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2a Edição

UNIVERSIDADE DE PASSO FUNDO

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2a Edição
2014
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Cinara Sabadin Dagneze


Daniela Cardoso
Graziela Thais Baggio Pivetta
Revisão de textos e revisão de emendas
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Projeto gráfico e produção da capa
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– À Universidade degli Studi di Verona, pela infraestrutura


colocada gentilmente à disposição, em particular ao
Departamento de Disciplinas Históricas, Artísticas e Geográficas.
– Aos professores Dr. Emilio Franzina e Federica Betagna pelo
acompanhamento, disponibilidade e zelo acadêmico
– gratidão e reconhecimento.
– À Universidade de Passo Fundo, em especial ao
Programa de Mestrado em História, por ter me propiciado o
estágio de pós-doutoramento.
Sumário

Apresentação............................................................................................ 10
Considerações iniciais............................................................................. 20
Nossas intenções............................................................................................. 20

Primeira parte
As cercanias da memória: conceitos, noções e campos afins / 27
CAPÍTULO 1
Uma guinada historiográfica?................................................................ 28
Passado e presente intencionalizados.......................................................... 32
Capítulo 2
Memória e lembrança.............................................................................. 37
Memória como fragmento histórico-social.................................................. 40
Capítulo 3
A memória no cotidiano.......................................................................... 44
Capítulo 4
A dimensão fenomenológica da memória............................................ 50
Memória e experiência de percepção........................................................... 57
Memória e vida cotidiana na perspectiva da fenomenologia................... 60
Capítulo 5
Memória, modernidade e mudança social........................................... 62
Capítulo 6
Memória e pós-modernidade................................................................. 71
Capítulo 7
Memória e patrimônio............................................................................. 81
Monumento/documento................................................................................ 83
Sociedade, tradição e suas simbologias....................................................... 91
Mobiliário social.............................................................................................. 95
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
7

Capítulo 8
Tempo, espaço e experiência da memória.......................................... 101
Memória e identidade.................................................................................. 103
O tempo na memória.................................................................................... 105
Memória e experiência................................................................................. 109
Memória, tempo e poder.............................................................................. 118
Capítulo 9
Memória e oralidade: intenções, problemas e expectativas............. 122
Buscar a totalidade........................................................................................ 123
Sua base histórica.......................................................................................... 123
Pressupostos teóricos.................................................................................... 125
Os pressupostos da narração....................................................................... 128
Dimenticare per vivere Intencionalidades pessoais e históricas................ 133
Lembrar e esquecer: dinâmicas dialetizadas............................................. 135
A consciência histórica, social e individual se reconstrói sob
um fundo de esquecimento......................................................................... 138
Selecionar memórias..................................................................................... 140
Memória e história........................................................................................ 142
Algumas precauções..................................................................................... 147
O manuseio e a concepção de documento oral......................................... 150
Humanizar a história?.................................................................................. 158

SEGUNDA parte
Tempos, espaços e signos:a correlação entre memória coletiva e
individual no processo de lembrança / 162

Capítulo 10
A natureza social do pensar e do relembrar....................................... 163
Premissas........................................................................................................ 163
A dimensão coletiva de memória em Halbwachs.................................... 165
A linguagem como manifestação do coletivo........................................... 168
O entourage sociale e a dependência da memória individual................... 174
Contratualidade cultural e histórico-social............................................... 178
O encontro/desencontro entre memória social e coletiva....................... 182
Memória e o quadro familiar....................................................................... 189
Espaços e tempos do quadro coletivo........................................................ 192
8 João Carlos Tedesco

Capítulo 11
Memória e velhice (fragmentos de empiria)...................................... 195
A afetividade na memória............................................................................ 198
Capítulo 12
Ambiguidade de memória: o laudatário, o ufanismo e os
ressentimentos........................................................................................ 201
O sentimento do vivido em temporalidades entrecruzadas................... 205
Capítulo 13
A objetualidade de memória grupal................................................... 208
Memórias de quadros simbólicos............................................................... 210
A genealogia de um passado coletivo........................................................ 211
Exteriorização pública e local de memórias coletivas e individuais..... 214
Temporalidades contínuas........................................................................... 216
Desejo de transmissão, de experiência e de visibilidade........................ 219
Fidelidade, experiência e filiação de memória.......................................... 229
Capítulo 14
Filtragem de memória........................................................................... 235
Dialética entre memória, esquecimento e silêncio................................... 236
Memória como valor de uso e o uso como valor simbólico.................... 240

TERCEIRA parte
Ressignificação de memórias / 247

Capítulo 15
Memória, cultura e identidade étnica................................................. 248
O cenário empírico: fonte e base de memória de idosos......................... 256
Capítulo 16
Ritualização verbal e não verbal da cultura na memória................. 275
Memória e etnia............................................................................................. 276
A centralidade da família............................................................................. 280
O mundo do trabalho................................................................................... 282
O ambiente de vida social e o espaço construído..................................... 284
A força do simbólico..................................................................................... 287
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
9

Os tempos, sua fragmentação, heterogeneidade e hierarquia................ 291


O espaço e o momento do lúdico................................................................ 293
O papel da narração na vida cotidiana...................................................... 295
Capítulo 17
Estragos e reconstruções do tempo na memória / 299
A importância e a necessidade de transmitir............................................. 299
Marcos de referência de mudança.............................................................. 308
Lembrança de afazeres, fazeres e saberes.................................................. 314
Memória da migração para o urbano......................................................... 321
Memória de gênero....................................................................................... 330
Considerações finais
Referências.............................................................................................. 344
Idosos entrevistados.............................................................................. 357
Apresentação
O livro do professor João Carlos Tedesco, que ora apre-
sentamos, traz em si a tessitura das redes sociais pelas quais
a cultura, como um texto do passado, tem sua dimensão mais
dinâmica e, ao mesmo tempo, mais complexa para o trabalho
do pesquisador. A sua incursão nessa rede é apresentada por
meio de uma tentativa de “cercamento monitorado” da me-
mória. Noções como lembranças, esquecimentos, identidades
são discutidas de forma peculiar, lastreadas em larga revisão
de literatura, para demonstrar que existe um sentido quase
“clandestino” na produção simbólica do passado.
A pergunta que o autor apresenta no livro diz respei-
to à busca desse sentido clandestino: como é possível de ser
reconstituído o sentido da memória, não da memória em si,
mas, sobretudo, as atribuições e as tarefas dela no presente?
Para ir ao encontro de respostas, Tedesco organiza um mag-
nífico canteiro de obras, no qual os materiais básicos são a me-
mória como passado, a experiência como o fazer e o refazer e o
significado como sentido. Para o autor, esses materiais básicos
são apenas um primeiro passo heurístico e estruturante, forman-
do, assim, os sistemas de referência dos conteúdos passíveis de
serem reconstituídos. O segundo passo é envolver tais noções com
categorias como espaço, tempo e movimento, que, por sua vez,
lhes emprestam a dimensão fenomenológica e a possibilidade da
mudança social no horizonte das expectativas do tempo presente,
cujo pano de fundo é uma revisão dos pressupostos da obra de
Halbwachs.
Assim, entre as formas mais sublimes do conhecimento
está aquela que possibilita conectar passado-presente por meio
de vestígios. Nesse processo, as ciências humanas podem reve-
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
11

lar a condição humana naquilo que ela tem de mais fascinante


e de mais temeroso.1 É entrar – com o perdão do vício – para
dentro do “pianíssimo” mais íntimo do cotidiano das pessoas
e lá encontrar o sentido e o significado da ação, como diria
Max Weber.
Nessa perspectiva, a noção de experiência assume condi-
ção especial nos estudos históricos. Não basta apenas a cons-
ciência daquilo que esteja mudando e que fora condenado às
trevas pela razão histórica moderna; de que estamos vivendo
num tempo de experiências multiculturais, multitemporais
e de interesses pluriorientados em termos de conteúdos, os
quais nos podem deixar perplexos frente aos nossos desgasta-
dos modelos explicativos.
Essa tentativa de caracterização da cultura historiográ-
fica é uma marca cultural contemporânea, identificada aqui
como modernidade tardia. É certo que tais movimentos tem
ampla receptividade nas disciplinas sociais, e nem poderia
ser diferente. Entretanto, já entendemos que o conhecimento
do passado como meio de redenção do homem no futuro pro-
duziu monstros terríveis, e o Século XX é exemplar, bem como
silenciador da utopia. Talvez o passado só exista mesmo como
experiência, como imaginação e como afetividade presentista,
cujas leituras são aquelas que nos remetem para o seu funda-
mento metodológico do como é possível ser reconstituído tal
sentido clandestino.
Dessa forma, entendemos que esse é o momento ou tem-
po de experiências que podem possibilitar a problematização
do presente pelo passado no sentido de reconstituirmos as
ideias de futuro no passado e, sobretudo, de compreendê-las
como os argumentos para uma cultura da mudança. Nessa
orientação, a cultura como texto representativo das experiên­

A busca desse sentido é o propósito central da obra de DOSSE, François. O


1

império do sentido: a humanização das ciências humanas. Bauru: Edusc, 2003.


12 João Carlos Tedesco

cias humanas somente se deixa explicar e compreender a par-


tir de três funções específicas. Vejamos:
a) cultura como o processo de generalizações de motivos,
de ações e de representações de perspectivas de futuro
no sentido de orientações dos objetivos individuais e
coletivos para o futuro agir;
b) cultura é a soma de ações orientadas em modelos de
explicação da experiência, integrando os aspectos perti-
nentes à multiplicidade, à heterogeneidade da conduta
de vida e às relações sociais;
c) cultura é a representação exemplar de critérios de
regulamentação de experiências que, por sua vez,
sedimentam e estabilizam a construção de modelos
legítimos e normativos da práxis social.
Essas três possibilidades, como potencialidades da ex-
periência histórica, podem agora ser diferenciadas em um
número extraordinário de funções específicas da cultura pro-
priamente dita, dentre as quais podemos destacar as de mo-
tivação, de orientação, de satisfação, de disciplinação, de dife-
renciação, de recrutamento, de estratificação, de legitimação,
de integração e, finalmente, de significação.
Metodologicamente, essas funções envolvem um am-
plo espectro de leituras das experiências. Pois bem, em que
podemos perceber o envolvimento da experiência? Segundo
a leitura de Tedesco, podemos perceber o envolvimento não
apenas na materialidade da experiência, mas, sim, em estru-
turas de representação, tais como a lembrança, a memória,
a tradição, o simbólico, o imaginário, o psicológico, o local da
cultura e, no caso da historiografia, em textos como resultado
da racionalização e estetização das experiências.
De outra forma, não é desprezível que a situação atual
mostre que a saturação de perspectivas seja concebida como
a condição maior de produção de sentidos. De forma que os
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
13

custos da modernização seletiva não seriam mais percebidos


como obstáculos metodológicos, mas como recursos, como a
própria matéria-prima para sua (re)utilização por meio dos
esforços da metanarrativa, da metaficção ou, ainda, da inter-
textualidade.
Portanto, o tempo de experiências presentes, percebido
através da fascinação histórica e do envolvido tanto pela esté-
tica como pelas funções do conhecimento histórico, é um cam-
po fértil, mas também traz consigo alguns desafios, tais como:
a analogia entre a reconstrução da biografia e a interpreta-
ção crítica feita por esta às estruturas simbólicas; a ciência
não desempenharia mais seu papel de motor do pensamento,
pois essa função estaria ocupada pela política; a história com
plausibilidade científica não pode ter mais a função de propor
identidades, pois a historiografia é o resultado de racionali-
zações metodológicas; a história, para poder dar conta des-
sa busca de significações sobre experiências, precisa ampliar
seus lastros de conteúdos.
Esses desafios são os pontos com os quais o autor se de-
bate na segunda parte do livro, chamando atenção para a
ambiguidade da memória, os filtros, os signos vinculados a
questões como a velhice, a identidade étnica e a linguagem.
Tais desafios orientariam as possibilidades de reconstituição
do passado, primeiramente, sob a chancela do “tal como deve-
ria ter sido”. Essa perspectiva traz consigo o sentido de uma
leitura de significado romântico de como queríamos que fosse.
Entretanto, nós já compreendemos que esse passado nunca
existiu nessa forma a não ser na afetividade mais subjetiva.
Portanto, resta-nos a leitura do passado, que nos remete para
o sentido metodológico do como é possível ser reconstituído.
Ficam, para o(a) historiador(a) de hoje, os desafios im-
postos pela economia política dos significados ante aquilo que
Walter Benjamin referia sobre o conceito de história: o que
14 João Carlos Tedesco

chamamos de progresso é essa tempestade. No entanto, fica a


consciência de que aquilo que denominamos de “conhecimento
histórico” está situado entre o fascínio da estética e o temor de
suas respectivas funções no contexto de crise da razão, quan-
do não de sua ausência dentre os critérios de plausibilidade.
Essas são algumas das razões pelas quais a leitura do
livro é profícua. Entretanto, torna-se necessário que tal noção
tipológica de cultura precise ser construída em debate perma-
nente com o seu objeto de estudos. Isso, no sentido metodoló-
gico, pode excitar o problema que geralmente aparece com o
uso de modelos. Dito de forma mais evidente, isso quer dizer
da facilidade de cairmos na vala do reducionismo ou ficarmos
presos nos picos do relativismo.
Assim, o conteúdo perspectivado no livro forma, simulta-
neamente, os elementos da constituição da metodologia com
a sua respectiva aplicabilidade. A utilização dessa orientação
e de suas respectivas funções, em seu conjunto, está exata-
mente no fato de elas conjugarem, por um lado, a ampliação
do horizonte analítico do que seja seu objeto e, por outro, dis-
ciplinarem as concepções interpretativas dentro dos parâme-
tros de plausibilidade do conhecimento.
Então, desde já é preciso desvincular a concepção sim-
plista de modelo e de que este modelo – a revisão de Hal-
bwachs – poderia ser um guia pelo qual se deveria pautar e
encaixar uma determinada realidade. Além disso, devemos
eliminar a concepção de modelo que possa configurar-se em
um modelo da realidade, tornado agora objeto de estudo. Des-
cartada essa crítica inicial, a ideia de modelo a ser utiliza-
da aqui é entendida como um instrumento de trabalho que,
orientado teoricamente, é capaz de estabelecer significados
entre dados.2
2
Conforme FONTES, Virgínia. História e modelos. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAIN-
FAS, Ronaldo (Org.). Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997. p. 355-356.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
15

Tomando-a dessa forma, ela possibilita uma dupla ope-


ração cognitiva: por um lado, têm-se os procedimentos heurís-
ticos necessários para a construção do próprio modelo através
da constelação de conteúdos; por outro, mas que está rela-
cionado a este, o modelo deve ter implícitos os critérios bási-
cos de sua própria aplicação.3 A segunda parte do livro é um
exercício, por excelência, da postura metodológica do autor.
Com essa orientação, argumentamos a favor do fato de que
o trabalho metodológico, com uma ou mais revisões, sempre
deve apresentar esses dois aspectos vinculados para que, por
meio dele(s), se consiga estabelecer as diferentes articulações
de um ou de um grupo de fenômenos. E, mesmo nesse caso,
a utilização de modelos ainda não é garantia para resultados
eficazes.
Assim, a questão pertinente do conhecimento preci-
sa ser inserida numa problemática mais ampla que lhe dê
legitimidade frente a outras questões relevantes no estudo
do passado. Não temos dúvidas de que a problemática deve
partir de questionamentos e debates atuais, que, ao nosso
ver, estão situados num cenário de polêmicas. A primeira en-
gendra os elementos da constelação de fatores oriundos de
debates sobre a história desde a sua constituição como dis-
ciplina, mas que, no tempo presente, assume importância
fundamental no mapeamento do debate pela sua dimensão
cultural.4 Tais fatores podem ser apresentados com as se-
guintes formulações: o que estou fazendo quando escrevo
história?;5 devemos fazer tábua rasa do passado?;6 a histó-

3
Idem, p. 356.
4
‘Este debate está dimensionado por vários autores em CHAUVEAU, A.; TÉ-
TARD, Ph. (Org.). Questões para a história do presente. Bauru: Edusc, 1999.
5
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. Rio de Janeiro: Forense, 1982.
6
CHESNEAUX, Jean. Devemos fazer tábua rasa do passado? São Paulo: Ática,
1995.
16 João Carlos Tedesco

ria tem um sentido?7 ou, ainda, com Josep Fontana, quando


ele discute a história depois do fim da história.8
É bem verdade que tais perguntas são fáceis de serem
formuladas em nossa época, caracterizada por um certo des-
crédito da razão – instrumental –, quando não de sua ausên-
cia. Mas são perguntas de difícil debate na tentativa de se
vislumbrar soluções metodológicas mesmo que provisórias.
Mesmo com conteúdos e posturas teóricas diferentes, todas
essas formulações carregam em si uma crítica contundente,
a qual toca no nervo epistemológico-metodológico das nossas
disciplinas, causando alguns tremores, por um lado.
Por outro, também não basta apenas a consciência de vi-
vermos numa época de profundas mudanças socioestruturais,
de novas configurações nos significados do conhecimento, de
experiências (multi)culturais e de pluralidade de tempos his-
tóricos combinados. Esse aspecto, num primeiro momento,
nos deixa perplexos ante a incapacidade de explicação de nos-
sos modelos analíticos.
A época é de revigoramento do significado estético cultu-
ral e de inserção hermenêutica e fenomenológica na compre-
ensão de ações do passado através da nova história cultural.9
Dessa forma, está sendo rompido o exclusivismo de uma ver-
dade científica sobre o passado. Aliás, na argumentação de
Hans-Ulrich Wehler, caracterizando o pensamento histórico
na virada do século, a nova história cultural apontaria para
um déficit teórico, e essa seria uma tendência impregnada de

7
BODEI, Remo. A história tem um sentido? Bauru: Edusc, 2001.
8
FONTANA, Josep. História: análise do passado e projeto social. Bauru: Edusc, 1998.
p. 267s; Idem. História depois do fim da história. Bauru: Edusc, 1998.
9
Em termos gerais, tais aspectos são discutidos em diversas perspectivas, as
quais carregam em si a característica propositiva. Ver SEMPRINI, Andrea.
Multiculturalismo. Bauru: Edusc, 1999; CUCHE, Denys. A noção de cultura nas
ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999; WARNIER, Jean-Pierre. A mundialização
da cultura. Bauru: Edusc, 2000.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
17

abstinência política.10 Tal afirmação é dura, porém, se coloca-


da em confronto com as possibilidades de diferentes leituras
a partir da memória, pode ser relativizada.
Mas se, por um lado, existe uma crítica severa à nova his-
tória cultural pela perda de sentido, por outro, estão surgin-
do, na comunidade de pesquisadores, posturas de contraponto
a esses questionamentos. Tais posturas buscam exatamente
construir sentido lá onde ele foi criticado como inexistente, sur-
gindo, primeiramente, perspectivas propositivas para a cons-
trução de sentidos novos ante a crise da razão histórica.11
A segunda perspectiva está vinculada à própria dinâmi-
ca das mudanças paradigmáticas, provocadas pela crise da
razão civilizatória-iluminista e que são passíveis de serem ob-
servadas nos últimos anos por meio da historiografia.12
Pelas colocações apresentadas para introduzir a leitura
do livro, é possível, em tese, afirmar que estamos vivencian-
do um locus de luta entre as noções de espaço e tempo, cuja
compreensão precisa de uma topoanálise diferenciada.13 A ca-
tegoria espaço está cada vez mais presente na textura das ex-
periências atuais em detrimento da perspectiva do progresso
cumulativo e do tempo linear.

10
WEHLER, Hans-Ulrich. Historisches Denken am Ende des 20. Jahrhunderts.
Göttingen: Wallstein Verlag, 2001. p. 69-86.
11
São exemplos dessas posturas propositivas, em termos de busca de sentido, os
trabalhos de DOSSE, François. A história à prova do tempo: da história em
migalhas ao resgate do sentido. São Paulo: Ed. da Unesp, 2002; RÜSEN, Jörn.
Perda de sentido e construção de sentido no pensamento histórico na virada
do milênio. Revista História: Debates e Tendências, Passo Fundo, v. 2, n. 2,
p. 9-22, dez. 2001.
12
Em termos gerais, essas mudanças ainda podem ser conectadas às posturas
de KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. 2. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1987. Na história esse debate está em CARDOSO, Ciro Flamarion.
História e paradigmas rivais. In: CARDOSO, Ciro F.; VAINFAS, Ronaldo (Org.).
Domínios da história. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
13
O termo “topoanálise” é de BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. São
Paulo: Martins Fontes, 1996. Essa análise também pode percorrer os caminhos
da cultura e identidade. Ver então MATHEWS, Gordon. Cultura global e iden-
tidade individual. Bauru: Edusc, 2002. Ou, ainda, pela globalização e meios de
comunicação, ver MATTELART, Armand. A globalização da comunicação. Bauru:
Edusc, 2000; SARTORI, Giovanni. Homo videns. Televisão e pós-pensamento.
Bauru: Edusc, 2001.
18 João Carlos Tedesco

Na afirmação de Bachelard, o teatro do passado seria o


da memória, ao passo que a função do espaço é reter o tempo
numa espécie de câmara de compressão. Nesse sentido, o ca-
lendário temporal só poderia ser estabelecido em seu processo
produtor de imagens.14 O espaço agora seria tudo, pois o tem-
po não animaria mais a memória,15 o que, em outros termos,
garante para a noção experiência um locus especial no debate
dentro das ciências humanas numa espécie de revanche da
experiência (antropológica) sobre a análise estrutural e do lo-
cal da cultura sobre a explicação.16
Como resultado da delimitação do local da cultura te-
mos a fascinação histórica do pertencimento, cuja forma de
exposição poderia ser a identidade, a função da experiência e
sua respectiva representação sob a forma de narrativa. Nessa
perspectiva, a descrição densa das experiências do passado
enfatiza extraordinariamente as representações discursivas,
porém, agora, sem a dinâmica do tempo projetado futuro
numa espécie de ciência do tempo passado.17
Essas duas perspectivas na cultura historiográfica são
marcas do movimento turbinal da cultura contemporânea,
identificado como Spätzeit.18
É certo que tais movimentos possuem receptividade na
história como disciplina e influência no pensamento históri-
co pelo presentismo, e nem poderia ser diferente. Entretan-
to, nós já entendemos que o passado nunca existiu de forma

14
A produção de imagens na atualidade é objetivo do livro de KELLNER, Douglas.
A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001.
15
Idem, p. 21-29. Para uma análise diferenciada, ver JAMESON, Fredric. As
sementes do tempo. São Paulo: Ática, 1997.
16
Discutimos isso recentemente em DIEHL, Astor Antônio. Cultura historiográ-
fica: memória, identidade e representação. Bauru: Edusc, 2002.
17
O termo “descrição densa” é de GEERTZ, Clifford. A interpretação das cultu-
ras. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1989. Ver debate em KUPER, Adam.
Cultura: a visão dos antropólogos. Bauru: Edusc, 2002, p. 105-159.
18
Conforme MOSER, Walter. Spätzeit. In: MIRANDA, Wander (Org.). Narrativas
da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 1999. p. 33-54.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
19

estruturada, a não ser como experiência, como imaginação e


como afetividade contemporaneizada. E, nesse sentido, a lei-
tura possível é aquela que remete para a fascinação histórica
subjetiva do querer compreender o passado nas suas múlti-
plas possibilidades peculiares e, de outro modo, remete para
o sentido metodológico do como é possível de ser reconstruído.
Nessa perspectiva, entendemos que o tempo da fascina-
ção sobre a memória pode possibilitar a problematização do
passado pelo presente com base em dois vetores principais:
primeiro, o sentido de reconstituirmos ideias de futuro no
passado e, segundo, compreendê-las como estrutura narrati-
va de argumentos para uma cultura da mudança.
Para finalizar, queremos enfatizar mais uma vez que
João Carlos Tedesco, em seu livro, não elege respostas fáceis,
mas nos ajuda a compreender a especificidade da cultura na-
quilo que se denominou de “sentido clandestino”.

Astor Antônio Diehl


Primavera de 2003
Considerações iniciais
Explorar o passado significa descobrir o que se
dissimula na profundidade do ser.
J. P. Vernant

Nossas intenções

O tema memória vem cada vez mais instigando analis-


tas das áreas de ciências humanas e sociais; suas abordagens
são variadas e seus campos de investigação adentram para
inúmeras esferas do campo social, do político, do cultural,
dos imaginários e das representações. Inserida nesse cenário
de análise sociocultural e histórico, a presente reflexão quer
tentar dar um singelo contributo sobre alguns elementos que
compõem essa preocupação toda das áreas humanas e sociais
nos estudos sobre memória.
Na primeira e segunda partes, analisaremos aspectos em
torno da importância, da conceituação e de alguns pressupos-
tos teórico-metodológicos na análise da memória na perspecti-
va socio-histórica e, em parte, antropológica. Tentaremos iden-
tificar elementos e focos de análise que justificam e explicam
a importância e a disseminação de estudos sobre memória na
atualidade. Em ambas as partes, ainda que de uma forma
muito fragmentada e sem um núcleo temático central, busca-
mos trazer sempre presente aspectos empíricos de fragmen-
tos de lembranças de idosos, segunda e terceira geração de
imigrantes italianos, e também análises de cunho cultural
presentes numa vasta literatura já produzida sobre cultura e
etnia italiana no sul do Brasil.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
21

Faremos uma revisão de literatura sobre o campo da me-


mória, dando ênfase ao horizonte dos símbolos, do papel da
narração, da lembrança, da experiência, da temporalidade e
dos espaços, na tentativa de compreender processos que per-
mitiram a reconstituição de fragmentos de memória expres-
sos por idosos que permanecem no meio rural e de alguns que
migraram há mais de quarenta anos no meio urbano.19
Centraremos nossa análise em três dimensões da me-
mória, ou seja, a abordagem social, a coletiva e a individual;
adentraremos pela história social e cultural; pincelaremos
um pouco de memória e antropologia do campesinato em uma
discussão centrada no grupo familiar, no trabalho e nos vín-
culos sociais e cotidianos. Apresentaremos, também, uma re-
visão de literatura sobre memória oral e biográfica no sentido
de mostrar sua importância para a análise das questões de
memória na atualidade.
Na terceira parte, descreveremos e analisaremos alguns
fragmentos de memória, fruto de pesquisa de campo que fize-
mos em um estudo realizado no meio rural sobre memórias
de família, memórias genealógicas e memória de vínculos co-
munitários e religiosos com descendentes diretos de imigran-
tes italianos num pequeno espaço da região colonial do Rio
Grande do Sul. A ideia central dessa parte é tentar entender
o conteúdo da memória e da cultura étnica italiana expresso
em vozes e análises.
Este estudo sobre memória e história regional, sob o veio
dos relatos orais de idosos, foi iniciado no ano de 1999 na re-
gião do Alto Taquari, mais especificamente na chamada En-
costa Superior do Nordeste do Rio Grande do Sul. Naquele
momento, tínhamos a preocupação de analisar a relação entre

Nosso espaço de pesquisa foi a região da Encosta Superior do Nordeste do


19

Rio Grande do Sul, mais especificamente os municípios de Veranópolis, Nova


Bassano, Nova Prata, Guaporé e Serafina Corrêa.
22 João Carlos Tedesco

colonos, carreteiros e comerciantes do final do Século XIX até


a década de 1950.20 Procuramos reconstituir memórias de ido-
sos localizados no meio rural da referida região e correlacio-
ná-las com a cultura camponesa e com os novos formatos de
família que se constituíram no meio rural pós-década de 1980.
Outra parte do material foi analisada nesse momento
e complementada com novas histórias de vida, depoimentos
orais e análises contextuais com 18 famílias de colonos que
tem idosos (todos com mais de 78 anos) em suas residências,
em coabitação no meio rural, e 12 famílias de urbanas que
coabitam com idosos que migraram do meio rural da região
para cidade. São 12 idosos, dos quais quatro são viúvos, e 18
idosas, entre as quais há três viúvas.21 Os contatos foram fei-
tos direta e informalmente a partir de um vínculo de conhe-
cimento que se desenvolve há mais de quatro anos com essas
famílias e com outras também da região. Por isso, não nos
preocupamos com representatividade, muito menos com as-
pectos de ordem formal da entrevistas. Nossos contatos foram
os mais abertos e “despojados” possíveis de referenciais me-
todológicos. Informações acumuladas em outras análises, re-
síduos e fragmentos de memória, narrativas aleatórias, ilus-
trações (fotos, objetos, visitas em porões, abertura de antigos
baús) foram nos revelando aspectos da experiência de idosos,
atribuindo significados e sentimentos do passado de uma for-
ma bastante espontânea, pouco ou nada programada; a inten-
ção era sempre deixar falar, ainda que entendêssemos que,
para os idosos, o simples fato de falar já era uma conquista de
nossa parte e uma bela oportunidade de torná-los agentes e

20
De parte desse material, surgiram dois livros, um deles intitulado Colonos,
carreteiros e comerciantes. O Alto Taquari no final do século XIX e início do
Século XX. Porto Alegre: EST, 2000; o outro, Memória e cultura. Porto Alegre:
EST, 2002.
21
Ver a relação de alguns deles, os que mais estivemos em contato, no final, após
a bibliografia geral.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
23

sujeitos de suas vivências, permitindo que pudessem se pre-


sentificar pelo passado por intenções transtemporais.
Os relatos orais foram feitos diretamente, em momentos
alternados e em situações também diferenciadas, individual-
mente, nos espaços comunitários, com a presença da família,
caminhando e olhando aquilo que os idosos “gostam de mos-
trar”, com a presença coletiva de alguns deles em momentos
de jogo de carta “no salão da capela”, situações em que algu-
mas idosas cuidavam dos netos/as, dentre outras. Tentamos
fazer uma etnografia de alguns aspectos de seu cotidiano so-
ciocultural.
O objetivo dessa análise empírica era perceber um ethos,
um universo cultural e estrutural em conflito/tensão, que se
manifesta, basicamente, na forma oral pelos idosos22 e é sen-
tido no confronto de temporalidades e espacialidades que se
alteram e se alternam nos vividos correspondentes.
A ideia central do trabalho empírico fundamenta-se na
tentativa de compreensão das reinvenções, das reinterpreta-
ções e das permanências de modos de vida, historicizados e
institucionalizados, culturalmente, pelo ritmo da vida coti-
diana, presente, passada e projetiva dos idosos.
Para tanto, reconstruímos memórias de (i)migrantes na
forma de fragmentos de histórias de vida e de memória pesso-
al. Buscamos perceber a presença ou não de representações do
ser imigrante em espaços e tempos diferenciados e a relação
entre memória individual e coletiva. O que queríamos era com-
preender como os idosos reinterpretam e inventam as experi-
ências vividas no lugar rural e no lugar urbano, num tempo
vivido entre a década de 1920 até períodos atuais, com especial

Quando não especificamos, diferencialmente, em termos de gênero, estamos


22

entendendo idosos no masculino e no feminino. Obedecemos, com isso, à


oralidade de muitos de nossos entrevistados, que geralmente se referiam aos
“nonos” contemplando os cônjuges.
24 João Carlos Tedesco

atenção para as décadas de 1960 e 1970, período de intensa


alteração nos quadros da organização da vida rural e de fluxos
migratórios para regiões rurais e urbanas do sul do Brasil.
Nesse sentido, pretendemos, com a presente análise
numa abordagem socio-histórica e cultural, contribuir para a
compreensão dos imaginários23 e representações que se cons-
tituem por meio da presença e da ausência de idosos em espa-
ços diferenciados, em famílias de descendentes de imigrantes
italianos na dimensão das particularidades e totalidades, dos
liames das histórias particulares na problemática coletiva
(étnico-cultural e espacial).
Nesse sentido, o presente estudo busca refletir sobre
alguns significados simbólicos que permeiam os universos
culturais, sobre a mobilidade social, sobre as permanências
e as alterações nas diferentes fronteiras espaciotemporais,
no caso, mais especificamente, os vínculos do camponês/idoso
nos meios rural e urbano. Acreditamos, como uma das hipó-
teses norteadoras de nosso trabalho, que os valores culturais,
superpostos em múltiplas camadas de tempos históricos e
culturais e de espaço são representações por meio das quais
os idosos de segunda/terceira gerações de imigrantes perce-
bem a resistência, a mudança, a reinvenção cultural e a pos-
sibilidade de pluralidade identitária.
No espaço urbano, por exemplo, mesclam-se resíduos
de diferentes espaços e diferentes tempos, práticas culturais
apreendidas no mundo rural e outras incorporadas no urba-
no. O estudo dos lugares24 encontra-se no confronto da espa-

23
Falando sobre a questão do imaginário, é bom já dizer que o entendemos como
um conjunto de representações que vão além dos limites dados pela experiência
e pelas associações que resultam. A realidade de cada um, de cada grupo, de
cada sociedade produz, possui, convive e dinamiza imaginários, crenças, curio-
sidades, sonhos, desconhecidos, desejos, repressões, utopias, imagens abstratas,
fantasmas, construções míticas, sistemas de representação. O imaginário é uma
espécie de “contato” que os homens estabelecem entre o visível e o invisível.
24
CERTEAU, M. A invenção do cotidiano (Artes de fazer). Petrópolis: Vozes, 1994.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
25

cialidade-temporalidade e da subjetividade-objetividade, da
memória individual e coletiva. É por isso que, para o grande
estudioso da memória Pierre Nora, os lugares “são lugares
mistos, híbridos e mutantes, intimamente entrelaçados de
vida e de morte, de tempo e de eternidade, numa espiral do
coletivo e do individual, do prosaico e do sagrado, do imóvel e
do móvel”.25
Falando empiricamente de lugares, sabemos que, da dé-
cada de 1960 até a de 1980, junto com o processo modernizan-
te da agricultura, com o cenário visível e atrativo da urbani-
zação, com a necessária alteração dos processos produtivos
tradicionais, com a redefinição da ordem moral e vivencial
da família, dentre outras, muitas famílias foram deslocadas
para o meio urbano, ou, então, permaneciam próximas a al-
gum filho, porém não mais coabitando.
Sabemos que o deslocamento não significa meramente
uma alteração espacial; altera-se muita coisa e, acima de
tudo, alteram-se os referenciais de memória. Na década de
1990, e com mais intensidade nos seus últimos anos, consta-
ta-se uma certa alteração dessa trajetória, ou seja, há uma
certa redução da intensidade do fluxo migratório para a cida-
de e apresenta-se uma maior possibilidade de coabitação de
idosos nas famílias.
Vários fatores estão contribuindo para essa possível pre-
sença de idosos nas famílias: recursos financeiros provenien-
tes da aposentadoria, possibilidade de cuidar de filhos libe-
rando mulheres/esposas para atividades promotoras de remu-
neração financeira, uma maior consciência de valorização do
espaço e das alterações provenientes do horizonte cotidiano
dos idosos. Com isso, reestruturam-se a memória e o conteúdo
da lembrança no seio familiar pela presença dos idosos.

NORA, P. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História,


25

São Paulo: Educ, n. 10, 1993. p. 22.


26 João Carlos Tedesco

O cenário empírico motivou-nos a lançar mão das noções


de pertencimento, enquadramento, de integração grupal e co-
munitária, de família como unidade de trabalho, de convívio
e de parentesco, de etnia, de ethos, de reciprocidade, de tra-
dição e modernidade, de cotidiano e de temporalidades entre-
cruzadas, de experiência, de ressentimentos, de imaginários
sociais e culturais, de modernidade e de tradição. São esses
alguns dos temas que procuraremos, em correlação com o ce-
nário empírico e com o que trabalhamos nos dois livros já in-
dicados, tematizar no presente estudo.
Pr i mei r a pa r t e

As cercanias da memória:
conceitos, noções e
campos afins
CAPÍTULO 1

Uma guinada historiográfica?

Porque não só a vida dos santos e dos mártires,


mas também as histórias dos noviços, com as
suas fraquezas podiam servir de ensinamento.
Foucault

Na verdade, preocupações e análises sobre memória sem-


pre se fizeram presentes no campo social e das ciências huma-
nas. O campo da memória envolve noções de temporalidades,
lembrança, oralidades, subjetividades, factualidades, espa-
cialidades, instrumentalidade objetal, etc. Suas técnicas e
seus instrumentos analíticos e metodológicos é que não foram
problematizados como estão sendo contemporaneamente. É
nesse sentido que se manifesta, a partir da década de 1970,
uma grande tendência da historiografia, mais voltada para o
campo da cultura e do social e, mesmo das ciências sociais em
geral e da antropologia social, interessada em adentrar para
análises da memória, do cotidiano, não mais tanto de povos
e de agrupamentos societais tradicionais, mas das chamadas
sociedades complexas em geral e da experiência de vida de
grupos em espaço de mudanças socioculturais.
Como diz Passerini, essa guinada analítica, se é que hou-
ve, manifesta-se na tendência de estudar menos os outros, o
distante, o excepcional e mais de assuntar-se “naquilo que é
vizinho, cotidiano, normal; se exprime nas tentativas dos mo-
vimentos políticos para reencontrar suas próprias raízes his-
tóricas e culturais, como fizeram os movimentos de libertação
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
29

nacional e racial, os movimentos das mulheres, o movimento


operário, as minorias étnicas e linguísticas”.26
Atualmente, a memória está no centro de um grande de-
bate teórico. Para além das sínteses totalizantes da história,
existem memórias diversas, algumas contraditórias entre si,
que radicam reconhecimento social. Sua persistência, fasci-
nação, nos últimos anos, parece ser expressão de um entre-
cruzamento de diversos caminhos, os quais problematizam
campos do conhecimento e contradições no interior das pró-
prias disciplinas.27 Percebemos que cada vez mais os elemen-
tos mediadores da memória, sejam objetais, de consciência
coletiva e individual, de políticas de lembrança e de esque-
cimento, etc., servem de suporte à cultura, à identidade so-
cial e étnica, à tradição, à possibilidade de materialização de
formas simbólicas da vida cotidiana, bem como aos dramas e
tramas históricos.
O interesse das ciências sociais pela memória deve-se
ao reconhecimento da importância da dimensão temporal
nos fenômenos humanos, na reflexão de que tanto a conti-
nuidade quanto a descontinuidade da vida em sociedade está
implicada em mecanismos de lembrança e de esquecimentos,
de seleção e de elaboração daquilo que o passado deixa para
trás de si mesmo. No fundo, diríamos que a memória está
presente mais ou menos em todas as manifestações da vida
Essa tendência não esteve, até, então, ausente de profundas
polêmicas, embates, refutações, ingenuidades e aceitações,
tanto no que se refere à análise propriamente dita quanto ao

26
PASSERINI, L. Storia e soggettività: le fonti orali, la memoria. Bologna: La
Nouva Italia, 1988. Ver, também, da autora Storia orale. Torino: Rosenberg &
Sellier, 1978.
27
PASSERINI, op. cit.
30 João Carlos Tedesco

campo historiográfico e metodológico na apreensão dos seus


conteúdos.28
A abordagem acerca da memória, por exemplo, continua
controversa mesmo após inúmeros escritos, debates e con-
frontações teóricas, em suas dimensões analíticas, metodoló-
gicas, epistemológicas, envolvendo a questão das técnicas de
apreensão, das temporalidades que se cruzam e/ou se anu-
lam, dos espaços e dos contextos de lembrança, dos sujeitos
que recordam, dentre outras. Como diz Bourdieu, a plurali-
dade de expectativas e de memória é o inevitável corolário da
existência de uma pluralidade de mundos e de uma pluralida-
de de tempos sociais.29
Discutir memória nas suas várias dimensões, seja indi-
vidual, coletiva e social, suas relações com a história, suas
manifestações orais e materiais, seus lugares institucionais,
informais e circunstanciais, suas dimensões epistemológicas,
seus silêncios temporais, suas formas de enquadramento etc.,
é algo mais do que desafiador e, como já dissemos, está ga-
nhando cada vez mais lugar nas análises e nos debates do
campo social e antropológico. Os estudos de memória, especi-
ficamente, estão auxiliando tanto as análises acerca do vivido
presente/cotidiano quanto de fatos e tempos passados; estão
se apresentando, em sua maior parte, como uma forma de
fazer o tempo passado se presentificar analítica e oralmente;
de construir e reconstruir o social de vividos; de entender for-

28
Como diz Jedlowski e também Le Goff, os homens não recordaram sempre
do mesmo jeito, não atribuíram à memória o mesmo significado, não tiveram
à disposição os mesmos instrumentos para auxiliar na lembrança. Isso é im-
portante para poder constituir uma história social da memória que tanto Le
Goff quanto Nora, Rossi e outros desenvolveram. A passagem de sociedades
de cultura oral para a de escrita, a difusão
29
BOURDIEU, P. apud PESAVENTO, S. J. Fronteiras do milênio. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 2001. Ver JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi
della sociologia della memoria nel XX secolo. Rassegna Italiana di Sociologia,
ano XLII, n. 3, lug./set., 2001. p. 373-392. Ver, também, do mesmo autor Il
sapere dell’esperienza. Milano: Il Saggiatore, 1994.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
31

mas e representações simbólicas históricas e educacionais; de


compreender tempos e espaços que necessitam de valores e
significados culturais nem sempre em harmonia entre vividos
e concebidos, expressos nas condições de existência passadas,
atuais e projetivas.30
É evidente que tudo isso faz parte de um cenário, de uma
realidade que determinados ramos das ciências estão proble-
matizando em razão de novos valores, de novas alterações
culturais, econômicas, geográficas, da possibilidade de ins-
trumentalizar novos recursos de análise, sejam eles do arca-
bouço técnico (informática, internet, por exemplo), na esfera
da oralidade, da narração, da abertura de arquivos, de novos
valores democráticos e de cidadania social e de subjetiva/in-
dividual.31
É nesse sentido que localizar o novo campo de discus-
são requer não esquecer que, em meio a um amontoado de
informações cotidianas e imagens de passados socio-históri-
cos, a memória, a lembrança e o esquecimento estão cada vez
mais sendo abalados, num contexto de alterações profundas,
de desintegrações de valores e representações que ligavam os
indivíduos ao processo social, o presente com o passado, as
categorias sociais que configuram a memória social. Entende-
mos ser fundamental a reconstituição da memória, porque a
sociedade da informação, da técnica e da racionalidade econô-
mico-consumista faz o tempo andar mais rápido, permite dar
funcionalidades diversas aos espaços e às coisas; os objetos
perdem significados mais depressa e têm reduzido seu tempo
de duração e de significação.

ROSSI, P. Il passato, la memoria, l’oblio. Bologna: Il Mulino, 1991.


30

Ver JEDLOSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, XXXVIII, n. 1,


31

mar. 1997, p. 135-147.


32 João Carlos Tedesco

A esfera da memória e dos depoimentos orais, genealógi-


cos e biográficos32 está contribuindo, em muito, para o campo
de análise histórica, ligando temporalidades, fazendo-as se
entrecruzar, bem como resgatando atores sociais silenciados,
dimensões do real muito pouco visíveis. É nesse sentido que a
proliferação de estudos em torno do campo de análise da me-
mória revela um olhar das ciências humanas, sociais, históri-
cas e pedagógicas sobre si mesmas; um olhar crítico, inovador,
problematizador e projetivo do passado e do futuro.

Passado e presente intencionalizados


A memória é um campo de batalhas.
A. Thomson

Leroi-Gourhan registra que, na nossa sociedade, e em es-


pecial nas sociedades sem escrita, há sempre especialistas de
memória, “homens-memória”, sejam eles genealogistas, tra-
dicionalistas, sacerdotes, pais de família, intelectuais, idosos,
portadores de ideologias históricas, dentre outros, os quais
têm a função importante de manter a coesão do grupo, de ga-
rantir futuro ao passado e o significado no presente.33
Le Goff já dizia que a memória desenvolvia um papel
importante no mundo social, cultural, junto aos escolásticos e

32
O campo de análise biográfica é muito intenso na historiografia atual. Há uma
vontade manifesta pelos vários estudos (históricos, jornalísticos, empresariais,
midiáticos etc.) de contar a vida de personagens marcantes em vários campos da
sociedade, muitos deles com objetivos de expressão personalista, autocentrista
(self-made-man); outros, com a intenção de prestar contas à sociedade; outros,
ainda, intencionando servir de fonte histórica. Há os que, após um tempo de
silêncio, publicam fatos, envolvimentos pessoais, como forma de romper com
silêncios, ressentimentos e más interpretações. A indústria cultural, no caso
brasileiro, dinamiza esse horizonte e transcreve-o para os meios midiáticos e
jornalísticos, obtendo grande aceitação do público consumidor.
33
LEROI-GOURHAN. Il gesto e la parola. Milano: Mondadori, 1978. Tomo II.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
33

nas formas rudimentares de historiografia do mundo medie-


val ocidental. Diz ele que, nesse período, os velhos eram ve-
nerados sobretudo porque se viam neles “homens-memória”,
prestigiosos e úteis. A unidade da memória reside na inten-
cionalidade das aquisições, das transformações e recuperação
das recordações e esquecimentos. Diz Le Goff que são as pes-
soas que escolhem os elementos destinados a se transformar
em recordação.34 Não há dúvidas de que o passado condiciona
características das lembranças futuras; não se sobrepõe ao
presente para permitir meramente a sua identificação, mas,
sim, para permitir a escolha e a intencionalidade do que me-
lhor lhe interessa armazenar na memória.
A noção de intencionalidade é fundamental para enten-
der a fenomenologia da memória. “Com efeito, em cada singu-
lar momento, a experiência disponível exprime a energia da
consciência presente. A vida da consciência é embasada em
um quadro intencional que projeta ao redor do nosso passado,
o futuro, o ambiente humano, a situação física, ideológica e
moral. O arco intencional é o elemento constituinte da uni-
dade dos sentidos. A memória não é a consciência basilar do
passado, mas um esforço para reabrir o tempo a partir da
implicação do presente.”35
A memória é, desse modo, a capacidade de conservar
determinadas informações com auxílio de funções psíquicas,
sendo essas capazes de atualizar impressões passadas, que
se representam como tal.36 O passado condiciona o presen-
te e vice-versa. Sabemos que muitos dos esquecimentos não
são atribuídos aos problemas biológicos de memória, mas
aos subjetivamente intencionais. As noções de interesse, de

34
LE GOFF, J. Memoria. Enciclopedia Einaudi. Torino: Einaudi, 1979.
35
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia della percepzione. Milano: Il Saggiatore,
1987. p. 157 e 217.
36
LE GOFF, J. Op. cit., p. 1068.
34 João Carlos Tedesco

intencionalidade perceptiva, de funcionalidade, de possibili-


dade de livre-escolha, de experiências prévias, como veremos
adiante, são muito caras à fenomenologia aplicada à memória
em suas várias abordagens.
Lidar com memória é mexer com gente, com interpreta-
ções presentificadas e, por que não dizer, intencionalizadas;
com representações sociais e fatos históricos naturalizados e/
ou pouco explicados em termos de origem, objetivo, intencio-
nalidades, manifestas em condições de existência do passado,
na atualidade e com intenções projetivas. Não obstante as
suas questões de ordem metodológica e de processos técnicos
de investigação, poderíamos avançar mais e indicar inúmeras
outras dimensões que o campo da memória revela, fundamen-
talmente, na esfera dos atores sociais e políticos, fatos his-
tóricos, identitários, de imaginários sociais cristalizados ou
em processo.37 Não se pode perder de vista a longa duração,
a tradição na modernidade e vice-versa, bem como estrutu-
rações sociais que, aparentemente, manifestam-se presentis-
tas (conjunturais e fugidias), dilemas da modernidade e seus
valores projetivos na esfera ética e histórica sob o veio das
temporalidades e factualidades entrecruzadas, silenciadas,
ilustradas por representações e imaginários sociais de longa
data e pouco visíveis, pouco explicados e/ou histórica e po-
liticamente condicionados ao esquecimento. Sabemos que é
comum, no processo histórico e social, a produção do esqueci-
mento ou do silêncio alter/auto-imposto para ajustar o passa-
do com as intenções e ressentimentos ainda consequentes do
presente e das perspectivas futuras.
Ajustar ciclos e tempos históricos de ações, de sociabili-
dades e de desenvolvimento social é também função da me-
mória política e coletiva/grupal. Com isso, não significa com-

Ver ARIÉS, Ph. I segretti della memoria. Firenze: La Nuova Italia, 1996; ver,
37

também, TADIE, J. Y.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
35

pleta supressão de lembranças. Sabemos também que, nos


processos históricos e políticos das sociedades, em diversas
temporalidades, sempre se fizeram presentes memórias con-
dicionadas, reprimidas, não enquadradas e não lembradas no
coletivo histórico.38 A memória coletiva pode ser induzida a
esquecer e/ou a não ser justiciada pela lembrança e por ações
de ordem política, jurídica, criminal e ideológica do tempo
presente e não do tempo memorizado.
Battini nos descreve, por exemplo, como os processos de
desconstrução, seleção, esquecimento e adaptação funcional
da memória aos diferentes projetos políticos e sociais do pre-
sente foram importantes para a modificação das sentenças,
da decisão judicial de quem culpabilizar (noção de relativida-
de de culpabilidade) e a quem conceder indulgências históri-
cas no pós-Segunda Guerra Mundial pelos países aliados.39
Nesse sentido, não se sabe qual será o destino e o uso
da memória. O que se sabe é que seu caráter é contraditório.
Atualmente, não só a tradição e o passado em geral perdem
o caráter normativo para o futuro que tinha em precedência,
mas a própria vida social, cultural e identitária é colocada

38
Ver sobre isso um excelente texto de A. THOMSON, Quando a memória é um
campo de batalha. Entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e políticos
com o passado do Exército Nacional. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 3, 1998.
39
O autor mostra como o contexto europeu dos primeiros anos pós-guerra foi
fundamental para que não fosse posto em prática os processos de crime de
guerra de Noremberg, principalmente para os comandantes fascistas italianos
e parte de nazistas alemães. O autor mostra como foi possível relativizar as
indulgências, cristalizar uma lembrança unilateral distorcida e parcial da tra-
gédia, construir uma memória funcional ao cenário da restauração europeia e
hegemonia americana em meio ao cinismo, a injustiças e à falsa consciência
(inclusive contra os responsáveis pela “limpeza étnica” colocada em prática nos
territórios polonês, soviético, do Leste europeu... contra centenas de milhares de
alemães no pós-guerra). “A Europa do pós-guerra se arbitrou logo a distinguir
e a separar as novas formas de violência e de limpeza étnica pós-bélica reali-
zada pelos alemães daquela perpetrada pelos nazistas nos anos precedentes,
predispondo-se a conviver com duas memórias: aquela dos crimes cometidos
pelos nazistas durante a guerra e aquela dos alemães culpados coletivamen-
te.” BATTINI, M. Peccati di memoria: la mancata Norimberga italiana. Bari:
Laterza, 2003. p. 151-152.
36 João Carlos Tedesco

em discussão; por isso, as grandes questões contemporâneas


giravam em torno da esfera cultural, identitária, de moderni-
dade, tradição, subjetividade, dentre outras.
A subvalorização do passado são, ao mesmo tempo o re-
vigoramento da nostalgia, de novos sentimentos (co-presença,
pertencimento e identificação étnica), o incremento turístico e
cultural dos espaços, lugares, tempos e templos de memória,
tais como museus, restauros, antiquários (esses muito desen-
volvidos em sociedades mais antigas, principalmente na Eu-
ropa), atestam esse caráter contraditório e a indefinição do
destino da memória.
Pensamos como Jedlowski quando diz que a memória é
ainda aquilo que fornece aos indivíduos o sentido da própria
colocação no tempo, interligando o passado, o presente e o
futuro numa rede de afetos, de reflexão e de esperança, ainda
que sabedores de que, na realidade, o passado não perma-
nece mais idêntico a si mesmo; ao contrário, é incorporado
seletivamente e reformulado constantemente, com base nas
alterações das exigências da vida.40

JEDLOWSKI, op. cit., 1997. p. 144.


