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CRISTOLOGIA

DO
NOVO TESTAMENTO
OSCAR CULLMANN

CRISTOLOGIA
DO
NOVO TESTAMENTO

Tradução
DANIEL DE OLIVEIRA
e
DANIEL COSTA

2002

Editora Custom
© Copyright 2002 by Editora Custom

Título original: Christologie du Nouveau Testament

O Texto em inglês recebeu o primeiro prémio de 1955 da Christian Research


Foundation de Nova York.

Supervisão e produção editorial:


Daniel Costa

Layotit e arte final:


Comp System - (Oxxll) 3106-3866

Diagramação:
Pr. Regino da Silva Nogueira

Capa:
James Cabral Valdana - (Oxxll) 9133-2349

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À Universidade de Edimburgo
como testemunho de rrconhecimento
pelo título de Doctor ofDivinity honoris causa.
ÍNDICE

PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA 11

PREFÁCIO DO AUTOR 15

INTRODUÇÃO
O problema cristológico no cristianismo primitivo ff
1. O papel da cristologia no pensamento teológico dos pri-
meiros cristãos 17
2. Em que consiste o problema cristológico no Novo Testa-
mento? 19
3. O método a seguir 24

PRIMEIRA PARTE
Os títulos cristológicos referentes à obra terrena de Jesus. 29

CAPÍTULO 1 - Jesus, o Profeta 31


1. O profeta do fim dos tempos no judaísmo 32
2. O profeta do fim dos tempos segundo o Novo Testamento 44
a) João Batista 44
b) Jesus 51
3. Jesus o "verdadeiro profeta", na concepção judaico-cristã
tardia 61
4. "Jesus o profeta" como solução do problema cristológico
do Novo Testamento 66

CAPÍTULO II-Jesus, o Servo sofredor de Deus 75


1. O Ebed lahweh no judaísmo 76
8 Oscar Cullinann

Ebed lahweh 86
edlahweh no cristianismo primitivo... */
do Ebed " hweh como solução do pro _
cristológico^p^. R ^f^ri

CAPÍTULO III - Jftus, o Sumo Sacerdote ^^_


1. O Sumo Sacerdote, figura ideal do judaísmo
2. Jesus e a concepção de Sumo Sacerdote ^j
3. Jesus o Sumo Sacerdote, segundo o cristianisrn
tivo ^^í

SEGUNDA PARTE MJ*


Os títulos cristológicos referentes à obra futura de Jesu T
Pequeno Intróito ^ ^ ^

CAPÍTULO I - J e s u s i Messias 9 lfll


1. O Messias no jKaísmo
2. Jesus e o Messias 1 J^.
3. A de primitiva e o Messias ir

CAPÍTULO II - Jesua^Kilho do Homem -I^H


1. O Filho do Homem no judaísmo ^^_
2. Jesus e a id de mlho do Homem :, ^^
3. A cristologia do íjffho do Homem foi apresentada de uma ^^f
maneira particular no seio do cristianismo p mitivo?.... ^^H
4. A noção de "Filho do Homem" segundo o apóstolo Piflro 2á^M
5. O Filho do Homem nos outros escritos do Novo Tes _ .
mento 2í^l
6. O Filho do Homem no judeu-cnstiamsmo e em 24'^™

TERCEIRAPARTE ^
Os títulos cristológicos referentes à obra presn Jesus 2^P
Pequeno Intróito ... 255
CRISTOLOGIA T>O JNOVO TESTAMENTO • 9

CAPÍTULO I - Jesus o Senhor (Kyrios) • •. 257


1. O título "Kyrios" nas religiões helenísticas orientais e no
culto ao imperador 257
2. O "Kyrios" no judaísmo 263
3. "Kyrios Iesous" e o cristianismo primitivo 268
4. "Kyrios Christos" e a divindade de Cristo 305

CAPÍTULO II - Jesus o Salvador 311


1. O título "Sotér" no judaísmo e no helenismo 312
2. Jesus, o Salvador, no cristianismo primitivo 314

QUARTA PARTE
Títulos referentes à preexistência de Jesus 321
Pequeno Intróito 323

CAPÍTULO I - Jesus, o "Logos" 327


1. O "Logos" no helenismo 329
2. O "Logos" no judaísmo 333
3. A ideia de "Logos" aplicada a Jesus 338

CAPÍTULO II - Jesus, o Filho de Deus 353


1. O "Filho de Deus" no Oriente e no helenismo 354
2. O "Filho de Deus" no judaísmo 356
3. Jesus e o título "Filho de Deus" 359

4. A fé do cristianismo primitivo em Jesus, Filho de Deus 379

CAPÍTULO III - Jesus chamado "Deus" 399

CONCLUSÃO

Perspectivas da crístologia do Novo Testamento 411

ÍNDICE DE AUTORES CITADOS 429

ÍNDICE DE REFERÊNCIAS BÍBLICAS 433


PREFÁCIO À EDIÇÃO BRASILEIRA

Considero grande privilégio e imensa satisfação prefaciar a


primeira edição em língua portuguesa de Die Christologie des
Neuen Testaments (Cristologia do Novo Testamento), do famoso
teólogo franco-alemão Oscar Cullmann. Com toda certeza, a lon-
ga vida do erudito alsaciano (1902-1999) foi deveras prolífica e
extremamente relevante para o desenvolvimento da teologia bíbli-
ca, particularmente no que diz respeito aos estudos neotestamen-
tários.
Na verdade, Cristologia do Novo Testamento faz parte de uma
tríade originária da pena deste grande teólogo de Estrasburgo.
A primeira obra é Christus und die Zeit (Cristo e o Tempo), de
1946; já em 1957 foi publicada Die Christologie des Neuen Tes-
taments e, por fim, em 1965 surge Heil ais Geschichte (Salvação
como história). Além dessa famosa tríade, o professor Cullmann
também escreveu outras obras e diversos artigos que marcam a
história da teologia contemporânea.
Cullmann é reconhecidamente um teólogo bíblico. Seu pen-
samento interage principalmente com Albert Schweitzer, C. H.
Dodd e Rudolf Bultmann. Rejeitando o liberalismo do final do
século XIX e sua consequente dependência de escolas filosóficas
que marcaram época, Cullmann procurou construir uma teologia a
partir do texto bíblico, isto é, da exegese. Seus esforços foram
muito importantes para a construção de uma teologia bíblica capaz
de ouvir o texto, procurando esquivar-se das categorias sistemáti-
cas clássicas e das diversas dogmáticas confessionais.
A elaboração do renomado professor de tantas escolas teoló-
gicas francesas e suíças elegeu a história como categoria essencial
da Teologia Bíblica do Novo Testamento. Seu pensamento pode
\2 Oscar Cullmann

ser classificado como uma teologia da história. Conforme Cullmann,


as Escrituras Sagradas podem ser melhor interpretadas enquanto
Heilsgeschichte, isto é, como História da Salvação. A postura de
Cullmann é nitidamente antimetafísica e rejeita toda e qualquer
teologia "ontológica". Para ele o homem só pode conhecer a Deus
por meio da experiência da história, isto é, em seu aspecto dinâmi-
co. Essa visão do mestre de Estrasburgo procura resgatar a impor-
tância do caráter hebraico das Escrituras, à medida que enfatizou
categorias como o tempo, a salvação e a dialética.
O pensamento de Cullmann é definitivamente marcado pelos
enfoques cristológico e escatológico. Em sua abordagem históri-
ca, Cullmann vê a história de Cristo como o centro da história,
situada entre a história de Israel e a história posterior a Cristo.
A ênfase na centralidade de Cristo é tamanha que podemos dizer
que a teologia do Novo Testamento de Cullmann corresponde à
sua cristologia. A centralidade de Cristo no tempo leva-nos neces-
sariamente à escatologia. A perspicácia do exegeta da Alsácia des-
taca que a escatologia faz parte da essência da mensagem do Novo
Testamento e define a tensão entre o "já" e o "ainda não" escatoló-
gicos como marca da história posterior a Cristo, que se encerrará
em sua vinda.
Estou absolutamente seguro de que a publicação desta obra
será de particular importância para o pensamento teológico brasi-
leiro incipiente. Tal segurança é bem fundamentada. Em primeiro
lugar, a busca de uma teologia bíblica que enfatize a unidade da
mensagem bíblica cairá em terreno fértil, pois a comunidade cris-
tã brasileira jamais poderá desfrutar de uma teologia filosófica que
pratica uma hermenêutica de suspeita em relação ao texto bíblico.
Em segundo lugar, ainda que passível de críticas, o centro da teo-
logia bíblica para Cullmann é Cristo na história. Além de parecer-
me uma excelente solução para o problema do centro da mensa-
gem bíblica, Cullmann assim esquiva-se de tendências existen-
cialistas subjetivas, o que propiciará um frutífero diálogo com o
pensamento teológico brasileiro, que tem buscado expressões his-
tóricas. Finalmente, o nome de Cullmann representa tolerância.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 13

Trata-se de um teólogo admirado por muitos evangélicos conser-


vadores por afirmar a centralidade das Escrituras. Todavia, Cullmann
também procurou dialogar com o pensamento católico, sendo muito
estudado e até elogiado pelos eruditos do contexto católico-roma-
no. Isso significa que a fonte teológica alsaciana tem potencial
suficiente para ser prolífica nos mais diversos ambientes teológi-
cos e confessionais. Resta-nos saber se essa fecundidade teológi-
ca manifestar-se-á "já" ou "ainda não". Somente o tempo dirá.

LUIZSAYÃO

Editor Académico de Edições Vida Nova


Coordenador de tradução da Nova Versão Internacional da Bíblia
Abril de 2001
PREFÁCIO DO AUTOR

O estudo que por fim hoje publicamos tem sido precedido


por um certo número de "edições" inéditas que não deixamos de
corrigir e desenvolver em nossos cursos. Aqueles alunos <due
seguiram o curso em Estrasburgo há vinte anos terão, sem dúvida,
dificuldade em reconhecê-lo em sua forma atual, embora o pl^ 1 0
se^a, em linhas cerais, o mesmo de então. Paralelamente a outras
publicações nossas, temos trabalhado sem cessar, desde então,na
cristologia do Novo Testamento. Estes outros trabalhos têm fecun-
dado nossas pesquisas em cristologia; mas aqueles que os conhe-
cem poderão constatar que esta influência tem sido recíproca.
Os capítulos relativos ao "Messias" e ao "Filho do Home m "
foram, já em 1955, tema de conferências pronunciadas YioMcCorniÍck
College de Chicago por ocasião das Zenos Lectures. Fazendo u m a
exceção, a Fundação consentiu em renunciar à publicação separa-
da destes dois capítulos em vista da publicação atual da obra inteira
que aparece também na língua inglesa.
Não necessitamos prescrever a nossos leitores e críticos a ma(iei-
ra de compreender nosso livro; queríamos, contudo, pedir a uiis e
a outros autorização para expressar um desejo. Pediremos, atites
de tudo, que os leitores não considerem este estudo, como talvez
poderiam sentir-se tentados a fazê-lo, tão-somente como uma obra
de referência sobre a cristologia do Novo Testamento; ao meii°s>
que não o façam sem terem lido a obra inteira, já que as divei'sas
partes, como temos de recordar repetidamente, estão em estrita
relação entre si. Quanto aos críticos que queiram fazer uma rese"
nha desta obra, queremos de antemão assegurar-lhes que aceitare-
mos com reconhecimento suas observações, especialmente qu ari -
• 16 Oscar Ctãlmann

do seu ponto de vista for diferente do nosso. Mas, atrevemo-nos a


esperar que tenham por bem não criticar nossas teses com afirma-
ções categóricas e veredictos desprovidos de fundamento exegético;
esperamos, sobretudo, que não nos encaixem dentro de tal ou qual
categoria, condenada por eles a priori - nem que, por outro lado,
nos reprovem por não termos formado fileira com determinada
escola moderna ou antiga; pois, se se examina nosso livro a partir
do ponto de vista de sua "tendência" teológica, seguramente
nenhuma das "escolas" conhecidas ficará satisfeita.
Nosso livro é um trabalho exegético. Já manifestamos em
muitas ocasiões nossa maneira de compreender a exegese. Renun-
ciando a considerações metodológicas profundas - tão apreciadas
pela nova geração, sobretudo na Alemanha - nos limitaremos a
sublinhar aqui que não reconhecemos outro método senão o histó-
rico e filológico, este demonstrado pela experiência; nem outra
atitude com respeito ao texto além de uma inteira disposição de
escutá-lo honestamente, inclusive quando o que nos disser seja
estranho ou contradiga nossas, determinadas e muito queridas, con-
cepções. Para compreender e explicar o texto, faremos, pois, abs-
tração de nossas "opiniões" filosóficas e teológicas pessoais e nos
negaremos a desqualificar, como agregados secundários, aquelas
afirmações neotestamentárias que não se enquadrem com ditas
opiniões.
No que concerne à elaboração de nosso texto, recebemos uma
ajuda particularmente preciosa e desinteressada. Para o texto ale-
mão, do Sr. Karlfried Frõhlich; para o texto inglês, daProf Shirley
Guthrie e do Prof. Charles Hall (E.U.A.), e para a edição francesa,
do professor J. J. von Allmen e da Sra. D. Appia.
Que todos estes recebam nossa sincera gratidão.

Chamonix, setembro de 1958.


INTRODUÇÃO

O PROBLEMA CRISTOLÓGICO NO
CRISTIANISMO PRIMITIVO

Em primeira instância, perguntaremos que lugar ocupa a


cristologia no pensamento teológico dos primeiros cristãos; tenta-
remos em seguida definir o problema cristológico do Novo Testa-
mento; e, finalmente, falaremos do método com que abordaremos
este problema nos capítulos seguintes.

1. O PAPEL DA CRISTOLOGIA NO PENSAMENTO TEOLÓ-


GICO DOS PRIMEIROS CRISTÃOS

Se a teologia é a ciência que tem por objeto a Deus (Geóç), a


cristologia é aquela que tem por objeto a Cristo, sua pessoa e sua
obra. Geralmente se considera a cristologia como uma subdivi-
são da teologia (tomada em seu sentido etimológico). Este cos-
tume, com frequência tem influído na imagem que historiadores
e teólogos nos dão da fé dos primeiros cristãos: começam por
expor suas ideias sobre Deus, e não mencionam, a não ser em
segundo lugar, suas convicções cristológicas. Tal é a ordem geral-
mente seguida nos antigos tratados de teologia do Novo Testa-
mento.
É tentador adotar esta ordem uma vez que ela é seguida pelas
posteriores confissões de fé. Em consequência disso, se crê que a
Igreja primitiva se interessou em primeiro lugar por Deus, e só em
segundo lugar por Cristo. Na realidade, não é assim. A extensão
desigual dos dois artigos, por si só, bastaria para pôr o fato em
18 Oscar Cullmann

evidência. Por outro lado, pode-se demonstrar que a ordem trinitária


das confissões de fé posteriores: Deus, Cristo, Espírito Santo era
desconhecida para as fórmulas mais antigas que resumem a fé cristã.
Estas apresentam antes uma tendência exclusivamente cristológica:
não havia então, como ocorreria nas confissões de fé posteriores,
uma separação entre o artigo primeiro e o segundo.1 Desta divisão
ulterior nasceu a opinião errónea segundo a qual a obra de Cristo
não teve, aos olhos dos primeiros cristãos, nada a ver com a Cria-
ção, apenas com a Redenção. Para estes era impossível imaginar o
mundo sem relacioná-lo à sua fé em Jesus Cristo. Ademais, quase
todas as fórmulas mais antigas se compõem de um só artigo: o
cristológico. Uma das raras confissões de fé do Novo Testamento
que mencionam juntamente a Cristo e a Deus o Pai, se encontra
em 1 Corínttos 8.6 e, coisa característica, ,gnora a disttnção entre
Deus Criador e o Cristo Redentor; todavia, fala da Criação nos
dois artigos: "um só Deus, o Pai, de quem vêm todas as coisas e
por quem somos, e um só Senhor Jesus Cristo, por quem todas as
coisas são, e por quem nós também somos." Um e outro estão,
pois, na origem da Criação. A diferença não está radicada senão
nas preposições: "para Deus", è^ e eíç; e para Cristo, ôiá: "por
quem todas as coisas são" (Õi'oí> xà Jiávta). Cristo, mediador da
Criação: este pensamento não é expresso só nesta antiga fórmula,
pois podemos segui-lo por todo o Novo Testamento (cf. João 1.3;
Cl 1.16). Encontra sua expressão mais vigorosa na Epístola aos
Hebreus (1.10), onde se atribui positivamente a Cristo a "funda-
ção da terra", e onde os céus são designados como "a obra de Suas
mãos".
Em outras confissões de fé muito antigas, onde se trata de
Deus, este não aparece como o Criador mas como o "Pai de Jesus
Cristo". Apresentam-no como aquele que ressuscitou a Cristo (Po-
licarpo 2.1 ss.). Isso prova que o pensamento teológico dos pri-
meiros cristãos parte de Cristo e não de Deus.

Cf'. O. CULLMANN, LÉS premières Confessions de foi chrétiennes, Paris, 2a ed. 1948.
O KISTOl.l Hi]A l í í ) M O V O T 1:3TAMENTO 19

1'IKIL- sc, igualmente, mostrar que todos os elementos que nas


i'inifissões de le posteriores estão vinculados ao Espírito Santo, no
icn/eim artigo, são mencionados nas fórmulas antigas como fun-
ções direlas de Cristo; por exemplo, o perdão dos pecados ou a
ressurreição dos mortos.2
Recordemos ainda que na celebre fórmula litúrgica no fim da
segunda Epístola aos Coríntios, a ordem adotada não é: Deus, Cris-
to, Espírito Santo, mas: Cristo, Deus, Espírito Santo. "A graça de
Nosso Senhor Jesus, o amor de Deus e a comunhão do Espírito
Santo" (2 Co 13.13).
As antigas confissões de fé são particularmente importantes
para o conhecimento do pensamento cristão primitivo: sendo um
resumo das convicções teológicas dos primeiros cristãos, nos mos-
trarn a quais pontos davam ênfase; quais verdades consideravam
primordiais e quais outras lhes pareciam decorrer destas. Daí se
deduz que a teologia cristã primitiva é quase exclusivamente uma
eristologia. Deste ponto de vista, a igreja antiga não se distingue
íla igreja nascente, ao consagrar durante muitos séculos seu inte-
resse às questões cristológicas.
Porém, as discussões posteriores esboçam o problema cristo-
lógíco nos mesmos termos que o Novo Testamento?

2. EM QUE CONSISTE O PROBLEMA CRISTOLÓGICO


NO NOVO TESTAMENTO?

Temos afirmado que a Cristologia é a ciência que tem por


objeto a pessoa e a obra de Cristo. Necessitamos agora perguntar
em que medida isto já constituía um problema para os primeiros
cristãos e em que consistia. As discussões cristológicas posteriores
se relacionam todas à pessoa de Cristo, à sua natureza: por um

(>p. CÍL, p. 18ss, Outro tanto ocorre com o bati sino que, nas confissões de fé féste-
riores, figura no terceiro artigo como batismo da igreja, enquanto que na fórmula
utilizada por INÁCIO DE ANTIOQUIA (Esm. 1.1) aparece como o batismo de
.//',wti por João; da mesma forma Ef 18.2: "foi batizado a fim de purificar a água por
seu sofrimento" (cf. abaixo, p. 95 s.).
• 20 Oscar Cullmann

lado, a sua relação com Deus; por outro, a união existente entre a
sua natureza divina e a sua natureza humana. Se não quisermos
correr o risco de distorcer, desde o princípio, a perspectiva em que
se apresenta o problema cristológico no Novo Testamento, temos
que isolar estas discussões posteriores. Do ponto de vista históri-
co, temos de reconhecer por certo que, num dado momento, a igreja
encontrou-se frente à imperiosa necessidade de abordar os proble-
mas específicos que resultavam da helenização da fé, da aparição
e difusão de doutrinas gnósticas, assim como do arianismo, nesto-
rianismo etc. A igreja viu-se obrigada a abordar a questão das duas
naturezas e a tentar dar-lhe uma resposta. Verdade é que se inten-
tou resolver o problema apoiando-se nos escritos neotestamentários
voltando-se, não obstante, para uma direção que simplesmente já
não corresponde mais à maneira em que o problema é afirmado
neles.
« Com efeito, no Novo Testamento não se fala quase nunca da
pessoa de Cristo sem que se trate, ao mesmo tempo, de sua obra.
Inclusive no prólogo do Evangelho de João, onde se diz que "o
Logos estava com Deus e era Deus", se acrescenta imediatamente
que por este "Logos" "todas as coisas foram feitas"; o que signifi-
ca que ele é o mediador da criação. Além disso, se este prólogo
fala do ser do Logos é somente para poder dizer, ao longo dos
vinte e um capítulos do Evangelho, o que ele fez como Verbo encar-
nado. Quando o Novo Testamento pergunta "quem é Cristo?" isto
não significaria jamais, exclusiva e principalmente, "qual é sua
natureza?" mas, antes de tudo, "qual é a sua função?".3 Assim, as
diversas respostas que o Novo Testamento dá a esta questão e que
se expressam pelos diferentes títulos que examinaremos sucessi-
vamente se referem sempre, ao mesmo tempo, à sua pessoa e sua

' Ao esboçar esta questão não concebemos a função de Cristo à maneira de


BULTMANN, como um simples acontecimento que só ocorreria no encontro entre a
pregação e nós mesmos, mas como um acontecimento cristológico ontológico. Cf. a
este propósito, KARLBARTH, RudolfBultmann, ein Verstichihnzuverstehen. 1952.
p. 16 ss., e O. CULLMANN, "Le mythe dans les écrits du Nouveau Testameiu",
Numen I, 1954, p. 120 ss.
C 14ISII >! >JiiíA IX) pJí >V< J I 1\S T A M E N T O _21

oina, Isiu i'* verdade inclusive naqueles títulos que têm por objeto
0 ('nslo preexistente: Logos, t''ilho de Deus, Deus, que examina-
HMIIOS na última parle deste estudo. Veremos, portanto, que estes
hlulos esboçam, assim, implicitamenle, a questão da relação entre
1 Vtis e a pessoa e orrgem de (Visto. No entanto, mesmo aqui não
se pode lalar propriamente do problema corno se referindo a uma
questão de "naturezas".
I lá, pois, uma diierença entre a maneira em que os prrmeiros
cristãos, por um lado, e a igreja antiga, por outro, abordaram o
problema cristológico. Temos de reconhecer, entretanto, que, no
conflito que recebeu uma solução provisória no Concílio de Cal-
cedônia, Atanásio e outros defensores da ortodoxia falam da natu-
reza de Cristo para sublinhar seu alcance soteriológico, ou seja,
para mostrar que a maneira em que se fala da salvação que Ele
trouxe depende do modo em que se concebe sua natureza. Desta
maneira é que se toma em consideração sua obra; porém, em uma
perspectiva que já não é a do Novo Testamento.
A necessidade de combater os hereges levou os Pais da igreja
a subordinarem a concepção da pessoa e da obra de Cristo à ques-
tão das "naturezas". A respeito do Novo Testamento há, pois, uma
mudança no ponto de vista, justificada, sem dúvida, pela luta con-
11 a a heresia, o que não impede que a discussão sobre as duas "natu-
rezas" seja, em última análise, um problema grego e não um pro-
blema judaico e bíblico.
Para responder à pergunta: "Quem é Jesus?", os primeiros cris-
tãos podiam recorrer a certas ideias correntes no judaísmo e, em
particular, na escatologia judaica. É por isso que a questão cristo-
lógica se põe, nas origens da igreja, do seguinte modo: Em que
medida Jesus cumpriu o que nestas ideias está implícito? Em que
medida sua obra as ultrapassa? Em que pontos entra em contradi-
ção com as ideias cristológicas que o judaísmo tardio parece pos-
tular? E quando os primeiros cristãos, vivendo num meio helenísti-
co, respondem ao problema cristológico recorrendo a um título que,
já entre os gregos, designava um mediador divino, ter-se-á que
• 22 Oscar Culhnann

perguntar se a igreja primitiva atribuía a esse título as mesmas ideias


que o paganismo de então.

t De qualquer forma, temos que rejeitar a opinião tão frequente,


segundo a qual o cristianismo primitivo necessariamente precisou mode-
lar sua cristologia de acordo com os esquemas existentes, seja no judaís-
mo, seja no helenismo. Quando se afirma tal coisa leva-se ao absurdo o
que há de perfeitamente legítimo na história comparada das religiões;
mas, sobretudo, se faz total abstração da consciência que Jesus tinha de
si mesmo, o que é inadmissível do ponto de vista científico. Com efeito,
devemos considerar a priori, como coisa possível e até provável, que
Jesus tenha trazido, por sua doutrina e por sua vida, algo novo: foi daí
que os primeiros cristãos partiram em suas primeiras tentativas de expli-
car a pessoa e a obra de Jesus. Devemos, igualmente, considerar a priori
possível, e até provável, que a experiência religiosa, nascida do seu
encontro com Cristo ou da certeza de Sua presença, a despeito de suas
analogias automáticas com outras experiências religiosas, apresente, não
obstante, traços particulares até então desconhecidos. Descartar de
entrada esta possibilidade, esta probabilidade, é adotar um preconceito
que contradiz os princípios da ciência histórica

Durante a vida de Jesus, a questão cristológica já aparece


como um problema, formulado classicamente pelo próprio Jesus
em Mc 8.27-29. Trata-se de um texto que logo teremos de estu-
dar um pouco mais de perto; aqui ele só nos interessa pela manei-
ra que esboça o problema. "No caminho, Jesus pergunta aos seus
discípulos: Quem o povo diz que eu sou? Eles responderam: uns,
João Batista; outros, Elias; outros, um dos profetas. E vós - Ele lhes
pergunta - quem dizeis que eu sou? Pedro lhe responde: Tu és o
Cristo."
O problema já existia, por um lado, para as pessoas do povo
e, por outro, para os discípulos que viviam com Jesus, que o "viam
com seus olhos e o ouviam com seus ouvidos". Constatamos que
entre o povo e os discípulos se davam diversas respostas e que
todas - e isto justifica a maneira em que o presente livro trata o
problema - se expressam por títulos conhecidos, cada um dos quais
designa uma função, uma obra a realizar. Todas estas respostas
OuSTOMJCIA IM) N O V O T [ISTAMENTO 23

lêm islo cm comum: que não se limitam a colocar Jesus em uma


cerla categoria humana, mas que buscam, ademais, explicar o que
há de único nele. Pois bem, é somente islo, c não o estado civil de
Jesus, o que se tem de levar em conla quando se trata do problema
cristológico. Quando chamam a Jesus de Rabi, ou Mestre, ou
Médico, isso é importante para a história de sua vida, mas não
para o problema cristológico.4 É verdade que ao concebê-lo como
"profeta", parece estarmos classificando-o dentro de um certo tipo
humano. Na realidade, veremos que não se trata de uma intitulação
genérica, mas de um título que contribui para uma das soluções da
questão cristológica.
Os títulos mencionados em Mc 8.27 ss. não são - há muitos
mais - os únicos que o Novo Testamento atribui a Jesus. Há outros
mais que pretendem expressar o que Ele é e em que consiste Sua
obra. Se Jesus é designado no Novo Testamento de maneiras tão
diversas, deve-se a que nenhum destes títulos pode, por si só, abran-
ger a totalidade de sua pessoa e de sua obra. Cada um deles indica
só um aspecto particular da pessoa de Cristo. Só estudando todos
os títulos atribuídos pelos primeiros cristãos a Jesus se poderá
fazer uma ideia da "cristologia" do Novo Testamento. Nem
tampouco podemos perder de vista que todos os títulos encontram
sua unidade na pessoa de Jesus.

Quando empregamos neste estudo as palavras "cristologia" e


"cristológico", não as tomamos em seu sentido restrito, relacionando-as
a um só título, o de Cristo-Messias; ao contrário, as tomamos em seu
sentido lato, abrangendo tudo o que concerne àvida e obra de Jesus Cris-
to, no que elas têm de único.

E. LOHMEYER, Galilãa und Jerusalém, 1935, p. 73 observa, é verdade, que no


Evangelho de Marcos o título SiôáotcotA,oç se encontra ''quase que unicamente onde
não se trata de classificá-lo como rabino, mas, pelo contrário, de distingui-lo des-
tes". Isto é exato; porétn, em tais passagens, o título de "mestre" é só o atributo de
outro título, ao qual consagraremos nosso primeiro capítulo: "O profeta'". Ver a este
respeito C. H. DODD, "Jesus Ais Lehrer und Prophet", Mysterium Christi, editado
por G. K. A. BELL e A. DEISSMANN, 1931, p. 69 ss.
•24 Oscar Culbnaiin

« 3. O MÉTODO A SEGUIR

Buscamos atingir uma visão de conjunto das concepções


cristológicas do Novo Testamento; não obstante, procederemos
de uma maneira puramente analítica. Não consagraremos um
capítulo à cristologia de cada um dos autores do Novo Testamen-
to, porém, examinaremos separadamente cada um dos títulos cristo-
lógicos, precisando seu significado através do conjunto dos escri-
tos neotestamentários.5
Será necessário, no entanto, precisar primeiramente o sentido
que possuem no judaísmo ou, dado o caso, na história geral das
religiões, em particular, no helenismo. E quando chegarmos ao
Novo Testamento será sempre razoável, pelas razões já aponta-
das, que nos perguntemos, antes de tudo, se e em que sentido tal
ou qual título dentre eles foi utilizado por Jesus para designar-se a
si mesmo, questão que nos parece justificada ainda hoje, depois
de todos os trabalhos da Formgeschichte. Averiguaremos então
como os diversos autores dos escritos cristãos entenderam ditos
títulos.

Com efeito, nos parece que chegou a hora de colocarmos novamen-


te a questão do Jesus histórico, partindo dos resultados obtidos pela
Formgeschichte'' Foi com razão, sem dúvida, que esta questão foi dei-
xada de lado, conscientemente, no curso dos últimos decénios; mas seria
um erro, assim nos parece, continuar a descuidá-la. Saber que osEvange-

Este método, que consiste em tomar como ponto de partida os títulos cristológicos
como tais e tentar em seguida estabelecer as diferenças mediante a análise, parece-
nos mais apropriado que aquele seguido, por exemplo, porG. SEVENSTER em sua
Christohgie van het Nieuwe Testament, 2a ed., 1948. Contudo, Sevenster se esforça
sempre em seu interessante trabalho, que trata sucessivamente da cristologia de
escritos particulares do Novo Testamento, por captar "a unidade e a diferença" nas
concepções neotestamentárias da pessoa de Cristo.
Esta maneira de ver parece impor-se hoje cada vez mais. Comparar E. KÀSEMANN,
"Das Problem des Historischen Jesus (ZThK 51.1954, p. 125 ss.);T. W. MANSON,
"The Life of Jesus. Some Tendencies in Present Day Research" (The Background of
the New Testament and its Eschatology, Mélanges C. H. DODD, 1956, p. 211 ss);
E. FUCHS, "Die Frage nach dem historischen Jesus" (ZThK 53, 1956, p. 210 ss).
C-RISTOLOGIA DO INOVo TESTAMENTO 25

lhos são testemunhos da fé, e que a fé em Cristo da igreja primitiva foi a


criadora da tradição evangélica, não deve fazer-nos cair em um ceticis-
mo histórico absoluto a ponto de levar-nos a não utilizá-los como fonte
histórica. Pelo contrário, teremos de utilizar esta fé primitiva como meio
para melhor compreender a realidade histórica.7
No entanto, para penetrar até a consciência que Jesus tinha de si
mesmo, necessitaríamos recorrer ao método da "história formativa" para
julgar o valor da tradição evangélica. Devemos, pois, tentar distinguir as
passagens em que os evangelistas expressam visivelmente sua opinião
pessoal daquelas outras nas quais nos transmitem os logia autênticos de
Jesus. Por exemplo, se num Evangelho transparece um certo desacordo
entre os títulos cristológicos utilizados pelo autor em sua narração e os
que Jesus aplica a si mesmo, temos aí um critério objetivo.
Ao examinar se Jesus deu a si mesmo tal ou qual título, deveremos
nos precaver de todo a prior,, inclusive daquele que encontramos em
R. Bultmann.Fiel àsua posição anterior ele afirma, em suaThéologie du
Nouveau Testament (1953, p. 25 ss.), que Jesus jamais considerou-se
uma espécie de plenipotenciário divino ÍM<generis. É por isso que - anu-
lando assim, por esta negação, a neutralidade histórica proposta pela
Formgeschiçhte - ele pode negar toda influência decisiva do ensinamento
do próprio Jesus na cristologia da igreja antiga. Para ele, Jesus limitou-se
a anunciar a Deus, o Pai, e seu Reino. Bultmann se encontra, então, defi-
nitivamente de acordo com a fórmula de Harnack, segundo a qual Deus o
Pai, e não o Filho, pertence ao conteúdo do Evangelho. Porém, diferente-
mente de Harnack, opina que semelhante constatação não influi em nada
na nossa fé em Cristo. Nós podemos, contudo, ter Jesus como o Messias
e participar, assim, das convicções cristológicas da igreja primitiva.
Ao adotar esta posição, Bultmann vai muito mais longe que o antigo
liberalismo. Porém, devemos perguntar-nos se não é uma ilusão de sua
parte crer que temos a mesma fé que a igreja nascente por professarmos
as mesmas convicções cristológicas se, por outro lado, afirmamos que o
próprio Jesus não tinha nenhuma "consciência messiânica1 \T\]is, de fato,
a fé em Cristo dos primeiros cristãos pressupõe a convicção de que Jesus
teve a si mesmo por "Filho do Homem", o Servo de Deus; e que atribuiu
a si cada um dos títulos cristológicos de que temos de falar ainda. Se a
igreja primitiva creu na messianidade de Jesus é porque creu que o pró-

Sob este aspecto, o excelente livrinho de G. BORNKAMM, Jesus, 1957, nos parece
que leva demasiadamente longe o cepticismo ao defender que o Jesus da história não
atribuiu a si mesmo função cristológica alguma.
26 Oscar Cullmann

prio Jesus se havia considerado o Messias. Deste ponto de vista, a fé em


Cristo de Bultmann é radicalmente diferente da fé da igreja Primitiva.

Os títulos cristológicos que o Novo Testamento menciona são


muito numerosos, e cada um deles mostra um aspecto particular
do problema. Para expressar plenamente a riqueza infinita que se
manifestou na pessoa de Cristo, não bastava uma só designação de
sua dignidade. Enumeraremos aqui as mais importantes: profeta,
Sumo Sacerdote, Mediador, Servo de Deus, Cordeiro de Deus,
Messias, Filho de Davi, Filho do Homem, Juiz, Santo de Deus,
Kyrios, Salvador, Rei, Logos, Filho de Deus, Deus.

Nãoé necessário consagrar a cada um destes títulos um capítulo par-


ticular. Alguns, com efeito, por seu próprio conteúdo, poderão ser exami-
nados ao mesmo tempo que outros. Assim, se falará do "Mediador" no
capítulo sobre o Sumo Sacerdote; do "Cordeiro de Deus'' ao estudar o
título e o papel do Ebed lahwelv, do "Filho de Davi" ou do "Rei" na parte
consagrada ao Messias; do "Juiz", em relação ao Filho do Homem; e do
"Santo de Deus", no contexto da filiação divina de Cristo.

Por qual começaremos e como os distribuiremos? Falaremos,


primeiramente, daqueles que caracterizam, de modo especial, a
obra terrena de Cristo; em seguida, daqueles que se relacionam
essencialmente à sua obrafutura, escatológica; logo após, daqueles
que enfatizam sua obrapresente; finalmente, daqueles que trazem
à luz a obra realizada durante SUB.preexistência. Eis aí o plano de
nosso livro. Trata-se, forçosamente, de uma classificação esquemá-
tica; porque, em geral, um mesmo título, uma mesma noção cristo-
lógica, não se limita em seu alcance a uma só das quatro funções
enumeradas, mas a duas, ou ainda três delas ao mesmo tempo.
Ademais, na consciência dos primeiros cristãos, que costu-
mavam aplicar simultaneamente muitos destes títulos a Jesus,
devia produzir-se um certo trabalho de assimilação, de ligação.
Devemos, efetivamente, perceber que o cristianismo primitivo não
estabeleceu entre eles a distinção taxativa que nosso estudo feno-
menológico nos leva a fazer: os títulos se influenciavam recipro-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

camente; com frequência constatamos inclusive que eles têm uma


origem comum.
Nosso plano parte do princípio cronológico, válido para toda
a cristologia do Novo Testamento: "Cristo, o mesmo ontem, hoje,
e em todos os séculos por vir". Cristo está ligado a toda a histó-
ria da revelação e da salvação, desde a criação; eis aí, como já o
temos visto, um traço essencial da cristologia do Novo Testamento.
Não há história da salvação sem cristologia; logo não há, tampou-
co, cristologia sem uma história da salvação que se desenvolva no
tempo.8 aA cristologia não é, portanto, uma ciência das "nature-
zas" de Jesus Cristo, mas a ciência de um "acontecimento", de
uma história.
Tendo chegado ao fim da análise fenomenológica dos dife-
rentes títulos, constataremos que - apesar das diferenças entre as
diversas noções e os diversos escritos do Novo Testamento - se
destaca uma imagem geral e coerente desse "acontecimento" mes-
siânico, desde a preexistência até a escatologia. Portanto, não pode
ser questão de se justapor, como em um dicionário teológico, uma
série de monografias: a cristologia do Novo Testamento forma um
todo.
Por outro lado, poderá surgir de nossa análise uma evolução
histórica da cristologia cristã primitiva que nos permitirá ver quais
são os títulos que têm servido de ponto de partida ao pensamento
cristológico dos primeiros cristãos. O plano que temos adotado
não coincide, pois, com esta história; quero dizer, com a ordem
cronológica das diversas soluções cristológicas propostas sucessi-
vamente pelos cristãos da época apostólica.
Começaremos pelos títulos cristológicos especialmente des-
tinados a explicar a obra terrena de Jesus; esta obra, já passada,
que se desenvolveu até chegar ao ponto culminante e decisivo da
história da salvação.

Cf. O. CULLMANN, Christ et le temps, Neuchâtel et Paris, 2a ed., 1957. Edição


brasileira no prelo.
PRIMEIRA PARTE

OS TÍTULOS
CRISTOLOGICOS REFERENTES
À OBRA TERRENA DE JESUS
CAPÍTULO 1

JESUS, O PROFETA

Já nos perguntamos se o exame do título de "profeta" caberia


a um estudo consagrado ao problema cristológico, tal qual o
temos definido. Aqueles que chamavam a Jesus "profeta" não que-
riam com isso simplesmente classificá-lo dentro de uma certa cate-
goria de homens existentes em sua época? De fato alguém se sen-
tiria tentado a crer que se chamou a Jesus "profeta" para indicar
sua profissão, como o chamaram de rabbí, mestre.9 Porém, con-
vém notar que na época do Novo Testamento, a profecia, como
profissão regular e organizada, já não existia no judaísmo. Por
outro lado, quase não havia mais profetas no sentido especifica-
mente israelita do termo, quer dizer, homens visitados pelo Espí-
rito, que recebiam de Deus uma vocação particular. O antigo
profetismo havia se extinguido progressivamente; e praticamente
não existia mais senão sob a forma escrita de livros proféticos.
Isto por si bastaria para mostrar que, ao chamar a Jesus "profeta",
não se classificava-o simplesmente em uma categoria profissional
determinada. Porém, o argumento decisivo é que na maior parte
das passagens onde este título lhe é dado, Jesus não aparece
somente como um profeta, mas como o profeta - a saber: o último
profeta, aquele que devia "cumprir" toda profecia, no final dos
tempos.
Veremos que a espera de semelhante profeta encarregado de
uma missão escatológica bem definida se havia difundido no

'' Cf. acima, p. 23, nota 4.


.32 Oscar Cullmann

judaísmo de então. Trata-se de uma concepção especificamente


' judaica, e a este respeiio este título de "profeta" se diferencia de
outros títulos cristológicos que teremos de examinar - por exem-
plo, o de Filho do Homem e o de Logos, para os quais acham-se
analogias nas religiões orientais e no helenismo.

E, pois, supérfluo falai-aqui da concepção grega de profeta. No mun-


do helénico, o termo mesmo significa simplesmente "anunciador", e não
se usa, senão excepcionalmente, no sentido de "adivinho", aquele que
prediz o futuro. Em todo caso, não existe vínculo algum entre as figuras
impessoais dos profetas que encontramos nos poetas gregos (cuja única
função é a de satisfazer a curiosidade dos homens) e o profetismo israelita,
que prepara e anuncia a concepção cristã de profeta. O sacerdote-profe-
ta egípcio no máximo apresenta uma analogia formal com os profetas
israelitas. Aliás, assemelha-se mais aos autores da apocalíptica judaica
tardia do que aos profetas propriamente ditos. Esta questão tem sido
estudada a fundo na obra de E. Fascher, nPO<3>HTHS, Eine sprach-uttd
religionsgeschichtliche Untersuchung, 1927 (na qual, é verdade, o capí-
tulo relativo ao profeta no Novo Testamento é um tanto sumário).

»1.O PROFETA DO FIM DOS TEMPOS NO JUDAÍSMO

A espera pelo profeta escatológico se explica pelo antigo pro-


fetismo israelita. A palavra nabi tinha originalmente, na religião
de Israel, diversos sentidos.10 No começo designava, por um lado,
o extático e, por outro, o profeta profissional que emitia oráculos.
Porém, estas duas concepções não bastam para dar-nos uma com-
preensão do profetismo especificamente israelita. E é a este somen-
te que se liga a ideia de profeta do fim dos tempos. O que, caracte-
riza essencialmente os profetas clássicos de Israel é, por um lado,
o fato de que seu ministério repousa menos no fato de pertencer a
uma corporação profissional, do que em uma vocação pessoal e

111
H. H. ROWLEY, "The natureof the Old Testament Prophecy in the Light of Recent
Study" {The Servant of the Lorâ and Olher Essays on the Old Testament, 2a ed,
1954, p. 91 ss) dá uma visão de conjunto do problema.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _33

direta; por outro lado, quando proclamam a mensagem da qual


estão encarregados, trabalham sob uma espécie de coação, sem
perder por isso sua personalidade. Ao contrário, esta é até reforça-
da pelo fato de que Deus se serve do juízo moral do profeta para
falar, por seu intermédio, a seu povo. Ademais, e diferentemente
do adivinho, o profeta não se limita a transmitir revelações isola-
das; sua profecia se converte em pregação, em mensagem; ele
explica ao povo a verdadeira significação dos acontecimentos e o
faz conhecer, a cada instante, o desígnio e a vontade de Deus pre-
dizendo - toda vez que é necessário - o juízo e o castigo divinos.
Este profetismo, na época de Jesus - já o dissemos - tinha-se
extinguido havia muito tempo em Israel. A palavra viva do profe-
ta havia-se substituído a autoridade dos escritos dos antigos profe-
tas. Por esta razão, o dom de profecia (como o revela Joel 2.28 ss.)
aparece mais e mais como um fenómeno escatológico, que não
reaparecerá senão no fim dos tempos; e, então, de uma maneira
particularmente visível. Por isto aparecerão profetas na comuni-
dade cristã primitiva.11 No judaísmo tardio, o Espírito - em virtu-
de mesmo de sua ausência - é considerado como um elemento
escatológico: houve profetas no passado e haverá profetas nova-
mente, no fim dos tempos. Assim, o profetismo, de modo crescen-
te, vai se tornando objeto de esperança escatológica.
Por isto a aparição de João Batista foi considerada como um
acontecimento escatológico: um profeta vivo surgiu de novo, seme-
lhante aos antigos profetas. Seu batismo também foi tomado por
ato profético, semelhante aos atos simbólicos realizados, em cer-
tas circunstâncias, pelos profetas de outrora; por exemplo: Jeremias
e também Elias, Elizeu, Isaías e, sobretudo, Ezequiel.12
João Batista foi, pois, tido por profeta nos moldes do Antigo
Testamento; isto é o que mostra ainda uma passagem como a de

" 1 Co 11.28; Ef 4..11 Al t 1127 s., 11.11 21.10; Ap 22.9; Did. 11.13.
''Cf. WHEELER ROBINSON, Old Tesutment Essays, 1927, p. 1 ss, W. F.
FLEMINGTON, The New Testament Doctrine ofBaptism, 1948, p. 20 ss; c sobretudo
G. FOHRER, "Die synnbolischeti Handlungen der Propheten" (AThANT, 25), 1953.
34 Oscar Culbnann

Lc 3.2, onde dele se diz, como dos antigos profetas se dizia: hfzvzxO
p%ia Geou k%\ 'Icoávvrrv. Falaremos, mais tarde, sobre João
Batista. No momento nos limitaremos a mostrar que em sua pes-
soa, como na do "Mestre de Justiça''' de Qumran e na de certos
taumaturgos e heróis políticos judaicos da época,13 depois de lon-
ga interrupção, um verdadeiro profeta reapareceu; o que prova,
aos olhos dos judeus, que os últimos tempos estão às portas: Deus
fala de novo pela boca de seu profeta. João Batista realiza o que
esta esperança judaica aguardava há muito tempo: o despertar
escatológico do profetismo (cf. I Mac 4.44 ss.; 14.41; SI 74.9).
Esta esperança havia tomado uma forma concreta: esperava-
se para o fim dos tempos um profeta único em quem se realizaria,
por assim dizer, toda a profecia anterior.14 Desta esperança especi-
ficamente judaica é que temos de nos ocupar aqui. O fato de que
Jesus (assim como João) foi considerado profeta, bastava para
conferir-lhe uma dignidade escatológica muito particular. Mas do
ponto de vista cristologico, o que nos interessa sobretudo, é ver
como é que se voltou para Jesus a esperança da vinda deste profe-
ta único, definitivo. Esta esperança devia ser muito generalizada
na época do Novo Testamento. Prova disso é que a João Batista os
judeus perguntaram: "És tu o profeta?" (Jo 1.21). Todo mundo
devia, pois, saber de quem se tratava.
A ideia judaica de um profeta que resume e realiza o profe-
tismo completamente tem, sem dúvida, também outra raiz, menos
escatológica e mais especulativa: a ideia de que, dado que todos
os profetas têm anunciado, no fundo, a mesma verdade divina,
não deve haver mais que um só e o mesmo profeta, que se tenha
sucessivamente encarnado em diferentes homens, cada vez com
aparência diferente.

JOSEFO, Guerra Judaica, II, 68, H, 261 s., Am. 20,97 s. Cf. ainda R. MEYER, Der
Prophet aus Galilãa. 1940, p. 41 ss.
Cf. P. VOLTZ, Die Eschatologie der judischen Gemeinde im neutestamentliclieii
Zeitalter, 2" ed., 1934, p. 193 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 35

lincontramos esta convicção nos escritos pseudoclementinos


(tios quais teremos de falar, a propósito da concepção cristã de
Jesus profeta15), assim como no Evangelho dos Hebreus - portan-
to, nos escritos que, sendo de origem judaico-cmíã podem, entre-
tanto, ser considerados como fontes para conhecer o judaísmo de
então. Segundo os escritos pseudoclementinos o "verdadeiro pro-
feta" reaparecia sempre de novo através dos séculos desde Adão,
trocando de nome e de forma para manifestar-se finalmente como
o Filho do Homem.16 Segundo o fragmento do Evangelho dos
Hebreus citado por São Jerónimo em seu comentário de Isaías,17 o
Espírito Santo disse a Jesus, ao sair este da água, quando do seu
batismo: "Eu tenho-te esperado em todos os profetas, a fim de que
tu viesses e eu repousasse em ti".
Aqui a concepção de profeta escatológico está ligada à ideia
da reencarnação do mesmo profeta, realizada já muitas vezes no
passado. O profeta aparece, pois, no fim dos tempos sob sua for-
ma definitiva, em sua plenitude, e é então que em sua pessoa a
profecia chega a seu termo e à sua realização final.
A ideia de retorno sobre a terra do mesmo profeta sem dúvi-
da contribuiu para favorecer a certeza de que Jesus voltaria no fim
do mundo. Pois do Messias judaico não se havia declarado, como
o fora acerca do profeta, que viria uma segunda vez sobre a terra.
Não será que, a este respeito, a ideia de um retorno do profeta tenha
importância do ponto de vista cristológico? A ideia de um retorno
de Cristo recebe, pelo menos, uma antecipação nas crenças do
judaísmo de então.
A esperança judaica aguarda mais particularmente o retorno
escatológico de um determinado profeta. Ela se anuncia já nas
palavras dirigidas por Moisés a Israel (Dt 18.15): "O Eterno,
leu Deus, suscitará dentre teus irmãos um profeta como eu",
liste texto tem uma importância capital para a noção de "pro-

"Cf. abaixo, p. 61 s.
'" I lom. III, 20. 2, Recogn. II, 22.
" llicron; em Is 4, XI, 2, MSL 24, col. 145.
36 Oscar Cullmcmn

.feta".18 Sem dúvida, não se trata aqui de um retorno do próprio


Moisés, mas da aparição, no fim dos tempos, de um profeta que se
lhe assemelhará. Fílon cita esta passagem e assinala seu caráter
fortemente escatológico.19 Em Atos 3.22 e 7.37 este texto se apli-
ca a Jesus. Os Kerygmata Petrou pseudoclementinos citam-no
igualmente.20 Daí nasceu a crença no retorno do próprio Moisés.21
Não fica tampouco excluído que, segundo uma tese recente,22 o
Servo Sofredor do segundo Isaías possa ser assimilado ao Moisés
„ „ „ „ . ,'j. r„ ?^

ressuscitado."
Porém, o que, sobretudo, se esperava era o retorno de Elias.
Trata-se de uma crença relativamente antiga. Já em Ml 4.5, Elias é
identificado com o mensageiro que deve preparar o caminho de
Iahweh, e a mesma crença se encontra no Eclesiástico24 e nos tex-
tos rabínicos:25 ele deve no final dos tempos "estabelecer" a comu-
nidade futura e sua doutrina.
18
Cf. H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judenchristentwnis, 1949, p. 87
ss. J. JEREMIAS, ThWbNT, IV, p. 862. Importa, ademais, notar que, ao lado de
outras passagens do Antigo Testamento, esta é citada era uma coletânea de testemu-
nhos messiânicos da seita de Qumran. Ver J. M. ALLEGRO, "Further Messianic
References in Qumran Literature" (JBL, 75, 1956, p. 174 ss.).
{>
De spec. leg., I, 65.
2
0Recogn. 1, 43: "Muitas vezes, disse Pedro, os judeus nos enviavam mensageiros para
pedir-nos que acertássemos uma entrevista entre Jesus e eles, para saberem se ele era
o profeta anunciado por Moisés."
21
Sib, V, 256 ss., assim como as passagens mencionadas mais abaixo. Cf., ademais, os
textos rabínicos (tardios) citados porP. VOLZ,O/J. c/V. 195; também: J. JEREMIAS,
art MtMXrrjç em ThWbNT, IV, p. 860 ss. A ideia de um retorno da época messiânica
no fim dos tempos deve, sem dúvida, também ser levada em consideração neste
ponto. Cf. a respeito H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 181 ss.
22
A. BENTZEN, "Messias-Moses redivivus-Menschensohn" (AThANT, 17), 1948,
p. 64 ss. Em parte ele segue a H. S. NYBERG, "Smãrtornasman" (Svensk Exegetisk
Aarsbok, 1942, p. 75 s). JáSELLIN, Mose, 1922, tinha identificado o Ebed Iahweh
com Moisés. A. BENTZEN adota esta tese, porém, rejeita a teoria de SELLIN rela-
tiva ao suposto martírio de Moisés na Transjordânia.
23
Enquanto que I. ENGNELL (Svensk Exegetik Aarsbok, 1945) tenta explicar a figura
do Ebed Iahweh pela ideologia da realeza, A. BENTZEN (op. c/V.,42ss.) faz melhor
ao considerara noção de Profeta. Cf. abaixo, p. 78, 81.
24
Eclo., 48.10 ss. Aqui o Elias ressuscitado tem a missão (que ele partilha com o Ebed
Iahweh de Is 49.6) de "restabelecer" as tribos de Israel.
25
Cf. STR.-BILLERBECK, IV, p. 779 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 37

Às vezes trata-se do retomo de Enoque.26 É natural que se tenha


crido precisamente no retorno de Elias ou de Enoque, já que segun-
do o Antigo Testamento eles não morreram mas, antes, foram leva-
dos ao céu. Diz-se também que Baruque não morreu e que no final
testemunhará contra os pagãos. (Apoc. de Baruque 13.1 ss.).
No fim das contas se opera uma combinação destes nomes,
de sorte que se menciona dois profetas que hão de voltar. Segundo
o livro de Enoque, estes são Enoque e Elias;27 segundo o Midrasch
Deut. rabba 3.10, 1 (mais tardio)28 serão Moisés e Ellas. O relato
da transfiguração no Novo Testamento (Mc 9.2 ss.)29 faz, sem
dúvida, alusão a esta esperança, e pode ser que também a aparição
das "duas testemunhas" de Ap 11.3 ss.
Tal é, ao menos, a explicação corrente desta passagem do Apo-
calipse*. v\o fim dos tempos, Moisés e Elias voltarão paira pregai' o arre-
pendimento. J. Munck (Petrtis uiid Paitlus in der Johannes-Apokylypse,
1950, tentou refutar esta tese que já P. Volz (op. cit., p. 197) havia decla-
rado como algo "discutível". Ele supõe que as duas testemunhas são, na
realidade, os apóstolos Pedro e Paulo.30

'6 En 90.31 (associado a Elias). Mas sua função não é precisa.


-7Cf. a passagem citada mais acinia, En 90.31, e também J4/WC. Eliae, ed. STEINDORFF,
1899, p. 163.
,,!í
Deus disse a Moisés: "Quando eu enviar o profeta Elias, vireis os dois juntos". Cf.
igualmente Targ. jer. sobre Ex 12.42.
"Cf. J. JEREMIAS,dansT/iWè/VT,II,941;H.RIESENFELD,Jéjí«/rafiíííg«f'é, 1947,
p. 253 ss.; E. LOHMEYER, "Die Verklãrung Jesu nach dem Markus-Evangelium",
ZNTW,21 1922, p. 188 ss.
10
Cf. a este respeito O. CULLMANN, Saint Pierre, disciple, apôtre, martyr, 1952,
p. 77 ss. Esta opinião foi expressa pela primeira vez pelo jesuíta MARIANA (Scholia
in Vems et Novum Testamentum, 1619, p. 1.100 s.). Ela voltou a sei' considerada
recentemente por L. HERMANN, "UApocalypse Johanniqueet l'histoireromaine"
(Latomus, VIII, 1948, p. 23 ss.) e M. E. BOISMARD, "UApocalypse'' (La Saiiite
Bibíe, Jerusalém, 1950, p. 21 se 53 s.). J. MUNCK a defende com argumentos muito
convincentes. Reconhece que estas duas testemunhas têm traços comuns com os
profetas do fim dos tempos, em particular com Elias retornado à terra, já que, eles
também, pregam o arrependimento. No entanto, fez notar que as testemunhas de
Ap 11.3 ss. não são os precursores do Messias, mas que anunciam a vinda do
Anticristo. Ademais, sublinha (p. 13) que em nenhuma parte encontramos dois pre-
cursores do Messias. Munck tenta em seguida mostrar (p. 21) que o que se diz em
Ap 11.5-6 não concorda com o que se sabe de Elias e de Moisés.
38 Oscar Cttllmann

Em suas origens, a esperança judaica se referia, com toda


segurança, a um só profeta. Podem ser encontradas variantes (nas
quais também se menciona Jeremias31); isto se dá pelo fato de que
não se sabia com certeza qual dos antigos profetas havia de voltar.
Esta esperança estava extremamente difundida, pois até sei-
tas situadas na periferia do judaísmo, como os samaritanos e em
particular a seita que os textos recentemente descobertos de Qumran
nos têm feito conhecer melhor, esperavam por este profeta escato-
lógico.
Os samaritanos, fundamentando-se na passagem já citada de
Dt 18.15 ss, esperavam a vinda do Ta'eb.n Este é representado
como Moisés ressuscitado e comporta os traços característicos do
profeta: faz milagres, restabelece a lei e o verdadeiro culto no meio
do povo e leva também os outros povos ao conhecimento de Deus.
Como Moisés, morre à idade de 120 anos. Ele é chamado o "Mes-
tre" ou, ainda, o Ta'eb, o que pode traduzir-se por "aquele que
volta", ou, mais provavelmente, por "o restaurador". Pensemos na
samaritana do poço de Jacó: para ela, o Messias é ao mesmo tem-
po profeta (João 4.19,25).
O "profeta" ocupa um lugar mais central ainda tia crença
daquela seita judaica cuja existência foi revelada pelo Documento
de Damasco, descoberto no Cairo em 1896 e publicado em 1910,33
e que é ainda conhecida pelo nome de "Comunidade da Nova
Aliança".34 Temos nos familiarizado com sua doutrina e organiza-
ção graças às recentes descobertas, de considerável importância,

11
Cf. Mt 16.14. Nos textos judaicos não se menciona nada acerca do seu retorno;
porém, em 2 Mac 15.13 ss, se lhe atribui um papel duradouro de mediador como
''profeta de Deus".
l!
Cf. a este respeito A. MERX, Der Messias oder "Ta'eb"der Samaritaner, 1909.
3 SCHECHTER, Docwnents ofJewish Sectaries, vol. I, Fragments ofa Zadoldte Work,
1910.
11
Cf. a edição do texto hebraico por L. ROST, Die Damaskusschrift, 1933. Tradução
alemã de W. STAERK, Die jiidische Gemeinde des Neuen Bundes in Damaskus,
1922. Tradução inglesa: CHARLES, The Apocrypha and Pseudepigrapha of the
O. T.,II,1913, p. 799 ss. O melhor comentário é o deCHAIM RABIN, The Zadokite
Documents, 1954 (2aed., 1957).
CftíSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Feitas em Chirbet Qumran, perto do Mar Morto. Pode-se dar por


estabelecido, não obstante as opiniões contrárias expressadas
recentemente,35 de que na realidade trata-se de um grupo aparen-
tado com os essênios.

Quase todos os historiadores interessados na história do judaísmo


da época neotestamentária têm reconhecido a importância das descober-
tas sensacionais que se sucederam desde a primavera de 1947, e cuja
riqueza só se começou a pôr em evidência. A publicação e o comentário
dos textos levarão anos e os estudos exegéticos, tanto do Antigo como do
Novo Testamento, deverão, no curso dos próximos anos, levar muito em
consideração estes textos. A bibliografia relativa ao tema é já tão abun-
dante que devemos limitar-nos a indicar alguns estudos especialmen-
te importantes. Em vista de uma orientação geral, recomendamos:
H. Bardtke, Die Handschriftenfunde am Toten Meer, 1952; em seguida
A. Dupont-Sommer, Aperçus préliminaires stir les manuscrits de la mer
Morte,1953, e: Nouveaux aperçus sttr les manuscrits de la mer Morte,
1953; G. Vermes, Les manuscrits du désert de Judá, 1953; sobretudo
MillarBurrows, The DeadSeaScrolls, 1955 (tradução francesa, 1957) c
O. Eissfeldt, Einleitung in das Alte Testament, 2a ed., 1956, p. 788 s.
Sobre o conjunto dos estudos se consultará, sobretudo, os artigos perió-
dicos que W. Baumgartner publica desde 1948-9 na Theologische
Rundschau sob o título "Der palãstinische Handschriftenfund", assim
como os informes regulares da Theologische Literaturzeitung ("Der
gegenwártige Stand der Eforschung der in Palástina neu gefundenen
hebraíschen Handschriften", primeiro informe no n° 74, 1949); aí se
encontram também estudos sobre os diversos manuscritos. E igualmente
indispensável recorrer aos informes, profundos e conscientes, publica-
dos na/fevue Biblique pelo Padre de Vaux, diretor da Escola Arqueoló-
gica de Jerusalém, à medida que se vão fazendo as descobertas. É neces-
sário, enfim, assinalar o emprego dos textos para os estudos do Novo
Testamento: antes de tudo, K. G. Kuhn, "Die in Palãstina gefundenen
hebraíschen Texte und das Neue Testatnent" (Zeitschr.f. Theol. u. Kirche,
47, 1950, p. 194 ss); em seguida S. E. Johnson, "The DeadSea Manual
of Discipline and the Jerusalém Church ofActs" (ZATW, 1954, p. 110
ss); O. Cullmann, "La signification des textes de Qumran pour l 'étude
des origines du c/tristianisine" (Positions luthériennes, 1958, n° 4, p. 5

DEL MEDICO, L'enigme des manuscrits de la mer Morte, 1957.


40 Oscar CuUmann

ss); H. Metzinger, O. S. B., "Die Hcmdschriftenfitnde am Toten Meer und


das N. T\. {Bíblica, 36, 1955, p.457 ss); de uma maneira mais geral
H. Braun, "Spãtjudisch-kàretischer und fruhckristlicher Radikãlismus,
Jesus von Nazareth unddee essenische Qumransekte" (BHTh, 24), 2 vol.
1957-Chr. Burchardpublicou uma"BibliographieZMdenHandschriften
vom Toten Meer' (BZÂW, 76), 1957.

Para o assunto que nos ocupa, temos que citar antes de tudo,
entre os textos publicados até aqui - além do Documento de Da-
masco, conhecido há muito tempo - o Comentário de Habacuque:ib
esta obra, graças a uma interpretação alegórica, aplica tão minucio-
samente as palavras do profeta à situação da seita que pode-se
utilizá-la como fonte para conhecer a história e a teologia desta
curiosa comunidade. Neste Comentário, o homem que pode ser
considerado o provável fundador da seita, e que é objeto da mais
alta veneração, leva o título de "Mestre de Justiça", p~ls. ÍTliQ,
título que na literatura judaica tardia é atribuído a Elias.-37 Nota-se
com razão que poderia igualmente traduzir-se por "Mestre da Ver-
dade", ou "VerdadeiroMestre".38 Segundo o Comentário de Haba-

M
Este texto foi publicado por MILLAR BURROWS, com a colaboração de J. C.
TREVER e W. H. BROWNLEE, The DeadSea ScrollsofSl. Mark's Monastery, vol.
I, The Isaiah Manuscript and the Habakuk Cominentary, 1950. Tradução francesa
de A. DUPONT-SOMMER, le "Commentaire d'Habacuc" découvert prés de la mer
morte, traduction et notes (Revue de 1'histoire des religions, 137, 1950, p. 129 ss.).
Cf. também o estudo particularmente profundo e prudente de K. ELLIGER, em sua
monografia com comentário e tradução: Studien zuni Habakukkomentar, 1953 (em
anexo o texto hebraico em uma edição de fácil manejo). Os Salmos foram publica-
dos muito mais tarde e não puderam ser levados aqui em consideração. Estes permi-
tem entrever, igualmente, as relações entre a ideia de profeta e a de servo de Iahweh.
Ver a edição do texto porE.L. SUKENIK, The Dead Sea Scrolls ofHebmw University,
Jerusalém, 1955. Tradução francesa com indicações e notas de A. DUPONT-SOMMER,
"Le livre des hymnes tlécouverts prés de la mer Morte" (I QH) {Semítica, Vil, Paris,
1956); tradução alemã deH. BARDTKE, em ThLtz, 1956,3, col. 149 ss.; 10, col. 589
ss; 12, col. 715 ss.; cf. também G. MOLIN, Lob Gottes aits der Wtiste, 1957.
' 7 LOUIS GINZBERG, Eine unbekannte judische Sekte, 1922, p. 303 ss., particular-
mente p. 316.
51
Cf. K. ELLIGER, op. cit., p. 245 (se refere a J. L. TEICHER). Segundo TH. H.
GÁSTER, The Dead Sea Scriptures, 1956, p. VI, não se trataria da designação de
uma pessoa histórica mas de uma função (como Mebaqqêr).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 41

cuque, Deus lhe revelou todos os mistérios contidos nas palavras


dos profetas.39 Sua missão é anunciar estas palavras.40 Toda sua
pregação orienta-se para o fim dos tempos.41 Precisamente em
vista das últimas coisas, ele recebeu uma inspiração particular que
lhe permite interpretar com exatidão as previsões dos profetas.
Ele tem por adversário o "homem da mentira", o "profeta da menti-
ra".42 O mestre tem que sofrer a injustiça conforme a sorte comum
aos profetas.43 Não é, contudo, seguro que tenha sofrido o martí-
rio depois de sua condenação.44
Se se pudesse demonstrar com certeza a identidade entre o
"Mestre-profeta" já aparecido e aquele que há de vir,45 teríamos
um paralelo com a esperança cristã de um regresso de Cristo; tan-
to num caso como noutro, trata-se da esperança do retorno de um
profeta cuja morte não estaria muito distante no passado. Porém,
sobre este ponto ninguém pode, tampouco, pronunciar-se com cer-
teza. E, ademais, no Manual de Disciplina (IQS 9, 11), a vinda
do profeta se distingue da vinda dos dois messias, de Aarão e de
Israel.46

39
IQpHab. VII, 5; II, 9.
w
1 Qp Hab. II, 8.
41
I Qp Hab. II, 10; VII, 1 s.
42
1 Qp Hab. II, 1 s; X, 9. Acerca da relação com o "verdadeiro profeta" e o "profeta da
mentira" dos escritos pseudoclementinos, cf. O. CULLMANN, "Die neuentdeckten
Qumrantexte und das Judenchristentum der Pseudoklementinen" (Neutestamentl.
Studien fiir Rudolph Bultmann, 1954), p. 39 s.
•" 1 Qp Hab. IX, I ss.
4-5
A.s indicações contidas no Comentário de Habacuque não nos permtem responder a
esta pergunta. Não se pode, tampouco, saber se o "Mestre" estava ainda vivo no
momento da redação do Comentário. Cf, sobre o assunto, K. ELLIGER, op. cit.,
p. 202 ss.; 264 ss. Acerca desíe problema convém também examinar os Hinos (cf.
acima, p, 40, nota 36); porém, nem estes nem tampouco os fragmentos ainda não
publicados parecem apoiar a hipótese de uma execução do "Mestre".
45
Sobre este ponto as opiniões são ainda muito divergentes. S. SCHECHTER, op. cit.,
p. XII, afirmou esta identidade pelo Documento de Damasco contra STAERK, op.
cit., p. 5, que admitia a existência de dois "mestres": o fundador da seita e outro
mestre ainda por vir. As recentes descobertas têm provocado um novo exame da
questão. Com exceção de A. DUPONT-SOMMER, Nouveaux aperçus, p. 81 s., a
maior parte dos especialistas parece recusar hoje a tese da identidade.
Vl
Cf. abaixo, p. 44, nota 56 e p. 116 s.
42 Oscar Cullmann

Os Testamentos dos Doze Patriarcas, que sempre foram difí-


ceis de serem situados, provavelmente surgiram do mesmo meio
espiritual que os documentos da seita de Qumran.47 Não temos de
nos surpreender, pois, se no Testamento de Levi, o Messias espera-
do, o "Renovador da Lei" (Test. LeviSA6), é chamado "profeta do
Altíssimo" (8.15). A importância que se dá neste capítulo a Moisés
e a veneração de que é objeto, permitem supor que ainda aqui o
profeta esperado seja, talvez, Moisés ressuscitado.
Esta crença na vinda ou retorno do "profeta" da seita da Nova
Aliança nos parece, pois, digna da maior atenção, por um lado,
porque ela é quase contemporânea do Cristianismo nascente; e,
por outro, porque o profeta reúne em sua pessoa alguns atributos
do Messias, ou mais particularmente, alguns atributos do Sumo
Sacerdote.48 De qualquer maneira, isto nos permite compreender
melhor porque, no tempo de João Batista e de Jesus, se tenha qua-
se automaticamente falado do "profeta" para descobrir o sentido
da aparição e ministério de João Batista ou de Jesus.
Em todo o judaísmo tardio, a esperança do fim estava ligada
à esperança de um despertar da profecia - porém, de uma profecia
definitiva, absoluta, que se encarnaria na pessoa do único verda-
deiro profeta, que poria fim a toda falsa profecia.49
Se reunirmos agora os diversos elementos desta crença
generalizada, a função do profeta se nos apresenta da maneira
seguinte: ele prega, ele revela os últimos mistérios e, sobretudo,
restaura a revelação tal qual Deus a havia dado na Lei de Moisés.
Porém, não prega simplesmente como os antigos profetas: sua
pregação anuncia o fim do mundo; seu chamado ao arrependi-

" Cf., em particular, A. DUPONT-SOMMER, "Le Testament de Lévi (XVH-XVIII) et


lasectejuivederA]liance",Sí7iji/fCívIV, 1952, p. 33 ES., e Nouveaux aperçus, p. 63 ss.
4!i
Cf. abaixo, p. 117.
4it
Outra figura semelhante ao profeta do fim dos tempos é sem dúvida também o taxon,
o Ordenador, cm Ascensão de Moisés. 9,1 ss., que S. MOWINCKEL, em um artigo
interessante, quis pôrem relação com o mehoqêq do Documento de Damasco (Vetus
Testamentitm, supl. I, 1953, p. 88 ss.).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 43

mento é a última oportunidade de salvação que Deus oferece aos


homens. Sua aparição e sua pregação constituem, pois, um ato
escatológico que se insere no grande drama final. A revelação da
vontade divina é a função principal do profeta mas ele deve, ain-
da, restabelecer as tribos de Israel (Eclo. 48.10). O Elias ressus-
citado deve vencer as potências do mundo, libertar Israel50 e
lutar contra o Anticristo.51 Como o dos antigos profetas, seu des-
tino é sofrer.52 É o que se pode deduzir, por exemplo, de Mc 9.13
(Mt 17.12) "Fizeram com ele tudo o que quiseram, como está
escrito a seu respeito".53
Originalmente, o profeta do fim dos tempos não era um mero
precursor do Messias. A esperança no retorno do profeta era sufici-
ente em si e se desenvolveu, de certo modo, paralelamente à espera
do Messias. Este não tem, em suma, necessidade de precursor, pos-
to que preenche em si mesmo o papel de profeta escatológico. Por
isso, pode ocorrer - como já o temos visto - que profeta e Messias
sejam unidos em uma só pessoa.54 É possível que, por fim, se tenha
de reduzir ambos a um denominador comum.55
No entanto, faremos bem em distinguir a linha "profética" da
linha "messiânica"; pois, originalmente, o profeta escatológico ao
aparecer no fim dos tempos prepara o caminho ao próprio Iahweh.
Só mais recentemente a noção de "profeta" e a de "messias" se
combinam, não só pela identificação deste profeta com o Messias,

w
Cf. STR-BILLERBECK, IV, p. 782 ss.; J. JEREMIAS, em TKWbNTW, p. 933
íl
Apoc. Eliae, éd. STEINDORFF, 1899 p. 169.
>2
C.. H. J. SCHOEPS, Aits friihchristticher Zeit, 1950, p. 126 ss.: Die jiidischen
Prophetenmorde.
"Cf. J. JEREMIAS, em ThWbNT, II, p. 944.
^J H. RIESENFELD, "Jesus ais Prophet" (Spiritits et Veritas, 1953, p. 135 ss.) cita
como passagem do Novo Testamento que atesta esta identificação popular entre o
último profeta e o Messias, aparte João 6.14 s e Mc 13.22 e par., acena na qual Jesus
é objeto de deboche por parte dos soldados que o convidam a "profetizar".
'* A escola de Upsala (ENGNELL) veria este denominador comum na ideologia do rei.
A. BENTZEN o veria antes na ideia do Filho do Homem ou do '"primeiro homem"
(Messias-Moses redivivtts-Meitschensohn, 1948, p. 41 ss.).
44 Oscar Cullmann

mas também por afirmar que, por exemplo, um retorno de Elias


preparará a vinda, não do próprio Iahweh, mas de seu Messias.56
Devemos distinguir com cuidado a ideia do profeta como pre-
cursor de Deus, da do profeta como precursor do Messias, pois as
encontramos ambas no Novo Testamento; cada qual com seu pró-
prio sentido.

2. O PROFETA DO FIM DOS TEMPOS SEGUNDO O NOVO


TESTAMENTO

a) João Batista

Nos Evangelhos não só Jesus mas, antes e mais do que ele,


João Batista é chamado "o Profeta". Por um lado, temos visto que
João Batista se encontrava simplesmente colocado no mesmo pla-
no que os profetas do Antigo Testamento. Isto é o que mostra, por
exemplo, a fórmula de Lc 3, fórmula de introdução totalmente
análoga à dos livros proféticos do Antigo Testamento: "A Palavra
de Deus foi dirigida a João". Estando o dom da profecia encena-
do, João Batista aparece como o anunciador do fim dos tempos,
época em que este dom havia de renascer.
Por outro lado, precisamos estudar agora em que medida sua
pessoa foi identificada exatamente com o profeta prometido para
o fim dos tempos. Isto se fez de duas maneiras: identificando sua
vinda com o retorno de Elias que, por um lado, era tido como um
precursor do Messias (sentido tardio), por outro, como um precur-
sor de Deus (sentido primitivo).
É muito provavelmente a concepção judaica tardia a que está
expressa em Mt 11.8 ss., onde o próprio Jesus chama João Batista

is
Cf. STR-BILLEftBECK, IV, p. 784 ss., como TliWbNT, II, p. 933, nota 20. Em
JUSTINO, Dial. Cum Tryph. Jtiel. 8, 4 e 49, I, ele tem por função ungir o Messias.
A passagem já mencionada do Manual de Disciplina de Qumran(1QS 9, 11) também
distingue expressamente a vinda do profeta da dos dois Messias (de Aarãoe de Israel).
Cf. a este respeito K. G. KUHN, "Die beiden Messias AaronsundIsraêls"'{W5,1955,
p. 178).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 45

de Elias ressuscitado. "O que vocês foram ver no deserto? Uma


vara agitada pelo vento? Ou então, o que foram ver? Um homem
de roupas preciosas? Ora, os que usam roupas preciosas estão nos
palácios. Afinal, o que foram ver? Um profeta? Sim, eu lhes digo,
mais que um profeta... Pois todos os profetas e a lei profetizaram
até João. E se quereis aceitar,57 ele é este Elias que havia de vir."
Se Jesus disse que João é mais que um profeta, isto significa que,
sem dúvida, ele é o profeta que deve vir no fim dos tempos. A pri-
meira vista não se vê, muito claramente, é verdade, se João cum-
pre este papel como precursor do Messias ou como precursor de
Deus; mas se examinarmos o contexto, e em particular o logion
em que se fala do "menor" que é o maior no Reino dos Céus58
(passagem na qual Jesus, embora sendo o "menor", se coloca aci-
ma do Batista), é certo que para o evangelista Jesus vê no Batista o
precursor do Messias. Esta interpretação é, por outro lado, a única
possível se Jesus tinha consciência de ser Ele mesmo o Messias.
Igual conclusão se depreende de Mt 17.10 ss. (Mc 9.11 ss.):
"Os discípulos fizeram-lhe esta pergunta: Por que os escribas
dizem que Elias há de vir primeiro? Respondeu: E verdade que
Elias deve vir e restabelecer todas as coisas, mas eu vos digo que
Elias já veio e eles não o reconheceram e fizeram com ele tudo o
que quiseram. Da mesma forma também o Filho do Homem sofre-
rá em suas mãos." Aqui, Jesus identifica expressamente a apari-
ção do Batista com o retorno de Elias. Se a menção do "Filho do
Homem" remonta ao próprio Jesus, novamente trata-se de João,
Elias ressuscitado como precursor de Jesus, o Filho do Homem.
A isto se acrescenta que, segundo as palavras de Jesus e conforme
a esperança judaica, o profeta dos últimos tempos realiza em sua
pessoa a sorte de todos os profetas: ele é perseguido.59 Seu papel
não se limita a pregar o arrependimento, mas também sofrer; nisto

Sobre a restrição contida na expressão ei Sé^ste SèZ,0.Gí)a,\ cf. abaixo, p. 38.


A tradução habitual, "o menor no reino dos céus", é, certamente, inexata. As pala-
vras èv i\\ pacri^eit^ râv oúpceviítv não se relacionam a ó piKpótepoç, veja mais
abaixo, p. 53 s.
Cf. acima, p. 42 s.
46 Oscar Cullmaiin

há um certo vínculo com a figura do "Servo de Iahweh", ao qual


consagraremos um capítulo especial. Já notamos que as diversas
concepções messiânicas ou cristológicas se influenciam de manei-
ra recíproca.60
Ao lado destes textos, encontramos uma série de passagens
do Novo Testamento nas quais João Batista, profeta dos últimos
tempos, é apresentado como o precursor do próprio Deus. Antes
de tudo, no proto-evangelho de Lucas, que contém muito prova-
velmente tradições independentes relativas a João provenientes
do círculo dos discípulos do Batista; lemos, por exemplo, no cântico
de Zacarias (Lc 1.76), que o Batista será chamado "profeta do
Altíssimo". "Tu irás adiante da face do Senhor para preparar seus
caminhos." A palavra "Senhor" designa aqui, sem dúvida, Iahweh.
A mesma ideia é expressa no anúncio do anjo em Lc 1.17: o meni-
no que há de nascer "irá adiante de Deus no espírito e poder de
Elias, para fazer voltar o coração dos pais para os filhos e os rebel-
des à sabedoria dos justos, a fim de preparar um povo para o Senhor."
Verdade é que o evangelista provavelmente aplicou o título de
"Senhor" a Jesus muito tarde, como o faz noutra parte ao utilizar
citações do Antigo Testamento.61
Para os sinópticos, João Batista é o "profeta" do fim dos tem-
pos: em uma série de textos na qualidade de precursor de Deus,
em outros, na qualidade de precursor do Messias.
Teve o próprio João Batista consciência de ser este profeta?
Os Evangelhos sinópticos não nos permitem dar uma resposta
categórica a esta questão, pois, em nenhum dos textos menciona-
dos o Batista se explica a si mesmo; são sempre outros que lhe
designam como o profeta. No entanto, João não se considerou como
o precursor de Deus, e isto se depreende de versículos, certamente

Se a tese sustentada pelos sábios escandinavos (cf. acima, p. 43, nota 55) é exata,
nós deveríamos admitir que em sua origem as diversas concepções cristológicas sur-
giram de uma concepção primitiva única para diferencíar-se logo e finalmente ten-
der a fundir-se de novo.
Cf. PH. VIELHA.UER, "Das Benedictus Zacharias" (ZTIiK, 1952, p. 255 ss.).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 47

autênticos, do começo do capítulo 11 de Mateus, nos quais João


faz com que se pergunte a Jesus se Ele é o que havia de vir ou se é
necessário ainda esperar outro. A maneira em que a questão é for-
mulada mostra que o Batista espera ainda um outro enviado de
Deus que deve vir depois dele. Isto surge igualmente de sua prega-
ção batismal onde ele fala do "mais poderoso" (ía^upótepoç) que
vem depois dele (Mt 3.11), e onde põe em clara luz o caráter para-
doxal, para os judeus, de uma situação em que aquele que vem
mais tarde, normalmente subordinado e servidor daquele que o
precede, pelo contrário, seja revestido de uma potência divina
maior62 (cf. Ap 5.12). Pode-se concluir daqui que, em todo caso,
ele não se considerou como o profeta que prepara a vinda do pró-
prio Deus. Porém, é possível (segundo Mt 11.3) que tenha crido
ser o profeta precursor do Messias. Tal seria o caso se as expres-
sões "o que há de vir" (ó èpxópevoç), e "o mais poderoso" aludi-
am ao Messias. Mas é possível que o èpxónevoç esperado pelo
Batista fosse o próprio profeta escatológico;63 João Batista seria
então só aquele que inaugura o fim dos tempos realizando, após
longa interrupção, o despertar já predito pela profecia; se ele se
considerou tão-somente um profeta entre outros, seriam seus dis-
cípulos e Jesus quem, depois de sua morte, teriam reconhecido
nele o profeta escatológico.
Seja como for, o certo é que, segundo a tradição sinóptica, os
primeiros cristãos, e sem dúvida o próprio Jesus, viram no Batista
o precursor do Messias anunciado, enquanto que os discípulos de
João o consideravam como o profeta que prepara os caminhos ao
próprio Deus. Os escritos pseudoclementinos proporcionam con-
firmação disto. Lemos neles,64 com efeito, que a seita posterior-
mente constituída pelos discípulos do Batista considerava a João
como Messias, opinião que, segundo Lc 3.15, já havia sido deba-

:
Cf. O. CULLMANN, 'O òrtíoa» \io\> èpxónevoç çConiectanea Neotestamenúca in
honorem Antonii Fridrichsen, 11,1947, p. 26 ss.).
Esta é a opinião de J. HÉRING, Le royaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 71.
Rec, l,60.
• 48 Oscar CuUmann

tida durante sua vida. Porém, para eles o Messias se confundia


com o profeta dos últimos tempos. Segundo os discípulos do Batis-
ta, João seria, portanto, o profeta escatológico; mas, sua função
bastava-se a si mesma e não tinha necessidade de ser confirmada
pela vinda de um Messias, já que ele mesmo preparava a Deus os
caminhos para o estabelecimento do Seu Reino.
É muito provável que esta seita dos discípulos do Batista se
tenha fundido, a seu tempo, com outra seita de origem judaica,
a dos mandeus, que ainda existe e cujos escritos sagrados repre-
sentam Jesus como um impostor, "um falso Messias", enquanto
que João Batista aparece como "o profeta" no sentido absoluto.65
No relato do nascimento de João Batista contido nos livros mandeus,

M. LIDZBARSKI e R. BULTMANN ("Die Bedeutung der neuerschlossenen


mandãischen und manichãischen Quellen ftir das Verstàndnis des Johannes-Evan-
geliums", ZNTW, 24, 1925, p. 100 s.) têm sustentado que os textos remontam à
época pré-cristã. Esta opinião foi refutada por E. PETERSON, "Bemerkugen zur
mandãischen Literatur" (ZNTW, 25, 1926, p. 216 ss.), "Urchristentum und Man-
dãismus'' (ZNTW, 27, 1928, p. 1 ss.), "Der gegenwãrtige Stand der Mandaerfrage''
(TheoL Blatler,7,1928, col. 12) e, sobretudo, por H. LIETZMAN, "Ein Beitragzur
Mandaerfrage" (SB Preuss. Ak. d. Wiss. Phil.-Hist. KL, 1930). Ademais, a uttilzação
dos textos mandeus caiu em descrédito já que, durante longo tempo, citá-los era uma
"moda" entre os exegetas do Novo Testamento. Tais ''modas" têm, amiúde, um papel
excessivo na história da teologiae da exegese. Nos anos 1925-1930, era quase impos-
sível abrir um livro ou ler um artigo sem encontrar os mandeus citados ao menos
uma vez. M. GOGUEL falava então com razão da "febre mandeana" que havia apa-
nhado os historiadores do Novo Testamento (João Batista, 1928, p. 113). Porém,
como ocowft (veqtteMemente com as modas, esta ícbst desapareceu e, por temor de
parecer pertencer a uma moda ultrapassada, dedíca-se aos mandeus total silêncio, o
que é tão injustificado como citá-los a cada passo. É somente nestes últimos anos
que se recomeçou a estudar a questão mandeana (cf. tfepois do trabalho mais antigo
de H. SCHLIER, Tlieol. Rundschau, N. F., 5, 1933, p. 1 ss. H. CH. PUECH, "Le
mandéisme, le manichéisme", na Histoire générale des religions, III, 1945, p. 67
ss.). No Congresso Internacional de história das religiões, reunido em Amsterdã em
1950, W. BAUMGARTNER apresentou um informe sobre estes recentes estudos;
mostrou <jue a origem pré-cristã mandeana pode ser considerada como demonstrada
e que é, por conseguinte, legítimo utilizar os textos mandeus para a explicação do
Novo Testamento ("Der hcutige Stand der Mandaerfrage" TliZ 6 1950 p 401 ss.)
Acrescentemos que as recentes descobertas de manuscritos da seita da nova aliança
confirmam a existência de um gnosticismo judeu pré-cristão, e que por esta linha
é também possível fixar uma data remota para as fontes dos escritos mandetis
CftíSTOLOGIA DO NOVO TESTAMEhTTO 49

pode-se ler em muitas ocasiões: "João tomará o Jordão e será cha-


mado profeta em Jerusalém."66
> Em resumo, chegamos às seguintes conclusões segundo os
sinópticos e os textos mandeus: 1) t, certo que João ísatista foi
considerado depois de sua morte, por seus discípulos, como o pro-
feta (sem dúvida, antes de tudo, como Elias que voltou à terra), ou
seja, como precursor de Deus, de tal maneira que um Messias
especial se torna inútil; 2) É certo que os discípulos de Jesus e ele
mesmo consideraram o Batista como o profeta, como Elias de vol-
ta à terra, porém, somente na qualidade de precursor do Messias;
3) É impossível que João Batista tenha se considerado como o
profeta no primeiro sentido, mas é por outro lado possível - e não
se pode dizer mais do que isso - que ele tenha se considerado
como o profeta precursor do Messias.
Resta-nos perguntar: Qual é a posição tomada a este respeito
pelo quarto Evangelho? Segundo este, o próprio Batista, expres-
samente, declinou da honra de ser considerado como o profeta,
mesmo no segundo sentido. Ele não quer se passar por profeta
escatológico e rejeita também toda assimilação a Elias. Contenta-
se em ser uma "voz" ((pcovf|) que clama no deserto, como o antigo
profeta. Em outras palavras: quer ser somente um profeta à manei-
ra dos do Antigo Testamento.67 João 1.21 diz isso com toda clareza:
"Perguntaram-lhe: És tu Elias? Ele respondeu: Não". João recusa,
pois, para sua pessoa, o título com o qual, segundo os sinópticos,
Jesus o distingue.
Em todo o quarto Evangelho, e em particular no prólogo, apa-
rece uma polemica dirigida não contra João Batista mesmo, mas

(cf. abaixo, p. 41). Valeria a pena, à luz dos textos recentemente descobertos, exa-
minar de perto as relações entre os mandeus e os essêmos; uma primeira tentativa foi
feita porF. M. BRAUN, "Le mandéisme et lasecteesséniennedeQumran'' (VAncien
Testament et VOriem, Louvain, 1957, p. 193 ss.): os mandeus teriam surgido do
grupo dos essênios.
'* Cf. M. LIDZBARSKI, Johannesbuch des Mandãer, 1915, p. 78.
''"' O evangelista pensa, ao mesmo tempo, na oposição entre esta "voz" e a "Palavra" de
que fala no prólogo.
•50 Oscar Cullmann

contra a seita do Batista que, depois de sua morte, o considera


como o profeta do fim dos tempos, como o precursor de Deus e
lhe atribui, assim, um papel definitivo que exclui a vinda posterior
de um Messias. Pode-se assim demonstrar68 que o prólogo inteiro
é dirigido contra aqueles que queriam exaltar o Batista em detri-
mento de Jesus, isto é, contra os precursores dos mandeus. É por isso
que o autor afirma: "Ele (João) não era ele mesmo a luz7'. Ao mes-
mo tempo, combate um dos maiores argumentos dos seguidores
desta seita, o argumento cronológico: João, tendo vindo antes de
Jesus, é maior que ele. O prólogo cita uma palavra do próprio Batis-
ta: "Aquele que vem depois de mim é superior a mim, porque
existia antes de mim" (João 1.15). Reconhecemos aí a afirmação
da preexistência de Cristo.6';
Esta tendência polémica dirigida não contra João, mas contra
a seita de seus discípulos, se encontra no restante do Evangelho.
Por isso o evangelista insiste tão energicamente sobre o fato de
que o próprio João tenha recusado a si o título de "Cristo". João
1.20: "Ele declarou e não negou, ele declarou..." (àu,o*A,ÓYrio"£v
m i oi)K íipvriaato, KOIÍ w\io^óyriGev). Esta insistência não tem
sentido senão em relação a uma afirmação contrária (indicada em
Lc 3.15). Segundo os escritos pseudoclementinos, seus discípu-
los, agrupados em uma seita que o considerava como o Cristo,
devem ter sido particularmente numerosos nos meios aos quais o
Evangelho de João se dirigia. Assim se explica que o quarto evan-
gelista seja o único que tenha transmitido certas palavras em que
o próprio Batista sublinha sua inferioridade em relação a Jesus.
Segundo 3.28 ele diz: "Vós sois minhas testemunhas de que vos
tenho dito que eu não sou o Cristo". No versículo 30: "É necessá-
rio que ele cresça e que eu diminua". Ele designa a Jesus como
aquele que vem do alto, enquanto que ele mesmo vem da terra:
"Aquele que vem do alto está acima de todos; aquele que vem da

Cf. W. BALDENSPERGER, Der Prolog des Johannesevangeliums, 1898.


Cf. meu artigo citado na p. 47, nota 62.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 51

terra é terreno e fala como sendo da terra" (3.31). João Batista não
se considera, pois, como o profeta prometido.
9 Compreendemos melhor isto recordando que, para o Evange-
lho de João, Jesus é este profeta, pois resume em sua pessoa as
funções de todos os mensageiros divinos. O Batista recusa não
somente ser considerado como Messias, mas ainda como o profe-
ta escatológico, como Elias de volta à terra. Este quadro poderia
bem corresponder à realidade. Aliás, isso não entra em contradi-
ção com os sinópticos, segundo os quais João Batista, certamente,
não se fez passar nunca por precursor do próprio Deus e, talvez,
nem sequer se tenha considerado como o precursor do Messias.
O Evangelho de João dá, sem dúvida, a resposta exata ao dizer
que João Batista pura e simplesmente recusou que o chamassem
de "o profeta".
Veremos que no começo do século n, uma polemica opunha
os discípulos de João aos judeu-cristãos.70 O centro desta discus-
são se encontrava não no título de "Cristo", mas no de "profeta".
Os judeu-cristãos chamavam a Jesus "o verdadeiro profeta", e che-
gavam a fazer de João o representante da falsa profecia. O objeto
desta primeira controvérsia cristológica não era, pois, no fundo,
uma cristologia mas uma "profetologia", e os adversários em ques-
tão não eram judeus e cristãos mas discípulos do Batista e cris-
tãos. Isto mostra a importância desta noção de "profeta".

b) Jesus

Chegamos agora aos textos que aplicam a Jesus o título de


"profeta". Devemos fazer uma observação prévia: É preciso dis-
tinguir as passagens que nomeiam a Jesus como "um profeta" (pelo
lalo de já terem havido muitos outros) daquelas em que aparece
como "o profeta" único do fim dos tempos. No fundo, estas últi-
mas passagens são as únicas que concernem ao problema cristo-

"'(')'., abaixo, p. 61 ss.


•52 Oscar Cullmarm

lógico propriamente dito, isto é, ao problema do caráter específico


e único de Jesus. As funções que Jesus partilha com outros homens
não se relacionam a este conceito senão indiretamente. Porém,
como a noção de profeta do fim dos tempos está estreitamente
ligada à noção israelita de profeta em geral, nos será necessário
citar aqui, sem determo-nos muito neles, os textos nos quais Jesus
parece ser um profeta entre outros. O que temos dito de João Batis-
ta vale também para Jesus: o simples fato de surgir novamente um
profeta, depois de uma longa interrupção, era considerado como
sinal da inauguração do fim dos tempos. É verdade que a aparição
de Jesus, seguindo tão de perto a do Batista, deve ter, deste ponto de
vista, produzido menos sensação.
Lemos em Lc 7.16, no fim do relato da ressurreição do jovem
de Naim: "Todos foram possuídos de temor e glorificaram a Deus
dizendo: Um grande profeta se tem levantado entre nós." Aqui
não há artigo definido e o substantivo 7tpocpfiTTiç está até acompa-
nhado de um adjetivo. A multidão não toma, pois, a Jesus pelo
profeta dos últimos tempos, porquanto este não necessita do epíteto
Péfaç.71 Aqui, posiciona-se a Jesus simplesmente na categoria
dos profetas à qual outros também pertenceram. Um milagre como
o que acaba de ser relatado mostra que o Espírito de Deus, que
atuou outrora pela pessoa dos profetas, está atuando novamente
com poder. Este fato, não obstante o juízo da multidão, não se
reveste de um caráter diretamente escatológico.
Mateus 21.46 relata que os principais sacerdotes e os fariseus
tentaram prender a Jesus, porém, temeram a multidão "porque o
tinham por profeta". Também, aqui se trata de um profeta e não do
profeta escatológico.
A mesma coisa ocorre em Mc 6.4, onde Jesus designa a si
mesmo um profeta, ao falar, depois de seu fracasso em Nazaré:
"Um profeta não é desprezado senão em sua terra, entre seus paren-

Seria de outro modo se riyép6r| devesse ser tomado em um sentido mais forte c ser
traduzido por "ressuscitado". Neste caso, tratar-se-ia da crença no retorno escatológico
de antigos profetas. Porém, é pouco provável que esta tradução seja a correia.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO -3

tes e em sua casa." Um pensamento análogo se expressa na queixa


de Jesus sobre Jerusalém "que mata os profetas" (Mt 23.37). Este
versículo confirma ao mesmo tempo o que já temos notado,72 a
saber: o sofrimento é a sorte dos profetas, e, em especial, faz parte
de sua função escatológica.
Muito mais importantes são as passagens do Novo Testamen-
to que designam Jesus como o profeta esperado do fim dos tem-
pos, o profeta que retornou à terra.
Começaremos por Mc 6.14 ss.: "dizia-se: João Batista res-
suscitou dentre os mortos e por isto estão operando nele (Jesus)
milagres. Outros diziam: É Elias. E outros diziam: É (um profeta
como) um dos antigos profetas. Porém, ouvindo-o Herodes, disse:
"é João, a quem eu fiz decapitar; é ele que ressuscitou."
O evangelista relata aqui três declarações pelas quais o povo
c Herodes tentam responder à pergunta sobre quem é Jesus. Estas
declarações são tanto mais preciosas pelo fato de que são feitas
durante a vida de Jesus. Encontram-se, pois, entre as explicações
mais antigas sobre o mistério de sua obra e de sua pessoa. O que
chama a atenção, antes de tudo, é que os títulos cristológicos fun-
damentais: "Messias" (Cristo) e "Filho do Homem", não se encon-
tram aí. A primeira das três opiniões, à qual Herodes adere, é que
Jesus é João Batista ressuscitado dentre os mortos. Esta é uma
explicação cristológica que merece maior atenção que a que se lhe
dá geralmente, sobretudo por causa de sua antiguidade e, também,
por causa da curiosa crença que implica. A segunda opinião é que
Jesus é Elias; a última, segundo a maioria dos manuscritos, é que
Jesus "é um profeta como um dos antigos profetas" (de acordo
com o texto ocidental: "é um dos profetas").
Comecemos pela primeira: Jesus é João Batista ressuscitado
ilos mortos.
À primeira vista se poderia pensar que esta crença singular
i ião é mais surpreendente que aquela que vê em Jesus, Elias. Porém,
na realidade, a diferença é grande, pois Elias pertencia a um pas-

cei, acima, p. 42 ss.


54 Oscar Culltnann

sado remoto, e a crença em seu retorno pode ser facilmente expli-


cada. João Batista, pelo contrário, segundo o Evangelho de Lucas,
contava só alguns meses a mais que Jesus. A ideia de que Jesus
fosse o Batista ressuscitado indica algumas pressuposições. Pri-
meiramente, com respeito às relações entre Jesus e o Batista: é neces-
sário que suas atividades respectivas tenham estado separadas
no tempo e no espaço, pois aqueles que tinham a Jesus por João
Batista ressuscitado não podiam tê-los visto atuar juntos. Portan-
to, enquanto João pregava e batizava, Jesus passou despercebido,
pelo menos em relação a uma parte do povo. Isto concorda, ade-
mais, com o que nos dizem os sinópticos: Jesus não começou sua
atividade pública senão quando João Batista já estava encarcera-
do. Antes disso Jesus parece ter atuado à sombra do Batista, após
ter recebido dele o batismo; no início, Jesus deve ter se passado
por um de seus discípulos.

Em Mt 11.11 traduzo com Fr. Dibelius7 e os mais antigos Pais da


Igreja, 4 conforme a gramática: "Aquele que é o menor (Jesus, na quali-
dade de discípulo) é maior que ele (João) no reino dos céus."75

Segundo o Evangelho de João, houve um período em cujo


decurso ambos trabalharam simultaneamente, embora cada um por
seu lado. Tal lapso não deve ter tido longa duração, e a atividade de
Jesus não deve ter chamado naquele momento maior atenção, como o
prova justamente a crença popular de que Jesus seria o Batista ressus-
citado. No tocante à relação cronológica entre o Batista e Jesus, a
multidão não teve a impressão de simultaneidade, mas a de sucessão.
< ^ Temos de admitir que a ideia popular que aqui se testemunha
era compartilhada unicamente por quem não tinha vivido no
ambiente imediato ao Batista nem a Jesus: pois nesse caso eles

n
"Zwei Worte Jesu" (ZNTW, 11,1910, p. 190 ss.).
74
JERÓNIMO constata em seu Comentário de Mateus: "Multide Satvatore hoc inteliegi
volunt, quod quí minor est tempore, maior JÍÍ dignitate" (PL 26, 74 A). Estfi inter-
pretação se encontra ainda em ORÍGENES (PG 17, 293 B), HILÁRIO (PL 9,981 A)
e CRISÓSTOMO (PG 57, 422).
75
Cf. meu artigo citado na p. 47, nota 62.
CRISTOLOGIA DO INOVO TESTAMENTO 55

teriam tido a ocasião de, ao menos uma vez, vê-los juntos (no
momento do batismo de Jesus) - ou, pelo menos, de terem ouvido
falar disso, o que faria com que não pudessem tomar Jesus pelo
Batista ressuscitado.
Nosso texto levou Orígenes a uma observação que carece,
certamente, de fundamento histórico; porém, que surge de uma
uma reflexão. Fala de uma semelhança física entre Jesus e João
76
(KOIVÒV irjç uopípfjç). Isto não se destaca necessariamente de
nosso texto, porém, pode se dizer, sem vacilação, que em sua apa-
rição traços comuns tenham se apresentado.77 Não há contradição
entre isto e Mt 11.18 ss., onde o povo diz que João veio como
asceta (jjrrte èaGícov, UTITE TTÍVCOV), enquanto que acerca de JJsus
diziam que era comilão e beberrão. Tal constatação da diferença
nas maneiras de viver prova que se fazia comparação entre eles; e
que deviam, por conseguinte, ser comparáveis.
5.. A ideia de que Jesus fosse o Batista ressuscitado supõe também
uma certa concepção popular da ressurreição que devia estar muito em
voga entre o povo na época de Jesus; e deste ponto de vista igualmente
convém deter-se um pouco no exame da passagem que nos ocupa.
Segundo o que Paulo diz em 1 Co 15.35 ss., ressuscitar-se-á no fim dos
tempos com um corpo espiritual (oíãuxt 7tvet)p.c(tiKÓv), não com um cor-
po carnal e terreno. A ideia popular que encontramos em Mc 6 representa
a ressurreição como revificação do corpo carnal. Não se trata, pois, como
em Paulo, da transformação de um corpo carnal em corpo espiritual.
Outro assunto está implicitamente esboçado por esta crença popu-
lar: a relação entre a ressurreição e a reencarnação. A ressurreição não
pode ser compreendida aqui como a reencarnação da alma (de João) em
outro corpo (o de Jesus). O emprego do verbo éyí]YepTca basta por si
para excluir semelhante explicação, pois este verbo supõe sempre o des-
pertar de um homem imerso no sono da morte, o retorno da alma e do
corpo à vida.™ No entanto, há uma grande diferença entre esta ideia, de

"' ORÍGENES, In Ioan, VI, 30 (PG 14, 285).


11
Deve-se, sem dúvida, concluir daí que, contrariamente à opinião de LOHMEYER (Das
Evangelium des Markus, 1937, p. 116, nota 2), João também deve ter feito milagres.
K
Sobre a significação de èYEÍP&IV e a diferença com ÈivíctacOai, cf. E, L1CHTENSTEIN,
"Die ãlteste Kirchliche Glaubesformel" (Zeitschr. f. Kirchengesch. 63, 1950,
p. 26 ss.).
&L Oscar Cullrnann

uma ressurreição de João Batista, e a ressurreição de Jesus: João não


teria ressuscitado para ser chamado a Deus. Não se trataria pois de uma
àváaiacriç, mas somente de uma eyepmç. Menos ainda se trataria de
translação de João ao céu depois de sua morte.

Tratar-se-ia, pois, de um retorno verdadeiro e milagroso de João


com o corpo que tinha no momento de sua morte. Isto supõe que
aqueles que criam nesta ressurreição jamais haviam visto João e
Jesus juntos, nem tampouco a Jesus antes do começo de sua ativida-
de pública. Deviam, com efeito, admitir que aparecera bruscamente
sobre a terra, imediatamente após a morte do Batista ou, ao menos,
muito pouco tempo depois. No fundo, nada teria mudado no que
concerne a João, salvo o nome; sua vida terrena teria simplesmente
continuado sob o nome de Jesus. Há, efetivãmente, exemplos de
semelhante crença judaica no retorno milagroso de um profeta com
o corpo que tinha no momento de sua morte.79
Nós podemos ainda tirar outra conclusão desta crença popular: os
contemporâneos de Jesus se interessavam unicamente por sua atividade
pública; sua vida anterior não lhes apresentava nenhum problema, sobre-
tudo porque, para eles, esta se identificava com a do Batista.

Dando por assentado que João Batista havia sido considerado


como o profeta e, portanto, que se havia visto em sua aparição o
sinal do despertar escatológico da antiga profecia, identificar
Jesus e João era, definitivamente, identificar Jesus com o profeta
do fim dos tempos. O principal aqui é que este profeta, aparecido
na pessoa de Jesus, não leva o nome de urn dos antigos profetas,
mas o de um homem morto recentemente, em época já escatológica,
e que havia ressuscitado quase em seguida.
1 Não é necessário deter-se longamente na segunda opinião
corrente entre o povo de acordo com Mc 6.15, segundo a qual
Jesus teria sido Ehas. Trata-se aqui, no fundo, da crença no retor-
no escatológico do profeta que prepara os caminhos de Iahweh.

Cf. STR.-B1LLERBECK, 1, p. 679.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 57

Enfim, no que concerne à terceira opinião, estamos na presen-


ça de duas leituras diferentes do texto, e nos é necessário, antes de
ludo, falar do problema da crítica dos textos. A maior parte dos
manuscritos lê: "um profeta como um dos profetas" (TTpOípfJTriç ò>ç
cíc, TfòV 7ipo(pr)TCÒv). Segundo esta leitura, esta opinião seria dife-
rente das duas precedentes: quer somente dizer que a antiga profe-
cia havia despertado outra vez. Isto é bem possível. Não obstante, e
apesar de uma opinião geralmente admitida, nos vemos levados a
crer que o texto ocidental (representado pelo manuscrito D, e alguns
outros testemunhos) oferece a melhor leitura. Aí lemos: "É um dos
profetas" (etç T-còv Trpo(prtTÔv). Jesus não seria então comparado,
de maneira geral, com um dos antigos profetas, mas identifica-
do com ele. Dito de outro modo, segundo o texto ocidental, a ter-
ceira opinião concorda com as outras duas: no fundo é a mesma.
Não seria mais que uma variante da mesma crença popular. Trata-
sc, nos três casos, do profeta do fim dos tempos: na primeira vez
cie é designado como João Batista ressuscitado; na segunda, como
Elias ressuscitado, e na terceira renuncia-se a dar-lhe um nome, já
que como temos visto, este nome pode variar. Uma hora é Elias,
outra Moisés outra Enoque ou ainda Jeremias que há de voltar.

O texto paralelo de Lc (9.8)8í) mostra que Lucas leu nosso relato


sob a forma que lhe é dada na variante D de Mc 6.15, porém, é compre-
ensível que uni copista tenha acrescentado, mais tarde, as palavras
7tpo(pTVTnç <*>Ç> dando assim à terceira opinião outro sentido: Jesus teria
sido conhecido como um dos antigos profetas. Ele ignorava, sem dúvida,
a crença outrora bem difundida no retorno do profeta. Veremos que, efe-
tivamente, a ideia de se considerar a Jesus como o profeta do fim dos
tempos desapareceu muito cedo da teologia eclesiástica. Este copista
teria, pois, tentado tornar mais claro este texto, incompreensível para ele,
sem dar-se conta de que lhe tirava, assim, seu sentido primitivo. A leitura
D deveria, pois, ser preferida como lectio difficilior.

Esta maneira de ver é confirmada pela passagem já citada de


Mc 8.28 onde, em um contexto completamente distinto, encontra-

m
Lc 9.8: itpo(pf|Tr|Ç t»Ç TÔV àpxcácov àvéotr|.
•58 Oscar Cullmann

mos relacionadas as mesmas três explicações populares da pessoa


de Jesus: "Alguns dizem que és João Batista, outros, Elias, e
outros "um dos profetas" (eíç %<òV Tpocpiytrôvv)
v A opinião consignada em Mc 6.14 ss. e 8.28 é ainda a que o
povo expressa, segundo Mt 21.10, depois da entrada em Jerusalém:
"é Jesus, o profeta (ó íipo(pfiTn,ç) de Nazaré da Galileia". Se recor-
darmos que Jesus acaba de ser aclamado como "o Filho de Davi",
devemos, sem dúvida, admitir que aqui também, ao chamá-lo de
"o profeta", o povo pensa no profeta do fim dos tempos, se bem
que não fique excluído que se fale de Jesus como de um simples
representante do género profético.
Os evangelhos sinópticos mostram, pois, que uma parte do povo
considerava Jesus, durante sua vida, como o profeta esperado para o
fim dos tempos. Este fato é tanto mais importante considerando-se
que nem Mateus, nem Marcos, nem Lucas tenham se servido des-
te título para expressarem sua própria fé em Jesus. Eles não viram,
pois, em Jesus o profeta, o Elias ressuscitado, antes, se limitaram
a reproduzir esta opinião como sendo a de uma parte do povo. Seu
testemunho a este respeito tem então muito mais valor.

É possível que esta crença popular tenha sido particularmente


comum na Galileia, sobretudo se recordarmos que entre os vizinhos
samaritanos, a esperança de um retorno do profeta estava muito viva.
Neste caso, teríamos aí uma nova contribuição ao problema esboçado
por E. Lohmeyer em seu livro "Galileia und Jerusalém" (aparecido em
1936). Já indicamos que a ideia de um "mestre escatológico", que
Lohmeyer crê poder descobrir na cristologia galileana, deve ser identi-
ficada com a do profeta (cf. p. 13).

-^ Jesus considerou-se a si mesmo como o profeta escatológico?


^ É a João Batista que ele atribui este título, com a função que a ele
se relaciona: "se quereis admiti-lo, é ele aquele Elias que havia de
vir" (Mt 11.14). A restrição: "se quereis admiti-lo", significa, sem
dúvida, que o nome do profeta que volta - Elias ou outro dos anti-
gos profetas - não tem grande importância. O essencial para Jesus
é que, na pessoa de João, o profeta do fim dos tempos "já veio",c
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 59

que eles "o trataram como quiseram" (Mt 17.12; Mc 9.13). Pode-
mos, pois, afirmar que, segundo os sinópticos, Jesus não se consi-
derou como o profeta esperado para o fim dos tempos; esta opi-
nião não é atribuída senão a uma parte do povo.
-•• O Evangelho de João conduz ao mesmo resultado. Nele, tam-
bém, só a multidão dá a Jesus o título de "profeta". É assim que
aqueles que participaram do milagre da multiplicação dos pães
exclamam: "Este é verdadeiramente o profeta que havia de vir ao
mundo" (Jo 6.14). É claro que não se trata aqui de um profeta
entre outros de Israel, mas do profeta esperado para o fim dos tem-
pos: ó èp%óp.£VOÇ eíç tòv KÓ0Ux>v É, por outro lado, interessante
constatar que a expressão ó èp%óp,evoç se encontra na pergunta
feita pelo Batista (Mt 11.3). Parece, pois, verossímil que tenha-
mos aqui um termo técnico que designa o profeta escatológico,
K^H em hebraico. Aqui também é, portanto, o povo quem pronun-
cia esta confissão cristológica, ou antes "profetológica". Chega-
mos, pois, à conclusão seguinte: tanto segundo os sinópticos como
segundo o Evangelho de João, uma parte do povo expressa sua fé
em Jesus dando-lhe o título de "o profeta"; termo que recupera, aliás,
tudo o que a esperança judaica encerrava. Temos que repetir aqui
que o anúncio de Jesus acerca de seu próprio retorno sobre a terra é
de certa forma prefigurado pela crença no retorno do profeta.81
Os três primeiros evangelistas não recorreram a este título
para expressar sua própria fé em Jesus. Parece, por outro lado, que
ele teve uma certa importância para o autor do Evangelho de João.
Recordemos que este insiste muito sobre a recusa para si que o
Batista fez do título de "profeta", de Elias ressuscitado; sem dúvi-
da ele quer, com os demais títulos cristológicos, reservá-lo a
Jesus. E assim que Nicodemus chama a Jesus de "o mestre vindo
de Deus" (Jo 3.2). G. Bornkamm mostrou, aliás, como a figura do
Paracleto tomou, no Evangelho de João, os traços essenciais do
profeta que deve também "conduzir-nos a toda verdade", porém,
de tal maneira que o precursor não é senão um com aquele que é

Cf. acima, p. 35.


60 Oscar Cullmantt

encarregado da realização.82 É que para o Evangelho de João não


há título messiânico algum que não encontre em Jesus Cristo seu
cumprimento. É por isso, por outro lado, que ele põe tal cuidado
em distinguir Jesus de uma figura como Moisés: se Jesus, enquan-
to oLogose o Cristo, é, ao mesmo tempo, o profeta, Moisés já não
pode mais ser considerado como o profeta por excelência. Daí a
recusa enérgica de ver em Moisés aquele que dá "o pão que vem
do céu" (Jo 6.32; cf. 1.17).
A respeito dos demais escritos do Novo Testamento, já vimos
que a primeira parte de Atos (isto é, aquela que contém principal-
mente as tradições judaico-cristãs) informa duas vezes (3.22 e 7.37)
que Jesus é o profeta predito por Moisés (Dt 18.15); e sabemos
que esta passagem importante do Antigo Testamento contribuiu
imensamente para fundamentar a crença judaica no profeta do fim
dos tempos. Na segunda parte do Livro de Atos, que trata da mis-
são de Paulo, não encontramos em nenhuma parte, como tampouco
achamos nas epístolas, Jesus identificado com o profeta.
Em 2 Ts 2.6 ss., nós encontramos, no entanto, a menção da atividade
escatológica de um pregador do arrependimento; porém, não se trata de Jesus.
Parece-nos que este KCCTÉXWv é o próprio apóstolo Paulo. Em nosso artigo: "Le
caractere eschatologique du devoir missionaree et de la conscience apostolujue
de saint Paul. Etude sttr le KOCZÉXWV de 2 Ts 2.6-7" (RHPR, 16, 1936, p. 210
ss.) tentamos mostrar que esta passagem, como outros textos do Novo Testa-
mento, pressupõe que antes do fim Deus enviará um precursor que prepararáo
fim do mundo. Porém, aqui nãoé só o povo de Israel o que deve estar prepara-
do, mas o conjunto das nações. E este profeta escatológico enviado entre os
pagãos é o apóstolo Paulo.Sí

A parte o Evangelho de João e a primeira parte (judaico-cristã)


de Atos, em nenhum outro lugar Jesus é considerado como o profeta
que no fim dos tempos deve preparar os caminhos de Deus. Esta
explicação da pessoa e do papel de Jesus não durou muito e bem cedo

!
-G. BORNKAMM, "Der Paraklet im Johaiinesevangelium" (FestschriftR. Bidtmann,
1949, p. 12 ss.).
SJ
J. MUNCK se associa a nossa tese em sua recente obra: Pauhts und die
Heihgeschichte, 1954, p. 28 ss.
CRISTOLGGlA DO NOVO TESTAMENTO 61

caiu frente a outras explicações acerca do mistério escatológico.


Veremos o porquê. Porém, antes precisamos falar de uma ramifi-
cação do cristianismo nascente cuja cristologia foi construída
inteiramente sobre a noção de "profeta".

3. JESUS O "VERDADEIRO PROFETA", NA CONCEPÇÃO


JTJDAICO-CRISTÃ TARDIA

Na história da solução do problema cristológico - e fora esta


parte do povo que considerava Jesus como João regressado à vida,
como Elias ressuscitado - só uma facção cristã viu verdadeira-
mente em Jesus o profeta por excelência: foi a do judeu-cristianis-
mo. Sua desaparição assinala a extinção desta antiga concepção
cristológica. Encontramo-la primeiro no Evangelho dos Hebreus,
em uso - segundo sabemos - entre os judeu-cristãos. Infelizmen-
te, não possuímos deste documento mais do que alguns fragmen-
tos.84 A passagem conservada no Comentário de Isaías de São
Jerónimo (extraída do fim do relato do batismo de Jesus)85 mostra
que neste evangelho apócrifo a concepção cristológica fundamen-
tal era a de profeta. O Espírito diz aqui a Jesus: "Eu te esperei em
todos os profetas, a fim de que tu viesses e que eu pousasse em ti".
Sem dúvida, as palavras, dirigidas pelo Espírito a Jesus, se esten-
diam ainda mais neste evangelho.
No entanto, a lacuna que nosso conhecimento deste evange-
lho apresenta é preenchida por um antigo documento judeu-cris-
tão, os Kerygmata Petrou, que nos foi conservado no romance
pseudoclementino.86 Neste texto Jesus leva, primeiramente, o título

S4
Reunidos porE.KLOSTERMANN,i4/wci>7?/!a II (Kl. Texto n° 8,3a ed., 1929), p. 5 s.
K;i
Cf. acima, p. 35, nota 17.
51
• Cf. a tradução alemã de H. WAITZ(H, VEIL), em HENNECKE, Neutestamentliche
Apokryphen2 2*éd., 1924, p. 153 ss. e215ss. - a qual não pôde ainda tomar por base
uma edição crítica do texto. (Porém, 3a ed. em prep.) Existe uma das Homilias, na
coleção dos Griech. Christl. Schriftsteller. Die Pseudokleinentineii. 1. Homilien,
ed. por B. REHM, 1953. Para os estudos relativos aos escritos pseudoclementinos,
cf. H. WAITZ, Die PseudoKlemertúnen, Homilien und Rekognitionen, 1904;
O. CULLMANN, Le problème litéraire et historique du rotnan psettdoclémetttin,
62 Oscar Cullmann

de "verdadeiro profeta", ó àVn&ry;TCpo(pT)Triç;e toda a cristologia


está orientada para este título. Porém, a antiga noção de Jesus como
o profeta encontra aí um desenvolvimento novo, a saber: a con-
cepção escatológica primitiva passa, mais ou menos, para segun-
do plano, para dar lugar a um elemento especulativo e gnóstico.
É isto o que já indica o adjetivo "verdadeiro", àXr)6r|Ç, que acom-
panha constantemente o substantivo "profeta". Segundo a antiga
crença, o profeta apareceria essencialmente para inaugurar o fim
dos tempos e consumar, assim, a obra dos antigos profetas; aqui,
ele é antes de tudo aquele que leva a sua consumação e perfeição a
verdade anunciada por todos os profetas. Percebe-se aqui um cer-
to parentesco com o Evangelho de João, que também apresenta o
Cristo, antes de tudo, como o Logos, o portador da verdadeira
revelação, e que mostra um interesse particular pelo título cristoló-
gico de "profeta". Porém no Evangelho de João esta concepção se
insere em uma cristologia autenticamente bíblica enquanto que
com os Kerygmata Petrou nos encontramos na presença de uma
especulação tipicamente gnóstica A obra inteira tem aliás um
caráter °~nóstico bem acentuado 87
É falso considerar a teologia judaico-cristã e o gtiosticismo como
duas doutrinas opostas entre as quais se teria desenvolvido a teologia da
igreja antiga. Tem-se o costume de opor a cristologia judaico-cristã à
cristologia gnóstica e docética. Na realidade, as fontes nos mostram que o
mais antigo gnosticismo cristão, aquele cujas primeiras marcas achamos
no Novo Testamento, tem vinculação judaico-cristã. As primeiras indica-
ções precisas sobre o docetismo, que devemos a Inácio de Antioquia, não
deixam lugar a dúvidas sobre a origem judaico-cristã desta heresia.

1930; H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judencliristentums, 1949


(sobre este último livro, cf. as resenhas críticas de G. BORNKAMM emZ^/rsc/u; /
Kirchengesch. 1952-53, p. 196ss. edeBULTMANN,e/H Gnomon, 1954, p. 177ss.).
*7 H. J. SCHOEPS busca, é verdade, demonstrar que, contrariamente à nossa tese, não
haveria aí gnosticismo. Porém, trata-se sem dúvida de uma simples questão tle pala-
vras, pois Schoeps parece ter uma concepção demasiado estreita do gnosticismo.
Na realidade, as recentes descobertas de Qumran proporcionam uma nova prova da
existência de um gnosticismo judaico. Por outro lado, Schoeps revisou posterior-
mente sua opinião; cf. abaixo, p. 193, nota 315.
C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 63

Desde o primeiro capítulo os Kerygmata Petrou se ocupam


do verdadeiro profeta. Compara-se o mundo, com seus pecados e
erros, a uma casa cheia de fumaça. Aqueles que nela estão inten-
tam em vão captar a verdade; porém, esta não pode entrar. Só o
verdadeiro profeta pode abrir a porta e fazer entrar a verdade. Este
profeta é o Cristo, que apareceu pela primeira vez no mundo na
pessoa de Adão. Adão já é, pois, o verdadeiro profeta e como tal
anuncia o mundo futuro. Em nosso capítulo sobre o Filho do
Homem, veremos que os judeu-cristãos associaram assim a noção
de profeta à de Filho do Homem.88 Desde a criação do mundo, o
verdadeiro profeta corre os séculos trocando de nome e de aparên-
cia, encarnando-se sempre de novo: em Enoque, Noé, Abraão,
Isaque, Jacó e Moisés. Este renovou a lei eterna que Adão já havia
proclamado. Por concessão ao endurecimento de Israel, e a fim de
evitar piores abusos, autorizou os sacrifícios. Porém, esta autori-
zação não era senão provisória, já que o próprio Moisés anuncia
um profeta futuro (Dt 18.15). Da mesma forma que nos demais
textos judaicos em que se trata do "profeta", esta passagem de Deu-
teronômio desempenha um grande papel. Porém, aqui se atribui
ao verdadeiro profeta a missão particular de proibir os sacrifícios
autorizados por Moisés. Este é um ponto ao qual os judeu-cristãos
dão muita importância. Esta proibição é, pois, segundo eles, uma
das funções essenciais do profeta.89
Na pessoa deste profeta futuro, o verdadeiro profeta encon-
tra, afinal, o repouso, como no fragmento já citado do Evangelho
dos Hebreus.90 Ele é o Cristo. Pela abolição dos sacrifícios ele
realiza e corrige ao mesmo tempo a obra de Moisés. Uma linha
direta conduz, pois, de Adão a Jesus, e esta linha é a do profeta, de
quem Jesus é a encarnação perfeita.

