica


que C. G. Jung denominou processo de individuação.
O que caracteriza este processo, questão decisiva para a psicologia
da segunda metade da vida, é o diálogo, o enfrentamento dialético com
o inconsciente, suas imagens e a emersão de um outro Centro da per-
sonalidade que Jung denominou Si-Mesmo. A necessidade de se atentar
para este fator de orientação interior e de o ego interagir da maneira
apropriada com os arquétipos que constituem esta jornada de cresci-
mento psíquico, neste aspecto é similar à proposta a ser realizada pela
análise junguiana, uma representante moderna dos procedimentos ini-
ciatórios antigos e uma via de religação possível. Segundo Jung, tal reli-
gação pode igualmente ser operada pelas religiões vivas da atualidade.
Esta concepção se constitui em uma importante chave para a compreen-
são do valor terapêutico das religiões, e se adequa perfeitamente à via de
individuação que surge a partir da utilização dos Enteógenos.
A psicologia junguiana, não apenas fornece ferramentas indispen-
sáveis ao entendimento da vitalidade destas práticas hoje, como também
subministra importantes contribuições aos que optaram por este cami-
nho religioso, no sentido de estarem conscientes, advertidos em relação
a algumas ciladas em face do poderoso fascínio, das propriedades ilusio-
nistas e do aspecto destrutivo que as imagens primordiais possuem.
A revolução copernicana operada por Jung acerca do valor do es-
tabelecimento proveitoso de um relacionamento entre o ego, o centro
da consciência, e os fatores do inconsciente, especialmente com o Si-
Mesmo, o centro da psique, recomenda que este relacionamento deve
ser análogo à relação da Terra com o Sol, onde, mantendo uma distância
ótima, ela não mergulha no Sol, o que a queimaria, nem se afasta do Sol,
o que a tornaria sem vida e estéril. Igualmente, quando o ego se identi-
fica indiscriminadamente com o Si-Mesmo, ele corre o risco da inflação
e da loucura, de ficar “incendiado”, onde a recomendação franciscana
da humildade e de o homem assumir suas limitações surge como um
preceito altamente salutar. Quando ele se desliga do inconsciente, do
Si-Mesmo (Sol) e não ouve Sua Voz, se torna rígido e sem criatividade.
Jung descobre que se faz necessário, para o crescimento psicológico na-
tural e realização do ciclo completo de nossa vida, um deslocamento do
centro de gravidade da psique do ego para o Si-Mesmo.
Esta revolução que coloca o Si-Mesmo ou, em uma linguagem re-
ligiosa, o Deus interior, no centro da vida psíquica, estabelece, para o
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 41

homem moderno, a possibilidade de resgatar um aspecto axial da men-


talidade dos xamãs, dos iniciados nos mistérios e dos antigos e atuais
Sacerdotes, cuja cultura e formulações o pesquisador pretende penetrar.
Conforme conclui José Menéndez Manjón em seu estudo acerca do
mistério do Soma, a poderosa Bebida Sagrada descrita nos antigos Vedas:

“O visionário não se pode integrar facilmente em uma sociedade extrema-


mente complexa, que fomenta a especialização mais mutiladora naquilo que
deveria ser uma experiência integral de conhecimento: a vida humana. Em
um sistema cada vez mais escolástico, mais tecnificado e mais repleto de de-
finições, a experiência enteogênica tem um efeito poderosamente destrui-
dor; libera de conceitos, dos termos meramente racionais, do egocentrismo
e do antropocentrismo. Os ritmos secretos da natureza se desvelam, tudo
se torna coerente em alguns segundos. Talvez, como São Tomás, não reste
nada melhor do que pousar a caneta diante da visão beatífica e abandonar a
teologia. É por isso que os brahmanes ocultaram o Soma.”8

Considerando isto, vamos examinar a utilização de alguns termos


em referência aos Enteógenos, plantas especiais, divinas, os elementos
mais sagrados para estes indivíduos, xamãs do passado, do presente, e
sacerdotes da antiguidade, bem como mestres e padrinhos da atualida-
de com os quais muito temos a aprender.

c) Distinção entre Alucinógenos e Enteógenos –


Ilusão ou Percepção de Realidades?
“O fato era que as pessoas pareciam considerar as visões provocadas
por plantas alucinógenas tão ‘reais’, senão mais, que a realidade
ordinária que todos percebemos.”
(Comentário do antropólogo Jeremy Narby acerca dos índios e
mestiços ayahuasqueiros.)

8 Soma: Bebida sagrada cultuada na Índia antiga, cuja identidade foi mantida em
segredo pelos sacerdotes, e que é mencionada nos hinos do Rig-Veda. A partir das
experiências de êxtase, foram “compostos” mais de 120 hinos, cerca de uma décima
parte do Veda sagrado, dedicados ao “deus” Soma, e realizados rituais de invocação
do seu poder divino para múltiplos propósitos. A partir dessa antiga fonte perce-
bemos a riqueza de propriedades misteriosas que um Enteógeno pode apresentar.
Alguns autores, como Aldous Huxley, por exemplo, sugerem que o yoga e a medi-
tação surgiram em função do desaparecimento do Soma. Essa bebida sacramental
era utilizada também pelos indo-irânicos que a denominavam Haoma.
42 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

“Os conhecimentos que eu buscava e que me ocupavam ainda não


faziam parte da ciência vigente naqueles dias. Eu mesmo devia realizar
a primeira experiência e, por outro lado, devia colocar no terreno da
realidade aquilo que ia descobrindo.”
C. G. Jung

“Que melhor maneira de tomar contato com o mundo espiritual teve


o homem das sociedades primitivas que o uso de plantas, cujos efeitos
psíquicos permitiam a comunicação com o sobrenatural?
(...) Plantas que alteram as funções normais da mente e o corpo sempre
foram consideradas sagradas nas sociedades não industriais, e os
alucinógenos têm sido ‘as plantas dos deuses’ por excelência”.
Schultes & Hofmann

Vale a pena lembrarmos com Jung que “a Psiquiatria nasceu (...),


no seio de um materialismo pernicioso.” É lamentável que pesquisado-
res eminentes e grandes autoridades no assunto (Schultes, Hofmann,
Ralph Metzner, Terence McKenna, Michael Harner etc.) utilizem ain-
da uma terminologia tão inapropriada para referirem-se aos Enteó-
genos. Termos como “alucinógeno”, “droga”, “intoxicação” ainda são
aplicados por investigadores e peritos, aparentemente inconscientes
das distorções e armadilhas que encerram para os estudiosos desavi-
sados, e, ainda mais para o leigo, desinformado acerca destes rarefeitos
e complexos assuntos.
Relata-nos o xamã Agostin Guzmán sobre o Enteógeno São Pedro:

“Diz-se que Wachuma é droga, leva a adicção e é alucinógeno. Eu não sou


muito versado em termos científicos, mas em meu conceito droga é alguma
substância que danifica e que com uso excessivo mata. Por exemplo, uma
overdose de pílulas para dormir pode chegar a matar uma pessoa. Com nos-
sas plantas enteogênicas não acontece o mesmo, até agora não se escutou
que pessoas que tenham contato com elas hajam morrido de overdose.”

Na verdade inexistem histórias de overdose com os Enteógenos


que mencionamos aqui: a Ayahuasca/Santo Daime, o Peyotl/Peiote, o
Wachuma/São Pedro, os Teonanacatl/Cogumelos Sagrados, a Jurema.9
Sua proteção natural inclui aspectos que encontramos presentes na ar-
gumentação de Alan Watts:

9 Talvez a Iboga apresente algumas exceções.


Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 43

“Então, todo prazer envolve um método de fundamentá-lo e integrá-lo com


todas as outras coisas. Existem maneiras de atingir aquilo que é potencial-
mente o maior de todos os deleites: o senso do divino, a sensação de trans-
cender o abismo entre o indivíduo e o universo eterno. Se você consegue
experimentar esse prazer mas não faz nada com ele ou não está adequada-
mente preparado para ele, você está sujeito a entrar em apuros. É por essa
razão que as substâncias psicodélicas, os produtos químicos derivados das
plantas divinas, são perigosas. Não há dúvida a esse respeito. Isso é espe-
cialmente verdadeiro para substâncias como o LSD, que produz seus efeitos
como resultado de a pessoa tomar uma quantidade extremamente pequena.
Se você quer se embebedar com cerveja, precisa tomar uma grande quan-
tidade, e existe um limite de quanta cerveja uma pessoa consegue beber
em uma noite. Porém, você não tem esse tipo de limitação com substâncias
muito mais potentes. O modo como os nativos americanos tratam o cac-
to peiote torna bastante difícil comê-lo. É nauseante, embora eles estejam
acostumados a isso. Você deve mastigar todo aquele cacto, e há um limite
para o que você consegue engolir. Mas, com esses elixires altamente refina-
dos, não existe nenhum limite óbvio. A nossa cultura está repleta de pessoas
totalmente patetas que irão experimentar qualquer coisa, mesmo que não
saibam nada a respeito.”

A leviandade e a ignorância com que os estados modificados de


consciência são tratados tornam o assunto mais complexo e difícil de
se lidar. A utilização das Plantas Sagradas está sempre cercada de regras
e disciplinas. A própria experiência com o Enteógeno traz as restrições
e metodologias para se trabalhar com ele. De acordo com as antigas
tradições, as Plantas Sagradas são sistematicamente administradas por
pessoas experientes e profundamente conhecedoras de seus efeitos por
vivência pessoal, de maneira diversa do psiquiatra, que é capaz de recei-
tar com ênfase substâncias que jamais experimentou em si mesmo.
Como nos recorda Allan Watts, “(...) todas as tradições veem com
desagrado aqueles que simplesmente surrupiam os segredos divinos e
desfrutam deles sem o acompanhamento de algum tipo de disciplina.”
Poderíamos dizer hoje, a partir de nossa experiência, que a utilização
do Enteógeno fora das disciplinas, regras e métodos estabelecidos por
tradição ou por revelação, seguramente não conduz aos mesmos resul-
tados, e, portanto, os segredos continuarão bem guardados.
Mas é possível que os maus resultados das incursões espúrias nos
domínios do sagrado, determinados mais pelas intenções com que se os
usa do que pela metodologia adotada para explorá-los, possam ser con-
fundidos, causando sua condenação. Esses dados podem comprometer
44 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

o trabalho dos que seriamente lidam com os Enteógenos, utilizando res-


peitosamente a tecnologia completa, bem mais eficiente e mais segura.
Os Enteógenos têm suas regulamentações, por vezes bem estritas,
embora tenham igualmente larga margem para criatividade e inovação
em seu uso.
Vamos buscar o exemplo nos textos de Antonin Artaud. Diz ele:
“O Peyotl desde que o saibamos tomar, quer dizer em doses justas e
graduais, é um maravilhoso princípio alquímico.” Após mencionar os
riscos e a temeridade do abuso da planta sagrada, quando o indivíduo
desobedece às orientações do próprio Ciguri, do Enteógeno, ele sinaliza
que tais recomendações se fazem no sentido da sobriedade.
Adiante ele descreve o ponto de equilíbrio aprendido a partir do En-
teógeno: “Mas beber Ciguri é justamente não ultrapassar a dose, porque
Ciguri é o Infinito, e o mistério da ação terapêutica dos remédios está liga-
do à dosagem com que nosso organismo os toma. Ultrapassar o necessário
é DEVASTAR a sua ação.” Poderemos supor que essa perspectiva proveio
do contato de Artaud com a abordagem da Psiquiatria moderna, onde
a questão da dosagem é vital. Sabemos que a flexibilidade de dosagem e
segurança de trabalho com doses mais altas e mais transformadoras entre
os Enteógenos, é maior que com as substâncias purificadas e sintéticas.
Porém, é espantosamente consensual que as Plantas dos Deuses
têm algumas de suas tecnologias de uso sistematizadas e rigorosamente
observadas. Embora possa ocorrer eventualmente, é muito menos fre-
quente e incomum o uso abusivo dos Enteógenos do que o das drogas.
Mas, na verdade, até mesmo estas últimas têm sido, por vezes, subava-
liadas à luz penumbrosa do preconceito. Vale a pena recordarmos do
importante trabalho de psicoterapia com L.S.D. realizado por Stan Grof
com pessoas terminais, ou dos vários tipos de psicoterapias experien-
ciais, usando drogas e/ou outras ferramentas que promovem vivências
profundas e transformadoras para a alma humana.
Denuncia Terence MacKenna que substâncias como a psilocibina
e a DMT encontram, injustificadamente, nos Estados Unidos, a classifi-
cação de “drogas que não têm aplicação médica”. Não existe fundamen-
tação científica para tal julgamento. As consequências disso são desas-
trosas e obscurantistas. Diz ele:

“Na atmosfera paranoica do final dos anos sessenta, o mero fato de esses
compostos causarem alucinações foi base suficiente para sua colocação
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 45

numa categoria tão restritiva que até mesmo a pesquisa médica foi de-
sencorajada.”

Vale a pena considerarmos aí que, tanto no campo da medicina


psicossomática quanto no da Psiquiatria e da Psicoterapia, temos muito
que caminhar, e os fármacos de que dispomos estão longe de apresentar
um desempenho satisfatório.
Mas as restrições e tabus envolvendo os psicoativos geraram uma
situação ainda mais perigosa. Faz-se necessário reconhecer que não po-
demos “(...) reprimir a fascinação e a curiosidade da humanidade a res-
peito de estados de consciência diferentes do normal”, como comenta
Allan Watts. Nossa avaliação favorável ou desfavorável não impedirá as
pessoas de os continuarem buscando.
Porém, a situação que se apresenta pode ser ainda mais dramáti-
ca. Recorda-nos Watts que as pessoas “não podem nem sequer pagar a
um psiquiatra para sentar e tomar conta delas enquanto experimentam,
porque isso seria ilegal.” O fim de tudo é desastroso: “O que elas irão
fazer é não ter um psiquiatra ou uma pessoa experiente presente.”
As avaliações preconceituosas e os entraves legais empurram prá-
ticas e pesquisas para a clandestinidade, ou simplesmente, cerceiam-nas
de forma estarrecedoramente ignorante. Por isso, um dos objetivos des-
te livro é propor mudanças na jurisprudência e incentivar a investigação
ampla, livre e criteriosa destes complexos assuntos, dada sua importân-
cia para o momento de crise que assola o mundo moderno.
Em reflexão contundente continua a abordar a questão Terence:

“Diante de tamanha ignorância histérica é bom lembrar que houve um tem-


po em que a dissecação de cadáveres era proibida pela Igreja e denunciada
como feitiçaria. A anatomia moderna foi criada por estudantes de medicina
que visitavam campos de batalha ou que roubavam cadáveres dos patíbulos.
Para avançar no conhecimento do corpo humano, eles se arriscaram a ser
presos. Será que devemos ser menos corajosos na tentativa de expandir as
fronteiras do conhecido e do possível?”

Agora, faremos nossas perguntas: É o Santo Daime um alucinóge-


no? O que é um alucinógeno? A definição de Hoffer e Osmond citada
por Schultes e Hofmann é tão ampla que poderíamos nos perguntar
por que a utilização de termo tão pejorativo e que dá margem a tantos
equívocos?
46 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

“Os alucinógenos são substâncias químicas que, em doses não tóxicas, pro-
duzem mudanças na percepção, no pensamento e no estado de ânimo, mas
quase nunca produzem confusão mental, perda de memória ou desorienta-
ção na pessoa, nem de espaço nem de tempo.”

Podemos defini-los igualmente como substâncias psicoativas, alca-


loides mais ou menos inter-relacionados quanto à estrutura química, que
têm a propriedade de alterar a mente. Os denominados “alucinógenos”
vegetais mais importantes estão relacionados estruturalmente com com-
postos biologicamente ativos que aparecem naturalmente no cérebro.
Um importante efeito de algumas das “Plantas Visionárias”, in-
cluindo o Daime/a Oaska, é a ativação de áreas específicas do cérebro.
Conforme informa Terence McKenna: “O que acontece com esses alu-
cinógenos à base de triptamina é uma tremenda ativação do córtex vi-
sual, de modo que eles são drogas realmente alucinógenas.” Em outro
momento, ele próprio evoca um importante dado:

“Roland Fischer, que trabalhou muito com a psilocibina antes que a lei
proibisse que ela fosse administrada a seres humanos, fez uma importante
observação no início da década de 60. Expôs um grupo de pessoas a doses
muito pequenas – tão pequenas que não chegariam a causar uma experiên-
cia psicodélica e mal provocariam algum efeito sobre os pacientes, exceto
uma ligeira excitação. Mas submeteu essas pessoas a testes de acuidade vi-
sual e descobriu que com pequenas doses de psilocibina elas passavam a ver
muito mais claramente do que no estado normal.”

É interessante que passemos da noção de aumento da acuidade


visual no aspecto objetivo, exterior, para a ideia de ativação cerebral,
que promove um transbordamento do mundo interior, produzindo, não
apenas projeções psíquicas sobre a realidade externa, como confusão
entre ambas as realidades: objetivas e subjetivas.
Não sabemos até aí como deveremos decidir: se tais “Plantas Sa-
gradas” são “visionárias”, isto é, facultam acesso a outras dimensões da
realidade, como definiam os antigos, os xamãs, mestres e padrinhos
modernos, ou se são meramente alucinógenas, manifestadoras do in-
consciente, mas, no fundo, produzindo algum tipo de ilusão. Teriam
elas ambas as propriedades, ativação produtiva das áreas visionárias
do cérebro, promovendo projeções, Percepção Extra-Sensorial (PES),
e outras capacidades e aptidões humanas, reforçando a importância
do treinamento, encontrado tanto no Xamanismo como nas Escolas
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 47

de Daime/Oaska, e em todas as tradições que utilizam sacramental e


terapeuticamente as Plantas Sagradas? A educação xamânica se faz no
sentido de instrumentar a mente do iniciando para saber interpretar,
navegar, em suma, a utilizar de maneira sadia, proveitosa e construtiva,
os estados expandidos de consciência. Isso pode fazer toda a diferença
nos resultados alcançados, no final das contas. Pode estar aí justamente
o principal segredo do bem-sucedido uso dessas ferramentas de auto-
conhecimento, individuação e mudança, por parte das igrejas e grupos
xamanistas. Os achados que narramos aqui neste livro e em outros tex-
tos já publicados apontam para contribuições muito importantes que a
Psicologia moderna, tanto a Junguiana como a Transpessoal, e outras,
têm a fazer, juntamente com as múltiplas tradições sagradas, para uma
ampla compreensão e decifração da experiência visionária.
Mesmo que a descrição de seu efeito e alcance feita por Terence
procure ser complexa e não reducionista, ele, infelizmente, permanece
na linguagem equívoca que tem rendido a tais plantas especiais uma
injusta e distorcida fama, com severas consequências para a pesquisa e
legislação sobre esse polêmico e rarefeito assunto. Diz ele acerca de sua
experiência enteogênica:

“O tema central é um dilúvio de imagens visuais que, por mais que a pessoa
tente, não consegue identificar como oriundas do subconsciente pessoal ou
coletivo. Para mim, isso era verdadeiramente fascinante. Tinha estudado
Jung a fundo e, portanto, esperava que os temas e as ideias do subcons-
ciente fossem razoavelmente homogêneos no mundo inteiro. No entanto, o
que encontrei, no auge da intoxicação provocada por estas plantas, foi um
mundo de ideias, de imagens visuais e vislumbres noéticos que não se ajus-
tavam a qualquer tradição conhecida – nem mesmo à tradição esotérica.
Ultrapassava todas elas. A coisa era tão fascinante que a adotei como guia
da minha vida.”

Observem a palavra “intoxicação”. Quando conhecemos, por expe-


riência própria, um dos mais interessantes efeitos de praticamente todos
estes Enteógenos que mencionamos aqui, de “limpar”, desintoxicar, pu-
rificar nosso organismo e alma, percebemos claramente o desserviço e
a desinformação que, sob outros pontos de vista, a maravilhosa aprecia-
ção de Terence traz. Tudo pelo simples uso desta equívoca palavra.
Fazia falta a ele uma linguagem menos contaminada pelos referen-
ciais da ciência materialista do Ocidente. Também os mapas da Psicolo-
48 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

gia Transpessoal, que amplificam o continente do antigo paradigma, a


partir do qual ele trabalha, dando respaldo e convergindo com suas ob-
servações. De qualquer modo, algo que é até mesmo valorizado pelo seu
aparente desconhecimento das contribuições alcançadas pela moderna
abordagem transpessoal, bem como pelas das antigas e novas tradições
espirituais, ele descreve universos com dimensões que impõem ruptu-
ras e uma amplificação, em face dos mapas das correntes dominantes da
Psicologia, da Psiquiatria e da Antropologia.
No geral, porém, é absolutamente impressionante que especialistas
tão competentes não percebam que os próprios termos empregados para
denominar tais plantas e as substâncias psicoativas que estão presentes
nelas já trazem embutidos uma pré-concepção distorcida a seu respeito,
e suas funções, escamoteando as suas possibilidades para beneficiar a
humanidade. É uma das enganadoras armadilhas do discurso científico
a pretensão de, ao conferir um nome a algo, ter circunscrito este objeto
em um campo de real cientificidade. Nada mais traiçoeiro. A Psiquiatria
nos mostra sobejamente isso. Ao contrário, nos casos aqui tratados dos
diversos Enteógenos, o rótulo de “alucinógenos” tem contribuído para
a confusão geral, proporcionando margem muito maior para distorções
de interpretação e para julgamentos preconceituosos.
Conforme nos recorda o xamã Agostín Guzmán: “Alucinógeno é
uma palavra que não existe na maioria dos idiomas ancestrais, existe a
palavra ver. Então se usa Enteógenos para ver.”
Entre os povos do antigo México, o estado visionário proporcio-
nado pelo uso das flores que produziam estados de êxtase se chamava
temixoch, ou “o sonho florido”. Não sabemos qual o estatuto que os so-
nhos tinham nessas culturas mas, seguramente, era bem mais impor-
tante e próximo das realidades últimas da vida e da alma humana, que
em nossa cultura moderna.
Encontramos em algumas culturas pré-colombianas um profundo
amor pelas flores, sendo o ciclo anual comparado com uma planta. Con-
forme mostra Doris Heyden,

“os monarcas do México não apenas cobravam tributo em flores, senão que
eram capazes de ir à guerra para conseguir certas plantas cobiçadas, como a
árvore de formosas e cheirosas flores chamada Tlapalizquixóchitl [Tlápatl =
Datura stramonium; Izquixóchitl = Bourreria huanita] encontrada em Tla-
chquiauhco (Tlaxiaco, Oaxaca), lugar conquistado pelos mexicanos com o
pretexto de conseguir a árvore florida”.
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 49

É impressionante a recorrência do motivo das flores e da alta im-


portância que lhes é dada entre alguns povos do México antigo. Talvez
esta relevância seja, sob certo aspecto, comparável à encontrada na Índia
antiga, nos hinos do Rig Veda dedicados ao Soma. Nesse ponto, faz-se
necessário recordar que os astecas nomeavam os cogumelos sagrados
“flores”, e até hoje os indígenas que os utilizam ritualisticamente empre-
gam esta terminologia chamando-os “carinhosamente”, como mencio-
nam Schultes e Hofmann, de “florzinhas”. Conforme nos informam estes
especialistas: “Sem dúvida Xochipilli não só representa ao príncipe das
flores senão mais especificamente o príncipe das flores embriagantes;
aqui se incluem os cogumelos, chamados na poesia náhuatl ‘flores’ ou
‘flores que intoxicam’.” Sem dúvida esta tradução merece ser questionada,
pois, seguramente, o conceito moderno de “tóxico” nada tem a ver com
os efeitos dessas Plantas Sagradas, tais como concebidos pelos astecas.
Mencionamos aqui um belo e significativo poema do sábio rei po-
eta de Texcoco, Nezahualcóyotl, herdeiro de tradições dos Toltecas. Este
é um dos seus vários poemas em que nos deparamos com exaltadas alu-
sões às flores enteogênicas, e intitula-se “Monólogo de Nezahualcóyotl”:

“Há cantos floridos: que se diga


eu bebo flores que embriagam,
já chegaram as flores que causam vertigem,
vem e serás glorificado.
Já chegaram aqui as flores em ramalhete:
São flores de prazer que se espargem,
Chovem e se entrelaçam diversas flores.

Já retumba o tambor: seja o baile:


Com belas flores narcóticas se tinge meu coração.

Eu sou cantor: flores para espargi-las


Já as vou tomando: gozai.

Dentro de meu coração se quebra a flor do canto:


Já estou espargindo flores.

Com cantos alguma vez me hei de amortalhar,


com flores meu coração há de ser enlaçado:
são os príncipes, os reis!

Por isso choro às vezes e digo:


50 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

A fama de minhas flores, o renome de meus cantos,


deixarei abandonados alguma vez:
com flores meu coração há de ser enlaçado:
são os príncipes, os reis!”

Ora, o verbo “alucinar”, significando “ofuscar, seduzir ou enganar,


fazendo com que se tome uma coisa por outra”, procede do latim (h)al(l)
lucinari, “divagar mentalmente ou falar sem sentido”. Nesta língua é si-
nônimo de verbos que significam estar louco ou delirar, sendo, portanto,
como demonstraremos a seguir, tendencioso e, sobretudo, inteiramente
impreciso e inadequado para descrever os efeitos do Santo Daime/ Ve-
getal/ Yagé/ Caapi/ Ayahuasca e de outros Enteógenos.
Se o termo alucinação é utilizado para descrever a situação mental
onde “as percepções que o percebedor acredita firmemente serem indica-
ções da existência de acontecimentos ou objetos correspondentes para os
quais outros observadores não podem encontrar bases objetivas”, os mal
denominados “alucinógenos” raramente provocam alucinações. Um xamã
jamais diria que está alucinando. Além do mais suas práticas revelam efi-
cácia ímpar, objetiva, mesmo onde os métodos da ciência oficial simples-
mente não funcionam. O xamã, por vezes, cura onde a medicina oficial fra-
cassou. Um estado alucinatório não tem efeitos terapêuticos sobre outros.
Conforme constatamos, a pessoa sob efeito do Santo Daime pode
distinguir perfeitamente suas visões, as chamadas “mirações”, da realidade
exterior, e, quando estas se lhe afiguram inevitáveis, é capaz de atribuí-las
à ação da Bebida Sagrada e interpretá-las como produtos de sua mente ou
como acesso “parapsicológico” a dimensões espirituais, isto é, como reali-
dades psíquicas ou objetivamente existentes em outros níveis de realidade.
As percepções proporcionadas pelo Daime não se referem a objetos
externos (o daimista/oaskeiro experiente sabe disto com precisão), mas,
sim, a objetos internos ou realidades suprassensíveis. As interpretações di-
ferem, mas quase nunca encontramos confusão com o mundo exterior.10

10 Encontramos em Maimônides, um dos maiores filósofos judeus, precursor do res-


surgimento da Cabala, além de médico de corpos e almas, uma esclarecedora ex-
posição: “Los tres verbos raa, hibbit y hasa, ver, mirar y contemplar, que se refieren a
‘percibir con los ojos’, se usan también en sentido figurado, para significar la percepci-
ón intelectiva”. “(...) Únicamente nos proponemos decir que, cuando en alguna parte
se haga mención de alguno de los tres verbos antes citados, se entenderá referido a la
percepción intelectiva, y no a la sensación de la vista; porque Dios no es un ser que
pueda ser percibido por los ojos corporales”.
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 51

As dificuldades de tradução neste campo configuram complexos


desafios descritos por Terence McKenna:

“É por isto que é muito difícil a quem experimenta um composto alucinóge-


no trazer de volta informações. É muito difícil transformar essas informa-
ções em linguagem; é como tentar fazer uma reprodução tridimensional de
um objeto quadridimensional.”

Na verdade deparamo-nos com uma diversa abordagem do tem-


po e do espaço, com uma visão baseada nas dimensões transpessoais e
arquetípicas da existência, em muitas das culturas antigas, tradicionais
e indígenas da atualidade. Seguramente o trabalho com os estados de
expansão de consciência promovido pelos Enteógenos pode conduzir a
perspectivas mui diferentes em relação ao referencial racional e mate-
rialista de nossos tempos e sociedades modernas.
O historiador Miguel Rivera Dorado, estudioso da religião maia,
comentando acerca de alguns de seus misteriosos e intrigantes costu-
mes, observa:

“São as práticas purificadoras, o isolamento, o jejum e as cruéis mortifica-


ções, o que favorece o necessário estado de transe, mas somente as drogas
são capazes de apagar da consciência os limites temporais, e converter em
atualidade os momentos que ocuparam acontecimentos cosmogônicos ou
teológicos essenciais. O uso de drogas é pois de suma importância na li-
turgia das culturas primitivas e as civilizações arcaicas, permite confrontar
as distintas dimensões da realidade, rompe a cadeia que ata os homens à
estreita margem de suas próprias biografias, e faz evidente e verificável a
constante presença em um âmbito social dos seres e as ações que deram
fundamento e sentido à ordem universal.”

Apesar de, mais uma vez, nos defrontarmos com uma linguagem
capaz de gerar equívocos e preconceitos acerca de práticas salutares e
adaptadas dos povos indígenas, ele percebe a revolução de paradigma
que encontramos aí, um horizonte psicológico que se radica no trans-
pessoal, observando ainda que “raros são os povos indígenas america-
nos, antigos ou modernos, dos quais não se supõe o uso regular de subs-
tâncias tóxicas”. É impressionante observarmos a frequência e regulari-
dade com que essa terminologia depreciativa aparece nas interpretações
dos mais importantes investigadores modernos.
Nossa investigação evidencia que o Santo Daime/Vegetal e outros
Enteógenos revelam a riqueza e a amplitude dos continentes e univer-
52 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

sos desconhecidos da mente humana. Embora familiares aos espiri-


tualistas de diversos tempos e lugares, tais continentes permanecem
insuspeitados ao cientista crente no paradigma newtoniano-cartesia-
no, e podem parecer “alucinações” aos que estão mais aprisionados na
consciência limitada do cotidiano sensorial, geralmente pessoas que
jamais fizeram uso responsável dessas ferramentas para expandir sua
percepção da realidade.
Stan Grof compara a descoberta das substâncias psicoativas para
a Psicologia com a descoberta do microscópio para a Medicina e do
telescópio para a Astronomia, onde novos universos da realidade se
descortinaram. Não por algum processo de aprendizagem exterior, nem
por gurus ou mestres encarnados, mas por experiência direta, própria,
gnóstica, o universo de valores e consciência do daimista/oaskeiro cons-
titui, como o universo de todo indivíduo verdadeiramente religioso que
tenha, de um modo ou de outro, tido tais experiências místicas, estra-
nho e insólito em face da visão de mundo racionalista e materialista.
A comparação é adequada, pois, quem quer que se dê ao trabalho
de investigar sem preconceitos utilizando tais ferramentas, desembo-
cará quase que inexoravelmente em uma visão transpessoal e espiritual
da psique e da realidade. Por isso, os pontos de vista defendidos por
seguidores dos caminhos dos Enteógenos acerca da vida, da alma e do
mundo, quaisquer que sejam suas linhas e tradições, são corroborados
pelos teólogos, e são os mesmos que encontramos em diversas religiões
espalhadas por todo o planeta em diversos tempos e lugares: ou são to-
dos alucinados ou precisamos rever esta terminologia.
Um exemplo importante disso é o fato de que, apesar das diferentes
e complementares ênfases em aspectos essenciais do caminho espiritual
que são encontradas nas três Escolas-Troncos que surgiram mais recen-
temente no Brasil (o Santo Daime, a Barquinha e a União do Vegetal),
temos um consenso que é bem evidente na sua visão mais geral da alma
humana. Convergindo com alguns mapas da psicologia junguiana e ou-
tros da moderna Psicologia Transpessoal, todos consideram existirem
dimensões espirituais, transpessoais, no Anthropos, em nosso ser mais
profundo, e no ambiente que nos cerca.
Algumas concepções são similares em seus aspectos essenciais: a
alma continua depois da morte; vivemos muitas vidas; temos interação
com seres dos mundos/planos sutis e podemos ser guiados por alguns
deles, mestres e seres de luz que nos ensinam; a meta desse processo cós-
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 53

mico, arquetípico, é o despertar para o Eu Superior, o Eu Divino, nossa


verdadeira e última identidade, uma Realidade cósmica transcendente,
imortal e espiritual. Tais “Realidades” para além deste mundo revalori-
zam a vida, trazendo novas perspectivas sobre o propósito da existência,
renovando nossos valores, mudando nossas crenças e prioridades.
O ponto a ressaltar aí é que muitas das percepções que surgem
sob o efeito do Daime/Vegetal/Ayahuasca/Caapi/Yagé apresentam um
cunho objetivo. Por exemplo, em 1905 o naturalista Zerda-Bayon deu
a um alcaloide da Banisteria Caapi, uma das plantas com as quais se
faz o chá sagrado, o nome de telepatina, por acreditar, por experiência
própria, que seu efeito possibilitaria a percepção a distância. Segundo
ele, a pessoa que ingere o Caapi, “vê e ouve coisas das quais não tem o
menor conhecimento; e não ouve e vê de maneira confusa, mas bem
nitidamente.”
O xamã, que utiliza o Enteógeno para diagnosticar e tratar, é bem-
sucedido e, objetivamente falando, opera curas reais em outras pessoas,
que, frequentemente, não compartilham seus códigos e suas crenças e,
às vezes, até mesmo sua língua, alcançando resultados que alucinações
jamais alcançariam. Esses fatos colocam em questão a noção de “eficácia
simbólica” proposta por Levi Strauss para explicar tais fenômenos.
O que geralmente não aparece no uso corriqueiro do termo é o
sentido complexo e, por vezes, ambíguo, que muitos especialistas lhe
atribuem. Por exemplo, Schultes e Hofmann ressaltam que “a palavra
‘alucinógeno’ é fácil de entender, ainda que seja importante nos advertir-
mos que nem todas essas plantas produzem verdadeiras alucinações”.
Examinaremos mais detidamente o conceito psiquiátrico de “alu-
cinação”, de onde provém o termo genérico “alucinógeno”, utilizado para
certa categoria de substâncias psicoativas.
Segundo Jung “a alucinação é simplesmente a projeção externa de
elementos psíquicos”. Quando a definimos como uma “percepção sem
objeto”, o conceito de alucinação traz embutida uma imprecisão radi-
cal onde se insere larga margem para o preconceito e o etnocentrismo,
insustentáveis a partir das contribuições da Psicologia Junguiana, das
críticas da Antipsiquiatria e da Antropologia, da Psicologia Transcultu-
ral, dos achados da Etnopsicologia, da Etnopsiquiatria e da Psicologia
Transpessoal. A visão de realidade se transforma radicalmente em fun-
ção da cultura na qual se insere, variando, por exemplo, na consideração
da relevância da dimensão espiritual para a vida humana.
54 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

A consciência ocidental, de onde emerge a perspectiva a partir


da qual surge o conceito de alucinação, está condicionada histórica e
culturalmente. Jung denuncia não apenas a tendência da Psicanálise e
da Psiquiatria tradicional de verem a psique exclusivamente à luz da
patologia, bem como a propensão reducionista de ambas no sentido de
aplicarem seu saber em campos inadequados, tais como nas esferas da
arte e da religião.
De igual modo, ao mostrar a tendência indiscutível da Psiquiatria
para interpretar como doença mental todos os tipos de comportamento
divergente ou extraordinário, o grande antipsiquiatra Thomas Szasz le-
vanta alguns pontos de sumo interesse para nossa reflexão.
Comparando o método de verificação de insanidade utilizado pelo
psiquiatra ao método do inquisidor medieval para verificar a feitiçaria,
ele evidencia a índole colonizadora da psiquiatria e denuncia as práticas
opressivas e destrutivas da dignidade pessoal e da liberdade política a
partir do famigerado e não científico, mas, sim, cultural e socialmente
determinado conceito de doença mental.
Da mesma forma que na época da caça às bruxas havia pessoas que
perturbavam ou incomodavam os outros, por exemplo, pessoas cujas
práticas religiosas diferiam da maioria, candidatos perfeitos à acusação
de bruxaria, igualmente hoje, indivíduos que, de um modo ou de ou-
tro desafiam as convenções, o chamado senso comum, ou vivenciam
estados inusuais do ser desconhecidos do psiquiatra convencional e de
seus cartesianos referenciais, são passíveis de sofrerem os depreciativos
rótulos, configurando o estigma terrível de “doentes mentais”. Muitos
místicos e revolucionários “desviantes” têm sido vítimas desta classifi-
cação. Aqui temos uma parca ideia do solo movediço onde se procura
alicerçar o conceito de alucinação.
Examinaremos agora a opinião do antropólogo Michael Harner:

“É paradoxal que com o redescobrimento destas substâncias químicas se


haja relacionado seus efeitos com a loucura e se as haja denominado drogas
em seu sentido pejorativo, enquanto os xamãs que as tomaram falam delas
como medicinas e dizem que as metamorfoses que produzem põem o indi-
víduo em comunicação com o espírito. Precisamente o valor que tem estu-
dar o uso destas substâncias químicas nas chamadas sociedades primitivas é
que se poderá encontrar uma forma de ir mais além do superficial para uma
compreensão mais essencial do fenômeno que nós, com nossa limitada con-
cepção do racional, tachamos demasiado rápido, talvez erroneamente, de
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 55

irracional, em lugar de compreender que estas experiências são revelações


de uma primordial atividade do espírito, (...).”

Descrevendo o efeito dos Enteógenos, Harner alude com proprie-


dade à questão de que as visões por eles produzidas são a causa de re-
ceberem a denominação “alucinógenos”, sem que isto signifique esforço
algum para se distinguir a fantasia da intuição, a percepção de realidades
da confusão entre mundo exterior e mundo interno. Em suma, é funda-
mental que estejamos mui atentos para estes pontos ao ensejarmos uma
apreciação mais exata e imparcial em face da questão dos Enteógenos.
Stanislav Grof denuncia claramente o desastroso engano que im-
pera na Psiquiatria:

“Os critérios usados para definir saúde mental – senso de identidade, reco-
nhecimento do tempo e do espaço, capacidade de perceber o meio ambien-
te, e outros – exigem que as percepções e concepções do indivíduo estejam
de acordo com o arcabouço cartesiano-newtoniano. A visão de mundo car-
tesiana não é apenas o mais importante referencial: ela é considerada a única
descrição válida da realidade. Todo o restante é considerado psicótico pelos
psiquiatras convencionais.”

Surge em 1979, após a discussão de múltiplas denominações e pos-


sibilidades, a proposta de um termo mais preciso em sua formulação:
Enteógeno. Cinco especialistas convergem para uma expressão que pa-
rece encerrar, sem abarcar todo o seu alcance, o significado do que é
essencialmente um Enteógeno:

“Em grego, entheos significa literalmente ‘deus (theos) dentro’, e é uma pa-
lavra que se utilizava para descrever o estado em que o indivíduo se encon-
tra quando está inspirado e possuído pelo deus, que entrou em seu corpo.
Se aplicava a transes proféticos, a paixão erótica e a criação artística, assim
como a aqueles ritos religiosos em que os estados místicos eram experimen-
tados através da ingestão de substâncias que eram transubstanciais com a
deidade. Em combinação com a raiz gen-, que denota a ação de ‘devir’, esta
palavra compõe o termo que estamos propondo: enteógeno.”

A ideia do advento do deus ou do sagrado em nós, dentro de nós,


traduz de maneira mais neutra e essencial o sentido primeiro com o
qual têm sido utilizadas milenarmente essas “plantas dos deuses” na re-
ligião e no xamanismo.
56 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

São esses cinco pesquisadores, Carl A. P. Ruck, Jeremy Bigwood,


Dany Staples, Jonathan Ott e R. Gordon Wasson, que apresentarão sua
conclusão sobre o assunto:

“Como puede un término semejante permitirnos comentar con imparcialidad


esos trascendentes y beatíficos estados de comunión con las deidades que, se-
gún lo han creído muchos pueblos, la gente o los chamanes pueden alcanzar
mediante la ingestión de lo que solemos llamar ‘alucinógenos’?”11

Conforme Schultes e Hofmann sugerem “(...) não há uma só pala-


vra que delimite este grupo tão variado de plantas psicoativas”.
Na verdade, os nomes dados pelos sábios do passado e do presente
a essas especiais Plantas Sagradas, bem como as conceituações de algu-
mas de suas propriedades fundamentais ressaltam o caráter sacramental
e mágico, mui distantes da noção de “alucinógeno” ou de “droga” com
que se busca interpretá-las atualmente. Os termos “Vide das Almas”,
“Sêmen do Sol”, “Trombeta do Juízo”, “Flores dos Deuses”, “Sementes
dos Espíritos”, “Caminho para os Antepassados” etc., expressam, de ma-
neira inequivocamente constante, seu caráter sacramental e espiritual.
Felizmente o termo que, em nosso entender, é o mais apropriado
para descrever um grande conjunto de fenômenos que circundam tais
plantas, alcançou aceitação também entre outros grandes conhecedores
do assunto que adotam o conceito de Enteógeno como o mais apropria-
do, até agora, para descrever o uso e os efeitos de tais plantas. Este termo
ganha mais e mais adeptos entre os cientistas modernos peritos nesse
rarefeito campo do saber, e penetra facilmente no território dos mestres,
xamãs, padrinhos e enteonautas que perceberam imediatamente sua
melhor adequação aos fatos dos quais têm experiência diretamente.
Ensina-nos Carlos Castañeda, discorrendo sobre a autenticidade
das transformações ocorridas com o uso das Plantas Sagradas, e preci-
sando uma importante diferença entre os Enteógenos e as drogas:

“Um guerreiro é um caçador imaculado que caça poder; não é bêbado nem
doido, nem tem tempo ou disposição para fingir, ou mentir a si próprio,

11 Trad.: “Como pode um termo semelhante permitir-nos comentar com imparciali-


dade esses transcendentes e beatíficos estados de comunhão com as deidades que,
segundo acreditaram muitos povos, as pessoas ou os xamãs podem alcançar me-
diante a ingestão do que costumamos chamar de ‘alucinógenos’?”
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 57

ou fazer um movimento errado. A questão é muito decisiva para isso. Ele


está arriscando sua própria vida ordenada, que ele levou tanto tempo para
ajustar e aperfeiçoar. Ele não vai jogar tudo isso fora cometendo um erro de
cálculo tolo, tomando uma coisa por outra.”

Fica evidente aí a condição implacavelmente diversa dos xamãs,


mestres e padrinhos que utilizam tais plantas e pessoas alucinadas ou
em busca de alienação.
A partir disto, vamos examinar algumas das misteriosas proprie-
dades de uma dessas Plantas Metagnômicas (como sabiamente conside-
ra o chá medicinal enteogênico Ayahuasca, o eminente jurista Domin-
gos Bernardo da Silva Sá), a Sagrada Bebida, o Enteógeno denominado
entre nós Santo Daime, Vegetal, Yagé, Caapi, Oaska etc.
Na primeira versão que fiz do texto, apresentado no Seminário In-
ternacional sobre Abuso de Drogas, organizado pelo CONFEN – Conse-
lho Federal de Entorpecentes – em Salvador, 1996, tinha então, 10 anos
de experiência e investigação participante com ele, que foi o ponto de
partida de toda esta pesquisa. Agradeço ao amigo, o antropólogo Edward
MacRae, o convite e o estímulo. Mais tarde, na sua conclusão, em 2005:
foram 19 anos de confirmações e ampliação dos tópicos, com mais expe-
riência, maior trabalho de campo e mais extensa consulta bibliográfica.
Apesar de seu uso ser muito antigo, renasce no Brasil, no início do
século XX, aportando diferentes metodologias de trabalhos espirituais,
canalizadas e desenvolvidas por mestres brasileiros, sob os nomes de
Santo Daime/Barquinha/União do Vegetal, constituindo Escolas espi-
rituais que hoje foram transportadas, replantadas e reinterpretadas em
diversos lugares do Brasil e do mundo.
Estes três grandes brasileiros, mestres, pioneiros e fundadores dos
principais troncos de metodologias não indígenas, de onde se derivam
as instituições brasileiras da atualidade, Mestre Irineu, Frei Daniel e
Mestre Gabriel, utilizaram este Enteógeno de maneira diversa e original
em relação às formas xamânicas com que era empregado anteriormente,
no Brasil e em outros lugares da América. Existe uma ruptura e inova-
ção cultural trazendo novas formulações e tecnologias. Estas inauguram
uma nova era de penetração do Enteógeno nos grandes centros urbanos,
com as consequentes mudanças nos seus usos tradicionais e locais.
Hoje, após fundar, em 1989, a Igreja da Barquinha do Rio de Janeiro
(a primeira filial da tradicional Igreja acreana da “Barquinha”, ou “Centro
58 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz”, fundada em 1945


e reconhecida como de utilidade pública), e ter canalizado uma quarta
nova tecnologia de utilização dos Enteógenos absolutamente inédita e
ímpar, a revolucionária proposta inter-religiosa e espiritual/terapêutica
da Arca da Montanha (que, apesar de fundada também em 1989, ficou
na cápsula do tempo e renasceu em 1997), vejo a expansão dos Enteóge-
nos nas grandes cidades como opção saudável ao abuso e à dependência
de drogas, ao alcoolismo, bem como remédio para a violência, a aliena-
ção, a destrutividade e a corrupção, no indivíduo e na sociedade.
A sede de estados expandidos de consciência é, não apenas remé-
dio em relação à “normose” e o que nos impulsiona para a meta de de-
senvolvimento pleno da alma humana, mas também a chave de muitos
males e conflitos com que se depara, não apenas o homem urbano da
atualidade, mas toda a humanidade, configurando questão humana uni-
versal, presente em todas as épocas e sociedades sob múltiplas formas.12
Este estudo principiou com os resultados da investigação-partici-
pante que efetuei sobre o Santo Daime. Em seguida, comparei os dados

12 Segundo Pierre Weil, psicólogo pioneiro fundador e reitor da Unipaz, “a normose


pode ser definida como o conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, há-
bitos de pensar ou de agir, que são aprovados por consenso ou pela maioria de uma
determinada sociedade e que provocam sofrimento, doença e morte”. Conforme ele
formula o conceito que o auxiliou a trabalhar-se, a normose “(...) é algo patogênico
e letal, executado sem que os seus autores tenham consciência de sua natureza pa-
tológica. (...) A normose é, portanto, uma normalidade doentia.”
No momento em que a criança e o adolescente procuram adaptar-se à imagem que
os pais têm deles, temendo não corresponder às suas expectativas, nasce a normo-
se. Nas escolhas de profissões, de cônjuges, de valores, as influências dos pais, da
sociedade, da época, dos grupos aos quais pertencemos ou desejamos pertencer, se
fazem presentes e são, por vezes, avassaladoras. O medo de ser excluído, rejeitado
pelo grupo, “de não ser considerado normal, de não ser visto como uma pessoa de
bem no meio em que se vive”, resulta em sofrimentos e doenças. Também na esfera
da ciência, a aceitação, o compartir de certas crenças e paradigmas é fundamental
para que se possa pertencer a um grupo respeitado e ter melhores chances de en-
contrar apoio para suas ideias e pesquisas.
Em nossos tempos, mais do que nunca, percebemos os desastres que o alienado ci-
dadão “normal”/normótico pode promover em nossas sociedades. Pierre enuncia
uma das decisivas dimensões em relação às quais urge uma desalienação do homem
moderno. Poderíamos dizer que esta é uma chave para ajudar muitos buscadores
a se engajarem na aventura interior do autoconhecimento: “Tomar consciência da
normose e de suas causas constitui a verdadeira terapia para a crise contemporânea”.
Cap. II – A Nova Aurora de uma Antiga Manhã 59

acerca do Santo Daime/Vegetal/Yagé/Caapi/Ayahuasca com os de ou-


tras Plantas Sagradas, que, a partir das conclusões a que cheguei, passei
a considerar igualmente enteogênicas. Nelas me deparei com as mesmas
propriedades misteriosas que descobri no Santo Daime.
Os dados em que me fundamento são derivados basicamente de
minha experiência direta com estas plantas, sempre que me foi possível.
Enquanto ferramentas expansoras de consciência, catalisadoras de pro-
cessos psíquicos profundos e avançados, tais plantas apresentam efeitos
absolutamente únicos na mente humana, e considero as experiências
com elas indispensáveis para sua mais precisa e ampla avaliação.
Este trabalho também se baseia em pesquisa de campo que realizei
no Brasil (Rio de Janeiro e Amazônia: Rio Branco e Céu do Mapiá), no
México (Palenque, Huautla de Jimenez, Morelia etc.) e em Porto Rico.
Alguns dos dados foram obtidos entrevistando xamãs, mestres e padri-
nhos que trabalham com essas plantas.
Igualmente a pesquisa bibliográfica, que considero não apenas in-
tuída mas, principalmente, guiada por inteligências superiores; textos
que navegam nas contracorrentes das abordagens científicas convencio-
nais, e que vieram parar em minhas mãos, sempre de maneira sincronís-
tica, tem papel fundamental neste percurso.
Mas talvez um fator central tenha sido o fato de que, para mim, fo-
ram decisivos todos os processos pelos quais passei durante este período
de investigação e orientação interior, a “Sagrada Torrente da Vida”, nos
quais as próprias plantas me ensinaram, auxiliando-me a encontrar um
fio condutor capaz de nos guiar nos labirintos das suas infinitas possibi-
lidades de aplicação.
Minha meta é que esta contribuição e esforço de síntese de dados
possam frutificar em uma nova aurora de pesquisas nesse campo, dos
mais promissores para o terceiro milênio: a investigação das proprieda-
des terapêuticas, médicas e psicológicas, pedagógicas e espirituais das
sagradas Plantas Mestras ou Plantas Professoras.
Apresento aqui igualmente o seu papel fundamental na explora-
ção e descrições de novas fronteiras da realidade, convergindo com a
implacável mudança de paradigma que se impõe na atualidade em face
das novas pesquisas e dados aportados por investigadores abertos, arro-
jados, trabalhando com liberdade e imparcialidade.
Espero também contribuir para o aparecimento e o fortalecimen-
to de uma legislação nacional e internacional com maior embasamento
60 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

científico, mais inteligente, consciente e apropriada à complexidade dos


problemas tratados. Sem confundir o remédio com o veneno, fica estabe-
lecida de maneira cabal a diferença entre as drogas, substâncias isoladas
ou sintetizadas de acordo com conhecimentos e objetivos atrelados aos
estados ordinários de consciência, sob muitos aspectos, perigosas, noci-
vas, com maior índice de efeitos destrutivos aos humanos, e os Enteóge-
nos que, enquanto plantas visionárias, são em essência construtivamente
transformadoras, capazes de curar, guiar e trazer a iluminação espiritual.
Após esta longa investigação, estou convencido de que os benefí-
cios aportados por tais Plantas, sobejamente comprovados através dos
testemunhos e exemplos de vida de seus usuários, são um presente mis-
terioso de Deus e da Mãe Natureza, capazes de operar as mudanças espi-
rituais, psicológicas e sociais indispensáveis para a renovação de nossas
decadentes sociedades atuais.
Aos Enteógenos e seus Espíritos-Guardiões, bem como aos gran-
des Mestres brasileiros que desbravaram este caminho sagrado, Mestre
Irineu, Frei Daniel e Mestre Gabriel, fundadores do Santo Daime, da
Barquinha e da União do Vegetal, respectivamente, dedico este ensaio.
Agradeço especialmente com muito amor e gratidão aos Padrinhos
Sebastião Mota, Luís Mendes e Manoel Hipólito de Araújo, meus prin-
cipais mestres encarnados nos caminhos do Santo Daime, no primeiro
ciclo de formação e estudos.
Com muito carinho, agradeço também ao Padrinho Antônio Geral-
do Filho e ao Mestre Muniz, como mestres amigos e fornecedores de im-
portantes sementes para a Arca, meu campo permanente de investigação.
No segundo ciclo, estendo o agradecimento a todos os xamãs,
curandeiros e mestres que trabalharam e trabalham com estas e outras
plantas enteogênicas em todo o mundo: a Jurema, o Wachuma (São Pe-
dro), o Peiote, a Iboga e outras plantas extraordinárias, consideradas
igualmente sagradas em suas culturas. Em minhas iniciações a algumas
destas outras Plantas Sagradas, agradeço especialmente a Yatra, Agostín
Guzmán, Marina Villalobos, Reverendo Jackson e outros amigos, por
terem contribuído de um modo ou de outro para minha limitada expe-
riência inicial nesse vasto e ignoto campo.
III
AS PROPRIEDADES MISTERIOSAS DAS PLANTAS
SAGRADAS

________________________ u ____________________________

a) Vinho Novo em Odres sempre Renovados

“Os surpreendentes efeitos destas plantas capazes de alterar a mente


são com frequência inexplicáveis e misteriosos.”
Schultes &Hofmann

“O Yagé é nossa planta sagrada. É o rei dos vegetais e a mãe de todas


as plantas medicinais. O Yagé é um presente de Deus, e com ele
aprendemos nossa sabedoria, conhecemos as plantas medicinais e os
remédios da natureza. Com o Yagé fazemos o diagnóstico de muitas
enfermidades e com o Yagé podemos curar ou encontrar a cura de
muitas delas.”
(Código de Ética da Medicina Indígena da Amazônia Colombiana
– Encontro de Taitas – União de Médicos Indígenas Yageceiros da
Amazônia Colombiana.)