40
Capítulo 2

Memória e lembrança
A memória coletiva é o que resta do passado no
vivido dos grupos, ou, então, o que esses grupos
fazem do passado.
P. Nora

É possível entender a memória como a capacidade de um


sistema complexo, seja ele vivente ou artificial, de armazenar
informações, de modificar, com base nessa, a própria estru-
tura, de modo que cada tratamento sucessivo de novas infor-
mações seja influenciado pelas aquisições precedentes. Num
sentido comum, por memória entende-se a faculdade humana
de conservar traços de experiências passadas e, pelo menos
em parte, ter acesso a essas pelo veio da lembrança. É nesse
sentido que a memória parece fazer referência a uma ideia
de persistência ou de reinvocação de uma realidade e de uma
maneira intacta e contínua.41
Para Baddley, a memória é a capacidade de armazenar
informações e de ter acesso a essas. Sem a memória, seríamos
incapazes de ver, de escutar ou de pensar; não teríamos uma
linguagem e, de fato, nem mesmo um sentido de nossa iden-
tidade de pessoas. Diz o autor que, sem memória, seríamos
vegetais e, intelectualmente, mortos.42
A lembrança recoloca a esperança na capacidade de recu-
perar alguma coisa que se possuía, um tempo que se esqueceu.

41
JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, XXXVIII, n. 1,
gen./marz. 1997. p. 135-146.
42
BADDLEY, A. La memoria. Roma-Bari: Laterza, 1993, p. 3.
38 João Carlos Tedesco

Nesse sentido, a memória precede cronologicamente a lembran-


ça e pertence à mesma parte da alma a que pertence a imagina-
ção. Ela passa a ser uma coleção ou recolhimento de imagens
com o acréscimo de uma referência temporal. Nesse sentido, a
reminiscência não é algo passivo, mas é sempre uma tentativa
de recuperação de um conhecimento ou sensação já existente
anteriormente. É por isso que relembrar implica um esforço
deliberado da mente, uma espécie de escavação ou de voluntá-
ria busca entre os conteúdos da consciência, seja numa pers-
pectiva racional ou irracional, micro ou macro, genérica ou
específica, ou, então, como expressão individual ou coletiva.43
A memória coletiva, por meio da narração, reafirma sua
força de transmissão, pois, para continuar a recordar, é ne-
cessário que cada geração transmita o fato passado para que
possa se inserir nova vida em uma tradição comum. Desse
modo, o acolhimento do conteúdo narrativo e a necessidade de
recordá-lo tornam-se um dever.44 O ato narrativo, na medida
em que é possível sua elaboração e apropriação, constrói um
sentimento de identidade coletiva do grupo e um sentido de
pertencimento dos indivíduos, ajuda a conhecer o grupo e a
organizar as próprias relações internas.
Sentir e contar histórias em comum significa dar pos-
sibilidade de criação e de fortalecimento comunitário.45 Os
idosos por nós entrevistados determinam um tempo de per-
tencimento, que não é “o de hoje”, tempo esse de criação e de
participação ativa no seio comunitário, de identificação de um
sentimento de um agir regido pela profunda autodetermina-
ção de si. Para Benjamin, na modernidade, a memória não

43
ROSSI, P. Il passato, la memoria, l’oblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:
Il Mulino, 1991.
44
NORA apud MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social. Roma: Carocci,
2000. p. 173.
45
JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:
Mondadori, 2000. p. 78-79.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
39

foi silenciada, mas desvirtuada. A mediação da narração foi


fragilizada:
É como se fôssemos privados de uma faculdade que parecia
inalienável, mas mais certa e segura de todas: a capacidade de
trocar experiências. Uma causa desse fenômeno torna-se eviden-
te, ou seja, as ações da experiência caíram. E, pode-se dizer que
continuam a cair sem limites.46

Nora diz que a memória é um quadro de interpretações


mais do que um conteúdo, é um embate, um conjunto de es-
tratégias, um símbolo em movimento com tendências à con-
servação. Essa tendência se apresenta pela sua possibilidade
ameaçante de desaparecer, de ser selecionada e de ser herdei-
ra seletiva de uma herança coletiva de identificação histórica
vazia e de símbolos semiapagados. Entendendo a dimensão
do movimento de memória e suas consequências, diz que o
representativo, o simbólico, o interpretativo têm seus aconte-
cimentos, sua cronologia, sua erudição, sua própria condição
de possibilidade, sobretudo quando sob influência epistemoló-
gica e analítica da história.47
O grande teórico da microistória, Ginzburg, mostra como
é possível articular na lembrança um núcleo racional/irracio-
nal e expressa-lo numa possível visão de “razão articulada”.48
Segundo o autor, é possível fazer correlação e avançar do indí-
cio à generalização, reconhecer que o particular convive com
o geral, que é possível partir do efêmero para fazer uma geo-
logia profunda no qual esse efêmero se constrói e se insere.49
Ginzburg analisa e retrata a possibilidade de o tempo
e a história serem pesquisados não só através dos grandes

46
BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976. p. 248.
47
NORA, P. (Sous la direction de). Les lieux de mémoire. Paris: Gallimard, 1997.
v. I. p. 20-22.
48
Sobre essa questão, ver BLOCH, M. Apologia della storia. Torino: Einaudi,
1969.
49
Ver O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
40 João Carlos Tedesco

acontecimentos, das modificações institucionais e das desco-


bertas técnico-científicas, mas, também, das coisas mínimas,
dos resíduos (lembrar Pareto e Simmel!); porém, essas “coi-
sas minímas” devem ser tomadas com a devida consideração.
As pequenas coisas podem ser indícios, traços, sinais, ritmos
múltiplos, mentalidades, imaginários, sentimentos coletivos
de atividades práticas e do pensamento.50
Ligando a questão da memória com o núcleo racional/irra-
cional, em concordância com Lazzarin, entendemos que o ato ob-
jetivo/subjetivo de recordar os processos vividos que cada um de
nós organiza e reinvoca no passado, do ponto de observação do
presente, possui a capacidade de estruturar a experiência num
patrimônio utilizável para si e comunicável aos outros. Porém,
entendemos não ser essa a única dimensão da memória, aquela
pode ser entendida como estrutura de interiorização e exterio-
rização de fatos, circunstâncias e vividos organizados, espacial
e temporalmente, para transmitir ao externo a representação
pessoal e/ou coletiva da própria história ou da de outrem.

Memória como fragmento histórico-social


Cada um de nós carrega sempre consigo e dentro
de si uma quantidade de pessoas distintas.
Halbwachs

Após revisarmos um conjunto de obras sobre memória


(histórica, social, cultural, midiática...) e intencionarmos tra-
balhar com memórias de idosos, temos a convicção de que o

A análise do moleiro que enfrenta e desafia a significação e a veracidade de


50

alguns dogmas do catolicismo é um exemplo dessa correlação entre atividade


cotidiana (da cultura camponesa do norte da Itália do Século XVI) e fragmen-
tos de escritos de dogmática religiosa. Ginzburg exalta a dimensão do vivido
como veículo por meio do qual força os segredos, o ethos cultural e a dimensão
escondida, muitas vezes, dissimulada. Segundo o autor, para fazer fluir essas
dimensões, é necessário penetrar nos interstícios, servir-se do marginal e in-
terrogar os silêncios.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
41

campo da memória nos auxilia na percepção de mecanismos,


de símbolos e processos macro que provocaram as próprias al-
terações no tempo e no tempo de nossos idosos entrevistados.
Entendemos também que se, atualmente, encontramos
só resíduos, fragmentos e partes do passado, no futuro pode-
remos, com um pouco de esforço, habilidade, conhecimento
histórico, cultural e social, reconstituir o todo pelos fragmen-
tos; poderemos lhe dar corporalidade. Essa é a esperança e a
intenção de grande parte dos estudos sobre memória e de sua
intensa dinâmica no meio acadêmico, jornalístico e midiático.
Fragmentos podem não ser meramente sobras; podem, sim,
tornar-se totalidades, plausíveis e passíveis de identidade, de
junção/unificação e de arqueologia socio e histórico-cultural.
Malgrado o já consolidado campo de análise da memória,
continuamos, ainda, com uma grande dificuldade em unir me-
mória e história; o mesmo podemos dizer de memória e técni-
ca moderna, de esquecimentos (ressentimentos) e ufanismos
de memória, da relação entre bens simbólicos (valores de uso e
usos de valor – esse muito presente nos objetos e patrimônios
de memória e de expressão cultural) com a mercantilização
de bens e patrimônios públicos, sociais, culturais e históricos,
entre o vivido e o institucional, entre simbologia e funcionali-
dade de objetos de memória, entre o considerado velho e o que
se julga novo. Esses elementos todos não devem ser causas de
desmotivação heurística e hermenêutica da memória, muito
menos de uma visão dicotômica da realidade; devem servir,
sim, como elemento problematizador do real presente, das
temporalidades e de seus processos sociais.
Relembrar o passado, como fizeram os nossos idosos en-
trevistados, não significa apenas recordação verbalizada e
fragmentada. Além da questão do conhecimento histórico-cul-
tural, memória é cidadania. Fazer aflorar a lembrança e a so-
ciabilidade dos simples é fazer aparecer formas de vivências
42 João Carlos Tedesco

determinadas pelo lugar social e pelos referenciais significati-


vos e imaginários de um determinado grupo étnico-social em
períodos históricos e espaços variados.
Nesse sentido, as memórias podem ser convergentes,
contrastadas, múltiplas, as quais incorporam variadas expe-
riências tanto pessoais quanto coletivas; podem ou não estar
em movimento, construir redes simbólicas, invisíveis, práti-
cas objetivadas circunstancialmente, como é o caso do espaço
do trabalho, da dimensão da fé, da alimentação (comida), da
etnia e suas correspondências culturais, espaciais e tempo-
rais,51 nas demarcações entre o público e o privado, entre o
histórico e o vivido, entre o social (institucional) e o cultural.
Acreditamos que a memória permite romper naturaliza-
ções e inevitabilidades na história; pode fazer dimensionar a
esfera da construção, do vivido, do histórico e cultural ainda
que entendidos na sua constante redefinição.52 Público/priva-
do, temporal/espacial, doméstico/cultural, moderno/tradicio-
nal, família/trabalho, dentre outras aparentes polaridades
ou fronteiras, foram demarcadas distintamente no tempo e
no espaço; portanto, não são universais, nem estáveis, nem
produzidas num movimento progressivo. Se assim o fizermos,
correremos o risco da reificação e da dimensão a-histórica da
cultura e da sociedade, ocultando origens, tensões, fronteiras,
heterogeneidades, continuidades, redefinições, criticidade e
complexidade.
É possível transformar tudo isso num momento heu-
rístico e hermenêutico, valorizar os tempos, subjetividades,
entender contextos, conflitos e enquadramentos sociais, bem
como ligar lembranças com silêncios (perguntar-nos por que

51
Ver BOSI, E. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
52
VEYNE, P. (Org.). História da vida privada: do Império Romano ao ano mil.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
43

alguns ou algumas coisas são lembradas e outras não; por que


e por quem foram documentados os eventos; quem os guar-
dou), cruzar os fatos documentais com oralidades possíveis,
dar dimensões de temporalidades e espacialidades totalizan-
tes aos fatos aparentemente insignificantes, pequenos, locais
e cotidianos.53

BOSI, E., op. cit.


53
Capítulo 3

A memória no cotidiano

Estudos do cotidiano estão contribuindo para a renova-


ção temática e metodológica das ciências sociais, para am-
pliar e reorientar noções tradicionais, abstratas e genéricas
em vários campos das ciências sociais, históricas e pedagógi-
cas. A chamada “crise de paradigmas”, “crise de identidade”
da história, “crise da modernidade”, etc. produziu essa grande
tendência de adentramento por esse campo, ao mesmo tempo
em que se realimentou pelo aparecimento da construção de
um campo de análise social do cotidiano.
A história social, a cultural, a pedagogia histórico-crítica,
a microssociologia, a Nova História, a Escola dos Annales,54
a pós-modernidade, a antropologia cultural e do cotidiano...
descobriram novas perspectivas de estudo, fundamentalmen-
te pós-década de 1980. Os temas são variados, múltiplos,
transversais, inter e multidisciplinares, agrupados, em gran-
de parte, na esfera do cotidiano, do gênero, na cultura, dos
atores sociais, na noção de resistência, no privado, na politi-
zação social, etc.55 Segundo Matos,
[...] essas novas perspectivas e influências possibilitaram a reorien-
tação do enfoque histórico, com o desmoronamento da continuidade,
o questionamento de abordagens globalizantes do real [...], per-
mitindo também o questionamento da universalidade do discurso
histórico; tiveram como preocupação abrir trilhas renovadoras,

54
DOSSE, F. A história em migalhas: dos Annales à Nova História. São Paulo:
Ensaio, 1992; ver, também, LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne.
Paris: L’ Arche, 1981. v. III.
55
PASSERINI, L. (a cura di). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale
delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
45

desimpedidas de cadeias sistêmicas e de explicações causais, criar


possibilidade de articulação e inter-relação, recuperar diferentes
verdades e sensações, promover a descentralização dos sujeitos
históricos e a descoberta das histórias de “gente sem história”, pro-
curando articular experiências e aspirações de agentes, aos quais
se negou lugar e voz dentro do discurso histórico convencional.56

Os estudos do cotidiano multiplicaram-se, especialmen-


te na década de 1990, e tornaram-se, malgrado suas bases
epistemológicas e suas interpretações temporais, uma gran-
de possibilidade de recuperar outras experiências, o mundo
de experiências comuns e subjetividades; de problematizar
e criticizar o próprio vivido e concebido cotidiano temporal,
os valores sociais cristalizados, a institucionalização cultural
e histórica; de recuperar resistências, figuras ocultas, dife-
rentes dimensões da experiência, indo além dos dualismos,
fragmentações e formas de dominações tradicionais,57 fazen-
do aflorar a trama da multidimensionalidade que constitui o
social, a heterogeneidade, a complexidade, as descontinuida-
des, as multiplicidades, a transitoriedade dos conceitos, do so-
cial, da história, do conhecimento, das perspectivas, do tempo
e do espaço,58 da historicidade inerente ao processo de conhe-
cimento. Muitos dos estudos do cotidiano recuperaram vozes,
redimensionaram o campo da linguagem falada, escrita, da
cultura popular e folclorista, das memórias, dos diários, das
biografias, das iconografias, dos jornais, etc.

56
MATOS, M. Z. S. de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru:
Edusc, 2002. p. 24.
57
HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. Sobre
os vários paradigmas, no campo social, que compõem os estudos do cotidiano,
ver TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano. Introdução à constituição de um
campo de análise social. Passo Fundo/Santa Cruz: UPF Editora/Edunisc, 2002,
2. ed.; ver, também, JEDLOWSKI, P. Il tempo dell’esperienza. Milano: Franco
Angeli, 1986; ver BRAUDEL, F. Le struture del quotidiano. Torino: Einaudi,
1982.
58
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1992; ARIÉS, Ph. O tempo da história. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1989.
46 João Carlos Tedesco

Para Matos, o historiador tem dificuldades de entender o


oculto no emaranhado fragmentado das informações; de per-
ceber o implícito; de fazer aflorar “as estruturas do cotidiano”;
de mostrar que o cotidiano é parte integrante da história e
que, além de descrito, pode ser analisado, correlacionado e
articulado conjuntural e estruturalmente; de fornecer a rein-
venção da totalidade histórica no espaço e no tempo (de)limi-
tado do objeto em questão.59 “Quanto mais interpretamos e
valorizamos os fatos da vida cotidiana, tanto mais enxerga-
mos e compreendemos o óbvio, mais forte se torna a nossa
capacidade teórica. [...]. Não nascemos apenas históricos, mas
também teóricos”.60
Para Simmel, a sociedade representa, globalmente, a
ação recíproca dos indivíduos que a compõem. O homem, em
sua forma pessoal, interior, desenvolve-se visivelmente na in-
teração com sua forma social, que evolui ao seu redor entre o
princípio de individualização e o princípio de sociação. Nessa
ideia do princípio de sociação, surge a noção de organismo
impessoal. Simmel coloca que a interação, mesmo a mais ele-
mentar, não tem significação sociológica além da imediatici-
dade das ações recíprocas. As formas participativas de viver
manifestam-se pelo surgimento da objetividade social na sub-
jetividade do vivido, na sua imediatez. Das formas partici-
pativas é que vem a noção de sociedade, que, para Simmel, é
resultado do contrato social, que não termina e que permite
que o indivíduo exista. As formas de socialização dos contatos
sociais caracterizam-se por meios particulares de orientações
recíprocas, segundo as quais os indivíduos estabelecem uma
ligação social. A memória pode ser um elemento mediador
dessa ligação social dos grupos.61

59
MATOS, M. I. S. de., op. cit.
60
HELLER, A. Teoria della storia. Roma: Editori Riuniti, 1983. p. 84.
61
SIMMEL, G. La metropoli e la vita dello spirito. Milano: Armando, 1995.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
47

A realidade social é constituída através de processos de


interação, que são processos de socialização, os quais abrem
sempre novas vias em direção à socialidade. Essas vias são
múltiplas, produto de invenção dos indivíduos que as per-
correm, buscando constantemente novos espaços em via de
afirmação de sua personalidade e de constituição de novos
grupos.
Não é possível estabelecer a análise da realidade social
sobre a base da oposição entre indivíduo e sociedade, pois
esta última não é senão uma representação na qual o indiví-
duo vive em uma rede de processos de interação e leva nele
a consciência de socializar ou de estar socializado. O homem
que conhece, age e se representa é desenhado por Simmel no
interior dos processos de interação.
No que diz respeito à vida cotidiana, que é o que nos in-
teressa, Norbert Elias é claro ao demonstrar que a construção
dos costumes e das ações reflete de maneira exata a estrutura
do quadro englobante do conjunto dos indivíduos que a ha-
bitam. A vida coletiva dos homens é um aspecto de sua vida
cotidiana. Desse modo, a estrutura da vida cotidiana é parte
integrante da estrutura de tal ou qual camada social, na me-
dida em que essa camada não seja vista de maneira isolada
das estruturas de poder da sociedade global.62
Criticando a concepção de autonomia da esfera da vida
cotidiana, Elias defende a indissociabilidade entre vida coti-
diana e as mudanças estruturais da sociedade, a divisão do
trabalho e aos processos que envolvem as orientações esta-
tais. Coloca em evidência a comparação precisa entre o com-
portamento e a experiência dos homens e as fases diferentes
da evolução social; inclusive as mudanças de personalidade
podem ser correlatas com as mudanças da estrutura social

ELIAS, N. O processo civilizador (uma história dos costumes). Rio de Janeiro:


62

Zahar, 1984.
48 João Carlos Tedesco

sob seus diversos aspectos, como, por exemplo, a crescente


diferenciação social, o aumento dos canais de interdependên-
cia, a centralização, os controles sociais, etc. O autor diz cla-
ramente que o cotidiano é um dado societal, cuja análise não
pode estar desvinculada das estruturas societais globais de
poder; é um locus por excelência de interface da natureza e
da cultura. A vida cotidiana dos homens continua a ser pro-
duzida a partir de dados culturais, como lugar da produção e
da reprodução dos ritmos socioculturais e de sua articulação
com os ritmos siderais.
Para compreender de dentro a vida cotidiana, é necessá-
rio ter presentes algumas características que lhe são essen-
ciais: ambivalência, complexidade, duplicidade, polissemia,
localidade, banalidade e insignificância. Esse relativismo
compreensivo perspectiva o real, pluraliza os pontos de vista
e as razões, as conexões causais, as regras internas, os fina-
lismos e os conceptualismos. O conhecimento sensível, pela
experiência, quer compreender o dado social que dá acesso à
socialidade (empatia comunalizada) e às experiências comuns
dos homens, “considerando que é a banalidade cotidiana, o
vivido comum, fundamentos da trama societal, que estão na
origem dos movimentos de massa”.63
Simmel deixa claro como as sociedades nascem a partir
de pequenos grupos estreitamente unidos, nos quais as for-
mas de socialização não se objetivam unicamente em formas
uniformes como a família e o Estado. Daí a atenção especial
de Simmel para os fenômenos microssociais e uma concepção
relativista frente ao desenvolvimento histórico. A sociologia,
para o autor, tem o objetivo de descrever, analisar, explicar

DURAND, J. P.; WEIL, R. Sociologie contemporaine. Paris: Vigot, 1989.


63
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
49

as formas de interação social, da socialização, independente-


mente do conteúdo dessas formas.64
Desse modo, o formismo apresenta-se como condição de
possibilidade, como fundante de uma sensibilidade relativista
de métodos e teorias (advoga a produção de teses locais); pro-
põe uma sociologia como ponto de vista (anticonteúdos siste-
máticos), pesquisas simples enraizadas nos modos de ser po-
pulares (do já dito bom senso comum, do discurso do social em
vez de só sobre o social, se é que, à maneira de Baudrillard, o
social ainda existe!), com obsessão ao rigor. A sociologia deve
adentrar para as dimensões qualitativas e fenomenológicas
da sociabilidade. É o que veremos a seguir.

WATIER, P. La sociologie et les répresentations de l´activité sociale. Paris:


64

Meridiens Klincksieck, 1996.


Capítulo 4

A dimensão fenomenológica da memória

Se esquecer é trair, recordar significa condenar-


se à memória da dor.
Proust

Como vimos, o campo fenomenológico65 adentra “em


cheio” no horizonte da vida cotidiana e do senso comum. Es-
sas duas dimensões se diferenciam, mas, ao mesmo tempo,
alimentam-se, complementam e fornecem as bases para o
campo da fenomenologia, tanto da memória quanto do campo
social.
Vimos que é comum dizer que a vida cotidiana possui uma
estrutura de repetição, que é difícil imaginar a vida humana em
geral sem os ritmos habituais, sem as rotinas que constituem
a esfera individual e a existência social. É comum, na análise
da fenomenologia, a afirmação da impossibilidade do ser e do
agir social sem as operações pré-reflexivas ou pré-refletidas em
comum, sem um mundo dado já por conhecido, socializado, tá-
cito e tenaz, que muda, porém conservando-se, ou se alterando,
lenta e silenciosamente. É comum, também, perceber a esfera
do cotidiano como o horizonte do óbvio, da carência do extra-
ordinário, do ser convencional sem ser demais interrogado (e
nem possua as condições para tanto), do ser pragmático, ou
seja, que resolva, dê conta das exigências, necessidades e dese-

Aqui não faremos mais do que uma simples síntese de alguns dos pressupostos
65

básicos do campo em questão com o objetivo de indicar alguns elementos que


poderão ser interessantes quando do estudo sobre memória e, principalmente,
de memória social e cultural de idosos. Os autores básicos que revisamos foram
Henri Bergson, Peter Berger e Schutz (detalhes na bibliografia).
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
51

jos subjetivos, bem como nos possibilite conhecer as coisas que


nos rodeiam e os comportamentos das outras pessoas.66
Não obstante, entendemos que a esfera do senso comum
é uma espécie de base teórica de compreensão, de saber, de
atenção em relação ao que fazemos, aos papéis que cumpri-
mos, ao que se apresenta na forma repetitiva na vida coti-
diana, ao que se mostra como natural, que descarta (e não
motiva) a dúvida, ao que é dividido com os outros e é anônimo.
Poderíamos dizer que o senso comum se funda num pen-
samento comum, a priori dado como consentido, suposto e de
difícil demonstração, e que também não é tudo nem só o que o
homem pensa ou poderá pensar na vida cotidiana.
O senso comum não impede ainda que não motive, nem,
consequentemente, dificulte o ponto de vista, a subjetividade,
a expressão da experiência individual e configurada, particu-
larmente, ao horizonte do possível e não só do dado.67 Porém,
não há dúvidas de que, na multiplicidade do agir social e in-
dividual, em correlação com o senso comum, ao selecionar,
dentre os infinitos objetivos e intenções possíveis, o senso co-
mum apresenta ações que são plausíveis no âmbito da nossa
cultura, fornecendo um quadro de instrução que favoreça a
organização da conduta, a possibilidade de atingir objetivos
(pragmatismo) que se pressupõe serem os mais sensatos em
termos de resultados.
As noções de pré-juízo (pressupostos e juízos passados e
preventivos), de tipificação (abstração da qualidade específica
de algo, representação da realidade, condução do particular ao
geral...), de memória social e de consciência prática (tradição
existente nos confins de uma comunidade que se transmite

66
Para uma análise mais aprofundada sobre os autores e as abordagens do campo
da fenomenologia do cotidiano, ver TEDESCO, J. C. Paradigmas do cotidiano.
Introdução à constituição de um campo de análise social. Passo Fundo/Santa
Cruz: UPF Editora/Edunisc, 2002, 2. ed.
67
JEDLOWSKI, P. Il sapere dell’esperienza. Milano: Franco Angeli, 1991.
52 João Carlos Tedesco

por gerações sucessivas), de pré-científico (pré-compreensão


do mundo da qual partem significados atribuídos antecipa-
damente e intersubjetivamente), de memória coletiva e cons-
ciência ordinária (conhecimento partilhado e pressuposto, o
qual permite a interação e a familiaridade das interações dos
membros), de experiência e pertencimento (adesão, significa-
dos vividos na história, nos grupos sociais, inteligibilidade e
intersubjetividade e que possui historicidade), dentre outras,
são caras à fenomenologia que aborda o senso comum e a me-
mória.43
O senso comum deixa evidente que existe uma trama de
pressupostos que regula implicitamente a nossa vida e cuja
ruptura poderá nos deixar no caos. Porém, às margens de
incertezas, um algo mais, um etecétera, a dúvida, podem se
apresentar como contraposição, ruptura e estratégia frente
às ideias de objetivação, de naturalização, de pressuposto, de
fato social, de experiência de socialização e de obviedade, tão
comuns nas abordagens clássicas sobre senso comum e vida
cotidiana.
O senso comum deve ser percebido como dinâmica, como
processo variável, histórico e contextual, como sistema de ex-
pectativas e como experiência. Esta última é importante frisar,
pois é um vivido e um saber caracterizado na sua singularidade.
Na noção de experiência está implícita a ideia de dife-
rença, pois é expressão de seus sentidos. Senso comum e ex-
periência não se excluem, não são um externo e um interno
ao indivíduo; são, sim, a dialética que permite e que constitui
a vida cotidiana. A experiência permite questionar o óbvio, o
comum, o acordo intersubjetivo e desenvolvido como natural e
reconhecido por todos; permite resgatar a dúvida, distanciar-
se do óbvio e valorizar as questões que o senso comum quer
evitar; permite pensar por dentro e por fora do senso comum,
dando novos significados e funções à vida cotidiana.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
53

Diz Jedlowski que a experiência é um confronto com o ris-


co; é algo como uma viagem e seu movimento é complexo, ou
seja, move-se do senso comum, nega-lhe a imediatez e denomi-
na novamente as coisas. Nesse sentido, o indivíduo apropria-se
do vivido e sintetiza-o,68 fornece uma nova orientação para a
vida, como via de acesso à sabedoria. Benjamin diz que a ex-
periência “é um fato de tradição, tanto na vida privada quan-
to na coletiva. Ela não consiste tanto de singulares eventos
exatamente fixados na lembrança, mas, sim, de dados acu-
mulados, frequentemente inconscientes, que se apresentam
na memória”.69
Se pensarmos nas simbologias da vida cotidiana atual,
veremos que, para o idoso camponês, a fotografia parece evo-
car um sentimento maior de vida e de realidade;70 possui uma
força evocadora de microexperiências de vida e de morte, ao
mesmo tempo na qual se possibilita que a memória se au-
to-alimente. A memória necessita de imagens. Desse modo,
o esquecimento é dificultado. Nesse caso, a memória é parte
de uma consciência simbólica, é um sentir mais profundo da
vida, do tempo e da identidade.
A fotografia, como veremos na segunda parte, permite
reconstituir e reparar, reconhecer e proteger fatos, identida-
des, lugares, tempos, objetos; é um suporte de sentimentos,
presentificação de ausentes, mensagem visual e produtora de
realidades; faz “parar a vida” como diz Barthes,71 mas tam-
bém revela a consciência da sua passagem e da sua transfor-
mação. É por isso que os símbolos são linguagens; linguagens
de consciência e de formulação dessa.
68
JEDLOWSKI, P. op. cit. p. 66.
69
BENJAMIN, W. Di alcuni motivi in Baudelaire. Torino: Einaudi, 1962. p. 88.
70
SARTRIANI, M. L. Memoria e autorappresentazioni nello scambio de immagini
fra nuclei familiari di immigranti italiani all’estero. In: PITTO, C. (a cura di). Per
una storia della memoria. Antropologia e storia dei processi migratori. Calabria:
Jonica, 1980. p. 159-201.
71
BARTHES, R. La camera chiara. Nota sulla fotografia. Torino: Einaudi, 1980.
54 João Carlos Tedesco

Para a fenomenologia, principalmente a husserliana,


toda a consciência é consciência de algo. Essa dimensão ob-
jetal tem implicações no plano da memória, pois a lembrança
de alguma coisa é imediatamente lembrar-se de si, ou seja, o
sujeito, a consciência, a experiência são passíveis de intencio-
nalidade, de presença, de correlação entre atos e correlatos.
Para a fenomenologia, o que deixa lugar para quem; é uma
espécie de olhar interior que demanda intersubjetividade, im-
pressões, retenções, estratégias de exteriorização, fluxos de
tempos subjetivos e atualidade de aparição.72
Halbwachs atribui à memória um olhar exterior, uma
entidade coletiva que nomeia grupo ou sociedade. “Para se
lembrar, temos necessidades de outros.” Essa é a frase para-
digmática do autor, que coloca em evidência a ideia de que a
experiência individual pertence a um grupo. Noções de reco-
nhecimento, testemunho, lembranças intercambiadas, mem-
bro/pertencimento, engajamento, unidade interna da consci-
ência, representações coletivas e influência social são funda-
mentais para a compreensão do olhar externo da memória em
Halbwachs. “Cada memória individual é um ponto de vista
sobre a memória coletiva”, diz o autor.73
A experiência, como já vimos, é uma síntese, um passado
sintetizado e tornado disponível no presente, como uma tra-
dição, porém que não reproduz apenas na singularidade do
indivíduo. Diz Jedlowski74 que a experiência é uma síntese
na qual os conteúdos da memória individual se fundam com
aqueles da memória coletiva, memória essa tanto material
quanto simbólica, que se radica em uma ordem prática, habi-
tual, cognitiva, fundada de elementos objetivos e subjetivos e

Ver RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli. Paris: Seuil, 2000. p. 115-146.


72

HALBWACHS, M. A memória coletiva, p. 94.


73

JEDLOWSKI, P. Op. Cit, p. 83.


74
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
55

que permite um conjunto peculiar de modalidade de percep-


ção, de sensibilidade e de enfrentamento prático e psicológico.
A experiência na memória permite, como diz Simmel,
incorporação de sentidos aos objetos e reconhecimentos dos
elementos recorrentes do próprio ambiente cotidiano.75
A tradição fenomenológica (principalmente em Berger e
Luckmann) defende que a análise da vida cotidiana deve se
abster de toda hipótese causal e genérica. Essa visão entende
os atores, em si mesmos, como ponto de partida da observação.
Schutz76 defende a ideia de que a linguagem cotidia-
na esconde uma riqueza de visões tipificadas e previamen-
te construídas, já elaboradas nas ações mais ordinárias. As
referidas ações guardam conteúdos inexplorados, ou seja, há
uma reciprocidade de perspectivas que estrutura socialmente
o mundo da vida do indivíduo. A ideia central de Schutz é que
toda a ação humana repousa sobre um conjunto de informa-
ções que nos são, em seu sentido amplo, fornecidas pelos ou-
tros. Essas informações são socialmente determinadas e reve-
lam-se sempre incompletas para interpretar o mundo. Nessa
ótica, o sujeito pensante opera seus percursos sociais com a
ajuda de um stock de conhecimento mais ou menos preciso,
mais ou menos aplicável no mundo da vida, em que ele entra
em interação com os outros sujeitos, gerando seus percursos
da mesma maneira. “O homem encontra na sua vida cotidia-
na a todo momento um stock de conhecimento disponível que
lhe serve de esquema de interpretação de suas experiências

75
SIMMEL, G. La metropoli e la vita spirituale. In: MALDONADO, T. (a cura
di). Tecnica e cultura. Milano: Feltrini, 1979.
76
Para Schutz, o mundo social e o natural são bem diferentes. A noção de com-
preensão envolve método, epistemologia e vivido experienciado no conhecimento
cotidiano, permite compreender as ações do ser humano em correlação e em
situação (o ator e seus problemas) com o mundo social. Uma análise nesse
sentido encontra-se em JUAN, S. Les formes élémentaires de la vie quotidienne.
Paris: PUF, 1996.
56 João Carlos Tedesco

passadas e presentes e determina também antecipações das


coisas futuras.”77
A realidade social é vista por Schutz como produto de
interações, do somatório de objetos e fatos da vida cultural e
social que o senso comum experiencia nas (inter)ações. A in-
tercomunicação e a linguagem manifestam e exteriorizam esse
mundo nos seus fins práticos. Os mundos do indivíduo (pri-
vado) podem ser intercambiados, estar em consonância com o
mundo dos outros e ser transcendidos a um núcleo comum. As
idealizações permitem encontros e manutenção de um mundo
comum. Há um saber social, segundo Schutz, que se desenvol-
ve nas ações humanas (interações) e que não pode ficar de fora.
Schutz expressa claramente que a significação não é
inerente à natureza enquanto tal, mas é o resultado de uma
atitude seletiva e interpretativa do homem na natureza. A ob-
servação dos fatos, dos dados e dos acontecimentos, nas suas
interações, vai criando estruturas internas próprias de signi-
ficação e de pertinência para os indivíduos que, nesse mundo,
vivem e pensam. O papel do cientista social está em atribuir
significados conceituais àquilo que os indivíduos produzem
em sua (inter)ação cotidiana.
[...] deixado a si mesmo, o senso comum é conservador e pode
legitimar prepotências, mas interpenetrado do conhecimento
científico pode estar na origem de uma nova racionalidade, uma
racionalidade feita de racionalidades [...]. O conhecimento cientí-
fico pós-moderno só se realiza enquanto tal na medida em que se
converte em senso comum.78

Esse mundo é pré-selecionado e pré-interpretado por


uma série de construções próprias ao senso comum, portanto
sobre uma realidade cotidiana; são os objetos de pensamen-

77
SCHUTZ, A. Fenomenologia del mondo social. Buenos Aires: Paidós, 1972.
p. 142.
78
SANTOS, B. de S. Um discurso sobre as ciências. Porto: Afrontamento, 1987.
p. 56-57.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
57

to que determinam o comportamento, que definem o objeto


de ação, enfim que ajudam a encontrar o ambiente natural e
social.
As representações comuns e as tipificações estruturam
atividades e significações que modelam o mundo do conheci-
mento comum. Mais bem desenvolvida por Simmel, a noção
de tipificação permite situar os indíviduos na sociedade. O
conhecimento que os indivíduos têm e podem ter de uns e
outros é uma condição da vida social, mas também do saber
sociológico.
Em correspondência com Schutz, significa dizer que todo
o conceito que toma lugar num modelo de agir humano deve
ser construído de tal maneira que uma ação produzida por
um indivíduo no seio do mundo vivido e de acordo com a cons-
trução típica seja compreensível tanto para o indivíduo quan-
to para seus semelhantes e que esteja no quadro do pensado
cotidiano.79 Satisfazer esse postulado garante a consistência
das construções do sociólogo em relação às construções formu-
ladas pela realidade social em seu pensar cotidiano.

Memória e experiência de percepção


Os homens e a sociedade não têm recordado do
mesmo jeito nem têm tido à disposição os mesmos
instrumentos para recordar.
Matera e Fabietti

Falamos algo sobre fenomenologia social por ser ela


passível de aplicação ao horizonte da memória, por buscar
entender a dimensão subjetiva da memória, descrever como
os fenômenos se apresentam à consciência (motivações e ra-

PAIXÃO, L. A. A etnometodologia e o estudo do poder: notas preliminares.


79

Análise e Conjuntura, Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v. 1, n. 2, maio/


ago. 1986. p. 93-110.
58 João Carlos Tedesco

cionalidades subjacentes às interações sociais), entender as


concepções que os indivíduos carregam quando constroem o
mundo social em que vivem.80
A fenomenologia é uma espécie de psicologia social inte-
ressada nas formas de comportamento público (intencionali-
dades expressivas), na interação, na co-presença (a aceitação
ou não de regras, a comunicação, a manifestação visual e oral,
a postura e o movimento do corpo, o espontâneo, a roupa...);
pode auxiliar também na compreensão de situações de face
a face numa entrevista, por exemplo, entender as inúmeras
estratégias de manipulação e interferência da subjetividade e
da identidade individual e social.
Para a fenomenologia, a interação é manifestação de in-
divíduos em representação, requerendo que esses se transfor-
mem em personagens. É desse modo que os imponderáveis
da vida social (resíduos) aparecem, estruturam-se na (situ)
ação e ocasião social. A fenomenologia quer interpretar a re-
alidade social atrás dos olhos do ator, realidade essa fundada
em ações espontâneas, mescladas às atividades que se sobre-
põem (temporalidade vivida e sua consequente experiência,
escolaridade, profissões, ganhos, classes, etnias...), propician-
do ao sujeito a competência e a defesa para atuar nos espaços
interativos (pensar nos estigmas sociais, nos ressentimentos
e nos ufanismos na análise de memória de algum fato). En-
contramos muito isso em nossa análise empírica, como vere-
mos melhor na terceira parte do trabalho.
A aplicação da fenomenologia à análise da memória bus-
ca subjetivar os elementos da lembrança. Bergson diz que a

Simmel nos faz pensar no dinheiro como articulador de formas sociais de in-
80

teração cotidiana, como categoria abrangente da visão de mundo. Para o autor,


o dinheiro envolve desejo, frustração, prazer estético, sacrifício, troca, riscos,
precisão, expectativas racionais e simbólicas, otimismo, segurança, dentre outros;
revela o tecido normativo e ambivalente da modernidade (desejo/frustração,
liberdade/alienação, etc.).
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
59

memória é uma espécie de auto-análise da imagem presente


referenciada ao passado, representação de signos de consciên-
cia, representação que precisa enfrentar o espaço e o tempo.
Mesmo que haja estágios de memória (infra e inconsciente),
o passado não morre, vive em estado de potencialidade e la-
tência.81
Bergson localiza-se no cenário revolucionário das ciên-
cias sociais do fim do Século XIX e início do XX. Segundo o
autor, fazendo uma correlação entre matéria e memória, essa
última começa da sensação, ou seja, um objeto estimula as
fibras sensitivas, os aparatos sensoriais e se converte em ima-
gem consciente. Desse modo, a memória permitirá reproduzir
tal imagem ainda que o objeto não se encontre mais no cam-
po da percepção. A consciência tem a capacidade de escolher
atentamente quais são as percepções que se deseja conservar.
A percepção e a memória possuem um objetivo instrumental
e intencional; daí que a memória se torna, então, aquilo que
comunica à percepção o seu caráter subjetivo.
Bergson afronta o problema do reconhecimento, ou seja,
vai buscar no passado as representações mais condizentes
para inserir-se nas situações presentes; diferencia memória
-hábito (a qual possui um caráter de repetição de algo até se
tornar hábito) de memória-imagem (o registro que fica im-
presso, está radicada no presente e objetiva o futuro, é movi-
da pela vontade, pela imaginação). Para o autor, a memória
não é um fenômeno coletivo, nem social, mas um estatuto es-
piritual, como memória em si mesma.82
A dimensão material e pragmática da memória, sua exi-
gência de exterioridade atrapalha e, muitas vezes, bloqueia o
curso da memória. Os graus de importância dos fatos de me-
mória vão denotando as lembranças e os esquecimentos. Na

Ver BOSI, E. Memória e sociedade.


81

BERGSON, H. Matéria e memória. São Paulo: Martins Fontes, 1990.


82
60 João Carlos Tedesco

verdade, perpassa a ideia de que há sempre uma experiência


da percepção dos fatos, do mundo externo, do que resulta o
papel mediador da imagem na/da memória. A memória é uma
espécie de autoanálise da imagem presente referenciada ao
passado; representação de signos de consciência; representa-
ção essa que precisa enfrentar o espaço e o tempo (lembrar do
corpo, da força física, da ligação entre corpo e atividade, corpo
e capacidade de lembrar, velhice...).
A memória corporifica-se no presente e interfere na for-
mação das representações presentes; por isso, a diferença en-
tre a memória-hábito (utilidade, repetição/ação, socialização,
enquadramentos...) e a memória-lembrança (sonho, singula-
ridades, evocações, individualizado, espírito livre...).83 A me-
mória seria o lado subjetivo de nosso conhecimento acerca das
coisas, daria segurança, pois levaria o sujeito a reproduzir
formas de comportamento que já deram certo; teria a função
prática de limitar a indeterminação.

Memória e vida cotidiana na


perspectiva da fenomenologia

Como falamos, Bergson compreende que na vida cotidia-


na se faz mais presente a memória-hábito, ou seja, a repeti-
ção de gestos e palavras, exigências de socialização, ação e
conhecimentos úteis ao trabalho e às exigências sociais e ao
adestramento cultural. O cotidiano social caracteriza-se pela
inteligência imediata, sentimento de presença imediata no
mundo, um cenário instituído que se funda sobre a base de
uma racionalização do mundo e do domínio técnico da natu-
reza.

BERGSON, Matéria e memória.


83
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
61

O cotidiano constitui-se de sistemas simbólicos, de téc-


nicas, regras de comportamentos, papéis, representações so-
ciais, linguagens diversas, que normatizam formas de agir,
de se entender como moderno, de interagir com o tempo e nos
espaços variados em que cotidianamente nos inserimos, de,
no limite, sermos sociáveis.
No entanto, racionalidades adaptativas fazem-se presen-
tes; a tradição, a integridade e as continuidades que resistem
ao contratempo da mudança, as lógicas práticas, os resíduos/
fragmentos, os imponderáveis e os sistemas de valores podem
se manifestar. É desse modo que, para a fenomenologia, o
passado não morre; é esquecido, porém, em estado de poten-
cialidade. O que decreta a redução da possibilidade de memó-
ria é a dimensão material e pragmática da vida. A memória
estaria guardada por inteiro como ela foi para quem a viven-
ciou, como páginas impressas em nosso espírito (inconscien-
te); por isso, seria a possibilidade de reaparição, de despertar,
de reconhecer as lembranças.84
Bosi, fazendo uma análise muito interessante de memó-
ria de idosos italianos que viveram o período varguista da
década de 1940 no Brasil, afirma que a memória tem a fun-
ção social de guardar o tesouro espiritual da comunidade, da
família, da tradição e da honra. A perda da narração, de dar
conselhos, de trocar experiências (em virtude do triunfo da
informação e da pressa) reduz o potencial social, subjetivo e
fenomenológico da memória. Situada nesse horizonte, a cons-
ciência presente e cotidiana é induzida a não acolhê-la mais,
a bloquear o seu curso temporal.85

BOSI, E. Memória e sociedade.


84
85
Id. ibid
Capítulo 5
Memória, modernidade e
mudança social

O debate atual sobre modernidade entrecruza-se com


o desenvolvimento do campo de discussão sobre a memória.
Esse cruzamento sublinha seu caráter dinâmico, plural, am-
bivalente, conflitual, dá ênfase à passagem do coletivo ao in-
dividual e à cultura midiática que prepondera em ambas.
Modernidade e memória tematizam projeção, projeto –
vontade de duração no tempo, um caráter ambivalente, de
significados partilhados, de tensões – de “uma contaminação
cultural, de uma humanidade sempre mais móvel e interde-
pendente [...] de incertezas, fragmentações, precariedades, de
tempos breves e incapazes de projeção e de narração de um
tempo longo”.86
Memória e modernidade possuem raízes sociais e cultu-
rais comuns, surgem de um mundo em transformação profun-
da e que provoca redução de valores tradicionais e gera des-
continuidades recorrentes, que oferece instrumentos técnicos
cada vez mais sofisticados na exteriorização da capacidade
humana de recordar.
Na modernidade, a memória não aparece mais como um
depósito, mas como uma pluralidade de funções, uma comple-
xa rede de atividades de seleção, de filtragem, na reestrutura-
ção em correspondência com as necessidades e as demandas

RAMPAZI, M. Presentazione. Rassegna Italiana de Sociologia, a. XLII, n. 3,


86

lug./set. 2001. p. 368.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
63

do presente tanto em nível individual quanto ao social.87 Pre-


sente e passado são passíveis de interferência e de filtragem
social e humana.
Há sempre, em Halbwachs, a ideia da seleção, de síntese
e de reconstrução da memória coletiva em razão dos interes-
ses do presente. Ela é um fator de identidade do indivíduo/
grupo, mas também sua expressão e manifestação do momen-
to presente.
Em correlação com essas proposições, são as interpretações da me-
mória como lugar de conflitos entre versões diversas do passado e,
enfim, observação da capacidade de memória de institucionalizar-
se em práticas sociais de comemoração, de escrita, de arquivação,
que consentem em determinar versões do passado, de fixar-se e
eventualmente de impor-se sobre o outro.88

Para Halbwachs, determinados eventos continuam a ga-


nhar espaço de lembrança porque continuam a significar para
os grupos sociais. Portanto, poderá haver uma reconstrução ou
não coletiva do passado, até porque as memórias coletivas são
plurais. Existem diversos grupos numa sociedade, do que re-
sulta que, para o autor, muita coisa vai depender do contexto
e da capacidade de poder dos grupos em fornecer explicação
plausível a determinados fatos e processos da realidade.
A ideia de moderno pressupõe uma ideia de futuro, de
transtemporalidade. O que é moderno hoje pode tornar-se
antigo amanhã. A cultura ocidental moderna pensou a cul-
tura em si como um vir-a-ser, por isso, a contraposição das
culturas tradicionais e das modernas. Essa dimensão produz
implicações para a memória, pois as dimensões temporais
se alteram. A tradição constitui-se nesse horizonte do velho/

87
JEDLOWSKI, P. Memorie. Temi e problemi della sociologia della memoria nel
XX secolo. Rassegna Italiana de Sociologia, p. 373-391. Ver, também, ROSA,
A. et al. Tracce. Studi sulla memoria collettiva. Napoli: Liguori, 2001.
88
JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna italiana di sociologia, XXXVIII, n.1, p.135-
47, mar. 1997, p. 52.
64 João Carlos Tedesco

novo. Para a memória, a ideia de passado ganha dimensão de


presente; no entanto, para a consciência histórica, o passado
é passado.
Segundo Le Goff, o desejo de conservação do passado ca-
minha na mesma intensidade com a qual se distancia.89 Po-
rém, o moderno é transformação incessante; o que caracteriza
a modernidade é sua capacidade de, principalmente no hori-
zonte material, superação e de alteração.90 Nesse sentido, o
processo mercantil no capitalismo, a racionalização e a divi-
são do trabalho foram muito bem analisados por Marx, Weber
e Durkheim, respectivamente, ambos modernos, críticos da
modernidade.
No que pudemos entender, a tese básica de Halbwachs
é de que a memória, tanto no plano individual quanto no co-
letivo, constitui-se como processo de reconstrução. Ela não é
um depósito (como o era em Bergson), mas é algo que com-
porta um aspecto social ineliminável, que conserva tanto os
processos de sedimentação dos acontecimentos passados na
consciên­cia quanto os de sua conservação e de seu reconhe-
cimento.
Em Les cadres..., Halbwachs mostra como as categorias
sociais da linguagem, das representações do tempo e do espa-
ço constituem a fixação e o reconhecimento das recordações
individuais. “Na memória, portanto, o passado não está sem-
pre acessível em modo direto e não está conservado em modo
definitivo. A mediação com o presente o constitui de volta em
forma diversa.”91 É por isso que a memória, em Halbwachs,
precisa ser entendida como manifestação de um conjunto di-
nâmico, espaço não só de seleção, mas de reinterpretação e re-

89
LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia, v. VIII, Torino: Einaudi, 1979.
90
BERMAN, M. Tudo o que é solido desmancha no ar. São Paulo: Companhia
das Letras, 1994.
91
JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza e modernità: memorie e società nel XX
secolo. Milano: Franco Angeli, 1989. p. 47.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
65

formulação do passado, portanto, em transformação/renova-


ção de sentido. Sua função está mais ligada em preservar os
elementos do passado que garantem aos sujeitos sua própria
continuidade e sua afirmação identitária, do que propriamen-
te fornecer uma imagem fiel do passado.
Já dissemos que a mudança é a norma institucionalizada
nas sociedades modernas, nas quais o que legitima o conteúdo
da tradição é a racionalidade; daí a dificuldade, segundo We-
ber, de manutenção da tradição.
Se existe algo que constitui, de modo unívoco, o sentido da me-
mória na modernidade, é a percepção da passagem do tempo.
Em outros termos, é a relação que essa possui com a percepção
da transitoriedade da existência humana. Frente à passagem do
tempo, frente à percepção da radicalidade da morte num mundo
privo de horizontes transcendentes, frente à visão de mudança e
do caráter definitivamente passado do que é passado, a memória
é uma faculdade ambivalente.92

Benjamin, citando Baudelaire, já dizia que, no capitalis-


mo ocidental, a cidade se transforma mais rapidamente do
que o coração de um homem, ou seja, as mudanças são tantas
e com um ritmo de velocidade que o indivíduo, em meio a isso
tudo, sente-se imóvel, e aquilo que aprendeu a amar tem a
sensação e a objetividade de andar em ruínas, principalmente
o mundo em que sua existência se constituiu. Nas palavras
pouco animadoras de Benjamin, “o progresso é um anjo que
procede no futuro com o olhar atônito voltado para trás a con-
templar acúmulos de ruínas”.93
É desse horizonte de análise que advêm as noções de
tempo perdido, de nostalgia em Benjamin e, mesmo, em Sim-
mel, noções essas importantes para as análises de memória

JEDLOWSKI, P., op. cit., 1989. p. 91.


92

BENJAMIN, W. Immagini di città. Torino: Einaudi, 1971. p. 84; ver, também,


93

do autor Sul concetto di storia. Torino: Einaudi, 1997.


66 João Carlos Tedesco

narrativa de idosos.94 “Isso é evidente ao nível da passagem


das gerações. Pois o mundo muda, as categorias com as quais
as gerações passadas definiram o próprio mundo tornam-se
obsoletas pelas gerações que as seguem.”95 As reflexões de
Simmel sobre a modernidade fundamentam-se na questão
do surgimento da grande metrópole e da economia monetá-
ria madura e suas repercussões sobre outras esferas da vida,
principalmente no campo dos sentimentos e da experiência
subjetiva.
Metrópole e monetarização expressariam a concentra-
ção, intensificação, difusão e extensão da modernidade; am-
bas provocariam um aumento da troca, do consumo, da dife-
renciação social, incremento da funcionalidade das relações
sociais. A experiência torna-se, a partir daí, diferenciada e
descontínua (fragmentada). A cultura transforma-se em cul-
tura de coisas e de objetos; produz-se reificada, autonomiza-
da, dissociada e distanciada socialmente.
Na sociedade moderna, segundo críticos da modernida-
de, os valores perdem seu caráter relacional, deixando lugar
para a teleologia meio-fim, para a quantidade, para o aumen-
to do individualismo e da funcionalidade das relações sociais.

