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Introdução

O objetivo deste artigo é expor o critério


fornecido por Hans-Hermann Hoppe (2006), e
endossado por Frank van Dun (2009), para
determinar quais seres possuem direitos (refiro-
me apenas aos direitos naturais) e responder
algumas questões suscitadas quando se propõe
esse critério.

O critério
Segundo Hoppe (2006) e Frank van Dun
(2009), possuem direitos apenas aqueles seres
que são capazes de realizar trocas de proposições
com reivindicação de validade, i.e., seres com
capacidade argumentativa (ou, para usar a
expressão que van Dun adotou, animal rationis
capax). Antes de continuar, é preciso deixar claro
que esse é o único critério não arbitrário que
existe, pois se baseia na natureza das coisas.
Justifica Hoppe (2006, p. 341):
"A questão do que é justo ou injusto [...]
somente surge na medida em que eu e os outros
somos capazes de realizar trocas de proposições –
de argumentar. A questão não surge para uma
pedra ou um peixe, porque eles são incapazes de
produzir proposições com reivindicação de
validade."

Mais adiante em sua obra, Hoppe (2006, p.


402) torna ainda mais clara a razão de se dever
adotar tal critério como a única fonte do direito:

"A resposta é que a fonte dos direitos


humanos é e deve ser a argumentação enquanto
manifestação da nossa racionalidade. É impossível
afirmar que qualquer outra coisa seja o ponto de
partida para a derivação de qualquer sistema ético
porque afirmá-lo iria novamente pressupor a
própria capacidade argumentativa."