“Cristo, trazendo o vinho que regozija o coração do homem, provoca


na alma esta sóbria embriaguez que eleva as disposições do coração
das coisas que passam ao que é eterno. Aquele que provou esta
embriaguez troca o que é efêmero pelo que é eterno.”
S. Gregório de Nissa

A primeira pergunta que surge ao observador desejoso de enten-


der o complexo fenômeno do uso dos Enteógenos em nossos dias é: Por
que uma pessoa busca e se sujeita a lançar-se num não necessariamen-
te prazeroso mergulho no desconhecido interior, correndo os riscos de
passar por sofrimentos, mal-estar e obstáculos sem conta, mui distantes
das facilidades pressupostas pelas pessoas que associam tais práticas à
decaída drogadicção, que visa fuga, alienação e entorpecimento? Exis-
tem adeptos de outras vias espirituais que julgam este um caminho fácil
de se atingir estados do ser, que santos e yoguis levam muito tempo de
práticas e esforços para alcançar. Mas é preciso motivação muito forte
62 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

para fazer deste mergulho desafiador, sempre imprevisível, um ritual


repetido amiúde, e um caminho espiritual de profunda seriedade, de ra-
dicais transformações da personalidade e de ainda insuspeitado alcance
terapêutico e evolutivo.
Esta é, com segurança, uma cabal diferença entre tais Plantas Sa-
gradas e as drogas: não existem promessas fáceis, tampouco fuga dos
conflitos e desafios psicológicos, tornando difícil um uso exclusiva-
mente hedonista. É necessário pagar o preço do autoconhecimento: o
trabalho com tais plantas é severo e pouco passível de harmonizar-se
com propostas hedonistas, de alienação e de manipulação. Daí minha
descrença nas possibilidades de uso recreativo de tais Enteógenos, que
alguns amigos antropólogos defendem.
Como reflete Jung, em uma fase já avançada de sua vida: “O ines-
perado e o inabitual fazem parte do mundo. Só então a vida é completa.
Para mim, o mundo, desde o início, era infinitamente grande e inabar-
cável.” Será que, conforme sugere o etnobotânico Terence McKenna, “o
diálogo com o Desconhecido é o que faz valer a pena repetir essas expe-
riências”? Certamente esse fator tem um alcance imenso na motivação
para o uso de tais Plantas Sagradas. Porém, como verificaremos ao longo
de todo este estudo, existem muitos outros fatores de peso, igualmente
decisivos na questão.
Um elemento, indissociável do que acabamos de mencionar anterior-
mente, é o fato de o Enteógeno funcionar de maneira muito mais similar ao
remédio homeopático do que à medicação alopática, que atua eliminando
sintomas diretamente. Não que ele não tenha, de maneira até bastante fre-
quente, a propriedade de eliminar sintomas psíquicos e psicossomáticos
de maneira espetacular. Mas num salto de consciência, complexidade e
sofisticação, com maior segurança e eficácia que as drogas alopáticas, as
plantas e alguns de seus derivados farmacológicos têm um resultado sinto-
nizado com as perspectivas não reducionistas da psicoterapia atual.
Informam Schultes e Hofmann:

“O uso dos alucinógenos como ajuda na psicanálise e na psicoterapia está


baseado em efeitos contrários aos que produzem as drogas psicotrópicas
conhecidas como tranquilizantes. Estas últimas tendem mais a suprimir os
problemas e conflitos do paciente, fazendo-os aparecer menos sérios e im-
portantes do que são, enquanto os alucinógenos trazem estes conflitos à luz
e os tornam mais intensos, de tal forma que podem ser mais claramente
reconhecidos e tornar-se acessíveis à psicoterapia.”
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 63

É muito interessante que os Enteógenos utilizados espiritualmente


em cerimônias, de certa maneira, também processam e tratam terapeu-
ticamente o material que emerge: eles facilitam a elaboração da Sombra
e dos complexos por meio da emersão do Si-Mesmo e dos sistemas reli-
giosos de interpretação das experiências fornecidos pelos xamãs, sacer-
dotes, mestres e padrinhos.
Assim, a utilização dos Enteógenos se dá, igualmente, no sentido
contrário à alienação em face dos conflitos da existência. Esse desafio e
missão evolutiva conquistam a muitos que realizam a opção decisiva e
definitiva pelos Enteógenos e dizem não às drogas. Isso explica grande
parte das persistentes dedicação e coragem que os enteonautas madu-
ramente apresentam em face dos desconfortos dos Enteógenos. Nada
mais distante do puro hedonismo proporcionado pela maioria das dro-
gas, promotoras de dependência, degradação, redução de consciência,
destrutividade, deterioração ética e danos à saúde.
Não estamos aqui propondo nenhuma condenação do prazer em
nossos tão sofridos dias por meio de censura ao uso recreativo de psi-
coativos. A humanidade também tem feito isso há milênios. O álcool
e outros preparados utilizando plantas têm sido usados desta manei-
ra, mais hedonista, em festividades e outros contextos sociais que são
encontrados em diversos tempos e culturas. Neste ponto, afinamo-nos
com Hipócrates, que recomendava “ceder à ebriedade uma ou duas ve-
zes, de quando em quando”, considerando a mudança de consciência, a
alegria e o relaxamento proporcionados por ela, não apenas como práti-
ca saudável mas, como interpreta o Dr. Antonio Escohotado, como algo
terapêutico por si mesmo. Porém, é forçoso reconhecer que a mudança
de consciência que esses psicoativos promovem é bem menos impor-
tante que a catalisada pelos Enteógenos.
Não significa isso igualmente, que os Enteógenos não proporcio-
nem também experiências de elevado e profundo prazer espiritual. Seus
seguidores não são masoquistas. Muitos são pessoas esclarecidas, lúci-
das, jovens, adultos ou anciãos, saudáveis psicologicamente. Pessoas lú-
cidas em busca de sua felicidade maior, que perceberam não se confun-
de necessariamente com o prazer mais imediato e materialista.
Nosso propósito aqui é apenas marcar a diferença de modo que,
não apenas as Plantas Sagradas sejam reconhecidas e valorizadas em
seu estatuto único, peculiar, em suas incríveis e revolucionárias pro-
priedades psicológicas, como abrir o caminho para que um urgente
64 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

campo de investigação e experimentação possa estabelecer-se a partir


e em torno delas.
Encontramos na Bíblia (São Lucas 5,27-39) um ensinamento de
Jesus que cabe perfeitamente como uma descrição da capacidade desa-
lienante dos Enteógenos. Ao explicar o poder do jejum para produzir
experiência de religação com o Princípio Crístico, o Esposo, o Eu Di-
vino em nós, Ele entremostra o mistério do “comer” e do “beber” na
presença de um grande Mestre, que representa o Esposo, como uma
prática igualmente espiritual, inteiramente válida, talvez uma sublime e
misteriosa cerimônia esotérica de antigas tradições sagradas.
Propondo uma separação, uma discriminação entre o uso da “rou-
pa nova” e o da “roupa velha”, a anterior e a nova identidade do buscador,
as “roupagens” mais antigas e as mais recentes das Verdades Eternas,
através das tradições sagradas de diversos tempos e lugares, Jesus nos
previne que não devemos voltar para trás no caminho espiritual: a re-
novação e o progresso dele fazem parte, dizendo-nos que “(...) ninguém
põe vinho novo em odres velhos; do contrário o vinho novo arrebentará
os odres e entornar-se-á, e perder-se-ão os odres; mas o vinho novo
deve-se pôr em odres novos, e assim ambos se conservam”, adverte-nos
que o “vinho novo” das experiências diretas e renovadas com Deus em
nossa alma deve encontrar “novos odres”, formulações novas, para se-
rem devidamente contidas e expressas.
Essa é uma característica da Arca da Montanha, a Escola espiritu-
al-terapêutica inter-religiosa enteogênica que fundei: através do esva-
ziamento meditativo da mente, renovar nossos “odres”, nossos sistemas
de referência, para receber o “vinho novo” da experimentação viva com
a psique, com o Si-Mesmo; buscar, sem fronteiras, nas várias tradições
espirituais de diversos tempos e lugares, nos avanços da ciência moder-
na, bem como em nosso mundo interior, novas formulações para conter
o “vinho novo” da experiência direta, que, sem enquadramentos exces-
sivos e inibidores, vai sempre sendo renovada.
Denunciando o apego às antigas formas e costumes religiosos, Je-
sus mostra as dificuldades que apresentavam seus ouvintes em desejar
compreender e aceitar o “vinho novo” dos seus ensinamentos: “Demais,
ninguém que bebeu do vinho velho, quer já do novo, porque diz: O
vinho velho é melhor.” Descreve assim a nossa falta de arrojo em nos
lançarmos na aventura de busca do diálogo interior entre o ego e o Si-
Mesmo, de conversarmos com Deus aqui e agora, de uma interação viva
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 65

e renovada com mais profundas dimensões de nós mesmos, em nossa


mente e em nosso coração.
Só assim nos arriscamos a ouvir Suas novas mensagens, capazes
de tocar nossa vida atual, de penetrar em nossas questões mais cruciais
e de nos transformar radicalmente: novas “roupas”, novas “vestes” para
os mesmos eternos ensinamentos espirituais; novos “vinhos”, novos
“odres”. É exatamente isso que representa o ressurgimento de caminhos
espirituais que utilizam Enteógenos em nossos dias em relação a algu-
mas religiões atuais que perderam a vitalidade diante de um homem
moderno desconfiado e descrente em uma vida espiritual árida, esva-
ziada de experiências vivas.
O “vinho novo” de uma nova consciência da espiritualidade humana
e da ecologia trazido pelos Enteógenos, capaz de converter materialistas
céticos em devotos fervorosos e respeitadores da natureza, é um desafio a
ser confrontado, pois neles podemos encontrar remédio para alguns dos
maiores problemas das sociedades de nossos dias: a corrupção, a droga-
dicção, a violência, a criminalidade, a poluição e a degradação ambiental.
Após o leitor percorrer este estudo, espero que perceba como evi-
dente que toda essa argumentação é de importância cabal para enten-
dermos o problema das drogas e a diferença abissal que existe entre elas
e os Enteógenos.
Conforme conclui um dos pioneiros nas pesquisas sobre expansão
de consciência, Ralph Metzner (Doutor em Psicologia e pós-doutorado
em Psicofarmacologia), após laboriosas investigações:

“Portanto, se as drogas e as plantas psicodélicas (enteogênicas, alucinóge-


nas) expandem e incrementam a consciência, além de serem provedoras de
autoconhecimento, nada seria mais judicioso do que estabelecê-las como os
antídotos lógicos e naturais da constrição da consciência, das obsessões e do
efeito narcótico produzido pelas drogas que viciam.”

Temos hoje comprovação, não apenas através dos bem-sucedidos


trabalhos de terapia para drogadicção e alcoolismo utilizando a Ayahuas-
ca, como o pioneiro e eficaz trabalho da clínica peruana Takiwasi, ou
o trabalho arrojado de Mestre Muniz no Acre, mas também em cada
igreja, templo ou comunidade sérios do Brasil e de todos os lugares do
mundo que utilizem o Santo Daime/Vegetal com propósitos religiosos,
onde encontramos inúmeros casos de recuperação do abuso de drogas e
de álcool através da utilização do Enteógeno.
66 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

O mesmo ocorreu com o trabalho revolucionário do médico me-


xicano Salvador Roquet, e acontece amiúde com outras vias espirituais,
antigas ou modernas, como a Igreja Nativa Americana, que utilizaram
ou utilizam outros Enteógenos, com igual sucesso no combate ao abuso
de drogas e do álcool. Observa o grande etnomicologista R. Gordon
Wasson que “(...) plantas que inspiraram uma efusão extraordinária de
poesia, de música, de dança, dificilmente podem ser estupefacientes,
tampouco narcóticos, nem excitantes, nem podem provocar letargia.”

b) As Propriedades Misteriosas do Santo Daime – O Avançado e


Decisivo Salto Qualitativo em Relação às Drogas

“É possível que o complexo yagé/ayahuasca da América do Sul seja


o maior culto psicodélico do mundo. Desde o Panamá até a Bolívia,
desde a costa do Pacífico até o interior do Brasil, grande parte do povo
procura ter estas visões, sendo que a reputação dos xamãs depende
da qualidade de suas bebidas, canções e curas. Como todas as práticas
xamanísticas, o culto da ayahuasca é altamente individualizado. Por
isso, a mera análise da droga em laboratório não destruirá a aura de
verdadeiro mistério que existe em torno da ayahuasca.”
Terence McKenna

“Considere nosso dilema neste planeta. Se a expansão da consciência


não estiver no futuro humano, que tipo de futuro ele será? Para mim,
a posição pró-psicodélicos é mais fundamentalmente ameaçadora
para o Sistema porque, quando se pensa total e logicamente, ela é uma
posição antidrogas e antivício.”
Terence McKenna

“Louvamos os curadores da terra,


Os que conhecem os segredos das ervas e das plantas;
Aos curadores o Anjo da Terra
Revela seu antigo conhecimento.
O Senhor criou remédios da própria terra,
Que o sábio empregará.”
(O Evangelho Essênio da Paz – Edmond Bordeaux Szekely)

“Como podiam explicar-se os surpreendentes efeitos destas poucas


plantas psicoativas que os punham em comunicação com o mundo
espiritual? Elas foram a residência de divindades e outras forças
espirituais. Algumas foram consideradas deuses.”
Schultes & Hofmann
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 67

Conforme vimos até agora, existem imensas diferenças entre es-


sas Plantas Sagradas expansoras de consciência e as drogas, o que não
justifica em absoluto o emprego do termo alucinógeno para referir-se a
elas. Sua história de utilização em seres humanos é muito maior do que
a de quaisquer drogas receitadas por médicos e compradas livremente
nas farmácias; não existe familiaridade entre os Enteógenos e as drogas
destrutivas, lícitas e ilícitas, que podem gerar abuso, dependência e mor-
te. A diferença não é apenas de dosagem, de medida, mas é, sobretudo,
qualitativa. Pesquisadores conscientes como Terence McKenna ou Ralph
Metzner, apresentam uma posição com a qual concordo inteiramente.
Diz Ralph:

“Depois de perceber a existência de inúmeras tradições que fazem uso res-


peitoso dos alucinógenos com propostas xamanísticas que remontam aos
tempos pré-históricos, fiquei muito mais interessado pelas plantas e cogu-
melos que já possuem uma longa história de utilização do que pelas novas
descobertas de drogas poderosas, cujo uso aliás envolve quase sempre riscos
desconhecidos. E comecei também a entender o ressurgimento do interesse
pelo xamanismo e pelas plantas sagradas como parte de um esforço mun-
dial em prol do renascimento de um tipo de concepção na qual existe uma
conexão íntima entre o universo espiritual e o mundo natural.”

Para descrevermos as propriedades hipercomplexas destas Plantas


dos Deuses, temos de navegar em águas profundas da realidade psíquica, e
necessitamos de instrumentos ímpares para essa navegação. A experiência
direta, mapas das tradições sagradas, das psicologias junguiana e transpes-
soal, podem nos ser úteis para sua compreensão. Porém, não alcançamos
ainda os porquês últimos de tais questões, como, por exemplo, além do Si-
Mesmo, quem, ou qual(is) a(s) fonte(s) da(s) inteligência(s) superior(es)
que ensina(m) e guia(m) o processo dentro das experiências promovidas
por tais plantas, pois nossa ciência nesse campo ainda engatinha.
Expondo algumas ideias sobre a transformação da realidade que
os psicoativos propiciam, Terence McKenna nos fala do desconhecido
superior, que, em nossa interpretação preliminar, se refere às regiões
supraconscientes da psique que podemos acessar pela experiência:

“Os contornos do inexprimível começam a definir-se em sua percepção, e, em-


bora não se possa dizer muito acerca do inexprimível, este tem o poder de in-
fluenciar tudo o que se faz. Vive-se com ele; ele é a evocação do desconhecido.
O desconhecido pode ser incorporado ao ego, e muitas formas de alienação
podem ser curadas. É por isso que a palavra alienígena tem tantas conotações.”
68 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Não apenas visões profundamente transformadoras mas também


“insights”, capazes de equilibrar e trazer novas perspectivas no autoco-
nhecimento e na interpretação do que nos cerca, auxiliam em mudanças
decisivas e radicais na personalidade, com todas as implicações tera-
pêuticas, sociais e ecossistêmicas que esse fato acarreta. A integração do
“outro”, do inconsciente, da alteridade dentro de nós, é a chave para a
saúde e o equilíbrio físico-psico-espirituais.
Feito este preâmbulo, tentarei enumerar algumas das proprieda-
des, que denominei “misteriosas”, por razões que ficarão claras ao longo
da exposição, da Santa Bebida, preparada com duas Plantas Sagradas, a
Ayahuasca e o Caapi/Yagé/Santo Daime/Vegetal, comparando-a, sempre
que possível, com outros Enteógenos, similares nas dimensões enigmáti-
cas de seus efeitos, que descreverei a seguir. A divisão é didática, pois, no
nível da experiência, tais propriedades estão muitas vezes entrelaçadas.

1- O caráter pedagógico da experiência – a orientação proveniente


de uma “Inteligência Superior”; as fantásticas dimensões do real,
dentro e fora de nós

“A primeira vez que um homem ashaninca me disse que aprendemos


as propriedades medicinais das plantas absorvendo uma mistura
alucinógena, cri que se tratava de uma brincadeira.”
Jeremy Narby

“A ciência do Yagé não é fácil de aprender porque é mui delicada e de


muito sofrimento; toca cuidar-se tanto nas comidas como na bebida,
guardar-se e obedecer ao que ele manda. A mim me dá riso desses
aprendizes que tomam um pouquinho de Yagé, ou que tomam um ou
dois meses e já creem que saem médicos. Para aprender se necessitam
muitos anos, e à medida que se vai tomando, se vai aprendendo.
Aos aprendizes que não possam fazer assim, o mesmo que toda a
comunidade, recomendo-lhes que continuem tomando para purgar-se,
para viver alentados.”
Taita13 Laureano Bezerra

“Essa experiência de uma voz interior que nos guia, dotada de um


nível superior de conhecimento, não é estranha à história do Ocidente,

13 Taita – Xamã guardião da antiquíssima sabedoria médica de uma bebida de conhe-


cimento, o Yagé ou Ayahuasca.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 69

mas a aventura intelectual dos últimos mil anos fez com que tal ideia
parecesse absurda, senão psicopatológica.
Acho que o que realmente acontece é que se estabelece um diálogo
entre o ego e aquelas partes mais amplas, mais integradas da psique,
que normalmente permanecem ocultas.”
Terence McKenna

Embora Jung, profetas, místicos, filósofos religiosos como Clemente


de Alexandria, e muitos outros sacerdotes de diversos tempos e lugares,
tenham nos alertado para a função orientadora e educativa que existe em
nossa própria alma, a Pedagogia, a Medicina e a Psicoterapia modernas
ignoram ou desconsideram arrogantemente este decisivo fator. Para te-
rapeutas junguianos e transpessoais, é um dado familiar, inexorável e es-
pantoso, o de nos darmos conta do quanto podemos aprender a partir de
experiências com as dimensões mais profundas da nossa própria psique.
Redescobrindo esta função de guiar que está presente na alma humana,
Jung nos ensina que “(...) o inconsciente, às vezes, é capaz de mostrar uma
inteligência e intencionalidade superiores ao juízo possível no momento.”
Todos os mestres, padrinhos, xamãs e sacerdotes experientes com
a bebida são unânimes em afirmar que ela ensina. É fato corriqueiro
encontrarmos pelos caminhos do Daime/Vegetal/Ayahuasca pessoas
como o internacionalmente conhecido Padrinho Sebastião, que, sem
erudição ou formação religiosa mais complexa, evidenciam perspecti-
vas teologicamente sofisticadas e apresentam uma sabedoria espiritual,
maturidade e equilíbrio psicológicos profundos e admiráveis, apren-
dendo diretamente da planta sagrada.
Um dado decisivo é impossível de ser ignorado por quem quer que
investigue com imparcialidade e aprofundamento a questão: a Doutri-
na, consubstanciada nos Hinos e nos Salmos “recebidos”, é teologica-
mente sofisticada.
Tudo se passa como se o indivíduo, de maneira relativamente in-
dependente de mestre exterior, fosse educado espiritualmente por suas
experiências diretas que, ao menos em parte, são, conforme nos ensina
Jung, provenientes do Si-Mesmo, do Homem de dois milhões de anos,
do Homem Cósmico que habita nossa psique. Poderíamos dizer mesmo
que esse Eu Divino é o que há de mais real em nossa personalidade e,
portanto, em nossas vidas.
Um dos nomes esotéricos desse Eu Divino, conhecido pelos inicia-
dos em Escolas de Mistérios é “Eu Sou”. Muito interessante que, seguin-
70 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

do-se essa premissa, ao nos depararmos com a famosa frase de Jesus,


“Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, possamos interpretá-la como
uma alusão ao Cristo Interior, o Atman hindu. Essa dimensão cósmica,
transpessoal da alma humana, plenamente desabrochada pelo Salvador,
torna o ensinamento de Jesus menos etnocêntrico, menos passível de
manipulações fanáticas e exclusivistas, podendo incluir os que não tive-
ram a oportunidade de conhecê-Lo, tais como outros povos e diferentes
culturas, de antes e depois de Sua vinda, que conheciam porém igual-
mente o Eu Divino, o Si-Mesmo, o “Eu Sou” sob algum de seus múlti-
plos nomes e descrições, como a chave para a realização ampla da nossa
identidade maior, arquetípica e imortal.
Encontramos no apócrifo “Evangelho de Maria”, primeiro tratado
do papiro de Berlim, e que é atribuído a Madalena (a quem muitos au-
tores gnósticos remontam suas tradições e ensinamentos secretos), uma
importante formulação acerca do Reino dos Céus dentro de nós. Recor-
demos que ela aparece nestes textos não canônicos como alguém que al-
cançou níveis de conhecimento sigilosos (esotéricos?) dos ensinamentos
de Jesus, que ultrapassam os de Pedro. Neste Evangelho nos deparamos
com o que podem ter sido algumas das instruções misteriosas de Jesus:

“Após ter dito aquilo, o Bem-Aventurado saudou-os a todos dizendo: ‘Paz


a vós – que minha Paz seja gerada e se complete em vós! Não deixeis que
ninguém vos desencaminhe dizendo ‘Eis aqui!’ ou ‘Eis acolá!’. Porque é em
vosso interior que está o Filho do Homem; ide a Ele: aqueles que o procu-
ram o encontram (...)’.”

Muitas vezes o Si-Mesmo se apresenta sob a forma de uma voz


interior. O Padrinho Manoel Hipólito de Araújo, meu segundo grande
mestre na Bebida Sagrada e, na ocasião, presidente da Igreja da Barqui-
nha “Centro Espírita e Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz” (a
segunda igreja de Daime mais antiga de Rio Branco e reconhecida como
de utilidade pública – Acre/Brasil), em nosso primeiro encontro no ano
de 1989, ele com mais de 33 anos de trabalhos espirituais com a Santa
Bebida, denomina a “voz interior” de “ditador”, no sentido de “aquele
que dita”. Durante o estado de consciência expandida proporcionado
pelo Daime, o indivíduo se depara com essa “Voz Interior” que o ensina,
guia, interpela, dialoga com o ego, critica-o, trazendo a oportunidade de
surgir na personalidade um estado de maior integração do inconsciente
e maturidade, portanto, maior sanidade.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 71

A Voz Interior, que para Jung é a voz de uma vida mais plena e de
uma consciência mais ampla e abrangente, trabalha para corrigir as atitu-
des do ego, o rebaixa ou exalta quando necessário, fornecendo subsídios
para que ele cumpra sua designação maior: colocar-se a serviço do Si-
Mesmo ou, em termos religiosos, de Deus, colaborando ativamente para
o desenvolvimento da personalidade. Ouvir e seguir essa “Voz” pode ser
algo decisivo para a saúde mental, pois, como Jung adverte, referindo-se a
um elemento central da neurose, o estado de desunião consigo mesmo, a
dissociação psíquica, “(...), toda vez que procurava ser infiel à sua própria
experiência ou renegar a voz, o estado neurótico voltava imediatamente”.
Uma das etimologias possíveis da palavra religião é “religar” sig-
nificando conectar novamente. Temos aí a proposta de curar as feridas
da separação original e de retornar ao estado de inteireza primordial de
onde “caímos”, recuperando conscientemente a condição de totalidade,
alfa e ômega do desenvolvimento espiritual e psicológico.
Ainda a partir desta propriedade, vemos surgir novas revelações,
novas técnicas, rituais, maneiras de trabalhar com a Bebida Sagrada, mui
antiga, a partir das próprias experiências com ela, como se ela estivesse
nos ensinando caminhos novos, capítulos novos, instruções renovadas.
Tais instruções se fazem frequentemente, sobretudo, sob a forma
musical, tais como as linhas de trabalho surgidas no Brasil ao longo do
século XX, as linhas de Mestre Irineu, Padrinho Sebastião e Frei Daniel,
que conheço melhor, como também a de Mestre Gabriel, pela qual te-
nho igualmente um total respeito, embora infelizmente não tenha nela
iniciação e experiência mais profundas como nas outras.
Sem dúvida, o Daime/Vegetal atesta o fundamento sólido da po-
sição que marca uma das mais importantes divergências entre Jung e
Freud: a descoberta da função orientadora interior, da capacidade de
guiar que o inconsciente possui, com as amplas contribuições para a
prática da Psicoterapia, para o processo de desenvolvimento psicológi-
co, a individuação, e para a compreensão de uma das mais importantes
e surpreendentes propriedades destas “Plantas dos Deuses”.
Por um lado, podemos interpretar as revelações como origina-
das das dimensões espirituais da própria psique que, conforme ensina
Mestre Gabriel, se referem à expansão da “Memória” que, neste sistema,
“está em estreita relação com a consciência, uma vez que o aumento de
capacidade da primeira reflete-se no potencial de abrangência da segun-
da”, segundo Wânia Milanez, da União do Vegetal.
72 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Conforme as formulações de Wânia, essa memória espiritual é di-


ferente da memória mental, pois, sendo

“bem mais ampla, transcende o corpo e atinge um passado mais remoto,


trazendo gravada potencialmente toda a história evolutiva do ser, tanto do
reino hominal, como do animal, vegetal e mineral, ou seja, regredindo até a
sua essência inicial”.

Atualmente sabemos que, também em nosso corpo, em nossos ór-


gãos e sua fisiologia, está a história evolutiva do nosso ser. Reiterando
que o vegetal abre a mente para os níveis transpessoais, ela descreve que
“(...) a OASKA possibilita a cada um reconhecer o seu passado remoto
em outras encarnações, e até mesmo o futuro, se isso for necessário”,
demonstrando claramente que a União do Vegetal chega às mesmas
conclusões que outras Escolas que usam a Ayahuasca: Todas mostram
que a Bebida Sagrada também proporciona “todo o conhecimento do
universo necessário à evolução do homem”.
É inegável que a expansão de consciência promovida pela Bebida
Sagrada, proporciona o afloramento de sabedoria incomum, transcen-
dental e transpessoal, que parece proveniente da psique do indivíduo, do
inconsciente, do sub ou do supraconsciente, do Si-Mesmo, da alma hu-
mana em sua identidade original, do “vós sois deuses” e de nossas vidas
passadas, expandindo, para além das fronteiras da Psicologia convencio-
nal, percepções de identidades mais amplas, aproximando-se do nosso
verdadeiro Ser, que Jung denomina “o Homem de milhões de anos” em
nós. Mas, como acontece com muitos dos fenômenos psi amplamente
investigados pela Parapsicologia, tais dimensões das experiências encon-
tradas com bastante frequência nos seguidores das vias dos Enteógenos,
não são passíveis de serem controladas ou reproduzidas à vontade, ain-
da que tenhamos dadas circunstâncias exteriores similares. O mesmo
sujeito, utilizando a mesma quantidade do Enteógeno, e passando pelo
mesmo tipo de ritual, terá implacavelmente experiências bem diversas, e
pode acessar múltiplos níveis, quase sempre novos, o que torna a aventura
enteogênica absolutamente única e singular, ainda que, paradoxalmente,
esta apresente, de outro lado, um caráter arquetípico e transpessoal.
Em função disso, adotamos aqui a orientação da Alquimia afir-
mando que, como a Graça, a realização alquímica só acontece mediante
um donum dei (dom de Deus):
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 73

“Não se pode subir irrefletidamente a árvore da ciência, sem que se tenha


recebido o assentimento de Deus e que se tenha assegurado sua ajuda oni-
potente. O verdadeiro filósofo, humilde e paciente, solicita sobretudo a ca-
ridade divina. Eis por que o anjo iniciador indica ao neófito a sorte de um
imprudente que subiu sozinho em direção ao sol do mundo.”

O “imprudente” é o ego, a razão, o cientista, que só creem nas suas


próprias capacidades e nas da ciência profana, apesar de desejosos de
alcançar os mistérios insondáveis da alma humana, da natureza e de
Deus. Existem outras variáveis determinando tais experiências a partir
de dimensões que mal podemos tocar e que parecem, até agora, impos-
síveis de se quantificar. Mas nem por isso são variáveis menos reais que
as outras com que a nossa ciência trabalha convencionalmente.
Como diz Lao Tsé no Wen Tzu: “As pessoas aperfeiçoadas se
apoiam em um pilar que nunca estremece, viajam por uma estrada que
nunca é bloqueada, são sustentadas por uma fonte que nunca se esgo-
ta, e aprendem de um professor que nunca morre.” Esse Ser Cósmico,
Transpessoal, o “Homem de milhões de anos” em nós, é o caminho para
o aprendizado infinito com a inesgotável Fonte Interior.
Por outro lado, constatamos, não apenas na história do Santo Dai-
me e da Revelação recebida por Mestre Irineu, mas também na Revela-
ção recebida por Frei Daniel e em toda a história das Barquinhas, bem
como na história da Arca, que todos os fenômenos apontam para fortes
evidências de que muito de tais Revelações se deve a misteriosas e com-
plexas interações entre seres indubitavelmente inteligentes, provindos
de outras dimensões da Realidade e nós, encarnados.
Terence McKenna, cientista moderno de rara qualidade no sentido
de que foi um discípulo dos Enteógenos, observa o fenômeno da “voz”
que aparece dentro da experiência. Referindo-se ao fenômeno que es-
tamos descrevendo, ele percebe que “a psilocibina ‘fala’.” Impressionado
com essa “voz”, ele testemunha o fato de que também são vistas enti-
dades, “habitantes dessa outra dimensão”, que “estão tentando ensinar
alguma coisa”. Fazemos nossas suas reflexões posteriores, quando alude
ao referencial ocidental da atualidade:

“Não estamos preparados para isso. Esperamos que tudo se enquadre nos ma-
pas racionais que a ciência nos deu, e a ciência não descreve um universo hi-
perdimensional, habitado por inteligências alienígenas com as quais podemos
manter contato instantaneamente se recorrermos a certo composto químico”.
74 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Sua experiência coincide com a nossa e a de outros inúmeros se-


guidores dos caminhos das Plantas Sagradas. Igualmente coincide com
as experiências e mapas de místicos, bem como da quantidade imensa
de pessoas que tiveram vivências transpessoais transformadoras de seus
valores e crenças sem a utilização dos Enteógenos.14
Independentemente de se a aprendizagem é proveniente da própria
psique, de dimensões interiores mais conscientes e amplas que nosso
estreito ego ou se provém de seres exteriores, com percepção mais avan-
çada que a nossa ou não, o fato é que tais Plantas Sagradas promovem
expansão de consciência e trazem percepções e experiências bem orga-
nizadas de novos horizontes e níveis superiores, eficazes, de estrutura-
ção psíquica. Apenas essa propriedade já nos impõe a sua investigação e
dos seus efeitos extraordinários.
É interessante a observação feita pelo antropólogo Fericgla acerca
do uso pedagógico dos Enteógenos entre os Jívaro. Eles administram
tanto a Ayahuasca quanto a Brugmansia para educar seus filhos, entre-
gando à experiência e à intervenção dos espíritos o papel de orientar e
mesmo de disciplinar, admoestar, corrigir. Ora, é bastante conhecido,
no Brasil, nas três linhas surgidas aqui, o poder disciplinador do Dai-
me/Vegetal. Os Jívaros da Amazônia equatoriana dão os Enteógenos
para seus filhos em lugar de castigá-los (castigo é uma palavra que não
existe em sua língua). Utilizando-se conscientemente desta proprie-
dade misteriosa de tais plantas, reeducam seus filhos de maneira não
violenta ou repressora, mas profundamente madura e amorosa. São
exemplos de práticas estruturadas em torno daquilo que em termino-
logia junguiana chamaríamos de experiência imediata. Carecendo de
religião institucionalizada, usam as Plantas Visionárias, Gnósticas ou

14 Em seu livro O retorno da cultura arcaica, Terence McKenna dá um importante


depoimento: “Mas na Amazônia e em outros lugares nos quais as plantas alucinó-
genas são conhecidas e utilizadas, somos transportados para mundos estarrece-
doramente diferentes da realidade comum. Não é possível dizer quão vívidos são
esses mundos. São mais reais que a realidade – fato que sentimos intuitivamente.
Estabelecem uma prioridade ontológica.” Na pesquisa de campo que realizei, fiz
algumas perguntas para sacerdotes e xamãs, registradas em vídeo. Uma das per-
guntas era: Quem ensina dentro da experiência? O Espírito da Planta? O Anjo
da Guarda? O Eu Divino? O fundador da Escola espiritual? Os espíritos? etc. –
vídeos realizados no Forum de Xamanismo no México, em Porto Rico e em Rio
Branco – Acre– Brasi.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 75

Metagnômicas,15 com a finalidade de ver (= aprender), conhecer o que


está além da consciência ordinária. Seu alcance é incrivelmente amplo,
demonstrando serem ferramentas que podem apresentar múltiplas e
surpreendentes aplicações.
Para estes índios, o objetivo do caminho visionário é curar-se ou
curar, tomadas de decisão em geral, resolver problemas de adaptação,
reduzir níveis de endoagressividade, prefigurar, criar seu futuro próxi-
mo ou longínquo, para obter informações de pessoas distantes no espa-
ço, contatar os espíritos, educar os filhos.
Também o Teonanacatl (Carne dos Deuses), o cogumelo sagrado dos
antigos mexicas, apresenta algumas destas propriedades, conforme obser-
vadas por Gordon Wasson, Montoya, Robert Graves, Salvador Roquet e
outros, bem como entre os xamãs Mazatecas, entre os antigos gregos etc.
Para ampliação deste item remetemos o leitor à bibliografia indicada.
Ramon Mata Torres, estudioso dos índios Huicholes do México,
escreve:

“Há umas plantas que se chamam peiotes. Há também pessoas que as comem.
Alguns dizem que com isso aprendem muitas coisas. Outros afirmam que
chegam a ver animais, o mar e até os próprios deuses.
Nós, os Huicholes, o comemos. Quer seja para ver se por meio disso apren-
demos ou escutamos, ou simplesmente para cumprir um dever.”

Minhas conclusões acerca do uso do Daime nas diferentes linhas


do Santo Daime, Barquinha e União do Vegetal, em uma psicologia do
desenvolvimento adulto, convergem para uma fenomenologia na qual
as propriedades pedagógicas da Bebida Sagrada, dentro do contexto ur-
bano moderno, se tornam inteligíveis por meio dos conceitos junguia-
nos de processo de individuação e da dialética entre o ego e o Self, o
Si-Mesmo, que é o Pedagogo.
Diz Clemente de Alexandria:

“Nosso Pedagogo é o Santo Deus Jesus, o Logos que conduz a Humanidade


inteira; nosso Pedagogo é Deus, Ele próprio, que ama os homens. No Cân-

15 Como propõe denominá-las Domingos Bernardo Silva Sá, ex-presidente do Con-


selho Estadual de Entorpecentes (CONEN), membro do Conselho Federal de En-
torpecentes (COFEN), famoso jurista e professor, com importantes trabalhos no
campo da política de drogas no Brasil.
76 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

tico, o Espírito Santo fala assim deles: ‘Ele (O Senhor) encontrou-o (Jacó)
numa terra deserta, na solidão ululante dos lugares ermos; cercou-o e cui-
dou dele, guardando-o como a pupila de seus olhos. Como a águia que pro-
voca seus filhos a voar, esvoaçando sobre eles, (assim o Senhor) estendeu
suas asas e o tomou, e o levou sobre suas asas. Só o Senhor foi o seu guia, e
nenhum outro deus estava com ele’.”

Este comentário de Clemente de Alexandria ao Deuteronômio


alude à dimensão pedagógica da alma humana. Em linguagem teoló-
gica, descreve o fato de que, em tradução psicológica, só o Si-Mesmo,
e nenhum dos outros arquétipos capazes de conduzir a psique, atuava
no indivíduo. Ele menciona ainda a águia, pássaro sagrado que aparece
com frequência nas experiências de xamãs e daimistas de diferentes li-
nhas, bem como na estrela que é conferida por ocasião do fardamento
na linha de Mestre Irineu. Formula Clemente a dimensão da orientação
ética conferida pelo Si-Mesmo, que se mistura com a outra propriedade
misteriosa da Bebida Sagrada, que descreveremos em seguida: “Quanto
à pedagogia de Deus, é a indicação do caminho reto da verdade em vis-
ta da contemplação de Deus, a indicação de uma santa conduta numa
eterna perseverança”.
Terence McKenna, que considero um investigador moderno que
percebeu esta propriedade pedagógica dos Enteógenos, descreve sua
perplexidade diante dela. Ele relata que, durante a experiência,

“(...) há alguém falando com você. Na verdade, era uma voz dentro da minha
cabeça, falando coerentemente, em inglês, sobre as questões que eram mais
importantes para mim pessoalmente. Eu não estava preparado para isso.”

Quais aqueles que, treinados exclusivamente nas águas rasas e fa-


miliares da razão e da ciência no paradigma antigo, podem estar con-
venientemente preparados? Talvez somente os xamãs, os sacerdotes, os
gnósticos, os sufis e os mestres zen, do passado e do presente, tenham
condições de navegar nessas águas profundas da dialética devocional
entre o ego e o Si-Mesmo, diálogo entre o homem e Deus.
McKenna desenvolve uma interessante explicação acerca do que
está vivenciando:

“(...) Acredito que se trate de uma dissolução do poder do ego, permitindo que
ele entre em contato com o que chamo de Supermente e que outros poderiam
chamar de superego. Em outras palavras, essa força organizadora, muito mais
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 77

ampla, muito mais sábia, que trazemos dentro de nós, mas à qual geralmente
só temos acesso em situações de crise ou de extrema tensão psicológica. E en-
tão vem-nos um clarão de sabedoria. Estamos viciados em pensar com o ego.”

Mencionando suas leituras de C. G. Jung, McKenna reflete sobre as


dimensões de nossa psique, além do ego, que são alcançadas por meio
dos Enteógenos, e as descreve:

“Não me interessa entrar em questões como ‘Será a voz de Deus?’ ou ‘Será


um extraterrestre?’. Não creio que, no estágio atual, possamos conhecer a
resposta. Mas o importante é que a Supermente nos conhece melhor do que
nos conhecemos a nós mesmos, e, consequentemente, é uma fonte de esta-
bilidade, de gnose, de informação, que é o que falta à maioria das pessoas,
as quais têm contato apenas superficial com o seu próprio destino, o seu
próprio nascimento, a sua própria morte.”

Segundo minhas pesquisas e experiência, não apenas o Self, tam-


bém outros arquétipos e os seres de outra dimensão, ensinam e contri-
buem para o desenvolvimento das sofisticadas e misteriosas tecnologias
e doutrinas ligadas à Sagrada Bebida. Isto acontece a tal ponto, que te-
mos como nosso o credo de Lawrence:

“Eis aquilo em que creio, diz ele: Que eu sou eu./ Que minha alma é uma
floresta sombria./ Que o que eu conheço é apenas uma clareira na floresta./
Que deuses, estranhos deuses, vão da floresta para a clareira do eu conheci-
do e depois se afastam./ Que devo ter a coragem de deixá-los ir e vir./ Que
não deixarei jamais meu pequeno ego me dominar, mas sempre tentarei
reconhecer os deuses que estão em mim e a eles me submeter, assim como
àqueles que estão em outros homens e outras mulheres.”

Investigando uma das mais antigas Bebidas Sagradas, o Soma védi-


co, percebemos que a cerimônia de sua preparação é o elemento central
do ritual rigvédico, e se relaciona com a totalidade dos deuses. O Soma
parece ser o elemento axial da experiência visionária que acessa os deu-
ses. Talvez seja por isso que ele permeia todo o culto, onde encontramos
referências em grande parte dos hinos do Rig Veda, um dos mais antigos
documentos religiosos da humanidade, datando aproximadamente de
antes de 2000 a.C.
É quando recordamos a posição do famoso mitólogo, Robert Gra-
ves, meditando sobre o deus ébrio, Dioniso, e sobre a natureza da am-
brosia e do néctar divinos. Baseia-se ele também em sua experiência
78 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

com os cogumelos sagrados dos xamãs mazatecas em Oaxaca, no Mé-


xico. No prólogo de seu livro sobre os mitos gregos, ele afirma sua con-
cordância com R. Gordon Wasson, “(...) o descobridor americano desse
rito antigo, em que as ideias europeias acerca do céu e do inferno po-
dem muito bem haver se derivado de mistérios análogos”. Encontrando
vários paralelos entre os mitos gregos e mexicas, especialmente acerca
do uso sacramental de cogumelos, ele se pergunta: “Mas em que épo-
ca estiveram em contacto as culturas europeia e da América Central?”
Podemos nos perguntar se existiu uma raiz, uma tradição comum, ou
trata-se de elementos arquetípicos independentes de difusão cultural?
Uma das coisas que podemos extrair daí é que muitos temas dos mitos
e do folclore universal, bem como de muitas formas religiosas e até mesmo
nos Contos de Fadas, conforme atestei, guardam estreitas relações com o
universo de utilização espiritual das Plantas Sagradas, os Enteógenos.
Por exemplo, no Conto de Fadas “João e o Pé de Feijão”, o persona-
gem troca a vaca que não dá mais leite pelos feijões mágicos, que talvez
possa ser interpretado psicologicamente como a crise onde as formas
anteriores de funcionamento psíquico se tornam estéreis para produzir
sentido à existência. Por vezes os meios anteriores de sobrevivência são
ameaçados por profunda transformação. O passado, o ego, o eu velho
não mais nos suprem a vida. É preciso encontrar novos horizontes, no-
vas motivações, alcançar tesouros mais raros e preciosos para a alma.
Nesse momento é sábio trocar as antigas prioridades por perspectivas
anteriormente desconhecidas. Os feijões mágicos pelos quais o herói
permuta a vida anterior abrirão as Portas dos Céus, onde ele poderá,
não sem enfrentar desafios inimagináveis, diferentes dos desafios da
vida prática pois se destinam ao despertar da alma em suas dimensões
transpessoais, encontrar tesouros eternos capazes de mudar definitiva e
completamente sua vida. Como Jesus na parábola do Tesouro no Cam-
po: o homem vende tudo o que tem para adquiri-lo, pois aí reside um
sublime ensinamento espiritual e psicológico.
Em outro momento, uma amiga fala-me do trabalho de Ayahuasca
que fez entre índios brasileiros, onde ela se viu tendo relações sexuais
com uma serpente branca. O Pajé interpretou a visão como indício que o
Espírito do Enteógeno, do Yagé, tinha gostado dela. Uma semana depois,
ao estudar Contos de Grimm, deparei-me com um Conto de Fadas deno-
minado “A Serpente Branca”, que li avidamente. A estória versava sobre
um nobre para quem, após as refeições, o mordomo trazia uma sopeira
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 79

fechada e que, sozinho, ficava muitas horas a portas fechadas, sem que
ninguém soubesse o que acontecia lá dentro. Um dia o mordomo resol-
veu desviar a sopeira para seus aposentos. Quando a abriu, ele viu uma
serpente branca, que comeu. O que aconteceu após o insólito fato foi
que ele passou a entender a linguagem dos animais, o que deu origem a
toda a trama posterior do conto. Ora, quem comeria sem pestanejar uma
serpente? A não ser que se tratasse de uma linguagem cifrada, metáfora
para referir-se a um Enteógeno com propriedades misteriosas (talvez pa-
recidas com as propriedades xamânicas de certas Plantas Sagradas), ca-
paz de mudar para sempre sua vida, apresentando-lhe novas dimensões
e riquezas do mundo e da alma que ele jamais suspeitara. Poderíamos
apresentar vários outros indícios, mas não é esse o nosso objetivo aqui.
O essencial é a conclusão de que é possível que várias narrativas,
ritos, costumes e cosmovisões arcaicas, ancestrais, possam ter emergido
de conhecimentos acerca delas ou das experiências visionárias propor-
cionadas por tais Plantas “mágicas” ou “Plantas de Poder”, que têm esta-
do presentes no material cultural mais antigo, são encontrados desde os
primórdios da história humana.
A Pedagogia dessas Plantas é ampla e suprarracional, acostumando
os homens a perceberem o fantástico, o paranormal, o mítico, o mágico,
as sincronicidades que existem em suas vidas, contribuindo para uma
visão mais holística, mais abrangente e integrada da realidade que nos
cerca. Conforme nos ensina Jung em suas memórias:

“A carência do sentido impede a plenitude da vida e significa, portanto, do-


ença. O sentido torna muitas coisas, talvez tudo, suportáveis. Jamais alguma
ciência substituirá o mito, e jamais o mito poderá nascer de alguma ciência.
Não é ‘Deus’ que é um mito, mas o mito que é a revelação de uma vida di-
vina no homem. Não somos nós que inventamos o mito, é ele que nos fala
como ‘Verbo de Deus’.”