94
Não obstante a vasta literatura sobre a crise da duração, que caracteriza a
modernidade, há também uma vasta bibliografia que analisa a possibilidade
de convivência, em conflito, entre a chamada “tradição” e a sua consequente
modernidade. Não há dúvida sobre as profundas transformações que se operam
na vida cotidiana, no campo tecnológico, nas formas de organização social, no
progresso industrial, ou seja, alterações no mundo objetivo. Porém, na esfera
da subjetividade, os processos não andam com a mesma velocidade. Família,
etnia, moralidade, tradição, religião, ética social, parentesco [...] aglutinam-se à
dimensão objetiva da transformação para, ainda que em grau menor, encontrar
espaços de atuação, estratégias de convivência. Nesse sentido, percebemos que
modernidade e tradição não se excluem, mas se retroalimentam, em sinergia,
ainda que movidos, em grande parte, pelos pressupostos da primeira. No âm-
bito da memória, não há dúvidas de que a perda da faculdade de narrar, de
intercambiar experiências produziu a crise da continuidade. A intelectualização
da experiência promoveu a racionalização e a burocratização da memória e seu
resguardo em lugares institucionalizados social, política e culturalmente, como
bem observou e analisou Pierre Nora.
95
JEDLOWSKI, P., op. cit., p. 71.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
67

Nesse cenário, os valores pessoais reduzem-se a valores mo-


netários e o estilo de vida torna-se um contraposto de elemen-
tos estanques e fragmentários. Diz Adorno que experiência é
a continuidade da consciência, na qual perdura o que não está
mais presente, na qual o exercício e a associação criam no in-
divíduo a tradição. O conceito de experiência, na perspectiva
sociológica, necessita das noções de duração, de sedimenta-
ção, de tradição e de nostalgia.96
A ideia de experiência torna-se problemática com a mo-
dernidade; a experiência da modernidade, como já vimos, é
uma experiência de mudança contínua, de tempo acelerado,
de eventos que transcorrem rapidamente e se sucedem, de au-
sência de correspondência de um “antes”, o qual é um peso de
que é necessário se desvincular para construir um novo real;
requer um cenário do imprevisível, do incerto, de eventos, de
aceleração da história, da não incorporação do passado como
orientação e atribuição de sentido à experiência presente, da
perda da mediação dos quadros culturais na constituição da
identidade individual; produz uma continuidade fundada na
capacidade pessoal, da autonomização, na impossibilidade
de sedimentar uma experiência maturada. Exige um homem
cuja memória foi educada a não lembrar, senão por breve
tempo, até que outra “coisa” mais importante se imponha à
sua atenção e roube a recordação precendente; é o intensificar
da vida nervosa como resposta aos estímulos nervosos e con-
traditórios, como coloca Simmel.97

96
ADORNO, T. W. apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco
Angeli, 2001. p. 39.
97
SIMMEL, G. La metropoli e la vita dello spirito. Milano: Armando, 1995. p.
36. O autor fala da hipertrofia da consciência, do indivíduo a-histórico, do
aventureiro, da pobreza de experiência, da intelectualização da experiência,
da distância do mundo, etc., como expressões fortes da realidade produzida
pelos referenciais econômicos, culturais e sociais da modernidade na sociedade
capitalista.
68 João Carlos Tedesco

Halbwachs já dizia que um pensamento só toma consis-


tência quando possui uma duração suficiente.98 Os excessos
de eventos produzem novos tempos, novas identidades, no-
vas experiências passageiras e novas invenções, dificultando
a possibilidade de sedimentar a memória. Para Benjamin, o
papel da mídia é fundamental na construção desse tempo ace-
lerado na modernidade. Para o autor, a economia produziu
a racionalidade econômica do tempo. A banalização da exte-
riorização da memória pelos meios de comunicação retirou o
potencial mediador da narração, da expressão do patrimônio
comunitário.
Nesse cenário, a tradição é substituída pela informa-
ção pontual, substituível e efêmera, rompendo o potencial
e o exercício de associação, da continuidade da consciência
(tradição), tornando o indivíduo o único “testemunho” de sua
identidade. Benjamin diz que o olhar autobiográfico torna-se
o único capaz de fornecer ao indivíduo o horizonte da própria
continuidade.99
Na análise de Weber, e também de Simmel, está claro
que, quanto mais a experiência moderna assume os traços
de uma experiência intelectual, mais os aspectos não instru-
mentais da memória tendem a ser deixados de lado; com isso,
traumatiza-se e privatiza-se a esfera dos valores e dos signifi-
cados culturais mais profundos da sociedade.
Segundo Simmel, a essência da experiência moderna
está no aventureiro, que é o exemplo extremo do individualis-
mo a-histórico, do que vive no presente: “A essência da aven-
tura é de ser cortada fora do resto da vida e da sua continui-
dade.”100 Os eventos seguem, sem se sedimentar, de forma que

98
HALBWACHS, M. A memória coletiva…
99
JEDLOWSKI, P. Il testimone e l’eroe. La società della memoria. In._______;
RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 21.
100
JEDLOWSKI, P. op. cit., p. 80.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
69

cada fato novo aparece como independente do que lhe prece-


deu; desse modo, desenvolvem-se as noções de descontinuida-
des, de autonomia entre passado e futuro, tão em evidência
entre os pós-modernos.101
Não podemos esquecer que as análises sobre modernida-
de colocam em evidência as diferenças nas condições de vida
do homem contemporâneo em relação a contextos sociais e
históricos anteriores. O crescimento da cultura objetiva cami-
nhar em correlação com o atrofiamento do saber individual,
com sua fragmentação e especialização. Desse modo, a iden-
tidade individual torna-se frágil, havendo sempre mais ne-
cessidade de uma reconstrução de uma biografia pessoal por
meio da retomada do passado.
Com essa atrofia da experiência, segundo Benjamin, os
nexos que ligavam os vividos individuais à memória no tem-
po foram irremediavelmente perdidos. Essa subtração da ex-
periência faz com que sua comunicação caia no anonimato.
Segundo o autor, a imensa quantidade de ações que se suce-
dem de forma automática e que produzem uma cotidianidade
induzem uma série de experiências não realmente assimila-
das, mas registradas no nível de uma consciência superficial.
Com isso, no amontoado de informações incessantes e num
mundo de temporalidade incerta, à memória não é mais dada
a função de continuidade da identidade, e, sim, de desconti-
nuidade, de estranheza temporal da própria temporalidade,
tempo esse artificial, que vive “de uma exterritorialidade sem
participar de alguma relação temporal”, diz Benjamin.102

101
A pós-modernidade, principalmente com Maffesoli, vai utilizar muitas noções
da crítica à modernidade de Simmel para constituir seu arcabouço teórico. As
noções de efêmero, presentismo, proximia, fugacidade e transitório são suas
peças-chave.
102
TRAPINO, A. Sentimenti del passato. La dimensione esistenziale del lavoro
storico. Firenze: La Nuova Italia, 1997. p. 249.
70 João Carlos Tedesco

Isso tudo tem profundas implicações no campo da me-


mória e das responsabilidades sociais e, mesmo, perante a
história e a cultura, pois um indivíduo que perde o sentido da
relação com o próprio passado perde também um elemento
fundante de sua identidade, ou seja, a capacidade de perce-
ber sua própria continuidade, de se reconhecer como “mesmo”
no decorrer do tempo. Sem essa percepção, não pode haver
responsabilidade. As responsabilidades na história na vida
do indivíduo não se resumem ao presente. A memória históri-
ca e a memória política fazem reconstituir responsabilidades
(lembrar o nazismo, o fascismo, a resistência, a escravidão, o
racismo, a degradação ambiental, dentre outras).
Marcuse dizia que a memória, malgrado sua redução fun-
cional e simbólica com a modernidade, pode também ser um
reservatório de força subversiva. Os ressentimentos históricos,
étnicos, afetivos, raciais, dentre outros, atestam isso. O pensa-
mento utópico e revolucionário em Marcuse constitui-se justa-
mente nessa capacidade de “tomar distância do presente”.
Tanto Benjamin quanto Marcuse e Weber analisaram
muito bem o quanto a referência ao crescimento do saber
científico de um tipo de saber que “consome” as suas próprias
ideias reduz o potencial da importância da memória e disso se
alimenta e “cresce” continuamente.
No mundo em que vivemos, o problema a enfrentar não é mais só
o do declínio da memória coletiva e a sempre menor consciência
do próprio passado, mas é a distorção deliberada dos testemunhos
históricos, a invenção de um passado mítico construído para servir
os poderes. Somente o historiador, com sua rigorosa paixão pelos
fatos, pelas provas e testemunhos, pode realmente montar guarda
contra os agentes do esquecimento, contra os assassinos da memória,
contra os conspiradores do silêncio.103

YERUSHALMI, Y. H. Riflessioni sull’oblio. Parma: Pratiche Editrice, 1990.


103

p. 23-24.
Capítulo 6

Memória e pós-modernidade
A pós-modernidade social104 move-se baseada em alguns
conceitos básicos, entre os quais diversidade de interpreta-
ção, flexibilidade e liberdade de manifestação, importância da
localização e da identificação dos atores em seu contexto, o
cuidado com a emotividade, a subjetividade e a aproximação.
Para a pós-modernidade, ainda que nós pensemos es-
tar buscando a objetividade do conhecimento acerca do real,
estaremos assumindo uma postura relativista. Em outras
palavras, estaremos fazendo “leituras do real”. Por isso, sua
tendência de defesa do antigrande relato, da antitradição, a
defesa das traduções, em vez de tradições contemporaneiza-
das. Nessa perspectiva, a memória entra em cheio!
A pós-modernidade defende a chamada destruição criado-
ra das identidades; seus princípios básicos são a redução da
identidade à subjetividade, à pluralidade e à transitoriedade.
As identidades sociais são feitas e refeitas a partir das novi-
dades culturais e das mudanças sociais. Nesse processo, estão
em constante confronto o velho e o novo, em reelaboração os
critérios de autovalidação pública dos sujeitos, estes, variá-
veis de acordo com a multiplicidade de situações sociais do
cotidiano e com as transformações econômicas e culturais que
caracterizam as sociedades contemporâneas e que proporcio-
nam um contínuo reajustamento das matrizes identitárias
dos sujeitos (por isso, um fato qualquer pode ganhar significa-

Ver Lyotard e Maffesoli, dentre outros. Sobre o campo da pós-modernidade


104

social, ver o terceiro capítulo de nosso livro Paradigmas do cotidiano.


72 João Carlos Tedesco

ção e fatos tradicionais podem cair no esquecimento; poderá


haver, inclusive, contraposições temporais e ambivalências do
mesmo fato). A memória presente apresenta muitas dessas
ambivalências temporais de significados sobretudo no campo
ideológico-político (nazismo, resistência, militarismo no Bra-
sil... são alguns exemplos disso).105
Para a pós-modernidade, há uma busca narcísica nos in-
divíduos no tempo histórico e social para a autossatisfação,
um descentramento do mundo (em relação às utopias, finalis-
mo, racionalização...) e um recentramento dos sujeitos pau-
tados pela valorização de novos signos culturais106 (consumo,
lazer, corpo, a estética, o ócio [o chamado “ócio produtivo” do
italiano De Masi, o qual muito está servindo para essa visão],
o virtual, o maquinismo de um lado e o naturismo do outro).
Ao que nos parece, a pós-modernidade cristaliza-se num
desejo de viver em hibridismo (de estar no meio e entre as
coisas, objetos e natureza, de agregar-se em torno de ques-
tões sensíveis e pouco estruturais da sociedade, como, por
exemplo, no global, o pace italiano), numa grande descrença
das ideologias de Welfare State, de segurança social, política,
econômica e ética, tornando claro que essas se fragilizaram,
instaurando uma espécie de ficção na vida coletiva, com pre-
sumíveis efeitos sobre o modo como os indivíduos se vêem,
apresentam e avaliam a si próprios e, igualmente, o modo
como vêem, apresentam e avaliam os outros (aqui o papel da
velhice entraria em cheio, a simbologia das ditas “coisas anti-
gas”, do passado em geral).
Não podemos esquecer que a pós-modenidade não está
tão interessada em usar o presente para dar garantia de fu-
turo ao passado. Essa nova “estrutura de sentimentos” (Ben-

105
FORTUNA, C. As cidades e as identidades. Narrativas, patrimônios e memória.
RBCS, a. 12, n. 33, 1997. p. 126-141.
106
Id. ibid.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
73

jamin) dos indivíduos implica uma deslocação das nossas me-


todologias de análise das genealogias e das relações sociais
fixas e formais para uma compreensão do caráter mais fluido,
fugidio, movediço e presentista da sociedade, do tempo e das
coisas/fatos no tempo.
Na pós-modernidade, espaço e tempo ganham códigos
diferentes. O espaço e o tempo institucional perdem espaço
para o que agrega subjetividades e interações. A cidade, por
exemplo, produz estranhamento e anonimato, porém permite
a explosão de espaços, de culturas, de tempos variados, da he-
terogeneidade. Nela há uma deslocalização/transferência no
olhar de sentido, há uma temporalidade do olhar, uma merca-
dorização do tempo e da memória. Os sentidos e significados
passam hoje pela epistemologia estilizada, parcelar, transitó-
ria, ambivalente e descontextual.107
O cotidiano dos sujeitos é marcado por práticas limina-
res (vêm e se vão), por novas concepções de tempo e da memó-
ria, por reconceptualizações do espaço, da estética e da moral.
Há uma aceitação radical da vulnerabilidade.
A tradição necessita da rememoração, de um fato impor-
tante vivido por uma ou por várias pessoas para ganhar corpo
e continuidade no tempo. A reconstituição de uma tradição
geralmente é feita com recursos mediadores dos ritos e dos
símbolos. As pessoas ou grupos que recorrem à tradição nor-
malmente o fazem com a intenção de dar sentido ao presente,
objetivando responder às provocações do tempo presente.108 O
campo da memória está sempre cheio de reflexões pessoais e
de lembranças familiares, e a lembrança é uma imagem inse-
rida dentro de outras imagens, uma imagem genérica trans-
portada ao passado.

FORTUNA, op. cit.


107

RIVERS, D. P. B. Tradição, memória e pós-modernidade: implicações nos fatos


108

religiosos. Estudos de Religião, ano XII, n. 15, dez. 1998. p. 50-61.


74 João Carlos Tedesco

Como toda a experiência humana, a lembrança é tam-


bém uma experiência continuamente interpretada, porque
toda percepção se faz dentro de um quadro interpretativo,
corrigido e transformado pelas novas experiências. Assim,
experiência e interpretação relacionam-se dialeticamente.
Noções comuns pertencentes a um grupo são fundamentais
para reconstruir o evento passado através da lembrança. Po-
rém, nas sociedades atuais, a memória coletiva, segundo Ri-
vers, está muito enfraquecida, pois não está mais totalmente
regida pela tradição ou pelo religioso. A informação contínua
e a eternidade do presente anulando toda a referência ao pas-
sado imediato e mediato levam a que o indivíduo esteja cada
vez menos dependente de grupos sociais. Tanto a memória
quanto o indivíduo apresentam-se fragmentados em muitos
espaços, tempos e grupos.109
No fundo, a dificuldade está em saber pressentir o que se
presentifica; está, muitas vezes, na insensibilidade frente às
possíveis consequências das mudanças em curso. O conflito
está entre o atropelo dos fatos e a amarração a referenciais
que insistimos em manter, o que muitas vezes nos cega frente
à complexidade do mundo e faz das ciências sociais um campo
de análise limitado.
Por isso, falar em epistemologia pós-moderna hoje, para
muitos, pode soar ambíguo. Para alguns, significa estar na
moda, exorcizar demônios, ser sensível a uma nova estética
civilizacional e reencantar o mundo; para outros, nada mais é
do que uma invenção de marketing societal, ou seja, readaptar
o social ao presentismo consumista, fugidio e fragmentário
de uma chamada economia de escopo, que anula o passado e
fornece as bases no presente para um incipiente perspectivar
do futuro.

RIUERS, op. cit., p. 56.


109
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
75

Para os críticos afoitos à chamada pós-modernidade, tanto


no campo da ciência quanto no social e no simbólico, essa nova
ética, travestida em estética, é importante na medida em que
permite e induz uma autocrítica da modernidade, sobretudo
em suas bases epistêmicas mais históricas e generalizadoras.
A modernidade foi vista como presente, como racionali-
zação da civilização ocidental que objetivava a modernização
social sob a consolidação da economia e sociedade capitalistas.
A força de trabalho livre, o Estado moderno, a organização ra-
cional da produção, a profissionalização da atividade política
e burocrática, a autonomização e emancipação da ciência, da
arte, da esfera moral, do polissemismo cultural, o crescimento
das forças produtivas, dentre outras, foram racionalizações
de uma modernização social.
As ciências sociais avançaram modernamente na ligação
homem e sociedade. Profundas discussões no campo da cultu-
ra, da dissolução do senso comum, da tradição, da memória,
etc.; suas grandes narrativas, muitas até bem legitimadas,
seu campo discursivo no âmbito da identidade, do progresso,
da revolução, da história, enfim, de um homem capaz de deci-
dir sobre a sociedade, de projetar, de garantir sua imortalida-
de sobre a terra, sobre a natureza física.110
A modernidade produziu contra-revoluções, produziu
reencantamentos, subjetividades, a des-não-anti-razão, a
pós-anti-transbaixa-alta modernidade, o cotidiano, o vivido,
as existências coletivas sem condução predeterminada, os
micropoderes, os microespaços, as micropartículas societais,
as diferenças, as pluralida­des, as crises conceituais, dentre
outras.
Com a chamada “crise das epistemologias” da moderni-
dade, as ciências sociais se vêem desafiadas a adotar novos

RIUERS, op. cit.


110
76 João Carlos Tedesco

métodos, novos pressupostos, a produzir novos conceitos, a


fazer parcerias multi e transdisciplinares, a flexibilizar nor-
teamentos, a produzir e/ou revigorar novos clássicos, novas
bases teóricas, que possam dar conta do imperativo do deci-
framento do presente. Isso tudo consolida-se como uma exi-
gência das múltiplas formas de lutas e de conflitos sociais, de
convivência multicultural e além-fronteira (mundialização) e
do capitalismo na sua versão neoliberal como roupagem nova
de um mesmo processo civilizatório.
As ciências sociais sempre tiveram preocupações episte-
mológicas ligadas às suas fronteiras, porém mantendo sem-
pre o espírito deslizante (interdisciplinariedade) uma vez que
inúmeros objetos são comuns. A angústia de compreender os
rumos da modernidade, bem como o imperativo de captar o
social, contemporaneizando velhas questões com novas abor-
dagens, sempre esteve no âmago dos vários campos do conhe-
cimento social.111
Na chamada fenomenologia compreensiva de Maffesoli,
há uma crítica profunda às abordagens sociológicas que redu-
zem o mundo social ao mundo da produção, principalmente
de cunho marxista e funcionalista. Ele tenta resgatar o lado
de sombra do social baseado em minúsculas situações do coti-
diano, no imaginário, na utopia e no não racional, em última
instância, no senso comum. O autor não acredita que o conhe-
cimento científico possa dar conta da complexidade do social
(influência weberiana) e de seu antagonismo; propõe, então,
uma vigilância à respiração social, à experiência do mundo vi-
vido coletivamente, ao imaginal, ao pluralismo da vida, longe
dos mitos da razão, do progressismo e da institucionalização
do intelectual.

TAVARES DOS SANTOS, J. V. A aventura sociológica na contemporaneidade. In:


111

ADORNO, S. (Org.). A sociologia entre a modernidade e a contemporaneidade.


Porto Alegre: Editora da Universidade, 1995. p. 73-84.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
77

A ética da estética que o autor defende pressupõe exte-


riorização e transcendência, desejo de viscosidade, o coletivo,
o estar-junto. É por isso que se pode logo dizer que há gozo
estético na vida cotidiana, no imaginário grupal, em todas as
fusões pontuais já referidas – musicais, esportivas, religiosas
– que fazem da vida uma obra de arte. A ênfase na busca do
qualitativo, a ambiência hedonista, a insistência na erotiza-
ção da existência, a epifanização do corpo e a importância da
aparência, eis, entre outros, os indícios mais seguros de tal
vontade de arte. Essa vontade de arte não se reivindica, nem
mesmo se reconhece como tal, mas é causa e efeito de um
espírito do tempo que não é mais futurista, mas se dedica a
valorizar um inegável gozo no presente.112
O autor, ironicamente, chama de “imoralismo ético” a
sólida e subterrânea consciência que o corpo coletivo tem de
si mesmo. A noção de ética é contraposta à de moral. Essa,
sinteticamente, segundo o autor, baseia-se no dever-ser, nas
normas e padrões de comportamento social. A ética manifesta
o querer-viver, traduz continuidade e responsabilidade para
com o conjunto social; remete ao equilíbrio e à relativização
recíproca de um conjunto social: “[...] o imoralismo ético da
massa conserva, com o passar do tempo, e de uma maneira
astuta e encarniçada, uma multiplicidade de atitudes consi-
deradas aberrantes pela moral indicada.”113
A ruptura epistemológica provocada pelos pós-modernos
é reconhecida por alguns que se intitulam autocríticos da mo-
dernidade como fragilização dos modernos. Reconhecem, no
entanto, que os pós-modernos são precisos em apontar a am-
biguidade nas metanarrativas da emancipação da humanida-
de, da unidade da razão, da experiência histórica da moderni-
zação como projeto central iluminista. A razão que mergulha-

MAFFESOLI, M. No fundo das aparências. Petrópolis: Vozes, 1996.


112

MAFFESOLI, M. Dinâmica da violência. São Paulo: Vértice, 1987. p. 128.


113
78 João Carlos Tedesco

va na racionalização e na secularização, manifesta no interior


da modernização, aparece como potencial contraditório para
alguns modernistas; encontra agora um outro sujeito, um
outro projeto, sem identidade histórica, sem fronteira para o
social e para o indivíduo. Consumir e consumir por consumir;
sem céu, sem história, sem revolução, sem projetos culturais
e sociais previamente conexos e unificados nos moldes da já
consolidada civilização industrial. Viver o cotidiano, o ecletis-
mo, o pacifismo, esperar a próxima novidade, enfim, viver a
espontaneidade e a sedução.
Contra o historicismo radical e a utopia social e linea-
rista, os pós-modernos pensam nas atitudes invariantes do
presente e da condição humana. Noções de civilização, de
racionalização, perspectivas de longa duração são completa-
mente rejeitadas nos cânones da pós-modernidade. Daí é que
brotam também as maiores críticas. Outras críticas nascem
de sua concepção estética ou, mais precisamente, de sua si-
nergia com a ética. Segundo alguns críticos, ao defender a
ideia de que, na base de qualquer representação ou ação, há
sempre uma sensibilidade coletiva extralógica que serve de
fundamento à existência social, Maffesoli corre o risco de um
excesso de esteticismo, levando o ato estético para além da
ética. Sua concepção de morte ao indivíduo em prol do cole-
tivo, do nós-fusional e da comunalização, segundo alguns crí-
ticos, além de inutilizá-lo e de abstraí-lo em prol da massa,
despersonifica o sentido estético da existência coletiva.
Outra crítica profunda que Maffesoli recebe é no tocante
à falta de relação entre o micro e o macroestrutural, o cotidia-
no e as estruturações sociais. O fato de não reduzir o mundo
social à esfera da produção não significa absolutizar o coti-
diano como esfera que se basta a si mesma, como único es-
paço em que se pode apreender a socialidade. Para o autor, o
presente é que merece atenção; ao devir histórico, dá poucas
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
79

perspectivas. O presente precisa ser vivido ao máximo, inten-


sa e qualitativamente. O autor, em várias obras, continua se
defendendo dizendo que seu presentismo radical não significa
ausentar a história, pois essa influi sobre o cotidiano; o que
o autor quer é negar os projetos da história, os mitos de vida
eterna profanados como motor da vida social.
Para o autor, os conceitos são relativos. Ele recusa sua
definição operatória, pois quer descrever os fenômenos hu-
manos tais como são: na sua diversidade, descrição e imagi-
nação. Também recusa a tradição determinista ou positivista
que considera irracional a esfera da imaginação (imagem), da
intuição, da experiência e do sentimento; o que quer é aceitar
a multicausalidade na compreensão dos fenômenos humanos,
opondo-se às conexões causais concretas.
Não há dúvidas de que a modernidade se associa à racio-
nalização da sociedade em vários de seus níveis, privilegiando
aspectos de mobilidade, funcionalidade, transtemporalidade
(desencaixe), transcendendo as particularidades locais ou na-
cionais. No entanto, isso não significa que tenhamos de en-
tender o real no seu lado oposto, ou seja, pela razão interna,
sensível, presentista e localista, como se a modernidade esti-
vesse superada e os modernistas não se tivessem dado conta
de que o mundo ou as transformações em curso foram e estão
sendo negligenciadas.
O que podemos dizer, em linhas gerais, é que, para os
pós-modernos, vivemos num contexto no qual a metalingua-
gem, a grande teoria, é um hors-sol; a pluralidade de regras e
comportamentos (os tribalismos na aldeia global), a atomiza-
ção do social, o pluralismo descentralizado, as variedades de
inclinações e de julgamentos não têm lugar na centralidade
dos mitos, dos universos ideológicos universais.114

GIDDENS, A. As consequências da modernidade, São Paulo: Unesp, 1991,


114

aumenta mais a polêmica caracterizando o período atual como sendo de uma


80 João Carlos Tedesco

De certa forma, os pós-modernos, nas suas abordagens,


pelo menos, colaboram para nos fazer reconhecer as transfor-
mações e algumas das especificidades em curso. No entanto, a
ideia de pós é muito forte, é anuladora; dá ideia de um radical
antes e depois. Isso faz perder a dimensão do processo, de
continuidade com superação e preservação que se constrói a
partir dela no âmbito do conflito e das contradições.
A razão instrumental, a colonização do cotidiano, a possi-
bilidade de emancipação pela razão, as novas lutas de classes,
o mundo do trabalho, com suas novas formas de alienação
e de mais-valia global, a sociedade do mercado e do capital,
dentre outras questões, desafiam-nos para a compreensão
menos presentista e localista da vida social. Porém, segundo
Diehl, a expressão “pós-modernidade” revela o ambiente frag-
mentário e saturado do mundo atual, como “sintoma cultural
ingênuo da revolta contemporânea [...], porém, também como
rejeição ou desmistificação dos fragmentos ou metanarrati-
vas epistemológicas do moderno [...], ou seja, deixa de lado a
capacidade de pensar o utópico”.115

Alta Modernidade, expressando, com isso, continuidade com especificidades,


radicalizadas, construídas a partir dela.
115
DIEHL, A. A. Cultura historiográfica: memória, identidade e representação.
Bauru: Edusc, 2002. p. 145, 148 e 152.
Capítulo 7

Memória e patrimônio
As imagens do passado em cada época se corres-
pondem com os pensamentos dominantes.
Halbwachs

Em teoria, e no plano antropológico da memória coletiva,


cada sociedade tende, necessariamente, a conservar seu pró-
prio patrimônio cultural e a transmiti-lo de geração a geração
aos seus membros. Conservar, transmitir, sobreviver, difun-
dir-se e rememorizar são elementos da esfera biológica que
pertencem também ao horizonte antropológico e que podem
servir de base para a análise histórica do social. A memória
patrimonial pode ter uma dimensão coletiva, no sentido de
patrimônio cultural, artístico, linguístico e de normas de con-
vivência.116
Desse modo, a memória coletiva tende a estar em conso-
nância com o conjunto das representações de formas de vivi-
dos temporais que cada grupo social produz, institucionaliza,
pratica e transmite por meio de formas variadas de sociali-
zação e de interação entre os membros e, desses, com outros.
Diferentemente do que a pós-modernidade pensa e ana-
lisa, nesse contexto de mercantilização da cultura, percebe-se
a necessidade de construir uma biografia, uma história da
própria vida que esteja com possibilidade de fornecer, ainda
que limitadamente, um senso de continuidade do tempo num
contexto de fragmentação. A memória patrimonial, indepen-

Ver BARTELETT, F. La memoria. Milano: Angeli, 1974.


116
82 João Carlos Tedesco

dentemente do fato de para quem esteja servindo, possui essa


característica.
Percebe-se, pelas análises de história social e cultural e,
mesmo, política, ainda que em contraposição ao movimento
forte na sociedade em direção ao esquecimento e à indiferença
para com o passado, uma necessidade manifesta de sentir-se
pertencente a uma coletividade mediante o intercâmbio de
valores. As comemorações, os monumentos de memória po-
dem auxiliar na formação de uma identidade individual no
sentido coletivo do pertencimento, enquanto testemunho con-
creto de um passado pessoal e familiar.117
Historiadores confirmam que a memória patrimonial
sempre esteve, historicamente, ligada à aristocracia e à Igre-
ja. O iluminismo pensou-a como de interesse na instrução
pública, como exercício da cidadania e propriedade da nação
(constituição de Estados nacionais, justificativa ideológica
para a construção de uma identidade nacional).
Com o tempo pós-Revolução Industrial, com a raciona-
lização e intelectualização social e econômica da sociedade,
a dimensão fenomênica do patrimônio social perdeu grande
parte de seu significado. É por isso que a memória patrimo-
nial passou a ser entendida e relacionada com a seleção e
atribuição de determinados valores, que passam a se tornar
representação social e histórica, ou seja uma relação estabe-
lecida entre um objeto material/simbólico ou imagem presen-
te e algo ausente. Sua significação não está apenas nas suas
características físicas e morfológicas, mas no que passará a
representar, como a identidade de determinado grupo, cidade
nação, etnia, agrupamento cultural, determinado evento, pe-
ríodo histórico ao qual pertenceu.118

117
Ver na Revista Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 31 e 32, 2001, vários textos
sobre educação patrimonial.
118
LE GOFF, J. Memoria...
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
83

Entendemos ser a memória patrimonial uma construção


social, da qual se disputam seus enunciados discursivos, sua
atribuição de valor, suas práticas, as quais assegurem sua pre-
servação e inviolabilidade. Existe um campo de disputas119 por
significados e pela legitimação e hegemonia do mesmo inseri-
do num campo entre classes, etnias e grupos em luta material
e simbólica.
A ideia é de institucionalizar a memória de determinado
grupo, o que implica reconhecimento e interesse em manter
como sua memória. Segundo Gourarier, as estruturas mate-
riais, uma vez instituídas como patrimônio, passam a dispor
do estatuto de inviolabilidade, adquirindo caráter de verdade
a ser reproduzida para toda a sociedade, podendo ser compa-
rável a objetos sagrados.120

Monumento/documento
A memória torna-se sempre suspeita para a
história: a história é a deslegitimação do pas-
sado vivido.
Nora

Le Goff distingue monumento e herança do passado de


documento. Na sua visão, a função dos primeiros está ligada à
memória, à perpetuação do passado, com o atributo de evocar;
do segundo, é provar e testemunhar, atingindo seu triunfo
com a escrita.
Segundo o autor, a história possui um papel importante
na esfera da memória patrimonial principalmente na atribui-

119
Bourdieu nos oferece um quadro interessante desse horizonte do campo das
disputas pela legitimidade discursiva dos objetos simbólicos. Ver, do autor, A
economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974.
120
GOURARIER, Z. Le musée entre le monde de morts et celui des vivants.
Ethnologie Française, n. 1, t. 14, jan. 1984. p. 67-76.
84 João Carlos Tedesco

ção de “valor histórico” ou documental a determinado bem,


podendo haver, porém, “restauração interpretativa” na de-
terminação do valor de uso político, ideológico, econômico e
cultural (aí estão presentes os conflitos no campo da proprie-
dade, do imobiliário urbano quando da justificação discursiva
em torno de preservação e de tombamentos).
Outro aspecto que o historiador aborda é no sentido de
compreender como e por que aquela sociedade definiu tal patri-
mônio como significativo. A ideia é mostrar como as sociedades
lidam com seu passado e sua memória e como o patrimônio de-
monstra a percepção do tempo histórico e da historicidade dos
processos sociais, ainda que, em grande parte, conservados em
lugares pouco visíveis, em termos populares, e muito ainda ins-
titucionalizados em termos de interpretação e de possibilidade
de compreensão significativa pela grande maioria da população,
ou, então, pela intensificação da velocidade do tempo e das coi-
sas no tempo.
Pensar nos objetos passados e do passado é deixar o tem-
po presente se esvair sem significado, ou seja, vazio. Le Goff
diz que é possível que a memória patrimonial seja “o resulta-
do de uma montagem, consciente ou inconsciente, da história,
da época, das sociedades que a tem produzido [...], o resultado
de um esforço produzido [...] para impor a própria imagem de
si”.121
Já vimos que Le Goff diferencia e, ao mesmo tempo, cor-
relaciona documento e monumento: o primeiro como sendo
escolha do historiador; o segundo, como herança do passado.
A característica deste é que lhe é dada a capacidade, voluntá-
ria, ou não, de perpetuar sociedades históricas, serve de tes-
temunho histórico e de matéria-prima para a história. Diz
Febvre que “a história se faz com os documentos escritos, cer-

LE GOFF, J. Documento/Monumento. In: Enciclopedia Einaudi. Torino:


121

Einaudi, 1981.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
85

tamente. Quando existirem. Mas se pode fazê-la, se deve fa-


zê-la sem documentos escritos se não existirem”.122Continua
o historiador dizendo que o analista social deve produzir seu
mel mesmo que não existiram flores; deve usar a palavra, os
sinais, as paisagens... enfim, com tudo aquilo que pode haver
correlação, dependência e importância para os homens.
Para Le Goff, o documento não é inócuo, mas é o resultado
de uma montagem, consciente ou inconsciente da história da
época da sociedade que o produziu, mas também das épocas
sucessivas em que um se fez presente e teve significado, du-
rante as quais continuou a ser manipulado, quem sabe com
o silêncio.
Na análise do autor, a história é a (re)constituição cientí-
fica da memória coletiva.123 Desse modo, o que se apresenta, e
é composto simbolicamente (pela escrita e/ou pelo objeto mo-
numental), é o resultado de uma escolha resultante das for-
ças que operam nesse cenário, entre as quais estão os histo-
riadores. Na noção de monumento (herança do passado) e de
documento (escolha do historiador) está presente a ideia de
continuidade, de duração, de significação atemporal. É nesse
sentido que um documento pode se tornar um monumento. O
critério para isso é o esforço de análise crítica, contextual, me-
morial e relacional do material/objeto. Lucien Febvre já dizia
que a engenhosidade do historiador está em fazer as coisas
mudas falar dos homens, do contexto social, tornar “transpa-
rente” os meios que produziram o objeto material.124

122
FEBVRE, L. apud LE GOFF, J. Documento/monumento, p. 41.
123
Ver LE GOFF, J. Documento...; ver BARTHES, R. La camera chiara. Torino:
Einaudi, 1980. Uma análise sobre os monumentos imagéticos e sobre especi-
ficamente a fotografia na história; ver D’AUTILIA, G. L’indizio e la prova:
la storia nella fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001.
124
FEBVRE, L. por Le Goff, J., op. cit., 1981. p. 41. Febvre insiste na análise
crítica do documento como monumento, na necessidade de perceber as con-
dições de sua produção histórica, sua(s) intencionalidade(s), a mentalidade
que o gerou, a percepção de uma memória coletiva cristalizada ou projetiva,
a desmistificação de sua significação aparente, de desmembrar os tempos
86 João Carlos Tedesco

Benjamin foi um dos primeiros cientistas sociais a ana-


lisar o papel social, cultural e econômico da produção imagé-
tica, ou seja, seu potencial persuasivo, sua onipresença possí-
vel e cotidiana de cada ser social, seu cenário na era da epro-
dutibilidade técnica e funcional o capitalismo e da chamada
indústria cultural a qual permite acesso do objeto de arte ao
público (sociedade de massa).
A dimensão coletiva e individual da memória patrimo-
nial não pode ser entendida como um conjunto homogêneo e
coerente de representação do passado.
Halbwachs já dizia que a memória coletiva deve ser pensa-
da como uma dinâmica em tensão contínua, num jogo de confli-
tos, seleções, interpretações do passado (lembrar aqui a ambi-
guidade de muitas comemorações no campo político, na ambiva-
lência na significação da Semana Farroupilha para os gaúchos),
suas relações com o poder, com a política, com os mecanismos
de esquecimento público de fatos, de formas de gerir o social,
a identidade,125 com a responsabilidade nos confrontos com a
história.
A ideia de monumento à memória está ligada ao possí-
vel ceticismo sobre a possibilidade de materialização de uma

passado, presente e futuro do conteúdo ilustrado que não só humano, mas


temporal e espacial.
125
Halbwachs analisou muito bem, em A memória coletiva, o caráter de
“construção” que é típico da memória coletiva, quanto à sua relação
estreita com a construção da chamada “identidade coletiva”, os confrontos
e a reconstrução do passado no cenário da “pluralidade” de memórias coletivas
que vivem no interior da sociedade. Tanto em nível individual, como já falamos,
quanto ao nível coletivo, a memória é uma função da identidade. No entanto,
estreitar demais a ligação entre memória e identidade pode fazer esquecer que
a memória também poderá romper ou contradizer a identidade que estabelece
num determinado tempo. No plano individual e subjetivo, a psicanálise mostrou
amplamente como um dos motivos de interesse da memória está mesmo na sua
capacidade de conservar traços que tenham encontrado espaço na consciência
e que, portanto, podem não fazer parte do horizonte identitário. Por isso,
como diz Halbwachs, a memória podem ter também um caráter crítico e
desestabilizante. Isso também vale para o plano coletivo. Desejos, traumas,
ressentimentos, aspirações... podem provocar a desfetichização da memória
e de identidades variadas e interessadas no presente.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
87

forma simbólica que está implícita na utilização de um lugar


preciso, que, como tal, antes ou depois, perde sua força de
atração.126Os monumentos são sempre mediadores de me-
mória. Glória, fama, alegoria, valor cultural, social e políti-
co, histórico, controle social, poder, regionalismo, aspirações
políticas... são algumas das expressões mediadas pelo monu-
mento de memória.127
Os espaços de memória podem ser móveis ou imóveis.
Arquivos, diários, romances, textos culturais (poesias), a nar-
ração oral... servem de memória funcional, de memória-ar-
quivo, como modalidades de recordações. A memória patri-
monial é sempre uma tentativa de legitimar/desligitimar. A
aliança entre memória e poder exprime-se na elaboração de
forma estruturada do conhecimento histórico. Os poderosos
hegemonizam não só o passado, mas também o futuro: que-
rem ser recordados e, para esse fim, erguem monumentos em
lembrança de suas atividades, fazem-no de modo a que essas
venham a ser lembradas, cantadas pelos poetas, eternizadas
em monumentos e arquivadas. O poder legitima-se retrospec-
tivamente e perpetua-se em modo prospectivo.128
A memória patrimonial evita e, ao mesmo tempo, con-
gela a memória; produz barreiras que evitam a comunicação
crítica, alternativa, relativizada; pode produzir um funda-
mentalismo de memória (lembrar o culto às personalidades
de Stalin, Hitler, Mussulini, Saddam...).

126
GARBINATTO, V. O historiador e as imagens. Ciências & Letras, n. 31, p.
273-283. Ver também em outros volumes da referida revista excelentes aná-
lises sobre educação patrimonial, sobre o papel dos símbolos de memória, da
educação para a memória, etc.
127
ASSMANN, A. Ricordare. Forme e mutamenti della memoria cultural. Bologna:
Il Mulino, 2001.
128
ASSMANN, A., op. cit.
88 João Carlos Tedesco

Congelar o tempo num lugar ou um lugar


congelado no tempo?
A história é a representação sempre problemá-
tica e incompleta do que aconteceu.
Nora

Pierre Nora já dizia que a tendência característica do


mundo moderno é a aceleração da história, ou seja, o senti-
mento de ruptura com o passado. Daí a ideia de deixar vestí-
gios, de lugares de memória, de congelar o tempo de algo.
A memória patrimonial e monumental presta-se para
tanto.129Os lugares de memória seriam expressão de uma
busca desenfreada pelas chamadas “identidades ameaçadas”,
memórias enfraquecidas, tempos lineares, imagens da perda.
Muitas vezes, prédios e monumentos de grande importância
cultural, segundo os valores definidos por um número limita-
do de agentes, são totalmente desconhecidos e negligenciados
por sua comunidade mais próxima.130 Os objetos de memória
são objetivações das recordações, de um passado que não se
quer esquecer, que deve conviver com a lógica de uma socie-
dade de consumo a qual se funda sobre a rápida deterioração
dos valores comunicativos dos bens e sobre sua rápida subs-
tituição.
Há objetos que assumem no imaginário coletivo um enor-
me valor simbólico (veremos isso melhor na segunda parte,
quando da análise da vida camponesa, bem como da vida ur-
bana ressignificada pelos valores do urbano em conjunto com
estratégias de reconstrução da memória da vida rural). A prá-

129
CHARTIER, R. O mundo como representação. Estudos Avançados, n. 11,
v. 5, 1991. p. 173-191.
130
LUPORINI, T. J. Educação patrimonial: projetos para a educação básica.
Ciências & Letras, n. 32, p. 325-338.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
89

tica social e cultural da memória reenvia a capacidade da me-


mória de exteriorizar-se e objetivar-se, isso é, de tomar forma e
sedimentar as representações sociais de um certo passado em
determinados objetos, símbolos, artefatos culturais e comuni-
tários.
Os objetos de memória, subjetiva e objetivamente, de-
pendendo do contexto, dos grupos e significados em questão,
tem um poder evocativo, ao mesmo tempo em relação de re-
ciprocidade.
Os objetos dão uma certeza que advém de sua materialidade, do
fato que quando queremos relembrar eles estão prontos, como
passivos recipientes da nossa projeção, das nossas interpretações
dos eventos passado. Se pode, portanto, sublinhar que os objetos
são dotados de um poder de memória que lhes rende significados.
Esse poder, obviamente, não deriva do objeto enquanto tal, mas
do fato que ele incorpora e projeta significados importantes para a
pessoa que o adquiriu, recebeu ou encontrou em uma situação ou
contexto particular que se quer recordar. É através desses objetos
que se cria uma continuidade entre passado e presente, e através
deles que se mantém viva a lembrança do passado.131

Em geral, os lugares que para cada um são significativos


representam eventos de memória, possibilitam ligar a própria
memória aos fatos. As recordações culturais servem a uma co-
munidade porque possibilitam radicar a própria existência no
passado e reforçar a identidade presente. O papel das datas,
dos lugares, dos objetos simbólicos, dos símbolos externos...
é justamente este: garantir a continuidade, a legitimidade, o
enraizamento espaciotemporal e confirmar a própria identi-
dade dos grupos. Dizem Fabietti e Matera que, “sob o plano
temporal, a memória reinvoca eventos que ela mesma coloca
em qualquer ponto no espaço, lugares de memória sobre os

JEDLOWSKI, P. Il senso del passato. Milano: Angeli, 1991. p. 55.


131
90 João Carlos Tedesco

quais a identidade projeta e da qual retira a própria história,


as vicissitudes que lhe pertencem”.132
Os lugares de memória são a ocasião da exteriorização
da memória; são âncoras de suporte externo para se fixar na
memória dos grupos; condensam a imagem de um passado;
são pontos de visibilidades evocativos, senso de pertencimen-
to de indivíduos a um determinado grupo; construção de me-
mória coletiva, radicamento e sobrevivência da tradição e de
suas crenças; produção política e religiosa da memória,133 re-
presentação pública e objetiva da memória. Enfim, os lugares
são produtos materiais da atividade humana que adquirem
um alto valor simbólico pelo fato de condensarem algumas
representações cruciais do passado da comunidade.134
Os objetos significativos estão sempre em relação com
a identidade em construção. A lembrança ganha corpo nos
objetos significativos, que gestionam a memória. Os objetos
são portadores de significados simbólicos que “os indivíduos
podem reconhecer a partir de seu pertencimento a uma co-
munidade e as consequentes possibilidades de se inserir na
memória coletiva da referida comunidade”.135 Desse modo, é
sempre a memória coletiva que atribui significados a esses.
No dizer de Halbwachs, os grupos religiosos necessitam
apoiar-se em algum objeto, em qualquer coisa que dure. A re-
ligião exprime-se, assim, em forma simbólica. Lugares e obje-
tos de memória têm necessidade de suportes, de testemunhas
para poder existir. A linguagem e a simbologia do objeto ex-
pressas pela oralidade (narração) e a escrita podem fornecer
esse suporte.
132
FABIETTI, U.; MATERA, V. Memorie e identità. Roma: Meltemi, 1999. p. 35.
133
Halbwachs faz referencia a isso em seu livro sobre as Memorie di Terrassanta
quando analisa a reconstrução e o “reconhecimento” dos lugares tornados
sagrados em Jerusalém.
134
Id. ibid., p. 63-64.
135
Apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001.
p. 37.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
91

Sociedade, tradição e suas simbologias


Para poder relembrar, necessita-se também
saber esquecer.
Wiehl

Não existe sociedade sem tradição, assim como não exis-


tem conteúdos culturais e estruturais que caracterizam a
dinâmica histórica que não se manifestam como intersecção
perenemente mutável entre o patrimônio passado e as cons-
tantes exigências de inovações da vida coletiva. Desse modo,
a tradição configura-se como o percurso de um caminho já
traçado, como ritualização, e que encontra no passado a sua
legitimação. É esse passado que possui certo direito e que de-
termina, ainda que inconscientemente, em larga medida, as
nossas posições e nossos comportamentos.136
É importante ter presente que, entre o presente e o pas-
sado, apresentam-se traços, vestígios, símbolos mediante os
quais se pode compreender o passado; trata-se de recordações,
imagens, relíquias... Porém, esses elementos são imperfeitos,
pois o passado não pode, em nenhuma situação, ser reconsti-
tuído na sua forma integral e qualquer que seja sua recons-
tituição será sempre duvidosa. Imagens, fantasias, sonhos e
projetos expressam subjetividades, ou, então, são suportes de
memória coletiva que, em termos temporais e transgeracio-
nais, podem se alterar ou não serem passíveis, na totalidade,
de expressão simbólica e objetal.
A memória não só se exterioriza num objeto, mas se con-
densa, se sintetiza, assumindo um grande valor simbólico. É
por isso que a destruição de um objeto da memória torna-se
um ato de destruição do passado e do que a memória quer

PRANDI, C. Tradizioni. Enciclopédia Einaudi. Torino: Einaudi, 1981.


136
92 João Carlos Tedesco

representar. Existem conflitos entre o funcional e o simbólico


dos objetos de memória: um se legitima em ações concretas
e presentes; outro, no passado, com implicações simbólicas
para o presente. Intervir sobre o objeto simbólico é intervir
sobre a forma cultural vivida daquela memória: “Memória co-
letiva, esquecimento e identidade estão ligados entre si e, to-
dos os três agem segundo processos de caráter reconstrutivo.
O desafio cotidiano da convivência entre grupos se reduz, em
definitivo, ao bom uso da relação que esses grupos realizam
com a memória e de sua identidade.”137
A memória patrimonial possui sua expressão nos mais
variados processos sociais, simbólicos, objetais etc. A lingua-
gem, a documentação, o conhecimento elaborado e o senso co-
mum, o artesanato, a cultura de grupos, os monumentos, os
templos, os obeliscos, as obras de arte, os artefatos, os espaços,
dentre outros, manifestam essa infinidade de circunstâncias
e ambientes construídos que sintetizam um mobiliário social
e histórico, cristalização material de significados históricos e
vividos pessoais, ou seja, uma herança cultural de cada povo.
A tradição possui sempre uma dimensão cultural que é
transmitida de geração a geração enquanto lhe for atribuído
valor. Sabemos que tanto a sociedade como seus indivíduos
são dotados da capacidade de esquecer e de reinventar signi-
ficados; só assim podem enfrentam com os meios mais ade-
quados os novos problemas que em geral se apresentam.138 As
transformações rápidas e improvisadas da sociedade reduzem
significativamente as velhas tradições. Porém, paradoxal-
mente, impõe-se, como contraposição a isso, um recurso a um
passado mítico, para reconstruir um sentido de continuidade
de persistência de sua existência no tempo, num processo de

137
BETTINI, L. Il perdono storico. Dono, identità, memoria, oblio. Il Mulino,
a. XLIX, n. 389, mag./giu. 2000. p. 425.
138
Ver, nesse sentido, vários textos do número 31, da revista Ciências & Letras.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
93

tensão do vínculo societário e de transformação social. Nesse


sentido, manipular a memória poderá significar manipular a
história e vice-versa.139
Numa sociedade e época como a atual, de inovações con-
tínuas e de mudanças nas práticas cotidianas, o sentido de
continuidade, elemento importante na manutenção do fluxo
de estabilidade de elementos identitários, não pode simples-
mente repetir processos espontâneos e automáticos dos mo-
delos e significados tradicionais. Jedlowski refere que a tradi-
ção e a memória podem tornar-se objetos de ação consciente
e intencional ao evitar que as mudanças se tornem, pelo es-
quecimento do passado, um regresso a modos primitivos de
organização social e de civilização.140
Hoje, principalmente na Europa, notadamente em nome
da indústria do turismo e da padronização estética do am-
biente urbano construído, restaura-se muito, porém dificil-
mente o restauro conserva a linguagem simbólica original e
raramente se consegue restabelecer uma interpretação perdi-
da. Autores acreditam que a concepção de que um monumen-
to possua uma linguagem única e tenha um sentido original
já se esvaiu. A interpretação que prepondera, em correspon-
dência com a obra de arte, é que múltiplos significados são
justapostos no curso de sua existência histórica, por isso seu
caráter aberto, suas várias leituras possíveis e parciais, suas
alterações e sua visão hermenêutica das interpretações no in-
tervalo de tempo que separa o presente de sua origem.
Já vimos que os monumentos são suportes materiais
de memória coletiva e transgeracional. É desse modo que se
abrem para reinterpretações, colocando em circulação o con-

139
Ver excelente contribuição, nesse sentido, na obra de GREGORY, T. (a cura
di). L´eclisse delle memorie. Roma: Laterza, 1994; ver, também, CHIARETTI,
G. et al. Conversazioni, storie, discorsi. Roma: Carroci, 2001.
140
JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza e modernità.
94 João Carlos Tedesco

teúdo da memória e expressando também sua possível vul-


nerabilidade. Daí a importância dos rituais, das reinvenções,
ressignificações constantes no tempo presente e na capacida-
de de projeção de vida futura dos homens e dos objetos/símbo-
los significativos.141 A função do monumento como expressão
de memória patrimonial vai perdendo e/ou alterando seu sig-
nificado ao longo do tempo; perdendo sua função memorial,
sobretudo com o desenvolvimento de outros dispositivos de
memória, como a escrita e a fotografia. Le Goff refere que a
função do monumento é sempre permitir vestígios públicos de
fatos e de personagens históricas, ainda que isso possa servir
para apagar a real dimensão do vivido e esconder conteúdos
de memória.
Porém, segundo Passerini, há um contraste entre silên-
cio e monumento à lembrança. Na opinião da autora, isso ma-
nifesta uma marca do nosso tempo, ou seja, a memória ne-
cessita, especialmente no campo político, de um certo tempo
de silêncio para depois ser lembrada, geralmente por meio de
sinais públicos, sejam eles monumentos, escritos, literatura,
etc. Os genocídios da Segunda Guerra, a literatura sobre o
acontecimento, sobre o fascismo, sobre a colonização na Amé-
rica Latina, regimes totalitários como os existentes em vários
países da ex-União Soviética, na Espanha, no Brasil, dentre
muitos outros, expressam esse silêncio como repressão da me-
mória e “amnésia imposta”.142

141
SCHONEN, S. La mémoire: connaissance active du passé. Paris: Mouton,
1974.
142
PASSERINI, L. Memoria e utopia. Il primato dell´intersoggettività. Milano:
Il Saggiatore, 2003.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
95

Mobiliário social

A noção de patrimônio que aqui queremos desenvolver


dá a ideia de Pater, de vínculo, de transferência de herança
material, espiritual e institucional. A memória patrimonial
revela relações sociais que nela se engendraram; há uma
ideia implícita de deixar vestígios num tempo linear. Porém,
é necessário fazer uma análise crítica das escolhas do que foi,
do que é e será preservado (o dito e o não dito).143
Como já dissemos, no horizonte do patrimônio cultural
estão presentes bens e valores materiais e imateriais, trans-
mitidos por herança, de geração a geração, na trajetória de
uma comunidade. Sendo assim, é um processo contínuo de
transmissão de valores e crenças, de saberes e modos de fazer
e de viver que caracterizam um grupo social; é uma “marca”
que identifica, que adquiriu um sentido “comum” e compar-
tilhado.
É desse modo que as ideias de velho e de novo devem
ser entendidas em suas contradições temporais e espaciais,
em consonância com o imaginário da população, de determi-
nados grupos, da força social presente no contexto específico
em questão. Sem essa compreensão prévia, não teremos con-
dições de entender por que os idosos que entrevistamos tanto
do meio rural quanto do urbano relativizam o novo, ou algo do
novo, como sendo apenas uma simples alteração de processos,
conhecimentos, formas do velho, ou seja, algo já, em parte,
experienciado por eles.
Canclini afirma que há uma certa desconexão hoje entre
neoliberalismo, memória história e patrimonial. O primeiro
manifesta centralização e funcionalidade do mercado e dos

LUPORINI, T. J. Educação patrimonial: projetos para a educação básica.