A capacidade argumentativa é uma das


condições necessárias para existir o direito; a
outra condição é a existência de escassez de
recursos. Todo conflito é relativo ao uso de
recursos escassos, e nunca em relação a bens
superabundantes, como o ar, nem a bens não
apropriáveis, como o sol. A existência do direito e
de problemas éticos deriva dessas realidades,
portanto podemos concluir que não se trata de
uma invenção humana, embora dependa da
existência de seres racionais em sociedade (um
indivíduo totalmente isolado não se envolve em
conflitos éticos).
O critério da escassez está para os objetos
apropriáveis assim como o critério da capacidade
argumentativa está para os sujeitos de direito.
Observe que só pode existir direito num mundo
com seres racionais e escassez. O direito não
surge nos seguintes mundos: a) onde todos os
bens são livres e há seres racionais, pois nenhum
recurso é passível de apropriação; b) onde todos
os bens são livres e não há seres racionais, pois
nenhum recurso é apropriável e nenhum ser é
capaz se comunicar racionalmente; c) onde os
bens são escassos e não há seres racionais, pois
nenhum ser é capaz de se engajar em
comunicação racional.
Para deixar ainda mais clara essa verdade,
podemos recorrer a uma analogia com a
existência da divisão de trabalho. Conforme nos
elucidou Ludwig von Mises (2010, p. 198), a
existência da divisão de trabalho se deve aos
seguintes fatores: (a) a desigualdade inata entre
os homens (de capacidades, habilidades,
inclinações, etc.) e a desigual distribuição
geográfica dos fatores naturais de produção, (b) o
fato de que o trabalho no âmbito da divisão de
trabalho é mais produtivo que o trabalho em
isolamento autossuficiente e, por fim, (c) o
reconhecimento desse fato. Tais condições
são dadas, não criadas, e delas surge
necessariamente a divisão de trabalho, que
portanto também é algo dado. Assim é também
com o direito, o qual não é uma invenção, mas
um dado resultante de duas realidades: a
existência de escassez de bens e a capacidade de
argumentar, com a qual surge a possibilidade de
evitar e resolver os conflitos referentes ao uso de
tais bens. O direito existe e deve necessariamente
estar de acordo com a Ética, isto é, as regras
devem possuir uma justificação racional para
serem legítimas.
Bebês e deficientes mentais severos
As dúvidas logo suscitadas quando se
propõe o critério hoppeano é sobre como
justificar os direitos de seres humanos sem
capacidade argumentativa, como bebês e
retardados mentais severos (irracionais).
Analisemos os casos separadamente.
Quanto aos direitos dos bebês, a resposta
parece fácil de ser aceita e é formulada do
seguinte modo. Deve-se supor que os bebês
possuem capacidade argumentativa em potência,
de maneira que um dia se tornarão capazes de
argumentar, pois isso é o natural, o normal,
embora o critério leve em consideração apenas
tal capacidade em ato (se só a houvesse em
potência entre os humanos o direito não
surgiria). Não faz sentido supor que o bebê se
encontre fora do padrão, e qualquer um que
disser isso terá de provar. Supor ex ante o
anormal não parece ser realista. Frank van Dun
chama tal assunção de presunção de
racionalidade (de fato um elemento até mesmo
do a priori da argumentação). Em segundo lugar,
deve-se ter em mente que um direito é algo
absoluto e inalienável por natureza. Assim, se um
indivíduo possui direitos enquanto adulto, isso
significa que ele os possui desde o início de sua
existência, caso contrário ele seria propriedade
dos pais e isso contradiria o axioma da
autopropriedade. Portanto, a princípio, todo bebê
tem direitos.
O caso dos deficientes mentais severos tem
uma resposta bem mais simples e, no entanto,
parece ser difícil de aceitar. Retardados mentais
severos (irracionais) simplesmente não possuem
direitos, porque não dispõem de capacidade
argumentativa (ou seja, a presunção de sua
racionalidade comprovou-se errada). É
importante lembrar aqui que o critério não diz
nada sobre ser humano; logo, pode ser que alguns
seres humanos não tenham direitos e que alguns
seres não humanos tenham, desde que sejam
capazes de argumentar. Desnecessário dizer que
há graus de retardo mental e que,
portanto, existem deficientes mentais (creio que a
maioria) capazes de se comunicar com
sentido (estes conseguem dispor de direitos). É
interessante notar que, mesmo se declararmos
solenemente que seres irracionais têm direitos,
isso não alteraria a natureza das coisas e eles
continuariam sem direitos, porquanto é
impossível para seres irracionais exercê-los, eles
sempre irão precisar de um representante.
Direito envolve responsabilidade, e, como seres
irracionais não podem ser responsabilizados,
também não podem ser jamais considerados
criminosos (pois nada que fazem contém o
elemento da intenção). Se a família maltratar o
ente com debilidade mental severa, ninguém
poderia justificar uma intervenção sem ter de
reivindicar propriedade sobre o corpo do
deficiente, dado que somente a vítima pode dizer
se houve crime (há aí um elemento subjetivo) e
decidir sobre a punição de seu agressor (isso
porque foi a propriedade da vítima que foi
violada, e de ninguém mais, então decidir sobre a
punição é exercer oseu direito absoluto de
propriedade). Na prática, a crença ou não em
direitos de seres irracionais resultaria no mesmo
cenário. O máximo que se conseguiria realizar
seria agir como se eles tivessem direitos, numa
simulação cujos envolvidos conduziriam a vida
do humano irracional conforme uma vontade
postulada que eles mesmos atribuiriam a este.
Questões éticas somente surgem num contexto
de seres racionais.
Em termos de praxeologia, todo ser
irracional é um não agente. Não é capaz,
portanto, de compreender o significado da ação,
pois apenas agentes sabem o que é agir; sendo
assim, não é capaz também de compreender o
significado da interação, no sentido de ação em
sociedade, em oposição ao mero comportamento
interativo, como define Konrad Graf (2011). Ele é
incapaz, desse modo, de participar ativamente no
âmbito das interações humanas, do qual o direito
faz parte. Dizer, então, que seres irracionais não
possuem direitos parece bem uma afirmação
meramente descritiva, uma constatação factual,
certamente não um valor, menos ainda uma
proposição do tipo dever-ser.
Uma outra dúvida relacionada ao critério
hoppeano é sobre como determinar que um ser é
capaz de argumentar. Isso, no entanto, não é um
problema ético, mas apenas técnico, e certamente
não diz respeito à maioria dos seres humanos,
que indubitavelmente são capazes de
argumentar. O critério já está justificado, e, se há
dúvida, por exemplo, se um macaco mutante é
capaz de argumentar, isso não pode ser resolvido
no curso de uma argumentação filosófica entre
homens, mas o macaco é que deverá demonstrar
possuir tal capacidade. De modo semelhante, se
um acusado é realmente culpado pelo crime de
que o acusam, isso só pode ser respondido com o
uso de provas, evidências e testemunhas, mas não
com uma argumentação a priori. As categorias
estão dadas, agora basta verificar o que nelas se
encaixa.
Às vezes é possível perceber um animal
tentando se comunicar, e isso poderia
erroneamente ser tomado como uma prova de
que animais possuem direitos. Deve ficar claro,
no entanto, que tais comportamentos não
caracterizam efetiva comunicação no sentido
aqui relevante do termo, enquanto manifestação
da racionalidade. Saber ler e manipular os
comportamentos animais é diferente de se
engajar em um real diálogo com eles, uma troca
de proposições com reivindicação de validade.

Conclusão
Por certo o leitor levará consigo ainda
algumas dúvidas sobre certas premissas adotadas
neste artigo e não explicadas detalhadamente,
para manter-se restrito ao seu propósito; no
entanto o estudo da ética argumentativa, diante
dessas observações, pode agora ter sido facilitado
quanto ao critério da capacidade argumentativa
para possuir direitos.

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