Ao examinarmos a fenomenologia do Daime/Vegetal no Brasil,


deparamo-nos com o extraordinário alcance que podem apresentar as
propriedades pedagógicas das, mui bem denominadas pelos povos tra-
dicionais, “Plantas Professoras” ou “Plantas Mestras”. Encontramos aí
uma rica e avançada tecnologia físico-energético-psico-espiritual, com-
pleta ou parcialmente revelada por meio delas.
O primeiro exemplo disso é o de Mestre Irineu: nosso querido Pa-
drinho, pioneiro e grande patriarca da Doutrina do Santo Daime. Ele foi,
80 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

qual Moisés, destinado a guiar o povo, escravizado pelas formas exterio-


res e esvaziadas de religião, através dos desertos de uma vida espiritual
sem a experiência direta, com o auxílio do “Maná” (o Santo Daime), da
via da revelação divina, que guia o buscador para a “Terra Prometida”
de uma existência mais plena conduzida por Deus, pelos Seres de luz ou
pelo Eu Divino (o Si-Mesmo, em termos psicológicos).
Mestre Irineu também “aprendeu” com o Daime, com a Virgem da
Conceição, entre inúmeras coisas, a sua Doutrina, a sua musicalidade,
o “Fardamento”, os hinos com a mensagem de um novo caminho espi-
ritual, com poder para despertar o homem contemporâneo da incons-
ciência acerca do valor decisivo do cultivo da alma, da vida espiritual, e
os principais elementos rituais de seu trabalho sagrado. Num trecho do
hino 16 encontramos: “A minha Mãe é a Santa Virgem/ Ela é quem vem
me ensinar/ Não posso viver sem Ela/ Só posso estar onde Ela está.”
No hino 10 ele canta: “Mamãe me ensina/ Eu devo aprender/ Que
na eternidade/ É quem pode me valer.” Além da beleza musical e poética,
da simplicidade profunda dos ensinamentos, precisamos considerar que
esta via espiritual se difundiu pelo mundo e conquistou muitos adeptos,
promovendo intensas experiências místicas em pessoas que não falam
o português, aprendendo, assim, diretamente do Santo Daime, algo tão
significativo que tem sido capaz de transformar suas vidas.
Vemos entre os hinos do Mestre Irineu, no hino 89, uma descri-
ção do fenômeno psicológico da voz interior: “Eu estava passeando/ Na
praia do mar/ Escutei uma voz/ Mandaram me buscar.”
Para descobrir as riquezas do nosso Pai Criador, Mestre Irineu,
após a Viagem Sagrada de aprendizado com a Mãe Divina, por meio
da “Voz” (e da “Visão”), que se anuncia em tom imperativo (conforme
as descrições de Jung), funda uma religião gnóstica moderna que, con-
forme sua percepção avançada no tempo e no espaço, teria o destino de
“doutrinar o mundo inteiro”, tendo alcançado, até agora, penetração em
vários países, expandindo-se e tendo seu valor reconhecido em muitos
lugares fora do Brasil.
Um dos grandes responsáveis por esta difusão foi meu primeiro
mestre na Sagrada Bebida (Santo Daime), o Padrinho Sebastião Mota.
Discípulo de Mestre Irineu e, ao mesmo tempo, inovador na Doutrina
do Santo Daime, ele também canalizou ou “recebeu” vários hinos que
falam do Mestre que está presente na Bebida Sagrada. Dentre eles des-
tacamos um: “Eu vivo na Floresta”. Transcrevemos aqui um trecho: “Eu
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 81

vivo na floresta/ Eu tenho os meus ensinos/ Eu não me chamo Daime/


Eu sou é um Ser Divino/ Eu sou um Ser Divino/ Eu venho aqui para te
ensinar/ Quanto mais puxar por mim/ Mais eu tenho que te dar. (...)”
Para dar mais um exemplo, ainda dentro do Caminho do Santo
Daime, mencionarei a resposta de outro mestre com quem estudei a
misteriosa Bebida, também discípulo direto de Mestre Irineu: seu Luís
Mendes. Perguntei-lhe: “o que é o Daime?”. Ele me respondeu com um
hino que recebera sob o efeito do Daime. Reproduzirei aqui apenas um
pequeno trecho: “Daime é a vida/ Daime é o amor/ Daime é a Luz/ É o
nosso Mestre ensinador./ Eu ensino é com amor/ é com firmeza e com
carinho/ Vamos ligar importância/ A esse trabalho divino. (...)”
Outro grande e paradigmático exemplo brasileiro das propriedades
pedagógicas altamente sábias e avançadas dos Enteógenos (não é uma
educação de nível mediano, é uma educação espiritual de alto nível de
individuação), é encontrado na Revelação recebida pelo iniciador do se-
gundo grande tronco, da segunda altamente expressiva e original moda-
lidade de uso do Santo Daime surgida no Brasil: a linha da “Barquinha”.
Seu misterioso fundador, amigo de Mestre Irineu, com quem conhe-
ceu o Daime, Frei Daniel Pereira de Matos, recebeu um “chamado” dife-
rente, para que canalizasse e fundasse uma nova escola de trabalhos com
o Santo Daime. Além do autoconhecimento e da purificação, as músicas,
a ritualística e as práticas, alguns dos níveis diversos do trabalho, os pro-
pósitos e os meios, se tornaram mais complexos: as “Obras de Caridade”.
Temos então a doutrinação de almas sofredoras, indígenas, encan-
tos, Exus e outros seres do plano invisível, que atuam sobre as pessoas
encarnadas e estão sem a Luz Cristã; o encaminhamento e mudança
de Mistério dos espíritos, das entidades e obsessores capturados; um
atendimento mediúnico gratuito e um trabalho apurado de desmanches
de feitiços e de magia negra, que tornam esta linha da Barquinha algo
sobejamente incomum dentro do universo das múltiplas formas de uti-
lização dos Enteógenos que conheci.
E tudo isso saiu do Daime: uma perfeita integração entre cami-
nho individual do autoconhecimento, da iluminação e da mediunidade;
uma forma de uso da magia de base cristã, o poder que é desenvolvido
na alma a serviço de um ideal de transformação de consciência aqui e
acolá; neste plano e no além; no visível e no invisível. Essa via de espi-
ritualização atua servindo os encarnados e desencarnados, trazendo a
consciência do Reino de Deus na alma humana, ajuda tanto embaixo
82 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

como em cima, realizando a vontade divina: o homem auxiliando o “ve-


nha a nós o Vosso Reino”, cumprindo a continuação da Obra de Deus do
Despertar das Almas, tanto neste plano material como no outro, “assim
na Terra como nos Céus”.
Desse modo, Frei Daniel e seus seguidores canalizaram a linha
da Barquinha, com seu elevado propósito caritativo, com um preparo
espiritual profunda e amplamente inserido em um referencial cristão,
incluindo elementos kardecistas, e, através de seus Salmos, “receberam”
músicas que funcionam como ferramentas para vários propósitos den-
tro dos trabalhos com o Daime: limpeza espiritual, proteção, firmeza,
instruções, louvor, conforto, disciplina etc., aprofundando esse mistério
já encontrado na linha de Mestre Irineu, com encaminhamento e Dou-
trinação de Almas, chamadas de entidades em cortejos ou batalhões,
trabalho com os anjos etc.
Também na União do Vegetal encontraremos as denominadas
“chamadas”, músicas que funcionam como ferramentas espirituais para
mudar o estado de mente dos participantes do trabalho e/ou chamar
certas forças ou entidades para propósitos específicos na sessão.
Outra dimensão do trabalho da Barquinha, em um bailado livre,
tem fortes componentes umbandistas e xamânicos, elementos indíge-
nas, africanos, linha do mar, mistérios do céu e da Terra, evocados tam-
bém por pontos que, como os Salmos, são músicas igualmente trazidas
pelos espíritos, músicas que chamam os Seres de Luz. Temos aí uma
Escola, de metodologia ímpar na utilização do Santo Daime, integrando
o trabalho que lida com os processos psicológicos individuais com a
necessidade de materializar a iluminação realizada em “Obras de Ca-
ridade”, que alcançam não só outras pessoas, que não compartilham o
mesmo caminho espiritual, como são estendidas igualmente aos planos
invisíveis, aos espíritos desencarnados.
Na Barquinha de Mestre Manoel Hipólito de Araújo, no Acre (a
minha segunda Escola de aprendizado acerca dos trabalhos com o San-
to Daime), recebi o chamado divino de trazer para o Rio de Janeiro esta
linha mistérica, fundando a filial hoje existente. O Padrinho Manoel foi
um grande mestre, não apenas na administração da Bebida Sagrada,
mas também na navegação nos estados de sensitividade amplificada
promovidos por ela. Ele trabalhava com excelência nos dois campos:
distinguia e manejava com grande competência os processos psicoespi-
rituais e os fenômenos mediúnicos.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 83

Quando a conheci, a Barquinha era uma Igreja aberta à comunidade


maior, batizando as crianças de dentro e de fora de sua instituição, tendo
seu Manoel fundado também uma escola para as crianças da região in-
dependentemente de suas famílias pertencerem à Igreja. Mestre Manoel
atendia pessoas que não frequentavam os trabalhos com o Daime na sua
Igreja, que não faziam parte de sua irmandade e nem eram seguidores
daquele caminho. Embora tivesse a tônica do Pastor, ele fazia isso sem
intenção catequética, sendo a Barquinha, nesta ocasião, um exemplo de
casa espiritual aberta à comunidade maior. Recebendo todos com amor
e respeito, servindo, sem segundos interesses de converter as pessoas à
sua própria crença, sem procurar angariar adeptos, buscar lucros finan-
ceiros ou poder, ele dedicava-se, sobretudo, ao serviço da comunidade
como um todo, com suas obras de auxílio ao próximo. Talvez por este,
entre outros importantes motivos, tenha sido sua Igreja merecidamente
reconhecida como “de utilidade pública” em Rio Branco, Acre.
A Barquinha incorpora ao caminho de autoconhecimento do San-
to Daime um trabalho mediúnico, espírita, original, muito desenvolvido
e bem acabado, integrando de maneira avançada, orgânica, o trabalho
de “mesa” e o de “terreiro”, o Kardecismo e a Umbanda, duas importan-
tes vertentes espíritas do país que se apresentam, geralmente, dissocia-
das e em conflito.
Talvez precisemos reconhecer que essa esfera mediúnica é uma
dimensão importante das experiências com os Enteógenos e, especifica-
mente, com o Daime. Os fenômenos espíritas estão tão inextricavelmen-
te associados às vivências com o Daime que alguns Padrinhos e Madri-
nhas, como o Padrinho Sebastião e a Madrinha Baixinha, seguidores de
Mestre Irineu, buscaram integrar essa dimensão à doutrina que origi-
nalmente não os incluía de maneira ampla, como na Barquinha. Mestre
Irineu, nos primórdios da Doutrina, além de não ter este objetivo de
base espírita, inclusive por formação esotérica, tinha poucas ferramen-
tas para lidar com tais fenômenos, que, segundo a experiência, podem
ser, por vezes, frequentes nos trabalhos. Padrinho Sebastião e Baixinha,
talvez por formação espírita anterior e pelas canalizações sempre atua-
lizadas, desenvolveram algumas novas propostas e combinações mais
amplas em face da linha original do Mestre para suprir essa lacuna.
Conforme depoimento do Mestre Manoel Araújo, quando Daniel
bebeu o Daime com Mestre Irineu, ele viu um soldado dos Exércitos
de Jesus lhe entregar o Livro Azul com a Missão que estava recebendo:
84 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

“Aqui está a missão que tens de cumprir. Você tem de sair daqui, que não
é a tua linha, e abrir o teu próprio caminho espiritual, de conformidade
com o que está neste Livro”.
Em todas as Escolas, de Mestre Irineu, de Frei Daniel e de Mestre
Gabriel, temos a impressão de que talvez estejamos reeditando um per-
curso religioso muito antigo, em certos aspectos similar aos Salmos de
Davi, aos Encantamentos do Livro dos Mortos Egípcio: uma Doutrina
com profundas Psicologia, Filosofia e Teologia sob a forma de música,
de poesia e de experiência direta transpessoal, resgatando um tempo
onde Arte, Espiritualidade e Ciência caminhavam juntas.
O depoimento do Padrinho Manoel Araújo acerca de seu mestre,
Frei Daniel, é assaz eloquente: “Dentro da luz do Daime ele copiava os
hinos que tinha no Livro e com sua rebeca, colocava tudo em escala
musical”. Diante do “Livro”, existente nos invisíveis planos da realidade
que enxerga por meio do Santo Daime, ele parece simplesmente copiar
com fidelidade o que aprende nesse Livro Sagrado; mas Frei Daniel vai
muito mais longe: ele vive e encarna o ensinamento que lê nesse Livro
transcendental. Ele ritualiza o ensinamento e cria uma Escola espiritual.
É quando percebemos que um bom discípulo é algo muito raro: só ele
tem condições de se tornar um bom mestre.
A iniciação de Mestre Manoel também é amplamente paradigmá-
tica, exemplificando o fenômeno da “Voz interior”. Em seu primeiro tra-
balho, após uma experiência profunda de abertura da visão espiritual,
altamente terapêutica, no meu entender, ele ouviu a “voz” ensinar:

“Meu filho, não tenhas medo. Isto que você está vendo é devido a sua situ-
ação espiritual, que está meio embaraçada – sua culpa, os seus pecados. O
caminho que você está seguindo é como se estivesse numa fogueira, porque
te afastastes dos caminhos de Deus.”

Na jornada de Mestre Manoel, o contato com a “Voz interior” e a


fidelidade a ela, em momentos importantes supera a fidelidade ao mes-
tre exterior, exatamente como acontecera com Frei Daniel em relação a
Mestre Irineu, e talvez com este em relação a seus mestres anteriores: o
Seu comando é soberano e irresistível.
Diz a Voz: “Meu filho, daqui pra frente, tu só vais dar ocorrência
dos seus trabalhos ao Mestre, quando eu te autorizar.” Esta é a marca da
liberdade decisiva que caracteriza o caminho do Daime. Esse é um sinal
do Pedagogo, do Mestre Interior, que dá a última palavra no percurso
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 85

dos daimistas/oaskeiros mais avançados. Assim nasceram os Mestres e


Padrinhos fundadores de novas versões das mais antigas tecnologias e
revelações: Mestre Irineu, Frei Daniel, Mestre Gabriel, Padrinho Sebas-
tião, entre outros; eles receberam novos “chamados” em relação aos mé-
todos que conheceram com seus mestres exteriores.
Na Arca da Montanha existe um hino dedicado ao Mestre Interior,
recebido por mim em 1989,16 que menciona essa autonomia psicológica
que o Enteógeno pode proporcionar.
É intrigante a experiência do antropólogo Jeremy Narby, quando
impressionado com a maestria botânica dos índios ashanincas, em con-
versa com eles perguntou: “Mas como é que vocês aprenderam tudo
isto?” A resposta é unânime para todos os enteonautas experientes nesse
Caminho: “Um homem chamado Ruperto Gomez me respondeu: Você
sabe, irmão Jeremias, para entender verdadeiramente o que lhe interes-
sa, você deve tomar Ayahuasca.”
Mais adiante, Jeremy cita um amigo meu, o antropólogo Luis Eduar-
do Luna, falando sobre os ayahuasqueiros da região amazônica peruana:

“Eles dizem que a Ayahuasca é um médico. Possui um poderoso espírito. É


considerada como um ser inteligente com quem se pode estabelecer uma
relação, e do qual é possível adquirir conhecimento e potência seguindo
esmeradamente uma dieta e outras prescrições.”

Essa visão do Enteógeno é assaz surpreendente e inquietante para


a mentalidade materialista e cartesiana.
Mas os mesmos fenômenos são encontrados em outros Enteóge-
nos. Registramos igualmente com o Teonanacatl, a “Carne dos Deuses”,
entre os curandeiros mexicanos, como no caso paradigmático da gran-

16 Eis a letra do hino: “O Mestre está dentro de cada um/ É só se dispor a compre-
ender/ É só saber escutar/ Que a cada um Ele vai se revelar/ Chegada é a hora
da emancipação/ O destino maior vai colher cada irmão/ Realizando de Deus o
supremo amor/ O coração de luz desabrocha como a flor/ Essa força surgirá den-
tro de todos/ Consagrando a luz dessa liberdade/ Pois a ninguém mais cegamente
seguirão/ Senão o Pastor Interno dentro dessa verdade/ O máximo que podemos/
Ao sermos bons professores/ E todos somos uns dos outros/ É ajudar os irmãos a
alcançarem/ O Mestre que habita em seus interiores/ Será para muitos o que até
hoje só tem sido para poucos/ Chegou a hora dos justos se encontrarem/ Nessa luz
de amor nós bem recebemos/ O amor que Deus tem para nos guiar/ Agora nessa
batalha vamos guerrear/ No amor bendito vamos triunfar.”
86 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

de xamã mazateca, Maria Sabina, iletrada, que menciona o “livro lim-


po, livro bom”, “Livro” que é, segundo Gutiérre Tibon, “o livro que leu
milagrosamente e do qual extraiu toda sua sabedoria”. Segundo ele, esta
tradição é mesoamericana, comum na religião e nos mitos, desde Sina-
loa até a Nicarágua. Esta grande mestra da linguagem mostra, no “Livro
fechado do universo”, revelação do desconhecido “(...) que Maria Sabina
conseguiu abrir, ler e entender”. Inspirada pelo Enteógeno ela ensina:

“Sou mulher de letras, diz


Sou mulher de livro, diz
Ninguém pode fechar meu livro, diz
Ninguém pode tirar meu livro, diz.”

Sempre dando os créditos de seus conhecimentos ao Enteógeno,


ela é a melhor testemunha da pedagogia realizada por meio dele. Assim
ela descreve o que dele aprendeu:

“Existe um mundo mais além do nosso, um mundo remoto, próximo e invi-


sível. E é aí onde vive Deus, onde vivem os mortos, os espíritos e os santos,
um mundo em que tudo já aconteceu e onde tudo se sabe. Esse mundo fala.
Possui uma linguagem própria. E eu o informo acerca do que ele diz.”

Continua ela:

“O cogumelo sagrado me toma pela mão e me conduz ao mundo onde tudo


se sabe. São eles, os cogumelos sagrados, os que falam em uma forma que
posso entender. Eu pergunto-lhes e eles me respondem. Ao voltar da viagem
que faço com eles, comunico o que me disseram e ensinaram.”

Seu depoimento é perfeitamente compatível e coerente com os efe-


tuados por usuários de outros Enteógenos: a visão trazida por eles é
surpreendentemente similar nos pontos principais.
Quando Jeremy reflete a perplexidade do cientista moderno, ainda
preso ao antigo paradigma, ao pensar que “(...) não é racional afirmar
que certas plantas são seres inteligentes capazes de comunicar”, além de
demonstrar, a esta altura, ainda pouca experiência com a Bebida (pois
o tempo e o aprofundamento trazem a implacável constatação de que
nela existe uma inteligência superior que realmente ensina, embora a
princípio não saibamos como), talvez lhe faltem algumas ferramentas
teóricas capazes de abrir alguns caminhos, que fornecemos aqui. A Be-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 87

bida Sagrada, em seu efeito farmacológico-energético-psico-espiritual,


auxilia o indivíduo a entrar em contato tanto com as energias sutis, o
Si-Mesmo, o Sub e o Supraconsciente interiores, bem como com seres,
alguns de inteligência superior, exteriores ao homem, existindo em uma
dimensão sutil invisível da natureza; além disso, tais “Plantas Mestras”,
seres especiais do Reino Vegetal, têm seus Espíritos Guardiões que “en-
sinam”, “mostram” mistérios, conhecimentos sagrados sobre Deus, a
Alma e o Universo.
Todas essas fontes possíveis de aprendizagem trazem em geral
perspectivas além do alcance e da capacidade do nosso ego ordinário.
Demonstram, muitas vezes, sabedoria e conhecimentos avançados pro-
venientes de regiões estranhas e superiores ao Eu cotidiano em amplitu-
de de visão. Os fatos concretos com que nos deparamos são que novos
usos desta Bebida, capaz de reeducar e transformar profundamente os
humanos, que foram canalizados e inaugurados por grandes Mestres
brasileiros, vêm se expandindo com eficiência, de maneira constante e
surpreendente em nossos dias.
Conforme constata Ralph Metzner:

“A utilização da ayahuasca por algumas Igrejas brasileiras vem ganhando mi-


lhares de seguidores nas Américas do Sul e do Norte, e também na Europa,
crescendo, assim, vertiginosamente em número e influência. Encontramo-
nos, portanto, diante de uma substância que tem contribuído profundamen-
te para a modificação dos indivíduos, e que já começa a fomentar alguma
coisa muito próxima de um amplo movimento de transformação cultural.”

É, sobretudo, na mudança de consciência individual e coletiva que


as Plantas Sagradas são capazes de promover que somos levados a res-
peitar seu poder na decisiva demanda de mudança psicológica e social
da atualidade no sentido da promoção da paz, da solidariedade e da
justiça, bem como o respeito à natureza.
Tudo o que mencionamos até agora já é absolutamente inovador.
Mas ainda é apenas o princípio.
Os Enteógenos também são úteis para promover uma Educação
Holística. Restabelecendo as conexões entre as esferas fragmentadas
e compartimentadas da vida, eles atuam reaproximando, produzindo
equilíbrio e reintegrando o mental, o emocional e o corpo, o pensa-
mento linear e a intuição; o Eu e os outros, a comunidade, nos levam
a considerar as múltiplas dimensões do conhecimento, os vários tipos
88 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

de inteligência; penetrando as regiões sub e supraconscientes da psique,


adentra os domínios espirituais e estreita a relação entre o ego e o Eu
Superior, o Si-Mesmo, Atman, Eu Sou, o Cristo Interior ou o Eu Divino.
(O “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida”, do qual Jesus é represen-
tante e mensageiro, sob múltiplas formas e com diferentes nomes, é um
princípio encontrado em várias tradições sagradas.)
As contribuições neste setor são ainda insuspeitadas. Para uma edu-
cação holística, a personalidade como um todo deve ser atendida. Em sua
apreciação dos vários sentidos que esta educação pode apresentar, o Dou-
tor em Ciências pela Universidade de Granada, Rafael Yus, menciona que

“são consideradas todas as facetas da experiência humana, não só o intelec-


to racional e as responsabilidades de vocação e cidadania, mas também os
aspectos físicos, emocionais, sociais, estéticos, criativos, intuitivos e espiri-
tuais inatos da natureza do ser humano”.

Alimentando e encorajando as dimensões humanas desconsidera-


das e desestimuladas em nossas escolas e universidades convencionais,
os Enteógenos podem nos ajudar na preparação de uma nova era, onde
veremos surgir pessoas mais íntegras, equilibradas e saudáveis, toman-
do posse de mais amplo espectro de seu potencial total. Conforme o
Doutor em Física, Fred Alan Wolf, os Enteógenos são usados milenar-
mente para entrar em contato com o mundo espiritual, “para levar-nos
do mundo pensamento-sensação ao mundo intuição-pensamento”.
Os Enteógenos configuram um capítulo à parte, capaz de revolucio-
nar toda a apreciação e perspectiva do que uma ferramenta expansora de
consciência pode proporcionar para a transformação radical do moder-
no e destrutivo paradigma materialista de vida. Seu poder para catalisar
construtivas mudanças sociais ainda não foi suficientemente avaliado.
Precisamos colher os depoimentos e investigar sistematicamente as dife-
rentes instituições e seus resultados para a vida dos seus seguidores.

2- O caráter ético-religioso da experiência – confronto com a


sombra e a purificação

“(...) És o cuidador de nosso corpo, Soma,


Te instalaste em todos os membros observando o homem:
Se infringirmos teus regulamentos sê misericordioso
Como nosso bom amigo, ó deus, para maior bem-estar.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 89

Preocupações se dissiparam, doenças desapareceram,


Os poderes das trevas assustaram-se.
Soma avolumou-se poderosamente dentro de nós;
Alcançamos a alvorada, onde os homens renovam a existência (...)”.
Rig Veda, VIII

“A sugestão de que os alucinógenos podem transformar a pessoa em


bom cidadão me surpreendeu. Sempre supus que o motivo pelo qual
os alucinógenos não são legalizados não é que alguém se preocupe
com o fato de que eles causam visões, e sim que há algo neles que
lança dúvidas sobre a validade da realidade. Os alucinógenos são,
inevitavelmente, agentes descondicionantes, pelo simples fato de
demonstrarem a existência de outra realidade próxima que funciona
com uma dinâmica diferente. Acho que eles são, inerentemente,
catalisadores de dissidência intelectual, e isso torna sua aceitação
muito difícil às sociedades, mesmo àquelas que são democráticas.”
Terence McKenna

“A mesma figura é expressa pelo Espírito Santo nos salmos quando


faz menção ao cálice do Senhor e diz: Vosso cálice, que embriaga, é,
todavia, excelente. Mas a embriaguez que vem do cálice do Senhor
não é semelhante à embriaguez que produz o vinho profano. Assim,
quando o Espírito Santo disse no salmo: Teu cálice embriagante,
ele acrescenta: Ele é verdadeiramente excelente. O cálice do Senhor
embriaga, com efeito, de tal maneira que não afeta a razão; ele traz as
almas à sabedoria espiritual; por ele cada um volta do gosto das coisas
profanas à inteligência das coisas de Deus; enfim, do mesmo modo que
o vinho vulgar desanuvia o espírito, põe a alma ao largo e bane toda a
tristeza, do mesmo modo o uso do sangue salutar e do cálice do Senhor
bane a lembrança do velho homem, proporciona o esquecimento da vida
profana e o põe a gosto, nele vertendo a alegria da divina bondade, o
coração triste e sombrio que se abatia antes sob o peso do pecado.”
Cipriano

Inicialmente vale a pena observarmos que, na fenomenologia da


experiência com os Enteógenos em geral e com o Daime/Vegetal/Yagé/
Caapi/Ayahuasca em particular, nos deparamos com absoluta sistema-
ticidade e constância com as características daquilo que Rudolf Otto de-
nomina Sagrado. Talvez o fator mais constante seja o caráter numinoso
da experiência, independente do contexto religioso da sua utilização.
Para compreendermos melhor os efeitos enigmáticos que aborda-
remos em seguida, vamos mencionar uma outra contribuição impor-
tante da psicologia junguiana. Jung estabelece uma distinção entre a
90 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

moral convencional, socialmente condicionada, e a ética interior, que


se faz na relação entre o ego e o Si-Mesmo. Conforme encontramos no
texto gnóstico, “O Trovão Fala: A Mente Acolhe a Todos os Contrários”:
“Se o teu juiz interior te condena,/ quem vai te libertar?/ Se o teu juiz
interior te absolve,/ quem vai te prender?”
A partir disso, temos elementos para entender por que os indivídu-
os que tinham pronunciado contato com a “Voz Interior” muitas vezes
ficavam impossibilitados de seguir caminhos, convicções, métodos, ins-
tituições e leis convencionais. Por isso, muitos santos foram tidos como
heréticos em seu tempo, e o próprio Jesus Cristo foi crucificado pelo fato
de aparentemente, na forma e na letra, contrariar a lei mosaica, embora
afirmasse seu propósito de cumpri-la em “Espírito e Verdade”.
Para Jung, num primeiro momento do processo de desenvolvi-
mento psíquico, o Si-Mesmo, fonte da Lei interior inscrita no incons-
ciente humano, existe projetado no exterior, quando coincide com a
moral recebida dos pais e da sociedade. Aí ele se identifica com o supe-
rego freudiano. Num segundo momento, em etapas mais avançadas de
desenvolvimento psíquico, o Si-Mesmo emerge como fator autônomo:
é quando se faz imperativo o indivíduo ser fiel à própria “lei interna”,
mesmo que lhe custe um embate com a moral social convencional, às
vezes mesmo que este embate possa lhe custar a própria vida, como com
Jesus, Sócrates ou Al-Hallâj.
Ora, a experiência com o Daime mui frequentemente leva a um
exame de consciência, conforme atestam hinos, tanto do Mestre Irineu
quanto do Padrinho Sebastião, e os salmos de Frei Daniel. Na linha do
Santo Daime e também na da Barquinha vamos encontrar a prática da
confissão do enteonauta diante de Deus, dos Seres de Luz ou do seu
Eu Divino dentro dos trabalhos. É muito curioso o fato de que, duran-
te o trabalho espiritual, com sistematicidade espantosa, vêm à mente
da pessoa amplas tomadas de consciência de tudo aquilo que de algum
modo fere sua ética interior, acompanhadas, muitas vezes, de um anseio
profundo de reformulação. Essa vivência equivale também ao que Jung
denomina confronto com a sombra, dimensão essencial do processo de
individuação e do trabalho analítico.
É bem conhecida dos iniciados a característica disciplinadora do
Daime/Oaska, punindo ou recompensando, em termos de estados in-
teriores dolorosos ou prazerosos, as boas ou más ações e/ou intenções,
bem como trazer à alma o sentimento de absolvição, diluindo as culpas
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 91

e promovendo a paz interior.17 Isso é absolutamente único e revolucio-


nário. Muitas vezes a prática da confissão para o sacerdote na Igreja ca-
tólica, com as penitências recomendadas, não é suficiente para trazer a
experiência de absolvição verdadeira e devolver paz à alma.
Nem de longe, nenhuma das substâncias químicas trabalhadas tec-
nologicamente por mão humana é capaz de ter efeito similar. No máxi-
mo nos anestesiam ou nos alienam de nossas culpas, levando os homens
desavisados à ilusão de que podem transgredir sua natureza interior
mais profunda sem serem forçados, de um modo ou de outro, a sofrer
as consequências dos seus “pecados”, suas transgressões em relação ao
Eu superior, à Natureza, em sua própria alma e em seu corpo.
Neste aspecto, a Bebida Sagrada representa ainda um guia para a sin-
tonia adequada com a nossa natureza mais profunda. Respeitar a neces-
sidade de estarmos em harmonia com esta Lei cósmica, que em algumas
tradições sagradas, como no budismo e no hinduísmo, se chama Dharma,
escrita em nossa psique e nosso corpo, significa experimentarmos um esta-
do de serena alegria e harmonia com a natureza, a natureza divina em nós,
e com toda a humanidade, conferindo igualmente saúde e longevidade.
Assim como Jesus, no Evangelho Essênio da Paz, nos ensina que
“Deus não escreveu as leis nas páginas dos livros, mas em vosso coração
e em vosso espírito”, também Jung, após longa experiência clínica, con-
clui que “a verdadeira história do espírito não está conservada nos livros
eruditos, e sim nos órgãos anímicos vivos de cada um.” Isso significa que
nossos “pecados”, nossas violências e transgressões em relação à nossa
própria natureza maior e mais profunda, o Si-Mesmo, o nosso Eu Divi-
no, deixam marcas em nossa psique, e até mesmo em nosso corpo físico,
estando na origem de muitas das doenças psicológicas e psicossomáticas.
Exatamente aí nos deparamos com o estatuto altamente positivo
da religião na cura das almas, conforme nos recorda Jung, e, por conse-
guinte, com o valor inestimável das Plantas Sagradas para a ampliação

17 No Cântico dos Cânticos encontramos uma interessante descrição dessa proprie-


dade misteriosa dos Enteógenos de trazer paz de consciência: “Eu comi meu pão
com meu mel’. Vês que nesse pão não há nenhuma amargura, mas tudo nele é sua-
vidade. Eu bebi meu vinho com meu leite. Toda vez que bebes, recebes a remissão
dos pecados, e és embriagado pelo Espírito. Aquele que é embriagado pelo vinho
titubeia; mas aquele que é embriagado pelo Espírito é arraigado em Cristo. É uma
admirável embriaguez que produz a sobriedade do espírito.”
92 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

da consciência e amadurecimento dessa dimensão essencial da psique


humana. Uma Planta que “limpa” nossas culpas nos auxiliando a sermos
menos dominados pela nossa sombra, com certeza apresenta decisivos
efeitos terapêuticos com repercussões fundamentais para o combate à
violência nas sociedades, e merece ampla investigação ulterior.
Deparamo-nos com evidências dessa propriedade misteriosa dos
Enteógenos no Atharva Veda. Trata-se de uma das escrituras tradicio-
nais da Índia antiga, contendo conhecimentos que podem ser encontra-
dos, no mínimo, desde o século III a.C.
Aí vemos uma curiosa referência ao Soma, fabuloso Enteógeno an-
cestral cuja fórmula se perdeu, que parece comprovar a consciência que
os sacerdotes do passado tinham acerca dessa enigmática propriedade:
“Que as leis foram infringidas, com os olhos, com a mente, com a fala,
consciente ou inconscientemente – que Soma, por sua divina natureza,
limpe esses nossos pecados!”
Uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto nos poderá auxiliar
na compreensão dessa propriedade misteriosa das Plantas Sagradas. Por
exemplo, sabemos que as primeiras palavras que Jesus proferiu quando
principiou sua vida pública foram: “Se cumpriu o tempo, o Reino de
Deus está próximo, arrependei-vos e crede no Evangelho” (Marcos 1:14,
Mateus 4:17). Recorda-nos John White que a palavra “arrependimento”,

“através dos séculos, tem sido mal interpretada e mal traduzida, de forma
que hoje em dia as pessoas creem que significa apenas lamentar os pecados.
Esta é uma deplorável degradação dos ensinamentos de Jesus. A palavra
aramaica que Jesus empregou foi tob, que significa ‘voltar’, ‘refluir para Deus’.
A melhor tradução que se fez do sentido deste conceito é grega.”

A palavra metanoia, assim como tob, significa “algo maior que o


mero lamento por um mau comportamento”. Metanoia etimologica-
mente tem duas raízes: meta, que significa “ir mais além” ou “ir mais
alto que”, e noia, que deriva de nous, e significa “mente”. Percebemos
imediatamente que estamos falando de transcender o estado ordinário
da mente, alcançando e realizando um novo nível, mais avançado, mais
elevado, mais dentro das regiões supraconscientes da psique, que nos
permite chegarmos a uma nova compreensão, uma nova atitude em face
do ser antigo que pecou, obtendo um melhor relacionamento com nós
mesmos, com o nosso inconsciente, com o Si-Mesmo, com nossa natu-
reza mais real e duradoura.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 93

Nada mais distante do peso de uma culpa paralisante que a abor-


dagem mais superficial e, por vezes, manipulada do cristianismo tem
trazido ao longo da história. Para John White “na terminologia moder-
na, ‘metanoia’ significa transcender o ego centrado em si mesmo para
que chegue a centrar-se em Deus, a compreender a Deus. Esta é a expe-
riência central que Jesus queria para todos”.
Traduzindo em uma linguagem científica moderna, é exatamente
essa a proposta de Jung quando fala no processo de individuação, eixo
de sua psicologia e da psicoterapia, como o deslocamento do centro de
gravidade da psique do ego para o Si-Mesmo, a Imago Dei (Imagem de
Deus) na alma humana. Tudo se passa como se fosse exatamente esta a
meta, o telos dessa purificação operada pelo Enteógeno: o desvelamento
progressivo do nosso ser mais real, de nossa identidade maior e última,
que é transpessoal, trazendo uma transformação radical, não só em nos-
sa maneira de compreender, mas, também, de sentir a vida, o mundo e
a nós mesmos.
No revolucionário livro de Stanislav Grof, O jogo cósmico, ele cons-
tata que uma das mais importantes questões que emergem “nos estados
holotrópicos de consciência numa variedade de formas e em vários ní-
veis é a questão da ética.” Em tais processos da mente expandida, depa-
ramo-nos com a necessidade de considerarmos questões éticas que, nos
estados ordinários de consciência, podem nos passar desapercebidas. É
exatamente o que acontece quando utilizamos os Enteógenos.
Mencionando a usual revisão e avaliação de nossa vida do ponto
de vista moral, que acontece espontaneamente em tais estados do ser, ele
observa a mudança na qualidade da ética envolvida nesse exame da vida.
Não “julgamos nosso comportamento em termos dos valores que nos
foram impostos pelo mundo exterior”, pela família ou pela sociedade.
Diz ele:

“Existe outra forma de autojulgamento, na qual avaliamos nosso caráter


e comportamento não pelos critérios comuns do cotidiano, mas contra o
pano de fundo da lei universal e da ordem cósmica. As experiências deste
tipo ocorrem nos estados holotrópicos de várias maneiras, mas são particu-
larmente frequentes como parte da revisão de vida em situações de quase
morte. Muitas pessoas que chegaram perto da morte falam sobre seus en-
contros com um Ser de Luz, e descrevem que, diante desta presença, subme-
teram suas vidas a uma avaliação impiedosa. Esta forte propensão da psique
humana à autoavaliação moral reflete-se nas cenas de julgamento divino nas
mitologias escatológicas de diversas culturas.”
94 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Suas observações coincidem perfeitamente com as nossas acerca


dos estados do ser alcançados com as Plantas Sagradas.
Com o conhecimento apropriado acerca dos Enteógenos e suas
propriedades misteriosas, nós podemos apreender, de uma maneira re-
almente nova, as múltiplas referências a estas Plantas mágicas e espiritu-
ais que aparecem veladas nas Escrituras Sagradas, nos mitos, nos contos
de fadas e no folclore de muitos tempos e lugares.
Por exemplo, é a partir desta propriedade misteriosa dos Enteó-
genos, que podemos entender melhor do que possivelmente estaria se
tratando quando, em textos como no apócrifo chamado protoevange-
lho da “Natividade de Maria”, o Papiro de Bodmer, diante da questão
da gravidez de Santa Maria e da suspeita que pairava sobre São José, o
sacerdote judeu falou:

“‘Far-vos-ei beber a água de prova do Senhor, e Ele fará aparecer vosso pe-
cado ante vossos olhos’.
E colhendo a água do Senhor, o sacerdote deu-a a José para beber e o man-
dou à montanha; e ele voltou ileso. E deu-a também a Maria para beber e
a mandou à montanha; e ela também voltou ilesa. E todo o povo soube e
admirou-se que não se havia revelado nenhum pecado.
E o sumo sacerdote disse: ‘Se o Senhor Deus não nos permitiu ver o pecado
do qual se os acusa, eu tampouco posso condená-los’. E os deixou seguir
absolvidos. E José tomou a Maria e voltou à sua casa cheio de júbilo e glori-
ficando ao Deus de Israel.”

Quando conhecemos esta propriedade misteriosa da Ayahuasca/


Santo Daime, de ser uma espécie de “soro da verdade”, trazendo à luz
da consciência, não apenas as nossas transgressões em relação à nossa
consciência, nossa própria natureza mais profunda, como também nos
mostrando os pecados do próximo, começamos a compreender do que
pode estar tratando este texto. Torna-se mais inteligível interpretar a
narrativa como aludindo a algum tipo de Enteógeno com proprieda-
de similar à do Santo Daime.18 O único teste, o do “soro da verdade”,
é capaz de convencer os sacerdotes da inocência de Maria e de José, e,

18 Como veremos adiante, tanto o Teonanacatl quanto o Peyotl possuem propriedade


similar. Talvez igualmente, algumas flores enteogênicas, como a Datura, que con-
tém a escopolamina, substância que tem sido usada modernamente como “soro da
verdade”, para verificar e obter confissões na esfera criminal.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 95

portanto, evidenciar aos seus olhos céticos e maliciosos a presença de


um mistério maior na gravidez de Santa Maria, trazendo o respeito por
aquela situação reconhecida como verdadeiramente incomum.
Uma das melhores apresentações desta propriedade misteriosa do
Enteógeno está nos Fioretti de São Francisco. Aí temos a comprovação
da presença, dentro da tradição franciscana, de conhecimentos ou reve-
lações espontâneas, importantíssimas, acerca das características secre-
tas e misteriosas dos Enteógenos que estamos descrevendo aqui:

“E depois disto viu Cristo assentar-se num trono grandíssimo e cândido, o


qual Cristo chamava S. Francisco e dava-lhe um cálice cheio de espírito da
vida, e ordenava-lhe dizendo: Vai e visita teus frades e dá-lhes de beber deste
cálice do espírito da vida, porque o espírito de Satanás se levantará contra
eles e os combaterá, e muitos deles cairão e não se levantarão. E deu Cris-
to a S. Francisco dois anjos para acompanhá-lo. E então veio S. Francisco
apresentar o cálice da vida aos seus frades, e começou a apresentá-lo a frei
João da Parma, o qual, tomando-o, o bebeu todo depressa e devotamente,
e subitamente tornou-se todo luminoso como o sol. E depois dele sucessi-
vamente São Francisco apresentou-o a todos os outros; e poucos eram os
que o bebiam todo. Aqueles que o tomavam devotamente e o bebiam todo
subitamente tornavam-se esplendentes como o Sol; e aqueles que o derra-
maram todo, e o não tomavam com devoção, tornavam-se negros e escuros
e deformados e horríveis de ver-se; e aqueles que em parte bebiam e em
parte o entornavam, tornavam-se parcialmente luminosos e parcialmente
tenebrosos, e mais ou menos conforme a quantidade que bebiam ou der-
ramavam. Mais acima de todos os outros o dito frei João resplandecia, o
qual mais completamente havia bebido o cálice da vida, pelo qual ele tinha
contemplado profundamente o abismo da infinita luz divina, e nela tinha
conhecido a adversidade e a tempestade que se deviam levantar contra a dita
árvore e agitar e comover os seus ramos (...)”.

Nos trabalhos com os Enteógenos, é usual que os indivíduos con-


siderados mais “graduados” no caminho espiritual são os que parecem
irradiar mais luz dentro das cerimônias. Algumas decisões e compro-
vações de veracidade ou falsidade, em situações de questionamentos
de liderança, problemas institucionais e interpessoais complexos, são
resolvidos por meio da verificação de quem consegue ingerir maior
quantidade do Enteógeno sem se perturbar ou ser desmascarado por
ele. A hesitação em tomar a Bebida Sagrada coincide com a dificuldade
de confrontar e purificar, renunciando, as suas próprias sombras.
96 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Encontramos também nos escritos de Antonin Artaud acerca do


Peyotl19 uma formulação que fala da dimensão ética e disciplinar da expe-
riência, descrevendo efeitos misteriosos similares aos do Santo Daime. Se-
gundo ele, entre os sacerdotes do Ciguri (Peiote), existe a crença de que o

“(...) Ciguri defende-se a si próprio, e quem nele não entrou de consciência


bastante pura, entregará ao Infinito todas as partes essenciais de sua cons-
ciência, porque é indigno de as conservar. Quanto ao abjeto, não passará da
porta. E entrarmos no Peyotl de má consciência é ficarmos sujeitos a uma
assustadora punição.”

A Iboga, Enteógeno africano conhecido pelos especialistas, pare-


ce ter a mesma propriedade misteriosa. Conforme relata o investigador
italiano Giorgio Samorini, a partir de sua iniciação ao culto enteogênico
Bwiti, no Gabão:

“Os Bwitistas sabem o que queremos dizer com ‘uma má viagem’. Quando
isto ocorre no Bwiti (muito mais raro que no mundo ocidental) nunca se
lhe atribui à droga. O indivíduo se faz responsável de sua própria impureza
e pensamentos malignos.”

Também o Teonanacatl, o cogumelo sagrado mexicano, a “carne


dos deuses”, parece possuir propriedades semelhantes. Fala Enrique
Montoya de algumas pessoas que ingerem o Teonanacatl e pretendem
esconder-se, ocultar sua verdade. Tais indivíduos

“(...) durante a Cerimônia são descobertos pelo curandeiro. Por meio dos co-
gumelos sagrados se pode descobrir assassinos, ladrões etc. Todos, mais cedo
ou mais tarde, sob o seu efeito, se delatam por suas atitudes ou eles mesmos
confessam. Por isso, há muitos que têm um medo mortal aos cogumelos.

19 Outro importante Enteógeno: um cacto sagrado que, além das tradições mais an-
tigas de uso xamânico (como, por exemplo, os huicholes, os tarahumaras do Méxi-
co) originou a Native American Church nos EUA, que deu nascimento, em nosso
mundo atual, a igrejas enteogênicas que se difundiram por diversos países, com
grande número de membros em torno de si. Como foco de resistência e até de so-
brevivência cultural, ela tem um papel singular na história indígena da América do
Norte. Conforme os antropólogos, seu surgimento é relativamente recente, embora
talvez possamos pensar que, como muitos outros cultos enteogênicos da atuali-
dade, se fundam em ensinamentos e tradições anteriores e, sobretudo, em novas
revelações, novas roupagens da mesma universal e arquetípica mensagem.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 97

Não querem ser descobertos ou não querem enfrentar a si mesmos, à sua


própria consciência. Com o Teonanacatl saem a reluzir todas as más ações
do passado, sem que se possa evitar isto. É como um Juízo Final. É a droga
da verdade. Quando uma pessoa não quer confessar, sofre horrivelmente, até
que o cogumelo o obriga a fazê-lo. Então se sente liberado de terríveis cargas.
A Cerimônia do Teonanacatl é uma catarse espiritual muito profunda. O do-
ente deve ‘vomitar’ seus pecados, é a única maneira de limpar-se.”

Encontramos exatamente a mesma fenomenologia na Ayahuasca/


Daime/Vegetal/Caapi/Yagé, bem como no Peyotl, na Iboga africana e
outros Enteógenos.20
Deparamo-nos igualmente com o motivo do balanço da vida e neces-
sidade de purificação tanto na velhice quanto nas experiências de quase-
morte; Jung e Marie Louise Von-Franz nos mostram que a alma não é indi-
ferente ao morrer. Diz Jung: “A tendência compulsiva que os moribundos
frequentemente revelam de querer corrigir ainda tudo que é errado, deve
apontar na mesma direção.” É sumamente interessante que o Enteógeno
seja um catalisador desse processo arquetípico. Nesse aspecto ele pode
proporcionar uma vivência psicologicamente real de morte-renascimento.
Qual o papel dessa propriedade misteriosa em nossa individuação?
Nesse ponto, deparamo-nos com uma dificuldade de muitos pes-
quisadores modernos deste rarefeito assunto. Os buscadores que inten-
tam alcançar novo patamar de consciência devem se preparar espiritual
e psicologicamente para realizar uma radical transformação ética. Este é
um critério essencial de acesso à gnosis, o conhecimento direto e vivencial
das dimensões espirituais que as Plantas Sagradas podem descortinar.
Absolutamente não é uma questão estritamente farmacológica.
Aqui, como em outros aspectos, os Enteógenos ultrapassam, em certos
níveis, a Química, a Biologia e a Farmacologia conhecidas. Conforme
corajosamente demonstra Enrique Montoya:

“Para poder manejar o conhecimento do sagrado, é necessário ser limpo e


puro, e a maioria dos cientistas são ateus e estão cheios de Karmas, e vivem
uma vida sexual desordenada. Isto lhes impede ter acesso ao mundo do má-
gico, do sagrado, e os impossibilita de adquirir os poderes mentais que dá
o Teonanacatl.”

20 Para investigar adequadamente este assunto é necessária bibliografia completamen-


te diferente da convencional: GROF, Stanislav. Beyond death – arquétipo do juízo
final, psicostasia egípcia; MORIENDI, Ars. Tarot – O julgamento – Arcano XX.
98 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Eles “(...) estão sujos de alma e da mente, e encaram o cogumelo


de forma profana.”
Podemos falar o mesmo de todas as Plantas dos Deuses. É preciso
“nascer novamente”: É indispensável a purificação do candidato a in-
vestigador desses rarefeitos assuntos, um renascimento da consciência,
do sujeito que busca penetrar e interpretar as realidades transpessoais
e transcendentes, para alcançar as experiências decisivas acerca de suas
dimensões mais profundas. Muitas das Plantas Sagradas têm esta carac-
terística. Não há como decifrá-las sem percorrer o caminho do aprendi-
zado por meio da experiência direta, utilizando, por vezes, para ampliar
o alcance do Enteógeno, algumas tecnologias conhecidas há milênios: o
jejum, o contato com os Seres de Luz, espíritos guias e deidades, a cone-
xão e o diálogo com o Si-Mesmo (Eu Divino) etc.
Em algumas tradições são utilizadas outras técnicas de purifica-
ção como um preparo para a experiência decisiva com o Enteógeno. O
etnopsicólogo Holger Kalweit, a partir de sua experiência com diversas
modalidades de xamanismo, conclui: “Os iniciados xamãs de várias cul-
turas purificam sua mente e seu corpo antes de começar seu treinamen-
to psicodélico”. Desde a “tenda do suor” dos índios norte-americanos à
confissão pública feita pelos Huicholes do México ou no Bwiti africano,
deparamo-nos com estas tecnologias complementares que se somam às
propriedades de purificação e ao amplo alcance dos Enteógenos.
Esse conhecimento também é utilizado para a recuperação de dro-
gadictos na clínica peruana de Takiwasi: A dimensão purificatória, a
desintoxicação realizada por meio de plantas depurativas na fase inicial
do tratamento, é essencial para o resultado mais pleno do Enteógeno, da
Ayahuasca, a Planta Mestra que transforma efetivamente o indivíduo.
Ralph Metzner chama atenção para os paralelos entre os temas dos
xamãs e dos alquimistas. Um deles é o forte interesse em purificação
e cura, em descobrir ou fazer uma “tintura” ou “elixir” que dará saú-
de e longevidade. Após longa investigação com equipe interdisciplinar,
Ralph menciona “(...) os admiráveis resultados de aprimoramento da
saúde, atribuídos à ação purgativa da ayahuasca; as descrições do efeito
posterior da purga são de liberação, esclarecimento, intensificação das
cores e fortalecimento.”
O que é constatado por Ralph e sua equipe é um fenômeno bem
conhecido e vivenciado frequentemente pelos seguidores do caminho
enteogênico:
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 99

“Existe uma interessante convergência entre a purgação física e a psíquica


que ocorre frequentemente sob a forma de uma descarga do tom negativo
dos conteúdos psíquicos. Portanto, quem não detém algum tipo de toxidade
mais consistente no seu sistema pode liberar, no momento do vômito, os
resíduos tóxicos de um passado emocional conturbado – a culpa ou vergo-
nha em relação a certos traumas, limitações, defesas, transferências, vícios,
compulsões, e outros comportamentos neuróticos.”

Isso é absolutamente revolucionário. Ultrapassa quaisquer ideias


que podíamos ter acerca do efeito fisio-psicológico de substâncias ca-
pazes de alterar a mente humana, com efeitos que geralmente cessam
quando passa a ação do fármaco. Aqui, como em outros lugares, en-
contramos argumentos que invertem a posição de muitos pesquisadores
mui respeitáveis, onde percebemos a superioridade psicoterápica das
Plantas Sagradas sobre os sintéticos.
Encontramos em um texto de Alquimia escrito por Jean D’Espagnet
intitulado A obra secreta da filosofia de Hermes Trismegistos a seguinte
passagem:

“O azougue é uma parte natural e artificial: sua parte intrínseca e oculta tem
sua raiz na natureza e só pode ser extraída por meio duma purificação prévia e
por uma sublimação feita com ciência. A parte intrínseca é estranha à nature-
za e acidental. Separa, portanto, o puro do impuro, a substância dos acidentes,
e revela o que estava oculto pelos véus da natureza ou então renuncia comple-
tamente. Porquanto, esse é o primeiro fundamento da arte e de toda a obra.”

Apesar das dimensões altamente enigmáticas, fica evidente aí, bem


como em outros autores que não mencionaremos por ora, que a purifi-
cação parece referir-se à secreta tecnologia que tem um lugar decisivo
na Alquimia. Depreende-se também que essa purificação se faz no sen-
tido de auxiliar o homem a recobrar ou retornar à sua natureza original,
mergulhando em esferas tocadas apenas pela Teologia, como verificare-
mos melhor adiante.
Sendo assim, torna-se mais inteligível a famosa sigla VITRIOL da
alquimia. Significando, na versão de um grande alquimista, “Visita as
entranhas da Terra e, com uma purificação realizada por distilação, en-
contrarás a Pedra oculta”. Ora, é exatamente isso que faz o enteonauta:
visita sistematicamente o interior do seu inconsciente, de sua alma, re-
tificando, corrigindo-se, para encontrar a “Pedra oculta” do Si-Mesmo,
fonte das Forças Autocurativas e regeneradoras da psique e do corpo.
100 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Apenas essa propriedade já seria indicativa do alto valor psico-


terápico da Ayahuasca e sua enfática indicação para investigação mais
profunda no campo da Psicossomática. Mas, ainda neste tópico da pu-
rificação, seus misteriosos efeitos vão muito além. Todos os enteonautas
experientes percebem que os processos de limpeza se fazem em múlti-
plos níveis: tanto no corpo, quando alimentos pesados e inadequados
são obstáculos ao trabalho, como limpando as energias (retirando car-
gas negativas captadas de ambientes e de outras pessoas ou atraídas pela
própria pessoa), transmutando as emoções, a cognição e as memórias
psicológicas, bem como as dimensões espirituais, o Santo Daime/Vege-
tal/Ayahuasca/Yagé atua auxiliando de modo altamente eficaz a pessoa
a mudar de nível em vários aspectos e dimensões do seu ser. É, portanto,
uma purificação físico-energético-psico-socio-espiritual.
Impossível não pensarmos aí, novamente, na Alquimia com seus
tão bem guardados segredos em tempos de ignorância e perseguições
teológicas. Hoje temos inúmeros subsídios para chegarmos a uma nova
noção acerca das avançadas tecnologias conhecidas pelos sábios do pas-
sado. Um segredo imperativo de ser bem guardado, para não colocar em
risco de vida seus detentores ininteligíveis para pessoas despreparadas.
Ainda hoje precisamos ter cuidados ao abordar tais conhecimentos, fa-
cilmente mal-interpretados.
O que seria que os alquimistas chamavam de Medicina Univer-
sal? Através da emersão do Si-Mesmo, um outro centro mais profun-
do da psique, temos a harmonização com todos os níveis de nosso ser:
corpo físico e sutil, com a psique, o socius, o outro, com a natureza, o
ecossistema, e com o espiritual, o sagrado, com Deus. Por isso a equipe
interdisciplinar que investigou o Santo Daime/Oaska encontrou saúde,
equilíbrio e ética, abordando as dimensões física, psicológica e social
dos usuários de diferentes grupos e Escolas.
Conforme Jean D’Espagnet:

“O úmido radical outra coisa não é senão o bálsamo universal e o elixir pre-
ciosíssimo da natureza; é por excelência o mercúrio da vida sublimada pela
própria natureza, que dele forneceu uma dose exatamente pesada e com
precisão a cada indivíduo da família. Aqueles que sabem, portanto, extrair
semelhante tesouro do seio e das entranhas dos produtos naturais em que se
encerra e desenvolvê-lo fora das aparências dos elementos em cuja sombra
se ocultou, esses, repito, podem ufanar-se de ter encontrado o remédio su-
premo da vida humana e a panaceia universal.”
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 101

Se, conforme o Salmo da Barquinha que roga a São José, “(...) a


maior doença é o pecado (...)”, isto é, “hamartia”, “errar o alvo”, praticar
ações que nos desconectem do Si-Mesmo, um elixir que nos cure desse
mal psicológico maior, terá o poder de operar a cura mais total e defini-
tiva de nossas vidas.
O que era a “fonte da vida eterna”, o “elixir da imortalidade” para os al-
quimistas? Apesar de outras possíveis interpretações que poderíamos fazer
utilizando os mistérios tântricos (os quais temos evidências de se tratarem
de outro segredo bem guardado da Alquimia, como fica evidente através
do exame do Rosarium Philosophorum estudado por Jung, e como demons-
tra o Mestre Samael Aun Weor) é bem provável que também tivéssemos aí
uma poção enteogênica. Vamos tomar, entre muitos, um exemplo.
Ao realizar uma altamente sofisticada exposição sobre o que é a
Alquimia, o alquimista moderno E. H. desvela as dimensões alquímicas
dos ensinamentos de importantes tradições sagradas da humanidade,
tais como a judaica, grega e a cristã. Lendo esotericamente a Odisseia
de Homero, verificamos que ele focaliza a ação de substâncias mágicas
(psicoativas?) e seus efeitos no cerne de sua trama. O vinho servido por
Circe aos companheiros de Ulisses os transforma em porcos.21
E. H. fala da ida de Ulisses para a mansão da maga Circe no intuito
de libertar seus companheiros, quando encontra Hermes, o mensageiro
dos deuses, que porta uma vara de ouro, o caduceu hermético:

“O deus adverte-o dos perigos que corre e lhe revela uma medicina que
o imunizará contra as drogas funestas da deusa: ‘Havendo falado assim, o
deus dos claros raios arrancou do solo uma erva que me ensinou a reconhe-
cer antes de me dar: sua raiz é negra, e a flor, branca como o leite; ‘moly’
chamam-na os deuses, mui difícil de arrancar para os mortais, ainda que os
deuses tudo possam’.”