143

Ciências & Letras, n. 31.


96 João Carlos Tedesco

bens simbólicos, o esquecimento da história das lutas sociais


e das tradições; prega a homogeneização cultural, o interna-
cional popular (patrimonial), a midialização (midiação) dos
espaços patrimoniais (grandes museus, espaços turísticos e
burocratizados...); enfim, uma tendência de apagamento de
memória e de reconstrução seletiva da mesma.144 A partici-
pação social na definição patrimonial indica a possibilidade
educativa não formal (dimensões da organização política, da
cultura política e espaciotemporal), da histórica local da per-
cepção de costumes, ideias, mentalidades vigentes na época
de sua produção.145
Cientistas sociais brasileiros, tais como Pesavento e Ian-
ni, relatam que todas as sociedades, ao longo de sua história,
elaboram para si um sistema articulado de ideias e imagens
de representação coletiva, por meio do qual constroem sua
identidade. Articula-se, assim, todo um imaginário social,
que inclui uma visão sobre o passado, a construção de perso-
nagens-símbolos e a atribuição de valores, características e
hábitos a povos que habitam uma determinada região.146 Esse
processo implica a construção idealizada de identidades, sím-
bolos de referência regional que lhes dêem caráter distinto
(lembrar aqui a cultura do regionalismo no Rio Grande do Sul
e do nordeste brasileiro, a Liga Norte na Itália e suas lingua-
gens simbólicas de cunho regional em âmbitos espaciais, ét-
nicos e culturais, dentre outros); implica recortar, selecionar,
inventar, criar, manipular vivências e fatos, reconstituindo o
passado segundo determinados fins, manipulando a memória
coletiva. Nesse horizonte, a produção discursiva é fundamen-
144
CANCLINI, N. G. O patrimônio cultural e a construção imaginária do social.
Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Brasília, n, 23, 1994. p.
95-111.
145
JEUDY, H. Memória social. Rio de Janeiro: Forense, 1990.
146
PESAVENTO, S. J. Gaúcho: a integração do múltiplo. In: KERN, A. et al. Rio
Grande do Sul. Continente múltiplo. Porto Alegre: Riocell, 1993. Ver IANNI,
O. Teorias da globalização. Petrópolis: Vozes, 2000.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
97

tal na criação de imagens e sentidos na ligação entre lingua-


gem e mundo (imaginário).
A memória patrimonial favorece simbólica e objetivamen-
te a invenção das tradições e seus ritualismos. Hobsbawm147
refere que por tradição inventada entende-se todo um con-
junto de práticas normalmente reguladas por regras tácitas
ou abertamente aceitas, de natureza ritual ou simbólica, as
quais visam inculcar certos valores e normas de comporta-
mento através de repetição, o que implica, automaticamen-
te, uma continuidade em relação ao passado. Aliás, sempre
que possível, tenta-se estabelecer uma continuidade com um
passado apropriado. Esse processo implica funções políticas e
sociais da tradição, sua manipulação por determinados gru-
pos.148 Esse mobiliário social é constituído de memória indi-
vidual, coletiva, grupal, étnica; composto por ideias, formas
visuais, sentimentos, gostos, trocas linguísticas, cria teias de
conexões e relações.
As noções de cultura, de comunidade, de grupo social, de
sentimento de pertencimento, de autoestima, de percepções
comuns, de integração, que são experiências compartilhadas
localmente, tendem a fortalecer e são fundamentais para a
dimensão da tradição.149
O patrimônio cultural ajuda a promover a intensidade
da integração cultural, enriquece a memória, reforça a au-
to-estima e a apropriação da herança cultural por comuni-
147
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1997.
148
LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de migrantes.
Belo Horizonte: Arte e Ciência, 1999.
149
Um exemplo desse processo é o Monumento ao Carreteiro da localidade de
Otávio Rocha, município de Flores da Cunha no Rio Grande do Sul. A carreta
na região colonial do Rio Grande do Sul foi um instrumento que propiciou
a chegada dos imigrantes a essa região; auxiliou, por mais de meio século,
na mobilidade dos produtos; ligou espaços, pessoas, mercadorias, inovações;
constituiu profissões (carreteiro, madeireiro, muladeiro, ferreiro, seleiro, mar-
ceneiro, carpinteiro, dono de casas de pasto, comerciantes, dentre inúmeras
outras).
98 João Carlos Tedesco

dades ameaçadas pelo esquecimento.150 Análises históricas


demonstram que há uma tendência muito grande de a memó-
ria histórica tradicional referendar o patrimônio consolida-
do, de difundir seu pertencimento coletivo e social, bem como
representado a todos indistintamente e apresentado como
inquestionável. Em geral, existe muito pouco envolvimento
de grande parte das pessoas na construção dos significados
e objetos patrimoniais. Daí também sua grande negligência/
esquecimento, desconhecimento e abertura de caminho para
a tirania do saber histórico e/ou de alguns especialistas.151
Percebe-se, pela revisão de literatura feita, que os aspec-
tos mais dinâmicos na preservação patrimonial são a família
e suas genealogias (em geral de imigrantes e os que enrique-
ceram), de instituições (empresas), dos caminhos, das praças
e jardins, das antigas fábricas, estações ferroviárias desati-
vadas, das festas e comemorações, dos prédios e monumentos
(castelos, igrejas, obras de arte como representação da nobre-
za, do religioso e do estético...). Acreditamos que sejam todas
tentativas de representar o passado, de fornecer pistas, indí-
cios, rastros, metáforas ou não de uma temporalidade funcio-
nal ou não ao presente. As condições do imagético estendem-
se para além da materialidade; são fenomenológicas, sociais,
históricas, culturais, políticas, etc. Daí o fato de historiadores
terem presente a ideia de crítica das fontes (pensar nas fotos,
nos dispositivos hoje geradores de evidência. A fotografia é
um instante congelado da realidade?).

150
Não obstante, a carreta pode significar, para alguns, possibilidade e facilidade de
extração de sobretrabalho do colono, para outros, manifesta labuta, sacrifício,
dominação. Os significados da memória, assim como do esquecimento, refletem
fatores biológicos, sociais, objetais e imateriais profundamente imbricados.
Uma análise sobre o significado simbólico e material da carreta em meio aos
imigrantes italianos ver nosso livro, Colonos, carreteiros e comerciantes. Porto
Alegre: EST, 2001.
151
Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de mi-
grantes. Belo Horizonte: Arte e Ciência, 1999.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
99

Na análise de Le Goff, de Nora e de outros, imagens


não falam e, sim, mostram, materializam e simbolizam; dão
corpo, forma e cor à imaginação; podem ser manifestação in-
terior composta de representações e signos, manipuladas, en-
quadradas, pensadas, de modo que uma análise com exagero
de objetivação pode não dar conta de seus significados.
Nora observa que a memória coletiva, como expressão do
que resta de vividos de grupos ou do que os grupos fazem do
passado, pode opor-se à memória histórica. Diz o autor que a
história, nos últimos tempos, escreve muito não sobre o que
restou da memória coletiva, mas sobre as memórias coleti-
vas, renunciando a uma temporalidade linear e adentrando
em tempos vividos radicados no social e no coletivo (linguís-
tico, demográfico, econômico, cultural...). A história move-se
e analisa os lugares de memória; lugares topográficos, como
arquivos, bibliotecas e museus; lugares monumentais, como
os cemitérios ou a arquitetura; lugares simbólicos, como as
comemorações, as peregrinações, os aniversários; os lugares
funcionais como os manuais, as autobiografias... bem como
os lugares e os atores criadores e dominadores da memória
coletiva, os diversos usos feitos da memória.152
Não obstante, esse mobiliário social, segundo Le Goff,
continua sendo um reservatório móvel da história, um dos
elementos mais importantes da sociedade em desenvolvimen-
to e desenvolvidas, das classes dominantes e dominadas, to-
das em luta pelo poder ou pela sobrevivência.
Falando em tradição como memória coletiva, Leroi-Gou-
rhan diz que é indispensável à espécie humana, é fundamen-
tal para sua reprodução, para o que se convencionou chamar
“identidade individual e coletiva”; é um instrumento de poder,
poder pelo domínio da lembrança, da tradição, da sua própria

Ver revista Ciência & Letras, vários autores.


152
100 João Carlos Tedesco

manipulação, de retorno ao passado para servir o presente e


o futuro.153
Temos claro que o mobiliário social é uma construção,
está em constante luta pelo reconhecimento (campo de for-
ças), representação social, ligação com a burocracia pública,
identificação grupal com tendência generalizante, reprodu-
ção, conservação, esquecimento...
Essa é a dialética social e histórica dessa construção. A
análise da relação entre memória, tempo e espaço, como com-
plemento dessa, poderá nos auxiliar na compreensão do tema
patrimônio.

NORA, P. Mémoire collective. In: LE GOFF, J. (a cura di). La nouvelle histoire.


153

Paris: Retz, 1978. p. 399.


Capítulo 8

Tempo, espaço e experiência da memória

A memória é a síntese fundamental do tempo


que constitui o ser do passado, o que faz passar
o presente.
Deleuze

De certa maneira, já vimos que, para Nora, a crise da


memória manifesta a desconexão do presente em relação ao
passado. O autor fala em “progressiva decadência em um pas-
sado irrevogavelmente morto”, uma desconexão “daquilo que
o vivido ainda se radicava no calor da tradição, no silêncio dos
costumes e na repetição do passado”. Para o autor, há uma
“onda subterrânea de historicidade”, ou seja, o que se vê da
memória é a sua “fuga no fogo da história”.154
Não obstante, acreditamos que a memória seja o espaço
no qual se produz uma síntese entre o cotidiano e a experi-
ência vivida. Sem acesso aos materiais de memória, faltará a
possibilidade de autorreflexão por meio da qual tomam forma
as escolhas de comportamento. Já vimos que o cotidiano é o
espaço por excelência dos materiais de memória.155 Memória
e ação estão estritamente interligados, uma não pode existir
sem a outra. A relação entre memória e ação permite-nos di-
zer que o tempo da memória não é só o passado. A projeção ao
passado baseia-se nos critérios de leitura a partir do que se

LEROI-GOURHAN, A. op., cit., p. 269.


154

NORA, P. Entre mémoire et histoire. In:_______ (a cura di). Les lieux de


155

Mémoire, 1991. v. I, p. XVII-XLII.


102 João Carlos Tedesco

é e do que se está fazendo no presente, com base também no


que se entende ser ou fazer no futuro.
Bachelard já nos dizia que,
[...] quando queremos narrar o nosso passado [...], a nossa história
pessoal é aquela que, conscientemente, queremos dar-lhe duração,
uma continuidade através da razão, não através da duração. Assim,
a nossa experiência da nossa própria vida passada é apoiada sobre
atos racionais em tempo recorrente.156

Os atos racionais de que fala Bachelard nada mais são do


que a significação identitária de fatos aos quais a recordação
se remete e seleciona. Esses juízos de fatos representam os
parâmetros de uma racionalização ex post, os quais produzem
deformações e seleções das recordações no decorrer do tempo e
respondem às exigências de estabelecimento da continuidade
da vida, uma conexão de “atos de vida” em uma linha contínua
e coerente com um projeto de futuro social e pessoal.157
É desse modo que é interessante acentuar e diferenciar
a temporalidade da memória e a temporalidade que entra na
memória:
Seja para os indivíduos, seja para os grupos sociais, a história
(individual ou coletiva) toma o caminho dos materiais da memória
através do esforço de reconstruir uma duração da experiência densa
de significados, os quais são eliminados os interventos mortos, os
rotineiros.158

Nessa dimensão da “duração da experiência”, tempo e


espaço são carregados de valores, de símbolos socialmente
definidos, disseminados pelos grupos dos quais os indivíduos
participam. A dimensão do tempo como processo social cons-
titui-se numa referência indispensável para normatizar as
formas de memória de grupos e para o agir humano em geral.

156
RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memória. In: ________; BELLONI, M. C.
Tempo, spazio, attore sociale. Milano: Franco Angeli, 1999.
157
BACHELARD, G. La dialectique de la durée. Paris: PUF, 1950. p. 34.
158
Ver LUCENA, C. T., op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
103

Segundo Halbwachs, nosso tempo é derivado do perten-


cimento aos grupos, e esse envolvimento reforça o sentimento
de co-participação. O indivíduo isolado teria dificuldade de
mensurar e de ter a consciência do tempo; poderia, inclusive,
ignorar a passagem desse. O indivíduo necessita de referên-
cias, de representações sociais do tempo, de testemunhos, de
discurso coletivo que o sustente, memórias e experiências de
outros, de influência social, de narrações, de símbolos compre-
ensíveis e códigos de percepção comum para poder se guiar no
tempo e no espaço e para constituir categorias comuns que
consentem conhecer e comunicar tempos passados, recorda-
ções singulares e formas grupais de memória dessa.
Tempo e interesse grupal pelas formas desse estão em es-
treita correlação. Esquecer ou lembrar tempos passados, segundo
Halbwachs, depende do interesse e da resposta à ocupação dos
grupos. Quando há uma “vibração de consciência”, uma “comu-
nhão afetiva”, uma congruência com os valores e as perspectivas
cognitivas, é sempre possível constituir experiência e reproduzi-la
grupalmente. Diz o autor que
[...] os quadros sociais da memória não são simples formas vazias, nas
quais as recordações, vindas de fora, se inserem, mas os quadros são, ao
contrário, os instrumentos dos quais a memória coletiva se serve para
recompor uma imagem do passado que em cada época está em acordo
com os pensamentos dominantes da sociedade.159

Memória e identidade
Diz Ferrarotti que, pelo acúmulo das lembranças, a me-
mória constrói a pessoa como conjunto de ideias e valores com
tendência de coerência, ou seja, como a “personalidade da pes-
soa”. A identidade não é dada de uma vez por todas; não é, nun-

BACHELARD, G., op. cit., p. 243.


159
104 João Carlos Tedesco

ca, uma aquisição permanente, assim como não é a memória


um bem frágil e precário. A identidade se faz pouco a pouco,
com base na experiência vivida, rememorada, retida anterior-
mente. Nesse sentido, a memória é o componente essencial
para a identidade do indivíduo e sua integração social. Para
o autor, a memória é dinâmica por excelência, possui funções
de conservar, recriar, garantir futuro, selecionar, transformar,
reclamar, evocar, ocultar, porém é também uma faculdade de
esquecer.160
A identidade altera-se com a continuidade das transfor-
mações, bem como as produz. Blondel afirma que, no entre-
cruzamento entre memória e identidade,
[...] num certo sentido, a memória está na origem da identidade,
mas, no fundo, é a identidade que está na origem da memória. Nós
não somos a soma das nossas recordações, mas aquilo que somos
determina o conjunto das nossas recordações.161

Na relação entre memória e identidade estão presentes


as noções de construção, de seleção, de registração, de sig-
nificado, de criação e de consciência subjetiva. A memória é
constituída por uma dimensão dinâmica, um esforço de signi-
ficação, não só de seleção, mas de reinterpretação sucessiva
do passado. A imagem que o indivíduo tem de si mesmo é,
portanto, o produto da sua experiência social e das formas de
mediação simbólica dessa experiência.
A memória, diz Jedlowski, é um conjunto móvel de pro-
cessos e de representações que produzem autopercepções.
Nessa mobilidade de processos, seleções de elementos, “fil-
tros culturais” mutantes em relação ao presente, múltiplas
diferenças e identidades coletivas,162 produzem-se diversos
pertencimentos e diversas relações com a memória.

160
HALBWACHS, M. Les cadres... p. XVIII.
161
FERRAROTTI, F. L´Italia tra storia e memoria. Roma: Donzelli, 1997.
162
BLONDEL, C. apud CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
105

“A lembrança do indivíduo se forma no contato social


com outros mais ou menos significativos no âmbito das rela-
ções formais ou informais por meio de mediações comunicati-
vas linguísticas e culturais diversas.”163

O tempo na memória
Quem tem experiência sabe aconselhar, narrar
e escutar.
Benjamin

A experiência do tempo é a que dá o caráter temporal aos


eventos e aos fatos; daí a importância do uso oral das fontes
no sentido de buscar decifrar a experiência do tempo vivido
em relação ao objeto descrito pelo sujeito narrante. Segun-
do Bachelard, é dessa experiência do tempo que é possível
definir a sua duração ou não; a permanência, a sucessão e a
simultaneidade são modos e relações de tempo. Por consequ-
ência, do mesmo modo que não podemos mais definir o tempo
pela sucessão, não podemos definir o espaço pela coexistência;
será necessário que cada um, espaço e tempo, encontre de-
terminações inteiramente novas. Tudo o que se move e muda
está no tempo, mas o tempo, ele mesmo, não muda, não se
move, muito menos é eterno; ele é a forma de tudo o que muda
e se move, mas é uma forma imutável e imóvel.164
O tempo não é uma realidade objetiva, mas uma objeti-
vação convencionalmente construída sobre a qual se rege, em
grande parte, a vida das formas culturais e dos fatos históricos.
O tempo não é algo externo ao homem; é sempre reprodução
convencional, em formas diversas, nas suas várias dimensões

Angeli, 2001. p. 14.


163
JEDLOWSKI, P. Storie comuni.
164
CARRERA, L. Il futuro della memoria... p. 29.
106 João Carlos Tedesco

e épocas. Cada cultura atribui ao tempo determinados valo-


res e tem constituído uma específica experiência do tempo.
Segundo Mongardini, foi só com a modernidade que o tempo
adquiriu uma importância central nos valores culturais.165
Na análise de Luhmann e de Simmel, em correlação com o
dinheiro, o tempo é um dos maiores elementos reguladores da
sociedade moderna.166 A estrutura mercantil urbana, técnica
e de trabalho produz a excelência do tempo quantitativo e a
redução insignificante do tempo como experiência.167 A seg-
mentação do tempo na sociedade moderna produz, também,
significações, percepções, ritmos, conflitos, diferenciação de
tempos sociais, individuais, subjetivos, formais e estruturais/
abstratos, tanto no âmbito cotidiano,168 da cultura, quanto no
da história.
As exigências de racionalização que, com a industrialização, se
consolidam nos diversos setores da sociedade moderna, as novas
exigências de previsibilidade, de organização e de programação de
atividades sempre mais complexas e entrecruzadas, demandam
progressivamente uma estandartização da medida do tempo
sobre a base cada vez mais rígida em relação àquelas fornecidas
pelos calendários.169

Não é de hoje que o nosso mundo foi invadido pelas ima-


gens técnicas e que o real mudou de lugar ou foi substituí-
do por outra coisa, seja pelos próprios signos que deveriam
representá-lo e que, então, se impõem, ou melhor, se apre-
sentam em seu lugar, seja pela proliferação incontrolável da
imagerie ou, ainda, pelos jogos de linguagem regulados pela
cibernética.170 Segundo Benjamin, como já vimos, os meios

165
DELEUZE, G. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 1988. p. 46.
166
MONGARDINI, C. Il problema del tempo nella società contemporanea. In:
BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 35.
167
LUHMANN apud MONGARDINI, C., op. cit., p. 35.
168
JEDLOWSKI, P. Il tempo dell’esperienza. Milano: Franco Angeli, 1986.
169
GROSSI, W. Les temps de la vie quotidienne. Paris: Mouton, 1974.
170
JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dell’esperienza. In: BELLO-
NI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 138.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
107

técnicos de nossa época promovem a caça ao esquecimento; há


uma acumulação e uma circulação incontrolável e instantâ-
nea das imagens (que leva à sua morte precoce, seu desgaste
imediato, sua existência sem duração), atingindo rapidamen-
te a sua saturação, a inércia, a entropia de sentido. Saturado
o esquecimento, diminuída sua potência, a memória reduz-se
a uma má repetição, incapaz de gerar diferença. Guardamos
tudo para que possamos esquecer tudo instantânea e absolu-
tamente, sem resto ou vestígio.171
O passado não se conserva inteiro no decorrer do tempo
nem com a totalidade da consciência do espaço, como analisou
Bergson, mas se constrói e se reconstrói a partir de faltas, de
ausências. Esse processo nos faz admitir que o gesto de se
debruçar sobre o que já se foi implica um gesto de edificar o
que ainda não é, o que virá a ser.172 Por isso, a possibilidade de
dimensionar cronologias múltiplas e entrecruzadas.
Modernidade e tradição, como já dissemos, na prática,
não são totalmente excludentes; uma não é resíduo da exis-
tência da outra no decorrer do tempo, ou mera cicatriz mar-
cada num instante qualquer da duração ou da dinâmica da
ruptura ou do fazer seu aparecimento.173 Segundo Guimarães,
por sua própria natureza, à memória caberia a tarefa de rea-
lizar um retorno àquilo que cada vez se distancia mais e mais.
Porém, exausta de proceder a repetição, sem forças para su-
portar o que lhe é destinado, incapaz de suportar o fracasso
fundador de sua busca, a memória procura fixar-se em algu-
ma cicatriz, corte, descontinuidade ilusória, capaz de demar-
car, ainda que fugazmente, o recuo incessante da origem.174

171
GUIMARÃES, C. Imagens da memória: entre o legível e o invisível. Belo
Horizonte: Ed. UFGM, 1997. p. 46.
172
BENJAMIN, W. Il Narratore...
173
CASTELLO BRANCO apud GUIMARÃES, op. cit.
174
FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1990.
p. 347.
108 João Carlos Tedesco

Na análise do autor, a memória é constituída por uma textura


de imagens. Retratos, inscrições, cenas, composições, enfim,
signos ou conjuntos de signos, que compõem uma imagem ou
conjunto de imagens, são os suportes nos quais a memória se
inscreve, formando múltiplas formas.
É nesse sentido que há na lembrança rememorações e va-
zios. A memória é marcada pela descontinuidade dos registros
de tempo e pela heterogeneidade dos níveis que a compõem.
É nessa dimensão do tempo no espaço e o espaço cultural no
tempo da memória que muitas tradições, como já vimos, são,
ou podem ser, inventadas e/ou redefinidas. Aliás, como diz Lu-
cena, sempre que possível, tenta-se estabelecer continuidade
com um passado histórico apropriado. Contudo, na medida em
que há referência a um passado histórico, as tradições “inven-
tadas” caracterizam-se por estabelecer com ele uma continui-
dade bastante artificial. Isso porque toda a tradição inventa-
da, na medida do possível, utiliza a história como legitimadora
das ações e como cimento da coesão grupal.175
Os tempos e os ritmos sociais, biológicos, individuais e
coletivos ganham, na vida cotidiana, significados de duração,
de dados, de organizadores das atividades e relações, os quais
os indivíduos interiorizam como pré-condições não só para a
ação, mas para o próprio constituir-se como indivíduo situado
socialmente, como habitus social, como condição de pertencer
a uma dada sociedade.176 Porém, o tempo e o espaço da me-
mória são uma tentativa de racionalização ordenada ou não,
subjetiva e objetivamente, com referência aos significados
atribuídos à lembrança.
Rampazi define esse tempo significativo como um tem-
po especializado da memória ao qual se busca dar sentido e
coerência. Desse modo, o passado não é um tempo estanque,

GUIMARÃES, C., op. cit., p. 21-37.


175

LUCENA, op. cit., p. 9, 10-21.


176
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
109

mas um campo de possibilidade auferida ao presente sobre o


passado.
Nessa fase de reflexão, a distância temporal entre eventos se
anula: passado e futuro vêm relacionados ao presente. A memória
perde profundidade temporal, torna-se uma espécie de contexto
espacial, o território da experiência que está sedimentada não
permite responder com eficácia os problemas que as reflexões
atuais colocam.177

Halbwachs deixa claro em Les cadres... que o que é im-


portante preservar do passado está conexo aos valores simbó-
licos que o presente projeta para o futuro dos elementos vivi-
dos significativos para o indivíduo como expressão de grupos.
Lynch diz que “nós preservamos os sinais presentes do pas-
sado e controlamos o presente em função das nossas imagens
do futuro”.178

Memória e experiência
O invisível pode tornar-se visível por meio do
discurso.
Bachelard

O conceito de experiência é complexo:179 pode estar en-


volto na ideia do que se vive (só em parte consciente), no
processo por meio do qual o sujeito se apropria do vivido e o
sintetiza, no exercício controlado, repetitivo, subjetivamente
depurado, na via de acesso ou ter um dote de sabedoria, no
exercício e na aquisição da capacidade de elaboração, no vivi-
do, particularmente significativo e carregado de expectativas
de competência,

177
ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986.
178
RAMPAZI, M. Tempo e spazio della memoria. In: _______; BELLONI, C. op.
cit., p. 247.
179
LYNCH, K. apud RAMPAZZI, op. cit., p. 247.
110 João Carlos Tedesco

[...] que, em qualquer modo, não entra nas nossas expectativas de


rotinas, e as modifica, seja para compreender o processo com o qual,
na prática repetida, determinadas competências e expectativas se
consolidam e dão lugar a uma capacidade comprovada de responder
às circunstâncias de modo apropriado”.180

Fala-se em experiência como passado presente, no qual


eventos podem ser recordados; incorpora-se algo do passado
no presente, como faculdade de conter os diversos vividos
numa continuidade dotada de sentido.
Benjamin fala que a modernidade181 apresenta uma
grande característica atrofiadora da experiência. A experiên-
cia é um fato ligado às tradições, tanto na vida privada quan-
to na coletiva: “Essa não consiste tanto de singulares eventos
exatamente fixados na lembrança, mas de dados acumulados,
frequentemente inconscientes, que se apresentam na memó-
ria.”182 Na compreensão do autor, a realidade da época moder-
na parece ser caracterizada pela ideia de que na vida cotidia-
na se tem menos experiência de alguma coisa. Somos cada
vez mais informados, porém ser informado não é sinônimo de
haver experiência.183 Benjamin fala da experiência como algo
que é possível ter, não como algo possuído, mas como qua-

180
Sabedores de sua complexidade, não vamos aqui nos alongar muito nem tentar
fazer uma análise hermenêutica dos significados variados de experiência. Nem
para isso teríamos condições. Aqui a indicamos apenas no sentido de relacionar
com o vivido histórico, seja pessoal, seja grupal/coletivo e que fornece maté-
ria-prima para os relatos significativos de memória. Não a entendemos em
seu sentido pragmático, mas, sim, em seu universo simbólico e significativo
de vivido que quer e adota estratégias de reprodução num cenário de limites
de lembrança. Segundo Gadamer, em Verità e metodo, (p. 68), “a verdade das
experiências contém sempre uma referência a novas experiências. Por isso,
aquilo que chamamos de especialista não é só o que conseguiu ser através
das experiências feitas, mas quem está ainda aberto a outras experiências”.
181
JEDLOWSKI, P. Il sapere dell’esperienza... p. 82.
182
O cenário da modernidade começa com o final do século XVIII quando do
surgimento da grande indústria, da mercadoria, do novo e sempre idêntico.
Benjamin diz que nenhum período histórico conheceu a reprodução do idêntico
como o promovido pela indústria. A alma da modernidade é a indústria; o
mercado é seu órgão sensorial mais importante; a mercadoria é seu ambiente
construído.
183
BENJAMIN, W. Di alcuni... p. 88.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
111

lidade humana. A noção de experiência em Benjamin e em


Adorno está intimamente relacionada com a de memória. A
experiência é a continuidade da consciência, na qual perdura
o que não está mais presente, diz Adorno.
A experiência está intimamente em conexão com a memó-
ria. Na noção comum de experiência estão presentes elemen-
tos como repetição, vivido, passado, relação entre ambiente
objetivo e consciência individual, diferença em relação ao que
se sabe. Adorno dizia que a experiência é a continuidade da
consciência, na qual perdura o que não está mais presente,
na qual a repetição e a associação criam no indivíduo a tra-
dição. Para Benjamin, na ideia de experiência está presente
a noção de tradição, dados cumulativos que confluem na me-
mória. Tanto Adorno quanto Benjamin analisam o conceito
de experiência num cenário histórico de profunda redução do
potencial da experiência, da narração e de autoconsciência.
Memória, esquecimento e recordação convivem, (re)presen-
tam-se, pois “a função da memória [...] é a proteção as impressões.
A recordação tende a dissolvê-las. A memória é essencialmente
conservadora, a recordação é destrutiva”.184
A ausência de ritos de tradição, de simbologias e dos va-
lores materiais e simbólicos dos cultos conduz a que se per-
cam os materiais da memória; provoca, concomitantemente, a
degradação dessa, o abandono pelos indivíduos dos conteúdos
de sua própria memória. As modificações no ambiente obje-
tivo são registradas na experiência na medida em que vêm a
constituir o fundo histórico mutável sobre a qual se sedimen-
tam. Esse processo problematiza a memória e introduz modi-

No livro Di alcuni..., Benjamin desenvolve as análises sobre a experiência na


184

modernidade. Esse livro é um de seus últimos escritos, fruto de sua passagem


por Paris; contém inúmeras correspondências trocadas com Adorno nas quais
desenvolve e contextualiza o cenário e os processos consequentes da atrofia
da experiência na modernidade, aliás esse tema é o foco central de grande
parte de sua obra.
112 João Carlos Tedesco

ficações no aparato sensitivo do indivíduo, um fechamento da


memória profunda ao acesso aos objetos do vivido cotidiano
familiar.
A vista, o ouvido, o tato, são os sentidos que o nascimento da
metrópole modifica em modo mais forte. Mas também o olfato e o
gosto devem adequar-se a um modo perceptivo modificado. Sobre-
tudo, aquilo que permanece imune de transformação radical é a
sensibilidade interna do indivíduo, relativa ao conjunto do próprio
corpo. Todas essas modificações são sintetizadas a uma geral con-
sideração das modificações nos ritmos que a vida humana é vivida
nas cidades.185

Na análise benjaminiana de experiência está presen-


te uma dialética de proximidade e de distância. O autor diz
que, na sociedade mercantil, quanto maior a vizinhança e a
aproximação com os objetos, maior e mais profundo será seu
distanciamento. O papel dos jornais tem uma profunda impli-
cação no processo, no horizonte da “reprodutibilidade técnica”
e de mundo da superfície da experiência midiatizada.
Como já dissemos, a vida cotidiana fornece os materiais
de cada experiência, porém há sempre uma dialética entre
cotidianidade e experiência. Segundo Jedlowski, quando
há cotidianidade, não há experiência. Não é possível haver
“experiência” de tudo.186 É por isso que a experiência, para
Benjamin, é um passado em síntese, tornado disponível no
presente como tradição; não um passado como manifestação
individual, mas inserido numa memória coletiva, numa cul-
tura que se manifesta por uma linguagem e por símbolos co-
dificados, ritualizados pela tradição.187 É esse o processo que
se esvai com a modernidade e seus valores econômicos, ideoló-
gicos, políticos e culturais do capitalismo, segundo Benjamin.

185
BENJAMIN, W. L’opera d’arte nell’epoca della sua reproducibilità tecnica.
Torino: Einaudi, 1966.
186
BENJAMIN apud JEDLOWSKI, P. Il tempo dell’esperienza. Milano: Franco
Angeli, 1986. p. 108.
187
JEDLOSKI.P. Il tempo...
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
113

O moderno tornou-se uma perpétua transformação, um


“sempre novo”, uma aceleração do tempo sem precedente. Na
análise crítica de Benjamin, com isso, concretiza-se uma abre-
viação dos espaços da experiência; cada objeto da experiência
se torna fugidio, volátil, transitório; há uma impossibilidade
de sedimentar experiência, de encontrar sentidos, de consti-
tuir memória coletiva, de dar conteúdo cultural aos fatos, de
se apropriar individualmente de quadros coletivos vividos e
de incorporá-los num horizonte de sentido.
A modernidade transformou o tempo num recurso escas-
so. A dimensão temporal da sociedade industrial moderna é
caracterizada fortemente pela subsunção do tempo ao universo
mercantil. A reificação do tempo, como duração abstrata, inde-
pendentemente de seu conteúdo, constitui a base sobre a qual se
apoiam os dois grandes processos que acompanham o nascimen-
to e o desenvolvimento da sociedade capitalista: a mercantiliza-
ção do trabalho e do seu produto. Nesse sentido, desenvolvem-
se o produtivismo, que domina o agir da sociedade industrial
moderna, a subsunção do tempo ao universo dos recursos
econômicos, a quantificação progressiva e a maximização da
produtividade. A racionalidade econômica submete e funcio-
naliza o agir social à sua lógica: “A reificação da dimensão
temporal provoca assim a tendencial derrota de todos aqueles
empenhos do tempo que não possam ser considerados produ-
tivos nos termos da racionalidade econômica.”188 Esse cenário
de economia do tempo, do trabalho e do mercado produz o que
Benjamin e, posteriormente, Lefebvre chamaram de econo-
mização da vida, ou seja, uma representação do tempo como
entidade cuja existência aparece como independente da expe-
riência que dela se tem.

JEDCOSKI, op cit.
188
114 João Carlos Tedesco

A análise de cunho marxista é fértil no sentido de clare-


ar as questões de ordem temporal presentes no capitalismo,
ou seja, este pertence à ordem econômica e cada economia se
resolve com a economia do tempo. Nessa lógica econômica bus-
ca-se produzir uma maior quantidade de tempo, pois cada vez
lhe é mais necessário e cada vez lhe falta mais. O avanço tec-
nológico, em tese, reduziria o tempo necessário para o desen-
volvimento e a produção de algo, bem como para a mobilidade
física, da informação e da mercadoria. No entanto, esse é o
paradoxo: quanto mais se poupa, mais se precisa; aliás, pou-
pa-se, reduz-se o consumo porque justamente mais se precisa.
Lefebvre diz que vivemos numa sociedade produtora do tem-
po,189 do que a velocidade é uma manifestação. Criaram-se e
desenvolveram-se um imaginário e uma representação social
de que a quantidade de tempo de que dispomos não é suficien-
te e é inadequada para dar conta das exigências cotidianas.
A disponibilidade de tempo passa a ser sinal e sintoma
de desqualificação social: quem é ou quer ser alguma coisa na
vida não tem tempo; só têm tempo as pessoas não importan-
tes, os membros de estratos marginais. De qualquer modo,
sua homogeneidade simbólica atinge a todos, ganha um valor
formal e orientador da vida comum dos indivíduos que partici-
pam da subsunção e da reificação do tempo à forma mercantil
de cada aspecto da vida social. “Os dispositivos cotidianamen-
te experimentados para poupar tempo parecem colocar em
evidência um mecanismo de contrafinalidade: mais se ganha
tempo, mais esse se reduz. A racionalização e a economização
da vida que legitima o tempo têm estragado a cronocracia e

DUPUY, J. P. Valeur sociale et encombrement du temps. Paris: CNRS, 1980.


189

p. 228; ver, também, sobre isso PAOLUCCI, G. Una figura della temporalità
moderna: la scarsità di tempo. In: BELLONI, C.; RAMPAZZI, M., op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
115

produzido o seu contrário: a colonização do tempo provoca a


morte do tempo.”190
A modificação no ambiente, no tempo social (sua acelera-
ção), a intensa presença da técnica em cada aspecto da vida
cotidiana promovem uma ruptura na cultura subjetiva e um
crescente desenvolvimento da cultura objetiva, como analisou
Simmel (outro moderno e grande crítico da forma moderna
de gerir a vida cotidiana). A cultura objetiva, para Simmel,
é aquela objetivada nos produtos humanos, nas realizações
técnicas; é aquela feita coisa. A cultura subjetiva depende
desta última pela simples razão de que o homem se torna cul-
to quando se apropria pessoalmente dos conteúdos da outra,
como patrimônio de um indivíduo de algo tornado cultural-
mente coisa.191
O aventureiro é a figura emblemática da análise da mo-
dernidade em Simmel, a qual contraria a noção de experiência
pela fragmentação, descontinuidade, diferenciação, intelectu-
alização e racionalidade técnica, do dinheiro e do progresso
e, cada vez menos, pelo sentimento através do corpo (mãos),
pelas experiências vividas (lembrar da significativa figura do
blasé tão bem desenvolvida pelo autor!), da crítica à unila-
teralidade do intelecto e da racionalidade da técnica. Nesse
horizonte, a experiência se retrai e passa a ter uma função e
uma realidade/permanência crítica.
É nessa perspectiva que cabe à experiência crítica pro-
mover a elaboração de sentido; resta sempre algo de sentido
ainda que num cenário no qual se reduziu a capacidade de
elaborar o conjunto dos próprios vividos e de incorporá-los a
um desenho coerente com o tempo, com a história e com as
necessidades presentes e futuras.

LEFEBVRE, H. Critique de la vie quotidienne. Paris: L´Arche, 1981. v. III.


190

PAOLUCCI, G. Una figura della temporalità moderna: la scarsità di tempo.


191

In: BELLONI, C.; RAMPAZI, M., op. cit., p. 169.


116 João Carlos Tedesco

Benjamin diz que a experiência comporta três momen-


tos distintos, mas que se complementam: a familiaridade (o
hábito, a frequência), a profundidade (essa, segundo o autor,
foi afetada pela cultura urbana e mercantil, que produziu a
facilidade do esquecimento) e a autoconsciência, a qual pro-
duz a biografia.192
Na análise de Jedlowski, a vida cotidiana é a que fornece
os materiais para a experiência coletiva e individual, porém
ambas se correlacionam numa perspectiva dialética. O tempo
do cotidiano e o tempo da experiência se conjugam na conside-
ração de um particular tempo vivido, o tempo da memória.193
Se localizarmos Thompson na discussão sobe experiência
e memória, veremos que o autor lhe atribui grande impor-
tância para o campo da interpretação histórica. Thompson
analisa a plebe inglesa do século XVIII, utilizando a noção
de cultura como foco de análise e como base para o estudo
das lutas sociais. A sua concepção de cultura está correla-
cionada com a ideia de experiência, com formas de ação da
“experiência humana”. Nesse horizonte, a dimensão moral do
campesinato inglês do final do século XVIII é expressa como
densidade simbólica e de resistência constituída pelos costu-
mes, pelo parentesco, pelos impulsos milenaristas. Esses ele-
mentos, na análise do autor, forneciam as bases para as lutas
e rebeldias, para a valorização da cultura tradicional, para
a contraposição à expropriação de direitos e da ruptura dos
valores tradicionais do trabalho e do descanso. Desse modo,
o autor descreve a dinâmica da vida social com suas normas,
valores, tabus, crenças e obrigações, movida pela experiência
dos homens, sujeitos e construtores do futuro.194

192
SIMMEL apud Jedlowski, 1986, op. cit., p. 94.
193
JEDLOWSKI, P. Tempo del quotidiano, tempo dell’esperienza. In: BELLONI,
C.; RAMPAZI, M. op. cit.; ver, também, BRAUDEL, F. Le strutture del quoti-
diano. Torino: Einaudi, 1982.
194
BENJAMIN, W. Il narratore. Torino: Einaudi, 1976.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
117

Para Thompson, os homens constroem a história e as es-


truturas. Os indivíduos são portadores de experiências, fruto
de sua situação passada, presente e intencional, resultante,
também, de suas relações de produção.
As experiências, no horizonte cultural, fornecem as bases
para o trabalho da consciência social. A experiência é, para
Thompson, um vivido experimentado como “sentimento”, como
constituinte da vida cotidiana, como constitutiva de um con-
junto de valores implícitos e incorporados na cultura. Thomp-
son reconstitui a noção de subjetividade da história, recolocan-
do a questão da tradição, do ser social e da consciência social,
do papel ativo e da racionalidade dos sujeitos que atuam na
história, da capacidade de tornar inteligíveis aspectos obscuros
do passado, como a economia moral dos pobres, a racionalidade
de suas práticas lúdicas, de reconstituição das tradições popu-
lares do século XVIII, as quais constituem matéria-prima e/ou
substrato para a conformação de sujeito das classes.
A noção de sentido é um conjunto de práticas e de valo-
res que sofreram influência de repressão econômica e política.
Esse processo é visto como elemento ativo, ou seja, sentimen-
tos e valores que assumem um caráter político de combate às
novas racionalidades econômicas que rearticulam o trabalho,
a comida, a caça, a propriedade, os rituais tradicionais de cul-
tura, do direito consuetudinário etc.
No tocante à memória, na interpretação de Thompson,
esta serve de objeto da história, pois a reconstituição de uma
racionalidade interna aos grupos reconhece a existência de
uma “tradição clandestina”, de uma “experiência histórica”,
de uma “consciência dos costumes”, como espaços de lutas,
um campo de trocas, um marco de “cultura tradicional rebel-
de”. Thompson, na análise do campo da memória e da sua
ligação com a história, fornece perspectivas de recuperação do
imperativo da memória, o qual possibilita resgatar os sujeitos
118 João Carlos Tedesco

que viveram, fizeram e sofreram a história; permite recupe-


rar uma variedade de experiências que transcendem o hori-
zonte das classes, como é o caso do gênero, das identidades,
da cultura, dos modos de vista, da cotidianidade, etc.195

Memória, tempo e poder


Pelo fato de os processos de memória se constituírem
numa seleção, numa construção, abre-se um grande espaço
para as estratégias de poder, para a construção de uma iden-
tidade útil ao poder e à legitimação desse. A relação entre
memória e poder coloca em evidência a natureza da “constru-
ção” da memória, bem como a questão dos limites da própria
memória. Esse processo nos diz que poderá haver uma plura-
lidade de memória em correspondência à multiplicidade dos
grupos que se constituem. Com isso,
[...] faz emergir que a memória não é só a sede dos processos de
seleção dos eventos do passado úteis a consolidação da identidade
adotada e funcional ao poder do momento, mas também o lugar no
qual permanecem os traços dos eventos que não foram selecionados
da memória ao poder.196

Assim como a memória, pela sua dimensão de origem,


de proveniência histórica passada, pode servir para produzir,
justificar, legitimar e reproduzir o poder, pode também servir
para destituí-lo; pode servir para recuperar significados que
possam colocar em xeque a estrutura do poder atual, desligiti-
mar ações, crenças e tradições que o significam. Regimes dita-
toriais, monarquias e dinastias dos tempos atuais são expres-
são dessa tentativa de fazer entender, em nome da memória,

195
SORGENTINI, H. Reflexión sobre la memória y autorreflexión de la historia.
Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 23, n. 45, 2003. p. 103-128.
196
Ver THOMPSON, E, P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1987; ver, também, A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
119

que a história parou, que a origem divina, dinástica, ou seja


o que for, consolida-a pela passagem do tempo.197 Os rituais
de memória são importantes para dificultar a possibilidade
dialética entre recordação e esquecimento, entre o que precisa
ser mostrado e lembrado (funcional ao poder) e o que poderia
lhe causar crise interna, o que lhe dá legitimidade hoje e lhe
permite prospectivar (desejo de ser recordado no futuro).
É nesse sentido que a memória pode permitir a articu-
lação entre alternância, continuidade e descontinuidade, dis-
tanciamento e proximidade ao poder no tempo e no espaço.
Linearizar o tempo e centralizar o espaço são formas de dar
sentido a um presente com referência a um passado; é, como
diz Weber, dar legitimidade do passado do tempo. É evidente
que não se pode só reduzir a falta de tempo à sua dimensão
econômico-quantitativa, como pura calculabilidade. Autores
como Sevè referem que a necessidade do tempo pertence à
mesma categoria de necessidades que derivam da posição do
indivíduo no sistema de relações sociais. Daí entrarem nesse
horizonte projetos de vida, finalidades e desejos individuais,
a consciência de que o tempo à disposição de cada um é finito,
levando a que algumas exigências e aspirações intensifiquem
a realização de projetos e programas e escolhas relativas à
alocação do tempo.
De qualquer forma, continua a imposição de uma visão
utilitarista do tempo, aquilo que Heller chamou de “futuriza-
ção do tempo presente”,198 ou seja, de reduzir o presente a um

MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 122.


197

O retorno à Itália dos Savóias, sua representação, aceitação e repulsão social


198

atual na sociedade italiana, é expressão disso, bem como a discussão sobre o


fim das dinastias, dos reinados em vários países, principalmente na Inglaterra.
As monarquias fixam sua legitimidade no tempo passado, porém os regimes
ditatoriais e totalitários temem a memória, buscam suspender a temporalidade,
aliam-se ao esquecimento, fundam-se num eterno presente, dando futuro à
continuidade. O mundo passa a ser um dado, natural e imutável, elaborado
pela visão de mundo, que está e quer permanecer no poder. As comemora-
ções, a obsessão pela ritualidade presente são tentativas de frear a passagem
do tempo. Para o ditador não há necessidade de passado; passado e futuro
120 João Carlos Tedesco

projetual, a um mero instrumento de realização de um ulte-


rior distante, o que acaba impondo também uma aceleração
do tempo a um futuro antecipado, a uma instrumentalização
do presente em razão de realizações projetadas nos múltiplos
domínios do cotidiano, empobrecendo a experiência desse. O
tempo considerado como máximo rendimento acaba também
por monetizar virtual ou realmente a experiência, por subor-
dinar e instrumentalizar o agora em função de um depois, o
presente àquilo que deve ser feito. O paradigma do tempo-
quantidade, malgrado a desigualdade na sua distribuição e
aproveitamento social, adentra para as necessidades subje-
tivas, para os desejos da própria experiência cotidiana dos
indivíduos. A necessidade do tempo é expressão do desejo de
dispor do próprio tempo para viver.
Desse modo, poderá existir, e tendencialmente existe,
uma forte correlação do sistema motivacional do indivíduo
(os horizontes de expectativas) com a alocação do tempo que
a gestão da vida cotidiana impõe, ou seja, a heterogeneidade
e a fragmentação do agir, que, num determinado momento,
homogeiniza a experiência comum e dificulta a possibilidade
do indivíduo de criar uma hierarquia autônoma de decisão e
de opção.199 Esse fenômeno tem o poder de anestesiar a ideia
mesma de tempo, de sincronizar, espacial e temporalmente,
a riqueza do vivido diacrônico, a capacidade de sedimentar a
experiência nas conexões de tempo e de memória.
É na vida cotidiana que isso se processa, mas é também
nessa que é possível recuperar elementos históricos, proces-
suais e de continuidade com o passado; também as formas de
subjetividades e intersubjetividades e a razão da existência,

apresentam risco para a ditadura. Desse modo, como diz Jedlowski (1990), a
memória tem sempre uma dimensão crítica que pode ser desestabilizante.
HELLER, A. O cotidiano e a história. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
199
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
121

da fantasia,200 a consciência como consciência contínua e não


residual. É desse modo que os múltiplos vínculos entre tem-
pos e espaços individuais e intersubjetivos parecem permitir
a capacidade de salvaguardar aspectos da dimensão da expe-
riência e da consciência da mutabilidade, da instabilidade e
da contraditoriedade do universo sociocultural. Desse modo,
a noção experiência, malgrado seu contexto de redução prag-
mática e/ou de limite significativo, carrega consigo a ideia de
resposta, de processo ativo, de adequamento ao ambiente, situa-
ção determinante do sucesso ou do fracasso na resolução do pro-
blema que o ambiente coloca, dos fins que se entende perseguir.
É por isso que insistimos no fato de que a experiência não
é um dado, mas um objeto, um produto de uma atividade, um
processo ativo que possui sentido e continuidade de escolha:
“Não podemos nos esquecer que essa escolha estava implícita
no projeto cultural originário da modernidade, no qual a ex-
periência, desvinculada dos liames com a tradição, propunha-
se como caminho individual de realização e de descoberta de
si.”201 A memória oral é esse exercício individual, essa desco-
berta de si mesmo, reflexão e exteriorização da experiência,
bem como um correlacionar constante entre tempo presente e
tempo passado. A seguir, veremos melhor isso e atentaremos
para as implicações contextuais, analíticas, metodológicas e
de expressão oral.

SEVO, L. Marxismo e teoria della personalità. Torino: Einaudi, 1977.


200

DURAND diz que a fantasia é uma reserva infinita de eternidade contra o


201

tempo. Ver, do autor, Les structures antrhopologiques de l´imaginaire. Paris:


PUF, 1960
Capítulo 9
Memória e oralidade:
intenções, problemas e expectativas

Quem comanda a narração não é a voz, é o


ouvido.
I. Calvino

Adentramos na questão da memória e da oralidade por-


que a utilizamos muito para entender aspectos da memória
familiar, o papel da família na transmissão da memória e as
diferenças percebidas entre gênero e gerações, por entender-
mos que a história oral202 fornece oportunidade de reconstruir
aspectos de personalidades individuais inscritas na existên-
cia coletiva e, também, pelo fato de as fontes orais dizerem
respeito à memória e essa ser um fato individual mediado,
moldurado, pressionado, influenciado pelas condições do
meio.203
Matos diz que explorar as relações entre memória e his-
tória é colocar em evidência atores de sua própria identida-
de, reconhecer que as lembranças são as artes do indivíduo,
que redimensionam as relações entre passado e presente. O
passado é também construído segundo as necessidades do
presente; por isso, é importante ter presente os usos políticos
desse mesmo passado e como ele se expressa.204

202
JEDLOWSKI, 1986, op. cit., p. 162.
203
Muitos autores não utilizam mais a expressão “história oral” e, sim, “fonte
oral”, por ser aquela excludente de outro tipo de fazer história. No entanto,
devido ao seu uso comum, continua seu emprego, ressalva-se, porém, seu
sentido de não exclusividade.
204
MATOS, op. cit., ver também LUCENA, op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
123

Buscar a totalidade
Passerini coloca em ressalva o fato de que não é porque
esse campo se voltou mais para os oprimidos, os esquecidos e
escondidos, os marginalizados que sua legitimidade se funda.
Para a autora, corre-se o risco de tornar uma ideologia po-
pulista exaltadora do passado e justificadora da ideologia do
presente.
O novo papel que ela introduz na história são discursos, os quais as
referências à realidade podem ser múltiplas e devem ser decifra-
dos. A história oral não trata só do discurso escolhido, mas tem a
ambição de afrontar a linguagem na sua totalidade, não só aquela
dos homens ilustres, mas aquela da gente comum, não só as línguas
cultas, mas os dialetos, não só a expressão explícita, mas os códigos
não-articulados de qualquer um que não tem voz oficial e que essa
o impede de falar e de deixar testemunho de sí e da própria vida. 205

Segundo a autora, a história oral não deve se privar de


buscar a totalidade: “Não possa fazer menos de atuar em uma
reinterpretação política e simbólica do passado, uma retotali-
zação da história que a reconheça como autoprodução dotada
de um sentido.”206

Sua base histórica


Memória e esquecimento tornam-se condições de
possibilidades de um para o outro.
Nora

O papel do testemunho como fonte de conhecimento histó-


rico, como fonte confiável e autêntica, desde a Antiguidade, sem-
pre foi objeto de discussão. Heródoto, por exemplo dizia que o

205
FERREIRA, M. de M. História oral e tempo presente. In: BOMMEIHY, I. E.
(Org.). (Re)introduzindo a história oral no Brasil. São Paulo: USP, 1996. p. 16.
206
PASSERINI, L. Storia e soggettività. Firenzi: La Nuova Italia, 1988. p. 33.
124 João Carlos Tedesco

testemunho se esgotaria na terceira geração, ou seja, em alguém


que escutou de alguém que escutou de quem viu. O que não era
visto não poderia mais ser relatado. Tucídides, corroborando a
ideia, fragilizava e desconfiava da memória, dizendo que seria
incapaz de garantir fidelidade do relato à realidade. Para ele, os
documentos escritos seriam fundamentais em substituição aos
depoimentos orais. Muitos historiadores do Século XIX diziam
que a história só seria possível com documentos escritos, o que
levou Févre a rebater, com já vimos, a dizer: “quando eles exis-
tem”. Isso porque, se não os possuirmos, devemos ser capazes
de “fabricar o mel mesmo na ausência das flores habituais”.207
Segundo Passerini, a história oral existiu muito antes,
de modo subterrâneo, antes mesmo da invenção do grava-
dor, quando de transcrições de memória, de testemunhos,
de conversas feitas por historiadores. Em muitos estudos de
historiadores, antropólogos e sociólogos sobre a África foram
abundantemente utilizados os recursos de fontes e materiais
orais, porém sem haver uma maior problematização no cam-
po historiográfico e sem a pretensão da mesma de seu direito
de cidadania na/como análise histórica.208
Foi a partir de 1960, principalmente na Inglaterra e,
posteriormente, nos Estados Unidos,209 que a história e os de-
poimentos orais ganharam corpo. As crianças, os loucos, as
minorias sociais, raciais, sexuais, oprimidas etc. passaram, a
partir daí, a ganhar voz; emergiu o apelo da vivência, do in-
divíduo cotidiano, da família, da sexualidade, do nascimento
e da morte, que iriam resultar na busca de identidade e na

207
PASSERINI, op. cit., 1988. p. 48.
208
FREITAS DUTRA, E, de. Para uma sociologia histórica dos testemunhos:
considerações preliminares. Locus. Revista de História, v. 6, n. 2, Juiz de
Fora: EDUFJF, 2000. p. 75-82.
209
PASSERINI, L. (a cura de). Storia orale, vita quotidiana e cultura materiale
delle classi subalterne. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. Ver também VAN-
SINA, J. La tradizione orale. Roma: Officina, 1977.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
125

nostalgia passadista, na moda do biográfico e no retorno às


raízes.210
Na análise de Ferreira, uma história bem-feita, sem fon-
tes orais, é uma história incompleta. A fonte oral é uma fonte
viva, inacabada, parcial. A história que produz é também uma
história inacabada. A fonte oral, por ser viva, é parcial; exige
confronto com o outro, diferenças e unidade, diálogo, entrevis-
tas, processo de aprendizado, conversas, enfim, subjetivida-
des, não bem vistas por algumas correntes mais tradicionais
do campo da história e de algumas filosofias e metodologias
da ciência de base cartesiana e adeptas à ortodoxia. Pensamos
que o desafio maior está em saber delimitar a fronteira entre
o descrever e o entender. Diversidade, flexibilidade, liberdade
são características do uso da história oral; a sua identificação
ao pós-moderno se dá pela sua imprevisibilidade, flexibilida-
de e elasticidade metodológica e analítica.