íB
Cf. abaixo, p. 195 s.
SJ
' A questão é tratada um pouco difere LI temente - embora a orientação seja a mesma -
na Epístola de Barnabé. Nela o autor polemiza contra os sacrifícios judaicos, refe-
rindo-se ao sentido verdadeiro dos antigos profetas. Estes já são pois "verdadeiros
profetas", pela boca dos quais o Senhor fez conhecer sua vontade.
'"'Cf. acima, p. 35, nota 17.
. 64 Oscar Cullmann

Segundo esta curiosa teoria judaico-cristã, uma segunda


linha se desenvolve paralelamente, ao longo de toda a história, a do
falso profeta. Considera-se assim o bem e o mal sob o ângulo da
verdadeira e da falsa profecia. Vemos aqui até que ponto toda a
soteriologia está subordinada à noção profética. A história inteira se
desenvolve sob o signo de uma espécie de dualismo, simbolizado
por pares antagónicos (croÇoyím), cujo primeiro membro, chama-
do também esquerda, representa a falsa profecia, enquanto que o
segundo, chamado também direita, representa a verdadeira. Esta
oposição é dirigida, em particular, contra a seita dos discípulos de
João Batista, também combatida implicitamente no Evangelho de
João. Esta comunidade, antes de sua fusão com os mandeus,91 deve
ter representado, no fim do primeiro e começos do segundo século,
uma concorrência particularmente perigosa para o cristianismo pri-
mitivo, e muito especialmente para o judeu-cristianismo.
Recordemos que os discípulos de João viam em seu mestre o
profeta definitivo dos últimos tempos. Nas exposições da doutrina
pseudoclementina, não se tem prestado suficiente atenção ao fato de
que todo o sistema destes pares antagónicos é concebido em oposição
a esta doutrina. Segundo as especulações judaico-cristãs, reaparecem
sem cessar na história humana tais "syzygies"; nestes pares cada um
dos membros encarna, por assim dizer, em estado puro, a verdadeira e
a falsa profecia. A teoria gnóstica dos syzygies, que opõe os princí-
pios do bem e do mal, é posta assim inteiramente a serviço da espe-
culação acerca do "profeta". É assim que, no primeiro par, Adão, pri-
meiro representante da verdadeira profecia, se opõe a Eva, princípio
da falsa profecia; a Isaque, o verdadeiro profeta, se opõe Ismael, o
falso profeta; ao verdadeiro profeta Jacó se opõe o falso profeta Esaú.
Igualmente, Moisés aparece como o verdadeiro profeta frente a Aarão.
Tudo isto para poder, finalmente, opor Jesus, o verdadeiro profeta por
excelência, a João Batista, o falso profeta por excelência.
Vemos como neste escrito herético judaico-cristão a polémi-
ca contra os discípulos do Batista degenera em polémica contra o

Cf. acima, p. 47 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 65

próprio Batista. O quarto Evangelho combatia somente a quem


tinha João Batista por Cristo ou por "profeta"; não combatia a
pessoa de João; porém, desmentia em troca, pelas próprias pala-
vras do Batista, a ideia errónea que alguns faziam dele. Assim, no
curso da polémica contra os discípulos do Batista, o juízo acerca
da pessoa de João Batista sofre um desenvolvimento: nos sinópticos
ele é ainda considerado como o profeta; no quarto Evangelho, este
título lhe é negado. Nos escritos pseudoclementinos ele aparece
finalmente como o falso profeta. Estes mesmos escritos conside-
ram a Elias, sem dúvida identificado com João Batista, como o
representante da falsa profecia.92

Notar-se-á também que esta teoria judaico-cristã dos syzygies permite


combater o argumento cronológico segundo o qual o Batista seria superior a
Jesus por ser de maioridade. Encontramos marcas desta discussão já no Evan-
gelho de João (cf. acima, p. 49 s.). Porém, enquanto este responde afirmando a
preexistência de Jesus (daí sua prioridade absoluta), os autores dosKerygmata
Petrou procedem de outro modo. Reconhecem sem mais a prioridade de João
sobre Jesus, porém, reconhecem nesta mesma prioridade a prova de que se
trata de um falso profeta: éque, a partir da segunda syzygie, sempre o primeiro
membro do par representa a falsa profecia. Caim vem antes de Abel, Ismael
antes de Isaque, Esaú antes de Jacó, Aarão antes de Moisés, João Batista antes
do Filho do Homem; Paulo, o apóstolo entre os pagãos, antes de Pedro; o
Anticristo antes do Cristo da parusia.!',

Esta doutrina judaico-cristã está, pois, inteiramente domina-


da pela ideia de "profeta", tanto em seu aspecto positivo como em
seu aspecto polemico. O caráter escatológico inerente a esta ideia
no judaísmo, como também no Novo Testamento, passa, é verda-
de, a segundo plano. No entanto, lidamos aqui com a única cristo-
logia um pouco desenvolvida que descansa nesta antiga crença de

''•' Hom. II, 17, 1. Ele é, assim, posto no mesmo nível que os profetas cujos livros são
conservados pelo Antigo Testamento, e que são igualmente rejeitados como os fal-
sos profetas pelos Keiygmata Petrou.
11
Hom. II, 16-17; Rec. III, 61. Sobre a reconstituição da lista, cf. O. CULLMANN,Le
pruhleme historique et litéraire du roman pseudo-clétnentin, 1930, p. 89.
. 66 Oscar Cullmcmn

um retorno do profeta. É também, sem dúvida alguma, uma das


mais antigas que podemos encontrar.
O porvir, no entanto, não pertence a esta cristologia, mas, às
outras explicações da pessoa e da obra de Cristo. A solução "profe-
tológica" dos Kerygmata Petrou desapareceu junto com o judeu-
cristianismo. Ela não exerceu quase nenhuma influência no desen-
volvimento dogmático do cristianismo. Por outro lado, exerceu
uma poderosa influência sobre outra religião: o Islã, na qual o pro-
feta ocupa também uma posição central.94
Veremos, ademais, que mesmo fazendo abstração das espe-
culações gnósticas judaico-cristãs, a ideia de profeta escatológico
é demasiado estreita para abarcar, em toda a sua riqueza, a pessoa
e a obra de Cristo, e isto nos leva a nossa última questão.

4. "JESUS O PROFETA" COMO SOLUÇÃO DO PROBLE-


MA CRISTOLÓGICO DO NOVO TESTAMENTO

Que vantagens e que inconveniências apresenta a crença que


acabamos de estudar quando se trata de estudar o caráter original e
único da pessoa de Jesus, tal como ele nos aparece segundo o tes-
temunho da fé primitiva?
As vantagens são incontestáveis. Por um lado, ela explica o
caráter único da pessoa e da obra de Jesus, já que em sua pessoa
trata-se, se não da aparição final do próprio Senhor, ao menos da
aparição decisiva do profeta escatológico. Por outro lado, ela dá
conta do caráter humano de Jesus: é um homem que os judeus
esperavam como o profeta dos últimos tempos.
Se consideramos agora a missão deste profeta, será necessá-
rio convir que ela corresponde perfeitamente a todo um aspecto da
obra de Jesus, e, em todo caso, que não contém nada que se opo-
nha à essência e à finalidade desta obra, tal qual nô-la representam
os evangelhos. Deste ponto de vista, a noção de profeta apresenta
certas vantagens em comparação com a de Messias. Veremos, com

Cf. abaixo, p. 74 s.
(_R]STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

efeito, que na época de Jesus, ao menos nos meios dirigentes do


povo, se esperava que o Messias realizasse um programa político:
a luta e a vitória contra os inimigos de Israel, a restauração de
Jerusalém como capital de um reino puramente temporal etc; o
que contradiz abertamente o papel que Jesus se auto-assinalava.
A função do profeta escatológico consiste acima de tudo,
segundo os textos judaicos, em preparar por sua pregação o povo
de Israel e o mundo para a vinda do Reino de Deus; e isto não à
maneira dos profetas do Antigo Testamento, mas de um modo muito
mais direto: como precursor imediato do advento deste Reino. Ele
vem armado de uma autoridade escatológica que lhe é privativa.
Seu chamado ao arrependimento é absoluto e exige uma decisão
definitiva, o que dá à sua pregação um caráter final, absoluto, que
nem mesmo a palavra dos antigos profetas possuía no mesmo grau.
Segundo a forma em que se reage frente a este profeta, já se é
julgado, segundo diz o Evangelho de João (3.18). Temos visto que
este evangelho dá muita importância à cristologia do "profeta";
quando o èp%óu.evoç, o profeta que há de vir, toma a palavra, tra-
ta-se de uma palavra final, da última oportunidade de salvação
oferecida aos homens. Pois só sua palavra indica já a iminente
chegada do Reino. Esta função corresponde plenamente à maneira
em que Jesus compreendeu e viveu efetívamente sua missão terrena.
A autoridade, a èE^rooía, com a qual Jesus anuncia Seu evange-
lho, não é a de um profeta qualquer, mas a do profeta por excelên-
cia: "Mas eu vos digo" (èyw ôè A,éyco ópív). O conteúdo de sua
pregação correspondia, aliás, a esta autoridade escatológica: "Arre-
pendei-vos porque o Reino dos Céus se aproxima". Tal é o ponto
de partida de sua pregação: quer preparar os homens para a entra-
da no Reino que vem. O caráter escatológico de sua pregação é
incontestável.
A noção de "profeta" explica, pois, perfeitamente a atividade
de Jesus como pregador, assim como também a autoridade com a
qual atua e fala.
Temos que assinalar ainda que ela se associa muito facilmen-
te a outras noções cristológicas essenciais: à de Messias, no senti-
•68 Oscar Cullmaiw

do que este também deve aparecer no fim dos tempos para prepa-
rar a vinda do Reino de Deus; à ideia joanina do Logos, que une a
obra do profeta e sua pessoa identificando-os, por assim dizer: o
próprio Jesus sendo o Verbo. Pode-se recordar a este respeito o
começo da Epístola aos Hebreus, onde se expressa um pensamen-
to análogo (embora o assunto não seja exatamente o mesmo que o
do prólogo de João): "Depois de haver em outros tempos, de muitas
maneiras e em diversas ocasiões, falado a nossos pais pelos profe-
tas, Deus, nestes últimos tempos, nos tem falado pelo seu Filho".
Aqui a ideia de profeta está ligada à de Filho de Deus. Já temos
visto também que existe um elo direto entre a noção de profeta e a
de servo, do Ebed Iahweh, sofredor, já que o sofrimento é parte
integrante da missão do profeta escatológico.
Enfim, não podemos esquecer um fato sobre o qual já temos
chamado a atenção:95 de todos os títulos atribuídos a Jesus pelo cris-
tianismo primitivo, o de profeta dos últimos tempos é o único que
permite, ao menos em princípio, falar de uma dupla vinda de Jesus
sobre a terra, que autoriza, portanto, a que se aspire o seu retomo.
Estas vantagens são incontestáveis. Há, no entanto, graves
inconvenientes em reduzir a explicação da pessoa e obra de Jesus
àquela de profeta do fim dos tempos. Pode-se classificá-las em
quatro grupos: 1) do ponto de vista da vida terrena, passada de
Jesus; 2) do ponto de vista do Cristo presente, elevado à destra de
Deus; 3) do ponto de vista do Cristo por vir, o Cristo da parusia e
4) do ponto de vista do Cristo preexistente.
Acabamos de ver que a ideia de profeta permite, em muitos
sentidos, compreender perfeitamente a vida terrena de Jesus, e
que nisto reside juáfamente sua vantagem. No entanto, mesmo deste
ponto de vista, é insuficiente quando, com efeito, insiste demasia-
do vigorosamente sobre um só aspecto desta vida: sobre a ativida-
de de Jesus como pregador escatológico, desequilibrando o papel
que os evangelhos dão ao Cristo terreno. É certo que os textos
judaicos nos falam de outras atividades do profeta: deve também

Cf. acima, p. 35 e 59 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO (&

fazer milagres, deve restabelecer as tribos de Israel, vencer as potên-


cias deste mundo e lutar contra o Anticristo.96 No entanto, não se
trata aí da missão específica do profeta, mas antes, de elementos
vindos de outra parte - talvez da noção de Messias - e transferidos
ao profeta dos últimos tempos. Ora, a obra terrena de Jesus Cristo,
tal qual a compreenderam os primeiros cristãos, não se limita à
pregação escatológica; ela não encontra sua consumação senão
na remissão dos pecados e, antes de tudo, no ato que coroa esta
obra redentora: sua morte expiatória. É assim que, segundo o tes-
temunho dos evangelhos, o próprio Jesus entendeu sua obra, e nes-
ta perspectiva também a igreja nascente compreendeu Sua pre-
gação.
É verdade que temos constatado um elo entre a pessoa do
profeta e a do Servo de Deus. No entanto, o sofrimento e a morte,
no sentido de uma substituição consciente e voluntária, não são
especificamente parte da função do profeta escatológico. Para o
profeta, o sofrimento não é mais do que uma consequência inevi-
tável de sua pregação; ele não é, propriamente falando, sua mis-
são, como o é no caso do Servo Sofredor. O profeta não é, em
suma, mais do que o pregador que se levanta no fim dos tempos
para chamar os homens ao arrependimento. Tudo o que concerne,
ademais, à sua pessoa e obra desaparece frente a esta função
essencial. Ora, na vida de Jesus é justamente o contrário: sua pre-
gação e seu ensinamento decorrem inteiramente do fato dele ter
consciência de que lhe é necessário sofrer e morrer por seu povo.
Por isso, não é tanto a noção de profeta mas a de Ebed Iahweh que
caracteriza essencialmente a vida terrena de Cristo, e isto - volta-
remos a tocar nessa questão - aos olhos do próprio Jesus. Não é
senão vinculando estreitamente a noção de profeta à de Ebed
Iahweh que aquela pode, a rigor, explicar a vida terrena de Cristo.
De outro modo ele não seria só insuficiente, mas ainda daria uma
falsa imagem da pessoa e da obra de Jesus tal qual a descreve o
Novo Testamento.

'"'Cf. acima, p. 43.


Oscar Cuiimann

Porém, a insuficiência de uma cristologia centrada inteira-


mente sobre a noção de profeta se torna mais patente se tentamos
explicar a obra presente e futura de Cristo. Não há lugar algum
para uma função presente do profeta, pois a ideia de profeta não
prevê um intervalo temporal entre sua atividade terrena, já escato-
lógica, e seu retomo. Temos constatado, é verdade, que o profeta
esperado pelos judeus da época de Jesus era considerado como
já tendo vivido antes sobre a terra. Esta doutrina pode, pois, ter
preparado os espíritos para a ideia de uma dupla vinda de Jesus.
Porém, há uma diferença: segundo a crença judaica, a primeira
vinda do profeta não tinha um caráter escatológico, enquanto que
para a fé da igreja primitiva tratava-se, em ambos os casos, de
uma aparição escatológica de Jesus. Segundo a esperança judaica,
o Reino de Deus se estabeleceria com poder a partir do momento
em que o profeta retornado à terra completasse seu chamado ao
arrependimento. Não se prevê que ele deva seguir exercendo sua
função posteriormente. Por esta razão, a noção de profeta não pode
aplicar-se à obra do Cristo glorificado, àoKyrios que a igreja con-
fessa. Ou seja, uma das funções escatológicas mais importantes
para o Novo Testamento é estranha ao conceito de profeta.
Colocando-se no ponto de vista escatológico judaico de
então pode-se e deve-se falar, a propósito do cristianismo, de um
"adiamento daparusia". Há, com efeito, um verdadeiro adiamento
da realização esperada; porém, sobre a base de uma fé em um
cumprimento antecipado neste mundo que não está ainda liberto
do pecado e da morte. A convicção de que "o Reino de Deus já
veio até vós" (Mt 12.28), que "Satãcaiu do céu como um raio" (Lc
10.18), e que "os cegos vêem, os aleijados andam, os leprosos são
purificados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam, e a boa nova
é anunciada aos pobres" (Mt 11.5), é um elemento novo no evan-
gelho que o distingue do judaísmo e até das formas mais elevadas
do profetismo judaico. Desde que se considere o tempo presente
nesta perspectiva, o processo escatológico admitido nesta época
pelo judaísmo deve, necessariamente, ser modificado, porque aí se
insere, então, uma época - por certo breve-de realização parcial.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 71

A discussão sobre a "escatologia consequente" deveria, pois, tratar


do verdadeiro lugar do "adiamento da parusia"; deve ele ser considerado
como um motivo teológico com alcance decisivo para o cristianismo pri-
mitivo97 - (é o que pensam A. Schweitzer e seus discípulos, como tam-
bém mais recentemente, R. Bultmann518) - o u não marca ele, antes, preci-
samente a fronteira que separa o judaísmo do evangelho de Jesus?
A escatologia de Jesus não é nem "realizada" (Dodd) nem "somente
futura" (A. Schweitzer). A tensão existe já no ensinamento do próprio
Jesus. O adiamento da parusia na igreja nascente tem, quando muito, por
conseqtíência uma insistência maior sobre o já realizado . As pala-
vras já mencionadas dos evangelhos sinópticos provam que o próprio
Jesus admitiu um tempo de realização já cumprido durante sua vida, sem
deixar de esperar com intensidade a consumação final, muito próxima;
porém, que chegaria somente depois de sua morte.100

A posição central que o Cristo presente e glorificado ocupa


na fé da igreja nascente basta para mostrar que o título de profeta
não contribui para uma solução satisfatória do problema cristoló-
gico. Para o judaísmo tardio, o profeta esperado já viveu uma vez
sobre a terra; porém, a consumação de sua missão escatológica,
quando voltar, marcará o termo definitivo de sua ação. Não há,
pois, lugar nesta concepção para uma atividade prolongada até o
presente. Seu papel é exclusivamente preparatório, o que torna,
de início, impossível uma prolongação de sua missão.

VI
Não contestamos, no entanto, que a Igreja nascente tenha constatado um adiamento
posterior da parusia. Porém, afirmamos que o esquema cronológico da história
da salvação não provém desta postergação: existia desde o princípio. A Emescha-
tologisierwig consiste em diminuição da tensão entre o presente e o futuro.
E. GRÂSSER, Das Problem der Parusieverzõgertmg in deit synoptischen Evangelien
und der Apostelgeschichte(BZ.NW, 22), 1957, tenta juntar todos os textos à sua tese
segundo a qual a igreja nascente não só teria crido em uma presença então atual do
porvir escatológico pelo fato da parusia não se ter produzido. Já refutamos esta tese
em nosso artigo "Parusieverzógung und Urchristentum" (ThLZ, 83,1958, col. 1 ss).
s Cf. seu artigo em NTS, 1, 1954, p. 5 ss.
'"Cf. a este respeito nossa discussão com F. BURI no artigo: "Das wahre durch die
ausgebliebene Parusie gestellte neutestamentliche Problem" (ThZ, 3, 1947, p. 177
ss. e 422 ss.).
""'Ver a este respeito: W. G. KÚMMEL, Verheissung und Erfiillung, 2a edição, 1953.
Cf. igualmente abaixo, p. 303 s.
.72 Oscar Ctdlmann

Também, não se pode, a partir da noção de profeta, entendei*


tampouco a terceira fase, o período futuro e escatológico da obra de
Jesus. Segundo a crença judaica, o papel do profeta acaba quando
começa o Reino de Deus. A vinda do profeta é, por certo, objeto de
esperança e ele é, inclusive, uma figura puramente escatoló-
gica. Porém, ele é esperado como precursor e não como executor da
consumação, pois esta, por definição, não entra no âmbito de sua
missão. Aqui aparece uma vez mais a dificuldade que se experi-
menta ao querer reduzir a este título a cristologia dos primeiros cris-
tãos. Só os que esperavam o advento do Reino de Deus durante a
vida de Jesus é que não tinham necessidade de considerar uma pro-
longação de sua missão, e podiam contentaf-se em ver nele o profe-
ta dos últimos tempos. Por outro lado, a fé cristã primitiva, tal qual
está atestada por todos os escritos do Novo Testamento, parte da
morte e ressurreição de Jesus e se dirige ao Cristo presente e àquele
que há de voltar. Pode-se, ademais, demonstrar que o próprio Jesus
contou com uma prolongação - muito breve sem dúvida - de sua
obra de mediador antes de vir o fim dos tempos.'01
Se o título de "profeta do fim dos tempos" não pôde impor-se
para explicar a pessoa e a obra de Jesus, deve-se isto, sem dúvida,

ALBERT SCHWEITZER emitiu, como se sabe, a opinião de que Jesus havia crido,
antes de tudo, que o Reino de Deus viria durante sua vida e que só mais tarde
pensou que o advento do Reino coincidiria com sua morte. É esta uma hipótese
que deve ser levada em consideração e que tem exercido uma influência fecun-
da sobre os estudos neotestamentários. Porém, não é mais que uma hipótese e
A. SCHWEITZER é um sábio demasiado sério para não ter-se dado conta disso.
Em todo caso, hoje já nenhum especialista do Novo Testamento a defende sob a
forma que ele lha deu; e ela foi pelo menos seriamente enfraquecida, em particular
por W. G. KUMMEL, Verfteissung une! erfiilhmg, 2a ed., 1953. Porém, isto não
impede os discípulos de Berna e de Basiléa de A. SCHWEITZER, os representantes
da escatologia chamada "consequente" (entre os quais não se encontra nenhum
especialista do Novo Testamento) de aderir a ela com singular dogmatismo, acusan-
do de improbidade científica ("recurso a escapatórias") ou de tendências católicas
àqueles que não admitem esta hipótese e admitem que Jesus tenha pensado que o
Reino de Deus não viria senão depois de sua morte, mesmo se ele tivesse crido que o
intervalo não fosse de longa duração. Cf. a este respeito F. BURI, "Das Problem der
ausgebliebene Parusie" (Schweiz. Theol. Untschait, 1946, p. 97 ss.) e nossos artigos
da ThZ e da ThLZ citados mais acima, p. 45 cf. Também abaixo, p. 270 s. e 303 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _T3

a que não abrange a ação pós-pascal do Cristo "vivo". Ora, esta


ação - voltaremos a isso - representa para a comunidade primiti-
va o acontecimento cristologico por excelência, o qual deu um
impulso decisivo a toda a cristologia do Novo Testamento.
Enfim, não se pode relacionar diretamente à noção de profeta
a preexistência do Cristo, da qual falam diferentes passagens do
Novo Testamento. Quando muito, se poderia sustentar que o pro-
feta já aparecera sobre a terra sob formas diferentes, e que isto
pressupõe a existência de uma espécie de "protótipo" do profeta e,
portanto, uma certa forma de preexistência. Porém, esta é profun-
damente diferente da que, no Novo Testamento, atribui-se a Jesus,
onde se trata de uma existência eterna junto a Deus. Somente admi-
tindo-se uma relação entre o Logos joanino, o "Verbo que r\o prin-
cípio estava com Deus", e o profeta - o qual é essencialmente a
personificação do Verbo Divino - se poderia, rigorosamente, con-
templar, com base nesta relação, a possibilidade de uma certa iden-
tificação entre o profeta e Jesus.
,-.••'*; 'ara concluir diremos, pois, quq a noção de profeta dod últi-
mos tempos é demasiado estreita para dar conta da fé primitiva em
Jesus Cristo. Esta noção não alcança plenamente mais que um
aspecto da vida terrena de Jesus; necessita ser completada por
outras noções mais centrais, como a de Servo de Deus. Por outro
lado, ela não pode concordar com os títulos cristológicos que se
relacionam ao Senhor presente, pois exclui a ideia de um intervalo
entre a ressurreição e a parusia. É, por conseguinte, incompatível
com a perspectiva a partir da qual o Novo Testamento inteiro con-
sidera o evento da salvação, isto é, a vinda, morte e ressurreição
de Jesus como o ponto central, divisor do tempo. A teologia do
"profeta" não pode acomodar-se a esta perspectiva, já que por sua
própria natureza o profeta não pode desempenhar senão um papel
preparatório. Se Jesus é só o profeta, então o evento decisivo da
história ainda não se produziu; neste caso não há lugar para uma fé
no Cristo-Kyrios atualmente presente. Pois, para o Novo Testa-
mento, a fé no Cristo atualmente presente, como a fé em seu retor-
no, pressupõe a certeza de que a decisão soteriológica foi incluída
7,4 Oscar Cuitmcmn

na pessoa do Jesus encarnado, mesmo quando a manifestação des-


ta decisão seja ainda algo esperado.
Não é, pois, surpreendente que na cristologia do judeu-cristia-
nismo, regida pela ideia de profeta, a morte de Cristo - ou seja, o
acontecimento central da história da salvação - careça de grande
importância teológica.

* * *

&' Temos visto que nem Jesus nem seus discípulos imediatos
aplicaram a noção de profeta a Sua pessoa e a Sua obra. Trata-se
antes de uma opinião popular sobre Jesus. Os elementos válidos
que ela encerra foram retomados pelo Evangelho de João e pela
Epístola aos Hebreus, para serem incorporados a outras concep-
ções cristológicas. O único sistema cristológico inteiramente fun-
dado sobre a crença no "profeta" é o dos judeu-cristãos, tal como
o encontramos nos Kerygmata Petrou - portanto, em um ramo
herético do cristianismo antigo. O futuro pertencia a outras solu-
ções. No entanto, se reservava a esta cristologia o desempenhar,
mais tarde, um papel histórico não já no cristianismo, mas, no Islã..02
Sabemos hoje que a religião muçulmana se constituiu sob a
influência do judeu-cristianismo difundida nos países sírios. A figu-
ra do "profeta" revive aí sob uma forma nova. Há ainda, no entan-
to, muitas investigações por fazer a propósito dos elos intermedi-
ários que unem a religião do Islã ao judeu-cristianismo.
NaMogmática posterior, não encontramos vestígios da cristo-
logia do "profeta", a não ser na ideia áemunus propheticum Christi.
E ainda assim, sob uma forma bem diferente.

11,1
Cf. W. RUDOLPH, Die Abhãngigkeit des Korcms von Judentum und Christentuin,
1922; A. J. WENSINCK, "Muharnmed und die Prophetie" (Acío oííenífl/iíi II, 1924);
TOR ANDRAE, "Der Ursprung des Islams und das Christentum" (Kyrkohistorisk
Arsskrift, 1923-25); J. HOROVITZ, Qoranische Untersuchungen, 1926; W.
HIRSCHBERG, Jiidische und christliche Lehren im vorund frultisla mischen
Arabien, 1939; H. J. SCHOEPS, Theologie undGeschichtedes Judenscliristeiitums,
1949, p. 334 ss.
CAPÍTULO II

JESUS, O SERVO SOFREDOR


DE DEUS
(Ebedlahweh, Jtccíç QeoíiJ

Com o título de Ebed Iahweh, chegamos ao centro da cristo-


logia do Novo Testamento. No entanto, não se lhe concede geral-
mente o lugar a que teria direito. Assinalemos um primeiro fato
importante: a explicação cristológica que ele implica remonta, como
o emprego do título de "Filho do Homem", ao próprio Jesus. Por
outro lado, é essencial observar que a ideia principal que há em
sua base - a de substituição - constitui o princípio mesmo à luz do
qual o Novo Testamento vê desenvolver-se toda a história da sal-
vação. Sem a ideia de uma substituição progressiva (de uma
minoria a uma multidão e depois finalmente de um indivíduo a
uma minoria), é impossível compreender a noção neotestamentária
da história que começou na criação. Ora, esta ideia de substituição
encontra sua encarnação exemplar, em certo sentido, na pessoa do
Servo Sofredor de Deus. "Servo de Deus" é um dos títulos mais
antigos outorgados à pessoa e à obra de Jesus. Por razoes que
investigaremos, desapareceu muito rápido.
A significação da figura do Ebed Iahweh no Antigo Testamento
tem sido objeto de numerosos estudos'"3; em compensação, sua aplica-

^Cf. a este respeito H. H. ROWLEY, "The Servant of the Lord in theLiglit ofTliree
Decades of Criticism". The servant of the Lord and the Other Essays on the OU!
Testament, coleção de estudos, 2a ed„ 1954, pp. 1-58.
76 Oscar Cullmcmn

ção a Jesus tem chamado muito menos a atenção. O estudo já antigo de


A. Harnacktaj e o mais recente de E. Lohmeyer105 tratam a questão uni-
camente do ponto de vista da comunidade primitiva, sem averiguar se
Jesus já se considerara ou não chamado a preencher a função deste ''Ser-
vo de Deus" de que fala o segundo Isaías. Só no curso destes últimos
anos se reconheceu plenamente a importância desta questão para o Novo
Testamento, tendo-se-lhe dado alguma consideração em monografias.
À parte um estudo que nós mesmos consagramos a este problema,"*1
temos que citar, sobretudo, a obra de H. W. Wolff,"17 como também o
artigo Jtoâç redigido por J. Jeremias no Theol. Wõrteibiich zuni Neuen
Testamento

O problema esboçado pela designação de Jesus como Ebed é


mais importante quanto mais nova luz possa projetar sobre a muito
debatida questão da relação entre Jesus e o apóstolo Paulo.
Consagramos a este título os parágrafos seguintes: 1) Sua signi-
ficação no judaísmo. 2) Jesus e o Ebed lahweh. 3) A fé da comu-
nidade primitiva em Jesus considerado como Ebed lahweh (uaTç
0£oí>). 4) A doutrina do Ebed lahweh como solução do problema
cristológico.

1. O "EBED IAHWEH" NO JUDAÍSMO

Como o profeta do fim dos tempos, o Ebed lahweh é uma


figura essencialmente judaica. Perguntaremos, antes de tudo, o que

l(H
A. HARNACK, "Die Bezeichnung Jesu ais Knecht Gottes und ihre Geschichte in
der alten Kirche" (SB Bediner Akad. d. Wiss., 1926), p. 212 ss.
1I,S
E. LOHMEYER, Gottesknecht und Davidsohn, 1945 (reimpr. 1953).
l(ls
O. CULLMANN, "Jesus, Serviteur de Dieu" (Dieu vivant, 16, 1950, p. 17 ss..).
1117
H. W. WOLFF, Jesajct 53 im Uivhristentum, 2a ed., 1950.
m
Ttx\VbNT, tomo V, p. 636 ss. A obra de T. W. MANSON, The Servant-Messiah,
A Síitdy ofthe Public Ministry of Jesus, 1953, estuda as condições prévias da ideia
de "Servo de Deus" na vida de Jesus e contém interessantes indicações a propósito
de sua relação com a ideia que Jesus fazia de seu ministério; porém, não se ocupa
especialmente de suas relações com o Ebed lahweh do Antigo Testamento. Um
artigo de CHR. MAURER, "Kneclit Gottes uncl Sohn Gottes im Passionsbericht des
Markusevangeliums" (ZThK 50, 1953, p. 1 ss.) tenta, mediante um estudo profun-
do, mostrar a influência de uma "cristologia do Servo" sobre Marcos.
C.RJSTOLOGIA C)0 NOVO TESTAMENTO 77

ele significa no Antigo Testamento; em seguida, que papel desem-


penha no judaísmo tardio; limitando-nos, ademais, a formular tão-
somente os problemas. Os textos do Antigo Testamento relativos
a esta figura se encontram em Is 42.1-4; 49.1-7; 50.4-11; 52.13-
53.12. As passagens que nos interessam particularmente, em
razão de sua aplicação posterior a Cristo, são os primeiros
versículos do cap. 42, assim como o célebre capítulo 53.
Eis aqui os versículos:

Is 42.1-3: "Eis aqui o meu servo, aquem sustenho; o meu escolhi-


do, em quem a minha alma se compraz; pus sobre ele o meu Espírito, e
ele promulgará o direito para os gentios. Não clamará, nem gritará, nem
fará ouvir a sua voz na praça. Não esmagará a cana quebrada, nem apa-
gará o pavio que fumega; em verdade promulgará o direito."

Estes versículos são importantes, por um lado, para compre-


endermos o batismo de Jesus e, por outro, porque o Evangelho de
Mateus os cita (Mt 12.18 ss.).

Is. 52.13-53.12: "Eis que o meu servo procederá com prudência;


será exaltado e elevado e será mui sublime. Como pasmaram muitos à
vista dele, pois o seu aspecto estava mui desfigurado, mais do que o de
qualquer outro, e a sua aparência, mais do que a de outros filhos dos
homens. Assim, causará admiração às nações, e os reis fecharão a sua
boca por causa dele; porque aquilo que não lhes foi anunciado verão e
aquilo que não ouviram entenderão.
Quem creu em nossa pregação? E a quem foi revelado o braço do
Senhor? Porque foi subindo como renovo perante ele, e como raiz de
uma terra seca; não tinha aparência nem formosura; olhamos para ele,
mas nenhuma beleza havia que agradasse. Era desprezado e o mais rejei-
tado entre os homens; homem de dores e que sabe o que é padecer; e,
como um de quem os homens escondem o rosto, era desprezado, e dele
não fizemos caso. Certamente, ele tomou sobre si as nossas enfermida-
des e as nossas dores levou sobre si; e nós o reputávamos por aflito,
ferido de Deus e oprimido. Mas ele foi traspassado pelas nossas trans-
gressões e moído pelas nossas iniquidades; o castigo que nos traz a paz
estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados. Todos nós andá-
vamos desgarrados como ovelhas; cada um se desviara pelo caminho,
— Oscar Cullmann

mas o Senhor fez cair sobre ele a iniquidade de todos nós. Ele foi oprimi-
do e humilhado, mas não abriu a boca; como cordeiro foi levado ao
matadouro; e, como ovelha muda perante os seus toso,uiadores, ele não
abriu a boca. Por juízo opressor foi arrebatado, e de sua linhagem, quem
dela cogitou? Porquanto foi cortado da terra dos viventes; por causa da
transgressão do meu povo, ele foi ferido. Designaram-lhe a sepultura com
os perversos, mas com o rico esteve na sua morte, posto que nunca fez
injustiça, nem dolo algum se achou em sua boca. Todavia, ao Senhor
agradou moê-lo, fazendo-o enfermar; quando der ele a sua aima como
oferta pelo pecado, verá a sua posteridade e prolongará os seus dias; e a
vontade do Senhor prosperará nas suas mãos. Ele verá o fruto do penoso
trabalho de sua alma e ficará satisfeito; o meu Servo, o Justo, com o seu
conhecimento, justificará a muitos, porque as iniquidades deles levará
sobre si. Por isso, eu lhe darei muitos como a sua parte, e com os podero-
sos repartirá ele o despojo, porquanto derramou a sua alma na morte; foi
contado com os transgressores; contudo, levou sobre si o pecado de mui-
tos e pelos transgressores intercedeu.

As expressões de que se serve o profeta para descrever o Ebed


são ao mesmo tempo precisas e misteriosas. Sabemos assim, de
uma maneira bastante exata, em que consiste sua obra; temos até
detalhes sobre a sua morte. E, no entanto, não sabemos quem é
este "Servo do Senhor". O profeta não nos diz nem quando nem
em que circunstâncias ele aparece. Segundo I. Engnell,109 o moti-
vo principal destes cânticos seria a ideologia real, bastante valori-
zado pela escola de Upsala;E. Lohmeyer110 estabeleceu uma rela-
ção entre o título deEbedc o de "Filho de Davi", enquanto que A.
Bentzen1'' tenta compreender esta figura pelas crenças relativas à
sorte do profeta e, sobretudo, pelo Moisés ressuscitado - crenças
às quais já nos referimos no capítulo precedente. A pergunta que

' T ENGNELL,Studiesin Divíne Kútgsfiip in the Ancient Near East, Upsala 1943, p.
48; id. "The Ebed Jahwe Songs and the Suffering Messiah in Deutero-Isaiah", no
BulletinoftheJohn Ryland's Library,31,1948 (correção inglesa de um artigo: "Till
fraagan om Ebed-Jahve-saangema", Svensk Exeget. Aarsbok, 1945).
110
Cf. acima, p. 76, nota 105.
111
A. BENTZEN, "Messias, Moses redivivus, Menschensohn" (AThANT, 17), 1948,
p. 42 ss. O autor desenvolve aqui sua tese em oposição a EngneU e à crítica que este
faz de sua concepção.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 79

faz o eunuco em Atos 8.34 a propósito do cap. 53 de Isaías é ainda a


que hoje em dia os exegetas do Antigo Testamento fazem. De quem
fala o profeta assim? É de si mesmo ou de algum outro? O profeta
podia, sem dúvida, supor que esta figura fosse conhecida aos seus
leitores; porém, para nós jamais será possível resolver o enigma
que esboçam estas passagens sem recorrermos a uma hipótese; e a
ciência bíblica já se tem empenhado nisso muitas vezes.
Encontrar-se-ão indicações sobre o estado atual da questão nos
estudos de C R. Nortli, The Suffering Servant in Deutero-Isaiah, 1948;
H. H. Rowley, "The Suffering Servant and the Dovidic Messiah"
{Oudtestamentische StudiSn, tomo VIII, 1950, p.100 ss.); W. Zimrnerli,
Art. itaíç, no ThWbNT, tomo V, p. 655 ss. Outras referências bibliográfi-
cas em O. Eissfeldt, Einlettung in das A. T., 3 a ed., 1957, p. 399 s.

Podemos reduzir o problema a esta questão: o "Servo do Senhor"


é um indivíduo ou uma coletividade? Não é fácil responder a esta
pergunta. Há, nos cânticos consagrados ao Ebed Iahweh, passa-
gens que parecem identificá-lo com todo Israel (Is 49.3): "E me
disse: Tu és o meu servo, és Israel, por quem hei de ser glorifica-
do". Em troca, há outros que não vêem nele mais que uma parte do
povo, sem dúvida, "o remanescente". Outros, enfim, reduzem ainda
mais esta coletividade para fazer do Ebed Iahweh um indivíduo.
Não temos de tratar aqui em detalhe este complexo assunto.
No entanto, é essencial sublinhar de inicio que toda solução que
leve em consideração só uma categoria de passagens, não pode ter
valor. Ademais, as três explicações não se excluem de maneira
nenhuma. Para o pensamento semítico, a assimilação de uma cole-
tividade e de seus representantes individuais é coisa corrente.112
Na ideia de substituição - ensinamento teológico principal dos
cânticos do "Servo" - não há nada de estranho em que a maioria

112
Cf. a este respeito C. R. NORTH, op. cit., p. 103 ss. - W. ROBINSON, "The Hebrew
Conception of CorporatePersonality", (BZAW, 66,1936, p. 49 ss). - A. R. JONHNSON,
The One and the Many in the hraelite Conception of God, 1942, p. 1 ss., e muito
particularmente O. EISSFELDT, Der Gottes Kttecht bei Deuterojesaja (Jes. 40-55) im
Licht der Israel. Anschauung von Gemeiítschaft und Individuam, 1933.
.80 Oscar Cullinann

se reduza progressivamente e que uma minoria, sempre mais redu-


zida, assuma a missão que na origem deveria pertencer ao conjun-
to. Em nosso livro Christ et le temps,m tentamos demonstrar como
a história da salvação se desenvolve do começo ao fim segundo o
princípio da substituição, sob a forma de uma redução progressi-
va: da criação total passa-se à humanidade, da humanidade ao povo
de Israel, do povo de Israel ao "remanescente"; do "remanescen-
te" a um só homem, Jesus. Este desenvolvimento da história da
salvação é prefigurado pelo Ebed Iahweh, que é, ao mesmo tem-
po, povo, "remanescente" e indivíduo. Esta complexidade é um
elemento essencial da ideia de substituição expressa nestes cânticos
- ideia que é, de certo modo, personificada pelo Ebed Iahweh. Vê-se
assim a importância extraordinária desta figura para uma compre-
ensão bíblica da história da salvação.
Segundo estes textos, o traço essencial desta substituição é o
fato de que ela se opera no sofrimento. O Ebed é o Servo de Deus
que sofre. Substitui-se, por seu sofrimento, um grande número de
homens que deveriam sofrer ao invés dele. Outro traço essencial é
que a aliança concluída por Deus com seu povo é restabelecida
graças à obra substitutiva do Ebed. Este é, pois, o mediador desta
aliança. Será, pois, necessário pensar nestes dois pontos quando
tratarmos de Jesus como o Ebed Iahweh.
No judaísmo tardio,114 o problema principal posto pelo Ebed
é o da relação entre sua figura e a do Messias. Aqui devemos cui-
dar para não darmos uma resposta que simplifique o problema,
portanto, falseando-o. Era inevitável que estas duas noções se
encontrassem no seio do judaísmo, já que um e outro - o Messias
e o Ebed - receberam por missão o restabelecimento das relações
rompidas e distorcidas entre Iahweh e seu povo, fazendo voltar,
assim, este povo à vocação que lhe havia sido assinalada por divi-
na eleição. Lohmeyer115 afirma também que a este respeito o Ebed

113
P. 81 ss.
114
Encontrar-se-á a documentação necessária em DRIVER-NEUBAUER, The 53rd
Chapter oflsaiah According totheJewish Interpreters, vol. MI, Oxford, 1876.
115
Op. Cf/., p. 98 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 81

lahweh e o Messias - sobre terreno judeu - têm entre si relações


mais fortes do que as que existem entre o Ebed lahweh e o "Filho
do Homem", não sendo este último uma figura exclusivamen-
te judaica. O Servo do Senhor deve ser o "ungido" do Espírito.
Em todo caso, é certo que o Ebed lahweh e o Messias resultam de
esperanças relacionadas. Segundo Engnell, este parentesco se expli-
caria pela relação comum com a ideologia real.
A LXX parece interpretar messianicamente Is 52.13-53.12,
segundo o resultado de diversas observações filológicas.116
No livro de Enoque, como nos Apocalipses de Esdras e de Baru-
que, o Messias é identificado indiretamente com o Ebed lahweh,ni
já que são atribuídas a ele certas características do Ebed. Porém,
no judaísmo do tempo de Jesus, esta identificação ficou reduzida
a algo puramente exterior. Pois a missão específica do Ebed- o
sofrimento substitutivo - não se transferiu ao Messias. Se a passa-
gem do Test. Benjamin 3.8 fosse verdadeiramente pré-cristã, tería-
mos talvez aí a ideia de um Messias saído da tribo de José-Efraim
que deve morrer pelos ímpios.118 Seja como for, estamos aqui fora
da grande corrente messiânica de então, para a qual a ideia de um
"Messias sofredor" era estranha. No judaísmo, pode-se, no máxi-
mo, observar alguns ligeiros indícios de semelhante concepção.119
Temos visto que o sofrimento já era um dos traços caracterís-
ticos do profeta. Porém, não se tratava de um sofrimento substi-

116
Cf. K.F. EULER,Z)r<; Verkundigungvomleidenden Gottesknecht aus Jes. 53 in der
griechischeii Bibel, 1934, p. 122 ss. Pode-se perguntar, no entanto, como fazer con-
cordar esta opinião com a constatação feita por J. JEREMIAS em seu artigo rccrtç
(cf. acima, p. 76, nota 108), segundo a qual o judaísmo helenístíco, diferentemente
do judaísmo palestino, não conheceria mais que a interpretação coletiva dos cânticos
do "Servo".
117
Cf. H. W. WOLFF, op. cit., p. 42 ss. Sobre Enoque, cf., também, JEREMIAS,
ThWbNT, V, p. 686 s.
" 8 Pronunciam-se, por exemplo, porsuaorigem pré-cristã: J. JEREMIAS, em ThWbNT,
V. p. 685; G. H. DIX, "The Messiah bem Joseph" (JThSt, 27, 1926, p. 136):
J. HÉRING, Le Royaume de Dieu et TO venue, 1937, p. 67, nota 1. Porérn, não é
seguro que "a pregação celestial" se relacione a Is 53.
w
Cf. a prudente discussão das passagens em questão por W. D. DAVIES, Paul and
Rabinic Judaism, 1948, p. 274 ss.
.82 Oscar Cullmcom

tutivo, voluntariamente assumido por ele para expiar os pecados


de seu povo; mas, antes, algo considerado como sorte inevitável.
Na medida em que o profeta dos últimos tempos pôde ser identifi-
cado com o Messias, se poderia, eventualmente, falar do "Messias
sofredor". E como as diferentes concepções que havia no judaís-
mo para caracterizar a missão de um enviado especial de Deus se
influenciaram reciprocamente, é possível que a ideia de um Mes-
sias sofredor tenha surgido aqui e ali no seio do judaísmo.
Temos de acrescentar que o culto do rei conduziu tanto à noção de
Messias como à de Servo de Deus. Esta origem comum é reconhecida
sem dúvida e com razão por H. H. Rowley.120 Ademais, este não crê na
identificação destas figuras no seio do judaísmo e relega a uma época
posterior, e pós-cristã, todas as especulações relativas a um Messias ben
Efraim. Segundo ele, o culto do rei teria conduzido aqui a duas figuras
paralelas, porém, não idênticas.

As duas noções se influenciaram reciprocamente de uma


maneira ou de outra; esta é a parte de verdade que contém a tese
exposta por J. Jeremias121 e recentemente defendida por M. Buber.122
H. Riesenfeld também aderiu aela,12-1 apoiando-se principalmente
na explicação judaica de Génesis 22.
Esboça-se outro problema no tocante à relação entre o "Mestre
de Justiça", dos textos recentemente descobertos em Qumran, e o
Ebed lahweh. Já temos visto124 que este "Mestre de Justiça" deve

l-°Cf. op. cit. {Oudtestamentische Studien, VIK, 1950), p. 133.


1-' J. JEREMIAS, "Erlõser und Erlõsung im Spatjudentum und Urchristentum"
(Deutsche Theologie, 2,1929, p. 106ss). Ele tenta, apoiando-se em algumas passa-
gens da literatura judaica tardia, demonstrar que o judaísmo rabínico já conhecia,
na época pré-cristã, a interpretação messiânica de Is 53 e, por conseguinte, também
a ideia do Messias sofredor - Cf. também, da mesma forma: óurvòç xov 6eov -
roxíç 9eoú (ZNTW, 34, 1935, p. 115 ss); "Zum ProblemderDeutung von Jes. 53 im
palâstinischen Spatjudentum" (Aux sources de la Tradition cltrétietute, Mélanges
Goguel, 1950, p. 113 ss). Enfim, no artigo jtaíçfteoOde ThWbNT, tomo V, ele
buscou, novamente, apoiar sua tese com uma exegese aprofundada destes textos.
1-'M. BUBER, "Jesus und der Knecfit" (Festchr, G. vau der Leeuw), 1950, p. 71.
m
H. RIESENFELD, Jesus Transfigure 1947, p. 81 ss.
124
Cf. acima, p. 40.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 83

também sofrer, porém, não é coisa segura que tenha sofrido o mar-
tírio. Como quer que seja, o sofrimento desempenha um papel mui-
to importante nestes textos, sobretudo nos Salmos;125 e a tese de W.
H. Brownlee,126 segundo a qual a função do Servo de Deus sofredor
teria sido confiada à própria seita para ser realizada concretamente
na pessoa do Mestre de Justiça, deve ser revada em conssderação.m
Brownlee, ademais, não identifica o Mestre com o Messias.128
No entanto, o sofrimento do Mestre de Justiça é, antes, da
mesma natureza que o do profeta; é mais uma consequência de
sua pregação que uma parte essencial de sua missão. Sem dúvida
é verdade que em Israel todo sofrimento se reveste, em maior ou
menor grau, de um caráter substitutivo.129 No entanto, há uma dife-
rença essencial entre o sofrimento expiatório e voluntário áoEbed
Iahweh e aquele imposto ao profeta pelo seu destino. João 10.17 s.

125
A. DUPONT-SOMMER, "Le livre des Hymnes découvert prés de la mer Morte"
OQH), Semítica, VII, 1957, insiste em sua introdução (p. 16 ss.) e em suas notas
especialmente sobre este ponto.
IM
W. H. BROWNLEE, "The Servant of the Lord in the Qumran Scrolls" (Bailei, of
the Americam School ofOrien.. Research, 1953, p. 8, ss: 1954, p. 33 ss.). Cf. ainda,
do mesmo autor, "Messianic Motives of Qumran and the New Testament", NTS,
1956, p. 12 ss.
I27
M. BURROWS, Les Manuscrits de la mer Morte, Paris, 1957, p. 306 s., mostra-se,
é verdade, critico com respeito a esta tese. - Seguindo DUPONT-SOMMER, M.
PHILONENKO sustenta que as pretensas Interpolações cristãs no Testamento dos
Doze Patriarcas (Diplârne dei' Ecole pratique des Hautes Etudes, Sect. des Sciences
Religieuses, 1955) provêm, na realidade, de adeptos da seita de Qumran. Se esta
tese fosse verificada, naturalmente teria importantes consequências para a questão
que nos ocupa.
1211
Cf. o artigo citado mais acima, nota 126, NTS, 1956, p. 21 ss.
12'J É o que afirma em último lugar E. SCHWEIZER, "Erniedrigung und Erhõhung bei
Jesus und seinen Nachfolgern" (AThANT, 28), I955,passiin. -Para as consequên-
cias que ele tira daí, cf. abaixo p. 99 s. Igualmente J. A. SANDERS, "Suffering as
Divine Discipline in the Old Testament and Post-Biblical Judaism" {Colgate
Rochester Divinity Schooi(Bulletin, 28,1955), por um estudo penetrante dos textos
põe em evidência o caráter expiatório que reveste, em Israel, todo sofrimento. Ver
também ED. LOHSE, Mãrtyrer und Gottesknecht. Unterstichung zur urchristliclien
Verkundiguiig vom SiihnetodJesu Christi, 1955, que sublinha, por outro lado e com
razão (p. 110), que este aspecto expiatório atribuído de uma maneira geral ao sofri-
mento nãoequivalejamaisaum perdão definitivo. Igualmente, o judaísmo ignora a
ideia segundo a qual Deus mesmo poderia encarregar-se dos pecados humanos.
'84 Oscar Cuiimann

opõe a morte de Jesus à dos demais profetas e, sobretudo, ao des-


tino dos chefes dos zelotes, que são, sem dúvida, os "ladrões" e
"roubadores" de que se fala no mesmo capítulo (10.8), que não
poupam a vida de seus partidários (10.12). Enquanto que ao bom
pastor que dá a vida por suas ovelhas, ninguém lhe tira a vida; mas
ele a dá voluntariamente (10.18).130
Mesmo que textos claros do judaísmo da época de Jesus, os
de Qumran por exemplo, atestassem a ideia de um redentor esca-
tológico que assumiria conscientemente o papel de Ebed Iahweh,
não se trataria, evidentemente, senão de uma crença periférica,
pois a ideia de que o Messias deva sofrer é estranha à crença
messiânica oficial. O Targum de Is 53, estudado não somente por
J.Jeremias mas também porPHumbert,m G. Kittell,32 P. Seidelin,,13
e por H. Hegermann,11'4 prova, em todo caso, que a ideia de um
Messias sofredor era dificilmente aceitável para os rabinos. É ver-
dade que o autor deste Targum identifica o Ebed Iahweh de Is 53
com o Messias; porém, com a ajuda de uma exegese muito curiosa
e totalmente arbitrária, elimina tudo o que se relaciona ao sofri-
mento do Ebed, e dá assim ao texto uma interpretação contrária ao
seu verdadeiro sentido.

Citemos somente alguns exemplos desta singular interpretação:


Lemos em Is 53.2: "Não havia nem beleza nem esplendor para atra-
ir nossos olhares e seu aspecto não tinha nada para agradar-nos".
O Targum explica esta passagem da maneira seguinte: "O aspecto do
Ebed não é banal, e o temor que inspira não tem nada de ordinário; seu
esplendor é um esplendor sagrado. Quem o olha, olha-o com respeito."
É claro que o rabino faz o texto dizer aqui exatamente o contrário do que

n
"Cf. a respeito O.CULLMANN, "La significationdes textes de Qumran..." (Positions
luthêriennes. No. 4, 1956, p.5 ss) e Dieu et César, 1956, p.25.
131
P HUMBERT, "Lemessie tÍansleTargoumdesProphètes"(/?7VifVí, 43,191 l,p. 5 ss,).
152
G. KITTEL, ''Jesu Worte iiber sein Sterben" (Deutsche Theologie,9, 1936, p. 177).
13:1
P. SEIDELIN, "Der Ebed Yahve und die Messiasgestalt iin Jesajatargum" (ZNTW,
35, 1936, p. 197 ss.).
1ÍJ
H. HEGERMANN, Jesajet 53 in Hexapla, Targum und Peschitta, 1954 (chega,
assim como JEREMIAS, a conclusões diferentes das nossas).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 85

na realidade diz - e isto com a única intenção de descartar o sofrimento


da pessoa do Ebed, identificado com o Messias.
Em Is 53.3 o profeta diz: "Desprezado e abandonado pelos homens,
homem de dor e habituado ao sofrimento, semelhante àquele de quem
se desvia o olhar, o temos desdenhado, e não fizemos caso algum dele."
Eis aqui a interpretação rabínica: "Embora ele seja objeto de desprezo
para os povos, porá, no entanto, fim a todos os impérios."' Serão debili-
tados e sumirão no luto, como um homem de dor habituado ao sofrimen-
to, como se a face de Deus se houvesse afastado deles: E assim que
somos desprezados e expostos ao opróbrio". De uma maneira abso-
lutamente arbitrária o exegeta muda simplesmente o sujeito da frase.
Enquanto o texto diz que o Ebed é desprezado o rabino o faz dizer que
nós é que somos desprezados. Enquanto o texto diz que nós afastamos
dele o rosto porque o desprezamos o rabino interpreta este versículo
como se Deus afastasse seu rosto de nós.-Ele emprega do começo ao fim
esta curiosa exegese Os exemplos citados bastam no entanto para mos-
trar que seu fim único é aplicar ao Messias o cap 53 de Isaías relativo ao
Ebed luhweh porém desooiando o Servo de Deus de seu caráter essen-
cial o sofrimento substitutivo Segundo a opinião dos rabinos isto é com
efeito incompatível com a verdadeira missão do Messias
Seria naturalmente possível que este Targum, sob sua forma atual,
tivesse sido retocado contra a identificação cristã de Jesus com o Ebed
Iahweh.n(l A isto se poderia objetar que não se pode encontrar neste
texto nenhuma marca certa de polémica anticristã; e que esta interpreta-
ção de Is 53 não dá a impressão de ter sido escrita para combater uma

1,5
P. SEIDELIN, op. cit., p. 207, traduz, baseando-se em outra leitura (p. 211): "Épor
isso que a gloria de todos os impérios chegará a ser objeto de desprezo e desapare-
cerá". JEREMIAS admite aqui (ThWbNT, V,p. 692 s.) indício de uma interpretação
mais antiga, que mais tarde, na segunda leitura adotada por SEIDELIN, teria sido
aplicada aos impérios. Porém, mesmo que se aceite a leitura mais frequentemente
admitida, segundo a qual o "desprezo" se aplica ao Messias, não é de nenhum modo
forçoso pensar que havia ali um indício da concepção de um Messias sofredor.
Igualmente a segunda passagem (Tg. de Isaías 53.12): "entregou sua alma à morte"
não deve ser necessariamente interpretada no sentido da morte do Messias, como o
próprio JEREMIAS o reconhece.
IM
É o que sublinha fortemente J. JEREMIAS em seu artigo publicado nos Mélanges
Goguel (cf. acima, p. 82, nota 121). Cf. igualmente ThWbNT, V. p. 693, Do mesmo
modo, antes dele, G. DALMAN, Jesus-Jeshtta, 1922, p. 156 (opinião diferente id..
Der leidenderi und der sterbende Messias der Synagoge iin ersten tiachchristHcheit
Jahrtausend, 1888, p. 43 ss.). Cf. igualmente H. HEGERMANN, op. cit., p. 121.
86 Oscar Citllmaim

opinião contrária. Parece, antes, que o fim visado pelo rabino tenha sido
a utilização messiânica positiva deste texto. Segundo J. Jeremias, se teria
reorganizado o texto original paradar-lhe um sentido anticristão; porém,
não existe prova alguma disso. Enfim, outro fato do qual teremos ainda
que falar deve ser considerado: no seio do cristianismo primitivo, a
explicação da pessoa e da obra de Cristo por Is 53 foi de curta duração,
de sorte que a existência de uma polémica a este respeito é pouco provável.

Em conclusão, o judaísmo palestino oficial na época de Jesus


não havia incorporado à sua noção de Messias a ideia de um neces-
sário sofrimento expiatório; talvez existissem, à sombra do judaís-
mo oficial, meios ou indivíduos para quem esta ideia não estivesse
excluída, porém, não se pode demonstrar este fato como conheci-
mento certo. Os textos recentemente descobertos em Qumran, sobre-
tudo os Salmos, que insistem sobre a ideia de sofrimento, não ates-
tam até agora, exceto indiretamente, a ideia de um Messias que
deveria sofrer; pois, segundo os documentos publicados até aqui,
quem sofre é antes o profeta e não o Ebed, que aceita voluntaria-
mente o sofrimento expiatório substitutivo. A possibilidade de esta-
belecer um elo entre o profeta sofredor e o Servo de Deus sofre-
dor não é, no entanto, contestável.

2. JESUS E O "EBED IAHWEH"

Como a principal função do "Servo de Deus" reside em seu


sofrimento e sua morte substitutiva nos perguntaremos, antes de
tudo, de forma geral, que lugar tem o sofrimento e a morte na
mensagem de Jesus. Buscaremos em seguida descobrir se Jesus
considerou que sua missão consistia precisamente em realizar a
obra do Ebed Iahweh tal qual ela é descrita pelo profeta. Reunire-
mos primeiramente as palavras de Jesus que tratam de sua morte,
sem referência direta a Is 53, e, a seguir, reuniremos aquelas que
fazem alusão ao Ebed Iahweh.
Jesus considerou seu sofrimento e sua morte como parte inte-
grante da missão que devia desempenhar na execução do plano
divino da salvação? A maior parte dos representantes do "libera-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 87

lismo1' teológico costuma responder, a priori, de uma maneira


negativa a esta questão: o próprio Jesus não teria atribuído a sua
morte nenhum valor expiatório. Na realidade, esta ideia teria sido
introduzida pelo apóstolo Paulo.
R. Bultmann crê poder, em seu Theologie des Neuen Testaments,w
resolver esta questão em uma frase: "Pode-se duvidar que estas (as previ-
sões de sofrimentos) não sejam todas vaticinia e,x eventu?" No entanto,
ele não poderia certamente negar o fato incontestável que a cristologia
do Ebed, baseada na ideia de sofrimento expiatório, não era muito
divulgada na igreja nascente.

É verdade que Jesus não pôs sua própria pessoa, e em parti-


cular seus sofrimentos e sua morte, no centro de sua pregação do Rei-
no de Deus, como o apóstolo Paulo logo haveria de fazê-lo. Porém,
Jesus se sentia mais chamado, durante sua carreira terrena, a viver
sua obra expiatória que a ensiná-la. É por isso que não se limitou a
pregar o perdão dos pecados por Deus: senão que ao curar os enfer-
mos, também outorgou efetivamente este perdão: "teus pecados
estão perdoados". Isto tem uma importância capital para o proble-
ma da relação entre Jesus e Paulo. Já segundo os sinópticos, o per-
dão dos pecados está ligado à pessoa de Jesus, pois que é ele mesmo
quem perdoa: é esta uma afirmação cuja historicidade não poderia
ser posta em dúvida. Porém, então, há que se perguntar: como Jesus
podia atribuir-se tais plenos poderes (é^oixsía)? Se tomarmos esta
pergunta a sério, deveremos postular nele a consciência de ter sido
enviado ao mundo para realizar precisamente esta missão.
Paralelamente a esta reflexão prévia, numerosas palavras de
Jesus apresentam, sem equívoco possível, seu sofrimento e sua
morte como parte integrante da obra que deve realizar para cum-
prir o plano divino de salvação.
Há, evidentemente, um método fácil - demasiado fácil - para nos
livrarmos das implicações destes textos: afirma-seapriorisuainautentí-

Ia edição, 1953, p.30


• 88 Oscar Cullmann

cidade e se \hes considera, a todos, cOTVIo criações da comunidade primi-


tiva que, desta maneira, quis fazer concordar o ensinamento de Jesus
com o do apóstolo Paulo. A questão de sabermos se este método, dema-
siado arbitrário, é legítimo, deveria ser esboçada por razões objetivas e
científicas antes que apologéticas.

Comecemos por indicar rapidamente as principais declara-


ções de Jesus que entram aqui em consideração.
Nos evangelhos sinópticos, trata-se primeiramente do logion
relativo ao jejum, em Mc 2.18 ss. O versículo 20 ("dias virão,
contudo, em que lhes será tirado o noivo")138 supõe, da parte de
Jesus, a convicção de que ele deve morrer. Porém, se sua presença
é tão importante que ela pode dispensar os discípulos da obriga-
ção do jejum, é claro que sob a imagem do esposo Jesus se desig-
na aqui como o enviado de Deus. Sua afirmação de que será tirado
pela morte supõe que para ele esta morte faz parte de sua missão
messiânica. Objetar-se-á que se trata aqui de um vaticinium ex
eventu destinado a explicar por que a comunidade jejuava enquan-
to que os discípulos de Jesus não o faziam.139 Porém, se responde-
rá que uma comunidade com o sentimento de viver não no "tempo
de luto", mas antes, no "tempo da salvação" teria dificilmente
inventado o versículo 20.140
Em Lc 13.31 ss.,Jesus coloca-seasi mesmo na categoria huma-
na dos profetas: "Não convém que o profeta pereça fora de Jeru-

E. LOHMEYER, Das Evangeliumdes Markus, 1937, p. 60, contempla a possibili-


dade de uma alusão a Is 53.8: aipetoa àitó xfiç y-ty; TI Çcon, ocú-roú.
Cf. E. KLOSTERMANN, "Das Markus Evangelium" (HdbNT), 3 a ed., 1936, ad
loc.\ E. LOHMEYER, Das Evangelium des Markus, 1937, adloc; cf. igualmente
R. BULTMANN, Die Geschichtedersynoptischen Tradition, 2a ed., 1931, p. 17 s.
' É o que sublinha igualmente H. J. EBELING, "Die Fastenfrag Mc 2.18-22" (ThStKr,
1937-38, p. 387 ss.). Para ele, é verdade, o "tempo de luto e de jejum" não se
relaciona ao tempo da comunidade (que não teria jejuado) senão 30 das "dores
messiânicas" futuras, e nega a Jesus a paternidade de todo este discurso. Ao contrá-
rio, para W. G. KUMMEL, Verheissung und ErfuUung, 2a ed., 1953, p. 69 s,, a
oposição de Mc 2.19 e 20 não pode relacionar-se senão ao tempo que precede e
segue à morte e ressurreição; de sorte que ainda se o fim desta passagem pôde
desenvolver-se pelas ideias e crenças da comunidade, conta com "uma separação
mais ou menos longa de Jesus e seus discípulos depois de Sua morte".
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 89

salém." Porém, é possível que o verbo T Ê X E I O ^ O I , empregado


no versículo 32, indique uma missão divina particular que Jesus
se atribui e que se realizaem sua morte. Com efeito, em Lc 12.50
a mesma palavra se aplica a sua morte, qualificada de "batismo"
(como em Mc 10.38: "podeis ser batizados com o batismo com
que devo ser balizado?"). Aqui a morte não aparece somente como
o epílogo mas como parte integrante da obra de Jesus.
No logion sobre o sinal de Jonas (Mt 12.39 s.),141 Jesus anun-
cia não só sua morte, como também (no caso do vers. 40 ser autên-
tico) sua ressurreição, quando diz: "Assim como Jonas esteve três
dias e três noites no ventre de um monstro marinho, assim tam-
bém o Filho do Homem estará três dias e três noites no seio da
terra." Há aqui, é verdade, razões bastante sérias para não consi-
derar como autêntica senão a primeira parte do logion: "Não será
dado a esta geração pecadora e adúltera outro sinal que o de Jonas"
(vers. 39). Segundo esta explicação, o "sinal de Jonas" remeteria à
pregação do arrependimento feita pelo profeta.142

Não é, contudo, fácil explicar a inserção posterior do vers. 40, pois


se os cristãos quisessem introduzir subsequentemente no texto uma alu-
são à morte e à ressurreição de Jesus, a que está em questão não é ade-
quada. Os "três dias e três noites" de que se fala não concordam com os
relatos da ressurreição, segundo os quais o corpo não ficou mais do que
duas noites no túmulo. Esta consideração poderia ser invocada em favor
da autenticidade de todo o logion. Neste caso, não teria que se atribuir
aos "três dias e três noites" uma precisão cronológica; esta expressão

1
Cf. a este respeito o estudo profundo de P. SEIDELIN, "Das Jonaszeiclien" (Studia
Theologica, 5, 1951, p. 119 ss.).
' Assim, E. KLOSTERMANN, Das MaithãussEvangeliium, 2" ae,, ,927, ad loc; ;f.
igualmente W. G. KfJMMEL, Verheissung und Erfiillung, 2a ed., 1953, p. 61 s.
Outra solução em J. JEREMIAS, Art. 'IÍOVCÍÇ (ThWbNT, III, p. 412 s.). Pela auten-
ticidade do fragmento transmitido por Mateus (v. 40) se pronunciam entre outros:
A. SCHLAÍTTEY\,Der Evangelist Matthíius, 2a éd., 1933,adloc.; J. SCHNIEW1ND,
"Das Evangelium nach Matthaus" (NTD, 1937), ad loc; M. J. LAGRANGE,
Evangile selon saint Matthieu, 1941, ad loc; W. MICHAELIS, Das Evangelium
nach Matthaus, II, 1949, ad loc. - Cf. também A. T. NIKOLAINEN, Der
Auferstehungsglaitbe in der Bibel und ihrer Umwelt, II, 1946, p. 49.
90 Oscar Cullmann

designaria simplesmente um tempo breve. No entanto, a questão fica


aberta. 4

Temos que mencionar ainda três passagens nas quais Jesus


prediz sua própria morte. Segundo os sinópticos - que talvez
tenham dado a elas um certo esquematismo - elas seguem a con-
fissão de fépetrinaem Cesaréia de Filipe: Mc 8.31; 9.31 e 10.33.
No primeiro destes textos, Jesus corrige em dois pontos o que se
chama correntemente a "confissão de Pedro": I o - troca em sua res-
posta o título que Pedro lhe deu pelo título de "oíòç toíj ãvcptórcou
(veremos mais adiante que isto corresponde a uma tendência que
se pode observar em Jesus); 2o - acrescenta que o Filho do Ho-
mem que, segundo Daniel, virá sobre as nuvens do céu, deverá,
primeiro, sofrer muito. Se se admite que foi a igreja quem colocou
estas previsões na boca de Jesus, deve-se também considerar como
inautêntico o fim do relato, cuja invenção é muito pouco provável,
haja vista a severa palavra que dirige a Pedro: "Para trás de mim,
Satanás!"144
Os outros textos que têm a ver com isto são Mc 12.7 - a pará-
bola dos lavradores maus: "Eis aqui o herdeiro; venham, matemo-
lo!" - e Mc 14.8 - a palavra de Jesus na ocasião da unção em Betâ-
nia: "Ela de antemão ungiu meu corpo para a sepultura". Estes
são, é verdade, dois logia cuja autenticidade alguns contestam.145
Uma só vez encontramos em uma palavra de Jesus uma cita-
ção direta de Is 53. Está em Lc 22.37: "Pois vos digo: é essencial
que esta palavra que está escrita se cumpra em mim: 'Ele foi con-

u5
Compreender-se-ia, ademais, que em razão deste desacordo com os relatos dos evan-
gelhos se tivesse mais tarde eliminado este verso 40. LAGRANGE supõe que esta
reflexão levou JUSTINO a suprimir este versículo da citação que faz desta passa-
gem. (Dial. c. Tryph. Iud., 107, I).
,J4
Com razão E. SCHWEIZER, Erniedrigung und Erhóhiutg, 1955, p. 16, sublinha a
unidade do relato. Por esta razão não vê possibilidade de considerar a profecia da
paixão como uma adição e recusa, também, a hipótese segundo a qual toda a cena
seria desprovida de valor histórico.
u5
Sobre Mc 12.1 ss. verW. G. KUMMEL, "Das Gleichnis vondenbõsenWeingartnern"
{Mélanges M. Goguel, 1950, p. 120 ss.) e abaixo, p. 376 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 91

tado com os malfeitores'. E o que a mim se refere está a ponto de


ocorrer." Esta é uma citação do texto hebraico de Is 53.12 e não da
LXX. A autenticidade desta palavra também tem sido contestada.
Que falte em Marcos e em Mateus não é razão suficiente para
recusá-la. Por outro lado, como H. W. Wolff146 o assinala com
razão, o próprio evangelista em nenhuma parte relaciona os sofri-
mentos de Cristo com Is 53.
Ao lado desta citação única há, no entanto, toda uma série de
passagens em que a alusão a Is 52-53 não pode ser posta em dúvi-
da. Encontramo-la muito particularmente nas palavras da institui-
ção da Ceia,147 e permitem supor que na maior parte dos logia em
que Jesus fala de uma maneira geral da necessidade de sua morte,
Is 53 está por trás. Não temos necessidade de comparar aqui as
quatro variantes em que as palavras da instituição da ceia nos
foram transmitidas (Mc 14.24, Mt 26.28, Lc 22.20, 1 Co 11.24).
Em detalhe, as diferenças são apreciáveis; porém, os quatro textos
concordam sobre o ponto mais importante: no momento em que
Jesus distribui o pão e o vinho, anuncia que derramará seu sangue
por muitos homens. O fato de que os diferentes relatos não coinci-
dam sobre os demais pontos, dá ainda maior peso a este acordo
fundamental.
É quase impossível contestar a tradição unânime segundo a
qual Jesus teria anunciado nesse instante sua morte expiatória "por
muitos", e teria feito o ato sacramental acompanhar esta predição.
As expressões íutèp pipxòv, -úítTp (TtEpi) )QXKJWV sãsãomuns aoa
quatro relatos (salvo o manuscrito D em Lc). Todos contêm tam-
bém a palavra ôiaBriKTi. Agora, é justamente isto o que importa
para a questão que nos ocupa, pois temos visto que as ideias de
substituição e de aliança são os dois aspectos principais da obra

H. W. WOLFF, Jesaja 53 i/n Urchristentwn, p. 57.


Por uma via independente em relação à nossa, E. LOHSE, Mãrtyrer und Gottesknecht,
1955, p. 122 ss., chega a conclusões análogas, embora diferentes quanto aos deta-
lhes. Por outro lado, a relação entre as palavras, a instituição e a ideia do Ebed é
negada porF. J. LEENHARDT, Le sacrement de la Saint-Cène, 1948, p. 27, nota 1
e por E. SCHWEIZER, "Abendmahl" em RGG, 3a éd., I, p. 13 ss.
9.2 Oscar Culhncuw

que, segundo o Antigo Testamento, o Ebed Iahweh deve realizar.


A preposição "por", "em lugar de", que é essencial para a ideia de
substituição, desempenha um papel muito importante em Is 53.
Por outro lado, Is 42.6 e 49.8 atribuem ao Ebed Iahweh a missão
de restabelecer a aliança entre Deus e seu povo148 e, na realidade,
segundo o contexto, o Ebed é a própria berit em pessoa.149
No momento em que Jesus tomava sua última ceia com seus
discípulos, anunciava, pois, o que realizaria no dia seguinte na
cruz.150 Esta palavra projeta assim uma luz sobre os demais logia
que temos citado. Veremos que o título de Ebed Iahweh, aplicado
a Jesus, não estava mais em uso na igreja primitiva quando os
evangelhos sinópticos foram redigidos. Estes deram lugar e prefe-
rência a outros títulos, em particular o de "Cristo". Isto é tanto
mais notável que os três, assim como o apóstolo Paulo, no relato
da última ceia, mencionam que Jesus atribui a si mesmo, nesse
momento decisivo, o papel do Ebed Iahweh.t;i]
Por conseguinte, não há razão válida para negar a autenti-
cidade de outro logioti (Mc 10.45), que contém igualmente uma
alusão muito clara a Is 53, e atribuí-lo, com R. Bultmann, a uma
"soteriologia do cristianismo helenístico".152 "O Filho do Homem
veio não para ser servido mas para servir e dar sua vida em resgate
(Vóxpov) por muitos homens". Trata-se aqui do tema principal dos

"8 É nesta 5ia6f|Kr| que se tem que pensar nas palavras da instituição da santa ceia, e
não no sangue da circuncisão que, entre os rabinos, pode também ser chamado de
"sangue da aliança" (Cf. STR.-BILLERB., I,p. 991). Pensou-se mais tarde também
em Jr 31. Porém, a menção de sangue prova que, em sua origem, essa passagem não
podia ter nenhuma relação com Jeremias 31.
""Cf. G. DALMAN, Jesus-Jeshua, 1922, p. 154; assim como H. W. WOLFF, op. cit.,
p. 65.
15l>
É lamentável que W. G. KUMMELque, diferentemente de muitos de seus colegas
alemães, não tem o hábito de executar sumariamente, sem justificação, uma opinião
oposta à sua, possa contentar-se em declarar simplesmente, em Verheissuiig und
Erfiillung, 2 a ed., 1953, p. 66 s.: "As palavras de instituição da ceia tampouco esta-
belecem a relação entre a morte de Jesus e a morte expiatória do Servo de Deus".
151
Se as palavras da instituição da Ceia se relacionam com a ideia do Ebed Ihaweh já
não é então necessário considerar toda esta cena como uma "lenda cultural etiológica".
152
Cf. Gesch. d. synopt. Tradition, 2" éd., 1931, p. 154.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 93

cânticos do Servo, e a alusão a Is 53.5 é clara.153 É como se Jesus


dissesse: "O Filho do Homem veio para realizar a missão do Ebed
lahweh." Jesus conscientemente reuniu em sua pessoa as duas gran-
des figuras judaicas: a do Bamasha e a do Ebed.
Resta-nos ainda falar de uma passagem particularmente
importante para o problema que nos ocupa. Seu exame nos permi-
tirá, ao mesmo tempo, dar um passo a mais e responder à pergunta
a respeito de quando Jesus adquiriu a certeza de que ele devia
realizar a missão do Ebed lahweh. Esta passagem chave é aquela
que relata a voz celestial ouvida por Jesus durante seu batismo no
Jordão (Mc 1.11 e par.). É necessário subllnhar, com efeito, que as
palavras: "Tu és meu filho bem-amado, em ti me comprazo",
devem ser compreendidas como uma citação de Is 42.1. Ora, no
Antigo Testamento elas são dirigidas ao Ebed lahweh; além disso,
formam a introdução a todos os cânticos do Servo.

Pode-se considerar como demonstrado que esta voz do céu é real-


mente uma citação de Is.1 4 O fato de que aqui Ebedtenhã sido traduzido
por Dtóç e não por TCCITÇ (como na LXX e Mt 12.18) não constitui uma
objeção séria. Convém, com efeito, recordar que rotíç significa ao mes-
mo tempo "servo" e "filho", o que pode ter consequências também para
a tradução grega do Ebed.]i* Além disso, o epíteto bachir que a ele se
acopla em Is 42.1 e que Mt 12.18 traduz por àvotitritóç, evoca a imagem
do filho e pode ter favorecido a tradução por "uióç. A LXX traduz bachir
(Is 42.1) por èK^EKTÓç. Segundo uma leitura bem atestada e provavel-

153
W. G. KÚMMEL, op. cit., p. 67, reconhece, também, que há ali "sem dúvida algu-
ma ideias tiradas de Is 53". Porém, então pode-se perguntar por que nas outras
palavras de lesus ele recusa a priori toda alusão a Is 53. Segundo ED. LOHSE,
Mãrtyrer und Gottesknecht. Untersuchung zur urchrisúichen Verkilndigung vom
SaímetodJesu Christi, 1955, p. 117 ss., trata-se, em nosso logion, de um elemento
da tradição palestina mais antiga.
,Í4
Cf. a este respeito: O. CULLMANN,Le baptême des enfants et la doctrine bibliqtie
du baptême, 1948, p. 16 s., tf 1; J. JEREMIAS, em ThWbNT, V, p. 699: CHR.
MAURER em ZThK, 50, 1953, p. 30 ss.
lí5
Seguindo J. JEREMIAS, ThWbNT, V, p. 677, CHR. MAURER, op. cit., p. 25 ss.,
chama particularmente a atenção sobre Sab. de Salomão 2.13-20, e crê dever tirar
daí consequências importantes para a questão do sumo sacerdote (Mc 14.55 ss.).
94 Oscar Cullmann

mente original,156 o Evangelho de João, citando a voz celestial, traduz


bachir, como a LXX, por èKXeKTÓç. O que prova que reconheceu na voz
celestial a citação de Is 42.1;157 e é igualmente possível que o texto de
Salmos 2.7 "Tu és meu Filho, eu hoje te gerei" se tenha imposto como
paralelo do texto de Isaías e tenha facilitado a tradução por viòç Esta
hipótese é apoiada pela variante ocidental de Lc 3.22, segundo a qual, a
voz celestial teria simplesmente citado Salmos 2.7.

A voz celestial, assim compreendida, aparece como um cha-


mado dirigido a Jesus para que aceite a missão daquele que, no
começo dos cânticos do Ebed(\$ 42.1), recebe um chamado simi-
lar. Por conseguinte, foi no momento do batismo que Jesus deve
ter adquirido a convicção de ser aquele que deveria assumir o
papel do Ebed. Ao mesmo tempo, a voz celestial dá a resposta à
pergunta que os primeiros cristãos se fizeram posteriormente, a da
significação de um batismo para remissão de pecados do próprio
Jesus.158 Os outros judeus vão em busca de João Batista a fim de
serem batizados por seus próprios pecados. Jesus, por sua vez, no
momento de ser batizado como todo o povo, ouve uma voz celestial
que lhe anuncia implicitamente: "Tu não serás batizado por teus
pecados, mas pelos de todo o povo, porque tu és aquele cujo sofri-
mento expiatório pelos pecados de outros foi predito pelo profe-
ta." Sem dúvida, é nesta perspectiva também que temos de com-
preender a palavra referente ao "cumprimento de toda justiça" (Mt
3.15).159 Isto significa, pois, que Jesus foi batizado em vista de sua
morte, e que, ao morrer, levaria o seu povo inteiro num batismo.
Ele carrega, de certo modo, sobre si todos os pecados que os

lífl
Cf. A. HARNACK, Studien zur Geschichte des Neuen Testanients und der Alten
Kirche, 1931, p. 127 ss.; A. LOISY, Le quatriéme EvemgHe, 2a éd., 1931, ad loc;
enfim, C. K. BARRETT, The Gospel According to St. John, 1955, p. 148 s. Cf.
também O. CULLMANN, Les sacremems dons Vevangile johwmique, 1951,p. 33.
157
E. LOHMEYER, Gottesknecht imd Davidsohn, 1945, p. 9, sublinha igualmente o
parentesco dos termos "filho" e "servo".
158Cf., para o que segue, O. CULLMANN, Le baptême des enfants et la doctrine
bibliqtte du baptême, 1948, p. 13 ss.
l,IJ
Cf. nesta mesma ordem de ideias: H. LJUNGMANN, Das Gesetz erfuUen, Mt 5.17
ff. imd 3.15 wttersucht (Lunds Univ. Arsskr. N. F, 50, 1954, p. 97 ss.).
L-R1STOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 95

judeus levam ao Jordão. Ou seja, no instante de seu batismo ele


recebe, ao mesmo tempo, o "programa" do papel que deve desem-
penhar na história da salvação.
Esta explicação é confirmada pelo fato de que nas duas úni-
cas declarações de Jesus que contêm o verbo pccimcOfivai (Mc
10.38 b e Lc 12.50), a expressão "ser batizado" é sinónima de
"morrer".160 É por esta razão que Jesus, a partir do momento em
que começou a agir independentemente do Batista, não batizou
mais com água. Depois de ouvir esta voz, não havia para ele mais
que um só batismo: sua morte.
A maneira em que o Evangelho de João relata o batismo de
Jesus: sob a forma de um testemunho do próprio Batista (João
1.29 ss.), dá forte apoio a esta tese. Temos aqui o comentário mais
antigo deste acontecimento. Está fora de dúvida que, para o autor
do quarto evangelho, a voz celestial era efetivamente um apelo
dirigido a Jesus para que assumisse a missão do Ebed Iahweh.
Do contrário não se compreenderia por que o testemunho do Batis-
ta sobre o batismo de Jesus é enquadrado por estas palavras: "Eis
aqui o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo" (vv. 29 e
36). Estas palavras estabelecem uma clara relação entre o batismo
de Jesus e o sofrimento substitutivo. Esta relação é comentada
pela voz celestial, que repete para Jesus a palavra de Is 42.1 dirigida
ao Ebed Iahweh. No evangelho joanino onde, segundo a leitura
que pode ser considerada como a original, o texto se mantém mais
perto do Antigo Testamento,161 o fato aparece mais claramente
ainda que nos sinópticos.
Encontra-se de novo esta ideia em Inácio, quando ele diz em Ef
18.2: "Ele (Jesus) foi batizado a fim de que purificasse a água por
seu sofrimento". Inácio cita nesta carta antigos elementos da confis-

'""W, G. KUMMEL{7Vi/f, 18, 1950, p. 37 ss) tenta debilitar este argumento alegando
que se pode encontrar no A.T. uma forma análoga de expressar-se. Porém, as passa-
gens frequentemente citadas em apoio desta tese (SI 42.7 s.; 69.2 s.; 69.14; Is 43.2)
dificilmente podem ser seriamente consideradas como paralelas aos textos em
questão.
'"'Cf. acima, p. 92 s.
•96 Oscar Cullmarm

são cristológica. Porém, ainda que ele tivesse sido o primeiro a


fazer assim esta afirmação, sua frase provaria que a igreja de então
conhecia o vínculo entre o batismo de Jesus e seu sofrimento expia-
tório.
Insistimos sobre a importai!cia deste duplo testemunho, o joanino e
o inaciano, em favor de nossa tese (exposta em O batismo de crianças e
a doutrina bíblica do batismo, 1948, p.16 s., e em Os sacramentos no
Evangelho joanino, 1951, p. 33 ss.). pois certos exegetas têm reagido
contra ela rápida e quase automaticamente, como costuma suceder ao
suspeitar-se de qualquer tese que permita unir e harmonizar os elementos
diversos do Novo Testamento: rejeitam-na afirmando que ela repousa
sobre uma construção inspirada por um "desejo de síntese" (cf. p.ex. W.
G. Kiimmel, ThR, 1950, p. 39 s.; L. Cerfaux, RHE, 1949, p. 586). Certa-
mente, devemos evitar as tentações de harmonização que façam violên-
cia aos textos e devemos deixar subsistir as dificuldades que neles se
encontrem de maneira efetiva. Porém, como especialistas do Novo Tes-
tamento, não corremos o risco de sucumbir a um tipo de deformação
profissional que consiste em experimentar uma alegria quase insana ao
constatar contradições e a nos irritarmos contra toda tese que estabeleça
um elo ou uma relação - ainda que fosse entre Jesus e Paulo? No que
concerne a nosso problema, J. A. T. Robinson""2, aliás, tentou demons-
trar que a relação entre o batismo de Jesus e sua morte é um motivo que
se aclia em todo o Novo Testamento.

É, pois, mnito provável que no momento de seu batismo, ao


ouvir a voz celestial, Jesus tenha começado a tomar consciência
de ser Ele o Ebed. Eque, desde então, seu caminho já estava traça-
do. É legítimo situar esta tomada de consciência em um momento
determinado de sua vida? Veremos no capítulo seguinte16-1 que o
autor da Epistola aos Hebreus não hesita em falar de um "desen-
volvimento interior" na vida de Jesus.
Chegamos à conclusão de que a designação de Jesus como
Ebed lahweh, assim como a de "Filho do Homem", remonta ao

62
J. A. T. ROB1NSON, 'The One eaptism as a Category of New Testamene Soieriologyg
{Scotttsh JJurnal ofTheology, y, 6,53, p. 252 ss).
" Cf. abaixo, p. 132 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 97

próprio Jesus. Não é, portanto, a comunidade primitiva a primeira


a estabelecer uma relação entre estas duas noções cristológí-
cas fundamentais: resta-nos ver o lugar que nela tem a designação
de Jesus como Ebed Iahweh.

3. JESUS, O "EBED IAHWEH" NO CRISTIANISMO PRI-


MITIVO

Já temos mencionado que a cristologia doEbednão é, propria-


mente falando, a dos evangelistas. Encontramos poucas passagens
em que os autores dos sinópticos estabelecem uma relação direta
entre Jesus e a figura do Servo de Deus.
Em Mt 8.16 s., a propósito das, curas operadas por Jesus,
trata-se, contudo, de uma reflexão feita pelo próprio evangelista:
"Expulsou os espíritos com uma palavra, curou a todos os enfer-
mos, a fim de que se cumprisse o que havia sido anunciado por
Isaías o profeta: ele tomou sobre si nossas enfermidades e levou
nossas doenças". O evangelista cita textualmente uma passagem
de Is 53 (v.4), com a fórmula habitual de introdução õTWOÇ ^Xr|pcú6fj.
Porém, o que interessa aqui não é precisamente o pensamento
central deste capítulo de Isaías, o sofrimento substitutivo. Não é
a morte de Jesus, mas suas curas, que ele considera como o cum-
primento da profecia. Enquanto o profeta pensa que o Ebed, por
seus sofrimentos e sua morte, toma sobre si as enfermidades de
outros, Mateus visivelmente interpreta o texto em outro sentido:
ele "tomou sobre si (levou embora)" as enfermidades. A luz da
teologia cristã primitiva, esta explicação não é, por certo, falsa,
posto que as curas operadas por Jesus representam, de certo modo,
uma antecipação de sua obra definitiva que realizará por sua mor-
te. Contudo, não é menos singular que o evangelista não tenha
citado Is 53 a propósito da obra salvadora central de Jesus.
No relato da Paixão, Mateus, que se refere tão espontânea e
frequentemente ao Antigo Testamento, não faz nenhuma alusão
ao Servo Sofredor. No cap. 12.18-21, cita uma passagem do
cântico do Ebed Iahweh (Is 42.1 ss.); porém, ali também não se
.98 Oscar Cullmann

interessa senão por um elemento secundário - o fato de que Jesus


proibira aos enfermos que curou darem-no a conhecer.
No Evangelho de Marcos, não encontramos nenhuma alusão
do próprio autor ao Ebed Iahweh nem aos cânticos do Servo.

E verdade que Chr. Maurer, em seu artigo já citado,1M demonstrou


que a ideia de Servo de Deus contribuiu de uma maneira decisiva para a
formação e elaboração do relato da Paixão no Evangelho de Marcos.
Porém, como nisto ele mesmo concorda,[to esta influência se exerce muito
menos sobre o próprio evangelista do que sobre a tradição em que Mar-
cos se inspirou.

O autor do quarto evangelho concedeu maior importância a


esta noção? A primeira vista se poderia crer que a identificação de
Jesus com o Servo de Deus lhe é totalmente desconhecida. Con-
vém, no entanto, reagir contra o preconceito segundo o qual a ideia
da morte expiatória teria sido inteiramente relegada, no Evange-
lho de João, a segundo plano em favor do conceito de glorifica-
ção.166 Basta recordar, por exemplo, o relato de João 2.19 ss. e a
explicação que o próprio autor dá acerca do templo: "... ele falava
do templo que era seu corpo"; e, sobretudo, a declaração de João
3.14 relativa à elevação de Cristo (sobre a cruz): "Como Moisés
levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do Homem
seja levantado"; e, ainda, no vers. 16: "Porque Deus amou ao mundo
de tal maneira que deu seu filho único." "EÔcoKev é aqui tomado
ao mesmo tempo no sentido dertapé§roKev. Pode-se ainda mencio-
nar o relato das bodas de Cana (cap. 2), em que a alusão à "hora"
que ainda não é chegada, se refere, sem dúvida alguma, à morte de
Jesus.167

164
Cf. acima, p. 76, nota 108: "Knecht Gottes im Passionsbericht des Markusevangeliums"
(ZT/iK, 50,1953, p. 1 ss)) V. TAYLOR chega à meema conclusão em "The Origjn ol
the Marcan Passion Sayings" (NTS, I, 1955, p. 159 ss.).
165
Op. cit., p. 2.
'*6Cf. por ex. R. BULTMANN, Theologie des Neuen Ttzstaments, 1953, p. 400 s:, id.
Das Evangeliwn des Johannes, 1941, p. 293 e passim.
'*7 Cf. O. CULLMANN, Les sacrements dans l'Evaitgile johannique, p. 36 s.
CkisTOLOCii A DO Novo TESTAMENTO 99

Porém, há ainda outros testemunhos mais diretos que provam


que o autor do quarto evangelho não relegou a segundo plano a
ideia de morte expiatória. Citaremos João 10.11: "Eu sou o bom
pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas." Este versículo
e os que seguem são perfeitamente claros, sobretudo o vers. 17 s.:
"O Pai me ama porque eu dou a minha vida para retomá-la. Nin-
guém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou".
A nosso ver, estas palavras sublinham precisamente a diferença
que existe entre o sofrimento do profeta e o doEbedlahweh. É até
permissível questionar se não temos que relacionar este versículo
com o vers. 8 do mesmo capítulo - "todos quantos vieram antes de
mim são ladrões e salteadores" - para evocar então figuras tais
como as de Judas o Galileu, ou ainda a do "Mestre de Justiça", da
seita de Qumran (mesmo que ele não tenha sofrido o martírio sob
a forma de execução).168
No quarto evangelho não se trata de uma necessidade geral
da morte de Cristo.169 No capítulo primeiro (vs. 29 e 36), o teste-
munho do Batista contém alusões diretas e precisas a Isaías 53:
"Eis aqui o cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo".
Já temos visto que toda esta passagem confirma nossa interpreta-
ção do relato sinóptico do batismo de Jesus.170 Os estudos de C. F.
Burney m e de J. Jeremias172 têm mostrado que a expressão grega

É impossível admitir com A. SCHLATTER, Der Evangelist Johaiines, 1930,


p. 236, que se trate de "herodianos, rabinos e chefes de partidos" do tempo de Jesus.
Esta hipótese é recusada, com razão, por R. BULTMANN, Das Evaiigelium des
Johmmes, 1941, p. 286. Cf. também O. CULLMANN, Dieit et César, 1956, p. 25.
E. SCHWEIZER, "Erniedrigung und Erhõhung bei Jesus und seinen Nachfolgern"
(AthANT, 23, 1955, p. 57 s.) não contesta a importância atribuída por João à morte
de Jesus, realização suprema da sua carreira entregue à obediência. Porém, como
crê que no pensamento da comunidade primitiva o título de "Servo de Deus" não se
limita à morte expiatória mas designa, de uma maneira geral, a Jesus como o Justo
Sofredor (p. 84 s), afirma faltar quase totalmente no quarto evangelho a idtíia da
morte expiatória de Jesus.
Cf. acima, p. 94 ss.
C. F. BURNEY, The Aramaic Origin of the Fourth Gospel, 1922, p. 107 s. foi
precedido por C. J. BALL (Expository Times, 1909-10, p. 92).
J. Jeremias, 'Au,vòç w o ÔEOÚ - i t a í ç toí> Btov iZNTW, ,4, 1935, p, 115 ss.s
>Q0 Oscar Culhnann

àfivòç xou ôeov corresponde muito provavelmente às palavras


aramaicas í í n ? ^ ÍÍ;?P, que significam ao mesmo tempo "cor-
deiro de Deus" e "Servo de Deus". Como, por outro lado, a
expressão "cordeiro de Deus" não se emprega correntemente no
Antigo Testamento para designar o cordeiro pascal, é provável que
o autor tenha pensado, antes de tudo, no Ebed Iahweh. A tradução
por àpvòç se explica, ademais, tanto mais facilmente pelo fato de
que a ideia de Ebed Iahweh é aparentada à de cordeiro pascal, e
que, por outro lado, o segundo Isaías (53.7) compara o Ebed a um
cordeiro. O emprego do verbo cdpeiv, que parece aplicável
somente ao cordeiro pascal, poderia ser explicado pelo fato, men-
cionado por Strack-Billerbeck,17-1 que o verbo aramaico 7D3 pode
traduzir-se em grego indiferentemente por aípeiv ou por (pépeiv.
O título de cqxvòç xox> Oeoft de João 1.29 e 36 poderia, portanto, ses
considerado como uma variante de TtaTç Beou, OU seja, como um
equivalente grego do título hebraico de Ebed Iahweh™
Porém, mesmo no caso de não provar-se correta esta derivação do
aramaico tiH7K1 fí vD, a ideia cristológica de Jesus "cordeiro de Deus"
deve ser compreendida como uma variante da do Ebed Iahweh. A pri-
meira vista, é verdade, parece que o cordeiro pascal, que nas outras pas-
sagens (1 Co 5.7, 1 Pe 1.19) é identificado com Jesus, expressa outra
ideia. O sacrifício do cordeiro pascal tem por objetivo, para os judeus,
obter a expiação dos pecados do povo (Ex 12). Nas origens deste rito,
encontramos a ideia judaica do sacrifício oferecido a Deus. A noção do

'7'Tomo II, p. 370.


174
C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 235 s., vê no título
ctu.vòç muito mais uma alusão ao Messias, rei de Israel. Por outro lado, sublinha
também que a ideia de Servo Sofredor tem uma importância muito particular para o
quarto evangelho, embora não adote a explicaçãofilológicade C F. BURNEY e de
BALL. Ver a propósito da noção de "cordeiro de Deus" também C. K. BARRET,
"TheLambof God" (NTS 1,1955, p. 210 ss.), que parte da relação estabelecida por
C. H. DODD entre o cordeiro e o Messias-Rei, porém, coloca em primeiro plano a
ideia pascal inspirando-se na teologia e na liturgia do cristianismo primitivo. Sobre
a importância cristológica da noção de cordeiro no Apocalipse joanino ver P. A.
HARLÉ, "L'Agneau de 1'Apocalypse et le Nouveau Testamet" (Eludes Théologiques
et religieuses, 1956, p. 26 ss.), que põe em evidência a linha que leva, por um lado,
a Is 53 e, por outro, à liturgia do cristianismo primitivo.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEf^TO 101

EbedIahwehsupôs também a ideia de sacrifício; contudo, ela está domi-


nada pela ideia da substituição voluntária. O cordeiro pascal, por sua
natureza, é puramente passivo: ele tira os pecados sendo passivamente
sacrificado. O Ebed Iahweh, em compensação, toma voluntariamente
sobre si os pecados de outros, e é unicamente assim que ele os tira. Trata-
se, pois, de duas ideias aparentadas, cada uma das quais põe em relevo
um aspecto determinado da morte expiatória. Pode-se dizer que a ideia
de cordeiro sublinha sobretudo o fim, e a do Ebed Iahweh, o meio pelo
qual este fim é alcançado - a saber, o sofrimento voluntariamente
substitutivo. O parentesco destas duas ideias é, no entanto, tão grande
que se pode admitir que o profeta, quando descreve o Ebed Iahweh no
cap. 53, tenha pensado também no cordeiro pascal. E por isso que intro-
duz na descrição a comparação com a obediência de um cordeiro (vers.
7): "semelhante a um cordeiro que se leva ao matadouro". Este estreito
parentesco explicaria muito bem porque se pôde empregar uma expres-
são que tivesse, ao mesmo tempo, uma e outra significação. Naturalmen-
te, isto supõe que o texto de João se baseia em um texto aramaico ou que,
no mínimo, o evangelista pensava em aramaico.
Deve-se, contudo, reconhecer que em outro lugar do Evangelho de
João (19.36), o autor pensava unicamente no cordeiro pascal. Trata-se
do crucificado, cujos ossos não foram quebrados, contrariamente ao usual.
O evangelista explica este fato por duas passagens da Escritura que se
relacionam com o cordeiro pascal (Ex 12.46e Nm 9.12). Isto não prova,
contudo, que em João 1.29 e 36 o pensamento acerca do Ebed Iahweh
não seja predominante. Admitido o estreito parentesco das duas ideias, é
perfeitamente possível que o evangelista expresse ambas.

No relato do batismo de Jesus é o Evangelho de João1" que


menciona a citação que a voz celestial faz do começo dos cânticos
do Servo. É o único que traduz exatamente por èicXeicTÓÇ a pala-
vra hebraica de Isaías 42.1. Para ele, a vocação batismal de Jesus
foi um chamado a assumir a missão do Ebed Iahweh.
Temos de mencionar, enfim, que pelo menos em um lugar (Jo
12.38) se encontra ainda uma citação textual de Isaías 53.1, "Quem
creu em nossa pregação, e a quem foi revelado o braço do Senhor?"

* * *

Cf. acima p. 92 s.
1-02 Oscar Cullmann

Passemos agora a Atos dos Apóstolos. Este livro, mais que


nenhum outro, prova que já nos tempos mais antigos do cristianis-
mo existia uma explicação da pessoa e da obra de Jesus que podería-
mos chamar - de forma um tanto inexata - "cristologia do Ebed
lahweh", ou talvez mais corretamente "paidologia". Podemosir ainda
mais longe e afirmar que aí temos provavelmente a solução mais
antiga do problema cristológico. Pode-se pensar antes de tudo no
relato da conversão do eunuco etíope (At 8.26 ss.), que prova que
Jesus foi explicitamente identificado com o Ebed lahweh no pri-
meiro século e que se conservou a lembrança de que o próprio Jesus
havia compreendido assim sua missão divina.176
Porém, à parte este relato, há em Atos outras passagens que
não contêm, é verdade, a citação textual de Isaías, porém, que
não são menos importantes para a questão que nos ocupa. Dá-se
nelas, com efeito, abertamente a Jesus o título de Ebed lahweh,
em grego jraíç xox> Geoíi, termos sue e aXX emprega aara tra-
duzir a expressão do Dêutero-Isaías. Trata-se de quatro passa-
gens. Coisa importante: encontram-se todas na mesma parte do
livro (caps. 3 e 4), e são as únicas em todo o Novo Testamento.177
A primeira destas passagens é Atos 3.13, que se refere a Isaías
52.13; a segunda (3.26) que fala de "Jesus-Pais", como mais tarde
se dirá correntemente "Jesus-Cristo". As outras duas passagens
(4.25 e 30) dão igualmente a impressão que naiç foi empregado
como uma espécie de termo técnico com tendência a converter-se
em nome próprio, como aconteceu com "Cristo". Isto confirma a
existência de uma cristologia muito antiga, que chamava a Jesus
de o Ebed lahweh. Ela desapareceu lo<*o, mas deve remontar aos

Temos que levar aqui em consideração também, as passagens de Atos nas quais
Jesus é designado com o título d e S í m i o ç , inspirado em Is 53.11: At 3.14; 22.14e,
sobretudo, 7.52 (cf. J. JEREMIAS, ZNTW, 34, 1935, p. 119).
C o n t r a R. B U L T M A N N , Theologie des Neuen Testaments, 1935, p. 5 1 ;
E. SCHWEIZER,cy). cit., pp. 4 7 e 8 3 , temos que sublinhar aqui, com H. W. WOLFF,
op. cit., p. 86 ss., que todo o contexto indica uma relação com o Dêutero - Isaías.
Esta é, também, a opinião de J. JEREMIAS, ZNW, 34, 1935, p. 119.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 103

tempos mais antigos, já que é na primeira parte de seu livro que


o autor de Atos conservou suas marcas.
Infelizmente, nada sabemos de preciso a respeito desta dou-
trina cristológica, ou mais exatamente, paidológica. Não obstante,
o contexto no qual Atos dos Apóstolos coloca este antigo título
permite-nos, talvez, adivinhar em que meios da comunidade pri-
mitiva seu emprego pôde generalizar-se mais. Não é provavelmente
por acaso que duas das quatro únicas passagens que no Novo Tes-
tamento dão a Jesus o nome de TCCUÇ, se encontrem em um discur-
so atribuído ao apóstolo Pedro e as outras duas em orações pro-
nunciadas em sua presença. É demasiado audaz a conclusão de
que o autor de Atos tenha conservado a lembrança de ser Pedro
quem dava a Jesus, de preferência, o título de "Servo de Deus"?
Não é possível, certamente, esta hipótese ser demostrada, mas
ela concorda com o que sabemos de Pedro por outras passagens.
Segundo Mc 8.32, é justamente ele quem, em Cesaréia de Filipe,
se havia revoltado contra a necessidade dos sofrimentos de Jesus e
o havia chamado à parte para dizer-lhe: "que não te ocorra seme-
lhante coisa", de sorte que Jesus, vendo nele o mesmo Tentador
que uma vez já havia querido desviá-lo de seu caminho, teve de
repreendê-lo dizendo: "Para trás de mim, Satanás!" Compreende-
mos que este mesmo apóstolo, o primeiro mais tarde a ver o Res-
suscitado (cf. 1 Co 15.5)) tenha também sido o primeiro a procla-
mar a necessidade destes sofrimentos e desta morte de Jesus, coisas
das quais não havia querido nem sequer ouvir antes da Paixão - e
que tenha até feito destes sofrimentos e desta morte o centro de
sua explicação da vida terrena de Jesus.178
A este propósito, é interessante recordar também que a Pri-
meira Epístola de Pedro cita com insistência as passagens do livro
de Isaías que se relacionam ao Ebed Iahweh (cf. 1 Pedro 2.21 ss.).
Para o nosso problema, esta constatação conserva seu valor, seja
ou não autêntica a Epístola de Pedro, pois ainda que ela não seja

A lembrança de sua negação de Jesus explica também, em Pedro, esta mudança


radical. Cf. O. CULLMANN, Saint Pierre, 1952, p. 57 ss.
104 Oscar Culhneuin

dele, o autor deve ter sabido, como o de Atos, que Pedro havia
aplicado regularmente a Jesus a ideia de "Servo Sofredor".
Se é exato, como afirma Papias, que a tradição oral na qual se
baseia o Evangelho de Marcos deva ser posta em relação com as
pregações de Pedro, podemos dar um passo a mais na direção da
posição de Chr. Maurer,179 que tenta demonstrar que a tradição
de Marcos está fortemente impregnada da ideia do Ebed Iahweh.
Talvez se encontre aí, outra vez, a influência do apóstolo Pedro.
Em resumo, podemos enunciar as seguintes suposições: a
cristologia do apóstolo Pedro (se nos é permitido empregar esta
expressão, apesar dos poucos dados que possuímos sobre o pensa-
mento do apóstolo) era muito provavelmente dominada pela ideia
do Ebed Iahweh. Aquele que quis desviar Jesus do caminho do
sofrimento e que até o negou no instante decisivo da Paixão, teria
sido, depois da ressurreição, o primeiro a compreender a necessi-
dade deste escândalo. Ele não podia expressar melhor esta convic-
ção senão pelo título de Ebed Iahweh, tanto mais pelo fato de que
o apóstolo devia saber da importância que o próprio Jesus havia
dispensado a esta ideia de "Servo de Deus". A posteridade, fre-
quentemente, foi injusta com Paulo ao colocá-lo à sombra de Pedro.
Porém, em relação à teologia, não temos sido injustos com Pedro,
ao colocá-lo muito facilmente à sombra da teologia paulina?
* * *

Fica demonstrada a antiguidade do título "Jesus, Servo de


Deus" também por este outro fato: Os documentos em que duran-
te mais tempo ele se manteve, são os mais conservadores por sua
própria índole, a saber: as antigas liturgias.
É assim que na antiga liturgia da comunidade romana, conti-
da em 1 Ciem. 59.3-61.3, lemos em diversos lugares: "Jesus, teu
servo", ou, em relação ainda mais estreita com o cântico do Ebed
Iahweh, "por Jesus Cristo, teu servo bem-amado" (59.2, 3, 4).

Cf. acima, p. 76 n. 108.


C^RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 105

Ou ainda nas célebres orações eucarísticas do Didaquê: "Nós te


agradecemos, ó Pai, pela santa vinha de Davi, teu servo, que tu nos
tens feito conhecer através de Jesus, teu servo." (9.2); e ainda: "te
agradecemos pelo conhecimento, a fé e a imortalidade que nos tens
feito conhecer por Jesus, teu servo" (10.2). Observemos que são as
orações eucarísticas as que chamam a Jesus "Pais". Não atuaria aí
a lembrança de que o instante decisivo em que Jesus abertamente
proclamou diante de seus discípulos sua missão de Servo de Deus,
foi o da última ceia? Temos visto, de fato, que as palavras pronun-
ciadas por Jesus não podem ser compreendidas de outro modo.
Não é por acaso que, nos fins do século primeiro e começos
do segundo, encontramos o título de Pais aplicado a Jesus só nas
liturgias, pois já havia desaparecido do pensamento cristão.

* * *

Qual foi a atitude do apóstolo Paulo no que se refere à figura


do Ebed Iahweh e a sua identificação com Jesus? Se se considera
que a morte de Cristo ocupa um lugar central em sua teologia, em
princípio se é tentado a supor que esta identificação lhe foi parti-
cularmente cara. Porém, na realidade, se o vemos designar a Jesus
como "Páscoa" (1 Co 5.7),18° quase não encontramos nele cita-
ções explícitas de Isaías 53. Uma só citação direta, Isaías 53.4, se
encontra em Rm 4.25; porém, a passagem em 2 Co 5.21, relativa
àquele que "não conheceu pecado", faz clara alusão a Isaías 53.6.
E quanto aos textos de Isaías 52 citados em Rm 10.16 e 15.21, se
relacionam com a pregação missionária e não propriamente com a
obra do Servo de Deus. As passagens que acabamos de citar bas-
tam para demonstrar que a aplicação da ideia de Ebed Iahweh a
Jesus não era desconhecida para o apóstolo; no entanto, a ausência
de outras citações dos cânticos do Servo, como também a ausên-
cia do título Pais em suas epístolas, reclamam uma explicação.

Cf. acima, p. 100 s.


106 Oscar CuUmartn

Primeiramente, temos de assinalar que se faltam citações


diretas, as três passagens das epístolas de Paulo, talvez as mais
importantes do ponto de vista cristológico, sublinham, sem dúvi-
da alguma, a ideia do sofrimento substitutivo do Servo de Deus
(1 Co 15.3; Fp 2.7 e Rm 5.12 ss.). Em 1 Co 11.3, trata-se de uma
antiga confissão de fé que não é obra do próprio Paulo, pois ele
declara explicitamente havê-la "recebido". A primeira afirmação
deste Credo - sem dúvida o mais antigo que existe181 - é a seguin-
te: "Cristo morreu por nossos pecados segundo as Escrituras".
Quase não cabe dúvida de que as "Escrituras" designam aqui Isaías
53.182 Como Paulo recorre aqui a uma confissão de fé já existente,
se encontra assim confirmado que a cristologia do Ebed lahweh
remonta aos tempos mais antigos da Igreja e que não foi Paulo
quem criou a doutrina da morte expiatória de Cristo.
Se, como pretende E. Lohmeyer, Paulo citou em Fp 2.6-11
um antigo salmo da comunidade,183 esta observação é válida tam-
bém para o segundo dos textos cristológicos fundamentais mencio-
nados. Examinaremos este texto detalhadamente nos capítulos
sobre o "Filho do Homem",184 e sob o título de Kyrios.^5 Porém,
já temos que destacá-lo aqui pois nesta passagem também nos depa-
ramos com a ideia de Ebed lahweh aplicada à humilhação de Cris-
to feito homem: jiop(pfiv ÔoíAou ^ocpoòv (v. 7). Aqui, Ebed é tra-
por ôcô^oç.186
duzido por

m
Cf. O. CULLMANN, Les premières Confessions de foi cltrétienne, p. 17, 36, 43.
K2
É possível, na verdade, que Paulo faça alusão à Sagrada Escritura em geral (é o que
sustenta J. HÉRING, La Première Epitre de Paul aux Corinthiens, 1949, p. 134 s.);
mas isso não é muito provável. E. LICHTENSTEIN, "Die ãlteste christliche
Glaubensformer {ZKG, 63, 1950, p. 17 ss.) admite também que Paulo tenha pensa-
do, antes de tudo, em Isaías 53.
la3
E.LOHMEYER,"Kyrios Jesus. EineUntersuchungzuPhil. 2.5-11" (SBHeidelberg,
1928) ; cf. também J. HÉRING, Le wyaume de Dieu et sa venue, 1937, p. 159 ss.
184
Cf. abaixo, p. 228 ss
185
Cf. abaixo, p. 284 s.
"6E. LOHMEYER, Gotteshtecht itndDavidsohn, 1945, p. 3 ss., sublinha, com razão,
que esta tradução é possível. Para V. TAYLOR, o emprego da expressão u.o<<pr|v
SoúXov justifica sua opinião segundo a qual Paulo, apesar de ser-lhe familiar a
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 107

Se bem que Paulo utilize nestas passagens um elemento da


tradição primitiva, não é menos certo que fez seu o conteúdo dela.
Isto é o que prova o terceiro dos textos que nos toca examinar aqui,
odeRm5.12ss. O apóstolo não reproduz aí uma confissão já exis-
tente, mas formula, de uma maneira pessoal, sua solução cristológica.
Aqui, como emFl 2.6 ss., as duas ideias cristológicas essenciais que
remontam a Jesus mesmo, a de "Filho do Homem" e a de "Servo de
Deus", se encontram reunidas. O v. 19 mostra claramente que o
apóstolo pensou no "Servo" do livro de Isaías: "pela obediência de
um só muitos serão justificados". É uma alusão a Is 53.11: "meu
servo justificará a muitos". Talvez pudéssemos pensar aqui também
no famoso í^aaTnpiov de Rm 3.25.
A questão fica, contudo, de pé: Por que o apóstolo não empre-
ga o título dercoíiçpara expressar sua fé em Jesus. Sem dúvida é
porque esta designação se aplica, antes de tudo, à obra terrena de
Jesus encarnado, enquanto que a cristologia paulina se interessa
muito mais pela obra que o Cristo, elevado à destra de Deus, rea-
liza na qualidade de Kyrios.
É verdade que se lê também em Is 52.13: "Eis que o meu servo
procederá com prudência; será exaltado e elevado e será mui subli-
me"; em seguida trata-se do assombro dos povos e dos reis. Esta
passagem oferece uma possibilidade de aproximação muito impor-
tante à crença cristã segundo a qual o Ebed Iahweh é, ao mesmo
tempo, o Filho do Homem que virá nas nuvens do céu.187 Contudo,
o Dêutero-Isaías não nos dá nenhum detalhe sobre esta obra futura
que ele deve realizar depois de Sua glorificação; e o essencial, nos
cânticos do Ebed, segue sendo o sofrimento substitutivo do Servo
de Deus, sofrimento que lhe permitirá chegar a esta glorificação.

ideia de Servo de Deus, teria evitado o título mesmo, por considerar que a palavra
"Escravo" não conviria para designar o Kyrios (The Atonement in the New Teswment
Teaching, 2a ed., 1945, p. 65 s.).
is? H. W. WOLFF,o/;. cit., p. 31, sublinha, seguindoG. VON RAD, "Zur prophetischen
Verkiindigung Deuterojesajas" (Verk. u. Forschtmg, 1940, p. 62) que o Dêutero-
Isaías fala dos sofrimentos e da morte do Servo de Deus, do ponto de vista de sua
glorificação.
M)8 Oscar Culhftaitn

Em todo o caso, na época do Novo Testamento, é esta ideia da mor-


te expiatória que evoca no ouvinte ou leitor o título de Pais-Ebect,
Esta é, em suma, a razão pela qual ele só pode ser aplicado à
obra terrena de Jesus. Ademais, Paulo, que não vê o Cristo senão à
luz da Ressurreição, deve servir-se de outro título para caracteri-
zar sua obra e sua pessoa, o título de Kyrios, de Senhor glorificado
que faz a sua Igreja participar dos frutos de sua morte expiatória e
que, ao mesmo tempo, prossegue sua obra de mediador.
Pela mesma razão, e desde muito cedo, as ideias ligadas à
figura do Ebed lahweh desapareceram cada vez mais dos antigos
escritos cristãos, à exceção de algumas liturgias que o retiveram
por um pouco mais de tempo. Encontramos constantemente, é ver-
dade, citações de Isaías 53 aplicadas a Jesus;188 porém, elas não
têm uma importância capital, e não é a ideia especificamente cristo-
lógica do Ebed lahweh que, por exemplo nos Pais apostólicos, se
põe em evidência nessas citações.
Assim, encontramos uma longa citação de Is 53 em 1 Ciem. 16.
Todas as passagens importantes do cap. 53 são reunidas aqui e aplicadas
a Jesus. Porém, trata-se muito menos de explicar, pela cristologia do Ebed,
a pessoa e a obra de Jesus, que de exortar os cristãos de Corinto à mesma
humildade que houve em Jesus. "Pois Jesus - s e diz aí-deve ser contado
entre os humildes, não entre aqueles que se elevam acima do rebanho.
O cetro da majestade divina, Cristo, não se manifestou com pompa,
ostentação e orgulho - embora houvesse tido a possibilidade disso - senão
na humildade, como o Espírito Santo o havia predito..." (segue uma cita-
ção de Is 53.1 ss. sobre o aspecto exterior do Ebede o desprezo de que é
objeto). No fim da citação, o autor acrescenta: "Vejam, meus bem-ama-
dos, que modelo nos é proposto. Pois se o Senhor foi tão humilde, que
devemos fazer nós, que por ele temos sido submetidos à sua graça?
Não temos aí uma utilização cnstológica real da ideia de Ebed Iahweh.
A única coisa que importa ao autor é demonstrar pela Escritura um traço
do caráter de Jesus: sua humildade.
Na Epístola de Barnabé, encontramos uma passagem mais impor-
tante, pois o autor aí compara Jesus com a vítima oferecida pcios Judeus

Cf. a este respeito H. W. WOLFF, op. cit., p. 108 ss.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

para reconciliação (Barn. 7.6; 8.1). No cap. 5.2, ele relaciona essa ideia
com o Ebed lahweh e cita Is 53. Porém, esta passagem está isolada nesta
epístola.

* * *

Podemos agora resumir os resultados a que temos chegado.


1. O judaísmo, na época do Novo Testamento, pôs o nome de
Ebed lahweh em relação com o do Messias; é até possível que em
certos meios (talvez esotéricos) se tenha formado a imagem de um
Messias sofredor. Por outro lado, no messianismo judaico oficial, a
ideia principal dos cânticos do Ebed lahweh, a do sofrimento
substitutivo e da morte expiatória, está ausente.
2. Jesus não atribuiu a si o título de Ebed lahweh, senão que,
segundo os sinópticos, como também segundo o Evangelho de
João, aplicou a sua pessoa a ideia do sofrimento e da morte substi-
tutivos, assim como a ideia da aliança restaurada entre Deus e seu
povo pelo Ebed. Foi provavelmente na ocasião de seu batismo que
ele adquiriu a convicção de ser esta a maneira em que deveria reali-
zai* sua obra terrena.
3. O cristianismo primitivo conservou a lembrança de ter o
próprio Jesus consciência de realizar a obra do Ebed lahweh.
No Evangelho de João, a Jesus se dá o nome de "cordeiro de Deus".
Em Atos 3 e 4, o título Ttcdç xox> Geou, tradução orega ad Ebed
lahweh, é empregado como verdadeiro título cristológico. Este
emprego supõe a existência de uma cristologia muito antiga, intei-
ramente fundada sobre a ideia de Ebed lahweh, que parece ter
sido, em particular, a do apóstolo Pedro. É possível que a forma-
ção da tradição oral dos evangelhos (em particular a dos relatos da
Paixão) tenha sido influenciada por ela.
4. Em Paulo, a morte expiatória de Jesus ocupa um lugar central.
É verdade que ele não emprega o título de Ebed lahweh. Os dois
textos cristológicos mais importantes que reconhecem a Jesus a mis-
são de Servo de Deus (1 Co 15.3, Fl 2.6 ss.) são tomados por ele da
tradição da Igreja, tradição esta que ele faz sua. EmRm5.12 ss., ele
rio Oscar Cullmann

utilizou igualmente as ideias relativas ao Ebed Iahweh e sua obra


expiatória.
5. Embora tratando-se de uma das soluções cristológicas mais
antigas e mais importantes, pois pode ser atribuída ao próprio Jesus,
rapidamente passou a ocupar um lugar secundário. É só nos textos
litúrgicos do Didaquê e em uma oração registrada em 1 Ciem. que
encontramos ainda o título de TCaíç aplicado a Jesus. Por que este
título desapareceu tão rapidamente? Sem dúvida, em razão de seu
caráter limitado. Já fizemos sobre isso uma alusão a propósito de
Paulo, e voltaremos a esta questão.

4. A DOUTRINA DO "EBED IAHWEH" COMO SOLUÇÃO


DO PROBLEMA CRISTOLÓGICO

Recordemos, em primeiro lugar, que a noção cristológica de


"profeta do fim dos tempos" pode, por certo, aplicar-se à obra terre-
na de Jesus, tal como é descrita no Novo Testamento; porém, que
não cobre mais que um aspecto dela, a saber, sua obra de pregador e
de curador. Por outro lado, esta noção não pode explicar a função
presente e futura de Jesus. A explicação trazida pelo título de Ebed
Iahweh não é uma opinião popular que o Novo Testamento se limi-
taria a reproduzir sem partilhar dela (como é o caso para a assimi-
lação de Jesus ao Profeta); podemos concluir, a priori, que nesta
relação nossa conclusão será mais positiva - tanto mais pelo fato
de que o próprio Jesus entendeu desta maneira sua obra na terra.
No que concerne a esta obra, a noção de Ebed Iahweh permi-
te captar o acontecimento cristológico central de uma maneira per-
feitamente adequada ao testemunho de todo o Novo Testamento.
Pois a morte expiatória de Jesus não é só o ato central de sua vida
terrena; é também o acontecimento central de toda a história da
salvação, desde a criação até a nova criação no fim dos tempos.
Deste ponto de vista, a cristologia do "Servo" deve ser considera-
da como uma solução capital do problema cristológico neotesta-
mentário: Jesus aparece como aquele que realizou, no momento
decisivo, a obra definitiva designada por Deus para a salvação do
CRIÍTTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 111

mundo. O princípio de toda a história da salvação encontra aqui


sua expressão clássica. Quando muito, se pode objetar que esta
concepção deixa de lado a pregação de Jesus. Porém, à exceção
dos sinópticos, este aspecto da atividade de Jesus não aparece
senão em segundo plano no Novo Testamento, ou antes, se acha
implícito na obra redentora que ela anuncia. Podemos, pois, con-
cluir que a noção de EbedIahweh caracteriza a obra e a pessoa do
Jesus histórico de uma maneira perfeitamente de acordo com o
testemunho cristológico do Novo Testamento.
À primeira vista, a figura do "Servo de Deus" não parece admi-
tir uma prolongação que se aplique a uma ação presente e futura
de Jesus. No entanto, o cântico central sobre o sofrimento do Ebed
começa pela visão de um tempo em que o Senhor "subirá e se
elevará bem alto" (Is 52.13); e ao fim se diz dele que "verá a sua
posteridade e prolongará seus dias" (Is 53.10), que ele terá "sua
parte com os grandes" (Is 53.12). Daí não se conclui, é verdade,
uma continuação propriamente dita de sua obra; trata-se, antes, de
um epílogo. Porém, tudo o que o Novo Testamento diz acerca do
Reino presente de Cristo pode encontrar aqui seu ponto de partida.
Enquanto o profeta escatológico, por sua própria natureza, não
tem mais que uma função preparatória, a obra realizada pelo Ebed
Iahweh já tem um caráter definitivo e proporciona a redenção: ela
representa o ponto decisivo da história da salvação. A partir daí,
pode-se, com efeito, traçar uma linha tanto para frente como para
trás, para o passado como para o futuro. Mesmo que a obra reali-
zada pelo Ebed Iahweh basta-se a si mesma como obra terrena,
anuncia, em virtude mesmo do seu caráter decisivo, as consequên-
cias que esta obra deve ter para além da vida terrena de Jesus. Isto
significa que a noção de Ebed Iahweh pode perfeitamente aliar-se
às noções que fazem ressaltar a obra do Cristo presente, futuro e
preexistente.
Em princípio, o Novo Testamento poderia ter resolvido, pois,
o problema cristológico dando a Jesus o título de Pais. Pois, par-
tindo da importância decisiva reconhecida pelos primeiros cris-
tãos à morte redentora de Cristo, era possível considerar sua obra,
1-12 Oscar Cullmatin

presente e futura, como incluída neste título. Pode-se até dizer que
isso convinha bem à teologia cristã primitiva, para a qual a morte
de Cristo domina absolutamente a história da salvação. O rápido
desaparecimento de Pais deve-se ao fato de que o Cristo presente
determinou de uma maneira muito imediata a vida das comunida-
des cristãs primitivas, de forma que sua fé em Jesus estava mais
ligada à ideia do "Senhor" presente, do Kyrios. Ainda que a obra
histórica realizada por Jesus no passado ocupasse um lugar cen-
tral no pensamento dos primeiros cristãos, a fé nas consequências
desta obra, istoé, a fé no £jy/ms elevado à destra de Deus e reinan-
do sobre a igreja e o mundo teve, para a vida quotidiana dos cris-
tãos e para a igreja, uma importância maior ainda que a própria
obra. E ao Str\\\or presente que as orações se dirigiam, e no "partir
do pão" também a alegria de sua presença ultrapassava até a lem-
brança de sua morte. Isto nos permite compreender porque o título
de Ebedlahweh devia desvanecer-se frente a outros títulos apesar
da importância capital que a teologia continuava atribuindo à morte
de Cristo.
No entanto, este título cristológico mereceria mais atenção
que a que se lhe concede, de ordinário, a teologia moderna. Não só
por ser uma das mais antigas respostas à pergunta: "Quem é Jesus?",
mas também por remontar ao próprio Jesus. É pois por ele que
melhor podemos decifrar o segredo da consciência messiânica de
Jesus. Não seria mais exato falar de sua "consciência de ser o Ser-
vo de Deus", que de "sua consciência messiânica"? Porém, vere-
mos logo que ainda uma outra ideia tem para ele uma importância
fundamental de sorte que, tampouco para ele a noção de Ebed bas-
ta para abarcar toda a sua obra. Assim, ele atribuiu a si mesmo um
outro título que, por outro lado, vinculou ao de Ebed, a saber: o de
"Filho do Homem".
Antes nos será necessário, no entanto, falar de outro título
neotestamentário que se refere principalmente à obra terrena de
Jesus - título que ademais, só apareceu depois de sua morte e ser-
viu unicamente em certos meios para resolver a questão cristo-
lógica: o de Sumo Sacerdote.
CAPÍTULO III

JESUS, O SUMO SACERDOTE


(àpXi£p£Í>ç)

Ao ser aplicada a Jesus, a noção de sumo sacerdote guarda


estreita relação com a de Servo de Deus. Poder-se-ia até considerá-
la como uma variante desta última. Contudo, cabe consagrar-lhe
um capítulo à parte, pois, por um lado, a aplicação da noção de
Sumo Sacerdote a Jesus teve, no cristianismo primitivo, um desen-
volvimento muito distinto - e, por outro, esta noção apresenta
aspectos estranhos à figura do Ebed lahweh. É, com efeito, uma
concepção cristológica mais complexa que a de Profeta ou a de Ser-
vo de Deus, por não relacionar-se exclusivamente à obra do Jesus
terreno.
Diferentemente dos títulos que havemos de estudar nos capí-
tulos seguintes, não temos de nos perguntar aqui se existem analo-
gias no paganismo.

1 . 0 SUMO SACERDOTE, FIGURA IDEAL DO JUDAÍSMO

O sumo sacerdote é uma figura essencialmente judaica. Pode


parecer supérfluo, no entanto, consagrar aqui, como se fará para
outros títulos cristológicos, um parágrafo particular à ideia que se
fazia no judaísmo acerca do sumo sacerdote, já que o redentor
esperado pelos judeus não parece, à primeira vista, ter traços
sacerdotais. Não obstante, encontramos no judaísmo tardio certos
indícios de uma possível relação entre o Messias-Rei e o Sumo
Sacerdote. Mencionemos, em primeiro lugar, as especulações que
114 Oscar Cullmanii

se relacionam ao misterioso rei Melquisedeque, citado em Gn 14.18


ss. eSl 110.4.
Em Génesis 14.13-24 lemos como Abraão liberta seu sobri-
nho Ló das mãos de Kedor-Laomer, rei de Elam, e de seus aliados.
Quando Abraão volta como vencedor da batalha, Melquisedeque
sai ao seu encontro e o abençoa e Abraão lhe dá o dízimo de seu
saque. O livro de Génesis não nos informa nada mais a respeito
deste misterioso rei Melquisedeque diante de quem Abraão, assim,
se humilhou. Sua pessoa também estimulou desde a antiguidade a
imaginação dos judeus.
No célebre SI 110, que os cristãos não deixam de citar, lemos
no vers. 4: "Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de
Melquisedeque". Estas palavras se dirigem ao rei, a quem são atri-
buídas as funções sacerdotais de ordem mais elevada. Incluem-se
no quadro da festa judaica da entronização.189 Assim como o miste-
rioso rei da época cananéia era ao mesmo tempo sacerdote, aquele
que se espera deve, também, assumir uma função sacerdotal que se
eleve muito acima do sacerdócio ordinário - um sacerdócio que não
perece, mas que é eterno. Se aqui trata-se do sacerdócio ideal do rei
- ideia que se pode encontrar em todo o Antigo Oriente - e se a
ideologia real está na base mesma do messianismo, tem-se o incenti-
vo para uma interpretação messiânica da figura do sumo sacerdote.
Que Jesus cite o salmo 110 afim de mostrar que a descendên-
cia davídica do Messias é problemática, pressupõe que o rei do
qual fala este salmo, e que deve ser sacerdote pela eternidade
segundo a ordem de Melquisedeque, não é outro senão o próprio
Messias (Mc 12.35 ss.).190 Tal é também o sentimento dos LXX.