Seu comentário, em nota pouco abaixo no texto, falando da inte-


ração de Circe com Ulisses, traz uma importante formulação acerca da

21 Isso evidencia os efeitos xamânicos, de transformar homens em animais, encon-


trados em certas poções mágicas de vários tempos e lugares. Igualmente o clássico
livro O Asno de Ouro, de Lucius Apuleius, apresenta uma trama “xamânica” seme-
lhante. O herói, após beber a poção errada da feiticeira, vê-se sob a forma de um
asno. O texto versa sobre suas experiências nesse estado “caído” e o caminho a ser
percorrido para sua metamorfose em humano novamente.
102 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

relação entre o alquimista e a natureza, que é similar à encontrada entre


o enteonauta e o Enteógeno:

“Seus encantos mágicos não tinham nenhum efeito sobre o herói possui-
dor da erva hermética Moly; assim pois impôs-lhe facilmente seu jugo. Do
mesmo modo o Sábio Artista possuidor do segredo hermético exerce a Arte
Real sobre toda a Natureza. Porém é uma realeza sem violência. É a do jar-
dineiro em seu jardim e a do esposo na câmara nupcial. Tudo se faz sem es-
forço. Ao contrário a ciência profana atua com violência e constrangimento.
Os adeptos recomendam ao aprendiz que siga a natureza, que receba suas
lições, que trabalhe de comum acordo com ela, que a ajude sem tentar ja-
mais violentá-la.”

Aludindo ao final da estória, na qual Circe os liberta esfregando-os


com outra planta que os purgou do veneno, possibilitando recobrarem
sua forma original, ele cita o poema, nas palavras de Homero: “De novo,
ei-los aqui convertidos em homens, porém, mais jovens, mais fortes e
mais formosos do que antes”. Ousaríamos demasiadamente se sugerís-
semos que textos como esses se referem tanto a um processo iniciático
tecnicamente induzido quanto realizam uma descrição simbólica, em
suas linhas gerais, da ampla experiência de renovação que alcançam os
que passam por um processo psicológico de Emergência Espiritual?
Verificamos então mais evidências do avançado conhecimento
acerca das plantas que detinham os povos da Antiguidade.
Ainda na consulta aos alquimistas sobre essa propriedade miste-
riosa que estamos expondo, temos o comentário de Jean D’Espagnet
evidenciando as inequívocas inter-relações entre os mistérios alquími-
cos e as questões teológicas últimas acerca da origem, da condição e do
propósito maior da vida humana:

“(...) É o que nos confirma o texto sagrado, onde é preciso observar que se
diz que o nosso primeiro pai foi criado não imortal por causa de sua maté-
ria; e que, a fim de que ele fosse isento de corrupção terrestre e da mancha
original desta matéria, Deus colocou no paraíso terrestre uma árvore abun-
dante em fruto de vida, e que era como uma fortaleza e um remédio contra
a fragilidade da matéria e a servidão da caducidade e da morte. Depois de
sua queda e da sentença que o tornou mortal, foram-lhe vedados o uso e a
aproximação.”

Mais adiante ele descreve as consequências dessa “queda” explana-


da no Gênesis:
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 103

“Este véu da verdade oculta e estas trevas da nossa mente foram uma parte
da punição do pecado, em virtude do qual o homem se viu privado das delí-
cias do Paraíso terrestre, dos encantamentos que se encontram nas ciências
e do conhecimento da natureza dos seres celestes: para que aquele que se
entregara ao desejo culposo duma ciência proibida fosse punido pela justa
privação daquela que lhe era permitida, e castigado, assim, depois da per-
da da verdadeira ciência (que não era senão uma e a mesma para todas as
coisas) pela introdução da multiplicidade das ciências. Ali está o querubim,
com uma espada flamejante na mão, colocado à porta do Paraíso o qual com
o brilho de sua luz cega o espírito dos homens culpados, a fim de impedir-
lhes o acesso aos segredos e às verdades da Natureza e do Universo.”

Vemos aí o fenômeno da multiplicação e pulverização das ciências,


força e fraqueza da ciência atual, que substituíram as “ciências holísti-
cas dos sábios do passado” (como as nomeia LaoTsé), como fenômeno
arquetípico. Conforme redescobre Jung, são menos transformações ale-
atórias, casuais, do que poderosas forças coletivas, que estão nas raízes
dos fatos históricos. Os arquétipos estão por detrás da história, e os ho-
mens instruídos dos povos antigos sabiam disso. Não apenas em meu
estudo sobre a visão da mitologia que tinham os iniciados nos mistérios,
mas em outras investigações, como as sobre a Alquimia, apresento mui-
tos argumentos em favor dessa hipótese.
No Gênesis essênio, o querubim com a espada flamejante está a
apontar o caminho da Árvore da Vida, complementando perfeitamente
o Gênesis ortodoxo que conhecemos. Na experiência enteogênica, de-
paramo-nos com o fato de que, enquanto alguns penetram em visões de
mistérios sublimes, inefáveis, paradisíacos, outros, sentindo-se culpa-
dos, podem estar saboreando o Purgatório ou o Inferno de se verem su-
jos e excluídos do merecimento de ascenderem às regiões divinas. Mas
o processo promovido gradualmente pelo Enteógeno visa ousadamente
curar essa ferida primordial.
Ensina o alquimista Jean D’Espagnet:

“Como no elixir, as forças do fogo natural são multiplicadas e aumentadas


maravilhosamente, por causa do espírito da quintessência que nela foi insu-
flado. Os acidentes viciados e que aderem aos corpos, cuja pureza embotam,
envolvendo assim nas trevas a verdadeira luz da Natureza, são banidos por
prolongadas e diversas sublimações e digestões.”

O trabalho da psicoterapia apresenta estas duas dimensões como


chaves do caminho. As sublimações, proporcionando mudanças de ní-
104 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

vel, e as novas e mais apuradas, mais amplas “digestões” do processo


psicológico da pessoa com o auxílio do terapeuta e sua tecnologia, pro-
movem otimização do funcionamento e melhoram a saúde mental.
Igualmente o Enteógeno, com o correto uso prolongado, desdobra
e catalisa o processo psicológico, produzindo insights, novas elabora-
ções, expansão de consciência e maior saúde, psíquica e física. O alqui-
mista também sabe disso. Diz ele: “O segundo círculo, o da restauração,
tem por função proporcionar, pela bebida, forças ao corpo ofegante e
fraco.” Que bebida seria essa? Um Enteógeno? É bem provável que sim.
Isso explicaria muitas das coisas enigmáticas que dizem os alquimistas
acerca de sua magna obra anímica e corporal.
Voltando às propriedades únicas dessas Plantas mágicas e os enig-
mas da purgação que elas promovem, um fenômeno afim, igualmente
bem conhecido de daimistas/oaskeiros experientes, embora igualmente
misterioso, é descrito por Ralph Metzner:

“Às vezes, os indivíduos chegam a pensar que o tudo que é descarregado nos
vômitos não faz parte do seu ‘acervo pessoal’, mas de alguma porção do in-
consciente coletivo da humanidade. Lembro-me de alguém que me disse não
ter ficado com nenhuma vontade de vomitar quando estava explorando o
fluxo de suas visões pessoais; mas passou a vomitar abruptamente quando
começou a pensar e a ter visões das guerras genocidas e de toda a opressão que
ocorria na América Central (que ele não havia vivenciado pessoalmente).”

As “cargas” pessoais também podem ser captadas em uma sessão


de grupo. De acordo com minhas observações encontramos, igualmen-
te, pessoas que, ao se aproximarem de alguém “carregado”, “vomitam”
por eles sua carga, aliviando a tensão energética, auxiliando-os a se sen-
tirem melhor durante o trabalho espiritual com o Enteógeno.
Outro importante paralelo é o que poderemos extrair da noção de
fases da obra alquímica: o caminho enteogênico é um processo (a Sagra-
da Torrente da Vida, como descreve Jesus no Evangelho Essênio da Paz,
conforme veremos adiante), que se desdobra em diferentes fases com
características psicológicas próprias. Algumas interessantes interpreta-
ções dessas etapas descritas pelos alquimistas sob a forma de metáforas
químicas e de figuras da natureza são realizadas por Jung e alguns psi-
coterapeutas junguianos, mas especialmente aprofundadas por Edward
Edinger, em seu livro Anatomia da Psique. Igualmente o reconhecimento
do caráter sagrado da natureza, da matéria, do corpo, o resgate do femi-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 105

nino (ex.: a frequência de visões com a Mãe divina, de deidades femini-


nas e visões de animais que simbolizam o feminino como a serpente),
são elementos comuns à via alquímica e à via xamânica, enteogênica.
Minhas investigações neste campo, a experiência pessoal como dis-
cípulo dos Enteógenos, auxiliadas por uma formação iniciática, os estudos
de Esoterismo e a Psicologia de C. G. Jung, corroboradas pela Psicologia
Transpessoal, me mostraram que, seguramente, uma de suas principais
dimensões, um dos eixos mistéricos da Alquimia22 se refere à utilização
do universo das Plantas Sagradas, em seu incomparável poder alquímico
e transmutador (isto é, transformador físico, energético, emocional, men-
tal e espiritual do indivíduo) sobre os corpos material e sutil, e também
sobre a alma humana, tendo um papel decisivo no desvelamento do Eu-
divino, o Si-Mesmo, o Self, o Ser-total, representado pelo Hermafrodita,
o Rebis. Temos alguns textos e iconografia que comprovam isto. (Imagem
– o império de Netuno – foco na cesta com os cogumelos).
Peter Marshall, doutor em história das ideias e professor de filoso-
fia, nos fala da Alquimia chinesa:

“Parece que os alquimistas utilizavam drogas alucinógenas. Ainda que,


desde seus inícios, a alquimia chinesa se concentrou principalmente nos
metais, incluía também a arte de cultivar plantas maravilhosas (ling chih),
entre elas o cânhamo, que se acreditava que prolongavam a vida e, inclusive,
que proporcionavam a imortalidade. A mais famosa delas era o ‘cogumelo
mágico’, que em muitas ilustrações populares se representa nas mãos dos
alquimistas, tanto homens como mulheres. O fato de que os cogumelos ti-
veram um papel tão preponderante na tradição alquímica sugere que existia
um uso ritual de substâncias alucinógenas; na realidade, e como mostram
numerosos poemas alquímicos, as visões e os transes extáticos que consis-
tiam em ver-se cavalgando o vento com os imortais eram comuns na antiga
China. Ko Hung di-lo sem rodeios: ‘Todos os cogumelos numinosos podem
levar os homens à longevidade e à imortalidade material; e isto pertence à
mesma categoria que a fabricação de ouro’.”

Esta percepção não deve absolutamente ser considerada como


apologia ao uso profano e indiscriminado de cogumelos por jovens
em busca de prazer ou de alienação, o que alguns dos fatos eviden-

22 Conforme Alberto Magno: “Em árabe Ul-Khemi é, como o nome indica, a química
da Natureza Ul-Khemi ou Al-Kímia, seja como for, é apenas uma palavra arabizada
tomada do grego chemeia, de chumos (sumo), suco extraído de uma planta”.
106 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

ciam como perigoso. Existem provavelmente vários casos de surtos


psicóticos e “maus resultados” na utilização profana dos Enteógenos.
Na verdade, apesar de seu potencial amplamente promissor e de seu
insuspeitado alcance, os Enteógenos não são inócuos. Ao caírem em
mãos despreparadas ou com obscuras intenções, eles podem ter efeitos
prejudiciais. Como com qualquer ferramenta, o sujeito por detrás de
seu uso é essencial, pois podem ser utilizados com ética e competência
ou não, voltados para fazer o bem, educando, curando e instruindo, ou
para o mal, confundindo, manipulando e distorcendo o salutar natural
caminho da espiritualidade.
A ênfase que podemos extrair de toda esta investigação é que exis-
tem suficientes condições de segurança no uso espiritual, terapêutico,
gnóstico e/ou oracular dos Enteógenos, geralmente em contexto ceri-
monial, manuseados e administrados por pessoas experientes no as-
sunto, capazes de ter o respeito e a pureza de propósitos, bem como o
conhecimento necessário. É um dado muito importante o de que expe-
riências “negativas” podem ocorrer por seu uso inapropriado.
Apesar desse aspecto decisivo, podemos nos deparar também com
a possibilidade de até mesmo as “bad trips”, as vivências dolorosas e crísi-
cas, serem passíveis de interpretações que, do ponto de vista terapêutico e
espiritual, podem ter um sentido bastante positivo. Se nos aprofundarmos
um pouco nessa questão, um dos maiores especialistas na utilização tera-
pêutica dos Enteógenos, o Dr. Salvador Roquet, o revolucionário médico e
psiquiatra mexicano, chega a uma posição complementar com a qual nos
alinhamos em parte. Ele é talvez o maior terapeuta no mundo moderno
que utilizou Plantas Sagradas em psicoterapia e medicina com excelentes
resultados. Em seu original método denominado Psicossíntese, concluiu
que o hedonismo é uma etapa inicial e imatura no uso dos psicoativos.
Segundo ele, é a etapa mais perigosa, “dos bloqueios e da fuga” que, em
um trabalho terapêutico, deve ser ultrapassada. É uma etapa de fantasia,
de busca unilateral da “boa viagem”, descrita por ele como “a etapa do fal-
so amor, do falso misticismo, ou seja, do sonho ou da ilusão de um ‘Deus’
simbolicamente carregado de traços paternais ideais, produto direto das
frustrações e das racionalizações autojustificantes do sujeito.”
Em sua terapia (utilizando o referencial da psicanálise culturalista
de Erich Fromm), por meio de estados de expansão de consciência, ele
tem uma posição bem clara acerca da tendência hedonista nesse tipo de
processo:
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 107

“Todo nosso trabalho consiste, por meio dos diversos estímulos audiovisu-
ais, a obrigar o paciente a ‘cruzar’ esta etapa com a maior brevidade, para
evitar que esse ‘canto de sereias’ tão temido por Ulisses o desvie de sua rota,
de seu destino, de sua vida, bloqueando-o em seu trabalho, distanciando-o
no sentido mais literal da palavra.”

Outro especialista, Terence McKenna considera a “bad trip” como


“uma viagem que acaba te fazendo aprender mais rápido do que você
quer”. Falando sobre as drogas em geral ele nos recorda:

“A maior parte das pessoas tenta dosar o aprendizado inerente às drogas,


mas às vezes a droga libera mais informação do que você é capaz de apren-
der. Para piorar, a mensagem pode ser, ‘você trata mal as pessoas’, e ninguém
quer escutar isso.”

É interessante que ele tenha evocado aí exatamente o “puxão de


orelhas” ético que é, quase que inexoravelmente, proporcionado pelas
Plantas Sagradas. Enquanto nosso sistema penal enfatiza a punição, Pla-
tão, na República, recomenda a educação e reorientação. Busca trans-
formar o estado de consciência do criminoso, anulando o crime com
Sabedoria e Justiça. Como diz Gabriel Chalita, doutor em Direito, Co-
municação e Semiótica: “Com a vingança nada se consegue”.
Voltando ao método de Salvador Roquet, na etapa seguinte de re-
viver experiências passadas, a etapa analítica do tratamento, é impor-
tante o desaparecimento dos mecanismos de defesa:

“O sujeito se encontra de repente e involuntariamente frente a sua proble-


mática, sem o apoio de suas resistências nem a possibilidade de continuar
‘escapando’. Essa terceira etapa, que os sujeitos com ‘experiência’ tratam de
evitar a todo custo e que chamam ‘má viagem’ (‘bad trip’) é ao contrário,
para nós, uma das mais úteis. É certo que é a etapa da angústia, do sofri-
mento e da dor; e do perigo tanto para o sujeito, que pode buscar sua auto-
destruição, como para o terapeuta, que pode ser alvo de qualquer agressão,
se não sabe manejar adequadamente a situação. Mas é também a fase de um
enfrentamento com toda a carga bloqueadora do passado, a que poderíamos
chamar de ‘purificação’ do espírito por ele mesmo.”

O daimista experiente sabe disso e encara as “peias”, as disciplinas


efetuadas pela Bebida Sagrada, como algo perfeitamente natural.
Enxergando ambas as perspectivas apresentadas anteriormente,
temos de reconhecer que, buscando uma apreciação mais ampla e ínte-
108 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

gra, reiteramos os riscos de um uso profano das Plantas Sagradas, mas


buscamos incentivar sua investigação mais ampla e aplicações terapêu-
ticas sérias, fazendo nossa a posição espiritual respeitosa. Referindo-se
ao Peyotl, Hobel escreve que: “Os cheyennes enfatizam os truques do
peiote. Reiteram constantemente que um homem deve proteger-se de si
mesmo e também que deve viver retamente ou o peiote o envergonhará”.
O mesmo é válido para outros Enteógenos.
A importância dessa propriedade e suas possíveis aplicações na rea-
bilitação da delinquência e criminalidade são quase completamente des-
conhecidas, mas merecem, com segurança, uma ampla e cuidadosa inves-
tigação. Nosso sistema carcerário atual pouco ou nada oferece em termos
de oportunidades de reabilitação, o que torna a situação cada dia mais
grave e insustentável. Faz-se indispensável procurarmos saídas também
neste setor. Urge aqui igualmente uma ampla mudança de consciência.
Aprendemos com Carlos Castañeda uma formulação bastante exata
desta propriedade: “Um homem, qualquer homem, merece tudo o que
está destinado ao homem – alegria, dor, tristeza e luta. A natureza de
seus atos não tem importância, enquanto ele agir como um guerreiro.” O
“guerreiro” do autoconhecimento e do desenvolvimento interior busca a
transformação e o aprimoramento de si mesmo. Acrescenta Castañeda:

“Se o seu espírito está distorcido, ele deve simplesmente endireitá-lo – puri-
ficá-lo, torná-lo perfeito –, pois não há nenhum outro trabalho, em todas as
nossas vidas, que valha mais a pena. Não endireitar o espírito é procurar a
morte, e isso é o mesmo que não procurar nada, pois a morte nos apanhará,
de qualquer maneira. Buscar a perfeição do espírito do guerreiro é a única
tarefa digna de nosso tempo limitado e de nossa virilidade”.

Finalizaremos o breve estudo acerca dessa propriedade misteriosa


(de alguns dos Enteógenos) de purificação anímica, citando um trecho
do que ensina o analista junguiano, Lawrence Jaffe, acerca do mistério
da Imaculada Conceição, o arquétipo da Virgem. Aqui lembramos que
duas das mais importantes, novas e autóctones linhas de Daime (o San-
to Daime de Mestre Irineu, e a Barquinha de Frei Daniel) atribuem a
revelação, a fonte, a origem dos seus trabalhos e metodologia, a Nossa
Senhora da Conceição. Diz Lawrence:

“O significado psicológico da Imaculada Conceição de Maria nada tem a ver


com sexo e independe de gênero. Não se trata de um acontecimento concre-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 109

to que ocorreu somente uma vez no tempo, mas sim de um acontecimento


que ocorre repetidamente numa alma preparada. Significa isto que somos
curados quando recorremos à parte de nós mesmos que permaneceu imune
às considerações mundanas. É esta a virgem em cada um de nós, homem ou
mulher. Quer isto dizer que uma parte secreta de nós mesmos (relacionada
com essa tranquila, pequenina voz da consciência) permaneceu pura, isto é,
coerente com sua disposição original e inalterada pelas seduções mundanas
que amoldam com tanta eficiência o pensamento, assim como o comporta-
mento. A virgem, na qualidade de centro curativo, é mais objetiva que nosso
ego e adere mais firme e resolutamente à verdade. Nessa Câmara secreta de
nossa alma vão sendo continuadamente preparados novos reinícios.”

3- Propriedades terapêuticas – uma revolução em


Psiquiatria e Psicoterapia

“Este Soma é todo um deus;


Cura as mais inabaláveis enfermidades que o homem sofre.
Cura o enfermo, conforta o triste,
Tonifica o fraco e dissipa seus medos;
Com marcial ardor estimula o desfalecido;
Com elevados pensamentos inspira o poeta.
Eleva a alma da Terra ao céu;
Assim grandes e maravilhosos são seus dons.
O homem sente o deus em suas veias
E exclama em voz alta frases de louvor:
Nos saciamos com a seiva do Soma
E nos tornamos imortais;
Entramos na luz,
E a todos os deuses conhecemos.
Que mortal pode agora nos fazer dano,
Ou que inimigo pode atormentar-nos todavia?
Graças a Ti, deus imortal, nos elevamos mais além
De toda perturbação.”
Hino Védico ao Soma

“Fazemos a aprendizagem de nossa medicina a partir do Yagé e


outras plantas de conhecimento, sempre orientados pelos taitas. O
Yagé e a natureza são o nosso livro mais importante para aprender a
medicina. (...) É necessário mostrar ao mundo que o Yagé é uma planta
sagrada, um presente de Deus, um grande remédio, uma grande planta
purgante e medicinal. Os taitas, usando bem o Yagé, podem curar
muitas enfermidades e ajudar a humanidade.”
(Encontro de Taitas na Amazônia Colombiana)
110 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

“Minha experiência com os Ayahuasqueiros (xamãs que utilizam


a Ayahuasca) foi a mais forte no marco de minha investigação.
Me ofereceu novos vislumbres sobre os ocultos segredos da mente
inconsciente e os levou à superfície, proporcionando-me uma nova
via em que a física e a psicologia podiam coincidir. Também me
proporcionou novas esperanças para a possível cura de certo número
de enfermidades pandêmicas, entre as quais estão o problema da
adicção às drogas e as enfermidades mentais próprias do Ocidente.”
Fred Alan Wolf – Doutor em Física

São inúmeras as propriedades terapêuticas dessas Plantas. Apesar de


pouco conhecidas e com potencialidades infindáveis, exatamente por seu
alcance psíquico, energético e espiritual, elas entram com vantagens, em
relação às drogas sintéticas, em dimensões ainda desconhecidas pela Medi-
cina e pela Psiquiatria atuais. Atuando de modo mais similar aos remédios
homeopáticos do que aos alopáticos, exercem sua eficácia nas causas, mui-
to mais que nos sintomas, das doenças ou disfunções somáticas e psíquicas.
Além de não apresentarem efeitos colaterais perigosos ou irreversíveis com
o uso continuado, são, sobretudo, muito mais testadas em seres humanos
(milenarmente) do que quaisquer “drogas” sintéticas, pouco experimenta-
das, receitadas pelos médicos e à venda livremente nas farmácias.
Fazemos nossas as reflexões de Terence McKenna:

“Não mencionei nenhum produto sintético porque preferiria separar as


plantas que produzem visões da noção popular de drogas. O problema glo-
bal das drogas é uma questão inteiramente diversa, e tem a ver com o des-
tino de nações e de sindicatos criminosos, e envolve bilhões de dólares. Eu
evito as drogas sintéticas e prefiro os alucinógenos orgânicos porque acredi-
to que uma longa história de uso xamânico é o primeiro selo de aprovação
que devemos procurar ao escolher uma substância por seu possível uso no
crescimento pessoal. E se uma planta tem sido usada há milhares de anos,
também podemos ter bastante confiança em que ela não causa tumores,
abortos ou qualquer outro risco físico inaceitável”.

É de insuspeitado valor terapêutico o poder da Ayahuasca/Daime/


Vegetal de diluir complexos e de desautomatizar estruturas neuróticas
e padrões repetitivos – através do influxo de novos estados do ser e de
consciência, antigas e viciadas conexões se rompem, possibilitando no-
vas articulações e reestruturação psíquica. Além disso, a capacidade de
liberar afetos, de gerar catarses, permite revisar elementos cristalizados
e obsessivos da personalidade. Igualmente, nos casos de depressão, ma-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 111

nia e agressividade, ou na redução da ansiedade, o chá sagrado revela-se


profundamente eficaz e transformador.
A dependência e o abuso de drogas, bem como do alcoolismo, en-
contram remissão, não apenas pela eficiente desintoxicação operada por
estas Plantas, mas especialmente através da saciedade da natural sede
de plenitude da alma humana, o anseio de realização espiritual que está
por detrás destes problemas. (Um dos 12 passos do eficiente método
dos Alcoólicos Anônimos.) Esse anseio, que constitui uma das motiva-
ções mais poderosas da alma humana, é descortinado e pouco a pouco
preenchido, não só pelo Daime, mas por várias destas Plantas Sagradas.
Vemos, na conclusão realizada por Ralph Metzner, acerca dos resulta-
dos das pesquisas da equipe de cientistas sobre o Vegetal:

“Eu acredito que nos próximos 10 anos haverá um tipo de tratamento do


alcoolismo e da dependência de drogas através da utilização da ayahuasca,
numa abordagem holística, onde também se faça uso da nutrição, do tra-
balho físico, do exercício e das práticas psicoespirituais; caso isto não seja
possível nos Estados Unidos, certamente o será no México e no Canadá,
pois nestes países é menos intensa a histérica política antidrogas.”

O Brasil tem tudo para ser pioneiro neste setor. Além da abun-
dância e da diversidade de metodologias e formas de utilização do En-
teógeno, temos resultados positivos em todas as Igrejas sérias do Santo
Daime/Vegetal na terapia de tais problemas, sem que essa seja a sua pro-
posta original, essencialmente religiosa. Mais ainda, o Brasil tem de-
monstrado legislação avançada neste ignoto terreno.
Encontramos também um uso exclusivamente terapêutico des-
ta e de outras Plantas Sagradas. Além do trabalho pioneiro do médico
mexicano Salvador Roquet, este tipo de tratamento existe atualmente
em diferente formulação. Foi inaugurado no Peru, pelo amigo Jacques
Mabit, com a clínica Takiwasi, onde a tecnologia xamânica comprova
sua eficácia em relação às outras técnicas modernas de recuperação de
drogadictos e alcoólatras. Enquanto Salvador combinava metodologias
psicoterápicas das ciências humanas (psicanálise culturalista) com tec-
nologias xamânicas, talvez milenares, posteriormente, no Peru, Jacques
Mabit estabelece metodologia xamânica como base, integrada com ele-
mentos da ciência moderna.
Temos ainda, no Brasil, o revolucionário trabalho de Mestre Muniz
no Acre, utilizando, com sucesso, a metodologia da União do Vegetal
112 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

aplicada à recuperação de adictos. (Ainda aqui, deparamo-nos com es-


forços sérios e profícuos em efetuar tratamento com uso da Ayahuasca.)
Exatamente em nosso país, onde nos deparamos com uma legisla-
ção mais inteligente em relação ao Santo Daime/Vegetal/Caapi, temos
ainda a opção de sermos pioneiros na investigação e aplicação terapêu-
tica de tais Plantas ou de perdermos o bonde da história: depende da
sabedoria ou da cegueira de nossas autoridades, de investirem onde
certamente se encontra o futuro da Medicina e da Psicoterapia, ou de
retrocederem para as cavernas.
A partir dessa pesquisa desenvolvemos um projeto para investiga-
ção das propriedades terapêuticas, físicas e psicológicas dos Enteógenos,
utilizando equipe interdisciplinar e, não apenas, tecnologia internacio-
nal, contribuições de diversos países e culturas, como também tecnolo-
gia brasileira, exemplificada pelas contribuições da Dra. Nise da Silveira
e dos nossos pajés, padrinhos e mestres, juntamente com outros grandes
peritos no assunto, que surgem como expoentes de nossa ciência e cul-
tura. Só os próximos acontecimentos nos dirão quais os caminhos que
serão adotados, para o bem ou para o mal.
Outro ponto, de imensa relevância em nossos tempos de violên-
cia, comportamento destrutivo, guerras, opressão e degradação moral,
é o valor, ainda não investigado, destas Plantas, para a recuperação da
agressividade e da criminalidade, para uma reformulação ética autênti-
ca e efetiva do indivíduo. Este é um recurso inédito em nossa cultura,
capaz de, por meio de uma atuação eficaz para a reabilitação, modificar
profundamente a filosofia e a estrutura do sistema penal, bem como
de suas práticas, inaugurando um horizonte imenso que necessitará de
nova jurisprudência sobre o assunto.
Mais um aspecto decisivo em um planeta onde a poluição e a des-
truição da natureza prosseguem em ritmo alarmante é o poder de desper-
tar uma nova consciência ecológica naqueles que conheceram com um
mínimo de profundidade essas Plantas. Por meio dos estados de expan-
são de consciência promovidos por elas, estas pessoas se tornam espon-
taneamente mais naturalistas e defensoras do meio ambiente, auxiliando
na cura da Terra. Realizam o valor inestimável e o caráter sagrado da
natureza, não apenas religando-as com sua natureza instintiva, fonte das
Forças Autocurativas do corpo e da psique, mas, até mesmo, reconhecen-
do-as enquanto guardiãs de tesouros preciosos e chaves decisivas para a
cura, o crescimento e a iluminação da humanidade. Encontramos aí se-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 113

guramente uma contribuição inestimável para a conscientização acerca


da importância decisiva de uma mudança de mentalidade na relação do
homem com a natureza, pela salvação de nosso planeta, a Mãe Terra.
Talvez, porém, o principal aspecto terapêutico do Daime seja a ati-
vação das forças autocurativas da psique, do Si-Mesmo. A dinamização
do processo de desenvolvimento psíquico, da individuação, opera como
fator curativo, psicológico e somático, decisivo. Como correlato desta
propriedade seria interessante investigar sua ação sobre o sistema imu-
nológico. Minha experiência, como a de muitas outras pessoas é de que,
num sentido geral, o Daime fortalece e harmoniza o organismo, aumen-
tando sua resistência às invasões, aos desequilíbrios e às disfunções.
Existem ainda outras propriedades que podem ser utilizadas com
fins terapêuticos. Para Jung a “confissão”, o retirar das falsas roupagens
da persona (a imagem e o papel que desempenhamos para nós mesmos
e para os outros) é o primeiro passo da terapia e para a individuação.
Fazemos aqui nossas as palavras de Enrique Montoya, ao discorrer so-
bre as propriedades misteriosas de outro Enteógeno, o Teonanacatl, e
que são surpreendentemente similares às do Santo Daime, funcionando
também como espécie de “soro da verdade”:

“O que um psiquiatra conseguiria em um ano de psicanálise, um curandeiro


o consegue em uma noite, com uma cerimônia. O psiquiatra necessita que o
paciente confesse o seu passado, enquanto os curandeiros podem descobrir
esse passado sem que o doente diga nada. Isto é, em verdade, extraordinário.
A aplicação que pode dar-se a isto em psicoterapia é de impossível avalia-
ção. Alguns psiquiatras já começaram a manejá-lo, ainda que careçam do
conhecimento do sagrado, e tudo querem interpretar desde o ponto de vista
psicanalítico, esquecendo-se do Espírito e de Deus.”

Deparamo-nos exatamente com a mesma fenomenologia no Dai-


me. Por exemplo, um depoimento de um membro da Igreja da Barqui-
nha nos revela: Durante a sessão, o participante se sente forçado pela
Bebida Sagrada, a confessar publicamente um furto que havia cometido
na igreja, o que faz a contragosto.
Recentemente fui informado de um episódio ocorrido no Brasil
(que não tem, que eu saiba, tradição espiritual de uso enteogênico de
cogumelos) em que uma moça que ia cometer um assalto tomou um
chá de cogumelos e viu sua condição espiritual: estava toda suja em seu
corpo energético-sutil e em sua alma.
114 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Sabemos que, não apenas os maus feitos (no sentido ético), mas
também as más intenções aparecem sob uma nova luz e perspectiva. O
mais surpreendente é que tais confrontos são acompanhados de uma
tomada de consciência ética, uma “metanoia”, o arrependimento sincero
e um desejo de corrigir-se: Isso é absolutamente original, oportuno e re-
volucionário, quando pensamos no mundo atual, onde a corrupção, os
crimes, a psicopatia e a ausência de consciência transpessoal e espiritu-
al, de sentimentos de culpa, levam as destrutivas ações humanas muito
longe. Testemunhamos, igualmente, como é difícil, com as ferramentas
convencionais, obtermos uma transformação autêntica, legítima e defi-
nitiva nessa decisiva direção.
O hino do Padrinho Sebastião, grande mestre da Sagrada Bebida,
que tive a honra de conhecer pessoalmente e com ele aprender, talvez
baseado em passagem bíblica, parece estar expressando a percepção ex-
pandida do xamã, a clarividência do daimista acerca do mundo exterior,
que é aplicável igualmente ao inconsciente, à alma do enteonauta, nessa
penetração que é pelo Si-Mesmo guiada: “Meu Pai eu quero teu amor/
Meu Pai eu quero teu saber/ Não há nada encoberto/ que não seja des-
coberto/ basta eu querer”; é o que permite ao xamã ou ao condutor da
cerimônia enteogênica realizar diagnósticos intuitivos (como um “raio X”
da dimensão espiritual do indivíduo, chave para a decifração da sua “do-
ença”, do seu mal) baseado em premissas bem diversas das dos médicos e
psicólogos convencionais, estando igualmente bem distantes, porém, de
atividade que possa ser considerada charlatanismo. É um fenômeno simi-
lar ao descrito no apócrifo de José, que mencionamos anteriormente. Esse
campo simplesmente requer mais pesquisa e investigação imparcial, pois
os achados, até agora, também nessa direção, são muito animadores.
Conforme conclui Ralph Metzner:

“No contexto das práticas de cura tradicionais amazônicas, a ingestão da


ayahuasca apresenta-se como a cura fundamental para todos os males. Não
porque ela seja em si mesma uma panaceia, mas porque funciona como
um guia ou mestre para o curandeiro, apontando-lhe a(s) outra(s) erva(s)
necessária(s) ao tratamento, permitindo-lhe travar um combate com os ata-
ques mágicos ou efetivar a cura de infecções ou de infestações venenosas.”

Vale a pena recordar aí a instrução que o Padrinho Manoel Araújo,


meu mestre na Barquinha, realizou em depoimento pessoal para mim:
“O Daime, se não curar, pode mostrar na prateleira de uma farmácia
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 115

o remédio a ser buscado.” Se a compararmos com a observação acima,


veremos o alcance terapêutico profundo de nossa Bebida Sagrada.
Tudo aí nos chama a atenção para um desafio que, trazendo no-
vos horizontes e parâmetros para a Medicina e a Psicoterapia, descerra
dimensões inéditas no universo científico acadêmico da atualidade. En-
contramos essa noção formulada na ciência moderna, através do ponto
levantado por Ralph Metzner: “Estas formas de praticar a cura presu-
mem uma compreensão da doença e da medicina inteiramente distinta
daquela a que estamos acostumados em nossa cultura ocidental.”
As evidências nos apontam para o fato de que a nossa visão de
terapia precisa ampliar-se de maneira radical, incluindo o espiritual e o
transpessoal, revolucionando inteiramente os convencionais conceitos,
com consequências ainda inapreciáveis para nossas sociedades e cultu-
ra, para a ciência e as práticas dela decorrentes.
Ralph atesta ainda que “(...) é possível realizar inúmeras curas físicas
e psicológicas admiráveis com o uso da ayahuasca, até mesmo no espaço
da medicina e da psicoterapia ocidentais.” Aportando o significativo dado
de que, “no início do século XX, usou-se com sucesso um extrato do seu
cipó no tratamento da doença de Parkinson, mas este procedimento não
teve sequência”, ele desemboca, juntamente com nosso estudo, no fato
de que a Ayahuasca/Daime/Vegetal apresenta propriedades medicinais
significativas que merecem investigação ulterior. Algumas destas pro-
priedades não estão sequer parcamente vislumbradas em nossa ciência
psicofarmacológica moderna. Faz-se necessária ampla investigação. Ele
complementa adiante: “Além disso, surgiram muitos comentários sobre a
completa regressão de alguns tipos de câncer depois de uma ou duas ses-
sões com esta beberagem medicinal”. Reconhecendo que tais resultados
ocorreram “no contexto das tradicionais cerimônias de cura”, ele perce-
be, como todos que temos longa experiência com tais Plantas Sagradas
igualmente nos damos conta, que “(...) torna-se impossível separar os
efeitos farmacológicos dos elementos psicológicos e xamanísticos (...)”.
Esta é mais uma contribuição à evidência implacável de que os frutos
dos “trabalhos” com a Bebida Sagrada dependem de múltiplos fatores, e
não apenas dos aspectos médico-químicos, da dimensão física do indiví-
duo. Todas as várias metodologias que a cercam, energético-psico-espi-
rituais, incluindo o ritual, as músicas e as tecnologias do sagrado, contri-
buem para o resultado final. E o mais importante em tudo isso é que Ralph
e sua equipe chegam à mesma conclusão à que chegamos: “De acordo com
116 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

a observação do nível psicológico, há uma intrigante evidência de trans-


formações positivas induzidas pela ingestão ritualística da ayahuasca.”
O reconhecimento das espantosas propriedades terapêuticas des-
tas Plantas, mais uma vez, nos remete à implacável constatação de que,
em alguns aspectos decisivos, a tecnologia dos indígenas e de alguns
povos da antiguidade, é mais avançada que a nossa. Vale a pena recor-
darmos aqui algumas conclusões de Terence McKenna:

“Na verdade, não representamos o máximo de conhecimento sobre a na-


tureza da realidade. Possuímos mapas muito interessantes, digamos, do in-
terior do átomo ou de regiões longínquas do universo; mas, nas áreas que
nos são mais próximas – nossa própria mente, a maneira como vemos a nós
mesmos e aos nossos semelhantes –, acredito que essas culturas primitivas,
por serem fenomenológicas, isentas do estorvo da técnica e de teorias abs-
tratas de tudo o que acontece, aproximam-se mais da realidade. Em outras
palavras, os xamãs são psiquiatras populares, psicanalistas populares, muito
mais avançados que nós. Os antropólogos já observaram a ausência de dis-
túrbios mentais graves em muitas culturas pré-letradas. Acredito que a me-
diação do xamã e, através dele, o contato com o Logos centralizante, fonte
de informação ou gnose, é provavelmente a causa dessa capacidade de curar
ou minimizar distúrbios psicológicos.”

Necessitamos considerar aí o dado alarmante de que, em nossa ci-


vilização ocidental, muitas pessoas rotuladas de psicóticas, esquizofrên-
cias, depressivas, “portadoras de transtorno bipolar” e outras, segundo
as crenças e as práticas psiquiátricas usuais, são convencidas da obriga-
toriedade de consumirem, continuamente, perigosas drogas químicas,
que geram dependência, com efeitos colaterais perniciosos e possivel-
mente danos irreversíveis ao sistema nervoso com o uso prolongado.
Não estamos aqui desvalorizando seu bem reconhecido auxílio tera-
pêutico. Sem minimizarmos os aspectos positivos destas drogas na con-
tenção de sintomas em distúrbios psicológicos graves, como recurso de
urgência para facilitar o caminho à Psicoterapia, podemos sinalizar, por
outro lado, com o ainda inexplorado, e certamente extraordinário, poten-
cial dessas Plantas enteogênicas na prevenção e terapia de tais distúrbios.23

23 Aprofundo esta discussão acerca dos benefícios e malefícios dos fármacos moder-
nos, especialmente para a terapia das disfunções psíquicas, em outro trabalho acer-
ca do revolucionário diagnóstico de emergência espiritual e suas consequências
para a psiquiatria e a psicoterapia.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 117

É absolutamente impressionante que não haja, especialmente no


Brasil, um empenho maior na investigação de tais recursos, incrivelmente
promissores, pelas autoridades governamentais, os laboratórios ou pesqui-
sadores das universidades. Em todas as farmácias atualmente crescem as
prateleiras de produtos naturais. É indispensável a percepção de que existe
uma demanda consciente desses produtos, que representam uma opção
absolutamente lúcida, respeitável e inexoravelmente crescente, por parte
das populações de muitas sociedades e culturas diversas da atualidade.
A Dra. Nise da Silveira, revolucionária psiquiatra brasileira com
quem tive a honra de trabalhar e privar da amizade, em seu texto sobre
Antonin Artaud, compara os seus depoimentos acerca dos resultados
das duas diferentes metodologias que ele experimentou: a da psiquiatria
convencional e a da religião dos índios Tarahumaras, descendentes dos
astecas pré-colombianos, com o rito do Ciguri. Neste rito é utilizado um
importante Enteógeno, o peyotl (peiote). Mais uma vez com pioneiris-
mo ela nos mostra que a comparação entre a tecnologia do “civilizado”
e a do índio “primitivo”, o confronto entre a via da ciência moderna e
a via religiosa, antiquíssima e ancestral, proveniente de tradições secu-
lares, talvez milenares, traz conclusões possivelmente surpreendentes,
para os que desconhecem as bases científicas das tecnologias sagradas
dos índios e dos povos da antiguidade.
Escreve ela:

“Participando dos rituais tarahumaras, Artaud entra em contato, ao vivo,


com uma religião arcaica que desconhece a separação entre natureza e espí-
rito, característica das religiões recentes e muito marcada no cristianismo. A
personalidade de Artaud foi abalada por intensos cataclismas internos. Daí
a mobilização defensiva de forças inconscientes e conscientes na procura
da reconstrução do ser. Sua intuição alçou-se muito mais longe quando lhe
apontou a religião dos indígenas mexicanos. Religião que lhe oferecia um
mundo mais seguro, estruturado sobre números (...).”

Nise mostra cabalmente alguns dos aspectos curativos desta “re-


ligião que lhe propunha o culto do Sol, a celebração da vitória do Sol,
do consciente, sobre os monstros da noite, conteúdos do inconsciente.”
E, do alto de sua longa experiência de terapia com as psicoses, de uma
perspectiva mais imparcial e equidistante, característica de uma autên-
tica cientista, ela considera: “Não encontraria ele aí ajuda para suas ba-
talhas internas e talvez mesmo uma terapêutica eficaz?”.
118 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Continua, então, com a audácia dos desbravadores: “Visando fim


idêntico – a reconstrução da personalidade – a medicina aplicou-lhe
séries de eletrochoques. Por que nos falta coragem para comparar os
dois métodos?”.
Atualmente podemos pensar o caso de Artaud como uma emer-
gência espiritual, e, conhecendo um pouco mais algumas propriedades
terapêuticas dos Enteógenos, podemos perceber o salto qualitativo da
metodologia xamânica em relação à psiquiátrica, supressiva e alienante.
Artaud suplicava pela interrupção da série dos eletrochoques que, se-
gundo denuncia, “apagam a memória”, são nocivos em vários aspectos,
inclusive em relação aos esforços de buscar a lucidez e de descobrir o
sentido do processo que estava vivendo.
Hoje, temos também as drogas farmacológicas, a “camisa de força
química”, como Nise as denominava. Provavelmente este recurso para
tratar algumas “disfunções mentais”, que possui um grande número de
crentes e adeptos (alguns destes talvez por não verem outra saída ou
solução), seja uma intervenção pouco menos agressiva e alienante que o
eletrochoque. Mas ele ainda é questionável, pois o eletrochoque é pon-
tual; a medicação psiquiátrica, especialmente no caso das psicoses, é
constante, contínua e interminável, para muitos psiquiatras trata-se de
um dogma absolutamente inquestionável. Com todos os avanços que
ela conseguiu, dista ainda de ser considerada um tratamento com o qual
devemos simplesmente nos conformar. É impressionante o fato de que
não se cogita investigar outras possibilidades, como se este resultado
fosse amplamente satisfatório, e/ou inexorável.24

24 Outros dogmas da psiquiatria merecem investigação mais profunda: “O psicótico


não pode ficar sem dormir.” Isso é o álibi para intoxicá-lo com potentes substâncias
químicas para fazê-lo dormir. Com o risco de ele desenvolver a resistência ao medi-
camento, necessitando de cada vez maiores doses, até ficar completamente aprisio-
nado na “camisa de força química”, denunciada por Nise, incapaz de individuar-se;
o “tratamento” consiste em reconduzir a pessoa, antes em emergência espiritual, ao
estado convencional, ordinário de consciência, represando o jorro do inconscien-
te e todo seu potencial de renovação para a mente e para a vida dos que tiveram
a felicidade ou a infelicidade de experienciarem um surto. Outra frase profunda-
mente fatalista e conformista: “Ele é como o diabético, terá de tomar o remédio o
resto de sua vida”. Essa crença desestimula investimentos em explorações de novas
possibilidades, deixando imensa gama de pessoas sem opção, a não ser os métodos
insatisfatórios da psiquiatria.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 119

Ora, esta é uma armadilha que nos impede novos avanços. É muito
perigosa essa acomodação. O fato é que a medicação psiquiátrica é por
vezes igualmente prejudicial e empobrecedora das dimensões criativas
e revolucionárias do processo, da crise de transformação tangida pelo
Si-Mesmo, que parece estar por detrás das desestruturações da persona-
lidade e da irrupção psicótica.
A visão psiquiátrica convencional induz medo e desconfiança em
relação ao processo, dificultando sua compreensão e manejo, em seu po-
tencial de reestruturação para promover maior consciência e integração
psíquica, decretando maciças intervenções químicas, reduzindo as chan-
ces de reequilibração mais autônoma do usuário, forçado a recorrer aos
seus serviços por pura falta de opção. O caminho espiritual, a proposta
xamânica, bem como uma psicoterapia de orientação transpessoal, tra-
zem reavaliação de vida, revisão, expansão de consciência e confronto
com as questões centrais do processo e da crise por ele deflagrada.
Hoje, após larga experiência na aplicação do referencial da Psico-
logia Transpessoal na clínica, deparo-me com inúmeros dados eviden-
ciando que tais questões são, em última instância, de ordem espiritual,
isto é, transpessoal. Basta observar a quantidade de material arquetípico
e religioso, isto é, transpessoal, presente nos “delírios”, nas “alucinações”
e nas experiências incomuns pelas quais passam tais pessoas. Por vezes
temos a impressão de que é justamente o material simbólico, religioso e
mítico o que faltava na psique antes do colapso.
Proporcionando elaboração e integração dos conflitos em uma
nova síntese, uma renovação existencial em um novo projeto de vida,
essa abordagem traz nova esperança para os estigmatizados por tão
pesados rótulos. Descendo às causas, essa perspectiva traz respostas e,
talvez, soluções mais definitivas para “doenças” e “disfunções”, tanto do
corpo como da psique, bem como remédio e novo patamar de compre-
ensão de inúmeros “distúrbios” mentais.
O papel dos Enteógenos aí não deve ser subestimado. Vale a pena
lembrar que as populações que utilizam os Enteógenos apresentam me-
nos patologias. Atuariam eles também preventivamente? Como men-
ciona Terence,

“(...) em todos os lugares do mundo em que os alucinógenos indóis fo-


ram usados, seu uso esteve ligado à autocura e à regeneração mágica. A
baixa incidência de doenças mentais sérias entre essas populações é bem
documentada.”
120 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Observamos aqui os comentários de outro grande expoente no as-


sunto, o Dr. Andrew Weil. Apesar de, como as eminentes autoridades
anteriormente citadas, não distinguir, em sua terminologia, as “drogas”
das Plantas Sagradas, ele as discrimina de certa maneira, fornecendo
mais um apoio para nossa proposição de diferenciação entre as “drogas”
e as Plantas. Ele escreve:

“Quando digo que os índios amazônicos não têm problemas com drogas
como o DMT, quero dizer que as pessoas nestas sociedades não tomam es-
tas drogas para se rebelar contra pais ou professores, para fugir do processo
social, ou agredir a si mesmos. Nem sua droga é usada de qualquer manei-
ra associada a comportamentos antissociais. E como as drogas, em muitos
casos, são as mesmas associadas a padrões de uso antissocial nos Estados
Unidos, as diferenças não podem ter muita base na farmacologia.”

Ele se faz aí a pergunta crucial: “O que, então, estes índios estão fa-
zendo de diferente que lhes permite conviver com as drogas e não sofrer
as manifestações negativas de seu uso?” Embora não mencione mais
enfaticamente as diferenças cabais entre as Plantas Sagradas e as drogas,
entre as substâncias psicoativas que são usadas pelos índios milenar-
mente e as utilizadas em tempos recentes pelas sociedades ocidentais,
ele fornece as pistas para uma decisiva distinção. Percebendo que existe
“(...) uma grande lógica atrás da suposição de que as formas naturais das
drogas sejam inerentemente menos perigosas que os produtos deriva-
dos”, ele nos chama a atenção para o fato de que as plantas alteradoras da
mente utilizadas pelos povos indígenas “nunca contêm só uma substân-
cia química”. Elas contêm “uma série de compostos relacionados, todos
contribuindo para a ação farmacológica da planta toda”. Cada uma das
Plantas consideradas Sagradas tem alcaloides e outros compostos que
contribuem para sua ação farmacológica. O ópio ou o peiote, por exem-
plo, contêm muitos outros alcaloides, além da morfina, da heroína e da
mescalina, respectivamente.
A Planta é um todo indissociável. Seus efeitos misteriosos se ali-
cerçam, em parte, nesta complexidade. O Dr. Andrew percebe isso.
Posiciona-se ele:

“É verdade que um composto pode muitas vezes ser identificado como o


principal constituinte, por reproduzir a maior parte da ação da planta toda,
mas parece-me uma maneira de pensar muito ineficiente chamar a este
composto o princípio ativo, e dispensar todo o resto como inativo. Também
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 121

é verdade que outros compostos possam causar pouco efeito quando admi-
nistrados isoladamente.”

Talvez isso não signifique que tais compostos não sejam muito im-
portantes, indispensáveis mesmo, para o resultado, para a obtenção do
efeito final. Além disso, provavelmente a diferença entre a Planta, como
um ser vivo hipercomplexo, e uma substância manipulada artificialmen-
te em laboratório, envolva mais fatores e variáveis a serem considerados
do que sonha nossa desenvolvida farmacologia.
Conforme nos diz o Dr. Fabio Firenzuoli, Presidente da Associa-
ção Nacional dos Médicos Fitoterapeutas na Itália:

“A moderna Fitoterapia lança suas próprias raízes em consolidadas discipli-


nas científicas, como a Botânica Farmacêutica, a Fitoquímica e também a
Farmacologia experimental e clínica.
Tais disciplinas, todavia, permitem uma análise apenas parcial das ativi-
dades de uma planta medicinal e isso por diferentes motivos: as múltiplas
substâncias químicas presentes nas várias partes da planta, a variabilidade
qualitativa e quantitativa das mesmas em função do cultivo, o ciclo biológi-
co etc., e, enfim, o sinergismo da ação.
Tudo isso, com certeza, diferencia o remédio comum do fitoterápico e co-
loca, também, algumas questões de motivos ainda não resolvidos. O Fito-
complexo ou partes dele (óleos essenciais, tinturas, extratos de vários tipos)
representam, na realidade, uma coisa diferente dos singulares princípios ati-
vos, particularmente considerados, ainda que somados todos juntos! Basta,
por exemplo, considerar a coexistência própria de oligoelementos, ainda
muito negligenciada.”

O mais impressionante ainda está por vir. Os dados que o Dr. An-
drew Weil evoca coincidem com nossa experiência e pesquisas. Trans-
crevemos aqui suas palavras:

“É um surpreendente fato empírico que as dificuldades que os indivíduos


e sociedades encontram com as drogas pareçam estar relacionados com a
pureza, ou potência das substâncias em uso; quanto mais potentes as drogas,
maiores os problemas associados a elas.”