Pressupostos teóricos

O uso do termo “história oral” indica um conjunto de pes-


quisas e de debates sobre a crítica histórica específica que se
pode aplicar às fontes orais na sua possibilidade de ampliação
científica e democratização (alargamento não só da gama de
objetos históricos considerados, mas também do público que a
história pode abarcar) e o uso, tipo e tendências de fontes são
mais adaptadas.211

210
Ver também PASSERINI, L., 1977, op. cit., uma análise histórica da história
oral, suas implicações, preocupações, focos de análise, tendência e polêmicas.
Em A. Portelli e F. Ferrarotti, também é possível encontrar análises nesse
sentido, bem como estudos de casos com referenciais de uso da oralidade como
fonte histórica.
211
FERREIRA, M. M. História oral e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro:
Diadorim, 1994. p. 32.
126 João Carlos Tedesco

A mediação simbólica e a experiência de vida expressam-


se nas narrações, na interpretação do mundo e no conferi-
mento dos significados. Reconhecer esses processos e traba-
lhar no sentido de melhor utilizar esse dados com a pesquisa
histórica e social é um dos grandes desafios da história oral.
Tratar as fontes orais de modo adequado com essa sua carac-
terística significa reconhecer o universo da tradição, do coti-
diano, da cultura política, da memória, que radica suas bases
e sua possibilidade de lembrança na experiência cotidiana e
na linguagem comum.212
Segundo Passerini, a história oral não é inovadora por-
que trata da oralidade, mas por desenvolver, num cenário e
num contexto das ciências humanas e, em especial, da histó-
ria, uma crítica ao positivismo, à dimensão histórica da socie-
dade regulada por leis de características físicas ou biológicas
quantitativas e mensuráveis; por desenvolver, também, uma
crítica complementar ao evolucionismo linear e inconcluso,
desconexo, em muitos casos, com a realidade dos fatos; por
desenvolver, ainda, uma crítica às interpretações da antro-
pologia cultural organicista e estruturalista, a qual isolou e
reduziu o papel do indivíduo e da história, em grande parte,
como processo e como autoprodução.
A história oral é uma fonte, um documento diferente, que
pode ser uma entrevista gravada, a qual necessita de localiza-
ção, de identificação dos atores em seu contexto (seu trabalho,
seu mundo, os acontecimentos com os quais participou), de
emotividade, de subjetividade, de aproximação do entrevista-
dor com o objeto (entender o ator por dentro, no cerne de sua
cultura política). Para especialistas nessa questão, como é o
caso de Janaina Amado e Marieta Ferreira, malgrado as inú-
meras polêmicas que ambas apresentam em torno da questão

VANSINA, J. La tradizione orale. Saggio di metodologia storica. Roma: Officina


212

Edizioni, 1977.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
127

da história oral, a história oral pode ser vista como disciplina


que possui técnicas específicas de pesquisa, procedimentos
metodológicos singulares e um conjunto próprio de conceitos.
No entanto, a história oral pode ser vista, e é isso que as
autoras defendem, como metodologia, ou seja, não como uma
simples técnica nem como simples ordenamento de procedi-
mentos de trabalho.213 Para essas autoras, a história oral é
um espaço de contato e influência interdisciplinares; conside-
rações no âmbito social (histórico-social), subjetivo; registra
indivíduos “sem voz”. Fatos pinçados aqui e ali nas histórias
de vida dão ensejo a percepções de como um modo de entender
o passado é construído, processado e integra a vida de uma
pessoa.
Influenciados por Bourdieu, Ginzburg, Thompson e ou-
tros membros da corrente da história social e cultural, mui-
tos defensores da história oral buscam dar centralidade ao
indivíduo, mostrando que os sujeitos lutam para, no mínimo,
ter uma margem de liberdade em suas ações, as quais não po-
dem ser vistas como irrelevantes ou não pertinentes. As ações
suscitam mudanças sociais. Bourdieu diz que é interessante
ter presente a noção de trajetória, de deslocamento e de acon-
tecimentos sucessivos, bem como o habitus social, cultural e
econômico que conduz a expressão linguística da memória.

Ver PASSERINI, L. Sette punti sulla memoria per l’interpretazione delle fonti
213

orali. In: Italia Contemporanea, 1981. n. 143. p. 83-92; ver, também, nesse
sentido, PORTELLI, S. La memoria e l’evento. Senso critico, n. 4, 1980.
128 João Carlos Tedesco

Os pressupostos da narração
A minha presença, as minhas perguntas, podem
fazer ver de um outro ponto de vista.
Bermani

Segundo Miranda,214 uma das tendências da historiogra-


fia contemporânea é o desenvolvimento de uma ressubjetivi-
dade, rememorização, ressimbolização dos sentidos culturais
sob o veio das compensações do passado. Nesse sentido, me-
mória e identidade ganham contornos analíticos e são me-
diadas pelo veio da ressignificação da lembrança no horizon-
te do tempo, do espaço e do movimento das representações
socioculturais. Tempo, espaço e experiência, ambos sofrendo
e produzindo elementos inovadores e corrosivos, integrações/
desintegrações, fragmentos e contextos, possuem a capaci-
dade de socialização de memória e de identidade, sejam elas
mentalidades coletivas (grupos, tradição, representações so-
ciais) ou individuais.
A narração de memória, por ser uma linguagem localizada no
tripé tempo, espaço e experiência, tem a característica de poder se
desgastar, ressignificar, deslinearizar tempos (sejam eles sociais,
históricos, culturais e econômicos), de poder perder velocidade
(aqui no sentido de dinamismo), força, informação, transparên-
cia na sucessão temporal. Os rituais, os símbolos, os mitos,
as comemorações e os contos são linguagens “refrescadoras”
do tempo da memória, do tempo histórico, do tempo passí-
vel de receber ressignificação. Esses elementos narrativos do
tempo, do espaço e da experiência (os quais ligam memória
com identidade) têm o poder de entrecruzar temporalidades,

AMADO, J.; FERREIRA, M. de M. Usos e abusos da história oral. Rio de


214

Janeiro: FGV, 1998. p. 156.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
129

de dialetizar presença/ausência,215 de contextualizar a inter-


pretação histórica, de projetar, problematizar, temporalizar o
futuro (perspectivar), a memória narrada.
A narrativa, segundo Le Goff, é sempre um relato aberto,
não é um mero recordar, mas é um horizonte do refazer, da
invenção, do autoconvencimento; passa a ser experiência.
Recordação não significa que o que havia sido estava retornando; e,
sim: o que havia sido, mostrava ao retornar, o seu lugar. Quando eu
recordava, eu descobria, que foi assim que se passou, exatamente
assim. É só com isso, então, que a experiência passa a tornar-se-me
consciente, definível, verbalizável, traduzível em palavras. Por isso
a recordação, para mim, não é um mero relembrar, mas estar com as
mãos na obra e a obra da recordação atribui à vivência o lugar que
lhe compete na sequência que a manterá viva. A narração sempre
poderá passar para o relato aberto, para a vida maior, a invenção.216

O narrador, ao contar sua vida, sua presença em fatos


históricos, sociais; ao se apoderar de conhecimentos vividos
(experiência); ao relatar situações de co-presença, torna-se,
então, um decifrador dos sinais visíveis, os da natureza e os
da história, cravados menos no mundo externo do que na lin-
guagem que o designa.217
A fonte oral é importante no esclarecimento das trajetó-
rias individuais e da orientação dada aos fatos históricos;218
permite articular o passado no presente, desenvolver a arte
dialógica entre entrevistado e entrevistador, desenvolver no
entrevistado a arte de ouvir. A fonte oral é uma fonte viva,
inacabada, nunca exaurida; interpreta suas experiências e
seus costumes inventados, recriados e vivenciados em dife-
rentes camadas de tempo e de espaço, o enfoque das tempora-
lidades, das invenções e subjetividades.

215
MIRANDA, W. (Org.). Narrativas da modernidade. Belo Horizonte: Autêntica,
1999.
216
LEFEBVRE, H. La presence et l’absence. Paris: Casterman, 1980.
217
HANDKE apud GUIMARÃES, C., p. 61.
218
GUIMARÃES, C., op. cit.
130 João Carlos Tedesco

As memórias são compostas da multiplicidade de ima-


gens que constituem vários passados, vão e vêm, atendendo
às solicitações do presente.219 Essa relação é capaz de estabe-
lecer contemporaneidade com o passado pela voz do narrador;
dessa forma, o passado é restaurado no presente.220 Às várias
gerações transmitem-se tradições pelo veio da oralidade, im-
primindo subjetividades, contextualizações, reapropriações
de representações passadas e presentes, ajustadas e compar-
tilhadas às atuais identidades individuais e grupais.
Segundo Portelli, a verdade pessoal passa a coincidir com
a imaginação compartilhada.221 É desse modo que, ao narrar,
a memória se faz ação, porém uma ação contextualizada, pas-
sível de modificação pela própria ação; torna-se um sujeito
que reflete sobre esse mesmo contexto e sobre si mesmo, que
busca, escolhe estratégias adequadas, escolhe fatos, situações
e raciocina sobre o melhor tempo adequado para a lembrança,
o tempo mais significativo e mais carregado de subjetividade.
Na narração de memória, os interlocutores buscam fazer
uma hermenêutica do conteúdo de linguagem. “Na estrutura
do discurso, anterior a produção textual, há um processo de
seleção, reelaboração, tradução da linguagem simbólica inte-
riorizada em linguagem acessível ao interlocutor.”222 Há, na
lembrança narrada, segundo Passerini, dois pólos, o da me-
diação simbólica e o da experiência de vida. É por isso que as
fontes orais “exigem ser tratadas como forma de narração, de
interpretação do mundo, de conferimento de significados”.223
O conteúdo da manifestação da lembrança é selecionado,
é um alternar-se contínuo de recordação e esquecimento como
219
PORTELLI, A. Sonhos ucrânios: memória e possíveis mundos dos trabalha-
dores. Projeto História, São Paulo: PUC, n. 10, 1993. p. 41.
220
LUCENA, op. cit.
221
MATOS, op. cit., p. 24-26.
222
PORTELLI, A. A morte de Luigi Trastulli e outras histórias: forma e signi-
ficado da história oral. São Paulo: PUC, 1995. Texto.
223
RAMPAZI, M. Memória e biografia. In: _______. p. 129.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
131

consequência de um juízo de significação, portanto suscetível


de modificação ou de transformação no tempo, em consonân-
cia também com o nível da experiência do indivíduo em rela-
ção ao objeto de lembrança.224
Na análise de Matos, tem-se presente que a história oral
revela subjetividade, identidades e diferentes experiências de
vida. A recordação poderá variar de acordo com a mudança de
identidade pessoal, que leva a novas interpretações do passa-
do.225 Halbwachs entende memória como um ato narrativo.226
No momento em que narro eventos da minha vida transcorrida,
não posso fazer menos de fazer uso da linguagem e das formas
linguísticas que são próprias dos grupos os quais pertenço e faço
referência. Na narração, os meus diversos pertencimentos se ex-
primem em palavras e em modos narrativos que se mostram como
fragmentos. Se é verdade que é o momento presente o momento
no qual narro que organiza a seleção do material e a sua ordem,
então, nas palavras que uso, nos juízos, nas frase feitas que uso, o
meu ser social se exprime e expõe para ser analisado.227

Halbwachs deixa claro que uma memória coletiva não é


feita de recordações, mas de uma linguagem na qual essas pas-
sam a ser transmitidas. A noção de linguagem em Halbwachs
pressupõe intersignificação prévia e a posteriori (dialética e
reconstrução de lembranças a partir da força e presença/au-
sência do coletivo/grupo). A importância da significação e da
intercambialidade é que dá à narração seu significado tempo-
ral dos fatos, do objeto lembrado, sua (re)vivificação.
A narração oral permite a percepção de diferenciações de
gênero, de idade, classes, valores, locais; permite recuperar
histórias de vida e identidades, pois o depoente (re)constrói

224
PASSERINI, L. Vita quotidiana e potere nella ricerca storica. Padova: Marsilio,
1983. p. 100. Ver também sobre essa questão MACIOTI, M. Biografia, storia
e società. Napoli: Ligouri, 1985.
225
RAMPAZI, M., op. cit.
226
THOMSON, A. Desconstruindo a memória: questões sobre as relações da
história oral e da recordação. São Paulo: PUC, 1995. Texto.
227
Ver PASSERINI, L. Storia e soggettività. Firenze: La Nouva Italia, 1988.
132 João Carlos Tedesco

sua identidade à medida que narra sua história de vida. “Ao


contar sua trajetória de vida e expor suas opiniões, ao conferir
sentido aos gestos, o ator se torna sujeito dos seus próprios
atos e percebe seu papel singular na totalidade social em que
está inserido.”228
Inseparável uma da outra, memória, temporalidade e ex-
periência se recriam cada vez que se põem a imaginar aqui-
lo que aconteceu no passado. Ao contrário de Bergson, Janet
chega a dizer que as recordações não têm data.229 A narração
é uma construção literária (com alto grau de simbolização,
imaginação, intenções subjetivas e signos) feita lentamente
ou não (atualmente, parece que anda mais rápido!) por meio
de aperfeiçoamentos graduais, diz Valery.230
O homem reescreve a história reconsiderando os senti-
dos sobre a base de sua experiência, reestruturando os pen-
samentos que nutriu sobre algo, sobre objetos pessoais ou fa-
tos do passado. Aquisição e expressão de memória, ou seja,
a narração da recordação, produzem-se nas modificações de
sentido, nas formas, nos momentos e nas (situ)ações de sua
manifestação e absorção. “A atualização das lembranças ma-
nifesta-se através de diversos mecanismos que frequente-
mente percorrem o caminho inverso a respeito daquele de sua
aquisição.”231
Associações, estímulos externos e graus de afetividade
são importantes para reformular os caminhos da significação
da narração de lembrança. As fotos, por exemplo, de pessoas
ausentes e com grau de afetividade intensa ganham impor-
tância maior do que quando de sua presença; há uma me-

228
JEDLOWSKI, P., op. cit., p. 59
229
JANOTTI, M. L. M. O desafio da história oral. Ciência Hoje, v. 8, n. 48, 1988.
p. 32.
230
JANET, P. Evolution de la mémoire et de la notion de temps. Paris: Desclée
de Bourvier, 1978. p. 69.
231
VALERY, P. apud TADIE; TADIE, op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
133

mória implícita (que comumente é cotidiana, é hábito e re-


produção); outra que é explícita, manifesta em momentos de
imprevistos, de extraordinário.
Paul Valery diz que não nos recordamos dos atos elemen-
tares, ou seja, aquilo que é funcional não é passado. Por isso, a
memória reclama lembrança e, por sua vez, narração/expres-
são, quando se vê ameaçada, quando se sente esquecida. Um
exemplo disso é o desejo expresso por grande parte dos idosos
entrevistados de querer se fazer ouvir, de não serem vozes es-
quecidas e de reivindicar a continuidade da memória implícita
e voluntária (aquela a que se recorre no cotidiano para resolver
as situações confrontadas e que seja funcional), de uma memó-
ria-ação (aquela vivida “no meu tempo” como eles dizem).
Memória-reflexa, memória-implícita, memória-hábito,
memória-experiência... são funções de base da vida cotidiana.
As lembranças que foram armazenadas constituem o patri-
mônio pessoal da memória do trabalho, da vida cotidiana e da
cultura232 e necessitam de espaço/tempo, significação e vivido
para a narração.

Dimenticare per vivere


Intencionalidades pessoais e históricas
A história é o jogo do desvelamento e do encobri-
mento, de manifestação e de ocultamento.
Heidegger

A memória coletiva pode ser induzida a esquecer e/ou a


não ser justiciada pela lembrança, ou, então, por ações políti-
cas, jurídicas e ideológicas do tempo presente e não do tempo
memorizado.

TADIE; TADIE, op. cit., p. 141.


232
134 João Carlos Tedesco

Como veremos mais adiante, é comum na história a pro-


dução do esquecimento ou do silêncio alter/auto-imposto para
ajustar o passado com as intenções/ressentimentos ainda con-
sequentes do presente e das perspectivas futuras. Ajustar ci-
clos e tempos históricos de ações, de sociabilidades e de desen-
volvimento social é função da memória política e coletiva. Isso
não significa completa supressão de lembrança; o que existe é
uma memória condicionada, reprimida, não enquadrada, não
lembrada no coletivo histórico.233
Michael Pollak é contundente ao afirmar que as memó-
rias subterrâneas prosseguem seu trabalho de subversão no
silêncio e de maneira quase imperceptível; afloram em momen-
tos de crise, com sobressaltos bruscos e exacerbados, querendo
ganhar espaços de desvelamento no presente.234 Pollak refere
que a esfera do silêncio da memória é mais consciente.
Evitar falar, poupar alguém de ter a consciência de estar
em meio a lembranças pouco edificantes, como é o caso, por
exemplo de memórias envergonhadas de uma família, de um
sobrenome, de uma opção por um movimento histórico que
ganhou ambivalência histórico-temporal, como o nazismo, o
fascismo etc., não é algo incomum no universo da memória,
sobretudo na sua dimensão histórica e cultural. O que está
em jogo é a busca da eliminação do estigma da vergonha pela
esfera do silêncio e da passagem do tempo. Há uma noção de
temporalidade que se ordena com o “não dito” e se confia em
seu esquecimento.

TADIE; TADIE, op. cit. p. 146.


233

Ver sobre isso o excelente texto de THOMSON, A. Quando a memória é um


234

campo de batalhas: entrevistas com militares: envolvimentos pessoais e polí-


ticos com o passado do Exército Nacional, Projeto Historia, São Paulo: PUC,
1998. Já falamos que o livro de BATTINI é, também, muito representativo
dos processos de desconstrução, seleção, esquecimento, adaptação à funcio-
nalidade aos diferentes projetos políticos e sociais do presente, da luta pela
modificação das sentenças (noção de relatividade histórica da culpabilidade)
e das indulgências históricas que a memória pode promover. Ver BATTINI,
M. Peccati di memoria. La mancata Norimberga italiana. Bari: Laterza, 2003.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
135

Sabemos que o que é esquecido não some, mas perma-


nece no profundo, à espera de ocasião capaz de desocultá-lo.
A memória possui uma estranha condição: o passado deixa traços
e, às vezes, são traços indeléveis, mas, porém, é o presente que
lembra, e o passado se veste, em boa medida, como ao presente
agrada. O testemunho faz a mediação entre o ontem e o hoje, leva
o passado entre o presente, entretanto, dentro daquilo que nesse
chamamos de passado.235

Lembrar e esquecer: dinâmicas dialetizadas


O conjunto de nossas recordações faz de nós aquilo
que somos, mas aquilo que somos determina o
conjunto de nossas recordações.
Carrera

Diz Gadamer que


[...] memória não é, portanto, memória em geral e para qualquer
coisa. Há memória para alguma coisa, para outra não. Existem coi-
sas que se quer conservar na memória, outras que se quer esquecer.
[...]. A relação de conservar-relembrar pertence [...] ao fenômeno do
esquecer, o qual não é só perda ou ausência, mas uma condição da
vida do espírito. Só através do esquecimento o espírito conserva a
possibilidade de renovação total, a capacidade de ver tudo de novo
com olhos novos, de maneira a fundar uma articulada unidade com
o que é familiar, com o que novamente lhe parece.236

Gadamer afirma que o desmedido desenvolvimento téc-


nico aplicado à informação coloca em perigo a memória, pois
dificulta a capacidade de esquecer.

235
POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 3-15.
236
JADLOWSKI, P. Il testimone e l’eroe: la socialità della memoria. In:_______,
op. cit., p. 27.
136 João Carlos Tedesco

“São todas as informações de que se tem necessidade, súbito obtidas;


não seria melhor porém se eu esquecesse alguma coisa, e a devo
procurar de novo, e encontro, quem sabe, alguma coisa outra da
que buscava? Isso significa propriamente buscar: colocar perguntas,
que levam a mais perguntas que não estavam previstas [...]. Pen-
samos somente em saudar o milagre de esquecer, e a iluminante
força mágica do recordar”.237 Para o autor, entre o esquecimento e
a memória, os limites não são nunca definitivos; ao contrário, por
meio de ambos, entrecruzam-se apelos recíprocos, um diálogo que
transforma, renova, redefine a memória em si mesma.238

Afirma Le Goff que


[...] a memória coletiva constituiu um importante lugar na disputa
pelo poder conduzida por forças sociais. Apoderar-se da memória e
do esquecimento é uma das máximas preocupações das classes, dos
grupos dos indivíduos que dominaram e dominam as sociedades
históricas. Os esquecimentos, os silêncios da história são revela-
dores desses mecanismos de manipulação da memória coletiva.239

Alguns grupos étnicos possuem uma tradição de memó-


ria; possuem uma memória “por excelência”. Como diz Le
Goff, alguns grupos possuem a “obrigação de lembrar” (é o
caso do povo hebreu e de muçulmanos); outros necessitam es-
quecer (exemplo das vítimas do nazismo ou de seus adeptos,
escravocratas e vítimas da escravidão...).
Porém, a tradição de memória, a qual constrói o tempo
e o pertencimento cultural não permite a aceitação da ambi-
valência do esquecimento, ou seja, ao mesmo tempo, perda e
possibilidade de salvaguardar a própria identidade coletiva; a
ambivalência se dá também no desejo de expressão (exemplo
da experiência nazista no Diário de Anne Frank e de muitos
outros) e no sentimento negativo da mesma. Segundo Olivie-
ro, as sociedades e os indivíduos produzem um certo equilí-
brio entre lembrar e esquecer, entre as memórias que agre-

237
GADAMER, H. G. Verità e metodo. Milano: Bompiani, 1983. p. 38-39.
238
Idem, p. 93.
239
MONTESPERELLI, P. Memoria e ricerca social, p. 182.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
137

gam e que estão na base da coesão social e pelas quais é ne-


cessário velar, ou deixar de lado, por serem desagregadoras.
Desse modo, memória e esquecimento não se anulam, nem se
excluem, mas entrecruzam-se e podem até se compensar.240
É evidente que, por mais sofrível, incompreensível e in-
desejável que seja, o esquecimento possui uma função social,
assim como o possui a memória como expressão de uma his-
tória comum, de garantir uma identidade coletiva, superando
ressentimentos, os quais eternizam ódios e impedem a proje-
ção no tempo. Memória e esquecimento precisam ser dosados
com sabedoria e equilíbrio. Cada povo, para saber viver, diz
Todorov, precisa saber recordar e saber esquecer. Querer sem-
pre recuperar fatos, coisas perdidas, pode trazer o risco de ser
nostálgico e melancólico, de erigir um culto à memória pela
memória, sacralizando-a; é uma outra forma de torná-la esté-
ril. O trabalho de luto, a realidade da perda, ajuda o indivíduo
a liberar-se da angústia, possibilita-lhe saídas e libera-o da
dominação da lembrança.241
A narração é importante não só pelo intercâmbio da ba-
gagem de conhecimento, mas pela capacidade de elaboração,
de reconstrução, da importância do coletivo, do ser dizível,
recordável e comunicável, de vividos individuais em comuni-
cação coletiva através da memória, permitindo objetivações,
tradições, reenquadramentos, experiências de elaboração e
assimilação na memória.242

240
LE GOFF, J. Memoria. Enciclopédia Einaudi, p. 1070.
241
OLIVIERO, A. Ricordi individuali, memoria collettiva. Torino: Einaudi, 1994.
242
TODOROV, S. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995. p. 46-47.
138 João Carlos Tedesco

A consciência histórica, social e individual se


reconstrói sob um fundo de esquecimento
A luta do homem contra o poder torna-se a luta
da memória contra o esquecimento.
M. Kundera

O passado não pode ser inteiramente recordado, porém


também não pode ser inteiramente esquecido (nesse sentido,
Freud nos auxiliou muito!). Remover algo significa também
escolher o que lembrar, colocar à parte os conteúdos doloro-
sos. Em algumas circunstâncias é interessante esquecer de
ter esquecido alguma coisa. A consciência histórica recons-
trói-se sob um fundo de esquecimento e poderia se tornar in-
fértil se mantivesse viva na memória a totalidade dos terrí-
veis acontecimentos.
Ao mesmo tempo, como coloca Jedlowski, a narração do
sofrimento, do horror, pode se tornar o ponto de chegada de
um delicado processo de elaboração da lembrança e da fun-
ção social da memória, bem como um processo de libertação
da recordação. Narrar, escrever, enfim, poderá ser também a
estrada para o esquecimento; colocar as lembranças na forma
narrativa pode ser também um ato de distanciar-se delas.
Ao contrário, como já vimos, Todorov243 fala da possibili-
dade de fundar uma ética da memória que se assenta em duas
maneiras de narrar. A primeira seria a recuperação literal,
ou seja, que não queira ser totalmente real, da lembrança.
Essa criaria uma certa vinculação entre passado e presente
de modo que o primeiro estenda sua consequência ao segundo
sem que esse possa superá-lo ou reelaborá-lo; seria uma espé-
cie de dependência do segundo ao primeiro. Pode ser também

JEDLOWSKI, P. Memoria, esperienza...


243
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
139

tornar eterno o sentimento traumático. A outra forma seria a


recuperação exemplar da recordação.
Nesse horizonte, os eventos vêm recuperados em sua
dimensão histórica, sem que seja reduzida ou relativizada a
dramaticidade do fato. Os fatos podem se tornar exemplos,
modelos sobre os quais se constrói o futuro; o passado torna-se
princípio de ação para o presente. Desse modo, há “um acordo
com o passado”, não vem recordado de uma forma “obssessi-
va”, nem esquecido; que saiba ser um guia do presente sem
que esse permaneça sufocado ou paralisado.244
Como já falamos, tanto o esquecimento quanto a recor-
dação possuem uma estreita correlação com o poder. Regu-
lar, esconder, esquecer, lembrar, comemorar, produzir versões
(“oficiais”, geralmente), tradições... fazem parte da “estraté-
gia política e cultural” de quem manipula a memória. “O po-
der de criar e estabilizar a memória é sinal de poder em geral
em todos os níveis de organização social.”245
A exteriorização da memória possui uma ligação com o
poder na medida em que esse produz o tempo, produz referen-
ciais temporais, “calendários oficiais”, tempos que refletem
pública e individualmente eventos que são necessários serem
redcordados, que “bisogna fare festa”.246 “Quanto mais o pre-
sente é privo de uma referência sólida no passado, tanto mais
se torna necessário criar momentos comuns de comemoração
que incutam o sentido do recordar juntos.”247
As “vontades de memória” são de ajustamento para o po-
der, em geral objeto de seleção, de pertencimento social. O
totalitarismo geralmente destrói referenciais tradicionais de
pertencimento (família, igrejas, sindicatos...) para impedir a

244
TODOROV, S. op. cit.
245
CARRERA, L. Il futuro della memoria. Milano: Franco Angeli, 2001. p. 66.
246
CAVALLI, A. Lineamenti di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,
P.; RAMPAZI, M. (a cura di), op. cit., p. 34.
247
ELIAS, N. Saggio sul tempo. Bologna: Il Mulino, 1986. p. 67.
140 João Carlos Tedesco

constituição selecionada de um senso comum, de critérios de


referências que orientam a experiência da vida cotidiana. Es-
ses regimes têm necessidade de um passado e de um presente
que estabeleça uma relação de recíproca conveniência, que se
reaviva nos contatos sociais, nas comemorações e nos rituais
linguísticos de conservação e de esquecimento.
Entretanto, a memória não possui uma unidimensiona-
lidade; possui, sim, um caráter plural. Essa pluralidade re-
cupera sua dimensão complexa: de um lado, apresenta seu
caráter seletivo de reconstrução do passado; de outro, lem-
branças alternativas podem produzir desestabilização, cri-
ticidade aos processos seletivos, à univocidade da memória
do poder, das estratégias de memória. Esses “fragmentos de
memória”248 possibilitam descobrir os traços ocultos legitima-
dores da falsa linearidade da história institucional. “Recordar
o passado pode dar origem a instituições perigosas, e a socie-
dade estabelecida parece temer os conteúdos subversivos da
memória.”249
Os agentes do esquecimento, os conspiradores do silên-
cio, os destruidores de memória, os fabricadores da tradição...
temem, expressam e tentam anular a possibilidade subversi-
va da memória.

Selecionar memórias
Depois da guerra civil tiveram direito de ter
memória só aqueles que venceram.
J. Semprun

Segundo Namer, é muito comum na história e na bio-


grafia haver um processo de seleção de memória. Existem os
produtores de memória, os transmissores e os destinatários.

CARRERA, L. op. cit., p. 69.


248

JEDLOWSKI, Memoria, esperienza e modernità.


249
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
141

Ambos determinam critérios de valor e não são independen-


tes da estrutura de poder envolta no grupo ou na sociedade.
Em cada um desses três níveis se verificam processos de seleção.
Os produtores de memória selecionam aquilo que vale a pena ser
memorizado. Desse modo, apresentam uma intenção ou uma von-
tade de memória. Os transmissores de memória selecionam aquilo
que vale a pena ser transmitido. E, finalmente, os destinatários
escolhem entre aquilo que foi transmitido e aquilo que verdadei-
ramente será ativado. Produtores, mediadores e destinatários são
indivíduos inseridos nos grupos sociais e seus critérios, são, por-
tanto, sempre sociais. Sobre esses critérios pode existir consenso,
porém, geralmente, se dão sob a ótica do conflito, negociação e
compromisso. Os critérios de seleção possam ser mais ou menos
estáveis, mais ou menos implícitos, organizados em maneira mais
ou menos hierárquica.250

Existem mediadores de memória, os quais tornam pos-


sível seu acesso. Seleção, filtragem, critérios se dão em cor-
respondência com o destinatário. Há uma funcionalidade da
memória em razão de intencionalidades e capacidades de as-
similação e de necessidade da mesma.
Como vimos antes, o trabalho de enquadramento de me-
mória, ou seja, de fazer referência ao passado para manter a
coesão grupal, para legitimar ações desses e/ou de instituições
ou, então, para evitar oposições irredutíveis, define fronteiras
grupais, possibilidades ou não de alteração pelos materiais
que a história dispõe. Fabietti defende a ideia de que as di-
mensões da memória e do esquecimento são relevantes não só
quando há um encontro entre culturas, mas também quando
esse assume um caráter de etnocídio.
Os esquecimentos deliberados são comuns nos processos
de filtragem e de subjetividade de memória.

MARCUSE apud CARRERA, L., op. cit., p. 71.


250
142 João Carlos Tedesco

A história de nosso século, como sabemos bem ainda quando bus-


camos esquecer, é cheia de censuras, cancelamentos, ocultamentos,
desaparições, condenações, retrações públicas e confissões, traições,
declarações de culpabilidade e de vergonha. Muitas obras históricas
foram reescritas cancelando os nomes dos heróis de um tempo,
catálogos editoriais foram mutilados, foram reeditados livros com
conclusões diferentes daquelas originais... Primeiramente foram
queimados livros, depois se fizeram desaparecer bibliotecas na
tentativa de negar os fatos, de obstaculizar a reconstrução dos even-
tos, de impedir de contar as vítimas, de impedir as lembranças.251

Memória e história
Uma vez registrada, a palavra se destaca da fon-
te e ganha vida própria na mão do pesquisador.

A. Portelli

Halbwachs não parte de um ponto de vista histórico-


cultural. O seu interesse é perceber os processos de coesão
grupal das lembranças coletivas; não são só as lembranças
a estabelecer o grupo, mas também o grupo a estabelecer as
lembranças enquanto tal. A memória coletiva demonstra que
sua estabilidade está ligada à estruturação e à estabilidade
do grupo. Na concepção funcionalista e construtivista da me-
mória não há espaço para lembranças fragmentárias e dis-
funcionais.252
Para Nora, existe uma memória social com seus siste-
mas de sinais e símbolos. Por meio dos símbolos comuns, os
indivíduos participam de uma memória comum e de uma
comum identidade. Os portadores dessa memória não têm
necessidade de se conhecer para pertencer e reconhecer sua
comum identidade. A nação é um exemplo disso, pois realiza

CAVALLI, A., op. cit., p. 34.


251

ROSSI, P. Il passato, la memoria, l’oblio. Sei saggi di storia delle idee. Bologna:
252

Il Mulino, 1991. p. 26.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
143

sua unidade por meio de uma simbologia política. A memória


coletiva e a análise historiográfica – não a história – estão em
disputa e em processo de exclusão, o que, no final, acaba por
destruir a primeira.
Hoje entendemos que a memória e a história não são sinônimos,
mas de fato opostos [...]. A memória é um fenômeno atual, a cul-
tura vivida sempre no presente. A história, ao contrário, é uma
representação do passado. [...]. A memória reconduz a lembrança
à sua socialidade, a história a distancia disso: o seu objetivo é a
dismistificação. A memória vive no interior de um grupo, do qual
funda a sua coesão; a história, ao contrário, pertence a todos e a
ninguém e assim se torna universal.253

Tanto Nora quanto Halbwachs sublinham o caráter cons-


trutivo da identidade que a lembrança possui. Ambos promo-
vem uma oposição entre memória vivida e memória abstrata,
esta última é identificada com a história, com a objetividade,
portanto neutra para a identidade.254
Sabe-se que, com o passar do tempo, as oposições entre
história e memória tornam-se sempre menos significativas.
Sabe-se que narrações históricas são reconstruções baseadas
na memória, porém ligadas às condições de interpretação, de
parcialidade e de identidade. Alguns autores defendem que
memória e história são duas modalidades de recordar, as
quais não necessariamente precisam se excluir.
Assmann propõe definir “memória funcional” como me-
mória vivente, com características tais como ser inerente ao
grupo, ser seletiva, possuir eticidade e orientação em dire-
ção ao futuro. As disciplinas históricas interessam-se por
um segundo tipo de memória: uma espécie de memória das
memórias, uma “memória-arquivo”, a qual não deixaria cair
no esquecimento conhecimentos e experiências de vida uma
vez que fossem importantes. Vividos tornados “objetos” sem

ASSMANN, A. op. cit., p. 146.


253

NORA, P. Les lieux...


254
proprietários podem ser reelaborados e reincorporados a uma
memória funcional.255
A memória funcional atribui significados à experiência,
modela a vida e as relações; pode permanecer sem história,
sem ser verbalizada ou expressa; permanece amorfa e deses-
truturada. A memória-arquivo, ao contrário, são recordações
não organizadas e não utilizadas que permanecem fora da
memória funcional. A memória-arquivo pode ser a base da
memória funcional e, portanto, não ser dualística, mas pros-
pectiva, cooperativa e associativa. A memória-arquivo pode
fazer com que as memórias funcionais existentes possam ser
relativizadas criticamente, renovadas ou modificadas.
A memória-arquivo conserva, em nível coletivo, o utilizável, o diver-
so, o anacrônico e o saber especialístico neutro para a identidade,
mas também o repertório das ocasiões perdidas e das opções alter-
nativas e das oportunidades não utilizadas. A memória funcional ao
contrário, é uma memória estruturada de um processo de escolha,
de ligação, de construção de sentido; é sempre ligada a um sujeito
que se constitui como seu portador. A memória-arquivo não se fun-
da na identidade, mas tem uma função não menos importante na
recepção de um número de datas e de qualidades diversas daquilo
que encontra acesso na memória funcional.256

Outros autores evitam contrapor história e memória; ao


contrário, identificam a memória como um novo paradigma
historiográfico. Segundo Niethammer, a memória que serve
para orientar a história possui duas faces, definidas como
“tradição” e “resíduo”. A primeira seria a memória consciente
e voluntária; a segunda, uma memória involuntária, não ain-
da ou não mais capaz de aflorar à consciência. Nesse sentido,
a história (do ponto de vista da historiografia crítica) é o pro-

ASSMANN, A., op. cit., p. 148.


255

Ibidem.
256
duto de um processo de diferenciação cultural e se desenvolve
através da emancipação da memória.257
Para De Certeau, a história é uma narração, na qual es-
paço e tempo se cruzam, produzindo novos tempos e novos
espaços. Nesse cruzamento não existe univocidade nem estabi-
lidade. A narração é um movimento linguístico de espaço/tempo
criativo, sem fronteiras, “topológico” – para usar um termo seu
– é sempre enunciador. Desse modo, a história será reduzida
a espaço linguístico, a uma experiência narrativa de eventos
intercruzados sobre uma base móvel de tempos.258
Alguns autores, dentre os quais Halbwachs, já visto, ex-
pressam que é difícil aproximar história de memória em vir-
tude da racionalidade e da distância crítica de uma e da par-
ticipação emotiva, fragmentada, incompleta e presentificada
de outra. No entanto, Philipe Ariès defende a tese de uma
necessária e possível integração, de uma espécie de dialética
entre história e memória, na qual o recurso à memória cole-
tiva e às memórias privadas permite aos historiadores aban-
donarem o terreno dos eventos públicos, da cronologia oficial
para fixar-se no mundo da vida privada, nas “mentalidades”,
na história local, as quais, segundo o autor, foram submetidas
e derrotadas no momento do triunfo da história sobre a “me-
mória”, sobretudo a memória cultural.259
O encontro entre culturas, geralmente, foi representado
de forma dramática, como evento traumático responsável por
modificar a memória histórica, cultural e identitária. Porém,
isso não basta. As culturas são hoje complexas, não são en-
tidades homogêneas, definidas e descritas em sua totalidade.
As culturas não param; há processos escondidos, silenciados
e imperceptíveis que, todavia, provocam consistentes “derive

257
Idem, p. 153.
258
Apud ASSMANN, A., op. cit., p. 158-159.
259
Ver DE CERTEAU, M. L’ écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975.
146 João Carlos Tedesco

di memoria” nos indivíduos e na comunidade.260 Nessa discus-


são do papel da história, Nora é ainda mais polêmico. Para
ele, a memória verdadeira está na mente dos vivos, por isso,
não necessita do suporte da história: “A memória é sempre
suspeita para a História, cuja verdadeira missão é destruí-la
e a repelir. A História é deslegitimação do passado vivido.”261
Pelo fato de manifestar um vivido não significa que te-
nhamos de pensar a memória como fonte documental, ou, en-
tão, que essa esteja isenta de um processo crítico ou de um
tratamento teórico-metodológico que requer todo trabalho
com qualquer forma de registro acerca do passado. Há, se-
gundo, Fabietti, uma circularidade hermenêutica que se ins-
taura entre o presente, o vivido e a lembrança do passado, um
processo em movimento, forças impessoais da história e do
destino humano, as quais contribuem para a reformulação da
identidade individual e coletiva.262
A coerência nos discursos, os ritos mediadores personi-
ficados nos guardiões da memória, a referência constante à
experiência vivida (ao passado simplesmente) e a fidelidade
nas reconstruções a posteriori colaboram para (re)enquadrar
os fatos no horizonte temporal e evitar seus desvios. Porém,
sabemos que nem sempre isso é possível. A dialeticidade da
memória precisa ser levada em conta. Há uma construção,
desconstrução e reconstrução da memória; a história biográfi-

260
A ideia e/ou imagem de uma história que sufoca e destrói os vividos, as memó-
rias privadas e locais exercerá uma sedução imensa, uma difusão e persistente
clima de polêmica entre memória e história, no campo da literatura comparada
e da narrativa, da história oral, da história das mentalidades. Ariès é uma
grande referência nesse campo de discussão. Ver ARIÈS, Ph. Historia da vida
privada III. Da Renascença aos Séculos das Luzes. São Paulo: Companhia
das Letras, 1995.
261
FABIETTI, U., op. cit.
262
MONTENEGRO. A. T. História oral e interdisciplinaridade. A invenção do
olhar. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os desafios contemporâneos da história
oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 197-212.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
147

ca ou de vida em geral assim o atesta, ordena acontecimentos


que balizaram uma existência.
Thompson diz que cada vez que uma tradição é articula-
da tem de lhe ser dado um significado apropriado ao contexto,
ou ao gênero em que foi articulada. Essa necessidade de rein-
terpretação está muitas vezes por trás das transformações no
seio da própria tradição. A tradição oral combina, mais do que
separa, mitologia, genealogia e história narrativa. A capaci-
dade de uma sociedade para transmitir a sua memória so-
cial sob uma forma lógica e articulada não depende, portanto,
também do domínio da escrita.
A transmissão da memória articulada depende, num senti-
do mais geral, da maneira como uma cultura representa a lin-
guagem; vai depender do modo como uma sociedade/comunidade
utiliza a linguagem como veículo de expressão e comunicação sem
ficar totalmente dependente do contexto social imediato.263 Com
isso, não significa dizer que se deva relaxar na tentativa (nem
sempre fácil!) da compreensão dos distintos contextos histó-
ricos que abarcam a produção da memória e da lembrança.
Recuperar o contexto, perceber os macrointeresses em jogo,
os conflitos e contradições que significaram o período e a ex-
periência relatada, é um imperativo para os que utilizam o
recurso dos depoimentos orais.

Algumas precauções!

Há algumas precauções que praticamente todos os estu-


diosos do assunto que revisamos levam em consideração, as
quais giram em torno da confiabilidade da memória, da ne-
cessidade de confrontá-la com outras fontes de informação e

AUGE, M. Le forme dell’oblio. Dimenticare per vivere. Milano: Il Saggiatore,


263

1998.
148 João Carlos Tedesco

outros depoentes, da sensibilidade, abertura e paciência para


localizar/contextualizar e ouvir mais de uma vez a fonte oral,
ou seja, promover mais de um encontro; da necessidade de
retornar ao sujeito da informação e lhe apresentar a análise
produzida pelo pesquisador, dentre outras.
Utilização do gravador, de recursos de filmagens e outras
fontes de informações (objetos, iconografias...) requer, segun-
do alguns analistas do tema, sensibilidade na percepção de
sua riqueza, de seus limites e da aceitação do sujeito da lem-
brança. Hobsbawn já dizia que a memória não é um mecanis-
mo de gravação, mas de seleção, que constantemente sofre
alterações, portanto, oralidade e subjetividade estão muito
próximas; ao mesmo tempo, fazer história sem pressupor es-
ses ingredientes é cair numa análise ingênua.
As fontes orais permitem, não pela anulação, mas pela
complementaridade recíproca, dar base para as fontes escri-
tas guardadas nos arquivos. Ao incorporar a linguagem oral,
incorpora indivíduos e/ou coletividades muitas vezes esque-
cidas, pouco valorizadas ou, então, excluídas do processo his-
tórico pela história, principalmente as ligadas às classes po-
pulares, às minorias étnicas e aos agrupamentos sociais, às
questões de gênero, etc.264

Thompson, segundo análises revisadas, foi um dos que melhor usou, inovou,
264

problematizou e confiou na utilização da fonte oral. Seu estudo clássico sobre


os Eduardianos, no primeiro decênio do Século XX, na Grã-Bretanha, busca,
de um ponto de vista da história social, incluir a experiência dos indivíduos
comuns. O autor serve-se da história, da antropologia e da sociologia para
fazer um estudo comparativo entre cidade e campo, diferenciações de gênero,
de idade e de classes sociais na análise das entrevistas. O objetivo do autor,
com isso, era mostrar de que modo os indivíduos, diferencialmente classifi-
cados, vivem os grandes processos históricos de mudança social. O uso da
história de vida é abundante em sua obra com a intenção de perceber como
os personagens, representantes de estratos sociais, viveram as mudanças
culturais da emigração, a vida familiar e comunitária dos bairros periféricos,
etc. O autor combina, abundantemente, dados empíricos com fontes literárias,
estatísticas demográficas, observações de contemporâneos e da historiografia
sobre o tema. O autor retrata a cotidianidade da sociedade eduardiana, da
passagem da economia moral (esse é o foco central) ao livre comércio, da
religião ao crime, da agitação operária ao feminismo, dentre outras.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
149

Confrontar fontes orais com documentos, bases escritas


e/ou demais evidências do passado, quando possível, é um
bom recurso metodológico e que pode ampliar o referencial
científico da investigação. Muitos autores, críticos ou não da
história oral, defendem a questão da subjetividade, ou para
mostrar os limites da história oral, ou para defendê-la. No
entanto, a subjetividade não é só do depoente e de quem in-
terpreta, mas também de quem pergunta e faz os registros.265
Há uma rearrumação de várias lembranças na tentativa
de dar lógicas a discursos dispersos no tempo (ter presente
o método indiciário de Ginzburg), tempo esse que pode ser
longínquo. Quem depõe repensa e constrói seu discurso. Por
isso, segundo a autora aqui indicada, o mais importante na
entrevista de história oral é o fenômeno de estruturação dos
fatos de memória. Nele atuam mecanismos extremamente
sutis, que estão relacionados à construção da identidade pes-
soal. Memória e identidade estão intimamente ligadas.266 O
informante não expõe apenas informações e dados soltos, ele
constrói e expressa um discurso. Nesse discurso podem estar
não ditos, emaranhados, intencionalidades pouco visíveis (ex-
pressas), porém que ganham significação dentro de um con-
texto de ligações de fatos e situações.
O historiador, ao possibilitar a fala, torna-se também
parte de uma cumplicidade de emoção, ainda que o que está
sendo dito não seja de seu agrado, seja o oposto ao que ele,
como profissional, pensa.267
Portelli fala em evitar nossos pressupostos ou projetos
teóricos que poderão comprometer o conteúdo dos depoimen-
tos. É importante saber o contexto, que se tenha uma visão

265
ALBERTI, V. História oral: a experiência do CPDOC. Rio de Janeiro: CPDHC,
1989.
266
AUGRAS, M. História oral e subjetividade. In: VON SIMSON, O. (Org.). Os
desafios contemporâneos da história oral. Campinas: Unicamp, 1996. p. 27-36.
267
AUGRAS, op. cit., p. 29.
150 João Carlos Tedesco

global do assunto, formular hipóteses e problematizar.268 É


por isso que rememorar não é o mesmo que viver novamente
o passado; depende da leitura do sujeito que a produz numa
sociedade que se diferencia daquela à qual se refere lembran-
ça.269 De Certeau já dizia que “a memória produz num lugar
que não lhe é próprio, como os pássaros que põem seus ovos
no ninho de outras espécies”.270
Portelli é um dos que insistem na possibilidade e na ne-
cessidade de junção entre memória e história; fala que a in-
formação histórica escrita e a oral não se excluem; possuem
características comuns, características autônomas e espe-
cíficas, funções que só uma ou outra pode resolver (ou que
uma absorve e resolve melhor do que a outra) e demandam
instrumentos autônomos de interpretação.O autor insiste na
valorização da linguagem popular do informante, no desafio
do pesqu Idem, p. 224. isador em entender esse horizonte, que
pode ser gramaticalmente pobre, mas rico de significados, de
entonações, de sinais não visíveis...271

O manuseio e a concepção de documento oral


A memória vive graças à comunicação; quando
cessa a comunicação, cessa a memória e tem-se
o esquecimento.
Halbwachs

Como vimos, o trato com o documento oral é muito impor-


tante, implica imaginação, saber que a subjetividade e a ora-
lidade são também seus elementos constitutivos; saber que

268
FÉLIX, L. O.; GRIJÓ, L. A. Histórias de vida: entrevistas e depoimentos de
magistrados gaúchos. Porto Alegre: Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, 1999.
269
BRAND, A. História oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade
em culturas orais. In: História – Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 195-227.
270
LUCENA, op. cit.
271
PORTELLI, A. Problemi di metodo: sulla diversità della storia orale. In:
BERMANI, C. Introduzione alla storia orale. Toma: Odradek, 1999. v. I.
p. 150.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
151

há um sentimento do vivido, que o movimento da memória


continuamente se aproxima e se afasta da objetividade du-
rante o ato da rememoração, de que as lembranças pessoais
são dotadas de preceitos de comportamentos, de apresentação
de imagens; de que há um conjunto de intenções conscientes
e inconscientes que selecionam e elegem o que é importante,
significativo e dizível.272
É por isso que o papel do historiador e do cientista social
no trato com a história oral requer conhecimentos prévios dos
conteúdos em questão, das técnicas lançadas para a obtenção
de dados (pelo menos em parte e as mais comuns); requer
recolher a palavra falada; criar, de algum modo, seu próprio
arquivo; garantir a segura conservação do seu material muito
mais do que o uso que possa fazer imediatamente, pois, quem
sabe, amanhã aquilo que se tornou irrelevante hoje poderá
servir para outro pesquisador; zelar pela integridade do ori-
ginal registrado e das transcrições e evitar manipulações.273
A história oral poderá dar os seus melhores resultados
quando se colocar a questão claramente de sua finalidade e
de seu significado. A expectativa com relação à história oral é
que, segundo Passerini, reaviva-se a esperança de contribuir
através dela na resposta às exigências que hoje se acentu-
am, de reconstruir uma visão não mutilada da realidade hu-
mana.274 A história oral poderá, assim, contribuir na efetiva
descoberta e dinâmica entre passado e presente, “poderá cola-
borar no sentido de colocar as premissas de uma cultura que
não seja mais só formalmente, mas substancialmente de to-

272
Portelli afirma que a fonte oral é mais caracterizada em espaços e sujeitos
que não possuem a hegemonia da escrita, em estratos socioculturais centrados
na tradição narrativa popular, nas quais a capacidade de se informar e de se
significar intersubjetivamente é mais desenvolvida.
273
MATOS, op. cit., p. 82; ver também LUCENA, op. cit.
274
PORTELLI, A. Memoria collettiva e raconto orale. In: LAZZARIN, G. (a cura
de). Tempo, memoria, identità. Firenze: La Nuova Italia, 1986.
152 João Carlos Tedesco

dos, sem perder a herança da referida cultura precedente”.275


Falando sobre a biografia e contendo a noção de trajetória
como série de posições sucessivas, Giovanni Levi,276 citando
Bourdieu, refere que
[...] a história de vida, no privilégio concedido à sucessão longitu-
dinal dos acontecimentos constitutivos da vida, considerada como
história em relação ao espaço social no qual eles se realizam, não é
em si mesma um fim. Ela conduz à construção da noção de trajetória
como série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo
agente (ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir,
estando sujeito a incessantes transformações. Tentar compreender
uma vida como uma série única e por si suficiente de acontecimentos
sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um “sujeito”
cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio,
é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto de
metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das
relações objetivas entre as diferentes estações. Os acontecimentos
biográficos se definem como colocações e deslocamentos no espaço
social, isto é, mais precisamente nos diferentes estados sucessivos
da estrutura da distribuição das diferentes espécies de capital que
estão em jogo no campo considerado.277

Memória é sempre uma reconstrução psíquica e inte-


lectual, porém seletiva do passado, de um indivíduo inserido
num contexto familiar, social, nacional. Portanto, toda me-
mória é, por definição, “coletiva”. Seu atributo mais imediato
é garantir a continuidade do tempo e permitir a alteridade,
ao “tempo que muda”, as rupturas que são o destino de toda
vida humana; em suma, constitui um elemento essencial da
identidade, da percepção de si e dos outros. No entanto, não
há uma representação e presença do passado que sejam com-
partilhadas nos mesmos termos por toda uma coletividade.278

275
PASSERINI, L., 1986, op. cit., p. 65.
276
Idem, p. 66.
277
LEVI, G. Usos da biografia. In: AMADO, J.; FERREIRA, M. de M., op. cit.,
p. 167-182.
278
LEVI. G. Usos da biografia, p. 169.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
153

É preciso admitir que a memória tem uma história que é


preciso compreender. Para Rousso, um dos vários problemas
da relação entre história e memória é que existe na história
da memória uma discrepância entre o que essa história erudi-
ta (a dos historiadores) possa dizer de um acontecimento pas-
sado e as percepções que prevalecem no mesmo momento no
seio de uma sociedade, num tempo e num local determinados,
e que certamente têm peso infinitamente maior.279
Segundo Portelli, é exatamente porque as experiências
são incontáveis, mas devem ser contadas, que os narradores
são apoiados pelas estruturas mediadoras da linguagem, da
narrativa, do ambiente social, da religião e da política. As
narrativas resultantes não só podem como devem ser enten-
didas criticamente.280
Para o autor, o documento escrito é dotado de uma forma
imutável e preexiste ao seu uso; a fonte oral, ao contrário,
é uma fonte potencial até não ser acionada pelo entrevista-
dor, dependendo da forma de questionamento, do diálogo, da
inter-relação que se constitui, de pré-noções/preconceitos de
ambos (entrevistado e entrevistador), do que ambos, talvez
diferenciadamente, consideram como relevante.281 A comuni-
cação funciona sempre em várias direções, e o entrevistador,
em qualquer modo, busca sempre estudar o entrevistado. É
por isso que a entrevista é um produto de ambos, porém ma-
nifestado na forma que transparece ser um fluxo contínuo de
narração sem perguntas e respostas, e, o que é mais impor-
tante, segundo Portelli, raramente o conteúdo do testemunho
oral será o mesmo duas vezes seguido; modifica-se a relação
interpessoal, há um maior conhecimento recíproco e clareza

279
ROUSSO. H. A memória não é mais o que era. In: AMADO, J.; FERREIRA.
M. de M., op. cit., p. 93-101, cit., p. 94-95.
280
Idem, op. cit., p. 97.
281
PORTELLI. A. O massacre de Civitella Val di Chiana: mito e política, luto
e senso comum. In: AMADO, J.; FERREIRA. M. de M., ob. cit., p. 108.
154 João Carlos Tedesco

sobre o objeto da pesquisa.282 Com isso, Portelli enfatiza a im-


portância da consciência da infinitude da memória-história,
da necessidade de repetir, retornar, comparar entrevistas e
conteúdos. Para o autor, grande parte do conteúdo informado
será resultado de uma seleção produzida pelo momento e pela
relação que se constitui. No entanto, é bom constatar que Por-
telli salienta que essa potencial parcialidade das fontes orais
se reflete sobre todas as ordens de fontes, “a história oral co-
munga a própria parcialidade de toda a pesquisa histórica”.283
Afirma Portelli que o narrador de hoje é diferente do de
antigamente: ele lê, tem condições de se informar, escreve, co-
munica-se, sua consciência subjetiva e sua condição material
estão mais evoluídas, fato que, por haver reduzido a prática do
conhecimento pela via da tradição oral, poderá alterar o juízo
e o significado da forma narrativa, da alteração do significado
da memória. Porém, ao mesmo tempo, o narrador pode recons-
truir significados, opiniões, juízos sobre o conteúdo narrado.
“As fontes orais são objetivas. Isso naturalmente vale para to-
das as fontes, ainda se muitas vezes a sacralidade da escrita

PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 160.