""'Cf. H. SCHMIDT, Die Psalmen, 1934, p. 203; A. WEISER, "Die Psalmen" (ATD),
1950, p. 459 ss. Sobre a relação entre Melquisedeque eZadoque, cf. H. H. ROWLEY,
"Melchizedek and Zadok" (Festschrift A. Bertholet, 1950, p. 461 ss.).
1911
Esta constatação conservaria seu valor se, como o admite R. BULTMANN, Gesch.
d. synopt. Tradition,2* éd,, 1931, p. 145 s., este trecho de Mc 12.35 ss. não devesse
ser atribuído a Jesus mas à comunidade primitiva, o que, por outro lado, é pouco
provável (cf. abaixo, p. 174 s.).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 115

Contudo, temos que assinalar que nenhum testemunho apoia seme-


lhante tese nos escritos rabínicos anteriores à segunda metade do
terceiro século de nossa era.191 Talvez seja porque o judaísmo ten-
dia, por razões de polémica anticristã, a diminuir a figura de Melqui-
sedeque.192

Como em Génesis 14.19 Melquisedeque nomeia primeiro a Abraão


e a Deus somente em segundo lugar, tira-se-lhe o sacerdócio supremo
para transferi-lo a Abraão (Ned. 32 b; Sanh. 108 b)."-1 No tratado Abot
R. Nat. 34, o sumo sacerdote fica expressamente subordinado ao Mes-
sias. Aí se diz (tal é ao menos o sentido geral): "Tu Messias, tu és prínci-
pe superior a Melquisedeque; e tu és, por conseguinte, mais amado de
Deus que este sacerdote messiânico."

No entanto, tudo leva a crer que no tempo de Jesus não só já


se interpretava messianicamente o Salmo 110 mas que, sobre a
base de certas especulações teológicas, o judaísmo identificava
o próprio Melquisedeque, se não com o Messias, ao menos com
outras figuras escatológicas. O capítulo 7 da Epístola aos Hebreus,
assim como certas tentativas patrísticas posteriores de ver em
Melquisedeque um tipo, uma prefiguração do Cristo, supõem a
existência de uma tradição judaica sobre o alcance escatológico
da figura do Rei-Sacerdote. É assim que num Midrash (tardio é
verdade) do Cântico dos Cânticos,194 o Rei-Sacerdote não está
longe de assumir a função de um mediador messiânico. Por um
lado, o Elias ressuscitado aparece sob o duplo aspecto de profe-
ta e sacerdote do fim dos tempos.195 Este Rei-Sacerdote pode
também assumir, em certas especulações, os traços de Adão con-

vn STR-BILLFJRBECK, IV, p. 452. Para o que se segue, ver todo o excursus: "Der
110. Psalm in der altrabbinischen Literatur", IV, p. 452 ss.
v>
- Ver a este respeito, M. SIMON, "Melchisédech dans la polemique entre juifs et
chrétiens et dans la legende" (RHPR, 17, 1937, p. 58 ss.)
n3
Cf. STR-BILLERBECK, IV, p. 453 s.
l,J4
Midr. Cantique de Cantiques (100b); cf. Pesiq. 51a.
li,5
Cf. J.JEREMIAS, art.'HX(e)íccç (ThWbNT, III p. 934 s.);; também STR-B1LLERBECK,
IV, p. 462 s.
r1 6 Oscar Cuttmann

siderado como o homem ideal.196 Ocorre, por outro lado, que um


sacerdote escatológico apareça na qualidade de Kohen zedek, ao
lado de Elias.197 Enfim, devemos mencionar que Fílon assimila
o Logos a Melquisedeque e o chama "Sacerdote de Deus".198
Os Pais da igreja falam de certas especulações cristãs gnósticas
relativas a Melquisedeque.199 Sem dúvida, aludem a antigos temas
judaicos fundidos com ideias gnósticas. E. Kãsemann200 parece,
em todo caso, ter razão ao postular a existência, anterior à Epístola
aos Hebreus, de especulações relativas a Melquisedeque, de ori-
gem em parte judaica e em parte cristã-gnóstica, que assimilavam
o sumo sacerdote a personagens dos primeiros e dos últimos tem-
pos, tais como Sem, o arcanjo Miguel, o primeiro homem Adão,
Metatrom.201
É preciso ainda citar, a este propósito, o "Mestre de Justiça" "d
seita de Qumran. Por um lado, ele apresenta caracteres escatológi-
cos; por outro, como o mostra o Comentário de Habacuque,202 é

lW,
F. J. JEROME, Das geschichtUche Melcíiisedek-Blld und seine Bedeutung im
Hebrãerbrief, 1920.
is? STR-BILLERBECK, IV, p. 463 s., recorda-nos que o "Mestre de Justiça" da seita
de Qumran também é sacerdote, V. abaixo, p. 154 s.
m
Leg. Alleg., III, 79; De congr. erud.. 99.
""AMBRÓSIO, Defide, III, 11; JERÓNIMO, ep. 73; EPIFÂNIO, Haer, 55, 5; 67, 3
e 7. Em HIPÓLITO, Refut. Vil, 36; X, 24 e em outros Pais, também se trata de
"Melquisedequianos" que colocavam a Melquisedeque acima de Cristo. V. a este
respeito G. BARDY, "Melchisédec dans la tradition patristique" (Revue Biblique,
1926, p. 496 ss.; 1927, p. 25 ss.).
200
E. KÃSEMANN, Das wandernde Gottesvolk, 1939 p. 130.
201
V. sobre as especulações concernentes a Melquisedeque, além dos autores já cita-
dos: M. FRIEDLÀNDER, "Melchisédec et 1'Epitre aux Hébreux" (Rev. des Etudes
Juives, 1882, p. 188 ss; 1883, p. 186 ss.); G. WUTTKE, "Melchisédech der
PriesterKõnig von Salem. EineStudiezurGeschichte der Exegese" (BZNW, 1927);
H. STORK, Die sogenannten Melcliisedekianer, 1928: H. W. HERTZBERG,
"Die Melchisédecli traditionen" (Journ. of the Palestime Oriental Society, 1929,
p. 169 ss.); O. MICHEL, Art. MeXxioeSÉK (ThWbNT, IV, p. 573 ss.); id. DerBriefa
an die Hebriíer, 1949, p. 160. Cf. igualmente J. JEREMIAS em ThBl 1937, p. 309;
outras indicações bibliográficas em C. SPICQ, L'Epitre aux Hébreux, II, 1953,
p. 213 s.
2111
II, 8; K. ELLIGER, Studien zum Habakuk-Kommentar vom Toten Meer, 1953, p. 168.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 117

sacerdote. Convém também mecionar os Testamentos dos Doze


Patriarcas, em parttcular Testt Levi 18, onde se anuncia a vinda
de um "novo sacerdote'1.203 Se a tese de Dupont-Sommer é exata
(e são muitos os argumentos que apontam a seu favor) este "novo
sacerdote" não seria outro senão o próprio "Mestre de Justiça".204
Seja como for, os textos de Qumran (IQS 9.11 e IQSa 2.12 ss.),
mesmo o Documento de Damasco (12.23; 14.19; 19.10; 20.1) eos
Testamentos dos Doze Patriarcas (Rub. 6.7 ss., Sim.7.2 e pass.),
distinguem um Messias sacerdotal e um Messias-Rei político, um
Messias de Levi e um Messias de Judá, "Messias de Aarão" e
"Messias de Israel", o Messias real estando subordinado ao Mes-
sias sacerdotal.205 É importante advertir que nestes textos a identi-
ficação do sumo sacerdote com o Messias se realiza.
Chegamos, pois, à conclusão que o judaísmo já conhecia um
sacerdote ideal que devia consumar, no final dos tempos, o sacer-
dócio judaico, como o único sacerdote verdadeiro. A noção judai-
ca de sacerdócio deveria, inevitavelmente mais cedo ou mais tar-
de, fazer surgir semelhante esperança, por ser, em virtude de sua
função, o Sumo Sacerdote o verdadeiro mediador entre Deus e seu
povo e ocupar, em razão disso, uma posição soberanamente eleva-
da. O judaísmo possuía, na pessoa de seu sumo sacerdote, um
homem que já podia satisfazer, dentro do quadro cultual, a neces-
sidade do povo de contato com Deus. Porém, quanto mais o sacer-
dote existente decepcionava as altas esperanças que nele se depo-
sitavam, tanto mais era inevitável que a esperança do fim dos
tempos, em que todas as coisas haveriam de encontrar sua consu-

,J
Cf. também 8,11-18. J. JEREMIAS cita ainda emThWbNT, II, p. 934, nota30, toda
uma série de trechos que considera, com razão, de origem pré-cristã.
11
A. DUPONT-SOMMER, Nouveaux aperçus sur les mamtscrits de la mer Morte,
1953, p. 63 ss. A este propósito se pode mencionar que M. FRIEDLÀNDER, no
artigo já citado da Revue des éutdes juives (cf. acima, nota 201), já havia declarado
a hipótese de que as especulações relativas a Melquisedeque, e ainda à seita dos
Melquisedequianos, teve sua origem no Essenismo.
"K. G. KUHN, "Diebeiden Messias Aarons und Israels" (NTS, 1, 1955, p. 168 ss.)e
STAUFFER, "ProblemederPriestertradition" (Theol. Lit. Ztg., 1956, col. 135 ss.),
cf. abaixo, p. 143, nota 241 e p. 155.
1.18 Oscar Cullmann

mação, englobasse também a imagem de um sumo sacerdote ideal,


cuja figura se aproximava cada vez mais da do Messias.
Porém, este sumo sacerdote esperado não somente realiza o
cumprimento do sacerdócio, mas deve, antes de tudo, superar as
insuficiências do sacerdócio representado pelo sumo sacerdote
empírico. Sua missão é, pois, determinada por oposição ao papel
deste último. É importante esta observação para compreendermos
como esta noção de sumo sacerdote foi transferida para Jesus.

2. JESUS E A CONCEPÇÃO DE SUMO SACERDOTE

É possível falar, num sentido cristológico, da atitude de Jesus


para com a noção de sumo sacerdote? Alguém poderia sentir-se
tentado a descartar, de inicio, esta questão como carente de objeto
e passar imediatamente à ideia de 'ITICTOÍÍç àpxiepcóç no cristia-
nismo primitivo.
Com efeito, parece à primeira vista impossível que Jesus tenha
atribuído a si mesmo funções sacerdotais quando se pensa, por
exemplo, em sua atitude para com o templo. Mesmo se a purifi-
cação do templo teve por objetivo não sua supressão, mas a res-
tauração de sua autêntica missão, não é menos certo que Jesus
pronunciou palavras que põem diretamente em questão o culto
do Templo. Por exemplo, quando disse: "Há aqui alguém maior
que o Templo" (Mt 12.6). Ou ainda, a palavra que desempenha
um grande papel no processo de Jesus - palavra que os sinópticos
apresentam como "falso testemunho" (Mc 14.58 par.), que porém, o
quarto evangelho cita de uma forma ligeiramente diferente, como
uma palavra pronunciada por Jesus (Jo 2.19). Atrás destas pala-
vras há, certamente, uma declaração de Jesus que anunciava o
desaparecimento do Templo. Na interpretação que o Evangelho
de João lhe dá (2.21), o próprio Jesus se apresenta como aquele
que substitui o Templo.
Tenha ou não compreendido sua missão desta maneira, em
todo caso Jesus estava persuadido de que, com a sua vinda, inau-
gura o fim dos tempos, o culto do templo não podia permanecer
{-RiSTOLOGIA DO INovo TESTAMENTO 119

como antes; ele deve pois ter tido uma atitude crítica com respeito
à perenidade da função do sumo sacerdote judaico. Se os evange-
lhos se fazem sobretudo o eco de sua polémica contra os fariseus,
não temos que tirar daí a conclusão de que ele tenha estado mais
próximo do partido sacerdotal dos saduceus. Os relatos sinópticos
do processo de Jesus - mesmo influenciados pelas tendências da
comunidade primitiva - têm conservado, incontestavelmente, a
lembrança de que os inimigos de Jesus, aqueles que queriam a sua
morte, pertenciam, sobretudo, aos meios sacerdotais. João 11.47
dá provas disso.
A atitude crítica de Jesus para com o sacerdócio não deve, no
entanto, fazer-nos recusar a ideia de que ele tenha podido integrar
a noção de sumo sacerdote à concepção de sua missão. Temos
visto que já no judaísmo, a crítica ao sacerdócio empírico seguia
paralela à esperança de um sacerdócio ideal. No Salmo 110, em
que o rei é chamado "sacerdote segundo a ordem de Melquisede-
que", ele não é só colocado acima do sumo sacerdote judaico, como
também é posto, de certo modo, como seu concorrente.
Não se descarta que Jesus tenha aplicado a si mesmo, se não
o título ao menos a ideia de um sumo sacerdote "segundo a ordem
de Melquisedeque". Pode-se dizer mais. Foram conservadas duas
palavras de Jesus nas quais aplica expressamente o salmo 110 ao
Messias. Trata-se, primeiro, da pergunta feita aos escribas a res-
peito do Filho de Davi (Mc 12.35 ss. par.). O próprio Jesus cita
aqui o Salmo que - conforme adiante206 - teve uma importância
capital para a teologia cristã primitiva. Trata-se da passagem do
Antigo Testamento citada com mais frequência no Novo. A expli-
cação dada por Jesus a este Salmo em Mc 12.35 ss. é, para sermos
francos, uma das falas mais difíceis que os sinópticos nos transmi-
tiram. De nenhuma maneira é certo que com esta fala Jesus negue
ser de ascendência davídica. Pergunta-se também se falava de si
mesmo ou se se limitava a uma declaração geral sobre o Messias.

V. abaixo, p. 292 s.
1'20 Oscar Cutimann

Examinaremos logo este texto e veremos que a chave de sua inter-


pretação deve ser buscada em Mc 3.33.207 Em todo caso, a hipóte-
se de Bultmann208 segundo a qual trata-se de um relato criado pela
igreja primitiva, não é razoável: pois é difícil admitir que se tenha
inventado uma palavra que necessariamente suscitaria imensas
dificuldades teológicas. Porém, podemos supor que Jesus fala de
si mesmo. Se tal foi o caso - e bem parece que seja assim, em
razão do contexto e da intenção segundo a qual Jesus cita o Salmo
- isto seria de suma importância para o conhecimento da cons-
ciência que Jesus tinha de si mesmo: ele saberia ser o Rei-Sacer-
dote "segundo a ordem de Melquisedeque". Poderíamos, nesse
caso, admitir que a ideia de ter que realizar o verdadeiro sacerdó-
cio não lhe foi estranha.
A segunda passagem em que Jesus cita o Salmo 110 é mais
clara. Trata-se de sua resposta ao sumo sacerdote em Mc14.62.
Jesus uniu aqui, em um só pensamento, Daniel 7 e o Salmo 110:
"Vereis o Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus
vindo sobre as nuvens do céu." O estar "sentado à direita" liga-se
indissoluvelmente à imagem do Rei-Sacerdote "segundo a ordem
de Melquisedeque". Não é significativo que Jesus aplique a si
mesmo a palavra relativa ao Sumo Sacerdote eterno no preciso
instante em que comparece diante do sumo sacerdote judaico, que
o interroga sobre a pretensão ao messiado? Por sua resposta suben-
tende-se que o seu messiado não é o do Messias nacional que os
judeus esperavam; mais ainda: não reivindica nem a função de
sumo sacerdote terreno que tem diante si; senão que quer ser o
Filho do Homem celestial e o Sumo Sacerdote celestial. Esta res-
posta é, pois, paralela à que dá a Pilatos no Evangelho de João
(18.36): diante do representante terreno da autoridade, afirma que
Sua soberania não é deste mundo; frente ao sumo sacerdote terre-
no, afirma que também o Seu sacerdócio não é deste mundo.

V. abaixo, p. 174 s.
Cf. Gesch. d. synopt. Tradition, 2a ed., 1931, p. 145 s.
CRISTOLOGIA 1X5 NOVO TESTAMENTO 121

Jesus considera, pois, sua missão como uma consumação do


sacerdócio. Há aí perspectivas muito ricas para descobrir e com-
preender a consciência que Jesus tinha de si mesmo. De qualquer
forma, vê-se que a explicação sacerdotal que principalmente a Epís-
tola aos Hebreus dá do problema cristologico encontra um ponto
de contato com os duas passagem em que Jesus cita o Salmo 110.

3. JESUS O SUMO SACERDOTE, SEGUNDO O CRISTIA-


NISMO PRIMITIVO

Temos que falar, antes de tudo, da Epístola aos Hebreus.


' Apxiepeúç,, sumo sacerdote, não é sem dúvida o único título cristo-
logico atribuído a Jesus neste escrito, já que também lhe designa o
de Kyrios, Senhor; e, sobretudo, como íaòç xov GEOÍ>, Filho de
Deus. Isso não impede que seja principalmente como sumo sacer-
dote que a Epístola aos Hebreus, no conjunto, fale de Jesus.

O título fiecÍTqç, mediadorr -ermo técnico dd erdem jurídicc, com


o qual se designa o árbitro ou o fiador - não é mais que uma variante do
título de sumo sacerdote. Não é, pois, necessário consagrar a este termo
um capítulo especial. Encontramo-lo também na Epístola aos Hebreus
(8.6; 9.15; 12.24) como também em I Tm 2.5.

O centro da Epístola aos Hebreus é o capítulo 7. Apoiando-se


em Génesis 14 e no Salmo 110, que Jesus mesmo havia citado, o
autor, fundamentando-se sobre a Sagrada Escritura, designa a Jesus
como o verdadeiro sumo sacerdote. Enquanto outros cristãos inten-
tavam então provar, com auxílio do Antigo Testamento, que Jesus
era o Messias esperado pelos judeus, o autor da Epístola aos Hebreus
se esmera em demonstrar que Jesus consuma, de forma absoluta, a
função do sumo sacerdote judaico, i.e, que esta função tinha para
os judeus só um caráter passageiro e imperfeito e que, em razão
dessa mesma insuficiência, ela anuncia um sacerdócio que a supera.
A argumentação do capítulo 7 repousa sobre uma interpreta-
ção tipológica do Antigo Testamento relacionada com uma tradi-
122 Oscar Cullmatm

ção judaica relativa a Melquisedeque.209 O autor busca no próprio


Antigo Testamento indícios em favor da ideia sobre a qual insiste
com tanta frequência: O sacerdote do antigo pacto nada tem de
definitivo, de absoluto, e que, pelo contrário, tem de ser substituí-
do pelo sacerdócio, desta vez definitivo e absoluto, do novo pacto.
O elemento novo é a realização deste sacerdócio na pessoa de Jesus
Cristo: ele é o Sumo Sacerdote no sentido absoluto e definitivo;
ele é o cumprimento de todo sacerdócio, de sorte que, daí em dian-
te, desqualifica e torna supérfluos todos os demais sacerdotes.
Apoiando-se na tradição judaicajá mencionada, o autor encon-
tra este sacerdócio absoluto e perfeito prefigurado já na figura miste-
riosa deste Melquisedeque de Gn 14. Não nos toca dar aqui uma
exegese detalhada de Hb 7. Importa, contudo, familiarizarmo-nos
com as grandes linhas da especulação cristológica elaborada pelo
autor acerca de Melquisedeque, embora sua cristologia não se
limite a esta figura de Cristo, que haverá de ocupar a imaginação
da igreja antiga, após a do judaísmo.
Antes de tudo o autor - com argumentos um tanto arbitrários
do ponto de vista exegético - estabelece um vínculo entre Melquise-
deque e Jesus. E se esforça em seguida por demonstrar a superio-
ridade deste rei sacerdote, que prefigura a Jesus, sobre os levitas,
os sacerdotes da antiga aliança. Seu argumento é o seguinte: o ante-
passado dos levitas, ou seja, da tribo sacerdotal judaica, é Levi.
Este, era um descendente de Abraão e, segundo a teoria judaica
quanto a descendência- teoria que o autor faz sua - Levi existia já
nos "rins" de Abraão; assim, o que aconteceu a Abraão também
foi a Levi. O fato de haver Abraão recebido, segundo Génesis 14, a
benção de Melquisedeque, demonstra que aquele é inferior a este:
pois quem abençoa é superior ao abençoado. Levi, e todo o sacerdó-
cio israelita que dele descende, está assim subordinado a Melquise-
deque. Este abençoa e recebe o dízimo. É o Sumo Sacerdote por

Cf. acima, p. 114 s., G. SCHILLE, "Erwãgungen zur Hohenpriesterlehre des


Hebrãerbriefes"(ZíVH/T46 1955, p. 81 ss.), supõe a utilização de uma tradição cristã
em razão da permuta entre íepeíiç e ctpx\zazx>c.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 1_23

excelência. Ora, este sacerdócio verdadeiro encontrou sua realiza-


ção em Cristo, que é para sempre o verdadeiro Sumo Sacerdote, o
verdadeiro mediador entre Deus e os homens. Toda essa linha de
raciocínio parece peculiar para nós especialmente em seus detalhes
(alguns eruditos a têm considerado até como um Midrash de Gn 14
e SI 110.4).210 Porém, em sua base se encontra um pensamento teo-
lógico profundo: Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote verdadeiro, não só
pôs fim ao antigo sacerdócio judaico, ele o consumou em sua pessoa.
A noção de sumo sacerdote não está muito distanciada da de
Ebed lahweh. Para este último o caráter voluntário de seu sacrifí-
cio é um ponto essencial. Encontra-se de novo uma afirmação aná-
loga na Epístola aos Hebreus, que transforma a antiga concepção
judaica de sacrifício para por em primeiro plano o caráter voluntá-
rio do sacrifício oferecido pelo sumo sacerdote: "Ele se ofereceu a
si mesmo" (Hb 7.27). Aqui o autor se liberta das especulações
judaicas relativas ao sacerdócio, pois sendo Jesus designado como
sumo sacedote, a ideia sacerdotal se associa automaticamente à de
Ebed. A função do sumo sacerdote é oferecer sacrifícios. Porém,
Jesus mesmo é a vítima. É ao mesmo tempo o sacrificador e o
sacrificado, quer dizer, ele só pode sacrificar a si mesmo.
Uma relação direta entre Isaías 53.12 e Hebreus 9.28 pode ser
estabelecida; onde se diz que Cristo foi sacrificado de uma vez por
todas a fim de "tirar os pecados de muitos homens". Nesta passa-
gem, só a ideia de sacrifício oferecido pelo mediador para expiar
os pecados do povo depende da noção judaica de sumo sacerdote.
A ideia de um sacrifício voluntariamente consentido lhe é estra-
nha.2" Deste ponto de vista, o título de Ebed lahweh expressa

'Cf. H. WINDISCH, Der Hebrãerbrief (Hdb. z. N.T), 2a ed., 1931, p. 59.


É possível que a ideia de um sacrifício sacerdotal voluntário para a expiação dos
pecados de outros tenha surgido já no seio do judaísmo. O mártir Eleazar, que con-
sidera sua morte um sacrifício expiatório por seus compatriotas (4 Mac 6.29), é um
sacerdote. Igualmente, o suposto martírio do "Mestre de Justiça", da seita de Qumran,
toma uma importância particular pelo fato deste Mestre ser sacerdote. Em seu con-
junto estes sacrifícios se relacionam antes com a ideia da virtude expiatória do so-
frimento do justo.
124 Oscar Cullmaw

com maior exatidão o que Jesus mesmo e a igreja primitiva conside-


ravam como sua obra. Em outros termos, a vinculação das noções
de sumo sacerdote e de Ebed corrige o que a noção judaica de
sacerdócio tem de equívoca e imperfeita.
O elemento novo e valioso que entra, no entanto, na cristologia,
graças à concepção judaica de sumo sacerdote, é a ideia de que Cris-
to, ao sacrificar-se, manifesta suasoberania sacerdotal; isto é, que a
espécie de passividade do cordeiro pascal é descartada ainda mais
cabalmente do que na noção deEbedIahweh. E precisamente sacri-
ficando-se, indo, portanto, ao mais fundo da humilhação, que Jesus
exerce a função mais divina que se conhece em Israel: a de media-
dor sacerdotal. Daí o elo estreito que aparece na Epístola aos Hebreus
entre a ideia de Soberano Sacerdote e a de Filho de Deus. A dialética
própria ao Novo Testamento, que descobre a majestade mais alta
na humilhação mais profunda, se manifesta, graças à noção de
sumo sacerdote, na morte expiatória de Jesus. Aí reside a grande
importância desta concepção cristológica. Jesus realiza de uma
vez o antigo sacerdócio judaico e cumprindo-o, o torna supérfluo
Em Hebreus 10.1 ss., o autor afirma que o sangue dos touros
e de bodes não pode tirar os pecados. Isto quer dizer que no verda-
deiro ofício sacerdotal, tal como Jesus o realiza, o sacrificador e a
vítima são um só.
A cristologia da Epístola aos Hebreus tem ainda um outro
aspecto: Jesus, o sumo sacerdote, leva a humanidade a sua "per-
feição" tornando-se ele mesmo "perfeito". Ele restabelece assim o
pacto com Deus. O termo TÉAxioç e as expressões que lhe são
aparentadas têm um papel importante e permitem uma aproxima-
ção à noção de Filho do Homem. Como o sumo sacerdote é media-
dor entre Deus e o homem, a realização do homem perfeito repre-
senta a coroação de sua obra. O termo TÉA-EIOÇ evoca a ideia de
perfeição e plenitude.212

21
2C. SPICQ, L'Epttre ctux Hèbreux, II, 1953, p. 39e/;«ísim, aproxima, por esta razão,
o teXeicDv da Epístola aos Hebreus à palavra de Jesus sobre a cruz, tetéXeoTai,
que Jo 19.30 relata.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 125

Têm razão os comentários quando sublinham o caráter cultual


e sagrado da "perfeição" de que aqui se trata. Voltamos a encontrar
este termo, inclusive, na linguagem dos mistérios, e na LXX tem o
sentido de "consagrar" "dedicar a"213. Na Epístola aos Hebreus, no
centro da qual se ergue a figura do sumo sacerdote, temos que partir
desta significação litúrgica e sagrada para compreender o verbo
T-eXeiow, sem que seja necessário por isso, excluir toda ideia de
perfeição moral ou dizer que este termo é "neutro do ponto de
vista ético".2''' Pois se diz de Jesus Cristo que o Pai o tornou perfeito
(Hb 2.10; 5.9; 7.28) e, por outro lado, enquanto sumo sacerdote, ele
mesmo leva seus irmãos à perfeição (Hb 2.10 s.; 10.14), uma inter-
pretação puramente cultual é demasiado estreita.215 Quando é
Jesus Cristo quem dá conteúdo à noção de sumo sacerdote, este se
vê elevado a um nível que ultrapassa a esfera puramente litúrgica;
é por isto que o termo cultual Te^evovv toma um acento geralmen-
te mais humano e supõe necessariamente também a ideia de uma
perfeição moral, tanto para Jesus, o perfeito sumo sacerdote, como
para seus irmãos, perfeitamente "santificados" por Ele (2.11).

Muitos teólogos temem falar da perfeição "moral" de Jesus, como


se isso devesse necessariamente significar uma recaída na concepção
liberal da vida de Jesus. O autor da Epístola aos Hebreus, talvez mais que
nenhum outro dos autores do Novo Testamento, teve a coragem de falar
da humanidade de Jesus em termos às vezes chocantes;216 e, no entanto,
é quem mais fortemente sublinhou a divindade do Filho.

Para conduzir os homens à perfeição deve o próprio sumo sacer-


dote percorrer as diferentes etapas de uma vida humana. É justo e

213
Porex. Ex 29.9 ss.; Lv4.5 ("enchera mão"). Cf. a este respeito (além dos comentá-
rios de WINDISCH e de MICHEL sobre Hb 5.9) o tratamento detalhado de C.
SPICQ, op.cit., p. 214 s s , na qual se encontra também uma importante bibliografia.
2H
Por ex. J. KÓGEL, "Der Begriff TÊAELOW ira Hebráerbrief' (Theol. Studienf. M.
Kàhler, 1905, p. 35 ss.).
2,5
É o que expressa com razão H. WINDISCH, Kommentar ad 5.9, p. 45.
216
Este aspecto não aparece suficientemente no estudo, mesmo assim notável, de M.
RISSI "Die Menschlichkeit Jesu nach Hebr. 5.7 und 8" (ThZ, II, 1955, p. 28 ss.).
126 Oscar Cuiimann

natural, antes de tudo, pensar na fase final desta vida, na Paixão


considerada como sua "consumação". Porém, acentuar a necessá-
ria humanidade do sumo sacerdote é afirmar que é através de sua
vida inteira, até ao sacrifício final de sua morte voluntária, que ele
deve realizar a leXeíoaaiç. Embora tenha conhecido uma condi-
ção humana inteiramente semelhante à nossa, foi o único a mos-
trar ao mundo o que é ser um homem sem pecado: "tentado como
todos nós em todas as coisas, sem cometer pecado" (Hb 4.15).
A impecabilidade de Jesus já havia sido afirmada antes da
Epístola aos Hebreus; porém, seu autor se interessa por ela de uma
maneira muito especial em razão do caráter sacerdotal de sua
cristologia. Insiste neste ponto não somente no capítulo 4.15, como
também nos caps. 7.26 e 9.14. Encontra-se novamente, ao menos
implicitamente, a ideia em 2 Co 5.21; 1 Pe 1.19; 2.22; 3.18; Jo
7.18; 8.46; 14.30. Os Sinópticos devem ter compartilhado desta
ideia já que atribuem a Jesus o poder de perdoar os pecados. Com
respeito a Mateus pode-se afirmar isto com certeza, senão não
teria modificado a declaração de Mc 10.18: "Por que me cha-
mas bom?" para "Por que me interrogas tu sobre o que é bom?"
(Mt 19.17). Evidentemente, ele considerou que a interrogação, tal
qual a relata Marcos, punha em dúvida a impecabilidade de Jesus.
Porém, a compreendeu bem, para modificá-la assim? A maneira
em que Marcos relata esta pergunta parece discordar da afirmação
de ser Jesus isento de pecado. A contradição desapareceria se fos-
se interpretado o fato de "não ser bom" no sentido de cco*6éveta,
como possibilidade de estar sujeito à tentação. Em todo caso, para
o autor da Epístola aos Hebreus, o fato de Jesus poder ter sido
tentado não atenta contra sua impecabilidade. Talvez seja este
mesmo o pensamento de Marcos; ele estava persuadido da perfei-
ção moral de Jesus, afirmando ao mesmo tempo, com toda a tradi-
ção sinóptica, que Jesus foi tentado.
Porém, nos Sinópticos, Jesus (salvo talvez na cena do
Getsêmani) não aparece como verdadeiramente atingido pela ten-
tação. A Epístola aos Hebreus, por sua parte, mesmo mencionan-
do a ausência de pecado, pressupõe, enfaticamente, apossibilida-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 1_27

de de pecar. Por isto a possibilidade de Jesus ser tentado desempe-


nha um papel muito mais importante nela do que nos Sinópticos.
Veremos, ademais, que sobre este ponto a Epístola aos Hebreus
sublinha a humanidade de Jesus mais vigorosamente que os evan-
gelhos ou qualquer outro escrito do primeiro século. É que o sumo
sacerdote deve não só entrar totalmente na humanidade, mas tam-
bém, no seio da humanidade, participar de tudo o que é humano.
Se pensarmos na importância dada ao fato de que Jesus poderia
ser tentado, compreendemos que a ideia de uma "perfeição" moral
do sumo sacerdote não resulte chocante a nosso autor.
Muito pelo contrário, é pelo fato de Jesus poder ter sido ten-
tado que sua impecabilidade alcança todo o seu sentido. De outra
maneira ela não teria, no fundo, sentido algum.217 A diferença pro-
funda entre Jesus e os demais homens aparece plenamente, na Epís-
tola aos Hebreus, por sua cabal incorporação ao género humano.
A noção de sumo sacerdote dá todo seu rigor à dialética desta
cristologia.
A dupla afirmação de que Jesus podia ser tentado e de não
haver sucumbido à tentação dá a sua ausência de pecado (Hb 4.15)
um caráter menos dogmático que nas outras passagens menciona-
das há pouco, ainda que aqui também apareça, como pano de fun-
do, a ideia da vítima sem mancha (como em 1 Pe 1.19) ou a de
Ebed Iahweh (como em 1 Pe 2.22).
Para medir todo o alcance da expressão x^P^ç ccfictpTÍaç =
sem pecado, temos que ler o começo do versículo no qual se encon-
tra: "Porque nós não temos um sumo sacerdote que não possa se
compadecer de nossas debilidades; pelo contrário, ele foi tentado
como nós em todas as coisas" (4.15). Esta declaração relativa à
humanidade de Jesus é raramente apreciada em toda sua força, em
todo seu imenso alcance. Sem dúvida, aqui o autor não pensa
somente no relato da tentação narrada pelos Sinópticos, por tratar-se

H. WINDISCH, Der Hebrãerbrief, 2a e<±, 1931, p. 39 parece equivocar-se comple-


tamente ao dizer: " Pode-se afirmar que é sem pecado, no sentido estrito do termo,
aquele que era exposto, exatamente como nós, à sedução das tentações?"
128 Oscar Cullmaiw

de uma tentação especificamente messiânica à qual só Jesus podia


ser submetido. Quando o autor de Hb 4.15 afirma que Ele foi ten-
tado como nós em todas as coisas (íte7ieipáo|o,evov Kccrà návxa
Ka8' óu,oiÓTtyca ), as palavras agregadas a jre7te£paou,évoç indi-
cam que o termo não se aplica exclusivamente ao relato da tenta-
ção, nem às passagens nas quais se vê a Jesus "tentado", posto à
prova, pelos debates doutrinários (cf. Mc 8.33; 12.15; Jo 8.1 ss.):
trata-se verdadeiramente de uma tentação geral devido à nossa
debilidade humana, à que estamos todos expostos pelo fato de ser-
mos homens. A expressão "como nós", não se emprega como mera
fórmula; ela tem um sentido profundo.
Esta declaração da Epístola aos Hebreus, que vai mais longe
que o testemunho dos Sinópticos, é talvez a afirmação mais ousa-
da de todo o Novo Testamento sobre o caráter absolutamente
humano de Jesus. Esta observação breve, porém carregada de con-
sequências, lança uma luz particular sobre a vida de Jesus e atrai
nossa atenção a aspectos desta vida que não conhecemos, e que o
autor da Epístola aos Hebreus seguramente tampouco conhecia.
Temos de tomar muito cuidado para não buscarmos nela um tema
de novela, pois nada de concreto sabemos destas tentações Kaià
Ttávra: o essencial, do ponto de vista cristológico, é a afirmação
de que Jesus foi tentado em todas as coisas como nós mesmos,
porém, sem sucumbir.
A plena participação do sumo sacerdote na humanidade é afir-
mada do mesmo modo em Hb 2.17: "Em consequência, ele se fez
semelhante em tudo a seus irmãos, para vir a ser misericordioso e
fiel sumo sacerdote no serviço de Deus, para fazer expiação pelos
pecados do povo: pois como ele mesmo padeceu sendo tentado, é
capaz de socorrer os que são tentados."
A ideia da debilidade de Jesus, ele também sujeito à tentação,
domina ainda o começo do cap. 5. O autor menciona aqui uma
tentação concreta (v. 7 s.): "Foi ele quem, nos dias de sua carne,
havendo apresentado com grande clamor e lágrimas orações e
súplicas àquele que podia livrá-lo da morte e, tendo sido escutado
e se livrado da angústia aprendeu, embora sendo Filho, a obediên-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 129

cia pelo que padeceu." Que o autor tenha pensado aqui no Getsê-
mani parece-nos evidentemente a explicação mais provável.3I8
As expressões "clamor" e "lágrimas" são tão concretas que devem
referir-se a um acontecimento determinado em que Jesus tenha
orado para ser salvo da morte. Esta descrição, no entanto, não se
enquadra bem na crucificação, a despeito da menção do grito de
Jesus. Só pode referir-se à terrível tentação do Getsêmani, onde a
Jesus ficava, todavia, a possibilidade de escolher outro caminho
que o da obediência que devia levá-lo à cruz.219
Tampouco compreendo como, em presença de duas possíveis tradu-
ções de eiaaKoixrfleiç àrcò xfjç eyX,aJÍ£Íccç "ouvido e livrado de sua
angústia" ou "escutado por causa de sua piedade", se possa decidir cm
favor da segunda."" Todo o contexto leva a dar a eíActpeía o sentido de
"angústia"."' Justamente aí está a tentação de Jesus, é a í que se mostra sua
ào"9évera: como todo homem, teme morrer. Porém, Deus respondeu à sua
oração já que ele superou suaangústiac pôde dizer: "não o que eu quero..."

Estes versículos são de suma importância para a cristologia.


Não há neles o menor traço de docetismo: Jesus é verdadeiramen-
te homem e não simplesmente um Deus disfarçado de homem.
O autor emprega expressões que mostram que a seus olhos a
angústia de Jesus foi mais terrível ainda do que o relato dos evan-
gelhos permite supor. Na cena do Getsêmani, tal como a conhece-
mos, tem de ser acrescentado que Jesus em sua angústia mortal

-,|SÉ também a opinião de J. HÉRING,"L'Epítreauii Hchreux" {Cominem, d\t Noiíwtin


Tem.), 19M, a<i loc. Contra esta tese, M. R1SSI, op. <.7r, p. 39. Em nosso estudo,
Ininorleilité de \'âme OH résurrecúon des morts, 1956, p. 25 ss., insistimos sobre a
angústia de Jesus ao nos referi mios precisamente a este trecho da Epístola aos Hebreus.
;ií,
Cr. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 42 s.
2
-"Se não se leva em conta o contexto, as duas traduções são admissíveis. O. MICHEL
c C. SPICQ, em seus comentários, preferem aqui a segunda tradução (um e outro
dão, igualmente, um resumo da história da interpretação deste trecho); igualmente
M. RISSI, op. cit., p. 31Í. Por outro lado, os comentários de J. HÉRING c de H.
WIND1SCH traduzem como o temos proposto (este último, no entanto, com um
sinal de interrogação).
2
-' A conjectura muitas vezes citada de HARNACK (o acréscimo da partículaoòic) não
se justifica, nem é necessária para explicar o texto assim traduzido.
)3t) Oscar Cullmann

gritou e chorou. Ele não considerou a morte, como um estói-


co resignado, como a passagem natural de um estado para outro.
Viu nela algo terrível que Deus detesta: o "último inimigo", como
diz o apóstolo Paulo (1 Co 15.26).222
O autor da Epístola aos Hebreus teve, à sua disposição, uma tradi-
ção independente da dos evangelhos? Sobre isto não é possível pronun-
ciar-se com certeza. É possível que em outros lugares ainda faça alusão a
fatos precisos da vida de Jesus transmitidos somente pela tradição oral,
por exemplo quando escreve no capítulo 12.3: "Considerai aquele que
sofreu contra sua pessoa tal oposição da parte dos pecadores". Porém,
talvez pense aqui só em episódios já relatados pelos evengelhos.

A confirmação mais nítida do ensino da Epístola aos Hebreus


sobre a plena humanidade de Jesus é a afirmação segundo a qual
ele aprendeu a obediência (5.8). Esta expressão (a qual, se tem
tentado atenuar, mas sem nenhum êxito, a meu modo de ver)
supõe um desenvolvimento interior, uma evolução da pessoa de
Jesus. A vida de Jesus não seria verdadeiramente humana se não
se pudesse descobrir nela algum desenvolvimento. Outra passa-
gem do Novo Testamento (Lc 2.52) o diz por outro lado claramen-
te: "Jesus crescia (TcpoéKOJtxev) em sabedoria, estatura e graça,
diante de Deus e dos homens."
Este £U.cc6ev de Hebreus 5.8 esclarece também a expressão
Te^eioOv, da qual já falamos e que aparece precisamente no
versículo seguinte. Paralela à passagem onde se diz que Jesus
"aprendeu" a obediência, lemos, de fato (2.10), que ele foi "leva-
do à perfeição pelo sofrimento". Há aqui uma indicação evidente
de um certo desenvolvimento, de um progresso moral que encon-
tra seu coroamento na obediência expiatória, obediência que
Jesus precisou "aprender", para levar a bom termo a missão de
Ebed lahweh. A "obediência" de Hebreus 5.8 recorda a mesma
expressão em Fl 2.8. A gradação que se expressa lá por u.é%pi

-n Só na medida em que se leva a sério a morte, pode-se também levar a sério a ressurrei-
ção, Cf. nosso estudo: Immortalitê de i'âme ou résurrection desmorts, p. 32 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO .TESTAMENTO 131

supõe, ademais, um certo progresso no caminho da humilhação:


"obediente até a morte".
Para a Epístola aos Hebreus, o essencial não é tanto a manei-
ra em que Jesusfoi feito homem, mas, antes, quefoi homem. Nisto
reside sua função propriamente sacerdotal. Ao Cur deus homo de
Anselmo a Epístola aos Hebreus responde baseando-se na ideia de
sumo sacerdote: é necessário que este sofra com os homens, para
poder sofrer por eles.
A ideia de um desenvolvimento interior de Jesus é, para mui-
tos teólogos, mais insuportável ainda que a de uma perfeição
moral.223 Vêem nela o espectro, muito justamente desacreditado,
da imagem liberal de Jesus. Este é um temor injustificado: tirar,
com a Epístola aos Hebreus, todas as consequências da encarnação
de Jesus, e mostrar que como feito homem, foi homem, não signi-
fica ipso facto, entregar-se a uma interpretação "psicologizante".
Seria, antes, necessário precaver-se de outro perigo: o do docetismo
que, desde as origens e já no Novo Testamento, representa a here-
sia por excelência. Escandalizar-se por estes traços tão humanos
de Jesus prova que não se tem compreendido o que o Novo Testa-
mento entende por "fé em Cristo". Pois esta fé é, essencialmente,
a fé apesar do escândalo da humanidade. Os escritos do Novo
Testamento que insistem mais vigorosamente sobre a divindade
de Cristo são também aqueles que mais sublinham sua humanida-
de; e é justamente na Epístola aos Hebreus onde a divindade de
Cristo é afirmada com mais ousadia, já que o Filho é aí interpela-
do como criador do céu e da terra (1.10).
Tampouco seu autor teme, celebrar as qualidades e atributos
humanos de Jesus: lemos que tornou-se "um sumo sacerdote mi-
sericordioso e fiel" (2.17); trata-se inclusive da fé de Jesus. A dou-
trina sacerdotal da epístola quer, com efeito, que Jesus - "chefe e
consumador da fé" (12.2) - tenha, ele mesmo, também crido,224 e
que tenha conduzido os homens a crer em sua obra.

"'Cf. acima, o. 124 s.


r
, , ,1 „ , , . . . . . . ,. ,• . '-Í,'-?
Esta interpretação se toma lícita também qb^âb sêíJiía-o^meco do •camitnio rynn
132 Oscar Cullmann

Segundo a doutrina fundamental da Epístola aos Hebreus,


Jesus o Sumo Sacerdote, graças à sua humanidade, "santifica" nossa
humanidade; a "completa", a torna "perfeita". É o que já temos
constatado a propósito do termo xeXeiovv. E. Kãsemann tem
razão ao estabelecer aqui uma relação com a figura do primeiro
homem celestial.225 Pode-se mencionar, a título de comparação, o
mito gnóstico segundo o qual o Redentor teve de ser resgatado
para chegar, assim, a ser chefe dos demais.
Fica-nos, todavia, por colocar em evidência um aspecto da obra
sacerdotal de Jesus que, não obstante o paralelismo indicado, mos-
tra o abismo que separa a teologia de hebreus da mitologia e da
gnose: é o caráter único da obra do sumo sacerdote, o ètpánaÇ. Esta
unicidade está em oposição total à constante necessidade que perse-
gue o sacerdote do antigo pacto de repetir seu ministério. Desse
ponto de vista também, Jesus não somente realizou o antigo sacer-
dócio judaico como também eliminou todas as suas imperfeições.
Por isso a Epístola aos Hebreus insiste tanto no ècpámí;. A obra
de Jesus é ato definitivo e decisivo que, precisamente por ser úni-
co, traz aos homens a salvação. Aqui a ideia essencial é que não
se trata de um ato a ser renovado pelo próprio sumo sacerdote.
Porém, um outro pensamento se encontra ainda como pano de fun-
do: este ato tampouco pode ser renovado pelos irmãos, apesar da
solidariedade do sumo sacerdote com a humanidade destes. "Uma
vez", ècpá7ta%, significa aqui "de uma vez por todas": "entrou de
uma vez por todas no lugar santíssimo com o seu próprio sangue,
tendo obtido uma redenção eterna" (Hb 9.12); veja também 9.26;
"somos santificados pelo sacrifício do corpo de Jesus Cristo, de
uma vez por todas" (10.10). No capítulo 10.14, "uma vez" signifi-
ca igualmente "para sempre" (eíç tò ôirjveKéç). O acontecimento
histórico único, irrepetível, possui um valor redentor decisivo e
infinito. O que Jesus, o sumo sacerdote, realizou sobre o plano
terreno é, por conseguinte, o centro de toda a história da salvação,

E. KÃSEMANN, op. cit. (cf. p. 116, nota 200), p. 136 s.


CRISTOI.CHUA MO NoVO I -:.STAMI-:NTO 133

o divisor (meio) do tempo. Todo o cullo posterior centra-se neste


acontecimento histórico: a vida humana vivida de uma vez por
todas por este sumo sacerdote, coioada <U> uma vez por todas pela
morte expiatória que dá a esta vida sua plenitude e sua perfeição.

Deste ponto de vista o culto cristão não c possível senão sob a con-
dição de respeitar absolutamente este é<ptxTtaS;. É verdade que é inexato
qualificar a missa católico-romana como ''repetição" do sacrifício de
Jesus, como o fazem, amiúde, os protestantes.226 Os teólogos católico-
romanos sempre recusaram esta interpretação e têm afirmado que se tra-
taria de uma "atualização" do sacrifício de Cristo. Porém, não é isto já
um ataque ao è<pcbia£ da Epistola aos Hebreus, em particular quando se
qualifica a missa de ''sacrifício"? O sacrifício, como tal, não pode ser
"atualizado". Senão, corre-se o perigo de recair ao nível do antigo sacer-
dócio judaico, no qual o sumo sacerdote deve repetidamente oferecer o
sacrifício. Um culto cristão fiel aoè(pá7tc(£ deve evitar toda tentação, por
débil que seja, de "reproduzir" este ato central em lugar de deixá-lo ali
onde o próprio Deus o Senhor dos séculos o tem colocado: em um
momento preciso do terceiro decénio da nossa era Oqueéatual operante
c eficaz em nosso culto são as consequências deste ato salvador e não o
ato em si O Senhor presente no culto é o Kyrios da igreja e do mundo
elevado à destra de Deus o Senhor que sobre a base de seu ato expiatório
continua sua obra de mediador é o ressuscitado A relação entre sua cru-
cificação e a celebração da eucaristia é indicada pelas palavras Eic tfiv
éufiv àváuvnõ"iv "em memória de mim" o que quer dizer:em lembran-
ça do ato que eu realizei em virtude do qual eu estarei no meio de vós
como o Senhor ressuscitado

É por isso que o autor da Epístola aos Hebreus insiste tanto


sobre o fato de Jesus ser, na qualidade de sumo sacerdote, o medi-
ador de um novo pacto com Deus: "É por isso que ele é o media-
dor de um novo pacto" (9.15). No capítulo 12.24, igualmente se
lhe chama SiaOfjicriç véocç u,£0"í/niÇ. Aqui o sumo sacerdote se
une de novo com o Ebed lahweh, que tem também por função o
restabelecimento do pacto com Deus.

'•"Cf. O. CULLMANN, Christ et le Temps, p. 120.


134 Oscar Cullmaim

Chegamos assim ao problema do efeito duradouro e perma-


nente deste ato único sobre os crentes. Cristo torna-se o àp^rr/óç,
o chefe de uma nova humanidade, o autor (ocmoç) da salvação
para quantos o obedeçam (Hb 5.9). A correspondência é perfei-
ta: obedecem ao Cristo, como o próprio Cristo obedece ao Pai.
Já vimos que ele faz deles xéXeioi, assim como Ele próprio tor-
nou-se o TéXeroç. Em um plano mais elevado, ,hes dá capaciiação
para apresentarem-se diante de Deus, assim como o sacerdote do
antigo pacto lhes tornava aptos para render-lhe culto. "Por um só
sacrifício conduziu para sempre à perfeição aqueles que são santi-
ficados" (Hb 10.14). TeXeioíjv é quase sinónimo de áyiáÇeiv.
Igualmente, no capítulo 2.11: "Pois o que santifica e aqueles que
são santificados provêm de um só".
A Epístola aos Hebreus não diz como se deve representar a
relação entre o ato único de Jesus e a santificação daqueles que
são levados à perfeição, fazendo-se abstração da fé de cada um.
A Epístola se limita a constatar o efeito deste ato. Por analogia
com Rm 5.12 ss., pode-se talvez pensar que esta relação é paralela
à que existe entre Adão e a humanidade pecadora. Porém, na Epís-
tola aos Romanos, esta relação tampouco é explicada senão mera-
mente constatada.-27 A interpretação que Agostinho dá sobre ela
não se encontra explicitamente no Novo Testamento.
Considerando a importância dada à humanidade de Jesus, a
sua solidariedade conosco na qualidade de sumo sacerdote, existi-
ria a tentação de se buscar esta relação em uma Imitatio Christi.
De fato, uma expressão tal como ctp%n.YÓç poderia sugerir uma
explicação deste género e se pode descobrir já na Epístola aos
Hebreus alguns indícios do que será mais tarde a ideia de "imita-
ção de Cristo". Contudo, a importância capital dada ao ètpáTca^
mostra que, segundo nossa Epístola, uma imitação de Cristo não é
possível sem a condição de se reconhecer de antemão que não
podemos imitar a Jesus: ele é sem pecado e nós somos pecadores;
ele oferece o sacrifício de sua morte expiatória, do qual somos

Cf. abaixo, p. 223 ss.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 135

incapazes. O ato decisivo de obediência que, precisamente, faz de


nós, TÊXEIOI, é inimitável.228 Assim, como em Paulo, a relação
entre nossa perfeição e a do sumo sacerdote se encontra unica-
mente na fé no ècpáixa^ do ato sacrificial de Cristo.

* * *

Em Hebreus 6.20, encontramos no termo irpó5popioç, pre-


cursor, outra maneira de caracterizar as relações entre o sumo
sacerdote e os crentes. Este título apresenta um novo aspecto da
obra sacerdotal de Jesus: o de glorificado. Até aqui temos visto
que o Cristo, graças a sua vida humana que culmina em sua morte
expiatória, se converteu no autor (ocíxioç, àç>%r|yóç, Hb 5.9) da
salvação dos homens. Porém, ao "penetrar mais além do véu",
como precursor, leva também consigo os seus em sua ressurreição
e suas consequências. Certamente, este segundo aspecto está
inteiramente subordinado ao primeiro; é por isto que neste capítu-
lo temos introduzido a noção de Jesus Sumo Sacerdote no grupo
dos termos cristológicos que se relacionam, antes de tudo, com a
obra terrena de Jesus. No cap. 9.12b lemos ainda que "Ele entrou
de uma vez por todas no lugar santíssimo, com seu próprio san-
gue", porém, ao escrever isto, o autor se refere também à ressur-
reição, e a expressão rcpóôpouoç indica um pensamento próximo
à afirmação que encontramos em Paulo229 e no Apocalipse de
João:230 Jesus tornou-se por sua ressurreição o ApcuTÓTotcoç ixõv
vefcpcòv A relação entre a ressurreição de Jesus e a nossa é análo-
ga à que Paulo estabelece em 1 Co 15 12 ss
Porém, o autor sublinha, ademais, que desde então o sumo sacer-
dote permanece no lugar santíssimo, e que ali continua sua obra.
Expressa ainda a mesma ideia quando, inspirando-se no Salmo 110.4,

" s Em INÁCIO DE ANTIOQUIA não ocorre o mesmo. Parece, com efeito, que afirma
que a perfeição pode ser encontrada pelo mártir que dá sua vida por Cristo.
"'Rm 8.29; Cl 1.18. Cf. 1 Co 15.20: ÒLiuxp%r\ tâx K£KOip<onÉvcovc
-;"> Ap 1.5.
I'36 Oscar Cullinann

o proclama o sacerdote eiç tòv aíôva, por toda a eternidade


(Hb 6.20), £iç xò 8ir|V£Kéç, para sempre (7.3). Sacerdote
"segundo a ordem de Melquisedeque" tem o mesmo sentido que
"sacerdote por toda a eternidade". Na segunda metade do cap. 7,
estas expressões "por toda a eternidade", "para sempre", formam
o leitmotivm que corresponde ao leitmotiv que é o è(pánaií,.
Na qualidade de Sumo Sacerdote, Jesus cumpre pois um duplo
ministério: por um lado, o do ato expiatório já realizado de uma
vez por todas; por outro, o daquela prolongação, da extensão desta
obra que dura por toda a eternidade. No fundo, não se trata verda-
deiramente de um ministério duplo, já que tudo repousa sobre o
seu sacrifício único: "mas ele, porque permanece eternamente,
possui um sacerdócio imutável" (Hb 7.24). Aqui este sacerdócio é
chamado à7tapápccTOÇ, imperecível. Isto é, que o reino atual do
Cristo é considerado também como uma obra sacerdotal. A noção
de sumo sacerdote permite, pois, ao autor estabelecer uma relação
tão estreita quanto possível entre a obra atual de Cristo e sua mor-
te sobre a cruz: "é também por isso que ele pode salvar perfeita-
mente aqueles que por meio dele, se aproximam de Deus, vivendo
sempre para interceder por eles" (Hb 7.25). Trata-se aqui, incon-
testavelmente, de um sacerdócio que o Cristo exerce desde a
ressurreição e continua exercendo eíç,TOnavce^éç, para todo o
sempre.
A ideia da mediação sacerdotal do Cristo presente está expres-
sa nesta passagem (Hb 7.25) de um modo verdadeiramente clássi-
co, quando aqueles a quem aproveita esta mediação são chamados
7r.pooepxóu.evoi ÒY cunoí) TÔ> Beô> "aqueles que se chegam a Deus
por meio dele". Por certo este acesso repousa inteiramente sobre o
sacrifício realizado no passado por Jesus; porém, o autor pensa
aqui no efeito, na prolongação deste sacrifício, ou seja, na obra
que Jesus Cristo, o Sumo Sacerdote, realiza agora que está assen-
tado à destra de Deus.

:
"C.. igualmente cap. 10.13 s
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 137

lim que consiste o ministério sacerdotal que Jesus Cristo rea-


liza iitualmente por nós? Aquele que "vive para sempre", "interce-
de por nós" (èvix>yxávei, 7.25); comparece "por nós diante de
Deus" (9.24). Em outros termos: sua obra consiste em interceder
pelos seus. O autor insiste em que é o Cristo presente quem inter-
cede, o designado como o itáviOTE Çrôv (7.25), o Cristo vivo.112
A intercessão de Cristo - que, em virtude de sua obra realizada de
uma vez por todas, é sempre eficaz - é ação autenticamente sacer-
dotal. No sentido de que "vive para sempre" deixou de interceder
por nós de uma maneira exclusivamente coletiva, como em sua
morte expiatória; agora intercede, também particularmente, por cada
um de nós diante Deus. Vemos, pois, novamente, o quanto ambos
os aspectos do ministério sacerdotal de Jesus, a obra realizada de
uma vez por todas, e a obra que prossegue no presente, estão
estreitamente relacionadas, mantendo sua diferença: "Jesus Cris-
to, o mesmo ontem e hoje..." (Hb 13.8).
Se o Cristo vivo pode interceder por nós ainda agora é por
que ele é o mesmo que viveu sobre a terra, sendo homem e tentado
em tudo como nós. Só por isso pode ainda hoje solidarizar-se
conosco. Sua encarnação não foi, pois, necessariamente tão só para
realizar seu sacrifício único e perfeito, mas também para poder
interceder, hoje ainda, em nosso favor. A ideia de intercessão con-
tínua, presente, do Cristo é de importância capital para a cristologia;
e a dogmática deveria levá-la mais em conta. Veremos, aliás, que
não se trata de uma opinião particular do autor da Epístola aos
Hebreus. Voltaremos a vê-la em Paulo e, mais explicitamente ain-
da, nos discursos de despedida do Evangelho de João.
Temos na Epístola aos Hebreus uma linha que, partindo do
sacerdócio de Jesus Cristo, conduza ao terceiro aspecto de sua

•'1•'Já a expressão familiar ao Amigo Testamento, "o Deus vivo," que reaparece mui-
tas vezes na Epístola aos Hebreus (3.12; 9.14; 10.31; 12.22), indica que Deus
opera de uma maneira constante. Enquanto que o Verbo Çíyv, aplicado a Cristo no
cap. 7.8 (como em Lc 24.5 e Ap 1.18) evoca, sobretudo, a vitória obtida sobre a
morte pela ressurreição, aqui (cap. 7.25) o autor deve ter pensado na ação de
Cristo que continua.
138 Oscar Cullinann

obra, o escatológico? À primeira vista, parece que não. Em todo


caso, o autor não desenvolve a ideia de que quando Jesus voltar
tenha de exercer uma função sacerdotal particular. No entanto, em
Hb 9.28 encontramos uma passagem que faz alusão a este aspecto
do problema: "Igualmente Cristo, que se ofereceu uma vez para
levar os pecados de muitos, aparecerá, sem pecado, uma segunda
vez, àqueles que o esperam para sua salvação". Aqui é, sobretudo,
a expressão EK ôevcépov que é interessante, porquanto faz uma
evidente alusão à parusia.
Equivocadamente, se tem sustentado que o Novo Testamento não
fala de um "retorno de Jesus". Em nossa passagem, os termos emprega-
dos mostram, sem equívoco possível, que se trata de uma "segunda" vin-
da de Jesus.23-1

A expressão &K SEtccépov caracteriza a obra escatológica do


sumo sacerdote, assim como o ècpáTa£, caracteriza sua obra terrena
e èiç TÒ ôiTiv8Kéç, sua obra presente. Contudo, o autor não diz
expressamente em que consistirá a obra especificamente sacerdotal
de Jesus no fim dos tempos. Limita-se a indicar pelas palavras "sem
(relação com o) pecado"; ou seja, não para expiar nosso pecado,
mas para levar-nos à plenitude de nossa santificação. Quando tudo
estiver consumado, a humanidade terá ainda, mais uma vez, neces-
sidade de um ministério mediador do Cristo sacerdote. O judaísmo
havia concebido a figura do sumo sacerdote ideal, precisamente em
relação com a esperança escatológica. Não é, portanto, surpreen-
dente que a Epístola aos Hebreus, o único livro do Novo Testamen-
to que nos oferece uma cristologia completa do sumo sacerdote,
tome também em consideração este aspecto de seu ministério, esta
consumação escatológica da reconciliação da humanidade com Deus.
Acabamos de constatar que a noção de sumo sacerdote forne-
ce, na Epístola aos Hebreus, uma cristologia completa. Engloba

'A ideia de um retorno sobre a terra era já familiar ao pensamento judaico antes da
morte e da ressurreição de Cristo: é o que demonstra a crença no retorno do profeta,
em particular no retorno de Elias. Cf. acima, p. 33 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 139

os três aspectos fundamentais da ação de Jesus: a obra terrena úni-


ca (è(páKot^), a obra presente do Cristo glorificado (éiçTO5vr|VEKéç)
e a do Cristo que volta (ÈK Ôeutépovj); "ontem", "hoje", "eterna-
mente" (Hb 13.8). Poder-se-ia, quando muito, objetar que neste
esquema a obra do Cristo preexistente não foi levada especial-
mente em consideração. No entanto, mesmo fazendo abstração da
frase ousada (1.10) que faz de Cristo o Criador do céu e da terra,
as especulações relativas a Melquisedeque apresentam ao menos
alguns indícios neste sentido. Por outro lado, o autor atribuiu a
Jesus, além do título de sumo sacerdote, outro título cristológico
que indica justamente sua preexistência: "Filho de Deus".
Ademais, a doutrina do sumo sacerdote estabelece um elo entre
a história da salvação, tal qual se desenvolve no Antigo Testamento,
e as afirmações características do Novo Testamento: Cristo cum-
priu todo o sacerdócio do povo de Israel, como cumpriu em sua
pessoa a função do Templo e o substituiu. O sacerdócio do antigo
pacto tornou-se supérfluo, pois Jesus compreende em sua pessoa
toda a vida cultual do povo escolhido. Isto é o que também faz supor
a passagem de Mateus (27.51), em que se diz que o véu do Templo
se rasgou em dois: o evangelista deve ter pensado que Jesus é o
Sumo Sacerdote que nesse momento penetrou no lugar santíssimo.
Em conclusão, podemos dizer que, entre as doutrinas cristo-
lógicas examinadas até aqui, a que diz respeito ao sumo sacerdote
é a que expressa, de modo mais exaustivo e adequado, a ideia que
o Novo Testamento faz acerca de Jesus. Sua vantagem apóia-se
em unir os três aspectos da obra de Jesus, embora o último, o
aspecto escatológico, seja mais mencionado do que desenvolvido.
Ademais, a relação recíproca destes três aspectos concorda com o
conjunto do testemunho do pensamento cristão primitivo, já que,
por um lado, o sacrifício da cruz se encontra no centro da obra
sacerdotal de Jesus e, por outro, sua função mediadora presente
assume uma importância que corresponde ao interesse atual da
igreja pelo Kyrios glorificado.

* * *
140 Oscar Culhnann

É, então, na Epístola aos Hebreus que se encontra a úni-


ca cristologia completa que gire em torno do sumo sacerdote.
No entanto, a encontramos mais ou menos explicitamente em
outros escritos do Novo Testamento.-^ É por isso que o Filho do
Homem que aparece no meio dos sete castiçais (Ap 1.13), é repre-
sentado na figura do sumo sacerdote: "vestido de longas túnicas e
cingido pelo peito com um cinto de ouro". O autor não dá muita
atenção a esta imagem, já que a do "Cordeiro" tem para ele maior
importância.
A cristologia do sumo sacerdote se apresenta mais vigorosa-
mente e com maior relevo no Evangelho de João. De todos os
livros do Novo Testamento é este o que, também a partir de outros
pontos de vista, mais se aproxima da Epístola aos Hebreus. Não é
surpreendente, pois, encontrar aí novamente a ideia de Sumo
sacerdote. C. Spicq2-35 fez notar que segundo Jo 18.15 o discípulo
bem-amado era conhecido do sumo sacerdote judaico. Suas rela-
ções com os meios sacerdotais explicariam seu interesse pela fun-
ção sacerdotal de Jesus. m A tese de Spicq, segundo a qual o autor
da Epístola aos Hebreus haveria tão-somente tomado emprestado
sua cristologia sacerdotal dos escritos joaninos, não se impõe
necessariamente: com efeito, esta concepção remonta, de maneira
definitiva, ao próprio Jesus; e a igreja primitiva inteira aplicava o

'M A interessante tentativa de G. FRIEDR1CH, "Beobachtungen zw messianishen


Hohepriestererwartimg in den Synoptikerrí' (ZTIiK, 53, 1956, p. 265 ss.) de desco-
brir, por onde quer que vá nos Sinópticos, indícios de uma cristologia do sumo
sacerdote, revela numerosas relações entre a ideia do sumo sacerdote e o resto da
cristologia do Novo Testamento, mesmo que, em muitos casos, estes continuem
problemáticos. O autor parte da pressuposição de que a messianologia do judaísmo
tardio dependia em grande parte da ideia de sumo sacerdote messiânico.
21Í
C. SPICQ, "L'origine johanniqtie de la concepcion du Christi-prêtre dans 1'Epítre
aux Hiíbreux" (Ata Sources de ia tradition chrétieitne, Mélanges Aí. Goguet, ,950,
p. 258 ss.). Sobre o mesmo tema, cf. também, O. MOE, "Das PriestertumChristi im
Neuen Testament ausserlialb des Hebracrbriefs" (TliLz, 72, 1947, col. 335 s.);
E. CLARKSON, "TlieantecedentsoftheHigh-PriestTheme in Hebrews" (Atiglican.
Theol. Ri'v., 1947, p. 92 ss.).
2w
Ademais, C. SPICQ chama a atenção ao fato de que a túnica de Jesus que, segundo
João 19.23, era sem costura, lembra a vestimenta do sumo sacerdote.
CÍOÍÍTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 141

SI 110 a Jesus. Assim, pois, pode não ter havido nenhuma depen-
dência direta.
É primordial reconhecer, contudo, que o autor do quarto evan-
gelho adere espontaneamente a esta concepção. Pensemos, antes
de tudo, no capítulo 17. Esse capítulo forma parte dos discursos de
despedida e geralmente é intitulado de "oração sacerdotal". Este
título não é tão antigo como se poderia crer. Os Pais da igreja não
o conheciam; embora, por exemplo, Cirilo de Alexandria assinala
a propósito de Jo 17.9 que Jesus opera aqui como sumo sacerdo-
te. 2 " O título, "oração sacerdotal", só foi aplicado ao conjunto
deste capítulo na primeira metade do século XVI, pelo teólogo
protestante Chytraeus, e logo se impôs, tanto na teologia protes-
tante como na católica.
Chytraeus não se equivocou ao empregar esta expressão. Com
efeito, toda esta oração não se explica senão pela consciência que
tem quem a pronuncia de realizar uma função sacerdotal. Jesus
dirige esta oração ao Pai, a fim de que santifique aos seus e os
torne capazes de recolher os frutos do sacrifício que ele, jesus, vai
oferecer. A oração pela santificação dos seus (17.17) e por sua
separação do mundo (17.11 ss.) é uma oração tipicamente sacer-
dotal, com a diferença de que no Antigo Testamento tinha um
caráter cultual enquanto aqui deve entender-se num sentido moral,
já que Jesus cumpriu o sacerdócio israelita. Como o próprio Cris-
to foi santificado pelo Pai (10.36), da mesma maneira os seus
devem ser santificados. Pe. Spicq faz notar, com razão,2-58 que a
mesma ideia de santificação se encontra em Hb 10.10.
Porém, é principalmente o segundo aspecto da cristologia da
Epístola aos Hebreus que se desenvolve nos discursos de despedi-
da: a ideia de que Jesus em sua qualidade de "iniciador" (àp^iryóç)
e "precursor" (7tpóôpou.oç) precede os seus e continua assim no
presente seu ofício sacerdotal de mediador. Este é o sentido da
passagem da oração sacerdotal em que Jesus pede que aqueles que

17
MPG, 74, col. 505. Cf. C. SPICQ, op. cit., p. 261, nota 4.
,K
UEptire aux Hébreux, I, 1952, p. 122 s
Ij)2 Oscar Cuiimaim

o Pai lhe tem dado estejam com ele onde ele estiver (17.24). Igual-
mente a palavra relativa à "preparação das moradas na casa do
Pai" (14.2 ss.) corresponde, como mostrou Spicq, à "preparação
da cidade celestial" em Hb 11.16.
Os escritos joaninos também são os que, com a Epístola aos
Hebreus, mais insistem na ausência de pecado em Jesus: "Quem
dentre vós me convence de pecado?" (Jo 8.46); "nele não há peca-
do" (1 Jo 3.5).2-19
Porém, é a ideia de Paracleto a que mais nos parece estar em
relação com a de sumo sacerdote. Tem-se advertido, muito justa-
mente, sobre o caráter jurídico do Paracleto.240 No momento, este
caráter está em relação com o papel de mediador do sumo
sacerdotete: "Se, todavia, alguém pecar, temos um rcccpáioliitoç,
advogado, junto ao Pai, Jesus Cristo, o justo" (1 Jo 2.1). A função
de Jesus é descrita da mesma maneira em Hb 7.25 e 9.24. Segundo
as passagens do Novo Testamento que citam o SI 110, Jesus segue
operando atualmente como aquele que está à direita de Deus. Igual-
mente, o Evangelho de João afirma que Ele sustenta aos seus na
terra pelo Paracleto. Jesus parece inclusive resumir todas as ora-
ções que dirige ao Pai e, portanto, toda sua função sacerdotal,
pedindo a Deus que envie aos seus outro Paracleto, a fim de que
permaneçam eternamente com Ele (Jo 14.16). É este Paracleto que,
de agora em diante na terra, tem de "santificar" aos crentes; é ele,
"o Espírito de verdade, a quem o mundo não pode receber", o que
conduzirá em toda verdade aqueles que pertencem a Cristo. Ade-
mais, se Jesus, em seus discursos de despedida, recomenda a seus
discípulos dirigirem-se a Deus "em seu nome", indica com isso
que continuará, uma vez glorificado, sua função sacerdotal, encar-
regando-se, ele próprio, de apresentar a Deus suas orações. Tal é o
sentido da fórmula com que os cristãos terminam suas orações:
8ux 'Iricot) Xpiccoí).

Ver também a expressão de 1 Jo 3.7, onde Jesus é chamado "justo".


TH. PREISS, "La justification clans la pensée johanníque" (Hommage et
reconnaissancc Por ocasião do óO* aniversário de K. Barth, 1946, p. lOOss.).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 143

Temos constatado que a ideia de Cristo Sacerdote não é


exclusiva da Epístola aos Hebreus, como se costuma pensar, mas
que está na base das afirmações cristológicas de outras passagens
do Novo Testamento. É verdade que nelas esta ideia não tem a
coesão que tem na Epístola aos Hebreus; e temos de reconhecer
também que muito rapidamente a figura do sumo sacerdote deixa-
rá de ser tomada por centro de toda a cristologia, embora não
tenha nunca desaparecido completamente, e que tem, na história
dos dogmas, um papel muito maior que a antiga cristologia do
Ebed lahweh, por exemplo. Mais adiante ela servirá, sobretudo,
para pôr em evidência um aspecto cristológico ao lado de outros, a
saber, o múnus sacerdotcáe do Cristo.241 Se esta cristologia sacer-
dotal se perpetuou assim, é sem dúvida porque se encontra no cen-
tro de um dos escritos canónicos do Novo Testamento, a Epístola
aos Hebreus.

* * *

Temos chegado assim ao término da primeira parte do nosso


estudo, em que nos propusemos estudar os títulos cristológicos
primordialmente relativos à obra terrena de Jesus.

241
A distinção feita por HIPÓLITO entre o Messias de Judá e o de Levi, unidos na
pessoa de Jesus, é sumamente interessante. Esta distinção é importante também
porque os textos de Qumran, o Documento de Damasco, e o Testamento dos Doze
Patriarcas, falam de uma esperança de dois Messias (Messias de Aarãoe Messias de
Israel) (cf. acima, p. 116 s.) L. MARIÈS, "LeMessieissudeLevíchezHíppolytede
Rome" (Mélanges j . Lebreton, \,Rech. Sc. Rei, 1951, p. 381 ss.) provou que Hipólito
devia conhecer a tradição referida pelo Testamento dos Doze Patriarcas. Ver tam-
bém, J. T. MILIK (Revue Biblique, 1953, p. 291).
SEGUNDA .PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOS
REFERENTES À OBRA FUTURA
DE JESUS
PEQUENO INTRÓITO

Antes de tudo, e para evitar qualquer mal entendido, é neces-


sário começarmos sublinhando aqui que nossa divisão cronológi-
ca de nenhuma maneira tem a pretensão de encerrar cada título
cristológico nos limites estreitos do período a que cada um corres-
ponde. Se estudarmos, nesta segunda parte, os títulos e noções
que se relacionam, principalmente, com a obra escatológica de
Cristo, cabe-nos sublinhar este "antes de tudo". Como já temos
visto, não ocorre, praticamente nunca, que um título se relacione
exclusivamente a um só dos quatro aspectos cristológicos que
temos distinguido. Por exemplo, temos visto que a concepção de
sumo sacerdote se refere, sobretudo, à obra terreena de Jesus,
porém, concerne também em grande parte à obra presente do Cris-
to glorificado e, inclusive, à sua obra futura. A distinção que
temos feito se justifica por razões práticas; seria, pois, completa-
mente falso ver nesta distinção uma espécie de esquema imposto à
força à cristologia do Novo Testamento. Ela tem, essencialmente,
um valor metodológico: permite distribuir a matéria e tratá-la de
uma maneira conforme à teologia do cristianismo primitivo e evi-
ta estabelecer de um modo arbitrário a ordem das noções a serem
examinadas; permite-nos, pois, apoiarmo-nos sobre as ideias do
Novo Testamento preferivelmente às interpretações cristológicas
da dogmática posterior.
Por outro lado, temos de repetir que as diversas noções que
estudamos não são na realidade tão rigorosamente diferenciadas
umas das outras, como poderia parecer. Influenciam-se reciproca-
mente em grande medida e esta interpretação já se efetuou, por um
lado, no seio do Judaísmo, mesmo antes de serem aplicadas a Jesus.
T48 Oscar Cullmann

Ocorre frequentemente que um título abarque não somente con-


cepções que lhe sejam próprias como também outras que se ligam
a um outro título.
Não é possível, então, traçar limites absolutamente rigorosos
entre cada título ou função cristológica mencionada no Novo Tes-
tamento. Convém operar por distinção e analisar as diversas con-
cepções uma após a outra, mas sob a reserva expressa de que não
se poderia excluira priori a possibilidade de influências recíprocas.

Esta reserva já se impõe para o prirne h o destes títulos, o d e Messi-


as. Embora aprovemos, em suas linhas gerais, a tese principal exposta
por Jean Héringem sua obra: Le Royaume de Dieu etsavenue, 1937242 -
obra particularmente importante para esta parte de nosso estudo - pare-
ce-nos que o autor não escapou ao perigo de esquematização contra o
qual nos pomos em guarda.

1
Cf., igualmente, os complementos <jue ele fez a este texto em seu artigo "Messiejuif
et Messie chrétien" (RHPR, 18, 1938, p. 419 ss.) Uma tese análoga foi defendida
por A. VON GALL.
CAPÍTULO I

JESUS, O MESSIAS
(XpiGTÓÇ)

Este capítulo trata de um título cuja origem jaz, antes de tudo,


na esperança escatológica do Judaísmo. Recordemos que o adjeti-
vo "messiânico" é empregado quase como sinónimo de "escato-
lógico" . Porém, sua aplicação a Jesus - no cristianismo primitivo,
cuja concepção de tempo implica uma tensão característica entre
o presente e o futuro - teve, por consequência inevitável que englo-
bar também outras concepções cristológicas do Novo Testamento.
Este título tornou-se como que um ponto de cristalização: do
ponto de vista exterior, quase todas as outras concepções ficaram-
lhe subordinadas. É por causa disso, ademais, que falamos de
"cristologia" sem termos exclusivamente em vista a noção de Mes-
sias-Cristo.
Já no seio do Judaísmo, todas as noções relativas ao fim dos
tempos têm a tendência de vincular-se ao título de Messias, mes-
mo quando quase não têm pontos em comum.
Na época de Jesus, encontramos entre os judeus ideias mui-
to diversas e que costumam diferir radicalmente entre si acerca
do Mediador do fim dos tempos. Não existia, então, uma con-
cepção única e firme acerca do Messias. Costumamos falar do
Messias judaico, como se se tratasse de uma figura bem conhe-
cida, com contornos rigorosamente demarcados. Sem dúvida, a
esperança de todos se resumia num Redentor, que apresenta-
va sempre traços nacionais judaicos. Porém, dentro deste enfo-
que comum a todos, podem apresentar-se os conteúdos mais
150 Oscar Cuítmann

diversos.243 É verdade, também, que na época do Novo Testamen-


to, um certo tipo de Messias se tornou predominante: aquele que
se pode chamar, grosso modo, o "Messias político", ou simples-
mente, o "Messias judaico". Neste capítulo, o empregaremos nes-
te sentido para simplificar; porém, sem esquecer que a palavra
"Messias" não é ainda um termo técnico para designar unicamen-
te esta concepção, embora, esteja em vias de chegar a sê-lo. Com
efeito, certas ideias judaicas sobre o Redentor se formaram
deliberadamente por oposição ao tipo de Messias predominante,
embora todas elas se classifiquem sob o mesmo termo comum: o
de "Messias". No Novo Testamento os que adquirem preponde-
rância são, precisamente, os conceitos e títulos cristológicos judai-
cos que têm um caráter diferente do de Messias político. Contudo,
os primeiros cristãos nem por isso deixaram de adotar o título de
"Messias" para designar a Jesus.
Para nos convencermos da importância que davam a este títu-
lo, basta lembrar que, desde a época do Novo Testamento até nos-
sos dias, "Messias" chegou a ser para os cristãos o título cristológico
por excelência: pois a palavra grega Xpurcóç (derivada de xptfo,
ungir) não é outra coisa que a tradução da palavra hebraica
maschiach, o Ungido. Desde muito cedo, os cristãos adquiriram o
hábito de associar o título de "Cristo" ao nome de Jesus. Jesus
Cristo, pois, significa Jesus-Messias. Já nos mais antigos escritos
cristãos que nos chegaram, as Epístolas de Paulo, o termo "Cris-
to" mostra a tendência a converter-se em nome próprio (embora
Paulo, invertendo às vezes a ordem usual, escreve "o Cristo
Jesus", evidenciando, assim, que não esquece a verdadeira signi-
ficação deste título). Na época apostólica, o verdadeiro sentido do
título de Messias é, pois, conhecido. Deveríamos sempre nos lem-
brar, ao ler o Novo Testamento, que, no espírito de seus autores,
"Jesus Cristo" significa correntemente "Jesus o Messias".

'É o que mostram F. J. FOAKES JACKSON e K. LAKE, The Beginnings of


Chrisúanity,I, 1920, p. 356. Cf. também, A. E. J. RAWLINSON,T/ie NewTestament
Doctrine of the Christ, 1926 (3" ed.. 1949)) p. 12 ss.; W. MANSON, Jesus The
Messiah, 1946, em particular p. 134 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 151

No entanto, não temos que deduzir daí que as ideias ligadas


;u> título de "Messias" provenientes do judaísmo tiveram uma
importância particular para os autores cristãos que o aplicaram a
Jesus. Se assim fosse, deveríamos consagrar a este capítulo um
lugar bem central. Na realidade, só alguns traços - aliás, impor-
tantes - da imagem predominante do Messias foram apropria-
dos pelos cristãos, enquanto que outros aspectos essenciais do Mes-
sias judaico não foram aplicados a Jesus. Se o título "Messias"
acabou por impor-se de uma maneira quase exclusiva, isso prova
que podia englobar noções muito diversas; e que, por sua vez, se
devia recorrer a ele, se se quisesse tornar compreensível aos judeus
o papel escatológico de Jesus.
Porém, se se pensa no caráter político tão marcante deste título
judaico, estas vazões não bastam para explicar seu emprego exclusivo
por parte dos cristãos. É necessário que alguns traços tirados da ima-
gem predominante do Messias judaico e aplicados a Jesus tenham
tido, para os primeiros cristãos, uma importância teológica particular.
Será, pois, necessário examinarmos isto com muita atenção.
O grande êxito do título "Messias-Cristo" é tão mais surpre-
endente quando notamos que o próprio Jesus - voltaremos a falar
sobre isso - sempre manifestou uma singular reserva quanto ao
seu emprego, cada vez que se o fazia para designar sua pessoa e
sua obra. Que precisamente este epíteto de Messias (em grego:
Xpiotóç) ficou para sempre associado ao nome de Jesus, poderá
parecer irónico; como também o fato de ser este título aquele que
nomeou a nova fé: foi em Antioquia que seus adeptos receberam
pela primeira vez o nome de "cristãos", ou seja, de "messianistas"
(At 11.26). Não é possível que tenham recusado completamente a
imagem tão especificamente judaica de Messias.
Porém, temos de demonstrar, antes de tudo, que o próprio
Jesus jamais se autodelegou a missão que seus contemporâneos
atribuíam, de maneira característica, ao Messias esperado. Um
exame da concepção acerca do Messias político corrente na época
de Jesus, no pensamento e na esperança da grande massa do povo
judeu, nos permitirá descobrir aí certos traços, ao menos, que
152 Oscar Cullmann

podem ter sido atribuídos a Jesus e que justifiquem, assim, em


alguma medida,o êxito deste título.

1. O MESSIAS NO JUDAÍSMO244
O particípio mâschiach significa o "Ungido"; é empregado
ne.ste sentido para designar em particular ao rei de Israel, a quem
se chama "O Ungido de Iahweh" - alusão ao rito da unção real
(1 Sm 9.16; 24.7). Porém, este título não se reserva unicamente ao
rei: todo homem de Deus, encarregado de uma missão para com
seu povo, também pode tê-lo. É assim que em Ex 28.41 o sacerdo-
te é chamado o "Ungido", mâschiach; e, segundo I Reis 19.16,
Eliseu deve ser "ungido" como profeta. Mesmo um rei estrangeiro
e pagão pode receber este título quando o Senhor o encarrega de
uma missão particular, ou seja, quando é instrumento do plano
divino de salvação. É assim que em Is 45.1, o próprio Ciro é cha-
mado de "Messias", ungido.245
Para dizer a verdade, no período monárquico o enviado espe-
cial de Deus é o rei de Israel e a expressão o "Ungido de Iahweh"
geralmente indica o rei. O rei tem um caráter divino; a realeza
israelita é, pois, de "direito divino". São-lhe atribuídos, como sinó-
nimos de "Ungido do Senhor", títulos que expressam a origem
divina de sua função: 2 Sm 7.14, por exemplo, o chama "Filho de
Deus". Na base destas invocações se encontra a ideia de ser Iahweh
o verdadeiro rei de Israel; e o rei terreno, seu lugar-tenente que
exerce esta função divina.

Cf., entreoutros, aeste respeitoP VOLZ,D/VEschatirf'>giederJiidischeitCeitieittáe


im iwutestamentlidwii Zeituiter, 2a c<J., 1934; partie. p. 173 ss. - H. GRESSMANN,
Der Messias, 1929. - W. KUPPERS, "'Das Messiasbild der spaijiidísclien
Apofcalyptifc" (Ini, kirclil. Ztschr., 2.1, 1933, p. I'J3 ss.; 24, 1934, p. 47 ss. -
J. HÉRING, Le Royawiie de Dieu et sa vrnite, 1937.- S. MOWINCKEL, Han son
koiumcr. 1951; cd. inglesa: He theit Cometi), 1956. - A. BENTZEN, ftiiif; and
Messialu 1954-Com uma abundante bibliografia, O. EISSFELD, art. "Chrisius 1"
(RAC, l. H, col. 1250 ss.).
Cf. ;i CSK* respeito E. JENNI, "Die Rollc efes Kyrios bei Dculcrojesaja" (77/Z, 10,
1954, p. 241 ss.).
CRISTOLOGIA f>0 NOVO TliSTAMF.f^O _153

Conforme 2 Sm 7.12 ss., Deus havia prometido a Davi que


seu reinado duraria eternamente. E embora esta predição tivesse
sido brutalmente desmentida pela história, a esperança escatológica
não fez senão aderir com maior vigor a esta esperança não realiza-
da: é assim que o "Ungido de Iahweh", o "Messias", torna-se, pouco
a pouco, uma figura escatológica (embora - coisa singular- o termo
mâschiach não seja empregado no Antigo Testamento como título
escatológico).
Isto não significa que este "Ungido" aparecerá fora do âmbi-
to terrestre. A palavra ''escatológico" deve ser tomada aqui em seu
sentido etimológico, ou seja, temporal. Pensa-se que é preciso uma
realeza terrena para trazer a salvação futura. É assim que lemos no
Salmo 89.3 ss.: "Fiz aliança com o meu escolhido e jurei a Davi,
meu servo: Para sempre estabelecerei a tua posteridade e fumarei
o teu trono de geração em geração". Trata-se de uma esperança
escatológica que deve realizar-se inteiramente na esfera terrena.
Provavelmente foi durante o exílio, época em que o trono de
Davi já não existia mais, que a promessa feita a Davi se projetou
para um futuro distante, em que a salvação deveria ser realizada
certamente no âmbito terrestre, porém, de uma maneira definitiva.
"Nesse dia, diz Iahweh Zebaoth, os filhos de Israel servirão ao seu
Deus e a Davi, seu rei, que eu levantarei para eles." (cf. Jr 30.8
ss.). Os Salmos 2 e 72 anunciam, por sua vez, que todos os povos
deverão submeter-se ao rei de Sião estabelecido por Iahweh.
Quando do exílio, é particularmente Ezequiel quem confere
ao futuro rei os traços precisos que caracterizarão, doravante, a
figurado Messias. Segundo Ez 37.21 ss., o dia virá em que o reino
de Israel inteiro será unido sob o cetro de Davi, eeste reinará eter-
namente.
Porém, a esperança da vinda de um rei da casa de Davi no fim
dos tempos assumiu suas formas mais vivas posteriormente, quan-
do, sob a dominação grega, o nacionalismo judaico alcançara seu
desenvolvimento máximo. Esperava-se então um rei totalmente
icrreno, político, e não um ser celestial que apareceria sobre a ter-
ra de uma forma milagrosa. Segundo uns, por exemplo o redator
]^4 Oscar Cullmann

da profecia de Zacarias 9.9 s., seria, antes, um rei pacífico, o qual


não estaria impedido de desempenhar um papel essencialmente
político. Para outros, muito numerosos, haveria de ser um sobera-
no belicoso cuja primeira preocupação seria a de vencer todos os
inimigos de Israel. É assim que aparece em particular nos Salmos
de Salomão. Nos Salmos 17 e 18 deste livro, o rei futuro, descen-
dente de Davi, é chamado Xpictóç246. Tomemos especialmente
esta oração dos Salmos de Salomão em 17.21 s., em que a espe-
rança messiânica, em voga na época do Novo Testamento, encon-
tra sua expressão clássica: "desperta-lhes um rei, o filho de Davi,
no tempo que tenhas escolhido para que reine sobre teu servo Isra-
el; cinge-o com o teu poder de modo que aniquile os tiranos ímpios
e purifique a Jerusalém dos pagãos que a mancham com seus pés...,
que os destrua com vara de ferro e destrua com a palavra de sua
boca os pagãos ímpios; que suas ameaças façam os pagãos fugi-
rem e que castigue aos pecadores por causa dos pensamentos de
seus corações. Então ele reunirá um povo santo que ele governará
com equidade, e julgará as tribos do povo santificado pelo Senhor
seu Deus, e dividirá entre eles o país..., e os estrangeiros não terão
o direito de habitar no meio deles..., submeterá os pagãos sob seu
jugo, para que lhe sirvam, e glorificará publicamente ao Senhor
aos olhos do mundo inteiro, e ele tornará Jerusalém pura e santa,
como era no começo." Tais eram as esperanças que corriam nos
tempos de Jesus entre os fariseus.
Junto a esta esperança messiânica "clássica" é normal encon-
trar a ideia de que este rei não realizaria o reino definitivo - que o
próprio Iahweh haveria de estabelecer2'" - mas algo de caráter
provisório. Converte-se assim o rei messiânico em precursor de
Deus. Salta à vista que duas concepções originariamente diversas

246
E J. FOAKES JACKSON e K. LAKE, op. cíi. (cf. p. 150, nota 243), p. 356, subli-
nham o fato de que a palavra "Messias" aparece aqui pela primeira vez em seu
sentido propriamente escatológico. No entanto, mesmo que a cronologia dos textos
de Qumran não esteja ainda estabelecida de forma segura, agora temos de levar em
consideração os trechos em que eles falam do Messias.
247
Ed 7.26 ss.; 11-14 ; Ap. Baruque 29; 30; 40; cf. ainda Sanh. 96 b ss.
CwsTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO _155

tenham se combinado aqui: segundo uma, o rei messiânico instau-


ra o reino definitivo, segundo a outra (sem dúvida a mais antiga) é
o próprio lahweh quem o fará. Onde ambas ideias se apresentam
assim acopladas, o rei messiânico (que, naturalmente, reveste muito
mais os traços de um soberano terreno) inaugura uma época que já
não é a nossa, nem tampouco ainda a do "século vindouro", senão
que resulta ser, no fim das contas, uma época escatológica inter-
mediária. Importa muito à concepção de tempo, própria do cristi-
anismo, que houvesse, em certas correntes de pensamento judai-
co, esta "época intermediária".
No Apocalipse de Esdras, o caráter político do reino messiâni-
co aparece a plena luz.248 O Messias-rei aniquila os pecadores e
concede sua graça aos bons que esperam, então, o fim dos tempos.
Igualmente no Apocalipse de Baruque, o rei aniquila os inimigos
de Israel e estabelece sobre a terra um estado de perfeição: a natu-
reza é mais fecunda, os animais perdem sua maldade, os eleitos
gozam de longa vida e de saúde perfeita.249 Verdade é que muitos
destes escritos do judaísmo tardio que descrevem o futuro não men-
cionam expressamente o Messias; porém, fora de toda dúvida, pres-
supõem sua função.
Temos exposto, grosso modo, as concepções judaicas de um
Messias-rei político. Porém, não esqueçamos que elas se associam,
muitas vezes, a outras ideias sobre o Redentor esperado. É assim
que no Documento de Damasco e nos textos de Qumran, o "Messi-
as proveniente de Aarão e Israel" assume visivelmente, também, os
traços de sumo sacerdote. Esta mesma associação pode ser encon-
trada, novamente, nos Testamentos dos Doze Patriarcas.250
Antes de examinarmos como esta concepção de Messias foi
aplicada a Jesus, resumiremos os pontos essenciais.
1. O Messias cumpre sua missão em um plano puramente ter-
reno.

'"Cf. 4Ed. 11 s,, 13 e7.26 ss.


J,
Ap. Bar. 72 ss.
'"Cf. acima, p. 116 e os artigos de K. G.KUHN e E. STAUFFER lá citados.
156 Oscar Cullmanii

2. Segundo a opinião atestada pelos Salmos de Salomão, ele


inaugura o fim dos tempos; segundo opinião mais recente, um
período intermediário. Porém, em todo caso, o eon em que apare-
ce não é mais o "século presente". Do ponto de vista temporal, o
Messias se distingue, pois, do profeta escatológico.
3. A obra do Messias é a de um rei político de Israel, seja seu
caráter pacífico ou guerreiro.
4. O Messias judaico é da casa de Davi. É por isso que leva
também o título de "Filho de Davi".

2. JESUS E O MESSIAS
Jesus considerou a si mesmo como o Messias? Este é um dos
grandes problemas no estudo de sua vida como de sua doutrina.
Quando se fala da consciência messiânica de Jesus, geralmente se
dá a este adjetivo uma acepção muito ampla, e não a restrita dos
Salmos de Salomão, por exemplo. Porém, neste capítulo, é este
sentido preciso e limitado o que adotamos ao indagar em que me-
dida Jesus aplicou a si mesmo, ou recusou, as ideias particulares
que no judaísmo estavam associadas ao título de Messias.
A este respeito temos de examinar três textos sinópticos:
Mc 14.61 s. par.; 15.2 ss. par. e 8.27 ss. par. Em Mc 14.61 s. a
questão se põe com toda clareza. Trata-se do processo de Jesus.
Caifás pergunta a Jesus: "És tu o Messias, o filho do Deus bendi-
to?"251 Evidentemente, quer jogar-lhe um laço a fim de compro-
metê-lo, em qualquer que seja a sua resposta. Indubitavelmente
esperava uma declaração afirmativa, já que estimava que Jesus
havia exercido seu ministério com pretensão messiânica. O sumo
sacerdote necessita de uma declaração messiânica pronunciada
pelo próprio Jesus, para poder substanciar a acusação preparada
contra ele e denunciá-lo aos romanos como agitador político. Pois
pretender o título e a função de Messias, significaria que Jesus
quer restabelecer o trono de Davi; portanto, estabelecer um

Para a vinculação entre "Messias" c "Filho de Deus", cf. abaixo, p. 367.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 157

governo independente. Desta maneira o sumo sacerdote teria um


motivo de acusação. Até mesmo uma resposta negativa não lhe
seria necessariamente desfavorável, pois desacreditaria Jesus aos
olhos do povo: este, decepcionado, se desligaria dele, ou ainda,
se voltaria contra ele. A resposta de Jesus, qualquer que fosse,
devia, portanto, comprometê-lo.
Porém, qual foi sua resposta? Aqui se esboça, antes de tudo,
um problema exegético e filológico. Segundo a explicação cor-
rente, que parece também a mais natural, Jesus teria respondido
de uma maneira muito clara e sem equívocos pela afirmativa. Con-
tudo, veremos que esta explicação não é tão segura como parece,
se examinarmos os textos sinópticos paralelos e se nos referirmos
ao original aramaico, cuja existência devemos supor, ao menos
segundo Mateus.
Por outro lado, Jesus acoplou à sua resposta uma frase pela
qual ele se atribui um papel discordante com o do Messias político
esperado pelos judeus. Segundo o texto grego de Marcos, Jesus res-
pondeu: éyíí) eijii.252 Sem dúvida, isto significa "sim". No entanto,
os textos paralelos de Mateus e de Lucas são diferentes. Em Mt
26.64, lemos: cri) eírcaç, "tu o disseste". Esta expressão grega deve-
ria sem dúvida significar "sim". Em compensação, as palavras
aramaicas correspondentes (FTXlK ÍÍDK) - supondo que devamos
admitir aqui uma correspondência literal - não têm, de nenhum modo,
o sentido de um "sim" perfeitamente claro. Estas são, doravante,
um meio de evitar uma resposta unívoca; podem, inclusive, encer-
rar um "não" dissimulado. O sentido seria, então, mais ou menos o
seguinte: "És tu quem o diz, e não eu". Se é permissível compreen-
der assim esta resposta, Jesus não teria respondido claramente nem
sim nem não à pergunta capciosa do sumo sacerdote.

v
A variante GX> èutocc çõi KTX., ,testadd asmente eor rlggns ma mt se ri tos, ,eve eer
lido por origem uma tentativa de harmonização com Mateus. Muitos exegetas (por
exemplo LOHMEYER, TAYLOR) no entanto crêem dever atribuir-lhe a priorida-
de, porque graças a ela os textos de Mateus e de Lucas se explicariam mais facil-
mente. Neste caso, Marcos também teria conhecido a existência de urna resposta
evasiva de Jesus.
158 Oscar Cullmann

Esta interpretação, que traz consequências para outras passagens


do Novo Testamento,25-1 porém, à qual os comentaristas quase não dão
consideração, foi exposta no estudo sólido e bem documentado de
A. MERX, Das Evangeiium Matthaeus nach der syrischeni im Sinaikloster
gefundennn Palimpsesthandschrift (t. II, 1, de uma obra mais vasta: Die
vier kanonischen Evangeiien nach ihrem ãltesten bekannten Texte), 1902,
p. 382 - 384. Sua tese foi adotada particularmente por J. HÉRING, Le
Royaume de Dieu et savenue, 1937 p. 112s. Porém, já na antiguidade, a
resposta de Jesus não foi sempre considerada como afirmativa. Temos de
citar, antes de tudo, ORIGENES. Em seu Comentário de Mateus (MPG
13, col. 1957), escreve expressamente que a resposta de Jesus não foi
nem afirmativa nem negativa. "Ele não nega ser o Filho de Deus porém
não o declara expressamente". Orfaenes admite, pois que Jesus deu uma
resposta evasiva

Não há certeza absoluta de que as palavras gregas ai> eircaç


tenham em sua origem o equivalente aramaico exato n~)D>í KFiK.
C ± T - — T T —

Mas isso é muito provável e, em todo caso, o sentido das duas


palavras aramaicas não é duvidoso, não significam "sim". Ade-
mais, como já temos observado, a frase agregada a estas palavras
evoca uma ideia que não corresponde à imagem corrente e oficial
do Messias. Em todo caso, no texto de Mateus de nenhuma
maneira temos uma precisão ou uma interpretação; é o que indica
a conjunção nXr\v que introduz a frase: "Mas vos digo: vereis o
Filho do Homem sentado à direita do poder de Deus, vindo sobre
as nuvens do céu". A conjunção itkúv tem o sentido de um "mas"
acentuado, ou seja, que opõe a uma afirmação recusada outra afir-
mação^54 Pressupõe, pois, uma resposta prévia negativa. Então,
Jesus haveria dito assim: "Eu não respondo a esta pergunta mas
digo outra coisa." E esta "outra coisa" que se segue não concerne ao


Na obra que vamos citar, A. MERX não toma por ponto de partida nosso trecho,
mas a resposta de Jesus à pergunta de Judas durante a última ceia: "Mestre, sou eu?
(Mt 26.25). Ai, também, uma resposta evasiva de Jesus ("És r« quem o dizes"), que
se harmoniza, notavelmente, com o contexto.
254
Segundo BLASS-DEBRUNNER,GroJ/i«i. D. neutest. Griechisch,!* ed., 1943, par.
449, em Mateus e Lucas: "no entanto, não obstante"; em Paulo: "em todo caso".
Cf. também W. BAUER, Wõrterbuch, 4a ed., 1952, ad voe.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 159

Messias tal qual os judeus esperavam, senão ao Filho do Homem,


com quem Jesus se identificava.
Falaremos no capítulo seguinte danoção de "Filho do Homem"
que Jesus opõe aqui, de certo modo, à de Messias. Por agora, tra-
ta-se somente de descobrir a atitude de Jesus com respeito a apli-
cação a sua própria pessoa da ideia judaica de Messias. A afirma-
ção relativa ao "Filho do Homem sentado à destra de Deus e vindo
sobre as nuvens do céu" não pertence à ideia messiânica que
caracterizamos no parágrafo precedente. O Filho do Homem é,
com efeito, um ser celestial; não é um rei terreno que deva domi-
nar sobre o mundo depois de ter vencido os inimigos de Israel.
Sob a forma que Mateus dá à resposta de Jesus, a oposição é clara.
É por isso que ele parece ter dado uma tradução mais fiel do origi-
nal aramaico. Poder-se-ia, pois, traduzir da seguinte forma: "És tu
quem o tem dito; porém, eu te digo" - seguido logo da declaração
relativa ao Filho do Homem.

Contudo, temos de reconhecer que neste caso se esperaria um èycò


bem destacado. Sua ausência se explica, talvez, pelo fato de que o
evangelista, escrevendo em grego, já não compreendesse muito bem o
sentido aramaico das palavras cru etnocç. É certo que, em todo caso,
Marcos não se deu conta de sua significação negativa, e que as tomou
como uma afirmação ao traduzir èyá> £ÍUA.2SS Porém, isto não exclui fun-
damentalmente a hipótese segundo a qual o matiz aramaico - que não
equivale de nenhuma maneira a uma resposta afirmativa - se encontrasse
na base do texto de Mateus, e talvez até na de Marcos.

A passagem paralela de Lucas (22.67 ss.) é um argumento em


favor desta explicação e confirma a suposição segundo a qual

'^ Esta interpretação pode também ter sido favorecida em Marcos pelo fato de que, no
plano geral de seu evangelho, a declaração messiânica de Jesus, nessa passagem
ocupa um lugar importante: depois de haver sido reconhecido como Messias pri-
meiro pelos demónios e logo depois pelos discípulos, eis aqui que, no ponto culmi-
nante de sua vida, seus inimigos lhe reconhecem como tal. - Sobre este plano de
conjunto, comparar a obra instrutiva de J. M. ROBINSON, "Das Geschichtsverstãndnís
iles Markus-Evangeliums" (AThANT, 30), 1956.
16() Oscar Cuilmann

Mateus teria conservado, por uma tradução literal, a expressão


aramaica original. À pergunta do sumo sacerdote, perguntando-
lhe se é o Messias, Jesus responde: "Se vô-lo disser, não o acredi-
tareis; também, se vos perguntar, de nenhum modo me respondereis.
De agora em diante, o Filho do Homem estará sentado à direita do
Deus Todo-poderoso". Vê-se que Lucas nos conservou a lembran-
ça de Jesus haver respondido evasivamente à pergunta do sumo
sacerdote: se nega a responder por um sim ou por um não, e acres-
centa ainda uma declaração relativa não ao Messias, mas ao Filho
do Homem. Assim, encontra-se confirmado o texto de Mateus tal
qual deve ser compreendido segundo o original aramaico: Jesus se
nega a reivindicar para si, sob esta forma, o título de Messias;
porém, não responde, no entanto, diretamente com um "não", já
que, então, a ideia de Filho do Homem devia ser posta em relação,
de uma maneira ou de outra, com a de Messias.
Porém, o resultado mais importante a que nos conduz o exame
dos textos de Mateus e de Lucas é que, em todo caso, mesmo fazen-
do abstração do original aramaico, Jesus corrige conscientemente a
pergunta do sumo sacerdote, substituindo o título de Messias pelo
de Filho do Homem. Jesus sabe que as ideias messiânicas judaicas*
são essencialmente políticas, e nada está mais longe dele que seme-
lhante maneira de compreender sua missão. Para prevenir de ante-
mão todo mal entendido, evita escrupulosamente o emprego do
título de Messias. Porém, para sublinhar bem que nem por isso é
menos certo que está encarregado de executar o plano divino de
salvação para seu povo e para a humanidade, e que tem disso cons-
ciência, acrescenta logo a declaração sobre o Filho do Homem que,
como um ser celestial, está, a bem dizer, mais próximo a Deus do
que o Messias. A recusa ao título de Messias não significa, pois, de
nenhuma maneira que Jesus renuncie à sua pretensão soteriológica.
Muito pelo contrário, pois o Filho do Homem, no sentido que o
livro de Daniel lhe dá, este ser celestial que vem nas nuvens do céu,
excede e transcende a figura de um Messias puramente político.
O que Jesus recusa é, por conseguinte, somente o papel político do
Messias rei.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 161

Ao mesmo tempo, ele adota diante do Sinédrio a mesma ati-


tude que em outros casos quando seus adversários, por formula-
rem perguntas capciosas, querem comprometê-lo qualquer que seja
sua resposta. No presente caso é justamente nesta intenção que o
sumo sacerdote lhe põe a questão sobre o seu messiado. Jesus,
desta vez, não se compromete tampouco, já que não responde,
nem por "sim", nem por um "não". E o fez sem parecer insincero,
pois na realidade aqui, como em outras ocasiões, sua resposta trans-
cende a questão apresentada.
O segundo texto que nos toca examinar é Mc 15.2 ss. par.
Jesus comparece diante de Pilatos, que lhe pergunta: "És tu o rei
dos judeus?" O título de "Messias" se traduz aqui em categorias
romanas. Para o governador romano, o Messias é o "rei dos
judeus": é somente nesta perspectiva que o assunto é susceptível
de interessar-lo.256 Em sua denúncia, os Judeus, provavelmente,
devem ter empregado o termo "rei". Jesus responde: "Tu o dizes"
(cn> Xéyeiç). A resposta é literalmente a mesma em Mateus e em
Lucas. É provável que aqui também os evangelistas tenham com-
preendido a expressão gregací> XeYeiç no sentido de "sim". Con-
tudo, é possível igualmente se pensar em uma resposta evasiva.
O diálogo relativo ao rei "que não é deste mundo" - diálogo que,
no Evangelho de João, segue a pergunta de Pilatos (Jo 8.33 ss.) -
poderia, em todo caso, fazer compreender o texto nesse sentido e
isto estaria em perfeito acordo com a conclusão que se depreende
do interrogatório de Jesus diante do sumo sacerdote, tal qual o
relatam os Sinópticos. E, com efeito, notável que, sempre segun-
do Mc 15.2 ss., Pilatos não reaja como seria normal de se esperar
se Jesus houvesse realmente afirmado ser "rei dos Judeus". No tex-
to paralelo de Lucas, depois de haver escutado a resposta de Jesus,
Pilatos declara: "Eu não encontro culpa alguma neste homem"
(23.4). Como poderia haver dito isto, ele que era encarregado, em
nome do Império Romano, de reprimir e castigar toda pretensão à

•"* Sobre o papel dos romanos no processo de Jesus, cf. nosso estudo, Dieit et César,
1956, p. 27 ss.
,162 Oscar Cullma/m

realeza nas províncias submetidas à sua autoridade, se houvesse


compreendido a palavra de Jesus como uma resposta afirmativa à
sua pergunta? Como não haveria interrompido imediatamente o
interrogatório, já que a acusação teria sido, incontestavelmente,
provada?
O terceiro texto concerne à cena, muitas vezes já menciona-
da, de Cesaréia de Filipe (Mc 8.27 ss. par.) e em particular à
confissão de Pedro. "Pedro lhe disse: Tu és o Messias" (Mc 8.29).
Segundo a explicação geralmente admitida, Jesus nesta ocasião
haveria aceitado expressamente que Pedro proclamasse seu
messiado. Porém, esta interpretação é influenciada pelo texto de
Mateus que insere neste lugar a famosa declaração: "Tu és Pedro...
etc", declaração que, sem dúvida, não pertence a este contex-
to.257 É, então, em Marcos que devemos examinar mais de per-
to a reação de Jesus à confissão de Pedro. Lemos em Mc 8.30:
"Advertiu-os Jesus de que a ninguém dissessem tal coisa a seu
respeito. Então, ele começou a ensinar-lhes que era necessário
que o Filho do Homem sofresse muito, que fosse recusado pelos
Anciãos, os principais sacerdotes e os escribas e que fosse morto
e ressuscitasse depois de três dias".
Admite-se comumente que, ao proibir a Pedro e aos outros
discípulos falar disso, Jesus implicitamente teria aceitado a con-
fissão messiânica de Pedro, e que somente teria acrescentado que
devia sofrer e morrer. Porém, já temos visto, ao estudarmos a
noção de Ebed lahweh, que o sofrimento é dificilmente compatí-
vel com a esperança messiânica judaica.
Na realidade, devemos constatar que aqui também, frente à
declaração messiânica de Pedro, Jesus não diz nem sim nem não.
Antes, mantém silêncio acerca desta confissão e fala, como nas
outras passagens citadas, do Filho do Homem que deve sofrer mui-
to. E quando Pedro quer desvia-lo deste sofrimento, lhe atira no
rosto a tremenda acusação: "Para trás de min, Satanás!" (Mc 8.33).

Cf. O. CULLMÂNN, Saint Pierre, 1952, p. 154 ss. e abaixo, p. 366 s.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 163

Que significa esta repreensão, senão que Jesus vê uma tentação


satânica na concepção de Messias que Pedro defende aqui,
e que já tinha, sem dúvida, no momento de sua confissão? Jesus
admite, pois, que o diabo, que desde o batismo lhe havia proposto
aceitar o papel de Messias político, se serve desta vez do discípulo
Pedro para desvia-lo de sua verdadeira missão e para leva-lo a
assumir um papel político.258 A extraordinária vivacidade com que
Jesus reage em Cesaréia de Filipe mostra o quanto a intervenção
de Pedro o afetou. Não se trata de ser rei de Israel desta maneira,
pois sem dúvida desde seu batismo, como o temos visto, Jesus
tem a firme convicção de ter de cumprir sua missão pelo sofri-
mento e pela morte, não pelo estabelecimento de uma dominação
política.
Não é por coincidência que, segundo os Sinópticos, o diabo
ataca a Jesus imediatamente depois do batismo. Os três evange-
lhos sinópticos estão de acordo em colocar aí a cena da tentação.
Se a explicação que temos dado ao relato do batismo de Jesus é
cxata, então nesse momento ele adquiriu a certeza de que devia
realizar sua função divina morrendo pelo seu povo como Ebed
Iahweh. É contra isto que o diabo se lança prontamente, por com-
preender que a realização desta missão, da parte de Jesus, signifi-
caria o fim de seu próprio reinado. Por outro lado, sabe que o
outro caminho, o do Messias rei político, faria de Jesus seu servo
obediente. Assim lhe mostra "todos os reinos do mundo e sua gló-
ria" dizendo-lhe: "Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares".
(Mt 4.8 s.). É Com razão que Mateus coloca esta tentação, que
revela o sentido de toda a cena, como uma coroação ao fim do
relato; e como também depois em Cesaréia de Filipe, na presença
de Pedro, a resposta de Jesus é também: "Para trás de mim, Sata-
nás!" A oferta que o diabo faz a Jesus de dar-lhe todos os reinos da
(erra, corresponde, com efeito, exatamente ao que o judaísmo ofi-
cial esperava do Messias.

'1!!Cf. também I. M. ROBINSON, op. cit., p. 75.


1-64 Oscar Cullmann

Esta maneira de conceber seu papel de Salvador devia, no


entanto, ser particularmente sedutora para Jesus; é de fato suaten-
tação particular. Não se pode ser tentado senão pelo que nos atrai
secretamente. Jesus não deve ter sido, pois, inteiramente imper-
meável à ideia corrente de um Messias político.259 Por isso comba-
teu esta tentação com tanta energia, desde o seu batismo. Por outro
lado, a proposta de Pedro a Jesus mostra até que ponto esta con-
cepção o tocava de perto, inclusive àqueles que o rodeavam mais
proximamente; pois Pedro, neste caso também, deve ter sido o
representante de todos os discípulos. Não sem razão Marcos
escreveu que Jesus olhou para todos (Mc 8.33) lançando a Pedro
esta palavra severa: "Para trás de mim, Satanás!" Ele conhecia
bem o sonho secreto que agitava o cérebro de todos os seus dis-
cípulos, a esperança de vê-lo assumir a função gloriosa de um
Messias político; pois eles haveriam de beneficiar-se com isso.
Para eles fazer parte dos íntimos de um Messias, rei poderoso,
seria algo muito diferente de ser discípulo de um condenado à
morte. O pedido dos filhos de Zebedeu em relação aos lugares de
honra no reinofuturo, mostra claramente que tipos de pensamen-
tos abrigavam. Se abandonaram a seu mestre no momento de sua
prisão e tomaram o caminho da fuga, isso não se explica somen-
te por sua debilidade humana, mas também por sua desilusão ao
ver que Jesus não correspondia, absolutamente, à imagem judai-
ca do Messias rei.

Não é errado buscar também nesta desilusão a razão subjetiva da


traição de Judas Iscariotes.260 Os relatos sinópticos mostram que, deaccr-
do corn a mais antiga tradição, a cobiça não pôde ser o motivo principal.
Judas Iscariotes aparece como representante extremo de um pecado que
jazia latente em todos os discípulos. O relato de Cesaréia de Filipe mos-
tra que o diabo não somente estava ativo em Judas como às vezes tam-

2W
Em nosso estudo já citado, Dieit et César, p. 15 ss., mostramos como Jesus tinha
constantemente que lidar com a questão dos zelotes.
2M1
Sobre a históriadas explicações desta traição, cf. K. LUTHI, Judas Iscariot in der
Geschichte der Auslegung von der Reformation bis in die Gegenwart, 1955.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEÍ^TO 165

bém em Pedro, o representante de todos. É o pecado de todos os discípu-


los que se personifica em Judas. O diabo que está ativo em todos em
Judas triunfa. A coisa seria tanto mais plausível se Judas Iscariotes tives-
se pertencido ao partido dos zelotes (como se pode supor se vincularmos
"Iscariotes" a sicaríius).26'

Importa sublinhar que Jesus via por detrás da concepção


messiânica do Judaísmo de então, a obra de Satanás. Assim se
explica o que se chama, desde W. Wrede, o "segredo messiânico".262
Não temos, pois, que interpretar a proibição feita por Jesus de
proclamá-lo como o Messias - proibição que reaparece sempre
nos Sinópticos - como o faz Wrede; com efeito, não se trata de
algo inserido posteriormente destinado a explicar aos primeiros
cristãos porque Jesus, durante a sua vida, não foi reconhecido como
Messias.263

Seria levar ao extremo o princípio da "a história formativa" (já apli-


cada por Wrede antes da aparição da Formgeschichte propriamente dita),
não investigar sequer se tal ou qual motivo dos Evangelhos (neste caso, o
segredo messiânico) tern um fundamento na própria história. Esta não
pode reduzir-se a uma soma de teorias apologéticas da comunidade pri-
mitiva.

•'"' Cf. a este respeito O. CULLMANN, Dieu et César, p. 18 s.


: 2
'' W. WREDE, Das Messiasgeheimnis in den Evangelien, 1901. Cf. a este respeito H.
J .EBELING, Das Messiasgeiíeimnis unddie Botschchaft des Marcus-EvangeUsten,
1939, e E. PERCY, Die Botschaft Jesu, p. 271 ss. Veja-se também abaixo, p. 187,
nota 302, e 204, nota 330.
•''•' H. J. EBELING, op. cit., p. 167 ss,, sublinha, ademais, um motivo literário paralelo
dos evangelistas: a incompreensão dos discípulos, contrastando como um fundo
sombrio com o esplendor radiante da revelação trazida por Jesus. - E. PERCY, op.
í.7/., adota, em linhas gerais, a tese de WRÉDE, modificando-aem um ponto: admite
a existência, desde o começo, de uma tradição relativa à consciência messiânica de
Jesus; esta havia sido transformada mais tarde por meio da teoria do "segredo
messiânico", de modo a corresponder à fé em Cristo, tal qual se havia constituído à
luz da cruz e da ressurreição. O "segredo messiânico" serviria para justificar a ideia
(.(ue a comunidade fez do Cristo depois da cruz e da ressurreição. Temos que reco-
nhecer que os sinópticos não revelam nenhum indício sério em apoio desta tese.
Encontra-se, em troca, no quarto evangelho. Cf. O. CULLMANN, Les sacrements
dans VEvangile joliannique, 1951, p. 19 ss.
166 Oscar Ciálmann

Esta proibição provém, na realidade, do próprio Jesus, e se


explica muito naturalmente por seu cuidado em impedir uma pro-
clamação que pudesse favorecer uma falsa interpretação de sua
missão - precisamente a que reconhecera e combatera como uma
tentativa diabólica. Daí sua reserva até o último momento com
respeito ao título de messias.264
O próprio fato de que se trate de uma reserva, e não de uma recusa, me
parece ser a melhor prova de que aqui estamos diante da história, e não
diante de uma teoria cristã primitiva. Convém afirmá-lo também contra
R. Bultmann, que em sua Theologie des Neiten Testanients, 1953, p. 32, se
alia inteiramente à tese de Wrede.í<í5 Não é só nas "frases redacionais" que
aparece a reserva de Jesus. Se Bultmann não pode admitir que a ideia de
Messias foi recusada por Jesus em favor da de Filho do Homem, é por-
que nega igualmente a Jesus toda convicção de ser o Filho do Homem.

As três passagens sinópticas que temos comentado estão, pois,


inteiramente de acordo no que concerne à atitude de Jesus com res-
peito à ideia de Messias. Jesus não recusa verdadeiramente o título
de Messias, mas antes, manifesta para com ele grande reserva. Ade-
mais, quando os sinópticos empregam a palavra, quase nunca é o
próprio Jesus quem a aplica a si; são outros que lha atribuem.266
Não ocorre o mesmo no Evangelho de João267 que ainda con-
firma nossa conclusão de um outro ponto de vista. Sem voltarmos

1M
E. PERCY, op. cit., p. 272, está de acordo com WREDE em recusar a opinião
expressa aqui. Seus argumentos são de um caráter geral e, por conseguinte, pouco
convincentes. Segundo cie, Jesus, em geral, não se guia por considerações de pru-
dência. Porém, é sobretudo o argumento seguinte que - em relação aos textos cita-
dos acima - parece-me dificilmente compreensível: "a gente se pergunta, com
WREDE, por que Jesus não diz simplesmente que ele não tem nada que ver com o
Messias político". E, no entanto, é o que Jesus deu a entender de uma maneira
inequívoca e não somente segundo o Evangelho de João. Se não recusou expressa-
mente o título de Messias, é porque o título não está necessariamente ligado à ima-
gem do Messias político. Daí sua reserva, em lugar de recusa.
;í5
Cf. também sua Geschichee der synoptischcn Tradition, 2" ed., 1931, p. 371 s.
"asCf. V. TAYLOR, The Naines of Jesus, 1953, p. 19.
2f,7
Cf. V. TAYLOR, op, cit., p. 20. Um só trecho parece contradizê-lo: Jo 4.26, a res-
posta de Jesus à samaritana. Porém, aqui o evangelista atribui, sem dúvida, a Jesus,
por iniciativa própria, o qualificativo corriqueiro de "Cristo".
C^IUSTOLOGIA DO rsovo TESTAMENTO 167

ao diálogo com Pilatos em que Jesus afirma que seu reino não é
deste mundo, temos que mencionar João 6.15, no qual o povo quer
torná-lo rei e onde Jesus, reconhecendo sua intenção, foge-lhes
retirando-se, só, para a montanha.
Chegamos, portanto, à conclusão de que Jesus sempre obser-
vou a mais extrema reticência no tocante ao título de Messias, e
que, inclusive, considerou como tentação satânica as ideias espe-
cíficas que se agregavam a ele. Em certos momentos decisivos,
substituiu o título "Messias" pelo de "Filho do Homem", como
que opondo um ao outro.268 Temos, enfim, visto que opõe cons-
cientemente a ideia de Ebed Iahweh à de um Messias político.
Que ironia o fato de ter sido Jesus crucificado pelos romanos pre-
cisamente como Messias político!
A seita de Qumran parece também ter se oposto ao ideal
messiânico político, já que coloca o Messias sacerdotal acima do
Messias real.269 Porém, esta oposição é colocada em um plano
muito diferente do de Jesus.
Mas, não houve pelo menos um aspecto do messianismo
judaico que Jesus tenha podido aceitar? No que concerne ao título
de Messias, não houve de sua parte uma recusa direta, senão uma
grande reserva frente a todas as imagens que se concentravam em
torno do messianismo político.
Se não o recusou categoricamente, é porque, em seu tempo,
este título já não estava mais circunscrito a seu aspecto político;
comportava um elemento positivo que podia harmonizar-se com a
concepção que tinha de sua missão. Neste título de Messias se
expressa, com efeito, a continuidade entre o Antigo Testamento e
a obra realizada por Jesus. O Messias cumpre este papel de medi-

•''*E. STAUFFER, "Messia oder Menschensohn" (Novum Testamentum, I, 1956, p. 81


ss.) expõe, como J. HERING antes dele, uma tese análoga que leva, contudo, a uma
posição extrema, quando pretende que Jesus nunca tenha se autodesignado como
Messias - inclusive no sentido apolítico. Pensa, com efeito, que ao designar-se
como Filho do Homem, Jesus não poderia, sem contradizer-se, designar-se também
como Messias.
•'"''Cf. acima, p. 116 s. e 155 s.
W>8 Oscar Cullmann

ador que o povo escolhido de Deus tinha que ter assumido em sua
totalidade. Esta ideia se encontra, ademais, na base da maior parte
dos títulos cristológicos de origem judaica; o Messias o comparti-
lha, em consequência, com outras figuras escatológicas do Judaís-
mo; porém, é neste título onde se encontra sua expressão mais
vigorosa. A concepção judaica de Messias tem um caráter nacio-
nal profundamente arraigado. O sentido de toda a história de Isra-
el se condensa nesta figura. O elemento do messianismo que se
pode aplicar a Jesus é o fato de que o Messias, como tal, realiza a
missão de Israel. Porém, a maneira em que Jesus a cumpre se
opõe à esperança judaica, tomada em seu sentido mais restrito.
Muitas declarações de Jesus indicam haver ele designado a si
mesmo a tarefa de cumprir a função de Israel. Compreende-se,
pois, porque admitiu, com certas reservas, ser chamado Messias,
melhor dizendo, porque não recusou absolutamente o título mas
se contentou em evitá-lo.
Jesus não poderia, em vista de sua obra vindoura, escatológica,
tomar alguns traços à imagem do Messias que ele devia categori-
camente recusar para sua obra terrena. O fato de citar o Salmo 110
em sua resposta ao sumo sacerdote (Mc 14.62 par.) faz supor que
tenha incluído em sua esperança escatológica a ideia de uma futu-
ra dominação do mundo, - aqui e como sempre - porém, excluin-
do dela os caracteres políticos. Contudo, fica estabelecido que ao
falar diante do sumo sacerdote sobre sua obra futura, ele não se
nomeia o Messias, mas, Filho do Homem, portanto, seguindo a
Daniel, como um ser que transcende a história.

Fica-nos por examinar outro título que é uma variante do títu-


lo de Messias; ou, de preferência, que designa o Messias de acor-
do com a sua origem: filho de Davi.
Temos aqui duas questões independentes uma da outra:
Ia Jesus é verdadeiramente proveniente da família que a tradição
fazia descender da casa real de Davi? 2a Considerou Jesus a
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 169

origem davídica como uma condição essencial à realização de sua


missão? Do ponto de vista cristológico, em suma, só a segunda
questão é importante; porém, como a primeira lhe está rela-
cionada, nos é necessário falar dela brevemente.

Haveria também uma terceira questão: em que medida a comunida-


de primitiva atribuiu uma importância fundamental à filiação davídica, e
como a combinou com a afirmação do nascimento virginal? Porém, esta
questão não vai ser discutida aqui, mas unicamente a atitude de Jesus a
este respeito. Ela não entra em consideração senão na medida em que
teria influenciado sobre a tradição evangélica relativa às declarações de
Jesus sobre esta questão.