Nosso reparo está em distinguirmos, não apenas a potência, mas,


as substâncias naturais e de uso tradicional. É claro que as plantas tam-
bém têm sua dosagem apropriada e método de utilização, pois, como as
drogas, possuem também uma dimensão farmacológica.
122 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Além da situação diferenciada entre a folha de coca e a cocaína


e, igualmente, entre o ópio e a morfina ou a heroína, já mencionadas,
acrescentamos ainda a relação entre a Iboga e a ibogaína. Apesar de
a ibogaína, princípio ativo extraído da raiz da Planta Sagrada africana
Iboga, ter apresentado fortes indícios de reduzir os sintomas de absti-
nência e da dependência das drogas, quando utilizada no tratamento
da drogadicção, ocorreram alguns óbitos. A Iboga é mais um dos raros
Enteógenos em todo o mundo, que exortamos as autoridades a pesqui-
sarem mais acuradamente. Já a ibogaína, apesar de resultados mui fru-
tíferos, evidenciou, de outro lado, maior periculosidade do que a Planta
Sagrada, com suas receitas tradicionais de uso espiritual, no mínimo
seculares, talvez milenares.25
Nesse ponto deparamo-nos com uma das questões cruciais de
nossa presente argumentação. Com pensamento holístico o Dr. An-
drew Weil formula: “No entanto, os farmacêuticos modernos traba-
lham sob a hipótese de que os princípios ativos puros são equivalentes
a drogas naturais complexas. Assim, estudam a cocaína em vez da coca,
a mescalina em vez do peiote, a psilocibina em vez dos “cogumelos
mágicos”, e agora o THC (tetrahidrocanabinol) em vez da maconha.”
Seguindo o modelo cartesiano e de controle, os farmacêuticos moder-
nos são crentes em que “os compostos puros dão resultados melhores”.
Nesse estudo fornecemos abundante argumentação para propormos a
inversão dessa perspectiva.
Mesmo em meu grande mestre, Stan Grof, embora possa estar
equivocado, senti certa preferência pelo sintético, ao invés do Ente-
ógeno, sendo considerado por ele “um meio moderno de induzir es-
tados holotrópicos de consciência”. A questão é absolutamente séria
e premente.
Um dos principais escopos deste livro é o de mostrar as evidências
importantes para considerarmos as Plantas como algo que deve ser en-
focado de maneira diferenciada. Existe evidentemente um “salto quân-
tico”, um corte epistemológico, que deve pautar nossa avaliação dessas

25 Teriam os antigos egípcios conhecido a Iboga e realizado com ela alguns de seus
secretos e misteriosos rituais de iniciação? Utilizavam eles Plantas Sagradas para
a comunhão com os deuses, como ocorria nos Mistérios de Eleusis? Quais seriam
elas e como eram utilizadas?
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 123

Plantas. Seu caráter criativo e inovador cultural é incomparável em face


dos reconhecidamente válidos efeitos dos remédios comuns.26
É absolutamente decisivo enxergar seu estatuto singular na temáti-
ca tratada. As Plantas Sagradas, e apenas elas, capazes de converter uma
pessoa comum em xamã, um profano em um iniciado, podem também
trazer novas e resgatar antigas tecnologias do sagrado, que complemen-
tam e emolduram o seu efeito. Assim se configura o alcance mais amplo
e completo dos Enteógenos.
Por exemplo, a tecnologia dos xamãs mexicanos apresenta uma ce-
rimônia onde, segundo narra a Dra. Nise, “o ritual consta de danças e
gestos dos sacerdotes do peyotl, que se prolongam pela noite inteira, na
expectativa de que o Ciguri queira entrar neles e revelar-lhes mistérios
profundos”. Aqui percebemos a consciência dos povos indígenas de que
o efeito do Enteógeno não se alicerça exclusivamente em sua dimensão
farmacológica. Não é uma mera questão de dosagem e de qualidade da
substância. Existem outros fatores misteriosos que seria melhor deno-
minarmos espirituais ou, talvez, transpessoais.
É impressionante como nos deparamos em nossos estudos dessa
complexa matéria, com a utilização da música, do canto, da dança, e
outras tecnologias do transe associadas a vários Enteógenos. Além do
hino cantado/dançado/ensinado por Jesus no Apócrifo de João, que
comentaremos adiante, podemos encontrar em cultos de diferentes
Enteógenos (como no Santo Daime e na Barquinha, no Iboga (Bwiti),
na Jurema, bem como entre os Sufis e também outras vias que não
usam Enteógenos, como na Umbanda, no Candomblé e na Terpsico-
retranseterapia) a dança e o transe como caminhos para penetrar em
domínios superiores da Criação, para contatar outras dimensões de
realidade ou do inconsciente, em termos psicológicos. Embora ambas
as Escolas possuam as duas dimensões de forma integrada, no Santo

26 Se apenas considerarmos o acervo metodológico e musical/doutrinário inédito,


por exemplo, das Escolas oaskeiras brasileiras surgidas a partir do Santo Daime/
Vegetal, ficamos impressionados de como a biografia e os ensinamentos dos gran-
des mestres, de Mestre Irineu, de Frei Daniel e de Mestre Gabriel ainda não foram
incorporados à cultura brasileira e ensinados nas escolas para as crianças. Acha-se
mais produtivo ensinar, principalmente, sobre reis cruéis, colonizadores, políticos
voltados para interesses próprios e sanguinários líderes de exércitos, do que se falar
de brasileiros que dedicaram sua vida a ensinar, guiar espiritualmente e curar seus
semelhantes, bons exemplos de que estamos urgentemente necessitados.
124 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Daime nos deparamos tanto com o transe obtido através de um bai-


lado sagrado mediúnico, enfatizando o intercâmbio e o aprendizado
com os Seres de Luz, como na Barquinha de Frei Daniel, quanto com
um transe que enfatiza o acesso ao mundo intrapsíquico, as riquezas e
Sabedoria interiores, como encontramos nas Escolas de Mestre Irineu
e Padrinho Sebastião.
Fala-nos o Dr. David Eckstein, psiquiatra brasileiro, autor de uma
obra pioneira e revolucionária em seu tempo:

“Da mesma forma como a Ciência tem encontrado aplicações farmacoló-


gicas para plantas que, desde tempos imemoriais têm sido usadas por fei-
ticeiros e curandeiros, igualmente dos transes cinéticos rituais efetuados
por todos os povos primitivos dentro de suas religiões animísticas, temos
extraído uma forma de psicoterapia não verbal, a Terpsícoretranseterapia
(TTT), cujas bases psicofisiológicas são perfeitamente compreendidas à luz
da Ciência moderna”.

Transpondo a um formato moderno (como faz Stan Grof com sua


Respiração Holotrópica) despojado de seu simbolismo tradicional, ele
desenvolve um método de indução ao transe por meio da dança e do
ritmo, redescobrindo aí uma dimensão das avançadas tecnologias de se
lidar com as crises e as emergências espirituais, que muitas das tradições
sagradas de todos os tempos e lugares possuem. Catalisar e canalizar de
maneira mais saudável o processo anímico, ao invés de suprimi-lo, são
as bases para os resultados surpreendentes de tais métodos.
Carlos Castañeda descreve com precisão as transformações e o
preço a ser pago pelos discípulos da Bebida Sagrada:

“Quando um homem entra no caminho dos guerreiros, fica consciente, aos


poucos, de que a vida comum ficou para trás para sempre. Isso significa que
o mundo comum não é mais um escudo para ele; e que ele deve adotar uma
nova maneira de viver, para poder sobreviver”.

Esta é uma boa descrição e terapia para o quadro de emergência


espiritual vivenciado pelo buscador, assumindo aí o papel de guerrei-
ro da consciência, da individuação, que, modificando, com a ajuda das
Plantas, sua atitude egoica, encontra a chave dos efeitos terapêuticos e
dos maravilhosos resultados evolutivos dos Enteógenos
Fazemos nossas as palavras do depoimento de Terence McKenna:
“Minhas experiências junto às populações mestiças da Amazônia me
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 125

convenceram que o efeito do uso por longo prazo da ayahuasca é um


estado extraordinário de saúde e integração.”
Descrevendo a aplicação complexa da Bebida curativa feita pelos
ayahuasqueros ele sublinha:

“Frequentemente esses métodos exibem paralelos impressionantes com as


técnicas da moderna psicoterapia; em outros momentos eles parecem repre-
sentar uma compreensão de possibilidades e energias ainda não reconheci-
das pelas teorias ocidentais sobre cura”.

Atualmente muitos métodos são utilizados em terapia que trabalham


com as dimensões transpessoais da psique, auxiliando-nos a compreen-
der melhor o grau de avanço dessas técnicas antigas, consideradas ainda
“primitivas” e “mágicas”, por muitos psicoterapeutas que ignoram os novos
mapas capazes de revolucionar toda a perspectiva acerca dessas questões.
Um exemplo importante disso é o fato de nos depararmos, mui
amiúde, com memórias de vidas passadas nas vivências com Enteóge-
nos. Minha experiência com a Ayahuasca evidencia interessantes dados
nessa questão. Às vezes o Enteógeno faz aflorar uma vida passada que
precisa ser trabalhada técnica e terapeuticamente com os recursos da
moderna Terapia de Vidas Passadas, para dinamizar a individuação na
vida atual. Aqui o Enteógeno aponta o tema a ser trabalhado psicotera-
picamente, demonstrando o que Stan Grof chama de “função radar”.27
Em outros momentos, uma regressão não fechada, inconclusa, pode
ser elaborada e integrada durante o trabalho com a Planta Sagrada, trazen-
do novos insights e percepções sobre o significado da vida passada para o
processo atual. Nesse caso a intervenção do Si-Mesmo, com suas Forças
Autocurativas e, talvez, também dos espíritos de luz, parecem promover
insights que funcionam como fator terapêutico que pode atuar conjugado
com a psicoterapia. O trabalho transpessoal com a Planta auxilia a proces-
sar dimensões psicoespirituais fundamentais das regressões à vida passada.
Judy Hall, uma das mais experientes terapeutas regressivas da In-
glaterra, autora de um livro que é importante introdução à terapia de
vidas passadas, narra um caso muito interessante de uma cura operada

27 “Os estados não comuns de consciência, tendem a trabalhar como um sistema in-
terno de radar, procurando as cargas emocionais mais fortes e levando o material,
que lhes é associado, para a consciência, onde podem ser resolvidos” (GROF, Sta-
nislav. Mente Holotrópica).
126 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

por um Enteógeno, através do reexperienciar de uma vida anterior. Essa


experiência reconstrutora se mostrou altamente terapêutica.
Durante uma sessão xamânica com outro importante Enteógeno, o
Wachuma, o cacto sagrado “São Pedro”, a pessoa reviveu um nascimen-
to em tribo indígena, um momento repleto de saúde, em um ambiente
propiciador, curando seu nascimento traumático da vida atual, onde
perdera um irmão gêmeo. A remissão dos sintomas evidencia que, em
uma só experiência, o complexo nuclear foi trabalhado eficazmente. Os
insights que aconteceram são surpreendentes e muito significativos para
quem tem prática clínica com T.V.P.; redescobrindo experiencialmente
a importância do trauma do nascimento, a pessoa fala:

“Vi que o nascimento nos prepara para a vida inteira. A energia com que se
nasce é importante e muito especial. Qualquer que seja essa energia, você
recebe o seu dinamismo para sempre. Assim como seu mapa natal na astro-
logia: essa é sua energia.”

As perspectivas de Otto Rank, que remonta a origem da neurose


ao trauma do nascimento, e de Stanislav Grof, com o revolucionário
conceito das “matrizes perinatais”, parecem relacionar-se com as con-
clusões a que o nosso enteonauta chega, aparentemente sem nenhuma
bagagem de conhecimentos de Psicologia ou prática clínica, baseado ex-
clusivamente em sua experiência interior com a Planta Sagrada.
Ao perceber sua dificuldade em nascer nesta vida, deu-se conta de
que essa experiência afetava a maneira como se conduzia no mundo.
Mais ainda, ele recordou um nascimento natural em outra vida, com a
sociedade e a cultura auxiliando o processo, a partir do qual reflete: “Era
maravilhoso nascer com aquela sensação em vez de ter o nascimento
induzido por drogas, como acontecera na minha vida atual”.
Os dados nos permitem inverter algumas das perspectivas da atu-
alidade acerca dos Enteógenos e das drogas. Conforme resume a autora,
a “experiência mostra como uma vida passada pode curar uma dificul-
dade na vida atual ao refazer a conexão com uma época em que tudo era
diferente, quando as coisas corriam bem”.
Referindo-se tanto à natureza espiritual quanto ao caráter multi-
fatorial da obra alquímica, Jean D’Espagnet fala também do trabalho
de transformação da Sombra = o Dragão (nossa dimensão primitiva,
o cérebro reptílico?) na Pedra Filosofal do Si-Mesmo, fator central da
Psicoterapia. Ele expõe:
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 127

“Nestas duas últimas operações, o Dragão se violenta a si mesmo e, devo-


rando-se a cauda, consome-se e esgota-se por completo, transformando-se
finalmente em Pedra. Em último lugar a operação da fixação fixa os dois
enxofres no seu corpo: uma vez que estes foram fixados, ela cozinha gradu-
almente esta fermentação por meio do espírito que é o mediador das tintu-
ras; ela amadurece o que é cru e adoça o que é amargo. Finalmente o elixir
fluido, penetrando e lambendo, gera, aperfeiçoa e proporciona o supremo
grau de sublimidade e excelência.”

Amadurecendo as dimensões mais primitivas de nossa natureza,


trazendo “doçura” ao “amargor” de nossos sentimentos por meio do de-
senvolvimento espiritual, o Enteógeno nos aperfeiçoa animicamente e
nos conduz a mais altos graus de elevação, completude e organização
psicológicas.
Na realidade, as inúmeras propriedades terapêuticas da Ayahuasca/
Yagé/Caapi/Daime/Vegetal, bem como de outros Enteógenos, merece-
riam um trabalho exclusivo, e nossa tarefa não é explorar exaustivamen-
te cada uma das propriedades descritas ou fechar interpretações, mas,
sim, indicar e sugerir, abrindo horizontes para as pesquisas ulteriores do
modo mais amplo e transdisciplinar possível.
Como nos exorta o alquimista Jean D’Espagnet: “Procura, por ou-
tras, as virtudes desta medicina para sarar todas as doenças e conservar
a saúde, do mesmo modo que seus outros usos, conforme Arnaud de
Vilanova, Raimundo Lulle e outros filósofos.”
Encerrando provisoriamente o assunto, nos debruçaremos so-
bre uma lenda indígena norte-americana acerca da missão curativa
das plantas, que nos é narrada pela mestra de tradições nativas, Jamie
Sams. Tal história fala por si mesma e prescinde de interpretações; ela
nos mostra que o extravio do natural (e, concomitantemente, do espiri-
tual), da comunhão com a natureza (como expresso no mito do Jardim
do Éden), conforme muitos mitos nos revelam, é a questão axial da
humanidade:

MISSÃO CURATIVA

Antes que os Bípedes e os Seres Vivos chegassem ao planeta, a Mãe


Terra decretou que não haveria enfermidades nem doenças entre os que
têm corpos físicos que não pudessem ser curadas. O poder de cura de
qualquer enfermidade foi dado ao Povo das Plantas.
128 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Concedeu-se instinto aos animais para que soubessem que plantas


lhes curariam quando se sentissem mal. Disse-se à Tribo Humana que
se concentrasse nos mestres-Animais e que aprendesse deles. Os seres
humanos aprenderam durante um tempo e depois, com arrogância,
adotaram a ideia de que eram superiores às outras criaturas.
A Terra Mãe franziu o entrecenho, porque sabia que quanto mais
longe se desviassem do mundo natural mais enfermidades contrairiam.
Finalmente, infectaram a todos os seus familiares. A Mãe Terra limpou o
mundo natural congelando todas as enfermidades e começou novamente.
Os que haviam sobrevivido haviam ouvido a voz da Mãe e deseja-
vam respeitar os familiares plantas e animais. Atualmente, a tribo huma-
na ainda busca os pedaços do conhecimento perdido sobre a cura que
estão em poder da tribo das plantas. A Terra Mãe e o Grande Mistério
lhes prometeram que essas curas estão ainda ali, esperando ser nova-
mente descobertas. Prometeram também gelar a Terra de novo se falha-
mos em nossas missões de curar o que nós mesmos enfermamos ou se
não conseguirmos limpar as partes de nosso mundo que danificamos.

4- “Paranormalidade” – experimentando e explorando as “novas”


fronteiras da Psicologia

“É possível que o que hoje etiquetamos de acontecimentos


transpessoais ou paranormais, algum dia se reconheçam como fatores
principais, não apenas na história da cura ou do exorcismo, senão
também no processo da psicoterapia.”
Richard Yensen

“A abundância de testemunhos sobre tais contactos com uma realidade


superior mais plena e elevada pode deixar-nos sem respiração. Provêm
de pessoas de todos os tempos e de todos os países e, entre outras,
daquelas que constituem a flor e a nata da humanidade. (...) Sendo
esta a situação, qual deveria ser nossa atitude em relação a este reino
superior? O bom senso considera que deveríamos tê-lo em conta
com a mesma seriedade com que nos apressaríamos em considerar a
afirmação de que um grupo de exploradores descobriu – por exemplo
– que um certo território é rico em petróleo, ou em metais ou pedras
preciosas. Ignorar tal afirmação seria uma loucura, porque correríamos
o risco de privar-nos da oportunidade de adquirir novas e imensas
fontes de riqueza.”
Roberto Assagioli
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 129

“Acredito que os alucinógenos demonstram ser possível atingir essa


interface entre um mundo comum de experiências tridimensionais e
esses espaços hiperdimensionais.”
Terence McKenna

Após muitas décadas de investigação, Jung nos ensina que há

“(...) indícios que mostram que uma parte da psique, pelo menos, escapa às
leis do espaço e do tempo. A prova científica foi estabelecida pelas experi-
ências bastante conhecidas de Rhine. Ao lado de inumeráveis casos de pre-
monições espontâneas, de percepções não espaciais e outros fatos análogos,
dos quais busquei exemplos em minha vida, essas experiências provam que,
por vezes, a psique extrapola a lei da causalidade espaço-temporal. Disso
resulta que as representações que temos do espaço, do tempo e também da
causalidade são incompletas. Uma imagem total reclama, por assim dizer,
uma nova dimensão; só então poderia ser possível dar uma explicação ho-
mogênea à totalidade dos fenômenos. É por esse motivo que ainda hoje os
racionalistas persistem em pensar que as experiências parapsicológicas não
existem; pois seriam fatais à sua visão do mundo.”

Na verdade, o que é ainda visto como parapsicológico, na pers-


pectiva da ciência oficial, é simplesmente um campo da Psicologia des-
conhecido dos investigadores que se baseiam apenas nos mapas e nos
referenciais psicológicos convencionais. Enquanto manifestadoras da
mente (psicodélicos), as Plantas Sagradas fazem aflorar os potenciais
ocultos da psique. A telepatia, a percepção extrasensorial extrassenso-
rial, a visão a distância, a precognição, a viagem a outros planos de reali-
dade, entre outros, abordados nas literaturas parapsicológica e espiritu-
alista, são fenômenos que estão presentes em abundância em qualquer
levantamento bem fundamentado, a partir dos depoimentos de adeptos
das vias que utilizam os Enteógenos com seriedade. O único obstáculo
à demonstração mais cabal destes fatos é o mesmo que encontramos em
relação à maioria dos fenômenos psi: não são controláveis, não pode-
mos reproduzi-los à vontade.
Enquanto os fenômenos do mundo físico apresentam maiores pos-
sibilidades de controle e reprodutibilidade em face das circunstâncias
dadas, deparamo-nos aí com fatos que, sem serem menos reais, trans-
bordam das conceituações e manipulações científicas tradicionais. Um
exemplo disso é encontrado na descrição feita por Terence McKenna:
“Estou inteiramente convencido de que ocorre telepatia quando se está
130 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

sob o efeito desses compostos, muito embora eu não saiba exatamente o


que fazer para que o fenômeno se repita”.
A atividade paranormal é definida como “a capacidade demonstra-
da por certos indivíduos de perceber e descrever dados de experiência
sem intervenção de qualquer dos sentidos que se conhece”. Vale a pena
recordarmos que este conceito pode apresentar variações de acordo com
a cultura em foco; o que é considerado normal em uma sociedade é tido
como “paranormal” em outra. Muitos dos fenômenos (e suas interpre-
tações) descritos aqui são vistos como normais nas tradições xamânicas
e espirituais onde eles acontecem.
Segundo o parapsicólogo Stanley Krippner, “a palavra paranor-
mal deriva do termo grego anômalos, que significa “irregular”, “ímpar”
ou “desigual”, contrário a homalos, “igual” ou “comum”.” Dentro desta
significação, a “experiência paranormal” é simplesmente incomum, po-
dendo escapar ao paradigma explanatório dominante, mas não aos ma-
pas da Psicologia científica da atualidade, especialmente das Psicologias
Junguiana e Transpessoal. Para outros povos e culturas tais fenômenos
são parte, talvez a dimensão principal, de seu cotidiano.
Deixo aqui uma sugestão aos parapsicólogos: que investiguem im-
parcialmente essa propriedade misteriosa através de depoimentos, em
cerimônias e grupos de experientes enteonautas.
De um modo geral a expansão de consciência alcançada leva a uma
relativização do espaço e tempo, bem como a expansão das fronteiras da
psique e da vida para além da morte, projetando-se até o contato com
outras dimensões do mundo e da alma. Como observa o grande mico-
logista R. Gordon Wasson:

“O índio crê nos cogumelos, crê que no decurso destas veladas ele recebe o
dom do que nós chamamos percepção extrassensorial, e que ele considera
como uma orientação divina. Acaso podemos assegurar que está completa-
mente equivocado? Eu não me atrevo a assegurá-lo. Pois menosprezar estas
crenças de antemão é, claramente, um sinal de arrogância intelectual nasci-
da da ignorância”.

A questão da percepção de outras realidades e seres inteligentes


interpretados como existentes em planos sutis do universo, assaz in-
quietante para a mentalidade desligada do sagrado de muitos cientistas
modernos, merece um exame mais acurado. É impressionante que um
dos fatores comuns a todos os Enteógenos mencionados nesta pesquisa,
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 131

a Ayahuasca, o Peiote, a Iboga, o Wachuma (São Pedro), os Teonanacatl


(cogumelos sagrados) e a Jurema, é o de trazer uma nova compreensão
acerca da morte. Nesse ponto, de novo sua ação psicológica, existencial
e espiritual é estranhamente similar. Todos levam à conclusão de que
existe vida após a morte, e de que convivemos com realidades paralelas
invisíveis, com as quais podemos nos comunicar, e que atuam implaca-
velmente sobre os seres humanos, quer estejamos conscientes disso ou
não. O mais espantoso é que as diferenças culturais, étnicas, históricas
e farmacológicas são acentuadas no universo desses múltiplos Enteóge-
nos. Todos os seus usuários são praticamente unânimes em pressupor
dimensões espirituais da existência, com seus guardiões e protetores,
bem como seres capazes de gerar doenças e quadros insólitos, alguns
bem conhecidos dos espíritas, dos xamãs, dos sacerdotes de várias tra-
dições sagradas e dos terapeutas transpessoais.
Neste ponto, esta propriedade de expansão perceptual para outras
dimensões de realidade, se imiscui espantosamente com a proprieda-
de pedagógica descrita anteriormente, trazendo uma correlação en-
tre o contato interpretado como sendo com seres espirituais e os fatos
histórico-sociais do surgimento de significativas inovações culturais em
decorrência dessas experiências psicológicas.
Já nos últimos anos do século passado deparamo-nos com o inte-
resse científico de Jung pela parapsicologia e pelos fenômenos espíritas.
Desde sua tese, onde encontramos o despontar de uma linha psicológica
de análise de tais fenômenos, até a conferência realizada em 1919 na Bri-
tish Society for Physical Research intitulada “Bases psicológicas da cren-
ça nos espíritos”, ele desenvolve uma explicação fundada nos complexos,
fatores autônomos do inconsciente, que apareceriam projetados:

“Estou convencido da exteriorização. Tenho, por exemplo, observado inú-


meras vezes o efeito telepático de complexos inconscientes. Não posso, po-
rém, ver nisso tudo nenhuma prova da existência de espíritos reais e, por
ora, devo considerar esse campo de fenômenos como um capítulo da psi-
cologia.”

Mas na segunda edição desse artigo, em 1947, Jung acrescenta uma


nota de pé de página à frase citada anteriormente:

“Hoje, depois de ter reunido, durante meio século, experiências psicológicas


com muita gente e em muitos países, não me sinto mais tão seguro como em
132 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

1919, ao fazer a afirmação acima. Confesso francamente que duvido que o


método e a reflexão exclusivamente psicológicos sejam capazes de fazer jus-
tiça aos fenômenos em questão. Não só as constatações da parapsicologia,
mas também as minhas próprias reflexões teóricas, esboçadas em minha
contribuição à reunião de Eranos de 1946, levaram-me a certos postulados
que tocam as ideias da física nuclear, isto é, do contínuo de espaço-tempo.
Levanta-se assim a questão da realidade transpsíquica, que se situa direta-
mente na base da psique.”

Poderíamos, aí, acrescentar a experiência de saída do corpo du-


rante sua quase-morte demonstrando a autonomia da psique em rela-
ção ao cérebro, dado corroborado por outros investigadores,28 e outras
de contato com mortos em sonhos, que ele narra em suas memórias.
Stanislav Grof menciona um caso muito interessante de comunicação
post-mortem que evidencia nossa necessidade de profunda investigação
desse assunto.29
Passaremos às desafiadoras reflexões do etnobotânico Terence
McKenna acerca da questão das inteligências desencarnadas e das enti-
dades não humanas. Diz ele:

“Seja qual for o seu status no mundo, sua persistência na experiência e no fol-
clore humanos é notável. O fenômeno da sua existência não é algo inusitado
nem estatisticamente raro. Em todos os tempos e em todos os lugares, com a
possível exceção da Europa Ocidental nos últimos 200 anos, o comércio social
entre seres humanos e vários tipos de entidades desencarnadas, ou de inteli-
gências não humanas, tem sido considerado perfeitamente verdadeiro.”

Tecendo uma crítica à primeira avaliação junguiana, ele se posicio-


na contra o usual reducionismo psicológico, aventando a possibilidade
de que essas entidades são não físicas e, em algum sentido, autônomas
em sua existência, conforme Jung sugere em sua autobiografia, Memó-
rias, sonhos e reflexões.

28 Desembocando após mais de meio século de pesquisas acerca do cérebro humano


em uma hipótese dualista, que propõe a irredutibilidade da mente ao cérebro, o
neurologista Wilder Penfield escreve: “Trata-se de uma observação relevante para
qualquer inquérito sobre a natureza da existência humana e em conformidade com
a proposição de que a mente possui uma existência em separado. Poderia até mes-
mo servir como argumento para uma provável e possível imortalidade!”
29 Remetemos o leitor às observações de Stanislav Grof em seu livro A mente holotró-
pica, p. 175 a 179.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 133

Conclui Terence:

“Em outras palavras, elas veiculam, efetivamente, uma existência que in-
depende do fato de serem percebidas por seres humanos. Esta é a posição
clássica daqueles que têm tido a mais vasta quantidade de experiências em
lidar com essas entidades: xamãs, extáticos e os chamados tipos sensitivos.”

Até o presente, não apenas xamãs, paranormais e sensitivos, mas


muitas outras pessoas têm experiências desse tipo para narrar, sendo o
fenômeno da crença em tais dimensões invisíveis da existência, mais co-
mum e universal do que muitos dos cientistas da atualidade são, pela limi-
tada amplitude de sua investigação e coragem, capazes de reconhecer.
Continuando sua argumentação acerca da questão acima, Terence
reflete:

“Esta posição ergue uma barreira tremenda para a mente científica e oci-
dental: a erradicação do espírito do mundo visível tem sido um projeto per-
seguido com grande zelo ao longo de toda a ascensão da ciência moderna.
Admitir que esse projeto passou por cima de algo tão fundamental – uma
agência inteligente e comunicante, e copresente conosco neste planeta – se-
ria mais que uma perigosa admissão do malogro de um método intelectual.
Seria, praticamente, selar a falência desse método.”

É ainda muito interessante a lembrança que ele nos traz de que a his-
tória do começo da ciência moderna está definitivamente marcada pelo
contato com tais entidades. Aportando o fato de que alguns dos seus prin-
cipais proponentes e investigadores “(...) estavam sendo guiados e dirigi-
dos na formulação da ciência incipiente por entidades desencarnadas”, ele
atesta outra conclusão implacável a que chegamos após nossa investiga-
ção: a de que esses seres inteligentes têm revelado tecnologias diversas aos
humanos encarnados; desde tecnologias psicoespirituais, como a da cana-
lização e a de se lidar com a possessão, até metodologias médicas, farma-
cológicas, e muitas outras mais, tais como algumas formas de inspiração
artística, demonstrando a conexão estreita entre contato com o mundo
espiritual, com outras dimensões da realidade, e inovação cultural. Esse
tem sido um aspecto enriquecedor das múltiplas culturas, responsável por
muito da produção religiosa e artística de diferentes povos, que tem sido
desvalorizado e negligenciado ao longo dos tempos e da história.
Para os espiritualistas, místicos e religiosos de todos os tempos o
contato com tais seres é dimensão inerente à realidade. Não apenas no
134 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

xamanismo, mas, em muitas outras tradições sagradas, encontramos


tecnologias para propiciar, buscando controlar, disciplinar e direcionar
o intercâmbio com esses seres, para propósitos luminosos ou sombrios,
para fins egoicos ou espirituais, transpessoais.
Além de John Dee, Terence nos recorda que um dos fundadores
do racionalismo científico moderno, e, portanto, do paradigma que aí
está, René Descartes, “(...) foi colocado no caminho dos ideais da ciên-
cia moderna por um anjo que lhe apareceu em sonho e lhe disse que a
conquista da natureza seria conseguida através da medida e do número.”
Ele comenta surpreso: “Essa enunciação, que é efetivamente o grito de
batalha da ciência moderna, passou primeiro pelos lábios de um anjo!”
Torna-se óbvia, a partir daí, a necessidade de uma reorientação diante
destas questões, pois tudo indica que estamos no limiar de novas e mais am-
plas definições de “realidade”, talvez redescobrindo o que a máxima de Jesus
enunciara dois mil anos atrás: “Na casa do meu Pai há muitas moradas.”
Será que somente aí encontraríamos subsídios para explicar mais comple-
tamente a origem do Santo Daime, da Barquinha, da União do Vegetal e da
Arca, bem como de outras metodologias espirituais de trabalhos com essas
Plantas que investigamos, com sua sofisticada e original tecnologia?
Falando a respeito da experiência visionária produzida pelo Teona-
nacatl ou a “Carne dos Deuses”, o cogumelo sagrado mexicano, Enrique
Montoya ressalta: “Não se trata de alucinações. Ao contrário, se trata de
um fenômeno de clarividência, mesclada com projeção astral.”
Todos os seguidores avançados dos caminhos dos Enteógenos são
unânimes em considerar as experiências, alcançadas através de sua uti-
lização ritual, como tão ou mais reais do que a “realidade” ordinária.
Como profetiza Terence McKenna:

“Acredito que a pesquisa dos alucinógenos não é um remanso de águas para-


das na periferia da História. Os alucinógenos não são um avanço científico
destinado basicamente aos neuróticos e doentes mentais. São literalmente
‘o novo mundo’”.30

30 Em função disso podemos agora apenas mencionar outra propriedade misteriosa


do Daime, quando utilizado dentro de certas modalidades rituais: a de proporcio-
nar uma abertura mediúnica, isto é, uma abertura para o contato com seres in-
teligentes de outras dimensões invisíveis da realidade. Ver MONTOYA, Enrique;
FERICGLA, Jívaro. Outra realidade mais importante que esta; COULIANO, Ioan P.
O historiador da 4ª dimensão.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 135

É interessante observarmos que cientistas da envergadura de Te-


rence McKenna e de Stanislav Grof, como que “olhando pelo telescó-
pio de Galileu”, experienciando os psicoativos e os Enteógenos, con-
vergem para uma visão que considera múltiplos níveis de realidade,
da mesma maneira que os parapsicólogos e outros terapeutas trans-
pessoais, redemarcando as fronteiras da consciência da mentalidade
ocidental.
Vamos também incluir a posição de um xamã peruano, o amigo
Agostín Guzmán, perito em trabalhos com o Wachuma (São Pedro),
outro Enteógeno que mencionamos neste livro: “As pessoas nativas sa-
bem que as plantas enteogênicas foram postas em nosso planeta para
que o ser humano aprenda a ingressar em outras dimensões e a entrar
em contato com Deus”.
Outro dado/fato digno de atenção é a quantidade de conhecimen-
tos sobre a Bebida Sagrada produzidos pelo químico e pelo xamã na
Memória do “Segundo Foro Interamericano sobre Espiritualidad Indí-
gena”. Enquanto o texto do Xamã Agostín tem sete páginas, a contribui-
ção do químico Victor Reyna cabe em uma. Mas é uma contribuição
muito importante e traz uma denúncia. Diz ele:

“Em toda a costa peruana os curandeiros utilizam em sessões noturnas, per-


manentemente e há séculos, a beberagem denominada ‘São Pedro’, a qual se
prepara mediante a decocção do cacto do mesmo nome ‘são pedro’ (Echi-
nopsis Panachoi).”

Mais adiante, após uma breve análise química, ele conclui:

“Para os curandeiros do norte do Peru, o cacto ‘são pedro’ é a principal entre


todas as plantas mágicas e/ou medicinais, e as propriedades da beberagem
que se prepara com este são duas:
i- Permite ao curandeiro alcançar ‘estados modificados de consciência’, nos
quais chega a conhecer a afecção do paciente e suas origens, e o tratamento
a seguir para sua cura.
ii- A ‘purga’ do organismo do paciente, que o ajuda a eliminar os agentes
que afetam sua saúde.
Na bibliografia não se reportam estudos sobre a atividade farmacológica ou
fisiológica da beberagem.
Apesar dessa falta de estudos, as propriedades referidas pelos curandeiros são
descartadas categoricamente pelo sistema oficial de saúde de nosso país”.
136 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Ficamos impressionados com o reconhecimento unânime de pes-


quisadores e peritos, das admiráveis propriedades destas Plantas. São
lastimáveis, entretanto, até certo ponto compreensível, o descaso e o
preconceito das autoridades. Elas simplesmente não têm ferramentas
para entender o valor e a aplicabilidade destas plantas.
Porém, se forem cultivadas a humildade e a atitude científica ne-
cessárias, poderemos, com o auxílio dos xamãs e mestres enteonautas,
desvendar suas complexas e enigmáticas propriedades. Com uma equi-
pe interdisciplinar, tendo cientistas especialistas em diferentes áreas, bi-
ólogos, químicos, médicos, antropólogos, psicoterapeutas transpessoais
e xamãs, em posição de igualdade, buscando produzir um saber trans-
disciplinar, e, aplicando algumas metodologias sugeridas neste livro, te-
mos, seguramente, um caminho frutífero pela frente.
Como nos recorda o xamã Agostín Guzmán:

“Em minhas experiências com diferentes curandeiros do norte do Peru, no-


tei que Wachuma servia para abrir a mente e o espírito das pessoas, e as aju-
dava com a autocura e a aprendizagem dos segredos do mundo invisível.”

De maneira bastante objetiva e imparcial, o xamã sugere as condi-


ções para o bom sucesso da experiência com o Wachuma, o cacto sagra-
do, que são válidas para todos os Enteógenos:

“Se as pessoas previamente fazem dieta e se lhes dá uma dose moderada,


se lhes busca um lugar propício para o ritual, brindando-lhes supervisão e
assessoria adequada, vamos ter muito bons resultados em seu autodesco-
brimento.”

Discorrendo sobre o poder do Wachuma, da “conversa com o cor-


po”’ proporcionada por ele, Agostín reconhece:

“O ótimo é contar com a ajuda de um psicólogo com experiência neste tipo


de trabalho. Além de autocurar-se, na pessoa se abre um canal de acesso
para receber muita informação, daquela que não se pode aprender lendo
livros, nem assistindo a um curso. Neste estado, o corpo da pessoa é muito
sensível, o tempo e o espaço desaparecem. Podemos discutir ou dialogar.”

São assaz importantes as suas contribuições para o entendimento


do que está ocorrendo com o indivíduo, com consequências acerca do
como lidarmos com essas pessoas que estão em estados não ordinários
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 137

de consciência. Acessando uma Sabedoria ancestral inscrita no corpo,


entrando em contato com o animal e o supraconsciente em nós, o Ente-
ógeno permite-nos trabalhar simultaneamente com a palavra, o diálogo,
a dialética entre o cuidador, guia e facilitador, e o enteonauta, em seus
diferentes níveis e momentos do processo.
O resultado narrado por Agostín é o mesmo encontrado em outros
Enteógenos:

“Depois desta experiência a pessoa muda totalmente seu estilo de


vida em muitos aspectos, em sua maneira de pensar, hábitos de ali-
mentação, sonha muito, e nestes sonhos pouco a pouco vai enten-
dendo sua vida e sua missão e o que tem de fazer no futuro.”

Conclui ele: “O Wachuma é uma planta mestra.”

5- Propriedade de dinamizar o desenvolvimento psicológico (desde


a infância até as maduras esferas do processo de individuação)

“Mas por enquanto podemos dizer, eu acho que o valor, à parte o valor
intrínseco, por assim dizer o valor ético, sociológico e espiritual da
experiência visionária, é que se for bem usada ela pode resultar numa
mudança importante e significativa no modo de consciência, e, talvez
também numa mudança de comportamento ou para melhor.”
Aldous Huxley – Moksa

“Então ele ergueu o cálice, símbolo de todo abrigo físico e acomodação


do corpo.
Como fizera com o pão, ele acolheu-se e se absorveu nele;
Ele queimou com um fogo interior, alumiando a atmosfera com alegria
e vida.
Então o deu a eles e disse:
Todos, tomai e bebei,
rodeai e desfrutai,
Convertei e consumi,
cercai e resisti
As profundezas da Sagrada Fundação:
Este é o meu vinho (damî)31

31 Como diz Neil Douglas-Klotz: “Quanto à palavra-chave, damî, geralmente tradu-


zida como ‘sangue’, é importante notar que a palavra também se refere literalmen-
te a qualquer vinho tinto, suco ou seiva.” Será que Ele se refere ao suco ou seiva
138 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

o suco do Universo que satisfaz


todas as sedes de comunhão.
Este é o meu sangue, seiva do adamah
a essência assimilada do cosmo,
o elo entre todas as almas e corpos,
todos os tus e eus.
Esta prescrição renovável preenche toda necessidade.
Ela flui da sua Fonte
em quantidades sempre maiores.
Ela desata todos os nós e
acolhe todos os erros com vazio.
Assim como o sangue, esta efusão universal,
em cuja semelhança aparecemos,
nos liberta do passado,
batida por batida do coração.”
(Versão ampliada de Mateus 26: 27-28, da versão Peshitta dos
Evangelhos – Traduzido do aramaico por Neil Douglas-Klotz, Ph.D.)

“Estamos no limiar de uma nova era da investigação científica. Os


antigos instrumentos de alteração da consciência ainda poderão
fornecer informações valiosas e necessárias para guiar nossa cultura
com segurança no próximo século e, também, depois dele.”
Charles S. Grob, M.D.

Uma outra propriedade misteriosa que encontrei no Santo Daime,


depois estendida a outros Enteógenos, foi a de dinamizar o processo
de desenvolvimento psíquico. Pude perceber, como psicólogo, que o
Enteógeno funciona como um catalisador. Ralph Metzner, nas conclu-
sões das suas pesquisas, sugere que “(...) talvez a ayahuasca pertença à
categoria das substâncias atualmente denominadas ‘intensificadoras da
cognição’, ou ‘nootrópicas’.”

de uma Planta Sagrada, que dilui complexos e nos liberta da usual colonização pelo
passado, seja desta ou de outras vidas? Será que este “Vinho Sagrado” nos conduz a
uma nova consciência que detém a síntese de várias vidas, personalidades e corpos,
representando um ponto de integração entre os personagens interiores, o eu múltiplo
e os ‘outros’ exteriores, que espelham nossa multiplicidade interior, configurando a
Consciência Cósmica, o Todo, o Eu divino que é um com o Pai, com o Deus trans-
cendente ou, em termos psicológicos, o princípio unificador da psique, o Si-Mesmo?
Encontramos, aí, experiencialmente, a constatação de que Atman e Brahman, o Deus
imanente e o Deus transcendente, têm a mesma natureza? Será que essa experiência
ampla e decisiva tem o poder de preencher nosso anseio de plenitude?
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 139

Foram muito surpreendentes os dados que encontrei nos estudos do


antropólogo Fericgla acerca do uso da Ayahuasca e da Brugmansia entre
os Shuar, pois coincidem e complementam minhas próprias observações
a partir do estudo e experiência com a Arca, a Barquinha e o Santo Daime,
bem como com a Psicologia Junguiana e a Psicologia Transpessoal.
Vemos então como o Enteógeno, quando utilizado dentro de apro-
priadas condições, atua como dinamizador do processo de desenvol-
vimento psíquico desde as suas fases iniciais (infância, adolescência),
até as fases mais avançadas do processo de individuação, bem como no
preparo espiritual de curadores e sacerdotes.
Entre os Jívaro (povo que, pela descrição de Fericgla, me parece de-
tentor de uma avançada tecnologia de utilização dos Enteógenos) a pri-
meira ocasião em que se consome Ayahuasca é pouco após o nascimento.
O Enteógeno é dado ao recém-nascido “para que aprenda a distinguir en-
tre o mundo físico ou irreal, e o mundo próprio das visões, o verdadeiro”.
Mais tarde, aos seis ou sete meses, a mãe dará novamente um En-
teógeno ao filho, para que ele comece a andar. “Poucos dias depois”, diz
Fericgla, “as crianças ficam de pé e andam”. Na adolescência (entre 7 e 11
anos) são convidados a participar de um rito de passagem, não obriga-
tório, onde serão consumidos Enteógenos em abundância “para buscar
sua sorte na vida”. Se durante o rito o jovem tem a sorte de ter visões
do Arútan (traduzido como “poder impessoal da natureza”) e de tocá-lo,
converte o Arútan em seu aliado, e em pouco tempo, segundo afirmam os
Shuar, “muda a voz, muda de caráter e se converte em adulto responsável
com precocidade em face dos demais meninos de seu grupo de idade.”
Atualmente, na Arca, como outrora na Barquinha e no Santo Dai-
me, minha observação dos jovens e adultos que frequentam os trabalhos
com continuidade é a de que ocorre uma dinamização do processo de
individuação, mobilizando aspectos da personalidade que necessitavam
de confronto e elaboração para um mais alto patamar de consciência e
integração, favorecendo a emersão do centro da psique, o Self, que esta-
belece um novo referencial de avaliação de suas vidas.
Especialmente as iniciações, o “Camisamento”, o “Fardamento”,
são ocasiões em que, quase inevitavelmente e de forma mui misteriosa,
a Sombra, os “defeitos”, as feridas e os “pecados” do passado vêm mais
intensamente à superfície da consciência, o irmão tem a oportunida-
de de realizar uma espécie de trabalho sobre si mesmo mais profundo,
experienciando uma espécie de “quitação kármica” mais radical, numa
140 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

possibilidade decisiva de aprimoramento. Essa é uma oportunidade de


a pessoa se purificar de maneira mais profunda e operar uma transfor-
mação da personalidade, que pode se constituir em um salto qualitativo
de impressionante alcance em sua vida psíquica.
Os antigos egípcios conheciam esta importante etapa arquetípica
do processo iniciático de propiciar uma decisiva mudança de nível ético
e de consciência, presente na misteriosa cena da Psicostasia, que equiva-
le também ao Arcano XX do Tarot, o Julgamento, experiência frequente
também nas vivências de “quase-morte”.
Grof igualmente observa a presença desta vivência arquetípica
em sua pesquisa com os estados nãoordinários de consciência através
do LSD. Ao discutir os antigos textos sagrados dedicados à questão da
morte, os “livros dos mortos”, como o egípcio “Pert em hru” (Saída para
o Dia) ou o “Bardo Thödol”, o Livro Tibetano dos Mortos, que são en-
tendidos pelos investigadores ocidentais como “relatos fictícios do per-
curso póstumo da alma e, por conseguinte, criações ilusórias de povos
incapazes de aceitar a turva realidade da morte”, ele, na mesma linha
de conclusões com que me deparei em minhas próprias investigações,
questiona a versão oficial, propondo um outro e surpreendente alcance
para esses textos enquanto mapas das regiões da alma humana alcança-
das pelos estados de expansão de consciência.
São implacavelmente evidentes as distorções das interpretações
usuais de cientistas modernos sobre a mentalidade dos povos antigos e
dos iniciados de todos os tempos. Continua Stan Grof:

“Contudo, o estudo mais aprofundado dos textos citados permitiu saber que
foram utilizados como guias no contexto dos mistérios sagrados e das prá-
ticas espirituais e que, provavelmente, descreviam as experiências de inicia-
dos e crentes. Desde esta nova perspectiva, apresentar os livros dos mortos
como manuais de ‘como morrer’ poderia ser considerado um disfarce inteli-
gente para ocultar sua função ritual secreta e proteger a mensagem esotérica
da curiosidade dos não iniciados”.

No estudo (ainda não publicado) que realizei sobre os Encanta-


mentos de Saída para a Luz do Dia, o “Livro dos Mortos Egípcio”, em
1989, menciono o fato de que provavelmente o “Livro” não era utilizado
apenas para os mortos, mas também para orientar e auxiliar os vivos,
os iniciados nos mistérios egípcios, “mortos” para uma identidade an-
terior, um arquétipo encontrado inexoravelmente nas iniciações de di-
versos tempos e lugares.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 141

As avaliações de vários especialistas, investigando recortes diferen-


tes do tema, convergem. Os dados resumidos por Grof são suficientes
para operar uma ampliação do entendimento atual do assunto. Ele diz:

“A investigação moderna centrada nos estados de consciência paranormais


estabeleceu ideias novas e inesperadas neste campo problemático. O estudo
sistemático das experiências em sessões psicodélicas, em poderosas formas
de psicoterapia sem drogas e em crises psicoespirituais, ocorridas espon-
taneamente, demonstraram que, nestas situações, os indivíduos costumam
encontrar um amplo espectro de experiências insólitas, entre as quais se
incluem sequências de agonia e morte, a passagem pelo inferno, fazer frente
ao juízo divino, o renascimento, a chegada aos reinos celestiais e a confron-
tação com as recordações de encarnações precedentes.”

O mesmo espectro é encontrado nas experiências com os Enteó-


genos.
Diz o hino do Santo Daime: “Depois do julgamento/ o que falta
logo vem”. Embora essa igualmente seja uma fase crísica, onde o inicia-
do pode ser vencido por sua Sombra e fracassar em importante etapa do
Caminho espiritual da transformação, deparamo-nos aí também com
grandes oportunidades de confronto e mudança de nível. Após o exame
e a reavaliação de nossa vida, uma nova consciência amanhece.
São consensuais entre seguidores de diferentes linhas de Ayahuas-
ca, e mesmo de diferentes Enteógenos, os depoimentos acerca do ama-
durecimento anímico proporcionado pelas sucessivas experiências.
Teriam os xamãs e povos da antiguidade descoberto importan-
tes ferramentas capazes de auxiliar/catalisar esse misterioso processo
de crescimento psicológico, o processo de individuação, que acontece
espontânea e inexoravelmente em nós? Não existem drogas em nossa
farmacopeia moderna capazes de conseguir isso.
Talvez o objetivo final da Pedagogia, da Psicoterapia e, simultaneamen-
te, o eixo da Psicosofia, esteja equacionado no importante livro de Schwal-
ler de Lubicz, Esoterismo y simbolismo – La inteligencia del corazón, de um
modo onde nos deparamos com uma tecnologia que visa o móvel/imóvel
objetivo central de toda evolução: “A ciência desse retorno consciente à fon-
te (Cristo ressuscitado volta à direita de seu Pai, e não se funde com Ele) será
a psicologia espiritual, e se dirige a nós nessa vida, através da Vida”.
Como na parábola do Filho Pródigo, na estória sufi “O Filho do
Rei”, e em muitas outras estórias em que esse ciclo arquetípico está pre-
142 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

sente, percebemos aí a diferença entre a “vida” da alma, eterna, e a “vida”


encarnada, efêmera e passageira.
Esse contraste e suas consequências para nossa existência nesse
mundo, em nossa avaliação do que é realidade, de quais são os valores
mais elevados em nossa apreciação e que se refletem em nossas práticas
e em nossas prioridades de vida, são o fator essencial para a avaliação
das diferenças entre as drogas e os Enteógenos.

c) A Questão da Consciência e os Enteógenos

“Jesus disse: ‘Se derem à luz aquilo que está no interior de cada um,
isto os salvará. Se não tiverem o que está no interior, isto os matará.’”
Evangelho de Tomé

“Os xamãs utilizam princípios da ciência moderna e também outras


coisas, inclusive mais reais e estranhas do que a física quântica.”
Fred Alan Wolf

“Grandes superstições têm (...) pois bebendo estas ervas as consultam


como a um oráculo para quantas enfermidades pretendem curar,
e para quantas coisas desejam saber (...) a que o conhecimento
humano não pode chegar, para saber a origem das enfermidades,
principalmente se são prolixas, e largas, e as atribuem a feitiço (...)”.
Jacinto de la Serna

Poderíamos nos perguntar o que pensaria Jung acerca deste as-


sunto e como ele interpretaria a experiência enteogênica? Inicialmen-
te mencionaremos o que nos informa a Dra. Marie-Louise von Franz,
colaboradora e discípula dele. Segundo ela, Jung admite “em uma carta
escrita em abril de 1954 que não estava suficientemente familiarizado
com o valor psicoterapêutico dessas drogas, no caso de pacientes neu-
róticos e psicóticos”.
Vamos tomar, então, como referência importante, o relato de
Aniela Jaffé, uma das pessoas mais próximas dele, bem familiarizada
com suas ideias, para iniciarmos esta discussão. Em seu livro O mito do
significado ela comenta a abordagem junguiana da experiência interior
com a mescalina. Mesmo sabedores de que a mescalina, conforme apre-
sentamos antes, é uma droga, isto é, uma substância “purificada”, um
alcaloide isolado do cacto sagrado Peiote (Lophophora Williamsii), En-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 143

teógeno mencionado anteriormente, e sabendo também que Jung não


teve acesso às informações e às experiências que estamos trazendo à luz
neste livro, a argumentação de Jaffé pode servir como apoio para alguns
junguianos, menos informados, avaliarem e repudiarem, precipitada-
mente, as contribuições que aqui apresentamos acerca desse denso e
complexo assunto.
Ela recorda, por um lado, o interesse acentuado de Jung pelas ex-
periências científicas com a mescalina. Ele divisava aí, mais uma vez,
a confirmação de suas próprias investigações “sobre as manifestações
do inconsciente e sua numinosidade”. Porém, ela igualmente informa
que Jung, em função de seu “respeito pela natureza e por seus ritmos
e leis próprias”, rejeita o uso de drogas em psicoterapia, ou as vê como
via rápida e suspeita para obtenção de experiências espirituais e “re-
harmonização religiosa”.
O primeiro posicionamento caiu por terra diante das grandes difi-
culdades das psicoterapias clássicas de obterem resultados em diversos
casos, e da eficácia demonstrada pelas psicoterapias sérias utilizando
tanto os Enteógenos, como o trabalho revolucionário de Salvador Ro-
quet, quanto com drogas psicoativas catalisadoras, como o L.S.D. (nova-
mente uma forma modificada do princípio ativo de outra Planta Sagrada
do antigo México, o Ololiuqui), presente no trabalho de Stanislav Grof, e
outros. Temos cientistas conceituados, como Schultes e Hofmann, reco-
nhecendo que “as mudanças na consciência e na percepção que podem
produzir-se experimentalmente com os alucinógenos encontraram dis-
tintas aplicações na medicina”. O psicoativo, tanto o Enteógeno, a planta
sagrada, como o alucinógeno, a droga, pode atuar, além dos sintomas,
nas causas de um problema psíquico ou psicossomático.
Dentre as mais importantes metodologias de trabalho utilizando
substâncias psicoativas, uma delas, a chamada “terapia psicolítica”, teve
o termo “psicólisis” criado por um junguiano, Ronald A. Sandison. Tal-
vez este nome, que parece fazer alusão ao conceito de “lysis”, a etapa de
resolução na estrutura dos sonhos, segundo Jung, sugira “a dissolução
de tensões e conflitos psicológicos”, que se relaciona a uma das dimen-
sões do processo terapêutico na perspectiva junguiana.
Outro junguiano, o Dr. Pierre Solié, faz observações bastante fa-
voráveis a esse campo novo, repleto de originais possibilidades e de
encorajadores resultados. Apresentando alguns casos onde o acesso ao
material inconsciente foi facilitado, encurtando de meses para horas o
144 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

trabalho da terapia, e promovendo catarses mais transformadoras que


as obtidas por métodos mais tradicionais; ele refere-se ao emprego do
L.S.D. na psicoterapia analítica citando Sutter e Pelicier, que resumem
alguns dos pontos principais: “A vantagem procurada é tripla: encurtar
uma psicoterapia, facilitá-la trazendo uma documentação psicológica
nova e inédita; realizar em certos casos, facilitando a abreviação, uma
catarse decisiva”.32
Até mesmo o trabalho com a transferência, conforme narra Solier,
foi favorecido pelo uso do psicoativo. Após sua breve, porém densa ex-
posição, ele nos adverte que acontece aí o que já mencionamos ocorrer
também com o uso sacramental, para autoconhecimento e cura, que se
faz com os Enteógenos. Não existem milagres. Os resultados dependem
do “setting”, do terapêuta e da metodologia psicoespiritual que é utiliza-
da, consciente ou inconscientemente. Talvez dependam, principalmen-
te, da equação pessoal do indivíduo.
Acrescentaríamos que também um apoio de outros fatores, apa-
rentemente imponderáveis e não passíveis de controle estrito, pode ser
decisivo. Tais fatores, que poderemos denominar “espirituais”, são, na
verdade, objeto de sofisticada tecnologia encontrada entre os xamãs,
mestres e padrinhos que trabalham com os Enteógenos.
Para encerrar esta sucinta argumentação em favor da investigação
dos usos dos psicoativos e, mais especificamente, das Plantas Sagradas,
na psicoterapia, faz-se necessário incluirmos a posição de Schultes e
Hofmann. Mencionando as controvérsias entre os profissionais sobre o
assunto, eles evocam um dado decisivo, recordando que também conti-
nuam em discussão outras técnicas “psicoterápicas”, “(...) tais como os ele-
trochoques, os tratamentos com insulina e a psicocirurgia, métodos estes
que encerram perigos muito maiores que o uso de alucinógenos, que em
mãos de peritos se podem considerar virtualmente inofensivos”.
Impossível não mencionarmos também os abusos frequentes na
aplicação de drogas psiquiátricas. Temos a sensação de que existe uma
acomodação por parte dos profissionais, como se as drogas estivessem
funcionando muito bem e nada mais houvesse a investigar; como se,

32 A catarse, rejeitada por algum tempo, especialmente pelas psicoterapias de orientação


psicanalítica, vem, através do hodierno resgate operado pelas “psicoterapias experien-
ciais”, encontrando seu digno lugar em face das complexas questões suscitadas pelas
modernas abordagens holísticas, sobretudo as aportadas pela Psicologia Transpessoal.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 145

dado o estado lastimável de muitos dos pacientes psiquiátricos, a única


coisa que tivéssemos a fazer fosse meramente descobrir novas drogas, e
não explorar corajosamente novos caminhos e diferentes tecnologias.
O trabalho da Dra. Nise da Silveira comprova o quão frutífero pode ser
esse passo, essa mudança de nível. Ela desenvolveu eficaz metodologia
terapêutica para alguns dos mais graves e dramáticos casos de psico-
patologia, ousando utilizar recursos aparentemente mais brandos, mais
lentos e menos espetaculares que a medicação psiquiátrica, inauguran-
do, porém, nova era em psiquiatria no tratamento das causas, e não
apenas na imediatista contenção dos incômodos sintomas geradores de
exclusão social.
Na esfera da farmacologia as Plantas demonstram ser mina precio-
sa que, ainda inexplorada, pode constituir decisiva ferramenta nas inter-
venções psiquiátricas no terceiro milênio. Vale a pena fazermos também
a ressalva de que, apesar de bem mais completas e inofensivas do que
as drogas artificiais, as Plantas Sagradas também podem ser perigosas,
quando manuseadas por pessoas inexperientes ou fora do necessário
contexto, metodologia e atitude psicoespirituais.
Lao Tsu, em ensinamentos de tradição oral que se configuram tal-
vez as ideias de maior vanguarda que possamos encontrar em nossos
dias (2005), nos lega um critério que, de acordo com todos os conheci-
mentos que pudemos alcançar na atualidade, integrando Ciência e Reli-
gião em uma Psicosofia, é perfeitamente adequado e compatível com os
dados que possuímos da história das ciências e das religiões.
É, em suma, um excelente conselho para orientação segura, em
tempos tão incertos e difíceis como os que vivemos:

“Gentil príncipe, as pessoas no futuro não deverão aceitar cegamente o


novo, tampouco rejeitar da mesma forma o velho. As coisas que foram
desenvolvidas muito tempo atrás ainda podem ter grande valor se deram
mostras de ser seguras e eficazes e de resistir ao tempo. As novas invenções
que estão por vir podem parecer atalhos, mas as coisas de conveniência tem-
poral trarão posteriormente problemas ocultos. As gerações futuras terão
necessidade de reavaliar todas as descobertas e invenções antigas e novas
a fim de assegurar que elas são úteis e boas para a saúde, de acordo com os
modelos de um meio de vida holístico.”