282

Numa coletânea chamada Introduzione alla storia oral, organziada por


283

Cesare Bermani, v. II, Roma: Odradek, 2001, Portelli desenvolve um texto


belíssimo intitulado “La memoria e l’evento: l’uccisione di Luigi Tratelli”,
Terni 17 mar. 1949. No texto encontra-se uma análise muito interessante
de memória operária e de como essa memória coletiva foi reconstruída e
expressa pela ótica da manipulação, de invenções, de falsificações em razão
da luta e de domínio das classes envolvidas, do momento político vivido pela
Itália no período recente ao pós-Grande Guerra. O uso da fonte oral revela,
num cenário de interpretação manipulada, um contexto de conflito político,
de conflito no interior do próprio movimento operário, a correlação de forças
sociais, a forma de interpretação periodizada dos tempos correlatos com os
fatos socioistóricos sem sequência temporal e, sim, personificada (antes,
depois da guerra, como partegiano, como militar, membro do partido…). O
autor mostra que a memória coletiva dos fatos é ativa, é a história da his-
tória que se produziu como uma memória coletiva, simbólica, psicológica e
formal, objetivando racionalizar um contexto de lutas sociais, de memórias
ressentidas, de tensões na relação entre capital e trabalho (e no interior de
cada uma dessas esferas). As incertezas e manipulações sobre o fato da morte
de Luiggi Trastelli refletem as incertezas, ambiguidades e ambivalências da
sociedade italiana no recente pós-guerra.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
155

induza a isso esquecer. Todavia a não objetividade é um dado


caracterizante e constitutivo das fontes orais, enquanto fon-
tes contemporâneas à pesquisa, mais do que ao evento.”284
Já falamos acerca de alguns dos inúmeros problemas e
das muitas implicações que envolvem o uso e as técnicas das
fontes orais. Thompson nos alerta para um outro fato: a ques-
tão da presença de outras pessoas no momento da entrevista
e o espaço considerado mais adequado para a obtenção de res-
posta e as possíveis alterações de linguagem corresponden-
te. Segundo Thompson, “frequentemente se percebe também
que os antigos grupos tendem a dar uma imagem comum do
passado, mas entrevistados individualmente fornecem um
quadro diferente e diverso”.285 Tendo presente essas inúmeras
questões, reconhecer essas dificuldades, ser vigilante em ter-
mos epistemológicos e metodológicos, introduzir estratégias
para controlar e corrigir possíveis elementos a priori promo-
tores de distorções já é um bom caminho para dar sequência
ao método da história oral.286
Thomspon deixa claro que não existe uma separação en-
tre o micro e o macro no horizonte da história, quando na
busca da fonte oral; que existe uma interconexão dialética.
Nenhum tema da história é intrinsecamente “micro” ou “macro”,
principal ou marginal, grande ou pequeno. Tudo depende do modo
pelo qual é estudado. O estudo local pode pecar por miopia, mas é
possível também que a eternidade seja um grão de areia [...]. Deve-
mos ter a capacidade de perguntar em cada evento que significado
teve na vida da gente comum.287

284
PORTELLI, A., op. cit., 1999. p. 162.
285
PORTELLI, op. cit., 1999. p. 159.
286
THOMPSON, P. op. cit., p. 48.
287
Um grande estudo que se tornou polêmico no campo historiográfico dos anos
1970, pelo uso e crítica histórica das fontes orais encontra-se em JOUTARD. P.
Trata-se do livro Légende des Camisards. O autor propõe um uso rigoroso das
fontes orais no sentido de estabelecer objetividade na análise. O livro retrata
o movimento dos Camisards contra Luis XIV pela defesa de sua forma de
expressão religiosa protestante. O autor defende a ideia da concomitância da
oralidade com o documento, com a pesquisa arquivística e uma etnologia no
156 João Carlos Tedesco

Ainda no campo das polêmicas, alguns autores dizem que


o uso das técnicas da história oral deve se restringir à produ-
ção de história de vida. Alguns propõem, inclusive, modalida-
des de história oral. A primeira, história de vida, centrada em
um personagem; a segunda, história temática, voltada para
esclarecer um tema; terceira, tradição oral, de caráter mais
coletivo (mitos, festas, rituais...). Thompson fala da necessi-
dade de evitar a imposição de uma entrevista a quem não se
dispõe para tanto, bem como evitar o risco de gravar apenas
depoimentos dos que ele chama de “especialmente seguros e
bem articulados”; defende a ideia de que a singularidade das
amostras aleatórias e padronizadas de informação seja subs-
tituída pelo método de amostragem estratégica. Os critérios
a serem seguidos dependem do tipo de pesquisa em curso.
É possível desencadear-se uma rede de informantes. Não há
uma grande concordância no uso de questionários previamen-
te elaborados. Alguns defendem que haja apenas uma pau-
ta prévia orientadora. Thompson insiste na importância das
perguntas “historicamente relevantes”, o que exige conhecer
as “práticas” e terminologias locais.288
Existem os que defendem a inevitabilidade dos confron-
tos com arquivos e testemunhos, documentos escritos, compa-
ração crítica com outras informações existentes sobre o assun-
to em questão. Para alguns, sem essas possibilidades, o relato
oral de memória ficará comprometido. Acrescentam-se a isso
a leitura do contexto, o uso de fontes múltiplas, convergentes

campo/espaço do ocorrido; defende a necessidade de diferenciar e classificar


as entrevistas segundo idade, proveniência geográfica, origem sociocultural,
sexo, religião de origem; a necessidade de ulteriores pesquisas e retorno ao
campo antes de fazer generalizações e resultados dessa mesma; insiste na busca
da consciência coletiva do fato; introduz uma discussão sobre representação
coletiva e identidade cultural do grupo analisado, bem como o papel ativo da
memória na reinterpretação da história. Ver JOUTARD, Ph. La légende des
camisards. Une sensibilité au passé. Paris: Gallimard, 1977.
288
THOMPSON, P. op., cit., p. 105.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
157

e divergentes, confrontando-as. Para Thompson, é impossível


afastar o viés subjetivo presente nos depoimentos; eliminar
significa expurgar o caráter humano do depoimento.289
De tudo o que já dissemos, não podemos esquecer que
a história oral não é uma mera recuperação de reminiscên-
cias descomprometidas; é, sim, uma reconstituição do vivi-
do, um contextualizar e ressignificar fragmentos de vida no
tempo vivido e percebido. O próprio Halbwachs afirmou que
a memória não é um mecanismo de gravação, mas de seleção,
o que implica significados de oralidade, das estruturas me-
diadoras da linguagem, do ambiente social, da subjetividade,
bem como dos silêncios das (des)(re)construções de significa-
dos dialetizados entre vividos, concebidos e percebidos em
temporalidades diferentes, entrecruzadas ou não.
O novo que introduz na história são os discursos, nos quais as
referências à realidade podem ser múltiplas e devem ser decifra-
das. A história oral não trata de discursos escolhidos, mas tem a
ambição de afrontar a linguagem na sua totalidade. A exigência
é a de afrontar o estudo dos seres humanos não só a respeito do
poder político, das estruturas econômicas, das organizações sociais,
mas também os comportamentos interpessoais, os mecanismos
psicológicos e cognoscitivos, as ideias, as imagens que estão na
cabeça dos indivíduos.290

289
BRAND, A. História oral: perspectivas, questionamentos e sua aplicabilidade
em culturas orais. História – Unisinos, v. 4, n. 2, 2000. p. 205.
290
BRAND, op. cit., p. 208.
158 João Carlos Tedesco

Humanizar a história?
Quem controla o passado, controla o futuro;
quem controla o presente, controla o passado.
G. Orwell

O desafio do uso da linguagem, que, por si só, já é uma


totalidade-em-ato, se expressa nas relações não só políticas,
estruturais e organizacionais econômicas e socialmente, mas
nos interpessoais, nos mecanismos psicológicos e cognitivos
idealizados e imaginados na consciência dos indivíduos que
a expressam.
A história oral é sempre uma construção contínua de
suas fontes, de seus recursos, de ações diretivas, de prepara-
ção para entrevistas. Estão presentes nesse processo, cons-
tantemente, duas subjetividades, a do entrevistador e a do
entrevistado, algo não muito diferente da história documen-
tal e das fontes escritas.291
A psicologia tem nos ensinado que a memória humana
não é reprodução exata do passado; ao contrário, frequente
reinvenção de um passado ou fuga desse. Porém, por isso mes-
mo, recordar, segundo Passerini, é uma atividade de intensa
criação, com os outros, de espaços comuns de compreensão e
interpretação do mundo.
A atividade de relembrar procede de longe a um duplo
movimento: de um lado, retornar sempre mais para trás no
passado; de outro, atualizar a experiência vivida, fazendo-
se parte do presente. A memória deve tornar-se produção de
significados. O processo de recordar desafia a história oral
em fazer um esforço de reelaboração e transmissão de sig-

PASSERINI, L. Conoscenza storica e storia orale: sull’utilità e il danno delle


291

fonti orali per la storia. In:_______ Storia orale (Org.). Torino: Rosenberg e
Sellier, 1978. p. VIII.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
159

nificados do passado para o presente. Passerini entende que


a memória deva ser um ato narrante na tentativa de confe-
rir significados condivisíveis a certos eventos ou aspectos do
mundo; entende que a narração, no mesmo tempo-memória,
é sempre autobiográfica, constitui transmissão de uma expe-
riência de vida e tradução, isto é, reformulação e inovação de
alguma coisa que se recebeu de gerações precedentes e que se
quer passar às gerações futuras.
Portelli292 alerta-nos para o fato de que, com a fonte oral,
não nos encontramos frente a um objeto, mas frente a uma
fase, a um processo. A fonte oral é uma fonte construída in-
terpessoalmente, no sentido de que é produto de um ato lin-
guístico no qual são duas pessoas que falam.293 A proposta de
trabalho com fontes orais deve ser expressão de um esforço
em percorrer uma estrada, não de mão única nem cumulativa
no tempo, mas numa perspectiva de inter-relação entre o que
se considera individual e coletivo, local e nacional, marginal
e central, privado e público. “O objeto da história é o singular,
um acontecimento, uma sucessão de acontecimentos, de per-
sonagens que não se produzem senão uma vez só, porém seu
objetivo é de colher, em geral, o regular”.294
Inúmeras tensões são constantes no horizonte da análise
das tradições tanto escritas quanto orais; além dessas duas

292
Paul Thompson analisa muito bem as implicações críticas atribuídas à história
oral, como também presentes ou passíveis de presença na história escrita/
documental sobre suas possíveis deformações, sobre a pretendida veracidade
da quantificação estatística, da autobiografia, do uso de jornais, de dados
censitários, etc. Ver THOMPSON, P. Problemi di metodo nella storia orale.
In: PASSERINI, L. Storia orale. Torino: Rosenberg e Sellier, 1978. p. 31-68.
Portelli diz que é necessário deixar de lado a ideia de que a narração indivi-
dual seja uma ilha e que os grandes fatos coletivos não tenham comunicação
com isso. Ginzburg trabalha com a noção de cultura popular na esfera da
circularidade com a cultura hegemônica, numa perspectiva que pode estar em
diferenciação, mas também uma constante relação de troca e de interpretação.
293
PORTELLI, A. Memoria collettiva e raconto orale. In: LAZZARIN, G. (a cura
di). Tempo, memoria, identità. Firenze: La Nuova Italia, 1986. p. 136.
294
Ver também GRIBAUD, M. Storia orale e struttura del racconto autobiografico.
Quaderni Storici, n. 39, 1978.
160 João Carlos Tedesco

há aquela entre comportamento e narração, entre a particu-


laridade e o genérico, como e onde procurar as fontes mais
certas, quais as questões mais pertinentes e quais as cir-
cunstâncias, os significados mais explícitos na narração... No
nosso caso específico, poderíamos nos perguntar se os idosos
são testemunhas fortes e de forte personalidade na narração?
Nas palavras de Passerini, “os anciãos narradores não se dei-
xam impor modelos, frequentemente ignoram as perguntas,
subordinando o entrevistador, deixando-o em situação de con-
tra-interrogatório ou em uma situação embaraçosa”.295
Autores nos alertam de que devemos ter cuidado para
não cair numa moda vulgar e consumista, sem responsabili-
dade de tradução de suas exigências metodológicas e cientí-
ficas, como é o caso, no Brasil, de muitas ditas biografias e/
ou autobiografias midiáticas, feitas em geral por jornalistas
afoitos pela mercantilização e pela temporalidade do marke-
ting da figura biografada. Halbwachs, por exemplo, refere a
dificuldade de ordenar e integrar um com o outro os inúmeros
fragmentos de memória correspondentes à participação de in-
divíduos em grupos diferentes no decorrer do tempo.296
A tentativa da história oral, segundo Thompson e tam-
bém Passerini, é de permitir a humanização da história,
através da linguagem narrativa de protagonistas ou não, da
consciência social de que, sem as atividades dos indivíduos
concretos (como diria Marx), não há produção de história.297 A
grande questão de fundo é a de sempre: quem faz a história?
A ideia é fazer um esforço de interpretação do sentido político
e psicológico dos testemunhos e das testemunhanças, consi-
derar a sociedade na sua complexidade e o indivíduo também

295
LE GOFF, J. Storia. In: Enciclopedia Einaudi, Torino: Einaudi, 1981. p. 1055.
296
PASSERINI, L., op. cit., 1978. p. 113.
297
Ver BERMANI, C. La storia orale. Roma: Odradek, 2000.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
161

nesse horizonte, ainda que se esteja descrevendo aspectos es-


pecíficos de uma realidade micro/local.
Enfim, entendemos que o papel do historiador e de todo
e qualquer cientista social interessado nos estudos de memó-
ria é fundamental. As implicações metodológicas que cercam
o objeto de análise de história oral, da história documental
e biográfica alertam-nos para a vigilância dos instrumentos
utilizados para a interdisciplinaridade, para o engajamento
analítico, para a transcendência e problematicidade do tempo
e do conteúdo do discurso. Isso tudo, em meio a outras ques-
tões, revela-nos a importância e a finalidade social e humana/
cidadã da história oral.
Temos a convicção de que lembrar é um reviver, é um
reinscrever-se no momento, no contexto; é um imprimir-se.
Por ser tudo isso e por utilizar a narração, o recurso oral
passível de ser documentado, acreditamos que a lembrança,
principalmente na forma de narração, poderá ocasionar mu-
danças na produção do conhecimento histórico, na localização
espaciotemporal e cidadã de indivíduos, grupos e categorias
sociais, bem como promover um acerto de contas desses com a
história, com a responsabilidade ético-social, tão necessários
nos dias de hoje.
SEGU N D A pa r t e

Tempos, espaços e signos:


a correlação entre memória
coletiva e individual no
processo de lembrança
Capítulo 10

A natureza social do pensar e do relembrar

O social é não só a origem, mas a salvaguarda


última da recordação.
Halbwachs

Premissas

O objetivo, nesta parte, é fazer uma revisão das obras de


Halbwachs, analisando aspectos correlatos a sua abordagem
sobre memória, tais como coletivo, grupo, biografia, quadro
familiar, experiência, tradição, modernidade, história, narra-
ção, simbologia, etc. Lançamos mão dessas análises por con-
siderá-las importantes na fundamentação de nossa análise
empírica (da terceira parte) sobre a memória de idosos, em
suas lembranças, seus quadros de significação, suas estra-
tégias, simbologias e representações sociais, bem como sua
experiência de vida cotidiana em tempos e espaços variados.
Analisar Halbwachs é uma empreitada um tanto difícil, pois
suas obras são complexas, seus comentadores são poucos; o
contato com suas obras ainda não é acessível ao público em
geral visto que ainda não são todas traduzidas para o portu-
guês.298
Grande pesquisador, ativista político, Halbwachs deixou
uma vasta obra multidisciplinar. É pouco conhecido fora da Fran-

Ao que vem ao nosso conhecimento, nenhum livro de Halbwachs foi ainda


298

traduzido para o português brasileiro. Há uma tradução portuguesa de A


memória coletiva. Para a nossa análise, utilizamos essa tradução e a italiana
da mesma obra, bem como a versão em francês das demais.
164 João Carlos Tedesco

ça, malgrado esteja havendo um grande interesse na tradução de


suas obras em vários países, como é o caso dos últimos anos na
Itália e na Espanha. No Brasil, é ainda, em grande parte, desco-
nhecido. O autor desenvolveu estudos sobre estatística, demogra-
fia, sociologia, psicologia social, metodologia e epistemologia das
ciências sociais; realizou pesquisas na área da psicologia social
tematizando questões como agregação, socialização, morfologia
social, necessidades, intersubjetividade, institucionalização, o
problema do suicídio, da consciência e da memória coletiva.299 No
entanto, sua maior influência apresenta-se nos estudos so-
bre a memória e os quadros sociais da mesma; seguidor de
Dürkheim, objetivava constituir um programa de expansão
de sua sociologia.300
A instrumentalidade na obtenção dos relatos de memó-
ria, seja esta nos âmbitos coletivos, individuais e/ou biográ-
ficos, vai nos dizer da atualidade ou não do pensamento de
Halbwachs, bem como oferecer a base da mediação necessária
e confiável para os estudos de lembrança, de resgates tempo-
rais, do papel da oralidade em seus vínculos sociais.

299
Suas obras mais conhecidas são: La classe ouvrière et les niveaux di vie; La
morphologie sociale; La topographie légendaire des Evangiles en Terre Sainte;
Les cadres sociaux de la mémoire; La mémoire collective (ver melhor indicação
na bibliografia final).
300
Parisiense, filho de professor, nasceu em 1877; desde cedo seguiu a profissão
de seu pai ensinando em liceus; ganhou uma bolsa de estudos e foi estudar
em Berlim. Após uma breve estada em Berlim, retornou à França e passou
a lecionar em grandes universidades, como é o caso da Universidade de
Strasbourg, na Sorbonne e no Collége de France, neste último na cátedra
de Psicologia Social. Grande ativista político, foi, logo no início da Segunda
Guerra Mundial, alvo da Gestapo, tendo sido preso e deportado para o campo
de concentração de Buchenwald, local onde veio a falecer meses antes do
término do conflito mundial.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
165

A dimensão coletiva de memória em Halbwachs


Não estamos nunca sozinhos.
Halbwachs

Comecemos então dizendo que, para o autor, as lembran-


ças de cada um se confirmam, se modificam ou se perdem no
interior de um sistema de inter-relação. Desse modo, o autor
em questão não faz uma verdadeira sociologia da memória,
mas, antes, uma sociologia da recordação, ou melhor do recor-
dar-se.301 Seu ponto de partida é a memória individual e sua
tese fundamental é que a memória individual é uma constru-
ção social.
Pelo que entendemos da análise de Halbwachs, rememo-
rar, reconstruir, alterar, localizar, racionalizar e dar lógica à
lembrança dependerá do domínio individual das noções fami-
liares do grupo de pertencimento, dos pontos de reparo, do nível
de interação com os fatos no vivido individual/grupal, da mor-
fologia do grupo, da sucessão de quadros diferentes, das modifi-
cações e descontinuidades dos grupos (entrada/saída de indiví-
duos), da utilidade/interesse da lembrança para o grupo (níveis
de lembrança e de esquecimento conscientes e inconscientes).
A ideia de memória coletiva identifica um singular gru-
po, ou, no limite, toda a sociedade. A dimensão social da me-
mória manifesta uma pluralidade de memórias coletivas; a
memória social incorpora uma multiplicidade de memórias
coletivas. O social prevalece sobre a memória coletiva, consi-
derada a submemória de um grupo que é parte de um vasto
social, ou seja, da sociedade global.302

301
JEDLOWSKI, P.; RAMPAZI, M. (a cura de). Il senso del passato. Milano:
Franco Angeli, 1991.
302
NAMER, G. Mémoire et société. Paris: Méridiens-Klincksieck, 1986; ver,
também, FERRAROTTI, F. La storia e il quotidiano. Roma-Bari: Sagittari
Laterza, 1986.
166 João Carlos Tedesco

Halbwachs busca refutar a tese de Bergson segundo a


qual o indivíduo dispõe de uma memória individual não redu-
zida à memória social.303 A sua tese básica é a de que o indi-
víduo se apropria dos elementos de sua memória – das lem-
branças – através de seu pertencimento e interação a um gru-
po com o qual compartilha as suas lembranças. A passagem
da memória individual à coletiva necessita da mediação dos
quadros sociais de memória. Desse modo, indivíduos e grupos
compartilham as mesmas lembranças e os mesmos princípios
organizativos da memória. Para Halbwachs, o movimento de
memória é sempre uma tentativa de reconstrução do passado
a partir da inteligência individual e da sociedade, dos meios
que nos estão fixados e dispostos como categorias de inteli-
gência e de memória (o lugar, a forma, o nome, a reflexão, o
tempo, os símbolos...).
Os quadros de memória se constituem a partir dessa ex-
periência, desse interesse, dessa significação e dessa identi-
dade que se constitui coletivamente, se identifica, se agrupa,
se diferencia, se altera, se consolida e se correlaciona com as
dimensões passadas e presentes do tempo e dos vividos. Nes-
se ambiente teórico, é possível dizer que o passado não se con-
serva no todo, intacto, mas se reconstrói. A memória coletiva
não é ressurreição ou um reviver puro do passado enquanto
tal, mas, sim, reconstrução em função do presente.
O autor refletiu profundamente sobre a possibilidade da
lembrança de corresponder e ritualizar a memória de um gru-
po social de pertencimento atual ou no passado. Nesse senti-
do, a memória torna-se complexa, pois será fruto da multipli-
cidade dos agrupamentos sociais. A memória é o resultado de
um trabalho permanente no decorrer do tempo, no qual seus

CAVALLI, A. Lineamenti di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,


303

P.; RAMPAZI, M. (a cura di). Il senso del passato. Milano: Franco Angeli,
1991.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
167

conteúdos são, de tempos em tempos, conservados ou aban-


donados por grupos humanos concretos. O afrouxamento ou
o fortalecimento de um implica o mesmo resultado no outro,
ainda que possa essa relação se dar pela ótica do conflito, da
tensão entre memória individual e memória coletiva.
Se o passado se conserva, se conserva na vida dos homens na forma
objetiva de sua existência e nas formas de consciência que a esses
corresponde. Recordar é uma ação que se processa no presente e, do
presente, depende. A reconstrução do passado corresponde aos interes-
ses, aos modos de pensar e as necessidades da sociedade presente.304

O papel da memória coletiva é sustentar em nível cogni-


tivo e simbólico o sentido de identidade coletiva. A memória
coletiva pode assumir uma veste mais ou menos instituciona-
lizada, objetivando-se em práticas específicas, em lugares de
cultos ou em coisas/objetos significativos, mas a sua origem
e a sua reprodução se situam no nível das práticas comuni-
cativas; sua função principal é favorecer a coesão do grupo
social e garantir sua identidade.305 No curso desse processo,
verificam-se mecanismos de seleção do passado relevante e
que possam basear-se em critérios consensuais ou, então, ser
objeto de conflito,
[...] pois qual seja o critério de seleção, representa, no fim, uma
atribuição de valor [...], não são jamais independentes da estrutura
de poder que, de tempos em tempos, caracteriza o grupo ou a so-
ciedade. O poder de criar e de estabilizar a memória é, com efeito,
sinal de poder em geral a todos os níveis da organização social.306

Na análise de Namer, a memória coletiva carrega as


diferentes contraposições e contradições dos fenômenos que
reiteravam memórias precedentes e que puderam se suceder

304
JEDLOWSKI, P. Introduzione (tradução italiana de La memoria collettiva).
Milano: Unicopli, 2001. p. 31.
305
JEDLOWSKI, op. cit.
306
CAVALLI, A. Lineamento di una sociologia della memoria. In: JEDLOWSKI,
P.; RAMPAZI, M. op. cit., p. 34.
168 João Carlos Tedesco

no tempo. A importância dessas memórias no presente vai de-


pender da forma como vêm transmitidas e ritualizadas. Daí o
papel da democracia, da mistificação, da reinvenção, da difu-
são e da mass-média, da capacidade de reiteração, das revolu-
ções, etc. Para o autor, a mídia produz uma memória coletiva
anônima, potente e sem regras, que legitima o excesso e a
passividade. “Hoje a televisão legitima qualquer terrorista,
pois o mundo inteiro pode vê-lo e admirá-lo. [...]. A memória
comum televisiva substitui a memória coletiva.”307
Ora, dessas afirmações deriva uma concepção de me-
mória não como algo dado, mas passível de modificações e
de usos pelos grupos no poder dominante e seus rituais de
conservação; a memória pode ser reconstruída a partir das
exigências dos grupos sociais ativos, é dinâmica e conflituo-
sa, produtora e produto de tempos sociais e de fatos históri-
cos. É com base nesses pressupostos que desenvolveremos e
desmembraremos uma análise de suas ideias principais e de
como essas poderão auxiliar nos estudos de memória de ido-
sos, objeto da terceira parte.

A linguagem como manifestação do coletivo


Uma importante condição para lembrar é nossa
capacidade de esquecer.
Whitrow

A linguagem é um elemento fundamental na organização


da memória, é o elemento fundante da identificação social da
memória individual. A lembrança é um produto da interação
linguística que lhe dá ordem e compreensão num fluxo comple-

NAMER, G. Memoria collettiva e democrazia. Rassegna Italiana de Sociologia,


307

p. 399.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
169

xo de operações. Namer já dizia, interpretando Halbwachs,308


que a memória se manifesta como prática narrativa; daí a
importância das vozes, das fontes orais, de descobrir as fontes
mais legítimas para exteriorizar experiências e conhecimen-
tos, de fazer sua experiência um potencial de narração.309
Segundo Passerini, as análises de Halbwachs vêm mos-
trar como a memória compartilhada, através do tempo e do es-
paço, apresenta funções de identidade cultural em constante
mudança, não como fidelidade ao acontecido, mas como inten-
sa vontade de viver o presente e o futuro. Nesse ajustamento,
não necessariamente há aspectos de redução e empobrecimen-
to, mas, sim, a reelaboração das lembranças abre os olhos so-
bre seu significado do passado que não tinha sido evidenciado
anteriormente, e o passado prolonga-se em tradição de longa
duração. A linguagem, desse modo, torna-se o elemento dessa
transtemporalidade da tradição. É importante ter presente
que, dessa concepção, não se retira a originária conflitualida-
de, nem a obra de seleção e de formação que preside a lem-
brança, sobretudo no que tange à dimensão do poder formal e
do difuso subterrâneo das relações interpessoais.310
Halbwachs problematiza a ideia de identidade individu-
al fazendo uma diferença entre autobiografia e memória so-
cial (coletiva). Diz o autor que
[...] a memória individual, para confirmar uma lembrança, ou
para precisá-la, ou para suprir alguma lacuna, pode basear-se
sobre a memória coletiva, inserir-se, confundir-se com ela por um
momento, tem, todavia, uma vida própria, e cada relação externa
é assimilada e incorporada progressivamente na sua base. E, por
sua vez, a memória coletiva, abarca a memória individual, mas
não se confunde com ela.

308
Ou seja, Memória coletiva, Les cadres sociaux de la mémoire e Memoria di
Terrasanta (indicamos o título na tradução que revisamos. Ver na bibliografia
final a indicação completa dessas obras).
309
Ver sua Introdução à edição francesa de La mémoire collective...
310
PASSERINI, L. Postfazione (da tradução em italiano de La memoria collettiva).
Milano: Unicopli, 2001.
170 João Carlos Tedesco

As lembranças coletivas frequentemente se oferecem


como ponto de referência nos quais as lembranças individu-
ais possam ser reconhecidas e colocadas com mais certeza.311
A memória individual apoia-se na coletiva seja pela sua
estrutura de sentido, seja, também, pelo conteúdo linguístico
que vem confirmado, no qual o indivíduo é inserido. As re-
cordações que nos são mais pessoais são o resultado de um
complexo processo de interseção de intfluência de grupos di-
versos, cada um tendo um tipo de influência específica sobre
o resultado final.312
Os indivíduos participam de vários grupos em sua exis-
tência, seja contemporaneamente, seja na sucessão do tem-
po; cada um desses grupos é portador de valores, linguagens,
culturas diferentes. Essa “comunhão do olhar” sobre o mundo
é, ao mesmo tempo, consequência e pressuposto de pertenci-
mento ao grupo. Interiorização, socialização, representação
da realidade, interpretação dos eventos, reconhecimento como
portador de uma própria memória coletiva são alguns dos
pressupostos para ser sentido e se sentir parte dos grupos.
A relação entre memória coletiva e memória individual,
em Halbwachs, possui um sentido circular, não meramente
de causa/efeito. Cada indivíduo sintetiza diversas memórias
coletivas dos grupos a que pertence.313 Para os adeptos da me-
mória coletiva e de seus quadros sociais e coletivos, uma das
primeiras características de toda memória está na sua dupla
natureza: além de ser um conjunto de lembranças e de ima-
gens, pode ser também considerada um conjunto de repre-
sentações associadas a valores e normas de comportamento.
Nesse sentido, ela se liga com a história pública, com os siste-
mas sociais socializadores que constituem, linguisticamente,

311
CARRERA, L., op. cit., p. 17.
312
Ibidem.
313
HALBWACHS, M. Les cadres...
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
171

os modos de agir, pensar e sentir, exteriores aos indivíduos e


dotados de um poder coercitivo (pensar nas instituições, na
memória nacional e política).
Pelas representações coletivas, as imagens do passado
tomam forma lentamente na consciência não mais do indiví-
duo, mas do social, sedimentadas no longo decorrer da exis-
tência. As representações coletivas funcionam como elemento
de correspondência entre a experiência do indivíduo e a dos
grupos; constituem a esfera de confluência dos valores, das
crenças, dos modelos de comportamento, interiorizadas no
longo percurso secular da duração.314
A base social/coletiva da memória constitui-se na famí-
lia, nas classes, nos grupos de referência (escola, empresa,
partido, etnia, raça, nação...), na religião, na tradição, dentre
outras, as quais, institucionalmente, formam o sujeito e auxi-
liam na determinação de sua visão de mundo.
O sentido social da memória coloca a dimensão do tem-
po na lembrança: o tempo presente. Nesse sentido, as noções
de refazer, reconstituir, repensar fazem, em grande parte,
excluir a identidade entre imagens de um tempo e de outro.

Ver a crítica de M. BLOCH à concepção de tempo em Halbwachs quando do


314

aparecimento do livro Les cadres sociaux de la mémoire, em seu livro Histoire


et historiens. Paris: Colin, 1985. Sobre essa questão do tempo, da longa du-
ração, ver BRAUDEL, F. Capitalismo e civiltà materiale. I, Torino: Einaudi,
1977. Nesse livro, Braudel faz um inventário da vida cotidiana de populações
do passado (Séc. XVI-XVIII), dos elementos do imaginário, das necessidades
concretas e dos objetos de sua satisfação: a comida, o corpo, o convívio e a de-
pendência de animais, seus significados, dentre outros. O autor refletiu sobre
a imobilidade do tempo e a temporalidade da natureza. Para o autor, o papel
do imaginário cotidiano era fundamental para manter essa imutabilidade do
tempo; diz que, “com efeito, não estamos, nesse caso, só no âmbito das coisas,
mas, sim, no das coisas e das palavras, entendendo esse último termo além de
seu sentido ordinário. Trata-se de linguagem, com tudo o que disso o homem
carrega, insinua, rendendo-se inconscientemente prisioneiro frente ao seu
prato de arroz ou ao pedaço de pão cotidiano. Joga com tudo isso a civilização.
Estranho conjunto de bens, de símbolos, de ilusões, de fantasia, de esquemas
intelectuais. Enfim, até no mais profundo da vida material se instaura uma
ordem de tendências, de pressões insconscientes da economia, da sociedade e
de civilização” (p. 249).
172 João Carlos Tedesco

O elemento socializador da memória é a linguagem, suas re-


presentações, sua temporalidade, suas convenções, suas di-
ferenciações em termos de significados e símbolos. Há uma
(re)construção social da memória, a qual implica filtragem,
enquadramentos e convencionalização.315
Halbwachs diz que “as convenções verbais constituem o
quadro mais estável e mais elementar da memória coletiva;
as recordações se fazem cada vez mais de palavras, ou me-
lhor, de vários fragmentos da memória que vêm silenciados e
que são relacionados ao mundo da fala”.316 A categoria socio-
cultural da linguagem e a representação do tempo e do espaço
são formas a priori nas quais os conteúdos das memórias indi-
viduais se depositam. É por isso que os limites da linguagem
denotam os limites do mundo, da compreensão e na expressão
dos indivíduos. Através da linguagem é possível estabelecer
relações com o mundo, é possível comunicar experiências,
fundar tradições comuns, subjetivar experiências, intercam-
biar e se apropriar de símbolos e de memórias coletivas.
A pessoa recebe do passado não só dados da história es-
crita; mergulha suas raízes na história vivida, sobrevivida
das pessoas. A verdadeira socialização se dá no concreto, no
cotidiano, no interior; há correntes do passado que só desa-
parecem na aparência e que podem reviver numa rua, numa
sala, em certas pessoas, no jeito de falar, na alimentação etc.;
são resquícios de outras épocas, fragmentos do tempo.317
A memória, sem o trabalho de reflexão e de localização,
seria uma imagem fugidia; o sentimento precisa acompanhá
-la para que ela não seja uma repetição do estado antigo, mas

315
A noção de convencionalização permite-nos entender os mecanismos de
adaptação da memória e sua linguagem em relação ao universo cultural e
ideológico em questão. É uma espécie de modelagem no ato de transferência
de uma situação evocada para os que a evocam. Ver Bosi, op. cit.
316
HALBWACHS, M. A memória coletiva, p. 114.
317
BOSI, E., op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
173

uma reaparição. A memória concentra-se mais em pontos em


que a significação da vida se concentra (só realmente fica o
que significa); há tempos vazios (tempo de trabalho para mui-
tos), tempos sociais que absorvem tempos individuais, formas
heterogêneas de viver e conceber o tempo; no “meu tempo”,
como diziam muitos dos nossos idosos entrevistados (tempo
de realização de seu saber e de sua implicação no real), é a
época que pertence aos homens mais jovens que nela se reali-
zam por suas atividades.
Enfim, a função social da memória seria a de lembrar, a
de ser memória da família, do grupo, da instituição, da socie-
dade. A memória coletiva de determinado grupo é uma memó-
ria estruturada, a qual possui hierarquia e classificação (diz
o que é comum a um grupo e o que o diferencia), bem como
as fronteiras socioculturais que articulam os sentimentos de
pertencimento. Sendo o homem um ser social, sua memória
só pode ter sentido no quadro coletivo. A relatividade da me-
mória será condizente com os quadros sociais e temporais que
o indivíduo viverá em sociedade. Os mediadores são bens sim-
bólicos, assim como os objetos que representam status eleva-
do na hierarquia social, objetos transferíveis de uma geração
para outra (sobrenome e heranças). Esses elementos dão a
ideia de um tempo cíclico (pensar na relação dos avós com os
netos, relação essa de continuidade, de desejo de deixar presa
sua presença, de serem testemunhos de existência de pesso-
as, de lugares, de paisagens, de (situ)ações de pertencimento,
de emblemas quase sagrados, enfim, fragmentos do tempo, de
linguagens dos sentidos e de emoções).
174 João Carlos Tedesco

O entourage sociale e a dependência da


memória individual
O estudo da memória nos ensina que todas as
fontes históricas estão desde o princípio banha-
das de subjetividade.
J. Vansina

No que se refere à memória coletiva, Halbwachs diz que


exprime, em vez de um “conhecimento” positivo do passado,
uma mediação entre os conteúdos do passado disponíveis e as
necessidades ideais dos grupos.318 Nesse sentido, a memória
diferencia-se da história.
Se, de fato, enquanto projeto consciente de conhecimento do passa-
do, a memória não pode fazer menos de que adequar-se ao problema
da objetividade dos fatos históricos e de sua cronologia. No entanto,
a memória não está tanto interessada no conhecimento e, sim, na
prática. Do passado não conserva imagens “fiéis”, mas imagens que
servem ao presente e são significativas para continuidade da vida
de um grupo. Se a história é a interpretação dos eventos passados
que se coloca em algum modo sempre do externo, de um ponto de
vista que é concebido como presente próprio, enquanto distinto do
passado, a memória é, ao contrário, a continuidade do passado num
presente que dura. Nessa continuidade, as imagens do passado
são constantemente remodeladas e selecionadas de novo com as
exigências de adequação às necessidades do hoje.319

Para Halbwachs, a memória coletiva não é estanque, nem


pura ou isenta de interesses. Numa sociedade estratificada
que luta por espaços, a memória não passa à margem disso
tudo. O campo da memória é um espaço de conflito/tensão de
estratificação, de fragmentos diversos de memória, de traços
ocultos, de testemunhos, os quais sobrevivem em imagens do

318
Essa obra foi publicada em 1950 como obra póstuma, após o autor ter escrito,
em 1941, Topografie légendaire des Evangelis en Terre Sainte, no qual havia
recolhido análises empíricas que alimentariam a tese da memória coletiva.
319
LE GOFF, J., op. cit., p. 212.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
175

passado. Essas se apresentam num jogo, cuja legitimação está


em sua capacidade de justificar a ordem das coisas presentes
da legitimidade e a tradição, que almejam presentificar no fu-
turo. É por isso que a memória coletiva manifesta um conjunto
de representações do passado que permanecem conservadas e
transmitidas entre seus membros, pela sua função prática de
integração.
Que se trate de sua família ou de sua igreja, de seu partido ou da
minoria étnica a qual pertence, o indivíduo está imbuído do afeto e
dos interesses que o ligam a qualquer um desses grupos a compar-
tilhar lembranças, a forjar interpretações comuns, a compartilhar
o sentido daquilo que é memorável.320

Apesar de sua complexidade e ambiguidade, a memória


social é apresentada pelo autor como um resíduo de memória
coletiva, como uma lembrança de memória coletiva dispersa
na mente de quem, no passado, havia feito parte do grupo. É
uma memória na sociedade sem o suporte de algum grupo.
Halbwachs é claro ao afirmar que, em todo o pano de fundo
de sua análise, a memória individual depende do entourage
sociale. “Este ambiente é caracterizado pela sua língua. [...],
o aspecto da gente e os lugares, os costumes, aquilo que é
familiar.”321 Porém, a memória social também, como âmbito
material e espiritual, condiciona o indivíduo. É a memória
dos outros em geral que nos circunda e que conserva nossas
lembranças. “Nós completamos as nossas lembranças, aju-
dando-nos, ao menos em parte, com o máximo dos outros.” A
memória social é aquela de um ambiente geral da linguagem,
a forma e o esquema geral do tempo e do espaço.322
Em termos de influência sobre e no indivíduo, a memória
social está num nível mais baixo do que a memória coletiva;

320
JEDLOWSKI, P., op. cit. p. 51.
321
HALBWACHS, M. Les cadres..., p. XV.
322
HALBWACHS, M. Les cadres..., p. 23.
176 João Carlos Tedesco

é uma memória imediata, não estruturada, porém necessá-


ria para a construção da lembrança histórica, da tradição,
do pensamento e do significado moral. A memória coletiva é
normativa, possui um efeito moral na sociedade e no grupo;
é a memória do dom, do empréstimo, da dívida que deve ser
paga; a memória social é uma obrigação técnica, não portado-
ra de moralidade.323
Passerini enfatiza que existirá sempre uma separação
maior entre a estrutura da memória coletiva evidenciada com
a expansão das recorrências à memória individual. Não obs-
tante, Halbwachs é claro nos Les cadres... ao dizer que há
um anel que liga, que permite a busca da memória, ou seja,
sem a base comum do grupo, ou, no limite, da espécie, não se
desenvolve a memória individual. Segundo o autor, sem a me-
mória individual, não é possível a compreensão da intersub-
jetividade, da empatia, consequentemente, da transmissão e
da tradição.
Passerini insiste na ideia de que o historiador não po-
derá indagar sobre o papel do indivíduo na história sem ter
presente, de uma maneira ou de outra, o modo das agregações
sociais, ainda que no plano da subjetividade.
A reorganização da memória coletiva de que falava Halbwachs,
é, em última análise, trabalho de individuação. Os contributos da
individualidade vão cercados, não tanto na matéria da lembrança,
mas no modo no qual reinventa a própria posição na história e a
relação entre indivíduos e os outros. Do ponto de vista da pesquisa
histórica, interessa-nos os pontos de encontro e de fricção entre as
duas formas de memória, ou melhor, entre os aspectos diversos de
uma mesma memória. Esperamos que as reflexões e o acúmulo
de trabalhos científicos sobre a memória coletiva tenham aberto o
caminho sobre a memória individual.324

323
NAMER, G. L’affectivité du temps de la mémoire. In: L’ Homme et la société.
Paris: L’Harmattan, 1989.
324
PASSERINI, op. cit., 2001. p. 264.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
177

A memória social dinamiza e/ou traz presentes os cha-


mados “subterrâneos da memória”. A história e a memória
oral são duas dinâmicas que provocam e resgatam os confli-
tos da memória, retomando o silêncio, remexendo feridas, de-
núncias, as zonas de sombra e os resíduos.325 As memórias
subterrâneas fazem seu trabalho de subversão no/do silêncio
muito calmamente. Os momentos de crise, de exacerbação
do estigma, de alterações temporais, são férteis para romper
com as zonas de silêncio, com as fronteiras entre o dizível e o
indizível.326
Nesse sentido é que se revela a importância de analisar
os ressentimentos e ufanismos de memória como represen-
tantes de quadros sociais, culturais, étnicos, políticos. Alguns
autores dizem que é impossível à memória escapar contem-
poraneamente dos procedimentos históricos. Esse movimento
é inexorável e sem volta; toda memória, atualmente, é uma
memória exilada, que busca refúgio na história; restam-lhe,
assim, os lugares de memória.
Muitas tradições são inventadas; fazem parte dos pro-
cessos de ritualização e formalização de práticas políticas
na sociedade moderna; fundamentam-se numa releitura de
fragmentos culturais de longa duração; direcionam-se para
símbolos, festejos, celebrações que lhe dão visibilidade; exer-
ceram grande influência na vida da nação, revestindo-se de
forte carga emotiva, de sinais de identidade, de soberania na-
cional. As tradições inventadas recriaram e transformaram
a história da nação, instituindo saberes e memória a partir
dos quais se selecionaram, se institucionalizaram e se propa-
garam rituais, práticas e representações que conformaram a
constituição “subjetiva” da nacionalidade.327

325
Ver TEDESCO, J. C. (Org.). Usos de memória.
326
Ver BOSI, op. cit.
327
Ver HOBSBAWM, E.; RANGER, J. T. A invenção das tradições...
178 João Carlos Tedesco

A história fornece o alimento para o enquadramento ou


não da memória, por meio de interpretações, de coerências
discursivas, de ordenação de fatos, construindo mitos, figuras
centrais, referências culturais. Ao que nos parece, o objetivo
é dar, mesmo em meio às tensões de memória, um sentido ou
não de perenidade, de cristalização e de continuidade. Nesse
sentido, os ritos e sua simbologia, são fundamentais; o famo-
so non dimenticare, muito presente em rituais de lembrança
pública política, possui uma carga histórico-simbólica muito
forte e uma eficácia pe’dagógico-social.

Contratualidade cultural e histórico-social

Halbwachs faz sempre referência à alteridade, à presen-


ça do eu sob o olhar do outro.
Veremos que, na maior parte dos casos, nós fazemos recurso a
nossa memória só para responder às perguntas que nos são feitas
pelos outros, à que suponhamos que esses poderiam nos fazer [...],
colocamo-nos em seus pontos de vista, considerando-nos como
integrantes de um ou mais grupos como eles.328

Estão sempre presentes o recurso linguístico e o elemen-


to social na lembrança. “Na maior parte dos casos, se eu lem-
bro alguma coisa, é porque os outros me incitam a lembrar;
é a memória dos outros que vem em socorro da minha; é a
minha que se apoia na deles.”329 É por isso que a visão do
coletivo, do outro, da experiência coletiva constitui, para Hal-
bwachs, aquilo que se convencionou chamar de “comunidade
do olhar”.330

328
HALBWACS, M. A memória coletiva. p. 16.
329
Idem., p. 26.
330
NISIO, F. V. Comunità dello sguardo: la sociologia ethica di Maurice Halbwa-
chs. Rassegna Italiana di Sociologia, a. XLI, n. 3, lug./set., 2000. p. 323-360.
Sobre o pensamento de Halbwachs, ver, também, AMIOT, M. Le systéme de
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
179

Reconhecimento, localização, sentimento de familiarida-


de comum e social, linguagem, imagem, percepção, experiên-
cia, proximidade física e de pensamento são elementos cons-
tantes na análise dos quadros de memória em Halbwachs.331
Pertencer dá ideia de uma ressonância moral, de vizinhança,
de compartilhar do mesmo sangue, do mesmo espaço, de uma
contratualidade cultural e simbólica, acima de tudo, de coo-
peração solidária, afetiva e parental, memória e identidade
coletiva, genealógica (parentesco, biografia e consanguinida-
de), política (Estados nacionais através da língua, da origem,
da cultura...).
A ideia de pertencimento carrega consigo a necessida-
de de ancorar o grupo/comunidade a algo que dê garantia de
continuidade, de eternidade tanto para o futuro quanto para
o passado, ainda que esse processo possua uma base histó-
rico-temporal de curta duração e uma tradição não de base
comum. O pertencer pode se dar pela simples identificação
identitária, cultural, imaginária… e sua temporalidade alte-
ra-se, renova-se e entrecruza-se, porém há sempre interação
de uma “situação de contemporaneidade” (no caso em ques-
tão, ser idoso, ser descendente de italiano, falar o dialeto, en-
frentar os mesmos desafios culturais e físicos, “migrar sem
nada”, “trouxemos de lá muito do que temos aqui”). É por isso
que sentir-se pertencendo carrega uma simbologia que une
indivíduo a uma totalidade histórico-cultural e temporal. Os
nomes, por exemplo, associam-se a tradições, a moralidades,
ao elemento continuidade. O nome, o “bom nome da família”,
é uma categoria totalizante que desafia a linearidade do tem-
po, assim como o é a família. Ambos desafiam o limite de vida
de seus membros constituintes.332 Diz Halbwachs que

pensée de Maurice Halbwachs. Revue de Synthèse, v. 2, n. 6, 1992.