Começaremos, pois, por averiguar se a família de Jesus retro-


cede sua genealogia até Davi. Só se pode pôr o assunto desta
maneira, pois seria impossível verificar historicamente a exatidão
de semelhante tradição, no caso de ter existido.
A maioria dos historiadores crê cumprir um dever ao negar
a existência de uma tradição familiar davídica na família de Jesus;270
o argumento que empregam, mais frequentemente, é que esta tra-
dição teria sido criada mais tarde pela igreja, para responder à
polémica judaica; pois, o Messias esperado devia sair da família
de Davi. A comunidade primitiva teria, pois, postulado e afirma-
do posteriormente a filiação davídica de Jesus. Porém, esta hipó-
tese não se impõe tão facilmente como muitas vezes se crê.
Não podemos, por certo, nos apoiar nas genealogias dadas
por Mateus e por Lucas, por causa de suas divergências: elas dife-
rem uma da outra em pontos importantes e estabelecem a vincula-
ção entre Jesus e Davi por linhas genealógicas muito diferentes.
Desde Annius de Viterbe (cerca de 1490), costuma-se resolver estas
divergências admitindo que a genealogia dada por Lucas seria a de
Maria, enquanto que a dada por Mateus seria a de José. Isto supõe
que Maria também tinha ascendência davídica, como muitos pensa-

Cf., por exemplo, as considerações de M. GOGUEL, Jesus, 2a ed., 1950 p. 195 ss.
1.70 Oscar CuUmann

ram desde o século II.27' Porém, não possuímos testemunhos mais


antigos do que estes acerca desta opinião. Como quer que seja, a
confrontação das duas genealogias faz surgir dificuldades que
não podem ser descartadas, senão, graças a hipóteses e combina-
ções complicadas.272 Por outro lado, pode alguém se perguntar
se a afirmação da origem davídica de Maria não provém já de
um desejo de harmonizar as duas declarações justapostas no Novo
Testamento, uma das quais proclama a filiação davídica de Jesus
"segundo a carne", enquanto a outra declara que nasceu de uma
virgem.273 Em razão destas dificuldades - às quais se acrescenta
ainda o fato que em certos meios rabínicos já havia genealogias
bem prontas do Messias esperado - sem dúvida é preferível não
partir das genealogias dadas pelos Evangelhos para saber se exis-
tia, na família de Jesus, uma tradição que a fizesse descender de
Davi.
Estas duas genealogias entram, no entanto, em consideração,
pois provam que entre os anos 70 e 90 já existia uma tradição bem
estabelecida, segunda a qual a família de Jesus seria proveniente
da família real de Davi. Deve ser, por outro lado, sensivelmente
mais antiga, por já ser atestada por Paulo no começo de sua Epís-
tola aos Romanos (Rm 1.3); e como o apóstolo cita aí muito pro-
vavelmente uma confissão de fé da comunidade primitiva,274 pode-
se concluir que esta tradição se formou bem cedo. Isto é importante,

Referências em W. BAUER, Das Leben Jesu im Zeitalter der neutestamentlichen


Apokryphen, 1909, p. 13 ss.
Um exemplo muito antigo de tentativa de harmonizar as duas genealogias é apre-
sentado por um texto de JULIUS AFRICANUS, conservado por EUSÉBIO, Hist.
EccL, 1, 7. Sobre o valor histórico das tradições genealógicas aí utilizadas, cf. G.
KUHN (ZNTW, 22, 1923, p. 225 ss.).
K. BORNHÀUSER, Die Gebwis-und Kindheitsgeschichte Jesu. Versuclt einer
zeitgenôssischen Auslegung von Matthãus I und 2 und Lukas 1-3, 1930, p. 22 ss.,
recusa, é verdade, a possibilidade de que a genealogia dada por Lucas seja a de
Maria; porém, a solução que ele propõe para reconhecer as duas genealogias como
"históricas" e fazê-las concordar entre si, apelando ao costume do levirato, nos
parece bastante artificial.
Cf. CULLMANN, Les premières cotifessions de foi, 1934, p. 4. Ver também,
O. MICHEL, em seu Commentaire, p. 30 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 171

pois, na ocasião os membros da família de Jesus ainda viviam.


Não é absolutamente impossível, ainda que difícil, admitir que,
sob seus olhos, essa tradição não se apoiasse em nenhuma infor-
mação que remontasse à época do próprio Jesus. É, pois, bem pos-
sível que a família de Jesus pretendesse, com efeito, remontar-se a
Davi.275 No tempo de Jesus não ocorreu a nenhum membro dessa
família confirmar esta tradição pelo estabelecimento de uma
genealogia completa, e se pode admitir que seja a igreja quem,
mais tarde, se ocupou disto. Em sua origem, poderia tratar-se sim-
plesmente de uma tradição de família, que não se preocupava em
demonstrá-la. Não podemos esquecer que para os judeus, perten-
cer a tal ou qual linhagem era importante para situar cada família
no seio de seu povo.276
Hegesipo, autor judeu-cristã o de uma história da igreja antiga, da
qual nos foram conservados alguns fragmentos, relata, segundo Eusébio,-77
que o imperador Domiciano, preocupado, apesar da destruição de Jeru-
salém no ano 70, com assegurar-se da lealdade dos judeus, teria ordena-
do certo dia investigar e fazer comparecer diante de si a todos os descen-
dentes de Davi. Devia, pois, saber que os levantes messiânicos judaicos
estavam ligados à esperança de um descendente de Davi que, fundamen-
tando-se sobre sua pretensão à realeza, se lançariam contra os romanos.
Hegesipo conta que nesta ocasião se denunciou e prendeu, também, aos
netos de Judas, irmão de Jesus. O imperador lhes teria perguntado se
eram da família de Davi, ao qual responderam afirmativamente. Aí mes-
mo se havia informado de sua condição, para saber que todos estes não
possuíam mais do que 9000 denários e que trabalhavam a terra para
poderem viver. Para prová-lo, teriam mostrado suas mãos calejadas.
Domiciano, convencido de que estes descendentes de Davi eram pobres
e inofensivos os teria libertado desdenhosamente. Citamos esta história
para demonstrar que a tradição davídica relativa à família de Jesus de
fato não era contestada.

275
Tese sustentada, entre outros, por J. WEISS, Das Urchristemum, 1917, 89; G.
DALMAN, Die Worte Jesu, 2a ed., 1930, 262 ss.; E. STAUFFER, Theologie des
Neuen Testaments, 1948, p. 261 s.
™ A este respeito, podemos nos recordar que Paulo, também, parece ter possuído uma
tradição familiar, segundo a qual ele era proveniente da tribo de Benjamim (Fl 3.5).
'"EUSÉBIO, História Eclesiástica, 3, 19 s.
1.72 Oscar Cuttmcum

Estes testemunhos datam, é verdade, do fim do primeiro século,


ou seja, de uma época em que os parentes de Jesus, por causa deste
parentesco, estavam à frente do judeu-cristianismo na Transjor-
dânia.278 Poder-se-ia, pois, ver na afirmação acerca da origem
davídica de Jesus um produto tardio de um interesse "dinástico"
legitimador por parte dos judeu-cristãos. No entanto, a passagem
citada de Rm 1.3, mostra que muito antes e, até muito antes de Pau-
lo, a filiação davídica de Jesus era indiscutível; e se nesta época,
então, Tiago, irmão do senhor, já desempenhava um papel impor-
tante na igreja mãe de Jerusalém, não parece ter reclamado, todavia,
para si - no que lhe concernia particularmente - a filiação davídica.
Ora, seria singular que a origem davídica de Jesus fosse afirmada
tão cedo, sem que Tiago nada tivesse sabido acerca disto antes, pois
esta afirmação lhe concernia de maneiramuito particular. Sem dúvi-
da, este argumento não é decisivo. Parece-nos, no entanto, apoiar a
hipótese segundo a qual a família de Jesus (como provavelmente
outras famílias da época) possuía, senão uma arvore genealógica,279
ao menos, uma tradição oral, segundo a qual ela pertencia à linha-
gem de Davi. Isto não tinha nada de excepcional, pois, devia haver
ainda outras famílias que faziam remontar sua origem a Davi.280
Resta-nos, no entanto, apresentar uma questão mais impor-
tante: Jesus se autodesignou como o "filho de Davi"? Só temos
um texto que nos possa informar a este respeito, é Mc 12.35 ss.
par.: "Jesus continuava ensinando no templo e disse: Como dizem
os escribas que o Cristo é o filho de Davi? Davi mesmo animado

s
Cf. H. J. SCHOEPS, Theologie und Geschichte des Judenchristentums, 1949,
p. 282 ss.
2n
Deviam existir famílias providas de árvore genealógica: JOSÉPHE, em sua vita,
nos dá indicações detalhadas sobre seus ancestrais.
Sobre outras famílias davídicas da época judaica tardia epós-cristã, cf. TH. ZAHN,
Das Evangeliuin des Mailhãus, 2a ed,, 1905, p. 43, nota 6 . - A título de curiosidade,
mencionamos aqui o exemplo de diversas famílias aristocráticas da Basileia que
fazem remontar sua genealogia a Carlos Magno. A comparação, todavia, é imper-
feita, pois, entre os judeus a questão da origem familiar não respondia a um mero
interesse histórico: tinha uma importância teológica, já que dela dependia a situa-
ção da família no seio de seu povo.
CRISTOLOGIA I^-1 NOVO TESTAMENTO 173

pelo Espírito Santo disse: o Senhor disse a meu Senhor: Senta-te à


minha direita, até que ponha a todos teus inimigos por estrado de
teus pés. Davi mesmo lhe chama Senhor: como é ele então seu
filho?" Temos aqui das palavras de Jesus, uma das mais difíceis de
ser interpretada; daí que esta declaração foi explicada de maneiras
muito diversas. A dificuldade consiste, em grande parte, na extrema
concisão com que, segundo os Sinópticos, Jesus se expressa aqui.
Quase se tem a impressão de que os próprios evangelistas já não
sabiam mais qual era exatamente o sentido destas palavras.
Segundo uma explicação muito generalizada, Jesus teriaexpres-
samente negado, nesta passagem, sua origem davídica.25' Porém,
isto não é tão certo como pode parecer à primeira vista. Em todo
caso, é pouco provável que os evangelistas, que nos transmitiram
esta perícope, tenham-na compreendido desta maneira. Eles mes-
mos, com efeito, estavam persuadidos da filiação davídica de Jesus,
e dificilmente transmitiriam um logion no qual ela fosse contesta-
da. Porém, é possível compreender estas palavras de outro modo.
O que Jesus nega não é necessariamente sua ascendência davídica,
mas a importância cristológica dada pelos judeus a esta ascendência
para a obra de salvação que ele haveria de realizar.
Jesus utiliza aqui o método de demonstração em voga na sua
época. Cita o célebre Salmo real 110, do qual já temos falado em
outro contexto diferente e do qual tornaremos a nos ocupar.!S2 Ora,
segundo a tradição, todos os Salmos são obra do rei Davi. É nisso
que Jesus funda sua argumentação. Segundo a intenção primitiva
do salmista, a palavra XvWas no nominativo significa, naturalmente,
Deus; a palavra Kyrios no dativo designa o rei; é, pois, este último
a quem se chama "meu Senhor". Originalmente, o sentido do Sal-
mo era tão só este: "Deus disse ao rei: senta-te a minha direita,
etc." Porém, o sentido do Salmo hebraico muda a partir do momen-
to em que alguém se convence que não tenha sido composto para

-S1Ct\ a tranqiiila segurança com a qual, por ex., E. MEYER, Urspntng und Anféinge
áes Christentums, II, 1921, p. 446, expressa esta opinião.
•" Cf. acima, p. 118 s. e abaixo, p. 292 s.
174 Oscar Cullmann

honrarão rei, mas,pelo próprio rei, Davi. OKyrios no nominativo


segue sendo Deus, porém o Kyrios no dativo não pode mais ser
considerado como o rei, já que é o mesmo quem fala. As palavras
"meu Senhor" devem, pois, designar o Messias.
Uma coisa em todo caso é clara: Jesus combate aqui a opi-
nião segundo a qual a ascendência carnal do Messias seja determi-
nante. Busca refutar esta opinião mostrando então que Davi não
poderia chamar ao Messias de seu "Senhor"; não poderia, com
efeito, dar a seu descendente, a seu filho, o título de "Senhor", se
dava alguma importância ao fato de ser o Messias seu descenden-
te segundo a carne. O Messias que Davi chama seu "Senhor" deve,
pois, ser maior que Davi. Consequentemente, sua origem verda-
deira não pode remontar a Davi, mas a alguém maior. Por detrás
desta palavra de Jesus estaria então a ideia desenvolvida, por exem-
plo, no Evangelho de João, segundo a qual o Cristo deve, na reali-
dade, sua origem não aos homens, mas a Deus.
Se esta explicação é exata, a atitude de Jesus relativa ao título
de "filho de Davi" seria totalmente análoga à sua atitude para com
o título de Messias em geral. Isto é, que por oposição à esperança
messiânica corrente, ele recusa, também aqui, o ideal de um Mes-
sias-rei político, e o recusaria tanto mais pelo fato de ser conheci-
da sua ascendência davídica.

Segundo R. BuHmann;f;j e outros, não se trata de uma palavra


autêntica de Jesus, senão de um relato inventado mais tarde pela igreja.
Porém, não se vê com clareza onde poderia ter-se originado este
theologounienon. Pensa-se, por exemplo, em uma origem helenística; esta
explicação choca-se com maiores dificuldades que a tese da autenticida-
de, poisa afirmação segundo a qual Jesus teria "nascido da descendência
de Davi segundo a carne" (Rm 1.3) parece ter pertencido a uma confis-
são de fé geralmente admitida. Ademais, o sentido do logion de Mc 12.35
ss., deveria ser mais claro, se se tratasse de uma afirmação da teologia
posterior da comunidade.

Cf. Gesch. d. .ynoptt Tradilion, 2' ed.. 19331 p. 145 s.; e também: Theologie des
Neuen Testaments, 1953 p. 28 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 175

Nosso texto não implica, pois, necessariamente que Jesus


tenha negado o fato de sua filiação davídica. Isto se mostra quando
confrontamos o texto com outra palavra de Jesus, na qual não nega
seu parentesco segundo a carne com sua família, mas onde ele nega
a isto qualquer importância decisiva. Trata-se de Mc 3.31 ss.: "Nis-
to chegaram sua mãe e seus irmãos e, tendo ficado do lado de fora,
mandaram chamá-lo. Muita gente estava assentada ao redor dele e
lhe disseram: Olha, tua mãe, teus irmãos e irmãs estão lá fora à tua
procura. Então, ele lhes respondeu, dizendo: Quem é minha mãe e
meus irmãos? E, correndo o olhar pelos que estavam assentados ao
redor, disse: Eis minha mãe e meus irmãos. Pois, qualquer que fizer
a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe."
Aqui também Jesus fala de uma filiação ou de um parentesco
diferente do da carne. É, pois, possível que em Mc 12.35 ss. Jesus
negue todo valor cristológico à filiação davídica, sem por isso
negar necessariamente sua ascendência davídica. Sendo assim,
Jesus haveria, pois, mostrado a respeito do título de "filho de Davi"
a mesma reserva que ao título de Messias, sem recusar por isso,
categoricamente, os títulos em si.
Assim, se encontra também excluída toda explicação psicológica
que fizesse derivar a "consciência messiânica" de Jesus da existência, em
sua família, de uma consciência de sua ascendênciadavídica.iSJ Se Jesus
deprecia tão categoricamente esta origem, este elemento psicológico, con-
sequentemente, não poderia ter desempenhado um papel decisivo sobre
sua "consciência messiânica".

Chegamos, pois, à seguinte conclusão: Jesus não recusou


diretamente o título de "filho de Davi" quando outros davam-lho,285
porém, recusou energicamente a ideia de uma realeza política,
associada a este título.

•sl A. E. J. RAWLINSON, The New Testament Doctrine of the Christ, 3a ed., 1949,
p. 42, nota 3, contém uma observação neste sentido; esta tese havia sido defendida
em particular por F. SPITTA.
2t
" Marcos e Lucas não contêm, a este respeito, mais que uma só referência: Mc 10.47
s. (Lc 18.38); porém, encontramos ainda outras cinco em Mateus (Mt 9.2.7; 12.23;
15.22; 21.9; 21.15).
176 Oscar Cultinann

No entanto, devemos fazer aqui uma observação análoga à


que fizemos a propósito do título de Messias. Na medida em que
Jesus tinha consciência de realizar a missão do povo de Israel, a
ideia de realeza não estava em contradição com sua vocação;
porém, ele dá a ela um conteúdo novo: segundo a expressão joanina,
trata-se de uma realeza que "não é deste mundo".

3. A COMUNIDADE PRIMITIVA E O MESSIAS

Temos indicado que o título de Messias se impôs a ponto de


apagar, ou ao menos de subordinar os demais títulos cristológicos:
nenhum destes teve a honra de permanecer ligado para sempre ao
nome de Jesus.
A comunidade palestina primitiva estava bem longe de com-
partilhar da reserva de Jesus em relação ao título de messias; pelo
contrário, à luz do acontecimento da Páscoa e da espera de um fim
próximo, a fórmula "Jesus é o Messias (Cristo)" se converteu em
profissão de fé. No Evangelho de Marcos, o qualificativo de Mes-
sias-Cristo atribuído a Jesus é ainda relativamente raro. Torna-se
mais freqtiente em Mateus e Lucas, como também no Livro de
Atos.286 Temos de observar, no entanto, que nestes escritos o títu-
lo não tinha chegado ainda a ser nome próprio. Mesmo no Livro
de Atos (que neste ponto é, sem dúvida, influenciado por fontes
mais antigas), o sentido original da palavra "Cristo" segue domi-
nando.
Porém, quando o título "Cristo" torna-se nome próprio, é indí-
cio de que a concepção especificamente judaica de Messias está
em retrocesso. Esta evolução deve ter se produzido, em particular,
sobre o solo das comunidades helenísticas, onde não existia um
interesse messiânico, no sentido original do termo. Resulta, para-
doxalmente, que a transformação do título de "Cristo" em nome
próprio - transformação favorecida por seu emprego cada vez mais
frequente - o aproxime da ideia que o próprio Jesus se fazia acerca

Cf. íi este respeito V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 19 s.


C^RISTOLOGIA DO NOVO ThSTAM;iNTU 177

do Messias: este título é despojado, assim, de seu caráler nacional


e político.
Podemos constatar em Paulo o início dcsla evolução. Certa-
mente ele tem clara consciência de não ser a palavra "Cristo" nome
próprio; pois, costuma colocar o título de Crislo antes do nome de
Jesus.287 Porém, nos demais escritos do Novo Testamento, a trans-
formação em nome próprio não cessa de progredir.
Mas, como explicar que a comunidade palestina, contradi-
zendo a atitude de Jesus, tenha empregado com predileção e cons-
cientemente este título de Messias? Sobre este problema, temos
que mencionar aqui, em primeiro lugar, as discussões entre os pri-
meiros cristãos e os judeus. Com o auxílio deste título era possível
fazer os judeus de então compreenderem a fé dos discípulos de
Jesus.288 A isso se ajuntam razões teológicas. Recordava-se, por
certo - os Sinópticos o provam - que Jesus mesmo desconfiava do
título de Messias e o havia substituído pelo de Filho do Homem;
porém agora, à luz de sua morte e sua ressurreição, se podia consi-
derar legítimo proclamá-lo como o "Cristo". Conforme a vocação
que reconhecera a si mesmo, Jesus cumprira a missão de Israel; e
este cumprimento resplandecia agora com tal luz que as diferen-
ças se apagavam entre o Messias político esperado pelos judeus e
o Filho do Homem.
Na medida em que a comunidade primitiva tomava consciên-
cia de já viver nos tempos da consumação e de ser o "povo de
Deus", o povo eleito, a ideia que o messiado se havia cumprido
também em Jesus devia impor-se; não segundo o esquema políti-
co, mas segundo o esquema da história da salvação. A fim de trazer

!t7
Tampouco cremos que Rm 9.5 seja a única passagem onde Paulo tenha empregado
a palavra "Cristo" no sentido de "Messias", como pensa V. TAYLOR, op. cit., p. 21
(e ainda aí com um sinal de interrogação). - A. STUIBER (RAC, t. 3, col. 25)
utiliza, como nós, este critério: achar no emprego da palavra "Cristo" antes do nome
de Jesus uma pista para buscar, na Igreja antiga, impressões da sobrevivência de sua
significação primitiva.
**K Ver por ex. o papel que a ideia de Messias tem na obra apologética de JUSTINO:
Diálogo com o judeu Trifo.
178 Oscar Cullmann

à luz a continuidade entre o antigo e o novo pacto, sublinha-se


também a filiação davídica de Jesus,289 à qual o próprio Jesus
havia dado tão pouco valor. Assim, o título de "Filho de Davi"
adquiria uma importância tal que passou a estar inserido nas con-
fissões de fé (Rm 1.3; Inácio, Esmirna 1.1; Trall. 9.1). O sentido
profundo da realeza davídica era realizado no reinado de Jesus,
elevado à destra de Deus. O fim ao qual tendia a realeza em Israel
era, assim, alcançado.
Esta convicção da consumação em vias de realização permi-
tia tomar emprestado certos traços do Messias político. Pelo fato
de já não ser mais o povo de Deus uma entidade política, mas a
comunidade de discípulos de Jesus, estes traços purificaram a si
mesmos: a realeza do filho de Davi era, acima de tudo, a realeza
que exercia sobre a igreja. Quanto mais vigorosa era a fé neste
cumprimento, tanto mais potente tornava-se, também, a esperança
da manifestação final e total de sua consumação. Pois tornamos a
achar no cristianismo primitivo, como no próprio Jesus, a tensão
entre "o já cumprido" e o "por cumprir-se".
Jamais a comunidade primitiva situou a realeza de Jesus somente
na instituição da Igreja. A esperança escatológica do cristianismo primi-
tivo era demasiado forte para que esta tensão pudesse ser eliminada, como
haveria de ocorrer mais tarde na igreja Católica. A tese desenvolvida por
J. L. Leuba em L'"mstitution et Vevénement, 1950 (tese do paralelismo
neotestamentário entre a ideia da "instituição" e a do "acontecimento"
profético) deveria ser examinada à luz da tensão temporal entre o cum-
primento já realizado e a consumação final.

Segundo a fé dos primeiros cristãos, é unicamente no futuro


que a realeza de Jesus se manifestará de modo visível. Porém,
aqui pode existir o perigo de uma interpretação política do messia-
nismo de Jesus, e talvez não tenha sido sempre evitado no que diz
respeito à segunda vinda de Cristo. Em Paulo, em todo caso, não
se encontra nenhum traço de semelhante interpretação. Sem dúvi-

2KV
Sobre a relação entre a filiação davídica e o nascimento virginal, cf. abaixo, p. 386 s.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEPÍTO 179

d;i, ele também espera a aparição visível de Cristo no fim dos tem-
pos, porém, mesmo assim a ação escatológica do Cristo jamais
tem um aspecto político. Por outro lado, quando a ideia da realeza
futura de Jesus se concentra em um reino de mil anos (como ocor-
re no Apocalipse, cap. 20.4), então as ideias recusadas pelo pró-
prio Jesus para sua missão terrestre podem novamente surgir, mas
sob uma nova forma e aplicadas à Igreja visível do fim dos tem-
pos.290
Em conclusão, devemos reconhecer que o Cristianismo pri-
mitivo não só adotou a terminologia relativa ao Messias (assim
como indicamo-lo no começo deste capítulo) como também apli-
cou a Jesus, à luz do "cumprimento" e transformando-as em um
sentido cristão, certas ideias próprias da esperança messiânica judai-
ca. E isto, das três maneiras seguintes: Jesus apareceu sobre a terra
como filho de Davi; exerce a realeza sobre a comunidade dos
fiéis; virá como Messias no fim dos tempos. Estas ideias cristo-
Jógicas retrocederam frente a outras, desde que o termo "Cristo"
passou a ser empregado como nome próprio, o que havia de pro-
duzir-se sobretudo no seio das comunidades helenísticas.

1
"Com J. HÉRING, "SaintPaula-t-ilenseignédeuxrésurreçiions?(RHPR, 12, 1932,
p. 300 ss.), nós não vemos (contra A. SCHWEITZER) a possibilidade cie incorporar
a crença tio "reinado de mil anos" à esperança escatológica de Paulo. Antes de tudo,
a ideia de uma "segunda" ressurreição em vista do juízo nos parece incompatível
com a doutrina da ressurreição, desenvolvida pelo apóstolo em 1 Co 15.35 ss. Paulo
não conhece mais do que uma ressurreição: aquela em que os ressuscitados se
revestirão do soma pneumatikòn. Sobre este ponto, H. BIETENHARD, Das
tausendjãhrige Reich. Eine biblisch-Theologische Studie, 1944, p. 65 ss., não trás
tampouco argumentos convincentes.
CAPÍTULO II

JESUS, O FILHO DO HOMEM


(bamasclia, mòç TOÍ> >vQpómov)

Com a noção de Ebed Iahweh, a de Filho do Homem é uma


das mais importantes das que estudamos. Sua aplicação cristológica
também remonta ao próprio Jesus. Contudo - coisa singular - as
preciosas ideias cristológicas que aí estão contidas, nunca foram
utilizadas em dogmática como mereceriam sê-lo. Nos sistemas ofi-
ciais de dogmática, e especialmente nas discussões dos séculos IV
e V, a ideia de Logos ocupa um lugar tal que todas as demais con-
cepções cristológicas ficaram, mais ou menos, relegadas a segun-
do plano. Daí o fato de não possuirmos uma verdadeira cristologia
baseada na ideia de Filho do Homem. Já temos visto que a noção
de Ebed Iahweh explica de uma maneira exaustiva a obra de Jesus
encarnados, sobretudo, o ato central da salvação: sua morte. Vere-
mos, no curso deste capítulo, que a noção de Filho do Homem é
mais ampla e que, mais do que nenhuma outra, é suscetível de
descrever a obra total de Jesus.
Um primeiro fato basta, de per si, para demonstrar a impor-
tância deste título messiânico, a saber: este é o único que, segundo
os Evangelhos Sinópticos, Jesus aplicou a si mesmo, enquanto
que jamais designou a si próprio como "Messias". Intencional-
mente, sem dúvida, substituiu o título de Messias pelo de Filho do
Homem. É isto tanto mais importante pelo fato de que os próprios
evangelistas jamais empregam este título quando querem expres-
sar sua fé em Jesus. Já em sua época, é a invocação messiânica
"Cristo" que domina. Mesmo este fato sendo claro colocam, não
182 Oscar Ctillmann

obstante, na boca de Jesus o título de Filho do Homem, provando


que reproduzem uma tradição já fixada, segundo a qual o próprio
Jesus se autodenominou desta maneira.291

1. O FILHO DO HOMEM NO JUDAÍSMO

Como de costume, tomamos por ponto de partida a signifi-


cação que o judaísmo dá à expressão que examinamos. Aqui se
reveste de especial importância porquanto ao mencionar-se como
"Filho do Homem" Jesus evoca uma concepção determinada,
difundida em certos meios de seu povo. E necessário, inclusive,
desobstruir os limites do judaísmo: com efeito, trata-se - como
para o título de Logos que estudaremos mais tarde - de um con-
ceito difundido nas outras religiões (se bem que com caracteres
diferentes). Poderia, pois, parecer indicado inserir aqui um pará-
grafo especial consagrado a esta concepção nas religiões pagãs.
Nos limitaremos, não obstante, a tratar este problema no quadro
do judaísmo, pois não cabe admitir uma influênciadireta da ideia
pagã de Filho do Homem em Jesus e no cristianismo primitivo.
O contato com a figura de um "homem" celeste forânea ao juda-
ísmo se produziu em solo judaico, de sorte que a relação entre
Jesus Filho do Homem, e o Filho do Homem pagão passa pelo
judaísmo.
A primeira questão que se esboça aqui é esta: o que signifi-
ca a expressão mòç TOÍ> àvBpámox> do ponto de vista puramen-
te filológico*? Teremos de remontar ao aramaico: mòç xo\)
ctBppÓTWOcorresponde ao aramaicoNti?7 "13. Bar, como se sabe,
é o equivalente aramaico do hebraico ben = filho. Encontramos
este termo em diversos nomes próprios tais como Barnabé, Bar-
jonas, Bartolomeu etc. Nascha, derivado da mesma raiz que o
hebraico isch, plural anaschim, significa "homem". Barnascha é
pois a expressão aramaica à qual corresponde o grego mòç xox>
ÓCV9pG)7tOt>.

Cf. abaixo, p. 205.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO

Pois bem, o termo aramaico bar costuma ser empregado em


sentido figurado. Diz-se, por exemplo, em lugar de "mentiroso",
"filho da mentira"; os pecadores são chamados "filhos do peca-
do"; e um rico é um "filho da riqueza". Nesta construção o genitivo
que segue a bar designa, portanto, a espécie à qual pertence a pes-
soa em questão. Bamascha é, portanto, em aramaico, aquele que
pertence à espécie humana e significa simplesmente "homem"
(mais ou menos como em alemão se diz Menschenkind292). A tra-
dução grega tàòç TOÍ> àvôpcíwtoi) é pois, no fundo, o,exata por ses
demasiado literal. Bamascha deveria ser traduzida em grego sim-
plesmente por avGpcorcoç. Porém, o problema não se resolve com
recordar este fato filológico tão conhecido. Falta-nos, pois, ainda
saber em que sentido Jesus pôde qualificar a si mesmo de "ho-
mem", segundo o uso linguístico judaico de seu tempo.
H. Lietzmann consagrou em 1896 seu primeiro estudo a esta
questão.293 Segundo ele a expressão não poderia ser, entre os
judeus, um título messiânico; baseando-se em considerações
filológicas chega a um resultado negativo, hoje geralmente abando-
nado. A partir de um fato exato {bamascha ssgnifica ssmplesmente
"homem") conclui que o judaísmo do tempo de Jesus não pôde
nomear assim ao Messias; a atribuição que Jesus houvesse feito a si
mesmo deste nome, tão vago e tão geral, não teria, consequente-
mente, nenhum sentido. Em Dn 7.13, onde o "Filho do Homem"
aparece pela primeira vez, esta expressão não teria, segundo ele,
nenhum caráter messiânico. Tratar-se-ia, nesta visão, unicamente
de um ser humano, por oposição aos animais que se mencionam na
mesma passagem. Seria a comunidade primitiva quem teria posto o
termo na boca de Jesus, dando a este "homem" uma interpretação
messiânica e convertendo esta expressão em título cristológico.
Esta tese à qual se havia aliado - com certas reservas, é verdade -
J. Wellhausen, Skizzen und Vorarbeiten, VI, 1899, p. 187 ss., foi logo

M
-Igualmente, a expressão hebraica correspondente, benadam (Ez 2.1; SI 8.4; 80.18).
M
H. LIETZMANN, Der Menschensoh.. Ein Beitrag zur neutesíamentlichen
Theologie, 1896.
184 Oscar Cuttmanti

rejeitada com razão.2!M Sua refutação por G. Dalman, Die Worte Jesu,
1898, p. 191 ss., nãoé, contudo, inteiramente satisfatória: pois ele tenta
demonstrar que a expressão bartiasckci não era corrente em aramaico-
galileu no sentido geral de "homem". Porém, esta afirmação não pode
sustentar-se como tem demonstrado P. Fiebig, Der Menschensolui, Jesu
Selbstbezeichnung tnit besonderer Berilcfcsichtigung des aramãischeti
Sprachgebrauchsftir Mensch, 1901: filologicamente, bariiascha signifi-
ca simplesmente "homem"; porém, a conclusão que Lietzmann e
Wellhausen tiraram daí, a saber, que não podia ser uni título messiânico,
é falsa.

A literatura judaica tardia indica que este termo geral, "ho-


mem", serviu, na época de Jesus, para designar um salvador
escatológico: é o título que ostentaria um mediador especial a apa-
recer no fim dos tempos.295
Onde o encontramos pela primeira vez, em Dn 7.13, não se
pode saber se já se trata de um salvador individual. O "Filho do
Homem" aparece por oposição aos quatro animais; estes, segundo a
explicação que segue, são os reis de quatro grandes impérios. Em
seguida se diz: "Eu estava olhando nas minhas visões noturnas e eis
que vinha com as nuvens do céu um como o Filho do Homem, e
dirigiu-se ao Ancião de dias, e o fizeram chegar até ele. Foi-lhe
dado domínio, e glória, e o reino, para que os povos, nações e
homens de todas as línguas o servissem; o seu domínio é domínio
eterno, que não passará, e o seu reino jamais será destruído (ver. 13
s.). Segundo a explicação dada em seguida pelo visionário (v. 15
ss.), este "Filho do Homem" representa os "santos do Altíssimo".

LIETZMANN mesmo, mais tarde, a abandonou.


Cf'., a este respeito, W. BALDENSPERGER, Die messianisch-apokaiypíischen
Hoffnungen des Judeniitms, 3a ed., 1903, p. 91 ss.; A. V. GALL, BaaiXeía xav
6Eoíi, 1926, p. 409 ss.; W. BOUSSET, Die Religion des Judeniums im
neutestainentlichen Zeitalter, 3a ed., 1926;G. DUPONT, Leflls de 1'homme, 1927;
C. H. KRAELING, Anthropos andSon ofMctn. A Study tu the Religious Syncretism
ofthe Hellenistic Orient, 1927; H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 343 ss.;
R. OTTO, Reich Gottes tutd Meiíschensohn. Ein religionsgesclticlitlicher Versuch,
1934. - E, sobretudo, recentemente E. SJÕBERG, Der Menschensoltn im
cithiopischen Henochbitch, 1946, em partic. p. 41 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 185

Identifica-se aqui, pois, o Filho do Homem com povo de Deus: não


se pode perder de vista esta fato. Porém, por que, nesta visão, o
povo dos santos aparece precisamente como um "homem", por opo-
sição aos animais? Notou-se, com razão,296 que há na explicação
da visão uma certa inconsequência, um ligeiro desequilíbrio, no
sentido de que os animais são compreendidos como reis, isto é,
como os representantes dos quatro grandes impérios, enquanto
que o Filho do Homem aparece como o próprio povo de Deus.
Pode-se, pois, supor que originalmente o "homem" tenha simbo-
lizado (da mesma maneira que os animais) o representante do
povo dos santos. No judaísmo, se passa facilmente de um ao outro.
Já conhecemos a importância da ideia de substituição: o substitu-
to, o representante, pode ser identificado com a coletividade que
representa. Em nosso capítulo sobre o Servo de Deus já menciona-
mos este fenómeno tão importante para a cristologia neotestamert-
tária297 e teremos ainda ocasião de encontrá-lo. Como quer que
seja, o Filho do Homem anunciado por Daniel (7.13) foi posteri-
ormente considerado pelos judeus como uma figura individual m
E como tal que ele aparece também em outros escritos apoca-
lípticos tardios. No Apocalipse designado com o nome de 4° livro
de Esdras, o Filho do Homem surge das ondas do mar e se eleva
sobre as nuvens como um salvador.299 Dele se afirma que o Altís-
simo o manteve por muito tempo reservado a fim de salvar a cria-
ção por meio dele. Ele aparece também nesta obra com o nome de
Messias.
Porém, é sobretudo nos caps. 37-71 do livro etíope de Enoque
que a figura do "homem" é interpretada assim.300 Em termos gerais,

''Cf. porex. H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 345 ss.


7
Cf. acima, p. 79 s.
* Cf. JUSTINO, Dial. c. Tryplt. 31 s.
''4 Esdras 13.
"R. H. CHARLES, The Ethiopic Version ofthe Book of Enoque, 1906, p. 86 s., supõe
que o demonstrativo "este" (este Filho do Homem) do texto etíope é a tradução do
artigo definido do modelo grego. Sobre esta questão muito discutida, cf. E.
SJÕBERG, op. cit., p. 44 ss„ que, ademais, chega à conclusão de que o "Filho do
Homem" é um título messiânico.
líi6 Oscar Culbnann

esta obra judaica tardia é muito importante para a compreensão


dos começos do cristianismo. Os capítulos mais importantes em
que se trata do "Filho do Homem" são Enoque 46, 48 s., 52, 62,
69, 71; porém, outras passagens também são consideradas. Pode
dar-se por demonstrado que não se trata aqui, como em Dn 7.13,
de uma personificação do povo de Israel; mas antes, de uma per-
sonalidade individual (ficando bem entendido, contudo, que a ideia
de Filho do Homem, por sua origem e em virtude do próprio sen-
tido da palavra, supõe que os homens são representados por um
homem).

N. Messel {Der Menschensohn in den Bilderreden des Henoche,


1922) tentou, sem êxito, fornecer a prova de uma interpretação pura-
mente coletiva. Não pôde fazê-lo sem eliminar, como interpolações cris-
tãs, toda uma série de textos importantes. M. J. Lagrange {Le judaísnte
avanT Jèsus-Christ, 1931, p. 242 ss.) buscou também, sob outra forma,
demonstrar a presença de interpolações cristãs no livro de Enoque.
Porém, de nenhum modo se torna forçoso admitir esta hipótese, à qual
é demasiado fácil recorrer quando se trata de explicar escritos judaicos
tardios - às vezes por razões apologéticas com a intenção de assinalar
bem a distância que os separa dos escritos cristãos primitivos.
A constatação de afinidades existentes deveria, pelo contrário, nos lan-
çar na busca da novidade do Evangelho onde ela se encontra verdadei-
ramente. O que dizemos aqui se aplica também à confrontação atual
dos textos de Qumran com as ideias que se expressam no Novo Testa-
mento.

No livro etíope de Enoque, o "Filho do Homem" é aquele


cujo nome é pronunciado pelo "Ancião de dias" no começo da
criação; aquele que, por conseguinte, foi criado antes de todas as
demais criaturas.-101 Até no fim dos tempos, quando vier para jul-
gar o mundo e exercer sobre ele o domínio, ele mesmo, entretanto,

™l ENOQUE48.2, 6.-Como assinala com razão E. SJOBERG,í>p. «í.,p. 94, o Filho


do Homem do livro de Enoque não é unicamente um anjo, como pensa M. WERNER,
Die Entstehtmg des chrísúichen Dogmas, 2a ed., 1953, p. 302 ss. Cf. também a este
respeito W. MICHAEUS, Zur Engelchristologie im Uivhristentum, 1942.
I^RJSTOLOGIA DO N o v o TESTAMENTO 2§7

permanecerá oculto.-102 Aliás, tudo o que é relativo a ele e ao fim


dos tempos depende de uma doutrina secreta. Neste livro se lhe
dá, às vezes, o nome de Messias.303
A espera do "Filho do Homem" parece, por conseguinte, ter
sido acolhida especialmente nos meios esotéricos do judaísmo.
Se na verdade (como se havia suposto no começo) o rolo que con-
tinha o Apocalipse de Lameque - rolo achado entre os manuscri-
tos de Qumran o qual não pôde ser aberto por dificuldades técnicas
- teve afinidades com o livro de Enoque, isso seria, naturalmen-
te, sumamente importante para a questão da origem do Filho do
Homem. Infelizmente esta suposição não foi confirmada; e entre
os Hinos publicados nesse meio tempo não se mencionaem nenhu-
ma parte o "Filho do Homem". Por outro lado, não se exclui que
em um trecho do Manual de Disciplina, se encontre a noção de
segundo Adão, noção que - voltaremos a falar sobre ela - é uma
variante da de Filho do Homem.304 Porém, esta esperança no
Filho do Homem confirma, no entanto, que a vida religiosa na
Palestina era muito mais rica e mais diversa do que poderia fazer
crer o esquema corrente, que se limita a distinguir entre fariseus e
saduceus. O livro de Enoque nos faz conhecer um certo meio no
qual a esperança messiânica tem um caráter distinto daquela do
judaísmo oficial. Aqui já não se espera um Messias político que
tenha de destruir os inimigos de Israel em uma guerra terrena e
estabelecer um reino terreno, mas se espera o "Filho do Homem"
como um ser celestial sobrenatural: é o soberano celestial e não
um rei deste inundo. O fato de que seja chamado "homem", ou seja,
que tenha uma figura humana não deve induzir-nos a erros, pois sua

1(li
R. OTTO, Reich Goíles und Menschensohn, 1934, sublinha particularmente este
caráter •'oculto". Porém, é quase impossível fazer derivar daí o "segredo messiânico",
como o propõe E. SJÕBERG, op. cit., p. 115. Pode-se, quando muito, fazc-lo inter-
vir como motivo secundário para explicar este segredo. Sobre o motivo principal,
cf. acima, p. 107 s.
** ENOQUE 48.10; 52.4. - Cf. a este respeito E. SJÕBERG, op. cit., p. 140 ss.
3I1J
Cf. I QS IV, 23. é E. DINKLER quem destaca o problema posto por esta passagem
(Schweiz. Monatshefte, 36, 1956, p. 277).
188 Oscar Cullmann

majestade divina não pode ser excessivamente sublinhada: não é,


com efeito, um ser celestial preexistente que vive nos céus desde a
origem dos tempos, antes de vir à terra no fim dos tempos?
Então, por que a este mediador se lhe chama "homem"? Não
é sair do quadro de um estudo histórico examinar seriamente esta
questão. Pelo contrário, não é uma singular falta de curiosidade
científica Hmitar-se a constatar que no seio do judaísmo subita-
mente tenha surgido uma figura do Salvador que, por um lado, se
associa à imagem do Messias e, por outro, relega essa mesma ima-
gem a um plano secundário, e que tem o título de "homem" ou de
"Filho do Homem"? Se esperaria, ao contrário, que semelhante
mediador fosse designado de modo tal que indicasse sua origem
celestial. Ora, o chamam simplesmente "homem". Os textos
judaicos não nos permitem explicar este fato singular. Isso prova
haver uma relação com as concepções não judaicas de um "homem"
que, sendo realmente homem, possui uma dignidade divina parti-
cular; com efeito, a história das religiões nos ensina que existem
especulações relativas a um "primeiro homem", protótipo divino
da humanidade.
Isto não quer dizer que o judaísmo tenha simplesmente toma-
do esta concepção do mundo ambiente como um corpo estranho.
Há também no património espiritual judaico e bíblico uma ideia
que se inclina neste sentido e pode dar um fundamento sólido a
esta concepção: a criação do homem à imagem de Deus. Partin-
do daí, compreendemos que seja justamente o "homem" (na medi-
da que representa a imagem fiel de Deus) o destinado a salvar a
humanidade decaída. É verdade que em nenhum texto judaico se
tiram tais consequências da imago Dei; porém, trata-se tão-so-
mente de encontrar o ponto de contato do judaísmo com esta
doutrina do "primeiro homem".
Esta doutrina era muito difundida entre as religiões orientais
que rodeavam o judaísmo; inclusive, era um elemento de seu
património comum; porém, é muito difícil de captá-la na forma
plenamente desenvolvida. Se bem que sobre este ponto os repre-
sentantes da história comparada das religiões às vezes se têm
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO J_S9

excedido em suas construções,305 não é menos certo que se encon-


tram alusões a este protótipo ideal de homem nas religiões irania-
na,305 caldaica, egípcia,307 nocultode Átis,308 entre os Mandeus,309
os Maniqueus310 e de uma maneira geral, na Gnose. Esta noção
parece haver-se estendido tanto como a deLogos divino. A verda-
de é que ela não assumi, em todas as partes, a mesma forma;
assim, a ideia segundo a qual o primeiro homem deva ser salvo,
ele mesmo, para poder salvar aos homens - ideia característica da
maior corrente do gnosticismo - não constitui, necessariamente,
uma parte integrante desta crença.31'
Seria interessante reunir todos os textos da história das reli-
giões relativas ao "primeiro homem".3'2 Porém, não podemos exa-
minar aqui, em todos os detalhes, a questão tal qual se põe aos
historiadores das religiões. O que importa para a cristologia do
Novo Testamento é a identificação deste homem celestial ideal
com Adão. Vinculada à concepção escatológica do retomo final

""É, no entanto, graças a eles que a atenção tem-se voltado para estas relações -
Cf. em particular, W. BOUSSET, Hauptprobleme der Gnosis, 1907, p. 160 ss.,
238 ss.; Id., Kyrios Christos, 2a ed., 1921: R. REITZENSTEIN, Das iranische
Erlõsungsmysterium, 1921; R. REITZENSTEIN- H. H. SCHAEDER, Studien zum
antiken Synkretismus aus Iran und Griechenland, 1926; resenha crítica de
W. MANSON, Jesus the Messiah, 1946, p. 237 ss.
1<
" ' Cf., etu particular,os estudos citados de REITZENSTEIN e SCHAEDER. Insistem,
sobretudo, em Gayomart, o "primeiro homem" na religião iraniana. Cf. também a
este respeito as reservas de G. QUISPEL.
'"7 REITZENSTEIN chama a atenção sobre o Poimandres. A respeito deste escrito cf.
E. HAENCHEN, "Aufbau und Theologie des Poimandres" (ZThK, 53,1956, p. 149
ss.). Também C. H. DODD, The Bible and the Greeks, 2a ed., 1954, que dá especial
atenção ao "primeiro homem", do Poimandres.
3<la
H. HEPDING, Attis, seine: Mytthen und sein Kuit, 1903, em partic. p. 50 ss.
•""Cf. Além dos estudos já citados: R. REITZENSTEIN, Das mandáische Buch des
Herrn der Grõsse und die Evangelienuberlieferung, 1919.
110
W. HENNING, Gebitrt und Entsendung des mankháischen Umienschen, 1933. -
Cf. também H. CH. PUECH, Le manichéisme, 1949, p. 76 ss.
311
É igualmente falso, nos estudos atuais relativos ao gnosticismo da seita de Qumran,
considerar a presença, ou ausência, deste mito como critéri o para determinar o cará-
ter gnóstico, ou não gnóstico, desta seita.
"2Recentemente, C. G. JUNG aplicou à ideia de Filho do Homem sua teoria do
"arquétipo".
iy0 Oscar Cttllmann

da idade de ouro, conduz, com efeito, à esperança de que o primeiro


homem tem de voltar no fim dos tempos para salvar a humanidade.
É difícil estabelecer esta identificação no seio do judaísmo
devido ao fato de não estar claramente estabelecido o elo entre o
primeiro homem e o "homem" escatológico, ou "Filho do Homem";
além disso: não pode ser estabelecida sem mais nem menos, já
que o primeiro homem se encontra relacionado à origem do peca-
do. Veremos que só no paulinismo este problema achará solução.
Porém, nesse momento, trata-se de demonstrar o porquê, no juda-
ísmo, a noção de arquétipo da humanidade e a de Filho do Homem
que virá seguiram, em seu desenvolvimento, caminhos separados
e, consequentemente, porque seu parentesco original deixou de
ser visível. Pois este deve ter existido; senão, como compreender
que o salvador escatológico seja chamado "homerrT?
Insistiremos na exposição que se seguirá sobre a necessidade
interna do desenvolvimento separado destas duas noções: pois de
outro modo, a identificação que cremos dever estabelecer entre o
"Filho do Homem" e o "segundo Adão" poderia parecer arbitrá-
ria. Por isso geralmente esta identificação não é reconhecida sob
pretexto de que os documentos judaicos, tanto quanto os do cristi-
anismo primitivo, não permitem fazer-nos perceber nenhuma
relação entre ambas as concepções.
É assim que na visão de Daniel (cap. 7) e, sobretudo, nas
especulações relativas ao Filho do Homem que se lhe acoplam
nos Apocalipses do quarto livro de Esdras e no de Enoque se desen-
volva unicamente o aspecto escatológico, enquanto que as demais
ideias acerca do "primeiro homem" só tenham traços isolados.
Tampouco, trata-se de uma verdadeira encarnação: o Filho do
Homem surge do mar, ou vindo sobre as nuvens do céu, não se
encarna na humanidade pecadora.313 É verdade que leva, às vezes,

E. SJÕBERG, op. CÍV., p. 147 ss., tenta demonstrar que a identificação com Enoque
não é mais levada em conta, dado que, originalmente, este só se torna Filho do
Homem depois de sua ascensão. A questão da encarnação poderia, quando muito,
pôr-se para o problemático Metatron. Ver, a este respeito, H. ODEBERG, 3. Enoch
or the Hebrew Book of Enoch, 1928.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 191

atributos do Ebed Iahweh - por exemplo, os epítetos de "servo"


cm 4 Esdras (7.28; 13.32) ou de "justo", de "eleito", de "luz das
nações" em muitas passagens de Enoque. Porém, em nenhuma
parte reveste a forma de servo sofredor.3141
Junto com esta utilização escatológica da concepção de "pri-
meiro homem" o judaísmo não abandonou a ideia (que brota da
mesma raiz) de um primeiro homem perfeito, visto que, como já
tem sido indicado, a afirmação bíblica daimagoítei se lhe aproxi-
mava. É assim que nasceu, nos escritos apócrifos e nos escritos
místicos surgidos dos meios rabínicos, toda uma literatura relativa
a Adão.315 Porém, também achamos os vestígios do problema de
Adão na grande corrente da literatura judaica tardia. O problema
era, em suma, o seguinte: a ideia primitiva de uma identidade
entre o homem celestial e o primeiro homem buscava constante-
mente penetrar no judaísmo; porém, não podia consegui-lo, pois,
segundo o Antigo Testamento, Adão pecou. De acordo com o
relato bíblico foi, com efeito, o primeiro homem aquele que des-
pojou a humanidade de seu caráter divino e é precisamente por
causa dele que se fez necessário que o homem celestial leve os
homens ao seu verdadeiro destino. A ideia extrajudaica do primei-
ro homem devia, pois, sofrer uma profunda transformação antes
de poder arraigar-se no judaísmo; é por isso que, ainda no seio
do cristianismo primitivo, as noções de "Filho do Homem" e de
"segundo Adão" parecem totalmente diferentes, quando, em sua
essência, estão estreitamente enlaçadas.
Posto que os dois conceitos, o de Filho do Homem e o de "segundo
Adão", representam dois aspectos de uma mesma ideia cristológica, não
consagraremos um capítulo especial ao de "segundo Adão".

114
O sofrimento do Filho do Homem, admitido por J. JEREMIAS, "Erlõserund Erlõsung
im Spãtjudentum" (Deutsche Theol., 2, 1929, p. 106 ss.) continua problemático. Cf.
E SJÒBERG, op. cit., p. 116 ss.
115
25 Cf. em part.: Vita Adae, 12 ss.; Enoque (Eslav,), 30. - Textos rabínicos também
devem ser considerados. Cf. B. MURMELSTEIN, "Adam. Ein Beitrag zur
Messiaslehre" (Wiener Ztschr. f d. Kunde d. Morgenlandes, ,128, p. 242 ss,; ;929,
p. 51 ss.).
•192 Oscar Cidimann

O fato de que Jesus seja chamado "segundo Adão" e não sim-


plesmente Adão, já nos mostra por que era necessário se distinguir
"Adão" de "Filho do Homem". Permite-nos, igualmente, reconhe-
cer onde residia, para o judaísmo, a dificuldade de adotar a ideia,
tão frutífera do ponto de vista teológico, de Filho do Homem. Por
um lado, trata-se de pôr a ideia de homem divino, do bamascha
em relação com o tempo da criação: o homem celestial é o homem
tal qual Deus quis, quando o criou à sua imagem. Porém, como
por outro lado, o relato da criação está ligado ao da queda do pri-
meiro homem, era impossível aos judeus introduzir, pura e sim-
plesmente em sua teologia, o homem celestial identificado com
Adão. Será que é por isso que as especulações relativas ao
barnascha não se desenvolveram no seio do judaísmo oficial, mas
antes nos meios esotéricos que o Apocalipse de Esdras e o livro de
Enoque nos têm dado a conhecer? Nós só podemos esboçar a ques-
tão. Talvez seja pela mesma razão que os autores dos Apocalipses
rodearam estas concepções de tanto mistério e não falaram delas,
senão em termos fechados e valendo-se de alusões.
Para superar estas dificuldades existiam duas possibilidades
bem diferentes, e ambas foram tentadas. Podia-se não insistir na
identificação do homem celestial e o primeiro Adão, ou antes se
podia negligenciar o relato da queda de Adão. No livro etíope de
Enoque, o Filho do Homem desempenha um papel particularmen-
te importante. Ali - e isso é sintomático - se passa, purae simples-
mente, em silêncio a queda de Adão. Isto poderia ser uma coinci-
dência carente de importância, se justamente este livro não se
esforçasse por explicar a origem do pecado. Porém, fala disso - o
que não pode deixar de surpreender-nos - sem mencionar a queda
de Adão. Nos capítulos 83-90, encontramos um resumo da história
do mundo desde a criação até o estabelecimento do reino mes-
siânico: não se encontra aí uma só palavra sobre a queda. Quanto
ao livro eslavo de Enoque, este afirma que o diabo tentou somente
a Eva e não a Adão, e não se trata aí de uma mera coincidência;
antes, pelo contrário, da tendência evidente de inocentar Adão do
pecado original. Para explicar a origem do mal o livro de Enoque
CRISTOLOGIA DO fsovo TESTAMENTO 193

escolheu outro relato de Génesis: o da queda dos anjos (Gn 6). Em


muitos lugares encontramos desenvolvida uma teoria do pecado
nessa conexão. O autor descreve as consequências que decorrem
das relações culpáveis de anjos com as filhas dos homens: é daí
que vem todo o mal, toda a violência, todo pecado e em particular,
toda idolatria.
Segundo esta interpretação, o mal, por conseguinte, não tem
sua fonte na queda do primeiro homem. Não é, de nenhum modo,
abusar do argumento e silentio, emitir a hipótese seguinte: o autor
do livro de Enoque - que eé ,ecorddmoss ,do sscritores sudaicos s
que utiliza mais conscientemente a noção de Filho do Homem -
pôde conservar inconscientemente a lembrança de ser obarnascha,
que tem de voltar no final dos tempos, idêntico ao primeiro homem.
No entanto, não se atreve a dar o passo decisivo e identificar aber-
tamente o Filho do Homem com Adão. Porém, não se atrevendo
tampouco a negar expressamente a queda de Adão, se contenta
com passá-la em silêncio.
O passo decisivo foi dado pelos judeu-cristãos gnósticos, cujas
especulações nos foram conservadas nos escritos pseudoclemen-
tinos.-116 Embora reconhecendo Jesus como o Cristo, eram, em sua
atitude, muito mais judeus do que cristãos. Podemos quase consi-

H. J. SCHOEPS, Theologie mui Geschichte des Judenchristentums, 1949, p. 305


ss., procurou refutar seu caráter gnóstico, contra W. BOUSSET e contra nossa pró-
pria tese (Le pwblème iiuéraire et historique du roman pseudo-clémentin, 1930).
Sua tentativa não parece ter tido êxito. Pois ao afirmar, rigorosamente, a origem
rabínica das concepções pseudoclementinas não prova nada contra seu gnosticismo.
R. BULTMANN objetacom razão {Gnomon 26,1954, p. 177 ss.) que o gnosticismo
havia penetrado nos meios rabínicos. G. BORNKAMM (ZKG, 1952-53, p. 196 ss.)
refuta também a argumentação de SCHOEPS. Ct, igualmente O. CULLMANN,
"Die neiwiudeckten Qttmrdantexteu. das Judenchristeniunt der Pseudoklemenimen
(Tlwot. Sud.f. R. BULTMANN, 1954, p. 35 ss). -Recentemente H. J. SCHOEPS
mesmo em "Das gnostische JudentumindenDeadSeaScrolls"(Zfíe/if:/ Religions-
u. Geistesgeschichte, 1954, p. 277) reconheceu: "Até aqui o resultado, para mim,
mais importante é que o "judaísmo gnóstico da época pré-cristã'", qualificado de
problemático e improvável em meus dois livros, realmente existiu". A gente se sur-
preende então de o ver, em sua última obra, Urkirche, Judenchristentum und Gnosis,
1956, retomar, a respeito da gnose, suas antigas posições e afirmar que todos os
elementos gnósticos do judaísmo são só "pseudognósticos".
•194 Oscar Cullinann

derá-los como uma seita judaica; e, quanto à sua teologia, perten-


cem, sem dúvida alguma, ao judaísmo.317 Temos de incorporá-los,
em todo caso, ao judaísmo no que concerne ao desenvolvimento
da ideia de Filho do Homem. Com efeito, a forma pela qual eles
resolveram o problema da identidade do protótipo divino da huma-
nidade com Adão, se relaciona diretamente com o ponto de vista
que encontramos no livro de Enoque.
Já vimos que a obra pseudoclementina chamada Kerygmata
Petrou tem a Jesus como o "verdadeiro profeta".318 Neste livro se
identifica o verdadeiro profeta com Adão. Deram, portanto, o pas-
so decisivo: o Filho do Homem e Adão são um só e o mesmo ser.
Segundo estes judeu-cristãos, o verdadeiro profeta se encarnou
em diversas ocasiões, a primeira das quais foi em Adão.
Porém, como eles compreendem esta identificação? Como
podem considerar a encarnação do verdadeiro profeta, este, do qual
a Bíblia nos diz que foi o primeiro pecador? Aqui os judeu-cris-
tãos gnósticos não vacilam em ir mais longe que o livro de Enoque:
em lugar de passar em silêncio sobre relato da queda, declaram
simplesmente que é falso. Conforme sua teoria da syzygies,319 Adão
representa o princípio do bem, Eva, o do mal. Adão, portanto, não
pecou. A obra pseudoclementina não pode arriscar esta ousada
afirmação sem apoiar-se sobre sua singular teoria das "falsas períco-
pes", que estariam contidas nos cinco livros de Moisés. O recurso
a um ensinamento secreto permitiria eliminar estas mentiras, insi-
nuadas na bíblia pelo Diabo, das quais uma das mais graves é o
relato da queda de Adão, o primeiro homem. Uma vez desmasca-
rada esta mentira pode-se, sem dificuldade, identificar Adão com
Jesus, o verdadeiro profeta.
Assim, os judeu-cristãos professam por Adão a maior vene-
ração e o glorificam como valoroso adversário do diabo. Encon-
tramos uma glorificação semelhante de Adão, ligada a idêntica

É o que mostra, também, a relação com a seita de Qumran, indicada em nosso artigo
precedentemente citado.
Cf. acima, p. 59 ss.
Cf. acima, p. 63 s.
CRISTOLOGIA DO JVOVO TESTAMENTO 195

oposição entre ele e o diabo, nas teorias judaicas apócrifas, sobre-


tudo na "Vida de Adão".32íl Porém, foi entre os judeu-cristãos que
esta teoria mais se desenvolveu; graças à recusa total do relato da
queda de Adão, ela se vê livre de todo obstáculo.
Adão - segundo esta doutrina - foi ungido com o azeite da
árvore da vida. Ele é o sacerdote eterno que se reencarna em Jesus,
o homem perfeito, o protótipo da humanidade. No momento da cria-
ção, Deus apresentou a cada criatura um protótipo: aos anjos, um
anjo; aos espíritos, um espírito; às estrelas, uma estrela; aos demó-
nios, um demónio; aos animais, um animal; e ao homem, enfim,
apresentou o homem - o homem por excelência, que apareceu na
pessoa de Adão. Estamos aqui diante da origem comum das noções
de "Filho do Homem" e de segundo Adão. Entre os judeu-cris-
tãos, é verdade, não se trata de um segundo Adão, mas do próprio
Adão: a partir do momento em que negam a queda, não têm neces-
sidade de um segundo homem, já que o primeiro preencheu verda-
deiramente o papel que lhe havia sido designado por Deus.
Segundo esta teoria, a salvação reside então, simplesmente,
em um retorno perfeito da primeira idade. Abandona-se a concep-
ção bíblica de um tempo que progride de maneira contínua; e de
preferência, nos vemos na presença da concepção grega de um
lempo cíclico: todas as coisas voltam ao mesmo ponto; e não há,
falando propriamente, progresso no tempo. Já temos sublinhado321
que os Kerygmata Petrou apresentam influências gnósticas. Ora,
a concepção gnóstica acerca do tempo não é a da bíblia, mas a do
helenismo; pressupõe o retorno de todas as coisas. Contrariamen-
te a ela, o Messias do judaísmo oficial, como o "Filho do Homem"
da escatologia do livro de Enoque, não se limita a repetir o que
existia desde o começo da criação: traz algo novo. Deste ponto de
vista também os cristãos não podiam simplesmente assimilar a
ideia de Filho do Homem àquela sobre o primeiro homem. Pois,

'•'" Vita Adae, 12 ss.; 39. Enoque (Eslav.) 30.11 ss. Cf. a este respeito o artigo de B.
MURMELSTEIN, citado acima, p. 191, nota 315.
'•'• Cf. acima, p. 193, nota 316 e ainda p. 61.
196 Oscar Cullmcmn

segundo a doutrina bíblica, Adão rebelou-se contra a vocação que


lhe havia sido designada por Deus; e a idade de ouro, no que
concerne ao homem, existiu no começo, na intenção de Deus;
porém, não foi realizada.
Temos de ver ainda como Fílon, o grande filósofo judeu de
Alexandria, resolveu o problema esboçado pela aparição da ideia
de Filho do Homem no judaísmo. Nele esta noção também
desempenha um grande papel. Se no seio do judeu-cristianismo, a
identificação do homem celestial com Adão não era possível
senão graças a uma recusa do relato da queda de Adão, em Fílon
encontramos uma solução menos rigorosa e menos radical do pro-
blema. Ele também aceita, é verdade, a identificação do homem
celestial com o primeiro homem; porém, busca, ao mesmo tempo,
afirmar esta identidade e conservar o relato bíblico da queda.
As soluções radicais, como a dos pseudoclementinos, não eram de
seu agrado; não se esforçou, durante toda sua existência, por con-
ciliar com o Antigo Testamento sua filosofia de inspiração pura-
mente grega. De maneira que tampouco recorreu àquele método
desesperado, que consiste em tirar da Bíblia as passagens que apre-
sentam dificuldades. Quando estas se lhe contrapõem, busca dar-
lhes, graças a uma interpretação alegórica, um sentido que se harmo-
nize com suas convicções filosóficas. E conseguiu desta maneira,
ao mesmo tempo, conservar os relatos bíblicos e os tornar inofen-
sivos por uma espécie de "desmitologização".
Graças a este método exegético Fílon realizou a proeza de
afirmar a identidade do homem celestial com o primeiro homem e
ainda aceitar o relato da queda de Adão. Porém, aqui se vale de
um método que não só é alegórico, mas especificamente rabínico,
que consiste em confrontar duas passagens da Escritura. Segundo
Fílon, no relato bíblico se distingue duas personagens diferentes
que levam o mesmo nome de Adão; o Génesis conhecia, pois, a
dois "primeiros homens". Baseia esta afirmação em uma interpre-
tação assaz arbitrária de duas passagens: Gn 1.27 e 2.7. Em Gn
1.27 lemos: "Criou Deus, pois, o homem à sua imagem, à imagem
de Deus o criou".
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 197

E em Gn 2.7: "Então formou o Senhor Deus ao homem do pó


da terra, e lhe soprou nas narinas o fôlego da vida, e o homem
passou a ser alma vivente."
Em duas ocasiões encontramos em Fílon especulações relati-
vas a estes textos: na "interpretação alegórica das leis" (Leg. alleg.
I,31 s.) e no tratado "Sobre a Criação do Mundo" {De opif. mundii
134 ss.). Nestas obras, confronta os dois textos de Génesis e con-
clui que no primeiro (Gn 1.27) trata-se de um outro Adão, distinto
do do segundo (Gn 2.7). O Adão de Gn 1.27 é idêntico ao homem
celestial ideal: formado à imagem de Deus, vem do céu e possui a
virtude do Espírito Santo. Nele nada há de perecível. É o homem
tal qual Deus quis quando o criou à sua imagem. Puro de todo
instinto sexual, está situado para além da distinção entre homem e
mulher. É o ser humano em si, o homem celestial. Tudo o que as
religiões orientais ensinam sobre o "primeiro homem", o ser per-
feito, o protótipo divino da humanidade, Fílon aplica ao Adão de
Gn 1.27.
Por outro lado, ele pensa que no capítulo seguinte, em Gn
2.7, se nos fala da criação de outro Adão, e tudo o que é relatado
depois, acerca do pecado e do castigo de Adão, se aplicaria a este
outro Adão que é, verdadeiramente, o homem pecador, o autor do
pecado. Ele não foi criado à imagem de Deus, nem vem do céu,
mas da terra. Deus o formou do pó da terra; e assinala que mesmo
que Deus tenha escolhido, o pó mais nobre, para o modelar, ainda
teve que soprar em suas narinas o sopro da vida, para que este
Adão, surgido da terra, se tornasse alma vivente.
Assim, a partir destes dois relatos da Criação de Génesis (que a
pesquisa atual explica pela existência de duas fontes), Fílon con-
cluiu que Deus havia criado dois homens diferentes, dois Adões: o
homem celestial, protótipo do homem ideal, que aparece em Gn
1.27 para desaparecer em seguida do relato; e o outro, o homem que
transgrediu o mandamento divino, aquele de que trata Gn 2 e 3.
O fato de Fílon ter desenvolvido esta teoria em dois tratados
diferentes prova que lhe dava uma importância particular. Encon-
tramo-la também na literatura rabínica, porém, muito mais tarde
J98 Oscar Cullmarm

para que se possa suspeitar que Fílon a houvesse tirado dali, ape-
sar do caráter especificamente rabínico de sua demonstração.322
Como quer que seja, era necessário estudar esta teoria de Fílon
para compreender o desenvolvimento da ideia de "Filho do Homem"
e de "segundo Adão" no Novo Testamento; pois veremos que é
muito provável que o apóstolo Paulo a tenha conhecido.
A explicação filoniana da relação entre o homem celestial e o
primeiro homem tem, em relação às outras soluções judaicas edo
ponto de vista que nos interessa aqui, a vantagem de não recusar o
relato da queda de Adão. Porém, (e mesmo fazendo abstração de
seu fundamento exegético arbitrário) tem a mesma falha que a
teoria gnóstica judaico-cristã. No fundo, ela delata claramente seu
caráter grego: o homem celestial, figura ideal, se encontra nela
desde o começo e, como entre os judeu-cristãos, não há mais a
possibilidade de uma nova ação deste homem-espírito na suces-
são do tempo, já que desde o começo ele realiza o absoluto. Fílon
não conhecia nenhuma encarnação, nem um retorno escatológico
deste homem; para ele não pode haver novas revelações divinas
no tempo; por conseguinte, não poderia haver também desenvol-
vimento desta revelação, e a salvação não poderia inscrever-se
numa história.

* * *

Chegamos, pois, no que toca à concepção judaica de Filho do


Homem, à conclusão seguinte: o homem celestial, que é também
conhecido pelas religiões extrabíblicas, aparece no judaísmo sob
duas formas diferentes.
1. Sob a forma de um ser celestial que - agora ainda oculto -
aparecerá somente no fim dos tempos, sobre as nuvens, com o
objetivo de julgar o mundo e de realizar o povo dos santos. Encon-

A utilização de uma tradição antiga não fica, contudo, totalmente excluída, ao


menos em Leg. aííeg. I, 31. Cf. H. LIETZMANN, An die Korinther 1-2 (Hdb.
z. NT),4"ç<l., 1949, p. 85.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 199

iramos esta figura exclusivamente escatológica em Daniel, no


livro de Enoque e no 4o Esdras.
2. Sob a forma de um homem celeste ideal que se identifica
com o primeiro homem desde o inicio dos tempos. Esta concep-
ção se desenvolve em Fílon de Alexandria e se encontra também
tios Kerygmata Petrou, como também nas especulações rabínicas
relativas a Adão.
A primeira destas formas corresponde ao pensamento judai-
co e particularmente à concepção judaica de tempo. Os textos
judaicos que falam do homem celestial futuro, não contêm refle-
xões sobre sua origem. Supõe-se, no entanto, que está no céu e
que no final dos tempos descerá do céu (ou surgirá do mar). Por-
tanto, deve ser tido como preexistente. No livro de Enoque chega-
se a dizer que, antes da criação do mundo, foi eleito e escondido
por Deus. (Enoque 48.3-6; 62.7; 70.1).
A segunda destas formas se encontra de preferência nos tex-
tos que ostentam traços helenísticos. Estes não se interessam pri-
mordialmente pela escatologia, mas, ao contrário, pelo que ocor-
reu no começo dos tempos - o que concorda com a tendência da
filosofia e do gnosticismo. Por isso, estes textos afirmam a identi-
dade do "Filho do Homem" com o primeiro homem.
Porém, a despeito das diferenças existentes entre as duas for-
mas trata-se, no fundo, de uma só e mesma ideia, a de "homem",
do homem celestial. Em ambas as categorias de textos encontra-
mos o barnascha. Nos dois casos, trata-se do homem que perma-
nece fiel à sua vocação divina, que consiste em ser a imagem de
Deus. Aí está a raiz comum da duas formas que devemos distin-
guir. A passagem de uma a outra se manifesta no fato de que Daniel,
Enoque e o Apocalipse de Esdras postulam a preexistência do
"Filho do Homem" escatológico; se se o representa como já exis-
tindo antes do fim dos tempos, pôe-se, implicitamente, a questão
da sua origem. Num e noutro caso, no entanto, a ideia de uma
encarnação do Filho do Homem segue sendo totalmente forânea
aos judeus. Não resulta dos textos escatológicos nem dos textos
de caráter filosófico e helenístico, que o próprio Filho do Homem
200 Oscar Cullntann

deva tornar-se um homem entre os homens. Mesmo o Filho do


Homem, que vem sobre as nuvens do céu no fim dos tempos, não
se incorpora realmente à humanidade. É verdade que nos escritos
pseudoclementinos, o verdadeiro profeta, que primeiramente viveu
sobre a terra na pessoa de Adão, reaparece sob a figura de muitas
personagens bíblicas. Porém, não se trata, precisamente, de uma
encarnação do homem celestial, mas, antes como jáfoi visto,323 de
um regresso muitas vezes repetido do profeta. Tem-se conectado
aqui a ideia de Filho do Homem com a de profeta, surgida de um
complexo de concepções completamente diferentes.

Quanto ao sincretismo oriental que achamos no gnosticismo exte-


rior ao judaísmo, cie sabe muito menos ainda acerca de uma encarnação
do homem celestial. Sem dúvida trata-se de sua descida à terra. Confor-
me o mito conhecido que encontra sua expressão clássica, por exemplo,
no Hino dos Nassênios (Hippol., Philos., V. 6-11), o próprio salvador
também tem de ser salvo. Porém, não é sua encarnação aqui o verdadeiro
fundamento da salvação; ele não sai fora do domínio mitológico para
entrar no domínio histórico. Como o diz com razão R. Bultmann,
Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 166 s.: somente se "disfarçou"
de homem. Por isso, todos os gnósticos são docetas.

2. JESUS E A IDEIA DE FILHO DO HOMEM

Jesus qualificou a si mesmo de "Filho do Homem", e em


que sentido? É esta uma das perguntas frequentemente mais tra-
tadas e das mais controversas da ciência do Novo Testamento.
Temos citado no parágrafo precedente o estudo de H. Lietzmann.324
Recordemos a tese que sustenta: Jesus não se considerou o "Filho
do Homem". Lietzmann se apoiava sobre o fato indiscutível, do
ponto de vista filológico, de que a expressão x>iòç tox> àv6pÓKO"o
significa simplesmente "homem". Porém, isso não exclui que Jesus

Cf. acima, p. 60 s.
Cf. acima, p. 183, nota 293.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 201

tenha podido atribuir-se, por meio deste título, um papel particu-


lar de Salvador, já que no judaísmo esta expressão, "o homem",
pode ser um título de majestade e evocar, de maneira precisa, um
ser celeste.
Sobre apenas um ponto é possível fazer uma concessão à tese
de Lietzmann: existem, talvez, uma ou duas falas de Jesus em que
a expressão mòç xov ccvQpcMWD não se reporta a aua própria pes-
soa, mas que designa ao homem em geral. Poderia ser tal o caso
para o logion, bem conhecido, relativo ao sabat (Mc 2.27). Trata-
se da resposta de Jesus à pergunta dos fariseus que interrogavam-
no sobre se era permitido trabalhar no dia do sabat. "O sábado foi
estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do
sábado". Aqui a palavra aramaica bamascha se traduz correta-
mente em grego por avGpamoç. Trata-se evidentemente do
homem em geral: não do homem celestial, do Filho do Homem.
No versículo seguinte (Mc 2.28) lemos: "de sorte que o Filho cio
Homem (uíòç xoí> >v0pó>7toi>) é éenhor ata dd sábado". Se tivés-
semos que tirar, sem ideia preconcebida, a conclusão que se
depreende do v. 27, teríamos que entender que Jesus fala aqui do
homem em geral: todo homem é senhor do sabat, já que o sabat foi
feito para o homem. Porém, no v. 28 não temos, como no versículo
precedente, a simples palavra avGpcoiraç, "homem", mas a expres-
são mòç xox) àvGpcorayu "Fiiho do Homem".
Pode deduzir-se disso que Marcos tenha pensado que ao
empregar o título de "Filho do Homem", Jesus queria designar a si
mesmo como o Senhor do sabat; senão, teria usado simplesmente
a palavra "homem", como no versículo precedente. O evangelista,
pois, teria interpretado esta palavra num sentido análogo ao de Jo
5.17, onde Jesus explica de uma maneira cristológica sua liberda-
de com respeito às leis sabáticas. Porém, nesse caso, a conexão
lógica entre vs. 27 e 28 não aparece com clareza. É, pois, possível
(apesar da interpretação do evangelista) que Jesus não tenha apli-
cado a si mesmo esta segunda frase. Falava em aramaico e, por-
tanto, empregava nos dois versículos a mesma palavra bamascha.
Podemos admitir que esta palavra tem o mesmo sentido em ambos
202 Oscar Cullntann

os versículos, isto é, que se aplica ao homem em geral e não ao


"Filho do Homem", Jesus.
Não afirmaremos, contudo, que a interpretação do evangelista deva
necessariamente ser recusada. T. W. Manson, depois de haver partilhado
primeiramente da opinião segundo a qual o oiòç xox> àvÔpcÓTtou de Mc
2.28 repousa em uma má interpretação de barnascha (empregado em um
sentido geral), propôs, recentemente, outra solução. ,:5 Admite que o
barnascha do v. 27 designava, não o homem em geral, mas o Filho do
Homem: "O sabat foi feito para o Filho do homem e não o Filho do
Homem para o sabat". Esta interpretação é possível somente na condição
de se dar, como o faz Manson, um sentido coletivo à expressão "Filho do
Homem". O Filho do Homem para quem o sabat foi feito e que é Senhor
do sábado, é Jesus com seus discípulos, que em conjunto formam o "povo
dos santos do Altíssimo". Sem dúvida alguma, há uma ideiajustanabase
desta interpretação interessante; porém, não se pode sustentá-la sob uma
forma tão extrema.326 Por outro lado, a proposição feita por Th. Preiss,
Leftís de 1'homme, 1951, p. 28 s., merece ser levada em conta. Partindo
do duplo sentido da expressão barnascha, que designa, ao mesmo tem-
po, a cada homem e ao "homem" - a saber, o homem que representa a
coletividade - supõe que Jesus quis dar a este logion um duplo sentido:
"Se o homem em geral é o fim do sabat, com quanto maior razão o
Homem será senhor do sabat, ele que veio para salvar os homens!"

Outra passagem que poderia ser considerada é a de Mt 12.31


s. (Lc 12.10), embora aqui a hipótese de uma interpretação errada
da palavra aramaica, por parte do evangelista, seja mais incerta:
"Por isso, vos declaro: todo pecado e blasfémia serão perdoados
aos homens; mas a blasfémia contra o Espírito não será perdoada.
Se alguém proferir alguma palavra contra o Filho do Homem, ser-
lhe-á isso perdoado; mas, se alguém falar contra o Espírito Santo,
não lhe será isso perdoado, nem neste mundo nem no porvir".
O importante é o versículo 32, com o deslocamento de ícaxà iox>
mo> TOÍ» áv0p(ujr.oi). Segundo o texto grego e a opinião do

m
T . W. MANSON, "Mark 2.27 s." (Coniect. Neotest. 11, 1947, in honorem A. Fri-
dricftsen, p. 138 ss.).
326
Cf. também a este respeito, abaixo, p. 204, nota 330.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 203

evangelista, deveria tratar-se aqui de um pecado contra Jesus, de


maneira que o sentido seria este: o pecado contra Jesus será perdo-
ado, porém, o pecado contra o Espírito Santo não será perdoa-
do.327 Mas, aqui também é possível que originalmente se tratasse
dos homens em geral: se alguém fala contra os homens isto lhes
será perdoado. Um fato ao menos apela a favor desta interpreta-
ção: na passagem paralela de Mc 3.28, e desde a primeira frase
("todos os pecados e as blasfémias serão perdoados aos homens"),
o evangelista emprega para "homens" a expressão DÍOÍ -ccòv
ávGpámwv, "filhos dos homens": aqui se trata, evidentemente, dos
homens em geral.328
Há, pois, dois logia de Jesus nos quais é possível que a
expressão "Filho do Homem" não se aplique a Jesus, mas aos
homens em geral.329 Nas demais falas de Jesus esta explicação
fica excluída. Os evangelistas, que escrevem em grego, geral-
mente fazem distinção terminológica entre "Filho do Homem"
Jesus e o "homem" em geral, já que traduzem a mesma palavra
aramaica bamascha por àv9pú)7toç, quando se trata dos homens,
e por moç w ò ávGpánot), quando se trata de Jesus. Em aramaico,

A. FRIDRICHSEN, u'Le péché contre le Saint-Esprit" {RHPR, 3, 1923, p. 367 ss.),


vê nesta palavra uma criação da comunidade, e atribui sua formação ao interesse
missionário da igreja primitiva: àqueles que recusaram a Jesus quando ainda estava
vivo antes da ressureíção (isto é, os judeus no que se refere à questão da conversão)
seus pecados serão perdoados; àqueles que o rejeitam, depois de sua ressurreição,
não serão perdoados.
J. WELLHAUSEN, Das Evangelium Matthaei; 1914, p. 60 s.; R. BULTMANN,
Gesch. d. synopt, Tradition, 2a ed., 1931, p. 138, e alguns outros vêem na variante
de Marcos o texto original; a variante de Mateus e Lucas que fala de uma "blasfémia
contra o Filho do Homem" nasceu de uma falsa interpretação de uíot TWV àvxptúJtwv
de Mc 3.28. TH. PREISS, Le Fils de Vhomme, 1951, p. 31, tenta também aqui,
como faz com a palavra relativa ao sabat, explicar as duas versões, a de Marcos e a
de Mateus - Lucas, como concordantes com a intenção de Jesus: Jesus pensa sem-
pre, ao mesmo tempo, nos homens e em si mesmo, na qualidade de representante da
humanidade.
'A palavra de Mt 8.20 relativa ao "Filho do Homem que não tem onde repousar sua
cabeça" também foi interpretada desta maneira. R. BULTMANN, Gesch. d. synopt.
Tradition,2* ed., 1931,p.27 pensa em um antigo provérbio que fala de uma maneira
geral do homem, sempre errante sobre a terra. Sobre esta interpretação cr, também
abaixo, p. 214 s.
204 Oscar Cullmmw

por outro lado, não há diferença; assim, é possível que em tal ou


qual lugar se tenham equivocado na tradução do termo bamascha,
cujo sentido é equívoco.
Porém, talvez o próprio Jesus deu à expressão "Filho do Homem"
um duplo sentido; o que é bem possível, já que no livro de Daniel
o termo tem uma significação coletiva330 e já que, em virtude de
sua própria origem, supunha a ideia de que a humanidade perfeita
estava personificada no primeiro Homem.3-11 Voltaremos ainda a
este assunto; porém, se esta hipótese fosse tida como válida nós
não seríamos mais colocados, pelos textos que temos citado, dian-
te de uma alternativa rigorosa.
Tão numerosas são as palavras sinópticas em que Jesus apa-
rece designando-se como o "Filho do Homem" que não precisa-
mos mencioná-las todas. É demasiado simples e sumário afirmar
que os evangelistas foram os que puseram este título nos lábios
de Jesus, apoiando-se para isso na teologia da comunidade cristã.
Só um fato basta para tornar insustentável esta tese: a designação
de Jesus como "Filho do Homem" não é, de modo algum, corrente
no cristianismo primitivo. Este argumento, válido já para o título
de Ebed Iahweh,m é muito mais ainda no caso presente. Se fosse
certo que foram os evangelistas que introduziram o título de "Filho
do Homem", como se explica o fato de o empregarem somente

É, sobretudo, T. W. MANSON quem não parou de sublinhar, com razão, o sentido


coletivo, originado no livro de Daniel, que apresenta a ideia de Filho do Homem em
numerosos logia cie Jesus: The Teaching of Jesus, 2a ed., 1935, p. 231 ss.; The
Sayings of Jesus, 1949, p. 109. Cf. também o artigo citado mais acima, p. 202, nota
325. Segundo ele, Jesus designa pela expressão "Filho do Homem", ao mesmo tem-
po, a si mesmo e aos seus, considerados como o "povo dos santos do Altíssimo".
MANSON vai, talvez, um pouco longe demais na afirmação desta tese, justificada
em si quando por exemplo explica o segredo messiânico recorrendo à ideia de Filho
do Homem "coletivo'' ("Realized Escfiatology and ttie Messianic Secret", Studies
m the Gospe/s, In memoriam R. H. LIGHTFOOT, 1955, p. 209 ss). - Cf. também a
este respeito A. E. J. RAWLINSON, The New Testament Doctrine of the C/jmr,
3a ed., 1949, p. 247 ss. e os estudos citados mais abaixo, p. 206, nota 334.
Th. PREISS tentou levar esta ideia até suas últimas consequências, em seu estudo
citado mais acima, p. 203, nota 328.
Cf. acima, p. 86 s.
CRISTOLOGIA oo Novo TESTAME^O 205

quando é Jesus quem fala?333 Jamais o mencionam por si mesmos


c nenhum de seus interlocutores nunca dá a Jesus tal nome. Fato
este que seria inexplicável, se verdadeiramente eles tivessem sido
os primeiros a pô-lo nos lábios de Jesus. Na realidade, nos foi
conservada a lembrança precisa de ser somente Jesus quem se
autodenomina desta maneira.

E o que faz ressaltar, entre outros, W. Manson, Jesus the MessUih,


1946, p.160, e G. Kittel, art. "Menschensohn" (RGG1 t. III, col. 2119).
Este últinio propõe com razão esta pergunta: "Por que a tradição não fez
Pedro dizer, por exemplo, quando do diálogo de Cesaréia de Filipe, o
que teria sido a fé da comunidade: Tu és o Cristo, o Filho do Homem?'

Temos de distinguir aqui duas categorias de falas de Jesus:


aquelas em que se atribui o título de "Filho do Homem", pensan-
do em sua obra escatológica a ser realizada no futuro; e aquelas
cm que o faz pensando em sua missão terrestre. As primeiras cor-
respondem à noção que encontramos em Daniel, no Apocalipse
de Esdras e no livro de Enoque: inegavelmente, é um título de
majestade. Temos visto, com efeito, que já nos meios judaicos o
termo "Filho do Homem", tomado neste sentido, designava a máxi-
ma função escatológica. Jesus, pois, se auto-atribuiu, para o fim
dos tempos, o papel mais elevado que se possa conceber e é quase
certo que (como em Dn 7.13, onde este título é empregado coleti-
vamente), ao dar-se Jesus este título, tem consciência de represen-
tar, em sua pessoa, o "remanescente de Israel" e, por meio deste

m
Este argumento não se debilita pelo fato de que em certas passagens, entre as quais
certamente Mt 16.13, o fazem equivocadamente. Uma só vez, em At 7.56, o título
de "Filho do Homem" é aplicado a Jesus por outro', por Estevão. Por ser justamente
um "helenista" quem emprega esta expressão, parece-nos que se trata de uma lem-
brança exata do autor. Temos, em demasia, o costume de não estimar em seu justo
valor o papel dos "helenistas". Do ponto de vista que nos ocupa - e também de
outros pontos de vista - eles nos parecem pertencer a estes meios judaicos cujas
opiniões e crenças o próprio Jesus compartilhou. Cf. O. CULL.MANN, La Samarie
et les origines de la mission chéúeniie (A/muaire de VEcole pratique des Hautes
Etudes. Paris, 1953, p. 3 ss); e também abaixo, p. 241 s.
206 Oscar Cutlinatm

"remanescente", a humanidade inteira.334 Pois na passagem de


Daniel, na qual Jesus se refere expressamente diante do sumo sacer-
dote, o termo "Filho do Homem" se aplica ao povo dos santos.335
No entanto, é a figura de um Salvador individual a que está em
primeiro plano, e é a que se depreende também do Apocalipse de
Esdras e do livro de Enoque.336 Porém, já temos visto que, no
pensamento judaico, uma não exclui a outra.
É ao Filho do Homem que há de vir que se referem as pala-
vras sobre os "dias do Filho do Homem" (Lc 17.22 ss.) e sobre o
"advento do Filho do Homem" (Mt 24.27 e 37 ss.), sobre sua vin-
da "na gloria de seu Pai com os santos anjos" (Mc 8.38). Pode-se,
é verdade, reconhecer a autenticidade destas palavras sustentando
que Jesus, ao pronunciá-las, não pensa em si mesmo, mas em
outro "Filho do Homem": porém, esta explicação esboça mais pro-
blemas do que resolve.337
A palavra que, sobretudo, merece ser levada em considera-
ção é a que Jesus pronuncia diante do sumo sacerdote (Mc 14.62

" 4 T. W.MANSON, The Teaching of Jesus, 2aed., 1935, p.227 ss., põe em relevo este
aspecto (rapidamente recusado por E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 239,
nota 1); igualmente V. TAYLOR, Jesus andhis sacrifice, 1948, p. 24 ss.; e também
M. BLACK {Expôs. Times, 6.0, 1949, p. 33 s.). F. KATTENBUSCH, "Der Quellort
der Kirchenidee" (Festgabe f. A. Hnmack, 1921, p. 143 ss.) tirou consequências
importantes para a ideia de igreja em Jesus.
í,5
Cf. acima, p. 184.
,,w
Sobre a tese insustentável de MESSEL, segundo a qual o Filho do Homem, no livro
etíope de Enoque, seria uma figura coletiva, cf. acima, p. 185 s.
" 7 É assim que R. BULTMANN, Theol. d. NT, 1953, p. 26 ss.. está disposto a considerar
estas palavras como autênticas; porém, à questão de saber se Jesus se identifica a si
mesmo com o Filho do Homem anunciado, responde negativamente. O argumento
decisivo, segundo ele, é o seguinte: as profecias de Jesus relativas a seu sofrimento
não dizem nada sobre o porvir; as profecias relativas ao porvir não dizem nada acerca
de sua morte. A ideia de que o Salvador deva morrer seria, pois, inconciliável com
a esperança do Filho do Homem; e o Filho do Homem escatológico, esperado por
Jesus, não poderia, portanto, ser identificado com um homem que já tivesse apare-
cido sobre a terra. Só a igreja, para a qual a morte de Jesus era um fato consumado,
pôde estabelecer uma relação entre as duas séries de declarações e identificar o
Filho do Homem esperado com o Jesus sofredor. Porém, este juízo se fundamenta
na tese afirmada, sem provas, por BULTMANN, segundo a qual todas as pregações
de Jesus sobre os seus sofrimentos seriam Vaticinia ex eventu. Cf. acima, p. 87
CmsTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 207

par.) e que já estudamos no capítulo precedente ao falarmos acer-


ca do Messias.338 Recordemos que Jesus não aceita sem mais o
título de Messias e que talvez até o recuse, se na verdade as pala-
vras aramaicas "tu o dizes" contêm uma negação implícita. Em
todo caso - e temos dado uma importância muito particular a esta
afirmação - Jesus agrega imediatamente (em Mateus com um nXT\V
-porém, fortemente adversativo) uma declaração relativa não ao
Messias, mas ao Filho do Homem. Fala do Filho do Homem que
há de vir nas nuvens do céu nos mesmos termos que Daniel, asso-
ciando a isto a declaração do SI 110, relativa ao "Senhor" que se
senta à direita de Deus.339
A função essencial do Filho do Homem que vem (como já nos
livros judaicos antigos e particularmente no livro etíope de Enoque)
é o juízo. Na importante passagem relativa ao juízo final das "ove-
lhas e dos bodes" (Mt 25.31-46), sem dúvida o juízo é pronunciado
pelo Filho do Homem. Ocorre o mesmo em Mc 8.38 par., onde
semelhante aos anjos do judaísmo tardio, ele exerce a função de
testemunha contra aqueles que dele se envergonharam.340 A atribui-
ção a Jesus do juízo (que no Novo Testamento costuma atribuir-se
também a Deus) está diretamente relacionada com a noção de Filho
do Homem. Não temos necessidade de consagrar um capítulo espe-
cial a Jesus como "juiz": esta qualificação não representa senão um
aspecto da ideia de Filho do Homem.

Ainda que em Paulo, como nos demais escritos do Novo Testamen-


to, seja Deus, também, quem exerce o juízo (1 Ts 3.13; Rm 3.5; 14.10), o
apóstolo está, contudo, convencido de que "todos devemos comparecer

lls
Cf. acima, p. 156 ss.
-™E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 226, elimina rapidamente esta palavra como
não sendo autêntica, antes de tudo porque lhe parece impossível explicar, satisfatori-
amente, como esta declaração poderia ser considerada como "blasfémia". Esta ques-
tão se relaciona ao problema mais geral do aspecto jurídico do processo de Jesus.
Parece-me certo que aqui os Sinópticos (diferentemente do Evangelho de João) modi-
ficaram a situação jurídica real; porém, a autenticidade do título de Jesus não é, por
isso, afetada. Cf. também nosso estudo, Dieu et César, em partic. p. 44 ss.
•"0Cf. a este respeito TH. PREISS, op. cit., p. 36 s. e abaixo, p. 240 s.
20 8 Oscar Cutlmann

diante do tribunal de Cristo" (2 Co 5.10; cf. também 1 Co 4.5). É assim


que Jesus aparece tia qualidade de juiz, nas parábolas de Mt 25.1-13 e
14-30. Em At 10.42 Jesus ostenta o título de "juiz de vivos e mortos"; e
em 2 Tm 4.8, é chamado "o justo juiz". Em At 17.31 se encontra
estabelecida a conexão entre a antiga concepção segundo a qual Deus
mesmo exerce o juízo e a concepção - associada à ideia de Filho do
Homem - que faz de Jesus o juiz supremo: Jesus foi estabelecido juiz
por Deus; Ele julga, por assim dizer, em seu nome. Daí provém, talvez,
que Jesus, Filho do Homem apareça diante do tribunal ao mesmo tempo
como testemunha, por exemplo em At 7.56, onde Estêvão já não vê -
como de costume, conforme o Salmo 110- o Filho do Homem assenta-
do, à direita de Deus.341 De todas as maneiras, a Ele pertence a decisão
no juízo, já que toda soberania lhe tem sido dada, como proclama o hino
de Fil. 2.6 ss. Deste modo se chega à fórmula antiga inserida na confissão
de fé, segundo a qual "virá para julgar os vivos e os mortos" (2 Tm 4.1;
At 10.42; 1 Pe 4.5. Cf., também, Polyc. ep. 2..1 2 Clemen. 1.11)
Esta função de juiz, atribuída a Jesus, adquire particular importância
no Evangelho de João onde ostenta, por outro lado, a marca da concepção
joanina sobre o Juízo, porém, sem que se esqueça seu vínculo com a
escatologia. Isto surge da alusão ao "dia final" em João 12.48 (passagem
que junto com João 6.39,40,44,54, não pode ser simplesmente eliminada,
como gostaria Bultmann).M- Mas, mais interessante é João 5.27: "Deu-
lhe autoridade para julgar, porquanto é o Filho do Homem". Aqui tam-
bém a ideia cristológica de juízo, deixa raízes na de Filho do Homem.

A forma em que Jesus adotou e transformou esta ideia de


juízo mostra o que tem de novo em sua concepção de Filho do
homem. Tendo surgido como um homem entre os homens e, nessa
condição, assumido o papel de Ebed Iahweh é, ao mesmo tempo,
o Filho do Homem que há de julgar o mundo; a ideia de juízo
recebe aí um caráter novo e profundamente diferente, ainda que se
conserve o quadro escatológico. Por um lado, o juízo está, desde
então, estreitamente vinculado à obra expiatória do Servo de Deus;
por outro, o veredicto a ser pronunciado pelo Filho do Homem se
baseará na atitude dos homens para com os seus semelhantes, na
pessoa dos quais Jesus, o Filho do Homem, está presente.

Cf. também C. F. D. MOULE, SNTS Bulletin, 3, 1952, p. 46 s.


Cf. R. BULTMANN, Das Johaniiescvangelium, 1950, aá. loc.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 209

Vê-se isso de forma impressionante no relato do juízo final


de Mt 25.31 ss.: "Eu afirmo que, quando vocês fizerem isso ao
mais humilde dos meus irmãos, de fato foi a mim que fizeram."
A alternativa entre uma significação individual e uma significa-
ção coletiva de Filho do Homem desaparece.-143 É aqui que a ideia
de Filho do Homem-juiz adquire toda sua profundidade, no senti-
do de que quem tem de julgar é Jesus; ao mesmo tempo, homem
encarnado, Servo de Deus que sofre substitutivamente e "homem
futuro".344 A relação entre o "homem futuro" e o "homem" encar-
nado é aqui tão estreita quanto possível.
Isto nos leva a pôr a tão discutida questão de saber se Jesus
pôde ou não atribuir a si mesmo a função de Filho do Homem,
pensando em sua vida e obra terrenas. O que temos dito acerca da
ideia de juízo já contém, implicitamente, uma resposta afirmativa.
Há quem pense que Jesus não pôde falar de sua função de Filho do
Homem, salvo no seu sentido escatológico, posto que se apoiava
no livro de Daniel, onde o Filho do Homem só aparece em relação
ao fim dos tempos. Porém, seria um erro afirmar que o ensino
cristológico de Jesus concorde inteiramente com as concepções
judaicas. Muito pelo contrário, sua convicção de haver-se inaugu-
rado com sua pessoa o reino de Deus devia, necessariamente, acar-
retar consequências para esta auto-aplicação da ideia de Filho do
Homem. Mesmo aquelas noções que no judaísmo tinham caráter

13
Em relação ao trecho que nos ocupa, T. W. MANSON, The Sayings of Jesus, 1949,
p. 249 ss. destacou muito este elemento; cf. acima, p. 204, nota 330, J. A. T.
ROBINSON interpreta diferentemente: "The Parable ofthe Sheep and lhe Goats"
{NTS, 2, 1956, p. 225 ss.).
4
TH. PREISS, lamentavelmente falecido tão novo, dedicou-se ao aspecto "jurídico"
da ideia de Fiifio do Homem. Depois de sua morte, o esboço de um curso sobre o
problema do Filho do Homem foi publicado no opúsculo muitas vezes citado: Le
Fils de 1'Homme (Eludes Théol. et Relig., Montpellier), 1951 e 1953 (continuação).
Porém, o que havia de novo em sua maneira de encarar o problema não pôde ser
reproduzido senão no quadro de considerações gerais sobre a cristologia neotes-
tamentária: de sorte que, a este elemento novo, não se tem dado seu total valor.
É lamentável que não tenha podido levar seu estudo a bom termo. Segundo PREISS,
a identidade do Filho do Homem e os homens seria o grande "mistério" que não
teria sido revelado senão em Mt 25.31 ss.
210 Oscar Cullmarm

exclusivamente escatológico, deviam ser transpostas para o pre-


sente quando Jesus as aplicava a si, já que para Ele sua vinda
significava o começo do fim dos tempos. Tal é o que põe em
claríssima evidência a resposta de Jesus ao Batista (Mt 11.4 ss.).
"Ide, e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo...", ou ainda a
palavra de Mt 12.28, par.: "Se, porém, eu expulso os demónios
pelo Espírito (Lc: dedo) de Deus, certamente é chegado o reino de
Deus sobre vós." - e muitas outras declarações mais.345
Daí que Jesus, durante sua encarnação terrena, pudesse se auto-
designar como "Filho do Homem", mesmo que não tenha descido
à terra "nas nuvens do céu". Ideia nova é esta da encarnação do
Filho do Homem, feito no seio da humanidade um homem entre
os homens, tanto no que concerne a Daniel ou Enoque, como a
Fílon: até agora, não se descobriu traço algum dela em nenhuma
parte do judaísmo.
Verdade é que Jesus nunca faia de uma "segunda" vinda
do Filho do Homem.346 Nos Sinópticos nunca diz: "Eu voltarei".
Ao fazer sua, a esperança judaica, fala unicamente da "vinda", da
"parusia", do Filho do Homem. Não dá, tampouco, o nome de
"parusia" à sua aparição sobre a terra, a seu nascimento; por esta
expressão estar demasiado ligada á ideia de gloria messiânica. Não
especula sobre sua preexistência; nem sonha em falar de sua
encarnação, nem situá-la paralelamente à parusia, como se have-
ria de fazer mais tarde. Nem tampouco nos informa sobre a passa-
gem de sua vida humana e terrena - que será coroada por sua mor-
te-para a parusia.347 E, no entanto, certamente concebeu sua dupla
missão (presente e futura) como unidade indivisível, se se admite
que considerou a si mesmo como o Ebed Iahweh.

Cf. W. G. KUMMEL, Verheisswtg und Erfullimg, 2a ed., 1953, em part, p. 98 ss.


Trata-sede uma segunda aparição, portanto de um retorno, em Hb. 9.28; cf. acima,
p. 136 ss. Mais tarde em JUSTINO, Dial. com Tryph. 14.8; 40.4.
Na resposta ao sumo sacerdote (Mc 14.62), rtãoé, ademais, somente Dn 7.13 queé
citado, mas também o SI 110, ao qual Jesus já se havia referido anteriormente (cf.
acima p. 173 s.). O "sentar-se à direita de Deus" constituía, também, um laço tem-
poral entre a vida terrena de Jesus e sua vinda no final dos tempos; embora, de
acordo com o logion, não seja contemplado senão no fim.
CfUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 211

O título de Filho do Homem, quando Jesus o aplica a sua


missão terrena, expressa, também, sua humilhação. Em outros ter-
mos: pôde Jesus, em certos momentos decisivos, relacionar estrei-
tamente o título de "Filho do Homem" e os sofrimentos do Ebed
Iahweh. Pensemos na clássica passagem em que Jesus exclamou:
"O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate por muitos" (Mc 10.45). Ou naquela
outra: "É necessário que o Filho do Homem padeça muito e seja
rejeitado pelos anciãos, pelos principais dos sacerdotes e pelos
escribas e ser morto" (Mc 8.31). Nesta pregação Jesus emprega o
título de "Filho do Homem" e lhe associa a ideia348 de Servo
sofredor de Deus. Esta associação, de importância fundamental
para a consciência que Jesus tinha a respeito de si, se expressa
também na declaração citada em Mc 2.10: "O Filho do Homem
tem sobre a terra autoridade para perdoai' os pecados".34í>

Cabe perguntar por que Jesus não preferiu simplesmente o título de


Ebed Iahweh e não subordinou ao mesmo a ideia de Filho do Homem.350
De fato, das duas, a noção de Filho do Homem é a mais exaustiva, por-
quanto se relaciona, por um lado, à obra futura de Jesus; e por outro, à obra
de Jesus encarnado, em cujo caso a sua humanidade está referida. Entende-
se, pois, a subordinação da ideia de Ebed Iahweh à de Filho do Homem.
Em Jesus, a missão do Ebed Iahweh converte-se, em certo sentido, no con-
teúdo essencial da obra terrena do Filho do Homem. Desde o momento em
que a noção de Filho do Homem se aplica a uma vida terrena (o que, como
já o temos dito constituiria uma total inovação no desenvolvimento desta
noção) ambos os títulos cristológicos capitais: Filho do homem e Servo
sofredor de Deus deveriam forçosamente, encontrar-se.

Portanto, as duas noções, a de Filho do Homem e a de Ebed


Iahweh, já existiam no judaísmo; porém, o realmente novo é que

348
Portanto, não somente o título em 4 Esdras e Enoque.
348
Se pensarmos que devemos sempre levar em consideração a significação coletiva
de "Filho do Homem", o trecho deMt 18.18 ss., no qual Jesus dá a seus discípulos
o pleno poder de ligar e desligar "sobre a terra", se esclarece a nossos olhos. Cf. TH.
PREISS,i* Fils de 1'komme, 1951, p. 27.
VM
Cf. também a este respeito W. MANSON, Jesus the Messiah, 1946, p. 156 s.
Í]2 Oscar Culhnann

Jesus as tenha reunido, que tenha misturado ambos os títulos, o


primeiro dos quais expressa a majestade mais soberana que se pode
conceber, enquanto que o outro é a expressão da humilhação mais
profunda. Mesmo admitindo-se que o judaísmo já conhecia a ideia
de um Messias sofredor é impossível demonstrar que tal sofri-
mento tenha sido associado à imagem do homem celestial que vem
nas nuvens do céu.351 Temos aí a obra absolutamente nova, consu-
mada por Jesus, de haver reunido em sua consciência as duas
vocações aparentemente contraditórias, e de haver expressado sua
unidade por seu ensinamento e por sua vida.
No entanto, uma condição prévia importante para esta vincula-
ção já existia no judaísmo, no sentido de terem em comum, o
bamascha e o Ebed Iahweh, a noção de substituição: o "Fiiho do
Homem", segundo sua significação mais profunda, expressajá pelo
próprio termo, representa a humanidade (segundo Daniel, o "povo
dos santos"), e o Ebed Iahweh representa o povo de Israel. Em
uma e outra figura a coletividade é representada por um indivíduo.
No capítulo sobre o Servo de Deus demonstramos como todo o
sentido da história da salvação reside nesta ideia. Ela encontra sua
expressão nos títulos cristológicos mais importantes.
Já vimos que Jesus opôs a ideia de Filho do Homem à de
Messias nos momentos decisivos de sua vida, para expressar a
consciência que tinha de si mesmo: em Cesaréia de Filipe, onde é
ele quem formula a seus discípulos a pergunta "cristológica",352 e
diante do sumo sacerdote, onde é a ele a quem se faz a pergunta.
Verdade é que em Cesaréia de Filipe trata-se de sua obra terrena, e
diante do sumo sacerdote trata-se de sua obra futura. Em Cesaréia

Em 4 Esdrase no livro etíope de Enoque as relações entre o Filho do Homem e o Ser-


vo de Deus são puramente formais e não concernem ao sofrimento. Cf. acima, p. 190.
Segundo E. PERCY, Die Botschaft Jesu, 1953, p. 227 ss. (e também segundo R.
BULTMANN, Gesch. d. Synopl. TradUion, p. 276), este relato não deveria ser con-
siderado como histórico. É verdade que PERCY - diferentemente de BULTMANN
- crê que Jesus se considerou ser o portador escatológico da salvação. Porém, não
encontra a prova senão em Mt 11. 4 ss. par. (resposta ao Batista); Mc 2.19 s. (pala-
vra do esposo); e ainda em Mt 10.35 e Mt 12.41 s. par.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEÍ^TTO 213

de Filipe o termo "Filho do Homem" expressa, pois, sua humilha-


ção, enquanto que diante do sumo sacerdote expressa sua sobera-
nia. Porém, o fato de que, em ambos os casos, Jesus oponha ao
título de Messias o de Filho do Homem, prova justamente que para
ele tratava-se de dois aspectos diferentes de uma mesma função.
Na antiga dogmática se opunha frequentemente o "Filho do
Homem" ao "Filho de Deus". Do ponto de vista do dogma "verda-
deiro Deus e verdadeiro homem", proclamado mais tarde, a quali-
ficação de "Filho do Homem" era considerada como expressando
unicamente a natureza "humana" de Jesus, por oposição a sua natu-
reza "divina". Não se conhecia, então, as especulações judaicas
relativas à figura do Filho do Homem e não se percebia que Jesus,
ao aplicar-se este título, conferia a si mesmo um caráter celestial,
até divino. Reagindo contra esta errada interpretação, muitos dos
atuais exegetas d o N o v o Testamento afortunadamente sublinham
UVJ
u.iu«io L A V ^ U U n V * " i v j m i i i w i i u , aiiriiuiiuuuiiiwii.1., auuniiiituu
a pretensão à soberania que supõe a adoeão deste título por parte
de Jesus. Porém, talvez vão demasiado longe neste sentido; pois é
possível que a antiga utilização do título "Filho do Homem" con-
tenha um elemento de verdade. Certamente a ideia de "Natureza"
é forânea a Jesus. Porém nos parece que ao adotar este título igual-
mente para sua vida terrena, Jesus quer por em relevo sua humi-
lhação. No instante em que se admite que o Filho do Homem se
encarne que deva sofrer muito e ser morto a ideia de humilhação
- consequência da encarnação do homem celestial - se impõe neces-
sariamente ao espírito Encontramos também esta ideia na base
do hino de Fl 2 6 ss do qual nos ocuparemos no'parágrafo seguinte
Aqui nos limitamos a sublinhar que Jesus ao aplicar a sua obra
terrestre o título de Filho do Homem alude também a sua humi-
lhação Há uma confirmação disso' nas palavras de Mt 8 20:
" A s r i n o s a s têm covis e as aves d o céu têm ninhos mas o Filho
Mi
do Homem não tem onde reclinar a cabeça. Igualmente em

'Para outra explicação (se se tratasse de homens em geral), cf. acima, p.203, nota
329. E também possível reunir as duas explicações como o tem feito igualmente
aqui TH. PREISS, op. cit., p. 29 (e também para Mt 11.19, cf. ibid., p. 30), já que
Jesus tem consciência de representar a humanidade.
214 Oscar Cullmann

Mt H.19 a palavra relativa ao Filho do Homem que "veio comen-


do e bebendo" tem de ser tomada no mesmo sentido.
Veremos que, ademais, Jesus se considerou como "Filho de
Deus". Em consequência, o emprego do título "Filho do Homem",
a despeito da pretensão à soberania que supõe, deveria necessari-
amente evocar a ideia de humilhação.-354 O sentido etimológico de
"homem" por oposição a Deus, não pôde ser, com efeito, inteira-
mente suplantado pelo sentido técnico tirado da dogmática escatoló-
gica; e tanto mais pelo fato de que Jesus tinha consciência de achar-
se em uma relação muito particular, única, com Deus. Ao identificar
em sua pessoa o "Filho do Homem" celestial e o Ebed Iahweh
sofredor, não pôde ignorar todas as passagens do Antigo Testa-
mento, e particularmente os Salmos, em que a expressão ben-adam
(filho do homem), indica a debilidade, a precariedade do homem
frente ao poder de Deus.
É necessário recordar aqui, ademais, que a ideia de Filho do
Homem como a de Ebed Iahweh supõe a noção de substituição:
"o homem" representa "os homens" e ele, na qualidade de Filho
do Homem, participa, por conseguinte, da debilidade deles.
Creu Jesus em sua preexistência? Temos visto que os textos
judaicos não mencionam uma encarnação do barnascha, mas
somente sua aparição em gloria, no final dos tempos; e, no entan-
to, admitem sua preexistência. Como as ideias judaicas eram, por
certo, familiares a Jesus, pode-se perguntar se ele refletiu sobre a
sua própria preexistência. Esta questão, que voltaremos a encon-
trar no capítulo relativo a Jesus Filho de Deus, se põe já a propósi-
to do título Filho do Homem. Na verdade, aqui é difícil respondê-
la. A fórmula quase técnica de "o Filho do Homem veio..." poderia,
no entanto, nos permitir supor uma resposta afirmativa.
Tampouco Jesus disse algo acerca de sua relação com Adão,
salvo uma vez em que parece expressar a convicção de uma cor-

Segundo W. MANSON, Jesus the Messiah, 1946, p. 159 s. Jesus opõe também o
"Filho do Homem" ao "Filho de Deus", e isto no relato da tentação, onde o diabo
disse: "Se tu és o filho de Deus", e onde Jesus responde com Dt 8.3: "não só de pão
viverá o homem." O Targwn de Jonathan escreve aqui, para "homem", barnascha.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 215

rupção geral da humanidade, quando disse: "Vós sendo maus..."


(Mt 7.11). Porém, não se poderia interpretar esta palavra no senti-
do de uma especulação sobre a origem do pecado. No máximo
podemos supor que ao qualificar-se como "Filho do Homem", de
uma ou outra maneira, pôs sua obra em relação com a criação do
homem e, talvez, inclusive com Adão. Com efeito, se ao empregar
este título para designar sua pessoa e sua função, pensou, por um
lado, no Filho do Homem que vem sobre as nuvens do céu e, por
outro, em sua primeira vinda, para sofrer e morrer em lugar dos
homens é possível admitir que contemplasse sua obra em relação
à criação do homem "à imagem de Deus". Em todo caso, na base
do relato sinóptico da tentação de Jesus se encontra a ideia de uma
oposição entre a desobediência de Adão e a obediência de Jesus,
diante da tentação diabólica.
Chegamos assim à seguinte conclusão: Jesus - abstração fei-
ta de duas ou três passagens em que é possível que esta expres-
são designe todos os homens - expressou pelo título "Filho do
Homem" sua convicção de haver realizado a obra do homem
celestial. E isto de duas maneiras: por um lado, no fim dos tempos
na gloria conforme a esperança de certos meios judaicos; e por
outro, na humilhação da encarnação no seio da humanidade peca-
dora (ideia alheia a todas as concepções anteriores acerca do
"Filho do homem"). Quanto à relação que Jesus estabeleceu entre
si mesmo, na qualidade de "Filho do Homem", e o "primeiro
homem", só se pode arriscar, neste momento, conjecturas.

3. A CRISTOLOGIA DO FILHO DO HOMEM FOI APRE-


SENTADA DE UMA MANEIRA PARTICULAR NO SEIO
DO CRISTIANISMO PRIMITIVO?

Já vimos que a cristologia do Filho do Homem não é a dos


evangelistas sinópticos. Embora a expressão "Filho do Homem"
apareça mais frequentemente nos três primeiros Evangelhos que
em qualquer outro escrito cristão primitivo (aparece 69 vezes) não
expressa a fé pessoal de seus autores em Jesus. Para eles, Jesus é o
2lfi Oscar Culhnann

"Cristo"; onde lemos "Filho do Homem" - sempre na boca de


Jesus - trata-se de uma tradição existente antes deles, a qual sim-
plesmente reproduzem. Quais eram pois, no cristianismo primi-
tivo, aqueles círculos que viam no título "Filho do homem" - j á
tão importante para Jesus - a solução do problema cristológico?
Lohmeyer, em sua importante obra: Gahlãa und Jerusalém, 1936,
busca resolver esta questão pela geografia. Houve na Palestina -
sustenta - em essência, dois cristianismos primitivos: o galileu e o
hierosolimitano. Daí surgem duas tradições, assim como duas cris-
tologias, cada uma das quais tem uma origem geográfica distinta.
A da Galileia: a cristologia do Filho do Homem (e do Kyrios); e a
de Jerusalém: a cristologia do Messias.
Lohmeyer, certamente, tem razão quando distingue diferentes
correntes no seio do cristianismo palestino primitivo. Temos subli-
nhado, já em muitas ocasiões, a extrema variedade que o judaísmo
palestino apresenta.. Os textos de Qumran recentemente confirma-
ram esta opinião. E muito provável que também haja variedade
análoga no seio do cristianismo palestino primitivo. A distinção
corrente Pa\esúna.-diáspom é éfetiva e endubiiavelmente insufici-
ente. Porém, não cremos que a delimitação de diversos grupos no
interior da Palestina possa ser feita, como o propõe Lohmeyer,
utilizando-se de um critério geográfico. Uma repartição esque-
mática das crenças cristãs primitivas entre Galileia e Jerusalém
é um tanto fictícia e arbitrária, e mal pode apoiar-se nos textos.
Não encontramos, na tradição cristã primitiva, mais que uma
divergência onde atua a oposição geográfica Galileia - Jerusalém;
a saber: nas aparições do Ressuscitado. Porém, nada nos permite
estabelecer análoga distinção no domínio das crenças cristológicas
Por outro lado, encontramos em Jerusalém, no seio da comu-
nidade primitiva, o grupo dos helemstas, ao qual se deveria con-
ceder muito mais importância, para o estudo das origens do cristi-
anismo, do que a que se costuma dar usualmente,355 no estudo das

Em nosso artigo sobre a importância dos textos de Qumran para o estudo da litera-
tura cristãprimitiva (Positions luthériennes, 4, 1956, p. 5 ss.;cf. acima, p. 84, nota
V^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 217

origens do cristianismo. O helenismo - ou mais exatamente: o sin-


cretismo oriental helenístico - não existe somente fora da Palesti-
na. Desdenhar este fato em favor de uma concepção excessiva-
mente esquemática acarreta muitas vezes uma localização muito
prematura dos escritos cristãos primitivos: pensemos, por exem-
plo, no Evangelho de João.
Temos que relacionar a questão dos "helenistas" palestinos
com a da cristologia do Filho do Homem. Sobre outros pontos -
por exemplo: a atitude frente ao Templo - eram eles mais fiéis que
outros grupos ao ensinamento de Jesus.356 Não terão sido também
mais fiéis que os Sinópticos à consciência que Jesus tinha de sua
própria pessoa e de sua obra? Porém, dado que sua maneira de
compreender o evangelho não era a predominante no seio da
comunidade primitiva, não possuímos senão magros indícios de
suas opiniões peculiares. No entanto, não devemos perder de vista
estes indícios.
No judaísmo - já o temos visto - a esperança no Filho do
Homem já era tida em certos meios esotéricos quase como uma
doutrina secreta. Jesus deve ter entrado em contato, de uma manei-
ra ou outra, com estes meios. Não será possível que, duran-
te sua vida, alguns de seus discípulos fossem provenientes daí?
O grupo dos "helenistas" não se formou, por certo, subitamente e,
por assim dizer, ex-nihilo, depois da morte de Jesus. Suas origens
remontam, muito provavelmente, à época da vida terrestre de Jesus.
Assim se abrem certas perspectivas susceptíveis de projetar uma
nova luz sobre as relações entre certas correntes do cristianismo

130) emitimos a hipótese de que as relações entre a seita de Qumran e o cristianis-


mo primitivo passariam por estes "helenistas"'. 'EM/nviaTcá não designa os judeus
que "falam grego", mas aqueles que vivem à maneira grega: como, igualmente, para
'EppocTov não se pode citar um texto que prove de uma maneira certa que se tratava
somente de uma designação linguística. Sobre a questão dos "helenistas" em Atos
dos Apóstolos, cf. JACKSON-LAKE, The Beginníngs ofChristiamtv, vol. V. 1933,
p. 59 ss. Sobre o conjunto da questão, cf. abaixo, p. 239 ss.
'^Cf. O. CULLMANN, IM Samarie et les origines de la mission chrétierme (Annuaire
de VEcoh pratique des Haittes Eutdes, Paris, 1953, p. 3 ss). Cf., ademais, o arligo
citado na nota precedente.
2.18 Oscar Cuitmaim

primitivo e esses círculos esotéricos Judaicos.357 O termo "helenis-


tas" se explicaria então muito simplesmente pelo fato de não exis-
tir então outra expressão com que designar o judaísmo "sincrético-
helenístico".
Limitamo-nos, no entanto, neste parágrafo, a esboçar a ques-
tão. Antes de buscar resolvê-la, armando-nos de toda a prudência
necessária, estudaremos os caracteres que apresentam, nos diver-
sos escritos neotestamentários, à parte os Sinópticos, as concep-
ções relativas ao "Filho do Homem".

4. A NOÇÃO DE "FILHO DO HOMEM" SEGUNDO O APÓS-


TOLO PAULO

Começaremos com o apóstolo Paulo, em quem encontramos


acristologia mais desenvolvida do cristianismo primitivo; no entan-
to, o título de "Filho do Homem" não aparece em seus escritos -
ao menos na forma em que nos é familiar nos Evangelhos. Das
duas noções judaicas que têm suas raizes comuns na ideia de "pri-
meiro homem", Paulo parece não ter conhecido senão aquela que
se refere a Adão. Com efeito, é especialmente neste aspecto do
problema que ele se interessa. Contudo, a teologia e a cristologia
paulinas estão tão profundamente banhadas na escatologia que
Paulo chama ao "segundo Adão" o "último Adão" (ó £ox«.xoç
'Aôáu., 1 Co 15.45) ou o "Adão que há de vir" (ó u.éX,Xtov, Rm
5.14). Ainda se suas declarações, relativas ao "homem", não con-
têm nenhuma alusão direta a Daniel 7, nem por isso deixam de
participar na crença segundo a qual o Cristo há de vir nas nuvens
do céu. Em 1 Ts 4.17 escreve que "nós seremos arrebatados junta-
mente com eles nas nuvens para o encontro do Senhor nos ares, e
assim estaremos para sempre com o Senhor". Esta esperança deve

,57
Cf. nossos artigos citados p. 142 sobre os textos de Qumrane ainda particularmente
nosso estudo "Secte de Qumran, Hellénistes des Actes et IV e Evangile", na obra
coietiva Les manuscrits de la mer Marte; COLLOQUE DE STRASBOURG, 25-27
mai./1955, Paris, 1957, p. 61 ss., no qual expusemos nossa tese detalhadamente.
CRISTOLOGIA DO NOVO XBSTAMENTO 219

ter sua origem em Dn 7.13, onde o Filho do Homem vem "nas


nuvens".
No entanto, o interesse de Paulo se concentra primordialmente
no homem celestial encarnado, no "segundo Adão". É que Paulo
pode olhar para trás, em direção ao "Filho do Homem" que já
apareceu. Porém, dá também grande importância à relação entre o
Encarnado e o "último homem" que há de vir no fim dos tempos.
Vê-se isto claramente nas passagens de 1 Co 15.45ss. que teremos
de comentar logo, cujo quadro é totalmente escatológico.
Paulo trouxe a solução cristã ao problema judaico da relação
entre o Filho do Homem e Adão, de maneira totalmente em acor-
do com a consciência que Jesus tinha de si mesmo. Parte, por cer-
to, de especulações judaicas cuja finalidade, segundo temos visto,
era tornar possível a identificação (em si irrealizável) do Filho do
Homem com Adão. Porém, ao mesmo tempo, assinala o caminho
que permite superar estas especulações. O elemento absolutamen-
te novo é que, antes de tudo, o Filho do Homem se vê identificado
com um homem histórico que viveu sobre a terra em um momen-
to determinado da história do mundo. Portanto, já não se trata do
eterno retorno do homem celestial, ensinado por certos meios
judeu-cristãos, nem tampouco do mito gnóstico da descida à terra
de um ser celestial disfarçado de homem. Tudo isto fica superado.
Porém, de fato, a relação entre o Filho do Homem e Adão assume
um aspecto cabalmente distinto.
Para compreendermos perfeitamente a originalidade da solu-
ção paulina do problema, temos de conhecer e ter constantemente
presente a teoria dos "dois homens", desenvolvida por Fílon de
Alexandria e que já foi exposta acima.
Três passagens merecem aqui reter especialmente nossa aten-
ção: 1 Co 15.45 ss.. Rm 5.12-21 (passagem já ciiada no capítulo
consagrado ao Servo de Deus);353 e enfim, Fl 2.5-11 (este hino já
estudado também, a propósito do Servo de Deus).359

Cf. acima, p. 106 s.


Cf. acima, p. 106 s.
220 Oscar Cullmann

Começaremos por 1 Co 15.45-47: "O primeiro homem, Adão.


foi feito alma vivente; o último Adão, espírito vivificante. Mas
não é primeiro o espiritual, senão o animal, e depois o espiritual.
O primeiro homem, sendo da terra, é terreno, o segundo homem é
do céu". Parece-nos haver aqui clara alusão polémica a uma dou-
trina muito análoga à de Fílon. Como tomou Paulo conhecimen-
to dela? Leu-a no próprio Fílon, talvez em um de seus tratados?
Não é muito provável. Poder-se-ia, de preferência, admitir que teve
conhecimento destas coisas nos meios rabínicos, pesando-se o fato
de não haver, na literatura rabínica, texto antigo em que ela se
encontre.360 Fílon não foi o único, por certo, a defendê-la.
Seja isso como for, parece-nos certo que Paulo parte desta dou-
trina testemunhada em Fílon,íúl ao mesmo tempo em que a com-
bate em todos os seus pontos essenciais. Ele fala de um "primei-
ro" e de um "último" Adão: 7rpccTroç e êa%ocTo<; 'Aôáu. No demais,
não encontramos em nenhuma outra parte a expressão "último
Adão". Paulo, portanto, a criou simplesmente por analogia com o
Ttpóòxoç 'Aôáu.. Nesta antítese ela deve ter a mesma significação
que "segundo homem", ôeíiTEpoç ávOpomoç, expressão que lemos
no v. 47: ó ôewepoç avGpcoTtoç è£, oúpavoí). É patente aqui a
relação entre o "homem" encarnado e o "homem" futuro. O v. 48
explica porque aparecem neste capítulo, sobre a ressurreição, estas
considerações. Trata-se da relação escatológica entre o caráter
celestial do Filho do Homem e os homens que lhe pertencem.
Paulo retoma, assim, a teoria do homem celestial, porém, iden-
tifica este com um personagem histórico, Jesus de Nazaré: neste
ponto a relação com a tradição judaica se torna nítida. Mas, que
dizer quanto à identificação do homem celestial com Adão e, por-
tanto, do problema particular posto ao pensamento judaico? Neste
ponto Paulo se separa deliberadamente da doutrina Filoniana à

'"Cf. STR.-B1ILLERBECK, III, p. 478. - Quanto à possível existência de tradições


mais antigas cf. acima, p. 198, nota 322.
11 É também a opinião de J. HÉRING, Laprimière Epitre de Saint Paulaux Cormthiens,
\9A9,fií/. loc; cf. também, do mesmo autor, Le Royawne de Dieuetsa venue, 1937,
p. 153 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 221

qual ataca expressamente. O v. 46 o mostra com clareza: não é o


espiritual, xò jcvEvpaTiKÓv, o primeiro (isto é, não é o "último
Adão" paulino) senão o animal, TÓ XIÍ^XVKÓV, ou seja, o primeiro
Adão; só depois vem o espiritual. É evidente que esta frase carece
de sentido, a menos que Paulo pense em uma doutrina que afirma
precisamente o que ele nega.
Em outros termos, o homem celestial não deve ser identifica-
do (como em Fílon) com o primeiro homem criado, nem mesmo
sob a forma atenuada que esta identificação toma em Fílon. A ori-
ginalidade do pensamento de Paulo consiste em que, se ele retoma
a doutrina do homem celestial e também relaciona este com o pri-
meiro homem criado, recusa, em troca, absolutamente sua identi-
ficação. No princípio o homem celestial não era precisamente o
primeiro homem da criação. Não há dois "primeiros homens" que
teriam sido criados no começo do tempo. Não há mais que um
Adão que foi o primeiro criado; e não há mais que um Adão que,
infiel a sua missão divina, transgrediu o mandamento de Deus.
Inversamente, o homem celestial ideal, o protótipo perfeito da
humanidade, não pertence à história da criação do homem relata-
da em Génesis; não é senão mais tarde, EJTÊITCÍ, que apareceu como
homem encarnado.362 A ordem cronológica de Fílon se inverteu.
Certamente Paulo crê, também, na preexistência do homem celestial.
Já vimos que no judaísmo, inclusive ali onde o Filho do Homem desem-
penha só um papel escatológico (como em Daniel, 4 Esdras ou Enoque),
sua preexistência é implicitamente admitida; e justamente aí se encontra
a relação entre as duas doutrinas: a puramente escatológica e a que acen-
tua a relação corri o primeiro homem.if>í Porém, não encontramos em
Paulo (como tampouco nos textos escatológicos do judaísmo) nenhuma

'2 K. BARTH, Christus itnd Adam nach Rom. 5. "Ein Beitrag zur Frage nach dem
Menschen und der Menschheit" (Theol. Stud. 35), 1952, não leva suficientemente
em consideração esta última determinação cronológica da relação entre Adão e Cristo.
Por outro lado, reconheceu e sublinhou a importância que representa para a antro-
pologia a teoria paulina Cristo - Adão. J. HÉRING demonstra muito bem as conse-
quências teológicas da doutrina Cristo-Adão, em seu estudo: "Les bases bibliques
d'um liumanisme chrétien" RHPR, 1945, p. 17 ss.
w,
Cf. acima, p. 198 s.
222 Oscar Culimattn

especulação relativa a esta preexistência; pára ele é um fato: o "segundo


Adão" vem do céu, onde está como a "imagem de Deus".
Como representar esta preexistência? O Novo Testamento respon-
de a esta pergunta partindo não da ideia de Filho do Homem, mas da de
Logos,M que lhe esta vinculada: o Evangelho de João nos diz, com efei-
to, que o Logos estava "com Deus".