Quando pensamos hoje nos modismos da medicina, da psicologia


e da pedagogia nos tratamentos e métodos que eram “a última palavra”,
146 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

modismos que se tornaram subitamente obsoletos, e que foram reconhe-


cidos como inadequados ou até perigosos, quando pensamos no resgate
moderno da acupuntura, da fitoterapia ou das técnicas de meditação an-
cestrais, damo-nos conta da atualidade e lucidez de sua perspectiva.
Retornando às colocações anteriores de Aniela Jaffé, a segunda po-
sição, em relação à experiência religiosa tida como induzida “artificial-
mente” pela droga, é posta em xeque exatamente pelo fato de estarmos
tratando de Plantas naturais, de uso milenar e de que, como nos informa
o antropólogo Peter Furst, ao comentar as descobertas importantes na
esfera da investigação dos “alucinógenos” nas últimas décadas (seu livro
Alucinógenos e cultura é de 1976), que tais “(...) descobertas têm acom-
panhado a constatação, ao longo de vários anos, de que os alucinógenos
vegetais mais importantes estão estruturalmente correlacionados com
compostos biologicamente ativos que aparecem naturalmente no cére-
bro”. Ele se refere igualmente ao fato de que:

“sabe-se agora que certos sistemas químicos ativos no cérebro humano são
parentes chegados de substâncias que originam o crescimento das plantas,
algumas das quais poderosamente psicoativas: descoberta de importantes
implicações tanto no campo da evolução como no da farmacologia.”

O etnobotânico Jonathan Ott, uma das maiores autoridades do as-


sunto na atualidade, desenvolve também uma brilhante argumentação,
questionando Charles Baudelaire, que denomina os estados induzidos
por drogas como “paraísos artificiais”, considerando que esses são os pa-
raísos verdadeiramente naturais que ainda nos restam. Em seu erudito
livro Pharmacophilia, ele desenvolve uma reflexão que inverte comple-
tamente o posicionamento mais convencional de alguns investigadores
e religiosos. Embora, lamentavelmente, não faça a distinção entre dro-
gas e Enteógenos que propomos aqui, para ele, como para nós, “as reli-
giões e as experiências religiosas baseadas em drogas enteogênicas são,
de fato, naturais e inegavelmente autênticas, e de modo algum ‘formas
inferiores de misticismo’(...).”
Ele vai mais além numa controvertida colocação de

“(...) que o geralmente considerado hoje como religião, e diversos caminhos


para um pretenso êxtase ou iluminação religiosa sem drogas, são decidida-
mente artificiais, e de duvidosa autenticidade em si mesmas, ao contrário do
que usualmente se supõe”.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 147

Exageros à parte, pois sabemos que além de muitas pessoas apre-


sentarem grande facilidade para a experiência mística espontânea, e
abertura para o inconsciente sem o auxílio da farmacologia, como o
próprio Jung, e de quase todas as religiões terem outras formas de al-
teração da fisiologia e da química cerebral, tecnologias de indução ao
transe e aos estados inusuais da mente, sua argumentação tece algumas
considerações que nos dão o que pensar:

“O monoteísmo do Próximo Oriente – judaico-cristão e islâmico – se converteu


mais no ataúde onde as religiões naturais baseadas no êxtase, em experiências
religiosas catalisadas pela ingestão sacramental de embriagantes sagrados, have-
riam de ser enterradas, sepultadas sob um grande edifício de religião artificial,
baseado em nada mais substancial que a fé; a fé na transubstanciação de um
sacramento placebo como o autêntico: farmácia celestial que cedia à prestidigi-
tação clerical; êxtase enteogênico ... a um nostrum33 nebuloso e numinoso!”

Para ele a atuação farmacológica dos Enteógenos foi sucedida por


outros procedimentos que, se por um lado, como o placebo, apresentam
certa eficácia psicológica, por outro são mais susceptíveis de manipula-
ções, e nem de longe comparáveis a experiências místicas proporcionadas
pelas Plantas Sagradas e suas espetaculares misteriosas propriedades que
descrevemos aqui. Será que a sugestão, o condicionamento (no sentido
skinneriano, por meio da aprovação dos líderes e grupos, da exortação à
fé e do temor) e os estados emocionais exaltados substituíram os sofistica-
dos efeitos psicológicos dos Enteógenos que descrevemos há pouco?
De qualquer modo, não serão as outras tecnologias religiosas (je-
jum, técnicas respiratórias, ritmos, música, dança, psicodramas rituais,
mortificações envolvendo experiências dolorosas, privação sensorial
e social, vigília, fadiga, exposição ao frio ou ao calor intensos, medi-
tação, sexo ritual etc.) igualmente tecnologias de indução artificial de
estados de consciência? Ou todas seriam como parteiras, facilitando o
afloramento de estados e modos de funcionamento místicos naturais
que simplesmente estão adormecidos em nossa mente e são usualmente
acessíveis apenas a uns poucos privilegiados?
Outra questão pertinente, passível de ser levantada por críticos de for-
mação junguiana é: São os Enteógenos expansores de consciência ou operam

33 Medicamento de composição secreta recomendado pelo seu preparador mas usual-


mente sem comprovação científica de sua eficácia.
148 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

uma constrição, um encolhimento da consciência, facilitando o afloramen-


to desabrido, a irrupção do inconsciente? Creio que todas as propriedades
misteriosas que formulamos apontam para a predominância da primeira
hipótese, embora não possamos descartar a segunda. O caráter pedagógi-
co, o exame de consciência, o confronto com a sombra, a paranormalidade
desperta e o amadurecimento psíquico nos levam a considerar a primeira
formulação como inegavelmente verdadeira e de suma importância para o
julgamento histórico e o futuro das políticas públicas em relação a eles.
Concordamos com Aniela Jaffé que os elementos do inconsciente que
emergem para a consciência implicam “um dever espiritual e moral que,
se não for cumprido, levará a incompreensões, complicações, sofrimento e
doença.” Por isso muitos mudam de vida, inclusive de maneira que pode ser,
às vezes, bastante radical, tangidos pela cobrança espiritual do Enteógeno.
Como vimos antes, o caminho enteogênico não nos poupa do esfor-
ço pessoal de buscar a mudança de conduta e o correto discernimento. Os
cultos enteogênicos necessitam de um trabalho de assimilação e integração
das percepções e visões alcançadas no estado de consciência expandida, e
implicam responsabilidade aumentada. Esse trabalho é feito pelos xamãs,
mestres e padrinhos que orientam e fornecem uma cosmovisão que enqua-
dra e classifica esse material, e pode ser realizado também por terapeutas
transpessoais, bem preparados nas duas esferas: psicológica e espiritual.
Apesar da confusão entre Plantas Sagradas e drogas, que aqui denun-
ciamos, Léo Matos, um dos pioneiros da psicologia transpessoal no Brasil,
reitera o dado da ausência dos “problemas de drogas” em sociedades cha-
madas de “primitivas”, em contraposição ao uso de drogas em nossa “civi-
lização moderna”. Observa ele que nessas sociedades os indivíduos não as
utilizam com o propósito de “se rebelarem contra pais e professores, de se
isolarem do processo social, de escaparem de seus problemas ou autopu-
nição (consciente ou inconscientemente)”. Ele cita Pierre Weil, outro bra-
sileiro grande psicólogo pioneiro da abordagem transpessoal, fundador e
reitor da Universidade Holística Internacional de Brasília, a UNIPAZ, para
ilustrar o respeito que os povos “aborígenes” têm por suas sagradas Plantas
expansoras de consciência, e que narra um depoimento acerca do uso da
Ayahuasca entre os índios Amahuaca. O cântico do ancião rogava:

“Nixi honi (isto é, videira cujo extrato produz visões).


Videira da visão
espírito incorporado da floresta
origem de nosso entendimento
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 149

conceda seu poder mágico


para nossa poção
ilumine nossa mente
traga-nos clarividência
mostre-nos os desígnios de nossos inimigos
aumente nossos conhecimentos
aumente nosso entendimento
de nossa floresta.”

Aí vemos com clareza o caráter de ampliação de consciência que os


xamãs atribuem a estas Plantas enteogênicas. Podemos ver, igualmente, pes-
soas modernas, “civilizadas”, experienciando diretamente essas Plantas, sem
contato, sem nenhum envolvimento apriorístico com as culturas da floresta
mencionadas, chegarem às mesmas conclusões: os Enteógenos ampliam o
conhecimento que temos acerca de nós mesmos e do mundo que nos cerca.
Eles trazem implacavelmente uma consciência que não tínhamos antes.
Recordamos aqui que Odin, o deus que, por meio de um sacrifí-
cio evolutivo recebeu as “Runas”, o alfabeto sagrado, um conhecimento
superior, mágico, é “o deus da loucura no sentido de inspiração”. Ele é
apresentado por Francis Huxley em seu elucidativo livro, O sagrado e o
profano, duas faces de uma mesma moeda. Francis escreve:

“Pois quem é Odin? Seu nome está ligado à palavra escandinava othr, ‘po-
esia’, e à palavra latina vates, ‘poeta’, ‘profeta’, ‘cantor inspirado’. A qualidade
dessa inspiração está clara na palavra do inglês antigo wood (“barril”, “ma-
deira”), que significa “louco” e tem seu paralelo em giddy (“tonto”, “bêbado”,
“alegre”), originariamente com o sentido de ‘possuído por um deus’.”

Existe uma correlação entre poesia, profecia, canção inspirada e a


“madeira” (planta sagrada?), estendidas à loucura, à ebriedade, à alegria
e à possessão por um deus, evidenciando que, conhecimento intuitivo,
artístico, inspirado, visão do futuro e “possessão por um deus”, isto é, ser
tomado por uma dimensão avançada, sobre-humana, divina, arquetípi-
ca, proveniente do supraconsciente, são equivalentes.
Encontramos igualmente na antiga Grécia, na obra do grande mes-
tre Platão, uma interessante formulação acerca do que estamos buscando
expressar por múltiplas e complementares vias, uma dionisíaca lição:

“O poeta não consegue fazer poesia antes de ser possuído, de estar fora de
si e de a razão ter cessado de habitá-lo. Pois enquanto se apegar a essa facul-
150 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

dade, nenhum homem é capaz de fazer poesia ou de pronunciar oráculos...


É por isso que o deus, depois de privá-los da razão, usa os poetas, os pro-
nunciadores de oráculos e os adivinhos divinos como seus servos, para que
nós, ouvintes, tenhamos a certeza de que não são eles que dizem o que é tão
valioso, pois estão destituídos da razão, mas que é o próprio deus quem o
diz, e que apenas nos fala através deles.”

Isso evidencia a estreita relação entre o estado visionário e o indu-


bitável aumento de consciência, mostrando que a tarefa evolutiva é que
está impulsionando a psique, e que, tendo um sentido bem distinto de
um estado inútil, alucinatório, caótico, doentio, alienado, visa e promo-
ve a individuação e a sabedoria, algo bem maior do que as drogas sequer
sonham em alcançar.
O mesmo equívoco acontece em algumas das interpretações mo-
dernas do xamanismo, das tecnologias e da mentalidade indígena. An-
tonin Artaud faz uma importante avaliação: “É fácil afirmar que os Ta-
rahumaras não têm civilização quando reduzimos a civilização a puras
facilidades físicas, a comodidades materiais que a raça tarahumara des-
de sempre desprezou.”
Indo mais além, ele posiciona-se a partir do choque cultural, sem
subestimar as tradições indígenas, constata:

“Sei que a vida dos Índios não é ao gosto do mundo atual; apesar disso, em
presença de uma raça como aquela por comparação, podemos concluir que
a vida moderna é que está atrasada em relação a determinada coisa, e não os
Índios Tarahumaras atrasados do mundo atual.”

Relativizando nossas perspectivas, podemos encontrar grande so-


fisticação nas visões dos antigos, detectando avançadas e transpessoais
maneiras de estar no mundo. Passamos a defender posições, no mínimo,
cuidadosamente respeitosas, em tão rarefeita matéria. Deparamo-nos fi-
nalmente com a lúcida apreciação de Artaud, válida para muitos outros
povos e culturas ancestrais: “A verdade é que os Tarahumaras desprezam
a vida do corpo e só vivem pelas ideias; quero dizer numa comunicação
constante e quase mágica com a vida superior dessas ideias.”
Dentre os estados não ordinários ou “alterados” de consciência, que
podem envolver patologia, diminuição de consciência, Stanislav Grof di-
ferencia os “estados holotrópicos”, como estados “orientados para a tota-
lidade”. Partindo do pressuposto de que “em nosso estado de consciência
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 151

cotidiano estamos fragmentados e nos identificamos apenas com uma


pequena fração daquilo que realmente somos”, ao enfatizar o caráter de
expansão, Grof define tais estados como voltados para a plenitude, o ama-
durecimento e a integração psíquica, classificando-os como um “subgru-
po amplo e importante de estados não ordinários da consciência para os
quais a psiquiatria contemporânea não tem um termo específico”.
Por isso utilizamos em geral no nosso texto, o termo expansão de
consciência. Essa é uma descoberta central que demarca o “salto quânti-
co” dos Enteógenos em relação às drogas, e que merece pesquisas ulterio-
res. Embora algumas drogas psicodélicas possam promover importante
expansão de consciência, isso não se fará de maneira tão natural, orgâ-
nica e segura quanto com o Enteógeno. Expusemos aqui muitos motivos
pelos quais devemos preferir o Enteógeno à substância artificial.

d) Conheciam os Antigos essa Ciência Sagrada? A “outra” História

“Gilgamés, revelar-te-ei um segredo


e te darei instruções;
Essa planta é como os arbustos espinhosos do campo;
Seu espinho, tal como o da rosa, te ferirá as mãos.
Mas se sua mão alcançar essa planta,
Voltarás à tua terra natal.”
Epopeia de Gilgamesh

“E não podemos concluir nada, sobretudo porque a nossa ignorância


da Antiguidade é demasiado grande. (...)
Portanto, não podemos dizer nada sobre o que realmente sabiam
os Antigos; julgamos adivinhar que terão guardado lembrança de
uma ciência infinitamente mais velha e mais avançada do que a
deles; existem algumas alusões dispersas a este respeito, mas nada de
preciso. Estamos reduzidos a alguns indícios, cuja procura ainda agora
começou. (...)
O mais espantoso é a cegueira seletiva que se abateu sobre os
historiadores das ciências perante certos fatos que entram pelos olhos
adentro.”
Pierre Duval

“Partilhei prudentemente do doce alimento,


Que suscita bons pensamentos e que melhor anula dissabores,
Do qual se banquetearam todos os deuses e também os mortais’’
(...) Bebemos Soma, tornamo-nos imortais,
152 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Encontramos os Devas no domínio da Luz.


(...) Dá-nos vigor entrando totalmente em nós,
Soma, dê a luz que cuida dos homens.
Junto com teus ajudantes, Soma,
Protege-nos por todos os lados.”
Rig Veda

Em seu intrigante livro, Povos primitivos e manifestações supranor-


mais, Ernesto Bozzano, pesquisador italiano ligado ao Instituto de Meta-
física fundado por Charles Richet, cita o Dr. Kirkland, oficial médico do
governo da Rodésia, quando, em uma conferência realizada em Londres e
reproduzida nos maiores jornais ingleses, Magia degli Africani, nos exorta:

“Estranho paradoxo verdadeiramente este dos povos ocidentais os quais,


à medida que avançam na civilização, regridem, outro tanto, no conheci-
mento sobre a verdadeira natureza da psique humana, ou, se quiser, sobre o
quanto eles se retardam no conhecimento autêntico a esse respeito...”.

O dado inexorável com que nos deparamos em nossa investigação


é o de que as culturas do passado e os descendentes de tais povos na
atualidade estão subavaliados pelas culturas ocidentais modernas, com
dramáticas consequências para encontrarmos o remédio para sairmos
da crise que permeia nossos conturbados tempos.
Mais adiante Ernesto Bozzano, no mesmo livro, cita ainda o explo-
rador italiano, o antropólogo e etnólogo Lídio Cipriani. Este, apesar de
sua linguagem ainda etnocêntrica, observa agudamente:

“Se bem investigada, parece-me assim que a medicina dos povos primitivos
deva ser considerada digna de mais respeito do que aquele até agora con-
cedido. Junto com absurdos de toda espécie, é ela provavelmente fruto de
uma experiência de milênios, se não talvez alguma coisa diversa que escapa
à natureza, capaz de provocar fenômenos idênticos em disparatadíssimas
regiões do globo”.

A partir daí ele dá o seu veredicto:

“Imperdoável que o homem civilizado deixasse perder todos os vestígios


disso, sem extrair o quanto de bom possa existir neles. A civilização, avan-
çando por toda parte a grandes passos, está contaminando agora os últimos
povos primitivos, e com maior razão, muito no sentido indicado, já está
perdido para sempre.”
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 153

Existem alguns dados que nos geram muita perplexidade, uma vez
que sua complexa explicação pode nos remeter a surpreendentes hori-
zontes para alcançarmos as respostas suficientes. Tudo isso é muito sig-
nificativo para nossa pesquisa. Podemos refletir com Aldous Huxley que
“todos os narcóticos, estimulantes, relaxantes e alucinógenos naturais
conhecidos do botânico e do farmacólogo modernos foram descobertos
pelo homem primitivo e estão em uso desde tempos imemoriais”.
A maneira que o cientista-filósofo, profundo conhecedor dos psi-
coativos, Aldous Huxley tem de equacionar algumas questões centrais
para nossa jornada é fertilizante para os desdobramentos que vamos
encontrar posteriormente nessa surpreendente incursão:

“Vamos nos lembrar sempre que, enquanto a farmacologia moderna nos


deu uma série de novos sintéticos, ela não fez nenhuma descoberta básica
no campo das drogas naturais; simplesmente aperfeiçoou os métodos de
extração, purificação e combinação.”

A informação surpreendente de que as principais plantas “psico-


ativas” são conhecidas desde os primórdios da civilização, posta lado
a lado com os feitos da ciência moderna, coloca ainda mais em xeque
as crenças vigentes, que não são absolutamente convincentes, pois não
encontramos as provas cabais de que as tecnologias dos antigos são em
tudo inferiores às atuais. Muito pelo contrário. Vale a pena considerar-
mos, ainda, que os povos antigos e alguns xamãs de nossos dias foram
e são grandes mestres na combinação de plantas para múltiplos fins,
inúmeras vezes com propósitos que ultrapassam os da farmacologia
contemporânea.
Como investigador independente, capaz de surpreender-se com as
evidências com que se deparava, Huxley chega a uma conclusão similar
à nossa:

“Todos os sedativos, narcóticos, eufóricos, alucinógenos e excitantes que


ocorrem naturalmente foram descobertos há milhares de anos, antes da
aurora da civilização. Isto é certamente um dos fatos mais estranhos nesse
longo catálogo de improbabilidades conhecido como história humana.”

As proporções e o alcance de tais descobertas ainda permanecem


velados. Podemos apenas cogitar e intuir um pouco de sua extraordiná-
ria extensão.
154 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Consideraremos inicialmente o fato decisivo de que as plantas xa-


mânicas, que são de uso e testagem milenar, são bem mais confiáveis
que as drogas purificadas ou as sintetizadas pelo homem. Mais ainda,
conforme exminamos exaustivamente, elas têm algumas propriedades
que inexistem em quaisquer drogas sintéticas ou princípios ativos isola-
dos por manipulação humana em laboratórios com a moderna tecnolo-
gia científica do século XXI.
Mas como interpretar o conhecimento tão aprofundado, revelado
pelos antigos irmãos, xamãs e sacerdotes de um passado longínquo, em
matéria tão complexa e rarefeita?
Salvador Roquet, com toda sua bagagem vivencial, tanto em ses-
sões xamânicas como terapêuticas, usando Enteógenos e também dro-
gas psicoativas, conclui:

“Em relação aos psicodislépticos naturais queremos sublinhar o fato que


nossa experiência nos permitiu descobrir, por razões todavia obscuras para
nós, que seu manejo é muitíssimo mais seguro e eficaz que seus equivalentes
farmacológicos purificados; além disso, podemos destacar que existe uma
toxidade muito reduzida, uma absorção mais adequada, efeitos secundá-
rios imediatos menores e mediatos nulos, e uma flexibilidade de dosificação
muito maior. Ao desconhecimento da causa destas particularidades dos psi-
codislépticos naturais obedece ao que Albert Hoffman disse em aconselhar-
nos a continuar trabalhando com eles: ‘seguramente contém princípios ati-
vos desconhecidos ainda não isolados’.”

O fato é que os resultados com as Plantas são bem superiores, em


muitos e decisivos aspectos, aos fármacos da ciência moderna. Cons-
tatamos então que os conhecimentos botânicos e farmacológicos dos
povos indígenas da Amazônia e de muitos outros lugares do mundo
têm gerado espanto e perplexidade aos especialistas. Referindo-se à
Ayahuasca, o etnobotânico Richard Evans Schultes indaga:

“Perguntamo-nos como povos de sociedades primitivas, sem conhecimento


de química ou de psicologia, conseguiram encontrar uma solução para a ati-
vação de um alcaloide por via de um inibidor de monoamino oxidase. Por
pura experimentação? Talvez não. Os exemplos são demasiado numerosos
e poderiam ainda ser mais com investigações suplementares.”

Como explicar isso?


As pistas que encontramos aí e em outros lugares nas culturas an-
cestrais nos levam à interpretação de que, seguindo tradições milenares,
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 155

elas preservam conhecimentos surpreendentemente avançados, possi-


velmente provindos de remota antiguidade.
Existe uma farta bibliografia em contracorrentes da ciência, uma
“arqueologia fantástica”, efetuada por autores de maior ou menor rigor
e profundidade, bem como descrições de povos antigos, sem contato
entre si, de maneira aparentemente independente de migração cultural,
falando de continentes e civilizações avançadas, desaparecidas em pas-
sado remoto da humanidade. Encontramos também escritos de autori-
dades acima de qualquer suspeita, como Platão, que trouxe ideias que
são fundantes de toda a nossa cultura ocidental. Um de seus famosos
diálogos é exatamente sobre a Atlântida.
Temos ainda as formulações de pessoas que, de um modo ou de
outro, navegaram ou navegam em estados de expansão de consciência:
experiências de sensitivos, crenças de místicos, videntes, como Edgar
Cayce, ou muitos relatos dos clientes de terapeutas regressivos, os Te-
rapeutas de Vidas Passadas. Infelizmente, é impressionante como são
descartadas sistematicamente todas as contribuições que não se enqua-
dram com o pobre e limitado paradigma newtoniano-cartesiano.
Mais recentemente encontramos o livro Arqueologia proibida, de Mi-
chael Cremo e Richard Thompson, ou sua edição condensada, A história
secreta da raça humana. Com perspectivas profundamente revolucioná-
rias a partir de dados surpreendentes, eles colocam em xeque muitas das
reverenciadas teorias acerca da origem e da história do homem, questio-
nando radicalmente as versões oficiais sobre o passado da humanidade.
Utilizando farta documentação arqueológica, eles põem por ter-
ra a usualmente aceita interpretação da evolução humana e trazem à
luz evidências “(...) de que humanos anatomicamente modernos têm
coexistido com outros primatas há dezenas de milhões de anos.” Seus
achados nos aproximam de viabilizar cientificamente a hipótese da exis-
tência de culturas avançadas em eras distantes: “Existe uma quantidade
significativa de provas oriundas da África que sugerem que seres seme-
lhantes a humanos anatomicamente modernos estiveram presentes no
Pleistoceno Inferior e no Plioceno”. Aí encontramos evidências de que,
como afirma o prefaciador do livro, Grahan Hancok, “(...) o modelo
da pré-história humana, cuidadosamente elaborado por estudiosos nos
últimos dois séculos, está completamente errado”.
Ainda dentro dessa perspectiva, encontramos a aguda análise do
confronto dos descobridores e colonizadores da América com as popula-
156 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

ções do Novo Mundo, realizada por José Antonio Valverde, no livro Enig-
mas del nuevo mundo, publicado pelas Ediciones Universidad y Cultura.
Em meio a uma série de importantes e surpreendentes dados, e
com interpretações mais livres do etnocentrismo que marca muito da
literatura de história na atualidade, ele ousa levantar questões decisivas
para o que estamos tratando.
Reconhecendo os vestígios impressionantes, que nos falam de um
passado cultural e tecnológico surpreendentemente sofisticado, traços
de “raças e civilizações superiores não relacionadas sequer com as que
habitavam o continente na chegada dos europeus”, ele pergunta:

“De que fantástica civilização procediam os antepassados dos ameríndios?


Quem foram e por que desapareceram deixando, isso sim, tanto assombro
nos rastros de sua história? Por que essa história resulta, ainda hoje em dia,
de tão difícil interpretação?”

É interessante observarmos no livro um outro viés na leitura do con-


fronto entre tão diferentes culturas e, talvez, uma explicação bem simples,
além da ganância e da arrogância dos europeus que aqui chegaram, para
muitas das atrocidades que foram cometidas contra os americanos:34
“Por que os descobridores os chamaram ‘selvagens’? Ocultavam
com isso um sentimento de inferioridade ante manifestações culturais
superiores, sistematicamente destruídas?” Perguntamo-nos: Será que,
de um modo ou de outro, por um motivo ou por outro, muitos cientistas
modernos cometem um equívoco similar?35

34 Além do choque cultural, inexorável o confronto com conhecimentos, práticas so-


ciais extremamente “civilizadas” e tecnologias, sob muitos aspectos, mais avançadas.
Uma reviravolta surpreendente, de amplas repercussões, que esta perspectiva pode
nos ocasionar, está consubstanciada na estória da “fala do cacique Guaicaipuru Cuau-
temoc”, que circulou na internet. Apesar das incertezas sobre sua verdadeira proce-
dência, a argumentação é absolutamente contundente nos força a desenvolvermos
sérias reflexões sobre os fatos mencionados.
35 Vamos imaginar a chegada dos espanhóis ao antigo México. Aqueles navegadores,
que estavam sujos e doentes, possivelmente em péssimas condições psicológicas,
se deparam com belos indígenas, hígidos, asseados, ricamente adornados com plu-
mas e outros objetos artesanais únicos, construtores de pirâmides, com escrita so-
fisticada, conhecedores de astronomia, detentores de um conhecimento herbolário
e de recursos medicinais que eram bem superiores aos da Europa daquele tempo.
Qual a sua reação mais provável?
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 157

É no pensamento de Frihjof Schuon, um dos maiores expoentes de


nossos tempos no campo das religiões comparadas, e pensador familia-
rizado com a Tradição Sagrada, a religio perennis, onde encontramos os
princípios unificadores por detrás da diversidade religiosa, que toma-
mos para exemplificar melhor o que estamos propondo.
Questionando um preconceito quase sempre, de um modo ou de
outro, presente nas avaliações dos historiadores e antropólogos moder-
nos acerca da mentalidade dos povos antigos e dos atuais povos indíge-
nas, ele escreve:

“Tampouco aceitamos a hipótese de um pensamento ‘pré-lógico’, pois tam-


bém aqui se trata de pensamento simbólico, e este, sem ser nunca ilógico, é
supralógico porquanto supera os limites da razão e, portanto também os das
construções mentais, as dúvidas, as conclusões e as hipóteses”.

Jung foi, sem dúvida, um pensador moderno pioneiro no resgate


da importância decisiva do símbolo para a vida psíquica do homem mo-
derno, e fornece farta documentação, incluindo aí todos os terapeutas
de sua escola, evidenciando a linguagem simbólica como fundamento
e estrutura do próprio inconsciente, como base da psique. Mas o que
descobri vai além.
Assim como em minha investigação me deparo com muitas evidên-
cias de que os alquimistas tinham bem mais consciência do que faziam e
do caráter simbólico do Opus do que supunha Jung, de outro lado mui-
tos antropólogos e cientistas, bem como Frithjof Schuon e outros autores
“outsiders”, nos mostram que o grau de consciência e discriminação en-
tre os níveis, entre realidades interiores e exteriores, dos indivíduos que
funcionam com mentalidade simbolista, é bem maior do que muitos pes-
quisadores puderam lhes conceder. Sendo assim, sempre alcançaram um
satisfatório grau de praticidade na solução de seus problemas materiais,
embora não fosse esse o seu referencial central, sua prioridade existencial.
Continuando a explanar suas ideias, Frithjof Schuon, com fina e
implacável argumentação, inverte a equação usual, demonstrando que o
pensamento simbolista apresenta inequívoca superioridade em relação
ao pensamento conceitual e concretista, “supersaturado de construções
artificiais e sofismas”, do homem que se autodenomina “civilizado”.
Se, por um lado, “o homem de formação racionalista, cujo espírito
está ancorado no sensível como tal, parte da experiência e vê as coisas
158 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

em seu isolamento fundamental”, “a mente simbolista, ao contrário, é


intuitiva em sentido superior; o raciocínio e a experiência só têm para
ela função de causa ocasional e não de base; vê as aparências em sua
conexão com as essências”.
Como exemplo ele cita como cada universo percebe a água: Para o
racionalista, excluindo a dimensão poética, ela simplesmente é um ele-
mento composto de oxigênio e hidrogênio. Apesar de poder atribuir um
significado alegórico, não considera nenhuma relação ontológica entre a
coisa sensível e a ideia que a ela se associa. Para a mente simbolista a água
será, antes de tudo, “uma aparição sensível de uma realidade-princípio,
um kami (japonês), um manitu (algonquino) ou um wakan (sioux)”.
O homem da tradição entende e interpreta as “realidades mate-
riais” à luz dos arquétipos; eles são a realidade última a partir da qual
tudo é compreendido e assimilado. Incluindo as dimensões transpesso-
ais da vida, seu pensamento é, em alguns aspectos, bem diferente de um
homem comum materialista moderno.
Talvez os antigos sacerdotes, filósofos e xamãs, de todos os tempos,
fossem mais “platônicos” ou, em certo sentido, mais “junguianos”, que os
racionalistas modernos; será isto um defeito ou uma qualidade? O alvo-
recer do novo paradigma e os achados da Psicologia Transpessoal, den-
tre outras contribuições da ciência e da prática clínica modernas, trazem
uma visão holística, muito mais próxima da concepção dos místicos, in-
dígenas e misteriosos povos da antiguidade, que a ciência moderna cus-
ta em assimilar, talvez pelas dramáticas consequências que isso terá em
seus referenciais, repercutindo em suas crenças, propostas e práticas.
Ainda na trilha desta hipótese, temos a proposição de muitos auto-
res respeitáveis, iniciados nos mistérios, que apontam para uma Ciência
Sagrada, uma “superciência” presente nos bastidores de nossa história co-
nhecida, preservando e transmitindo ensinamentos avançados em uma
visão tanto holística quanto secreta. Assim refere-se a ela o autor da Con-
cordância mito-físico-cabalo-hermética: “A origem da Ciência da Natureza
se perde nos tempos da infância do mundo; os patriarcas a possuíam. Aos
seus resultados deviam os dias longos e felizes de que gozavam.”
Outra hipótese para a explicação da avançada tecnologia que encon-
tramos por detrás do uso milenar dos Enteógenos é a de que nossos ances-
trais receberam por “canalização” ou outra via transpessoal esses conheci-
mentos. O antropólogo Jeremy Narby nos auxilia em nossa argumentação,
expondo a perplexidade do cientista moderno diante dos fatos:
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 159

“Eis aqui, gente sem microscópio eletrônico nem formação em bioquími-


ca, que seleciona, entre as aproximadamente 80 mil espécies amazônicas de
plantas superiores, folhas de um arbusto que contém um hormônio cerebral
preciso, as quais combina com uma substância bloqueadora da ação de uma
enzima precisa do aparato digestivo, encontrada em um cipó, com o fim
de modificar deliberadamente seu estado de consciência. É como se eles
conhecessem as propriedades moleculares das plantas e a arte de combiná-
las. E quando se lhes pergunta como sabem essas coisas, respondem que seu
saber provém diretamente de diversas plantas alucinógenas. São raros os an-
tropólogos, ou os etnólogos, que pensaram seriamente sobre este enigma”.

Considerar seriamente essa questão requer disponibilidade de


rever todas as nossas concepções sobre a realidade que nos cerca, e,
também acerca dos conhecimentos verdadeiramente científicos que os
povos do passado detinham, muitos dos chamados “primitivos” ou “sel-
vagens”, ainda hoje, detêm.
O exemplo da Ayahuasca é paradigmático do que estamos falan-
do. Como “descobriram” nossos antepassados, em uma imensa floresta,
com inúmeras espécies de cipós e de folhas, que, aquele cipó específi-
co com aquela folha específica, que não crescem um ao lado do outro,
combinados desta, e não de qualquer outra maneira, produziriam uma
bebida capaz de transformar profundamente a psique de um homem,
muito além da mera remissão de sintomas, convertendo em aliados e
até servidores da Bebida Sagrada, grandes grupos de pessoas saudáveis e
críticas, algumas delas com sólida formação científica? Quem quer que
tenha participado da coleta do cipó Jagube/Mariri (Banisteriopsis Caa-
pi) na mata amazônica, como tive a oportunidade de fazer, sabe o que
digo: É praticamente impossível alguém descobrir, por ensaio e erro, o
preparo correto da bebida. Parece absolutamente necessário que a pes-
soa seja iniciada por alguém que já o conheça; e é indubitavelmente uma
tecnologia avançada.
Alguns investigadores respeitáveis adotam uma linha interpretativa
da qual sou forçado a discordar. O grande pioneiro Terence McKenna,
por exemplo, sugere que a descoberta dos cogumelos enteogênicos foi por
ensaio e erro. A Ayahuasca parece comprovar exatamente o contrário.
Entre os povos pré-colombianos, peritos extraordinários nos inúme-
ros e sofisticados usos das Plantas Sagradas psicoativas, existia outra versão
para a origem dos conhecimentos sobre a utilização dos Enteógenos.
Por exemplo, encontramos na seção central de um códice mixteca
do século XV, uma imagem do deus Piltzintecuhtli, com dois cogumelos
160 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

na mão direita. Este deus é uma das manifestações de Xochipilli, o Deus


do Sol e Príncipe das Flores, que recebe do Deus Quetzalcoatl, instru-
ções acerca da origem e do uso dos Teonanacatl, a Carne dos Deuses, os
cogumelos sagrados.
Um outro ponto interessante aí é que, de acordo com a tradição
xamânica, talvez milenar, mas ainda viva no México, os cogumelos sa-
grados devem ser ingeridos aos pares. Seja qual for a interpretação que
possamos dar à maneira e à origem destas instruções, segundo eles, a
fonte é uma inteligência superior divina, e não a descoberta ou o golpe
de sorte de um indivíduo.36
Talvez seja esta a visão mais consensual entre as culturas da Anti-
guidade. Segundo Sir Wallis Budge

“os escritos religiosos e mágicos das grandes nações da Antiguidade, isto


é, os chineses e os indianos, os sumerianos e os babilônicos, os persas e
os assírios (ou, como poderíamos atualmente chamá-los, akkadianos), e os
egípcios e nubianos, contêm abundantes evidências de que esses povos pri-
mitivos acreditavam que os primeiros seres que possuíram o conhecimento
das plantas e de suas propriedades curativas foram os próprios deuses”.

Nessa matéria, a convergência entre alguns autores clássicos e os


“outsiders” é surpreendente. O tema é recorrente a tal ponto que nos
abre caminho para importantes reflexões.
Pierre Duval, autor do livro A Ciência e os grandes mistérios, nos
chama a atenção para os dados inexoráveis e transculturais: “Que eram
exatamente os inumeráveis heróis civilizadores que, a todo o passo, apare-
ciam em todas as mitologias (Quetzalcoatl e Viracocha, por exemplo)?”
Além das interpretações de que existem os arquétipos por detrás
de tais manifestações, que outras possibilidades históricas encontraría-
mos? As “coincidências significativas” teriam outra explicação?
Como se pergunta Pierre Duval no início do capítulo sugestivamen-
te intitulado “Um passado que parece surgir do futuro”: “Terá outrora
existido uma grande civilização, totalmente desaparecida, de que a ciência
babilônica e a ciência egípcia apenas teriam retido alguns fragmentos?”
Existem importantes dados, de estarrecedora amplitude e univer-
salidade, que nos desafiam e que, possivelmente, apresentam dimensões

36 Temos como exemplo o mito de Tainahakã, dos índios Karajá, no Brasil.


Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 161

que transbordam das possibilidades explicativas da teoria junguiana dos


arquétipos.
Alexander Eliot, no seu livro Mitos, em coautoria com autoridades
como Mircea Eliade e Joseph Campbell, nos informa:

“Tanto a culinária, a medicina, a caça, a pesca, a olaria, e a tecelagem como


o entalhar na madeira, a agricultura e a fundição em bronze, a forja do ferro
e a escrita têm mitologicamente algo em comum: sua origem sobrenatural.
Em muitos casos seres divinos, ou mortais possuidores de poderes mágicos,
trouxeram à humanidade estas e outras bênçãos”.

Acostumamo-nos a ver nos mitos estórias puramente simbólicas,


falsas no sentido literal, físico, material e histórico. Haveria, porém, mais
de histórico em alguns mitos do que nos acostumamos a acreditar?
De início, percebemos ser essencial que tenhamos sempre em
mente que, como nos adverte Alexander Eliot, “com toda a segurança,
a história de como chegamos a conhecer estas artes tem sido um tema
principal na mitologia mundial”. É muito curiosa essa preocupação sis-
temática de nossos ancestrais em enfatizar que os seus maiores avanços
culturais, desde as mais basilares até as mais sofisticadas dimensões de
suas sociedades, sua religião e sua tecnologia, por vezes bastante surpre-
endentes, eram provenientes de fontes superiores.
Em outros momentos, faz-se premente sermos ainda mais preci-
sos: “Em mitos e religiões aparecem diferentes deuses como transmis-
sores ou símbolos do conhecimento.” Nesses casos, temos uma origem
indubitavelmente acima da humana. Esse tema recorrente em toda a
história da civilização nos leva a um impasse e a uma urgente necessi-
dade de decifração.
Vale a pena recordarmos que a hipótese dessa “grande civilização”,
dessas “tradições mais ou menos universais acerca do fato de ‘os nos-
sos pais serem melhores e mais sábios que nós’ (...)”, pode nos auxiliar
a entender muitos outros vestígios da presença de culturas avançadas
em um remoto passado da humanidade, e nos ajuda a decodificar inú-
meros dados arqueológicos, antropológicos, históricos e psicológicos,
que se afiguram enigmáticos se enxergados exclusivamente à luz das
teorias clássicas, tais como a moderna teoria sintética da evolução, e
outras perspectivas em que certa dosagem de evolucionismo cultural
está presente, convencionalmente aceitas como realidades absolutas e
inquestionáveis.
162 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Hoje, com toda a certeza, damo-nos conta de que, diante dos fatos
com que nos deparamos, a história do homem possui muito mais lacunas e
fenômenos inexplicáveis à luz das teorias convencionais do que a perspec-
tiva que nossa bem comportada crença em uma confortante interpretação
oficial tem nos permitido alcançar. Olhando cruamente nada é tão óbvio:
Será que todo esse universo configurado tão inteligentemente é obra do
acaso e da necessidade, isto é, de mutações selecionadas aleatoriamente ou
por meros critérios adaptativos? Existe um “telos”, um objetivo, uma meta,
na natureza, na história, na alma humana? Será a visão cíclica da história,
encontrada em todas as civilizações mais avançadas da antiguidade, tais
como, entre os egípcios, gregos, hindus, bem como entre os maias, astecas,
africanos etc., mais real que a abordagem linear que se elege arrogante-
mente como superior e medida de todas as coisas? Essa visão da histó-
ria enquanto uma “dança de arquétipos”, um “jogo cósmico” de infinitos
movimentos e combinações, como propõem, por exemplo, a abordagem
taoísta (I Ching) e o calendário Maia, parecem ser tão úteis para a interpre-
tação dos fatos, do real, quanto nossa abordagem histórica materialista.
Atualmente faz-se imperiosa uma releitura de todos os fatos, in-
tegrando as múltiplas/complementares teorias e versões: “mitológicas”,
“científicas”, “teológicas” – as visões míticas, a moderna teoria sintética
da evolução e a abordagem teológica, que percebe o valor insubstituível
do Gênesis, bem como de outros mitos de Criação e de Origem, para
descrever o surgimento, os contornos e os propósitos últimos da alma
humana, temas centrais para todos nós. Tais visões são também psico-
lógicas e alquímicas, além de teológicas.
Continuando e aprofundando essa reflexão, percebemos igual-
mente que as formas de uso dos Enteógenos são prescrições à parte: de-
paramo-nos com sofisticados ritos e metodologias que, se nem sempre
podemos compreender inteiramente, não parecem relacionar-se com
algo que foi descoberto de forma aleatória.
Minha posição é a de que os Enteógenos não foram descobertos
por acaso, pela pura e casual experimentação, ou mesmo apenas pela
observação do comportamento dos animais. Estou absolutamente con-
vencido de que há mais mistérios aí do que as interpretações oficiais
nos oferecem. O alcance das versões apresentadas até aqui por antropó-
logos, historiadores e etnobotânicos é ainda insuficiente para explicar
todo o amplo e complexo universo dos conhecimentos ancestrais acerca
das Plantas Sagradas. Espero estar demonstrando isso neste livro.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 163

Como indício da presença de uma Ciência Sagrada, uma tradição


imemorial proveniente de um passado remoto, que deixa suas marcas
nos bastidores de alguns dos ensinamentos religiosos de diversos tem-
pos e lugares, apresentamos nesta parte de nosso estudo, uma citação do
texto “Ensaio sobre a arte da Alquimia”, traduzido por Julio Peradejordi,
de cujo autor só temos as iniciais, E. H. Diz ele: “Todos os Sábios Filó-
sofos, todos os profetas do Oriente e do Ocidente não estabeleceram os
mistérios iniciáticos, não escreveram as Santas Escrituras mais que para
transmitir aos homens os elementos desta arte agrícola”.
Em formulação que parece integrar algumas das perspectivas
aqui apresentadas, falando sobre “as ciências sutis e holísticas dos anti-
gos sábios”, Lao Tsu nos fornece algumas pistas afirmando a existência
de várias categorias de ciências sutis holísticas que são, fundamental-
mente, “veículos para servir os outros” e assistir o seu desenvolvimen-
to espiritual.
Propondo uma explicação para o surgimento dessas ciências sofis-
ticadamente sutis e integrais, continua ele:

“Algumas dessas ciências holísticas foram descobertas por meio do desen-


volvimento espiritual de seres muito evoluídos que viveram na Terra duran-
te tempos remotos. Outras foram desenvolvidas por via do poder da intui-
ção e da capacidade de unir a mente da pessoa à Mente Universal. Geração
após geração, esses métodos foram transmitidos de seres muito evoluídos
a pessoas virtuosas que estão em processo de evolução espiritual, a fim de
ajudá-las a desenvolver seu espírito e intuição. Se uma pessoa não os desen-
volve, é impossível fazer pleno uso dessas técnicas e dessa informação de
modo a evoluir em todo o seu potencial.”

É interessante percebermos que, nessa perspectiva, o surgimento


de tais métodos não esteja associado com um avanço tecnológico obje-
tivo, mas, sobretudo, com um desvelamento e um desenvolvimento do
sujeito, suas potencialidades e virtudes.
Encontramos aqui também o segredo do porquê de tais métodos
não terem tido grande popularidade e divulgação em culturas do passa-
do, sendo escassa sua documentação: “Desde antigos tempos, foi estri-
tamente proibido ensinar parte desse conhecimento místico e seus mé-
todos a pessoas sem virtude.” Atualmente, alguns desses conhecimentos
estão sendo estendidos a muitos que ainda estão eticamente sem rumo,
com consequências imprevisíveis.
164 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

É absolutamente estarrecedor o caráter profético de suas palavras,


como advertência dos sábios do passado para nos guiar nas encruzilha-
das da modernidade:

“Todos os métodos antigos de valor deveriam ser preservados, protegidos e


continuamente desenvolvidos pelas pessoas de grande virtude nas gerações
por vir. Aqueles que, em função de preconceitos, desprezam essa sabedoria,
causarão o retrocesso do desenvolvimento cultural humano e da evolução es-
piritual. Isso marcará o começo das grandes dificuldades da humanidade.”

É impressionante a atualidade deste alerta, pois ele nos revela uma


das mais importantes tarefas de nosso tempo: resgatar a sabedoria e os
conhecimentos dos xamãs, sacerdotes, mestres e sábios do passado.
Após o diagnóstico preciso e uma descrição contundente, ele nos
lega o marco, a bússola que deve guiar nossos caminhos, a consciência.
Nosso campo principal de trabalho é a sua ampliação: “Gentil príncipe,
os que se orientam a si mesmos e aos outros com consciência clara ilu-
minam as trevas do mundo.”
Diante das propriedades descritas aqui, permanece o mistério dessa
Bebida ímpar e de caráter revolucionário para a consciência humana.
Conforme sinalizamos, uma consequência inexorável desse estudo
é o reconhecimento de que existem algumas outras Plantas e/ou suas
combinações, igualmente tidas como sagradas em suas respectivas cul-
turas, que parecem apresentar características similares às da Ayahuas-
ca, merecendo investigação imediata. Encontramos, aí, um dos campos
mais fascinantes e férteis de pesquisas a serem desenvolvidas, com ur-
gência, em futuro que, segundo demonstramos, deve ser o mais próxi-
mo possível. Mais urgente ainda, em função do fato inexorável de que,
as pessoas que conviveram e estudaram com os finados mestres inicia-
dores desses profundos caminhos, também estão em idade avançada, o
que nos convoca a um trabalho de resgate e preservação de memória,
único em toda a história de nosso país.
Trata-se de bons exemplos e de percursos originais no bem, nas
obras construtivas de mestres e curadores que dignificam a cultura e
a sociedade de nosso país, auxiliando as pessoas e as instituições, tão
desmoralizadas e descrentes de utopias (as únicas capazes de guindar
nossos projetos de vida para dimensões mais perfeitas e mais próspe-
ras), a encontrarem direções mais seguras e íntegras, para a inauguração
de uma nova era de paz e cooperação entre os povos.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 165

Sintetizando algumas descrições feitas por antropólogos, Stanislav


Grof percebe como é deveras surpreendente o extenso espectro de pro-
priedades extraordinárias atribuídas a essas plantas e substâncias:

“Entre estas encontram-se o diagnóstico de doenças e a cura emocional ou


psicossomática; a comunicação com o mundo dos espíritos, ancestrais, di-
vindades e demônios; magia negra e feitiçaria; retorno às próprias origens;
abertura de canais de percepção extrassensorial (telepatia, clarividência,
psicometria, projeção astral); transcendência da morte com a perda subse-
quente do medo de morrer; profunda transformação pessoal e rejuvenesci-
mento; comunhão com forças naturais, vida animal e vegetal; fortalecimen-
to da coesão social na comunidade e outros.”