331
HALBWACHS, M. Les cadres...
332
Ver uma excelente análise sobre isso em LINS de BARROS, M. M. Autoridade
e afeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1987.
180 João Carlos Tedesco

nada dá melhor a ideias desse gênero de lembranças que os nomes, que


não são nem noções gerais, nem imagens individuais, e que entretanto
designam, ao mesmo tempo, uma relação de parentesco, e uma pessoa.
Os nomes se assemelham aos sobrenomes dos quais a gente se serve
para representar os objetos no que eles supõem um acordo entre mem-
bros do grupo [...]. Eu sinto, então, que me será suficiente pronunciar
este nome em presença de outros parentes para que cada um deles
saiba do que eu falo, e se prepare em comunicar tudo o que ele sabe a
esse respeito. Importa pouco, aliás, que eu não proceda efetivamente
a esta sondagem: o essencial é que eu saiba que ela é possível, ou seja,
que eu fique em contanto com os membros da minha família [...]. Há,
pois, bem atrás do nome, as imagens que seriam possíveis, em certas
condições de fazê-las reaparecer, mas esta possibilidade resulta da
existência de nosso grupo, de sua persistência e de sua integridade.333

Natureza e cultura imbricam-se nesse processo. Não é


só a memória familiar, a qual, acima de tudo, envolve nomes
e sobrenomes, que conta nesse processo, mas também a lin-
guagem (o dialeto, a “língua mãe”), a moradia, o território, a
posição social, aspirações e valores sociais, visões de mundo,
comportamentos, parentesco, etc., disso resultando um con-
densar de experiências características de grupos sociais par-
ticulares.334 As próprias histórias individuais de vida incorpo-
ram as histórias de famílias, e essas são uma forma de memó-
ria coletiva.335 As noções de comunidade e de proximidade são
importantes para tornar legítimo o espaço da memória.
No interior das cidades, os homens se cruzam e, na maior parte dos
casos, ignoram-se. A massa dos homens que circulam nas estradas
de nossas grandes cidades representa uma sociedade desintegrada
e um pouco ‘mecanizada’. As imagens das estradas passam sobre
nós sem deixar traços duradouros, e assim sucede também à maior
parte das impressões e das lembranças que não se vinculam com a
parte mais importante da nossa vida social. [...]. A nossa vida social
pressupõe a existência de grupos contínuos, com os quais fizemos
ou fazemos sempre presença.336

333
HALBWACHS, M. Les cadres. p. 165-166.
334
THOMPSON, P. A transmissão cultural entre gerações dentro das famílias:
uma abordagem centrada em histórias de vida. Ciências Sociais Hoje, Anpo-
cs/Hucitec, 1993. p. 9-19; ver, também, do mesmo autor, A voz do passado:
história oral. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
335
LINS DE BARROS, M. M. Densidade de memória, trajetória e projeto de
vida. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 140-147.
336
LINS DE BARROS, op. cit., p. 139.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
181

Os ditos “quadros de referência”, em Halbwachs, forne-


cem comunicabilidade às recordações, são expressão da so-
brevivência de grupos sociais que constituem na vida cotidia-
na os pontos de referência familiares para o sujeito. “Todavia,
possam tornar objeto de reflexão consciente, na medida em
que o indivíduo se encontra de frente a situações que colocam
em discussão o seu pertencimento ao grupo ou a sobrevivên-
cia do grupo mesmo.”337
Os quadros sociais da memória agem no indivíduo por
meio de uma estrutura de plausibilidade, a qual permite defi-
nir a veracidade do que se retém, do que pode e deve perma-
necer na memória; atuam ao nível da estrutura cognitiva que
o indivíduo intercambia com os grupos nos quais vive. É desse
modo que a identidade do indivíduo é produzida junto com a
sua memória com aquela dos outros.
Os quadros da memória, em Halbwachs, são dotados de
uma forte normatividade, são modelares, exemplares, encora-
jamentos e advertência, são uma cadeia de ideais e de juízos
que fornecem indicações acerca do presente e do futuro.
Mas os quadros da memória coletiva possuem uma outra importante
característica: não são nunca, por definição, anônimos, vivificam
nomes, vultos, histórias, aos quais estamos intimamente ligados,
que suscitam em nós sentimentos e emoções inconfundíveis, trans-
mitem vividos e testemunhos de experiência.338

Os quadros coletivos da memória funcionam como filtros


que selecionam os aspectos do passado que o grupo deve recor-
dar para poder manter viva no presente a própria identidade.
A memória coletiva é importante para manter a inte-
gridade e a sobrevivência do grupo no tempo. Desse modo, a
memória coletiva é caracterizada por um intenso componente

RAMPAZI, M. Memória e biografia. In:_______, op. cit., p. 140.


337

LECCARDI, C. Memoria collettiva e gratitudine. In: JEDLOWSKI, P.; RAM-


338

PAZI, M., op. cit., p. 73.


182 João Carlos Tedesco

afetivo, que nasce da estreita interação e do seu consequen-


te intercâmbio de experiências entre os membros do grupo.
Desse modo, fortalece-se o caráter normativo da memória339
e reduz-se a potencialidade do indivíduo na determinação da
lembrança. Diz Halbwachs que, “de resto, ainda que eu não
caminhasse ao lado, bastaria que eu tivesse lido as descri-
ções da cidade, ou, ainda mais simplesmente, que estudasse
o mapa da cidade”.340

O encontro/desencontro entre memória


social e coletiva341

Criticando a visão de Halbwachs no sentido da dependên-


cia do indivíduo ao seu habitus social, Fentres e Wickham342
dizem que o autor concedeu um destaque talvez excessivo à
natureza coletiva da consciência social e um relativo desprezo
à questão do relacionamento entre a consciência individual e
as coletividades que esses indivíduos efetivamente constituí-
ram. Muitas críticas ao autor brotam nesse sentido.
Na visão desses autores, Halbwachs teria feito do indi-
víduo uma espécie de autômato condicionado e obediente à
vontade coletiva interiorizada. Nesse sentido, os autores re-
ferem que recordar não é apenas recordar conhecimento, mas
também sensações. A memória, com efeito, penetra em todos
os aspectos da nossa vida mental, dos mais abstratos e cogni-
tivos aos mais físicos e inconscientes. A memória está sempre
operante em nosso espírito, o que significa que devemos situ-
ar os grupos em relação às suas próprias tradições, descobrir
339
LECCARDI, op. cit., p. 74.
340
HALBWACHS, M. La memoria collettiva. Milano: Unicopoli, 1987. p. 3.
341
Aprofundamos melhor esse item em nosso livro Memória e cultura.
342
FENTRES, J.; WICKHAM, C. Memória social: novas perspectivas sobre o
passado. Lisboa: Teorema, 1994.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
183

como interpretam os seus próprios “fantasmas” e como os uti-


lizam no sentido de servir de fonte para o conhecimento.343
Para Halbwachs, em Les cadres..., a origem social da me-
mória deve-se ao esforço de compreender a forma atual das
circunstâncias das lembranças (um presente impessoal e em
exterioridade) em direção a um passado pessoal que é recons-
tituído antes de se deixar reviver. “Quando nós nos lembra-
mos, nós partimos do presente, de um sistema de ideias ge-
rais que está sempre à nossa disposição.”344 A nossa memória
tem também origem social pelo fato de que todas as recor-
dações, mesmo aqueles sentimentos não expressos, estão em
relação com todo um conjunto de noções que nos precedem.
Desse modo, é pertinente dizer que nossa memória individual
é social porque utiliza noções que estão presentes nos gru-
pos atuais e nos passados de nossa existência. Daí que toda a
lembrança está em relação “com a vida material e moral das
sociedades, as quais nós fazemos ou fizemos parte”.345 Para o
autor, nossa memória possui também uma origem social de-
vido ao fato de nos recolocar numa totalização de um grande
número de memórias coletivas, sem ter capacidade de refle-
xão, de compreensão, como é o caso dos sonhos, da lingua-
gem, da noção de espaço e tempo sem definição, porém com
sentimento de pertencimento e como manifestação de que a
sociedade se faz sentir também de outras formas.346
Nessa interpretação, é possível dizer que a nossa memó-
ria social é uma virtualidade de memória coletiva devida ain-
da ao fato de que é o que resta de uma ou muitas memórias
coletivas passadas quando a coesão e a pressão do grupo de-
sapareceram, pois entendemos que a experiência se perde na

343
Id. ibid., p. 42.
344
HALBWACHS, M. Les cadres... p. 25.
345
Idem, p. 38.
346
NAMER, G. Mémoire et société. p. 23.
184 João Carlos Tedesco

falta de contato, pela impossibilidade de nossa capacidade de


compreender o ponto de vista do outro e da sociedade (como
memória e inteligência impessoal, simbolismo convencional,
de refêrencia local da recordação), de refletir, de usar a inte-
ligência e os sistemas de ideias que nos rodeiam, das signifi-
cações sociais. A noção de diálogo é fundamental na ideia de
memória em Halbwachs, para quem são os outros que, fre-
quentemente, nos incitam a relembrar. O entorno, o meio, o
engajamento, as condições objetivas são fundamentais e dia-
lógicos na construção e reconstrução da memória individual.
É desse diálogo que se produzem/reproduzem costumes,
tradições, representações, símbolos coletivos, mentalidades, o
popular, a identificação entre pensamento coletivo e memória
coletiva (grupo). São esses elementos os mecanismos mentais
e materiais dos quais se servem os indivíduos e grupos para
se recordar. “Os quadros coletivos da memória [...] são [...] os
instrumentos de que a memória coletiva se serve para recom-
por uma imagem do passado que se correlaciona a cada época
com os pensamentos dominantes da sociedade.”347
Conceptualizar e recontextualizar tornam-se uma necessi-
dade para a memória social. Mitos, genealogias, contos populares,
tradição oral são manifestações de criações de contextualizações.
Há necessidade histórica de recontextualizações como processo
geral da memória social para ganhar significados mais amplos. A
própria tradição é articulada e necessita de um significado apro-
priado ao contexto. Autores mencionam que essa necessidade de
reinterpretação está no seio da própria tradição.348 Fazer histó-
ria da memória social é também construir uma história de
sua transmissão, dos processos que conduzem, no tempo, o
relembrar. É possível, então, perceber o pragmatismo de cer-
tas tradições e/ou traduções (pensar em Hobsbawm no seu A

HALBWACHS, M. Les cadres... p. XVIII.


347

HALBWACHS, op. cit., p. 109.


348
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
185

invenção das tradições) e sua utilização presente para certos


grupos.
Há autores que defendem as práticas interativas dos in-
divíduos, que, ao mesmo tempo em que modificam, fazem uso
das estruturas sociais. Daí a noção de dualidade de estrutura
de Giddens, da circularidade dialética em Ginzburg, da inte-
ração dialógica de Habermas, do habitus em Bourdieu e da
consciência em Thompson. Para alguns autores,349 a criativi-
dade social é exercida por meio de interações variavelmente
descentradas, incluindo redes de amizade, famílias, organi-
zações, movimentos sociais, nações e civilizações. A relação
entre indivíduo e memória é algo polêmico.
A memória social, como vimos, é responsável pela estru-
turação dos sistemas sociais, ou seja, pelo estabelecimento
e manutenção de padrões interativos (tradição) e institucio-
nais, subjazendo também a operações técnicas e científicas;
inclui reminiscências, atitudes e sentimentos, regras sociais
e normas, padrões cognitivos, assumindo formas ideais e ma-
teriais que se encontram concretamente imbricadas e que po-
dem ser separadas apenas analiticamente. A memória social
provê os padrões para a estruturação do “imaginário”, isto é,
para a dimensão expressiva, cognitiva e normativa da vida
social, para o desenvolvimento das relações sociais e para o
intercâmbio material dos sistemas sociais com a natureza.
Fornece também os padrões para a estruturação de sua di-
mensão espaciotemporal, sua configuração (coesão mais de-
marcação) e ritmos (de reprodução e mudança).350 Com isso,
não significa dizer que a memória social seja homogênea em
sua construção, distribuição e demanda.

349
DOMINGUES, J. M. Sociologia da cultura, memória e criatividade social.
Dados, Rio de Janeiro, n. 2, 1999. p. 303-339.
350
Idem, p. 308.
186 João Carlos Tedesco

Nossos “estoques de conhecimento” são diferenciados; cada indi-


víduo tem graus variados de claridade, distinção e precisão que
surgem dos sistemas de relevância determinados por sua biografia.
Por isso a importância em levar em conta os atores individuais e
subjetividades coletivas variavelmente descentradas, ou melhor,
levar em conta criatividades sociais.351

O grupo social reconstrói as lembranças, tornando-as fe-


nômenos sociais. Daí a importância de o pesquisador conhecer
os símbolos e suas significações no tempo, seu intercâmbio e a
forma como é construída a dimensão social das memórias in-
dividuais. A relatividade da memória será condizente com os
quadros sociais e temporais que o indivíduo viverá em socie-
dade, os quais, segundo ele, não são poucos; estão presentes
em todas as fases da vida, algumas mais intensas (família,
religião, para muitos, as classes), outras menos marcantes.
Halbwachs diz que, no desenvolvimento contínuo da me-
mória coletiva, não há linhas de separação nitidamente tra-
çadas, como na história, mas somente limites irregulares e
incertos. A memória de uma sociedade estende-se até onde
pode, quer dizer, até onde atinge a memória dos grupos dos
quais ela é composta. Para o autor, há muitas memórias co-
letivas, porém não pode haver muitas histórias. No fundo, é
a ideia de que a memória coletiva é o grupo visto de dentro.
A história examina os grupos de fora e abrange uma duração
bastante longa. A memória coletiva apresenta ao grupo um
quadro de si mesmo que, sem dúvida, se desenrola no tempo,
já que se trata de seu passado, mas de tal maneira que ele
se reconhece sempre dentro dessas imagens sucessivas.57 Na
concepção de Halbwachs é possível ligar modernidade e tradi-
ção na esfera do cotidiano, do horizonte do vivido.

DOMINGUES, op. cit., p. 329.


351
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
187

O passado deixou muitos traços [...], se percebe também na expressão


dos rostos, no aspecto dos lugares e mesmo nos modos de pensar e
de sentir inconscientemente conservados e reproduzidos por tais
pessoas e dentro de tais ambientes, nem nos apercebemos disto,
geralmente. Mas basta que a atenção se volte para esse lado para
que nos apercebamos que os costumes modernos repousam sobre
antigas camadas que afloram em mais de um lugar. Algumas vezes,
é preciso ir muito longe para descobrir ilhas de passado conservadas,
parece, tais e quais, de tal modo que nos sentíssemos subitamente
transportados a cinquenta ou sessenta anos atrás.352

Nesse sentido, Halbwachs é claro ao analisar o fato de


que quem faz o tempo da memória coletiva é o grupo. Tal
questão acaba relativizando o tempo e o limite de vida à me-
mória, pois, se o grupo acabar, acaba a memória. Por isso, a
importância da formação e do desenvolvimento da identida-
de do grupo, de sua memória comum e de seus traços fun-
damentais, bem como de seus vínculos e ritos tradicionais.
Isso leva a que mudanças sociais não sejam sinônimas pura e
simplesmente de causa de desintegração. Os mediadores são
fundamentais; são elos vivos entre gerações – são mensagei-
ros da historicização (família, festas de família, escola, Igreja,
grupos culturais, retratos, figuras antigas, patriarcas, genea-
logia, compadrio, sobrenome, consanguinidade etc.).
Os mediadores atuam como bens simbólicos, assim como
os objetos que representam status elevado na hierarquia social
são objetos transferíveis de uma geração para outra. O traba-
lho da memória é, então, ao mesmo tempo, de reconstrução e
de esquecimento; tudo vai depender da temporalidade de me-
mória (do grupo particular). Nesse horizonte do esquecimento
e da reconstrução grupal da memória, apresentam-se conflitos
de memória e conflitos no trabalho da hierarquização e legiti-
mação das memórias. Aí entra a importância do simbólico (re-
ligioso, histórico, social...) na determinação de memória domi-

DOMINGUES, op. cit., p. 68.


352
188 João Carlos Tedesco

nantes/dominadas, de memórias (re)inseridas e expulsas, da


valorização e desvalorização de memória (seu conteúdo moral,
temporal, de sua aptidão...). O autor deixa clara a necessidade
social e psíquica de uma comunidade afetiva.
Para que nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que
eles nos tragam seus depoimentos: é necessário ainda que ela não
tenha cessado de concordar com suas memórias e que haja muitos
pontos de contato entre uma e as outras para que a lembrança
que nos recordam possa ser reconstruída sobre um fundamento
comum. Não é suficiente reconstituir peça por peça a imagem de
um acontecimento do passado para se obter uma lembrança. É
necessário que esta reconstrução se opere a partir de dados ou de
noções comuns que se encontram tanto no nosso espírito como no
dos outros, porque elas passam incessantemente desses para aquele
reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer
parte de uma mesma sociedade.353

A memória do grupo evolui também sob influência do am-


biente. As memórias coletivas metamorfoseiam-se ao adotar
novas ideias e ao habilitá-las de novas representações. Não
significa dizer que as memórias coletivas rejeitam totalmente
seu passado; elas o reinterpretam e o reordenam nos quadros
de suas novas noções, enfim, os novos quadros coletivos de-
vem se adaptar às novas condições de existência.354
A memória é um fenômeno social, possui um caráter social,
uma linguagem coletiva e uma comunhão de noções que com-
partilhamos com os participantes do grupo social.355 Existem
quadros sociais que servem de ponto de referência, os quais
possuem uma localização espacial e temporal, o que propicia
a localização da memória num espaço social. A família é a
grande expressão desses quadros sociais, como veremos me-
lhor a seguir.

353
HALBWACHS, M. A memória coletiva. p. 34.
354
COENEN-HUTHER, J. La mémoire familiale: un travail de reconstruction
du passé. Paris: L´Harmattan, 1994. p. 16.
355
LINS DE BARROS, M. M. Memória e família. Estudos Avançados, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 29-42.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
189

Memória e o quadro familiar


Às preocupações familiares se mescla a maior
parte das nossas preocupações.
Halbwachs

Na base do grupo familiar existe um fondo comune de


memória, por meio do qual se manifesta a “atitude geral do
grupo e da qual derivam os seus tratos distintos”.356 É por
isso que a memória familiar expressa regramento, exemplo
e modelação, assim como debilidade grupal. Não obstante, é
o espaço por excelência da tradição. Em virtude da forte di-
mensão afetiva, de gratidão e da fidelidade que a alimenta,
a memória familiar garante integração, continuidade e so-
brevivência do grupo no tempo. A memória familiar garante
aos membros mais jovens um importante recurso para a sua
definição.
Guia para o futuro bem como lição sobre o passado, a história de
vida que a memória familiar transmite, torna-se um escudo prote-
tivo para os jovens, obrigados a confrontar-se com um futuro vago,
seja contra o desconhecimento, seja contra os eventuais acidentes
de percurso na luta pelo identificação.357

O passado, os fatos singulares, o pensamento comum for-


talecem e ritualizam a esfera social e particular da família.
No dizer de Halbwachs, a memória da família, ainda que se
transforme, retém, em grande parte, algo que é comum, algo
do grupo.
O que se transforma na memória da família? [...]. Do momento em
que ela encara do ponto de vista dos outros, assim como do seu,
os acontecimentos bastante notáveis para que ela os retenha e os
reproduza frequentemente, ela os traduz em termos gerais [...]. Mas
nós o temos dito, o quadro da memória familiar é feito de noções,

HALBWACHS, M. La memoria collettiva, p. 151.


356

LECCARDI, C., op. cit., p. 86.


357
190 João Carlos Tedesco

noções de pessoas e noções singulares e históricas [...], mas que têm,


além, disso, todos os caracteres de pensamento comum a todo um
grupo, e mesmo a vários.358

A passagem da memória individual para a coletiva se dá


nesse horizonte da experiência do vivido de exterioridade, de
anterioridade e de superioridade. A memória coletiva familiar
é um exemplo disso.
De qualquer maneira, quando a gente entra em uma família [...].
fazemos parte de um grupo onde não são nossos sentimentos pes-
soais, mas as regras e costumes que não dependem de nós, que
existiam antes de nós, que fixam nosso lugar.359

A memória coletiva possui mecanismos mediadores. No


caso específico da memória coletiva da família do colono, tão
evidenciada por idosos, a função do sobrenome e da parentela
promove a ação mediadora. A reiteração comemorativa, os rit-
mos cíclicos das histórias sagradas dão a noção mediadora da
eternidade da memória religiosa. Ambas as tipologias de me-
mória coletiva apresentam seus mediadores, seus notáveis,
seus guardiães, seus interlocutores, quem melhor propiciam
seus contatos.
Halbwachs analisa de modo especial o papel dos velhos.
Diz ele que o velho não
[...] se contenta em esperar passivamente que as lembranças se
despertem: ele busca precisá-las [...]. As sociedades, ao atribuir aos
velhos a função de conservar os traços de seu passado, os encoraja,
estimula a empregar tudo o que lhe resta de energia espiritual a
lembrar-se.360

O fato de existirem notáveis e/ou mediadores é porque


existe a possibilidade da mudança, do esquecimento, da
transgressão, do multifacelamento dos quadros de memória.

358
HALBWACHS, M. La memoria collettiva... p. 177.
359
HALBWACHS, op. cit., p. 147.
360
Id. ibid., p. 107.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
191

A memória precisa ser trabalhada. A construção da recons-


trução é parte inerente na memória coletiva. O autor utiliza
com propriedade o exemplo da releitura de um antigo livro de
infância para mostrar a esfera da mudança dos quadros de
memória e suas noções coletivas de referências das experiên-
cias vividas.
Segundo Halbwachs, é no seio do grupo familiar que po-
derá preponderar certa complementaridade entre lembrança
coletiva e individual. “É graças a esta memória que o grupo
familiar pode sobreviver coeso no curso do tempo e não obs-
tante as mudanças que o cercam, não acabar o sentimento da
própria unidade.”361 Habitam na família o caráter afetivo, a
capacidade de coesão, o senso de cumplicidade, o comum pa-
trimônio dos segredos, a normatividade da memória, o com-
promisso, a continuidade entre gerações.362 Isso tudo ficou
bem visível para nós nas entrevistas que fizemos com idosos.
Pareceu-nos que, para eles, as famílias perdem o sentido eco-
nômico e ganham um sentido de núcleo afetivo, de parentesco,
de aproximação, de consanguinidade, de valorização dos qua-
dros de compadrio. Talvez esse processo todo se dê em razão
das grandes perdas desses referenciais vividos no tempo e da
necessidade dos idosos de se afirmar pública e grupalmente
retomando e reconstituindo esses horizontes.
É por isso que a memória familiar, enquanto quadro, dá
garantia de uma memória de identidade, de valor grupal, de
uma lógica genealógica, de um tempo vivido em grupo, de
imagem de uma afetividade particular e normativa, de uma
propriedade psíquica, simbólica e moral inerente ao grupo.
A memória familiar compõe um quadro que ela tende a conservar
intacto, a qual constitui a armadura tradicional da família e a
natureza das noções coletivas que a procuram dominar o curso do

LECCARDI, op. cit., p. 75.


361

Id. ibid., p. 78.


362
192 João Carlos Tedesco

tempo. [...]. É, ao mesmo tempo, imagem e noção, capacidade de


reconstruir a imagem das pessoas e dos fatos.363

A família, como expressão máxima dos quadros de me-


mória, possibilita assegurar lembranças, ordens do tempo
pelas imagens e ordem dos sentidos pelas ideias; propicia a
mediação de imagens vividas em uma sucessão temporal em
relação à significação, aos símbolos, às lógicas de sentido. A
família possui um poder unificador tanto do quadro quanto
da memória; enfrenta com maior força o problema da anomia,
da tendência individualizante, de pluralidade de memórias,
da decomposição e reconstrução social, pelo fato de ser o gru-
po familiar um vivido histórico, hierárquico, afetivo, simbó-
lico, ético, religioso, moral, sexual e de poder diferenciado.364

Espaços e tempos do quadro coletivo

Não cansamos de dizer que a memória coletiva está in-


serida num espaço e num tempo. “O espaço é uma realidade
que dura [...].; não há, com efeito, grupo, nem gênero de ativi-
dade coletiva, que não tenha relação com um lugar, isto é, com
uma parte do espaço”. Porém, o espaço de que Halbwachs fala
não é só físico, mas também as imagens, as cores, os símbo-
los, as formas mentais coletivas e sensíveis desse espaço. “Há
tantas maneiras de representar o espaço quantos sejam os
grupos.”365 A seiva da memória é retirada de lugares. A comu-
nidade é um lugar privilegiado na produção desse alimento, é
uma totalidade estruturada que ganha sentido de uma iden-
tidade, mesmo em meio a conflitos e tensões.

363
HALBWACHS, M. Les cadres... p. 152-153.
364
Ver NAMER, G., op. cit., 1986; ver, também, FARRUGIA, F. La crise du lien
social. Essai de sociologie critique. Paris: L’Harmattan, 1993.
365
Id. ibid., p. 136 e 159.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
193

É comum, junto aos idosos, a referência ao passado como


recurso linguístico argumentativo e legitimador de algum
tipo de ação, de luta e de confronto. A memória é vida, sem-
pre carregada de grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
permanente evolução. Para idosos entrevistados, lembrança,
esquecimento, usos e manipulações, latências e revitalizações
fazem parte da dialética da memória. Pierre Nora nos diz
que a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido
no eterno presente; a memória emerge de um grupo que ela
une, o que quer dizer que há tantas memórias quantos grupos
existem; que ela é, por natureza, múltipla e desacelerada, co-
letiva, plural e individualizada.366
Não podemos esquecer que a vida cotidiana está na his-
tória e produz história. Espaços comunitários, a família, as
ruas, as praças, os viadutos, os monumentos por onde passa-
mos, o lembrar e o esquecer, o mostrar e o esconder, o deixar
vestígios e o jogar fora etc. fazem parte da dialética do coti-
diano. Lembrar, recordar, memorizar nem sempre são possí-
veis, nem sempre são fáceis e nem sempre são apreciados; há
momentos que podem causar constrangimentos. Em alguns
momentos, banalizam-se e pragmatizam-se os símbolos, os
objetos materiais, para que não caiam no esquecimento. Pro-
duzir imagem de um objeto e historiá-lo, dar-lhe significados
coletivizadores não é nada fácil, especialmente nos tempos
atuais, quando parece que a pós-modernidade ganha contor-
nos de legitimidade acadêmica!
Os lugares e os grupos são objetos de lembrança que ori-
ginam fluxos de memória e que denotam expressões de iden-
tidades sociais do informante. Através da memória, tempo e
espaço permanecem, são colocados à disposição. A mudança
do tempo, do espaço e do lugar/local (vivido) carrega e tam-

Id. ibid., p. 9.
366
194 João Carlos Tedesco

bém perde lembranças. “A população pobre também não se


deixa deslocar sem resistência, sem ressentimentos, e mesmo
quando cede, deixa para trás muitos traços de si mesma.”367
Os quadros intelectuais, por exemplo, fornecem as infor-
mações históricas e a reconstrução de categorias de inteligên-
cia (o lugar, o nome, a reflexão) para a rememoração. O qua-
dro transforma as lembranças, as quais mudam concomitan-
temente à alteração dos nossos quadros sociais de memória.
A noção de proximidade do tempo, de familiaridade, de vivido,
de impressão, de sucessão do mesmo fato (recorrência), de es-
tabilidade relativa, de utilidade grupal e efeito social é que
vai determinar o nível e a continuidade da memória social no
horizonte coletivo.

HALBWACHS, M. La memoria... p. 138


367
Capítulo 11

Memória e velhice
(fragmentos de empiria)
É comum, nas análises da dimensão biológica, psíquica
e social da memória, a afirmação de que os idosos relembram
mais, têm mais presente em sua lembrança “coisas do passa-
do” e menos “coisas do presente”.
As pessoas idosas, se sabe, passam quantidade sempre maior de
tempo falando e pensando no passado. Parece natural que sendo
e/ou sentindo-se excluídos do andar das coisas, sua vida se torna
mais gratificante e prazerosa, nos quais os eventos possuíam um
impacto mais profundo. Quando o futuro parece pouco promissor,
e o pensar é, inevitavelmente, acompanhado da ideia de morte,
os interesses regridem em direção aos anos passados. A pessoa
torna-se incapaz de lembrar eventos recentes e vive sempre mais
em um remoto passado como se uma sombra fosse colada sobre os
eventos recentes.368

Já falamos bastante sobre a correlação existente entre re-


cordação e esquecimento. Porém, é bom termos presente que
esse processo não é meramente biológico. A dificuldade de situ-
ar a recordação de maneira precisa no tempo, de localizar um
ponto de referência das coisas, o sentir-se distante no tempo
(cronologia extensiva) passado e também no do presente con-
duz a que o esquecimento se intensifique. Contudo, não pode-
mos esquecer a correlação entre memória e esquecimento de-
liberado (consciente e intencional, externa ou internamente).

LIDZ, 1986, apud COLEMAN, P. L’invecchiamento e i processi della memoria.


368

Roma: Armando, 2000. p. 22.


196 João Carlos Tedesco

Para muitas pessoas, ou fatos históricos, fugir do passado


em termos espaciais e de memória ajuda a viver e progredir;
assim como há um desejo de memória, há também um ódio
pela memória. O esquecimento permite a criação; é indispen-
sável ao presente como o é a recordação. Sem esquecimento
não haverá futuro. “Na ausência de memória, o esquecimento
define o homem da mesma forma que define a lembrança.”369
Diz Valery que a mente só existe graças à desordem da memó-
ria: “Graças a essa desordem, da ruptura da ligação cronológi-
ca, para o homem, são possíveis novas disposições.”
No campo político e no existencial (individual, grupal,
étnico e religioso), assim como a recordação pode ter uma par-
te de liberdade, o esquecimento também. Autores dizem que
é muito dificil esquecer aquilo que se desejaria não lembrar
mais. Dizer que não se deseja esquecer algo ou alguém signi-
fica, na realidade, estar recordando, imprimindo na memória
a imagem do que se pretende esquecer.
Não há nada mais que se imprime em nossa memória do que algo
que se queira esquecer. Valery, P. Quaderni. Milano: Adelphi, 1988.
p. 497. Algumas lembranças se tornam ideias fixas e possuem uma
tenacidade corrosiva das doenças incuráveis. Uma vez entradas na
alma, a devoram, não a deixam mais livre de pensar em nada, de
tomar gosto por qualquer outra coisa.370

É evidente que o recordar não é algo automático e me-


cânico para ninguém, independentemente da idade; requer
capacidade de percepção, de atenção, repetição, associação,
emoção, personalidade, sentimentos, utilidade, capacidade
dos órgãos sensitivos, dentre outros aspectos.371 Não obstante
a sua temporalidade, temos a convicção de que a lembrança,

369
TADIE, J, I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari: Dedalo, 2000. p. 213.
370
MONTPASSANT, G. apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 215.
371
Uma excelente análise fenomenológica sobre a correlação entre tempo e me-
mória está em PROUST, M. Alla ricerca del tempo perduto. Torino: Einaudi,
1981.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
197

ao atualizar a memória, faz dessa a representação da vida dos


sujeitos.372
A memória está relacionada aos aspectos que dão dina-
micidade à vida social e pessoal. Lins de Barros373 diz que
se deve falar em reconstrução do passado, não em resgate. A
complexidade da vida urbana, a inserção social múltipla do
indivíduo em várias subculturas, as situações e condições de
classe e gênero apresentam-se nas reconstruções do trajeto de
vida de cada indivíduo, que, dependendo de onde fala, define
um código de linguagem da narrativa da memória, determina
o seu lugar social e suas relações com o grupo doméstico.
Nas histórias de vida que tentamos fazer, percebemos
que os relatos se adensam nos momentos em que as pessoas
se recordam das mudanças na trajetória de suas vidas (casa-
mentos, mortes, nascimentos, memória de valores familiares
e de trabalho, seus papéis e lugares). Desse modo, não temos
dúvida de que são as histórias de vida em geral carregadas
de emoção que melhor ressaltam os conteúdos sociais da me-
mória familiar, permitindo descobrir as normas e os valores
transmitidos, os lugares de vida e as relações familiares.
Pela pesquisa de campo, percebemos que as funções pa-
ternas/maternas dos idosos, acrescidas da financeira,374 de-
marcam novas fronteiras funcionais dos idosos na família.375
Talvez até justifique a alteração de trajetória: ao invés de
sair, ficar. É nessa cumplicidade entre gerações que se estabe-

372
LUCENA, op. cit.
373
LINS DE BARROS, M. M. Densidade de memória, trajetória e projeto de
vida. Estudos Feministas, n. 1, 1997. p. 140-147.
374
Não é exagero afirmar que, em muitas famílias de colonos por nós visitadas,
a aposentadoria dos idosos é a maior receita da unidade, mesmo que gire em
torno de um salário mínimo. A aposentadoria e/ou pensão pela morte de um
dos cônjuges redefiniu relações de co-presença e obrigações entre pais, filhos
e netos no agrupamento familiar do colono. O pragmatismo de sua presença
reveste-se também para os “nonos” na perspectiva da autoridade, do poder,
de adotar estratégias para se fazer sentir e valer.
375
Ver nosso livro Memória e cultura...
198 João Carlos Tedesco

lecem utilidades, poderes, autoridades, afeições, invasões, in-


tervenções, assumindo papéis de socialização. No fundo, o que
está em jogo é o lugar da família nos novos papéis familiares
no meio rural. Lins de Barros diz que são muitos anos de vida
que representam vida vivida, pensada, mudada, projetada
durante anos. Daí a ideia mesmo de vivência no sentido de
conhecer o viver.

A afetividade na memória
Se pode sorrir, se pode sofrer, se pode morrer de
uma recordação.
Moustaki

A vida dos indivíduos está em relação contínua com os


objetos; há sempre uma ligação afetiva com esses, a qual pode
ser de atração, de indiferença ou de repulsão. Um fato, um
ser, um objeto que induza uma reação afetiva terá maior pro-
babilidade de memorização. Os bens simbólicos lembrados,
guardados, eternizados e narrados possuem uma dimensão
afetiva muito mais do que seu caráter objetal, a qual se ma-
nifesta em alegria, ou sofrimento, em felicidade ou tristeza,
muitas vezes, numa dimensão dialética.
Alguns idosos recordam mais facilmente as situações de
dor em correspondência/correlação aos momentos de alegria.
Diz Ribot que uma recordação “me torna triste num momento
de felicidade; uma lembrança alegre não me torna, de fato,
feliz em um momento de sofrimento”.376
Os sentimentos afetivos de memória expressam-se em
associação dialética. Tornou-se comum quando comentáva-
mos com os idosos sobre suas boas condições econômicas,
suas facilidades no espaço do trabalho na lavoura, o fato de

RIBOT, Th. apud TADIE, J. I.; TADIE, M. Il senso della memoria. Bari:
376

Dedalo, 2000. p. 161.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
199

estarem, para os migrados, “descansando” na cidade, estar


sempre presente a expressão da negatividade: “é, mas se tu
soubesse o que trabalhei eu”; “o quanto sofri!”; “isso eu guardo
(enxada, arado, serrote etc.) pra mostrar pra eles (netos) o
quanto as coisas hoje são fáceis e que, non se tribula mai, no!”
A memória afetiva é um sentimento, uma impressão e
uma sensação manifesta quando se reinvoca uma recordação.
Intensidade, autenticidade, circunstâncias, distinções, imagi-
nações, sentimentos e sensações expressam as características
e formas da memória afetiva se recordar.
Em geral, os idosos entrevistados expressam afetividade
romântica em termos de memória de objetos; fazem correla-
ções temporais com ambientes, tempos e vividos alterados de
bom para pior e vice-versa. Pensamos que a negação do sen-
timento expresso de memória legítima e justifica o sentido da
recordação (o bem-estar faz referência à ausência de dinheiro.
Os objetos técnicos – trator, uso de veneno – relembram e con-
trapõem o sacrifício das ações manuais no trabalho).
Essa negação carrega consigo também ambiguidades,
ambivalências e contraditoriedades. A passagem do imaginá-
rio negativo para o positivo (em termos de registro de vividos
e ações na natureza pelo trabalho, pela vida familiar e social)
não significa uma etapa de mera comparação na ótica da ex-
clusão, da dicotomia, da história cumulativa. Ao dizer que se
está “descansando” na cidade, faz-se referência à imagem do
trabalho pesado e contumaz no meio rural, mas, ao mesmo
tempo, reconstituem-se aspectos que esse descansar não pre-
enche, as negatividades que provoca no vivido de idoso. Quan-
do falavam que “agora estavam descansando”, as formas mais
em evidência de racionalização, para muitos idosos, eram: “tu
non sabe o quanto trabalhei na vida”, “quanto ó tribulato io”.
Pareceu-nos que a forma de legitimar o descanso se dá pela
sua negação e/ou contraposição. A correlação com tempos e
200 João Carlos Tedesco

ações diversos ganha repercussão, na consciência no idoso, na


perspectiva do sacrifício redentor de sua situação atual.
A recordação pode carregar consigo a sensação de passa-
do, mas também produzir uma lembrança do passado emoti-
vo novo no presente. Entendemos que a rememoração pode
produzir uma emoção presente. O desejo de querer esquecer,
a emoção provada no presente de fatos passados (melancolia,
romantismos, ufanismos, expressões laudatárias, ressenti-
das, etc., expressam isso!), não é mais uma recordação imagi-
nada da sensação que se provou no passado.377
Poderíamos fazer agrupamentos de lembranças expres-
sas por idosos na ótica de um passado de autodeterminação,
de enfrentamento de circunstância, não só do trabalho, mas,
também, aquelas que limitaram a identidade pessoal e so-
cial. Sobretudo as idosas, quando indagadas sobre algumas
estratégias utilizadas para se contrapor, para fazer valer pú-
blica e domesticamente sua importância, diziam que os espa-
ços eram muito restritos e limitados; ainda que existissem,
segundo elas, não rompiam com o essencial, que é a esfera
cultural. Tinham claro que isso tudo é fruto de elementos
socializadores a partir da forma patriarcal de organização
da família, da necessidade da maternidade (que, ao mesmo
tempo, libertava e oprimia), expressas também nos espaços
previamente definidos do trabalho, o qual contribuía para ali-
mentar a trajetória histórica de subserviência. Pareceu-nos
clara a existência de um discurso de submissão acompanhada
de princípios de estratégias e racionalidades internas, porém
com pouco resultado objetivo, pois, como dizem algumas ido-
sas, pouca importância elas tinham nos recursos (econômicos)
da família.

Apud TADIE; TADIE, op. cit., p. 174.


377
Capítulo 12
Ambiguidade de memória:
o laudatário, o ufanismo e os ressentimentos

Identidade e memória coletiva são representações de uma


origem e pertencimento grupal, espacial e, em parte, sanguíneo
(dimensão cultural e, muito pouco, biológica!), linguístico e cul-
turalmente diferente. A dimensão reificada desse processo pode
se dar tanto interna quanto externamente. Esse externo pode
ser manifesto pela exacerbação da diferença, como própria de
um certo grupo que viveu em determinado tempo e lugar. O pro-
cesso interno representa a absorção de uma série de práticas, de
crenças, significados compartilhados e creditados ao grupo, os
quais transcendem o fluxo da história e da mudança.
Para poder subsistir no tempo, a identidade deve ser transpassada
com os anos e com as gerações. Por quanto possa parecer paradoxal,
as identidades mudam. A identidade muda porque se transformam as
representações de seu conteúdo, porém permanece idêntico o sentido
de pertencimento, ainda se, num certo momento em diante, se pode
começar a conceber a própria identidade como diferente daquela dos
outros com os quais se pensava de ter uma identidade comum. Isso
é, não muda o sentido ou a necessidade de reconhecer-se como parte
de uma comunidade.378

Nesse processo de naturalização da identidade étnica, a


memória exerce um papel importante por meio da manifesta-
ção de símbolos evocativos de pertencimento (lembrar a sim-
bologia do germanismo na construção da ideologia nazista),
de seleção, de esquecimento, ou melhor, de uma construção
de memória em questão, de representações que são ativadas

MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 154.


378
202 João Carlos Tedesco

e provocadas num cenário em que existem simbologias de et-


nicidade e vontades manifestas de estabelecer diferenças.379
A dimensão épica e ufanista da memória étnica colabora para
fortalecer essas representações de suporte interno.380
As lembranças culturais servem a um grupo ou a uma
comunidade para radicar a sua própria existência no passado
e fortalecer, desse modo, a identidade presente. Nesse senti-
do, a construção que o presente faz do passado passa a ser im-
portante. Há, sem dúvida, retrospectiva e prospectivamente,
um uso e um abuso cultural da memória, os quais podem jus-
tificar ações agressivas ou de aceitação de grupos e indivíduos
(lembrar as guerras, os massacres étnicos, o anti-semitismo,
o conflito entre árabes e judeus, católicos e protestantes na
Irlanda, sulistas e nortistas na Itália). “É possível, porém, re-
cordando, afrontar as raízes.”381
Nos relatos de memória biográfica e/ou genealógica, bem
como de depoimentos orais, é comum, na literatura sobre imi-
gração italiana, a visão um tanto laudatária da vida da colô-
nia e do empreendimento colonial como um todo.
379
MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 155. Os autores definiram alguns
elementos que contribuem para a compreensão do complexo simbólico que age
sobre a imaginação de um grupo e que o faz se autoperceber-se como étnico.
São eles: a transfiguração da memória histórica como celebração do passado
comum, a sacralização do complexo institucional e normativo (religioso e ético),
que é a base de uma solidariedade comum e social, a língua; as relações de
descendência comuns, o território mitologizado da origem e da identificação
do mesmo com o grupo.
380
Lembrar a representação literária e narrativa que grande parte dos italianos
imigrantes no Brasil construiu em relação ao negro, ao caboclo e ao índio.
Esse processo nos faz lembrar, nesse momento, que estamos escrevendo isso
na Itália, da italianização da antinegatividade social, ou seja, grande parte
dos fatos negativos “que envergonham os italianos e a Itália”, como alguns
italianos mais idosos dizem, são atribuídos aos estrangeiros (geralmente afri-
canos e do Leste europeu) como é o caso de roubos, sequestros, assassinatos,
prostituição, pobreza, sujeira nas ruas e mendicância. Esse processo tende
a reforçar a ritualização da etnicidade, criando diferenças, discriminações,
ódios, indiferenças, repressão, temor de perda da identidade. Esse processo
não representa uma ação gratuita e meramente simbólica, pois essa provoca
e induz a ações políticas concretas e diferenciadas, etnicamente, em termos
de consequência e de aplicabilidade.
381
JEDLOWSKI. In:_______; RAMPAZI, M., op. cit., 1990. p. 27.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
203

O tempo da família e sua dimensão cíclica renovam-se


pelos nomes. Na análise de Eckcert,382 a disposição em trans-
mitir aos filhos e netos o prenome e o nome de família não
satisfaz, apenas, a um culto de uma tradição familiar, mas
está também diretamente referida à inserção da família em
sociedade. É através do sobrenome que se estabelece a rela-
ção da família com o domínio público da vida social. Porém,
o trabalho coliga-se com a dimensão histórica do nome. A es-
fera do trabalho (sacrifício, o ganho econômico e a redenção
social como decorrentes deste), da mobilidade espacial, da
vida familiar, do progressismo e dos vínculos comunitários,
envolvendo neste âmbito a dimensão religiosa, solidária e pa-
rental, criou uma espécie de pré-destinação étnica para a mo-
dernidade produtiva e econômica que se implantava no país.
Em nosso material empírico, armazenamos inúmeras pas-
sagens reveladoras dessa dimensão progressista, desse enqua-
dramento étnico pelo viés do pioneirismo, do desbravador, do
vazio para o preenchimento econômico e social, da vida ordena-
da, do trabalho contumaz, da racionalização e maximização de
fatores e de saberes ligados à terra, aos investimentos, às ino-
vações técnicas, ao domínio da natureza e à sobreposição étnica.
Sem dúvida, as falas dimensionadas por esses vieses pre-
cisam ser localizadas numa compreensão mais ampla, as quais
constituem, estruturam e dinamizam a vida camponesa, seu
ethos, sua busca de equilíbrio em meio a uma natureza de
pouca sobredeterminação humana, suas relações e seus desa-
fios perante o novo, as novas exigências espaciais, econômicas
e de convívio, a passagem do tempo e suas relações sociais
constituintes.
A compreensão dos discursos precisa estar em correlação
com universos próprios do contexto e dos elementos que iden-

ECKERT, C. Saudade em festa e a ética da lembrança. Estudos Feministas,


382

n. 1, 1997. p. 182-192.
204 João Carlos Tedesco

tificam uma cultura em mudança e interconexão e entrecru-


zamentos espaciais e temporais, ou seja, a especificidade de
relações de um grupo social que se diferencia pelo seu contato
(con)sequente com a terra, com o tempo cíclico, com o grupo
familiar, e uma estrutura moral que luta por se preservar se-
cularmente, com valores de reciprocidade, hierarquia, o uso
como um valor, etc. O discurso precisa ser visto num conjunto
de relações que prima pela complementaridade entre cultura/
sociedade, natureza física (terra)/trabalho, num horizonte de
relações induzidas e produzidas localmente.
Com isso, não estamos dizendo que a análise da orali-
dade deve ser meramente acoplada e justificada pelos seus
referenciais culturais; precisa, sem dúvida, ser problematiza-
da na medida em que dimensiona excludência, discriminação,
centralização, enquadramentos, vanguarda e projeção pessoal
e/ou étnica, as quais fazem perder de vista processos sociais,
atores e situações, contradições e conflitos que se constituem
a partir da cultura de contato. Essa tendência ufanista, se-
gundo o viés do progressismo e do sacrifício, alerta-nos para a
necessidade de problematizar essa representação contida no
relato de memória. Sabemos que, no relato oral, o significado
não se autocontém, ou melhor, a realidade não se apresenta a
si própria; ela possui um conteúdo de narrativa que preexiste,
que é contextualizado, complementado, problematizado. As
lembranças e os esquecimentos poderão, assim, atribuir sig-
nificados à memória na medida em que possamos fazer asso-
ciações temporais e espaciais, envolvendo formas de condução
da vida, de estilos pessoais, de estratégias e conflitos.
Na visão de Maestri,383 utilizar a memória como dado
histórico, nesse sentido, significa ir além desse enquadra-

MAESTRI, M. A travessia e a mata: memória, mito e história na imigração


383

italiana para o Rio Grande do Sul. In: SULIANI, A. (Org.). Etnias & carisma.
Porto Alegre: Edipucrs, 2001. p. 761-781.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
205

mento ufanista e parcial da consciência de alguns indivíduos


(depoentes) e de alguns analistas. É importante localizar a
memória num contexto histórico mais complexo e relacional
de ações e de significados. No fundo, há o desejo de uma ma-
nifestação de um aprendizado de vida, anos de vida vivida, de
desejo de conhecer o viver e o vivido vivenciado, de não se dei-
xar levar pela dimensão atual do movimento rápido das coi-
sas e de sua superação, alteração, fragmentação e descarte.
A corrente de memória, seja na ótica da nostalgia, do ufa-
nismo, seja da dimensão religiosa, do sacrifício etc., contribui
para engajar um ethos no agir social e cotidiano presente, as-
sim como para redefinir e cristalizar laços sociais internos e
externos, juntando-se ao surgimento de injunções sociais re-
constituídas pelas novas dinâmicas. Porém, trabalho e vida
familiar são centralidades que, mesmo redefinidas, permane-
cem como símbolo social e como racionalizações de estratégias
ético-morais e econômicas.

O sentimento do vivido em temporalidades


entrecruzadas
Acreditamos que existam tempos em que a cultura, atra-
vés da mediação do trabalho, incorpora na natureza e apre-
senta-se social e grupalmente. Os dias santos – hoje reduzi-
dos –, o tempo de colheita, de caça, o período certo de matar
porco para que o salame não estrague, de podar as parreiras,
as roseiras, o desvio ou a adaptação de tempos de plantas e de
colheitas em relação aos períodos de maior chuva ou de sol,
dentre outros, demonstram que o mundo natural, para idosos
colonos, possui variações de tempo. Não podemos nos esque-
cer de que a vida do colono é guiada essencialmente pela sua
relação com a natureza, com as estações, com a mutação dos
206 João Carlos Tedesco

tempos e seu sentido cíclico, com as horas dos dias e parte da


noite. A criação de animais e a produção agrícola exigem uma
visão cíclica do tempo. Esse processo auxilia na constituição
de um imaginário de reprodução em seu vivido: reprodução
de culturas produtivas e de cultura étnica, de reprodução de
saberes e da propriedade da terra, da família e das gerações
sucessivas, de patrimônios e de linhagens. O seu ethos consti-
tui-se nessa dimensão de tempo natural e cultura social.
É desse modo que os idosos reconstroem suas vidas, re-
lembrando a trajetória familiar e estabelecendo na lembran-
ça o espaço, a representação e as relações internas da família.
Ambos sofrem a marca do tempo. Reconstroem a história do
modelo familiar por meio de caminhos já marcados por lem-
branças suas e de seu grupo familiar.384
É nesse sentido que a memória de tempos vividos, a tra-
dição, os costumes antigos, a sua preservação e origem pas-
sam a ser elementos antropológicos presentes no universo de
relações e de imaginário dos colonos. Essas dimensões podem
organizar a reprodução do patrimônio, a transmissão da pro-
priedade, a maneira de pensar a família, a casa, a roça, o
tempo e o espaço. Muitas vezes, esses processos apresentam,
como diz Bourdieu, uma estratégia ou uma transgressão de
princípios ordenadores da modernidade presente, ou, então,
apresentam-se como uma recriação normativa e atualizada
da tradição para fazer frente às condições sociais de produção
e reprodução.385
O passado cultural é importante, além de outros aspectos,
para definir espaços, autoestima, reafirmação social tanto no
espaço regional quanto no local, não com a intencionalidade

384
LINS DE BARROS, M, M. Memória e família. Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 3, 1989. p. 35.
385
CARNEIRO, M. Memória, esquecimento e etnicidade na transmissão do pa-
trimônio familiar. In:_______ et al. Campo aberto. O rural no estado do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1998. p. 273-293.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
207

de restauração sociocultural, o que seria cair numa alteridade


unidimensional ou numa homogeneidade sem conceber a di-
versidade e a multiplicidade de elementos intervenientes, mas
de reencontrar valores que promoveram atitudes, projetos de
vida, integrações, configurando padrões de vida, traumatismos
culturais frutos de mudanças significativas no grupo, alteran-
do o mundo da vida e a ordem dos valores existentes.
Capítulo 13

A objetualidade de memória grupal

Muitos objetos estão unidos inseparavelmente à memó-


ria, cuja duração é, em geral, o tempo de uma vida. Não re-
passados a outras gerações, tais objetos perdem sua razão se
desvinculados de seus possuidores. Valores sentimentais es-
tão unidos à memória, ligados a uma figura familiar a quem
originalmente pertenceu o objeto; ambos se mesclam com va-
lores sociais que os classificam como indicadores de distinção
e refinamento. Atravessando gerações e cruzando temporali-
dades, os objetos de memória vão adquirindo outros sentidos
na sucessão temporal, mantendo, no entanto, a referência
constante à sua origem.386
Os objetos evocam um passado e promovem uma corres-
pondência desse passado com um espaço. O espaço de casa,
das atividades agrícolas e seus instrumentos, considerados
no tempo ultrapassados – mas que ainda são guardados –, e
utensílios de uso comum nas atividades cotidianas formam
uma espécie de museu de família; são “guardados”, geralmen-
te, no porão da casa, no galpão e/ou no quarto do idoso. Em
geral, são objetos ricos de significados, pois expressam noções
de sacrifício, propriedade, bonança, modernização..., sempre
em correlação temporal entre o período de existência/utilida-
de com o tempo presente de inexistência e, portanto, de subs-
tituição. Da realidade material, esses objetos deixam lugar à
realidade imaterial, imaginária; transportam, com o tempo e
com as correlações do presente, novos valores e significados,

MAZUCCHI FERREIRA, op. cit.; ver, também, LUCENA, op. cit.


386
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
209

dependendo das formas, das possibilidades e das funções sig-


nificativas que lhes possam ser impressas.
Não há dúvida de que, ao lembrar, o sujeito refaz o pas-
sado no presente, dá novas moldurações às memórias e as faz
interagir espaciotemporalmente. Na visão de Mazzuchi Ferrei-
ra, é justamente essa moldura social que é trazida à cena na
rememoração, seja nas casas de outrora, seja em imagens foto-
gráficas ou em artefatos rememoráveis. Esses elementos circu-
lam em ritmos que cadenciam a vida humana e não podem ser
vistos como um corpo em si, mas sempre situacionalmente. Es-
ses vestígios passam a ser importantes porque revelam vividos
práticos, nexos e significados, funcionando como armas contra
a desfiguração social dos velhos, contra as fortes alterações do
novo, do presente sobre o passado e do futuro sobre o presente.
As imagens espaciais desempenham um papel na memória
coletiva. O lugar ocupado por um grupo não é como um quadro
negro sobre o qual escrevemos, depois apagamos os números e
figuras. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo
tem um sentido que é inteligível apenas para os membros do
grupo. Seguindo com as ideias de Halbwachs, ele nos diz que
imóveis apenas o são aparentemente, já que as preferências e os
hábitos sociais se transformam e, se nos cansamos de um móvel
ou de um quarto, é como se os próprios objetos envelhecessem.
É verdade que, durante períodos muito longos, é a impressão de
imobilidade que predomina e que se explica, ao mesmo tempo,
pela natureza inerte das coisas físicas, pela estabilidade relati-
va dos deslocamentos ou das mudanças de lugar, e as modifi-
cações importantes introduzidas em certas datas na instala-
ção e na mobília de um apartamento assinalam tantas épocas
na história da família.387

MAZUCCHI FERREIRA, op. cit., p. 132.