Segundo Paulo, o homem celestial Jesus, não só não é idênti-


co a Adão, mas, pelo contrário, veio reparar a falta de Adão, isto é,
cumprir a missão que o primeiro homem não cumpriu. Paulo não
admite que haja dois "primeiros homens", dos quais o primeiro
seria o de Gn 1.27 e o segundo o de Gn 2.7. Para ele trata-se de um
só e mesmo Adão. Cita unicamente, é verdade, a Gn 2.7, onde se
diz que Adão foi formado do pó da terra e que Deus soprou em
suas narinas para convertê-lo em ser vivente. Porém, Paulo não
pensa, em nenhum momento, em opor esta passagem ao de Gn
1.27, que afirma ter sido criado o homem à imagem de Deus. Não
pode haver aí oposição pelo fato de Gn 1.27 não se referir a um
homem celestial, que mais tarde se encarnaria em Jesus: o Adão,
criado à imagem de Deus é o que caiu em pecado. Verdade é que,
segundo vimos, ao homem celestial Jesus, se lhe considerava preexis-
tente; porém para Paulo o relato de Génesis não contém alusão
alguma a este Jesus preexistente; como em todo o Novo Testa-
mento (exceto João 1.1 ss.), esta preexistência é mais implicita-
mente suposta que descrita. Na passagem que nos ocupa (1 Co
15.45 ss.) Paulo expressa, com meridiana clareza, a opinião de
haver aparecido o Filho do Homem pela primeira vez na terra na
pessoa de Jesus, ao cumprir-se o tempo antes do qual na terra só
existia o Adão pecador. Paulo representa o Filho do Homem como
o mediador da criação (1 Co 8.6; Cl 1.15). Em seu pensamento
não cabe, pois, a ideia de ter ele existido no começo como um "ho-
mem" criado e encarnado. Sua preexistência é anterior à criação.365

Cf. abaixo, p. 327 s..


Cf. a este respeito o que se diz mais abaixo, p. 231, sobre a ideia da "imagem de
Deus", EÍKÔV.
CíUSTOL0Gt& DQ NOVO TESTAMENTO 2TÍ-

No entanto, se houver uma identidade entre Adão e o Filho


do Homem Jesus, esta não reside em sua pessoa mas em sua mis-
são,366 a missão de representai" a imagem de Deus. Porém, no que
diz respeito à execução da missão, se opõem radicalmente um ao
outro: Adão foi infiel, pecou; e, por conseguinte, toda a humani-
dade se tornou pecadora; isto é, ela deixou de ser a imagem de
Deus. Um só ser é a exceção: o homem celestial que já existia
desde o começo e que não estava na terra e que não veio a ela
senão como "homem" encarnado muito mais tarde, EFEITO;.
Sua vinda à terra não está, no entanto, desprovida de relação
com o "primeiro homem", já que ele vem expiar o pecado deste.
Ainda que esta idéía não estejadiretamenteexpressa em 1 Co 15.45-
47 o está, ao menos, implicitamente. Por conseguinte, o "Filho do
Homem" se situa em uma dupla relação com Adão: positivamen-
te, partilha com ele a missão divina de representar a imagem de
Deus, negativamente, deve reparar a falta de Adão. Um e outro
aspecto são dignos de atenção.
* * *

Este aspecto "reparador" ocupa o primeiro plano em outra


passagem paulina onde voltaremos a encontrar a ideia de Filho do
Homem: Rm 5.12 ss. A resposta dada por Paulo ao problema de
Adão-Filho do Homem, ao qual o judaísmo não pôde dar uma
verdadeira solução, aparece aqui com nitidez. Com efeito, tentar
fazer recair o pecado dos homens não sobre Adão, mas sobre a
queda dos anjos (Enoque), ou negar pura e simplesmente a queda
de Adão (judeu-cristãos), ou ainda, defender uma solução inter-
mediária pelo desdobramento do "primeiro homem" (Fílon), não
resolveria o problema. Somente Paulo poderia apresentar uma ver-
dadeira solução já que, segundo ele, o Filho do Homem não se

s
KARL BARTH, no estudo citado mais acima, p. 221, nota 362, insiste sobre o fato
de que em Rtn 5, tudo o que se diz de Adão tião se torna compreensível senão à lux
do segundo Adão, do Cristo: ele tem razão no sentido de que, segundo Paulo, o
homem imago dei não apareceu verdadeiramente senão com Jesus.
'224 Oscar Cullmemn

limitou a meramente repetir o que já existia desde o princípio, mas


proporcionou algo radicalmente novo. Paulo contempla toda a his-
tória da salvação a partir do "homem" encarnado; chega a com-
preender o que é o "Filho do Homem" baseando-se na encarnação.
Em outras palavras, capta todo o alcance da encarnação do
homem celestial. Isto lhe permite manter a relação entre o Filho
do Homem e Adão no sentido já indicado, mas ao mesmo tempo
recusar categoricamente sua identificação: só no final dos tempos,
inaugurado pela vinda de Jesus, é que a semelhança do homem
celestial com Deus se tornará eficaz para a humanidade criada,
tanto na obra expiatória efetuada por seu pecado, como na trans-
formação do seu corpo de pecado em corpo de glória.
Os versículos que, em Rm 5.12, têm uma importância decisi-
va para a questão que nos ocupa são os seguintes: "Assim como
por um só homem o pecado entrou no mundo e pelo pecado
a morte, assim a morte se estendeu a todos os homens... (v.12).
Porém, não assim com o dom gratuito como a ofensa, pois se pela
ofensa de um só muitos morreram, com muito maior razão, a gra-
ça de Deus e o dom da graça vindo de um só homem, Jesus Cristo,
foram estendidos abundantemente sobre muitos... (v. 15). Assim,
como por uma só ofensa, a condenação alcançou a todos os
homens, da mesma maneira, por um só ato de justiça, a justifica-
ção que dá a vida, se estende a todos os homens. Pois assim como
pela desobediência de um só homem, muitos se tornaram pecado-
res, assim também, pela obediência de um só, muitos se tornarão
justos" (vs. 18, 19).?S7
Nestes versículos, o apóstolo insiste, sobretudo, na obra
expiatória realizada pelo homem Jesus. As noções de "Filho do
homem" e de Ebed Iahweh estão pois estreitamente vinculadas.

J. HÉRING, em seu Cominentaire (Cf. acima, p. 220, nota 361) e anteriormente jií
em Le Royaume de Dieu et sa venite, 1937, p. 155 ss., propõe traduzir £iç-etç por
"um-outro". Esta tradução não me parece impor-se: trata-se, com efeito, da oposi-
ção "um-muitos", e o apóstolo quer mostrar que esta mesma oposição aparece nos
dois casos, com Adão e com Jesus.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO _225

Poderia, à primeira vista, parecer arbitrário querer encontrar neste


texto uma alusão à ideia de Filho do Homem. É-nos necessário examinar,
pois, sobre que fundamento descansa tal confrontação estabelecida aqui
entre Adão e Cristo. O v. 14b diz acerca de Adão que é o TÍITCOÇ TOÚ
u,éXXovT,oç, portanto, do ecr^ccToç, do ôeútepoç 'ASáu.. Porém, é evi-
dente que em nosso texto esta noção, de "segundo Adão", tem a mesma
raiz que a ideia de Filho do homem. Esta terminologia não deve induzir-
nos aqui a conclusões erróneas. Verdade é que a expressão xúòç w ô
ccvôpíújtov não se encontra nestes versículos; porém, no v. 15 Jesus é
designado por estas palavras: eíç ôtv6pamoç 'ITICTOOÇ. Agora, sabemos
que entre os evangelistas a palavra simples av0pco7toç, assim como inòç
TOÍ> àvSprójtoT), ,raduz z mesmo oocábulo oramaico: :antascha. Neste
texto, que comentamos atites (1 Co 15.45 ss.), onde se trata do homem
celestial, Paulo emprega igualmente a palavra ctvepcúJtoç. Pois bem
ele nunca emprega a expressão rjíòç TOO àvQpá>nox>. Esta se encontra
somente nos Evangelhos, em Atos dos Apóstolos e no Apocalipse de
226 Oscar Cullntann

João.368 A razão é que os evangelistas, inclusive João, conservavam ain-


da a impressão de haver Jesus atribuído a esta expressão um sentido par-
ticular: a fim de que a expressão "Filho do Homem", que Jesus utilizou
para qualificar-se a si mesmo, não corresse o risco de confundir-se com a
palavra corrente para designar simplesmente ao "homem", empregam a
expressão "oiòç xov àv&pá>nox> quando lhes parece que Jesus lhe atribuía
um sentido cristológico. Porém, em Paulo não ocorre o mesmo; não se
poderá portanto deduzir daí que ele queira excluir a interpretação
cristológica do termo bamascha quando escreve somente ctv9píú7ioç.
Em 1 Co 15.21, também, (5i' ccvôpómov» àváotaoiç) deve-se tomar
bamascha em um sentido cristológico. A ideia (que sem dúvida já era de
Jesus) segundo a qual o "Filho do Homem" representa também a
humanidade é tão familiar ao apóstolo que, em grego, ele não estabelece
diferença entre o "homem", no sentido específico (Jesus), e o "homem"
em geral, como tampouco se faz em aramaico.

Compreendemos como Paulo pôde e precisou ver nesta jun-


ção das ideias de "Filho do Homem" e de Ebed lahweh a solução
do problema "Filho do Homem-Adão" que os judeus não tinham
resolvido. Estes dois conceitos têm em comum a ideia de substi-
tuição. A noção de "homem celestial" supõe absolutamente dita
ideia, e inclusive se baseia nela, já que o homem celestial tem por
missão salvar aos homens fazendo com que eles sejam o que ele
mesmo é: a imagem de Deus. Agora, os homens pecaram; Adão, o
primeiro homem, o representante de todos os homens, pecou e
este pecado tem que ser expiado. O homem celestial, o protótipo
divino da humanidade, a fim de poder livrá-la de seus pecados
tem de incorporar-se à humanidade pecadora.
Não basta que, como no gnosticisnio helenístico, para salvar os
homens, o homem celestial desça à terra e logo suba ao céu (cf. por exem-
plo, o Hino dos Naasenianos segundo Hipólito, Philos, V, 6-11). Pois no
judaísmo e no cristianismo não se trata de livrar o homem da matéria,
mas do pecado. Para isso uma simples "aparição" sobre a terra não basta.
O que se necessita é a expiação pelo "homem".

E também em um versículo da Epístola aos Hebreus, que é uma citação do Salmo !


(Hb 2.6).
C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO Tp

Vemos aqui como, em terreno cristão, a noção de Filho do


Homem devia necessariamente reunir-se à de Ebed Iahweh, que
descansa sobre o conceito de substituição quanto ao pecado. Paulo
mostra, por outro lado, como Adão também desempenhou por
seu pecado este papel de substituto, embora para o mal, é ver-
dade.
No entanto, o apóstolo faz ressaltar no v. 15 (que deve ser
logicamente considerado como um parêntese) que existe a este respeito
uma diferença fundamental. Um só homem, Adão, bastou para fazer de
todos os homens pecadores. A obra da graça de Jesus tem idêntico cará-
ter substitutivo por quanto livra, a todos os homens, do efeito do pecado:
esta é sua semelhança. Porém, Paulo quer, também, expressar neste
versículo que o poder do ato expiatório deve ser maior que o do pecado:
esta é sua diferença. Uma imagem nos fará compreender melhor: basta
uma só faísca para atear fogo em todo o bosque; porém, para apagar o
incêndio é necessário uma força superior. No caso da obra expiatória do
segundo Adão, esta força desencadeada provém, da mesma forma, de um
só indivíduo, e quem realiza este milagre é o Filho do Homem.

No judaísmo - já o vimos - a noção de Filho do Homem já


supunha o conceito de substituição,369 ainda que a relação entre o
pecado humano e o Filho do Homem não se contemplava nele da
mesma maneira: em Daniel 7.13 ss. é o Filho do Homem, segundo
a interpretação que se dá à visão, quem representa o "povo dos
santos", assim como os quatro animais representam os reis dos
grandes impérios. Porém, em Daniel, o papel destinado ao Filho
do Homem é só o da salvação sem a expiação feita em vista desta
salvação. Em nossa passagem da Epístola aos Romanos, ao con-
trário, a ideia fundamental é que o único homem Jesus incorpora
em si toda a comunidade de homens libertos do pecado. No fundo
se encontra, sem dúvida, a ideia de igreja - corpo de Cristo - que,
também, guarda relação com o conceito de substituição.
Toda a humanidade presente está, pois, localizada entre dois
pólos, designados pelos nomes de Adão e de Jesus, entre o pri-

'*'Isto vale igualmente para a ideia de "primeiro homem" fora do judaísmo.


. 228 Oscar Cullmann

meiro Adão e o segundo Adão. Como pecadores estamos relacio-


nados com Adão, o primeiro homem; como resgatados, estamos
com Cristo. Aqui também aparecem, com clareza, a unidade e a
diferença entre o primeiro homem e o homem celestial. Em sua
ação, um e outro, englobam uma multidão: em um pelo pecado,
no outro pela expiação, cuja força tem de ser necessariamente
superior à do pecado. Deste modo Paulo resolveu o antigo pro-
blema judaico da relação entre o primeiro Homem e o homem
celestial.
Sem dúvida, temos de situar na mesma perspectiva os desen-
volvimentos paulinos relativos ao velho homem e ao novo homem.
Verdade é que nas passagens em que se trata disto, o aspecto subje-
tivo e antropológico ocupa o primeiro plano e, portanto, o alcance
destas noções sobre os iroXkoi, sobre a humanidade. Porém, no
fundo, indubitavelmente, está a ideia desenvolvida em Rm 5.12
ss., segundo a qual o velho homem é determinado pelo primeiro
Adão e o novo homem pelo segundo, Jesus. Em Cl 3.9 s., o após-
tolo escreve: "Não mintais uns aos outros, uma vez que vos des-
pistes do velho homem com os seus feitos e vos revestistes do
novo homem que se renova no pleno conhecimento, segundo a
imagem daquele que o criou." A expressão "revestistes do novo
homem", claramente paralela à expressão "revestistes de Cristo"
de Gl 3.27 (cf. também Rm 13.14), mostra que Paulo pensa aqui
que ao ser transformado de "velho homem" em "novo homem"
passa da incorporação a Adão à incorporação a Cristo. Por outro
lado, a menção do homem criado à imagem de Deus aludia igual-
mente a Adão e ao Filho do Homem: é unicamente graças àquele
que representa a imagem do Criador em toda sua pureza e clareza
que podemos ser renovados segundo a imagem do Criador. Este
"homem", o único que é e continua sendo a imagem do Criador,
pode modelar-nos conforme esta imagem se nos "revestirmos do
novo homem". O KOCT' eiKÓva provém, com segurança, de Gn 1.26.
Achamos um pensamento análogo na passagem paralela de Ef 4.24:
"e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus". Aqui,
também, encontramos a expressão que corresponde a "revestir-se
CEUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 229

de Cristo"; e, também, a alusão à criação do homem à imagem de


Deus e, por conseguinte, à lembrança de haver sido Adão (e com
ele toda a humanidade pecadora) infiel à sua missão: a de repre-
sentar a imagem de Deus, enquanto que Jesus, sim, cumpriu esta
missão.
* * *

Resta-nos considerar uma terceira passagem paulina na qual


aparece a ideia de Filho do Homem: Fl 2.5-11. Este texto extraor-
dinariamente rico, do ponto de vista cristológico, reúne três noções:
a de Filho do Homem, a de Servo de Deus, e a de Kyrios: voltare-
mos novamente a esta passagem ao considerar o título Kyrios.
Limitar-nos-emos aqui a citar os versículos que são conside-
rados particularmente por causa da ideia de Filho do Homem e por
sua relação com Ebed Iahweh (Fl 2.5 ss.). "Haja em vós o mesmo
sentimento que houve em Cristo Jesus que, sendo em forma de
Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus, mas a si mesmo se
esvaziou, tomando a forma de servo, fazendo-se semelhante aos
homens. E, achado na forma de homem, humilhou-se a si mesmo,
sendo obediente até a morte, e morte de cruz."
E. Lohmeyer370 supõe, como se sabe, que Paulo cita aqui um
antigo salmo aramaico cristão. Esta tese, com efeito, é muito pro-
vável, embora não se possa demonstrar com certeza absoluta.
Porém, pode, em todo caso, considerar-se como demonstrado que
este texto contém aramaísmos.
Outros admitem que Paulo tenha tomado aqui um velho hino
judeu-gnóstico adaptando-o à sua teologia cristã.371 Neste caso, o
modelo judaico teria cantado a aparição do homem celestial sobre

E. LOHMEYER, "Kyrios Jesus, Eine Untersuchung zu Phil. 2.5-11" (SB


HeidelbergerAk. d. Wiss., phil. -hist. KL, 1927-1928). Todos os estudos exegéticos
posteriores deste texto se apoiam neste estudo fundamental. Cf. também a divisão
do hino em duas estrofes de seis tercetos. LOHMEYER vê nas palavras "e morte de
cruz" do v. 8, uma interpretação acrescentada por Paulo.
Por ex. P. BONNARD, UEpitre de Sctint Paul attx Philippiens, 1950, p. 49.
•230 Oscar Cullmann

a terra. Porém, como quer que seja J. Héring372 parece-me ter


demonstrado, de maneira definitiva, que se trata, neste texto, do
homem celestial e até do homem celestial em sua relação com
Adão. Com Lohmeyer, J. Héring admite que se trata de um salmo
pré- paulino cuja origem busca na Síria. Porém, a maneira em que
este hino - j á o veremos - põe o homem celestial em paralelo com
Adão e o identifica, por outro lado, com oEbedIahweh, harmoni-
za-se tanto com a argumentação de Paulo em 1 Co 15.45 ss. e Rm
5.12 ss. que toda esta passagem não pode ser compreendida senão
à luz destes textos paulinos. Não encontramos esta teoria, ao menos
nesta forma, nem no judaísmo nem na comunidade primitiva: isto
é o que temos sempre de sublinhar ainda que com Lohmeyer, Héring
e outros, tivermos que admitir a existência de um modelo.

E. Kãsemann, "Kritische Analyse von Phil. 2.5-11" {ZthK,47,1950,


p. 313 ss.), insiste, vigorosamente, em que nosso texto tem suas raízes no
pensamento helenístíco, único, segundo ele, que pode permitir-nos com-
preender este hino. Jazeria no fundo o mito helenístico do "primeiro
homem-salvador". Assim se explicaria o carííter exclusivamente soterio-
lógico (e não ético) desta passagem. Porém, em compensação, o quadro
mítico foi rompido pela escatologia especificamente cristã. Seguramente
do ponto de vista da história comparativa das religiões, pode este texto
de Paulo ter analogias distantes nas especulações sincretistas relativas ao
primeiro homem. Porém, partir daí para explicar esta passagem não me
parece o mais indicado, já que não se pode demonstrar que tenha havido
uma influência direta deste mito gnóstico; e, sobretudo, já que o desen-
volvimento do pensamento de Fl 2.5 ss. repousa essencialmente sobre o
relato de Génesis e não pode ser compreendido senão a partir do mesmo:
a ideia de p.op(pr| é tirada de Gn 1.26 e não é necessário invocar nisto
concepções helenísticas e gnósticas. Todos os paralelos propostos (por
ex. com Herm. 1.13 ss.) são, na verdade, interessantes do ponto de vista
da história das religiões; porém, muito pouco probantes do ponto de vista
exegético.

372
J. HÉRING, "Kyrios Anthropos" (RHPR, ,6, ,196, p. 196 ss.); Le Royoume ed
Dieuet sa venue, ,937, pp .62 2.s *'Les sases síbliqqes sdun humanisme cfirétíen"
(RHPR., 1945, p. .7 ss.). HÉRING ccmpletouu ,d ema maneira aecisivv, a axplica-
ção de LOHMEYER, ao menos no que concerne à significação da ideia de noptR.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 231

A relação com Adão e o relato da criação em Génesis se torna


indubitável graças ao emprego da expressão nopcpfi. J. Héring faz
notar, com razão, que esta palavra grega corresponde ao hebraico
mETI, de Gn 1.26. A Peschitta estabelece a mesma relação quando,
na passagem que nos ocupa, traduz j-iop(pri por demutha. Deste fato
u.opcpri de Fl 2.6 se aproxima estreitamente da ideia expressa por
eitcóiv; pois a palavra semítica original rnf"T ou seu sinónimo u?X
pode corresponder a estes dois vocábulos gregos.3" Porém, nesse
caso o v. 6 não evoca a "natureza" divina de Jesus, mas a imagem de
Deus que Jesus representou desde o princípio. E nós nos achamos
assim dentro do campo das concepções do homem celestial, único a
cumprir a missão confiada ao homem de ser imagem de Deus. Esta
terminologia corresponde perfeitamente às afirmações paulinas que
encontramos em outros escritos do apóstolo. Vem à mente em
especial, Cl 1.15, onde se diz que Cristo é o eiKtòv do Deus invisí-
vel.374 Ou ainda 2 Co 4.4: "O Deus deste século cegou o entendi-
mento dos incrédulos, para que lhes não resplandeça a luz do evan-
gelho da glória de Cristo, o qual é a imagem (eiKóv) de Deus."
Vemos, pois, que é uma ideia familiar a Paulo a que se expressa a
partir do início deste hino no v 6: Cristo a única imagem verda-
deira de Deus o "homem" celestial É daí que Paulo parte para
afirmar que nossa renovação não pode operar-se senão por uma
"transformação" à imagem de Cristo - que é a imagem de Deus
Esta afirmação reaparece em diversas ocasiões no apóstolo;
encontra-se implicitamente expressa na passagem já citada de Cl
3.10, onde nosso "novo homem" formado à imagem de Deus é
oposto ao "velho homem". Porém, a relação entre a "metamorfose"
e a imagem aparece com absoluta nitidez em 2 Co 3.18; "E todos
nós, com o rosto desvendado, refletindo como um espelho a glória
do Senhor, somos transformados (pETa^op(poOaSai) na mesma
imagem (ei-Któv) de glória em glória..." A mesma ideia aparece
também em Rm 12.2 onde a "imagem" não é mencionada expres-

573
Comparar a tradução de D?X em Gn 1.26 s. e ern Dn 3.19 (LXX).
374
Cf. CH. MASSON, LEpítre de SaBÀfô^QfljífcÇdlosSieiís,, 195Q, p. 98.
232 Oscar Citllmanri

sãmente, porém, onde está contida no verbo |X8TaLiopcpoí>o"8ca:


"Mas transformai-vos pela renovação da vossa mente".375
Daí decorre a esperança de nossa transformação definitiva no
final dos tempos (o apóstolo pensa, sem dúvida, no corpo espiritual
do qual nos revestiremos) - transformação que se efetua igual-
mente por nossa conformação à imagem de Cristo, o homem celes-
tial. E assim que lemos em Rra 8.29: "Aos que de antemão conhe-
ceu, também os predestinou para serem conformes (<ráu,p,op(poç)
à imagem (EÍKÓV) de seu Filho, a fim de que ele seja o primogénito
entre muitos irmãos." Temos de notar que encontramos aqui, tam-
bém, a raiz popcpn. ao lado de EÍKGJV e isto nos confirma na opinião
que no começo da passagem da Epístola aos Filipenses temos que
pensar, efetivamente, em Gn 1.26. Desta mesma forma se diz nes-
ta Epístola aos Filipenses: "Transformará o corpo de nossa humi-
lhação (pexaaxTjpaxtÇeiv; cf. a^fj(ic em nosso texto, Fl 2.7),
fazendo-o semelhante (cK>jiu,op(poç) ao corpo de sua glória." (3.21).
E finalmente 1 Co 15.49 - esta passagem se reveste de particular
importância pois vem logo em seguida à argumentação relativa
aos dois Adões e porque representa, por assim dizer, sua aplicação
ao nosso corpo terreno e à sua transformação. "Assim como traze-
mos a imagem do terreno (isto é, a do homem terrestre, Adão)
levaremos também a imagem do celestial (ou seja, do homem
celestial)." Novamente encontramos repetida a palavraetKtbv, pela
qual se indica a semelhança do homem celestial com Deus.
Temos que pôr todos estes textos em relação com o começo
de nossa passagem da Epístola aos Filipenses (2.6) e veremos que
contribuem muito mais para a sua explicação do que todos os
paralelos gnósticos. Pois somente assim podemos compreender o
que o apóstolo entende neste versículo por "forma de Deus" na
qual Jesus existia no começo: trata-se do homem celestial, único
representante da verdadeira imagem de Deus. Vê-se, pois, nova-
mente, que a designação de Jesus como Filho do Homem não

Cf. J. HÉK1NG, Le Royaume de Dieu et savenue, 1937, p. 164 ss.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 233

visa, em primeira instância, sua humilhação, mas sua soberania:


pois Jesus é o Filho do Homem, o homem celestial preexistente, a
pura imagem de Deus: é já o homem-Deus em sua preexistência.
Tal é a forma, a jiopqyn, que Jesus Cristo, o Filho do Homem,
possuiu. Os textos que acabamos de citar mostram, consequente-
mente, que a expressão u,opcpri designa esta semelhança com Deus e
deve ser compreendida no sentido do hebraico mD"l, D^S S do gre-
go ÊÍKCÒv. Porém, por outro lado, os textos paulinos citados supõem
a concepção teológica que encontra sua expressão mais clara em Fl
2.6 ss. Esta é uma razão a mais para sublinhar o caráter paulino
deste salmo: pois ainda que se inspire num modelo, seu conteúdo
corresponde inteiramente à cristologia do apóstolo dos gentios.
A afirmação segundo a qual Jesus existiu em forma de Deus,
se segue esta passagem difícil: "subsistindo em forma de Deus,
não julgou como usurpação o ser igual a Deus." Esta frase, tam-
bém, só se explica como um paralelo antitético entre o homem
celestial e Adão. Pois, sem a doutrina paulina dos dois Adões, não
compreenderíamos este versículo sem nos perdermos em espe-
culações dogmáticas forâneas ao cristianismo primitivo.-376 Para se
compreender esta passagem basta pensar na promessa da serpen-
te: "Assim que comerdes sereis como Deus" (Gn 3.5). Adão, ten-
tado peio diabo quis ser como Deus; este foi seu pecado, foi assim
que perdeu o que possuía de mais precioso: a semelhança com
Deus. O homem celestial, em troca, não quis arrebatar esta "pre-
sa" e, por conseguinte, permaneceu fiel à sua vocação de imagem
de Deus. O que se manifesta precisamente no fato de haver-se
"despojado", vale dizer que resolveu tornar-se um homem e incor-
porar-se à humanidade decaída da semelhança de Deus.
A igualdade com Deus deve, pois, ser considerada aqui como
xxxm.reírapienda?11 Aquii precisamente, reside o pecado de Adão:

" fi P. HENRYdáumaboa visão de conjunto da bibliografia relativa a este tema em seu


artigo "Kértose" do Dicúonnaire de la Bible, supl. Vol. V, col. 7 ss.
1,7
Não se pode, pois, aceitar a conjectura engenhosa de A. FRIDRICHSEN (RHPR, 3,
1923, p. 441), segundo a qual deveríamos ler em lugar de aprosynóv, õinpor/jAov=apoio.
234 Oscar Çidimaim

por orgulho não se contentou com a alta missão que Deus lhe havia
confiado de ser sua imagem terrestre.
Há uma velha controvérsia relativa à questão de se saber se o
verbo èicévocrev écroxóv, "se despojou", refere-se ao ser preexis-
tente ou ao ser encarnado. Provavelmente o Apóstolo, neste texto,
tenha pensado em ambas as coisas ao mesmo tempo. Primeira-
mente em que o "Homem" se fez "um homem"; e logo em seguida
- como o afirma o vs. 8 - que assumiu o papel de Ebed lahweh.
Pode-se, com efeito, separar estes dois aspectos; num e noutro, o
"Filho do Homem", contrariamente a Adão, é quem demonstrou
sua obediência (/ÍJTUÍKOOÇ, V. 8). É esta obediência o que importa,
por residir o pecado de Adão precisamente em uma desobediên-
cia. Encontramo-nos aqui novamente com algo análogo ao que
vimos em Rm 5.19, onde também Adão é caracterizado pela deso-
bediência, e ao Filho do Homem, Jesus, pela obediência. A seme-
lhança com Deus se revela pois na obediência, e esta se manifesta
de duas formas: Jesus se fez homem, e se humilhou até à morte,
assumindo assim a função do Ebed lahweh. Para poder tomar a
uopcpfi ÔcóXOD previamente lhe foi necessário tomar a forma de
homem, isto é, de um homem participante da decadência humana.
Tal é o significado da expressão "tornando-se semelhante aos
homens" (èv àaouòpoca àvGpwicov, v. 7). Este sentido deóuoíoua
justifica-se perfeitamente.'378 Tanto mais quanto que a frase seguinte
sublinha que Jesus, "o homem", ao encarnar-se aceitou cabalmen-
te a condição dos "homens". Quem por essência era o único
homem-Deus, o único a ostentar legitimamente este título, em vir-
tude de sua semelhança com Deus, se fez, por obediência a sua
vocação de homem celestial e para consumar sua obra expia-
tória um homem encarnado na carne decaída.
Tendo o título de ávOpcojraç sido assim explicado, em sua
dupla referência ao homem celestial e ao homem encarnado cor-
rompido pelo pecado de Adão, o v. 8 desenvolve e justifica o epíte-
to de ôoftÁ.oç; o papel do Ebed lahweh se apresenta ao Filho do

"8 Pode-se recordar por exemplo Rm 5.14: èíri t<£i ónoiwnceu Tf\ç jnapaftóaewoçASá^.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 235

Homem como conteúdo e coroação da obediência; é uma obedi-


ência até a morte. Estas palavras não têm, bem entendido, um sen-
tido cronológico: elas não podem meramente significar que Jesus
foi obediente "durante toda a sua vida". Ao contrário, com elas se
considera a morte como o grau culminante da obediência; daí que
se lhes ajunta "até a morte de cruz", que quer dizer que Jesus cum-
priu tão plenamente a missão do Ebed lahweh que aceitou a morte
mais ignominiosa. Para os homens da antiguidade era a cruz o que
para nós é a forca. É precisamente o maior oicávôccXov, a morte
por enforcamento, que constitui para o Ebed lahweh o máximo da
obediência, como também constitui o máximo da obediência para
o bamasha, em oposição à desobediência de Adão (Rm 5.19).
Várias vezes sublinhamos o parentesco estreito que une os
conceitos de "Filho do Homem" e de "Servo sofredor de Deus",
em virtude da ideia de substituição, que lhes é comum. A ideia de
obediência nos conduz ao mesmo resultado: o homem celestial,
por sua própria essência, há de ser obediente em sua capacidade
de segundo Adão com o encargo de reparar a falta do primeiro
Adão, que - nisto consiste seu pecado - não contentou-se em ser a
imagem de Deus. Pois bem, a obediência é também a característi-
ca essencial do Servo de Deus, que sofre substituindo.
Assim se encontra confirmada nossa tese segundo a qual este
hino, assim como Rm 5.12 ss., uniu a ideia de bamaslia e de Ebed
lahweh - união que, à parte o paulinismo, não encontramos senão
no próprio Jesus (por certo, uma forma teologicamente menos pre-
cisa). Se com Lohmeyer e outros admitimos que Paulo toma aqui
um salmo da igreja devemos, consequentemente, admitir, ao mes-
mo tempo, que esta união remonta à comunidade primitiva. O que
não é impossível porquanto Jesus já havia reunido estas duas ideias.
Porém - e isto é que é o essencial - este salmo corresponde, preci-
samente nesta forma, à essência mais íntima do paulinismo.379

O. MICHEL chega ao mesmo resultado: ("Zur Exegese von Phil. 2.5-11", Theologie
ah Glaubenswagnis, Mélanges K. Heim, 1954, p. 79 ss.). Porém, para provar esta
relação, parte da afirmação do v. 7 e não faz mais que tocar de leve na exegese do
v. 6 que damos aqui.
236 Oscar Cidimann

Como já foi enfatizado, às duas ideias de "Filho do Homem"


e de "Servo de Deus" este texto reuniu a de Kyrios, de sorte que
estes poucos versículos nos oferecem, de maneira condensada, uma
cristologia completa. No capítulo relativo ao Kyrios explicaremos
os versículos 9-11, que falam do senhorio conferido a Jesus depois
de sua morte. Porém, teremos de mencionar aqui a relação lógica
que neste texto fundamental se estabelece entre os três títulos cris-
tológicos. Ela reside no verbo Ú7r,£pvj\|/coCTev (v. 9). Geralmente o
verbo ímepini/ffvv é considerado como uma espécie de pleonasmo
enfático que não significaria mais do que í)í|rorjv.ííu Contudo, J.
Héring observou que neste lugar o verbo composto í>jt£p-m|/ó(o
deve significar mais do que o verbo simples i)yò(tim, de sorte que
não se deve traduzi-lo por "ele o elevou soberanamente" mas an-
tes: "ele fez mais do que elevá-lo." Se Jesus era já, em sua
preexistência, a imagem de Deus - é, com efeito, do v. 6 que é
preciso partir de novo (èv u,op(pfj Geoí>) - e se agora se diz que
Deus fez mais do que elevá-lo, não significa isto que, depois de
sua morte, Jesus não voltou tão-somente à existência que tinha
antes de sua encarnação quando na qualidade de homem celestial
preexistia junto a Deus, mas que em virtude de uma nova função,
entrou em relação ainda mais estreita com Deus relação que lhe
confere o título de Kyrios com plena soberania sobre o universo
inteiro? O título de Kyrios é com efeito a tradução grega do
hebraico Adonai que desistia a Deus o'Pai n2 Dito de outra
maneira isto significa que Deus rx>r causa da obediência teste-
munhada pelo Filho do Homem Jesus lhe confere doravante seu
prÓDrio nome com toda a soberania A igualdade com Deus esta
igualdade que o homem celestial com sua obediência nãoquis
"arrebatar como uma presa" ele a'recebe agora do próprio Deus
Não que Jesus tenha sido elevado à categoria de divindade
naquele instante. Não estamos aqui com a doutrina do adocia-

3ífl
E. LOHMEYER, DerBriefandie Philipper, 1930, p. 97 n. 2: •bitEpwyoíiv é idên-
tico a So^áÇeiv (Is 52.13; Test. Naftali 5; Test. Jos. 10.3).
3:1
J. HÉRING, Le Royawne de Dieu et sa venue, 1937, p. 163.
3e2
Cf. abaixo, p. 264 s.
(^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 237

nismo, que na antiguidade e ainda em nossos dias tem querido


se passar por cristologia do Novo Testamento, segundo a qual,
Jesus não havia recebido seu caráter divino senão depois de sua
elevação.383 Se se afirma que Jesus tinha a |K>p(pf| (imagem) de
Deus, isto não quer dizer outra coisa que o que afirma o prólogo
do Evangelho de João ao proclamar que no começo ele estava
com Deus como "Verbo". Segundo Fl 2.6 ss., ele possuía a
divindade desde o princípio, em sua preexistência como homem
celestial e divino. Já, então, estava vinculado a Deus como o ser
mais alto que se possa conceber: a imagem perfeita, resplendor
de Deus, como disse Paulo em outro lugar. Porém, agora graças
a sua obediência, se acrescenta a isto a igualdade com Deus,
mediante o exercício total da soberania divina. Em tudo isto, de
nenhum modo estamos aqui diante de especulações sobre as "duas
naturezas" mas diante da história da salvação: algo novo se agre-
ga kfunção de Jesus. Todas estas afirmações devem ser entendi-
das a partir da história de Adão. Este havia sido criado à imagem
de Deus, semelhança que perdeu por querer "arrebatar como uma
presa" a igualdade com Deus. O homem celestial, que representa
a verdadeira imagem de Deus em sua preexistência, pelo contrá-
rio se humilhou na obediência. Não só não perdeu a semelhança
com Deus senão que recebeu com o título e função de Kyrios, a
igualdade com Deus, não como presa arrebatada, mas como um
dom. Depois de ter sido vióç, agora chega a ser mòç %ov Qeov
èv ôvjvápei (Rm 1.4). Segundo a expressão do autor de Atos
(2.36), foi "feito" Senhor.384
Temos visto como Paulo, nestas três passagens essenciais,
uniu, de maneira tão harmoniosa, a ideia de Filho do Homem à

Em seu artigo citado, p. 153, nota 1, P. HENRY não vê outra solução que o adocia-
nismo, no caso de que wtepíntrwcsv significasse que o Cristo, por sua elevação,
recebeu mais do que o que possuía na preexistência, antes da encarnação. Assim,
ele crê que deve recusar este sentido que, contudo, é mais plausível. Porém, na
realidade a consequência admitida por ele desta explicação não resulta de todo neces-
sária: trata-se de uma nova função no plano da salvação.
Cf. abaixo, p. 283 s.
238 Oscar Cullmann

sua concepção cristológica geral: sua interpretação cristológica


conflui assim com a consciência que Jesus tinha de si mesmo.

5. O FILHO DO HOMEM NOS OUTROS ESCRITOS DO


NOVO TESTAMENTO

Temos perguntado em que meios do cristianismo primitivo o


título de Filho do Homem, com as ideias que lhe estão associadas,
havia sido considerado como a solução do problema cristológico.
Certamente Paulo trouxe uma contribuição decisiva a esta aplica-
ção da ideia de Filho do Homem a Jesus: não se pode, contudo,
admitir que ele tenha sido o primeiro a retomar para o compreen-
der teologicamente, este título que Jesus dava a si mesmo. Temos
visto que abundam razões para sustentar a tese de Lohmeyer,
segundo a qual o texto de Fl 2.6 ss., tão importante para a ques-
tão que nos ocupa, teria por base um hino cristão pré-paulino.
Por outro lado, não pudemos aderir à outra tese do mesmo autor,
segundo a qual o berço da cristologia do Filho do Homem deveria
ser buscado na Galileia. Finalmente, temos chamado a atenção ao
fato de que a espera do Filho do Homem aparecia, de preferência,
fora dos muros do judaísmo, nos meios esotéricos, quase como
uma doutrina secreta. Jesus deve ter entrado em contato com estes
círculos. Temos de buscar, então, entre os discípulos originários
deste judaísmo "periférico" ou, pelo menos, relacionados a ele,
os primeiros paladinos de uma cristologia do Filho do Homem.
Defendemos a hipótese de que poderia tratar-se de membros
palestinos da comunidade primitiva, designados em Atos dos Após-
tolos pelo nome de "helenistas". Temos indicações que poderiam
apoiar esta hipótese ou mesmo torná-la provável?
Para responder a esta pergunta estudaremos a posição adota-
da pelos demais escritos neotestámentários em relação ao título de
"Filho do Homem".
Em várias partes temos tido ocasião de mencionar que a
cristologia do Filho do Homem não é a dos Sinópticos, ainda que
esta expressão apareça neles mais frequentemente que em qual-
CEUSTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 239

quer outro escrito do Novo Testamento, já que ela ocorre não


menos de 69 vezes. E ainda que não se conte mais que uma vez a
menção deste termo nas passagens paralelas, fica de pé todavia a
metade daquela cifra. O Evangelho de João a emprega só doze
vezes. Também assinalamos que os Sinópticos recorrem a este
título unicamente quando é Jesus quem fala. Agora, como sua
intenção primordial é reproduzir as palavras de Jesus tal qual ele
as havia pronunciado,385 e não - como no quarto Evangelho - de
reencontrar, sob a inspiração do Paracleto (Jo 14.26), o Jesus da
fé da igreja no Jesus da encarnação, não temos de tirar, desta dife-
rença numérica, a conclusão de ser a cristologia do "Filho do
Homem" privativa dos Sinópticos. A cristologia destes é antes a
do "Messias". Portanto, se eles põem o título de Filho do Homem
unicamente naboca de Jesus e jamais nade seus interlocutores, se
deve a que, fiéis às tradições dos Logia, sabiam que este título,
empregado por Jesus, não era corrente em outras bocas, à parte a sua.
É verdade que os Sinópticos, quando traduzem em grego a
palavrabamascha, ,fzem uma diferença eetre e oentido oristoló^ico
desta palavra (uíòç TOÍ> àvGpwjrou) ) eeu uentido ordinário od
"homem" (avOpomioç). Isto prova simplesmente que os evangelistas
- sem uma noção muito clara - tinham consciência de que Jesus
associava a este título certas ideias precisas e conhecidas.
O livro de Atos talvez contenha um indício no sentido de que
é neste círculo dos "helenistas", tão pouco conhecido e, no entan-
to, tão importante, que se deve procurar os adeptos da cristologia
do "Filho do Homem". Com efeito, se esta expressão não se
encontra mais que uma vez em Atos, é pela boca do "helenista"

381
Não se trata de recusar por isso a legitimidade do método da "história da forma"
para o estudo dos Evangelhos Sinópticos. Porém, este método não deve levara elimi-
nação de toda diferença entre os Sinópticos e o Evangelho de João. Se é verdade
que nos Sinópticos também a consciência da igreja amiúde influenciou a maneira
de repetir as palavras de Jesus, trata-se de uma tendência inconsciente e coletiva;
enquanto que o autor do Quarto Evangelho tem o desígnio deliberado de apresentar
juntos o Cristo encarnado e o Cristo glorificado e fazer-lhes, por assim dizer falar
a um e a outro, simultaneamente.
•240 Oscar CuUmann

Estêvão que é proferida (7.56). Em seu apedrejamento, o primei-


ro mártir exclama: "Eis que vejo os céus abertos, e o Filho do
Homem, que está em pé à mão direita de Deus." Destaca o autor
que Estêvão, ao pronunciar estas palavras, "foi ficando cheio do
Espírito Santo". Como foi dito por Jesus diante do sumo sacerdote
(Mc 14.62) também aqui trata-se da glorificação do Filho do
Homem.386 Porém, enquanto que Jesus, referindo-se ao SI 110,
fala do Filho do Homem, assentado à direita de Deus, Estêvão o
vê de pé (èoxòxa): aqui, pois - diferentemente de outras passa-
gens - Jesus não aparece como juiz387 mas antes, como testemu-
nha, como advogado.388 Não se deve atribuir esta menção ao Filho
do Homem a Lucas, mas fazê-la chegar a uma tradição anterior a
ele. Segundo o pouco que sabemos das opiniões teológicas de
Estêvão (que talvez fosse o homem mais importante da comuni-
dade primitiva, à parte o apóstolo Paulo), ele deve ter captado
melhor que ninguém o que havia de novo no ensinamento de
Jesus. Não é de surpreender, pois, ouvir precisamente ele dar a
Jesus o título pelo qual o próprio Jesus designava-se a si mesmo.
Em todo caso, é digno de menção de que seja na boca de Estêvão
que o autor coloque esta expressão, e é a única vez que a ela recor-
re nos vinte e oito capítulos de seu livro. Recordemos que em Atos,
Pedro chama a Jesus "Servo de Deus".389 Admitimos que devia
tratar-se de uma lembrança digna de confiança. Tal como pode ser
também no caso em que é precisamente Estêvão, o "helenista"
palestino, quem fala do Jesus glorificado como o "Filho do Homem".

Lucas, em seii relato da paixão, recorda a palavra de Jesus relativa ao Filho


do Homem "sentado à direita de Deus", sem associar a ela a vinda "sobre as nuvens
do céu''.
Cf. acima, p. 207 s.
Cf. também acima, p. 208, nota 341. - TH. PREISS, Le Fils de Cliomme, 1951,
deduz disso consequências de grande alcance para a ideia de Filho do Homem, que
ele aproxima à de Paracleto. Ele faz a observação seguinte a propósito de Atos 7.56
(op. cit., p. 23): "No instante em que a justiçados homens condena seu testemunho
terreno, o Filho do Homem celeste se ergue como testemunho, intercessor e Paracleto,
garantia diante de Deus para justificá-lo (cf. Mc 8.38)".
Cf. acima, p. 103.
CRISTOLOGIA ÍX> NOVO TESTAMENTO 241

Esta conclusão pode parecer ousada. Porém, ganha veraci-


dade, no entanto, ao recordar que, além disso, já nos vimos leva-
dos a formular a hipótese de que os "helenistas" palestinos -
como o próprio Jesus - devem ter tido contato com esse grupo
judeu esotérico que os livros de Enoque - e mais recentemente
os textos de Qumran - nos têm dado a conhecer. Estes "helenistas"
devem ter desempenhado na formação do cristianismo um papel
muito mais importante do que aquele que o relato de Atos nos
permite supor. Entre os autores do Novo Testamento, Lucas e o
autor do Quarto Evangelho são os únicos - como o demonstra-
mos em outro trabalho390 - que nos permitem, ao menos, suspei-
tar esta importância. O Evangelho de João nos parece, inclusive,
empreender uma verdadeira reabilitação destes "helenistas" ao
afirmar pela boca de Jesus (4.38) não ser os doze os que funda-
ram a missão em Samaria mas os akXoi, em cujos trabalhos os
doze não têm feito mais do que "entrar". Esta palavra nos remete
a Atos 8.4 ss., onde os "helenistas" são apresentados como os
fundadores da missão cristã, havendo os doze limitado-se a san-
cionar sua obra. Porém, se o Evangelho de João toma parti-
do a favor dos "helenistas" e se interessa por eles é permitido
concluir que provavelmente se tenha originado em um meio pró-
ximo a eles. Observemos ademais que as ideias contidas no
Quarto Evangelho denotam certo parentesco com esse judaísmo
esotérico 3 "

í0
Cf. nosso artigo citado mais acima, p. 217, nota 356: La Sumarie et les origines de
la mission chétienne, p. 3 ss.
311
Isto é o que H. ODEBERG, adiantando-se a seu tempo, havia já reconhecido, com
razão, em seu livro infelizmente tão difícil de conseguir: The Fourth Gospel, 1929.
Suas observações têm sido grandemente confirmadas pelos textos descobertos em
Qumran. - Cf. a este respeito K. G. KUNH, "Die in Palástina Gefundenen hebrãischen
texte unddas Neue Testament", (ZThK, 1950, p. 193 ss.); como também os artigos
citados mais acima, p. 194, nota sobre os textos de Qumran e o cristianismo primi-
tivo. F. M. BRAUN, "Hermétisme et johannisme" (Revue Thomiste, 1955, p. 22 ss.
e 259 ss.) chega a conclusão análoga, considerando também o pensamento herméti-
co. Ver ainda W. F. ALBRIGHT, "Recent Discoveriesin Palestina and theGospelof
St. John", Melanges C. H. Dodd, 1956, p. 153 ss.
•242 Oscar Cullmann

Se esta filiação: judaísmo esotérico - Jesus - os "helenistas"


- Evangelho de João, for defensável,392 compreende-se porque a
cristologia do Filho do Homem tenha de ser especialmente impor-
tante para o Evangelho de João - paradoxalmente, muito mais
importante que para os Sinópticos. Isto nos leva a examinar a posi-
ção do autor do Quarto Evangelho relativa à noção de Filho do
Homem. Nele, Jesus se designa como "Filho do Homem" só doze
vezes. O que, comparado com os Sinópticos, é pouco. Porém, não
temos que nos deixar impressionar por esta estatística, pois o que
importa no Quarto Evangelho não é a reprodução textual das pala-
vras de Jesus mas o seu sentido, a maneira em que o Espírito per-
mite entendê-las. Estas convicções cristológicas pessoais influem
muito mais em sua maneira de formular os discursos de Jesus do
que no caso dos Sinópticos. Nós podemos pois admitir que as ideias
relativas ao Filho do Homem lhe foram muito familiares, já que
emprega este título e estas ideias em passagens decisivas.39-3

Da mesma forma que os Sinópticos, João escolhe a tradução oíóç


x0$ àvBpcímoi) e não meramente otvtJptonoç, como o faz Pauto. .sso indi-
ca que neste ponto, ao menos, segue uma tradição comum aos Sinópticos,
e que se empenhava em distinguir, graças a esta tradução grega, o sentido
técnico do sentido geral em que se costumava empregar o vocábulo
barnctscha.

Muitas vezes quando o Cristo joanino qualifica-se a si mes-


mo como "Filho do Homem" a concepção característica de Filho
do Homem está claramente implícita. Isto é certo em Jo 3.13: "Nin-
guém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho
do Homem." Não cabe dúvida que não se emprega aqui a expres-
são "Filho do Homem" por acaso; este termo evoca, indiscuti-

M2
O judaísmo ebionita também parece confirmar esta tese. Cf. o tópico seguinte,
p. 247.
393
Isto é evidente também para S. SCHULZ, Untersuchungen zur Meiíschensohn-
cltristologie irn Johannesevangelium, 1957, que pensa encontrar, no emprego fre-
qiíente que faz o Quarto Evangelho da noção de Filho do Homem, a prova de que
este Evangelho tem suas raízes nas ideias apocalípticas do judaísmo tardio.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 243

velmente, ao homem celestial preexistente e divino que desce do


céu, aparece sobre a terra, se incorpora à humanidade decaída e
volta ao céu em glória. Coisa característica para o Evangelho de
João: ao empregar este título quase sempre o faz para sublinhar a
majestade do Filho do Homem e não para pôr em relevo a debili-
dade inerente à sua humanidade. A maneira especificamente
joanina de unir o Cristo encarnado ao Cristo glorificado394 é muito
adequada para expressar o pensamento cristológico fundamental
da ligação do Filho do Homem celestial e do Servo de Deus. Com
efeito, se diz imediatamente depois (v. 14) que é preciso que o
Filho do Homem seja "elevado". Ora, sabemos que, segundo o
uso joanino, o verbo ín|/co9fjvca significa ao mesmo tempo "ser
levantado sobre a cruz" e "ser elevado à destra de Deus."395
Em Jo 12.23 e 13.31 de novo Jesus se qualifica como "Filho
do Homem" pensando em sua glorificação, embora aqui ela seja
contemplada simultaneamente com sua morte: "A hora é chegada
em que o Filho do Homem deve ser glorificado".
E mesmo nas passagens em que se emprega o título Filho do
Homem em relação à missão terrena de Jesus é título de sobera-
nia, que designa o homem celestial e divino. Assim em Jo 1.51
se diz que "os anjos de Deus sobem e descem sobre o Filho do
Homem", enquanto reside ainda na terra. Observar-se-á que a
escada que une o céu e a terra - alusão a Gn 28.12 - j á não aparece
relacionada a um lugar determinado mas hpessoa de Jesus Cristo,
na qualidade de "Filho do Homem". O céu, com efeito, está "aber-
to" desde que o Filho do Homem dele desceu para vir e estar com
os homens. Eles podem agora contemplar o céu graças àquele que
é a imagem de Deus.
Em Jo 5.27 se evoca a função jurídica do Filho do Homem:
"E lhe deu autoridade para julgar, porque é o Filho do Homem".

Cf. a este respeito O. CULLMANN, Les sacrements dans 1'Evangile johannique,


1951, p. 9ss.
O. CULLMANN, "Der johanneische Gebrauch doppeldeutiger Ausdriicke ais
Schlussel zum Verstãndnis des vierten Evangeliums" (ThZ, 1948, p. 360 ss.).
244 Oscar Cullmann

Wendt3% crê que seja conveniente suprimir o genitivo àvGpcòjtoi)


e ler: "porque é o Filho". Esta conjectura não é necessária nem
convincente, já que a função de juiz pertence à própria essência do
Filho do Homem,397 seja o juízo futuro ou presente, ou ambos ao
mesmo tempo (como no Evangelho de João).
Em Jo 6.27 e 53, o Filho do Homem aparece novamente como
o Senhor glorificado da Igreja, que outorga, pelo sacramento da
eucaristia, o pão da vida. Seria interessante investigar a ideia de
que se o Cristo glorificado dá seu corpo como alimento, isto é,
como a imagem de Deus limpa de toda corrupção, o faz na quali-
dade de homem celestial, de "Filho do Homem".
Este título, "Filho do Homem", tomado em seu sentido espe-
cificamente cristológico reaparece por todo o Evangelho de João.
Não é, pois, surpreendente ler no relato da cura do cego de nascen-
ça esta pergunta (Jo 9.35): "Crês tu no Filho do Homem?"398
A forma em que a pergunta é feita supõe que o leitor sabe de que
se trata. Devemos, então, admitir que as ideias associadas ao Filho
do Homem são tão familiares ao Quarto Evangelho como a Paulo
e ainda mais, que elas constituem o fundamento de sua cristologia.
Isto concorda plenamente com nossas suposições relativas ao meio
no qual este Evangelho deve ter vindo à luz e donde - j á no seio do
judaísmo - o Filho do Homem era objeto de reflexão teológica.
Ao afirmarmos que a ideia de Filho do Homem é uma con-
cepção cristológica fundamental do Evangelho de João, tropeça-
mos inegavelmente em contradições, dado que, segundo opinião
amplamente difundida e imposta pelo prólogo, Jesus é sobretudo
oLogos, a "Palavra". Por certo, não se trata de minimizar a impor-
tância da ideia de Logos no Quarto Evangelho; voltaremos a isso.
Porém, isto não modifica o fato de ser muito mais importante para

H. H. WENDT, Das Johannesevaitgeliuni, 1900, p. 121.


Cf. acima p. 207 s.
A maior parte dos exegetas estão de acordo em considerar a leitura mòç TOTÍ 6EO0
como secundária. Cf. a este respeito as reflexões de J. H. BERNARD, The Gospel
According to St. John (ICC, 3a, 1949, p. 338).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 245

o Quarto Evangelho, tomado em seu conjunto, a ideia de Filho do


Homem que a de Logos.
Por outro lado, do ponto de vista da preexistência, a noção de
Filho do Homem não está tão distante da de Logos. O Logos tam-
bém estava no começo com Deus, e é revelado com Deus. Mesmo
assim chegou-se a afirmar - e talvez com razão - que se na célebre
passagem do prólogo (Jo 1.14) o Evangelho de João emprega a
palavraaáp^ em lugar da palavra avôpamoç, que se esperaria, é por
saber, o autor, que esta "Palavra", que estava no começo com Deus,
já era um homem celestial, no sentido que temos indicado. Por isso
não nos disse: "se fez homem", mas: "se fez carne",399
Esta hipótese seria mais provável ainda se, como se supõe,400
houvesse na base do prólogo do Evangelho de João um hino pré-
cristão em honra do primeiro homem.
Em todo caso, os últimos versículos do prólogo (v. 14-18)
parecem relacionar-se diretamente com a ideia de Filho do Homem:
"Temos contemplado sua glória (ôó^a), glória como do Filho úni-
co vindo do Pai". Este versículo recorda as considerações paulinas
relativas a Jesus imagem de Deus: em virtude de ser Jesus Cristo a
imagem de Deus, nós também podemos agora conhecer ao pró-
prio Deus; é sua própria glória a que vemos, ao ver a de Cristo:
"Ninguém jamais viu a Deus; o Filho único que está no seio do
Pai, é quem o revelou." A mesma ideia também tem um papel
importante na primeira Epístola de João.
No Apocalipse a expressão "Filho do Homem" aparece duas
vezes: "E no meio dos sete castiçais, vi a um semelhante ao Filho
do homem" (1.13); "Olhei, e eis uma nuvem branca, e sentado
sobre a nuvem um semelhante ao Filho do Homem" (14.14). Ambas
as passagens aludem evidentemente a Daniel 7.13; e a expressão
Õfxoioç indica seguramente - como em Daniel 7 . 1 3 - 0 caráter

Cf. J. HÉRING, "KyriosAnthmpos" (RfíPfí, 16, 1936, p. 207 ss,).


R. REITZENSTEIN - H. H. SCHAEDER, Studien zitm andken Syncretismus aus
Iraii und Griechenland, 1926, p. 306 ss.
246 Oscar Cullmarm

misterioso e apocalíptico do Filho do Homem.401 Pode-se encon-


trar também em Apocalipse 12.3 ss. uma alusão indireta a Jesus,
o segundo Adão; com efeito, a mãe do Messias, fundador da
nova humanidade, que é perseguida pela serpente recorda, incon-
testavelmente, a mãe da humanidade decaída, seduzida pela
serpente.
A Epístola aos Hebreus merece uma menção especial. Levan-
do-se em conta sua afinidade com o Evangelho de João (coisa a
que não se costuma dar a devida consideração) deve-se esperar
que a ideia de Filho do Homem ocupe nela um lugar importante.
Efetivamente lemos já no v. 3 do primeiro capítulo que o Filho é
"o reflexo (ânavyocCTpa) da glória de Deus e a imagem (xapctKTrin)
de sua pessoa". Temos de mencionar também Hebreus 2.5 ss.
onde se trata da superioridade do Filho do Homem sobre os
anjos, e a este propósito o autor cita o célebre Salmo 8 (v. 4):
"que é o homem, que dele te lembres, e o Filho do Homem que
o visites?"
Aqui este salmo é aplicado a Jesus, Filho do Homem. Com
esta citação e a interpretação que lhe dá, o autor da Epístola aos
Hebreus demonstra ter opiniões muito precisas sobre a doutrina
acerca do Filho do Homem.
* * *

Em conclusão, no seio do cristianismo primitivo, foram os


"helenistas" e os círculos representados pelo Evangelho de João
que - concordando estreitamente com o pensamento do próprio
Cristo - expressaram sua fé em Jesus valendo-se da ideia de Filho
do Homem - ideia que Paulo particularmente aprofundou.

"R. H. CHARLES, The Revelation of St. John, 1920, p. 27, afirma que <&; uiòç
àvGpwjtoi), não significa outra coisa na Apocalíptica que o ó víòçTOOàvBpcíiitou
dos Evangelhos e de Atos. Pergunto se o èv op.oiopp.aTi àvGpwjtoo de Fl 2.7 pode
ser aproximado a õpoioç de Ap 1.13 e 14.14, Em lodo caso O. MICHEL, em seu
artigo citado mais acima, p. 235, nota 379, vê nesta expressão de Fl 2.7 o "'estilo
apocalíptico perifrástico".
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 247

6. OFILHODOHOMEMNOJTJDEU-CRISTIANISMOEEM
IRINEU

Apesar de nos limitarmos, neste estudo, aos escritos do primeiro


século, isto é, aos livros do Novo Testariiento, neste ponto estenderemos
nossas investigações até o segundo século. Sem citar todas as passagens
em que ocorre a expressão "Filho do Homem" falaremos, ao menos, de
dois autores cristãos antigos que têm importância no desenvolvimento da
ideia de Filho do Homem. Por um lado se trata do escritor judeu-cristão
Hegesipo, e por outro de um autor milito mais essencial do ponto de
vista teológico: Irineu Pai da igreja que viveu e escreveu na segunda
metade do século II
O relato de Hegesipo pode lançar luz, sobre os círculos cristãos
onde subsistia o título "Filho do Homem". Este texto, conservado por
Eusébio, (H.E., II, 23,4-18), nos relata 0 que segue:
A Tiago, o irmão do Senhor, se pede que fale ao povo. Conduzido
em seguida ao templo, lhe dizem: "Justo, em quem todos temos de confi-
ar, visto que o povo se deixa extraviar seguindo a Jesus o crucificado,
declara-nos qual é a porta de Jesus. E ele respondeu em alta voz: por que
me interrogais acerca do Filho do Homem? Ele está sentado no céu à
direita do Todo poderoso, e virá nas nuvens do céu".402 Hegesipo nos
recorda em seguida que os escribas e fariseus logo lançaram a Tiago do
alto do templo e o apedrejaram. Porém, como ainda vivesse, um soldado
o matou com seu bastão.
Segundo este texto, citando as palavras do próprio Jesus diante do
sumo sacerdote, Tiago havia qualificado a Jesus de "Filho do Homem".
Pelo menos, tal é o título que o judeu-cristão Hegesipo pôs em sua boca.
E. Lohmeyer crê ver nele uma confirmação de sua tese segundo a qual a
esperança do Filho do Homem se localizava na Galileia,403 porém, sem
que se compreenda muito bem o porquê. Deveríamos, antes, perguntar-
nos se não se trata de um esforço judeu-cristão em manter, de uma manei-
ra puramente formal, uma antiga tradição sem captar como Paulo, por
exemplo, seu sentido profundo. Agregue-se a isto que as especulações
relativas a Adão e ao Filho do Homem (por outro lado, deformadas e
associadas à ideia de "Profeta") desempenham um papel importante na
obra judeu-cristã pseudoclementina dosKerygniata Petrou. Ali se repre-

1,2
Tradução G. BARDY, Sources chrétiennes 3i3 Paris, 1952, p. 87 s,
°'Cf. E. LOHMEYER, Galilãa und Jerusalém, 19193 p. 68 ss. Ct. acima, p. 216.
248 Oscar Cultmann _____

senta a Adão como o "verdadeiro Profeta" que se encarna sempre de


novo e acaba por aparecer em Jesus e no Filho do Homem esperado.
Estamos aqui na presença do judaísmo ebionita que depois da queda de
Jerusalém se reforma e se deforma ao mesmo tempo do outro lado do
Jordão, à margem da evolução geral da igreja, vindo desembocar num
legalísmo rígido e ficando, por outro lado, aberto às influências gnósticas
e sincréticas. Como cremos haver demonstrado em outra obra,JW este
ramo do cristianismo antigo conservou certos traços desse judaísmo
esotérico mais ou menos gnóstico, que os textos de Qumran nos deram a
conhecer.
Indiscutivelmente as especulações judeu-cristãs concernentes a Adão
e ao primeiro homem sofreram essas influências; porém, sublinhamos
que elas jamais foram elaboradas teologicamente num sentido cristão,
como ocorre no caso de Paulo, mesmo quando neste o título de Filho do
Homem não apareça em primeiro plano.

* * *

Com Irineu, nos encontramos em outro terreno. Entre os escritores


eclesiásticos do século II ele foi o único a captar, em toda sua profundi-
dade, a concepção paulina de Filho do homem. Nós achamos aqui uma
tentativa - única em toda a história dos dogmas - de edificar uma
cristologia sobre a ideia de "homem". A oposição Adão-Cristo domina
todos seus estudos cristológicos. Em sua obm Adversus Haereses (V, 21,
1), após mostrar o exato paralelismo entre os atos de Adão e os de Jesus
diz assim: "Por isto o Senhor se designa como o Filho do Homem, por-
que volta a tomar em sua própria pessoa a este primeiro homem, para
que, pela vitória do homem, regressemos à vida assim como, pela derrota
do homem, o género humano desceu à morte. Do mesmo modo em que
por um homem a morte obteve sua vitória sobre nós, também por um
homem obtemos a vitória sobre a morte."
Segundo Irineu, não se pode compreender a obra de Jesus sem
remontar à' história da criação. Jesus completa à criação divina do
homem. Preenche o fim para o qual Deus havia criado o homem. Irineu,
com efeito, sempre estimou ser sua tarefa principal afirmar diante da
gnose a relação entre a criação e a redenção, entre o Antigo e o Novo Testa-

O. CULLMANN, "Die neuentdeckten Qumran-Texte und das Judenchristentum der


Pseudoklementinen" (Neutestt.iudicn fiir R. Buhnmnn, 1954, p. 35 ss.)s
CRISTOLOGIA DO NOVo TESTAMENTO

mento. Sua cristologia inteira se orienta nesse sentido. Pois bem, o elo
que liga a cristologia com à doutrina da criação é, precisamente, a noção
de Filho do Homem, o "segundo Adão".
É assim que Irineu, em seu tratado Adversas Haereses assim como
em seu esboço dogmático "para a demonstração da verdade da pregação
apostólica", descreve como Jesus retomou ponto por ponto a obra de
Adão, porém, realizando, desta vez, o que Adão não havia realizado e,
portanto, reparando a falta deste. No entanto, Irineu insiste muito mais na
realização que na reparação. Por isso, reduz ao mínimo o pecado de Adão
chegando, inclusive, até a desculpá-lo. Diferentemente do apologeta
Taciano que havia ensinado a condenação eterna de Adão, Irineu conta
com a possibilidade de sua salvação: a maldição cai antes na serpente
que sobre Adão. Irineu trata de representar o pecado de Adão como uma
espécie de necessidade: Adão seria igual a um menino e não pecou senão
por falta de amadurecimento. Portanto, em sua obra Jesus aparece mais
como quem leva a cabo a obra não realizada por Adão, do que como
quem repara sua falta.
Irineu insiste mais na criação de Adão segundo a imagem de Deus,
que na perda dessa semelhança por seu pecado. Em sua obraEiç èiú8eii;iv
(1,1,11 s.), glorifica a criação do homem por Deus: de sua própria mão,
Deus o criou e o colocou na terra qual sua própria imagem. O autor logo
mostra como Deus tornou Adão senhor de toda a criação. Porém, esta
tarefa foi demasiado pesada para ele. Adão era um menino, e faltava-lhe
ainda o amadurecimento. Por isso sucumbiu ante o tentador. Vemos aqui
que Irineu, diferentemente de Fílon e os judeu-cristãos, tem uma concep-
ção totalmente linear do tempo da história da salvação: tudo está em anda-
mento a partir do começo. A salvação final não é mero retorno ao princí-
pio; vale dizer, o Cristo traz mais do que havia no começo.
No conceito de "Cristo, o homem celeste" de Paulo, se relaciona
Jesus com Adão, sem identificá-lo com ele; isto significa que a salvação
não reside simplesmente em um retorno a Adão, já que Jesus, por sua
encarnação, trouxe algo totalmente novo. Irineu adota esta ideia, porém,
a exagera ao sublinhar demasiado exclusivamente o caráter retilíneo
do desenvolvimento da história da salvação. Assim, não levou bastan-
te em consideração que Jesus, em sua qualidade de Filho do Homem,
assumiu a missão do Ebed lahweh. Irineu não viu tão claramente como
Paulo (Rm 5.12 ss.) que a missão de Jesus, quanto a Adão, não consiste
tão-somente na consumação da obra não realizada por este; mas mais
ainda, e primordialmente, na reparação de sua falta, reparação sem a
qual seria impossível o cumprimento de sua missão. Irineu não levou
250 Oscar Cullmann

suficientemente a sério este ato de rebeldia contra Deus, que constitui o


pecado de Adão. Não compreendeu todo o alcance do fato de que por
culpa de Adão, de seu pecado, a linha contínua foi quebrada não poden-
do prolongar-se a menos que sua direção retilínea seja restabelecida pela
expiação.
Apesar desta reserva, temos de reconhecer o grande valor dos estu-
dos de Irineu sobre Jesus - "segundo Adão". Consagra-se, com predile-
ção, ao fato de corresponder a vida de Jesus, pontualmente, à de Adão;
porém, o faz de forma tal que com Jesus tudo se consuma. Assim, Jesus
nasceu de uma virgem do mesmo modo que Adão foi formado da terra,
ainda virgem por ainda não haver chovido. A queda de Adão foi causada
pela desobediência de uma virgem: Eva. Da mesma forma a obra salvadora
se realiza graças à obediência de outra virgem: Maria. Vê também Irineu
outro paralelismo de natureza mais externa no fato de que o objeto con-
creto que foi a ocasião da queda de Adão era a árvore de cujo fruto havia
comido. Outra árvore lhe corresponde, outro ''madeiro", na história do
segundo Adão: a cruz, a árvore da obediência. No Adversus Haereses,
Irineu junta ainda outros exemplos que demostram até que ponto está
enamorado desta ideia de ser Jesus o "segundo Adão".
Mostra, por exemplo, como Adão sucumbiu à tentação comendo
um fruto proibido, enquanto que Jesus resiste a Satanás negando-se a
romper seu jejum. Outra comparação estabelecida em Adversus Haereses
V, 21,2 tem maior valor teológico: Jesus, tanto como Adão, foi tentado
pelo diabo, tratando-se em ambos os casos da mesma tentação já que o
diabo oferece tanto a Adão como a Jesus a igualdade com Deus. Em um
e outro caso quer levar a sua vítima a ultrapassar os limites que Deus lhe
estabelecera. Adão, em sua falta de maturidade se deixa seduzir; porém,
Jesus resiste à tentação de cobiçar por orgulhoso a igualdade com Deus.
Já temos visto que esta também é a ideia essencial do texto cristológico
fundamental de Fl 2.6 ss. Irineu, pois, captou com exatidão esta ideia
essencial já que a converte na base de sua própria cristologia.

* * *

Depois disso, a noção especificamente bíblica de Filho do


Homem vai caindo paulatinamente no esquecimento. É verdade
que o termo "Filho do Homem" costuma aparecer nas exposições
cristológicas posteriores; porém, para indicar unicamente a humi-
lhação de Jesus, para ressaltar sua "natureza humana". E por "natu-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 251

reza humana" se entende tão-somente sua encarnação em carne


decaída, sua incorporação a uma natureza pecadora. A ideia
essencial - a saber, que Cristo já era o Filho do Homem em sua
preexistência, e que em sua "pós-existência", ao aparecer em seu
retorno seguirá sendo o "Filho do Homem" - j á não é levada em
consideração. Esqueceu-se por completo que declarar que Jesus é
o Filho do Homem é dizer que ele é a "imagem de Deus". Quando
muito se acha, de maneira esporádica e marginal na história poste-
rior da teologia, a ideia de que Jesus é o "protótipo da humanida-
de" - por exemplo em Sclileiermacher. Só em época muito recen-
te, graças a Karl Barth, se tem voltado a recorrer à ideia da imago
Dei para a interpretação da cristologia.405 Porém, fica ainda por
pôr-se a plena luz, dogmaticamente, o valor de todos os aspectos
da concepção específica de Filho do Homem tal como está con-
tida no Novo Testamento. Seria, portanto, sumamente instrutivo
fazer um estudo sobre os vestígios de uma cristologia do Filho do
Homem na história do dogma e da teologia.
Porém, seria mais importante ainda que um dogmático mo-
derno empreendesse a tarefa de edificar uma cristologia baseada
na ideia neotestamentária de Filho do Homem. Semelhante cris-
tologia apresentaria uma dupla vantagem: primeiro, estaria
inteiramente centrada no Novo Testamento e associada a um título
que Jesus reivindicou para si mesmo. Em segundo lugar, o proble-
ma (no fundo, logicamente insolúvel) das duas naturezas em Cris-
to, se encontraria transferido a um terreno sobre o qual se pudesse
encontrar a solução: o Filho do Homem preexistente, que está com
Deus desde o princípio e que existe com ele como sua imagem
já é, por sua essência, homem divino. A penosa discussão que
outrora dominou as controvérsias cristológicas seria assim supe-
rada.

Sobretudo em Kirchl. Dogmatik, III, 1. Cf. a este respeito os comentários de um


exegeta do Antigo Testamento, J. J. STAMM, "Die Imago-Lehrc von Karl Barth
und die alttestamentliche Wissenschaft" (Antwort. Festch: K. Barth, 1956, p. 84
ss.). No tomo IV, 2, a ideia de Filho do Homem associada à glorificação de Jesus
Cristo desempenha um papel importante.
TERCEIRA PARTE

OS TÍTULOS CRISTOLOGICOS
REFERENTES À
OBRA PRESENTE DE JESUS
PEQUENO INTRÓITO

O aspecto cristológico que passaremos agora a abordar é con-


siderado em seu justo valor nas exposições sobre a teologia do
Novo Testamento, porém, ele é frequentemente negligenciado nas
dogmáticas protestantes. No entanto, para os primeiros cristãos
desempenhava um çaçel de primeira ordem em sua vida eclesiás-
tica, exceto, talvez, em seu pensamento teológico. Por isso, este
aspecto da obra de Cristo exige de nós uma atenção particular-
Que o Cristo prossiga sua obra desde sua glorificação não é inven-
ção "católica" mas um pensamento fundamental de todo o NovO
Testamento, que surge com especial nitidez no Evangelho de João-
Alguns dos títulos estudados até aqui, em particular o de sumo
sacerdote, dizem respeito também à obra presente de Cristo eleva-
do à direita de Deus. Porém, o título do qual nos ocuparemos c
cuja importância para a cristandade primitiva não se poderá subli-
nhar excessivamente: Jesus o Senhor (Kyrios), diz respeito, antes
de tudo, ao Cristo glorificado.
O título "Salvador", que aparece de preferência na periferia
dos escritos do Novo Testamento tem menos importância; convi-
rá, no entanto, estudá-lo também nesta terceira parte.
CAPÍTULO I

JESUS O SENHOR (KYRIOS)

Melhor do que qualquer outro, o título "Senhor", expressa o


fato de Cristo ter sido elevado à direita de Deus e de intercedei'
atualmente pelos homens, em sua condição de glorificado. Os pri-
meiros cristãos ao darem a Jesus o título de Kyrios proclamavam
com isso que Ele não pertencia unicamente ao passado da história
da salvação, nem que era meramente objeto de uma esperança
futura, mas queé também uma realidade, vivendo no presente; ele
está tão vivo atualmente que até pode entrar em relação conosco, e
o crente pode dirigir-lhe suas orações, e a igreja invocá-10 em seu
culto, para que Ele apresente suas orações a Deus e as torne efica-
zes. A comunidade inteira, e não só a fé individual do cristão, perfaz
a experiência de que Jesus vive e prossegue sua obra. O Senhoí
glorificado continua intervindo nos acontecimentos terrestres, razão
pela qual a igreja é considerada como o corpo de Cristo. Os pri-
meiros cristãos expressaram esta profunda convicção em sua pro-
fissão de fé: Kyrios Iêsous: " Jesus é o Senhor".

1. O TÍTULO "KYRIOS" NAS RELIGIÕES HELENÍSTA


CAS ORIENTAIS E NO CULTO AO IMPERADOR

Sobretudo no mundo helenístico o termo Kyrios, aplicado a


Jesus, se converte em título cristológico; convém pois investigar a
significação deste termo fora do cristianismo, na linguagem reli-
giosa e profana do helenismo. Este vocábulo estava ligado a ideias
muito precisas e correntes: pode-se, pois, admitirapriori que quan-
2.58 Oscar Cuttmaiin

do a fé cristã se implantou nesse meio, tais ideias exerceram influ-


ência na consciência dos cristãos. Isto não significa, contudo, que
seja preciso admitir a tese muito discutida que W. Bousset expôs
em seu Kyrios Christos,406 segundo a qual o título de Senhor foi
atribuído a Jesus por exclusiva influência do helenismo e em sua
própria esfera. Porém, ainda que após examinada, esta afirmação
pareça excessiva, todavia fica em pé o fato de que, graças ao estu-
do de Bousset, a atenção dos exegetas foi sendo focada na impor-
tância capital que o nome Kyrios tinha no paganismo helenístico
oriental.
No entanto, não devemos esquecer que, no campo do helenismo,
tampouco se emprega o termo Kyrios exclusivamente em relação a
certas concepções religiosas; como ocorre com seus equivalentes
em todos os demais idiomas, usa-se no sentido geral de "dono",
"proprietário"; ou, no caso vocativo {Kyrié), como fórmula de cor-
tesia, que não significa nada mais que nosso corrente "senhor".
O defeito da tese de Bousset é que - tanto para o vocábulo grego
como para seus equivalentes semíticos - não leva em conta a rela-
ção que pode existir entre o uso do termo no sentido profano e seu
emprego nos sentidos religiosos. Não aceita, portanto, que da ideia
geral de superioridade, propriedade, ou potência que designa este
termo, se possa passarà idéiada soberania absoluta de um só Kyrios
divino. Pois bem, nos escritos do Novo Testamento podemos traçar
esta passagem de um sentido ao outro. Porém, Bousset se nega a
reconhecê-lo. Segundo ele o emprego do termo em um sentido
absoluto seria, no terreno do Novo Testamento ako totalmente inu-
sitado que só poderia explicar-se pela influência do helenismo em
Paulo e em Lucas, por exemplo. O recurso ao título de Kyrios para
designar o caráter único do Senhor divino não pode, segundo ele,
ser de origem palestina: na Palestina Jesus não teria sido chamado
"Senhor" senão no sentido profano e banal da expressão.
Sublinhemos que esta distinção taxativa entre os usos profa-
no e religioso do termo descansa em um a priori injustificado e

W. BOUSSET, Kyrios Christos, Ia ed., 1913, 2" ed. 1921.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 259

que na realidade - por necessária que seja a distinção - temos que


admitir a passagem que há de um ao outro.
É possível, também, demonstrar-se que já no helenismo o
sentido profano do termo Kyrios apresenta aspectos que podem
conduzir ao Kyrios divino. A este respeito uma comparação entre
Kyrios e seu sinónimo ÔEaTtótnç é sumamente instrutiva.407 Sem
alcançar ainda o sentido preciso de nosso vocábulo "déspota" o
termo ôecríiórriç já contém a ideia de algo arbitrário, enquanto que
a ideia associada a Kijpioç corresponde à de uma autoridade legí-
tima. Somente partindo de KÚpioç, e não de ôecTcótriç, pode-se
chegar à ideia de um Senhor divino único.
Assim se explica por que a divindade - considerada sob o
aspecto de sua potência e de sua superioridade absolutas - pôde
ser designada por esta palavra, Kyrios, e que esta tenha chegado,
inclusive, a ser o nomepelo qual seu caráter divino era expresso
de uma maneira particularmente exclusiva. Neste sentido, encon-
tramos numerosas constatações do vocábulo Kyrios empregado
como sinónimo de "Deus" nas religiões helenísticas orientais do
Império Romano. As referências tem sido reunidas com suficiente
frequência408 para que seja o bastante agora sublinhar o emprego
geral e muito difundido desta acepção de Kyrios: nas religiões da
Ásia Menor, do Egito e da Síria os deuses e as deusas como Serápis,
Osíris e ísis são nomeados Kyrios e Kyria, e isto tanto nas reli-
giões nacionais como nas dos mistérios. Quando no mundo hele-
nístico se diz "o" Kyrios, trata-se sempre de uma divindade.
Mal o cristianismo saiu da Palestina deve ter se deparado com
este uso do vocábulo Kyrios, vendo-se na necessidade de tomar

Cf. a este respeito TRENCH, Syiionyma des Neuen Testaments, 1907, p. 60;
FÒRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 61 ss., e K. H. RENGSTORF, art. Secitóiriç
(ThWbNT, II, p.43 ss.).
Cf. F. CUMONT, Les religions orientales dans le paganisme romain, 4 a ed., 1929;
art. KÚpioç em PAULY-WISSOWA, Realencyclopàdie XXIII, 1924, col. 176 ss.
(WILLIGER); art. jcópioç em W. H. ROSCHER, Ausfiirlicheí Lexikon der grieschi-
schen und rõmischen Mythologie (II, sect. 1, 1890-94); W. BOUSSET, op. cit.;
FÒRSTER,Herr ist Jesits, 1924, p. 69ss.,eart. KÚpioç (ThWbNT, IH, p. 1.038 ss.).
260 Oscar Cullmann

posição frente a ele. Se fosse preciso corroborar bastaria citar a pas-


sagem de 1 Co 8.5 s.. "... como há muitos deuses e muitos Kyrioi,
para nós só há um Deus... e um só Kyrios, Jesus Cristo". Para o
cristão, que sabe que Jesus desde sua glorificação recebeu a onipo-
tência no céu e na terra, estes Kyrioi que existem para os pagãos, já
não são mais Kyrioi absolutos; seu poder foi absorvido pelo do único
Kyrios. Atrás desta afirmação - à qual voltaremos405* - certamente
também se acha a crença segundo a qual estes Kyrioi, estas "potên-
cias" e "domínios", como os chama Paulo, foram vencidos por Cristo,
lhe foram submetidos e, por conseguinte, já não podem ser Kyrioi
num sentido absoluto. Se Paulo diz, por um lado, haver muitos Kyrioi
e por outro, não haver senão um só Kyrios, esta maneira paradoxal
de expressar-se se explica pela relação que temos assinalado entre
os dois usos do termo, o profano e o religioso: estes kyrioi dos
pagãos com sua pretensão a serem Kyrios no sentido absoluto da
expressão já não são, para os cristãos, senão kyrioi no sentido banal
e não têm sobre nós nenhum direito absoluto de soberania.
Outro tanto ocorre com o Kyrios que no Império Romano
exigia rigorosamente o reconhecimento de sua soberania: oImpe-
rador.4™ E verdade que este título imperial de Kyrios tinha primi-
tivamente um sentido político e jurídico, sem implicar a afirma-
ção da divindade do imperador.411

Cf. abaixo, p. 292 ss.


'Cf. a este respeito A. DEISSMANN, Licht vom Osten, 4a ed., 1923, p. 287 ss.;
P. WENDLAND, Die hellenistisch, rõmisclie Kitltitr in ihren Beziehungen zu
Judentum und Christentum, 2a e 3a ed., 1912 (Hdb. z,. NT), p. 123 ss.; K. PRÚMM,
"Der Herrscherkult im Neuen Testament" {Bíblica, 1928, p. 1 ss.); id.
Religionsgeschichtliches Handbuchfir den Raitm deraltchristlichen Umwelt, 1943,
p. 54 ss.; 83 ss., W. FÕRSTER, Herrist Jesus, 1924, p. 99 ss.; L. CERFAUX, "Le
titre Kyrios et ladignité royalede Jesus. Le titre et les róis" (Recueil L. Cerfaux, t.
I, Louvain, 1954, p. 3 ss.). - Bibliografia completa em J.TONDRIAU, "Bibliographie
du culte des souverains heilénistiques et romains" (Buli. de l'Ass. G. Budé, n. s. 5,
1948, p. 106 ss.)
É o que sublinham F. KATTENSBUSCH, Das apostolische Symbol, II, 1900,
p. 596 ss., e, sobretudo, W. FÕRSTER em sua monografia, Herr ist Jesus, 1924, e
em seu artigo KÚpioç (ThWbNT, III, p. 1.038 ss.). Porém, quando partindo dali
estabelece uma separação de princípio entre o emprego político do título Kyrios e o
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 261

Igualmente o adjetivoKupicíKÓç,, que achamos empregado com sen-


tido cultual em expressões neotestamentárias tais como KupiaKT) T](iÉpo;
e KUpicxKÒv ôetítvov, se encontra também na linguagem administrativa,
com o mero sentido jurídico e político de "imperial". É assim que as
finanças imperiais são chamadas Kupioxcu yí)<poi e a caixa imperial
KupiotKÒç ^.óyoç (W. Dittenberger, Orientis Graecae Inscriptiones
Selectae, 1903-05, n°669).

Porém, sabemos também que no Oriente, muito antes da épo-


ca romana, os soberanos eram honrados como deuses. Os impera-
dores romanos herdaram esta dignidade divina. Se lhes rendia um
culto porque se lhes atribuía ascendência e natureza divinas. Origi-
nariamente este culto era devotado só aos imperadores romanos já
mortos; porém, mais tarde estendido também ao imperador vivo.
No Império Romano, por conseguinte, este culto tinha seu centro
no Oriente. No entanto, os imperadores reconheceram bem cedo o
proveito que podiam tirar dele para a unidade do Império e o
incentivaram com todas as suas forças. Assim, na pessoa do impe-
rador, a divindade toma um caráter visível: o èvap^nç èrcupáveia.
O imperador era chamado, pois, Kyrios como sinal de seu
poder político; e por outro lado, era honrado como um deus: o
título Kyrios, já associado a seu nome, por força havia de adquirir
um caráter religioso a partir do momento que se recorresse frequen-
temente a este vocábulo para designar os deuses pagãos, o que
sucedeu nos tempos do Império Romano.

W.Fõrster {Herrisl Jesus, 1924, p. 103 ss, eThWbNT, III, p. 1.052


ss.) e outros insistem muito sobre o fato de que nos textos profanos o
título Kyrios não se aplica senão como título político, sem relação direta
com o culto ao imperador. Isso é exato. Porém, o que temos dito mostra
que não se pode tirar daí a conclusão de que este título designava unica-
mente ao soberano político e não ao deus. Pois há outros dois fatos igual-
mente incontestáveis: por um lado, o imperador era honrado como um

culto imperial parece-me cometer a falta que ele mesmo busca combater em
BOUSSET; a saber, uma distinção demasiado taxativa entre o uso profano do termo
e seu uso religioso. Cf. ainda abaixo, pp. 262 s. e 273.
262 Oscar Cullmatm

deus; por outro, o termo Kyrios na linguagem corrente do paganismo


helenístico oriental, designava uma divindade. Como teria sido possível
não evocar o sentido religioso deste termo, cada vez que se conferia este
nome ao imperador?

Ademais, não se pode fazer uma distinção categórica entre a


lealdade política ao imperador e o culto que lhe é devotado na qua-
lidade de deus. Quando nessa época se empregava a fórmula Kyríos
Kaisar, não só os cristãos (Mart. Polyc. 8.2)412 mas também os
pagãos subentendiam nela seu sentido religioso e absoluto. O uso
profano e político deste nome devia achar-se muito fundido ao seu
emprego religioso em razão de na antiguidade entender-se que a
soberania sobre o Império era considerada como a emanação da
soberania sobre o universo. A profissão de fé política Kyrios Kaisar
necessariamente devia ter um verniz religioso e se aproximava de
um 0EÒÇ Kcucap, que talvez esteja na base da misteriosa cifra 616
(variante do 666) de Ap 13.18.413
Estavam os judeus dispensados deste culto ao imperador? Eis
aí uma questão que não foi ainda perfeitamente esclarecida. Em
todo caso suportavam, também eles, as consequências de uma con-
fissão da soberania imperial imposta a todos os súditos do Impé-
rio, como o demostram os dados referentes aos zelotes.414
Chega-se assim ao problema da significação, para os judeus,
deste termo "Senhor" em suas formas aramaica, hebraica e grega.
Pode-se dar por coisa certa que a profissão de fé Kyrios lesous
Christos, onde ela ocorre no Novo Testamento, representa uma
espécie de resposta polémica ao mesmo título Kyrios conferido às

W. FÓRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 106, tenta, cio mesmo modo, aplicar sua tese
(segundo a qual o título Kyrios dado ao imperador se referia unicamente à sua preten-
são à soberania política) a este trecho do Martírio de Policarpo em que se pergunta a
Policarpo: "Que tem, pois, de mal em dizer: Kyrios Kaisar ...?" Todo o contexto
prova que aqui a explicação de FÒRSTER é insustentável. Cf. abaixo, p. 287 s.
Cf. a proposição plausível de A. DEISSMANN em Licki vom Osten, 4a ed., 1923,
p. 238, nota 3. Cf. também O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 85 ss.
Cf. em particular JOSEFO, Bell. Jud., VII, 10, 1. Outros textos em W. FÕRSTER,
Herr ist Jesus, p. 106 s.
ORÍSTOLOGIA DO INOVO TESTAMENTO 263

divindades helenísticas e ao imperador; porém, a conclusão de W.


Bousset, segundo a qual nenhuma influência judaica contribuiu
para sua significação é, incontestavelmente, demasiado apressada.

2. O "KYRIOS" NO JUDAÍSMO415

A palavra grega Kyrios corresponde ao hebraico "JiTK, e ao


aramaico "113. Devemos, pois, antes de tudo perguntar-nos se estas
duas formas semíticas possuíam, na época do Novo Testamento,
uma dupla significação como seu equivalente grego: a significa-
ção geral de "amo, proprietário", e a significação absoluta de "o
Senhor".
Não é necessário dar exemplos de Adon, tomado em sua
acepção geral. Este substantivo não se emprega sozinho, ele é deter-
minado, de uma maneira mais precisa por outro substantivo ou por
um sufixo que indica de que Senhor se trata. Assim, pode aplicar-
se a Deus, a quem se chama "meu Senhor" ou "Senhor do mundo".
Um fato sumamente importante para o problema que nos ocupa
é que os judeus não pronunciavam o nome de Deus: JHVH.
A partir de certa época- porém, certamente no século I a.C. e no
século I d.C. - o substituíram na leitura litúrgica por Adonai. Não
é possível saber em que data precisa este costume se introduziu.
Talvez seja anterior ao século I antes de nossa era; talvez seja mais
antigo que a tradução dos Setenta. O que se pode admitir com
certeza, é que já existia na época do nascimento do cristianismo.416
É verdade que este emprego absoluto de Adonai não se difundiu

Cf. a este respeito W. BAUDISSIN, Kyrios ais Gottesname im Judentum und seine
Stelle in der ReUgionsgeschichte, t. 1-4, 1926-29; O. GRETHER, Name und Won
Gottes im Alten Testament, 1934; G. QUELL, art "ícúpioç im AT" (ThWbNT, III,
p. 1056 ss.);para o judaísmo tardio, W. FÒRSTER, art. xrópioç (ThWbNT, III,
p. 1 .08 1 s.); para osLXX e o judaísmo helenístico os dois estudos de L. CERFAUX,
"Le nom divin Kyrios dans la Bible grecque" e "Adonai et Kyrios" (Recueil L.
Cerfaux, t. I. 1954, p. 113 ss.: 137 ss.).
É também a ideia de BAUDISSIN, que tem em geral tendência a atribuir-lhe a data
mais tardia possível.
264 Oscar Cullmann

na língua corrente e não chegou a ser o modo geral de se nomear a


Deus. Em troca, outras transcrições do nome divino se fazem cor-
rentes por exemplo DÍpftn, o lugar, ou Dííín], oomee
No entanto, está provado que na leitura litúrgica Adonai =
Senhor substituía o nome de Deus. Se talvez em outras épocas
se tenha insistido excessivamente neste fato, os trabalhos mais
recentes parecem não levá-lo suficientemente em conta. Embora
o emprego deste termo ficasse limitado ao uso litúrgico, deverí-
amos, no entanto, perguntar-nos por que os judeus tiveram a ideia
de ler precisamente Adonaz em lugar do tetragrama sagrado. Cabe
supor que este termo tinha uma ressonância particular aos ouvi-
dos judeus. Costuma-se ver nisso "somente" um uso litúrgico.
Não teríamos, pelo contrário, que dizer que se estimava Adonai
como o termo que expressava melhor que nenhum outro a sobe-
rania suprema, já que lhe foi conferida a função de substituir o
nome inefável de JHVH, durante a leitura solene da Palavra de
Deus?417
Antes de examinarmos a palavra aramaica mar, que corres-
ponde ao grego Kyrios, é preciso mencionarmos aqui algo sobre o
judaísmo de língua grega, o da Diáspora. Aqui também, na tradu-
ção grega dos LXX, encontramos ao lado do uso profano da pala-
vra Kyrios, seu emprego em sentido absoluto, onde icópioç torna-
se o nome de Deus e serve para traduzir Adonai e JHVH. As razões
que levaram os tradutores a empregar a palavra Kyrios neste sen-
tido não foram, até agora, postas plenamente em evidência.
Sobretudo, duas explicações se adiantam: segundo a primeira, este
uso teria, nascido por influência helenística, que conferia o título Kyrios
aos deuses pagãos; de acordo com a segunda, por influência do emprego
litúrgico de Adonai em lugar de JHVH. A primeira explicação deve ser,
sem dúvida, descartada porque o emprego da palavra Kyrios para desig-
nar a divindade não é testemunhada num período anterior aos LXX.
Porém, para com a segunda, também, se formula uma questão de data.

Isto é muito importante para a explicação de Fl 2.9, onde justamente o nome Kyrios
é designado como o nome que "está acima de todo nome".
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 265

Teríamos, com efeito, de admitir que então já se lia Adonatera lugar de


JHVH, o que é contestável.418 Como quer que seja, Adonat deve ter pos-
suído, durante muito tempo, uma ressonância muito especial para o
terem selecionado para esta função litúrgica, a mais honrosa de todas.
Isto é o que os tradutores da LXX devem, também, ter visto para que
traduzissem com tanta naturalidade este termo por ícópioç,.

Além disso, no seio do judaísmo de língua grega, o emprego


absoluto dzKyrios em lugar de "Deus" não havia ainda penetrado
na língua corrente, porém, era considerado revestido de caráter
litúrgico e sagrado. Em Josefo, por exemplo, o encontramos somen-
te nas citações bíblicas e nas orações; à parte isso, ele não costu-
mava empregar a palavra KÚpioç para designar a "Deus".419 Em
troca, este uso é muito frequente nos apócrifos e nos pseudepígrafos
gregos.
Para o judaísmo da época neotestamentária - tanto na Pales-
tina como na Diáspora -Adon-Kyrios é, em suma, geralmente uma
designação litúrgica de Deus.
O que podemos dizer quanto ao equivalente aramaico mar,
que nos interessa particularmente, já que os primeiros discípulos -
como o próprio Jesus - falavam o aramaico e que - voltaremos a
isso com mais detalhe - a invocação litúrgica aramaica da comu-
nidade primitiva, Maranatha, nos é conhecida pelo Novo Testa-
mento? A primeira questão que se coloca é saber se este termo, ao
lado de seu sentido geral de "amo, proprietário", e também de seu
emprego ordinário como fórmula de cortesia, era, ademais, usado
no sentido absoluto de Senhor = Deus, como o temos constatado
para os casos de Adonai e Kyrios. No tocante ao período pré-cris-
tão não podemos responder afirmativamente:420 mar jamais é
empregado para designar a Deus, nem sequer em Daniel 2.47 ou
5.23. Porém, não podemos perder de vista que todo judeu sabia

Sobretudo por BAUDISSIN, op. cit. Cf. contudo W. FÕRSTER, em ThWbNT, III,
p. 1082: e também os estudos deL. CERFAUX citados mais acima, p. 263, nota 415.
Cf. A. SCHLATTER, Wie sprach Joseplms von Gotfí 1910.
G. DALMAN, Die Worte Jesu,2a ed., 1930, p. 146 ss.
266 Oscar Cullmaitn

que em hebraico Deus é "o Senhor", Adonai. Por outro lado, na


língua corrente, mari é uma maneira particularmente respeitosa de
dirigir-se a alguém, algo assim como rabbí, que se emprega da
mesma maneira. Pois bem, também rabbí significa algo mais que
"doutor" e pode ser traduzido para o grego por Kyrie. Mari
expressa uma deferência maior ainda e se emprega para dirigir-se
ao rei, ao imperador, ou ainda aos doutores reverenciados. A repe-
tição "Senhor, Senhor" {mari, mari), ,gual à reiteração rabbíí,abbí,
era considerada como um acentuado sinal de respeito.42' Porém,
estamos ainda muito longe do uso desta palavra como designação
de Senhor absoluto.
Notamos no parágrafo precedente que, no mundo helenístico,
Kyrios havia passado do sentido geral de "senhor" ao sentido abso-
luto de "o Senhor". O mesmo acontece no caso de Adon. Podendo
ser provada semelhante evolução dos termos, não temos o direito
de negar a priori a possibilidade de uma evolução análoga para a
palavra aramaica mari: este vocábulo, que ao princípio só denota-
va as relações entre Jesus e seus discípulos durante sua vida ter-
restre, pôde chegar ao Kyrios Iesous, que caracteriza, em parti-
cular, a fé das comunidades helenísticas. W. Bousset - e com ele
R. Bultmann - afirma que não se trata aqui de uma evolução, mas
de uma brusca passagem para algo totalmente novo por influência
do helenismo. Para ele não há solução de continuidade entre o
termo "Senhor", que os discípulos empregavam para dirigir-se a
seu rabbí, e o único Kyrios Christos, cujo culto não poderia ter
nascido, por conseguinte, senão em terreno helenístico. Estas con-
clusões nos parecem bem discutíveis.
Não podemos trazer a prova desta evolução senão no pará-
grafo seguinte, quando examinarmos a fé pós-pascal da comuni-
dade no Cristo glorificado. Se os discípulos que, durante a vida
de Jesus, haviam simplesmente expressado com as palavras "meu
Senhor" sua reverência pelo mestre, depois de sua ressurreição

Ver o exemplo citado por G. DALMAN, op. cit., p. 258. Isto explica a palavra
citada de Mt 7.21; "Aqueles que me dizem: Senhor, Senhor..."
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 267

empregaram o mesmo termo para designar o Cristo glorificado


presente em seu culto, e para reconhecer diante dEle um direito
total sobre eles, temos um fundamento para admitir uma passa-
gem, sobre o próprio terreno do cristianismo, do aramaico mari ao
grego KÚpioç. Em outros termos, a aplicação a Jesus deste uso
helenístico da palavra Kyrios e os trechos da LXX onde Kyrios
aparece, não constitui então uma inovação filológica e teológica,
mas o registro de um uso aramaico.
W. Bousset afirma que a origem desta veneração cultual de
Jesus tem de ser buscada em terreno helenístico e mais precisa-
mente em Antioquia, e não na comunidade palestina. Sobre esta
afirmação-cujo fundamento discutiremos - é que ele baseia sua
rejeição em admitir que do aramaico mari derive o grego KÚpioç
Xpictóç. Não poderemos fazer um juízo global sobre esta tese
sem termos estudado primeiro a fé dos primeiros cristãos no Cristo
glorificado. Neste momento, trata-se de mostrar que, por analo-
gia ao KÍipioç helenístico e ao Adon hebraico, é filologicamente
possível que a palavra aramaica mar, empregada primeiro em
sentido profano, tenha sido por fim empregada no sentido teoló-
gico do grego icòpioç, com a condição de que, todavia, esta evo-
lução teológica valesse já para os discípulos palestinos, que fala-
vam aramaico. Ora, veremos que se deve admiti-lo. O elo que
une, do ponto de vista teológico e filológico, mari e KÚpioç, é a
invocação cultual aramaica Maranatha, que trataremos a fundo.

Porém, antes, temos de encarar uma última questão a respeito do


termo "Senhor" no judaismo. Esta palavra serviu para designar ao Mes-
sias? Os poucos trechos rabínicos em que o Messias recebe o nome de
Jahvé*1-- mal podem ser considerados como referências válidas. Eu daria
mais importância à interpretação que Jesus dá ao SI 110 em Mc 12.35 ss.
par. Disso já falamos423 e a isso voltaremos ainda. Toda a argumentação
de Jesus nesta passagem baseia-se no fato de que Davi chama ao Messias

4
" W. HEITMÚLLER, Im Nameti Jesu, 1903, p. 273.
""-'Cf. acima, p. 173 s.
268 Oscar Cullmarm

seu "Senhor". Não se pode, por certo, concluir com certeza que já no
judaísmo este título se relacionasse ao Messias. Porém, esta passagem
me parece confirmar a ideia de que já no judaísmo a palavra "Senhor",
segundo as circunstâncias em que era pronunciada, podia ter uma espe-
cial ressonância de majestade, tornanado possível a passagem de sua
significação banal à do "nome que é sobre todo nome".

3. "KYRIOS IESOUS" E O CRISTIANISMO PRIMITIVO

Jesus se autodenominou Kyrios, e em que sentido? Tratare-


mos esta questão no exame global da fé primitiva no Kyrios; pois
é claro que este título, aplicado a Jesus, não recebeu sua plena
significação senão depois de sua morte e glorificação. A associa-
ção dos termos Kyrios e lesous é, com efeito, característica da
função presente e pós-pascal do Jesus glorificado. É, pois, natural
que o uso deste título se tenha desenvolvido junto com a salvação.
Isto é o que experimentaram os primeiros cristãos ao proclama-
rem que Deus/ez de Jesus "Senhor e Cristo" (At 2.36), que é gra-
ças a sua obediência de Ebed que ele foi "mais do que elevado" e
que Deus lhe deu este nome/S/yráw que está "acima de todo nome"
(Fl 2.9).
Não esperamos, pois, encontrar este termo Kyrios - em um
sentido absoluto - na boca do Jesus terreno. Aflora, no entanto,
pouco a pouco dos seguintes modos: indiretamente, na passagem
de Mc 12.35 ss. par., mencionado há pouco onde Jesus cita o Sal-
mo 110 para provar que a descendência davídica não tem valor
decisivo para o Messias; diretamente em Mc 11.3: "dizei-lhe: o
Senhor precisa dele (do jumentinho)"; ou ainda em Mt 7.21: "os
que me dizem, Senhor, Senhor!..." Porém, em nenhuma destas pas-
sagens se emprega a palavra Kyrios, no sentido absoluto que o
cristianismo primitivo lhe conferiu ao aplicá-lo a Jesus. Podemos
ver, portanto, segundo estes três exemplos, que este termo pode
ter um conteúdo diferente, segundo o contexto em que é emprega-
do. Ninguém pode contentar-se em dizer que, em todo caso, Kyrios
significa simplesmente "amo".
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEhrro 269

É verdade que em Mc 1235 ss. par., o vocábulo não tomou


ainda seu sentido absoluto. Trata-se do Kyrios de Davi. Contudo,
este título se reveste aqui de uma dignidade muito particular, já
que sobre ele repousa toda a argumentação elaborada para demons-
trar a superioridade do Messias sobre o rei Davi. Ao mesmo tem-
po se encontra subentendida a ideia de que uma descendência ter-
restre não pode ter importância para o Cristo que Davi chama
Kyrios.
Com Mc 11.3 as coisas se apresentam de um modo diferente.
Encontramos ó icópioç, com artigo; e em Marcos é a única passa-
gem onde Kyrios é empregado assim. Poderíamos supor, então, que
temos aqui a lembrança precisa do próprio Jesus haver se expressa-
do desta maneira. Porém, não é possível concluir daí que aqui se
autodesignou como o Senhor divino. Pois, por um lado, é muito
provável que a expressão aramaica tenha sido "nosso Senhor" ou
"meu Senhor"; por outro lado, a Palavra aramaica mar pode ter
sido empregada meramente para expressar a relação entre os discí-
pulos e seu mestre. Esta segunda hipótese me parece a mais provável.
Sem dúvida, este é também o caso para o terceiro exemplo
citado, Mt 7.21. O próprio logion deve ser autêntico. Temos visto
que a reiteração, "Senhor, Senhor" é um sinal de gentileza semítica.424
Deve, pois, também aqui, tratar-se da forma que o discípulo dirige
a palavra a seu mestre reverenciado.
Este último exemplo - que poderia ser colocado em paralelo
com João 13.13: "Vós me chamais de mestre e Senhor" - mostra,
no entanto, que a relação entre o-s discípulos e o rabbí pode, de
acordo com a situação, conferir ao título Kyrios uma ressonância
que evoca algo muito mais elevado que a dignidade de um simples
mestre. Quando este rabbí exige do discípulo a entrega de toda
sua pessoa, quando faz dele seu verdadeiro ÔoíAoç e lhe constran-
ge, em virtude de sua autoridade particular, a uma obediência livre
e total, então este termo, Kyrios, adquire uma significação que ultra-
passa em muito a simples fórmula de cortesia e expressa precisa-

"•-4Cf. acima, p. 26ó.


270 Oscar Culhnann

mente esta exigência total e absoluta. O uso de KÚpioç, Senhor,


neste sentido evoca automaticamente um ôoí)Àoç, servo, corres-
pondente tomado, ele também, em uma acepção total e absoluta.
Quando o rabbí, como foi o caso de Jesus, se atribui o poder de
perdoar os pecados, então os títulos de rabbí e de mari, qqu es ehe
dão significam muito mais que meramente "mestre". Estamos, por
certo, muito longe do sentido absoluto que a palavra Kyrios toma-
rá mais tarde, quando os cristãos serão chamados "aqueles que
invocam o nome de nosso Kyrios Jesus Cristo.425 Porém, vemos
aparecer aqui essa possibilidade da passagem a um emprego abso-
luto do termo que já temos constatado para o Kyrios helenístico e
para o Adon hebraico a partir do momento em que o rabbí Jesus
torna-se objeto de um culto, o Mestre e Senhor que fala e age com
autoridade deve necessariamente converter-se no único Senhor.
Porém, é exato, como o pretende W. Bousset, que semelhante
adoração só tenha podido surgir no âmbito helenístico e quando
muito, como ele opina, em Antioquia? Ela é verdadeiramente alheia
à comunidade palestina primitiva? Será verdade que para esta só
importa o Filho do Homem que há de vir, e não o Senhor glorifica-
do e presente? Se assim fosse faltaria, efetivamente, o elo que per-
miti unir mar aramaico ao Kyrios tomado em seu sentido absolu-
to. É nesta forma que se esboça verdadeiramente a questão.

Devemos discutir aqui a tese de W. Bousset não somente porque


seu livro (aliás, já antigo) Kyrios Christos é considerado como a obra
clássica relativa à questão que nos ocupa,Jí<i mas também porque
R. Bultmann conferiu à tese de Bousset nova atualidade, ao retomá-la
plenamente, por sua conta, em suaTheoiogee des Neuen Testaments (1953,
p. 52 s; 123 ss.).

W. Bousset crê encontrar uma confirmação de sua tese, segun-


do a qual não haveria nenhuma relação entre a maneira em que se

1 Co 1.2; 2 Tm 2.22; cf. At 9.14, 21.


Cf. acima, p. 258, nota 406 - Sobre a questão formulada por ele, ver também E. V.
DOBSCHUTZ, Kíipioç '1T\GOX>Ç(ZNTW, 30, 1931, p. 97 ss.).
CfUSTOLOGíÀ DO N O V O L [ J S T A M E J S T O

costumava dirigir-se a Jesus em aramaico e o título de Kyrios, no


fato que temos de nos afastar da Palestina para achar atestada a
aplicação a Jesus do título Kyrios, tomado em seu sentido absolu-
to. No Evangelho de Marcos, não se chama a Jesus mais do que
uma vez "o Senhor" (11.3) e Mateus jamais lhe dá este título. Por
outro lado, isto ocorre frequentemente em Lucas, na parte de seu
Evangelho que lhe é própria. Nos demais escritos cristãos primiti-
vos que dizem respeito, de uma maneira ou de outra, ao helenismo,
constatamos um emprego cada vez mais frequente de Kyrios
tomado em sentido absoluto. Porém, estas observações, por exa-
tas que sejam, não provam, contudo, que este uso de Kyrios fosse
possível somente em terreno helenista, por ser aí onde havia
começado a se render culto ao Cristo. Sem nenhuma dúvida, a
crença helenística nos kyrioi divinos, e também - para os judeus
da diáspora - a versão dos Setenta, que traduz por Kyrios o nome
de Deus, exerceram uma poderosa influência e favoreceram consi-
deravelmente a designação de Jesus como Kyrios absoluto. Porém,
isso só foi possível porque Jesus, já antes, foi objeto de veneração
cultual.
Pois bem, não fica provado nem pelas observações filológicas
que precedem, nem pelo fato histórico de que o termo Kyrios desig-
ne os deuses helenísticos, que semelhante culto possa ter nascido
unicamente nas comunidades helenísticas. Veremos, inclusive, que
é precisamente uma observação filológica que contradiz mais clara-
mente a tese de Bousset. Porém, convém abordar, sem ideias pre-
concebidas, os textos que nos informam acerca da história do culto
primitivo quando se quer investigar se verdadeiramente Jesus não
foi objeto de um culto na comunidade palestina primitiva.
Por exemplo, não devemos, sem razões válidas, considerar como
anacronismos certas informações que Atos dos Apóstolos nos traz sobre
a comunidade primitiva, nem qualificar a priori as opiniões e experiên-
cias atribuídas à igreja de Jerusalém como helenísticas. A maneira em
que se estabelece espontaneamente a distinção entre o Kerigma da
comunidade hierosolimitana, e aquele das comunidades helenísticas,
baseia-se, amiúde, em uma confiança verdadeiramente ingénua em hipo-
272 Oscar Cuttmann

teses puramente subjetivas e artificiais. É assim que, sem mais, se faz da


comunidade primitiva uma seita escatológica judaica e se tacha de
"helenismo" tudo quanto a distingue essencialmente do judaísmo. A cha-
mada escola da "escatologia consistente", com seus fortes preconceitos,
favoreceu consideravelmente semelhante método, tão discutível do pon-
to de vista científico. Pois bem, as recentes descobertas do Mar Morto
deveriam ser particularmente adequadas para pôr fim a semelhantes sim-
plificações, já que elas mostram que o judaísmo palestino não apresenta
mais o aspecto dessa entidade homogénea por meio da qual se quis
contrapô-lo, em bloco, ao helenismo.

Antes de tudo, como uma comunidade particular, depois da


morte de cristo, pôde constituir-se? Se verdadeiramente os adep-
tos de Jesus o esperavam unicamente para o futuro, se do ponto de
vista estritamente cristológico, o Filho do Homem futuro signifi-
cava algo para eles, não vemos com clareza de onde haveria pro-
cedido o impulso que deu nascimento a uma comunidade na qual
reinava o entusiasmo e cuja vida inteira era regida pelas manifes-
tações do Espírito.
Certamente a esperança escatológica era particularmente
intensa. Mais intensa do que jamais o havia sido no judaísmo.
Porém é aí precisamente que está o problema; e a única resposta
possível é a convicção dos discípulos de que a ressurreição de
Cristo havia inaugurado o fim dos tempos. O que já havia sido
realizado dava a sua esperança esta firme confiança na realização
total que caracteriza sua atitude. E posto que o fim dos tempos já
havia começado, Cristo não podia mais ser para eles meramente o
Filho do Homem que havia de vir. Ele devia, também, ter uma
significação presente, já que este presente pertencia ao tempo da
consumação. A esperança ardente da manifestação próxima do
século vindouro não é, pois, a causa, mas a consequência da fé na
ressurreição de Cristo. No próprio âmago da fé cristã está a ressur-
reição de Jesus; e quem ousaria pretender que esta fé tenha nasci-
do unicamente fora da Palestina? Se Jesus ressuscitou dentre os
mortos, a morte já está vencida: a passagem do "século presente"
ao "século vindouro" é uma realidade.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 273

Mesmo que os primeiros cristãos não tenham contado com


mais do que um intervalo assaz breve entre a ressurreição de Cris-
to e seu regresso, contudo, é necessário que tenham tido uma certa
ideia da função atribuída a Cristo durante este intervalo. Morreu,
ressuscitou e voltará. Porém, entre estes dois acontecimentos ele
deve desempenhar um papel; sua obra não pode interromper-se.
W. Bousset tem razão ao ligar a fé na soberania presente de
Cristo ao culto cristão. É ai, com efeito, onde a igreja recebeu a
revelação de que Deus não somente havia ressuscitado o Cristo
como também lhe havia "tornado Senhor" (Rm 1.3 s.; At 2.36).
Porém, este culto já existia na comunidade hierosolimitana; não
nasceu unicamente em Antioquia.

W. Fõrster, cuja obra fundamental e cujos artigos em dicionário427


temos já citado amiúde, tem certamente razão quando contesta, resoluta-
mente, que o emprego cristão do título Kyrios date unicamente do cristia-
nismo helenístico. Remete-nos justamente à entrega total que Jesus exige
de seus discípulos. Eis aí uma ideia teológica sumamente iniportante.
No entanto, ela não me parece explicar suficientemente o nascimento da
fé no Kyrios. Fõrster se equivoca ao rejeitar, com o erro de Bousset (a
origem helenística desta fé), o que havia de justo em sua tese (a raiz
cultual da fé no Cristo Kyrios).

Esta soberania presente do Cristo não devia somente ser


experimentada como um chamado a entregar-se a Ele individual-
mente; devia também ser experimentada coletivamente como uma
revelação cristológica, como a maneira de ser atual de Jesus: é isto
o que ocorria nas primeiras assembleias cultuais de então.
Nestes cultos, onde se partia o pão "com alegria" (At 2.46), a
presença do Cristo ressuscitado era "vivida" repetidamente como
uma realidade. Seu fim era precisamente tornar possível a comu-

Além de seu trabalho e o de W. BOUSSET, temos que mencionar, sobre esta ques-
tão acerca do nome Kyrios, os diversos estudos de L. CERFAUX, que agora estão
no primeiro tomo do "Recueil L. Cerfaux" (Bibl. Ephem. Tlteol. Lovaniensium, vol.
6-7), cf. também seu artigo "Kyrios" (Dict. de la Bible, suppL V, p. 200 ss.).
274 Oscar Cullmann

nhão com o ressuscitado que aparecera aos discípulos no dia da


Páscoa para participar de sua ceia. Tal era o sentido do culto nos
primeiros tempos.428 As "ceias da aparição" - se nos é permitido
esta construção - deviam levar a comunidade a experimentar repe-
tidamente a presença do Senhor, ainda que não fosse de uma manei-
ra tão direta e manifesta como durante os "quarenta dias" depois da
Páscoa.
Não há razão para se contestar que fosse a comunidade hiero-
solimitana a que tenha dado a Jesus o título de "Senhor": era con-
siderado como o Senhor invisível que governa sua igreja e que
durante o culto aparece "ali onde dois ou três estão reunidos em
seu nome", no meio dos irmãos congregados, embora, ao mesmo
tempo, esteja sentado à direita de Deus e governe o mundo.
Porém, a tese de Bousset se revela ainda insustentável - já
temos feito alusão a isso - por uma razão filológica. Com efeito, a
mais antiga fórmula litúrgica que conhecemos contém o título
Kyrios em sua forma aramaica. Trata-se da mais antiga oração:
Maranatha. No Novo Testamento encontramos esta fórmula no
final da primeira Epístola aos Coríntios (1 Co 16.22). O fato de
que o apóstolo, em uma carta escrita em grego e dirigida a uma
comunidade de língua grega, tenha conservado esta fórmula em
sua forma aramaica original, prova sua antiguidade. Paulo deve
tê-la recebido da igreja de Jerusalém. Ademais, cita em aramaico
orações muito antigas, características da primeira comunidade,
como a que cita duas vezes em uma passagem teológica sobre a
oração e que começa -çorAbba, Pai (Rm 8.15; Gl4.6), e onde deve
tratar-se do começo da oração dominical.429
A fórmula Maranatha se encontra, no fim da Epístola aos
Coríntios, em um contexto inteiramente litúrgico. E está transcrita
naturalmente em caracteres gregos. Porém, em caracteres hebraicos
se apresenta desta maneira fríníO"lft. Que significa? Uma coisa,
antes de tudo, é certa: contém o termo aramaico mar, que significa

Cf. em part. O. CULLMANN, Le culte dons 1'Eglise primitive, p. 5 ss., 25.


Em sua forma primitiva (sem pronome possessivo) que encontramos em Lc (11.2).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 275

"Senhor". Temos constatado até aqui que esta palavra era empre-
gada como fórmula de cortesia. Agora, aqui, o contexto mostra
que este já não pode ser o caso. Temos de estudar, pois, o quadro
dentro do qual esta fórmula aramaica era pronunciada, para poder-
mos estabelecer o sentido deste termo "Senhor". Porém, vejamos
primeiramente a segunda parte desta expressão.
Trata-se de uma forma verbal do aramaico Kílfrí = vir. Porém,
tropeçamos aqui com uma dificuldade pois obtem-se dois senti-
dos diferentes, segundo a maneira em que se decomponha a fór-
mula. A separação pode, com efeito, fazer-se de duas maneiras:
Ou, maran atha: KDK ]™ID;
Ou, marana tha: KD KHD
No primeiro caso, estamos diante da terceira pessoa do indi-
cativo e se deve traduzir: "Nosso Senhor vem".430 No segundo
caso trata-se de um imperativo e deve traduzir-se: "Senhor nosso,
vem!". No primeiro caso nos encontraríamos na presença de uma
confissão de fé, no segundo de uma oração. A gramática e o senti-
do permitem ambas as interpretações431 as quais, por outro lado,
se situam em um quadro litúrgico.
No entanto, a segunda possibilidade nos parece a mais prová-
vel. É mais normal, com efeito, que se tenha conservado, em sua
forma original, uma oração em vez de uma confissão litúrgica que
precisasse provavelmente ser traduzida. Com efeito, constatamos
que no Novo Testamento as fórmulas mais numerosas de confissão
de fé são todas traduzidas para o grego, enquanto que, à parte nossa
fórmula, outra oração, ou ao menos seu começo, tenha sido conser-
vada em aramaico por Paulo, oAbba, Pai, de que já temos falado.
É possível somar-se ainda outro argumento que parece decisi-
vo. No Apocalipse de João que contém, aliás, numerosos elemen-

3tl
Cr\ E. HOMMEL, "Maran atha" (ZNW, 15, 1914, p. 317 ss.); E. PETERSON, Etç
Qeóç, 1926, p. 130 s.
1,1
É a esta conclusão que se limita prudentemente K. G. KUHN em seu artigo
MapavaGá (ThWbNT, IV, p. 470 ss.).
Í176 Oscar Cullmúnn

tos litúrgicos antigos, se encontra, no penúltimo versículo do últi-


mo capítulo, um chamado que deve ser certamente a tradução gre-
ga desta antiga fórmula e que nos permite, pois, ver que o autor a
tinha compreendido como um imperativo, como uma oração: £p%ot>
KÚpie, "vem, Senhor !" (22.20).432
Ainda, pode ser apresentado um outro argumento. Em sua
forma aramaica esta fórmula se acha outra vez na coletânea de
liturgia mais antiga que possuímos: o Didaquê (10.6), onde finali-
za uma oração eucarística.113-1 É indubitável que quem tenha reuni-
do estes fragmentos litúrgicos, os tenha considerado como uma
oração. Apesar de reproduzir em sua forma grega a oração que a
precede, conserva, contudo, para esta invocação, a forma aramaica.
Sem dúvida se manteve durante muito tempo a lembrança desta
oração estar envolta numa dignidade particular por ter sido a dos
primeiros cristãos na comunidade mãe de Jerusalém; vale
dizer: comunidade na qual o Senhor havia aparecido. Por isto era
pronunciada com o mais profundo respeito e se evitava dar-lhe
outra forma que aquela dada na igreja palestina. Porém, como quer
que isso seja, o contexto indica, também aqui, que deve tratar-se
antes de uma oração.

H. Lietzmann tem, sem dúvida, razão quando vê em Did. 10.6 a


fórmula Maranatha inserida numa liturgia antifonal da santa ceia:
O celebrante: Que a graça venha e que este mundo pereça!
A assembleia: Hosana ao Filho de Davi!
O celebrante: Se alguém é santo que se aproxime; se não o é, que
faça penitência! Maranatha!
A assembleia: Amém!434

í3;
Creu, talvez, dever traduzi-la, pois seu livro inteiro é mais ou menos uma tradução
do aramaico. Quando se traduz tudo, se esquece facilmente de que há certos frag-
mentos que ganhariam em ser conservados na língua original, assim como o fez o
apóstolo Paulo.
J 1?
' E ' X9ÉTCÚ %ápiç (a tradução copta lê aqui ó KÍ>pioç, o que é talvez a versão origi-
nal) KOU jrapeXuétw ó KÓOJIOÇ OÍJTOÇ/ ácavvà xQ 9cw Actoíõ/ eí tiç áyióç êfltiv/
èpxÉcôco/ eí Tiç OUK eoW u.EtavoeTT«j/ ^apaváGa àufiv.
1,4
Cf. H. LIETZMANN, Messe Und Herrenmahl, 1926, p. 237.
\_.R1STOLOGIA DO N O V O TESTAMENTO

Lietzmann tem certamente razão também ao ver nas fórmulas de


saudação das Epístolas de Paulo fragmentos da mais antiga liturgia
eucarística; pois o apóstolo sabe que suas Epístolas devem ser lidas
durante o desenvolvimento do culto, no momento do partir do pão.
O curto parágrafo com que termina aprirt^rira Epístola aos Coríntios, no
qual se encontra Maranatha, deve ser também um fragmento da liturgia
da santa ceia, análoga à do Didaquê:
Se alguém não ama ao Senhor que seja maldito!
Maranatha!
A graça do Senhor Jesus seja convosco!