Diante de nossa psicofarmacologia atual, suas proposições e alcan-


ce, esta parece tecnologia de ETs.
Prosseguiremos, então, no domínio das conjecturas, buscando ex-
plicações compatíveis com a complexidade dos fatos em questão, por
mais que sejam rupturais em relação ao paradigma newtoniano-carte-
siano, e ainda que, parafraseando Teilhard de Chardin, só o fantástico
tenha possibilidades de ser o mais próximo do real a que terminaremos
por chegar.
Além da hipótese de revelação canalizada, temos ainda duas outras
igualmente surpreendentes.
A primeira, que mencionamos acima, parte da constatação através
de um sem-número de fontes, de que as versões oficiais sobre o passado
da humanidade necessitam ser revistas. Existem lacunas significativas
na história humana. Muitos dos indícios apontam para evidências de
conhecimentos científicos superiores, ao que parece, deixados por avan-
çadas civilizações de um passado remoto da humanidade, o que nos
obrigaria a rever de alto a baixo nossas formulações e interpretações
sobre as origens e as arcaicas eras da espécie humana.
Para não mencionarmos os já notórios e misteriosos conhecimen-
tos arquitetônicos, astronômicos e fitoterápicos dos povos do passado,
demonstro, em outras investigações que realizei, que igualmente espan-
tosos são os seus conhecimentos de psicologia arquetípica e transpesso-
al, as tecnologias de trabalho com bioenergias sutis, tecnologias psico-
espirituais e outras que, apenas atualmente, podemos avaliar com maior
precisão. Muitas culturas ancestrais falam em “deuses” ou “anjos caídos”,
atuando como civilizadores, num passado remoto da humanidade.
166 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

O apócrifo (oculto-esotérico) Livro de Enoch, citado na Bíblia em


Eclesiástico (44,16; 49,14), Hebreus (11,5) e Lucas (3,37), fala dos “anjos”,
“filhos dos céus” que cobiçaram as filhas dos homens e tiveram filhos
com elas, dando origem à raça dos gigantes. Estes “anjos” ensinam aos
homens várias artes e ciências. Por exemplo, “Amazarak ensinou todos
os sortilégios, todos os encantamentos e as propriedades das raízes”.
Hipóteses de continentes e avançadas culturas desaparecidos, tais
como Atlântida, Lemúria ou Hiperbórea, já não mais nos parecem tão
fantasiosas como a princípio, quando estávamos completamente influen-
ciados pelo limitado paradigma newtoniano-cartesiano, ou então, acriti-
camente crentes em uma versão puramente materialista da história.
Assim nos fala Agostín, a respeito da origem do Wachuma (São
Pedro),

“(...) o cacto conhecido como ‘são pedro’ (Trichocereus pachanaoi), cuja


referência data de oito mil anos antes de Cristo, como o Kactu da clarivi-
dência, oriundo da Lemúria, de onde foi trazido e semeado pelo Grande
Aramu e sua comunidade nas imediações do lago sagrado Titikaka. Aquele
era bebido para sensibilizar as faculdades dos seres iniciados, transcender
a natureza exterior do visível e facilitar seu desenvolvimento espiritual. Nas
culturas ancestrais andinas foi conhecido como Wachuma, ao finalizar esta
etapa foi mudado o nome para são pedro, para sobreviver com nome cristão
por aproximadamente 500 anos”.

Por que essa versão do xamã seria menos verdadeira que as dos
antropólogos e cientistas modernos?
A terceira hipótese é a de revelação extraterrena. Certa vez, uma
senhora muito humilde, mal falando o português, contou-me o seguinte
sonho:

“Eu estava na floresta amazônica quando vi uma coisa de vidro [Eu entendi
que era uma redoma e depois percebi melhor que se tratava de uma estufa]
com (o que para mim era) mato lá dentro. De repente, apareceu um ser
muito alto (uns três metros), parecia um ser mais evoluído, mais avançado
que nós. Aí ele disse para mim: ‘Está vendo aquelas plantas? Ali estão os
remédios para os principais males que assolam a humanidade atualmente’”.

Fiquei arrepiado ao ouvir o sonho. Ele estava formulando e con-


firmando o que minhas pesquisas desvelavam cada vez mais. Aquelas
Plantas, sagradas para muitos povos e culturas, eram muito especiais,
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 167

capazes de auxiliar na transformação do principal mal que assola des-


trutivamente o homem moderno: a falta de consciência de nossas reais
dimensões e do universo múltiplo que nos rodeia, com suas assustado-
ras consequências éticas, sociais e ecológicas. A corrupção, as guerras,
as injustiças e a degradação do ecossistema derivam disso. Em face do
horizonte transpessoal, as questões éticas e ecológicas assumem propor-
ções prioritárias.
Que verdade profunda há neste sonho. Se quisermos ser radicais
no raciocínio, pensando que em um cosmos tão imenso, em que inú-
meros planetas podem ter alcançado as condições de vida inteligente da
Terra e outros, podem ter ido muito adiante, não é absurdo considerar
a possibilidade da presença de seres mais desenvolvidos que nós, inter-
vindo em nossa história conhecida e desconhecida.
Retornando à primeira hipótese, a de revelação canalizada, trazida
por seres inteligentes, habitando uma outra dimensão da realidade que o
Enteógeno nos ajuda a acessar, podemos supor, pelas descrições das ex-
periências de alguns xamãs e mestres que, entre esses seres, talvez nos
deparemos com o próprio Espírito da Planta, ou a deidade nela presente.
A visão de Jamie Sams, especialista em tradições indígenas, acerca
do enigmático Peiote, é válida também para o misterioso Santo Daime.
Seu professor nativo, Joaquin, em San Luis Potossi, lhe falou: “Este é
o Mescalito, a divindade do Peiote”. Continua Joaquin: “Ele é o cacto-
Mestre nessa área e tratamos seu Espaço Sagrado com reverência”. Com-
plementando a explanação ele diz, mostrando o valor e a extensão do
território alcançado pela Planta de Poder: “Mescalito tem servido bem
ao nosso povo, e as outras nações ao norte da fronteira também se be-
neficiaram de seu uso”.
Mas, afinal de contas, para avaliarmos o alcance de tais tecnologias
nos perguntamos ainda: o que é um Enteógeno? Vamos dar a palavra
aos xamãs, sacerdotes, mestres e padrinhos, os que têm mais profundo
conhecimento e longa experiência em seu uso, para que formulem sua
interpretação.
Tomaremos como exemplo o que Joaquin ensina a Jamie, e, refe-
rindo-se ao Peiote, fornece descrição importante de mais uma das pro-
priedades dos enigmáticos Enteógenos:

“(...) Ninguém pode capturar as almas de nosso povo, já que elas não têm
mais medo da morte. Através do Mescalito, eles conseguiram ver além do
168 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

vazio e visitaram o Acampamento do Outro Lado. Aprendemos que sem-


pre continuaremos a viver, de uma forma ou de outra. (...) A Cerimônia do
Peiote é um ritual sagrado que impele o espírito para a abertura no univer-
so onde não existe tempo nem espaço, apenas a energia pura da Criação,
que provém do Grande Mistério. Tudo aquilo que vive dentro de você pode
lhe dar alegria ou assustá-la até o momento em que você resolva enfrentá-
lo. Assim que as pessoas veem a verdade e tocam a eternidade, não há mais
maneira de afastá-las de sua dignidade ou dos seus conhecimentos. Muitas
pessoas acham que as substâncias de poder ingeridas agem como narcóti-
cos que nos transformam em um bando de loucos. Nós deixamos que pen-
sem o que quiserem. A verdade é que colhemos nossas plantas de maneira
sagrada, honrando a força vital de cada uma e fazendo nossas preces de
gratidão todo o tempo.”

Na realidade, este equívoco fatal tem acirrado não apenas um des-


dém e um preconceito que vêm retardando seu estudo científico, como
também foi o pano de fundo para a perseguição religiosa e destruição de
tais Plantas, das tradições e tecnologias a elas relacionadas, bem como
aos próprios grupos e povos que, ao longo da história, alcançaram a
consciência de seu valor e do caráter revolucionário desse conhecimen-
to para a transformação e emancipação da psique humana.
A caça às bruxas durante a Idade Média teve em seus bastidores
perversas e maquiavélicas formulações teológicas através das quais, por
vezes, mulheres que detinham um conhecimento importante sobre o
uso mágico e espiritual das plantas foram desprezadas, excluídas, perse-
guidas e silenciadas. O mesmo tem se tentado fazer com os atuais índios
e seu conhecimento médico tradicional. Simplesmente, os argumentos
e a desqualificação aparentam ter origem diferente, são mais racionais,
supostamente mais científicos, mais paternais, e, aparentemente, menos
cruéis. No fundo existe ainda uma crença cega, uma teologia rígida, in-
consciente, por detrás do desprezo pelas medicinas tradicionais e os co-
nhecimentos indígenas, propugnando que as drogas manipuladas pelo
ocidental moderno são superiores às plantas. Talvez esteja chegando a
era em que tudo isso necessite ser revisto.
Jamie Sams expõe um pouco mais algumas características mis-
teriosas dos Enteógenos. Eles são capazes também de atuar como
poderosos facilitadores no acesso às profundezas abissais da alma
humana e seus recursos ilimitados, onde encontramos uma quarta
hipótese para explicar o fantástico manancial de conhecimento que
pode emergir de dentro de nós mesmos, das dimensões transpessoais
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 169

da psique, o Eu divino, o Eu Sou, Atman, o deus em nós, uno com o


Grande Mistério transcendental:

“A abertura no universo nos coloca em contato com a criatividade em es-


tado puro, e nos permite perceber nossas aptidões e talentos, confrontar
nossos temores, e caminhar em direção a tudo aquilo em que estamos nos
transformando. O potencial puro, aquele que constitui o nosso Ser verda-
deiro, nos conduz em busca daquele conhecimento que trará liberdade a
todas as pessoas. O Pássaro do Peiote, ou o Pássaro da Água, é o Totem da
Cerimônia do Peiote. Este Pássaro de Cura Sagrada mira-se no lago e ob-
serva o seu próprio reflexo dentro dele. O dom de autoexame permite que
o indivíduo enxergue os aspectos do Ser que jazem abaixo da superfície da
realidade física e descubra novos universos de consciência. As inseguranças
e os medos, que não costumam vir à tona devido à repressão, começam en-
tão a afluir, para serem trabalhados através da oração e do canto. O aspecto
principal do ritual do Peiote é a religação ao Grande Mistério dentro da
Cerimônia Sagrada.”

No nosso referencial espiritual, podemos dizer que tais Plantas,


juntamente com as energias da natureza e com seus espíritos guardiões,
se constituem em insubstituível manancial das experiências apropriadas
para se alcançar a consciência cósmica e a iluminação.
Agora estamos devidamente preparados para identificar as inúme-
ras alusões, mais ou menos veladas, a essas Plantas Sagradas na literatu-
ra mundial ao longo da história.
E dentro da gnose e transformação propiciadas por esta Bebida
misteriosa, capaz de regenerar, confortar, disciplinar, trazer ética, justi-
ça, misericórdia e percepção divinas aos filhos dos homens, evocamos
uma descrição de Filon de Alexandria acerca das danças sagradas dos
Essênios, os terapeutas ou “Servos de Deus”.
Tais comunidades, que são tidas por alguns estudiosos (por ex.,
Edmund Székely) como guardiãs do esoterismo judaico, tinham ceri-
mônias que se estendiam por toda a noite, envolvendo cânticos, hinos
sagrados e danças reverentes, de devoção profunda, precedidas por uma
refeição sacramental, comendo o santíssimo alimento e bebendo o néc-
tar de Deus, realizando depois uma “santa vigília”, exatamente como
acontece nos cultos atuais do Santo Daime, do Peyotl, do Teonanacatl
(veladas) e outros Enteógenos.
Assim Fílon nos informa: “Desse modo, embriagados com esta no-
bre embriaguez, continuam até o amanhecer sem que a cabeça lhes pese
170 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

nem os olhos se fechem senão bem despertos, mais ainda que quando se
congregaram para o banquete.”
Outra versão que encontramos diz:

“Bebendo assim até o amanhecer, estando levemente alterados, sem sono-


lência ou peso na cabeça, mas com os olhos e o corpo mais frescos ainda
do que no início, (...), erguem suas mãos para o céu louvando a luz do Sol e
rogando pela verdade e pela aguçada visão espiritual.”

Do mesmo modo, nos cultos enteogênicos da atualidade (alguns se


prolongam por toda a noite), deparamo-nos com o dado de os grupos
encerrarem seus trabalhos, com muitas evidências de estarem mais sau-
dáveis, revigorados energética e psicologicamente, com um novo frescor,
num melhor estado de consciência e funcionamento psíquico e físico, de-
monstrando melhores condições quando comparadas à situação em que
chegaram à cerimônia. Isso é completamente diferente de uma noitada de
bebedeira ou de uso de drogas: O dia seguinte nos revela o inconfundível
e absolutamente diferenciado resultado, enriquecedor ou depreciativo.
Diz Pierre Duval:

“Portanto, não podemos dizer nada sobre o que realmente sabiam os an-
tigos; julgamos adivinhar que terão guardado lembrança de uma ciência
infinitamente mais velha e mais avançada do que a deles; existem algumas
alusões dispersas a esse respeito, mas nada de preciso. Estamos reduzidos a
alguns indícios, cuja procura ainda agora começou.”

Atualmente temos inúmeros argumentos a favor do resgate das


tecnologias aborígenes e de uma surpreendente revalorização dos co-
nhecimentos dos nossos antepassados e de seus descendentes mais di-
retos: os povos indígenas da atualidade.
Conforme exorta seu povo o Xamã Agostín Guzmán: “Se nossos
ancestrais andinos foram sábios, longevos e saudáveis, entre outras coi-
sas porque comungavam com Wachuma, então regressemos novamente
a nossas origens, a nossa essência, a nossa raça.”
Hoje temos a oportunidade de construir pontes entre a ancestrali-
dade e o futurismo, entre a ciência e a religião, entre as diversas tradições
sagradas, antigas e modernas, num saber integrado, unificado, espiritual.
Sabedoria e não apenas o conhecimento, sabedoria capaz de promover a
autêntica revolução da consciência e a transformação da sociedade.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 171

e) Irradiações Sagradas da Luz Divina –


Repercussões do Saber Transpessoal

“Antes de ser preso por seus inimigos, Jesus reuniu os discípulos e lhes
ofereceu uma refeição sagrada, durante a qual abençoou o pão e a taça
de vinho e lhes lembrou que deveriam fazer aquilo em memória Dele e
para invocar sua presença, quando Ele não estivesse mais presente com
eles na carne.”
Stephan A. Hoeller

“Eu sou a planta maravilhosa que dá o poder de palmilhar as águas de


todos os mares criados por Alá o Muito Alto, como se terra fosse”
As mil e uma noites (Além dos sete mares)

“Tornava-se então comum a noção de que não havia possibilidade de


ocorrer uma transformação social que não fosse precedida de uma
revolução interna dos indivíduos. Surgia assim um grande interesse
por meios ou técnicas que ajudassem a realização desse tipo de
mudança interior, que liberasse os indivíduos de concepções de vida
demasiadamente materialistas ou racionalistas. Buscavam-se valores
alternativos em culturas concebidas como menos ‘burguesas’, surgindo
um interesse por filosofias e práticas religiosas orientais, afrobrasileiras
e indígenas.”
Edward MacRae

Vimos como algumas das propriedades misteriosas da Ayahuasca/


Daime/Vegetal/Yagé nos conduzem ao limiar e além de parâmetros de re-
alidade estabelecidos pela ciência e paradigmas convencionais. Partindo
do que examinamos anteriormente, percebemos que a redescoberta das
propriedades misteriosas dos Enteógenos define uma altíssima tecnologia
que, conhecida por nossos antepassados, configura tesouros inestimáveis
que estavam guardados para as gerações futuras, para nós, que vivemos
esses crísicos tempos. Parecem talhados para nos auxiliarem num novo
amanhecer, no urgente despertar, na inadiável promoção da Paz.
Fazemos nossas as palavras do etnopsicólogo Holger Kalweit:

“Começamos a explorar os rincões mais obscuros da mente humana e mui-


tas ideias que pertencem ao primitivo e primigênio começam a ser consi-
deradas progressistas e mui significativas para o futuro da humanidade. Os
santos, xamãs e yoguis estão desmascarando as deficiências da mentalidade
ocidental e muitas noções que até agora eram consideradas primitivas e in-
gênuas se converteram em desafios que devem ser enfrentados em nome de
um maior avanço cultural.”
172 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Outra frutífera linha de pesquisa nesse assunto é a de propor novas


explicações para formulações míticas, fantásticas, e para o entendimento
das fronteiras entre o mito e a história, entre experiência interior, psico-
espiritual e fato ocorrido exteriormente, em passagens de importantes
textos literários do passado, que permanecem vivos e atuais, como a Bí-
blia e muitos outros textos sagrados de diferentes tradições espirituais.
Precisamos nos lembrar que a Bíblia, como os Upanishads, a Bha-
gavad Gita, o “Livro dos Mortos Egípcio”, ou Livro Tibetano dos Mortos
e outras escrituras sagradas de diversos tempos e lugares, são textos de
Teologia, para serem utilizados com fins teológicos, isto é, como guias e
mapas para os estados de expansão de consciência, as dimensões trans-
pessoais da psique.
Nessas Escrituras espirituais poderemos encontrar alusões veladas
às Plantas Sagradas, saber esotérico para os círculos mais fechados de
devotos de várias tradições, onde antes de nada suspeitávamos.
Por exemplo, deparamo-nos com a interpretação do autor esotéri-
co Ramón Hervás, que propõe que o Maná bíblico teria sido um psico-
ativo. Ele associa o “alimento” que Jeová fez descer no deserto, o “rocio”,
com “(...) fungos alucinógenos semelhantes ao parasita do centeio (...)”,
que lhes produziria visões psicodélicas. Ele sugere que, “(...) para preve-
nir este efeito, Moisés lhes proíbe que comam mais do que a ração diária
que lhes estipulou.”
O sábio cristão Orígenes nos traz uma rica leitura do Antigo Testa-
mento. Ao formular alguns princípios de exegese comentando as Epís-
tolas de São Paulo, ele cita a Epístola aos Coríntios:

“Sabemos que nossos antepassados estiveram todos sob a nuvem, que todos
foram batizados em Moisés, na nuvem e no mar, que todos comeram o mes-
mo alimento espiritual e todos tomaram a mesma bebida espiritual; bebiam
do rochedo espiritual que os acompanhava: ora, esse rochedo era Cristo.”

Comenta Orígenes:

“Vós vedes a diferença entre a leitura puramente histórica e o ensinamento


de Paulo. À travessia do mar, para os judeus, Paulo chama batismo; no que
eles acreditavam ser uma nuvem, Paulo vê o Espírito Santo. Convém apro-
ximar dessa passagem a palavra do Senhor no Evangelho: ‘Aquele que não
renasceu da água e do Espírito Santo não pode entrar no reino dos céus’. Ao
maná, no qual os judeus veem apenas alimento para o ventre e satisfação do
apetite, Paulo chama alimento espiritual.”
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 173

Uma importante dimensão dos Enteógenos é remeter-nos à neces-


sidade absoluta que temos de alimento espiritual, na aridez desértica de
nossa vida material. Nesse aspecto, a consciência trazida pelo cristianis-
mo é fundamental/essencial.
Jung, em tempos mais recentes, chega a conclusões que são, em
certos pontos, similares: Nossa alma alimenta-se de símbolos, de ritos e
de experiências diretas que nos conectam com a dimensão arquetípica
do inconsciente, e com o âmago, com o núcleo da psique: o Si-Mesmo.
Aos que a conhecem mais intimamente, a Planta Sagrada incre-
menta o “apetite espiritual”. Será ela o Pão Supersubstancial que sacia,
fomentando-as, nossas fome e sede de Espírito, de religação, alimento
sagrado do Eu Divino proporcionado pelo Enteógeno? Guiar-nos-á ela
no Caminho para o rochedo que é Cristo, nossa Identidade Divina?
Nascer biologicamente não basta! É preciso “nascer novamente”, da
Água (do inconsciente, do Yin), a transformação de nossos corpos mais
densos, a Hylé (Matéria Primordial dos Alquimistas e Filósofos), e do
Espírito (do supraconsciente, do Yang), a revolução de consciência, um
ego penetrado pelo Espírito Santo, o Fogo do Eu Divino, a Consciência
Cósmica que “queima” tudo o que não é eterno, imortal no homem.
É, no mínimo, altamente interessante o alcance heurístico desta
hipótese de profundos conhecimentos sobre as Plantas Sagradas entre
os povos do passado, para explicar várias passagens de textos sagrados,
alguns “apócrifos”, isto é, secretos, onde encontramos o que parecem
alusões a Enteógenos.
No antigo escrito judaico, fora da Bíblia, “José e Asenath”, depara-
mo-nos com a seguinte passagem, dita por José:

“Não convém a um homem temente a Deus, que com sua boca louva o Deus
vivo e come o sagrado pão da vida, e bebe a bebida sagrada da imortalida-
de, beijar uma mulher estranha, a qual com a boca louva deuses mortos e
mudos, que da sua mesa come alimentos sufocados, que das suas bebidas
rituais bebe o cálice da impostura, e que se unge com a unção da desgraça”.

E, mais adiante, menciona um processo de renascimento, juntamen-


te com propriedades terapêuticas encontradas em alguns Enteógenos:

“(...) Então o Anjo pronunciou as seguintes palavras: ‘Agora comeste o ali-


mento da vida e bebeste a bebida da imortalidade, e foste também ungi-
da com o óleo da incorruptibilidade. Tua carne, doravante, graças ao re-
174 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

nascimento por meio do Altíssimo, fará brotar flores de vida, e teus ossos
produzirão cedros comparáveis aos do paraíso de delícias de Deus, e bem
assim serás robustecida por forças novas. Além disso, tua juventude não co-
nhecerá velhice e tua beleza nunca murchará. Serás para todos uma cidade,
grandemente fortificada’”.

Na epopeia de Gilgamesh encontramos:

“Ursanapi, essa é a planta...


Por meio da qual o Homem pode atingir o pleno vigor.
Eu a levarei para Erech, cidade das penas de carneiro...
Seu nome é: ‘Na velhice, o Homem volta a ser jovem’.
Comerei dela e retornarei à condição da juventude”.

Parece sumamente interessante o poder de renovação, de promo-


ver “ressurreição da carne”, a alquimização da dimensão material do
ser, da “bebida da imortalidade”, proporcionando um novo nascimento:
“Nascer de novo para alcançar o Reino dos Céus”.
Tal propriedade é atribuída ao Soma védico. Após debruçar-se so-
bre antigos textos de medicina e religião, informa-nos sobre ele o médi-
co acupunturista e herbologista ayurvédico, David Crow: “A sua ação é
calmante, revigorante e rejuvenescedora; dizia-se que podia reverter o
processo de envelhecimento e transportar para estados visionários de
consciência.” Ele considera mais adiante que muitos estudiosos eruditos
acreditam “(...) que a iconografia das mitologias hindu e budista tem a
sua origem no legado dos trabalhos alquímicos associados ao Soma”.
David Crow também nos traz um outro importante dado:

“Alguns escritores postularam que o culto do Soma determinou o ímpeto para


uma era de pesquisa botânica dos eremitas taoístas e dos curandeiros da China,
cujos conhecimentos passaram a ser o fundamento da prática da tradicional
medicina chinesa. É uma hipótese fascinante cogitar que o uso dado hoje em
dia às plantas medicinais asiáticas, que atraem milhões de pessoas, originou-se
na busca de um elixir inebriante de imortalidade, e que os fundamentos do hin-
duísmo possam ser encontrados nas extrações alquímicas da planta dibir”.37

Encontramos outra ponte entre diferentes tradições religiosas, na


formulação de René Guénon, grande representante da Ciência Sagrada,

37 “Dibir bhuti”, ervas dos deuses com características mágicas.


Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 175

em seu livro acerca do Esoterismo cristão. Profundo conhecedor da lin-


guagem simbólica que oculta avançados ensinamentos, ele realiza uma
costura magistral indicando “(...) alguns símbolos que, em diversas tra-
dições, substituem às vezes ao da copa, e que lhe são idênticos no fun-
do”; continua ele dizendo que

“isto não é sair de nosso tema (lenda do Graal), pois o próprio Graal, como
podemos nos dar conta facilmente por tudo o que acabamos de dizer, não
tem em sua origem um significado diferente do que tem geralmente o vaso
sagrado em todas as partes onde se encontra, e que tem, particularmente
no Oriente, a copa sacrificial que contém o Soma védico (ou o Haoma maz-
deu), esta extraordinária ‘prefiguração’ eucarística (...)”.

Continua ele:

“O que representa propriamente o Soma é a ‘beberagem da imortalidade’ (o


Amrita dos Hindus, a Ambrosia dos Gregos, duas palavras etimologicamen-
te parecidas) que confere ou restitui aos que a recebem com as disposições
requeridas, esse ‘sentido de imortalidade’ (...)”.

Como expõe o depoimento dos autores de um inquietante livro, O


Santo Graal e a linhagem sagrada, “O cálice, (...) parecia ser diferentes
coisas ao mesmo tempo, ou alguma coisa que podia ser interpretada em
diferentes níveis”. Eles dizem que “Em um nível mundano poderia ser
um objeto, como um copo, uma terrina ou uma taça.” Mas a conclusão
final parece ser absolutamente verossímil: “E obviamente o cálice po-
deria também ser uma experiência de algum tipo, provavelmente uma
iluminação gnóstica, como aquela preconizada pelos cátaros e outras
seitas dualistas da época”.
Um exemplar do que parece ter sido o cálice sagrado mencionado
por eles, tem a seguinte inscrição gravada na borda: “Quem bem beber
/ Deus verá. / Quem beber de um só gole / Verá Deus e Madalena.”
Esta enigmática inscrição parece, além de mencionar a importância da
atitude determinada de quem comunga a Bebida Sagrada, encerrar a
referência a um mistério tântrico. A iluminação unificadora é propor-
cionada pelo encontro entre Shiva e Sakti, Yin e Yang.
Sabemos que a comunhão com pão e vinho consagrados é, segura-
mente, pré-cristã; ela remonta, para alguns estudiosos, no mínimo, aos
Essênios. No antigo Egito, Osíris, o primeiro deus a fazer vinho, e que
176 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

ensinou aos homens o seu cultivo, foi uma autoridade em agricultura. Já


nos “Encantamentos de Saída para a Luz do Dia”, o “Livro dos Mortos”
egípcio, no Papiro Nu – no capítulo “Diante dos Deuses do Mundo In-
ferior”, encontramos alusões a vinho e pão sagrados de significação ar-
quetípica, simbólica, transcendental: “O Pão de tua comunhão, o vinho
de tua comunhão e todas as oferendas sepulcrais que te são destinadas,
são emanações do Olho de Ra!”
Mas as surpresas não param por aí. Nesta altura de nosso estudo, exa-
minaremos uma breve exposição de um texto que, em nossa percepção,
descreve de maneira lapidar as características centrais do Santo Daime e
outros Enteógenos, e que, se for autêntico, traz fortes indícios de uma li-
gação estreita entre o uso de Enteógenos e o núcleo, o alvorecer da religião
cristã, do esoterismo cristão, estabelecendo uma verdadeira revolução em
nossa concepção acerca do que é o cristianismo, e de algumas das possí-
veis ocultações e distorções que ele tem sofrido ao longo dos tempos.
Vamos encontrar no texto traduzido por Edmomnd Bordeaux
Szekely de um manuscrito em aramaico existente nos Arquivos Secretos
do Vaticano, o Livro Quatro do Evangelho Essênio da Paz, uma apresenta-
ção feita por Jesus, provavelmente de outra espécie de Planta Sacramental,
que define de modo surpreendentemente preciso o que é um Enteógeno e
o significado da Bebida Sagrada que denominamos Daime/Oaska.
Em uma leitura imediata e superficial, Ele aparentemente está fa-
lando do trigo. Mas, quando descreve as propriedades da planta sagra-
da, surge a suspeita de que está descrevendo um Enteógeno, e não sim-
plesmente o trigo comum:38

38 Temos formulações e pesquisas acerca do trigo que, não apenas associam-no com
um elemento enteogênico (MCKENNA,Terence. O alimento dos deuses. p. 177, 178,
179, 180, 181; KIKEON. Claviceps Purpúrea; FLUDD, Robert. Plantas de los dioses.
p. 101, 102, 104, 144, 145) como cercam-no de uma aura absolutamente mágica in-
dicando que aí temos, certamente, um mistério que aponta para além das proprie-
dades de um alimento comum. Fludd então fala da significância mística do trigo na
Escritura Sagrada: “De dois tipos de pão, dos quais um é terrestre e vulgar; o outro,
celestial e imediatamente procedente de Deus (maná do céu) (...) Para concluir... eu
digo que esse pão celeste, esse maná celestial, essa rocha espiritual, essa sapiência
divina, esse tudo em tudo da vida, Cristo Jesus, é o segundo tipo de pão que difere
do pão comum como o céu da terra, ou a luz da escuridão...” Simplesmente pelo
que foi mencionado aqui, um pequeno extrato do texto, pode dar a impressão de
tratar-se de algo simbólico. Porém, a leitura do texto na íntegra não deixa margem
a dúvidas: existe algo material aqui. Não se trata meramente de símbolos. Além da
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 177

“Um aroma de flores encheu o ar quando falou Jesus: ‘Aqui está o segredo,
ó Filhos da Luz; aqui na humilde erva. Aqui está o lugar de reunião da Mãe
Terrenal e do Pai Celestial; aqui está a Torrente da Vida que procriou toda
a Criação. Certamente vos digo, só ao Filho do Homem lhe é dado ouvir e
tocar a Torrente da Vida que flui entre os reinos terrenais e celestiais. Colo-
cai vossas mãos ao redor da tenra erva do Anjo da Terra, e vereis e ouvireis
e tocareis o poder dos anjos. (...) E cada um sentiu a Torrente da Vida entrar
em seu corpo com a força de uma torrente impetuosa após uma tormenta de
primavera. E o poder dos anjos fluiu por suas mãos, ascendeu por seus bra-
ços e os comoveu poderosamente, como o vento do norte sacode os ramos
das árvores. E todos se maravilharam do poder da humilde erva, que podia
conter a todos os anjos e os reinos da Mãe Terrenal e do Pai Celestial’. (...) E
Jesus disse: ‘(...) Pois agora haveis entrado na Torrente da Vida, e suas cor-
rentes os levarão com o tempo à vida perdurável de nosso Pai Celestial. (...)
Comei, então, Filhos da Luz, desta, a mais perfeita erva da mesa de nossa
Mãe Terrenal, para que vossos dias sejam muitos na Terra, pois tal encontra
favor aos olhos de Deus. (...) E este amor nunca se esgota, pois sua fonte
está na Torrente da Vida que flui para o Mar Eterno, e não importa quanto
o Filho do Homem se extravie de sua Mãe Terrenal e de seu Pai Celestial, o
contato das folhas da erva trará sempre uma mensagem do Anjo do Amor;
e seus pés se banharão de novo na Sagrada Torrente da Vida. (...) Fechai os
olhos ao tocar a erva, Filhos da Luz, mas não durmais, pois tocar a Torrente
da Vida é tocar o ritmo eterno dos reinos sempiternos, e, assim, banhar-se
na Torrente da Vida e sentir mais e mais em vós o poder do Anjo do Traba-
lho, que cria na Terra o reino dos céus’.”

Sem pretender reduzir este sublime e avançado texto metafísico,


de conteúdo científico e espiritual à nossa modesta explicação, podemos
apenas tentar traduzir, numa linguagem psicológica moderna, a Sagrada
Torrente da Vida como o processo de individuação que leva o ego, o fi-
lho, até o Pai Celestial, o Si-Mesmo. Aí damo-nos conta de que o Daime
configura um processo e um caminho espiritual impossível de ser ava-
liado a partir de um ou de alguns trabalhos, experiências com a Santa
Bebida. Os iniciados podem necessitar de décadas de experiências repe-
tidas, às vezes semanalmente, visando aprofundamento, para conhecer

referência clara a um unguento, bálsamo de trigo que ele chama de “quintessencial”,


com o qual cura literalmente a dor e a debilidade que sentia nas costas da mão, mui-
tos dos procedimentos parecem referir-se nitidamente a operações materiais, físi-
cas ou químicas, para alcançar um novo resultado, tanto físico quanto metafísico,
exatamente como acontece quando comungamos o Enteógeno. (FLUDD, Robert.
Coleção Mestres do Esoterismo Ocidental. p. 105, 106.)
178 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

o Enteógeno e amadurecer em seu caminho. Por isso o Medicine-Man,


o Road Man, o condutor de cerimônia da Igreja Nativa Americana, que
usa sacramentalmente o Peyotl, precisa de bem mais de 10 anos para se
candidatar a assumir esta responsabilidade. Todo esse respeito e cuida-
do existem porque tais trabalhos, dentro de certas condições, e, com o
ritual apropriado, têm o poder de colocar a pessoa no fluxo natural do
seu processo de individuação e/ou evolução espiritual.
Stephan Hoeller nos informa que “ritos secretos de poder, mi-
nistrados para facilitar a transformação da alma humana têm estado
presentes nas religiões de todos os tempos e culturas. O Cristianismo
não foi uma exceção.” Descoberto em 1958 pelo Prof. Morton Smith, O
Evangelho secreto de Marcos, que é citado pelo Padre da Igreja Clemente
de Alexandria, fornece subsídios para a ideia de que o próprio Jesus
atuou como um hierofante, conferindo iniciações secretas, e que pelo
menos algumas comunidades dentro da Igreja Cristã mantinham uma
ordem iniciática com práticas e instruções graduadas de maneira estri-
ta. Clemente informa

“(...) que um conjunto de evangelhos públicos era oferecido aos cristãos de um


estrato inferior, enquanto outro conjunto de evangelhos secretos só era ofere-
cido aos membros mais adiantados da comunidade, e que os segredos hiero-
fânticos de Jesus só eram transmitidos verbalmente, de maneira secreta.”

Nas Escrituras canônicas, encontramos ensinamentos que apon-


tam para essa distinção entre “dar leite para as crianças e alimento
sólido para os adultos”, “falar por parábolas” ou “falar claramente”, in-
dicando a existência de diversos níveis de instruções espirituais, des-
tinados a almas em diferentes estados de consciência e de amadureci-
mento espiritual.
Desse modo, não podemos imaginar maneira melhor de preser-
var ocultando, isto é, de revelar, pôr um outro véu, sobre o rito secreto
envolvendo algum tipo de Enteógeno, do que deixar, como cerimônia e
mistério central do culto, um Sagrado Banquete onde se come e se bebe
o Corpo e o Sangue de Deus, exatamente como o fizeram e fazem os
seguidores dos cultos enteogênicos de diferentes tempos e lugares.
Como a história é escrita pelos vencedores, é possível que a pers-
pectiva dos gnósticos tenha ficado oculta até que os tempos estivessem
maduros para assistir seu ressurgimento.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 179

John M. Allegro, apesar de muito controvertido (é também des-


tacado pesquisador dos manuscritos do Mar Morto) realiza um estudo
sobre o festival chamado Ágape ou Festa do Amor, referido no Novo
Testamento (Epístola de São Judas, 5; e possivelmente 2a Epístola de São
Pedro, II, 3), concluindo que “(...) o seu objetivo era estabelecer uma co-
munhão entre aquele que rezava e o seu Deus, como o “Banquete Mes-
siânico essênio”.
Desvelando algumas conexões entre dimensões “tântricas” e o uso
sacramental das Plantas mágicas, que encontramos revivificadas na Ida-
de Média, ele comenta:

“Por muito desagradável que o observador não entendido considere a prá-


tica gnóstica do coitus interruptus e a unção do corpo com esperma, ela
já tinha uma grande tradição na religião canaanite. O sêmen do deus da
fertilidade podia ser visto caindo a jorros do céu, durante uma trovoada
orgásmica; aparecia em forma concentrada em algumas plantas, como a
mandrágora, ou Planta Santa, identificada em muitos cultos com o fungo
sagrado Amanita Muscaria, ou com borrachas ou resinas aromáticas que
faziam parte das unções tradicionais de sacerdotes e reis. Esses indivíduos
tornavam-se assim ‘santos’, isto é, escolhidos para o serviço divino, depois
de untados ou ‘ungidos’ com a sua substância divina. Eram chamados, por-
tanto, os ‘Ungidos’, isto é, ‘Messias’ ou ‘Cristos’; mais concretamente, diz o
Antigo Testamento: ‘Aqueles ungidos com Jeová/Yahweh’ (I, Samuel, xxvi,
11; Salmos 2, v. 2).”

Trazendo contribuições inestimáveis ao desvendamento dos segre-


dos dos primórdios da cristandade, ele complementa:

“Provavelmente está aqui a origem do nome dado normalmente aos últimos


essênios, ‘Cristãos’, isto é, aqueles que foram ‘untados’ ou ‘ungidos’. Depois
de aplicada esta unção divina, que tanto podia ter sido obtida do corpo,
como no caso de certas ervas e plantas especiais, acreditavam que vestiam
a panóplia de Deus.”

E, tocando novamente o mistério do conhecimento direto, acres-


centa ele:

“Como esta essência divina, a luz do Pleroma, era também a fonte do Co-
nhecimento de Deus, a gnose; qualquer pessoa que recebesse esta unção
ficava com uma visão especial, como diz o Novo Testamento: ‘(...) vós re-
cebestes a unção do Santo e sabeis todas as coisas (...) E permaneça em vós
a unção que recebestes dele. E vós não tendes necessidade de que ninguém
180 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

vos ensine; mas conforme a sua unção nos ensina todas as coisas, e ela é a
verdade, e não a mentira. Portanto, como ele vos ensinou, permanecei Nele’
(1ª Epístola de S. João, II, 20, 27)”.

Uma característica importante de tais Plantas é a de um aprendi-


zado que prescinde dos mestres exteriores. Essa “gnose”, uma visão pro-
porcionada pelo contato com o Eu divino, o “Cristo em nós”, em alguns
tempos e lugares, era acessível a todos os buscadores que conhecessem
tais mistérios, e não apenas uma regalia dada aos seguidores estritos
das regras convencionais de instituições mundanas que, embora com
propósitos espirituais, sofrem forte apelo, tanto da historicidade deter-
minante quanto da irrealização do Caminho por parte de seus líderes e
adeptos. O conhecimento vivencial ou gnose era fator determinante. O
nível evolutivo e os estados de consciência dos que percorrem um cami-
nho espiritual inserido no mundo são decisivos na restauração, realiza-
ção e compreensão, que são alcançadas, ou não, no caminho primordial,
arquetípico, atemporal, da “Volta à Casa do Pai”.
Outro dado importante para a compreensão dos modernos cultos
com Enteógenos parece vir igualmente de uma fonte gnóstica, o apócri-
fo “Atos de João”. Tudo se passa como se se tratasse de uma cerimônia
enteogênica:

“Antes de preso por seus inimigos, Jesus reuniu os discípulos e lhes ofereceu
uma refeição sagrada, durante a qual abençoou o pão e a taça de vinho e lhes
lembrou que deveriam fazer aquilo em memória Dele e para invocar Sua
presença, quando Ele não estivesse mais presente com eles na carne. Então,
Ele disse aos seus discípulos: ‘Antes que eu seja entregue, cantemos um hino
ao Pai, e então sairemos para o que nos espera’.”

Em seguida, Ele ficou no meio da sala e pediu aos seus discípulos


que fizessem um círculo à sua volta, dando-se as mãos e, depois de cada
verso, eles deveriam dizer a palavra “Amém”.
E assim começou a cantar um Hino Sagrado, uma canção espiritu-
al, enquanto os discípulos dançavam em círculo em volta d’Ele, respon-
dendo sempre Amém. A letra deste hino é surpreendente e paradoxal,
descortinando um Jesus de natureza inteiramente cósmica, o próprio
Logos, formulando a Si-Mesmo por meio de paradoxos.
Mostrando como Buda o caminho da vitória sobre o sofrimento,
Ele toca flauta como Krsna e dança como Shiva. Dançando a Sua Paixão,
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 181

Ele ensina, talvez dentro do estado de expansão de consciência da expe-


riência enteogênica, como o fizeram grandes mestres brasileiros (Mestre
Irineu, Frei Daniel e Mestre Gabriel, por ordem cronológica histórica),
como fazem hoje muitos xamãs, mestres e padrinhos. Esse ensinamento
é muito especial, e tem características bem diferentes da situação peda-
gógica usual. Quando os destinatários das mensagens estão em estados
intensificados de consciência, o trabalho é comparável ao de um instru-
tor de meditação, como alguém que trabalha embaixo da água, em outro
nível de mente, interagindo com outros que estão em situação similar.
É uma diversa forma de maestria (é um misto de educador, terapeuta e
orientador espiritual, que requer formação ímpar).
Dentre os sublimes profundos ensinamentos em música e versos
cantados por Jesus, destacamos:

“Pelo que damos graças eu digo:


Eu seria salvo e Eu salvaria. Amém!
Eu estaria liberto e Eu libertaria. Amém!
Eu seria ferido e Eu feriria. Amém!
Eu nasceria e Eu quero dar à luz. Amém!
Eu me alimentaria e seria alimento. Amém!
Eu ouviria e Eu seria ouvido. Amém!
Eu compreenderia e seria compreendido. Amém!
Eu seria lavado e Eu lavaria. Amém! (...)
Aqueles que não dançam não sabem o que vai ocorrer. Amém!”

E, mais adiante: “(...) Compreendei pela dança o que Faço./ Pois


vossa é a paixão do homem/ Que estou prestes a sofrer. (...)”
Não apenas instruindo os apóstolos acerca do sofrimento miste-
rioso que marcaria Sua missão e mensagem, mas ensinando o caminho
da libertação em relação a ele, Jesus canta: “Vendo o que sofro, vós Me
vistes sofrendo,/ E vendo, vós não ficastes parados./ Mas se moveram
bastante. Vós vos movestes para serdes sábios.”
Jesus parece ensinar o movimento, a desacomodação que marca os
esforços para se sair da crise de emergência espiritual, e que representa
o sagrado passo evolutivo que leva a alma a um novo patamar de vida
e realização.
E mais adiante Jesus diz: “Se soubésseis como sofrer,/ Teríeis poder
para não sofrer./ Saibamos então, como sofrer, então vós tereis poder
para não sofrer.”
182 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Como Buda, aqui Jesus ensina acerca da redenção, da transcen-


dência do sofrimento. O movimento é no sentido de maior consciên-
cia. A sabedoria alcançada através da dor, do sofrimento arquetípico,
fica gravada profundamente em nossos corações. A sabedoria diante
do sofrimento gera a vitória sobre ele. Para nós, iniciados neste tipo
de mistério, não seria surpresa se a refeição sagrada oferecida por Je-
sus, e apresentada como cerimônia capaz de evocá-Lo, consistisse de
um Enteógeno, uma Planta Sagrada expansora de consciência, capaz de
promover a “religação” com o “Mestre Interior”, o Eu Divino, o “Espírito
Santo”, que viria completar a mensagem e o trabalho de Jesus.
Vale a pena lembrarmos que, conforme nos mostra o estudioso da
Grécia, Carl P. Ruck, existem profusos indícios, a partir da análise da des-
crição de seus efeitos pelos antigos, que não era o vinho alcoólico que
temos na atualidade como parâmetro para o entendimento desses cultos
do passado que era reverenciado pelos místicos e extáticos de então. Mos-
trando a contradição entre nossas suposições de hoje, talvez mera ilusão
retrospectiva, e os variados sintomas físicos e psíquicos descritos, que vão
desde leve sonolência até a insônia e “alucinações”, ele torna bem clara a
diferença: certamente não se trata do vinho que conhecemos hoje.
Diz ele:

“A resposta a esta manifesta contradição é simplesmente que na Antiguida-


de o vinho, como o de quase todos os povos primitivos, não continha álcool
como substância embriagante única, senão que geralmente era uma infusão
variada de toxinas vegetais em um líquido vinhoso. Unguentos, especiarias e
ervas com propriedades enteogênicas bem conhecidas podiam ser acrescen-
tadas durante a cerimônia de sua diluição com água. Uma descrição de tal
cerimônia aparece na Odisséia de Homero, quando Helena prepara um vinho
especial agregando o eufórico nepenthes ao vinho que distribui ao seu esposo
e seu convidado. O fato é que os gregos haviam estabelecido uma ampla gama
de ingredientes para suas bebidas, cada um com suas próprias virtudes.”

Ora, por que o vinho do Cristianismo original haveria de ser di-


ferente?
Talvez possamos ir ainda mais longe. Carl observa que “no hino
homérico a Deméter, quando a deusa chega a Eleusis, exausta e des-
consolada pela perda de sua filha Perséfone, oferecem-lhe uma copa de
vinho, que ela rechaça.” Percebendo argutamente que cada detalhe do
mito aporta dados significativos acerca do mistério que os antigos sacer-
dotes desejavam transmitir, ele entrevê aí uma orientação que todos os
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 183

experientes enteonautas conhecem muito bem: a bebida alcoólica não se


combinava bem com o Kykeon, a Bebida Sagrada dos Mistérios. Pode-
mos acrescentar que o mesmo é válido para muitos outros Enteógenos.
Ele traça aí uma correlação interessante. Sabemos que os xamãs
mexicanos recomendam que os que se dispõem a comungar os Teona-
nacatl (os cogumelos sagrados) necessitam abster-se de tomar bebidas
alcoólicas por quatro dias antes da “velada”, cerimônia onde eles são uti-
lizados. Conclui Carl: “A embriaguez alcoólica profanaria, envileceria a
libação divina, o mesmo no México que na Grécia”.
Igualmente os jejuns e a proscrição de determinados alimentos an-
tes das cerimônias eram comuns às duas tradições. Tudo se passa como
se estivéssemos nos deparando com uma tecnologia muito precisa e
universal, válida também para outros cultos e práticas enteogênicas com
diferentes Plantas em diversas partes do mundo.
Voltando ao Hino de Jesus, encontramos certa similaridade es-
trutural entre o rito oficiado por Jesus e uma das formas musicais dos
trabalhos da Barquinha: os Salmos. Há um cantor, que representa o Ser
divino ou a entidade de Luz que trouxe o Salmo, o Cântico, e que é o
instrutor daqueles ensinamentos, a resposta vem através do coro da ir-
mandade reunida, constituindo a forma que o mistério tem de se revelar
progressivamente na alma dos irmãos.39
Encontramos uma interpretação muito interessante da passagem
bíblica das Bodas de Canaã no livro de Laurence Gardner, intitulado A
linhagem do Santo Graal” Ele apresenta Jesus como um revolucionário
que combateu o sectarismo e a opressão, que buscou ampliar o conceito
de Deus, a ser partilhado por judeus e gentios, operando desafiadoras
mudanças ritualísticas no judaísmo ortodoxo, estendendo a mensagem
e a oportunidade espiritual a todos sem distinção. Teria feito o mesmo
com algum Enteógeno de seu tempo? Seremos mais explícitos.
Encontrado no Evangelho de João, o relato da transformação da
água em vinho “é descrito como o primeiro milagre de Jesus”. Conforme
Laurence Gardner escreve:

39 Junto a isso, o bailado giratório em torno do coreto: o bailado mediúnico configura


espécie de meditação dinâmica, que pouco a pouco desvela aos merecedores os
segredos de suas próprias almas e vidas, bem como os mistérios da natureza e suas
dimensões invisíveis, ocultas aos olhos despreparados do homem comum de nos-
sas sociedades contemporâneas.
184 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

“Mas o Evangelho não diz que eles ‘ficaram sem vinho’, como se costu-
ma citar erroneamente. O texto na verdade diz: ‘E quando eles queriam
vinho a mãe de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm vinho’’. De acordo com o
ritual descrito nos pergaminhos do Mar Morto, a relevância disso é clara.
No equivalente da comunhão, só os celibatários plenamente iniciados ti-
nham a permissão de beber vinho. Todos os outros presentes eram consi-
derados não santificados, e só podiam passar pelo ritual purificador com
água; entre estes se incluíam homens casados, noviços, gentios e todos os
judeus leigos.”

O texto do Evangelho continua: “Estavam ali seis talhas de pedra,


que os judeus usavam para as purificações.” Ele interpreta: “A impor-
tância da ação de Jesus é que resolveu quebrar a tradição quando aban-
donou a água e permitiu que convidados “impuros” provassem o vinho
sagrado. O mestre-sala (grego: architriclinos) não sabia “donde viera [o
vinho] (se bem que o sabiam os serventes que haviam tirado a água)”.
Ele não comentou a respeito de nenhuma transformação miraculosa,
apenas se disse surpreso pelo vinho melhor ser servido àquela hora.
Como Maria declarou, ao mandar os servos obedecerem a Jesus, o epi-
sódio “manifestou sua glória, e os seus discípulos creram nele”.
Mais adiante Laurence comenta:

“A lei judaica era estrita, mas o novo ministério de Jesus tinha a intenção
de abrir os corações. Normalmente os gentios só tinham acesso ao ritual
judaico se fossem convertidos convictos, comprometendo-se a observar os
costumes judaicos (incluindo a circuncisão, no caso dos homens). Os pen-
samentos de Jesus, porém, voltavam-se para os gentios não circuncidados:
por que eles não podiam também ter acesso a Javé?”

O ideal de Jesus trazia uma profunda mudança de paradigma,

“(...) para os judeus radicais ortodoxos, aquilo era ultrajante, pois Jesus es-
tava assumindo poder pessoal sobre suas prerrogativas históricas. Estava
tornando Javé (o Deus do povo escolhido) acessível a todos, com poucos
compromissos exigidos.”

Bem sabemos hoje da ampla revolução gnoseológica operada por


Jesus. Mas será que, assim como Akenaton possivelmente tentou popu-
larizar uma noção privativa das Escolas de Mistérios egípcias, o mono-
teísmo por detrás do “politeísmo”, Jesus teria aberto o mistério dos Ente-
ógenos para uma população maior, facultando a mais pessoas o acesso à
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 185

Planta Sagrada? É, ao que parece, uma pergunta sem resposta no estágio


atual de nossos conhecimentos.
O Doutor em Filosofia e Direito Antonio Escohotado nos informa:

“A grande quantidade de taças encontradas nas catacumbas de Roma – al-


gumas com a inscrição ‘bebe em paz’ – sugerem também que o rito origi-
nal pôde suscitar as ‘borracheiras e festas escrepitosas’ condenadas por São
Paulo (Ep. Gal. 21), alimentando atitudes orientadas – segundo o próprio
apóstolo –para ‘obras carnais’, como a fornicação’”.40

Vamos citar alguns trechos da mais antiga oração de ação de gra-


ças por uma refeição comunitária da Doutrina (Didaquê) dos apóstolos
inspirada na liturgia judaica das refeições:

“Quanto à eucaristia (= ação de graças), dai graças assim:


Em primeiro lugar pelo cálice:
Nós te damos graças, nosso Pai, pela santa vinha de Davi, teu servidor, que
nos deste a conhecer por Jesus, teu servidor.
(...) Tu, senhor todo-poderoso, criaste o universo por causa do teu Nome, e
deste aos homens o alimento e a bebida como prazer para que te deem graças;
mas a nós glorificaste com alimento e a bebida espiritual e com a vida eter-
na, por Jesus teu servidor...”

Finalmente, recordaremos como esse misterioso sacramento pode


estar velado nas palavras do grande Padre da Igreja, Orígenes: “Se com-
preendermos qual é a embriaguez dos santos e como lhes é prometida
para sua alegria, vejamos agora como nosso Salvador não bebe mais
vinho até que beba com os santos o vinho novo do Reino de Deus.”
Um dos primeiros padres da Igreja Católica, Orígenes, comenta o
Êxodo e formula princípios de exegese com fundamentação nas Epísto-
las de São Paulo:

“A lei é espiritual e deve ser compreendida em sentido espiritual. Quanto


a nós, sabemos que a Escritura não foi redigida para nos contar histórias
antigas, mas para nossa instrução salutar; assim compreendemos que o que
acabaram de nos ler é sempre atual, e não somente neste mundo, represen-
tado pelo Egito, mas em cada um de nós.”