E sumamente importante que Maranatha dê a impressão de


ser uma oração eucarística, isso nos permite também desentra-
nhar melhor sua significação, ao mesmo tempo que o sentido que
tinha o título Kyrios para a comunidade primitiva. Ao escutai* esta
invocação pensamos, antes de tudo, em uma oração escatológica;
uma oração que implora a vinda do Senhor no fim dos tempos,
sobretudo se se pensa na primeira parte da oração dominical. Porém,
sabemos que no cristianismo primitivo todo o culto era considera-
do como as primícias do Reino de Deus: na igreja reunida já se
produzia o que, no fim dos tempos, haveria de ser uma realidade
durável. Isto caracterizava o culto conferindo-lhe sua grandeza (aca-
bando por logo esfumar-se). É principalmente durante o "partir do
pão" da celebração eucarística, que a "vinda" de Cristo, ou antes,
o seu anunciado regresso, acha sua antecipação. Só no fim dos
tempos ele voltará à terra; entretanto, volta já agora ao seio de sua
igreja reunida para o partir do pão. Não havia prometido que "ali
onde estivessem dois ou três reunidos em seu nome" ele estaria no
meio deles? A relação entre a eucaristia da igreja nascente e a esca-
tologia se enquadra, ademais, perfeitamente ao sentido que o pró-
prio Jesus, durante sua última ceia, deu à distribuição do pão e do
vinho. Já naquele momento a relação com o fim dos tempos é
evidente já que, segundo os relatos dos três Sinópticos, aludiu,
então, ao banquete messiânico onde "beberá de novo do fruto da
vide no reino de Deus". A verdade é que estas palavras não se encon-
tram no relato acerca da ceia dado por Paulo em 1 Co 11.23 ss.
278 Oscar Cullmann

Porém, o apóstolo faz também alusão ao aspecto escatológico quan-


do escreve (v. 26): "Porque todas as vezes que comerdes deste pão
ou beberdes deste cálice anunciais a morte do Senhor até que
venha" Enfim, temos que recordar, agora, uma palavra do Apoca-
lipse. Já advertimos que este livro considera o culto como as
primícias das últimas coisas; e que, por esta razão, se vale natural-
mente de imagens e fórmulas litúrgicas em que cita hinos cristãos
de sua época para descrever o drama final. Assim em Ap 3.20
trata-se ao mesmo tempo, sem dúvida, do banquete messiânico no
reino de Deus e do banquete litúrgico da igreja: "Eis que estou à
porta e bato, se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta eu entra-
rei; cearei com ele e ele comigo." Nada prova que semelhante elo
entre o presente litúrgico e o futuro escatológico só seja possível
no âmbito do helenismo. De fato, a experiência de uma presença
viva do Ressuscitado durante o culto se explica perfeitamente pela
esperança judaica da presença do Messias no banquete escatológico
e por sua aparição, na noite de Páscoa, no instante em que os dis-
cípulos estavam reunidos para sua ceia.
Compreendemos melhor agora tudo o que a igreja esperava
quando orava: Maranatha! "Senhor, vem!" Ela não lhe pedia
meramente para que apressasse o dia de seu retorno final, mas lhe
pedia também que aparecesse no meio dela, à sua mesa, como
havia aparecido no domingo de páscoa, para consolá-la e assegurá-
la de seu próximo regresso. E para quantos, durante o partir do
pão, experimentavam sua vinda, a esperança do retorno definitivo
não haveria de ser um dogma no qual se deveria crer somente por
adesão à tradição. Eles sabiam, com efeito, por experiência pesso-
al, que o Senhor podia descer à terra e renovavam esta experiência
cada vez que se reuniam e oravam juntos pela vinda do ressuscita-
do. Sabiam também que o Senhor haveria ainda de aparecer nesta
terra quando viesse para a consumação de todas as coisas.
Maranatha, esta antiga oração significava, para aqueles que
a pronunciavam, ao mesmo tempo: "Senhor, vem no fim dos tem-
pos para estabelecer teu reino!" e: "Vem já agora enquanto estamos
aqui reunidos para a ceia!" A distinção entre o presente e o futuro,
CRISTOLOGSA DO NOVO TESTAMENTO 279

entre a antecipação e a vinda definitiva - distinção que nos é


necessário fazer do ponto de vista teológico e teórico - quase não
podia ser percebida pelos que estavam reunidos para o culto. Para
eles, as duas coisas deviam estar tão estreitamente ligadas que
ao experimentarem a presença cultual do Cristo experimentavam,
em alguma medida de maneira antecipada, sua parusia definitiva.
Ao falarmos da escatologia cristã primitiva, deveríamos lembrar,
muito mais do que se costuma fazer, que a igreja de então não
"esperava" somente o fim dos tempos, mas que o "vivia", de
maneira imediata, no banquete eucarístico. O culto cristão é, efeti-
vamente, o culto év %v£i>\xaxi (Jo 4.23), este elemento do fim dos
tempos. Daí também esta manifestação do Espírito, a glossolalia,
que é a "língua dos anjos" (1 Co 13.1).
À luz da experiência vivida da vinda de Cristo no meio dos
seus, compreende-se melhor por que Ele pôde ser considerado, ao
mesmo tempo, tanto como o Senhor da igreja como o senhor do
mundo. Voltaremos mais tarde a este paradoxo singular tão carac-
terístico referente à ideia que o cristianismo primitivo fazia acerca
do Kyrios: O Cristo é o Senhor desta pequena comunidade que
representa seu corpo na terra e é a partir daí que exerce sua sobera-
nia sobre o mundo inteiro. Com efeito, durante cada celebração da
ceia a comunidade experimentava a soberania do Cristo. A igreja
aparece, pois, verdadeiramente como o centro da soberania uni-
versal do Cristo. O vínculo íntimo que o cristianismo primitivo
estabeleceu entre seu culto e o reino futuro, prova que a antiga
oração Maranatha implora ao mesmo tempo a presença atual do
Cristo e seu retorno definitivo.
Compreendemos melhor agora como interpretar a palavra mar
contida nesta fórmula. Temos observado que no Novo testamento
este vocábulo traduzido por Kyrios pode ser utilizado sem nenhu-
ma tonalidade particular ou para dirigír-se a um Rabbí. Depois do
quanto temos retirado da oração Maranatha, semelhante uso
banal ou polido do termo fica aqui excluído. Mar há de ter um
sentido muito próximo ao que se expressa na fórmula Kyrios
Christos; deve querer dizer "soberano divino". Aquele que vem à
280 Oscar Cullmann

igreja reunida no partir do pão é o mesmo Senhor que virá no final


dos tempos para cumprir todas as coisas, reinando desde o presen-
te, embora de modo invisível.
Temos advertido que a significação de mar, como a de Adon e
de Kyrios, é suscetível de evolução e não pode ser determinada
senão em referência a seu contexto - daí esta digressão para estabe-
lecer o sentido do emprego de Maranatha no culto do cristianismo
primitivo. Ela nos leva a concluir que nos é absolutamente impossí-
vel interpretar o termo mar, nesta fórmula, como simples sinal
de gentileza, cujo sentido seria tão só o de Rabbi, Com razão A.
E. Rawlinson fez ressaltar435 a impossibilidade de se traduzir
Maranatha por: "Mestre, vem!" Dizer que Cristo não havia sido
ainda invocado no culto da comunidade palestina é, pois, uma
afirmação que, longe de estar provada por algum dado, é, pelo
contrário, desmentida cabalmente e em particular pelo fato de
que a oração Maranatha foi conservada durante muito tempo em
aramaico.
Também se a tem denominado justamente o "calcanhar de
Aquiles" da tese de Bousset.436 Nem ele nem Bultmann, que adota
todas suas conclusões, podem explicar de uma maneira satisfatória
como esta oração pôde conservar-se em sua forma aramaica até
nas igrejas gregas. Onde se observa nestes autores um certo emba-
raço. Em Bousset aparece nitidamente: na primeira edição de seu
Kyrios Christos (1913) intentou, com muita sutileza, dar uma
explicação conforme sua tese acerca da origem puramente helenís-
tica do culto devotado a Cristo; porém, não estando, sem dúvida,
ele mesmo convencido da exatidão desta explicação a abandonou
mais tarde em sua obra posterior Jesus der Herr (1916) - onde a
substituiu por uma explicação mais inverossímil ainda - para vol-
tar à primeira na segunda edição de Kyrios Christos. Quanto a
Bultmann, também sem dúvida insatisfeito com esta solução, ado-
tou em sua Theologie des Neuen Testaments a segunda proposta

The New Testament Doctriíte ofthe Christ, 1926 (reimpr. 1949), p. 245 s.
A. E. RAWLINSON, op. cit., p. 235.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 281

feita por Bousset em 1916 e que este julgou não dever mantê-la.
Estas vacilações são significativas e mostram que não se conse-
guiu dar à fórmula aramaica Maranatha outra explicação que a
que se impõe naturalmente ao espírito, quando não se parte de
uma ideia preconcebida: ela expressa a adoração cultual do Cristo
pela comunidade de língua aramaica.

Em sua primeira explicação em 1913,àqual voltou em 1921,Bousset


tenta escapar a esta conclusão inevitável dizendo que não está provado que
a fórmula deva, necessariamente, ser de origem palestina em razão de sua
forma aramaica. Ela poderia ter nascido em território bilingue da Antioquia,
Damasco e Tarso e, portanto, em solo helenístico.4:r' Não sem razão, aban-
donou momentaneamente esta explicação; não é tampouco sem razão que
Bultmann não possa adotá-la: pois ela não resiste verdadeiramente ao exa-
me. Uma fórmula aramaica originária de um território bilingue mal teria
podido impor-se ao ponto de conservar-sc intacta nos textos gregos. Se lhe
foi devotada tanta piedade, isto se deve à memória de que procedia da
igreja de Jerusalém; da mesma formase respeitou a fórmula aramaica Abba,
Talha Kumi, ou Eli, Eli lama sabachtani, porque se sabia que quem havia
pronunciado estas palavras era Jesus.
Bousset mesmo em 1921, não parece ter-se persuadido do valor da
explicação que tornou a adotar. Observa, com efeito, que já que a origem
palestiniana do título Kyrios é discutível a de Maranatha também deve
ser buscada fora da Palestina. Eis aí uma petição de princípio.
A outra tentativa de explicação que o próprio Bousset abandonou
por causa de sua improbabilidade, Bultmann retoma, aliás, sem justificá-
la/1^ É desprovida de qualquer fundamento: Maranatha seria uma fór-
mula de juramento dirigida a Deus. Originariamente, pois, não dizia res-
peito em nada a Cristo.

Na realidade, Maranatha assinala a passagem da fé palestina à


fé helenística no Cristo Senhor. A afirmação de Bousset e de
Bultmann, segundo a qual haveria neste ponto uma ruptura comple-
ta entre a comunidade palestina primitiva e o cristianismo helenístico

m
Kyrios Chrisws, T Td.d 1921, p. 84.
•"8R. BULTMANN, Theoiogii des Nenen Testaments, 1953, p, 53.
2fi2 Oscar Cullmann

é uma construção do espírito que prescinde dos elementos legados


pela comunidade primitiva sem poder, tampouco, explicar satisfa-
toriamente a génese da fé helenística em Jesus o Senhor. Pois é evi-
dente que Paulo, por exemplo, sempre que menciona a profissão de
fé Kyrios Christos, se refere a uma antiga tradição, cujo conheci-
mento é a base pressuposta de toda a pregação cristã.
Sem dúvida, no terreno do helenismo, o uso pagão do termo
Kyrios, seu vínculo com o culto do soberano e, primordialmente,
o fato de que por este termo os LXX tenham traduzido o nome de
Deus, contribuíram para fazer de Kyrios o título mais corrente para
designar o Cristo. Porém, tal evolução não teria sido possível se a
comunidade primitiva já não tivesse invocado o Cristo como "Se-
nhor". O título Kyrios tem sua origem na vida cultual - neste pon-
to Bousset tem razão - mas na da primeira igreja de Jerusalém.

Não há razão alguma para pensar, com E. Lohmeyer, que foi a


Galileia o berço do título Kyrios aplicado a Jesus (cf. Galilãa und
Jerusalém, 1936, p. 17, 24).

Partindo-se da invocação cultual e litúrgica do Senhor, se desen-


volveu a oração pessoal dirigida a Cristo. Encontramo-la em Pau-
lo que, em certos momentos decisivos, invoca diretamente ao
Senhor Cristo (2 Co 12.8; 1 Ts 3.12; 2 Ts 3.2 ss.)) Achamos tam-
bém a "invocação" de seu nome nas orações dirigidas a Deus que
devem ser levadas ao Pai "por Jesus Cristo". É o que constatamos
em particular no Evangelho de João (Jo 14.13; 15.16; 16.24 ss.).
Porém, Paulo ora também a Deus "por Jesus Cristo" (Rm 1.8; 7.25;
2 Co 1.20; Cl 3.17); semelhante aproximação é importante do ponto
de vista cristológico, porque a ideia de poder orar "por Jesus Cris-
to" pressupõe, com efeito, que possa dirigir-se diretamente a Ele.

* * *

Temos visto que indiscutivelmente deve-se considerar a fór-


mula Maranatha uma oração e não uma confissão de fé. Isto é,
que a confissão de fé, Kyrios Christos, se origina na oração ou ao
C.RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 283

menos lhe está muito perto. No cristianismo primitivo, aliás, não


há uma distinção nítida entre confissão de fé e oração, e a "invoca-
ção" do Kyrios (èriíKaXetoSca) supõe, com certeza, também que
se se dirija a ele na oração. Já que a oração Maranatha remonta à
comunidade palestina, deve ser o mesmo para a confissão de fé;
embora tenhamos de reconhecer, também aqui, que só no terreno
helenístico esta confissão de fé adquiriu sua cabal significação,
porque ela desmentia a fé nos kyrioi pagãos e, sobretudo, porque
se opunha ao Kyrios Kaisar. Se, com Lohmeyer e outros, se reco-
nhece uma base aramaica para o hino a Cristo de Fl 2.6 ss., tería-
mos aí uma confirmação da origem aramaica desta confissão de
fé, porquanto este hino culmina na afirmação do senhorio de Jesus.
Porém, por que não se conservou em aramaico a fórmula da
confissão de fé como a da oração? Sem dúvida por conceder-se à
oração mais alta dignidade que à confissão de fé; entretanto, pode
ter sido principalmente pela grande necessidade de encontrar uma
fórmula, um "slogan da fé", que fosse o contraposto mais taxativo
possível ao Kyrios Kaisar. E a manutenção da fórmula aramaica
não teria preenchido este propósito.
A confissão Kyrios Iesous indubitavelmente é uma das mais
antigas que possuímos. Em sua forma comprimida, só pela pala-
vra Kyrios ela expressa toda a fé em Cristo da igreja primitiva.
Sem dúvida, este título não remete diretamente senão à função
presente de Jesus. Porém, a partir dele se pode abarcar toda a obra
de Jesus, sua obra passada e futura assim como a presente. Isto é,
sua obra expiatória assim como seu retorno em glória são vistos à
luz da convicção triunfante que já hoje Cristo exerce a soberania,
ainda que isso seja invisível, ainda que só os crentes sejam os úni-
cos a sabê-lo e que os pagãos creiam, todavia, que haja outros
Kirioi que disputam o senhorio do mundo.
Em Atos 2.36 lemos: "Deus o fez Senhor e Cristo, a este Jesus
que vós crucificastes."439 Isso significa, claramente, que a digni-

Igualmente em Fl 2.9 ss. (cf. abaixo, p. 286 s.), ele é "feito" Kyrios.
284 Oscar Cullmann

dade de Kyrios foi conferida a Jesus depois de sua ressurreição,


simultaneamente com a dignidade de Messias. De maneira que só
a partir de agora é que Jesus pode ser também denominado "Mes-
sias", pois é agora verdadeiramente soberano. Não é provavelmente
sem intenção que o título Kyrios tenha sido aqui colocado antes
do de Cristo; é, pois, somente por causa de sua soberania invisível
que as ideias associadas ao Messias-rei podem ser aplicadas a Jesus.
É Paulo sobretudo, quem forneceu a base teológica para a
afirmação da soberania presente de Cristo. Primeiramente, no que
diz respeito à fórmula mesma da confissão de fé, devemos estudar
de perto três passagens: Rm 10.9,Fl2.9e 1 Co 12.3. Porém, quan-
to ao fundo, convirá, ainda, levar em consideração todas as passa-
gens que tratam da glorificação de Jesus ou de sua vitória e de seu
domínio sobre as potestades. Os três textos que contêm expres-
samente a confissão de fé no Kyrios lesous demonstram, antes de
tudo, que Paulo não inventou esta fórmula, mas que a herdou da
comunidade palestina junto com as concepções que lhe estão
associadas. Mostram também que sua própria fé no Kyrios baseia-
se em sua experiência litúrgica da presença do Senhor. Isso apare-
ce com singular nitidez na primeira das passagens citadas (Rm
10.9): "Se, com tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em
teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás
salvo." Aqui, "confessar com a boca" e "crer com o coração" estão
expressamente ligados. Coisa significativa: quando se trata de "con-
fessar com a boca", a confissão que se impõe naturalmente a Pau-
lo é "Jesus é o Senhor". Inegavelmente, nos achamos diante da
confissão de fé por excelência, que está na origem de todas as
demais e a todas abarca. É preciso então que antes de pertencer a
Paulo, tenha pertencido ao uso litúrgico de maneira geral.
Já nos ocupamos extensamente do texto de Fl 2.6 ss., no capí-
tulo consagrado ao Filho do Homem. Indicamos aí que o hino
inteiro culminava nesta mesma confissão de fé, proclamada por
todos os seres nos céus, na terra e debaixo da terra. A breve fór-
mula original se expandiu aí em uma cristologia acabada, abar-
cando a ação pretérita do Cristo desde o princípio, sua preexistência,
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 285

quando Jesus estava ainda "em forma de Deus", tanto quanto sua
glória futura e incontestada. Todo este segmento está regido pelo
título Kyrios, esse Kyrios que Deus tem "mais que exaltado"
(ítnepvycoaev); a dito título também se referem, como já vimos, os
outros títulos fundamentais: "Filho do Homem" e "Servo de Deus".
Notamos que este ímep-óii/tooev não é uma mera figura de
retórica, mas que o prefixo ímép, "sobre", tem de ser tomado em
seu pleno sentido. Cristo, já no princípio, era "em forma de Deus";
porém, como não cobiçou rebeldemente a igualdade com Deus,
esta lhe foi dada por Deus em razão de sua obediência até a morte
na cruz. Ele foi "feito Senhor" (Atos 2.36). Esta exaltação até a
igualdade com Deus se manifesta pelo fato de que Deus lhe con-
cede, daí em diante, um nome que é sobre todo nome; precisamen-
te o de Kyrios. Por que este nome não pode ser sobrepujado por
nenhum outro? Porque é o nome do próprio Deus, sendo Kyrios a
tradução grega do hebraico Adonai. É evidente que temos de pen-
sar aqui no equivalente hebraico do título Kyrios, e não compreen-
demos como Bousset - e com ele muitos outros, em particular W.
Fõrster440 que, aliás, combate a tese de Bousset - que se possa
descartar pura e simplesmente esta derivação. Ademais, o outor-
gar o nome de Deus não se limita somente a este nome enquanto
tal, mas no judaísmo, como em todas as religiões antigas, o nome
representa ao mesmo tempo um poder. Consequentemente, se se
nos diz que Deus dá a Jesus seu próprio nome, isso significa que
lhe transmite, ao mesmo tempo, todo o seu poder. Esta ideia está,
certamente, contida na maneira em que os cristãos primitivos com-
preendiam a glorificação de Jesus, como o veremos mais adiante
ao estudarmos a soberania de Cristo segundo as passagens que
não contêm diretamente o título Kyrios; porém, que encerram, sob
uma forma ou outra, a ideia de seu senhorio.
A soberania concedida ao Kyrios Iesous, doravante igual a
Deus, se manifesta concretamente em que todas as potestades da

W. FÕRSTER, Herr ist Jesus, 1924, p. 122; igualmente e de uma maneira muito
categórica, L. CERFAUX, La Théologie de Saint Paul, 1951, pp. 347-358.
286 Oscar Cullmann

criação (inclusive as invisíveis) lhe estão submetidas e que verda-


deiramente "todo joelho se dobra nos céus, na terra e debaixo da
terra e toda língua confessa que Jesus Cristo é o Senhor". Quando
no Novo Testamento se coloca a Cristo em pé de igualdade com
Deus, é sempre nesta base.
À luz desta convicção, de haver Cristo recebido "todo poder
nos céus e na terra", se considera também sua existência anterior.
Assim, em Fl 2.6 ss. o apóstolo mostra como esta soberania final
de Jesus foi preparada desde o começo pela obediência daquele
que era a imagem de Deus. Mas veremos que em outras passagens
do Novo Testamento uma outra espécie de vínculo se estabelece
entre a soberania atual do Cristo e sua preexistência. São as passa-
gens que falam da participação de Cristo na criação ou antes de
sua função como mediador na criação; os estudaremos na última
parte ao tratar os títulos relativos à preexistência de Jesus. Aqui
nos limitamos a constatar que a fé no Senhor presente conduz.
necessariamente à certeza de estar Jesus predestinado desde o prin-
cípio a reinar sobre toda a criação, e consequentemente que a
cristologia tem desde o início também um aspecto cosmológico.
Assim, a ideia de Filho do Homem é a única que relaciona a
cristologia ao relato do Génesis.
Porém, antes de falar das consequências que decorrem da
noção de Kyrios (e que fazem com que excepcionalmente Jesus
possa simplesmente ser chamado "Deus"), nos falta, todavia, exa-
minar o terceiro texto paulino em que se encontra a fórmula "Jesus
é o Senhor".
Paulo pensa aqui na situação das comunidades helenísticas,
e o emprego da confissão de fé cristã, fora de toda dúvida, foi
influenciado pelo pensamento acerca dos outros kyrioi helenís-
ticos, e primordialmente do Kyrios Kaisar. Em 1 Co 12.3,
lemos: "Por isso, vos declaro que ninguém que fala pelo Espírito
de Deus afirma: Jesus seja amaldiçoado! Por outro lado, ninguém
pode dizer: Jesus é o Senhor senão pelo Espírito Santo." Esta
palavra se encontra no começo de uma exposição sobre os dons
CRISTOLOGIA DO iNOVO TESTAMENTO 287

espirituais; costuma-se aplicá-la à glossolalia. E, com efeito, tendo


em conta o contexto, se poderia talvez interpretar este versículo
deste modo. Só que a glossolalia é uma maneira de falar desarti-
culada; e aqui se trata de palavras perfeitamente inteligíveis com
as quais se trata de maldizer a Jesus Cristo ou de confessá-lo.
A situação se assemelha à de Rm 8 onde Paulo quer demonstrar
que em toda oração é o próprio Espírito quem fala. Ao fazê-lo,
pensa seguramente também naquela forma extrema de lingua-
gem ditada pelo Espírito que resulta na glossolalia; porém, diz
em especial que toda oração, portanto também a que se formula
com palavras inteligíveis, é obra do Espírito. Em 1 Co 12.3 não
se trata da oração, mas da confissão de fé. De forma muito análo-
ga, a confissão é compreendida aqui como operada pelo Espírito.
E possível que aqui ainda Paulo pense também nesta linguagem
direta do Espírito que é a glossolalia; mas ele pensa antes, de uma
maneira geral, em toda confissão de fé - e especialmente na con-
fissão de fé primitiva: "Jesus é o Senhor" e seu contrário: "Maldi-
to seja Jesus!". Ambas as declarações são postas em relação com o
Espírito; a primeira, como prova da ação do Espírito; a segunda,
como prova de sua ausência.
Acredito que trata-se aqui antes do culto imperial e das perse-
guições sofridas pelos cristãos, por causa da confissão de fé*. Kyrios
Christos. Muito provavelmente haja aí uma alusão à palavra de
Jesus que promete aos discípulos a inspiração do Espírito Santo
para o dia em que, submetidos a perseguições, tenham de compa-
recer diante dos juízes e devam confessar sua fé (Mt JO.17 ss.):
"Porque vos entregarão aos tribunais e vos açoitarão nas suas
sinagogas; por minha causa sereis levados à presença de governa-
dores e de reis, para lhes servir de testemunho, a eles e aos gentios.
Mas, quando vos entregarem, não cuideis em como ou o que haveis
de falar, porque, naquela hora, vos será concedido o que haveis de
dizer, visto que não sois vós os que falais, mas o Espírito de vosso
Pai é quem fala em vós."
Cabe-nos comparar este texto com a carta do governador Plínio
ao imperador Trajano, em que descreve o procedimento empregado
288 Oscar Culhnann

contra os cristãos. Por ela nos inteiramos de que para renegar não
bastava dizer Kyrios Kaisar e oferecer um sacrifício à estatua do
imperador: os cristãos acusados deviam, ademais, maldizer a Cristo,
para provar que o sacrifício oferecido ao imperador era sincero.
Encontra-se uma situação análoga também no Martírio de
Policarpo (8.2), onde o funcionário romano diz a Policarpo: "Que
tem de mal em dizer Kyrios Kaisar e fazer o que a respeito está
prescrito?" Este fim de frase indiscutivelmente alude à maldição
exigida contra o Cristo. Embora, em ambos os casos, se trate de
testemunhos do começo do século II, não temos razão alguma para
supor que no primeiro século, em que o culto ao imperador era tão
celebrado, o procedimento tenha sido sensivelmente diferente.
Vemos, com efeito, que em Tessalônica os judeus acusam a Paulo
e a seus partidários de atuar contra os éditos de César "dizendo
que existe um outro rei, Jesus" (At 17.7).
Se pensarmos nesta situação, a promessa de Jesus lança uma
luz particular sobre 1 Co 12.3. Os cristãos que haviam falhado
ante os tribunais pagãos, que tinham oferecido um sacrifício ao
imperador e amaldiçoado a Cristo, sem dúvida buscaram em
seguida desculpar-se diante de seus irmãos amparando-se nas
palavras de Jesus (Mt 10.17 ss.) e afirmando que o Espírito Santo,
conforme a promessa, havia falado por sua boca no momento do
interrogatório, e lhes havia induzido a dizer: "Maldito seja Jesus!"
Provavelmente é em tais situações que Paulo pensava ao recordar
aos Coríntios que o Espírito Santo, que assiste aos perseguidos,
atua exclusivamente ali onde se confessa ao Kyrios lesous. Aque-
le que na perseguição amaldiçoa a Cristo, mostra, enfim, que o
Espírito Santo não falou por ele.
Vemos, pois, que desde muito cedo, a confissão de fé Kyrios
lesous adquiriu acentuada importância para os cristãos fora da
Palestina, principalmente durante as perseguições. Inquestionavel-
mente, a ideia da soberania de Cristo já existia, vinculada à fé em
sua glorificação e em sua vinda ao seio da igreja reunida para o
culto. Porém, esta ideia se concretiza de maneira particular em
oposição ao culto imperial, no qual se devia adorar como Kyrios
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 289

um ser cuja soberania mundial estava à vista de todos e era, por


assim dizer, palpável.441 O caráter vivo, atual, do senhorio do único
e verdadeiro soberano, Jesus, se tornava, por contraste, mais preciso.
O Estado não podia entender por que os cristãos preferiam morrer a
ceder neste ponto. É que a confissão Kyrios Christos careceria de
sentido se houvesse ao seu lado outro Kyrios. No Apocalipse de
João, que está repleto de alusões ao culto imperial, Cristo é designa-
do expressamente como KÚpioç ícopícov, e "Rei dos reis". Isto signi-
fica que o Kyrios é Jesus, e não o imperador (Ap 17.14).
O título PaoiXevç, "rei", é uma variante do título Kyrios
e não temos necessidade de consagrar-lhe um capítulo particular.
Já vimos que a ideia de Messias-rei não pode ser aplicada senão a
essa soberania que Jesus exerce desde sua ressurreição. Não se
trata, ademais, do reino terrestre do Messias esperado pelos
judeus, mas de um reino que "não é deste mundo".
Jesus é chamado "rei dos judeus" em Mt 2.2; 27.11, 29, 37;
Mc 15.2, 9, 12, 18, 26; Lc 23.3, 37, 38; Jo 18.33, 39; 19.3, 14, 19
ss. Aparece como "rei de Israel" em Mt 27.42; Mc 15.32; Jo 1.49;
12.13. A maior parte destas passagens se relaciona à acusação
romana contra Jesus. A inscrição posta na cruz, o titulus, dá como
causa de sua condenação o haver aspirado à realeza. Esta expres-
são é pois tomada aqui no sentido político dos zelotes, enquanto
que os cristãos lhe atribuíram uma significação não política, rela-
cionada ao título Kyrios.
Se quiséssemos estabelecer uma distinção entre Paoi^eíiç e
Kyrios poderíamos dizer que "rei" sublinha mais vigorosamente a
soberania de Jesus sobre sua igreja, na medida em que esta é
sucessora de Israel, e em que Jesus Cristo leva a realeza de Israel à

Sobre a relação entre o culto ao imperador e o título - puramente político origina-


riamente - de Kyrios concedido ao imperador, cf. acima, p. 259 ss. A lembrança de
ter sido o próprio Jesus condenado pelos romanos como pretendente ao trono (como
o prova a inscrição colocada sobre a cruz) deve já, por si mesma, ter favorecido, na
consciência dos cristãos, esta oposição entre o KúpioçXpicTÓçe o Kúpioç Katoop-
Cf. O. CULLMANN, Diett et César, 1956, p. 45 s.
290 Oscar Cullmann .

sua consumação; enquanto "Kyrios" sublinha, antes, a soberania de


Jesus sobre o universo, sobre a criação inteira, visível e invisível.
Porém, a despeito deste matiz, que a rigor se pode descobrir
entre os títulosfiaaiXEvç,e Kyrios aplicados a Jesus, constatamos,
no entanto, que são termos intercambiáveis. Pois, por um lado, a
soberania do Kyrios também tem que ver com a realeza de Jesus
sobre Israel, isto é, sobre sua igreja; e por outro lado, o título de rei
viza também sua soberania sobre toda a criação. Kúpioç é, então,
sinónimo de ftaoiXevç, em todas as passagens onde se ressalta a
oposição à pretensão de soberania do imperador. E quando Jesus é
chamado "Rei dos reis" e "Senhor dos senhores" (pacnAeúç Ccòv
(JaaiA,ewvTtov e K-ópioç tcòv icupieuóvTíov, 1 Tm 6.15; cf. Ap
17.14), o autor pensa, da mesma forma, em sua soberania
sobre o mundo. Outro tanto ocorre quando em 1 Co 15.25, refe-
rente à realeza de Jesus, se diz: "Porque convém que ele reine
(pao"il£Í)Eiv) até que tenha posto todos os inimigos debaixo dos
seus pés." Aqui também o apóstolo pensa na soberania de Jesus
sobre a criação inteira, sobre todas as potestades invisíveis com as
quais são identificados os "inimigos" que ele põe "debaixo dos
pés". Enfim, para provar a sinonímia de fkxoiA,EÍ>ç e de Kvptoç,
recordemos que o Evangelho de Mateus - o que de todos os Evan-
gelhos, sublinha mais vigorosamente desde o primeiro capítulo a
dignidade de Jesus como "rei de Israel" - termina com a afirma-
ção da soberania total do Ressuscitado no céu e na terra: "Todo
poder me foi dado no céu e na terra" (Mt 28.18). Veremos, ademais,
que a simultaneidade da "soberania sobre a Igreja" e da "soberania
sobre o mundo" caracteriza a concepção neotestamentária da
ícopicnriç de Jesus. Já achamos a explicação disso no fato de que os
primeiros cristãos experimentaram primeiramente a soberania de
Jesus no seio de sua pequena comunidade, no curso de suas assem-
bleias cultuais.
W. Fõrster, Herr ist Jesus, 1924, p. 142, crê que tem de excluir
inteiramente da fé da cristandade primitiva a significação cósmica da
KupiÓTriç de Jesus. É exato que em Rm 10.12 e At 10.36 a expressão
icópioç Ttávccov se refere à soberania sobre os homens; e que na citação
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 291

do Antigo Testamento de 1 Co 10.26 ("a terra c do Senhor"), é possível


que com "Senhor" se designe a Deus. Porem, não devemos nos limitar
aqui aos trechos que contenham expressamente o termo Kyrios, antes,
temos que estender nosso estudo até àqueles que falam de maneira geral
da soberania de Jesus. Se Fõrster recusa a ideia de uma soberania de
Jesus no mundo, é por pensar que para os primeiros cristãos, Jesus não é
o Senhor senão na medida em que ele faz uma reivindicação absoluta de
soberania sobre nós.

* * *

Falta-nos falar das passagens que, sem conter necessariamente


os títulos de "Senhor" ou de "Rei", expressam a ideia teológica da
soberania de Cristo.442 Unicamente assim, ampliando o campo de
nosso estudo, poderemos captar todo o alcance do título e da fun-
ção de Kyrios para a cristologia do Novo Testamento. Como sobre
este ponto reina acordo total entre os escritores do cristianismo
nascente443 podemos, contrariando nosso método habitual, apelar
aqui, para cada aspecto do problema, a passagens tiradas de diver-
sos autores. Paulo, certamente, ocupará um lugar de honra. Um
parágrafo especial será consagrado ao Evangelho de João mesmo
considerando que sua concepção não difere da dos demais textos
neotestamentários. Este consenso é suficiente para demonstrar a
importância capital que o cristianismo primitivo atribui à fé na
soberania de Cristo. Nossa pergunta é a seguinte: em que consiste,
exatamente, afunção indicada pelo título de Kyrios concedido ao
Cristo glorificado?
No que concerne à ideia de "soberania de Jesus", temos de
levar em conta todas as passagens (são numerosas) que declaram
que Jesus está "sentado à destra de Deus" e que "todos os inimi-
gos lhe estão submetidos". Como vimos no capítulo concernente

^Utilizamos aqui as ideias principais de nosso estudo sobre "Laroyautédu Christ et


TEglise dans le Nouveau Testament", Foi et Vie, Paris, 1941.
1
H. CONZELMANN estima que sobre este ponto, Lucas tem uma concepção dife-
rente {Die Milte derZeit, 1954, p.146 ss. Cf. abaixo, p. 309, nota 461.
292 Oscar Cullmann

ao sumo sacerdote, trata-se de uma aplicação do Salmo 110 a Jesus,


interpretado messianicamente. Não é demais recordarmos que a pro-
clamação da elevação de Cristo à direita de Deus - que muito cedo
aparece no Credo - emana formalmente deste salmo real.
Nada demonstra melhor quão central era, no pensamento do
cristianismo primitivo, a ideia da soberania presente do Cristo do
que as numerosas citações deste Salmo. Estas não se limitam a
determinados autores, mas se espalham por todo o Novo Testa-
mento. Inquestionavelmente, não há nenhuma passagem do Anti-
go Testamento tão citada pelos autores do Novo. Nós a encontra-
mos em: Rm 8.34; 1 Co 15.25; Cl 3.11 Ef 1120; Hb 1.3; 8.11 ;0.13;
1 Pe 3.22; At 2.34; 5.31; 7.55; Ap 3.21 ;Mt 22.44; 26.64; Mc 12.36;
14.62; 16.19; Lc 20.42; 22.69. Voltamos a encontrá-la até nos Pais
apostólicos: 1 Ciem. 36.5 eBarn. 12,10.
Dizer que Jesus, cumprindo esta palavra do Salmo, "sentou-
se à destra de Deus", é confessar o Kyrios Christos em outros ter-
mos. Esta expressão se tornou tão corrente que inclusive era repe-
tida sem referência direta ao Salmo. Até a achamos, já no Novo
Testamento, inserida na fórmula de confissão de fé mais desen-
volvida que, em 1 Pe 3.22, se destaca nitidamente do contexto:
"Está sentado à destra de Deus, havendo subido ao céu e lhe estão
sujeitos anjos, autoridades e potestades."444 Os "anjos, autorida-
des e potestades" são uma alusão implícita aos "inimigos", àque-
les que o Salmo 110 diz que serão postos "sob os pés do Senhor".
Enquanto o salmo se refere aos inimigos terrenos de Israel, os pri-
meiros cristãos os identificaram com as potestades invisíveis; a
menção da "sujeição" destas potências significa Cristo ser agora
para eles, o único soberano ao lado de quem não existe outro, nem
nos céus e nem na terra. Ainda que estas potestades existam, toda-
via, todo poder lhes foi tirado.
Um fato demonstra a importância desta certeza para os pri-
meiros cristãos: as mais antigas confissões de fé, as que encontra-
mos no Novo Testamento e nos Pais apostólicos, repetem com

Cf. BO REICKE, The disobedient Spirits and Christian Baptism, 1946, p. 198 ss.
C-RISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 293

regularidade que Cristo está sentado à destra de Deus e que todas


as potestades lhe foram submetidas. Sem tal dominação das potên-
cias invisíveis Cristo não seria o Kyrios ao lado de quem não há
nem pode haver outro. Assim, lemos na confissão de fé contida
em 1 Tm 3.16 "...visto pelos anjos". Além do texto já mencionado
de 1 Pe 3.22, encontramos também a ideia da dominação exercida
por Jesus sobre os ènoupávux, èjiiycro: e Ko.xaxQò\m na passa-
gem estudada, já muitas vezes, da Epístola aos Filipenses (2.9 s).
São estas potestades que confessam que Jesus é o Kyrios e que
dobram seus joelhos diante dele. À parte o Novo Testamento, a
submissão dos poderes é afirmada nas confissões de fé citadas por
Inácio de Antioquia e Policarpo {TralL 9.1; Epístola de Pollcarpo
2.1). Em Justino (Apol. 1.42) e em Irineu (Adv. Haer. 1.10, 1),
constatamos que a confissão de fé em Cristo "o Senhor" menciona
seu domínio sobre todas as forças da criação, visíveis e invisíveis.
Sublinhamos este fato para demonstrar a importância desta afir-
mação para a fé dos primeiros cristãos. Estas antigas confissões
conservam, da fé cristã primitiva, só os pontos essenciais e os for-
mulam, da maneira mais concisa possível. Logo, se nestes resu-
mos condensados se menciona com regularidade a soberania de
Cristo sobre as autoridades e potências, não é por ser um artigo de
fé secundário, mas, pelo contrário, por ser fundamental.
Surge da experiência da presença, do "senhorio" do Cristo,
que os primeiros cristãos tinham em seu culto; e é compreensível
que este senhorio tenha chegado a ser como a bússola graças à
qual podiam orientar-se em todos os acontecimentos que se desen-
volveram ao redor deles e neles.
A simultaneidade das declarações relativas à soberania de Cristo
sobre o pequeno grupo dos fiéis por um lado, e sobre o universo
inteiro, por outro, é notável. Temos visto, também, que os primeiros
cristãos confessavam sem cessar como senhor do mundo a este
Senhor, cuja presença viva experimentavam no cultoda igreja. Como
justificaram teologicamente esta simultaneidade?
Antes de mais nada, precisamos estabelecer o que há de
comum entre estas duas "soberanias" de Cristo: sobre a igreja e
294 Oscar Cullmatm

sobre o mundo. Em primeiro lugar, ambas se relacionam ao mes-


mo período temporal limitado, no que se distinguem do "reino de
Deus".4115 Este viria unicamente no fim dos tempos; o senhorio de
Cristo, em troca, assim como a própria igreja, pertence ao período
intermediário que vai da ascensão à parusia. Isto é, que a sobera-
nia de Cristo, diferentemente do reino de Deus, já começou: "(Deus
nos tem) transportado ao reino do Filho do seu amor" (Cl 1.13).
Todos os textos que falam de "Cristo sentado à destra de Deus",
ou da "submissão" das potestades, se referem, implícita ou expli-
citamente, à ascensão como ponto de partida cronológico deste
Senhorio; todos, excetuando-se Hebreus 10.13 e 1 Co 15.25. Nes-
tas duas passagens, a submissão das potestades é anunciada
somente para o fim dos tempos. Encontramos novamente a con-
cepção neotestamentária acerca do tempo, segundo a qual a fase
final da história já começou, mas sem que o fim tenha ainda che-
gado. Assim se explica que, segundo toda uma série de textos, a
vitória sobre as potestades seja coisajá conquistada, enquanto que
segundo estes dois textos ainda é esperada. Para empregar uma
imagem tomada do Apocalipse, poderíamos dizer que estas potes-
tades estão temporariamente "amarradas", devendo aguardar o fim
dos tempos para serem definitivamente vencidas

A tensão resultante da coexistência do "já" e do "ainda não", tão


característica da situação do Novo Pacto tem então por resultado que,
segundo 1 Pe 3.22, asubmissão das potestades hostis já se tenha produ-
zido, enquanto que segundo a Epístola aos Hebreus, o Cristo sentado à
destra de Deus ainda a "aguarda" (Hb 10.13). Daí nasce também essa
tensão típica entre a "submissão" e a "aniquilação" das potestades.
O verbo Kcetcípyeív, que o Novo Testamento emprega livremente nestas
duas passagens, tem dois sentidos: "submeter" e "aniquilar". Encontramo-
lo em 2 Tm 1.10, onde se trata da vitória já alcançada sobre a morte pelo
Crucificado, mas também em 1 Co 15.26 onde sedizquea vitória sobre
a morte terá lugar depois do retorno de Cristo. Da mesma forma em Ap
20.14, só no fim dos tempos a morte será lançada no lago de fogo. Em um

115
Sobre a diferença entre o Pai e o Filho, que não concerne senão à obra da salvação,
cf. abaixo, p. 382 s.
CRISTOLOGIA E>O Novo TESTAMENTO 295

e outro caso trata-se cie uma vitória: na primeira vez a morte é somente
"despojada de seu poder" (2 Tm 1.10), enquanto que na segunda vez é
definitivamente aniquilada (1 Co 15.26; Ap 20.14). Outro tanto ocorre
com respeito às demais potestades. Entre as duas vitórias, as potências
são sujeitadas à dominação de Cristo; porém, estão, ao mesmo tempo,
por assim dizer, atadas por um laço que tanto pode encurtar-se como alar-
gar-se, de sorte que têm a ilusão de poderem livrar-se. Ilusão, pois na rea-
lidade já estão vencidas. A decisão já interveio e a soberania do Cristo, por
conseguinte, começou. Cristo é, a partir do presente, o Kyrios.*^

Assim como esta soberania tem um começo, terá também um


fim. Qual será a data? O Novo Testamento não o diz; porém, ela
coincidirá com um acontecimento determinado: o retorno de Cris-
to. O senhorio de Cristo começou, pois, com sua ascensão e aca-
bará com seu regresso. É por isso que os dois "homens vestidos de
branco" de Atos 1.10 afirmam a analogia exterior dos dois aconte-
cimentos que emolduram a soberania de Cristo: "Este Jesus que
foi elevado ao céu do meio de vós, virá da mesma maneira (isto é,
nas nuvens) como o haveis visto ir ao céu."
Em Apocalipse e em 1 Co 15.24, o retorno de Cristo e os
acontecimentos que o seguem imediatamente, se apresentam como
o fim da soberania de Cristo. Depois da vitória final alcançada
pelo Filho, este "entregará o reino a Deus o Pai", como disse o
apóstolo (1 Co 15.24). De maneira concentrada e definitiva este
ato final resume tudo o que se passou antes, logo, o que ocorre na
fase atual da história da salvação, principalmente a vitória sobre
Satanás e as "potestades".
Dissemos que a soberania de Cristo acaba com seu regresso. Esta
afirmação necessita de uma ligeira correção no sentido de que, ao menos
no Apocalipse, o reino de Cristo avança um pouco sobre o "século vin-
douro". Isto é o que surge da ideia de milénio,411 que só encontramos no
Apocalipse, e que representa a Igreja tal qual será na época deste aconte-

H,
'Cf. sobre o conjunto da questão: O. CULLMANN, Les premiares confessions de foi
chrétiennes, 1943. Dieu et César, 1956, p. 97 ss.
117
Sobre esta questão, cf. o estudo recente de H. BIETENHARD, Das tausendjãhrige
Reich, 2a ed., 1955.
2% Oscar Cullmann

cimento final. Não cremos que, para o Apocalipse, este reino de mil anos
tenha de identificar-se com todo o tempo da igreja compreendido entrega
ascensão e z.parusia, como pensava St. Agostinho, seguindo ao donatista
Ticônius. Trata-se de um reino escatológico, no sentido específico do
termo, que não se realizará senão no futuro. É, por assim dizer, o último
capítulo da soberania de Cristo que invade o século vindouro. Por conse-
guinte, não temos que identificar o milénio nem com a duração total da
soberania de Cristo, nem com a Igreja tal qual é agora. A soberania de
Cristo abarca algo a mais, pois, já começou e está ligada ao século pre-
sente, por tempo indeterminado. O milénio, por outro lado, do ponto de
vista temporal pertence ao momento final desta soberania que começará
com seu retorno para, então penetrar no éon futuro. Para o Apocalipse a
soberania de Cristo não começará no seu regresso; iá é um fato desde a
Páscoa e a Ascensão Com efeito no Apocalipse desde o princíbio
lemos que o Cristo tem as chaves da morte e do lugar dos mortos (1 18i
equeéorjríncÍDedosreisdatevrad 5^ Mais adiante queelegoverrrt^
nações com vara de ferro (12 5' 19 5"l e que o seu nome é "Rei dos rei*;"
e "Senhor dos senhores" (19 6)

O tempo da igreja coincide exatamente com o tempo da reale-


za de Cristo, no qual se encontra a mesma tensão entre o presente e
o futuro, e assim como o avanço sobre o século vindouro.
A igreja também tem um começo e um fim. Ela também tem por
ponto de partida a morte e a ressurreição de Cristo. Certamente o
Antigo Testamento já conhecia uma "igreja": o povo eleito de Deus,
depois o "remanescente" de Israel que se converteu. Porém, este
mera antecipação da igreja verdadeira. Pois esta não existe senão
desde o momento em que o Espírito Santo foi dado àqueles que Lhe
pertencem, isto é, desde a Páscoa e Pentecostes. O tempo da sobera-
nia de Cristo é, efetivamente, o tempo do Espírito Santo e este não
pode começar senão depois da glorificação de Cristo (Jo 7.39). Em
Mt 16.18 Jesus também refere-se ao futuro: "Eu construirei minha
igreja (OÍKOÔOUT|CTG>)", isto é, depois de sua morte e ressurreição.
O fim da igreja coincidirá, também, com o fim da soberania
de Cristo, a saber: com a parusia, ainda que penetre também um
pouco no século vindouro. É assim que no ato final, Cristo será
rodeado daqueles que sobre a terra formaram sua igreja: os após-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 297

tolos se sentarão sobre doze tronos (Mt 19.28) e reinarão com ele
(Ap 5.10; 20.4; 2 Tm 2.12). Quanto aos "santos", isto é, todos os
membros da igreja, eles julgarão as potestades angélicas (1 Co 6.2
s.). O milénio anunciado pelo Apocalipse será, por conseguinte, a
igreja do fim dos tempos.
Quanto à tensão entre o "já" e o "ainda não", ela se dá com a
presença do Espírito Santo que constitui a igreja. O Espírito Santo
é então ele mesmo as primícias do fim (catapxTi Rm 8.23: àppapdw,
2 Co 1.22; 5.5; Ef 1.14).
Não obstante esta identidade fundamental quanto ao tempo,
entre a soberania do Cristo e a igreja, existe entre elas uma dife-
rença essencial ligada não ao tempo, mas ao espaço. O domínio
sobre o qual se estende o senhorio do Cristo não coincide com o
da Igreja; e esta diferença espacial nos permite distinguir a sobera-
nia de Cristo sobre o mundo de sua soberania sobre a igreja. Para
bem compreender o caráter da K\)pióiri<; do Cristo, devemos ela-
borar com cuidado este ponto.
A extensão da soberania de Cristo suplanta infinitamente os
limites da igreja. Nenhum elemento da criação lhe escapa: "Todo
poder lhe foi dado no céu e sobre aterra" (Mt28.19); "toda criatu-
ra no céu e na terra e debaixo da terra confessa que Cristo é o
Senhor" (Fl 2.10); "tudo o que está sobre a terra e nos céus" foi
reconciliado por Jesus Cristo com Deus (Cl 1.14 ss.).
O senhorio presente de Cristo é exercido não só sobre o mun-
do visível como também sobre as potestades invisíveis, presentes
por detrás dos dados empíricos e de maneira grandiosa e principal-
mente sobre as potestades invisíveis ocultas por detrás do Estado.

Costuma-se combater como mais ou menos "extravagante" a opi-


nião que defendemos, com outros, segundo a qual para o Novo Testa-
mento o Estado está vinculado às potestades invisíveis, aos èi^oocrícu de
que fala Paulo. Seguimos, no entanto, crendo firmemente que em Rm
13.1 o termo è^owícu designa muito provavelmente duas coisas: a
potestade empírica do Estado e as potências invisíveis ocultas por detrás
dele. A crença do judaísmo tardio na existência de "anjos das nações"
nos inclina, também, nesse sentido. Além disso, temos que sublinhar que
298 Oscar CuUmann

a expressão è^oucvai jamais tem em Paulo outro sentido, e que - pensa;


mos por exemplo nos "arcontes" de 1 Co 2.8 s. - a justaposição das
potestades invisíveis e seus órgãos executivos terrestres se apresenta cor-
rentemente no Novo Testamento. (Cf. a este respeito nossa obra Dieu et
César, p. 60 ss. 97-120). Para responder às objeções que também se
posicionaram contra os argumentos desta última obra, gostaríamos de
insistir no fato de que quando a cristandade primitiva remete ao Salmo
110, os è%0poí que aí são nomeados, isto é, os inimigos políticos de
Israel - são entendidos regularmente como "autoridades" e "potestades"
invisíveis. Remetemos igualmente ao relato da tentação em Lucas que
R. Morgenthaler recentemente estudou sob este aspecto (Cf. "Roma -
Sedes Satanae Rõnt. 13.1 jfim Lichte von Lk. 4.5-8" (ThZ, 12, 1956,
p. 289 ss., Festgabef. Karl Barth, 2a parte).

O senhorio de Cristo há de estender-se a todos os âmbitos da


criação. Se houvesse um só onde este senhorio fosse excluído não
seria total e Cristo deixaria de ser o Kyrios. Por isso a esfera do
Estado também, e ela principalmente, tem que estar incluída em
sua soberania. A confissão de fé Kyrios Christos que se opõe ao
Kyrios Kaisar, o prova e mostra quão central é esta ideia para a fé
na soberania de Cristo.
Sobre um ponto, contudo, convém formular uma restrição: embora
o senhorio de Cristo não conheça limites, seu domínio não coincide pura
e simplesmente com a criação, como há de ser no fim dos tempos.
No interior desta soberania total subsiste ainda uma potência que haven-
do sido, sem dúvida, vencida, não foi, todavia, aniquilada: A potestade
da "carne", da "morte", que é o "último inimigo". O Espírito Santo, que
já está operando, não pode ainda transformar os corpos terrestres em
corpos "espirituais"; porém, o fará no futuro (Rm 8.11, 23; 1 Co 15.35
ss.).*18 Falar de "restrição" do senhorio de Cristo não significa, pois, que
uma parte da criação Lhe fique excluída. Temos que entendê-lo de prefe-
rência da maneira seguinte: por um lado a "carne" e a "morte", embora
vencidas, estão, todavia, ativas no interior do domínio submetido a Cris-
to; por outro, cada elemento da criação pode, aparentemente, escapar à
submissão a Cristo e rejeitá-lo; assim o Estado pode tornar-se "demonía-
co" e aparentar ter escapado a este senhorio.449

Cf. O. CULLMANN, Immortalité de Vâme ou réssurrection des morts?, 1956.


Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 83 s.
CRISTOLOCÍÍA DO NOVO TESTAMENTO 299

Nas epístolas aos Efésios e aos Colossenses o senhorio de


Cristo sobre a criação visível e invisível é representado pela ima-
gem da tce(paXri, a cabeça: "Cristo é a cabeça de todo principado e
de toda autoridade" (Cl 2.10). "Deus decidiu, quando se cumpri-
rem os tempos, reunir todas as coisas em Cristo (= reunir sob uma
só cabeça: àvaKE<paXaió)cao"9ai), as que estão nos céus como as
que estão na terra" (Ef 1.10). Porém, ao mesmo tempo Cristo é
apresentado nestas duas epístolas como "cabeça" da igreja (Cl 1.18;
Ef 1.22), o que é importante para o problema das relações entre o
senhorio de Cristo sobre a igreja e seu senhorio sobre o mundo.
Cristo reina sobre a criação inteira, porém, reina também sobre
esta pequena igreja terrena.
Depois de havermos constatado a diferença espacial que existe
entre os dois domínios da soberania de Cristo, temos de achar o
elo que os une a este respeito. Seria erro afirmar simplesmente
que Cristo é o chefe da igreja porque ela forma parte da criação
representando, assim, um fragmento do universo sobre o qual se
estende o Seu senhorio. A importância da igreja para o senhorio
total de Cristo é muito maior; pois, do ponto de vista do espaço,
ela é o centro apartir do qual Cristo exerce sua realeza invisível
sobre o mundo. Em Christ et le temps,450 tentamos representar
graficamente esta relação pela imagem de dois círculos concêntri-
cos: o círculo interior representa a igreja, o exterior a totalidade do
domínio sobre o qual Jesus Cristo exerce sua soberania.
O Novo Testamento expressa a posição central que a igreja
ocupa no senhorio de Cristo denominando a igreja "corpo de Cris-
to". A igreja é o corpo terreno do Cristo ressuscitado, que desde a
ascensão está sentado à destra de Deus, na plenitude da glória do
Pai. Porém, ao mesmo tempo, este Cristo também se chama
"cabeça" (KetpocJtT)) de toda a criação e "cabeça" da igreja. Disso
resulta uma certa incoerência na comparação, pois ele é ao mesmo
tempo cabeça e corpo para a igreja, e por outro lado, como está
dito em Ef 4.15, o corpo cresce para aquele que é a cabeça. Porém,

2a ed., 1957, p. 134.


300 Oscar Cullmann

esta incoerência aparente caracteriza, justamente, a relação parti-


cular que existe entre a igreja e o senhorio de Cristo: por um lado, a
igreja é parte do domínio total submetido a seu senhorio, domínio
do qual ele é a cabeça; por outro, Jesus Cristo está presente neste
domínio limitado da igreja de uma maneira particular, diferente que
no resto do mundo que lhe está sujeito. Este fato situa a igreja em
uma tensão muito especial, no sentido de que, por um lado, é o
corpo de Cristo, isto é, o que de mais elevado possa haver sobre a
terra, e por outro, ela está submetida a Cristo, seu chefe, como todas
as demais partes da criação compreendidas pelo seu império.
A fim de captar melhor as relações entre estes dois domínios,
dos quais Cristo é a KE(paAr\, é preciso falar ainda de uma outra
diferença. Esta concerne aos membros da igreja, no que se refere a
tudo quanto está, por outro lado, submetido a Cristo: os membros
da igreja conhecem este senhorio enquanto o restante pertence
a este senhorio sem ter disso consciência. Se dentro da criação,
sobre a qual todo o poder lhe foi dado, Cristo escolheu justamente
por centro este espaço estreitamente limitado que é a igreja, esta
extrema concentração também há de ter um sentido para seu
senhorio total. Ter um senhor significa sempre duas coisas: estar
submetido e também, não obstante, ter parte no senhorio. Toca-
mos aqui na diferença mais importante entre o senhorio de Cristo
sobre o Universo e seu senhorio sobre a igreja. Vimos que todas as
criaturas no céu, na terra e debaixo da terra, formam parte da esfe-
ra sobre a qual Cristo é o Senhor; por conseguinte também todas
as autoridades e todas as potestades invisíveis, com seus órgãos
executivos, tais como os estados terrenos. Elas estão totalmente
incorporadas ao seu senhorio; e assim se compreende porque mes-
mo aqueles que confessam o senhorio de Cristo devem-lhes obedi-
ência (Rm 13.1 ss.).
Contudo, todas estas potestades exteriores à igreja não são
membros do senhorio de Cristo senão de um modo muito indireto;
pois, não conhecem necessariamente o papel que lhes é destinado
no interior deste senhorio. Quando Paulo, e antes dele Jesus, falou
sobre a submissão ao imperador e ao Estado, se referia ao Estado
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 301

pagão que não conhece a Cristo e seu reino, nem a Deus o Pai de
Jesus Cristo. Um Estado pagão, tal qual o império romano, pode,
pois, também cumprir, dentro do senhorio de Cristo, a missão que
Deus lhe destinou sempre que se limite a sua função de Estado e
que permita, assim, à igreja, que ocupa neste senhorio lugar
tão importante, "levar uma vida pacífica e tranquila" (1 Tm 2.2).
Assim um Estado pagão pode plenamente desempenhar seu papel
e ocupar seu lugar dentro deste senhorio sem saber que faz par-
te dele.
Por isso, segundo o Novo Testamento, a resistência cristã a
um Estado nunca pode justificar-se pelo mero fato desse Estado
ser pagão. Uma resistência não é legítima salvo quando o Estado,
saindo do seu papel, se autodeifica, isto é, quando tenta ultrapas-
sar os limites que o Senhor lhe destina.451
Como o único que conhece esta subordinação do Estado ao senho-
rio de Cristo é o cristão, para este o Estado tem - o que pode parecer
paradoxal - uma importância maior do que para qualquer outro cidadão.
Porém, se por outro lado o Estado ultrapassa seus poderes, o cristão é o
que mais é afetado, em comparação aos não-cristãos que, talvez, tenham
suas dúvidas a respeito. Pois, neste caso, o cristão vê o Estado desfazer-
se do senhorio de Cristo. Vê a potência demoníaca safar-se de seus laços
e surgir "a besta".

A diferença fundamental entre os membros do senhorio de


Cristo, tomados em conjunto, e os membros da igreja reside, pois,
em que unicamente os membros da igreja sabem que estão sujei-
tos ao Senhor universal. Os membros da igreja pertencem, pois,
conscientemente ao reino do Kyrios, enquanto que os demais per-
tencem da mesma maneira, porém, inconscientemente. Assim, do
ponto de vista teológico esta pequena comunidade pode ser o cen-
tro do senhorio total de Cristo sobre o universo, sobre as potências
visíveis e invisíveis. A desproporção aparente entre este pequeno
grupo de homens e sua enorme importância para o mundo inteiro,

Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, em part. p. 62 ss.


302 Oscar Cullmann

é explicado pelo princípio de substituição, que se encontra - j á o


temos visto - em toda a história da salvação.452
Os membros da igreja conhecem não somente a situação dos
membros inconscientes do senhorio de Cristo: sabem, também, e
principalmente, que missão cabe àqueles que confessam o senho-
rio de Cristo. Por isto, no ato final de sua soberania (Cf. Ap 20.1
ss.), os membros conscientes tomarão parte no juízo feito sobre os
membros inconscientes do senhorio de Cristo (1 Co 6.3); reinarão
com Cristo como se disse em 2 Tm 2.12: crvju.(JaciÀ£Í>o~o"i>criv.
Agora, recordemos que este ato final não faz senão recapitular o
que caracteriza o senhorio presente do Cristo. Temos, pois, que
tomar desde agora e ao pé da letra, o que Paulo disse em 1 Co 4.8
acerca do "reino" dos cristãos, e o que lemos em Ap 1.6: forma-
mos, desde já, uma PocaiXeícc, um reino.
Porém, em especial, temos que relevar também o outro aspecto
deste "reino"45-1, o que supõe esta alta missão: cada qual deve ter
consciência de ser escravo, servo, do "Senhor" Jesus Cristo (2 Co
4.5). Conhecer o senhorio de Cristo é, também, ter consciência do
domínio total e absoluto do "Senhor" sobre nossa pessoa. Cristo
não é somente o Senhor do mundo, o senhor da igreja: é também o
meu Senhor. Experimentado e reconhecido como Senhor da igreja
é também Senhor de cada um dos que a compõem.

* * #

Este último aspecto é o que se põe particularmente em relevo


no Evangelho de João, ao qual consagraremos um parágrafo espe-
cial, embora sua concepção acerca doKyrios não seja, basicamen-
te, diferente da do resto do Novo Testamento: encontraremos de
novo, no Evangelho de João, tudo o que temos dito até aqui a
respeito da fé dos primeiros cristãos no Kyrios, particularmente

Cf. acima, p. 79 s.
W. FÕRSTER, op. cit., diferentemente do que se expõe aqui, considera este aspecto
como primordial.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 303

tal qual a expressa o apóstolo Paulo. Convém tão-somente ressal-


tarmos os aspectos que lhe são característicos. No final deste Evan-
gelho encontramos na boca de Tomé esta confissão que é, por
assim dizer, a culminação suprema: ó KÚpióç uo> tcai ó 0eóç
uou, "meu Senhor e meu Deus" (Jo 20.28). Tomé, que depois de
ter duvidado chega à convicção expressa nesta confissão, é tam-
bém o último que, segundo o quarto Evangelho, viu corporalmen-
te ao ressuscitado. As palavras que Jesus lhe dirige então: "Porque
me vistes, crestes? Bem-aventurados os que não viram e creram",
deverão, pois, ser consideradas ao mesmo tempo como uma exor-
tação aos futuros leitores a crerem neste Kyrios, especialmente se
lembrarmos que a história de Tomé se encontra no fim do Evange-
lho, já que o capítulo 21 éum acréscimo posterior. A confissão de
Tomé é, pois, a coroação do Evangelho.454
Porém, a propósito desta confissão, temos que assinalar, mui-
to particularmente, o emprego do genitivo \LOX>. No Evangelho de
João o senhorio de Cristo parece ser compreendido mais parti-
cularmente sob o ângulo da relação individualentre o Cristo glori-
ficado e cada um dos seus. Pensa-se também na palavra de Maria
Madalena: "Levaram meu Senhor" (Jo 20.13).
À parte estas passagens há outras em que o vocativo ícòpie serve
para apostrofar a Jesus: porém, igual aos sinópticos, trata-se simples-
mente de uma fórmula de cortesia, sem alcance teológico particular.
Encontramos, não obstante, outras passagens que, sem empre-
gar o termo KÚpioç, afirmam que o Cristo, desde sua ressurreição,
exerce um reino soberano. Tal é, em particular, o tema dos "discur-
sos de despedida". Depois de haver deixado a terra e subido ao céu,
Jesus não deixara a terra órfã. Pelo contrário - e esta é a ideia prin-
cipal destes discursos - sua ação na terra será mais eficaz ainda do
que durante o tempo de sua encarnação. Em Jo 14.12 Jesus prediz

J?4
Também a importância do título Kyrios para o Evangelho de João nos parece ser
muito maior que a que admite, por exemplo, R. BULTMANN, Theologie cies Neuen
Testaments, 1953, p. 383, que sublinha que é unicamente no relato da Páscoa que este
título é empregado. Porém, isto se deve, sem dúvida, ao fato de que para o quarto
evangelista também, Jesus não se tornou Kyrios senão depois de sua ressurreição.
304 Oscar Cullmwm

que aqueles que crêem nele realizarão obras maiores que aquelas
que ele mesmo realizou durante sua encarnação, dando a seguinte
razão: "pois vou ao Pai". Isto quer dizer que Cristo atuará, doravante,
por intermédio daqueles que creram nele e que esta ação será mais
potente ainda do que durante seu ministério terrestre. Estas pala-
vras: "Vou para o Pai" significam pois: "Todo poder me foi dado
pelo Pai". Ainda que este Evangelho não se valha destes termos, é
claro que o pensamento da soberania cósmica do Ressuscitado não
está ausente, muito pelo contrário.

* * *

Depois de tudo quanto foi dito até aqui, se reconhecerá a enor-


me importância do título Kyrios e do lugar central que ocupa no
pensamento teológico dos primeiros cristãos. Não se trata, é certo,
de uma noção que, como a de Filho do Homem ou a de Ebed
Iahweh, remonte ao próprio Jesus. Antes, temos aqui uma expli-
cação da obra e da pessoa de Jesus que supõe a fé em sua ressur-
reição.
Ela baseia-se inteiramente em dois elementos essenciais da
história da salvação: primeiro, sobre a certeza de que Jesus ressus-
citou e, logo em seguida, sobre a convicção que a história da sal-
vação não foi interrompida porque o acontecimento decisivo da
ressurreição já foi efetuado embora a manifestação escatológica
da vitória de Cristo esteja ainda por vir. Em outros termos, não há
uma espécie de "hiato cristológico" entre a ressurreição de Cristo
e aparusia. Qualquer que seja a duração deste período intermedi-
ário, a função mediadora de Cristo não está interrompida, ela con-
tinua.
Este lapso intermediário é algo totalmente novo no tocante
ao plano da salvação tal qual os judeus concebiam. Não represen-
ta, como afirmam sem cessar os partidários da "escatologia con-
sequente", uma solução de improviso; antes, pertence organicamente
ao pensamento do cristianismo primitivo no qual ocupa, inclusi-
ve, como já dissemos, um lugar central. Concorda, assim, perfei-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 305

tamente, com a maneira em que Jesus concebia o plano da salva-


ção, já que nele também encontramos a tensão entre o "já" realiza-
do e o "ainda não" de sua manifestação.455 De fato, depois de tudo
quanto destacamos, temos de afirmar que, precisamente a incor-
poração deste período intermediário é o que caracteriza essen-
cialmente a concepção cristã neotestamentária acerca da salvação.
Daí a importância da fé no Kyrios Christos. Se as cristologias
dogmáticas clássicas do protestantismo não concedem a esta idéia
o lugar que lhe corresponde, deve-se a que a teologia protestante
não tem reconhecido plenamente a importância deste período
intermediário para a compreensão do pensamento do Novo Testa-
mento.456

4. "KYRIOS CHRISTOS" E A DIVINDADE DE CRISTO

Falta-nos ainda falar de um último e importante aspecto da


idéia de Kyrios, aspecto que adquire, ademais, importância para a
quarta e última parte deste livro, onde falaremos dos títulos relati-
vos à preexistência de Jesus. Até aqui nos temos ocupado princi-
palmente dafunção do Kyrios Ièsous. Porém, a obra e a pessoa de
Jesus são sempre inseparáveis. A convicção de que Deus, com o
título Kyrios, lhe deu sua própria soberania, tem um alcance imen-
so para a compreensão da pessoa de Jesus, ainda que fique enten-
dido que a fé nafunção senhorial do Cristo a preceda.
Por exemplo, todas as passagens do Antigo Testamento que
falam de Deus podem, em princípio, de agora em diante, ser apli-
cadas a Jesus. Isto sem dúvida não diz respeito às palavras pro-
nunciadas pelo próprio Jesus; quando cita o Antigo Testamento a
palavra Kyrios se refere a Deus. Porém, nas Epístolas, a aplicação
a Jesus das passagens do Antigo Testamento referentes a Deus é


W. G. KUMMELL o demostrou bem era seu livro Verheissutig und Erfiilluitg,
AThANT2Teú,, 1953.

Por outro lado, não se deve dar a este período intermediário um valor absoluto, como o
faz a teologia católica. Cf., a este respeito, O. CULLMANN, La tradinon, 1954.
306 Oscar Culbnaim

muito comum. Temos visto que a tradução grega do Antigo Testa-


mento, chamada Septuaginta, transcreve o nome de Iahweh por
Kyrios. Um olhar lançado ao uso deste termo em uma concordân-
cia grega mostra que, com frequência, o Novo Testamento aplica a
Jesus, sem mais, passagens onde no Antigo Testamento esta
palavra refere-se a Deus. É por exemplo o caso de Is 44.23, passa-
gem citada no hino de Fl 2.10 s. que fala das criaturas que dobram
seus joelhos e confessam a soberania do Kyrios Jesus.
O exemplo mais surpreendente se encontra em Hebreus 1.10.
Trata-se de uma citação do SI 102.25 ss.: "Em tempos remotos, lan-
çaste os fundamentos da terra; e os céus são obra das tuas mãos".
O texto bíblico fala aqui manifestamente de Deus, o Pai, o Criador.
Porém, o autor da Epístola aos Hebreus, aplicando a Jesus o nome
de Kyrios, não vacila em apostrofá-lo com as palavras do Salmo
102 e fazer assim dele o criador do céu e da terra. O v. 8 diz expres-
samente que esta citação - assim como a citação precedente do SI
45.7 s., onde irrompe inclusive o termo Geóç457 - se refere ao Filho.
Ao nosso modo de ver, não se concede suficiente atenção a
este texto ao tratar-se a cristologia do Novo Testamento. Em geral,
deveríamos, por outro lado, levar mais em consideração o fato de
que os primeiros cristãos, depois da morte de Jesus, lhe transferi-
ram, sem rodeios, o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus.458
Isto prova que eles deram toda amplitude à ideia da soberania presen-
te do Cristo. O que diz Fl 2.9 s., de haver Deus "mais que elevado" a
Cristo, dando-lhe seu próprio nome e transferindo-lhe todo seu po-
der, deve ter sido admitido e confessado por toda a igreja primitiva.

Voltaremos a esta citação quando falarmos do título Oeóç atribuído a Jesus.


V. abaixo, p. 404 s.
W. FÒRSTER, Herrist Jesus, 1924, p. 173, argumenta aqui de uma maneira singu-
lar, para diminuir a importância deste fato. Do modo ingénuo, irrefletido, em que o
Novo Testamento opera esta transposição, ele conclui que carece de importância.
Para justificar sua exegese observa que unicamente 1 Pe 3.15 agrega a explicação:
"a saber, Cristo". Porém, é justamente a conclusão oposta que tinha de tirar disso: a
maneira tão natural com que é feita esta transposição prova que a convicção da
unidade entre Deus e Cristo, fundada sobre a dignidade do Kyrios, estava profunda-
mente enraizada na consciência dos escritores do Novo Testamento.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 307

A fé na "divindade" de Cristo - expressão empregada pela


dogmática posterior - tem sua origem na crença da \>7cep\)\}ra)oiO"
de que fala Fl 2.9. Mesmo que Cristo tenha sido desde o princípio
èv jj,op(pfi Qtox>, só com esta glorificação chega a ser igual a Deus.
Veremos que isto se dá por entendido também em Rm 1.4, isto é,
em um texto que reproduz sem dúvida uma antiga confissão de fé.
Segundo esta passagem Cristo é, certamente, o filho de Deus des-
de o começo; porém, "desde sua ressurreição" é^ àvaotâoecoç, é
uíòç XOTJ 9eoí> èv âvvá/iei, expressão, fora de dúvida, sinónima
de Kyrios. Doravante é o Filho de Deus èv 5i)váu,xi.
Temos que formular a questão acerca da "divindade" de cristo
no Novo Testamento, tomando como ponto de partida o título
Kyrios e o senhorio universal e absoluto que supõe. É a única
maneira, de foímulá-la. em tecmos bíblicos; pois, utitizar o esque-
ma das "duas naturezas" é pensar em categorias gregas. É inegável
que o Novo Testamento presume a divindade de Cristo; porém, o
faz sempre em relação ao senhorio que exerce a partir de sua glo-
rificação: trata-se de sua função, antes que de seu ser.
Incontestavelmente, segundo a fé cristã primitiva, este Kyrios
também é preexistente. Pois se Cristo é um com Deus desde sua
ressurreição é necessário que desde o princípio tenha estado
unido a ele. É à luz da soberania presente do Cristo Kyrios e,
portanto, de sua função na história da salvação, que se deve com-
preender a fé da igreja nascente na preexistência de Jesus, na
existência do Logos com Deus desde o princípio. É assim, por
exemplo, que na confissão de fé binária utilizada por Paulo em
1 Co 8.6, não se menciona a atividade do Jesus preexistente, me-
diador da criação, senão em função do título Kyrios: "... um só
Kyrios, Jesus Cristo por quem todas as coisas são e por quem
nós somos." Porque Cristo é hoje para nós o único Kyrios, o
Senhor que reina sobre todas as coisas, é preciso que ele tenha já
estado, no princípio, em relação com todas as coisas (Ap 3.14) e
ele esteve, segundo nosso texto e Jo 1.1 e Cl 1.16, como o media-
dor da criação. Se quisermos verdadeiramente captar o sentido
profundo da cristologia do Novo Testamento, devemos pensar
308 Oscar Cullmaiin

sempre no lugar central que tem na vida da igreja a certeza triun-


fante de que Cristo já reina e que, desde sua glorificação, é o
único Senhor e único Rei.
Se quisermos compreender a génese e o desenvolvimento do pensa-
mento cristológico temos que partir do título Kyrios como de um centro a
partir do qual se situarão as demais funções de Jesus no conjunto da
cristologia. Recordemos que dito título já está no centro das primeiras con-
fissões de fé.4ííl
Com isso não pretendemos dizer, de nenhuma maneira, que a
cristologiado/^/mr tenha sido, do ponto de vista cronológico, a primei-
ra explicação da pessoa e obra de Jesus. Quase todas as respostas
cristológicas que temos examinado rios capítulos precedentes são, de fato,
mais antigas. Porém, a partir da cristologia do Kyrios é que se tem
empreendido a síntese em que todos os aspectos associados aos títulos
cristológicos encontram seu lugar, conforme o papel que têm na história
da salvação. Nisto reside a importância suprema da concepção de Kyrios:
é a única que torna possível o que podemos chamar de cristologia do
Novo Testamento. Poderíamos dizer, talvez, para voltar à imagem paulina
de TcetpcAfi, queé tão importante neste capítulo, que o título tcíipioçé, em
relação aos demais títulos cristológicos o que a K£<P«XTI é para os
demais membros do corpo o que os situa e ordena a todos, sem des-
qualificar a nenhum.460
A fim de evitar algum mal entendido, teremos de insistir em que ao
falarmos do "lugar central" ocupado pela ideia de Kyrios, temos em vista
a génese desta síntese cristológica na vida e no pensamento dos primei-
ros cristãos. Porém, é claro que o centro cronológico no interior desta
síntese é a morte e a ressurreição de Cristo.

A atribuição a Jesus do título Kyrios tem outra conseqviência


a mais: que todos os títulos dados a Deus - à exceção do nome de

Ai<>
Com razão, pois, o Símbolo dos Apóstolos, em seu segundo artigo agrega o título de
Kyrios a "Jesus Cristo, seu único filho", e fala do Cristo "sentado à destra de Deus".
460
Tem razão E. STAUFFER quando escreve em seu Die Theologie des Neuen
Testaments, 1941, p. 94: "De todos os títulos cristológicos odeKyríos é o mais rico
pelas relações que gera. Sua história é um compêndio, ao mesmo tempo que uma
repetitorium, da cristologia neotestamentária. Pois percorre sucessivamente toda a
gama dos títulos cristológicos e desdobra, ante nossos olhos, o caminho que leva da
dignidade doutoral e da realeza de Jesus Cristo à sua dignidade divina.7'
CRAÍ>TOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 309

"Pai" - podiam, doravante, ser conferidos a Jesus. Se, de acordo


com a fé primitiva, o nome "que é sobre todo nome", isto é, o
nome mesmo de Deus: "Senhor", Adonai, Kyrios, foi dado a Jesus
desde a sua glorificação, a transferência de atributos divinos tor-
nou-se ilimitada. Em virtude disso poderíamos, já aqui, junto com
o título Kyrios, estudar a aplicação a Jesus do termo "Deus", 6eóç,
que aparece no cristianismo primitivo: pois ele não representa de
forma alguma, como seríamos tentados a crer, um grau mais ele-
vado que o nome insuperável Kyrios.461 Porém, como esta atribui-
ção subentende o problema da relação entre o Pai e o Filho e ao
mesmo tempo o da preexistência, o estudaremos na última parte
deste livro, a propósito dos títulos que concernem, antes de tudo, à
obra do Cristo preexistente.462
Já nos ocupamos de outro atributo de Deus transferido a Jesus:
o de juiz do Juízo final.463 Ademais, todas as funções de Deus,
inclusive a de Criador, lhe foram atribuídas.
Porém, tratando-se aqui da obra do Senhor presente, nos res-
ta examinar o título de "Salvador", Sotér.

461
Segundo H. COIVZELMANN, op. cit., p. 146 ss., Lucas diminui o alcance teológi-
codestft título. Cf. abaixo, p. 408, ivota655.
v 1
' Cf. abaixo, p. 399 ss.
4W
Cf. acima, p. 207 s.
CAPÍTULO I I

JESUS O SALVADOR
(CFtOTlíp)

Quando pensamos no papel que tem no vocabulário de todas


as igrejas cristãs o título "Salvador", tão comum e tão popular,
particularmente nos meios pietistas, nos surpreendemos principal-
mente por não ter sido este um dos títulos essenciais de Jesus des-
de a origem. Nos escritos cristãos mais antigos, salvo uma única
passagem da Epístola aos Filipenses, ele não aparece. Aparece
relativamente tarde; encontra-se esporadicamente no Evangelho
de Lucas e de João; torna-se mais frequente nas Epístolas Pasto-
rais na Segunda Epístola de Pedro e nas epístolas de Inácio. Ten-
tou-se explicar a raridade do título Sotér invocando-se o fato de
ser o mesmo muito difundido nos meios pagãos do mundo
helenístico, o que fez com que seu uso se tornasse suspeito para os
cristãos.464 Porém, a mesma coisa poderia ser afirmada, e com maior
razão, a respeito do título Kyrios; no entanto, isso não foi obstá-
culo para que bem cedo chegasse a ser, para o cristianismo primi-
tivo, a principal expressão de sua fé em Cristo. A aparição tardia
do título "Salvador", nos parece devida justamente ao papel emi-
nente que desempenhou o de Kyrios: por um lado, a fé no Senhor
glorificado permitiu conferir a Jesus o título "Salvador", que o
Antigo Testamento atribuiu a Deus, por outro, o nome de Kyrios,
que é "sobre todo nome", havia de relegar à sombra, ou atrair a
sua órbita todos os outros títulos orientados no mesmo sentido.

Cf. V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 109.


312 Oscar Culhnatm

Por conseguinte, não é surpreendente que Sotér seja empregado,


amiúde, no Novo Testamento como mero complemento de Kyrios
(F13.20; 2Pe 1.1,11; 2.20; 3.2, 18).
Por outro lado, um outro fato deve nos chocar: as Epístolas
Pastorais, onde Jesus é mais frequentemente chamado Sotér dão
geralmente, e frequentemente na mesma passagem, o título de Sal-
vador, Sotér, a Deus. Isto nos faz supor que tal intttulação cristo-
lógica seja um título divino do Antigo Testamento transferido a
Jesus, e isto confirmaria que o título "Salvador", como todos os
títulos divinos, foi atribuído a Jesus por Eleja haver sido confes-
sado como Kyrios. Sem pretender minimizar a influência do empre-
go helenístico de Sotér em seu sentido cristão, parece-nos, contu-
do, indicado falar do título Sotér no judaísmo antes de estudar sua
significação no helenismo.

1. O TÍTULO "SOTÉR" NO JUDAÍSMO E NO HELENISMO

No Antigo Testamento Deus é chamado "Salvador". As pala-


vras hebraicas PST., STtthQ e illílUT\ que provêm todas da mesma
raiz, são traduzidas por Gcycfjp na LXX.465 Os Salmos4ÉSe os
livros de Isaías467 são os que mais reiteram este título; porém, apa-
rece também em outros escritos podendo ser seguido por toda a
literatura do Antigo Testamento468 e do Judaísmo.4*59
Temos que considerar sua aplicação a Deus como primitiva.
Acontece que este título também é recebido, na verdade, por cer-
tos homens de Deus que salvaram, salvam ou salvarão o povo em
Seu nome e por Sua ordem. Assim, no passado, Moisés "salvou" a
seu povo; e posteriormente outros chefes de Israel foram chama-

A<
" Na literatura apócrifa erabínica posterior ao Antigo Testamento, às vezes se empre-
ga ^X/U no mesmo sentido; porém, se aplica mais ao Messias.
j«Por ex SI 24.5; 27.1; 34.3; 61.3, 7; 64.6; 78.9.
**7Is 12.2; 17.10; 43.3, II; 45.15, 21; 60.16; 62.11; 63.8.
468
Cf. Jr 14.8; Mq 7.7; He 3.18; I Sm 10.19; Dt 32.15.
'"'Cf. I Mac 4.30; Sab. 16.7; Eclo. 51.1; Baruque4.22; Judite 9.11.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 313

dos "salvadores".470 Conforme este uso, o Messias também é con-


siderado como o "Salvador que virá" para livrar definitivamente a
seu povo.471 Esta intitulação corresponde perfeitamente à função
que o Messias tem de realizar; e é curioso que não seja chamado
"Salvador"472 com maior frequência.

* * *

Enquanto que no Antigo Testamento e no judaísmo em geral,


o Sotér é essencialmente o libertador do povo, este título assume
no helenismo outro sentido.473 Neste caso são deuses, mas tam-
bém heróis, e mais tarde príncipes, que são chamados "salvado-
res", dado que libertam ao povo de toda sorte de males físicos e de
enfermidades, que os salvam de perigos tais como naufrágios, hor-
rores da guerra e incertezas da existência.
P. Wendland reuniu os textos essenciais relativos a este tema.474
É assim que Asclépio, por exemplo, é o "Salvador" que traz a cura
da enfermidade.475 Aqui a ideia de "Salvação" se relaciona à da
"Providência", da Ttpóvoía. Porém, ocotrjp é principalmente um
dos títulos mais correntes para designar ao soberano divinizado;

4
™Por ex. Otoniel e Eúde: Jz 3.9, 15; Cf. também 2 Rs 13.5; Ne 9.27.
471
Is 19.20.
47
2Deve-se isto ao fato de se sentir que o título "Salvador" está reservado a Deus?
""' Sobre o problema formulado pela concepção do Sotér na história das religiões, cf.
os dois volumes de W. STAERK, Sôter, Die biblische Erlõsererwartung ais
religionsgeschicbdiches Problem, I (1933), II (1938).
474
P. WENDLAND, XÍOTTIp (ZNTW, 1904, p. 335 ss.). - Cf. também a este rspeito a
W. WAGNER, "ÚberotiiÇeivund seineDerivateim NT" (ZNTW, 1905, p.205 ss.);
H. LIETZMANN, Der Weltheiland, 1909; W. BOUSSET, Kyrios Christos, 2a ed.,
1921, p. 240 ss.; art. acotfip em PAULY-WISSOWA, Realenc. (2. R., vol. V), 1927,
col. 1211 ss. (DORNSEIFF); E. B. ALLO, "Les dieux sauveurs du paganisme gréco-
romain" (RSPTh, 1926, p. 5 ss.); DIBELIUS-CONZELMANN, "Die Pastoralbriefe"
(Hdb. z. NT), 3a ed., 1955, excursus sobre 2 Tm 1.10.
475
K. H. RENGSTORF, "Die Anfã*nge der Auseinandersetzung zwisclien Chrismsglaube
und Asklepiosfrõmmigkeit" (Schriften der Gesellschatt z. Fõrderung der
westfàUsclien Laiidesuniversitát zit Miinster, n° 30), 1953, tem a mesma opinião de
que o emprego cristológico do título Sotér se deve a um protesto dos cristãos contra
a atribuição corrente deste título a Asclépio.
314 Oscar Cullmann

representa, pois, para o culto ao imperador uma espécie de varian-


te do título Kyrios. O soberano é Sotér na medida em que traz a
ordem e a paz.476 Podemos lembrar, a este propósito, a famosa
Quarta Égloga de Virgílio.
A noção de Sotér assume outros aspectos nos cultos de misté-
rio. Aqui a divindade salva do poder da morte e da matéria; confe-
re a imortalidade. Para as religiões de mistério este título Sotér
tem a importância fundamental que se tem afirmado?477
A questão está aberta à discussão.478 É impossível afirmar com
certeza, então, que isso tenha influenciado o emprego cristão do
título Sotér.479 Se existe uma relação entre o emprego pagão do
título Sotér e sua aplicação a Jesus, temos que pensar, primeira-
mente, em seu uso no culto ao soberano.

2. JESUS, O SALVADOR, NO CRISTIANISMO PRIMITIVO

Poderia, à primeira vista, alguém sentir-se tentado a fazer


derivar unicamente do helenismo a aplicação a Jesus do títuloSotér,
já que, segundo temos visto, este título aparece pela primeira vez,
quase exclusivamente, nos escritos cristãos nascidos nos meios
helenísticos.480 Seu emprego no paganismo pode, com efeito, ter
favorecido sua utilização cristã por um desenvolvimento paralelo

Cf. A. DEISSMANN, Licht vom Osten, 4a ed., 1923, p. 311 s.; W. OTTO, "Augustas
Soter" (Hermes, 1910, p. 448 ss.); E. LOHMEYER, Christuskult und Kaiserkult,
1919, p. 27 ss.
G. ANRICH, Das antike Mysterienwesen in seinem Einfluss auf das Cliristentum,
1894, p. 47 ss.;G. WOBBERM1N, ReUgionsgeschichtliche Studien, 1896, p. 105 ss.
Cf. P. WENDLAND, op. eh., p. 353. - Cf. também os trechos relativos a esta ques-
tão na excelente obra de K. PRUMM, Religionsgeschichtliches Handbuchfiir den
Raum der altchristlichen Uinwelt, Hellenistisch-rõmische Geistesstrõmtingen und
Kultur mit Beachtung des Eigenlebens der Provinzen, 1943, p. 339, n. 1.
ANRICH, WOBBERMIN, BOUSSETeF. J. DÓLGER (Ichthys, I, 1910, p. 407 ss.)
crêem que devem admitir semelhante influência. Tese contrária: P. WENDLAND, op.
cit., p. 353 eE. MEYER, Ursprung undAnfãnge des Christentumss,II, ,923, p. 339 1ss
Este argumento foi apresentado porL. KÕHLER. "Christus im Altenundim Neuen
Testament". TltZ, 9, 1953, p. 42 s., que defende uma origem puramente helenística
deste termo quando aparece no Novo Testamento.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 315

ao assinalado a propósito do título Kyrios Iesous Christos. Porém,


assim como o nome Kyrios aplicado a Jesus se originou no judaís-
mo, o título de Sotér deriva mais do Antigo Testamento e do juda-
ísmo que do helenismo. Os primeiros textos cristãos que chamam
a Jesus "Salvador", por tardios que sejam, não denotam influência
alguma da concepção helenística de Sotér. Bultmann mesmo
admite aqui uma influência bíblica e uma influência helenística.481
Porém, a influência helenística nos parece, neste caso, concernir
mais à forma que ao conteúdo.
Com efeito, quase todas as passagens em que Jesus é chamado
"Salvador" contêm exclusivamente temas cristãos. O que não quer
dizer, no entanto, como parece crer Harnack, que esta designação
seja consequência das curas operadas por Jesus.'182 É verdade que o
sentido restrito de "curai*", por CÓIÇEIv, é, amiúde, encontrato nos
textos; porém, nenhuma das passagens em que Jesus é denominado
Sotér, contém a menor alusão às curas realizadas por ele.
Durante sua vida Jesus nunca foi chamado Sotér por ninguém,
nem se chamou a si mesmo assim; e inclusive na época em que
este nome lhe foi ocasionalmente conferido, não se relacionava só
a uma das funções de sua obra terrena, mas a toda a sua obra, vista
além disso, à luz de sua ressurreição e de sua glorificação. Como o
de Kyrios, o título Sotér pressupõe toda a obra de Jesus realizada e
sancionada por sua Ascensão.
Já ficou indicado que se chama a Jesus Sotér sobretudo nos
escritos que dão o mesmo nome a Deus, acima de tudo nas Epísto-
las Pastorais, onde Deus é chamado, preferentemente, o "Salva-
dor" (1 Tm 1.1; 2.3; 4.10; Tito 1.3; 2.10; 3.4), mas também no

R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 79. - No que concerne


ao judaísmo tardio, H. GRESSMANN, Der Messias, 1929, p. 370, admite que em 4
Esdras 13, o Sotér judaico e o Sotò'helenístico estão associados. Não se compreen-
de bem por que então se nega a admitir análoga associação no cristianismo.
A. HARNACK, Die Mission und Ausbreitung des Christentums in den ersten drei
Jahrhunderten, I,5oed., 1915, p. 115 55. (tese recusada também porP. WENDLAND,
op. cit., p.336). A tese de HARNACK é atualizada por K. H. RENGSTORF, op. cit.
(cf. acima, p. 313, nota 475).
316 Oscar Culhnaiin

Evangelho de Lucas, onde o Magnificai (Lc 1.47) chama a Deus


"Salvador", ao estilo do Antigo Testamento onde, por outro lado,
o relato de Natal anuncia: "hoje vos nasceu, na cidade de Davi, o
Salvador, que é o Cristo, o Senhor" (Lc 2.11).
E a Epístola de Judas dirige a doxologia final (v. 25) "ao úni-
co Deus, nosso salvador, por Jesus Cristo nosso senhor". Não é,
então, surpreendente que a segunda Epístola de Pedro, tão estrei-
tamente relacionada com a de Judas, empregue naturalmente a
expressão owtfip 'Inaoíiç Xpicrcóç associada a KÚpioç, como em
Lucas 2.1l.483 O que vem confirmar a ideia de que a elevação de
Cristo à soberania divina exerceu influência decisiva no emprego
deste título cristológico. É, pois, permitido considerar como fonte
secundária o uso deste título no culto ao imperador.
Trata-se, pois, principalmente da transferência a Jesus de um
atributo que o Antigo Testamento reserva a Deus. Jesus é o Sotér
porque salvará a seu povo do pecado. Assim explica Mt 1.21 o
nome "Jesus". Efetivamente, este nome próprio é uma das formas
hebraicas de "Salvador", referido a Deus pelo Antigo Testamento.
Por isso, ao menos ali onde se deve pressupor um conhecimento
do hebraico, temos que levar em consideração a significação do
nome "Jesus" para explicar a origem do título ooixrip 'InaoOç.
"Jesus", com efeito, não significa outra coisa que CCÚTTP, salva-
dor. Entretanto, o autor do Evangelho de Mateus seguramente não
era o único a sabê-lo.
Porém, o vínculo com o Antigo Testamento aparece primordi-
almente na afirmação de que Jesus veio salvar ao povo do pecado e
da morte. A despeito de analogias terminológicas com o culto ao
imperador e em particular com sua "epifania",484 é esta ideia do
Antigo Testamento que se reflete nas declarações relativas à apari-
ção do "Salvador" Jesus Cristo quando do seu nascimento (Lc 2.11),
à "epifania de nosso Salvador Jesus Cristo que destruiu a morte"

Cf. acima, p. 31 11
Cf. também, a este respeito, DIBELIUS - CONZELMANN, Die Pastoralbriefe,
3a ed., 1955, p. 78.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 317

(2 Tm 1.10), e à sua epifania gloriosa futura (Tito 2.13). Após haver


evocado esta epifania do fim dos tempos, esta última passagem acres-
centa:485 "que se deu a si mesmo por nós para redimir-nos de toda
iniquidade, e fazer um povo seu purificado por Ele." E sintomático
que este versículo, em que o Cristo é exaltado como o soberano que
vem - talvez em oposição consciente ou inconsciente à epifania dos
soberanos terrestres deificados - lembre precisamente a obrApassa-
ih, terrena de Jesus, sobre a qual repousa sua elevação soberana.
Atos 5.31 associa da mesma forma a glorificação de Jesus, sua ele-
vação à destra de Deus como Sotér, à afirmação de que esta glorifi-
cação há de trazer a Israel "o arrependimento e o perdão dos peca-
dos". Sem dúvida, aqui estamos dentro de categorias de pensamento
que são mais judeu-cristãs do que pagã-cristãs. O Cristo é Sotér
porque nos salvou do pecado.
Este título, Sotér, se bem que pode ser considerado, com justi-
ça, como uma variante do título Kyrios - do qual até é possível que
provenha - põe em evidência, contudo, uma ideia que aparece com
menos nitidez na noção de Kyrios: a obra expiatória de Cristo é
condição essencial para sua elevação à categoria de Sotér divino.
Lembremos Filipenses 2.9: "Por isso (isto é, por causa de sua humi-
lhação na obediência até a cruz) Deus mais que o elevou" e lhe deu
um nome, Kyrios, que " está acima de todo nome". É isto que, em
solo cristão, está implicitamente contido no título Sotér. Jesus é
Sotér porque reconciliou Deus e o mundo por sua cruz. Um fato a
mais o demonstra: mesmo onde, como na doxologia de Judas 25 -
conforme o uso do Antigo Testamento - é Deus quem é chamado
Sotér, as palavras "por Jesus Cristo nosso Senhor" remetem à obra
expiatória de Cristo, fundamento de toda "salvação" divina.
No entanto, o títuloSotér não é mera variante deEbedlahweh,
como se poderia crer ao ver quanto a salvação, aacorripía que traz
o "Salvador", está inextricavelmente ligada a sua morte expiatória.
Pois o sofrimento expiatório pelo perdão dos pecados não adquire

Sobre a construção: xov \ie7Ó<ko\) Qeoí> Kai crroTfjpoç finwv XpiotoO 'Iriaoíi
Cf. abaixo, p. 408 s.
318 Oscar Cullmann

seu sentido senão a partir da sanção divina que ele recebeu pela
elevação de Jesus à dignidade d&Kyrios. Neste sentido, Bultmann
tem razão ao declarar que nas Epístolas Pastorais, a ideia pauli-
na da justificação sofreu certa variação de sentido, pelo fato de
que crtóÇeiv substituiu a SIKOCIOÍÍV e c a m p í a tomou o lugar de
ôiKaioo~óvri.486 Dado que a atribuição a Jesus do título de Sotér
pressupõe a cristologia do Kyrios glorificado, só a encontramos
relativamente tarde, nas camadas mais recentes da tradição neotes-
tamentária e nas Epístolas de Inácio:487 porém a ideia cristológica
central do sofrimento expiatório jamais está ausente.
O mesmo acontece nos dois textos joaninos (Jo 4.42 e 1 Jo
4.14) nos quais se chama a Jesus "Salvador do mundo". Temos de
admitir que aqui, formalmente ao menos, esta explicação do título
Sotér lembra especialmente o culto helenístico ao imperador, e
que é até idêntico às fórmulas empregadas, por exemplo, na cele-
bração de Adriano como Sotér, porém, não se pode decidir com
certeza se se trata de um paralelismo consciente e proposital ou só
de uma influência inconsciente. Pois este epíteto, "Salvador do
mundo" não se separa da concepção geral do cristianismo primiti-
vo no que se refere ao alcance e consequência da cruz de Cristo.
Podemos, a este propósito, recordar a palavra sobre "o cordeiro de
Deus que tira os pecados do mundo" (Jo 1.29).
Desde quando se chamou a Jesus Sotérl Se bem que seja tar-
dia a generalização deste termo, não foi conhecido relativamente
cedo? Entre as epístolas atribuídas a Paulo, não são as Pastorais
as primeiras a utilizá-lo. Ainda que tivéssemos que considerar
deuteropaulino a passagem da Epístola aos Efésios (5.23), em que
Cristo, chefe da igreja, é ao mesmo tempo chamado "Salvador do
corpo" e onde, da mesma forma, se faz alusão a sua glorificação,
restaria a passagem mais antiga e certamente paulina de Fl 3.20:
"Esperamos também (do céu) como Salvador ao Senhor Jesus

R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 525.


4S7 Inácio Ef 1.1; Magn. 1.1; Filad. 9.2; Esni. 7.1. Cf. também Man. Polic. 19.2.
Temos que mencionar, ademais, uma passagem do Evangelho de Pedro, 4.13.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 319

Cristo". Eis aqui de novo essa característica associação àcSotére


Kyrios, diferentemente de 2 Tm 1.10 onde Cristo já consumou seu
papel de Sotér, mas concordando com Tito 2.13, é dito que Cristo
realizará sua função de Sotér no fim dos tempos. Não há aqui con-
tradição; o que temos é aquela tensão peculiar que se encontra no
Novo Testamento e que também se manifesta na cristologia e que
já constatamos ao estudar outros títulos cristológicos. Bultmann
assinala, acertadamente, que Paulo emprega aqui um título
cristológico já cristalizado, pois, à parte esta passagem, Sotér não
se encontra nunca nas epístolas que são inegavelmente de Pau-
lo.488 Deve tratar-se então de uma expressão que, sem ter se torna-
do ainda corrente, era anterior a Paulo. Ademais, seu sentido em
Fl 3.20 coincide perfeitamente com a ideia expressa em 1 Ts 1110
(sem a menção do título Sotér): "Esperamos dos céus a seu Filho o
qual ressuscitou dos mortos, a Jesus, que nos salva (puóu.£vov) da
ira vindoura".
Já vimos que o significado do nome de "Jesus", em terreno
semítico, devia convidar a uma aproximação ao título de "Salva-
dor", empregado no Antigo Testamento e que, sem dúvida, não foi
o evangelista Mateus o primeiro a fazê-lo (Mt 1.21). Ademais, é
evidente que na Palestina, "Salvador" não podia converter-se no
título de Jesus, porque nesse caso teria que repetir o nome próprio
"Jesus": alesousSotér, corresponderia. leschoualeschoua. Resulta,
então, que Jesus só poderia chamar-se "Salvador" ali onde se falava
grego. Porém, isto ocorreu, por certo, muito cedo; tanto mais quan-
to que na igreja palestina já se tinha a convicção de que a Jesus não
só se chamava "Salvador" (Ieschoua = Jesus) senão que ele o era.
Porém, o alcance teológico do títuloSotér só chega a sua plena
expansão no final da época apostólica, quando este título, associado
a outros atributos importantes do nome de Jesus, tomou lugar na
antiga fórmula Ichthys: 'ITICTOTJç Xpiaxòç QEOX> Yíòç Ewrfip.489

Cf. R. BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, 1953, p. 79, que menciona
igualmente a passagem paralela de 1 Ts 4.15-18, na qual Paulo declara expressa-
mente ser da "tradição".
Cf. F. J. DÓLGER, Ichthys, I, 1910, p. 248, 259, 318.
QUARTA. PARTE

TÍTULOS REFERENTES À
PREEXISTÊNCIA DE JESUS
PEQUENO INTRÓITO

Nesta quarta e última parte estudaremos três conceitos cristoló-


gicos: o de "Logos", "Filho de Deus" e "Deus". Partindo do título
Kyrios os primeiros cristãos - segundo já se viu - podiam aplicar
a Jesus tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus. Porém,
seria simplificar o problema, e cair em heresia condenada pela
igreja antiga, atribuir ao Novo Testamento a ideia de uma identi-
dade total entre Deus e Jesus o Kyrios, e afirmar que na fé do
cristianismo primitivo não existia nenhuma diferença entre um e
outro. A antiga confissão de fé binária de 1 Co 8.6, por exemplo,
prova que a diferença não foi, de modo algum, eliminada, nem
ainda ali onde - como nesta confissão de fé - Cristo aparece como
o mediador da criação: "Há um só Deus e Pai de (è^) quem proce-
dem todas as coisas e para (eiç) quem somos; e um só Senhor
Jesus Cristo por (ôiá) quem são todas as coisas e por quem
somos". Aqui a distinção está claramente expressa pelo emprego
das preposições: è% e eíç para Deus s eôá parr Cristoo Porém,
seria em vão a busca de uma definição mais precisa da relação
original entre Deus o Pai e Cristo o Kyrios.
Os títulos Logos e "Filho de Deus" nos permitem aproximar
de tal definição, na medida em que atraem a atenção para a preexis-
tência de Jesus, isto é, a sua existência "no princípio". Porém,
veremos que estes termos tampouco contemplam uma unidade de
essência ou de natureza entre Deus e o Cristo; trata-se de uma
unidade de ação, na obra da revelação. Tal é também - j á o vimos
- o sentido da transferência a Jesus do nome divino Kyrios: Deus
e Jesus glorificado são um, do ponto de vista da soberania sobre o
mundo (esta soberania é um aspecto da auto-revelação de Deus).
•324 Oscar Cullmann

O título Kyrios designa, antes de tudo, a soberania divina de Jesus


no período presente da história da salvação. Porém é empregado,
também, referindo-se à ação mediadora de Jesus quando da cria-
ção, por exemplo, no texto citado anteriormente de 1 Co 8.6, ou
ainda em Hebreus L10 ss. Esta extensão deriva, no entanto, da fé
no Senhor presente, enquanto que a concepção de Logos, por sua
própria natureza, faz remontar à obra reveladora de Deus em Cris-
to ao "começo" de todas as coisas, à ação preexistente e divina de
Jesus. Este termo uniu, pois, mais ainda que o título de Kyrios, a
criação à redenção; a criação pelo mediador preexistente, "o Ver-
bo"; e a redenção em quem o verbo se encarnou, que agora reina e
voltará. Aqui surge, ainda que só perifericamente, a questão da
relação de essência entre Deus e o Cristo preexistente; porém, coi-
sa característica, a resposta não é de ordem ontológica: não toma a
forma de uma especulação relativa às "naturezas"; mas, permane-
ce firme sobre o terreno da história da revelação. Poderíamos
dizer outro tanto do título "Filho de Deus". Este título põe, impli-
citamente, também, a questão da relação de essência de entre o Pai
e o Filho, independentemente da encarnação. Porém, também,
aí se encontra a mesma resposta: a unidade deles é a de ser um no
ato da revelação que funda, acompanha e consuma a história da
salvação.
Sem dúvida se diz acerca do Logos: "No princípio era "o
Verbo", o Verbo estava com Deus, era Deus." Porém, como se
temesse que toda especulação avançasse mais nesta linha, rapida-
mente o Prólogo de João passa destas afirmações ontológicas às
concernentes ao ato da revelação: "Todas as coisas foram feitas
por ele", e "o Verbo se fez carne". Do mesmo modo, porém desta
vez não no começo, mas no fim de todas as coisas, Paulo nos leva
até o limite de uma assimilação total do Filho ao Pai: quando o
Filho terá submetido todas as coisas ao Pai e se submeterá, Ele
próprio, a fim de que Deus seja "tudo em todos" (1 Co 15.28).
Como não se pode falar do Filho senão em relação com a
revelação de Deus, enquanto que se pode, em princípio, falar do
Pai mesmo fora da revelação e como, por outro lado, o Novo Tes-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 325

tamento não tem outro objetivo senão a revelação, resulta daí o


paradoxo de que o Pai e o Filho são, ao mesmo tempo, um e dife-
rentes. Se os teólogos posteriores não puderam dar uma explica-
ção satisfatória deste paradoxo, deve-se ao fato de que o tentaram
por especulações filosóficas.
Ao estudar os títulos relativos à preexistência de Jesus, tere-
mos, pois, que Hvrar-nos da maneira em que os problemas têm
sido esboçados no curso da história, ainda que no Novo Testamen-
to já se comece, aqui e ali, a perceber-se a problemática especulativa
destes títulos.
(^APÍTULO I

JESUS, O "LOGOS"

Este título ocupa um lugar predominante na cristologia clás-


sica da igreja antiga. Inclusive, costuma-se considerá-lo como a
expressão mais acabada de toda a cristologia. Porém, no Novo
Testamento temos de constatar que unicamente o grupo de escritos
joaninos o menciona e ainda assim, em um bem reduzido número
de passagens: no prólogo do Evangelho, no começo da primeira
Epístola e em uma passagem do Apocalipse (19.13). É um efro
crer na preponderância do título Logos no Evangelho de João: na
realidade, outro título, como o de "Filho do Homem", aparece muito
mais frequentemente. A. Harnack, baseando-se no fato de que o
título Logos não aparece senão no prólogo, chegou a sustentar qtie
originariamente este prólogo não havia pertencido ao Evangelho,
sendo-lhe acrescentado ulteriormente.490 Sua tese, nessa forma, é
dificilmente sustentável; no entanto, temos de constatar que, efeti-
vamente, este título não aparece senão nos primeiros versículos.
Porém, no lugar em que o autor do Evangelho faz uso deSte
título mostra quão indispensável ele é para falar da relação entre a
revelação divina na vida de Jesus e a sua preexistência. Não lhe
interessa situar, como Marcos, o começo, o ápxf| da história de
Jesus, no momento da aparição de João Batista, mas na pre-
existência, o que remete ao "princípio" absoluto de todas as coisas.
No entanto, para excluir todo mal entendido ulterior, como os que

A. HARNACK, em ZThK, 2, 1892, p. 189 ss. Cf. a este respeito E. KÀSEMAHN,


"Aufbau und Anliegen d. Johanneischen Prologs" (Mélanges E Delekat, 1957,
p. 75 ss).
328 Oscar Cullmann

encontramos nas discussões cristológicas da igreja antiga, ele


sublinha implicitamente, logo no início, que não se trata aqui de
uma especulação sobre esta preexistência do Cristo; o evangelista
só fala deste "princípio" em estreitíssima relação com o que nos
narra em seu evangelho acerca das funções ulteriores do Cristo.
Aquele de quem se diz que estava "no princípio com Deus", o
mesmo do qual fala todo o evangelho, cuja vida, "na carne", cons-
titui o centro de toda a história da salvação e da revelação. Este
mesmo Jesus, que levou a cabo, "na carne", o ato decisivo da reve-
lação, está também ativo na história de Israel (o prólogo alude a isto
claramente)49' e é quem, para além de sua morte, continuará atilan-
do no seio da igreja, como os "discursos de despedida" o afirmam.
Temos que partir daí para estimar em seu justo valor a impor-
tância que o evangelista dá à preexistência de Cristo. Dado que ele
vê no Cristo encarnado, no Filho do Homem, tal qual apareceu
"na carne", o centro em torno do qual se ordenam todos os aconte-
cimentos, a questão de sua ação preexistente deve também, neces-
sariamente, delinear-se: aquele que é o centro de toda a história da
salvação não pode ter surgido do nada. É por isto que a participa-
ção do Cristo preexistente na criação - afirmação já encontrada
em outros escritos do Novo Testamento - é valorizada mais que
em qualquer outro livro. Tanto a criação como a redenção pelo
Cristo encarnado são, com a mesma importância, parte integrante
da revelação de Deus.492 Não se pode perder de vista que o Evan-
gelho de João começa com as mesmas palavras que o primeiro

C. H. DGDD, r/tá interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 284, insiste com
razão que o prólogo fala, por um ladc>, do Logos que não foi recebido pelo mundo,
pela criação; e por outro, de sua perseguição por Israel.
M. E. BOISMARD, Le Prologue de Saint Jean, 1953, e C. H. DODD, op.cit., p. 277
ss., fazem notar que Paulo em Rm 1.18 ss. fala dos ímpios que se negam a reconhecer
a revelação de Deus em sua criação, de uma forma muito análoga à do Evangelho de
João. Ainda que Rm 1.18 ss. não atribua expressamente a Cristo a revelação de Deus
na criação, seria certamente falso intefpretá-lo como se fosse possível opor a criação
por Deus e a redenção por Cristo. W. BAUER, Das Johannesevangelium, 3 0 cd,,p. 6,
escreve, com razão, que as concepções de Paulo relativas ao Cristo preexistente junto
ao Pai, unido com Ele e participando com Ele na obra da criação, são muito semelhan-
tes às do Evangelho de João. Cf. Também abaixo, p. 348 ss.
CRISTOLOCTIA DO NOVO TESTAMENTO 329

livro do Antigo Testamento. Se, como os primeiros cristãos da


diáspora, estivéssemos acostumados a ler a Bíblia em grego, isto
nos impressionaria desde o primeiro momento. "No princípio", èv
àpxfi, se encontra no começo de ambos: em Génesis e no Quarto
Evangelho. No Antigo Testamento está dito: "No princípio criou
Deus o céu e a terra"; e no Evangelho de João: "No princípio era o
Verbo, o Logos... todas as coisas foram feitas por ele". Um novo
Génesis é o que aqui se nos apresenta, porém, à luz do mediador
da revelação.493
Dada a alta frequência de utilização da ideia de Logos antes
do cristianismo e simultaneamente a ele, se faz necessário estudá-
la tal qual aparece no helenismo e no judaísmo. Se o Quarto Evan-
gelho recorre ao termo Logos, retomando assim uma concepção
pré-cristã corrente, é, sem dúvida, por que vê em Jesus a realiza-
ção dela. Ele se vale precisamente deste vocábulo para expressar a
universalidade cristológica.

1. O "LOGOS" NO HELENISMO

Não se trata aqui de dar uma história exaustiva da concepção


de Logos. Há numerosos estudos*34 sobre o tema, e a maior parte
dos comentários, antigos e recentes, lhe têm atribuído a importân-
cia que ela tem na filosofia helenística e nas religiões helenísticas
orientais. Nossa intenção se restringe a lembrar que trata-se de
uma concepção muito difundida no mundo antigo,495 que o autor

R. BULTMANN reconhece esta relação com o relato de Génesis, tanto em Das


Evangeliwn des Johannes (p. 6) como em seu Theologie des Neuen Testameitts
(p.411); porém, não mede todo o seu alcance.
Cf. as abundantes indicações bibliográficas, por ex., em PAULY - WISSOWA,
Realeencyclopaedie, XIII (1927), p. 1035 ss (H. LEISEGANG); e também em
ThWbNT, IV,p. 70. Maii anttgo: A. A AL, Geshiclue der Logosidee I: indergiiechiscíien
Philosophie, 1896.
C. H. DODD, The Interpretation oftlie Fourth Gospel, 1953, p. 265, pensa, é verda-
de, que a concepção de Logos considerada como uma hipóstase, um mediador, estava
menos difundida no Oriente do que se admite geralmente. Porém, pode-se dizer isto a
respeito dos materiais abundantes que a história das religiões nos trazem?
330 Oscar Cullmann

do Quarto Evangelho não poderia ter ignorado. É imprescindível


dar-se conta disso para compreender todo o alcance da afirmação:
"O Logos se fez carne". Começamos por lembrar que o títuloLogos
ocorre já na mais antiga filosofia grega, a de Heraclito,496 e, mais
tarde, especialmente no estoicismo.497 O Logos aí é a lei suprema
do mundo, que rege o universo e que, ao mesmo tempo, está pre-
sente na razão humana. Trata-se pois de uma abstração e não uma
hipóstase. Consequentemente, ao falar do Logos, e mesmo que se
postule acerca dele que "era desde o princípio", esta alma impes-
soal e panteísta do mundo, de que fala o estoicismo, é coisa muito
distinta do Logos joanino.498 O platonismo também conhecia esta
noção: aqui já nos aproximamos mais da ideia de um ser real;
"real" no sentido do idealismo platónico. Porém, ainda assim, não
estamos diante de uma hipóstase, e a ideia de uma encarnação do
Logos é absolutamente inconcebível. A analogia da terminologia
não deve induzir-nos a identificar a concepção de Logos atestada
no judaísmo tardio ou mesmo a do Evangelho de João com a da
filosofia CTrega A incorporação total do Logos na história e na
humanidade é completamente estranha ao platonismo S Agosti-
nho também admite haver-se deixado levar pelas analogias for-
mais ao afirmar haver encontrado nos livros de Platão com
expressões um DOUCO diversas a doutrina de João relativa aoLogos
que "era no princípio" (Conf 7 9) A rigor a analogia está mais rn
terminologia que nas concencões
No entanto, esta concepção filosófica do Logos ocupa um
lugar essencial na história longa e complicada deste termo, pois
influenciou ao menos na forma, as ideias judaicas e pagãs tardias
de um Logos mais ou menos personificado. É possível que temas
mitológicos tenham influenciado mais profundamente; no entan-

fi
H. DIELS, Die Fragmente der Vorsokratiker, 5 1 ed.. 1934, Fr. . e 2. P. .50 s.
7
Cf. K. PRÚMM, Der christliche Glaube itnddie altheid/iische Weh, II 1935, p, 227
ss; M. POHLENZ, Die Stoa, t. I, 1948 (ver o índice); e também R. BULTMANN,
"Der Begriff des Wortes Gottes im Neuen Testament" (Glauben mui Verstehen, I,
1933, p. 274 ss.).
5
Tal é a opinião de R. BULTMANN, Das Evangeliuin des Johãtmes, 1941, p. 9.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 331

to, a doutrina filosófica do Logos, incontestavelmente, é uma das


fontes destas concepções tardias. Tal é, especialmente, o caso de
Fílon de Alexandria, cujos desenvolvimentos relativos ao Logos
têm muito espaço nos comentários do Evangelho de João. Embora
achemos já nele a ideia de um ser intermediário personificado, a
relação da sua doutrina com estas doutrinas filosóficas é evidente.
Muito se tem polemizado para saber se Fílon considerava o Logos
como pessoal ou impessoal. É incorreto partir de semelhante
alternativa, pois a doutrina filosófica do Logos tem mais do que
uma fonte.
Com esta reserva se acompanhará a R. Bultmann quando,
investigando a origem da doutrina do Logos no judaísmo e em
João, discerne no paganismo uma direção de pensamento que,
segundo ele, constitui uma preparação mais direta que o conceito
dos filósofos gregos e que ele denomina de: a direção do pensa-
mento "gnóstico". Aqui o Logos é um ser mitológico, intermediá-
rio entre Deus e o homem. Não é tido só por criador do mundo é,
em primeiro lugar, o portador da revelação e a este título, Salva-
dor; pode também, transitoriamente, revestir-se da forma humana,
porém, sempre dentro de um quadro mítico e doceta; jamais no
quadro histórico de uma verdadeira encarnação.499 Bultmann
encontra aqui o mito da humilhação e da ascensão do Salvador,
que salva o mundo, salvando-se a si mesmo. Porém, esto Logos é a
mesma figura que encontramos nas especulações pagãs relativas
ao "primeiro homem".
E sumamente provável que semelhante figura mitológica do Logos
tenha existido no paganismo. Porém, é muito difícil captá-la nos tex-
tos. R. Bultmann não pode citar, segundo ele mesmo o reconhece em
seu Comentário de João, p. 11, senão textos tardios, contemporâneos
do cristianismo. Poder-se-á conceder-lhe, no entanto, que as concep-
ções testemunhadas por estes textos podem ser mais antigas que os
próprios textos. Em todo caso, a descrição que Bultniann dá do Logos

Com razão R. BULTMANN <iiz a este respeito, em seu Comentário de João, p. 10,
que ele está somente "disfarçado" de tiomeP
332 Oscar Culhnaim

gnóstico e mitológico (op. cit. p. 10 ss.),5l>0 corresponde provavelmen-


te à crença que existia no paganismo pré-cristão. Porém, quando consi-
dera esta doutrina gnóstica acerca do Logos como a única fonte da
doutrina judaico-alexandrina do Logos e da sabedoria, tal como a
encontramos em Fílon, nos livros da Sabedoria e nos textos rabínicos
e, também, como a única fonte da noção joanina do Logos, demonstra
em demasia uma tendência a ver na doutrina gnóstica da época pré-
cristã um todo homogéneo que se poderia captar perfeitamente. As rela-
ções reais nos parecem demasiado complexas para podermos reduzir à
genealogia esquemática que Bultmann esboça em seu Comentário de
João, p. 8, nota 9.

Estas concepções, de um Logos personificado, portador da


revelação e da salvação, são prefiguradas nas religiões antigas onde,
por exemplo, Hermes501 e o deus egípcio Thot302 ostentam o título
de Logos. E verdade que originariamente não se tratava senão de
uma explicação filosófica e alegórica dos mitos politeístas que rece-
biam, assim, uma interpretação panteísta: no entanto, esta inter-
pretação facilitou a personificação do Logos, principalmente para
o sentimento religioso popular. Assim se desenvolveu a abundante
literatura hermética.503
Com Nous, Logos é a designação preferida para este Salva-
dor; porém, outros títulos lhe são também atribuídos, antes de tudo
o de "homem". Encontramos também oLogos associado ao "homem"

itM
Referindo-se a R. REITZENSTEIN, Das Iraiúsche Erlósungsmysterium, 1921;
RE1TZENSTEIN - SCHAEDER, Studien z. antiken Synkretismus aus Iroit und
Griechenland, 1926; H. JONAS, Gnosis und spàtantiker Geist, t. I, 1934,
p. 260 ss.
*" PLATÃO, Crat. 407 E ss.; HIPOL., Refut. V, 7, 29; O. KERN, Orphicontm Frag-
menta, 1922, 297 a; cf. R. REITZENSTEIN, Poimandres, 1904, p. 88.
5(>;
PL(JT., De hide et Osir, 54 s.
iW
Edição crítica do Corpus Hermeticum(C.H.) por A. D. NOCKeA. J. FESTUGIERE,
Paris; Até agora têm aparecido 4 vol. 1945-54. Sobre o problema da Hermética,
cf. J. KROLL, Die Lehren des Hermes Trismegistos, 1914; K. PRUMM, Reli-
gionsgeschichtliches Handbuch (cf, acima, p. 208 nota 4), p. 535 ss.; e, sobretudo,
recentemente A. J. FESTUGIERE, "La révélation d'Hermes Trismegiste" (Etudes
bibliques), t. 1-4, 1944-1954; id., Uhermétisme, 1948. Cf. também C. H. DODD,
The Interpretalion ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 1 0 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMEhrro 333

nos textos mandeus.504 O parentesco entre a ideia de Logos e a de


primeiro homem no paganismo é tanto mais digno de atenção pelo
fato de que o encontramos, também, no cristianismo primitivo,
mesmo que aqui possa tratar-se apenas de uma influência exercida
pela mitologia pagã.
Enfatizemos, desde já, que a noção de Logos estava tão disse-
minada no pensamento antigo que muitas ideias confluem nesse
conceito, sem que possamos fazê-las derivar umas das outras. Coisa
igual ocorre, naturalmente, no tocante às concepções do judaísmo
e do cristianismo primitivo acerca do Logos. Haveremos de inves-
tigar quais destas ideias exerceram direta influência sobre a noção
cristã; porém, será necessário, antes, perguntarmos, como a fé cristã,
ao trazer novos motivos, transformou a noção de Logos. Assim
constataremos que o Evangelho de João não deduziu, da ampla
difusão da ideia de Logos, uma revelação geral não necessaria-
mente cristã; pelo contrário, submeteu cabalmente a concepção
não cristã ou pré-cristã de Logos à suprema e única revelação de
Deus em Jesus de Nazaré, dando-lhe assim forma inteiramente
nova.

2. O "LOGOS" NO JUDAÍSMO

Tratamos aqui de duas formas diferentes da concepção de


Logos: por um lado, a concepção tardia, segundo a qual o "Verbo"
é uma hipóstase e até um mediador personificado e que, certamen-
te, está mais ou menos influenciada pelas ideias pagãs menciona-
das; por outro, a concepção autenticamente bíblica que remonta a
Gn 1, segundo a qual o Verbo de Deus, odebarIahweh, é entendi-
do em seu sentido primitivo e toma-se, às vezes, em virtude de um
desenvolvimento imanente do pensamento, uma hipóstase divina.
Esta distinção conserva seu pleno valor, mesmo se constatamos
que uma forma tenha influído sobre a outra. É assim que a concep-

GINZA (ed. LIDZBARSKI, 1925), p. 295; cf. W. BAUER, Das Joiíannesevangelium,


3a ed. 1933, p. 10.
334 Oscar Cullmann

ção tardia certamente não está desvinculada da concepção bíblica.


Os estudos da história das religiões, aliás meritórios e, sobretudo,
as conclusões que R. Bultmann tirou deles, contribuíram muito
para exagerar esta distinção necessária ao ponto de não se querer
mais admitir o elemento comum a ambas as concepções. Ora, este
elemento comum existe: a ideia de revelação. Não é por acidente
que o termo "Verbo" tenha sido escolhido para designar a ambas.
Para estudarmos a ideia de Logos no cristianismo primitivo,
não é um método correto levarmos em consideração exclusiva-
mente a doutrina, comprovada no judaísmo tardio, de uma hipóstase
divina, sob pretexto de ser a única que, junto com o Evangelho de
João e o mito pagão do Salvador, conheceria um mediador mais
ou menos personificado. A noção corrente no Antigo Testamento
acerca da Palavra de Deus pode, também, ter influenciado direta-
mente a concepção cristã, mesmo que se demonstre que a concep-
ção helenística do judaísmo tardio, e até a concepção pagã deLogos,
tenham sido familiares a certos meios do cristianismo nascente.
Porém, só podemos examinar esta questão estudando antes as
declarações joaninas acerca doLogos. O que interessa dizer aqui é
que não temos o direito, para compreender a maneira pela qual o
judaísmo falou do Logos, de eliminar, a priori como carente de
importância, o que o Antigo Testamento disse a respeito

Tal acontece, precisamente, com a maior parte dos comentários


chamados "críticos" do Evangelho de João. Inversamente os exegetas
"conservadores" costumam levar em consideração tão-somente a ideia,
corrente no Antigo Testamento, acerca da Palavra de Deus. Estes dois
pontos de vista exclusivos foram evitados no artigo X,éYco, Xóyoq do Tfheol.
Wõrterbuch, graças ao método observado nesta obra de distribuir a
matéria a ser tratada: ThWbNT, IV, p. 69 ss.; os autores são G. Kittel, A.
Debrunner, H. Kleinknecht, O. Procksch, G. Quell e G. Schrenk. De qual-
quer forma, deveríamos abandonar o costume de qualificar uma exposi-
ção de "crítica" ou de "conservadora" pelo simples fato de ressaltarem,
seja a concepção judaico-helenística de Logos, seja a concepção atesta-
da pelo Antigo Testamento. Esta questão científica não deveria ser orien-
tada por uma posição teológica.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 335

Há, no Antigo Testamento, toda uma série de passagens nas


quais a "Palavra de Deus", se não está personificada é, ao menos,
considerada como uma entidade independente e que passa a ser
objeto de reflexão teológica em razão do enorme poder de sua
ação.505 Esta reflexão se orienta primeiramente à história da cria-
ção na qual tudo se realiza por ordem da Palavra pronunciada por
Deus; "Haja luz; e houve luz". Meditar nisso é chegar à ideia de
que toda a ação criadora de Deus se efetua por meio de sua Pala-
vra; e esta palavra, é o próprio Deus enquanto se comunica ao
mundo. Assim lemos no Salmo 33.6: "Os céus foram feitos pela
Palavra de Iahweh". Aliás, mesmo depois da criação, a Palavra do
Senhor faz a vida surgir do nada. Também os Salmos nos falam,
em diversos lugares, da Palavra de Deus como de um mediador;
por exemplo, no SI 107.20: "Enviou-lhes a sua Palavra e os
sarou"; ou no SI 147.15: "Ele envia as suas ordens à terra e sua
Palavra corre velozmente." Aproximamo-nos muito de uma perso-
nificação da Palavra ern Isaías 55.10 s.: "Assim como descem a
chuva e a neve dos céus e para lá não voltam, sem que primeiro
reguem a terra, a fecundem e a façam brotar para dar semente ao
semeador e pão ao que come, assim será a Palavra que sair da
minha boca: não voltará para mim vazia, mas fará o que me apraz
e prosperará naquilo para que a designei."506 Aqui não nos encon-
tramos muito longe da Sabedoria de Salomão (submetida já à
influência alexandrina), onde lemos no capítulo 18.15: "Tua Pala-
vra onipotente sai do trono real como um guerreiro implacável..."
A expressão memra déjahvé empregada no Targum, e que é a
designação aramaica da Palavra de Iahweh, também deve ser men-
cionada aqui507 O fato de que memra possa ser empregada em
lugar do nome de Deus implica uma reflexão particular sobre a
"Palavra de Deus" considerada como tal No entanto nãoencontra-

Cf. O. GRETHER, Name und Wort Gottes im Alten Testament, 1934, em part.
p. 150 ss.
Para paralelos no Oriente antigo, L. DÚRR, "Die Wertung des gõtlichen Wortes im
A. T. und im Alten Orient" (Mitt. d. Vorderasiatischen Geselleschaft, 42, 1, 1938).
V. HAMP, Der Begriff "Wort" in den aramãischen Bibleiibersetzttngeti, 1938.
336 Oscar Cuihnann

mos nos textos rabínicos, no que diz respeito à memra de Deus,


considerações análogas às que se consagram, por outro lado, ao
Logos personificado ou à sabedoria personificada.508
Unicamente no campo da concepção alexandrina, no judaís-
mo helenístico, é que encontramos verdadeiramente o Logos ou a
sabedoria convertidos em hipóstases. Aqui temos que supor, sem
dúvida, a influência de concepções pagãs relativas a um mediador
mitológico.509 No entanto, também temos que levar em conta a
reflexão sobre a atividade criadora da Palavra de Deus, mesmo ali
onde já não é o caso da "palavra de Deus", mas, meramente, da
"Palavra", nem da "Sabedoria de Deus'", mas simplesmente da
"Sabedoria".
É verdade que em Fílon, cuja doutrina acerca do Logos não é
homogénea e remonta a diversas fontes,510 a concepção estóica
referente ao Logos, considerado como a razão universal, é a que
domina.5" Para nós, esta concepção não entra em consideração
senão de uma maneira indireta; porém, por outro lado, vemos apa-
recer nele, em Fílon, em parte por influência platónica e em parte,
talvez, por influência mitológica, a ideia de um mediador personi-
ficado.512
Porém, foram as especulações do judaísmo tardio acerca da
Sabedoria - e os trabalhos de J. Rendell Harris o têm demonstra-
do sl3 - as que mais influenciaram a noção de Logos do cristianis-

sos p o r o u tro ]ado a questão da data é de difícil solução; não se pode determinar com
certeza se esta concepção pertence a época pré-cristâ. Cf., a respeito, STRACK-
BILLERBECK, t. II. p. 302 ss.
5"*Cf. R. BULTMANN, Johanneskomtnentar, p. 8.
510
É o que indica com razão W. BAUER, Das Johannesevangelium, 3a ed., 1933, p. 8.
Para numerosos textos que entram aqui em questão cf. A. AALL, Geschichte der
Logosidee, 1896, p. 184 ss. Cf. também E. BREHIER, Les idéesplúlosophiques et
religieuses de Philon d'Alexandria. 2* ed., 1925, p. 83 ss.; H,A. WOLFSON, Phiío,
t. I, 1948, p. 200 ss; 325 ss.
511
Cf. acima, p. 329 s.
512
Sobre o conjunto da questão das relações entre Fílon e o Evangelho de João, cf. C.
H. DODD, The Interpretado/} ofthe Fottrth Gospel, 1953, p. 54 ss.
5,,
The Origin ofthe Prologue to St. John s Gospel, 1917; id., Atltena, Sophia and the
Logos" Bullet. ofthe John Ryland s Ubrary, 1922, p. 56 ss.).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 337

mo primitivo.514 Não está provado, é certo, como o admite Harris,


que o prólogo de João remonte diretamente a um hino à Sabedo-
ria. Mas, em todo caso, topamos aqui com concepções muito vizi-
nhas até o ponto em que Logos e Sophia são palavras quase
intercambiáveis. Entre os numerosos textos que podemos invocar
reteremos só algumas fórmulas particularmente características.515
Em Provérbios (8.22-26), a própria Sabedoria diz: "O Senhor me
criou no início de sua obra, antes de suas obras mais antigas. Des-
de a eternidade fui estabelecida, desde o princípio, antes do come-
ço da terra". E mais adiante: "Antes de haver abismos, eu nasci, e
antes ainda de haver fontes carregadas de água. Antes que os mon-
tes fossem firmados, antes de haver outeiros, eu nasci. Ainda Ele
não tinha feito a terra, nem as amplidões, nem sequer o princípio do
pó do mundo." Encontramos a mesma ideia em Eclo. 1.1 ss.; 24.1
ss., e ainda em diversos outros lugares.516 NâSabedoria de Salomão
se diz que a Sabedoria é um "reflexo da luz eterna de Deus" (7.26).
Para compreendermos o prólogo de João, temos que citar muito
especialmente os textos que falam do "ódio" do mundo, ao qual a
Sabedoria está exposta (Pv. 1.28 ss.; cf. Sir. 24.7).
Há textos rabínicos que identificam a sabedoria preexistente
com a Thorá, que desta maneira se converte, também, em uma
hipóstase mediadora da criação e "Filha de Deus".517 É provável
que estas especulações derivem daquelas outras da "Sabedoria",518
porém, mostram até onde era familiar, ao judaísmo tardio, a ideia
de um ser intermediário que, na qualidade de hipóstase divina,
fazia parte de Deus. Temos que mencionar, também, um texto de

514
C. F. BURNEY, TheArconaic Originofthe Fourth Gospel, 1922; R. BULTMANN,
Der religionsgeschichtliche Hiníergnmd des Prologs zuni Johatnnesevangeliuin
(Eucharisterion, 2, 1923, p. 3 ss.); C. SPICQ, "Le siracide et la structure litteraire
du Prologue (Mém. Lagrange, 1940, p. 183 ss.); C. H. DODD, op. cit., p. 274 ss.
í,5
Outras referências na bibliografia indicada mais acima, p. 336, nota 510. Textos
rabínicos em STRACK-BILLERBECK, t. II, p. 356 s.
516
Cf., por ex., FÍLON, Leg. Alleg., II, 49.
m
Cf. STRACK-BILLERBECK, t. II, p. 353 ss.; t. III, p. 131.
íl8
Como o diz com razão R. BULTMANN, Johamieskommentar, p. 8.
. 338 Oscar Cullmatm

Qumran {Manual de Disciplina 11.11) no qual "o pensamento


divino" está na origem de toda existência.
Temos distinguido, por princípio, duas linhas diretivas no
judaísmo; a linha especificamente bíblica acerca da Palavra de
Deus, do debar Iahweh, e a linha mais tardia que se desenvolveu
por ação de influências exteriores, a da "Palavra" simplesmente.
Ambas têm em comum o expressarem a obra pela qual Deus se
revela. Porém, a ideia desta obra, esta Palavra dirigida por Deus ao
mundo, poder finalmente encarnar-se no quadro histórico de uma
vida humana e terrena, é coisa tão estranha a uma como a outra.

3. A IDEIA DE "LOGOS" APLICADA A JESUS

No Evangelho de João o título Logos só é atribuído a Jesus no


prólogo; nos demais escritos joaninos, unicamente em mais duas
passagens. Não aparece, ademais, em nenhuma outra parte do Novo
Testamento; e no tocante a outros escritos do cristianismo primiti-
vo, Inácio de Antioquia é o único a empregá-lo, muito provavel-
mente sem direta influência do Evangelho de João.519 Não parece,
pois, tratar-se de uma concepção cristológica central para o Novo
Testamento, como no caso de outros títulos, tais como o de "Filho
do Homem" ou Kyrios. No entanto, o título Logos destaca especi-
almente, um aspecto importante da cristologia dos primeiros cris-
tãos: a unidade, para a história da revelação, do encarnado e do
preexistente. Assim ele situa Cristo em relação a Deus.
É claro que a identificação de Jesus com o Logos não se pro-
duziu, senão, depois de sua morte. Ocorreu o mesmo quanto à
aplicação a Jesus do título tão importante de Kyrios. Porém,
enquanto que este tem sua origem, seu Sitz im Leben, no culto
cristão, a atribuição a Jesus do título Logos é, certamente, antes

n
Magn. 8.2. Cf. a este respeito H. SCHLIER, "Religionsgeschichtliche
Untersuchungen zu den Ignatiusbriefen" (BZNW8, 1929). CHR. MAURER,Ig/jati!«
vonAntiochien wtddas Joltannesevangeliuin (AThANT, 18, 1949) sustenta que Inácio
leu o Evangelho de João; porém, reconhece que o Logos de que se trata neste trecho
não se refere, necessariamente, ao quarto Evangelho (p. 41 s).
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 339

fruto de uma reflexão teológica; reflexão que, aliás, pressupõe tam-


bém a experiência litúrgica da soberania do Cristo. Para compre-
endê-lo, então, temos que levar em consideração, primordialmen-
te, as concepções extra - ou pré-cristãs que podem ser citadas como
paralelos, posto que a concepção cristã do Logos se vincula de um
modo mais consciente (mesmo que o paralelismo seja, sobretudo,
formal) às concepções extracristãs de Logos que os demais títulos
cristológicos aos paralelos extracristãos que se possam encontrar
para eles.
Cometeríamos, por conseguinte, um erro metodológico se,
por causa do caráter mais teológico da reflexão acerca do Logos, o
estudássemos exclusivamente em paralelo com a concepção orien-
tal e helenística. Pois sabemos hoje que o Evangelho de João, ape-
sar ou por causa dos elementos helenísticos que contém, pertence
a esse vasto domínio do judaísmo palestino influenciado pelo
sincretismo, cujos aspectos começam a ser melhor conhecidos gra-
ças aos textos de Qumran.520 Disso deduz-se que, muito mais ago-
ra, temos de considerar os elementos helenísticos do Evangelho
de João na relação que têm com as ideias que remontam ao Antigo
Testamento.
Além disso, é indispensável também não perdermos de vista
a relação entre as ideias joaninas e o conjunto do pensamento do
cristianismo primitivo, e não somente para constatar em seguida
entre elas uma oposição. Porque se falta o termo Logos quase de
maneira absoluta nos demais escritos neotestamentários, temos que
averiguar se não se encontra neles a mesma ideia da preexistência
de Jesus e aquela relação específica entre Deus o Pai e Jesus, que
caracteriza o Logos Joanino. Veremos, então, que sobre este ponto
o prólogo de João não traz uma doutrina essencialmente diferente
da que achamos em Paulo ao examinar outros títulos cristológicos;
por outro lado, o título "Filho de Deus", presente já na mais antiga
tradição sinóptica, parece recobrir bem concepções análogas em
alguns aspectos.

Cf. acima, p. 241 s.


. 340 Oscar Cullmaim

Porém, antes de tudo, temos que ver no quarto Evangelho,


assim como nos demais escritos do Novo Testamento, se o uso
corrente, isto é, não diretamente cristológico do termo Logos,
poderia ser uma das fontes da aplicação deste título a Jesus.521
A palavra de Jesus, ou seja, a palavra anunciada por ele,
desempenha em todo o Evangelho de João um papel tão importan-
te que quase não pode admitir-se que o evangelista deixe de pensar
nesta "Palavra" quando no prólogo identifica o Logos com Jesus.
Esta suposição se impõe ainda mais se tivermos em conta este
pensamento fundamental do Evangelho joanino: Jesus não somente
traz a revelação, mas, Ele é a revelação. Traz a luz e é, ao mesmo
tempo, a luz: dispensa a v i d a e é a vida; anuncia a verdadee «a
verdade; ou antes: se ele traz a luz, a vida e a verdade, épor ser ele
a luz, a vida e a verdade, O mesmo cabe dizer no tocante aoLogos:
ele traz a Palavra, porque Ele é a Palavra.
Se consultarmos uma concordância ficaremos sabendo que o
termo Logos, no sentido de "palavra pronunciada e anunciada",
ocorre com muita frequência no Evangelho de João, e expressa
uma de suas ideias essenciais. Segundo o uso corrente, Àóyoç não
significa nem mais nem menos que a palavra concreta percebida
pelo ouvido (por ex. Jo 2.22; 19.8). Porém, um sentido teológico
vem juntar-se ao usual: o Xóyoç que Jesus proclama é ao mesmo
tempo a revelação divina eterna, que exige não só um ouvido aten-
to, mas também a compreensão da fé. Esta acepção está implícita
no verbo átcofteiv.522 Quando o assunto é "permanecer na Pala-
vra" (8.31), "guardar a Palavra" (8.51), a Palavra que dispensa
vida a quem a escuta com fé (5.24), é deste sentido da palavra

5ÍI
Com razão este aspecto da questão foi levado em consideração por diversos auto-
res: nos artigos lexicográficos do Biblisch-Theologisches Wõrterbuch des
neutestamentlichen Grieschischde CREMER-KÒGEL (111 ed., 1923); no ThWbNT
por KITTEL; também por C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourlii Gospel,
1953, p. 265 ss. Cf. ainda J. DUPONT, Essais sur la christologie de Saint Jean,
1951, p. 20 ss.
522
Cf. C. H. DODD, The Interpretation ofilie Fourth Gospel, 1953, p. 266; ele subli-
nha a distinção que existe entre XaXvx e Xó-yoç em Jo 8.43.
CRISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 341

Logos que se trata. A palavra anunciada por Jesus aqui é idêntica


ao kerygma, que constitui uma das noções preferidas da teologia
contemporânea. No Evangelho de João é idêntica à "Palavra de
Deus" (17.14; v. também 5.37 ss.). Elaé aVerdadc por excelência
(17.17). É mais que uma mera (f>covf|. Quando, em Jo 1.23, João
Batista, citando Is 40.3, declara ser uma voz, cpwvTi, o autor pensa
certamente no prólogo que precede imediatamente e que fala
daquele que não é, como o Batista, uma<pa>vr|, mas o Logos (1.8).
No Evangelho joanino, a ideia teológica anunciada acercado
Logos conduz diretamente ao Logos que se encarnou em Jesus.
Efetivamente, o objetivo do Evangelho é exatamente mostrar que
toda vida humana vivida por Jesus é o centro da revelação da ver-
dade divina.
A Palavra de Deus, idêntica ao Àóyoç pregado por Jesus, é a
"verdade" (Jo 17.17); agora, o próprio Jesus é a verdade em pes-
soa (14.6). A designação de Jesus como Logos decorre, portanto,
necessariamente do emprego ordinário da palavra Xóyoç no quar-
to Evangelho. Certamente esta explicação não basta; porém, indi-
ca uma orientação do pensamento da qual não se deve, de nenhum
modo, descuidar.
Se é sobretudo no Evangelho de João que a palavra Àóyoç
assume o sentido absoluto de "revelação", este uso da palavra é,
no entanto, considerável na literatura do cristianismo primitivo.
No Novo Testamento a expressão ó Xòyoq xox> Qeoí» não designa
somente a "Palavra de Deus" particular (debar Iahweh) que no
Antigo Testamento é a palavra que responde a uma situação dada
e que é dirigida aos profetas sempre novamente. Porém, na maio-
ria das vezes, esta expressão visa, de um modo geral, o anúncio da
salvação. É assim que freqéntemente recorre-se à "Palavra" - o
genitivo TOV Geoujá não aparece como necessário- para designar
a pregação do Evangelho. Podemos encontrar esta acepção de À,óyoç
em todos os livros do Novo Testamento.523 Às vezes, o termo está
associado a um genitivo que define o conteúdo da palavra prega-

• Por ex Gl 6.6 ; Cl 4.3 ; Mc 2.2; 4.14 ss.; 8.32 ; Lc 1.2 ; At 8.4 ; 10.44; 16.6, etc.
• 342 Oscar Cuitmann

da: a "palavra da cruz"(1 Co 1.18)oua"palavra da reconciliação"


(2 Co 5.19). Porém, aí também o termo Logos denota a revelação
definitiva.
O prólogo da Epístola aos Hebreus expressa com muita clare-
za a diferença entre esta Palavra e aquela dirigida esporadicamen-
te aos homens de Deus no antigo pacto: "Depois de haver
KoXv\i£pcòç, Kod 7roVoTpÓJWoç falado aos nossos pais pelos profe-
tas, Deus, nestes últimos tempos nos tem falado pelo Filho". Quan-
do, em seguida, na mesma frase, o autor fala da criação do mundo
pelo Filho e nomeia a este no versículo seguinte, como "reflexo da
glória divina" x«pcoerrip xf|ç ííTiooxáoewç aínorj, a analogia com
o prólogo de João salta à vista. É verdade que o termo mesmo
X,óyoç não aparece aí; porém, como em Jo 1.1, o falar de Deus em
seu Filho está associado com a criação do mundo e ligado a uma
definição da relação eterna entre o Filho e Deus o Pai. De fato,
este texto constitui um paralelo muito mais direto que muitas
outras passagens as quais se alude geralmente para esclarecer a
concepção joanina de Logos. Seja Hb 1.1 ss. mais antigo ou mais
recente que Jo 1.1 ss., uma coisa tem que ser lembrada, e é que
uma linha contínua vai da maneira em que Deus falava no Antigo
Testamento à revelação por excelência que é o Filho, reflexo da
glória divina. Nesta linha também se encontra um elo intermediá-
rio: o uso da palavra Aóyoç para designar o anuncio definitivo da
salvação, que já encontramos no Novo Testamento. Certamente,
em Hb 1.1 ss. só se diz que Deus tem falado no ou pelo Filho524
Certamente se formula a questão da relação entre esse Filho e Deus;
ela recebe uma resposta análoga àquela que é dada no prólogo de
João, porém, não há uma identificação absoluta entre esta "Pala-
vra de Deus" e o "Filho" A este não se chamaLogos Se o primei-
ro capítulo de João estabelece esta identificação é por tratar-se de
um prólogo a uma vida de Jesus vida que é ela mesma o ponto de
partida de toda reflexão cristológica ulterior Nesta vida a revelação
de Deus se manifesta não só nas palavras ciue Jesus pronuncia mas

èv instrumental.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 343

também nos atos que realiza. O que Jesus faz é o que ele mesmo é.
O uso hebraico segundo o qual "palavras" (debarim) pode também
significar "história",525 deveria necessariamente, ao considerar-se
primeiramente a vida, a "história" de Jesus, favorecer a identifica-
ção de Jesus com "a Palavra".
Por conseguinte, se o Evangelho de João ao designar a Jesus
como "a Palavra", oLogos, se aproxima das concepções vindas do
paganismo e do judaísmo tardio, a identificação repousa, no entan-
to, sobre uma reflexão imediata relativa à relação entre a vida his-
tórica de Jesus e a origem de toda revelação. A palavra de Deus é
reconhecida como suaação, o que estabelece uma relação natural
com sua palavra criadora, pela qual já se revelou "no princípio".
Quando se formula assim a questão da origem última da auto-
revelação de Deus, necessariamente, se é levado a remontar, para
além das palavras anunciadas pelos profetas, até a palavra de Deus
quando da criação do mundo. Esta concepção é preparada pelos
textos bíblicos antes mencionados que já consideram a Palavra
criadora e atuante de Deus quase como uma hipóstase.526 As espe-
culações judeu-helenísticas utilizam, por sua vez, a história da cria-
ção para sustentar suas doutrinas relativas à hipóstase divina que
existia "no princípio". Porém, não é somente por este rodeio dos
textosjudeu-helenísticosqueo prólogo de João se vincula a Gn 1:
interessa-se, também, diretamente pela relação entre a história de
Jesus e a da criação. Se o evangelista começa toda a sua narração
da vida de Jesus com as palavras com que o Antigo Testamento
abre a história da criação é porque, para ele, esta relação tem im-
portância decisiva; tão decisiva que todas as influências judaicas
ou helénicas, que possam ser descobertas, não podem ter senão
valor secundário.527

Cf. O. PROCKSCH em ThWbNT, IV, p. 91 s.


Cf. acima, p. 334 ss.
Temos visto que R. BULTMANN reconhece também, tanto em seu Comentário de
João (p. 6) como em sua Theologie des Nenen Testaments (p, 411), que o prólogo
de João se relaciona com Gn I; porém, não dá a este fato mais que um alcance
menor em sua explicação do prólogo.
,344 Oscar Cullniami

Se a Palavra de Deus que chamou o mundo à vida ("e fez-se a


luz") é a mesma Palavra que se dirige a nós na vida de Jesus, então
a identificação desta com o Logos divino se dá espontaneamente.
Então, a criação e a vida de Jesus têm ambas por denominador
comum a "Palavra", a "revelação". Porém, por este fato o proble-
ma da relação entre Jesus e Deus fica implicitamente formulado, e
ao mesmo tempo resolvido no sentido do prólogo, isto é, partindo
de Génesis 1.1 ss.
Neste prólogo, o evangelista permanece fiel à forma do pen-
samento do Antigo Testamento,528 quando fala da recusa da reve-
lação: porque assim como a revelação não foi recebida na criação
(Rm 1.18 ss.),529 Israel recusou a palavra dos profetas. É a este
povo de Deus rebelde que fazem alusão os ííôioi de Jo 1.11,530
As afirmações joaninas relativas ao Logos são fruto de uma
reflexão teológica profunda sobre a vida de Jesus, considerada como
a revelação central de Deus. As especulações judeu-helenísticas
que não podem ser provocadas pelo exame da vida de um homem
aparecido na história, mas que surgem de concepções filosóficas e
mitológicas, por certo ajudaram o autor a compreender e a expli-
car o mistério da pessoa de Jesus. Porém, o outro ponto de partida,
totalmente diferente, o da reflexão joanina, que é a vida concreta
de Jesus, dá à ideia cristã de Logos, em todos os seus elementos,
um sentido radicalmente novo.
R. Bultmarm assinala, com razão, que o prólogo de João não
diz "Palavra de Deus" mas simplesmente o Logos, a Palavra, sem
genitivo explicativo, como se se tratasse de algo bem conhecido.

H. SAHLIN, Zttr Typologie des Johaimesevangeliwiis, 1954, sustentou recente-


mente que não somente o prólogo mas o Evangelho de João inteiro deveria ser
considerado como paralelo tipológico ao pensamento do Antigo Testamento, em
particular da tradição do Êxodo. No entanto, a tentativa de SAHLIN (p. 60 s) de
incorporar o prólogo de João neste esquema explicando-o pela tradição do Êxodo
não é, de nenhuma maneira, convincente.
Cf. acima, p. 328, nota 492.
Esta é também a opinião de C. H. DODD, op. cit., pp. 270, 272, que, de uma
maneira geral, sublinha vigorosamente o fundamento do prólogo no Antigo Testa-
mento.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 345

Poderia isto significar que o autor se refere, de maneira perfeita-


mente consciente, a concepções judeu-helenísticas ou ainda pagã-
helenísticas relativas a um Logos compreendido como hipóstase?SÍI
É difícil dar com certeza uma resposta afirmativa a esta questão.
Porém, é muito provável que o evangelista pense também noLogos
já personificado, tal qual se encontraria correntemente no helenismo
sincrético e no judaísmo helenístico e que, intencionalmente, se
refira a uma concepção deste género sem ter em vista, no entanto,
um texto determinado. O autor, que colocou este prólogo no come-
ço de seu Evangelho sabe que, ao designar a pessoa histórica de
Jesus de Nazaré como o Logos, anuncia algo tão radicalmente novo
que pode, serenamente, sem temer um mal entendido filosófico e
especulativo, tomar e utilizar o que, no tocante ao Logos, autores
não cristãos haviam ensinado em sua época ou ainda antes.
Nem sequer é impossível, segundo admitem atualmente alguns
sem dificuldade, que haja, efetivamente, se valido aqui de um
hino à Sabedoria"2 ou de um modelo mandeu.533 Porém, a seme-
lhança de termos não implica forçosamente, e especialmente aqui,
a semelhança de pensamentos. Quando o evangelista fala do
Logos pensa automaticamente em Jesus de Nazaré encarnado,
no Verbo feito carne, e que é nesta vida humana de Jesus, a reve-
lação definitiva de Deus ao mundo: é esta uma ideia absoluta-
mente inconcebível fora do cristianismo, ainda que se empregue
o mesmo termo.
Ao afirmar, com respeito ao seu Logos, o que pagãos e judeus
afirmavam em relação ao deles, o autor chama a atenção para a

O emprego mencionado mais acima, p. 341 s. do termo Xóyoç, sem outra determi-
nação, entra também em consideração; porém, não constitui uma explicação sufici-
ente. Porque não se trata aí mais do que da pregação da palavra; enquanto que aqui
o emprego desta expressão é o fruto de uma reflexão teológica amadurecida.
Porex. J. RENDELL HARRIS; cf. acima, p. 336 s.
RE1TZENSTEIN-SCHAEDER, op. cit.,p. 306 Ss.,eR.B\JLJWÍANN, Jolianneskommcntar,
p. 5 ss., como também o artigo de E. KÀSEMANN citado acima, p. 230, n. I. R.
SCHNACKENBURG supõe jazer na base um hino cristão ao Logos que se teria
originado na Ásia Menor ("Logoshymnus und joh. Prolog." Bibl. Ztsc/u:, NF 1,
1957, p. 69 ss).
346 Oscar Cullinann

novidade inaudita que ele se propõe anunciar; e isto não somente


no prólogo mas em todo o Evangelho. A forma pode ser idêntica,
a terminologia não é modificada; porém, o tema já não é mais o
mesmo; não é o Logos estóico abstrato, nem o Logos mitológico;
mas um Logos que se toma homem e que, justamente por esta
razão, é o Logos.
Aqui encontramos, pois, um universalismo autenticamente
cristão e em nada sincretista. O evangelista não procede à maneira
de certos teólogos modernos adeptos da história comparada das
religiões; os quais falam, em primeiro lugar, de uma revelação geral
presente em todas as partes, a aprovam, e acabam por chegar a
uma revelação cristã especial. Totalmente falso seria interpretar
assim o prólogo de João. Se o autor adota afirmações relativas ao
Logos tiradas não só do Antigo Testamento como também do
helenismo, ele não quer dizer com isto que os gregos, ao falarem
do Logos, já possuíam já o conhecimento da verdade que este vo-
cábulo expressa para o evangelista: isso seria uma forma moderna
de pensar. Antes, o evangelista sustenta que os gregos falavam do
Logos sem conhecê-lo, porquanto estes ignoravam o Logos feito
carne. Porém, de um ponto de vista puramente formal, o que eles
ensinavam acerca dele era exato. Nisto consiste o universalismo
do Evangelho de João: ver a Cristo onde os pagãos ensinavam
uma verdade; este mesmo Cristo que, num momento determinado
da história, se fez homem.

E pois perfeitamente justificado estabelecer paralelos alicerçados


na história comparada das religiões. Porém, quando se trata de explicar a
concepção joanina de Logos, semelhantes paralelos não parecem dever
ser empregados à maneira de R. Bultmann, por exemplo. Ou seja, pro-
curamos os temas cristãos e bíblicos do prólogo em seu ponto de partida,
na óptica teológica adotada por seu autor no instante da redação; e não
graças a um processo de "desmitologização" pelo qual nós os encontra-
ríamos livrando o prólogo dos elementos mitológicos que o autor teria
simplesmente utilizado por sua própria conta. Dado o caráter do
universalismo joanino temos de dizer que os elementos extracristãos do
prólogo não são a fonte em que o autor se inspira; mas, pelo contrário, a
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 347

prova dele haver tomado conscientemente lemas estrangeiros para dar-


llies um tom cristão.

Para compreendermos bem os primeiros versículos do prólo-


go é preciso sempre ter presente o v. 14 onde se diz que o Logos se
fez carne. É verdade que o evangelista ao começar o prólogo
remonta para além da criação ao falar do ser do Logos junto a
Deus; porém, já então, pensa na função deste Logos em sua ação.
A própria essência do Logos é ação, pois é agindo que Deus se
revela; o que quer dizer que mesmo se achamos aqui algumas
reflexões sobre o ser do Logos, feitas à margem, sabe o autor, no
entanto, que o Logos possui o ser unicamente em vista da sua ação,
e até que, em última análise, o ser do Logos é essencialmente sua
ação.
Não obstante, estamos aqui na presença de uma dessas raras
passagens do Novo Testamento que tratam do "ser" da Palavra
preexistente. Verdadeiramente descobrimos aqui algo quanto à ori-
gem desta ação mediante a qual Deus se revela; e isso tem por
objetivo sufocar imediatamente toda ideia de uma doutrina "duo-
teísta", como se o Logos fosse um deus, ao lado do Deus altíssimo.
Não se pode dissociar o "Verbo" que Deus pronuncia do próprio
Deus; "estava com Deus" (fjv npòç tòv 8eóv). Não se pode pois
falar, comos arianos, de uma criação exnihilo do Logos; nem com
Orígenes, de uma emanação.534 O "Verbo" de Deus é dado, pelo
contrário, com o próprio Deus. Tampouco é o Logos um subordi-
nado a Deus, pelo fato de pertencer-lhe. Ele não lhe é nem subor-
dinado, nem justaposto como um segundo ser. Com razão Bultmann
sublinha aqui535 que não se pode inverter a frase do v. 1. Não se
pode dizer: 0eòç f|v Tipòç TÒV Xó^ov, e isto por ser o Logos, o
próprio Deus, enquanto Deus fala, enquanto se revela; o Logos é o
próprio Deus em sua revelação. Neste sentido a terceira frase do

51J
Cf. R. BULTMANN, Johanneskontitientar, 1941, p. 16, que traz sobre este ponto
notáveis esclarecimentos.
535 R. BULTMANN, Johanneskommeittar, ibid.
.348 Oscar Cullmann

prólogo pode proclamar: íccá 6eòç fjv ô Xóyoç. Não temos o direi-
to de mutilar este texto a fim de suavizar o que tem de taxativo e de
absoluto.

Muitas tentativas deste género foram empreendidas e as há hoje,


ainda. Interpreta-se aqui, por exemplo, 6eóç como sefosse9eToç: "O Logos
era de natureza divina". Semelhante interpretação - que Bultmann recusa
também em seu Comentário pág. 17 - é insustentável. Se isto fosse o que
o autor quisesse dizer teria a sua disposição o adjetivo Geíoç que, aliás, se
acha no Novo Testamento (At 17.29; 2 Pe 1.3). Tampouco é possível, com
Orígenes, atenuar a força desta afirmação dizendo que falta o artigo antes
de 0eóç, mostrando assim o autor que o Logos não é Deus, mas tão-
somente de natureza divina, que é uma emanação de Deus.

É, deveras, a opinião do evangellsta aque se expressa aqui, quando


chama ao Logos "Deus". Isto é o que a parte final de seu Evangelho
mostra quando Tomé, convencido, exclama diante do Ressuscitado:
"Meu Senhor e meu Deus!" (Jo 20.28). Com este último e decisivo
"testemunho", fecha-se o círculo: o evangelista retorna ao prólogo.
Não obstante, para evitar a qualquer custo o equívoco que
consistiria em não distinguir diferença alguma entre Deus e o Logos,
o autor em seu prólogo repete insistindo: "Aquele que estava des-
de o princípio com Deus". Deste Logos, a respeito de quem acaba
de afirmar que é Deus, deve, ao mesmo tempo, dizer que estava
com Deus. Não são dois seres, e no entanto, não coincidem pura e
simplesmente. Pois, pelo menos em princípio, Deus pode ser ima-
ginado independentemente do ato pelo qual se revela, o que não é
o caso para o Logos. Contudo, não podemos esquecer que a Bíblia
tem por objeto não a Deus enquanto tal, mas a Deus orientado ao
mundo em sua revelação.
Devemos deixar este paradoxo subsistir em toda a cristologia.
O Novo Testamento não traz solução, antes se contenta em justa-
por as duas afirmações: por um lado, o Logos era Deus; e por
outro, o Logos estava com Deus. Aliás, voltamos a encontrar o
mesmo paradoxo no curso do Evangelho; porém, desta vez a pro-
pósito da ideia de "Filho de Deus". Nos é dito, com efeito, por um
CRISTOLOGI/^ DO NOVO TESTAMENTO 349

lado que "o Pai e o Filho são um" (Jo 10.30), e por outro que "o
Pai é maior que o Filho" (Jo 14.28).536
Dado que o Logos é Deus que se revela, que se comunica em
sua ação, e dado que o Novo Testamento tem por único objeto esta
ação, toda especulação abstrata sobre as "naturezas" do Cristo é
não só um empenho vão, como também, em suma, uma recusa de
levar em conta o fato de que, em virtude da própria natureza do
Logos, não se pode falar dele senão em referência à ação de Deus/137
Sobre o "ser" do Logos não se pode dizer mais do que o que se
encontra no prólogo: no princípio estava com Deus, e ele é Deus,
nada mais. Pois o prólogo mesmo passa rapidamente à ação do
Logos: "Todas as coisas foram feitas por ele". Deus se revela pri-
meiramente na criação. Tal é o que une estreitamente, no Novo
Testamento, a criação e a redenção: em ambos os casos se trata de
Deus no ato de revelar-se, de comunicar-se. Assim, é o próprio
Logos quem aparece em carne como mediador humano, e que
havia, já antes, sido o mediador da criação. Precisamente pelo fato
do Evangelho de João atrever-se a ver, em uma simples vida
humana a revelação máxima de Deus, dá evidências de levar radi-
calmente a sério o fato de ser toda revelação desde o começo uma
obra de Deus em Cristo; isto é que no plano da soteriologia não é
possível opor a criação à redenção.
Temos notado, muitas vezes, que esta unidade entre a criação
e a redenção caracteriza também o paulinismo. Lembramos espe-
cialmente a muito antiga confissão de fé binária que se encontra
em 1 Co 8.6, devendo, ,nclusive, ser anterior a Paulo. AH iambém
Cristo é o mediador da criação. E também como tal que ele apare-
ce em Cl 1.16, em Ap 3.14 e em Hb 1.2. A reflexão sobre Cristo
mediador de toda revelação, mesmo da revelação original, é pois

"''Aqui também estamos inteiramente de acordo com R. BULTMANN, Johanties-


kommentar, p. 18.
"7 É o que sublinham também, com clareza gratificante, exegetas católicos tais como
J. DUPONT, Essais sur la christologie de Saint Jean, 1951, p. 58, e M. E.
BOISMARD, Le prologue de Saint Jean 1953, p. 122.
•350 Oscar Cullmann

anterior a João. Porém, o Evangelho de João, que captou a con-


cepção de Logos em toda sua profundidade, levou esta reflexão
até suas últimas consequências. Ideias já comuns sobre uma hipós-
tase divina lhe facilitaram uma identificação ousada entre a reve-
lação (Xóyoc,) e Jesus. Porém, seu ponto de partida é a convicção
especificamente cristã de que a vida terrestre e humana de Jesus é
o momento capital, exaustivo da revelação divina. Jesus vive a
Palavra de Deus ao mesmo tempo que a anuncia: ele mesmo é a
Palavra de Deus.
É a esta identificação que deve chegar, necessariamente, a vida
de Jesus como revelação decisiva de Deus. Assim como a experi-
ência litúrgica do Kyrios fez nascer a fé na divindade de Cristo,
assim também, a reflexão teológica sobre a revelação em Jesus
leva à convicção de que Jesus Cristo foi Deus desde o começo;
Deus enquanto aquele que se revela ao mundo. Se Deus se revelou
na vida de Jesus de maneira que a plenitude de sua doxa divina se
fez patente (Jo 1.14 ss.), é preciso que Jesus já tenha sido antes a
revelação de Deus aos homens. Então ele é Deus, Deus revelando-
se; assim, ele é dado com o próprio Deus desde o princípio.
Vimos que a Epístola aos Hebreus, que, na questão da Pala-
vra de Deus, associa da mesma forma Jesus à criação do mundo, o
chama "reflexo" e "imagem" de Deus. Aqui também, a reflexão
conduz a uma definição da divindade de Jesus que, não obstante,
não apaga sua distinção com respeito a Deus.
E quando Paulo chama a Jesus de "imagem de Deus", nos
põe na presença de uma definição bem análoga. Ela remete à ideia
de Filho do Homem, tal qual a encontramos por exemplo em Fl
2.6 ss. Lembremos que neste texto a oposição entre a obediência
de Cristo, imagem preexistente de Deus, e a desobediência de Adão,
criado à imagem de Deus, tem uma importância capital. As duas
concepções, a de "Filho do Homem" e a de Logos se tocam;
porém, a ideia de Filho do Homem mostra mais em que consiste a
redenção pelo "homem" Jesus Cristo, enquanto que a de Logos
acentua mais a noção de revelação como tal: a própria doxa divina
cuja manifestação estava vinculada, até então, ao lugar de culto de
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 35 1

Betei (cf. Jo 1.51), ao Templo de Jerusalém (Jo 4.21), se tornou


visível na pessoa de um homem (Jo 1.14: ècKT|Vcooev èv r^iv;53S
2.19 ss.).
Certamente o autor do Quarto Evangelho é o único, no Novo
Testamento, a ter desenvolvido e levado à suas últimas consequên-
cias a ideia de ser o próprio Deus quem se revela na pessoa do
Cristo encarnado; porém, cabe admitir-se que esta ideia faça par-
te de um património comum do cristianismo primitivo. Com efei-
to, esta doutrina cristocêntrica da revelação se encontra, de certo
modo, na base de todas as concepções cristológicas até aqui
estudadas, quer busquem captar a obra do Cristo encarnado, quer
se empenhem por descrever sua obra futura e presente. Na pri-
meira Epístola de João, onde se chama a Jesus não simplesmente
o Logos, mas comum atributo "o Logos da Vida" (1 Jo 1.1), eem
Apocalipse, onde, considerado como a revelação do fim dos tem-
pos, ele é chamando "Logos de Deus", se contempla, igualmen-
te, do ponto de vista da história da revelação, sua relação com
Deus. Outro tanto ocorre em todo o Evangelho de João; porém, o
prólogo nos leva até o extremo inicial da história da revelação,
onde antes da criação, o Logos já estava com Deus; assim como
Paulo, valendo-se da doutrina acerca do Filho de Deus, nos con-
duziu até o extremo final desta história na qual o Filho, depois
de haver submetido tudo ao Pai, se submete a si mesmo e onde
Deus será "tudo em todos"; onde, portanto, a distinção entre o
Pai e a Palavra mediante a qual se revela deixa de ter sentido
(1 Co 15.28).
Em resumo, pode-se dizer que para o Novo Testamento a
cristologia do Logos é constituída pelos dois elementos seguintes:
o primordial é a certeza de ser a vida de Jesus o centro de toda a
revelação de Deus, portanto, a certeza de que Jesus é, em sua pró-
pria pessoa, aquilo que ele prega e ensina; com auxílio do relato

Esta relação é particularmente visível se se admite, com H. H. SCHAEDER, que


aqui o verbo grego èoKnvcooev foi escolhido por causa de sua assonância com a
palavra hebraica schekina.
• 352 Oscar Cullmann

do Génesis, que narra a criação pela "Palavra", uma reflexão teo-


lógica acerca da origem de toda a revelação se apoia sobre esta
certeza. O elemento secundário é a utilização de especulações con-
temporâneas sobre as hipóstases divinas. K[o entanto, esta utiliza-
ção não chega a um universalismo sincretista, mas a um universalis-
mo propriamente cristão.
(^APÍTULO 11

JESUS, O FILHO DE DEUS

Também o título cristológico "Filho de Deus" costuma ser


examinado, na dogmática posterior, exclusivamente do ponto tje
vista das duas naturezas. "Filho de Deus" qualificaria a natureza
divina de Jesus Cristo; e "Filho do Homem", a humana. Porém, já
nos é patente que semelhante maneira de ver é só parcialmente
exata, ao menos no que diz respeito ao título de "Filho do Homem"
que é acima de tudo (se nos ativermos a Dn 7.13) um título cie
soberania. Inversamente, veremos que, se bem que seja verdacie
que o título "Filho de Deus" alude à majestade divina de Jesus e a
sua unidade última com Deus, subentende, também, como ele-
mento essencial, a obediência de Cristo a seu Pai, sua humildade.
Indiscutivelmente, o título"Filho de Deus" caracteriza de manei-
ra particular e totalmente única a relação entre o Pai e o Filho.
É pois com alguma razão que os teólogos da igreja antiga se vala.
ram também deste título em suas discussões cristológicas. Porérn
devemos cuidar para não atribuir aos primeiros cristãos, nem sequer
ao próprio Jesus, a intenção de afirmar, por este título, uma identi-
dade de substância entre o Pai e o Filho. Que o Filho seja geracio
pelo Pai e que seja divino são tomados, por certo, em considera-
ção; porém, não no sentido das polemicas posteriores sobre a subs-
tância e as naturezas.539
Cabe-nos aqui, também, averiguar o significado que tinha esta
expressão "Filho de Deus", na época do Novo Testamento, para

O que não quer dizer que algumas dessas discussões, em relação com afirmaçoes
heréticas, não tenham sido necessárias posteriormente.
, 354 Oscar Culhnann

judeus e gentios. Entre estes e aqueles, o termo era corrente. 0 pro-


blema da influência do uso judeu e gentil do mesmo, em seu uso
cristão, se esboça de maneira análoga àquela acerca do título
Kyrios.540 Nos esforçaremos por examinar sem ideias preconcebi-
das se a afirmação de ser Jesus o Filho de Deus se relaciona mais
com a concepção judaica ou com a helenística referente ao Filho
de Deus. Mesmo com o risco de ser tomado por um espírito não
crítico e "conservador", será necessário, também neste caso, não
excluir a priori a possibilidade de que os primeiros cristãos, e quem
sabe o próprio Jesus, tenham podido dar a este termo um conteúdo
totalmente novo. Um dogmatismo desta espécie seria cientifica-
mente tão condenável como o dogmatismo "conservador".

1 . 0 "FILHO DE DEUS" NO ORIENTE E NO HELENISMO

É necessário examinar o emprego do título Filho de Deus no


helenismo, tanto mais pelo fato de R. Bultmann, em sua Teologia
do Novvo Testamento,54' voltar a tomar, como no caso do título
Kyrios, a tese de W. Bousset e declarar que a aplicação do título
"Filho de Deus" ao Jesus terreno é impossível não só na boca do
mesmo, como também por parte da comunidade palestina. Este
título não poderia ter sido conferido a ele senão no cristianismo
helenístico e com o sentido que já possuía no mundo helenístico.
R. Bultmann, Theologee des N. T., p. 51, concede somente que a
comunidade palestina teria conferido o título de "Filho de Deus" ao Res-
suscitado referindo-se ao SI 2. Encontra prova para isso particularmente
em Mc 9.7, pois que o relato da transfiguração, com a voz de Deus que se
faz ouvir, seria na realidade uma transposição retrospectiva da história
da Páscoa (Cf. abaixo, p. 247); assim como na antiga confissão de fé
citada por Paulo em Rm 1.3 s., onde Jesus é chamado filho de Davi
segundo a carne, Filho de Deus com poder segundo o Espírito desde sua
ressurreição.

Com esta diferença, no entanto, temos que nos perguntar se Jesus atribuiu a si mes-
mo este título.
R. BULTMANN, Theologie des N. T„ 1953, p. 128 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 355

O belo estudo de G. P. Wetter sobre o "Filho de Deus"542 con-


tém uma rica documentação sobre os "filhos de Deus" no hele-
nismo. A origem desta noção tem que ser buscada nas antigas reli-
giões orientais onde principalmente os reis eram considerados como
gerados pelos deuses. Esta crença estava particularmente espalha-
da no Egito, onde os faraós passavam por ser filhos do deus sol
Rá.543 Ela é atestada também, porém, com menor clareza, na
Babilónia e na Assíria. A escola de Upsala,544 de acordo com sua
tendência geral, pensa que a ideia da filiação divina do rei se rela-
ciona com as festas de entronização que o Oriente antigo conhe-
cia. Para a época do Novo Testamento, pode-se pensar também
nos imperadores romanos e no título de divi filius que lhes era
conferido.545
Porém, no helenismo, este título não é monopólio exclusivo
de monarcas. Muito pelo contrário, gente de toda classe, a quem
se atribuíam forças divinas, era chamada "filho de Deus"; ou recla-
mavam para si mesmos este título: todos os taumaturgos eram
"filhos de Deus", ou, como se dizia também, GEToi âvÔpeç. Por
exemplo, Apolônio de Tyana, de quem Filostrato nos relata a vida
de uma forma que, em determinados momentos, lembra certas
partes do Evangelho; ou ainda Alexandre de Abonouteichos, que
conhecemos por Luciano.546 Com esta significação este título era
muito difundido. Na época do Novo Testamento era comum
encontrar homens que, em virtude de sua vocação particular ou de

í1
2 G. P. WETTER, Der Solm Gottes. Eine Untersttcluwg tiber den Charakter und die
Tendenz des Johannesevangeliums, 1916. Cf. também W. GRUNDMANN, Die
Goaesskindschatt in der Geschichte Jesu und ihre reíigionsgeschichtlichen
Voraussetzitngen, 1938. Entre os trabalhos mais antigos, cf., p. ex., P WENDLAND,
Die hellenistisch-rômische Kulliir in ihren Beziehuingen zti Judentum und
Christentum, 2a e 3a ed., 1912, p. 123 ss.; H. USENER, ReligionsgeschichtUche
UiUersuchungen I , 1 , Das Weilmaclusfest, 2a ed., 1911, p. 71 ss.
,13
Cf. C. J. GADD, Ideas ofDivine Rule in the Ancien East, 1948.
í14
Cf. acima, p. 43, nota 55.
1-15
Cf. A. DEISSMANN, Licht voni Osten, 4a ed., 1923, p. 294 s.; E. LOHMEYER,
Christuskult und Kaiserkult, 1919.
íJÍ
'LUCIANO, Alexandre, p. 11 ss. Cf. Também W. BAUER, "Das Johannesevan-
gelitan" (Hdb. z. MT*,), 3 a ed., 1933, p. 37.
•356 Oscar Cttllmann

suas forças sobrenaturais, se apelidavam a si mesmos "filhos de


Deus". Este título não tinha, pois, o caráter único e singular que ele
apresenta no Novo Testamento. Pela obra de Orígenes contra Celso
(7.9), sabemos que na Síria e na Palestina, se podiam achar pessoas
que diziam de si mesmas: "Eu sou Deus, o filho de Deus, o espírito
de Deus; eu vos salvo".547 Bultmann sublinha energicamente a ana-
logia entre estes 0£Toi âvôpeç e Jesus "Filho de Deus".
A pretensão destes homens de serem "filhos de Deus" baseia-
se unicamente na convicção que tinham de serem dotados de "for-
ças divinas". Ademais, no helenismo esta noção está tão vigoro-
samente arraigada em uma maneira de pensar politeísta que ela
dificilmente pode ser transplantada para o terreno monoteísta. Estes
taumaturgos carecem da consciência de cumprir o plano divino,
aquela consciência de uma unidade de vontade com o Deus único,
que encontramos em Jesus. Mesmo nas religiões de mistérios onde
o iniciado, o "mista", pode também chegar a ser "filho de Deus",
nos achamos em num nível totalmente distinto do dos evangelhos.
O que o mundo helenístico nos dá por "filho de Deus" costuma ter
um caráter totalmente diferente do que por ele entende o Novo
Testamento. Porém, cabe perguntarmos se o monoteísmo do Anti-
go Testamento já não possui uma noção de Filho de Deus, que
sem ser idêntica à concepção cristã, poderia, no entanto, oferecer
a esta um ponto de partida mais direto.

2. O "FILHO DE DEUS" NO JUDAÍSMO

No Antigo Testamento esta expressão é empregada de três


maneiras diferentes: primeiro, o povo de Israel inteiro é chamado
"filho de Deus"; em segundo lugar, o rei porta este título; e, final-
mente, certos comissionados especiais de Deus, tais como os
anjos e, talvez, também o Messias, são chamados assim. O fato de

Segundo C. H. DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, p. 251, nota
1, tratar-se-ia de cristãos inspirados e exaltados, de maneira que este trecho não
poderia ser tomado como referencia.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 357

que o povo todo e seu representante possam ser designados pelo


mesmo termo nos lembra aquilo que já temos visto a propósito do
Ebed Iahweh ou do Barnascha.
Os textos a considerar aqui são: primeiro, aqueles onde o povo
é chamado "fi Vho de Deus". Em Ex 4.22 s., Moisés recebe a ordem
de dizer ao Faraó: "Israel é meu filho, meu primogénito". Em Oséias
11.1 Iahweh diz: "E do Egito chamei o meu filho". Em Is 1.2 e
30.1, os israelitas em conjunto são chamados "filhos", e em Jr
3.22 se lhes qualifica de "filhos rebeldes". Em Is 63.16 os israelitas
dizem a Deus: "Tu és nosso Pai", e dão a esta palavra uma acepção
que implica que Israel é "filho de Deus" em um sentido muito
especial. Poder-se-ia, na mesma ordem de ideias, citar ainda
outras passagens como Jr 31.20; Is 45.11; SI 82.6; Ml 1.6.548
Em todos estes textos o título "filho de Deus" expressa, ao
mesmo tempo, a ideia de Deus eleger este povo com vistas a uma
missão particular e a deste povo dever-lhe obediência absoluta.
Isto corresponde exatamente à maneira como Deus chama
"filho" ao rei, representante do povo escolhido: "Eu serei para ele
um pai eele será para mim um filho" (2 Sm 7.14); ou: "Tu és meu
filho; hoje te gerei" (SI 2.7: passagem do Salmo real tão amiúde
citado pelos cristãos); ou ainda: "Ele (o rei) me invocará: Tu és
meu pai, meu Deus e a rocha da minha salvação" (SI 89.27). O rei
é também "filho" como eleito e mandatário de Deus. Não necessi-
tamos averiguar aqui em que medida as noções orientais, forâneas,
acerca de uma geração divina puderam, por outro lado, influir nes-
ta concepção israelita de rei.549 Surge, em especial, dos textos cita-
dos, que ao rei se chama "filho de Deus" pela mesma razão que ao
povo. Se o rei é o filho de Deus, é por sê-lo o povo. É aí onde os
anjos aparecem como "filhos de Deus" - sem dúvida trata-se parci-

5JS
O israelita de coraçãoretoé chamado "filho de Deus''em Eclo. 4.10; SI. de Salomão
13.9; o povo inteiro em Salmos de Salomão 17.27; 18.4.
in
Tratar-se-ia, sem dúvida, essencialmente, do ritual real da cerimónia de entronização.
Cf. acima, p. 354s.,G. VON RAD, "Dasjudaísche Kõnigsritital" (ThLZ, 72, 1947,
p. 211 ss) eA. AIST., Kleine Scltriften zur GescMchte Israels, II p. 133 s., sublinham
a relação entre o ritual real e a adoção do rei como "filho de Deus".
.358 Oscar Cullmaim

almente de ideias míticas: Cf. os "filhos dos deuses" de Gn 6.2 - a


ideia dos autores do Antigo Testamento é sempre a de que são
mandatários de Deus.550
O Messias também leva este título? Esta questão foi tratada
com frequência sem que, até agora, tenha sido perfeitamente escla-
recida. A dificuldade provém do fato de não conhecermos nenhum
texto antigo em que, incontestavelmente, o Messias seja chamado
"filho de Deus". No livro etíope de Enoque (105.2), trata-se pro-
vavelmente de uma adição posterior.551 As passagens do Apocalipse
de Esdras (4 Esdras 7.28 s.; 13.32, 37, 52; 14.9) quase não são
levados em consideração pois têm em vista, sem dúvida, o rcaíç
(no sentido àtEbedlahweh) e não se referem diretamente àfiliação
divina.552 Compreende-se, pois, que G. Dalman e W. Bousset551
contestem formalmente que o título "filho de Deus" tenha sido
uma designação judaica do Messias e que W. Michaelis554 veja
algo totalmente novo na nomeação "Filho de Deus" conferida a
Jesus, no Novo Testamento.
Ainda que seja verdade que não temos referências conclu-
dentes parece, no entanto, difícil admitir que este atributo real não
tenha sido algumas vezes conferido ao Messias,555 tanto mais pelo
fato de que a esperança messiânica dos judeus estava estreitamente

siII
Jó 1.6; 2.1; 38.7; SI 29.1; 89.7; Dn 3.25, 28. Cf. F. STIER, Gott itndseine Engel im
Alten Testament, 1932.
5 l
' Cf. G. DALMAN, Die Worte Jesu, I, 2a ed., 1930, p. 221; isto é confirmado pela
ausência deste trecho num fragmento grego de Enoque (cf. C. BONNER, The Last
Cliapters of Enoch in Greek, 1937).
532
B. VIOLET, Die Apokalypsen des Esraunddes Baruch in deutscher Gesiati, 1924,
ad loc.
S
"G. DALMAN, op. cit., p. 223; W. BOUSSET, Kyrios Chrisws, 2 a ed., 1921, p. 53 s.
Ver também E. HUNTRESS, "Son ofGod in Jewish Writings prior to the Chrisúan
Era" (JBL, 54, 1935, p. 117 ss).
554
W. MICHAELIS, Ztír Eiigelchristologie im Urchristentitm, 1942, p. 10 ss.
555
R. BULTMANN, Theologie des N. T., 1953, p. 51, admite também esta possibilida-
de, como também J. BIENECK, "Sohn Gottes ais Cliristusbezeiclmung der
Synoptiker" (ATIiANT, 21), Í9551 p. 25. Porém, este último, ,em dúvida equivoca-
damente, não pensa que esta questão seja importante. C. H. DODD, The Interpretaúon
ofthe Fourth Gospel, 1952, p. 253, considera esta hipótese, se não certa, ao menos
provável.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 359

associada à ideia de realeza: o fato de que os Salmos reais tenham


sido aplicados ao Messias o demonstra com clareza.556 A identifi-
cação do Messias com o Filho de Deus que o Novo Testamento
faz, poderia ser, também, uma indicação neste sentido (Mc 14.61;
MU6.16; Lc 1.32). É, no entanto, metodologicamente perigoso
referir-se a estes últimos textos para o problema que nos ocupa.
Veremos, com efeito, que nos sinópticos o título "Filho de Deus",
outorgado a Jesus, não decorre de sua dignidade messiânica; e é
bem possível que a associação do Messias e do Filho de Deus, em
algumas raras passagens, se deva simplesmente ao fato de o cristi-
anismo primitivo ter visto simultaneamente em Jesus o Messias e
o Filho de Deus, embora partindo de dois pontos de vista diferen-
tes. Em todo caso, em princípio, temos que distinguir no Novo
Testamento o Messias e o Filho de Deus. Se o Messias, então,
pôde receber no judaísmo o atributo de "Filho de Deus", isso foi
só em virtude desta ideia de eleição que é indispensável para se
atribuir o título de "filho de Deus" ao rei.
Em resumo, pois, podemos dizer que para o Antigo Testa-
mento e o judaísmo o que caracteriza o Filho de Deus não é pri-
mordialmente a posse de uma força excepcional, nem uma relação
de substâcia com Deus em virtude de haver sido divinamente
gerado; mas sim o fato de ser eleito para realizar uma missão divi-
na particular, e obedecer estritamente ao chamado de Deus.

3. JESUS E O TÍTULO "FILHO DE DEUS"

Jesus se considerou a si mesmo como "Filho de Deus"?


A resposta a esta pergunta é negativa para quantos comW. Bousset
e R. Bultmann557 fazem remontar este título, quando o Novo Tes-
tamento o aplica ao Jesus terreno, ao seu uso helenístico. Mesmo

iM
G. DALMAN, op. cit„ p. 219 ss., nota que o SI 2, que sobretudo entra aqui em
questão, foi raramente interpretado messianicamente.
ií7
Só a atribuição do título "Filho" ao Ressuscitado pode, segundo BULTMANN,
explicar-se pela tradição judaica. Cf. acima, p. 354 s.
•360 Oscar Cullmann

quando esta tese se revele, diante do exame, ser insustentável, have-


remos de perguntar se, todavia, não foi a comunidade primitiva
quem considerou a Jesus como o Filho de Deus, por influência do
Antigo Testamento, sem que o próprio Jesus houvesse atribuído a
si mesmo este nome. Detendo-nos no método da história da for-
ma, investigaremos se no cristianismo primitivo "Filho de Deus"
era um título atribuído correntemente ao Cristo. Examinaremos,
ao mesmo tempo, se o uso deste termo no Antigo Testamento e no
judaísmo basta para explicar a convicção dos primeiros cristãos de
que Jesus era o Filho de Deus, sem fazer intervir a consciência do
próprio Jesus de ser este Filho.
Se fossemos, ao fim, levados a atribuir a Jesus esta consciên-
cia, haveríamos, então, que determinai* em que sentido ele enten-
dia esse título. Tudo que se pode dizer no momento é que, segundo
o testemunho unânime da tradição evangélica, o título "Filho de
Deus", aplicado a Jesus, deve expressar o que há de único, de incom-
parável, em sua relação com o Pai.

W. Grundmanníí<! sustentou a tese de que Jesus havia se considera-


do Filho de Deus no sentido lato e geral, que faz de todos nós "filhos de
Deus." Só posteriormente esta filiação geral teria se tornado a filiação
particular e única. Neste caso, o título "filho de Deus", aplicado a Jesus,
não significaria, para o problema cristológico propriamente dito, nada.
Tal simplificação nãoé adequada para resolver o problema. Ela baseia-se
inteiramente em uma hipótese que, aliás, não pode se apoiar em nenhum
texto; pois já os sinópticos, começando por Marcos, empregam o título
"Filho de Deus", seja ou não na boca de Jesus, de uma maneira tal que,
nem com a melhor boa vontade do mundo, seja possível crer que tenham
pensado em uma filiação geral e comum. Também Paulo, que em Gl 4.4
ss. e Rm 8.14 ss., fala de nossa filiação, a deduz do caráter único da de
Jesus. Do ponto de vista teológico, a relação entre a nossa filiação e a de
Jesus, é, pois, concebida por Paulo no sentido inverso da que supõe
Grundmann.

s
Cf.seu livro citado mais acima, p. 355, nota 542. Segundo uma publicação mais
recente: "Sohn Gottes, ein Diskussionsbeitrag^.ZAfH', 47, 1956, p. 113 ss., parece,
no entanto, haver seriamente corrigido sua tese.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 361

Começaremos por examinar a questão da origem helenística


do emprego deste título, por esta tese gozar hoje de especial aco-
lhimento graças à teoria que R. Bultmann defende em sunTheologie
desNeuen Testaments.559 Tentando definir o conteúdo do conceito
helenístico de "filho de Deus" já temos observado que este mal
pode separar-se do meio politeísta da antiguidade pagã e que a
ideia de uma simples posse de forças divinas, característica
daqueles Beíoi ÔcvSpeç, aqueles taumaturgos de quem possuímos
ainda algumas biografias, não é a da tradição evangélica, quando
esta apresenta a Jesus como o Filho de Deus. As principais passa-
gens sinópticas, nas quais Jesus aparece como o Filho de Deus,
não o mostram, precisamente, com o aspecto de um taumaturgo
ou de um salvador semelhante a muitos outros: muito pelo contrá-
rio, eles o distinguem radicalmente de todos os demais homens
para os quais ele se sabia enviado, no sentido que eles lhe atribu-
em a convicção de ter de cumprir sua obra terrena em concordân-
cia perfeita e total com a vontade do Pai. Esta separação, este afas-
tamento, não significa em primeiro lugar para Jesus a posse de um
poder sobrenatural, mas a obediência absoluta no cumprimento
de sua missão divina. É isto que os Sinópticos enfatizam. No rela-
to do batismo, onde se ouve a voz celestial (Mc 1.11 par.), o título
de "Filho"-já o vimos, ao examinar o de Ebed Iahweh - é asso-
ciado ao começo dos cânticos do Servo Sofredor. É até provável
que o texto hebraico de Isaías já suponha a ideia de "Filho". Volta-
remos a isto. Parece-nos evidente que neste relato, precisamente,
os Sinópticos insistiram no elo entre a ideia de "Filho" e a de Ebed;
e, portanto, na ideia de ser a filiação de Jesus regida pela afirma-
ção de sua obediência. Porém, o que separa ainda mais radical-
mente a Jesus de todos os "filhos de Deus" helenísticos é a histó-
ria da tentação, tão estreitamente ligada a seu batismo.560 Foi
justamente por ter sido chamado "Filho de Deus" no momento de
seu batismo que Jesus foi submetido à tentação e, coisa caracte-

J
Cf. acima p. 354 s. e 359.
>É certo que os dois textos já formavam uma unidade na tradição oral (contra R.
BULTMANN, Geschichte d. Sytiopt. Tradition, 2a ed., 1931, p. 270).
362 Oscar Cuílinann

rística, segundo Mateus as primeiras tentações começam pela fra-


se: "Se tu és o Filho de Deus..."561 (Mt43, 6; cf. Lc 4.3,9). Temos
visto que o diabo busca impor a Jesus um papel de Messias políti-
co que deve preservá-lo do sofrimento. Observemos agora que para
seduzi-lo utiliza a convicção que Jesus tem de ser o Filho de Deus,
convicção que não é simplesmente um elemento da consciência
messiânica.562 É muito significativo que Jesus recuse como diabó-
lica esta concepção "helenística" de filho de Deus que o diabo
queria sugerir-lhe, a de um milagreiro. O que o diabo ataca essen-
cialmente nestas duas primeiras tentações, não é a confiança de
Jesus em que o poder milagroso de Deus se manifestasse em seu
favor por ser seu Filho; o que tenta provocar é a desobediência do
Filho para com o Pai, sugerindo-lhe milagres estranhos a sua mis-
são específica de Filho.
Assim J. Bieneck chega, em seu estudo das passagens
sinópticas relativas ao Filho de Deus, à conclusão de que estes
textos traçam uma "imagem tão pouco grega quanto possível" do
Filho de Deus. A única passagem na qual Jesus é chamado "Filho
de Deus", em um sentido concordante com o sentido helenístico,
seria o da versão dada por Mateus do episódio de Jesus caminhan-
do sobre o mar onde os discípulos exclamam: "Tu és verdadeira-
mente o filho de Deus" (Mt 14.33). Sem mencionar o fato de que
Marcos dá aqui uma conclusão muito distinta, o próprio Evange-
lho de Mateus não dá a este testemunho maior importância.563

J. BIENECK, Solm Goítes ais Ckrístusbezeicimung der Synoptiker, 1951, p. 64,


nota 18, explica corretamente a ausência no escrito de Mateus da fórmula "se tu és
Filho de Deus", no começo da terceira tentação, pelo fato de que ali o diabo exige
algo muito diferente do que nos dois casos precedentes: um ato de submissão e não
um ato de poder.
Tampouco há mais coincidência automática entre a consciência de ser Filho e a de
ser Messias na questão do Sumo Sacerdote (Mc 14:61), onde os dois títulos são
justapostos, ou nas burlas dos que passavam ao pé da cruz (Mc 15.29 ss. par.).
Uma dificuldade se apresenta a este respeito: segundo o plano do Evangelho de
Mateus, com efeito, é somente a partir de Mt 16.16 que os discípulos reconheceram
a Jesus; parece, pois, ilógico que este reconhecimento já seja antecipado em Mt
14.33. J. BIENECK, op. cit., p. 56, tenta explicá-lo admitindo que se trata de um
reconhecimento ainda imperfeito: explicação que pode ser levada em consideração,
porém, que nos parece um pouco rebuscada.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 363

A sequência do testemunho dos Sinópticos é clara: Jesus é o


Filho de Deus não como taumaturgo, mas como aquele que realiza
sua missão em obediência e, mais particularmente, como aquele
que aceita o sofrimento. Voltaremos a estas passagens; porém, já
aqui temos de chamar a atenção para o fato de que na confissão de
Pedro (Mt 16.16), tanto como no testemunho do ccnturião ao pé
da cruz (Mc 15.39),564 a dignidade do Filho de Deus está associa-
da a seu sofrimento; e que no relato da transfiguração (Mc 9.7,
par.), ela é proclamada como a confirmação de sua missão divina e
da unidade perfeita com o Pai na execução de sua missão. Esta
união estreita se expressa, também, na palavra tão controvertida
de Mt 11.27 relativa ao Filho que "só o Pai conhece".565 Esta afir-
mação tem, é verdade, paralelos na piedade helenística dos misté-
rios;566 porém, nos Evangelhos Sinópticos guarda conexão com a
ideia de que a relação de Jesus com seu Pai é seu segredo, e que
para conhecer este segredo deve-se possuir um conhecimento
sobrenatural, o qual só pode ser dado a um homem, que lhe vem
de fora: quer seja do Pai, como em Pedro (Mt 16.17), quer seja do
diabo, como na "confissão" dos endemoninhados (Mc 3.11; 5.7).

A tese da origem helenística do título "Filho de Deus" atribuí-


do a Jesus não pode, então, ser sustentada em relação aos Sinópti-
cos; e a este respeito, ao menos, não temos razões para duvidar a
priori da autenticidade de algumas declarações de Jesus nas quais
ele se auto designa "Filho". Seria possível, no entanto, como dis-
semos, que fosse a comunidade palestina primitiva a que houvesse

lj
A passagem paralela de Mt 27.54, que não consideramos ser a versão original, em
oposição a J. BIENECK, op. cit.,p. 55 (que segue sobre este ponto a SCHALATTER
e ZAHN) nos parece antes, próxima a Mateus 14.33.
'5 Sobre a explicação deste logion cf. abaixo, p. 373 ss.
"W. BOUSSET, Kyrios Christos, 2a. Ed., 1921, p. 48 s., cita, entre outras, uma ora-
ção a Hermes, do papiro mágico de Londres 122,50: "Eu te conheço, Hermes, e tu
me conheces; eu sou teu, e tu és meu".
•364 Oscar Cullmaitn

posto este título em Sua boca; pois "Filho de Deus" é, com efeito,
um dos nomes pelos quais os primeiros cristãos expressaram sua
fé em Jesus. Veremos, com efeito, que existiu uma breve confissão
de fé: "Jesus é o Filho de Deus". No Evangelho de João e na Epís-
tola aos Hebreus, "Filho de Deus" é uma das concepções cristo-
lógicas fundamentais. Paulo a emprega igualmente, embora com
muito menor frequência que o título Kyrios. Já vimos que os
Sinópticos o utilizam também, e não somente na boca de Jesus.
Marcos, sobretudo, parece dar-lhe particular importância, já que
segundo antigas leituras,567 intitula sua obra "Evangelho de Jesus
Cristo, o Filho de Deus". A situação não é pois a mesma para o
título "Filho do homem" e para o de "Servo de Deus". Quanto a
saber se Jesus havia atribuído a si mesmo o título de "Filho do
Homem", e o papel do "Servo de Deus" sofredor pudemos res-
ponder de maneira afirmativa, apoiando-nos no fato destes títulos
não haverem influenciado no surgimento da fé em Jesus, por parte
da igreja nascente; e no fato de que os Sinópticos só se servem da
expressão "Filho do Homem" quando Jesus fala de si mesmo, mas
nunca quando terceiros falam dEle. Em troca, a fé em Jesus "Filho
de Deus" é uma das crenças cristológicas da igreja primitiva, já
que este título não se encontra somente nas palavras de Jesus, mas
que é frequente nos primeiros autores cristãos, quando estes dele
falam.
Por conseguinte, seria possível, em princípio, que a comuni-
dade primitiva houvesse posto posteriormente este título na boca
de Jesus. Contudo, temos de observar que, segundo os Sinópticos,
unicamente em casos excepcionais e por revelação sobrenatural
ele foi, durante sua vida, reconhecido como "Filho de Deus", por
Pedro a quem não são "a carne nem o sangue" que o revelam (Mt
16.17); pelo diabo (Mt 4.3, 6); pelos demónios (Mc 3.11; 5.7).
Nos demais casos ou bem é a voz celestial que o chama "Filho"
(batismo, transfiguração), ou bem, excepcionalmente, é o próprio

Cf. abaixo, p. 384, nota 605.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 365

Jesus quem assim se autonomeia.568 Os Sinópticos recordariam


que o reconhecimento de Jesus como "Filho de Deus" remontava
ao próprio Jesus?569 Tentaremos, na continuação, responder a esta
pergunta.
Uma outra consideração, em compensação, nos parece deci-
siva: tanto pelas crenças do Antigo Testamento como pelas do
judaísmo, a igreja nascente não tinha nenhuma razão aparente para
chamar a Jesus "Filho de Deus". Não é impossível, certamente,
que o Messias judaico tenha, às vezes, recebido este nome em
conexão com a ideia de sua realeza. Porém, a ausência total de um
texto que apoie esta hipótese prova que, ao menos, não se trata de
um atributo essencial do Messias. Ademais, no próprio Novo Tes-
tamento, e mesmo na questão formulada pelo sumo sacerdote a
Jesus, o título Filho de Deus não deriva nunca da vocação especi-
ficamente messiânica de Jesus.

É verdade que segundo Mc 14.61 o sumo sacerdote pergunta: "'Es


tu o Messias, o Filho do Deus bendito?" Segundo Mateus 26.63 sua per-
gunta é semelhante: "Eu te conjuro, pelo Deus vivo, que nos diga se és o
Messias, o Filho de Deus". É possível que tenham sido os evangelistas,
para quem Jesus era ao mesmo tempo (embora de dois pontos de vista
diferentes) Messias e Filho de Deus, os que posteriormente estabele-
ceram esta associação, porém, certamente, sem fazer derivar a segunda
dignidade da primeira. É possível que Lucas (22.67) siga uma melhor
tradição, ao separar a questão relativa ao Messias da concernente ao
Filho de Deus, situando-as no interrogatório em dois momentos distintos.

Unicamente na versão de Mateus, a confissão de Pedro une o


Messias ao Filho de Deus: "Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo"
(Mt 16.16). Marcos e Lucas falam só do Messias (Mc 8.29; Lc
9.18). Temos aí duas tradições diferentes que se referem, prova-

s
Mc 14.61 e Mt 27.43 não devem ser levados em consideração, pois nem o sumo
sacerdote, nem os zombadores ao pé da cruz, criam na filiação de Jesus.
a
O. BAUERNFEIND, Die Worte der Dãmonen im Markusevangelium, 1927, p. 78
ss., faz notar que a menção do testemunho dos demónios não é compatível com a
teoria de WREDE sobre o "segredo messiânico".
366 Oscar Cullmeutn

velmente, a dois acontecimentos históricos distintos, aludindo uma


ao Messias e a outra ao Filho de Deus. A primeira se encontra nos
relatos de Marcos e de Lucas. Mateus combinou as duas. A res-
posta de Jesus e a declaração acerca da igreja fazem parte somente
da segunda tradição. J. Bieneck570 mostra, com razão, que as pala-
vras (v. 17): "Não foi carne nem sangue quem te revelou, mas meu
Pai que está nos céus" (palavras que, com as afirmações famosas
sobre a pedra da igreja e o poder de ligar e desligar, não se encon-
tram senão em Mateus) se relacionam à confissão de fé no Filho
de Deus e não à identificação de Jesus com o Messias. Marcos e
Lucas, depois que Pedro confessa sua fé somente no Messias, não
mencionam a resposta de Jesus acerca da inspiração divina da con-
fissão de Pedro. Mas, ainda estudando a atitude de Jesus relativa
ao título de messias571 vimos que, segundo a versão de Marcos,
Jesus não tinha na verdade nenhuma razão nesse momento para
considerar a Pedro como inspirado por Deus, já que ele se equivo-
cou sobre a dignidade messiânica e teve que ser repreendido seve-
ramente: "Para trás de mim, Satanás!"
Avancemos um passo a mais: J. Bieneck teve razão em relacio-
nar a palavra de Jesus; "Tu és bem-aventurado, Simão...", assim
como a frase relativa à revelação direta de Deus (Mt 16.17), a um
só elemento da confissão de Pedro: o que ele diz acerca do "Filho
de Deus". Iremos ainda mais longe nesta linha, retomando nossa
sugestão de que o relato de Mt 16.17-19 pertencia primitivamente
a outro quadro histórico,572 pensamos que Jesus responde aqui a

°Op. cit., p. 50, nota 15


'Cf. acima, p. 161 s.
!2
Cf. O. CULLMANN, Saiu! Pierre, disciple, apôtre, martyr, 1952, p. 154 ss., e
nossa contribuição aos Mélanges T. W. Manson, que aparecem sob o título de; "Pedro,
instrumento do diabo e instrumento de Deus; o lugar de Mt 16.16-19 na tradição
primitiva". O fato de nos atrevermos a considerar estas palavras como autênticas
nos valeu, como era de se prever, muitas "repreensões". Porém, nossa tese, a saber,
o ensaio visando incorporar em outro lugar da vida de Jesus o segmento da tradição
relatada porNlt 16.17-19 (e que na origem não tem nada que ver com o quadro de
Cesaréia de Filipe, Mc 8.27 ss.), quase não foi discutido por haver excessiva preo-
cupação pela questão da autenticidade.
CRISTOLOGI A DO NOVO TESTAMENTO 367

uma outra confissão de Pedro totalmente diferente, que tem um


paralelo em Jo 6.69, e onde Pedro teria dito somente: "Tu és o
Filho do Deus vivo", ao que Jesus teria respondido declarando-o
bem-aventurado porque só Deus podia revelar-lhe isto, já que só o
Pai conhece ao Filho (Mt 11.27).

Estaríamos até dispostos a crer que é somente no segmento da tra-


dição referida por Mt 16.16-19 que se trata verdadeiramente de uma "con-
fissão de Pedro". O ponto de Mc 8.27 ss. é, com efeito, muito dilcrenlc,
já que não se trata aí em nada de uma confissão de Pedro mas de uiva
repreensão que lhe é dirigida por causa de sua faixa noção acerca do
Messias. Mateus reuniu aqui, como faz com frequência, duas perícopes
entre as quais, de certo ponto de vista teológico, viu uma relação.

É de capital importância o fato de que os Sinópticos distin-


guem cuidadosamente os títulos "Filho de Deus" e "Messias". Se de
fato a igreja primitiva não fez derivar a dignidade de Filho de Deus
da "messianidade" que atribuía a Jesus, então não se pode ver o
que é que pôde levá-la a afirmar, acerca de seu próprio chefe, que
pretendia ser "Filho de Deus". A explicação que se impõe é que o
próprio Jesus se autodesignou com este título.
W. G. Kummel, "Das Gleichnis von den bõsen Weingãrtnern", ("Aux
sources de la tradition chrétienne, Mélanges M. Goguel, 1950, p. 120 ss.),
acredita que deve negar a Jesus a paternidade desta parábola, principal-
mente por causa do título de "Filho" que aí se acha, mas não dá explicação
satisfatória da aparição deste título na igreja nascente. Também reconhece
que para os judeus, a noção de Filho de Deus não depende da noção de
Messias. Porém, não basta ver, como ele o faz, a origem da afirmação da
filiação divina de Jesus na utilização que os primeiros cristãos faziam do SI
2.7.573 Pois ficaria ainda por explicar o que os levou a utilizá-lo assim.

Também é significativo queW. BousseteR. Bultmann tenham


se sentido obrigados a recorrer às biografias helenísticas de toda
sorte de taumaturgos para explicar que o título "Filho de Deus"

Op. cit., p. .131 ,eguindo C. H, DODD.


. 36ÍÍ Oscar Cullinann

tenha sido atribuído ao Jesus terreno, e, portanto, não vendo eles a


possibilidade de situar a origem deste título na primeira igreja
palestina. W. Grundmaiin, que tropeça no escândalo de um Jesus
que se toma a si mesmo por Filho único de Deus crê, no entanto,
que se deve atribuir o emprego deste título ao próprio Jesus,
porém, adotando a tese, um tanto ingénua, segundo a qual para
Jesus o título não teria nada de especificamente cristológico, mas
que deveria ser entendida num sentido geral de "criança de Deus".

* * *

Em virtude da importância e dificuldade do problema, foi


necessário se fazer um desvio antes de se poder precisar em que
sentido Jesus se considerou como o "Filho de Deus". Já aponta-
mos que Jesus, sem chegar a recusá-lo diretamente, ao menos,
evitou conscientemente o título de "Messias"; em troca, não vaci-
lou em se aplicar o de Filho de Deus. No entanto, raras vezes o
emprega; e não podemos considerá-lo como uma designação à que
Jesus recorre correntemente como foi o caso do título "Filho do
Homem". E, no entanto, a convicção de ser o "Filho de Deus",
num sentido totalmente único e especial, há de ter sido um ele-
mento essencial da consciência que Jesus tinha de si mesmo. Ain-
da neste caso a tese de W. Wrede não nos parece satisfatória. Não
podemos falar, é certo, de um "segredo do Filho" como o fizemos
do "segredo messiânico". Porém, se nos referimos a Jesus mesmo,
a explicação, no entanto, tem que ser buscada na mesma direção
que a indicada para o "segredo messiânico": Jesus prefere, em geral,
o título "Filho do Homem" ao de "Filho de Deus" por temor de
que o título "Filho de Deus" pudesse levar o povo a só considerá-
lo sob um dos dois aspectos que este título supõe: a majestade
divina sem o outro a obediência da humildade
Junte-se a isso outra razão. O título de Filho de Deus efetiva-
mente contém também uma afirmação de soberania, de dignidade
divina excepcional. Porém, ela pertence ao mais íntimo da cons-
ciência de Jesus, em maior grau que a afirmação de soberania implí-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 369

cita no título Filho do Homem ou no de Messias: com efeito, ela


diz respeito à constante certeza de uma congruência perfeita entre
sua vontade e a do Pai, e a alegria de saber-se cabalmente conheci-
do pelo Pai. Temos aqui muito mais que a mera consciência profé-
tica de um homem que se sabe um instrumento de Deus; e mais
que a "obrigação" experimentada pelo apóstolo quando exclama:
"Ai de mim se não anuncio o Evangelho!" (1 Co 9.16). Deus agiu
não somente por ele mas com ele. Pode assim reivindicar o direito
de perdoar pecados, o qual lhe acarreta, da parte dos escribas, a
acusação de blasfémia por igualar-se, dessa maneira, consciente-
mente a Deus: "Quem pode perdoar os pecados senão só Deus?"
(Mc 2.7). Está claro que executa, também, o plano de Deus na
qualidade de profeta, de apóstolo. Porém, em tudo isso sente-se
um com o Pai. Esta unidade é um segredo de Jesus: seu segredo
mais íntimo. Assim também se explica o fato que, como o costu-
me que ele tem de retirar-se a um lugar deserto para orar (Mc
1.35),574 Jesus, segundo os sinópticos só muito raramente fala de
si mesmo como o "Filho". E quando o faz, em geral, não é para
proclamar este segredo que ultrapassa toda inteligência humana,
mas tão-somente para deixá-lo ser adivinhado. Pois para o enten-
dimento humano comum, semelhante maneira de entender-se como
o "Filho de Deus" era incompreensível e devia ser interpretada,
mesmo na antiguidade, como sinal de exaltação e até de alienação
psíquica. Se os taumaturgos do mundo helenístico podiam, sem
surpreender demasiadamente, se dizer abertamente "filhos de Deus",
é por darem a este título, que compartilhavam com muitos outros,
um conteúdo muito distinto. Porém, o caso de Jesus é totalmente
outro; daí sua reserva, reserva que nos proíbe, a priori, classificá-
lo entre os "casos" psiquiátricos bem conhecidos e que foram con-
siderados análogos.
Nas poucas passagens sinópticas - falaremos mais adiante do
Evangelho de João- onde Jesus fala de si mesmo como "Filho dd Deus"
ou simplesmente "Filho", aparecem sempre estes dois aspectos: por

Este paralelo mostra que a teoria de WREDE, para explicar a discrição de Jesus, é inútil.
370 Oscar Cullmarm

um lado, a obediência filial ao plano de Deus, por outro, a experi-


ência contínua, desde seu batismo, de manter com Deus uma rela-
ção essencialmente diferentes da dos demais homens.
Se Jesus recorre, para designar esta experiência, à expressão
"Filho de Deus" não é - sabemos agora - porque este título satis-
fazia a ideia judaica de Messias, é antes, mas também não unica-
mente, em razão de como se expressa o Antigo Testamento acerca
do "Filho de Deus". Este título, já o temos visto, é ostentado pelo
povo de Israel e seu rei, na qualidade de instrumentos escolhidos
para executar o plano divino de salvação. Se a consciência de ser
Filho de Deus se expressa em Jesus pela obediência, a relação
com esta concepção bíblica é evidente. Porém, como explicação,
isto não basta. Em Jesus, se agrega algo novo, próprio de sua pes-
soa: esta experiência íntima que o acompanha constantemente em
sua obediência, de uma unidade integral entre sua vontade e a do
Pai. Agora, sobre este ponto, o "Filho de Deus" do Antigo Testa-
mento não nos oferece paralelo algum.
Porém, o fato de que Jesus, ao empregar o nome de "Filho",
retome um termo bíblico que pode designar ao povo de Israel
inteiro, nos permite estabelecer uma conexão entre este título e os
outros que expressam a consciência que Jesus tinha de si mesmo:
como nos casos de "Filho do Homem" e EbedIahweh, a ideia de
substituição, que é o princípio de toda história da salvação,575 está
também compreendida no título "Filho de Deus".
Esta aproximação entre os títulos "Filho de Deus" e "Servo
de Deus" é tanto mais importante quanto pelo fato de que, na vida
de Jesus, o batismo constitui o ponto de partida dessa sua cons-
ciência de ter de cumprir a missão do Ebede, ao mesmo tempo, de
ser o Filho de Deus de uma maneira única. É verdade que o come-
ço dos cânticos do Servo (Is 42.1) que ressoa dos céus no momen-
to do batismo de Jesus, não contém em hebraico a palavra ben,
"filho". Porém, se tem observado acertadamente que a expressão
empregada em seu lugar, bechiri, "meu bem-amado", àyaKrycóc,,

Cf. O. CULLMANN, Christ et le Temps, 1947, p. 81 ss.


CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 371

supõe a ideia de filiação e ainda a ideia de que o filho em questão


é um filho único.576 Daí vem, talvez, que os LXX não traduzam
Ebed por ÔOÍJXOÇ mas por ícaíç, palavra que significa ao mesmo
tempo servo e filho.577 De todas as maneiras a voz celestial faz
recair o acento tanto sobre "tu és meu filho único", como sobre "tu
deves assumir o papel de Ebed Iahweh". Esta relação com o tema
do Servo Sofredor mostra que junto à soberania a obediência é,
para os Sinópticos, um elemento constitutivo da ideia de Filho
único de Deus.578
O batismo de Jesus, com a revelação que o acompanha, inicia
o Evangelho de Marcos tanto como o Evangelho de João. Abre
caminho à compreensão de toda a vida de Jesus e também a toda a
cristologia pois, nesse momento, Deus revelou a Jesus, simultane-
amente, quem Jesus era e qual a sua missão; e, desde então, a
consciência de sua perfeita unidade com o Pai e do dever que o
espera não o abandonará nunca. O relato da tentação o mostra em
seguida: "Se tu és o Filho de Deus ...", diz o diabo; porém, Jesus
resiste ao saber que, precisamente porque é o Filho de Deus, não
pode ser nem um taumaturgo, à maneira dos "filhos de Deus"
helenísticos,579 nem um soberano do mundo, à maneira do Mes-
sias político. Justamente por ser o "Filho", não pode contar com o
poder milagroso de Deus, a menos que Lhe obedeça em sua mis-
são e não se jogue do alto do Templo. Entendida desta maneira,
a tentação de Jesus, Filho de Deus, corre paralela com a de Adão.
É o mesmo paralelo antitético que, segundo a explicação exposta
acima, jaz por detrás de Filipenses 2.6 ss., onde a semelhança de
Jesus com Deus não o leva a "roubar" a igualdade com Deus, como
Adão quis fazer; mas sim à obediência, até a cruz. O sentido do

576
Cf. G. SCHRENK, em ThWbNT, II, p. 738; W. BAUER, Wõrterbucli, 4a ed., 1952,
p. 10 s.
577
É o que indica também L. CERFAUX, Le Christ datis la Théologie de Saint Paul,
1951, p. 340.
5
™ J. BIENECK, op. cit., tem o mérito de haver posto em evidência este fato.
57!>
Cf. G. DELLING, "Das Verstãndnis des Wunders im N.T." (2, syjf. Th. 1956,
p. 265 ss.).
• 372 Oscar Cullmann

relato da tentação de Jesus é, pois, que para ele, ser Filho de Deus
significa estar constantemente submetido à vontade de seu Pai.
Igualmente, a consciência de sua unidade íntima com o Pai o
acompanhará sem cessar desde o momento de seu batismo. O fato
de que a voz que se dirige a ele no momento da transfiguração580
reproduza em parte a voz celestial que ele ouviu então, não é cer-
tamente devido ao acaso. Precisamente é, naqueles instantes de
sua vida em que os limites entre o céu e a terra desaparecem por
um momento para Jesus, que se ouve chamá-lo "Filho de Deus".
Porém, mesmo à parte esses momentos, tem ele permanente cons-
ciência de ser um com o Pai.581 Sabe, assim, que só um conheci-
mento sobrenatural pode revelar a outros - seja Pedro, seja aos
demónios - a natureza única de sua filiação.

Não é certamente por acaso que, de acordo com os Sinópticos, os


demónios empreguem, junto ao título "Filho de Deus", somente o de "San-
to de Deus" (Mc 1.24). Este nome se aproxima, com efeito, muito ao de

Não há nenhuma razão para considerar este relato como uma cena de aparição do
Ressuscitado projetada retrospectivamente à vida de Jesus, como o querem J.
WELLHAUSEN, Das Evãiigeiuim Marci, 1909, p. 71 e R. BULTMANN,
Geschichie d. synopt. Tradition, 2a ed, 1931, p. 278. A. HARNACK, "Die
Verklãritngsgeschichte Jesu" (S. B. de preitss, Ak. D. Wiss., 1922, p. 76 ss.), assim
como E. MEYER, Ursprung undAtifãnge des Cltristentuins, I, 1921, p. 152, ss.,
consideram, pelo contrário, o relato da transfiguração como uma tradição antiga e
admitem que este mesmo fato da vida terrestre de Jesus constitui a razão da visão
que Pedro teve depois da morte do Senhor. E. LOHMEYER, "Die Verklãrung
Jesu nach dem Markusevangeliitm" (ZNTW 21, 1922, p. 185 ss.) contesta igual-
mente que este relato da transfiguração seja derivado de uma aparição do Ressus-
citado; no entanto, não considera a transfiguração como histórica, senão que atri-
bui sua origem a concepções judaicas. O que faz também H. RIESENFELD em
seu detalhado estudo: Jesus Transfigure, 1947, onde remete, antes de tudo, à festa
judaica dos tabernáculos.
Mesmo quando da última tentação no Getsemâni, esta consciência não o abandona.
Deve, uma vez mais, dar a medida de sua obediência filial. É somente no instante
em que a morte-para ele como para Paulo o "último inimigo"-o alcança é que ele
gritará: "Deus meu, Deus meu por que me abandonastes?" Porém, mesmo este grito
não é verdadeiramente compreensível senão a partir de sua consciência de ser o
Filho de Deus. Cf. a este respeito O. CULLMANN, Immortalité de l'âme ou
réssurection des morts?, 1956.
CRISTOLOCJIA DO NOVO TESTAMENTO 373

Filho de Deus,ÍSÍ pois indica, igualmente, a situação excepcional de


Jesus, sua posição àparte de todas as criaturas. Podemos pois nos limitar
a tratá-lo rapidamente aqui.
Encontramos este título, além de em Mc 1.24, no Evangelho de
João e, justamente, no paralelo joanino da "confissão de Pedro". "Nós
temos crido e temos conhecido que tu és o Cristo, o Santo de Deus"
(6.69). Este texto se apoia, sem dúvida, sobre a mesma tradição que
Mt 16.16-19 (passagem que Mateus inseriu no âmbito de Mc 8.27 ss.);
podemos ver que as expressões "Filho de Deus" c "Santo de Deus" são
quase intercambiáveis. Por aí se pode explicar, sem dúvida, também Jo
10.36: "Ao que o Pai santificou e enviou ao mundo, este c o Filho de
Deus". Enfim, o mesmo vínculo se encontra no anúncio do anjo Gabriel
a Maria: "Ele será grande e será chamado Filho do Altíssimo", "o ser que
nascerá de ti será chamado santo, Filho de Deus" (Lc 1.32, 35). Como,
com acerto, o fazem notar M. J. Lagrange, L'Evangile selon Saiitt Marc,
2a ed., 1947, p. 22 e R. Bultmann, Joharmeskommentar, p. 344, "o santo
não é título que se atribua ao Messias; deste ponto de vista temos que
aproximá-lo do de "Filho de Deus" (cf. a este respeito J. Bieneck, op.
cit., p. 46 s )

A palavra dirigida a Pedro: "Na foi nem a carne, nem o san-


gue quem te revelou, (que eu sou o Filho de Deus)" deve ser clas-
sificada com as declarações feitas pelo próprio Jesus, acerca de
sua filiação divina. Tornamos a encontrar aqui a rigorosa discrição
com que Jesus fala do segredo escondido no mais profundo de seu
ser; compreendemos melhor porque ele se atribui só muito rara-
mente o título "Filho de Deus". É por isso precisamente que não
se deve ter muita pressa em declarar inautênticas as raras passa-
gens onde Jesus se auto-aplica este título, sobretudo quando se
encontra nelas a discrição de Mateus 16.17.
Em primeiro lugar, vejamos a célebre palavra de Jesus em Mt
11.27, que já temos mencionado: "... ninguém conhece ao Filho
senão o Pai; e ninguém conhece ao Pai senão o Filho e a aquele a
quem o Filho o quiser revelar". Entre os raros logia sinópticos nos

Segundo G. FRIEDRICH (ZThK, 53, 1956, p. 275, ss.), os dois títulos srmeeem à
ideia de Jesus como sumo sacerdote.
,374 Oscar Cullmann

quais o Jesus terreno se nomeia "Filho"583 - unicamente Mc 13.32


•eMc 12.6 (=Mt 21.37) entram em consideração aqui-estáaque-
le cuja autenticidade foi posta mais rigorosamente em dúvida.
Numerosos comentaristas negam inteiramente a Jesus o uso des-
te título, precisamente porque ele se acha neste texto tão proble-
mático. Não há comentário que não sublinhe o caráter joanino
deste título. Já K. von Hase o havia chamado "um meteorito ca-
ído do céu joanino".584 Esta observação é perfeitamente exata
porque se reconhece aí, imediatamente, um dos temas favoritos
de João. Em varias ocasiões temos sublinhado que o quarto evan-
gelista, persuadido de estar em posse do Paracleto, desenvolve
naturalmente suas próprias concepções cristológicas no âmbito
dos discursos de Jesus. Faz isto convencido de que "o Espírito
Santo (o) ensina todas as coisas e (o) lembra de tudo o que Jesus
disse" (Jo 14.26) e que somente esta compreensão pelo Espírito
"conduz a toda verdade", dado que, durante a vida de Jesus,
havia muitas coisas que os discípulos "não podiam ainda supor-
tar" (Jo 16.12). Não cabe nenhuma dúvida que o autor, partindo
deste ponto de vista, utilizou-se só de alguns temas, tomados da
vida e ensinamento de Jesus, porém, para desenvolvê-los em toda
a sua riqueza.585 Mas a opinião generalizada segundo a qual o
Evangelista se iludiu ao crer estar atrelado à substância mesma
do Evangelho de Jesus, tal qual o conhecemos pelos Sinópticos,
é um desses dogmas pseudocientíficos de vida tão pertinaz como
a de certos dogmas da igreja. É verdade que, em razão de suas
perspectivas muito pessoais, não podemos tomar o Evangelho de
João como base para expor a vida e o ensinamento de Jesus, coi-
sa que não temos feito nesta obra. Porém, uma atenciosa análise
de seus temas essenciais mostra que estes, estando dispostos de
maneira geral segundo as perspectivas que são próprias a este

ÍK:l
Como palavra do Ressuscitado, temos que agregar a ordem de batizar em nome do
Pai, do Filho e do Espírito Santo (Mt 28.19).
5!tl
K. v. HASE, Geschichte Jesit, 1876, p. 422.
5t3
Cf'. a este respeito O. CULLMANN, Les sacrements dans VEvangile johamtique,
1951, p. 9 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 375

evangelho, não são pura e simplesmente ajuntados posteriormen-


te à vida de Jesus.
Agora, o tema da unidade total do Pai c do Filho na obra da
revelação é um dos temas principais do Evangelho de João. Volta-
remos a isto mais adiante. Porém, não será possível reuni-lo ao
testemunho dos Sinópticos, ainda que fazendo abstração da decla-
ração de Mt 11.27? Ou há aqui uma contradição com os Sinópticos?
Indubitavelmente, a forma discreta em que Jesus falava de sua
filiação divina, segundo os Sinópticos, desaparece no Evangelho
de João. Porém, isso se deve a que o Paracleto, que fala pela boca
do evangelista anuncia, doravante abertamente, o que antes os dis-
cípulos "não podiam suportai'". A ideia joanina de que somente
uma revelação superior pode comunicar o conhecimento da filiação
divina de Jesus, não está aliás de forma alguma em contradição
com a tradição sinóptica: a mesma ideia aparece em Mt 16.17, e
ainda se quisermos duvidar da autenticidade da palavra de Jesus
encerrada neste versículo, a ninguém nunca ocorreu qualificá-la
de "joanina". O "céu joanino" não é, neste aspecto, diferente do
céu sinóptico; porém apresenta-se com outra claridade. De nossa
parte, não vemos em todo caso nenhuma razão para declarar
inautêntico o logion de Mt 11.27 pelo único motivo de seu estreito
parentesco com um tema favorito do Evangelho de João.586

Não podemos entrar aqui nos detalhes da exegese (cf. sobre as


explicações mais recentes, J. Bicncck op. cit., p. 75 ss.). Esta declaração
apresenta, ademais, um problema relativo à história do texto. A transpo-
sição pela qual a frase "ninguém conhece ao Pai senão o Filho" se encon-
tra localizada no começo; é atestada cm escritores dos séculos II e III, em
oposição à tradição dos manuscritos (cf. A. Harnack, Spriiche ittidReden
Jesit, 1907, p. 196 ss.). Com A. Schlatter, Der Evangelist Maítáus, 1929,
ad. loc;;J. Schniewind, "Das Evctngeliwn netchMatthâus" (NTD), 1937,
p. 147, e alguns outros, e contra M. Dibelius, Die Formgeschichte des
Evangeiium,, 2a ed., 1933, p. 279 ss., adotamos como lectio dijficiUora
versão dos manuscritos: com efeito, a ideia de ser Deus incognoscível

5!f
>É o que pensam também, entre outros A. SCHWEITZER, Geschichite der Leben-
Jesu-Forschung,2*ed., 1913, p.310,eV.TAYLOR,TheNamesof Jesus, 1953,p, 64.
• 376 Oscar Culhnann

deve ter sido muito mais corriqueira para as gerações posteriores do que
a ideia de o ser Cristo o icognoscível. Pela mesma razão temos que recusar
a proposta de eliminar a parte do logion consagrada ao Filho, para con-
servar somente a afirmação relativa ao Pai (proposta feita por A. Harnack,
Spruche undReden Jesu, 1907, p. 189 ss., e T. W. Manson, The Sayittgs
of Jesus, 1949, p. 80).

Se a declaração é autêntica então há que se formular com toda


a prudência a questão que temos anunciado a propósito de outros
títulos; porém, para dar-lhe desta vez uma resposta negativa: Jesus
refletiu sobre sua preexistência? Na dignidade de Filho também,
trata-se em primeiro lugar da ação pela qual Deus se revela; ação
pela qual Jesus experimenta continuamente sua unidade com o Pai.
No entanto, conforme o observa com razão A. Schweitzer,587 "o
poderoso hino de Mt 11.25-30 dá, contudo, o que pensar"; e o v. 27
pode, com efeito, "ter sido pronunciado em virtude de uma cons-
ciência da preexistência". O exegeta e o historiador não podem pre-
tender saber mais. Tal consciência não surge da ciência exegética e
histórica. Nas declarações análogas de Jesus no Evangelho de João,588
estamos diante de considerações do evangelista que está persuadido
de ser conduzido "a toda verdade" pelo Paracleto. Ademais, é certo
que o Jesus da história temia uma tal difusão de seu segredo de
Filho. Porém, aqui também, o quarto evangelista poderia apoiar-se
em seus sinais momentâneos de revelação cristológica que, segun-
do os Sinópticos já aparecem esporadicamente na vida e nos dis-
cursos de Jesus
Da mesma forma, na outra frase em que Jesus se declara "Filho"
(Mc 13.32), trata-se de sua relação com o Pai na perspectiva da
história da salvação: "Mas a respeito daquele dia ou hora ninguém
sabe; nem os anjos no céu, nem o Filho, senão o Pai." Esta decla-
ração pressupõe, em última análise, a convicção da unidade total
entre o Pai e o Filho; e só assim adquire todo seu sentido. Ela indi-
ca o único ponto onde esta unidade, durante a encarnação de

A. SCHWEITZER, ibief., ,p .30.


Jo 8.56 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 377

Jesus, apresenta uma lacuna: o conhecimento da data do fim. A fixa-


ção desta data é além disso, segundo o Novo Testamento, o ato por
excelência da soberania do Pai. É Ele quem a fixa por sua própria
autoridade (èÇowíoc, At 1.7). Muito mais difícil é explicar esta
declaração de Mc 1332 considerando-a como uma invenção pos-
terior da igreja, que atribuí-la ao próprio Jesus. À luz da afirmação
da onisciência de Jesus em Mt 11.27 (considerada autêntica) a
palavra de Mc 13.32, que restringe esta onisciência torna-se muito
mais compreensível, se for considerada como palavra de Jesus.
Por outro lado, deve-se perguntar se a igreja primitiva pôde atri-
buir posteriormente a Jesus, inventando, uma declaração que res-
tringe assim a unidade do Pai e do Filho, em questão tão capital.
Assim, a autenticidade deste logion foi muito menos rejeitada que
a de Mt 11.27 (recentemente, contudo, por W. G. Kíímmel no artigo
sobre a parábola dos trabalhadores na vinha, citado mais acima, p. 367).
Poderíamos, contudo, alegar uma razão plausível para explicar a criação
desta declaração pela comunidade: o desejo de justificar o atraso da
parusia recorrendo ao próprio Jesus. Porém, pode-se, por outro lado,
admitir que a comunidade se tenha arriscado a introduzir no Evangelho
uma afirmação tão ousada? Não podemos esquecer que Lucas a tirou de
seu Evangelho e que em muitos manuscritos do Evangelho de Mateus foi
eliminada, sem dúvida, porque escandalizava a seus leitores. Num caso
como este,emque ume outro partido pode trazer argumentos válidos em
favor de sua tese, deveríamos determinar-nos a não formular a questão
da autenticidade salvo ali onde os problemas da crítica textual, ou razões
teológicas obrigam a isso de forma absoluta.

A questão de saber se, na parábola dos trabalhadores da vinha


(Mc 12.1 ss.), Jesus pensou em si mesmo ao falar do "filho", depen-
de do juízo geral que se tenha acerca desta parábola. Não nos
parece haver razão que obrigue a responder negativamente.589 Neste
caso, a ideia de "Filho" está também ligada à missão de Jesus, que
veio realizar o ato decisivo da história da salvação. Porém, tam-
bém aqui, Jesus toma só indiretamente o nome de "Filho", já que

58!>
Contra W. G. KUMMEL, op. cit., (cf. acima, p. 376 s.).
•378 Oscar Cullmann

o faz no âmbito de uma parábola onde esta expressão serve, sim-


plesmente, para fazer compreender, de maneira imaginária, a rela-
ção particular e única do último enviado com o "senhor da vinha".
Se esta consciência de ser o "Filho" tem tamanha importância
para permitir-nos compreender a pessoa e obra de Jesus, não deve-
mos, tampouco, restringir-nos aqui unicamente aos poucos logia
onde se encontra a palavra "filho". Também temos que levar em
consideração a maneira em que Jesus fala de Deus como do "Pai".
Sempre diz: "meu Pai" ou "vosso Pai", porém, jamais "nosso Pai".
Pois a oração que, segundo a versão de Mateus, começa com estas
palavras não é uma oração que Jesus pronuncia com seus discípu-
los, mas uma que ele lhes ensina:"Vós, pois, deveis orar assim" (Mt
6.9 oftxojç 7ipoaeí>X£O0e vfietç). É Justamente esta maneira espon-
tânea, e quase inconsciente, com que Jesus afirma em tais passa-
gens, indiretamente, sua relação pessoal com o Pai, que confirma
tratar-se aí de um segredo que lhe é próprio e que deve ser revelado,
para ser descoberto por outros; isto explica, ao mesmo tempo, por-
que Jesus não emprega, salvo por exceção, o termo "Filho".
Para terminar, lembremos da atitude de Jesus com respeito à
questão do "filho de Davi". Ao estudar Mc 12.35 ss.590 vimos que
esta palavra de Jesus não significa meramente que Jesus simples-
mente negue sua ascendência davídica, mas que quer certamente
negar a importância messiânica fundamental que os judeus atribuíam
a ela assim como Ele, de modo geral, não atribui um valor primor-
dial aos laços de sangue (Mc 3.31 ss.). Se ele finaliza o diálogo
perguntando "como, pois, eleé o seu filho (isto é, o filho de Davi)?"
não podemos deixar de perguntar-nos se isto não significa que, a
seus olhos, a única filiação que verdadeiramente conta é esta outra
que faz dele o Filho de Deus. Neste caso teríamos aqui uma ponte
que uniria este texto às discussões joaninas no tocante à origem de
Jesus, que não vem dos homens, mas diretamente de Deus (Jo 7.14
ss.; 8.12 ss.).

* * *
™Cf. acima, p. 173 s.
C^RISTOLOGIA DO Novo TESTAMENTO 379

Entre os títulos que Jesus dá a si mesmo, o que domina não é


o de "Filho de Deus", mas o de "Filho do Homem". Ora, tentando
penetrar no segredo da consciência que Jesus tinha de si mesmo,
temos que completar o título de Filho do Homem não só pelo de
Ebed Iahweh, mas, também, pelo de Filho de Deus. Dissemos, no
começo deste capítulo, que "Filho do Homem" e "Filho de Deus"
são títulos que afirmam, ambos ao mesmo tempo, a soberania e a
humilhação. Anexemos ainda que a consciência que Jesus tinha de
ser o Filho de Deus remete, como a de ser o Filho do Homem,
simultaneamente a sua pessoa e a sua obra. A unidade do Pai e do
Filho se manifesta pela ação de Jesus em trazer ao mundo a salva-
ção e a revelação. Esta concepção de Filho de Deus está, também,
na base da fé dos primeiros cristãos que, à luz do acontecimento
da Páscoa, o confessam como o "Filho".

4. A FÉ DO CRISTIANISMO PRIMITIVO EM JESUS, FILHO


DE DEUS

As primeiras "testemunhas da ressurreição" já não tinham por


que retardar a proclamação de sua fé em Jesus, Filho único de
Deus. Este conhecimento que "o sangue e a carne" não podem
revelar (Mt 16.17), lhes havia sido confirmado pela ressurreição
de Cristo e, doravante, devia ser anunciado a todo o povo. A decla-
ração de que "Jesus é o Filho de Deus" deve, então, haver figurado
entre as primeiras formas de confissão de fé da igreja primitiva.
Muito provavelmente era muito utilizada na mais antiga liturgia
do batismo, da qual achamos indícios em At 8.36-38. Quando o
eunuco pergunta se há algum impedimento para que seja batiza-
do,591 Felipe lhe responde (no v. 37, que falta em uma parte dos
manuscritos; porém que, mesmo se tivesse sido interpolado, repre-
sentaria uma adição muito antiga): "Se crês de todo o coração,

Cf. O. CULLMANN, Lê beipiême des enfatus et la doctrine bibHqite dtt baptême,


1948, p. 63 ss.
380 Oscar Cullmann

é possível". Após o que, o eunuco pronuncia a fórmula que sem


dúvida já tinha um caráter litúrgico: "Creio que Jesus Cristo é o
Filho de Deus".
Talvez não seja por mera coincidência que este antigo credo
pertença, precisamente, à liturgia do batismo. Não teríamos aí uma
lembrança do fato de Jesus ter tomado consciência de ser o Filho
de Deus ao ser-lhe dada a revelação no momento de seu batismo
no Jordão? Enquanto em outras circunstâncias se empregava a breve
fórmula "Jesus é o Kyrios",592 era o batismo uma ocasião especial-
mente propícia para se confessar a fé em Jesus "Filho de Deus".
Convém lembrar, ademais, que já durante sua vida os demó-
nios (Mc 3.11; 5.7) e também Pedro (Mt 16.16) pronunciaram esta
fórmula como uma confissão de fé.
Como credo fundamental a encontramos em seguida na pri-
meira Epístola de João: "Aquele que confessar que Jesus é o Filho
de Deus, Deus permanece nele, e ele em Deus" (1 Jo 4.15). Sem
dúvida, esta fórmula é posta pelo autor a serviço de suas ideias
"joaninas"; porém, é evidente que cita aí um antigo credo da igre-
ja. Falaremos mais adiante da relação que ele estabelece entre a
filiação divina de Jesus e a participação dos disccpulos nesta fifiação
graças a sua fé no Filho. Em sua polémica contra o docetismo a
Epístola se apoia, também, nesta antiga fórmula. Ela parece ser
para o autor a expressão suprema da fé. Em 1 Jo 2.23 ele faz,
expressamente, o conhecimento da relação entre o Pai e o Filho
depender da "confissão": "Qualquer um que nega o Filho não tem o
Pai; quem confessa o filho tem também o Pai." Encontraremos a
mesma ideia desenvolvida e repetida liturgicamente no Evangelho
de João, mesmo que sem citação expressa da fórmula.593 Se lem-
brarmos até que ponto este Evangelho se preocupa, continuamente
em estabelecer uma relação entre a vida de Jesus e o culto cristão 594

12
Sobre as diversas ocasiões nas quais as confissões de fé eram pronunciadas, cf
O. CULLMANN, Lês premiares confessions de foi chrétiennes, 1943, p. 13 ss.
" Ela está, no entanto, contida nele como citação na acusação dos adversários (Jo 10.36).
14
Cf O. CULLMANN, Lês sacrements dans 1'Evangile johamiique, 19511 p. 9 ss,
CRISTOLOGIA DO Novo TESTAME-;NTO 381

podemos considerar estas passagens, de certo modo, como comen-


tários desta antiga fórmula litúrgica.
Sua existência na igreja nascente é ainda comprovada por ou-
tras passagens: a Epístola aos Hebreus ao convidar os leitores a
"permanecerem firmes na confissão" (4.14) chama a Jesus de o
"Filho de Deus"; a fé "no Filho de Deus" é atestada também em
uma confissão citada por Paulo e que, de uma forma mais desen-
volvida, deve, no entanto, ser muito antiga (Rm 1.3 s.). Enfim, a
menção concernente a "Filho"595 se introduziu, de forma perma-
nente, no credo posterior596 e até nas fórmulas que o precederam
imediatamente, por exemplo, a que é empregada por Irineu, Adv.
Haer 1,1,, l.597

Em Rin 1.3 s., onde o apóstolo cita evidentemente um texto já for-


mulado e transmitido pela tradição,598 se diz que o Filho de Deus nasceu,
segundo a carne, da posteridade de Davi e que foi declarado ''Filho de
Deus com poder segundo o Espírito de santidade, por sua ressurreição
dentre os mortos". Já indicamos que é essencial sublinhar aqui as pala-
vras év Swájiet, Jesus é ''Filho de Deus" desde o princípio. É, ao menos,
o que Paulo parece ter pensado quando ao v. 3 faz preceder toda a fórmula
acercado título de "Filho de Deus". Porém, desde a ressurreição esta filiação
divina que existia desde o começo se manifesta èv SuVccuei:
o Filho de Deus se torna o Kyrios.m Por outro lado, a filiação divina ("se-
gundo o Espírito") está associada aqui à ascendência davídica ("segundo
a carne"). Enquanto que o próprio Jesus, se nossa suposição é exata6tl"

M5
Mais tarde, acompanhado do epíteto "único", tirado do Evangelho de João. Cf.
abaixo, p. 388 s.
MS
Já na fórmula IX8YX, que representa igualmente uma confissão de fé. Cf. a este
respeito o estudo de F. J. DÕLGER, Ichthys, 1910.
597
As fórmulas de confissão contidas nas Epístolas de INÁCIO não mencionam o
"Filho". Isto poderia ser devido ao fato de que Inácio, que em outras passagens
aplica também a Jesus o título cie "Filho", o chame 6eóç na introdução das fórmulas
de Esm. I, 1 e Ef 18.2. Cf. abaixo, p. 408 s.
5M
O . CULLMANN, Les prenderes confessions de foi chrétiennes, 1943, p. 45. R.
BULTMANN, Theologie des Neuen Testaments, p. 50, reconhece também a origem
pré-paulina deste texto.
,,JÍ>
Cf. acima, p. 306 s.
m
Cf. acima, p. 173 s.
•382 Oscar Cullmann

deprecia em Mc 12.35 ss. a ascendência davídica em benefício da filiação


divina, aqui estão reunidas sem que se chegue a considerá-las, no entan-
to, como equivalentes: pois o que Jesus é segundo o jtveíjncc representa
uma mais alta dignidade do que o que é segundo a oápí;, ainda que esta
tenha também a sua importância.

* * *

Se agora passamos da confissão de fé citada por Paulo ao


próprio Paulo constatamos, antes de tudo, que ele também empre-
ga o título "Filho de Deus" em passagens que não se referem à
tradição, como em Romanos 1.3. Por certo o título "Filho" é muito
mais escasso em seu escritos que o título Kyrios, pois o de máxi-
mo valor para ele é o de "Filho de Deus com podef\ Porém, sabe
que se Jesus é o Kyrios é também desde o princípio o "Filho",
integralmente consagrado ao propósito de seu Pai. É por isso que
o apóstolo insiste em valorizar a ideia que desempenhou um papel
tão importante acerca de Jesus, a saber: que por sua vida, e especial-
mente por sua morte, o Filho de Deus cumpriu o plano divino de
salvação. Deus não "poupou" a seu próprio "Filho". É isto o que
escreve Paulo em Rm 8.32 pensando no sacrifício de Isaque, que
mais tarde é considerado como o tipo de sacrifício do Filho úni-
co.601 Ser Filho de Deus é sofrer e morrer. Aqui também estamos a
grande distância dos "filhos de Deus" do helenismo. A fim de resga-
tar-nos, Deus "enviou" seu Filho (Gl. 4.4). É "pela morte de seu
Filho" que somos reconciliados (Rm 5.10). É também o "Filho" de
Deus que realiza a obrafutura de salvação, aquele a quem "espera-
mos dos céus" (1 Ts 1.10). O fim da reconciliação, àqual o "Filho"
nos conduz, é fazer de nós também "filhos".602 O apóstolo mostra o

1)1
Recentemente ainda O. MICHEL, Der Briefan die Rõmer, 1955, ad. loc. Sobre a
relação estudada, já na igreja antiga, entre Rm 8.32 e Gn 22, cf. D. LERCH, "Issaks
Opferung, chrhtlich gedeutet" (Beitr. z. Hist. Theologie, 12), 1950.
112
Paulo compreende, pois, a relação entre nossa filiaçãoe a de Jesus contrariamente à
tese de W. GRUNDMANN (cf. acima, p. 360); é por ser Jesus o Filho, de uma
maneira muito diferente de nós, que pode tomar-nos filhos.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 383

elo entre nossa filiação e a filiação única de Jesus em Rm 8.14 ss.


(cf. Gl. 4.6 ss.), onde une os termos "filho" e "herdeiro" como na
parábola dos trabalhadores na vinha (Mc 12.1 ss.). Somos chama-
dos à "comunhão" (KOIVCOVÍO;) com o Filho de Deus (1 Co 1.9).
Paulo menciona também outro aspecto: a soberania do Filho
de Deus, que se revela em sua origem. Enquanto "filho" ele é a
imagem de Deus desde o começo (Cl 1.14 s.). Épor isso que Deus
nos predestinou "a sermos semelhantes à imagem de seu Filho"
(Rm 8.29). Aqui o apóstolo aproxima a ideia de Filho de Deusà de
"imagem de Deus" que, como já se viu, está por trás da noção de
"Filho do Homem".
Resta-nos falar ainda de um texto cristoJógico capital, 1 Co
15.28, que também demonstra que Paulo fala da unidade entre o
Pai e o Filho, mas só em relação com a história da salvação, isto é,
com a obediência do Filho. Neste texto, o apóstolo nos conduz ao
limite escatológico extremo da obra divina da revelação, como o
Evangelho de João que, com a ideia de Logos, nos faz remontar
até seu extremo limite inaugural. Ser "Filho de Deus" significa
estar empenhado na obra de salvação, obedecer até o fim. Agora a
última realização desta obra é a submissão final do Filho ao Pai:
"Quando todas as coisas lhe estiverem sujeitas então, também, o
Filho mesmo se sujeitará àquele que lhe sujeitou todas as coisas,
para que Deus seja tudo em todos." Esta é a chave de toda a
cristologia do Novo Testamento: falai' do Filho não tem sentido
senão em relação à obra de Deus e não em relação ao seu "ser".
Se é possível dizer que o Pai e o Filho são verdadeiramente um, é
unicamente em relação com a obra de salvação. Do "Filho de Deus",
como do Logos, se pode dizer: ele é Deus, enquanto Deus se reve-
la em sua obra de salvação, obra da qual fala todo o Novo Testa-
mento. E por isso que o reino no qual nos encontramos agora,
antes de seu fim, é o "reino do Filho" (Cl 1.13).603

* * *

Cf. O. CULLMANN, La royauté du Chríst et l'Eglise, p. 9 ss.


• 384 Oscar Cullinann

Já falamos, no parágrafo acerca de Jesus Filho de Deus, da


atitude teológica dos Sinópticos frente a este título. Porém, qual
é a posição peculiar que cada um deles toma quanto à noção de
"Filho de Deus"?
Esta noção parece ocupai' um lugar muito importante no pen-
samento cristológico de Marcos. O Evangelho inteiro parece, com
efeito, propor-se a demonstrar Jesus como o Filho de Deus, ainda
que, em princípio, o faça de uma maneira dissimulada.604 Ao pri-
meiro versículo do Evangelho, no qual Jesus já é chamado Filho
de Deus,605 corresponde no fim a confissão do centurião ao pé da
cruz (Mc 15.39). "Verdadeiramente este homem eraFilho de Deus".
O fato de que, a despeito desta atitude fundamental, o evangelista
recorra ao título Filho de Deus muito raramente, confirma nossas
conclusões precedentes: Marcos entende aqui que se trata da reve-
lação mais íntima e mais secreta no tocante à pessoa e obra de
Jesus. Também busca respeitar a discrição com que o próprio
Jesus a tratou, levando o leitor, muito suavemente pela simples
exposição dos fatos, até a confissão do centurião.606
Mateus e Lucas se distinguem ao mesmo tempo de Marcos e
de João, este último, aliás, procedendo de uma maneira completa-
mente diferente.607 Eles não partilham do temor respeitoso de
Marcos, que se detém ante o limite do mistério da filiação divina
de Jesus. Conscientes de sua missão de proclamar abertamente à
face do mundo que Jesus é o Filho único de Deus, se esforçam,
nos relatos da infância que formam os dois respectivos capítulos
introdutórios de seus Evangelhos, por explicar esta filiação divina
e levantar o véu que encobre a geração do Filho pelo Pai.608 Para

Cf., por ex., E. LOHMEYER, Das Evangeliwn des Markus, 1937, p. 4 e 348.
É verdade que este pedaço da frase falta num grande número de manuscritos; po-
rém, testemunhos dignos de fé (e antes de tudo o texto ocidental) lêem o versículo
desta maneira: 'Apxf| toB eí>ayyE>.iou 'Iriaoú Xptcfcoíi \>iox> (TOO) deofi.
Como já dissemos, não temos necessidade de aceitar a tese deWREDE para expli-
car o segredo messiânico.
Cf. abaixo, p. 388 ss.
As especulações cristológicas posteriores tentarão explicar este mistério de uma
maneira diferente e puramente filosófica.
CRISTOLOGIA DO NOVO THSTAMIÍNTO 385

cumprir seu intento utilizam visivelmente, e independentemente um


do outro, certas tradições relativas ao nascimento de Jesus que eram
correntes na igreja primitiva, às quais se haviam incorporado
temas orientais e helenísticos bem conhecidos. No entanto, neles
o interesse narrativo cede lugar à preocupação teológica: não que-
rem dizer mais do que o necessário para afirmar que Jesus foi con-
cebido pelo Espírito Santo. Neste sentido, sua preocupação difere
fundamentalmente da dos evangelhos apócrifos da infância que,
não obstante seu caráter secundário, remontam a uma época rela-
tivamente antiga.609
A explicação da filiação divina de Jesus pelo nascimento vir-
ginal610 faz surgir logo um problema: como harmonizá-lo com a
afirmação contida na confissão de fé citada por Paulo (Rm 1.3 s),
segundo a qual Jesus "nasceu da posteridade de Davi segundo a
carne"?6" Para este antigo credo não existia ainda o problema:
junto à ascendência davídica "carnal", menciona paralelamente a
filiação divina "espiritual", "com poder, em virtude da ressurrei-
ção"; sem formular a questão do modo desta filiação. Porém, visto
que as genealogias de Jesus dadas por Mateus (Mt 1. 1 ss.) e por
Lucas (3.23 ss.) passam por José, o pai, o problema não pode ser
evitado nestes Evangelhos, pois reproduzem ao mesmo tempo a
tradição de haver sido Jesus concebido sem pai humano. Tentaram
resolvê-lo supondo que Jesus havia sido admitido por adoção na
família davídica de José. Lucas o faz mediante a fórmula obç
èvojxíÇeTO (ele era considerado como filho de José), que ele acres-
centa no começo de sua genealogia (Lc 3.23); Mateus, pela frase
com que, segundo o texto sem dúvida mais antigo, termina sua

Cf. a este respeito a introdução de meu estudo: Apokryphe Kindhetisevangelien, na


3a ed., por aparecer, deE. HENNECKE, Neutestamentliche Apohyphen, publicada
porW. SCHEEMELCHER.
Sobre os problemas relativos ao nascimento virginal, cf. a volumosa monografia de
J. G. MACHEN, The Virgin Birth ofChrist, 1930, A intenção do autor é provar que
a crença no nascimento virginal de Jesus é um elemento constitutivo da fé cristã
primitiva e que ela permanece, por conseguinte, hoje.
Cf. acima, p. 170, s. e 177 s.
386 Oscar Cullmann

genealogia: "Jacó gerou a José, marido de Maria, da qual nasceu


Jesus, que se chama o Cristo" (Mt 1.16).
Não parece, ademais, esta explicação dos dois evangelistas haver
sempre satisfeito; pois muito cedo já aparece outra tentativa de harmoni-
zar a ascendência davídica de Jesus com seu nascimento virginal: Se o
faz descender de Davi, não por José, mas por Maria; e não só José como
ela também seria de ascendência davídica.''13 E assim que manuscritos
posteriores, porém, também antigos, substituem no relato de Natal de
Lucas (2.4) odnóv por cròicòç (outros lêem ainda mais claramente
àutpoTépoiíç): "porque eles eram da casa e família de Davi". Esta afir-
mação é também atestada no Proto-evangelho Apócrifo de Tiago (10.1),
em Justino, Dial. 43.45, em Irineu, JWV. haer. 3.21 5;3.9,2eemTertuliano,
Adv. Marc. 3.17,20. Porém, ela deve remontar ao começo do século II.
Pois Inácio de Antioquia emprega, como arma contra os docetas, uma
antiga fórmula que, como Mateus e Lucas, afirmava ao mesmo tempo a
ascendência davídica e o nascimento virginal. Ele não pode pois ter
interpretado o KCCTCC cápica como os evangelistas admitindo uma ado-
ção mas deve ter crido que Jesus descendia ca nuamente de Davi por sua
mãe Nas posteriores confissões de fé a menção da ascendência davídica
desapareceu em razão sem dúvida desta dificuldade A evolução foi
pois a seguinte: no princípio a ascendência davídica KOCTÒC OÓCOKCÍ é pos-
ta em paralelo à filiação divina KOLXÒL JWEmux (Rm 1 3 s 1 sem que se
intente explicar a segunda Mateus e Lucas as juntam explicando o pro-
cesso da filiação divina pelo nascimento virginal e a ascendência davídica
KoctccCTWDKCIpela adoção A partir do começo do século II novamente
aparece a tendência de tomar a expressão Kaxà oáoKCt em seu sentido
próprio; mas então deve-se introduzir Maria na posteridade de Davi se se
ciuer manter a afirmação do nascimento virginal

É difícil determinar a data exata do surgimento da tradição ado-


tada por Mateus e por Lucas para explicar o nascimento do Filho de
Deus. O que se pode dizer, com certeza, é que no primeiro século
ela não é atestada senão nestes dois evangelistas.613 Todas as tenta-

•^Cf. acima, p. 168 s.