40 Encontraríamos aí Mistérios Tântricos, reverenciando a embriaguez sagrada, a dan-


ça, a carne, do mesmo modo que os mais antigos Mistérios de Dionisos, e outros?
186 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Uma das explicações para a fácil assimilação que se deu entre as


tradições originais dos cultos com Enteógenos e a tradição cristã, sua te-
ologia, seus símbolos que foram incorporados à sistematização e à ritu-
alização pré-existentes (em alguns cultos chegando mesmo a substituir
ou refundir, os elementos teológicos anteriores, como é o caso do Santo
Daime e o da Barquinha), deve-se, no meu ponto de vista, à estrutura da
própria experiência, que, altamente revolucionária e integradora, parece
envolver tanto elementos “pagãos” quanto elementos “cristãos” (dicoto-
mia na verdade duplamente artificial, uma vez que o cristianismo “ori-
ginal”, essênio e gnóstico, ao que percebemos atualmente, pode ter sido
bem diferente e muito mais íntegro do que supúnhamos, conciliando
Espírito e Natureza, Pai e Mãe arquetípicos como entendiam os essênios
que devem ser honrados conjuntamente, Yin e Yang), configurando a
fenomenologia do Self/Si-Mesmo descrita por Jung, não sendo, portan-
to, um caso de mera aculturação.
Igualmente o Xamã Agostín Guzmán nos traz dados importantes
de sua vivência pessoal:

“Trabalho com pessoas de diferentes nacionalidades e tenho tido casos de


pessoas que falam um idioma estrangeiro ou cujo idioma nativo não é o
quechua, e durante o ritual com esta planta (Wachuma – São Pedro), elas
falaram algumas palavras quéchuas como mantras e outras ‘descobriram’
que seu mestre era um inca e que lhes falava em quéchua. Outras pessoas
retrocederam aos tempos de nossos incas e pré-incas, como se estivessem
vendo um vídeo.”

Continua ele: “Tive experiências na Europa, durante as quais algu-


mas pessoas se conectaram com a energia dos Andes, com os animais
guardiões andinos como o condor, o puma e a serpente.”
O xamã, como um investigador imparcial, faz significativas com-
parações:

“Na Guatemala e no México, os maias e astecas utilizando o peiote, também,


deixaram um conhecimento. Ambas as plantas são da família das cactáceas,
e têm como elemento químico a mescalina. Os maias têm como animais
guardiões a águia, o jaguar e a serpente.”

Conforme nos recorda o antropólogo Edward MacRae, existem


muitos indícios que nos levam a concluir pela necessidade de buscar-
mos transculturais abordagens da experiência enteogênica:
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 187

“É um processo essencialmente religioso, em que são levantados os temas


centrais da vida humana, e isso leva o pesquisador a considerar alguns dos
conceitos xamanísticos mais como expressão de experiências universais do
que em termos de cultura ou tradições locais.”

A estrutura da experiência mística, visionária, que parece envolver


tanto elementos “pagãos” quanto “cristãos”, interpretação essa efetuada
dentro da visão convencional esotérica, pode corresponder, na realida-
de, à estrutura do Cristianismo formulado em nível esotérico, tal como
encontramos na tradução feita por Székely do Evangelho Essênio da
Paz, onde a Mãe Terrenal está ao lado do Pai Celestial, numa perspectiva
abrangente da totalidade das dimensões da alma humana, da natureza e
do cosmos, que poderemos vir a descobrir ser um elemento basilar do
Cristianismo original.
Quando nos referimos às concepções derivadas das vivências en-
teogênicas e reconhecemos que muitos dos seus contornos podem ser
compreendidos como relacionados com a cultura e o ambiente histórico
do indivíduo, não podemos deixar de fora igualmente a percepção de
que também nos deparamos aí com efeitos explicáveis apenas por meio
da consideração das dimensões transpessoais e arquetípicas da psique.
Desaguando em um nível junguiano, Edward MacRae, antropólo-
go perito respeitável, e pessoa experiente nesse assunto, reconhece:

“Porém, alguma coisa nessas visões parece atingir níveis mais profundos da
psique e se manifestam através do que posso chamar de sentimento místico
perante o cosmos, que seria, ao menos potencialmente, comum a toda a
humanidade.”

Existe, portanto, uma base comum, um solo compartido entre os


enteonautas de diferentes caminhos de Plantas Sagradas que passa por
uma integração harmoniosa entre o espírito e a natureza, “honrando Pai
e Mãe” em nossa alma e em nosso mundo.
Encontramos no texto “A súmula filosófica”, do alquimista Nicho-
las Flamel, enigmática alusão a uma “erva real” e, talvez, a alguns proce-
dimentos técnicos para extrair-se dela o sumo (uma bebida?):

“(...) Por sobre essa montanha sobranceira, avistarão, sem margem para
erro, a triunfante erva real, que os filósofos denominam mineral e não ve-
getal. O seu nome é Saturno. Mas necessário se torna pôr de lado as borras
e retirar o sumo, que vem à tona, puro e cristalino. Põe-se de lado a palha e
188 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

toma-se o grão. Assim se fará com a suculenta planta de ouro. Extrair-se-á,


pois, o seu sumo, que vem do Sol e da Lua, sem lhe causar dano, sem nenhu-
ma separação nem perversa desunião entre os espermas e o mênstruo.”

Em uma experiência unificada, o alquimista revela, põe um novo


véu sobre o avançado ensinamento espiritual. Mas parece evidente que,
ao menos em parte, ele está falando de uma Planta Sagrada.

f) A Nova Aurora – O Desafio de Sermos Parteiros do Amanhã

“Nossa cultura, autointoxicada pelos subprodutos venenosos da


tecnologia e pela ideologia egocêntrica, é a infeliz herdeira da atitude
dominadora que diz que a alteração de consciência através do uso de
plantas ou substâncias é errada, onanística e perversamente antissocial.
Irei argumentar que a supressão da gnose xamânica, com sua confiança
e insistência na dissolução extática do ego, roubou-nos o significado
da vida e tornou-nos inimigos do planeta, de nós mesmos e de nossos
netos. Estamos matando o planeta para manter intactas as suposições
equivocadas do estilo cultural dominador do ego.
É tempo de mudança.”
Terence McKenna

“Para os alquimistas, iogues, médicos e os que estão em busca


da saúde, da sabedoria e da transcendência, o verdor do mundo
vegetal revelou sublimes mistérios, mitos galvanizadores e gyan,
conhecimento profundo e ciência.”
David Crow

Em nossos tempos de ampla crise, realizamos que a revolução de


consciência é o bem maior, sendo não só o mais imorredouro como
também o mais indispensável. As ferramentas capazes de nos conduzir
para os horizontes de que estamos urgentemente necessitados assumem
prioridade em nossas buscas e na focalização de nossos recursos.
Ao nos empenharmos em aprofundar nossos conhecimentos sobre
essas preciosas ferramentas, devemos retornar à escola dos sábios do
passado, que muito têm a nos ensinar.
Perscrutando remédios para sanar o problema da drogadicção, en-
contramos os instrumentos de expansão de consciência e de individuação,
que são capazes de auxiliar as almas extraviadas e sequiosas de orientação
segura e verdadeira, a alcançarem o “Porto” de suas procuras últimas.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 189

Conforme nos ensina Stanislav Grof,

“os estados holotrópicos de consciência também desempenharam um pa-


pel importante nos antigos mistérios de morte e renascimento, procedi-
mentos sagrados e secretos nos quais os iniciados experimentavam uma
poderosa transformação psicoespiritual. Esses mistérios baseavam-se
em histórias mitológicas sobre divindades que simbolizavam a morte e a
transfiguração.”

Dentre os muitos mistérios da antiguidade que abordavam essa te-


mática, deparamo-nos com os enigmáticos Mistérios de Eleusis. Stan
Grof faz uma interessante avaliação desses cultos envolvendo mistérios
de morte e renascimento, e nos chama a atenção para alguns dados im-
portantes. Ele escreve:

“Um impressionante testemunho do poder e impacto das experiências en-


volvidas é o fato de que os mistérios eleusinos eram conduzidos regular-
mente e sem interrupção por um período de quase 2000 anos, e continua-
ram atraindo pessoas proeminentes de todo o mundo antigo. A importân-
cia cultural dos mistérios para o mundo antigo torna-se evidente quando
percebemos que dentre os seus iniciados havia muitos personagens famo-
sos e ilustres da antiguidade. A lista de neófitos incluía os filósofos Platão,
Aristóteles e Epitecto, o líder militar Alcebíades, os teatrólogos Eurípedes e
Sófocles, e o poeta Píndaro.”

Para compreender o que Stan Grof está tentando descrever preci-


samos ter experiência nos trabalhos brasileiros com o Santo Daime e
o Vegetal: muitas pessoas, ao mesmo tempo, de forma surpreendente-
mente ordeira, disciplinada, experienciando juntar estados de expansão
de consciência alcançados através do uso dos Enteógenos.
O caso de Eleusis é enigmático e, ao mesmo tempo, único na his-
tória e no mundo:

“No telesterion, o gigantesco salão de iniciação em Eleusis, três mil neófitos


experienciavam simultaneamente profundas transformações psicoespiritu-
ais. A exposição de um número tão grande de pessoas, incluindo filósofos,
artistas e estadistas de proeminência, a poderosos estados holotrópicos ti-
nha de ter um impacto extraordinário sobre a cultura grega e, portanto, so-
bre a história da cultura europeia em geral. É realmente impressionante que
este importante aspecto do mundo antigo tenha permanecido em grande
parte não reconhecido e ignorado pelos historiadores.”
190 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Tais números são, para nós, atualmente, pouco além de nossa


experiência, e, em nossos dias, com a ampla vivência brasileira em
sessões de Ayahuasca com grande quantidade de pessoas,41 temos me-
lhores condições de compreender o que se passava então. Especula
Stan Grof:

“As especificidades dos procedimentos de alteração mental envolvidos nes-


tes ritos secretos permaneceram em sua maior parte desconhecidos, embo-
ra seja provável que a poção sagrada kykeon que desempenhava um papel
crítico nos mistérios eleusinos era um preparado que continha alcaloides
de ergotina semelhantes ao LSD (Wasson, Hofmann e Ruck, 1978), e que
materiais psicodélicos também estavam envolvidos nos bacanais e outros
tipos de ritos.”

Nesse ponto da investigação, Grof conclui de maneira relevante


para nosso estudo:

“Sejam quais fossem as ‘tecnologias do sagrado’ utilizadas em Eleusis, seus


efeitos sobre a psique dos iniciados tinham de ser profundos para manter
vivos o interesse e a atenção do mundo antigo por um período de quase dois
milênios.”

Em seu excelente livro sobre os Mistérios de Eleusis, a Professora


Alda Dolores Albrecht, diplomada em Filosofia e Ciências da Educação,
após muito valiosa exposição sobre a enigmática Bebida Sagrada utili-
zada nestes famosos mistérios da antiguidade, o Kykeon, nos faz uma
fundamental advertência:

“Desditosamente, a ciência sagrada da botane – ervas – se perdeu quase por


completo. Só chegou até nós o conhecimento de suas propriedades curativas
em nível físico, mas os antigos, que foram grandes observadores do reino
vegetal, tinham um nível superior de entendimento acerca delas. Ervas que
conferiam o esquecimento momentâneo, outras que davam a visão divina
ou a visão dos ‘elementais’ da natureza (espíritos inferiores) etc. etc. Talvez
as vejamos em nossos jardins, talvez passemos junto a elas diariamente; mas
já não sabemos como utilizá-las, nem quando nem como extraí-las; se raízes
da terra; se folhas, de seus ramos. Somos diante delas como um selvagem
frente a uma régua de cálculo: o único que este veria seria seu corpo de ma-
deira, e, portanto, a levaria para queimá-la e fazer um pequeno fogo.”

41 No centenário do Mestre Irineu e no centenário de Frei Daniel, em Rio Branco, Acre.


Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 191

Nossa proposta aqui é a de que, muito mais que a acurada percep-


ção tangida por sistemas de interpretação muito amplos e precisos, que
são bem diferentes dos do cientista ocidental moderno, os conhecimen-
tos mais avançados do que os atuais demonstrados por nossos irmãos de
antigas eras, são fragmentos de um saber ancestral, vestígios de civiliza-
ções superiores que existiram em um remoto passado da humanidade.
Outra hipótese correlata que levantamos aqui e em outras investi-
gações que realizamos é a de que muitos desses ensinamentos são parte
de uma Ciência Sagrada existente secretamente nos bastidores de nossa
história conhecida. Alguns desses conhecimentos ainda estão preserva-
dos em ordens esotéricas e Escolas de Mistérios de nossos dias. Porém,
como a mestra nos falou, muito da ampla tecnologia dos antigos sábios
acerca das Plantas Sagradas se perdeu, ou está nas mãos de desconfiados
xamãs e curandeiros que, quase sempre, desconhecem suas arcaicas e
espantosas origens, intuindo apenas o caráter divino desse saber, não o
trocando por nenhum outro aportado pela ciência moderna.
Nosso trabalho hoje será o de, com uma estrita abordagem espi-
ritual, comprovando para eles que esses dados serão utilizados com a
ética e a justiça necessárias, buscarmos ser bons e fiéis aprendizes dos
raros grandes mestres dos Enteógenos da atualidade.
Ensina-nos o médico e curandeiro Don Miguel Ruiz, nagual
(xamã) da linhagem tolteca dos Cavaleiros Águia:

“Milhares de anos atrás, os toltecas eram conhecidos no sul do México como


‘homens e mulheres de sabedoria’. Antropólogos falam dos toltecas como
uma nação ou raça, mas, na verdade, os toltecas eram cientistas e artistas
que formavam uma sociedade para explorar e conservar a sabedoria espi-
ritual e as práticas dos antigos. Encontraram-se como mestres (nagual) e
estudantes em Teotihuacan, a cidade antiga das pirâmides próxima à Cidade
do México conhecida como o lugar onde o ‘Homem se Torna Deus’.
Ao longo dos milênios, os nagual foram forçados a esconder a sabedoria an-
cestral e manter sua existência na obscuridade. A conquista europeia, combi-
nada com o mau uso do poder pessoal por alguns poucos aprendizes, tornou
necessário ocultar o conhecimento dos que não estavam preparados para usá-
lo com sabedoria, ou que pretendiam usá-lo apenas para ganhos pessoais.
Felizmente, a sabedoria esotérica tolteca estava incorporada e foi transmitida
através de gerações de diferentes linhagens de nagual. Embora tenha permane-
cido envolta em segredo por centenas de anos, as antigas profecias prediziam
a vinda de uma era em que seria necessário retornar a sabedoria ao povo.”
192 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Vale a pena recordarmos que os astecas, magistrais conhecedores das


múltiplas propriedades misteriosas dos Enteógenos, com uma tecnologia
muito rica e avançada que quase se perdeu completamente, atribuíam aos
toltecas a fonte de seus mais altos conhecimentos e refinada cultura, como
alguns gregos proeminentes também faziam em relação aos egípcios.42
A arqueóloga do Instituto Nacional de Antropologia e História do
México, Laurette Séjournée faz uma importante reflexão: “Não deixa de
surpreender a veneração que os muito orgulhosos astecas manifestavam
em relação a esses antepassados nahuas.” É digna de nota a humildade com
que reconheceram nos Toltecas a fonte de seus avançados conhecimentos.
A palavra Tolteca significa, em nahuatl, mestres-artesãos. Segundo
Laurette Séjournée

“a civilização dos toltecas irradiou até países muito distantes, e se compro-


vou arqueologicamente que desde o fim do século V, quer dizer, em torno
de 400 anos depois da fundação de sua capital, haviam já formado a vasta
unidade cultural que se estendia mais ou menos sobre todos os territórios
designados pelos antropólogos de hoje sob o nome de Mesoamérica.”

No intento de rastrear as pegadas desse profundo conhecimento


ancestral vamos recorrer ao depoimento do frade franciscano Bernar-
dino de Sahagún. Entre muitos legados que os Toltecas deixaram, desde
a pintura, a arte plumária, a lapidação, a tecelagem, entre outras, até a
astronomia, a astrologia e a interpretação de sonhos, encontramos um
campo que é de sumo interesse para nós neste estudo.
Diz Sahagún:

“Tinham desse modo muita experiência, e conhecimento os Toltecas, en-


quanto conheciam as qualidades e as virtudes das ervas, e deixaram assina-

42 Aliás, a palavra Aztlan, mexicana, que significa o nome da ilha situada mais além
do Golfo de México, de onde indígenas americanos, especialmente astecas e maias,
diziam ter vindo, é surpreendentemente similar à palavra Atlântida, usada pelos
gregos para nomear o continente desaparecido e o berço de sua civilização. Artaud
narra ter observado no México o “rito dos reis da Atlântida”, tal como é descrito por
Platão no Crítias. Considerando os Tarahumaras como descendentes dos Atlantas,
ele conclui: “Que as pessoas pensem o que quiserem das associações que faço”. De
qualquer forma, como Platão nunca foi ao México nem os Índios Tarahumaras
alguma vez o viram, somos obrigados a admitir que a ideia deste rito sagrado é
colhida numa mesma fonte fabulosa e pré-histórica.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 193

ladas e conhecidas as que agora se usam para curar, porque também eram
médicos e essencialmente os primeiros desta arte... Eles foram os primeiros
inventores da medicina...”

É impressionante nos darmos conta de quantas vezes, em nossa


história conhecida, encontramos um passado com conhecimentos mais
avançados do que em tempos posteriores, sugerindo mais uma deca-
dência do que progresso ou “evolução”.
Atualmente o México é um dos países em que podemos encontrar
uma grande variedade de Enteógenos, e uma sofisticada tecnologia de
utilização que está se perdendo. Creio que, aí, como em alguns outros
lugares do mundo, no Brasil, no Peru, em outros países da América, e em
quase todos os lugares do planeta, podemos encontrar vestígios de uma
avançada Ciência das Plantas, sobrevivente de um remoto passado, uma
espécie de teo-psico-botânica, que grandes contribuições pode trazer para
o mapeamento das possibilidades de uso dos Enteógenos na atualidade.
Temos de buscar nos Sábios do passado e em seus descendentes, os atuais
xamãs e iniciados, as pistas para o resgate dessa tecnologia milenar.43
Não apenas sobre a metodologia de colheita, de preparo, de ad-
ministração dos Enteógenos, mas também acerca dos sistemas de in-
terpretação e manejo das sessões, que adentram as dimensões energé-
ticas sutis, psíquicas e espirituais da experiência enteogênica, devemos
aprender mais de nossos irmãos, xamãs, sacerdotes, padrinhos e mes-
tres, com todos os iniciados, peritos nesses rarefeitos e espantosamente
sofisticados trabalhos com as Plantas Sagradas Enteógenas, para confi-
gurar novos mapas que guiem nossa investigação e práticas.
O caminho que se descortina adentra pela esfera dos valores, do
sentido e da atitude frente à sociedade e à vida.
Ensina-nos outro guerreiro espiritual, atual seguidor da tradição
tolteca, Tomás:

“A qualidade de guerreiro é uma maneira de ser que exige uma tremenda


quantidade de coragem. Entre outras coisas, requer uma fé inamovível em

43 Como nos informam Schultes e Hofman: “Sem lugar a dúvidas, México representa
a zona mais rica do mundo tanto na diversidade de seus alucinógenos como no uso
que deles fizeram os grupos indígenas; trata-se de um fenômeno difícil de com-
preender se considerarmos que a flora do país oferece um número relativamente
reduzido de espécies.”
194 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

uma visão radical e nova do mundo. O caminho do guerreiro não é para


os débeis de coração, nem para aqueles que são facilmente dominados por
outros. Converter-se em guerreiro requer estabelecer e manter um curso
intensamente pessoal, um que vá contrariamente ao ímpeto de grande parte
do mundo moderno. (...) Don Juan nos diz que o total envolvimento com o
autorreflexo é responsável pelo egoísmo homicida, a estupidez, o cinismo e
o falso sentido de valia que nos arrasa como espécie.
A compaixão própria e a importância pessoal são os destruidores da huma-
nidade e fonte da interminável miséria da espécie humana.”

Após o dramático e exato diagnóstico, ele apresenta o remédio


apropriado: “Declaramo-nos guerreiros, e agora devemos nos separar
valorosamente dos reflexos auto-obsessivos de nossos irmãos humanos.”
A luta é não apenas para alcançar uma nova consciência, mas igualmen-
te por mantê-la incorrompida, inalterada.
Vamos encontrar no grande teólogo renascentista Pico della Mi-
randola algumas formulações que nos fazem lembrar de algumas das
questões centrais em foco nos mistérios da antiguidade:

“Efetivamente, além dos mistérios em Moisés e no Cristianismo, mesmo


as teologias dos antigos nos demonstram os préstimos e a dignidade das
artes liberais em cuja discussão estou empenhado. Que outra coisa, com
efeito, querem significar os graus de iniciação observados nos arcanos dos
gregos? Aos iniciados, previamente submetidos à purgação por meio da-
quilo que se denomina artes de purificação, isto é, a Moral e a Filosofia,
era patenteado o acesso aos mistérios. E isso que outra coisa poderia ser
senão a interpretação, mediante a Filosofia, dos segredos mais recônditos
da natureza? Somente quando eles estavam, em grau adequado, preparados,
sobrevinha a tal ‘epopteia’, ou seja, a visão das coisas divinas por mercê do
lume teológico.”

Continua ele:

“E quem não haveria de desejar ser introduzido nesses mistérios sagrados?


Quem, na verdade, preterindo todas as coisas mundanas, desprezando os
bens da fortuna, negligenciando o próprio corpo, não almejaria, embora
ainda habitante neste mundo, ser um comensal dos deuses e estar embria-
gado com o néctar da eternidade, sendo que, apesar de simples mortal, pode
sobrepujar a mortalidade com o dom da imortalidade? Quem não quereria
ser tomado por aqueles êxtases socráticos, descritos por Platão no ‘Fedro’,
e com os movimentos das asas e dos pés ser transportado para fora deste
mundo dominado pelo mal e assim arrebatado em velocíssimo voo até a
Jerusalém celeste?
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 195

Ó, Senhores, sejamos sim transportados em êxtases socráticos. São eles que


nos situam além do intelecto de sorte a nos colocar a mente e a nós mesmos
em Deus.”

E um pouco mais adiante ele conclui: “Então Baco, o regente das


musas, revelando-se a nós, os filosofantes, em seus mistérios, isto é,
desvelando nos sinais visíveis da natureza os sinais invisíveis de Deus,
inebriar-nos-á com aquela abundância da casa de Deus.”
É impossível não divisarmos aí a provável chave de um elemento
central nos antigos mistérios: Uma Bebida Sagrada, um Enteógeno ca-
paz de transportar a pessoa para sua dimensão eterna e imortal, auxi-
liando a alma a conscientizar-se de suas reais amplitudes e de sua verda-
deira identidade, libertando-a do feitiço do aprisionamento perceptual
e conceitual no plano da matéria e da identificação com o corpo.
Ele menciona Baco, o deus do vinho. Como nos informa Aldous
Huxley,

“(...) na Grécia o vinho não era apenas consagrado a Dionísio; o vinho era
Dionísio. Baco era chamado Theotinos – Vinhodeus – uma única palavra
igualando o álcool à divindade, a experiência da embriaguez ao espírito san-
to. Diz Eurípedes: ‘Tendo nascido deus, Baco é vertido em libações aos deu-
ses, e, através dele, os homens recebem o bem’. Esse bem, segundo os gregos
era de muitas espécies – saúde física, iluminação mental, dom da profecia,
sensação extática de unidade com a divina verdade”.44

Ora, sabedores que o vinho dos antigos mistérios de Baco e Dio-


nísio não era exatamente o vinho alcoólico que encontramos em nossos

44 Continua Aldous Huxley: “Similarmente, na antiga Índia, o suco da planta soma


(qualquer que tenha sido essa planta) não era meramente consagrado a Indra, o
deus-herói das batalhas; ele era Indra. E ao mesmo termpo era o alterego de Indra,
um deus em si mesmo. Muitos exemplos semelhantes dessa identificação de uma
droga que altera a consciência com um deus qualquer do panteão local poderiam
ser citados. Na Sibéria e na América Central várias espécies de cogumelos alucinó-
genos são encaradas como deuses. Os indígenas do sudoeste dos Estados Unidos
identificaram o cacto do peiote como divindades nativas e, em anos recentes, com
o Espírito Santo da teologia cristã.”
Aqui no Brasil também nos deparamos com pessoas que consideram o próprio
Enteógeno como sede da divindade, como um Ser divino. Temos em um Salmo da
Barquinha a seguinte instrução: “Saudemos a Luz do Daime/ Saudemos com santo
Amor/ Que ela para nós representa/ O nosso Pai Salvador”.
196 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

dias, e com o conhecimento sobre os Enteógenos que possuímos agora,


percebemos que Pico parece nos sinalizar para um importante ingre-
diente auxiliar para compreendermos o alto nível de consciência dos
nossos irmãos de tempos remotos: uma bebida capaz de expandir as
usuais fronteiras da psique humana.
Vemos ainda no revolucionário livro dos grandes peritos que men-
cionamos anteriormente (Gordon Wasson, Albert Hofmann e Carl A.
P. Ruck, O caminho para Eleusis), que o testemunho dos antigos sobre
Eleusis é “unânime e preciso”:

“Eleusis era a experiência suprema na vida de um iniciado. O era em um


sentido tanto físico como místico: tremores, vertigem, suor frio e depois
uma visão que convertia tudo quanto houvesse sido visto antes em uma es-
pécie de cegueira; um sentimento de assombro e surpresa ante um resplen-
dor que provocava um silêncio profundo, pois o que acabava de ser visto e
sentido jamais poderia ser comunicado: as palavras não se encontravam à
altura de tal tarefa.
Tais sintomas correspondem inequivocamente à experiência produzida por
um Enteógeno. Para chegar a tal conclusão basta mostrar que os racionais
gregos, e certamente alguns dos mais inteligentes e célebres, eram capazes
de experimentar tal irracionalidade e de entregar-se por inteiro a ela.”45

45 Comenta o doutor em História Social, Henrique Soares Carneiro, em sua Pequena


enciclopédia da história das drogas e bebidas: “No mundo grego antigo, especial-
mente nas ilhas de Creta e Chipre, o ópio relacionava-se intimamente com os mitos
da deusa Deméter (assim como sua versão romana, Ceres), que após ter sua filha
Prosérpina raptada, e vagar desconsolada em sua busca, chegou à cidade grega de
Mecone, onde encontrou e comeu as sementes de uma papoula que lhe trouxeram
o apaziguamento da dor.
A imagem da deusa ligou-se assim à da papoula, como sua flor sagrada e, junto com
a espiga de cereal, tornou-se sinal distintivo de toda a iconografia de Deméter. Di-
versos outros deuses, como Cibele, Afrodite e Dionísio, também tiveram a papoula
como um de seus atributos.”
Embora existam controvérsias, tanto sobre quais plantas foram utilizadas pelos an-
tigos como também acerca de seu preparo nas combinações para a obtenção das
bebidas e dos medicamentos antigos, uma tecnologia que parece, ao menos em
parte, ter se perdido, o fato é que abundam indícios da maestria dos povos de remo-
tos tempos em identificar e aplicar, para diversos fins, todo um sofisticado conhe-
cimento das propriedades das plantas, inclusive as psicológicas e espirituais, capaz
de deixar desconcertado o investigador moderno bem informado. É surpreendente
também a intrincada relação entre esse conhecimento, os mitos e os mistérios, ain-
da não suficientemente explorada e esclarecida em nossos dias.
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 197

Os gregos nos apontaram um importante caminho. Alguns de seus


mais brilhantes expoentes nos ministram exemplos da busca de integrar
o racional com o irracional, o consciente com o inconsciente, como mo-
dernamente propõe Jung.
No Fedro encontramos um Sócrates inspirado de maneira inco-
mum que exalta “(...) a loucura divina do poeta, do vidente e do enamo-
rado da sabedoria, considerando-a superior à sobriedade racional.”
Ao abordar o conflito entre a poesia e a filosofia, F. M. Cornford,
Doutor em Letras e professor de Filosofia Antiga de Cambridge, sugere
que os três tipos, o poeta, o profeta e o sábio, diferenciaram-se a partir
do xamã. Segundo ele,

“o pressuposto inicial era que todo o conhecimento que está para além do
alcance dos sentidos na experiência cotidiana é um conhecimento revelado
a pessoas de excepcionais dons intelectuais e artísticos que foram submeti-
das a um treino especial e adquiriram o domínio de uma técnica especial.
Essas pessoas têm acesso ao mundo invisível. Estão em comunhão direta
com os deuses e os espíritos, cuja vontade são capazes de interpretar. Além
disso, têm o dom de contemplar todo o curso dos acontecimentos tempo-
rais, o passado, o presente oculto e o futuro.”

Alguns dos fenômenos descritos adentram nas esferas do que de-


nominamos Consciência Cósmica. Esta era a verdadeira meta da Ana-
mnésis. Como filosofa e poetiza Cornford:

“A percepção da beleza que nos vem através dos olhos do corpo e que causa
a perturbação do amor é também a primeira oportunidade para o despertar
da Amnamnésis – essa misteriosa recordação da verdade que todas as almas
humanas contemplaram antes de encarnarem. E o despertar da Anamnésis
é o principiar da filosofia”.

Em sua interessante comparação entre o poeta, o profeta e o sábio,


ele conclui:

“Este poder é reivindicado em termos idênticos para o profeta, inspirado


por Apolo, e, para o poeta, inspirado pelas Musas. A estas formas de ‘lou-
cura divina’ equipara Platão à loucura do filósofo, arrebatado pelo amor à
verdade para a região que fica acima dos céus visíveis.”

Cornford confirma que a verdade aí revelada “(...) não era o passa-


do nem o futuro, mas uma realidade intemporal e imutável.”
198 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Quando pensamos nos sofisticados níveis de formulação gnósti-


co-filosófica a que chegaram alguns expoentes da Grécia antiga, inte-
grando opostos, combinando harmoniosamente o funcionamento dos
diferentes e complementares hemisférios do cérebro humano, podemos
nos dar conta da magnitude do caminho que eles percorreram. Se nos
tempos de Platão, talvez se fizesse necessário enfatizar a ratio, no mo-
mento histórico em que viveu Jung, se impunha justamente o contrário:
mostrar ao homem excessivamente confiante na razão e na ciência con-
vencional, o lugar e o poder do inconsciente, do “não racional”. Ambas
as perspectivas integram a razão e o mito, signo e símbolo, trazendo-nos
uma visão mais completa de nosso amplo horizonte psíquico.
Encontramos no livro de Artaud, O teatro e seu duplo, uma admi-
rável descrição, seguramente intuindo dimensões essenciais, arquetípi-
cas e alquímicas, dos mistérios:

“Dizem-nos que os Mistérios de Eleusis limitavam-se a encenar um certo nú-


mero de verdades morais. Creio, antes, que deviam encenar projeções e preci-
pitações de conflitos, lutas indescritíveis de princípios, vistas sob este ângulo
vertiginoso e escorregadio em que toda verdade se perde ao realizar a fusão
inextricável e única entre o abstrato e o concreto, e penso que, através das
músicas dos instrumentos e das notas, das combinações de cores e formas de
que não temos mais a menor noção, aqueles mistérios deviam, de um lado,
satisfazer essa nostalgia da beleza pura cuja realização completa, sonora, lím-
pida e despojada Platão deve ter visto pelo menos uma vez neste mundo; de
outro lado, deviam resolver através de conjunções inimagináveis e estranhas
para nossos cérebros de homens ainda despertos, deviam resolver ou mesmo
aniquilar todos os conflitos produzidos pelo antagonismo entre a matéria e o
espírito, a ideia e a forma, o concreto e o abstrato, e fundir todas as aparências
em uma expressão única que devia ser semelhante ao ouro espiritualizado.”

Após a grande experiência, a elaboração, o esforço de pô-la em pa-


lavras, extrair dela um aprendizado para o nosso cotidiano, nos relatos
de Platão, deparamo-nos com esse “descendente dos debates xamâni-
cos do espírito”, onde, segundo Willard Johnson (professor de Estudos
Religiosos da Universidade Estadual de San Diego), “os participantes
bebiam e depois especulavam sobre assuntos espirituais de interesse co-
mum”. Assim também faziam os sacerdotes que utilizavam o Soma e,
atualmente no Brasil, o fazem os membros da União do Vegetal.
Hoje, cientistas e racionalistas se admiram diante da experiência
de expansão proporcionada pelos Enteógenos, revolucionando con-
Cap. III – As Propriedades Misteriosas das Plantas Sagradas 199

ceitos e perspectivas anteriormente bem estabelecidas, transformando


profundamente nossas vidas.
Stanislav Grof nos alerta para a importância do estudo dos domí-
nios da mente que emergiu da utilização das substâncias psicoativas na
pesquisa moderna, estabelecendo uma comparação muito oportuna
com a medicina e a astronomia: “Não parece exagerado nem impróprio
comparar seu significado potencial para a psiquiatria e a psicologia com
o do microscópio para a medicina ou do telescópio para a astronomia.”
Estaremos nós fechando o círculo e, em certo sentido, retornando
àquela antiga manhã, onde as funções de sacerdote, homem do saber,
médico, artista e psicoterapeuta encontravam-se ainda integradas no
mesmo indivíduo? O etnopsicólogo Holger Kalweit propõe não apenas
que o etnólogo deva experimentar as técnicas e experiências mentais do
xamã, como deve também se converter em aprendiz de xamã, transcen-
dendo seu papel tradicional de cientista:

“O cientista-yogui, o cientista-xamã – o homem que encarna aos dois mun-


dos – estará sem dúvida melhor qualificado que qualquer outra pessoa para
explorar o espectro inteiro da consciência, pois é capaz de basear suas descri-
ções em sua própria experiência interior e então saber de que está falando.”

Allan Watts considera o importante dado de que “(...) o psiquiatra e o


neurologista, com muito poucas exceções, não tiveram nenhum treinamen-
to em Teologia. E, quando a maioria deles fala sobre Teologia, revela a sua
abissal ignorância sobre o assunto como um todo”, sinalizando que o ponto
de equilíbrio encontra-se entre ambas. Precisamos também de uma Teolo-
gia, bem como de uma Psicologia, especiais, que utilizem os mapas apropria-
dos para decifrar esse, a um só tempo, novíssimo e antiquíssimo continente.
Aí, deparamo-nos com uma profunda indagação:

“Embora existam indivíduos talentosos que entendem esse tipo de coisa,


não há nenhuma classe reconhecida de pessoas que poderiam ser chamadas
de, por exemplo, teobotânicos ou teoneurologistas. Precisamos ter o desen-
volvimento de uma profissão assim. Até que isso aconteça, estaremos em
uma situação difícil.”

Existem, porém, caminhos percorridos no passado, que nos apon-


tam importantes direções. Encontramos em um texto alquímico de dois
séculos atrás, a Concordância mito-físico-cabalo-hermética, como em
200 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

muitos outros textos de Alquimia anteriores, uma abordagem holística,


um esforço de síntese para dar conta do hipercomplexo objeto.
Conforme cita da Bíblia o alquimista autor do livro acima: “Deus
criou da Terra, diz o Eclesiástico, cap. 38, vers. 4, uma medicina su-
prema que o homem sábio não menosprezará para sua saúde e para o
prolongamento de seus dias.”
Após citar a passagem bíblica que mencionamos, o autor diz:

“(...) Este lodo quando o prepara uma mão hábil dá, depois das primeiras
manipulações, as fumaças brancas que Filaleteo chama as Pombas de Diana
e que, quando estão condensadas, Raimundo Lulio chama o espírito ardente
de seu vinho. Estas fumaças são o precursor imediato do sangue do Pelicano
ao que os Filósofos chamam seu vinho acre, muito acre.”

É curioso que muitas das ervas enteogênicas, como o Peyotl, a


Ayahuasca e o Wachuma apresentam este sabor, o que funciona como
proteção para evitar hedonistas em busca de recreação. Só determinada
busca de consciência e/ou de cura possibilita o buscador espiritual ou o
doente de vencer a aversão inicial.
O resgate das avançadas tecnologias psicoespirituais, antigas e mo-
dernas, constitui uma nova aurora desse conhecimento ancestral, um
renascimento de uma consciência mais ampla e sábia, capaz de conduzir
o mundo a uma nova era de paz e progresso para a humanidade.
Fazemos nossas as palavras do grande perito em estados de expan-
são de consciência, o mestre sufi Jalaludin Rumi:

“Se esse conhecimento pudesse ser obtido simplesmente pelo que dizem os
outros homens, não seria necessário entregar-se a tanto trabalho e esforço,
e ninguém se sacrificaria tanto nessa busca. Alguém vai à beira do mar e
só vê água salgada, tubarões e peixes. Ele diz: ‘Onde está essa pérola de que
falam? Talvez não haja pérola alguma’” Como seria possível obter a pérola
simplesmente olhando o mar? Mesmo que tivesse de esvaziar o mar 100 mil
vezes com uma taça, a pérola jamais seria encontrada. É preciso um mergu-
lhador para encontrá-la.”

O pequeno ego vai à “beira do mar” do inconsciente, e não encon-


tra a “Pérola” do Si-Mesmo, o Eu Divino; ainda que tentasse esvaziar
todo esse “oceano” trazendo sua água para os filtros racionais da cons-
ciência, passo a passo, não encontraria essa Pérola. É preciso mergulhar,
arriscando-se, rendendo o ego e abandonando-se nesse mar, para en-
contrar a “Pérola” do Eu Divino.
IV
CONCLUSÃO – A REVOLUÇÃO DA CONSCIÊNCIA –
OS PASSOS NO FUTURO

________________________ u ____________________________

“Uma análise da imperfeição existencial que nos leva a formar


relacionamentos de dependência e vício com plantas e drogas mostrará
que, no início da história, perdemos alguma coisa preciosa, cuja
ausência nos tornou doentes de narcisismo. Somente uma recuperação
do relacionamento que desenvolvemos com a natureza através do uso
de plantas psicoativas antes da queda na história pode nos oferecer a
esperança de um futuro humano e aberto.”
Terence McKenna

A descoberta das propriedades misteriosas dos Enteógenos abre


novos e instigantes horizontes para pesquisas em diversas áreas da Psi-
cologia, da Psiquiatria, da Medicina Psicossomática, da Parapsicologia
e, portanto, para a Antropologia e a Filosofia. Este livro sugere várias
linhas de pesquisa inéditas que podem render frutos para a cura de inú-
meras doenças e disfunções psíquicas e somáticas, trazendo novas espe-
ranças para muitas pessoas, hoje desenganadas, com precário e estreito
leque de opções terapêuticas.
Não apenas demarcando com maior clareza as fronteiras entre os
Enteógenos e as drogas, mostrando a diferença abissal entre eles, de-
monstra quais as raízes, as dimensões psicológicas, algumas das razões
da grande eficácia das Plantas Sagradas na terapia da drogadicção e do
alcoolismo.
Esperamos ter apontado aí um caminho novo, muito frutífero e
eficiente para combatermos estas e outras patologias sociopsicológicas
da modernidade.
Evidenciando como um conhecimento mais profundo de tais pro-
priedades pode ser útil na interpretação de várias passagens de textos
das antigas tradições sagradas da humanidade, algumas delas ainda
bem vivas atualmente, este estudo também aponta para uma oportuni-
dade única e ampla de trazer novas perspectivas espirituais aos materia-
202 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

listas, de vitalizar a fé e dar novo ânimo a religiosos em crise através de


experiências diretas. Estas experiências imediatas, obtidas sem mestres,
gurus ou mediadores exteriores ao sujeito, quando conduzidas com as
técnicas apropriadas, por pessoas com a experiência e a ética indispen-
sáveis, são libertárias, emancipam a alma expandindo inexoravelmente
suas fronteiras cognoscitivas e sua autonomia, viabilizando a meta de
uma educação verdadeiramente holística.
Os Enteógenos são ferramentas gnósticas capazes de estender, de am-
plificar os horizontes de realidade operando de maneira cabal o difícil par-
to da mudança de paradigmas na Ciência e na Cultura, com repercussões
ainda inimagináveis para as religiões e a civilização no terceiro milênio.
A revolução aportada por esse conhecimento ainda não pode ser
avaliada com os instrumentos de que dispomos atualmente.
Uma outra consequência deste estudo é a valorização e o resga-
te dos conhecimentos e tecnologias dos povos indígenas, contribuindo
para sua preservação e respeito, dando mais voz aos seus sábios e xamãs,
ao invés de nos satisfazermos com as interpretações cartesianas e empo-
brecedoras que muitos estudiosos fazem sobre eles.
Conforme nos ensina Lao Tsé:

“Gentil príncipe, as pessoas no futuro não deverão aceitar cegamente o


novo, tampouco rejeitar da mesma forma o velho. As coisas que foram
desenvolvidas muito tempo atrás ainda podem ter grande valor se deram
mostras de ser seguras e eficazes e de resistir ao tempo. As novas invenções
que estão por vir podem parecer atalhos, mas as coisas de conveniência tem-
poral trarão posteriormente problemas ocultos. As gerações futuras terão
necessidade de reavaliar todas as descobertas e invenções antigas e novas,
a fim de assegurar que elas são úteis e boas para a saúde, de acordo com os
modelos de um meio de vida holístico.”

É absolutamente impressionante o grau de avanço, de sofisticação


e de maturidade, o caráter de rigor científico desse pensamento, fiel a
uma história da ciência que ainda não havia nascido, sem falar no as-
pecto profético, considerando que seu autor foi um sábio que viveu há
bem mais de dois mil anos. Hoje, pouquíssimos cientistas alcançaram
uma equanimidade similar, de relativização da modernidade compara-
da com as tecnologias do passado.
Ao refletirmos sobre alguns dos “avanços” da ciência moderna, so-
bretudo nas esferas dos tratamentos, dos métodos pedagógicos ou ainda
Cap. IV – Conclusão – A Revolução da Consciência – Os Passos no Futuro 203

das novas drogas, recém-lançadas, com curto prazo de testes em seres


humanos, onde as modas se sucedem, por vezes, a “última palavra” em
pouco tempo demonstra apresentar sérias contraindicações ou, até mes-
mo, perigos de alta gravidade. Recordamos então o resgate da acupuntura
(outra tecnologia de ETs), das fitoterapias ancestrais, das medicinas e dos
métodos tradicionais antigos, que hoje demonstram ser, em muitos casos,
mais eficazes e inócuos do que os modernos. Os Enteógenos são evidên-
cias disso. Então podemos saber exatamente do que Lao Tsé está falando.
De um modo geral, os adeptos de algumas vertentes da ciência
moderna são crentes em seus parâmetros que, como demonstramos em
outro lugar (Texto “A Psicologia, as Práticas Oraculares e as Terapias ‘Al-
ternativas’”, carta enviada ao Conselho Regional de Psicologia em 1994,
que ficou sem resposta), nem são tão científicos ou exatos como preten-
dem ser. O mais inquietante é que, como quaisquer indivíduos fanatiza-
dos por dogmas, não economizam esforços para converter os outros aos
seus paradigmas, para o bem ou para o mal, como demonstramos em
muitas oportunidades.
Quando isso ocorre com profissionais das áreas médica e psico-
lógica, por exemplo, pode ser desastroso. O médico, o psiquiatra e o
psicólogo frequentemente desestimulam seus clientes de procurarem
tratamentos não convencionais. O argumento manifesto é o de que não
há comprovação, que é preciso ser realista. Na verdade, o que muitas ve-
zes ocorre aí é a pura e simples desinformação nas searas mencionadas,
onde é varrida para debaixo do tapete imensa bibliografia comprobató-
ria, ou, no mínimo, altamente instigante e suficientemente rigorosa para
ser considerada com maior atenção e seriedade.
Alguns diagnósticos com suas consequentes atitudes em face do
problema quase equivalem a sentenças de morte, quando não são, como
a Dra. Nise da Silveira considerava o rótulo de esquizofrenia, verdadeiros
“paralelepípedos”, considerações e nomenclaturas que facilitam a incom-
preensão das reais dimensões do problema, favorecendo uma piora no es-
tado psicológico da pessoa, desencorajando igualmente os que a cercam,
inclusive o próprio terapeuta, bem mais do que auxiliando o tratamento.
Existem profissionais e cientistas que podem, às vezes, num nível latente,
por medo de perder o poder ou pura competitividade inconsciente, suge-
rir desdém por buscas espirituais em momentos de crise e enfermidade,
quando sabemos que, provavelmente, imensa quantidade de casos com
que se deparam, são em última instância, emergências espirituais.
204 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

Estamos cônscios também da imensa quantidade de curas extraor-


dinárias que ocorrem em várias esferas da Medicina e da Psicoterapia,
que não encontram explicações nos parâmetros oficiais, e estão geral-
mente associadas com as dimensões psicoespirituais e transpessoais da
vida. Despreparados para entender e lidar com esses “novos” domínios
da realidade, muitos terapeutas que deveriam ser livres investigadores
propagam uma ideologia desinformada de uma gama imensa de fatos e
pesquisas bem conhecidos de psicólogos transpessoais e parapsicólogos,
desviando a atenção de tudo o que contraria seu modelo e previsões, de
maneira tão irracional, que chama a atenção de mentes mais livres e in-
dependentes, como Jung, Larry Dorsey, Stanislav Grof e muitos outros
investigadores mais imparciais e atualizados.
Urge resgatarmos a antiga manhã das enigmáticas tecnologias es-
pirituais avançadas de um passado remoto, integrando-as com as con-
tribuições da ciência moderna, nesse momento de crise por que passa
a humanidade.
Num movimento ourobórico, onde a cauda dos conhecimentos do
passado se une à cabeça dos avanços da modernidade, promoveremos
a nova aurora de uma consciência mais ampla do significado maior de
nossa existência, trazendo diretrizes mais construtivas e benéficas para
nossas vidas, trabalhando para salvar a humanidade e o planeta de de-
sastres iminentes e inexoráveis (como a degradação ambiental e o es-
gotamento dos recursos da Terra), pois será esse o rumo inevitável de
nossa história, caso não modifiquemos decididamente as mentalidades
e o rumo das políticas públicas que ainda drenam nossos preciosos re-
cursos e investimentos.
Há uma antiga profecia atribuída aos índios Hopis, do norte do
Arizona, que fala que

“as práticas médicas, ou a espiritualidade dos indígenas americanos per-


deriam seu prestígio, e durante mais de 100 anos os próprios aborígenes
deixariam de confiar nelas. Então chegaria o dia em que os bisnetos e as
bisnetas dos opressores brancos buscariam aos poucos xamãs restantes para
dizer-lhes: ‘Comparti vossos conhecimentos conosco porque quase destru-
ímos a Terra’.”

Estaremos vivendo ou viveremos em breve esses dias? Toda a ar-


gumentação deste livro nos remete à tomada de consciência de que essa
atitude é o que há de mais sensato a se fazer.
Cap. IV – Conclusão – A Revolução da Consciência – Os Passos no Futuro 205

Encerraremos aqui com a “prece” grega, que encontramos no Coro


da peça “As Bacantes”, de Eurípedes; um texto com veladas alusões aos
Mistérios de Dionísio e às propriedades misteriosas do Enteógeno:

“O deus, filho de Zeus,


compraz-se em festins,
ama a Paz, que concede o bem-estar,
a deusa criadora dos jovens.
Em igual medida, a ricos,
e modestos, outorga do vinho
o deleite sem pena.
Mas aborrece aqueles que não cuidam,
de dia ou durante a noite amiga,
de viver o bem-estar,
e de reter, com sensatez, o coração e o espírito
longe dos homens que se põem nas alturas.
Aquilo que a maioria
o vulgo, tem por boa prática,
é isso que eu quereria aceitar.”
POSFÁCIO

________________________ u ____________________________

“Se a ciência física concordar em ser guiada pela ciência espiritual,


como acontecerá um dia, alguns segredos guardados da Antiga
Sabedoria serão restituídos à humanidade.”
White Eagle

Presenciamos em nossos sofridos tempos mudanças absolutamente


radicais de perspectiva. Conforme diz um hino que recebi dentro da luz do
Daime, a revelação dos Mistérios se avizinha, como um dos mais impor-
tantes sinais de que o fim de um ciclo está próximo para a humanidade.
Creio que estamos chegando mais perto do que nunca de deci-
frar os enigmáticos textos mistéricos, a Alquimia, os textos herméticos,
decifrando os enigmáticos evangelhos apócrifos (secretos), gnósticos,
desbravando, conhecendo os segredos bem guardados de profundas e
avançadas formas de religiosidade. Somente o caminho da experiência
interior, da iniciação pessoal, da meditação, do mergulho seguro e siste-
mático no desconhecido, pode nos levar à penetração nesses insuspeita-
dos continentes da alma humana.
Será que somente a alma purificada no vaso hermético de traba-
lhos de alto poder de religação/transformação, e com o fito exclusivo
de trazer estas bênçãos para a humanidade sofredora, poderá adentrar
então os Recintos Sagrados de onde provêm esses solenes e salvíficos
mistérios, e, quem sabe, receber autorização superior de seres mais
adiantados, dos Grandes Mestres capazes de intervir em nosso plano,
para trazer sua avançadíssima tecnologia para os doentes e os aflitos
deste sofrido mundo contemporâneo?
Quando olhamos as profecias do Corpus Hermeticum ou do Hua
Hu Ching, deparando-nos com as melhores descrições e diagnósticos
de nossa época, quando tomamos ciência do alcance e revolução total
de horizontes aportada pela Terapia de Vidas Passadas (a T.V.P.) e toda
a moderna pesquisa da mente realizada pela Psicologia Transpessoal,
penetrando nas mesmas dimensões alcançadas pelas Plantas Sagradas,
pensamos que os novos mapas nos sugerem que existem possibilidades
de que podemos hoje alcançar uma transformação da consciência de
208 A Nova Aurora de uma Antiga Manhã • Philippe Bandeira de Mello

grandes proporções, capaz de trazer soluções eficazes para as principais


crises e problemas que assolam o planeta.
Nos trabalhos com a Ayahuasca, o Peiote, o São Pedro (Wachu-
ma), a Iboga, a Jurema e outros Enteógenos, no Xamanismo, na Arca, na
Barquinha, na União do Vegetal, no Santo Daime ou em outras igrejas
em torno das Plantas, temos flashes de vidas passadas e nos depara-
mos com posturas doutrinárias que consideram a reencarnação como
um processo inexorável da alma, convergindo assim com a Psicologia
Transpessoal e a experiência clínica dos Terapeutas de Vidas Passadas
de todo o mundo.
Quando a alma tem oportunidade de se recordar do que fez no
passado para encontrar e entender as condições com que se deparou
em sua vida atual, saindo da posição de vítima, da qual as terapias con-
vencionais não conseguem lhe retirar, facultando-lhe assumir melhor as
suas responsabilidades kármicas, as rédeas de seu processo de individu-
ação atual e maior consciência da significação espiritual de suas feridas,
ela relativiza suas dores e consolida um patamar muito mais elevado,
avançado de desenvolvimento psíquico.
Como diz a valsa/instrução de Frei Daniel, nosso querido Mestre,
o fundador da Barquinha: “Este amor que nos prende à matéria/ faz a
Alma sofrer pobrezinha/ o amor é a Luz Deus Jesus/ e a Virgem Maria,
Santíssima Rainha.”
O amor que nos acorrenta à matéria é, disfarçado, velado, o Amor/an-
seio por nossa Pátria perdida, os Reinos de Luz de Deus, Pai e Mãe (“Deus
minha Pãe”, como diz Carlos Pertuis, o genial e visionário interno do hos-
pital psiquiátrico do Engenho de Dentro), dos estados primigênios do Ser
de onde viemos e aos quais ansiamos ardentemente retornar. O papel dos
Enteógenos nesta Magnum Opus é simplesmente ainda inapreciável.
E navegando no Oceano de Luz das propriedades misteriosas das
Plantas Sagradas, temos a certeza de que estamos nos dirigindo segura-
mente para lá, levados pela Sagrada Torrente da Vida, até os pés do Pai-
Mãe Celestial, como nos ensina nosso irmão maior, o Mestre Jesus.
O rio da consciência egoica corre para o “Mar” do inconsciente, a to-
talidade da psique. Lá nas profundezas está a “Árvore da Vida” do Ser-To-
tal, o futuro evolutivo da alma, o processo completo de desenvolvimento
anímico, a “Árvore” que une os “três mundos”, espírito, homem e natureza:
copa, tronco e raízes da alma, consciência-ponte entre o “Céu” e a “Terra”,
entre o supraconsciente, o consciente e o subconsciente humanos.
Posfácio 209

Encontramos assim no texto essênio:

“Há um rio, que corre para o Mar Eterno


E à sua beira viceja a sagrada Árvore da Vida
Ali mora o meu Pai, e o meu lar está nele.
O Pai Celestial e eu somos Um.”
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