613
Encontramo-la mencionada no começo do século II nas fórmulas de INÁCIO,
indicadas mais acima (p. 380 s.). Ela devia, pois, já ser conhecida em Antioquia no
fim do século I e começo do II. Alguns quiseram descobrir uma fonte literária
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 387

tivas de descobri-la com certeza, explícita ou ao menos implicita-


mente, nos demais livros do Novo Testamento resultam muito arti-
ficiais para serem convincentes. A expressão: "nascido de mulher"
(Gl 4.4), pode ser aplicada a qualquer homem e conforme o con-
texto, deve unicamente afirmar a total incorporação do Filho de
Deus à humanidade. Da mesma forma, em Jo 1.13 o singular "qui
natus esf\ adotado por um certo número de manuscritos antigos,
na maioria ocidentais, ainda se fosse original614 não provaria de
modo algum que o autor estivesse pensando aqui no nascimento
virginal. Pois se chega, nesse caso, à seguinte tradução: "Ele (o
Verbo) deu o poder de se tornarem filhos de Deus aos que crêem
no nome daquele que não nasceu nem de sangue, nem da vontade
da carne, nem da vontade de homem, mas da de Deus." Esta é uma
ideia bem joanina que encontramos também em Paulo: nossa
filiação está baseada na do Filho único e se torna realidade na
fé nele.615
Não recusaremos, pois, esta leitura tão resolutamente como o faz
R. Bultmann em seu Johanneskommentar, p. 37, nota 7, que não vê na
preferência que lhe concedem certo número de exegetas modernos senão
o desejo de encontrar, pura e simplesmente, o nascimento virginal teste-
munhado no Evangelho de João. Isso pode ser certo no caso de vários
exegetas; porém, não se deve tampouco, ao recusar esta leitura, se deixar
guiar pela ideia de que, necessariamente, ela se origina no desejo de
introduzir nesta passagem o nascimento virginal. "Nascido da vontade
do homem" significa simplesmente "nascido de homem", por oposição a
"nascido de Deus", que esta passagem quer sublinhar. Agora, esta oposi-
ção quanto à origem de Jesus, está em todo o Evangelho de João, sem
dizer nenhuma palavra do nascimento virginal. A relação entre o novo
nascimento do crente e o nascimento daquele "que desceu do céu" (3.13)
está também na base do diálogo com Nicodemus. Não poderíamos

comum aos relatos canónicos da infância (L. CONRADY, Die Quelle der
Kanonischen Kindheitsgeschicluen, 1900; A. RESCH, Das Kindheitsevangelium,
TU 10,5, 1897). MACHEN, op. cit., admitiria que Lucas e Mateus retomam uma
tradição já bem estabelecida, o que é difícil de provar.
614
O papiro Bodner II, publicado em 1956, tem aqui o plural.
SI5
Cf acima p. 383.
388 Oscar Cullmann

tampouco, recusar sem mais a proposta de C. F. Burney, The Ammaic


Origin ofthe Fourth Gospe,, 1922, p. 34, que explica o plural mediante
um recurso ao aramaico. No entanto (contra a opinião de W. Bauer, Das
Johantiesevangeliuin, 3a ed., 1933, p. 22), há outras possibilidades de
explicação desta mudança do singular ao plural, pois o plural "facilita" a
compreensão do texto e o encadeamento das ideias. O fato de que A.
Loisy em: Lê Quatrième Evangile, 2a ed., 1921, ad loc, considere o sin-
gular como original, para ver nisso (erradamente, sem dúvida) justamen-
te uma negação do nascimento virginal, prova que a discussão sobre a
formulação original desta passagem nada tem que ver com a afirmação
ou ncaçãodo nascimento virginal. A parte os comentários que citam os
estudos antigos relativos a esta questão (em part. o de W. Bauer), temos
que indicar como monografia recente: F. M. Braun, "Qui ex Deo natus
est" (Aux sources de la tradition chrétienn,, Mélanses M. Gogue,, 1950,
p. 11 ss.), que reconsidera toda a documentação e se pronuncia pelo
singular vendo nisso um testemunho do nascimento virginal. Mais
recentemente, a maioria dos comentaristas por ex.: C. H. Dodd, The
Interpretotion ofthe Fourth Gospe, 1953 p. 260 nota 1 e C. K. Barret
The Gospel Accorditig to St John 1955 p. 137 s. têm dado sua prefe-
rência ao plural

Ao explicar a filiação divina de Jesus pelo nascimento virgi-


nal, Mateus e Lucas se distinguem dos demais autores do Novo
Testamento, e em particular de Marcos, para quem a fé em Jesus,
Filho de Deus, ocupa um lugar muito mais central, embora respei-
te o segredo com que, o próprio Jesus, havia rodeado este título.
* * #

Nem João nem Marcos intentam explicar amaneira pela qual


o filho é gerado pelo Pai recorrendo ao relato do nascimento virgi-
nal.616 Mas assim como Marcos, o quarto Evangelho coloca a fé
em Jesus, "Filho de Deus", no centro de seu Evangelho.617 Para

616
Nem tampouco a uma especulação sobre a "substância" ou as "naturezas".
SI7
É o que bem viu R. BULTMANN, Theologie des Nenen Testaments, 1953, p. 380
ss. Sobre a questão do "Filho de Deus" no Evangelho de João, cf., ademais,"W.
LUTGERT, Die Johanneische Christologie,2" ed,, 1916, emais recentementeC. H.
DODD, The Interpretation ofthe Fourth Gospel, 1953, em part. p. 250 ss.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 389

ele também, o essencial é o fato da filiação divina de Jesus e sua


unidade com o Pai e não a explicação deste fato. Jesus saiu do Pai.
João o indica, como bem o tem assinalado618 C. H. Dodd, pela
preposição 8K; para os demais enviados se emprega coto ou 7tapá.
João afirma tão vigorosamente esta "saída do Pai" que a questão
de se saber como concorda esta origem com o nascimento huma-
no de Jesus, pelo fato dele ter pais conhecidos (7.27) e que seja
oriundo de Nazaré (1.45; 7.41 s.), nem sequer se formula.M'; Mais
que o nascimento humano de Jesus, o que importa é que ele é
EK 680Í>.
O caráter único da filiação de Jesus não fica debilitado em
relação ao que dizem Mateus e Lucas; constitui, pelo contrário, o
leitmotiv das discussões joaninas tão importantes sobre a unidade
entre o Pai e o Filho. Para fazer ressaltar este caráter os autores
empregam a palavra "único" (U.OVOY£VT|ç), mais tarde introduzida
no Símbolo dos Apóstolos. Ela aparece, duas vezes, já no prólogo
(1.14,18),620 e corresponde ao hebraico TTP. Significa "unigénito"
e também, "bem-amado". Encontramos novamente aqui a ideia
judaica já encontrada nos Sinópticos: o "Filho de Deus" é eleito
desde o princípio; Movoyevfiç não difere, pois, essencialmente,
de àyajiTjtóç, já que a ambos os termos se recorre para traduzir
TrP. O fato deste atributo poder ser aplicado no judaísmo a todo o
povo de Israel621 concorda com o que temos referente ao título
"Filho de Deus" em geral. Palavra esta que não se encontra aplica-
da a Jesus, à parte os escritos joaninos: no Evangelho, além do
prólogo, em 3.16,18; e na primeira Epístola (4.9).62-

C. H. DODD, op. cií,, p. 259.


Segundo R. BULTMANN, Johanneskommentar, 1941, p. 37, nota 7,eC. H.DODD,
op. cit., p. 260, o nascimento virginal seria inclusive excluído pelo Evangelho de
João.
É verdade que no v. 18, temos que preferi riiovoyevT|ç 6eóç a ó piovoyevfiç moç.
Cf abaixo, p. 402 s.
Cf. Sal. de Salomão 18.4; 4 Esclras 6.58.
Sobre novoyevriç, e também sobre as relações desta palavra com a história das
religiões, cf. R. BULTMANN, Johanneskommentar, 1941, p. 47 ss.
• 390 Oscar Cullmemn

Como expressão quase sinónima de "Filho", achamos nos


Sinópticos o título "Santo de Deus".623 Nós temos falado de seu
emprego na versão joanina da confissão de Pedro (Jo 6.69), e da
explicação de João 10.36 à luz desta expressão. Este título tam-
bém faz ressaltar a diferença entre Jesus e todas as demais criaturas.
A pregação joanina relativa ao Filho de Deus se distingue, no
entanto, em um ponto essencial da de Marcos. Pois se bem que
não explique a geração divina comunica, por outro lado, sem a
menor reserva em relação aos judeus incrédulos, tanto como aos
discípulos, o fato em si da filiação divina de Jesus. O Cristo joanino,
por quem o Paracleto anuncia todas as coisas - mesmo aquelas
que os discípulos, durante a vida de Jesus, "não podiam ainda
suportar" (Jo 16.12)-já não tem mais motivo para falar de manei-
ra velada e discreta acerca de sua unidade com o Pai. Mais amiúde
que em qualquer outro escrito do cristianismo primitivo, esta
filiação é constante e abertamente proclamada, a despeito de todos
os cépticos e adversários que não querem aceitar que Jesus dê tes-
temunho acerca de si mesmo. Ao proceder assim, o quarto Evan-
gelho se diferencia não só do Evangelho de Marcos como também
do Jesus histórico.624 Não devemos esquecer aqui que João volun-
tariamente reorganizou todos os atos e discursos de Jesus em uma
perspectiva pós-pascal.
Que conteúdo ele deu à noção de Filho de Deus?
Temos visto que o logion de Mt 11.27, cujo caráter "joanino"
sempre chocou os exegetas, está perfeitamente na linha da ideia
fundamental que, segundo os Sinópticos, caracteriza em Jesus a
convicção de ser "Filho de Deus". Em João também são encontrados

fi;:,
Cf. acima, p. 371 s.
^ Pode-se, no entanto, encontrar no Evangelho de João um certo paralelo com a ideia
expressa nos Sinópticos, segundo a qual é necessário uma revelação particular para
se reconhecer Jesus como o Filho de Deus (em part. Mt 16.17; cf. acima, p. 364 s.):
é a incompreensão dos interlocutores, com os quais Jesus fala de sua união com
Deus. Por outro lado, há indícios do segredo messiânico em Jo 10.24: "Se tu és o
Cristo diga-nos abertamente". Cf. a este respeito R. BULTMANN, Theologie des
Neuen Testainettts, 1953, p. 394; e também abaixo, p. 392 s.
CRISTOLOGIA DO NOVOTESTAMENTO 391

os dois motivos sinópticos da obediência tio Filho ao Pai e da uni-


dade entre o Pai e o Filho na obra reveladora de Deus. Porém, o
segundo motivo é aí mais vigorosamente destacado por ser maior
a insistência do Evangelho de João na ideia de que Deus se revela.
Neste quadro da história da salvação, a noção de "Filho de Deus"
se une à de Logos. O título Logos, em João, sublinha que Jesus
é um com o Pai pela obra que realiza sobre a terra. Por outro lado,
a afirmação segundo a qual Jesus é o Verbo, ou seja, "Deus que
se revela", deve ser provada por todo o relato da vida de Jesus.
Assim, a unidade do "Filho de Deus" com o Pai é inteiramente
regida pela ideia, que remonta ao próprio Jesus, de ser ele o Filho
único e bem-amado, por cumprir em perfeita obediência a missão
que, em favor do mundo, Deus lhe confiou: "Nada posso fazer por
mim mesmo... e não busco minha vontade mas a vontade do Pai"
(Jo 5.30). Se há unidade de essência, é por haver total unidade de
vontade na realização da obra da salvação. "Minha comida é fazer
a vontade daquele que me enviou e cumprir a sua obra" (Jo 4.34).
A imagem é particularmente eloquente: assim como o corpo não
pode viver sem alimento, da mesma forma o dever de fazer o que
Deus quer pertence ao ser mais íntimo de Jesus.
Este dever, esta obrigação não é da mesma ordem que a "coa-
ção" profética ou apostólica. Pois Jesus não é, como eles foram,
um mero instrumento da vontade de Deus; Ele é para Deus um
colaborador que Lhe está unido. Isto é o que sua resposta, quando
foi acusado de quebrar o sabath (Jo 5.17) traz à luz: "Meu Pai até
agora trabalha, e eu trabalho também".625 Como, no sentido esca-
tológico de Hb 4.3 ss, não há ainda um sabath para a obra redento-
ra de Deus, tampouco, Jesus pode repousar. Seu tempo é o tempo
de Deus. Encontramos um idêntico pensamento em Jo 9.4. "Devo
fazer as obras daquele que me enviou enquanto é dia".

!:l
Sobre a relação entre esta palavra e o dia da ressurreição, cf. O. CULLMANN,
Sabbat und Soitittag nach dem Johannesevwtgelium, In memoriam E. LOHMEYER,
1951, p. 127 ss.
392 Oscar Cullmann

Tão longe vai a unidade de vontade e de ação que o Filho


inclusive participa na criação da vida, que é a obra por excelência
do Pai. Assim como no princípio é o Filho mediador da criação, pode
também, em colaboração com o Pai, ressuscitar mortos. Na oca-
sião da ressurreição de Lázaro, disse Jesus: "Pai, graças te dou
porque me ouviste. Aliás, eu sei que sempre me ouves" (Jo 11.41).
Para os Sinópticos, assim como para Paulo, o Filho está espe-
cialmente unido ao Pai ao sofrer e morrer. Poderíamos esperar que
este tema não se destacasse no Evangelho de João. No entanto,
não se diminuem nele, nem o sofrimento, nem a morte, obra cen-
tral de Jesus.626 É assim que o tão conhecido versículo de João
3.16, que apresenta Jesus precisamente como o Filho "único" ou
"bem-amado"627 de Deus, anuncia que ele foi oferecido em sacri-
fício: "De tal maneira amou Deus ao mundo que deu seu Filho
unigénito ("bem-amado")". Em outro lugar temos indicado628 que
o verbo EÔcoKev tem aqui o duplo sentido de "enviar" e de "ofere-
cer em sacrifício". Se partimos da dupla acepção da palavra
u.ovoyEVT|ç, nos parece sem dúvida haver aí, como há em Rm 8.32,
uma alusão ao sacrifício de Isaque.
O que temos dito acerca das obras de Jesus, aplica-se também
a seu ensinamento; pois sua ação e seu ensinamento são insepará-
veis: tanto num como noutro, se revelam o Pai e oFilho. "Segundo
me ensinou o Pai, assim falo" (Jo 8.28). "Minha doutrina não é
minha mas daquele que me enviou" (Jo 7.16; cf. também 14.16 b).
A menção do Pai, nestas passagens costuma ser acompanha-
da pela expressão ó 7téfiyccç ixe que, empregada sozinha, pode ser
um sinónimo de "Pai". O que demonstra, mais uma vez, a estreita
relação que une a filiação divina de Jesus e sua vinda à terra para
executar o plano divino. Porém, o Filho não é meramente um
enviado como o foram os profetas e, depois deles, os apóstolos.

s2í
Cf. acima, p. 97 s.
s2
' H.OVOY£VVJ<;; cf. acima, p. 388 s.
*2*Cf. O. CULLMANN, "Der Johannische Gebrauch doppeldeutiger Ausdriicke ais
Schlííssel zum Verstãndnis des vierten Evangeliums" (77iZ4, 1948, p. 360 ss).
CRISTOLOGIA DO NOVO THSTAMI-NTO 393

Já chamamos a atenção para a preposição Ètc que cumpre aqui


uma importante função diacrítica. O envio do l-'ilho "junto ao Pai"
supõe que estão juntos desde o começo. Não se trata, portanto, de
uma vocação semelhante à do profeta, como se vê com clareza cm
Jo 5.19, 20: "Tudo o que o Pai faz, também o Filho o faz igual-
mente; pois o Pai ama o Filho". Esta palavra nos remete ao pró-
prio fundamento da unidade do Pai e do Filho no alo da reve-
lação.629
Assim, ouvimos reiteradamente o leitmotiv "saído do Pai":
eu vim de Deus e aqui estou; pois não vim de mim mesmo, mas
ele me enviou (Jo 8.42). Porém, a unidade se expressa, também,
no fato dele voltar ao Pai: "Eu saí do Pai e vim ao mundo; agora
deixo o mundo e vou ao Pai" (Jo 16.28). Dessa maneira não é só
na realização de sua obra na terra, mas em tudo o que faz é o Pai
que opera, não por ele, mas com ele: "Não sou eu só, mas eu e o
Pai que me enviou" (8.16). "...e me deixareis só; contudo, não
estou só, pois o Pai está comigo" (16.32).
Sem dúvida, nunca se esquece que "o Pai é maior que o
Filho", porém, maior somente enquanto o Filho, portador da reve-
lação, vem do Pai e ao Pai volta. É por isto que o Evangelho pode
chegar a fazer afirmações tão vigorosas como esta: "Eu e o Pai
somos um" (Jo 10.30); "o Pai está em mim e eu nele" (Jo 10.38);
que nos lembram as declarações do prólogo sobre o Logos. O Filho
de Deus proclama abertamente sua preexistência: "Antes que Abraão
existisse, eu sou" (Jo 8.56).
Todavia, o Evangelho de João sabe, tanto como os Sinópticos
que, do ponto de vista do entendimento humano, semelhante pre-
tensão é inaceitável: "Vós dizeis: tu blasfemas! E isto porque eu
disse: sou Filho de Deus" (Jo 10.36). Isto se relaciona, indubita-
velmente, a uma antiga tradição na qual se vê a "blasfémia" não
na pretensão de Jesus de ser o Messias, mas na de ser, ainda que

Ela nos lembra ao mesmo tempo a voz que, segundo os Sinópticos, chama a Jesus
"Filho bem-amado" durante seu batismo e lhe dá, implicitamente, a missão de assu-
mir o papel de Ebed lahweh.
• 394 Oscar Cullmaim

velada, o Filho de Deus. A pretensão de ser o Messias não podia,


em suma, chocar senão os romanos.630 Para os judeus, por outro
lado, o que devia forçosamente ser escandaloso era a pretensão de
ser Filho de Deus, sobretudo na forma que em Jesus esta se apre-
sentava. Os judeus entendem bem esta palavra, ao ver nela uma
afirmação de igualdade com Deus: "Tu, sendo homem, te fazes
Deus" (Jo 10.33).631
Porém, o que se lhe recrimina, sobretudo, é fundamentar tama-
nha pretensão unicamente em seu próprio testemunho. O Cristo
joanino responde a estes ataques (5.30 ss.; 8.13 ss.); busca provar
que seu testemunho é verdadeiro e mostra como esta revelação
pode ser reconhecida. O quarto evangelista não procede como
Mateus e Lucas que, pelo relato do nascimento virginal, narram,
de uma maneira por assim dizer material, como Jesus foi gerado
pelo Pai. O Evangelho de João não explica o como. Jesus saiu do
Pai, e ele se limita a afirmar que ele veio do Pai. Mas, ele dá bases
para esta afirmação. Pode-se dizer que em suas discussões com os
judeus (Jo 5 e 8), de certo modo ele apresenta uma "epistemologia
cristológica".
Para podermos provar uma afirmação ordinária temos que
chamar testemunhas e, geralmente, podemos encontrá-las. Porém,
para provar que Jesus tem razão ao pretender ser Filho de Deus,
nenhum homem está em condições de dar testemunho, unicamen-
te Deus pode testificar acerca disso, por Ele ser a única testemu-
nha competente, a única possível. A afirmação de ser Filho de Deus
faz todos os limites humanos estourarem de tal maneira que não fica

"'Cf. O. CULLMANN, Dieu et César, 1956, p. 27 ss. Inversamente, a pretensão


de ser Filho de Deus é desprovida de interesse para os Romanos e não pode escanda-
lizá-los.
11
Esta mesma interpretação está pressuposta em Jo 8,53: "Quem, pois, te fazes ser?"
Cf. também o texto mandeu contra Jesus (R. Ginza, I, 200): "Ele disse: Eu sou
Deus, Filho de Deus, e foi meu Pai quem me enviou aqui" (M. LIDZBARSKI,
Ginza, 1925, p. 29). Na medida que a pretensão de ser Filho de Deus signifique uma
pretensão de igualdade com Deus é, entre os judeus, passível de condenação (Ez
28.2 ss.; Dn 6; cf. também At 12.20ss.; Mc 2.7 ss).
(-RISTOLOGIA DO NOVO T liSTAMM.NTO 395

outra coisa senão o círculo: o próprio Pai deve testificar que Jesus
é o Filho; por sua vez, é justamente no Filho que este testemunho
divino tem que»ser dado. O Evangelho não conhece pois mais do
que dois meios para captar a revelação da filiação divina de Jesus.
Io) Temos que conhecer o Pai e fazer sua vontade: "Se alguém
quiser fazer a vontade daquele que me enviou, descobrirá se o
meu ensino vem de Deus, ou se falo de mim mesmo" (Jo 7.17). 2o)
Temos que ver as obras de Jesus: "Se não faço as obras de meu
Pai, não acrediteis em mim. Mas se as faço, e não credes em mim,
crede nas obras, para que possais saber e reconhecer que o Pai
está em mim, e eu nele (Jo 10.37 s.).
Não há, nem pode haver, outro critério cristológico. É só seguin-
do este caminho, tornando-nos, nós mesmos, "filhos" - aceitando
com fé o testemunho que Jesus dá acerca da sua filiação divina e
fazendo a vontade de Deus - que poder-se-á reconhecer que ele é
o Filho. É só assim que podemos testificar, com os apóstolos, "que
o Pai enviou o Filho como Salvador do mundo" (1 Jo 4.14). "Aquele
que confessar que Jesus é o filho de Deus, Deus está nele, e ele em
Deus (1 Jo 4.15). Já mencionamos este versículo que utiliza o
antigo Credo cristão6-12 colocando-o inteiramente a serviço daqui-
lo que denominamos "epistemologia cristológica" do joanismo.
O paralelismo com Jo 10.38b é evidente. O que, neste versículo,
Jesus diz de si mesmo, pode pois ser entendido por aqueles que
crêem que ele é o Filho de Deus.
Em conclusão, podemos dizer que o Evangelho de João pene-
trou mais profundamente que Mateus e Lucas no segredo da cons-
ciência filial de Jesus. Deu acertada expressão, em particular, aos
dois aspectos inseparáveis: a obediência e a unidade com o Pai;
porém, contrariamente ao Jesus histórico, "proclamou dos telha-
dos" o que Ele disse ocultamente.

* * *

Cf. acima, p. 379 s.


3% Oscar Cullmaim

Os demais livros do Novo Testamento não empregam este


título senão muito esporadicamente. Vimos que para Marcos a fé
em Jesus "Filho de Deus" ocupa um lugar primordial ainda que,
como o próprio Jesus, evite falar abertamente disso. Paulo fala
muito mais do Kyrios sem desconsiderar, no entanto, o título de
Filho. Porém, este título está totalmente ausente nas Epístolas Pas-
torais, na de Tiago e na primeira de Pedro;633 no Apocalipse só
aparece uma vez (Ap 2.18) e duas vezes emAtos (At 9.20; 13.33).
Parece, consequentemente, que em amplos círculos do cristianis-
mo primitivo muito cedo se perdeu o sentido do alcance que podia
ter a consciência de Jesus de ser o Filho de Deus para explicar sua
pessoa e sua obra.634
Não ocorre o mesmo no que toca à Epístola aos Hebreus. Já
constatamos, repetidas vezes, o estreito parentesco que a une ao
Evangelho de João em todas suas afirmações cristológicas essen-
ciais: aqui nos deparamos com ela outra vez.635
Verdade é que o autor desta Epístola se ocupa principalmente
do sumo sacerdote. Com efeito, sua contribuição original e pesso-
al à solução do problema cristológico consistiu em agrupar as afir-
mações relativas à fé em Cristo em torno desta noção; e já destaca-
mos as vantagens de seu esforço. Porém, também notamos que
para falar especialmente da preexistência de Cristo, une ao título
de sumo sacerdote o de Filho de Deus. A antiga tradição sobre
Jesus "Filho de Deus" lhe era, por certo, conhecida; pois cita a
fórmula de confissão de fé dando-a a conhecer expressamente como

Na 2 Epístola de Pedro (1.17), este título aparece somente uma vez onde o autor,
recordando a transfiguração, cita o SI 2.7.
A explicação que dá V. TAYLOR, The Names of Jesus, 1953, p. 57, ao fato de que
alguns dão tanta importância ao título de Filho de Deus, enquanto outros quase não
o empregam, não nos parece suficiente. Segundo o autor o título "Filho de Deus"
predomina ali onde o interesse se ampara, sobretudo, na pregação, enquanto falta
onde se centra particularmente no culto.
Se é exato que o autor do Quarto Evangelho deva ser classificado, como o ternos
proposto, entre os "helenistas" palestinos de que fala Atos (cf. acima, p. 241 s.), a
Epístola aos Hebreus deveria, sem dúvida, ser classificada no mesmo grupo que a
Primeira Epístola de João.
CRISTOLOGIA DO NOVO TIÍSTAMENTO 397

tal: "Porque temos um Sumo Sacerdote... Jesus, o Filho de Deus,


permaneçamos firmes em nossa confissão de fé" (Hb 4.14).
Indiscutivelmente ele captou o sentido profundo desta con-
fissão de fé. Por um lado, vê que a filiação divina de Jesus repousa
sobre uma missão: a comunicação da revelação divina. Compre-
ende haver nisso algo de comum entre Jesus e os profetas da anti-
ga aliança. Porém, quer demonstrar, por outro lado, que esta mis-
são de Jesus é maior que a dos profetas pois, exatamente como
João, a apoia na unidade do Pai e do Filho. Cristo, também, desde
o começo se distingue dos profetas: ele é o "Filho"; "Depois de
haver em outro tempo, em muitas ocasiões e de diversas maneiras
falado a nossos pais pelos profetas, Deus, nestes últimos tempos,
falou-nos pelo Filho" (Hb 1.1 s). Depois seguem os atributos que
nos recordam o prólogo do Evangelho de João e que expressam a
participação total do Filho na divindade do Pai.636
Para provar o caráter único do Filho, o autor mostra, com a
ajuda de citações do Antigo Testamento, que o Filho está acima de
todas as criaturas, acima dos anjos (Hb 1.5 ss.), e de Moisés, que
não é senão um "servo" (3.6 ss.). Como já assinalamos, nenhum
outro escrito do Novo Testamento, à parte o Evangelho de João,
afirma tão categoricamente a divindade de Jesus. A expressão
"Filho de Deus" expressa aqui a unidade com Deus como em Jo
10.33, 36. Os Salmos (por ex. SI 45.7 s.; 102.25) se aplicam a
Jesus e ele pode assim ser chamado diretamente Deus (Hb 1.8 s.),
podendo a criação do mundo ser-lhe atribuída (1.10 ss.). Temos
que observar muito especialmente a fórmula que introduz estas
citações: "E disse ao Filho...". Ser"FilhodeDeus" significa, pois,
participar totalmente na divindade do Pai.637
Por toda esta Epístola a cristologia do Sumo Sacerdote está
associada à do Filho de Deus. O autor não esquece tampouco que
o tema da obediência constitui parte integrante da concepção de
Filho de Deus, por concordar, dito tema, tão adequadamente com

Cf. acima, p. 341 s.


Sobre o nome de "Deus" diretamente atribuído a Jesus, ver o capítulo seguinte.
398 Oscar Cuibnann

a noção de sumo sacerdote. No capítulo 5.8 ele afirma expressa-


mente que as duas funções: "aprender a obediência no sofrimen-
to" e ser Filho de Deus (Kcárcep á>v móç) não se contradizem em
nada.
É preciso por fim enfatizar a importância especial da compa-
ração feita no capítulo 7 (v. 3) entre a figura central do sacerdote-
rei Melquisedeque e o "Filho": à(p(úu.oicop.évoç TGJ vico TOV Geou
O estreito parentesco com o Evangelho de João se manifesta nova-
mente, quando no mesmo versículo, se diz que este rei misterioso
é "sem pai e sem mãe". A filiação humana carece de importância:
Jesus nasceu de Deus. Observamos que o autor não diz somente
"sem pai", mas também, "sem mãe": pode-se deduzir que a crença
no nascimento virginal, provavelmente, quase não era conhecida
nos meios em que a Epístola aos Hebreus surgiu. O que há sobre-
tudo de prodigioso nesta confissão de Jesus "Pilho de Deus", como
também para o Evangelho de João, é que c> Filho único, que já
participou na criação e saiu diretamente do Pai, participa, no en-
tanto, na qualidade de homem, como verdadeiro sumo sacerdote,
da debilidade humana.
O "Filho de Deus" é Deus, em sua auto-revelação: eis o que
nos diz o Evangelho de João. Ele será um com Deus quando a
história da salvação tiver tocado o seu fim, nos disse Paulo. E a
Epístola aos Hebreus afirma, por sua vez: ele é aquele por quem
Deus, ao revelar-se ao mundo, "criou os éons"\ pois desde o come-
ço ele é o "reflexo de sua glória" (Hb 1.2b, 3; cf. Jo 17.5).
CAPÍTULO I I I

JESUS CHAMADO "DEUS"


(©£OÇ)

Da utilização cristológica que o Novo Testamento faz dos


títulos Kyrios, Logos e "Filho de Deus" resulta que eles implicam
a poss'2b})'iàaâe àe se chamar a Jesus "Deus": Deus, enquanto
soberano presente, que desde sua glorificação rege a igreja, o uni-
verso e a vida de cada indivíduo (Kyrios); Deus, enquanto aquele
que se revela desde o começo (Logos); Deus, enfim, enquanto aque-
le cuja vontade e ação são perfeitamente congruentes com as do
Pai, enquanto aquele que vem do Pai e ao Pai retorna (Filho de
Deus). Mesmo a ideia de Filho do Homem nos conduz à"divinda-
de" de Jesus, já que Jesus se apresenta aqui como a única e verda-
deira "imagem de Deus". A pergunta se o Novo Testamento ensi-
na a "divindade" de Cristo, deve-se pois, em princípio, responder
afirmativamente; mas, sempre e quando esta afirmação não se
associe às especulações gregas posteriores sobre a "substância" e
as "naturezas", na condição, pois, de considerá-la estritamente sç>b
o ângulo da história da salvação. Fora desta história divina da sal-
vação falar da "divindade" de Jesus careceria de sentido: em tal
caso Ele seria simplesmente um dos tantos "heróis" que enchem a
história das religiões e nada mais. Inversamente se o situarmos
em outro plano que não seja o da história da salvação será coisa
igualmente desprovida de sentido distinguir entre Deus o Pai e o
Logos que é Deus no ato de revelar-se
Em razão de sua cristologia inteiramente regida pela história
da salvação, o Novo Testamento ensina a subordinação de Jesus
400 Oscar Cullmami

Cristo a Deus, não no sentido do que mais tarde se haveria de


chamar "subordinacionismo", mas no sentido de Jesus Cristo ser
Deus só enquanto este se revela. A reflexão teológica do Antigo e
do Novo Testamento se orienta pela história da salvação; e não
esgota, portanto, a essência de Deus. Se as confusões posteriores
entre o Pai e o Filho, com razão condenadas pela igreja como
heresias, são totalmente estranhas ao cristianismo primitivo, isso
se deve, precisamente, a que este tem por tema central a história
da salvação. O perigo de semelhantes confusões surge no instante
em que se tenta resolver o problema cristológico por meio de espe-
culações acerca da substância e das naturezas.638
Já que o Novo Testamento, partindo de uma série de concep-
ções cristológicas fundamentais, chega à ideia da divindade de
Cristo no sentido indicado, a questão de sabei* se Jesus é efetiva-
mente chamado "Deus" não tem, senão, importância secundária.
Ou seja, examinaremos os textos que devem ser levados em conta,
sem esquecermos, nem por um momento, que não são determi-
nantes para saber se Cristo é Deus ou não. Se deste exame resul-
tasse que o Novo Testamento não chamou a Jesus Deus, isso não
mudaria em nada, portanto, as conclusões a que já temos chegado.
Se, pelo contrário, a explicação destas passagens mostra, como o
cremos, que Jesus foi, em determinadas ocasiões, chamado "Deus",
isso não faz senão confirmar o que foi exposto anteriormente.
É deplorável que mesmo nesta questão, puramente exegética, a
decisão dependa, tão amiúde, da cor teológica do exegeta. Aqui, tam-
bém, não é somente a atitude "conservadora" mas também a atitude oposta
que frequentemente influencia o exegeta.

Semelhante confusão prática se manifesta também frequentemente na piedade cató-


lica popular. Até hoje o monofisismo domina o pensamento religioso do católico
mediano, apesar de sua condenação oficial. Ainda na terminologia ocorre, amiúde,
que não se faça distinção entre Deus e Jesus. Tem-se perguntado, com razão, se a
necessidade da veneração mariana não se desenvolveu tão fortemente no povo cató-
lico porque o próprio Jesus, em razão desta confusão, se tem afastado do crente.
Cf., por exemplo, M. THURIAN, "Le dogme de UAssomption,. Verbum Caro,
1951, p. 2-41.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 401

No fundo, as passagens nas quais Jesus leva o nome deKyrios,


a saber o nome de Deus, são pelo menos tão importantes, se não
mais, para a questão que nos ocupa, que aquelas onde é direta-
mente chamado "Deus". Vimos, com efeito, que o cristianismo
primitivo não teme aplicar a Jesus, ao dar-lhe o título de Kyrios,
tudo o que o Antigo Testamento diz acerca de Deus.639 Causa-nos
surpresa que um fato de tamanha importância não tenha chamado
mais a atenção. Além disso, constatamos no capítulo precedente
que os adversários de Jesus perceberam, no emprego do título "Fi-
lho de Deus", uma pretensão à igualdade com Deus, e que Jesus
não os contradisse.640
As passagens onde o nome de "Deus" aparece aplicado a
Jesus não são muito numerosas e, além disso, muitas delas apre-
sentam dúvidas, do ponto de vista da crítica textual. Já na antigui-
dade foi atribuída, equivocadamente, muita importância à questão
de saber se Jesus foi ou não chamado "Deus". Principalmente em
relação às polémicas cristológicas, a designação 0EÓÇ foi tida ora
como perigosa, ora como necessária. Daí as numerosas variantes
existentes nas passagens das quais nos ocuparemos em seguida.
Não temos que nos deter nos Sinópticos: Jesus não se cha-
mou a si mesmo KÚpioç nem tampouco se designou Geóç, e os
evangelistas tampouco parecem querer fazê-lo. Os testemunhos
mais claros, e menos equívocos, da aplicação a Jesus do nome
6eóç se acham no Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus.
No quarto Evangelho há pelo menos duas passagens para as quais
toda contestação fica excluída: Jo 1.1 KOÚ GEÓÇ, f\v ó Xòyoç, e Jo
20.28, a confissão de Tomé: ó KÍpióç u,ot> Kotv ò Geóç \iox>. Já disse-
mos641 que, de certa forma, estas enquadram o Evangelho inteiro.

6W
Deve-se classificar na mesma categoria a aplicação ao Filho do Homem, em Ap
1.13 ss, da descrição do "Ancião de Dias" contida em Dn 10.5-7. O fato de que o
autor não vacila em descrever sua visão do Cristo exatamente como Daniel descre-
veu a visão de Deus é importante do ponto de vista cristológico.
MU
Cf. acima, p. 392 s., a propósito de Jo 10.33, 36; 8.53.
fi41
Cf. acima, p. 347.
4Í)2 Oscar Culbnann

(A história de Tomé é, com efeito, o final do Evangelho; já que o


capítulo 21 constitui um acréscimo posterior). Ademais, a confis-
são de Tomé não só é a última, como também, a coroação de todas
as confissões do Evangelho. As últimas palavras do Ressuscitado:
"Bem aventurados aqueles que não viram e creram", dizem res-
peito, também, a todos os futuros leitores do Evangelho: todos
devem crer, sem terem visto; vale dizer que o testemunho sobre a
vida de Jesus proporcionada pelo evangelista deve levar-lhes, pre-
cisamente, a confessar: "Meu Senhor e meu Deus".642 Se o Evan-
gelho inteiro, portanto, culmina nesta confissão e, por outro lado,
se o autor escreveu já no primeiro versículo do primeiro capítulo:
"e o Logos era Deus", não pode haver dúvida alguma que, para
ele todos os demais títulos de Jesus encontrados em sua obra tais
como "Filho do Homem" "Filho de Deus", "Senhor" e no prólo-
go Logos tendem para esta expressão suprema de sua fé cristo-
lógica
Já mostramos643 que a afirmação de Jo 1.1 não deve ser
enfraquecida como se quisesse dizer: o Logos era "divino"; expli-
cação esta que seria, ademais, impossível para a confissão de Tomé.
Mas, por outro lado, deste Logos, que é Deus, se diz igualmente
que estava, junto a Deus. Daí concluímos com R. Bultmann que o
Logos, Jesus Cristo, não pode ser um segundo Deus ao lado de
Deus, nem uma emanação de Deus; mas o próprio Deus, enquanto
aquele que se revela. Unicamente neste sentido temos que enten-
der a palavra de Jo 14.28, segundo a qual o Pai, a quem Jesus
retorna depois de ter realizado sua obra, é "maior" que ele.
Temos que partir destas duas passagens, cujo sentido é certo,
para julgar a terceira, Jo 1.18, onde nem todos os manuscritos lêem:
p.ovoyevriç GEÓÇ: os manuscritos gregos tardios, os manuscri-
tos latinos e também o Curetoniano siríaco lêem ó u,ovoyevriç

2
A associação de icbpioç e de Geóç é atestada no Antigo Testamento como designa-
ção de Deus; porex., 2 Sm 7.28; I Rs 18.39; Jr 38.17; Zc 13.9. Cf, no Novo Testa-
mento, Ap4.11.
'Cf. acima, p. 347 s.
CRISTOLOGIA DO fNOVO 1 E5TAMFj]NTO 403

ítióç. A leitura Geóç é, sem dúvida, a melhor atestada, como qual-


quer edição crítica permite reconhecer. Se certos exegetas/144 no
entanto, preferem t>íoç é, principalmente, por causa da dificulda-
de que a leitura Geóç apresenta em razão do contexto, pois então
teríamos que traduzir: "Ninguém jamais viu a Deus; o Único, Deus,
que está no seio do Pai é aquele que o fez conhecer." liste texto,
inquestionavelmente, parece ser alectio difficilior que se quis tor-
nar mais compreensível colocando víoç em lugar de Geóç. Com
efeito, não se concebe como um copista, a fim de atribuir a Jesus o
nome de Deus, teria podido transformar inoç em Geóç sem supri-
mir, ao mesmo tempo, "que está no seio do Pai". Em troca, se a
leitura Geóç é original, o fato de encontrar-se no contexto chocará,
certamente, a leitores futuros, porém, ela não é inteiramente impos-
sível dentro do âmbito do prólogo de João. Pois, no fundo, o que
choca é unicamente o paradoxo cristológico; porém, este já se
encontra em Jo 1.1 e é, justamente, característico do Evangelho de
João. Ali lemos: "O Logos estava com Deus e o Logos era Deus".
Que significa isto senão que Deus estava perto de Deus? Se é assim,
está em perfeita concordância com o pensamento joanino que nin-
guém tenha jamais visto a Deus (o Pai), mas que Deus, enquanto
uovoyevTiç, revela a Deus na vida de Jesus que se passará a relatar.
Referindo-nos, pois à melhor leitura, e em concordância com a
maioria dos comentaristas recentes, agregaremos aos dois anterio-
res este terceiro texto joanino que declara que Jesus é Deus

E à mesma conclusão que chegam W. Bauer, "Das Johannesevan-


gelium" (Hab. z. NT), 3a ed., 1933, p. 29 s - C. F. Burney, The Aramciic
origin of the Fourth Gospe,, 1922, p. 39 s., considera também a leitura
OEÓÇ como a original, porém, crê dever explicá-la como uma tradução
deficiente do original aramaico, segundo o qual deveria haver ali o genitívo
(Seoíi): "O unigénito de Deus". Conforme o que foi dito mais acima, esta

1
Por ex.. R. BULTMANN, Johanneskonimentar, ad loc; o mesmo em H. CREMER-
KÓGEL, Wõiierbuclt desneutest. Grieciúsch, III ad., ,9223 p. 490 e ttmbém C, K.
BARRET, The Gospel According to St. John, 1955, p. 141 - embora estes dois
últimos não excluam inteiramente a outra possibilidade.
4Ò4 Oscar Cullmaiw

explicação não nos parece necessária. Que jj.ovoyevfiç, se se adota a


lição ÔEóç, seja empregado como substantivo, não deve apresentar difi-
culdades acerca dos textos de história das religiões reunidos por
R. Bultmann ena seu comentário, p. 47 ss.

Sendo claro o testemunho joanino, parece normal admitir com


Windisch-Preisker,645 que a declaração de 1 Jo 5.20 se refira tam-
bém a Cristo: "Sabemos que o Filho de Deus veio e nos deu enten-
dimento para conhecer ao Verdadeiro; e estamos no Verdadeiro,
em seu Filho Jesus Cristo. Este (ovioç) é o Deus verdadeiro e a
vida eterna." Esta explicação impõe-se não só por razões filológicas,
mas também por causa do próprio conteúdo da passagem que
retoma, ao mesmo tempo, a unidade e a diversidade do complexo
Pai-Filho próprio do pensamento joanino.

* * *

Uma vez mais, não é de surpreender-se que, à parte o Evan-


gelho de João, unicamente a Epístola aos Hebreus dê, sem dúvida,
o nome "Deus" a Jesus. Esta Epístola pertence, com efeito, ao
meio joanino. É verdade que a palavra "Deus" é empregada, aliás
duas vezes seguidas (Hb 1.8 s.), só em uma citação do Antigo Tes-
tamento (SI 45.7 s.): "O teu trono, ó Deus, é para todo o sempre"
(v. 8) e "por isso, ó Deus, teu Deus te ungiu ..." (v. 9). Porém, cita-
se o Salmo justamente por causa do vocativo "ó Deus" e o autor
sublinha expressamente que se relaciona ao Filho de Deus: 7rpòç
xòv t>ióv (v. 8). Este vocativo tem, pois, para ele especial impor-
tância. Como no Evangelho de João, o que o torna possível é a
qualidade única da filiação divina de Jesus. Isto corresponde per-
feitamente ao resultado a que chegamos no capítulo precedente.
Porém, ao mesmo tempo, se vê aqui que a distinção entre o Pai e o
Filho não fica, contudo, eliminada: segundo a interpretação cristã
do Salmo, a palavra "Deus" no v. 9 remete, na mesma frase, como

** H. WINDISCH - H. PREISKER, "Die Katholischen Bríefe" (Hdb. z. NT), 3a ed.,


1951, p. 135.
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 405

sujeito ao Pai, como objeto (no vocativo) ao Filho: "Teu Deus (o


Pai) te ungiu, ó Deus (o Filho)." Este texto se baseia num Salmo
referente à realeza em que Deus se dirige ao rei, dando-lhe o título
de "Deus" (cf. também Is 9.6).646 Assim, por seu modo de empre-
gar esta citação, a Epístola aos Hebreus também como o Evange-
lho de João, atesta este paradoxo de toda cristologia: que Jesus
Cristo, o Logos, está em Deus e é, ao mesmo tempo, Deus, para
recorrermos novamente aos termos do prólogo joanino.
Além disso, os versículos seguintes (1.10 ss.) da Epístola aos
Hebreus confirmam o que dissemos anteriormente acerca da rela-
ção entre o título Kyrios e a divindade de Jesus.647 Encontramos,
com efeito, uma citação de outro Salmo (102.25 ss.); aqui aquele a
quem o Pai se dirige não se chama "Deus", mas "Senhor", Kirie.
Porém, esta citação tem o mesmo propósito que a do versículo
precedente, e é provar que o Filho de Deus está acima dos anjos,
porquanto se se dirige a ele como a Deus. Entre as designações
Kyrios e "Deus" não há diferença essencial; isto vem também do
conteúdo da citação; o Kyrios que aqui se identifica com o Filho
Jesus Cristo, é o criador do céu e da terra; "Tu, Senhor, tu no prin-
cípio fundaste a terra; e os céus são obras de tuas mãos", assim
como no prólogo de João ao dizer acerca do Logos: "Todas as
coisas foram feitas por ele", não se estabelecia nenhuma diferença
entre o criador e o Salvador, tampouco faz-se aqui. Temos subli-
nhado, desde o começo, que esta distinção posterior favorecida
pela divisão trinitária do Credo e que aparece ainda hoje na maior
parte das dogmáticas,648 não se acomoda ao Novo Testamento.
A distinção entre o Pai e o Filho não é uma distinção entre a cria-
ção e a redenção; é uma distinção entre Deus, enquanto se pode, a
rigor, falar dele independentemente de sua revelação, e de Deus,
enquanto se fala efetivamente dele somente como do Deus que se
revela. Tal é também o pensamento da Epístola aos Hebreus.
* * *

Para os demais testemu ti lios no Antigo Testamento, cf. acima, p. 237.


Cf. acima, p. 305 ss.
A Dogmática de K. BARTH constitui, a este respeito, uma exceção.
406 Oscar Culíiitann

Se Paulo designa a Jesus como "Deus", não o faz tão aberta-


mente como o Evangelho de João ou a Epístola aos Hebreus. Porém,
convém aqui, muito especialmente, lembrar aquela nossa observa-
ção inicial de estar bem implícita a divindade de Cristo no título
Kyrios. Ora, o emprego deste título é muito frequente em Paulo, o
que dá a entender que é por esse título ou na linha deste título que
o apóstolo pensava expressar a divindade de Cristo. Dentre mui-
tíssimas passagens, podemos tomar por ex., 1 Co 8.6. O hino
cristológico de Fl 2.6 ss. com sua expressão èv p-Opcpf| Geoí>
ímápxwv, vai no mesmo sentido. Pois a expressão "imagem de
Deus" (Cl 1.15) com a qual o temos relacionado,649 supõe a
"divindade" de Jesus (Cl 1.15 s.), tanto como o título Logos de Jo
1.1. Em Cl 2.9, aliás, está claramente dito que em Jesus "habita
corporalmente toda a plenitude da divindade". Quaisquer que pos-
sam ser as relações desta passagem com as especulações gnósticas,
é evidente que semelhante texto, como aqueles citados anterior-
mente, tem como consequência natural que se veja a "Deus" em
Jesus Cristo. O fato de Paulo orar a Cristo (2 Co 12.8)650 prova
também que ele podia, dado o caso, chamar a Jesus Geóç; mas, de
fato ele o fez? Isto não pode ser estabelecido com certeza. Mas
mesmo se fosse isto teria sido nele excepcional Isso não tem de
surpreender-nos já que para ele Jesus é o Kyrios e já que este
nome, "que está acima de todo nome", expressa claramente a
divindade de Jesus do ponto de vista de sua soberania presente; e
é isto o que ao apóstolo interessa particularmente
Entre as Epístolas positivamente autênticas há em especial
uma passagem que deve ser considerada: Rm 9.5. É a conclusão
de uma enumeração de todas as prerrogativas do povo escolhido,
Israel: è\ &v ó XpiaTÒçTÒKcaà cápKa ó cov èjri návxcov Geòç
£Í)XoYnròç eíç xoi>ç aicòvaç, àpfiv. Cabem aqui duas possíveis

M!,
Cf. acima, p. 231.
*i0Cf. acima, p. 282 s., onde chamamos também a atenção sobre a èTtitccAeíadai do
Kyrios ou de seu nome (1 Co 1.2; Rm 10.12). Esta invocação está, ademais, no
limite da oração e da confissão de fé e as supõe ao mesmo tempo.
CRISTOLOGIA DO NOVO TIISTAMENTO 407

traduções, segundo a maneira em que se colocar os sinais de pon-


tuação. Ou bem, depois de aápica, pomos um ponto (ou pelo
menos uma vírgula) ou não. Sem ponto se obtém a tradução que
segue: "... dos quais, segundo a carne, veio o Cristo, o qual é Deus
sobre todas as coisas, bendito pelos séculos, Amém." Porém, se
colocamos um ponto depois de aápica, a frase final em que está
contida a palavra Geóç é gramaticalmente independente de XpiCtóç.
Então nos encontramos diante de uma dessas doxologias que Pau-
lo costuma introduzir, ao chegar no apogeu de um de seus raciocí-
nios, e que neste caso se dirigiria a Deus, o Pai e não a Cristo.
Depois da enumeração das graças concedidas a Israel, sendo a maior
delas o nascimento de Cristo segundo a carne, Deus (o Pai) é ben-
dito por todos os seus benefícios: "Deus, que está acima de todas
as coisas, seja bendito eternamente, Amém!"6íl
Não se pode a priori, e por razões teológicas, preferir uma ou
outra destas soluções. Mas, não obstante, temos de declarar que se
bem que não se possa excluir a segunda, não é esta a que o exame
do contexto nos predispõe a adotar.652 Aliás, as doxologias inde-
pendentes costumam construir-se de outra maneira: começam pelo
atributo evXóyTrroç (cf. 2 Co 1.3; Ef 1.3),653 enquanto que neste
caso o sujeito apareceria no princípio. Consequentemente, não se
trata de uma doxologia propriamente dita e independente, mas de
uma aposição doxológica relativa a uma palavra antecedente: como
por ex. em Rm 1.25 e 2 Co 11.31, onde Deus é louvado desta
forma. Porém, mesmo fazendo abstração disso, a estrutura do pri-
meiro membro da frase referente a Cristo Katá (Tópica exige, como

Segundo uma antiga conjetura do século XVIII, de J. J. WETTSTEIN, à qual K.


BARTH, entre outros, adere em seu Rõmerbrief, 2a ed., 1922, p. 314 s (nota), deve-
ríamos ler em lugar de ó div KtX.: WV Ó èiti rcávccov 8eóç Esta conjetura é pouco
provável pois o sentido que dela resultaria seria muito artificial: além das graças
enumeradas, o Deus onipotente pertenceria também a Israel.
Sobre a história da exegese deste versículo cf. O. MICHEL, DerBriefan die Rõmer,
1955, p. 197 s. MICHEL mesmo se pronuncia pela interpretação cristológica.
No Antigo Testamento o SI 66.20 não é exceção senão aparentemente. Cf. a este
respeito M. J. LAGRANGE, Sawt Paul, Epitre aux Romains, 2° ed., 1922, ad loc.
408 Oscar Cullmarm

na fórmula de Rm 1.3 s., uma sequência que vá além do Karà


oápKa.654 Ademais, as palavras àít\ -návtov são mais facilmente
compreensíveis se se referem a Cristo. Passam então de ser mera
fórmula retórica e fazem com que a enumeração dos sinais da elei-
ção de Israel culmine nesta afirmação final: de Israel saiu, segun-
do a carne, aquele que está "acima de todas as coisas". Por conse-
guinte, se não podemos dizê-lo com certeza, é pelo menos provável
que em Rm 9.5 seja Jesus Cristo a quem se chama "Deus".
A crítica textual vacila quanto ao sentido exato de Cl 2.2:
"...para conhecer o mistério TOÍ> 8EOÍ> Xpicrtoí) »m qqem estão
escondidos todos os tesouros da sabedoria e da ciência". No en-
tanto, esta lição é tida por original pela maioria dos comentaristas,
tanto mais quanto ao fato de que a proposição relativa que segue
(v. 3), e que se relaciona certamente aXpicrcoí), atribui ao Cristo o
que ordinariamente se atribui a Deus.
Em troca, a fórmula contida em 2 Ts 1.12: Kaià TT|V %ápiv
iox) Geoíi fipôv Kcd icopíor) 'Iricroí) Xpimou não pode apenas
ser considerada como uma simples expressão que se relaciona
unicamente ao Cristo, embora esta possibilidade não fique inteira-
mente excluída. A fórmula análoga, contida em 2 Co 1.2: "Graça e
paz àTtò Geoíi itcerpòç rpcov KCCÍ íeopun) 'ITICTOV Xpiatoí)" pare-
ce mesmo demonstrar que se trata, em primeiro lugar, de Deus e
em segundo de Cristo.
A passagem de Tito 2.13 dá lugar também a muitas interpre-
tações. Porém, a mais provável é que, efetivamente, Cristo seja
chamado ali "Deus":655 "Aguardando a bem aventurada esperança
e a manifestação gloriosa TOO [iEyáXox> QBOX) KaK GGttrpoç í>pov
XpCctov 'Ir|aoí>, quem se deu a si mesmo por nós, afim de...

fiSJ
H. CREMER - KÒGEL, Wõrterbuch des neutesit Grieclhsch, 11a ed, 1923, p. 488,
chama a atenção, aqui, à oposição basar-ehhim que se encontra no Antigo Testamento.
''"Contra M. DIBELIUS - H. CONZELMANN, "Die Pastoralbriefe" (Hdb. z. NT),
3a ed.,1955, ad loc. Segundo este comentário, nos encontraríamos aqui (como em
Lucas) em uma etapa da evolução em que, apesar da possibilidade de uma transfe-
rência a Cristo dos atributos de Deus, se teria ainda ensinado uma cristologia estri-
tamente "subordinacionista".
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 409

fazer-se um povo que pertencesse a ele, purificado por ele." O fato


de que a fórmulaGeòç KO.1 o«XT\P - amiúde empregada pava deno-
tar a Deus656 - não deva ser desmembrada, sem dúvida, já é um
argumento contra uma distinção entre Deus e o "Salvador Jesus
Cristo."657 Além disso (como em Cl 2.2 s.), o membro final da
frase, certamente relativa a Cristo, indica uma função que, de ordi-
nário, só se atribui a Deus.658 Enfim, uma "inanifestação" escato-
lógica simultânea de Deus e de Cristo não corresponde à esperan-
ça geral.659
Vale pronunciar idêntico juízo sobre 2 Pe 1.1 onde aparece a
mesma combinação de OEÓÇ KoCÍ atoxrip: èv ôiKcaoo"úvr| xov Qzov
fipftiv Kcd atotfjpoç 'lT|aoí) Xpiccou A expressão empregada na
mesma epístola para designar a Jesus, KÚpioç KOCÍ acoTtíp (2 Pe
1.11; 2.20; 3.2, 18), prova que aqui 0eóç é, junto com oení|p, um
atributo de Jesus Cristo. Constata-se pois aqui também que a no-
meação cristológica GEòç é uma variante do termo mais corrente
icópioç.
Se fizermos abstração de At 20.28, onde a leitura xoí> 0eoiJ é
muito incerta,661 chegamos à conclusão seguinte: naquelas poucas
passagens do Novo Testamento onde Jesus recebe o título "Deus",

ws
Isto é justamente, também, o caso nas Epístolas pastorais. Cf. 1 Tm l1.1 2.3; 4.10;
Tt 1.3; 2.10; 3.4; e também, Lc 1.47.
657
Como paralelo ao adjetivo }xéyaç, que qualifica a Cristo, podemos citar 2 Pe 1.16,
onde a jj.£7a>.etóxT\<; é igualmente atribuída a Cristo.
^8Cf. Ex 19.5; Dt 7,6; 14.2, etc.
"^ Outro trecho das epístolas pastorais (1 Tm 3.16) nãoé tratado aqui, pois o vocábulo
8EÒÇ é, visivelmente, uma correção de õç.
í,w,
Em Ap 19.11 s. o cavaleiro é chamado "Logos", "Fiel", "Verdadeiro", mas tem um
"nome que ninguém conhece senão ele mesmo". Seria este o nome de Deus?
Aí 1
' A leitura Kupíoi) é, também, muito bem atestada. No entanto é difícil reconhecer
qual é a lectio difficilior. A maioria dos comentaristas parece inclinar-se por fleoíi,
pois èKKXr|C>ía xov KVpíoi) para qehal lahweh é mais corrente (embora Ne 13.1
também fala de qehal ha-elolúm). E. HAENCHEN, Die Apostelgeschichte, 1956,
p. 531, nota 1, fornece uma explicação plausível acercada transferência ulterior de
8EO\) para ícupíoti: havendo sido considerado o TOÚ iôtou como adjetivo qualiííca-
tivo de aupctToÇ, se teria substituído 6eou porK\)píoi), a fim de evitar a aparência de
patripacionismo.
4") (} Oscar Cullmann

esta qualificação se liga, por um lado, a sua elevação à dignidade


de Kyrios (Epístolas de Paulo, 2 Pedro), e por outro, à ideia de ser,
ele mesmo, a revelação (escritos joaninos, Hebreus). De modo que
esta qualificação no fundo não soma nada aos demais títulos
dados a Jesus e estudados nos capítulos precedentes.

Em troca, a maneira em que Inácio de Antioquia dá mais fre-


quentemente o título de 0eóç a Jesus, (cf. E&tn. 1.1; Ef 1.1; 7.2; 15.3;
19.3) anuncia já as discussões cristológicas ulteriores. No entanto, ele
também faz distinção entre o Pai c o Filho (Cf. Esm. 8.1; Magn. 13.2).
CONCLUSÃO

PERSPECTIVAS DA CRISTOLOGIA
DO NOVO TESTAMENTO

Ao finalizarmos nosso estudo, o plano que adotamos pura


expor a cristologia do Novo Testamento se revela. O exame suces-
sivo dos diferentes títulos fez ressãk&ras grandes linhas e, em pa.r-
ticular, a grande linha mestra, regida pela história da salvação e da
revelação. Evitando impor um esquema dogmático à cristologia
do Novo Testamento e estudando, em cada caso, os títulos através
de todos os seus livros, cremos haver seguido o método mais ade-
quado à finalidade perseguida. Pois em si, o Novo Testamento não
nos oferece uma síntese; porém, quer abranger o objeto da revelação
partindo de diversos pontos e sempre de um ângulo novo. O resul-
tado, contudo, não é um mosaico esburacado desprovido de coe-
rência e unidade. Pois cada concepção particular tende para urna
compreensão geral da pessoa e obra de Jesus; por outro lado, o
estudo das relações recíprocas destes diversos conceitos nos per-
mitiu - segundo cremos - escapar ao risco - que poderia resultar
do plano adotado - de alinhar uma série de monografias indepen-
dentes entre si. Ao contrário, demonstramos - esperamos que de
fornia convincente - que a complexidade da cristologia do Novo
Testamento não impede sua unidade essencial.
Ademais, esta é a forma em que os próprios cristãos primiti-
vos apresentam a síntese da revelação cristológica, ou seja, pç]a
análise dos diversos conceitos. Seu intento é responder à pergun-
ta: Quem é Jesus? Seguindo os caminhos indicados pela variedade
dos títulos cristológicos.
412 Oscar Cullmann

De maneira que se nos impõem dois métodos se quisermos


construir uma "Cristologia do Novo Testamento". Por um lado o
método cíclico; partindo de cada conceito estudado, se estendem
linhas para todos os elementos da história da salvação, mesmo que
cada um desses conceitos não esclareça em princípio, senão só um
desses elementos ou um fragmento deles. Por outro, o método his-
tórico e cronológico que unimos ao primeiro: cada título foi exa-
minado sucessivamente a partir da história das religiões e de seu
enraizamento no judaísmo, depois, quando o tema assim o exigia,
partindo das palavras e reações de Jesus e, finalmente, a partir do
ensinamento particular de cada autor do cristianismo primitivo.
O emprego simultâneo de ambos os métodos, fez aparecer o elo
que une as diversas soluções cristológicas.
Se, nestas últimas páginas, nos propomos falar brevemente do
elemento comum para o qual temos chamado, em cada caso, a aten-
ção, não é para proporcionar, apesar de tudo, uma síntese e fazer,
assim, o que os autores do Novo Testamento justamente não fize-
ram. A rigor, a verdadeira síntese, tal como cremos vê-la, não pode
revelar-se senão a quem, com paciência, examina e estuda, separa-
damente cada um dos títulos cristológicos contidos no Novo Testa-
mento.662 Se, com tal clara reserva pomos, no entanto, em relevo
duas ideias principais que achamos a cada passo neste estudo,
fizemo-lo para confirmar que o princípio adotado para a classifi-
cação dos diversos títulos - o Cristo encarnado, o Cristo que volta,
o Cristo presente, o Cristo preexistente - não é um esquema impos-
to de fora, mas que corresponde efetivamente à própria essência
de toda a cristologia neotestamentária, ao princípio da história da
salvação. Apesar do método cíclico ou, melhor dizendo, graças a
ele (talvez por esta mesma razão devêssemos falar antes de uma
espiral) se pôs em evidência uma linha diretriz, um movimento

2
Também teremos de sublinhar, unia vez mais, que este livro não é, em primeir;»
instância, uma obra de referência que se possa consultar sobre tal ou qual ponto tia
cristologia do Novo Testamento. Não se deveria utilizá-lo assim, com efeito, senão
na condição de havê-lo lido inteira e atentamente antes.
CRISTOLOGIA DO NOVO TILSTAMHNTO 413

A variedade devida à multiplicidade tle títuloso do soluções


cristológicas, o constatar que os diferentes títulos crisioló^icos
são função da encarnação, do regresso, do senhorio pivsenU* ou
da preexistência de Jesus e que não podem, poruinto, si* jtmiar
sem inscrevermos todos eles em uma história da salvação, pio
vam que o cristianismo nascente não respondeu à pergunta aivr
ca de quem seja Jesus por um mito já feito; mas baseado 1*111
certo número de acontecimentos do primeiro século de nossa era,
cujo alcance aqueles que então "faziam história" não chegaram a
discernir e que podem hoje ainda ser interpretados diversamente,
sem ser por isto menos históricos: a vida, a obra e a morte de
Jesus de Nazaré e a experiência de sua presença e da continua-
ção de sua obra para além de sua morte, no seio da comunidade
de seus discípulos.
Fundada nestes acontecimentos, a cristologia do Novo Testa-
mento foi concebida na perspectiva da salvação. Esta cristologia
não é um mito que teria sido imposto de fora a um Kerygma alheio
à história da salvação. A forma em que os primeiros cristãos ela-
boraram as diversas concepções cristológicas, seu desenvolvimento
e sua significação teológica, coisa que temos estudado, prova o
contrário. Os muitos, já o constatamos, elementos tomados do meio
ambiente helenístico para expor a história cristológica da salvação
nada muda disto: a cristologia, entendida como uma obra de sal-
vação que se desenvolve desde a criação até a nova criação
escatológica e que tem por centro a vida de Jesus, em si, não per-
tence a ditos elementos helenísticos. E sendo que é em relação a
estes acontecimentos do primeiro século, tidos por fundamentais,
que o cristianismo nascente chega a sua compreensão cristológica,
podemos até dizer que o próprio desenvolvimento desta elabora-
ção cristológica faz parte da história da salvação.
Se reconhecermos que o conhecimento cristológico se desen-
volveu de forma paulatina, principalmente seguindo certos acon-
tecimentos históricos, compreenderemos melhor que a própria
cristologia também tenha sido entendida como um acontecimen-
to, como uma história.
4H Oscar Cullmami

Baseando-nos nos resultados de nossos estudos, intentaremos


primeiramente esquematizar, em grandes traços, uma história da
formação das crenças cristológicas dos primeiros cristãos; depois
da qual, faremos ressaltar os caracteres essenciais que lhes são
comuns.60

* * *

O fundamento de toda cristologia é a vida de Jesus. Isto pode


parecer uma verdade banal; e, no entanto, não só é necessário
afirmá-la diante daqueles que negam a existência histórica de
Jesus, como também diante de certas tendências da teologia atual.
O problema de se saber quem é Jesus, não se formula unicamente
a partir da experiência pascal da primeira igreja. A vida de Jesus já
é o ponto de partida de todo pensamento cristológico; por um lado,
em razão da consciência "messiânica" de Jesus e, por outro, em
razão das reações que sua pessoa e sua obra suscitaram em seus
discípulos e no povo.
Desde o seu batismo, Jesus teve consciência de ter de exe-
cutar o plano de Deus. Isto é, de oferecer sua vida para o perdão
dos pecados alheios, conforme a pregação referente ao Ebed
Iahweh; consciência também de ter que antecipar já em vida este
fim, mediante sua pregação e suas curas; consciência, ademais, de
inaugurar o reino de Deus como o "Filho do Homem", que certos
círculos judaicos esperavam do céu (mesmo que ele o fizesse pro-
visoriamente, na humilhação de sua humanidade); consciência,
enfim, de cumprir esta dupla função de "Servo de Deus" e de "Filho
do Homem", em uma unidade perfeita, constante e única com Deus,
na qualidade de "Filho".
Não foram na verdade algumas palavras que ele pronunciou a
este respeito com voluntária discrição, o que fez com que seus

Teremos de sublinhar, por precaução, que se trata necessariamente de uma visão de


conjunto sumária; para quem não tenha lido os capítulos que precedem, este esque-
ma não pode significar grande coisa.
CRISTOLOGIA DO NOVO T INSTAMENTO 415

discípulos já formulassem, durante sua vida, a questão cristológica.


Nem o povo, nem os discípulos compreenderam, a princípio, as
alusões mais ou menos veladas de Jesus. Foram, antes, as relações
cotidianas com ele, o ensino e a ação dos quais foram testemu-
nhas, o que lhes incitou a perguntarem-se quem era Jesus e qual o
sentido de sua ação. Isto é, que o problema cristológico devia
necessariamente impor-se a seus espíritos, se não quisessem ter
Jesus como um alienado, como o tinham os membros de sua famí-
lia e outros. Com clareza os evangelistas expressaram o que era
que lhes forçava a formular a questão cristológica quando declara-
ram que as pessoas que ouviam a Jesus estavam "assombradas",664
assombro misturado com temor diante de sua "autoridade", sua
è^ovaia: "ensinava, com efeito, com autoridade e não como os
escribas" (Mt 7.29).
Quanto à resposta, não podiam no primeiro momento encontrá-
la sem apelar às concepções correntes acerca da esperança judaica
do "Profeta do fim dos tempos" ou do Messias-rei político, con-
cepções que não correspondiam à consciência que Jesus tinha de
si mesmo. Só em raras ocasiões os discípulos intuíam uma respos-
ta mais válida, mais exata, que não lhes havia sido revelada "por
sangue e carne", como diz o Evangelho de Mateus. Acontecimen-
tos extraordinários como, por exemplo, aquele do relato da trans-
figuração, podem ter dado uma referência histórica a estas revela-
ções imediatas; porém, à parte tais indícios, seguia sendo para eles,
todavia, incompreensível, o que Jesus queria significar quando se
designava como o "Filho do Homem".
É só à luz de novos acontecimentos, a morte na cruz e, dois
dias depois, o encontro com o Ressuscitado, que o problema de
Jesus assume teologicamente sua plena significação. Estes acon-
tecimentos confirmaram e explicaram aquelas esporádicas ilumi-

Cf. èxJtXíjcFcrecíTai: Mt 7.28; 13.54; 22.33; Mc 1.22; 6.2; 7.37; 11.18; Lc 4.32:
9.43. Ganhei cocei: Mc 1.27; 10.24; 10.32; Lc 5.9. è^íotao9o(t: Mt 12.23; Mc 2.12:
5.42; 6.51; Lc 2.47; 8.56. 6cconáÇeiv: Mt 8.27; 9.33; 15.31; 21.20; 22.22; Mc 5.20;
Lc 4.22; 9.43; 11.14. (poPeTa6aa: Mt 9.8; 10.31; Mc 4.41; 5.15.
'416 Oscar Culbnann

nações produzidas durante a vida terrena de Jesus, e alguns discí-


pulos, ao menos, alcançaram, então, a compreensão destas suas
alusões que, durante sua vida, lhes pareciam tão obscuras.
Sem dúvida, como o era para o próprio Jesus, a esperança do
que ele haveria de ser no futuro continuava objeto do interesse
cristológico, no sentido de que a aparição do "Filho do Homem"
nas nuvens seria, doravante, esperada concretamente como um
retomo de Jesus. Ademais, as concepções messiânicas correntes,
aplicadas, até então equivocadamente a Jesus, podiam agora ser
retomadas: a cruz e a ressurreição, ao mostrar a pessoa de Jesus
em uma luz totalmente diferente, haviam purificado estas ideias
elevando-as a um nível superior de verdade, sem que por isso o
ideal messiânico, recusado por Jesus, deixasse, no entanto, de de-
sempenhar certa função.
Porém, o essencial era ver como a esperança na segunda vin-
da de Jesus poderia relacionar-se com uma explicação acerca de
sua primeira vinda. Já na igreja primitiva, o verdadeiro problema
cristológico era constituído pela primeira vinda de Jesus e não tanto
pela segunda; e é falso, portanto, repetir constantemente nas expo-
sições da teologia do Novo Testamento, que a igreja primitiva
palestina se interessava unicamente pelo Filho do Homem ou pelo
Messias que vem; como se não houvesse diferença entre a doutri-
na judaica e a doutrina judaico-cristã acercado Messias; como se
a reflexão cristológica dos cristãos palestinos não tivesse absolu-
tamente sido condicionada pela primeira vinda de Jesus, por sua
vida e por sua morte; como se só posteriormente, na igreja pagã-
cristã e com Paulo, se tivesse começado a perguntar-se o que sig-
nificavam a vida terrena e a morte de Jesus. Já é hora de não atri-
buir à igreja hierosolimitana semelhante incapacidade ingénua de
ver os problemas.
Na realidade, desde o momento em que se falava da parusia, a
questão acerca de sua relação com a primeira vinda de Jesus havia
de formular-se forçosamente. Isto é, que a cristologia já se inscre-
via, então, em uma reflexão sobre a história da salvação: Cristo
não somente era aquele que vem mas também aquele que já veio;
CRISTOLOGIA DO NOVO TKSTAMI-NTO 417

agora, o fato de que o mesmo que havia de vir em glória e tinha


sofrido antes a morte, devia ter um sentido que era questão de se
descobrir.
É assim que, baseada na lembrança de certas palavras decisi-
vas de Jesus, constitui-se, então, uma cristologia do Ebed Iahweh
que interpreta a morte de Jesus dentro da perspectiva cristológica.
Ela parece ter adquirido, depois da Páscoa, uma importância parti-
cular, ao menos para Pedro, o qual, durante a vida de Jesus, havia
se levantado contra a ideia da necessidade do sofrimento e da mor-
te de seu mestre. Nos outros meios e, sem dúvida, nos dos "hele-
nistas" palestinos (At 6-8) que, quiçá, tenham tido alguma relação
com círculos esotéricos judaicos, aos quais o autor do quarto Evan-
gelho, talvez, pertencera, se buscou a solução de preferência na
reflexão sobre o título de "Filho do Homem", que Jesus se atribuía
a si mesmo. Pois este título permitia precisamente ligar a segunda
vinda de Jesus à primeira. Os conceitos aí associados, não tinham
somente um caráter escatológico no sentido de Dn 7; podiam, tam-
bém, por influência de especulações judaico-orientais relativas ao
primeiro homem e a Adão, ter levado a considerar Jesus como o
segundo Adão, o homem celestial, a autêntica "imagem de Deus",
concepção que, aliás, acharemos plenamente desenvolvida só em
Paulo.
Porém, para que todas estas tentativas de explicação cristoló-
gica encontrem seu equilíbrio verdadeiro e, ao mesmo tempo, todo
o seu alcance, foi necessária a certeza inquebrantável, dominante,
de que Jesus, como Senhor presente, reina sobre a igreja, o mundo
e a vida de cada um. Foi unicamente a experiência com o Kyrios
que deu o impulso determinante para o desenvolvimento de uma
cristologia orientada resolutamente para a história da salvação.
No culto, muito particularmente no momento do partir do pão,
é que este conhecimento do senhorio atual de Cristo foi dado aos
primeiros cristãos e confirmado em todos os demais domínios de
sua vida fraternal. Ao lado da vida terrestre de Jesus e da experiên-
cia pascal, é este regozijo litúrgico onde o Senhor faz sentir sua
presença, ali onde é invocado (maranatha), e confessado (Kyrios
418 Oscar CuUmann

christos), que é a raiz principal da cristologia do Novo Testamen-


to. Daí se podia tirar as linhas e efetuar as conexões, pois esta
nova revelação, dada aos primeiros cristãos no culto, certificava
que este Senhor presente era o mesmo Jesus de Nazaré aparecido
sobre a terra, crucificado e ressuscitado, e também o mesmo
Filho do Homem que devia vir nas nuvens do céu. Assim, a fé
no Senhor a quem "todo poder é dado nos céus e na terra" - fé
adquirida no culto e na vida eclesial cotidiana - devia incitar
novas reflexões.
Por referência ao SI 110, citado pelo próprio Jesus, vimos a
relação entre o Senhor vivo e o Jesus terreno na "elevação" do
Ressuscitado "à destra de Deus". A frequência com que se citava
este texto mostra quão importante era, para os primeiros cristãos,
ver garantida desta maneira a identidade do Senhor presente e do
Cristo encarnado. A função do Cristo na história da salvação se
apresenta com clareza cada vez maior. Toda teologia se convertia
em cristologia. Se Jesus era o Kyrios, isso haveria de influenciar
todos os demais títulos: a cada qual, portanto, ligou-se, tácita ou
conscientemente, a perspectiva geral da história da salvação. Que
Jesus tivesse cumprido a missão do Ebed Iahweh, que fosse o
Messias prometido a Israel, que houvesse vindo e devesse voltar
como "Filho do Homem", tudo isto conservava seu valor, porém,
aparecia em uma luz completamente distinta.
Porém, esta reflexão cristológica acerca do "Senhor", perma-
nentemente regida pela experiência de sua presença e compreen-
dida, desde então, como inspirada pelo Espírito Santo, tinha ainda
outra consequência: ele, a quem todo poder havia sido dado, a
quem todas as passagens do Antigo testamento que falam de Deus
podiam ser aplicadas, devia estar agindo mesmo antes de sua vida
terrena. Do momento em que se considerava sua vida como a
revelação decisiva da vontade divina de salvação, haveria de se
prolongar a linha da história da salvação em direção ao passado,
para além da aparição de Jesus. Jesus foi reconhecido como o reve-
lador por excelência: onde quer que Deus houvesse se revelado
Cristo também estava presente; e assim surgiu, sempre na pers-
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 419

pectiva da história da salvação, a questão da relação entre o Cristo


encarnado e o Cristo preexistente; a lembrança de certas palavras
de Jesus sobre o caráter único de sua filiação se desperta.
A obra terrestre de Jesus, considerada como o acontecimento
central, foi assim colocada cronologicamente no meio de uma
linha da salvação que aponta para frente e para trás.665 Como ela
representa o centro da revelação de Deus, todas as demais revela-
ções divinas devem estar-lhe relacionadas, pois não poderia haver
revelação divina que diferisse fundamentalmente da revelação dada
em Cristo. É assim que a cristologia se aproxima, por diversos
caminhos, do que a dogmática posterior haverá de chamar (em um
sentido que não é, aliás, sempre o do Novo Testamento), a "divin-
dade" de Cristo. Os caminhos que aí conduzem são: a consciência
que Jesus teria de ser o Filho de Deus; a presença viva do Kyrios
no culto, e a reflexão sobre o Logos no pensamento teológico.
O Evangelho de João, as epístolas de Paulo e a Epístola aos
Hebreus, a despeito de todas as suas diferenças, não estão muito
afastados entre si no que toca a esta concepção cristológica funda-
mental.666 Ademais, noções cristológicas que à primeira vista
parecem situar-se em outra perspectiva, por exemplo, a de "Filho
do Homem", conduzem, também, à ideia de Jesus "imagem de
Deus" e "existindo em forma (p.op(pr\) de Deus" (Fl 2.6).
Todo este processo de reflexão cristológica se desenvolve junto
com a ação missionária da cristandade primitiva. Ele era pois seri-
amente ameaçado pelo contato com o pensamento helenístico e
sincrético do mundo ambiente, tanto mais pelo fato de que para
fazer-se compreender necessitava estabelecer um vínculo com este
pensamento; tomam-se assim dele certas concepções e até certos
traços mitológicos. A própria fé no Kyrios adquire um relevo par-
ticular, porquanto o paganismo tinha uma concepção bem defini-
da do Kyrios e também porque o imperador se fazia adorar como

SS5
O que H. CONZELMANN, Dei Mitte der Zeit, 1954, demonstra a propósito de
Lucas não é válido somente para este autor.
66(1
Cf.V/. BAUER, "Das Johannesevangelium" (Hdb. z. NT), 3a ed., 1933, p. 6.
420 Oscar Cullmcmn

Kyrios. A ideia de Filho do Homem, que também tem suas raízes


em antigas concepções de um primeiro homem divino, já havia se
desenvolvido em terrenos judaico e pagão, embora num sentido
muito diverso. Proliferavam por toda parte as especulações sobre
a "Palavra" de Deus nas religiões pagãs e especialmente na filoso-
fia religiosa do helenismo. Tudo isto teve influência no desenvol-
vimento da cristologia. Porém, insistir que a cristologia do Novo
Testamento repousa em um mito gnóstico é condenar-se a não
compreender nem os motivos profundos de sua formação, nem
sua própria natureza. Abordar os textos com tais premissas - como
se costuma fazer hoje com tanta desenvoltura - é inevitavelmente
impedir-se de ver os motivos cristãos imanentes, a significação de
acontecimentos tais como a vida, morte, ressurreição e presença
litúrgica de Jesus para a reflexão teológica; é, sobretudo, conde-
nar-se a desconhecer totalmente as verdadeiras relações entre a
cristologia e a história das religiões. Elementos sincréticos e até
míticos foram, por certo, adotados. Porém, foram submetidos a
um esquema cristológico que, precisamente, não está regido pelo
sincretismo, ou pelo helenismo ou pela mitologia, mas, pela histó-
ria da salvação e por fim submetidos a um esquema, cujo caráter
essencial consiste em ter por centro, desde o começo, uma histó-
ria real.
Os principais temas da cristologia do Novo Testamento estão
já formados e presentes no seio da igreja nascente. É aí, onde,
vinculados aos acontecimentos desencadeados depois da morte de
Jesus, nasceram todas as afirmações cristológicas importantes,
como o provam as confissões de fé e os hinos que surgiram da
comunidade primitiva. É verdade que é sobretudo nas epístolas de
Paulo, no Evangelho de João e na Epístola aos Hebreus (vale
dizer, nos escritos originados em ambientes do mundo helenístico)
que as diversas concepções cristológicas se desenvolveram e
aprofundaram. Porém, não esqueçamos que não somente fora da
Palestina mas também, por intermédio do judaísmo, nela o
helenismo exercia certa influência sobre a igreja primitiva. Os tex-
tos judaicos recentemente descobertos de Qumran que apontam
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 421

elementos nitidamente sincretistas e fazem aparecer, por outro lado,


pontos de contato importantes com o pensamento do Novo Testa-
mento, mostram como certos grupos do cristianismo palestino pri-
mitivo - podemos pensar, por exemplo, nos "helenistas" de que
fala Atos dosApóstolos -puderam, desde o começo, estar em con-
tato com o pensamento helenístico. Cada vez mais se reconhece
que o Evangelho de João pertencia a estes meios.
Mas então, há de se acabar com o esquema rígido: comunida-
de primitiva judaica - cristianismo helenístico. Não se pode esta-
belecer entre a teologia da igreja pagã-cristã e a da igreja hiero-
solimitana a distinção taxativa que se costuma fazer. Não somente
carecemos de textos que permitam uma delimitação precisa, como
também se tem demonstrado, entrementes, que esta oposição
taxativa não existe. Fato este que também tem de ser levado em
conta pela cristologia, sem desconhecer de modo algum, por outro
lado, que as concepções helenísticas influenciaram muito mais
poderosamente a igreja em ambiente pagão do que em ambiente
palestino.
Também temos de reconhecer que a compreensão cristológica
foi se formando por um processo. Porém, o essencial neste pro-
cesso não é a passagem da igreja palestina à igreja congregada em
território pagão, por importante que dita passagem seja. O essen-
cial, antes, são as etapas seguintes: a vida e a morte de Jesus e as
alusões que ele faz à missão para a qual foi enviado; a experiência
pascal dos discípulos; a presença experimental e vivida do Senhor
na vida e principalmente no culto cristão; enfim, a reflexão que se
sente dirigida pelo Espírito Santo para com as relações que as fun-
ções do Cristo, por separadas que estejam no tempo, têm com a
extensão inteira da história da salvação e da criação até a parusia.
Ligado como está ao fato central da vinda de Cristo, desde
este ponto de vista, este desenvolvimento pode ser considerado
como parte integrante da própria revelação.

* * *
422 Oscar Cullmann

Se nos empenhamos agora em fazer ressaltai' os traços essen-


ciais comuns a toda a cristologia do Novo Testamento temos que
mencionar, em primeiro lugar, esta visão de uma cristologia com-
pleta, regida pela história da salvação. Isto não se aplica, por certo,
de forma igual a todas as concepções cristológicas. Costuma ocor-
rer que só uma das funções cristológicas seja esclarecida em todas
as suas faces ou antes que a linha que devia religá-la às demais não
seja traçada em toda sua extensão. Porém sempre, salvo o caso do
Profeta escatológico, as demais funções cristológicas se apresen-
tam de uma maneira ou outra. E sempre está aí, no fundo, implíci-
ta, a pressuposição de ser a encarnação - os sofrimentos, a morte e
a ressurreição de Jesus - o momento decisivo, no curso do tempo,
de toda a obra de Cristo. Qualquer que seja a função particular que
se contemple, a identidade do Cristo preexistente, presente ou
futura com Jesus de Nazaré, não está assegurada senão quando se
reconhece que o Cristo é o centro de toda a revelação. Sem esta
referência obrigatória à pessoa e à história de Jesus, se deslizaria
diretamente para o docetismo ou o sincretismo. Jesus se converte-
ria em um princípio filosófico-religioso; e sua vida histórica pas-
saria a ser só um disfarce mitológico.
Por isso o docetismo, isto é, a solução cristológica para a qual
a obra histórica de Jesus não é o centro de toda a revelação de
Deus, já é, para o Novo testamento, a heresia cristológica funda-
mental: aquele que não confessa que Jesus Cristo veio em carne, o
tal é do Anticristo (1 Jo 4.2 ss.). Desde que o centro da revelação
deixou de ser o Encarnado, já não estamos mais no terreno da
cristologia do Novo Testamento. O elo com a história da salvação,
que é uma história real, temporal, nunca falta no Novo Testamen-
to, inclusive ali onde se crê que ele está localizado no plano de um
pensamento especulativo como, por exemplo, no prólogo do Evan-
gelho de João. O quanto aí se diga acerca do "princípio", está
situado na perspectiva desta afirmação decisiva: "E o Verbo se fez
carne e habitou entre nós" (Jo 1.14). Quando este acontecimento
temporal é verdadeiramente o centro de toda a história do Cristo,
pode-se falar também do Cristo preexistente e de sua relação com
CRISTOLOGIA DO NOVO TESTAMENTO 423

Deus, ou do "Senhor" invisível e presente, sem correr o risco de


cair nas especulações gnósticas e sincréticas. Por outro lado, este
vínculo com o Cristo preexistente, com o Kyrios, com Deus, deve
ser estabelecido, já que toda a revelação de Deus está ligada a este
centro.
Esta visão de uma cristologia dirigida pela história da salva-
ção que nos conduz da criação à plenitude, à realização de todas as
coisas na nova criação, passando pela reconciliação na cruz e o
reino invisível e presente de Cristo, está dominada por dois aspec-
tos essenciais que encontramos repetidamente ao estudarmos as
diversas soluções do problema cristológico: por um lado, o princí-
pio de substituição, segundo o qual se desenvolve toda esta histó-
ria; e por outro, a ideia de Deus que se comunica a si mesmo, a
ideia de revelação que reúne as diversas fases da históriada salva-
ção, de sorte que o Cristo mediador da criação pode situar-se no
mesmo plano que Jesus de Nazaré, reconciliando o mundo por sua
cruz.
Em Christ et le Temps expomos, em detalhe, como o princí-
pio da substituição determina o movimento da história da salva-
ção. Da multidão se passa, por redução progressiva, a um; e deste,
que está no centro da marcha das coisas, se volta à multidão: pas-
sa-se da criação à humanidade, da humanidade a Israel, de Israel
ao "remanescente", do "remanescente" ao Cristo encarnado; e em
seguida se vai do Cristo encarnado aos apóstolos, dos apóstolos, à
igreja, da igreja ao mundo e à nova criação. Porém, aquele que se
encarna no coração mesmo do tempo, age também, de maneira
substitutiva, antes e depois. Por isso achamos constantemente nos
títulos cristológicos essenciais, esta ideia de substituição; quer se
trate do Ebed Iahweh, ou do sumo sacerdote, ou do Filho do
Homem, ou do Filho de Deus; porém, em cada caso, sob um ângulo
particular.
O Cristo é aquele em quem o próprio Deus se revela: tal é a
segunda ideia principal que temos que pôr em relevo nesta breve
recapitulação. Ela caracteriza especialmente as soluções cristoló-
gicas estudadas nos últimos capítulos {Logos, Filho de Deus, Deus),
424 Oscar Cullmann

porém, não se limita, de nenhuma maneira, a estes últimos. Em últi-


ma análise, ela é subjacente a todas as concepções cristológicas:
principalmente naquelas que, como a de Ebed, e em parte a de
Filho do Homem, explicam o Cristo encarnado, a revelação de
Deus tornada, por assim dizer, "palpável"; vimos sua. doxa queé a
doxa do próprio Deus (Jo 1.14); pôde-se captá-la por todos os sen-
tidos humanos (l Jo .ls ss.). Se a vida humana e a morte expiatória
de Jesus, se estes acontecimentos que se podem datar historica-
mente, constituem a revelação de Deus em sua forma decisiva,
então, este conceito de revelação exige uma cristologia regida pela
história da salvação; então todo o conjunto da revelação, antes e
depois de Jesus Cristo, deve ter por centro a Jesus de Nazaré, cru-
cificado e ressuscitado.
O Evangelho de João, Paulo e a Epístola aos Hebreus levam
esta reflexão sobre a revelação até suas últimas consequências:
Jesus Cristo é Deus, em sua auto-revelação. O Evangelho de João
tira esta última conclusão cristológica identificando Jesus com a
Palavra pela qual Deus se revelou desde a hora da criação e pela
qual continua revelando-se ao longo da história da salvação; Pau-
lo, considerando Jesus como o Kyrios que reina sobre o universo;
e a Epístola aos Hebreus, dando a Jesus Cristo o nome de "Deus".
Os primeiros cristãos não conhecem, quanto à revelação, o dualismo
entre criação e redenção.
Considerar Jesus Cristo como "o revelador" por excelência
supõe também uma afirmação acerca de sua pessoa, e não somen-
te de sua obra; porém, no sentido de não poder falar-se de sua
pessoa senão em relação com sua obra A frase conhecida de
Melanchton: Christum cognoscere est beneficia eius cognoscere,
não significa certamente, se se quiser colocá-la na perspectiva do
Novo Testamento, que a cristologia não trata também da pessoa de
Jesus. Os termos têm de poder ser invertidos: na obra pode-se
reconhecer também a pessoa, isto é, sua relação única com Deus.
Se no ápice do pensamento cristológico do Novo Testamento, Je-
sus Cristo é Deus enquanto aquele que se revela, então, não se
pode falar de sua pessoa fazendo-se abstração de sua obra, como
CRISTOLOGIA oo Novo TESTAMENTO 425

não se pode, tampouco, falar de sua obra fazendo-se abstração de


sua pessoa. Desde o começo - e inclusive ali onde as consequên-
cias finais não foram ainda tiradas - todacristologia une, de manei-
ra absoluta, a pessoa e a obra; e o próprio Jesus tem consciência de
assumir, enquanto Filho do Homem, os sofrimentos do Servo de
Deus, e de ser precisamente assim o Filho único de Deus, uno com
o Pai.
Por verem em Jesus a revelação da salvação de Deus, os pri-
meiros cristãos não podem reconhecê-lo como tal sem apoiarem-
se em sua obra, e fundamentalmente em sua obra central consu-
mada por sua encarnação. Por isso, as especulações sobre as
"naturezas" caem fora das perspectivas do Novo Testamento.
A cristologia que este ensina trata das funções do Cristo.
Toda cristologia é, por conseguinte, história da salvação, e
toda história da salvação é cristologia. Daí o fato de que a formu-
lação estritamente cristocêntrica das mais antigas confissões de fé
nada sabe de uma distinção entre Deus como criador e Cristo como
Redentor, já que criação e redenção são inseparáveis, por serem
ambas atos pelos quais Deus se revela ao mundo. Se partirmos da
obra humana de Jesus e formos até o fim da reflexão sobre o pro-
blema da revelação, fica impossível separar a redenção da criação.
A morte expiatória de Cristo tem consequências cósmicas (Cl 1.20;
Mt 27.51), e o Kyrios Christos presente não se manifesta somente
como Senhor da Igreja mas também como Senhor do universo.
Por isso, do ponto de vista da revelação, não pode haver mais que
um só Logos um só Kyrios um só Deus. Certamente, a distinção
entre o Pai e o Filho se afirma no Novo Testamento, inclusive ali
onde se chegou até estas últimas consequências. Porém, não é uma
distinção entre Criador e Redentor, mas entre a origem e o fim, de
um lado (èí; e EÍÇ, 1 Co 8.6); e o mediador, por outro (ôiá, 1 Co
8.6); entre Deus e sua Palavra que, como tal, é ele mesmo e que,
no entanto, não é ele mesmo, mas que está "com ele" (Jo 1.1) ou,
como o dissemos mais acima, entre Deus, tal qual existe quando
não se volta para nós para revelar-nos sua vontade de salvação, e
Deus tal qual se revela ao mundo. Só durante o tempo da revela-
•426 Oscar Cullmaim

çao, neste tempo que começa com a criação do mundo e dura até o
seu fim, tem sentido a distinção entre o Pai e o Filho. Onde não há
revelação, falar do Logos, isto é, da Palavra pela qual Deus se
revela, carece de objeto. Os escritos dos primeiros cristãos não
falam senão do Deus que se revela, do Deus voltado para o mun-
do; ou seja, da história que se desenvolve desde o "começo", de Jo
1.1, até o''tudo em todos" de 1 Co 15.28; portanto, do instante em
que a Palavra começou a surgir de Deus, como Palavra criadora,
até o instante em que o Filho, a quem o Pai sujeitou todas as coi-
sas, se sujeita, a si mesmo, ao Pai, depois de haver-lhe sido sujeito
tudo o mais.
O Novo Testamento não pode, nem quer, instruir-nos sobre o
"ser" de Deus, considerando-o à parte do ato pelo qual se revela;
as investigações sobre o"ser", em sentido filosófico, lhe são total-
mente alheias.667
Seu propósito é proclamar as magnalia Dei, as grandes obras
reveladoras de Deus feitas em Cristo. E se o Novo Testamento faz
algumas tímidas alusões a uma realidade situada além da revela-
ção, é só para chamar nossa atenção ao mesmo tempo para a dis-
tinção e a unidade entre o Pai e o Filho, e para nos recordar que
toda cristologia é uma história de salvação.

* * *

É possível demonstrar aos homens de hoje a verdade desta


revelação concedida aos primeiros cristãos? Pode-se provar logica-
mente que o centro de toda revelação divina reside na vida terrena
e na morte de Jesus; e que a esta luz toda revelação há de ser con-
siderada como uma história da salvação que, tendo começado
antes da encarnação, continua até o fim? Ainda hoje não há outro
"método" de compreender a cristologia, senão aquele que está
exposto nos capítulos 5-8 do Evangelho de João. Pois para o

É o que desconheceu a maior parte daqueles que criticaram a maneira em que temos
exposto as noções bíblicas acerca do tempo em Christ et le Temps.
CRISTOLÍJGIA DO NOVO TESTAMENTO 427

homem de então era tão difícil, como é para nós, crer no que para
os judeus era um "escândalo" e para os gregos uma "loucura".
Não se pode repetir suficientemente que a dificuldade de crer nela
não se apoia na "concepção mitológica do mundo" já superada da
Bíblia, nem que o progresso tecnológico de nossa época, com a
eletricidade, o rádio e a bomba atómica, tenham feito, de alguma
maneira, que a fé em Jesus, centro da história divina da salvação,
seja mais inacessível aos homens do século XX que ao homem
antigo; pois o "escândalo", a "loucura" é que acontecimentos his-
tóricos datados - "sob Pôncio Pilatos" - representem o centro
indiscutível da revelação de Deus; e que dali tenha que se compre-
ender todas as demais revelações. Isto era também tão difícil de
admitir para o homem de então, como o é para o atual.
Vimos que os primeiros cristãos chegaram a esta compreen-
são por um triplo caminho: primeiro aceitando o testemunho con-
tido navida de Jesus, comos acontecimentos da Sexta Feini Sani;i
e da Páscoa; em seguida, pela grande experiência litúrgica e pes-
soal da.presença do Kyrios, Senhor da igreja, do mundo e tia vida
de cada homem, sendo este Kyrios idêntico ao Jesus da história;
enfim, pela reflexão, efetuada na fé no Senhor presente e no Filho
do Homem crucificado, acerca da relação entre este Jesus Cristo e
todas as demais revelações de Deus. Tais são as fontes da convic-
ção cristológica do cristianismo primitivo. Para o homem de hoje
não há outra. Mas todas as três, fecundando-se mutuamente, são
indispensáveis para compreender quem é Jesus.
ÍNDICE DE AUTORES CITADOS

A Bréhier, E., 336


Brownlee, W. H., 40, 83
Aall,A., 329, 336 Buber, M., 82
Albright,W. R,241 Bultmann, R., 20, 25, 48, 62, 71, 87 8g
Allegro, J. M,. 36 92,98,102,114,120, 166, 174,193,203 ,
Alio, E. B., 313 206, 208, 212, 266, 270, 281, 303, 315
Alt, A., 357 318,319, 329, 330 s., 336 s., 343, 3<)5 s
Andrae, T., 74 354, 358, 361, 367, 372, 38l
Anricíi, G., 314 387 ss. 403
Burchard, Ch., 40
B Buri.R, 71,72
Baldensperger, W., 50, 184 Burney, C. F., 99,100, 337, 388, 403
Bali, C. J., 99, 100 Burrows, M., 83
Bardtke, H., 39,40
C
Bardy, G,, 116,247
Banett, C. K., 94, 100, 388,403 Cerfaux, L., 96, 260, 263, 273, 2!
Barth, K., 20, 221 ss. Charles, R. H., 185, 246
Baudissin, W. v., 263 Chylraeus, 141
Bauer, W., 158, 170, 328, 333, 336, 355, Clarksori, E., 140
371,388,403,419 Conrady, L., 387
Bauerfeind, O., 365 Conzelman, H., 291, 309, 313, 316, 408~
Baumgartner, W., 39, 48 419
Bell, G. K., 23 Cremer, H., 340, 403,408
Bentzen, A., 36, 43, 78, 152 Cullmann, O., 18, 20, 27, 37, 41, 47; 61,
Bernard, J. H., 244 65, 76, 84, 93, 94, 98, 99, 103, 106,129'
Bieneck, J., 358, 362, 363, 366, 371 133, 162, 170, 205, 217, 243, 248, 262^
Bietenhard, H., 179, 295 274, 289, 295, 298, 301, 305, 366, 370^
Billerbeck, P., 36,44,56,92, 100,115,116, 372, 374, 379, 380, 381, 383, 392, 394
220 Cumont, f,, 259
Black, M., 206
Boismard, M. E., 37, 328, 349 D
Bonnard, R, 229
Bonnei', C , 358 Dalman, G., 85, 92, 171,265
Bornhausei', K., 170 Davies, W. D., 81
Bomkamm, G., 25, 60, 62, 193 Debrunnei', A., 158, 334
Bousset,W., 184,189,193,225,358,363,367 Deissmann, A., 23, 260, 314
Braun, F. M., 49, 241,388 Delling, G., 371
430 Oscar Cullinann

Dibelius, Fr., 54 H
Dibelius, M., 313, 316, 375, 408
Diels, H., 330 Haenchen, E., 189, 409
Dinkler, E., 187 Hamp, V., 335
Dittenberger, W., 261 Harlé, P.A., 100
Dix, G. H., 81 Harnack, A. v., 25, 76, 94, 129, 315, 327,
Dobschiitz, E. v., 270 372,376
Dodd, C. H., 23,71, 100, 189,329, 332 336, Harris, J. R., 336, 345
340, 344, 356, 358, 367, 388, 389 Hasse, K. v., 374
Dõlger, F. J., 314, 319,381 Hegermann, H., 84, 85
Dornseiff, 313 Heitiníiller, W., 267
Driver, 80 Hennecke, E., 60, 385
Dupont, C, 184 Henniri",W„ 189
Dupont, J., 340, 349 Henry, R, 233, 237
Dupont-Somtner, A., 39, 40,41, 83 Hepding, H., 189
Díiir, L. 335 Héring, J., 47, 81,106, 129, 148, 152,158,
167,179,220,221,224,230,232,236,245
E
Herrrnann, L., 37
Ebeling, H. J., 88, 165 Hertzberg, H. W., 116
Eissfeldt, O., 39, 152 Hirschberg, W., 73
Elliger, K., 40, 116 Homrriel, E., 275
Engnell, I., 36,43,78, 81 s. Horovitz, J., 73
Euler, K. F., 81 Humbert, P., 84
Huntress, E., 358
F
J
Fascher, E., 32
Festugière, A. J., 332 Jackson, F. J. Foakes, 150, 154, 217
Fiebig, P., 184 Jenni, E., 152
Flemington, W. R, 33 Jeremias, J., 36, 37, 43, 76, 81, 82, 84, 85,
Fohrer, G., 33 93,99, 102, 115, 117, 191
Fõrster, W., 260,261, 262,263,265 s., 285, Jerome, F J., 116
290, 302, 306 ss. Johnson, A. R., 79
Fridrichsen, A., 203, 233
Johnson, S. E., 39
Friedlânder, M., 116, 117
Jonas, H., 332
Friedrich, G., 140, 373
Fuchs, E., 24 Jung, C. G., 189

G K

Gadd, C. J., 355 Kaseman, E., 24, 116, 132, 230, 327
Gall,A. v., 148, 184 Kattenbusch, F., 206, 260
Gastei', Th. H., 40 Kern, O., 332
Goguel, M., 48, 169 Kittel, G., 84, 205, 334, 340
Grasser, E., 71 Kleinknecht, H., 334
Gressrnann, H., 36, 152, 184, 315 Klostermann, E., 61, 88
Grether, O., 263, 335 Kõgel, J., 125, 340, 403, 408
Grundmann, W., 355, 360, 368, 382 Kõhler, L., 314
C-RISTOLOGIA DO N O V O TESTAMENTO 431

Jímeling, C. H., 184 Milik, J. T., 143


Kroll, J., 332 Moc, O., 140
JGimmel, W. G., 71, 72, 88, 89, 90, 92, 95, Molin, G.,40
96, 210, 305, 367, 377 Morgenthaler, R., 298
Kuppcrs, W., 152 Moule, C. F. D., 208
Kuhn, G., 170 Mowinckel, S., 42, 152
Kuhn, K. G., 39, 44, 117, 155, 241 Munck, J., 37, 60
Murmelstein, B., 191, 195
L
N
Lagrange, J., 89, 90, 186, 373, 407
Neubauer, 80
Lake, K., 150, 154,217
Nikolainen, A. T„ 89
Leenhardt, F. J., 91
Nock, A. D., 332
Leisegatig, H., 329 North, C. R., 79
Lerch, D., 382 Nyberg, H. S., 36
Leuba, J. L., 178
Lichtenstein, E., 55, 106 O
Lidzbarski, M., 48, 333, 394
Lietzmann, H,, 48, 183, 198, 200 Odeberg, H., 190,241
Ljungmann, H., 94 Otto, R., 184, 187
Lohmeyer, E., 23,37,55,58,76, 80 s., 88s., Otto.W., 314
94, 157,236,247,282,314,355,372,384
Lohse, E., 83,91,93 P
Loisy, A., 94, 388 Percy, E., 165, 166, 207,212
Liitgert, W., 388 Peterson, E. 48, 275
Lutlii, K,, Ítí4 Pliilometiko, M., 83
Pohlenz, M., 330
M Preisker, H., 404
Preiss, Th., 142, 203, 204, 207, 209, 211,
Maclien, J. G., 385, 387 213,240
Manso ti, T. W., 24, 76, 202, 204, 206, 214, Procksch, O., 334, 343
376 Priimm, K.260, 314, 330, 332
Manson, W., 150, 189, 202, 211,214 Puech, H. Cb,, 48, 189
Mariana, 37
Mai'iès, L., 143 Q
Masson, Ch.,231
Maurer, Chr., 76, 93, 98 s., 104, 338 Quell, G., 263, 334
Medico, dei, 39 Quispel, G., 189
Melanchton, Ph., 424
R
Merx, A., 38, 158
Messel, N., 186, 206 Rabin, Ch., 38
Metzinger, A., 40 Rad, G. v,, 107,357
Meyer, E., 173, 314, 372 Rawlinson, A. E. J., 150, 175, 204, 280 s.
Meyer, R., 34 Rehm, B.,61
Michaelis, W., 89, 186,358 Reicke, B., 292
Michel, O., 116, 125, 129, 170, 235 Reitzenstein, R., 189, 245, 332, 345
432 Oscar Cuilfnann

Rengstorf, K. H., 259,315 T


Resch, A., 387
Taylor, V., 98,106,166,176,206,, 311,375,
Reisenfeld, H., 37, 43, 82, 372
396
Rissi, M., 125, 129
Teicher, 3, L., 40
Robinson, J. A. T., 96, 209
Thurian, M., 400
Robinson, J. M., 159, 163
Tondriau, J., 260
Robinson, W., 33, 79
Trench, 259
Roscher, W. H., 259 Trever, J. C , 40
Rost. L., 38
Rowley, H. H., 32, 75,79, 82, 114 U
Rudolph, W., 74
Usener, H., 355
S
V
Sahlin, H., 344
Sanders, J. A., 83 Vaux, R. de, 39
Schaeder, H. H., 189, 245, 332, 345, 351 Veil, H., 61
Schechtei', S., 38,41 Vermes, G,, 39
Sc li i Me, G.. 122 Vielliauei', Ph., 46
Violet, B., 358
Sclilatter, A., 89, 99, 265, 363, 375
Volz, R, 34,36,37, 152
Schleiermacher, D. F, 251
Schlier, H., 48, 338
W
ScLimidt, H., 114
Schnackenburg, R., 345 Wagner, W., 313
Schneemelcher, W., 385 Waitz, H., 61
Scliniewind, J,, 89, 375 Weiser, A., 114
Schoeps, H. J., 36, 43, 62, 74, 172, 193 Weiss, J., 171
Schrenk, G., 334, 371 Wellhausen, J.,183, 203, 372
Scliulz, S., 242 Wendland, R, 260, 313 s., 355
Schweitzer, A., 71, 72, 179, 375, 376 Wendt, H. H., 244
Schweizer, E„ 83, 90, 91, 99, 102 Wensinck, A. J., 74
Seidel í ri, R, 84, 85, 89 Werner, M., 186
Sellin, H., 36 Wetter, G. R, 355
Sevenster, G., 24 Wettstein, J. J., 407
Simon, M., 115 Williger, 259
Sjõberg, E., 184, 185, 186, 187, 190, 191 Windisch, H., 123, 125, 127, 129, 404
Wobbermin, G., 314
Spicq, C , 116, 125, 129, 140, 141, 337
Wolff, H. W., 76, 81, 92, 107, 108
Spina, F„ 175
Wolfson, H. A., 336
Staerk, W., 38,41,313
Wrede, W., 165, 166, 365, 369, 384
Stamm, J. J., 251
Wuttke, G., 116
Stauffer, E,, 117, 155, 167, 171, 308
Steindorff, 37, 43 Z
Stier, E, 358
Stork, H., 116 Zahn, Th., 172,363
Stuiber, A., 177 Zimmerli, W., 79
Sukenik, E. L., 40
ÍNDICE DE REFERENCIAS BÍBLICAS

ANTIGO TESTAMENTO

Génesis 32.15 - 312 34.3-312


1 - 333, 343 42.7Í. - 95
7.7 -329 JuizÊÍ 45.7s. - 306
1 ss. - 344 3.9; 75 - 313 67.3; 7 - 3 1 2 , 3 9 7 , 4 0 4
26 - 228, 230 s. 64.6-312
27 - 197. 222 7 samuel 66.20 - 407
2 - 197 9.16 - 152 69.2 s. - 95
2.7 - 197, 222 7019 - 312 74 ,i. - 95
3 - 197 24.7-152 72 - 153
3.5 - 233 74.9 - 34
6-193 /7 Samuel 7S.9-312
6.2 - 358 7.12 ss. - 153 80.18 - 183
14- 109, 122 74 - 152, 357 S2.6 - 157
14.13 ss. - 114 28 - 402 S9.3 s. -153
7S ss. - 114 / Reis 7 - 358
79 - 115 18-39 - 402 27 - 358
22 - 82, 404 s. 79.76- 152 102.25 - 306, 397, 405
2S.72 - 243 107.20 - 335
77 Reis 110-114, 119, 120, 121,
Êxodo 13.15 - 313 142, 168, 173, 207,
4.22 ss. - 357 208, 210, 240, 267 s.í
12 - 100 Neemias 292,298,41 8
72.46 - 101 9.27 - 313 110.4 - 114, 123, 135
79.5 - 409 73.7 - 4 0 9 747.15-335
28.41 - 152
29.9 .t.v. - 125 Jrí Provérbios
1.6- 358 1.28 ss. - 337
Levitico 2.7-358 8.22 ss. - 337
4.5 - 125 38.7 - 358
Isaías
Números Síi/nwí 1.2 - 357
9.12- 101 2 - 153, 354,358 9.6-357
2.7-94,357,367,396 72.2-312
Deuteronômio 8 -226 77/0-312
7.6 - 409 8.4 - 183, 246 79-20-313
fi.J - 2 1 4 24.5 - 312 30.7 -357
74.2 - 409 27.7-312 40.3-341
18.15-35,60,63 29.7 - 358 42.7 -93,94,95,101,370
7.5 « . - 38 33.6 - 335 7 ss. - 77
434 Oscar Cullniaim

6-92 12 1 77, ,1, I I 1 , 123 7 - 120, 190, 218,417


43.2 - 95 55.10 s. -335 7.13 - 184 ss., 205, 210,
3; 11 - 312 60.16 - 312 219, 245, 353
44.23 - 306 62.11 - 312 13 s. - 184,227
45.7-312 63.8-312 15 ss. - 184
/ / -357 76 - 157 10.5 ss. -401
75.2/ - 312
49.1 ss. - 77 Jeremiíí7.í Oséias
3199 3.22 - 357 11.1 -357
6-36 M<¥ - 312
S-92 30.5 ,v. - 153 7oe/
50.4 ss. - 77 31 - 9 2 2.25 ss. - 33
52.13 -77', 102, 107, l i I , 31.20 - 351
236 5<S. 7 7 4 402 Miquéias
53.49 ss. - 77 7.7 - 312
53.1 - 101 Ezequiel
1 ss. - 107 2.1 - 183 Habacuque
2-84 28.2 .«. - 394 3.18 - 312
53.3 - 85 37.21 ss. - 153
4 917 s. 2VíCíiníi.T
5-93 DOII/ÊÍ 9.9v. - 154
6-105 2.47 - 265 73.9 - 402
7-100 3.79 - 231
S-88 25, 28 - 358 Malaquias
70- II1 5.2.3 - 265 7.6-357
/ / - 102,107 6 - 394 4.5-36

ESCRITOS EXTRACANONICOS
1 macabeus 24.1 ss. - 337 4 Macabeus
4.39 3 312 48.10 - 43 6.29 - 123
44 w. - 34 7 0 ss. - 3 6
14.41 - 34 57.7 - 312 SibUiims
5.256 ss. - 36
2 Macabeus Sabedoria de Salomão
15.13 ss. -38 2.13 ss. - 9 3 Enoque (etíope)
7.26 - 337 37 ss. - 185, 192
Judite 16.7- 312 46- 186
9.11 -312 7& 75 - 335 48s. - 186
48.2, 6-186
Baruque Salinos de Salomão 3 ,M. - 199
4.22 - 312 13.9- 357 70 - 187
77j. - 754 52-186
Eclesiásiico 77.27 ÍÍ - 154 52.4 - 187
1.1 ss. - 337 27 - 157 62 - 186
4.10 3 357 18.4 - 157, 389 62.7 - 199
C - R l S T l )!.<)(i| A tJO N<>V<> I I-S"l'AMIÍN'|'<l 435

69 1 186 13.32 1191, 858 ./('.V /íí.3 .' K>


70.1 - 199 37; 52 - 358
71 - 186 14.9 - 358 l'/i/il (/c .-Ir/iíC <•\Y<I
83 .«. - 192 I? .(.V. l'M . P' 1 !
90.31 - 37 Apocaiipse de Bariu/tie
105.2 3 358 13.1 ss. 7 37 Ptiflillirnli' Ji' l>tiiii,isi !•
29s. - 154 12.23 - M 7
Enoque (Eslav.) 40 1 154 14.9 - 117
30.11 ss. - 191, 195 72 ss. - 155 /9./0 - 117
20. 7 - 117
Ascenção de Moisés Testamentos dos Doze
9.1 ss. - 42 Patriarcas Textos de Qumrtm
fíub. 6.7 ss. - 117 7 QpHab li: 1 s. - 41
4 Esdras Sim. 7.2- 117 8 ss. - 41, 117
6.58 - 389 Levi 8.ll ss. - l17 Vil: 1 s.; 5 - 41
7.2Ó u , - 155 75-42 X: 9 - 4 1
25-191 76-42 7 Qso 2; 72 ss. -117
2S s. -358 18 - 117 1 QS 4: 23 -187
77 JJ. - 155 Naftúli 5 - 236 9.11-41, 44, 117, 155
75-155,185,315 Benj. 5.8- SI 11111-33%

NOVO TESTAMENTO
Mate tis 77./ M - 4 7 76.13 -205
1.1 ss. - 170 ss., 385 5 - 47, 59 74-38
1.16 - 386 4s.. -210,212 7<5 -363,359,362 s., 380
27-316,319 5-70 76 ss. - 362,373
2.2 - 289 8 ss. - 44 17 - 3(>3 ss., 375,379,390
5.11 -47 11 - 5 4 17 ss. - 3 6 6
75-94 74-59 78 - 296
4.3 ss. - 362, 364 78 Í. - 55 17.10 ss. -45
8s. - 163 79-214 72 - 43, 59
6.9-378 25 s. - 376 18.18 ss. -211
7.71 -215 27-363,367,373 s., 390 20-277
21 - 266, 268 72.6 - 118 79.77- 126
28-415 77-93 28 - 297
29-415 78 ss. - 77, 97 27.9 - 175
8.76 Í. - 97 25 - 175, 415 701, - 58
20 - 203,213 28 - 71, 110 75 - 175
27-415 57 s. - 203 57-374
9.8-415 39 s. - 89 46-52
27- 175 41 s. - 212 22.22-415
33 -415 13.54-415 4-/ - 292
10.17 ss. -287 14.33 - 362 s. 23.37-53
57-415 75.22 -75 24.27-206
35 ss. - 2 1 2 57-415 37 .I.I. - 206
436 Oscar Cuibnann

25.1 ss., 14 ss. -208 8.27 ss. -22, 156, 162 s.,
BI ss. - 209 s. 212,367,373 7.2-341
26.25 - 158 2S-58 77-46
28 - 91 29 - 162,365 32 - 359,373
63 - 365 30 - 162 35 - 373
64- 157, 292 Si 9 90, 111 47-316,409
27.11 - 3 1 , 2 8 9 32 - 102,341 76-46
37 - 289 33 - 128, 162 s. 2.4 - 386
42 - 289 3S - 205 s., 240 77 - 316 s.
43 - 365 9.2 ss. - 37, 372 47-415
51 - 139, 425 7 - 354,363 52 - 130
54 - 363 77 .t.t. - 45 3.2 - 34, 44
75-48,50
28.18 - 290, 373 73-43,59
22-94
19 - 297 57-90
70.78 - 126 23 - 385
23 .t.t. - 170, 386
jtZí/itvj.í 24-415
4.3 - 362
1.1 - 3 2 7 , 3 6 5 , 3 8 4 52-415
5 .t.t. - 298
77 - 93 .!., 361 33-90
9 - 362
)2 s - ^ W 38 - W , ^í>
22, 32-415
22-415 4 5 - 9 2 211
5.9-415
24 - 372 47 .i, - 175
7.76 - 52
27-4/5 11.3 - 269 s. <?,55 - 415
35 - 369 78-415 9.8 - 57
2.2 - 341 12.1 .t.t. - 3 7 7 , 3 8 3 7S-365
7-369 6-374 43-415
7 .t.t. - 3 9 4 7-90 70.18 - 71
10- 111 75 - 128 77.2 - 274
12- 415 35 ss. -114, 119, 172 s., 74-415
/S ,(.Í - 88 268 s., 367, 381 72.70 - 204 s.
19 s- 312 36 - 292 50 - 89, 95
27,(. -201 s. 13.22 - 43 73.3/ .«. - 88
3.// - 3 6 3 , 3 3 0 32 - 374, 376 77.22 .t.t. - 206
28 - 203 14.8 - 90 18.38 - 175
3/ .ç.v. - 175, 378 24-91 20.42 - 292
33 - 120 55 ss. - 93 22.20 - 91
4.14 • 341 55-118 57-90
4/ -415 67 - 359, 362 s. 67 - 365
5 . 7 - 3 6 3 s,, 330 67 s. - !S6, 159 <57 ss. - 159
/ J -4-15 62 - 177, 206, 240,292 69- 241, 292
20-415 75.2 - 289 23.3 - 289
41 - 280 2 .t.t. - 156, 161 4 - 161
42-415 9; 72 - 289 37 s. -289
6.2-415 78.26 - 289 24.5 - 137
4-52 29 ss. - 362
14 .t.t. - 53 s.,58 32 - 289
75-57 34 - 281,372 1,1 - 2 0 , 7 3 , 2 3 7 , 2 4 3 , 3 0 7 ,
57-415 39-363,384 342, 347, 401 s,, 404,
7.57-415 76.19-292 425 s.
CRISTOLOGIA DO NOVo TESTAMENTO 437

1 ss. -222, 327 ss., 341 6.14 599 13.13 3 269


J - 18 14 s. - 43 57-243
8- 50, 341 15 - 166 14.2 J".T. - 141
77-344 27-244 6-341
13 - 387 .Í2 - 60 12 - 303
14- 245,3293351,424 s., 59 ss- -208 13 2 282,303
389 53 - 244 16 - 142, 392
14 ss. - 245, 350 54 - 208 26 - 239, 374
75 - 50 69 - 377, 390 28 - 349
77-60 7.14 ss. 3 378 330 126
IS 3 389, 202 16- 393 75, Jó - 2 8 2
20-50 77-395 16.12-376,390
27-34,50 IS - 126 24 JW. - 2 8 2
25-51,341 27-389 28; 32 - 393
2 9 - 9 5 . 99 s., 318 59-296 77-141
29xs. -95 s. 47 ,i, - 3 8 9 17.5 • 398
56-95,99 s. 8.1 ss. - 4 2 6 9-141
45-389 72 ss. - 378 77 ss, - 141
49-2.S9 í i ss.- ViA !4 - 3AQ
57-243,350 76-393 77-141,340
2.7 ss. - 9 8 2S-393 24-141
79-118 57-340 7&7J-140
19 ss. - 98, 350 42 - 393 33 - 289
27-118 45-340 33 ss. - 289
22-340 46-126,142 Jó -101
.3.2-60 57 - 340 39 - 289
13 - 242,387 53 - 394 79.5 - 289
74 - 98, 243 56 - 394 8 - 340
76 - 98, 389 56 Í Í . - 393, 394 74 - 289
7S-67,389 9.4-391 79 ss. - 2 8 9
28,30, 31 -50, 51 55-244 25-140
4.79-38 70.S-84 .JO -124
27-351 11 - 99 20.13 - 3 0 3
23 - 279 72 - 84 28 - 303, 390
25-38 77v. - 83, 99
2í> - 1 6 6 IS - 84 /tw.r dos Apóstolos
54-391 24-390 1.7-377
5S-241 50-349,393 /O - 2 9 5
42-318 33 -395,394 2.54-292
5-394 56-141,393 56-237,268,273
5 ,w. - 428 37 s. - 395 46 - 273
5.77-201,391 .55 3 395 .í. 13 -102
79, 20-393 11.41 - 3 9 2 74-102
24-340 47-119 22-36
27-208,243 72,13 -289 26-102
50-394 25-243 4.25; 30-102
30 ss. - 394 38 - 101 5.31 - 292, 317
57.w. -341 48 - 208 6 ss. - 417
438 Oscar Cullmann

7.37 - 34, 60 23 - 298 // Coríntios


52 - 102 29 - 135, 232 1.2 - 400
55 - 292 32 - 382, 392 5-407
56 - 205, 208, 240 .JV - 292 20 - 282
8.4-341 9.5 - 177,408 22 - 298
4 ,(,i. - 341 70.9 - 284 5.78-231
26 ss. - 102 72 - 290, 406 4.4-231
34 199 76 - 105 5-302
36 ss. - 379 72.2 - 231 5.5 - 298
9.14; 21 -270 75.7 - 297 70 - 208
20 - 396 / .(.(. - 300 79 - 342
10.36 - 290 74 - 228 27 - 105, 126
42 - 208 14.10 2 207 11.57 - 407
44 -341 15.21 - 105 72-S - 406
Jj\2ó -151 13.13 -19
27.(. - 3 3 7 Coríntios
72.20 ss. - 394 1.2 - 270,406 Gíí/cíM.Í
73.J - 3 3 9 - 383 3.27 - 228
33 - 396 78 - 342 4.4 - 382, 387
16.6-341 2.8,(. - Jj7 4 j.i. - 360
77.7-288 4.5 - 208 6 - 274
29 - 348 8 - 30*. 6 js, - 383
57 - 2(Ja 5.7 - 100, 105 6.6-341
6.2 s. - 298
20.28 - 409 3 - 302
27.70-33 8.5.!. - 260 Efésios
íJ.l-f - 102 1.3 - 407
6 - 1 8 , 222,307, 324,406
9.76 - 369 /<? - 299
/ff>/H<MK« 74 - 298
70.26 - 291
J,j - 170, 178 11.25 ss. - 277 20 - 292
7.5 s. - 273, 354,408 24-91 22 - 299
4 - 237, 307 25 - 132 s. 4.11 - 3 3
8-282 72.5 - 284, 286 75 - 299
/§ JM. - 328, 344 28 - 33 24 - 228
25 - 427 13.7 - 279 5.23 - 318
3.5 - 207 15.3 - 106, 110
25 - 107 5-103 Filipenses
4.25 - 105 72 ss. - 135 2.5 ss. - 219
5.70-382 75.20 - 135 2.6-231 s„ 235,419
72 ss. - 106,110,134,219, 27 - 126,226 i a.. - 106,208,213,232,
223, 224, 230, 24 - 295 233,237,250,283,
235, 249 25 - 290, 292 284,350,371,406
74-218,234 26 - 130,295 7 - 106, 232,246
79-235 28 - 324, 382, 426 8 - 130
7.25 - 282 35 ss. -55,179, 298 9 - 269, 306
8-287 45 - 220 9 Í. - 130
8.11 -298 45ss. - 222, 223 2.70 - 297
74 ss. - 3 6 0 , 3 8 3 49 - 232 10 s. - 297
75 - 274 76.22 - 274 3.5 - 171
CRISTOLOGIA DO NOVO l i s i AMI-,NTO *l 11*

20-312,318 Tito 70 - 141, 132, 14.'


21 - 232 1.3 - 315,409 13 - 292
2.70-209,409 13 s. - 136
Colossenses 75-319,409 74 - 125, 132, 131, I i /
1.13 2 294, 383 5.4-315,409 57 - 137
14 s. -383 77.16 - 141
14 ss. - 298 Hebreus 12.2 - 131
75-223,231,406 1.1 s. - 6 8 , 3 9 7 5-130
15 s. - 406 7 ss. - 342 22 - 137
16- 18, 307,349 2-349 24 - 121, 133
IS - 135, 299 2 s. - 349, 398 13.8- 137, 139
20 - 425 5-292
2.2 s. - 408 5 M . - 395 / Pedro
9-406 8- 395, 398 1.19- 100, 127
10 - 299 S Í. - 395, 296, 297 .1.21 xv. - 103
3.1 - 292 70 - IS, 131, 139. 3<)7 22 - 126
9 s. - 228 10 ss. - 324, 397, 405 5. /5 • 306
70-231 2.5 ss. - 246 /.M - 126
77-282 6-226 .'.' 126, 292, 293
4.5-341 70 - 125, 132 •1. *> ,?()8
/ / - 125
/ Tessalonicenses 17 s. - 131 2 Pttho
1.1O 3 319, 382 3.6 - 397 /./ 311, 'HW
5.72 - 282 72 - 137 .( .148
J3-207 4.3 ss. - 391 y / 312
4.15 ss. - 3 1 9 74 - 40, 397 /íi - 40'J
77-218 15 - 126, 127, 128 77-396
5.7s, - 125 2.20 - 312
2 Tesalonicenses 8- 130, 397 5.2, 7 5 - 3 1 2 , 4 0 9
7.72-408 9 - 125, 134
2.6 ss. - 60 6.20 - 125, 135 7 /«TO
3,2 M. - 282 7 - 115, 121, 122 7.7 - 227
7.3 - 136, 398 1 ss. - 3 5 1 , 4 2 4
7 Timóteo 5 - 137 2.7 - 142
7.7-315,409 24 - 136 23 - 380
2.2 - 301 25 - 136, 137, 142 3.5; 7- 141
3-315,409 26 - 126 4.2 ss. - 422
5-121 27 - 123 9 - 389
5.76-293,409 28 - 125 74-318,395
4.70-315,409 8.1- 292 75-380,395
6.15 - 290 6-121 5.20 - 404
9.72 - 132 Judas
2 Timóteo 74 - 126, 137 25-317
1,10-295,317,319 15 - 121,133
2.72 - 301, 302 24- 142, 137 Apocalipse
22 - 270 26- 132 1.5- 135, 296
4.7 - 208 28 - 123, 138, 210 6-302
S-208 10.1 ss. - 124 75 - 140, 245
440 Oscar Culbnctnn

13 ss. - 246 12 - 47,296 li-, - 409


18- 137. 296 / / . j n . - 37 7.? - 332
2. IS - 396 12.3 n . - 246 20.1 ss- 302
3.14- 307,349 5-296 4-179, 297
20 - 278 13.1S 2 262 4 s.i. - 297
21 - 292 14.14 - 245 14 - 295
4.11 -402 77.74 - 289 22.9 - 33
5.10 2 297 79.5; 6 - 2 9 6 20 - 276

ESCRITOS EXTRA-CANONICOS

DíddCjut 8.1 - 109 Epístola de Policarpo


9.2 - 105 72.70 - 292 2.12 20S, 293
10.2 - 105 J ,t,t. - 18
6 -276 //jíít/fJ
77 ,çi. - 33 £ í 1.1 - 3 1 8 , 4 1 0 Martírio de Policarpo
7.2-410 8.2 - 262, 288
/ Clemente 75.3 - 4 1 0 79.2-318
16- 108 18,2 - 19, 95,381
36.5 - 292 79 3 - 4 1 0 Pseudoclenienliiu is
59 í i . - 104 M<tgn. 1.1 - 318 Hom. ff, /6 i. - 65 s.
8.2 - 338 Il7, 20.2 - 35
// Clemente 73,2-410 /fcc. 7 - 3 6
1.1 - 208 Tra.ll. 9.1 - 178, 293 (50-47
Filad. 9.2 2 318 // 22 - 35
Epístola de Bariiubé Esm. 1.1 - 19, 178,381 /// 67 - 66
5.2 - 109 7.7-318
7.6 j.t. - 109 ss. 3./-410

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