387
210 João Carlos Tedesco

Memórias de quadros simbólicos

Os objetos de memória são os produtos materiais da ati-


vidade humana que adquirem um alto valor simbólico pelo
fato de condensarem algumas representações importantes
para o passado individual, grupal, comunitário, étnico…
A noção de pertencer está presente no significado do ob-
jeto de memória; concreta a identidade coletiva com as di-
mensões espacial e temporal, testemunho de uma história
pessoal ou coletiva de significação intensa.
Já falamos que muitos dos nossos entrevistados revelam
um passado de profundos vínculos materiais e simbólicos com
o religioso. O padre, sua presença presente ou sua pouca pre-
sente presença, fez surgir formas de manifestação do credo
religioso, muitas delas próprias do ambiente vivido de ser co-
lono, dos limites físicos e da não completa ingerência sobre
os processos naturais que envolvem os produtos produzidos,
sobre a vida e sobre a morte de homens, bichos e animais.388
É muito comum encontrar na literatura sobre imigração,
principalmente na que enfoca memórias biográficas, frag-
mentos de lembranças de um tempo e um espaço no além
-mar, como se, nesse espaço, o misterioso e outros imaginários
e simbologias normalmente negativas se fizessem presentes.
O mar, a floresta – mata virgem –, os bichos, os humanos (ín-
dios e negros), a mistura entre regiões da própria pátria-mãe
e de outras etnias já vindas, a propriedade da terra etc., tudo
produzia imaginários, que hoje são reproduzidos pela esfera
da epopeia, do enfrentamento, de uma marca histórica e ge-
nealógica.

RASIA, J. M. et al. Representação da morte entre agricultores da Colônia


388

Santo Antônio de Ijuí (RS). Humanas, Curitiba: UFPR, n. 4, 1995. p. 73-118.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
211

A genealogia de um passado coletivo

A memória social do grupo constitui-se num potencial que,


à medida que é acionada, substancializa-se em matéria-pri-
ma com que são constituídas e atualizadas as práticas do
parentesco, as quais, por sua vez, são as responsáveis pela
seletividade da memória, bem como pelas suas diferenças de
gênero na lembrança.
A genealogia é uma árvore plantada em determinado
tempo, lembrada segundo uma referência temporal em que é
possível uma lógica na qual tal referência seja não só contada,
mas provada pelos vínculos temporais e pelos marcos signifi-
cativos.389
Segundo alguns analistas, as mulheres “humanizam”
a memória genealógica, por meio da necessidade emocional,
sentimentos e ligações entre as pessoas (compadrio, paren-
tesco), affaire familiales, relações interpessoais, preferências
para o vivido e a atemporalidade (reflete certa ausência de
noção de tempo); oscilam entre esposas/mães e seus papéis
profissionais; manifestam conflitos entre o que elas interio-
rizam em seu quadro de atividade fora do lar e o que lhes foi
inculcado no curso de sua socialização primária.390
No ethos de colono da região, a diferenciação prática e
simbólica entre gêneros não pode ser entendida meramente
em termos dicotômicos; dá-se na esfera da complementarida-
de. Aquilo que parece ser dicotômico, no fundo, numa análise
mais apurada, poderia ser percebido pelo viés da integração.
Lembrar fatos e situações específicas de seu espaço de gêne-
ro não significa que as relações entre si, na família, estejam
desintegradas. O que há é uma unidade na diferenciação que

389
WOORTMANN, E. Árvore da memória. Anuário Antropológico, n. 92, 1994.
p. 113-131.
390
GIRON, L. S. Da memória nasce a história. In: A memória e o ensino de
história – Anpuh, Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000. p. 23-38.
212 João Carlos Tedesco

promove uma complementaridade hierárquica. Fragmentar


para unir é próprio da vida camponesa; alguns precisam sair
para permitir o fortalecimento da unidade e de sua caracte-
rística básica: ser colono.
A casa é o elo integrador. Ela e os seus objetos internos e
externos ligam-se à noção de enraizamento, de pertencimen-
to, de rede de reciprocidade e sociabilidade, num mundo de
vida cotidiana, de convivência, de cenário dos ritmos onde a
lógica e a simbólica da terra, no caso para os camponeses,
interligam-se formando uma totalidade identitária de vida
rural. As casas são testemunhos edificados do grupo familiar
de sua dimensão mais íntima, dos ritmos diários e dos rituais,
das rupturas e descontinuidades e da sucessão de gerações.
Entendida como espaço simbólico, a casa passa a ser integra-
da ao indivíduo através de suas vivências, sendo elemento
importante na manutenção da identidade social do idoso.
Halbwachs já dizia que a memória tem a característi-
ca de operar quando ligada e referida a aspectos concretos,
como, por exemplo, objetos, lugares, pessoas, aspectos esses
passíveis de transfiguração significativa e simbólica, ou seja,
ser ou servir de testemunho, de figuras-chave do processo de
reconstrução do passado. Os eventos de memória, apesar de
suas implicações temporais significativas no horizonte dos ri-
tuais e das narrativas (como já visto na relação entre memó-
ria e narração), são ou podem tornar-se figuras de lembrança,
pontos de referência nos quais o presente se legitima, reinvo-
cam sua existência e temporalidade passada.
Os eventos de memória são figuras, símbolos, represen-
tações culturais da lembrança que possuem eficácia, capaci-
dade de evocação e de coesão. As festas de família, ainda que
fragmentadas temporalmente, as festas de cunho religioso,
os rituais culturais (alimentação, vestimenta, vida familiar,
de expressão dialetal – lembro aqui a Semana Italiana de
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
213

Serafina Corrêa, na qual todos devem, cotidianamente, falar


o talian), dentre inúmeras outras, são expressões disso. O
poder evocativo e simbólico do evento de memória não se dá
no sentido da representação do passado, mas do/no que pode
produzir temporal, cotidiana, cultural e significativamente
no presente.
Assumir sentido no presente, exprimir a dimensão tem-
poral passada e (re)significar o presente individual e coletivo
é o papel dos eventos de memória; sua transtemporalidade e
multitemporalidade justificam-se enquanto for capaz de pro-
duzir pertencimento social e cultural aos seus membros. Hal-
bwachs já dizia que a permanência da memória, de grupos
só se efetiva quando for capaz de transmitir/produzir signi-
ficado(s) ao coletivo. Os eventos necessitam de história e de
simbologia para alimentar e se fazer significativos.
As festas de famílias (de “sobrenomes”) necessitam mos-
trar uma genealogia comum, ainda que fragmentada e rom-
pida temporalmente (o limite do “para trás” e uma história
espaciotemporal também comum, no caso da Itália para o
Brasil para descendentes de italianos). Os eventos necessi-
tam de narração, do recontar. A presença das pessoas nas
festas de famílias, as gerações diferentes, os vínculos sociais,
econômicos e políticos diferenciados narram processos sociais
e temporalidades que, ainda que dispersas, possuem signi-
ficados aproximativos; dimensões temporais, ainda que não
explícitas, transformam-se em eventos de memória coletiva.
A homenagem costura simbolicamente discursos, objetos,
tempos e espaços que simbolizam uma trajetória e sintonizam
um mito fundador que reafirma os valores do grupo. Agregar,
unir, religar, reestruturar a lembrança, descontinuar, relem-
brar trajetórias, dramatizar as transformações e mudanças,
tudo isso é forma de atualizar a memória do tempo do grupo.
214 João Carlos Tedesco

Eckert391 diz que a emoção em torno da saudade, construí-


da como um símbolo, manifesta a coexistência alhures de um
grupo com valores comuns, reordenados como ideais num de-
sejo de continuidade. A festa nasce motivada pelo desejo da
sociabilidade, realimentando o trabalho de memória coletiva,
num jogo de reciprocidade pertencente a um tempo cíclico.
Não temos dúvida em afirmar que, para os idosos en-
trevistados, a família é vista como um monumento simbólico
e, ao mesmo tempo, possui seus micromonumentos na esfera
do lugar/local, do vivido, dos sentimentos e das pertenças. O
sobrenome, a terra para o imigrante, a reprodução domésti-
ca, a casa, os objetos “sagrados”, ou seja, aquilo que marcou
presença contínua no tempo vivido e que pressiona para a
conservação em meio à grande tendência de esquecimento e
de alteração.392

Exteriorização pública e local de memórias


coletivas e individuais
A fotografia não pode suscitar outra coisa que não
uma devoção alimentada da sua função social.
Bourdieu

Halbwachs estudou a relação espaciotemporal que faz


aparecer a memória e, especialmente, a memória coletiva.
Afirma que, do ponto de vista temporal, a memória reinvoca
um fato que coloca em algum ponto do espaço. Os lugares de
memória são espaços que, como diz Nora, se condensam às
imagens de um passado carregado de significados.

ECKERT, C. Saudade em festa... p. 182-192.


391

Numa perspectiva mais ampla, tanto Le Goff quanto Nora afirmam que a
392

história se vê pressionada em preservar a memória coletiva, havendo como


que uma histeria social que apela pela sua preservação.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
215

Os lugares de memória podem ser tanto reais quanto


imaginários. No caso do primeiro, quando há uma identifica-
ção espacial, necessita de algo que ocorreu; o segundo é fruto
de uma invenção, de uma atividade imaginária do pensamen-
to coletivo.393 Os lugares de memória são pontos, espaços físi-
cos de significados “totais”, evocativos de sentido de perten-
cimento dos indivíduos a um determinado grupo, sobretudo
espaços de memória representativos da autoridade e do poder
de alguém ou de grupos sociais.
A “aceleração da história”, como diz Nora, ainda mais na
contemporaneidade, com as tendências homogeneizadoras e
massificantes da globalização, obriga a registrar, a guardar, a
refugiar a memória. Para o autor, a intelectualização da me-
mória pela história precisa resgatar o vivido em sua dimensão
material, funcional e simbólica. Entrelaçadas, essas dimen-
sões instituídas pela história buscam resgatar as origens, os
sentidos e intenções que moveram determinados atores, as
estratégias, as condições de vida, os resíduos, as trajetórias
de agrupamentos familiares, os sentimentos íntimos rituali-
zados em comum.394
A história local, resgatada pela memória, pode se servir
da “evidência local” viva, manifesta oralmente, para possibili-
tar a compreensão de normas sociais, de costumes e tradições;
permite contrapor referenciais já existentes, unir informações
dispersas, valorizar o vivido, conservar, criticar e socializar
formas do pensado passado.
Os idosos entrevistados recordam algo de seu espaço ori-
ginal na colônia-velha, espaço-mãe de sua fonte migratória;
393
Halbwachs estudou os lugares santos na Palestina e, por correspondência, a
sua gênese no imaginário cristão e medieval. O autor relata que muitos lugares
foram “adaptados” depois das Cruzadas para responder às expectativas que
se haviam criado em séculos anteriores. Ver HALBWACHS, M. Memoria di
Terrasanta. Venezia: Arsenale, 1988.
394
Ver DE DECCA, E. Memória e cidadania. In: O direito à memória: patrimônio
histórico e cidadania. São Paulo: SMC, 1992.
216 João Carlos Tedesco

não dizem quase nada do que ouviam falar de seus pais e/ou
avós sobre a Itália. A fonte de sua memória é o espaço onde
viveram. Aspectos desse vivido manifestam-se como produto
desse espaço e como manipulação e presença de objetos, fatos
e representações desses no vivido em família, no trabalho e
nas atividades de visualização e de contato público, proces-
sos esses reconstrutores do passado e capazes de justificar, na
história, sua presença e seu vivido extemporâneo ao presente.
A rememoração de alguns fatos, relegando outros ao in-
significante e/ou esquecimento, cria imagens e produz senti-
dos que podem ser ideologizados, particularizados, manipula-
dos pelas circunstâncias, enquadrados pelo material fornecido
e, geralmente, legitimados no vivido, por meio da experiência.

Temporalidades contínuas
A memória é a continuidade do passado num
presente que dura.
Ferrarotti

O tempo histórico e o contexto social encontram-se, ree-


laboram e resgatam significados de identidade cultural a par-
tir das exigências e necessidades do presente. A não imutabi-
lidade da tradição no passado e no presente, sua transmissão
ou seu esquecimento inter ou intragerações podem ser relati-
vizadas em termos de significados por diferentes ou por idên-
ticos grupos sociais. O caso, por exemplo, do dialeto vêneto
ou de outro qualquer, dos nomes que balizavam as diferenças
regionais entre italianos e entre esses e os brasiliani, elemen-
tos que sempre foram “marcas de etnicidade”, são acionados
por alguns e, por outros, completamente esquecidos. É assim
que Halbwachs fala de lembrança como reconstrução do pas-
sado, realizada com a ajuda de dados tomados do presente e
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
217

elaborados em outros lugares, em outras circunstâncias, por


outras reconstruções feitas em épocas anteriores, nas quais a
imagem do tempo antigo já é algo bem alterado.
Em correspondência a isso é que idosos entrevistados
fragmentam a memória relembrando o feixe de trajetória
familiar e estabelecendo, na lembrança, o espaço familiar, a
representação da família e suas relações internas marcadas
pelo tempo. Há uma escolha e uma percepção de relações que
integram e de outras que desintegram, incluindo nesse hori-
zonte netos ou, até mesmo, algum filho.395 Estar no centro ou
na periferia do grupo doméstico depende da trajetória pessoal
no seio familiar. Esses processos todos estão presentes nos
relatos, definindo a centralidade ou a periferia dos idosos no
grupo doméstico, bem como sendo referenciados, em muito,
na orientação interna dos fatores de herança material de um
passado não muito longínquo e do mais recente.
Ferrarotti, falando sobre temporalidades, insiste na ques-
tão da ligação entre cotidiano, experiência e memória. Diz o au-
tor que palavras, narrações, autobiografias, comportamentos
cotidianos não possuem só valores práticos e instrumentais,
e, sim, um grande valor afetivo. O abandono da importância
das práticas cotidianas, o fato de deixar cair à insignificância,
poderá ocasionar no indivíduo a perda da capacidade de reco-
nhecimento no tempo e também de sua identidade e de sua
tradição.396
Para Ferrarotti, a função social da memória, atualmen-
te, está seriamente comprometida. As transformações sociais
parecem querer cortar as raízes dos indivíduos e dos grupos
para poderem se firmar. A racionalização da vida parece re-
clamar, como condição essencial, a liquidação dos valores co-
munitários da tradição, considerados como meros resíduos

LINS DE BARROS, M. M., op. cit., 1989.


395

FERRAROTTI, F. L´Italia tra storia e memoria. Roma: Donzelli, 1997. p. 25.


396
218 João Carlos Tedesco

do “idiotismo rural”.397 Na análise crítica do autor, a memória


está em perigo; o fio da tradição está se rompendo; a situação
do cotidiano do mundo contemporâneo está imersa numa con-
dição de estranheza com o próprio passado, uma situação em
que, no presente, não é valorizada nenhuma correspondência
com formas de vida anteriores. A memória está em perigo por-
que não consegue dar continuidade às duas dimensões tem-
porais passado e presente, porque o passado foi racionalizado
pela história, foi alojado nos textos de história e nos museus;
porque perdeu a ligação vital com a prática da vida cotidiana
e está sendo transformada em conhecimento científico do pas-
sado, como realidade externa.
A cultura de pertencimento quer fazer frente à tendência
da memória de ser sempre menos ligada ao passado e sem-
pre mais distorcida e insignificada no presente. As dimen-
sões planetárias das imagens, o instantâneo na informação,
a maior “individualização do destino” (como fala Canclini), a
necessidade constante de se inventar outras relações com a
realidade reduzem o potencial de pertencimento que a me-
mória poderia apresentar e ser recurso e critério para pen-
sar o presente e colocam em conflito os elementos básicos que
articulam as relações entre memória e identidade: o espaço
e o tempo. “Pois que as condições contemporâneas parecem
romper com os liames entre memória e identidade, nos coloca
defronte ao espectro de uma humanidade sem memória e sem
identidade.”398
Na vida cotidiana de idosos no meio rural, os espaços
da natureza revelam polaridades e sociabilidades convencio-
nadas por tradição/modernidade, num jogo de opostos entre
saberes, valores, significados, sensibilidades. Percebemos
que bens simbólicos se transmitem, acima de tudo, pela co

FERRAROTTI, op. cit., p. 33.


397

MATERA, V.; FABIETTI, U., op. cit., p. 31-32.


398
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
219

-presença. Os idosos querem ser e estar no vivido de gerações


posteriores. A ida para a cidade dificulta os vínculos da pos-
sível transmissão; é uma história que fica reduzida apenas à
dimensão da consanguinidade.

Desejo de transmissão, de experiência


e de visibilidade
Reemergir de um passado que foi apagado é
muito mais difícil que lembrar coisas esquecidas.
Le Goff

Marc Augé nos diz que o espaço coletivo é também tem-


poralizado, pois é carregado de valores simbólicos; é portador
de identidade, pela qual os indivíduos se reconhecem e se de-
finem (ideia de Halbwachs); de relações que vinculam indiví-
duos e história, pois seus membros se encontram ou expres-
sam traços do passado. Desse modo, o espaço coletivo é três
vezes simbólico: o das relações de cada um consigo mesmo,
com os outros e com um passado comum.399
Malgrado a possibilidade de memória comunicativa, sin-
gular e cotidiana informal do indivíduo, é uma exigência da
sociedade institucionalizar normas, valores e recordações que
tenham como base a narração sacra, mitológica e a fonte do-
cumental (histórica). Simbologia e racionalidade, nesse hori-
zonte, unem-se e fornecem as bases para a memória histórica,
cultural e societal.
Já falamos que há uma estreita correlação entre memó-
ria e experiência. Esta última, ou daria para dizer ambas, na
concepção de Benjamin, faz parte de sociedades com maior

Ver AUGÉ, M. Storie del presente. Per una antropologia dei modi contempo-
399

ranei. Milano: Il Saggiatore, 1994.


220 João Carlos Tedesco

consciência coletiva e pertencimento, típicas da pré-moderni-


dade (como bem analisou também Dürkheim). Benjamin uti-
liza o termo “vivência” para substituir a noção de experiência
e sua desterritorialização na sociedade capitalista. Como já
vimos, segundo Benjamin, as vivências são frágeis, cristali-
zam uma reprodução do tempo e das ações sobre/no mesmo
veio do automatismo e da ausência de temporalidade (por-
tanto, aistórica) e de evocação. As ciências sociais e humanas
são instigadas a compreender esses processos, a produzir co-
nhecimento histórico-social de uma memória/vivência (e cau-
sadora dessa), de uma memória-desesperança, uma fruição
intensa em termos narrativos e de reprodução histórica.400
Diz Mazzucchi Ferreira401 que é na vida cotidiana, no vi-
vido, que as identidades se constroem e se afirmam, e é das
coisas e das relações do passado que os velhos se nutrem. É
nesse vivido, nessa trajetória social vivida com os “próximos”
que se constitui o “eu” individualizado, fruto dos papéis so-
ciais assumidos. A identidade social da família fundamen-
ta-se nas ideias de desempenho e de esforço pessoal para o
estabelecimento de sua história. Em ambas as situações, o
importante é a ideia de transmissão de bens simbólicos às
gerações seguintes, procurando-se, em ambos os casos, situar
na família o lugar dessa passagem, fazendo de cada descen-
dente o alvo e, ao mesmo tempo, o veículo da preservação dos
valores familiares.402

400
As narrativas de memória poderiam ser incorporadas ao discurso das ciên-
cias sociais e humanas no sentido da análise discursiva (hermenêutica), da
substituição do conteúdo, da localização temporal (contexto) da(s) visão(es)
de mundo e da comunicação, das ordens dos tempos (mudança e duração das
formas de existência social).
401
MAZZUCCHI FERREIRA, M. L. Memória e velhice: do lugar da lembrança.
In: LINS DE BARROS, M. M. (Org.). Velhice ou terceira idade? Estudos an-
tropológicos sobre identidade, memória e política. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
p. 209-221.
402
Idem.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
221

Ligar os tempos, as gerações e chamar para o presente


mundos congregados e personificados alimenta a importância
de que um pouco dos idosos esteja presente e sobreviva no
mundo dos netos; manifesta o tempo cíclico (próprio do mun-
do do colono), uma referência temporal que, mesmo alterada,
circula sobre si mesmo, completa-se e continua. A imagem
fornece o caminho da memória, a “imagem de como era uma
vez”, as vestes, os penteados, o lugar e a posição social de cada
um, da paisagem, “do que ainda tinha”.403
As fotos dizem o que é de verdade, afirmam a realidade
do passado e documentam a maneira de olhar o mundo. Os ne-
tos solicitam a presença dos “nonos” para serem fotografados;
querem mostrar aos seus no futuro que fizeram parte de um
tempo, de uma história comum, de uma lembrança familiar.
A criança, mais que qualquer outro personagem, sintetiza na sua
imagem a imagem da família. Das poses demoradas das fotos
antigas, às tentativas modernas de captura do instantâneo das
emoções, a criança aparece sempre como um marco de referência
familiar. É ela o centro e a razão de ser da família. Através dela,
fala-se de tradição e de renovação, de laços de sangue e de afeto.404

Temos a convicção, pelas informações obtidas nos conta-


tos com idosos, de que a foto, em seu cotidiano, passa a ser um
agente sociocultural de transformação que ocorre no espaço
familiar, expressão da constituição de ambientes, espaços e
funções novas. Não há dúvidas de que há sempre um forte

403
Não nos interessamos aqui pela questão da veracidade, objetividade/subjetivi-
dade das fotos, mas, sim, tentamos refletir sobre sua comunicação simbólica, os
sentimentos no vivido dos nonos; manifestações essas, em geral, direcionadas
à vida camponesa, que se articula com a terra, com a sociabilidade dos “seus”
(os camponeses) na comunidade (nos momentos de festas e de rituais religiosos
públicos) na família (sentido de agrupamento dos membros reunidos e seus
rituais alimentares). Trabalho, família e sociabilidade, fragmentados e unidos,
em várias dimensões e ações, constituem o tripé expressivo, comunicativo da
ilustração fotográfica. Atualmente, encontram-se fotos de nonos com netos/
bisnetos pequenos. Esse processo é revelador de co-presença, coabitação e de
redefinições de funções dos primeiros nos agrupamentos familiares.
404
LINS DE BARROS, 1989, op. cit., p. 40.
222 João Carlos Tedesco

envolvimento subjetivo do sujeito fotografado, do fotógrafo


e dos observadores. É desse modo que tanto Le Goff quan-
to Bourdieu405 e Barthes, que analisaram as dimensões so-
cioculturais e seu uso socio-histórico, seja como documento/
monumento, seja como bem simbólico e seu uso como valor
de classe, colocam a ineliminável ambiguidade, indecifrabili-
dade e impossibilidade da onipresença e da significação única
da imagem, do conteúdo e da intencionalidade fotográfica e
fotografada.
Alguns autores vinculam a foto a um rito social, a um
instrumento de poder, uma relação simbólica funcional, nos-
tálgica, comovente, romântica com o passado, uma espécie
de analgésico moral, de extemporâneas emoções, algo que
permite a canalização e a democratização da imagem à lógi-
ca do consumo, à dialética satisfação/necessidades de novas
imagens (simulacros e substituições da realidade). “A capaci-
dade da máquina fotográfica de transformar a realidade em
alguma coisa de belo provém da sua relativa fragilidade como
meio para transmitir a verdade.”406
Já falamos que, nas nossas entrevistas, era muito fre-
quente a necessidade dos idosos de recorrer ao auxílio externo
para melhor dimensionar a recordação, para dar-lhe localiza-
ção espaciotemporal e ressignificá-la. As fotos são expressão

405
Bourdieu, analisando esse processo nos anos 1960, fala no uso e na reprodução
de massa da fotografia, vinculando-a a um sistema de disposição inconsciente,
histórico e significativo (habitus) de classe. O autor aprofunda e identifica
possíveis motivações psicológicas da fotografia: proteção contra a angústia da
passagem do tempo e de suas consequências corporais; possibilitar relações
afetivas e comunicativas com os outros; transferir prestígio pessoal (registro
de viagens, rituais de passagem sociais, culturais matrimoniais, vitórias…)
e distração. Para além das motivações psicológicas, os âmbitos econômico/
sociais e culturais estão presentes no uso instrumental da fotografia. Bourdieu
desenvolve essa questão junto a operários, camponeses, profissões médias
variadas e conclui que a fotografia é expressão de um ethos de classe, é um
símbolo e objeto material representante da pequena e média burguesia.
406
SONTAG, Sulla apud D’AUTILIA, G. L’indizio e la prova: la storia nella
fotografia. Milano: La Nuova Italia, 2001. p. 145.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
223

desse auxílio; as biografias também estão sempre correlacio-


nadas a objetos, a fatos e a circunstâncias temporais e mate-
riais. Diz Bergson que “é necessário que o passado seja colo-
cado em movimento pela matéria e imaginado pela mente”.407
A reconstrução do passado necessita de suportes, de tes-
temunhos e de associações externas para recordar momen-
tos e reviver fragmentos do passado. Por isso, a necessidade
manifesta dos idosos que residem no meio rural de quererem
mostrar coisas antigas que fizeram (casa, moinhos, arados,
comércio...), as quais são expressões de sua presença na his-
tória.
Alguns idosos que habitam a cidade manifestam desejo
(e o praticam) de retornar ao meio rural, à sua antiga pro-
priedade, espaço esse que foi desenhado também pela sua
presença. Algumas das desilusões culturais e econômicas dos
idosos devem-se justamente aos contratempos e às ações que
se desenvolvem no cotidiano. O desejo dos idosos é de refazer
o passado e de revivê-lo do mesmo modo como já se desenvol-
veu, pois assim podem narrar sua expe­riência e fazê-la signi-
ficativa aos ouvintes pela expressão de sua consciência signi-
ficativa. Os instrumentos significativos tendem a cristalizar,
objetal e simbolicamente, a significação vivida/experienciada.
É desse modo que a fotografia possui sempre um indício
verbal. Sua ligação com a fonte oral manifesta-se no horizon-
te da subjetividade. Os argumentos, os cenários, os fatos, a
personificação, a objetividade/subjetividade, a ativação da
memória, as correspondências temporais, as descrições, a au-
to-representação (principalmente quando de fotos de família)
etc. intensificavam-se e a relação entre entrevistador e en-
trevistado manifesta-se de forma mais dinamica se auxiliada
pelas fotos.

BERGSON, H. Matière et... p. 187.


407
224 João Carlos Tedesco

Entendemos ser a foto, para os idosos entrevistados, um


instrumento de conhecimento e de conservação da memória
(seja ela individual ou coletiva), de registro, o qual permi-
te esquecer, representar e auto-representar, auto-significar
(permitir individualizações) e extra-significar, redimensionar
significações, servir de uso público e de uso privado e permitir
sua fruição ativa ou passiva (hoje mais ativa do que passiva),
o que é possibilitado pelo domínio comum desse processo. 408
A foto de família ganha uma temporalidade presente, de
longa duração, por conservar e transmitir memória, dialogar
intergeracionalmente, conviver e dimensionar significados no
tempo. Nesse cenário, o papel feminino e de gênero é funda-
mental. São, geralmente, as idosas que guardam as fotos. Al-
gumas criticam seus companheiros por não terem permitido
“tirar mais” e registrar momentos significativos, pois “quanto
não seria bom ter para ver agora”!
Os homens relembram, materialmente, os momentos de
trabalho, de pesca e caça, da carreta carregada puxada por
mulas, do caminhão que conseguiram comprar, de rituais pú-
blicos e religiosos (casamento, batizado, crisma, ao lado de
alguém, na época, famoso). É comum os homens permitirem
fotografar-se tendo objetos inovadores externos ou algo que
expressa bem-estar e/ou riqueza circunscritos no cenário ru-
ral e um pouco também urbano, manifestações de valorização
individual (sentados ao redor de uma mesa farta, apresenta-
rem-se bem vestidos, ao redor ou dentro do carro ou montado
num trator, num cavalo bem encilhado etc.). O fazer-se notar,

Sua fruição (mais ativa ou não) depende, além dos significados, de sua capa-
408

cidade de inovação e de reprodutibilidade. As fotos de casamento são aquelas


que não se olha sempre; os quadros de santos nas paredes (tão comuns nas
casas e especialmente nos quartos onde residem pessoas idosas no meio rural)
não possuem tanta fruição; os membros falecidos da família não possuem
substituição, são imagens e representações de uma ausência (exorcizam o
sentimento de perda e de uma realidade de co-presença, ao mesmo tempo
configura uma luta contra o tempo, contra a morte).
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
225

o orgulho, a valorização individual (beleza, riqueza etc.), a


unidade familiar, o poder masculino, a sociabilidade e a in-
teração cultural, a superação dos limites econômicos para o
viver, dentre outras expressões, demonstram o caráter evoca-
tivo das imagens.
As fotos de família e os álbuns que as contêm represen-
tam uma seleção de objetos significativos consentidos aos
tempos presentes e futuros; representam também significa-
dos e seleções externas de que, como, onde e por que estavam
presentes e foram registrados.409 Lanzardo analisa o fato de
que a foto não se reduz ao dado ilustrativo e imagético em si,
mas carrega sempre dados, indícios, indicações, mensagens
declaradas ou não. O autor sustenta que o sentido da imagem
se obtém unificando texto e contexto, rompendo a ideia de
autonomia do documento visivo. Na visão do autor, na foto-
grafia, unem-se o fotógrafo, o fotografado e os recursos téc-
nicos; essa união pode não se dar em termos de significados
conscientes.410
Todos os idosos entrevistados manifestavam interesse
em preservar as raras fotos que possuem, em guardá-las mui-
to bem em gavetas e em espaços de suas determinações. Em
inúmeras situações, não tivemos necessidade de solicitá-las,
pois eles as ofereciam espontaneamente, porém tínhamos di-
ficuldades na sua liberação para serem reproduzidas. Parecia
que elas significavam para aos idosos uma relíquia que deve-

409
Bourdieu e Ariès já analisaram a ausência de crianças nas fotos de tempos
passados, os rituais sazonais que as legitimavam e demandavam, a relutância
camponesa de seu uso e o significado burguês a elas atribuídas, os momentos
de unidade e de reforço de consciência de grupo, o prestígio social muito mais
do que a individualidade que deve servir de memória, a comunicação simbólica
da família nuclear... Enfim, um instrumento para contar história. Ver BOUR-
DIEU, P. (a cura di). La fotografia. Uso e funzioni sociali di un’arte media.
Rimini: Guaraldi, 1972; ver, também, ARIÈS, Ph. Padri e figli nell’Europa
medievale e moderna. Roma-Bari: Laterza, 1991.
410
LANZARO, L. Note sull’uso delle fotografie nella ricerca storica. Italia Con-
temporanea, n. 228, set. 2002. p. 523-532.
226 João Carlos Tedesco

ria ficar em seu patrimônio, como marca de um vivido, com


significados subjetivos e pouco intercambiáveis. O medo de
que fossem “extraviadas”, o desejo de sua eternidade, mesmo
na sua ausência – pós-morte –, a marca de um passado e sua
presença nesse tempo representam desejo de fixação, bem
como revelam a esperança de que um dia sejam de importân-
cia para “os de hoje”. Os terços antigos, os livros de histórias
de santos, algumas vestes íntimas de antigamente, o dialeto
vêneto, instrumentos antigos de trabalho, as técnicas de criar
porcos, de plantar e colher milho, o fato de muitos não sabe-
rem ler nem escrever etc. manifestam esse desejo.
O álbum de família e os ritos de integração que a famí-
lia produz representam/exprimem a verdade da lembrança
social, da memória social; expressam, evocam e transmitem
a lembrança dos eventos merecedores de serem conservados.
A família vê, nesses momentos, a personificação temporal do
passado e a confirmação da integração e da unidade no pre-
sente. Segundo Le Goff, é a mãe que, frequentemente, solicita
e viabiliza a recordação/registro via fotografia. Para o autor,
essa realidade expressa um vestígio da função de conservação
da lembrança atribuída a ela, ou, então, pode ser expressão
de uma conquista da memória do grupo por parte do gênero
feminino.411
Entendemos que objetos simbólicos, no caso, por exce-
lência, as fotos, respondem a uma necessidade social de iden-
tidade, de autocelebração e de conservação de uma imagem
de si; servem para tornar perene a recordação de algo ou de
uma pessoa significativa e a exaltação do indivíduo; símbolo
por meio do qual os membros de uma classe social se tornam
visíveis e tomam consciência de si e de seu vínculo cultural
(habitus de classe, diria Bourdieu), afirmação e legitimação

LE GOFF, J. Memoria, Enciclopedia Einaudi. p. 1097.


411
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
227

social, registro de conquistas, valorização da existência, colo-


cando em desafio o futuro e a sobrevivência do passado numa
imagem.412
Além da questão da identidade, da subjetividade da his-
tória, segundo Bourdieu, o desenvolvimento e a necessidade
da fotografia advêm da emergência da democratização da me-
mória, do controle do poder, de instrumento de integração e
controle da memória coletiva; significa apoderar-se da memó-
ria e do esquecimento, das representações e autorepresenta-
ções, seja da informação, seja do ocultamento. Diz Le Goff que
aquilo que a fotografia oculta é mais do que o que ela diz e aquilo
que ela conserva é uma mensagem carregada de implicações sociais
que frequentemente tendemos a esquecer. [...]. Os esquecimentos
e os silêncios da história são reveladores destes mecanismos de
manipulação da memória coletiva.413

Segundo Sega, a fotografia, sendo uma imagem, não possui


uma ordem racional (lógico-narrativo), nem pode ser totalmente
decodificada. Ela deixa espaço a interpretações subjetivas e a
uma fruição emotiva que não implica o intervento da razão.
A fotografia funciona, na nossa época, como arte de memória (me-
mória de lugares, memória de fatos e memória de pessoas), não,
todavia, como instrumento externo No geral, funciona como me-
mória intencional e ativa: vontade de deixar vestígios e de existir
na recordação [...]. A fotografia nos dá mais do que uma simples
documentação visiva, nos dá o modo no qual uma dada realidade
vem interpretada no momento mesmo em que ocorre e organizada
pelo seu conhecimento futuro. Em alguns casos, a fotografia é mais
interessante para a modalidade de representação que pelo conteúdo
documentado.414

412
Antigamente, a memória histórica era privilégio só dos poderosos, expressa em
memória escrita, arquivos, bibliotecas, monumentos, genealogias, na forma de
retratos, esculturas, pinturas, etc. Com o avanço da burguesia, ampliou-se a
possibilidade de memória e a sua necessidade como expressão da afirmação de
identidade. Ver sobre isso, LE GOFF, J. Memoria. In: Enciclopedia Einaudi...
Ver BOURDIEU, P. La fotografia...
413
LE GOFF, J. Memoria. Op. cit., p. 1070.
414
SEGA, M. T. Lo specchio dotato di memoria: la fotografia. In: LAZZARIN,
G. (a cura di), op. cit., p. 187-189. Encontramos em DE LUNA, G. et al. (a
228 João Carlos Tedesco

É nesse sentido que, nas lembranças orais e objetais de


idosas entrevistadas, a ambivalência parece ser a tônica: elas
presentificam a crítica de muitas relações passadas e, ao mes-
mo tempo, relembram-nas e manifestam-nas como forma de
mostrar sua obediência, as suas estratégias limitadas e seu
vínculo pragmático na família e no meio comunitário. As re-
cordações mais ambivalentes aparecem na relação entre de-
sejo e pecado, entre rir e mostrar-se séria, entre idealizações
e práticas de opressão, entre a liberalização e a rigidez das
normas acrescidas ao sentimento de culpa, entre fantasia e
realismo com base no vazio, entre liberdade pessoal e vigilân-
cia paterna e comunitária, entre separação com necessidade
de suportar o casamento em nome da construção de uma boa
família (a base religiosa disso tudo), entre esclarecer-se (estu-
dar, trabalhar com referenciais técnico-mecânicos...) e ter de
deixar o homem decidir (“tasi ti, non sai niente”).
Voltamos a dizer que, para idosos, a lembrança da famí-
lia apresenta-se como um complexo de referências simbóli-
cas, imaginadas e representadas na esfera da integração, da
ameaça de desintegração, de recordação, de espaços de feli-
cidade, de horizonte de profundos desgostos, de desempenho
moral e de honra (honrar o nome da família), de pertença e
de identidade com possíveis descontinuidades. Observamos
e escutamos por intermédio de relatos, e isso tudo se mani-
festa em rituais práticos (nascimentos, casamentos, mortes,
hierarquias no vivido familiar e social, incorporação do nome/

cura di). Introduzione alla storia contemporânea. Firenze: La Nuova Italia,


1984, excelente discussão sobre a fotografia como documento histórico e suas
várias questões, dentre elas a da duração (sequência temporal), da linguagem
fotográfica, do seu uso social e suas ambiguidades, a fotografia como sistema
de sinais, a historicização da imagem, a história da cultura fotográfica, a
fotografia e o ritual, o uso político da mesma. A análise faz um apanhado
histórico da historiografia sobre a fotografia e seu uso nesse campo, refletindo
principalmente sobre a abordagem do tema em Benjamin, Barthes, McLuhan,
Sontag e outros.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
229

sobrenome...), em espaços materiais (casa, roça, porão...), na


propriedade (da terra, dos frutos da terra, dos frutos do traba-
lho na terra, dos meios de trabalho...) e na esfera simbólico-re-
ligiosa (orações em família, batizados, matrimônio religioso, o
sentido teológico da família, da geração da vida, da morte...).
A casa é o ponto de referência, é a casa da família tal, ter-
ritório de redes, da vida cotidiana por excelência, de um tem-
po de (con)vivências; indica nuclearização, estendida, geral-
mente, a vizinhança, o parentesco e o compadrio. Como espa-
ço de memória, a casa imprime os ritos de passagem (entrada,
saída, retorno, permanência, desvínculo e deslocamento).415
Atravessando gerações e cruzando temporalidades, os
objetos da memória vão adquirindo outros sentidos na suces-
são temporal, mantendo, no entanto, a referência constante
à sua origem. Nessa perspectiva, o tradicional não apenas
sobrevive; não é o resíduo, o que resta, e, sim, o que luta e de-
safia o moderno; busca encontrar espaços de significância no
presente, não meramente como tradição, mas como presenti-
ficação, como pertencimento, em outras palavras, como útil
ao que o moderno apresenta como importante hoje. Porém,
a leitura do passado e de suas ações não é feita com os pres-
supostos do moderno e do presente, ou seja, como decorrente;
são racionalidades internas, resgatadas no tempo para preen-
cher vazios do tempo atual.416

Fidelidade, experiência e filiação de memória


Diz Halbwachs que a experiência da memória coletiva
é uma experiência concreta de ligação com a sociedade, com
a memória dos outros, com a fidelidade de memória, com a

LUCENA, op. cit.


415

Ibidem.
416
230 João Carlos Tedesco

dimensão afetiva, significativa, coesa, de interioridade e ex-


terioridade, de sentimentos pessoais, regras e costumes vi-
vidos por eles e por outros que ajudam a fixar nosso lugar,
nossa forma de pensar. Na análise do autor, a experiência é
expressão individual de uma memória de totalidade que se
completa em nossa lembrança individual. A experiência da
memória familiar, por exemplo, não é só a memória de um
grupo particular, mas de regras incorporadas de formas de
vida, de parentesco, de princípios organizadores, de hábitos
em concretude.
A experiência de uma memória coletiva é organizada por
um vivido em correspondência com lógicas sociais de signifi-
cação que ligam as recordações. A experiência de uma memó-
ria coletiva possui atributos normativos, símbolos de exterio-
ridade temporal, de diferenciações de noções sociais que pos-
sibilitam a passagem da imagem ao conceito, de tipologias de
diacronia, de tradição e costumes em referência a experiên­
cias vividas de grupos, da história oral, dos mecanismos de
memória (reiteração de símbolos, comemoração, dos ritmos
cíclicos naturais, das histórias sagradas – fundadores de ilu-
são de eternidade), dos mediadores e notáveis417 de memória,
internos e externos aos grupos, de sua função nostálgica e de
sentimentos desejados em relação ao presente, da valorização
e da legitimação da memória dos grupos particulares.
A mudança e a conservação, a recordação e o esqueci-
mento, como dinâmicas que se excluem, se complementam,
se retroalimentam e se conflituam, são fundamentais para
a conservação, a ruptura e a redefinição da experiência de
memória e da memória como experiência. O progresso, a am-
bivalência de significados de fatos temporais na história, os

Diz Halbwachs que “as sociedades, ao atribuir aos velhos a função de conservar
417

os traços de seu passado, os encoraja a consagrar tudo o que a eles pertence


como energia espiritual a recordar (Les cadres... p. 107).
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
231

mitos e símbolos de agregação/ruptura e a continuidade so-


cial, as novas formas de interação (experiência individual e
espontânea, automática e livre de referenciais coercitivos e de
integração), de novos saberes e domínios científicos e projeti-
vos (futuro e virtual) da realidade social são, também, legiti-
madores da dinâmica, algumas vezes dialética, entre experi-
ência recordada e esquecimento.
Segundo Halbwachs, o trabalho de construção do es-
quecimento pelos grupos é fundamental porque se trata da
eliminação de lembranças individuais que aos grupos não
interessam mais. Segundo o autor, existe, naturalmente, nos
quadros, uma estrutura do esquecimento, meio-espontânea e
meio-voluntária. O esquecimento apresenta-se, desse modo,
como manifestação de uma experiência coletiva da morfologia
grupal (interesse, afetividade, estabilidade, reações internas
e externas, mudanças individuais...), de finalidade e poder do
grupo, de temporalidades, etc.
O autor deixa claro que o trabalho de memória pode ser,
ao mesmo tempo, de esquecimento e de reconstrução, de hie-
rarquização temporal de memória (trabalho simbólico para
integrar os grupos, exemplo disso é a memória de classe, a re-
ligiosa e a familiar), das memórias que se tornam dominantes
e das dominadas, dos rituais e dos níveis de legitimação, bem
como das antigas crenças e da qualidade moral dos grupos e
suas temporalidades em redefinição. Por isso, a experiência
de memória possui uma dimensão estratégica de racionalida-
de adaptativa e, muitas vezes, instrumental.
O passado, o presente e o virtual exprimem linguagens e
sensibilidades sociais, bem como correntes de pensamentos e
ritmos de vida social, que dão dinamismo à hierarquia, inten-
232 João Carlos Tedesco

sidade e presença da experiência na memória cotidiana dos


indivíduos.418
A memória coletiva, para Halbwachs, é, ao menos, a me-
mória de um grupo que conserva sua unidade porque repre-
senta um tempo que passa como um presente que dura; o gru-
po reconstrói a diversidade de suas experiências em uma uni-
dade de si, uma sedimentação de lembranças de um sujeito
coletivo – “a sociedade que nós formamos com nós-mesmos”,
“ o ponto de vista do grupo”, “uma afetividade, uma visão e
uma psicologia de interesse de grupo”, “princípio de reciproci-
dade” – diz Halbwachs.
O festejar, o comemorar, o reencontrar memórias vividas
exemplificam experiências temporais em interação, identida-
des valorizadas. Segundo Namer, é a partir da necessidades
de ritos, de símbolos e de vivências de memórias coletivas que
é possível imaginar uma ética e uma política de memória co-
letiva que tem na experiência sua mediação.419
Simmel420 diz que a experiência é a conjunção no indi-
vidual de dados ambientais com uma certa “sensibilidade”,
ou um certo modo de se referenciar ao mundo. Para o autor,
os indivíduos não fazem experiências somente num sentido
passivo (em adequação com as condições atuais da vida co-
tidiana), e, sim, estabelecem com as coisas, uma certa rea-
propriação consciente e de sua finalidade, ou seja, quem tem

418
Sobre a noção de corrente de pensamento (como história escrita e vivida) e
sua lógica de lembrança e de reprodução pelos grupos, ver o texto de Halbwa-
chs “La mémoire collective chez les musiciens”, em La mémoire collective.
Nesse texto, a noção de “traços do passado” é de fundamental importância
para história oral, da conservação e exteriorização das correntes de memória
dominantes, de como determinados quadros sociais lançam mão de formas
que permitem a reconstrução do passado e fortalecimento da tradição e da
vontade de hegemonia de determinados grupos e dos conflitos entre grupos
e suas memórias.
419
NAMER, G. Mémoire et... p. 239.
420
SIMMEL, op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
233

experiência tem expectativas e competência para enfrentar


os desafios, as exigências e obrigações.
Para Gadamer,421 a experiência possui sempre uma cer-
ta duplicidade, ou seja, de um lado ter adquirido disposição
em relação às experiências em virtude da funcionalidade e do
exercício; de outro, “fazer experiência” é aceitar colocar em xe-
que a própria disposição adquirida. Autenticidade e momen-
tos de negatividade fazem parte da dialética da experiência. A
experiência é, portanto, processo, mudança (assim como o são
os significados e as culturas), criação, construção, exercício,
seleção, disposição limitada de um campo de possíveis, incor-
poração, memória, percepção e um reexaminamento de um
mundo que, aparentemente, é dado por conhecido e adequado.
Halbwachs conferiu à memória um estatuto social; atri-
buiu ao tempo uma dimensão sociológica especificada em
complexas e múltiplas operações de rememoração constitu-
tivas de identidade ao mesmo tempo individual e coletiva. O
tempo permite (re)construir o real porque já é um constructo
social, uma herança e uma tradição. O autor conectou memó-
ria e sociedade, posicionou a memória no centro do processo
social; conferiu uma definição de tempos múltiplos em contra-
posição a uma visão única, homogênea e estática do tempo,
pensado como uma estrutura fixa, como um determinante a
priori das representações e da vida social.422

421
GADAMER, op. cit., HUSSERL, op. cit., ao falar de experiência desenvolve
a noção de epochè e de mundo da vida. A primeira significa suspender os
juízos, colocar entre parênteses os significados e as categorias com os quais
cotidianamente se compreende o mundo; colocar em suspenso aquilo que
me parece saber já. O mundo da vida dá ideia de uma esfera vital na qual
o sujeito está inserido irrefletidamente, porém sensível e praticamente, pois
envolve o vivido, a experiência, a subjetividade; é a esfera que precede as
categorizações da realidade, do pensamento reflexivo, da ciência..., porém
que não pode ser descrito exaustivamente, pois envolve também sentidos.
Ver HUSSERL, La crisi delle scienze europee. In: JEDLOWSKI, P. Il sapere
dell’esperienza. Milano: Il Saggiatore, 1994.
422
FARRUGIA, F. Une brève histoire des temps sociaux: Durkheim, Halbwachs,
Gurvitch. Cahiers Internationaux de Sociologie, v. CVI, 1999. p. 101.
234 João Carlos Tedesco

Nessa concepção, a memória possui uma dimensão cria-


dora e recriadora de suscitar e ressuscitar imagens, palavras
(vozes), situações, pessoas e nós-mesmos. Nesse sentido, o
tempo presente é importante e indispensável, pois permite
oferecer uma perspectiva sobre o passado e confere-lhe senti-
do, intencionalidade, incertezas quanto ao seu valor objetivo
em razão das múltiplas reconstruções subjetivas.423
Na análise de Halbwachs, como já vimos, a sociedade
presente só retém do passado aquilo que corresponde a suas
dinâmicas atuais e que pode se enquadrar nas múltiplas in-
tencionalidades do atual.

Ibidem.
423
Capítulo 14

Filtragem de memória

Já desenvolvemos bastante a ideia de que a memória não é


um dado natural, mas uma construção socio-histórica e cultural.
Nesse sentido, a intercorrelação entre lembrança e esquecimento
é o que marca a presença nessa construção. Para tanto, os méto-
dos de registro ou de conservação são importantes. A narração,
o texto escrito, outros tipos antigos em madeira, pedras, tecidos,
papel, barro, folhas, chips de computador, gravador, filmadora,
fotografia, pintura, escultura etc. são suportes de que neces-
sita a memória para poder se presentificar e se futuricizar.
Autores afirmam que a possibilidade de seleção e de filtragem
da memória se fez mais intensa justamente pela ligação entre
memória e poder, memória e comunidade, memória e grandes
e pequenas tradições.424
Não podemos esquecer que a lembrança e o esquecimen-
to estão na base de cada forma de memória. Memória oral
e memória escrita não se excluem, podem andar separadas,
mas, ao mesmo tempo, podem se fusionar, se alterar. Mitos
populares, identidades “fabricadas”, genealogias, constitui-
ção de grupos identitários, dentre outros, são ou poderão ter
sido expressões dessa conexão de símbolos gráficos e de lin-
guagem oral, os quais contribuíram para estabelecer cone-
xões simbólicas e identitárias entre passado e presente, entre
sociedade e indivíduo, o que, em última instância, é a função
da memória.

MATERA, V.; FABIETTI, U. op. cit., p. 15.


424
236 João Carlos Tedesco

A identidade, por exemplo, como dizem Matera e Fabiet-


ti, tem origem nos processos seletivos e de remoções da histó-
ria; desse modo, pode se perpetuar reproduzindo ou reformu-
lando-se pela via dos mecanismos de representação cultural
(memória coletiva para Halbwachs), os quais entram em re-
lação dialética com a realidade.
A memória pode ser definida, então, como a sede dos
processos de seleção, remoção, interpretação, elaboração de
situações passadas. Nesse cenário, entram o indivíduo, o co-
letivo, o recurso à linguagem, aos ritos, às visões de mundo
presentificadas e contemporaneizadas, os modos concretos
nos quais se realizam a memória, poder e valores dominantes
e/ou socioculturais.

Dialética entre memória, esquecimento e silêncio


Sobre a mesa branca e redonda, o silêncio reves-
tia o seu real valor, que é o de acumular potência.
Campo (Sotto falso nome)

Para Passerini, o silêncio imposto à memória pode se dar


na dimensão burocrática, pública, oficial e coletiva; no entan-
to, na esfera do cotidiano, do indivíduo, do informal, esse pro-
cesso não é tão eficaz. O papel do indivíduo é fundamental
no restabelecimento de um sentido coletivo ao passado e im-
portante, também, para as complexas relações entre silêncio,
memória e esquecimento. Ele reconstitui uma memória sub-
terrânea, ou um silêncio relativo, não absoluto; rompe pactos
de amnésia coletiva em nome de reconstituições sociais, polí-
ticas, democráticas, econômicas etc., de memórias traumáti-
cas e de ressentimentos coletivos.425

PASSERINI, L., op. cit., 2003.


425
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
237

Segundo Ferretti,426 no campo político, prevalece o uso do


silêncio, ligado muitas vezes ao temor quase supersticioso de
repetir os mesmos erros. Nesse sentido, ainda que implicas-
se uma série de frustrações, o silêncio contribui para fundar
uma dialética democrática sobretudo no sentido de evitar o
uso do passado como arma de batalha política. O dito “tempo
do silêncio” permite e tem a função pública de tomar uma
certa distância do passado, mas não para esquecê-lo no todo.
Voltamos a dizer, no horizonte do vivido, dos ressentimentos
ou sentimentos privados, pessoais e cotidianos, os processos
de memória continuam. Não há um terreno plano e, sim, aci-
dentado entre memória, indivíduo e recordações coletivas.
Segundo Passerini, às vezes, “é necessário força para manter
um silêncio que permite meditar e refletir, absorver o signifi-
cado do ambiente e do projetar-se no futuro”.427
É possível ver a memória sem a expressão oral. Essa é
mais difícil de “fazer esquecer”, como é o caso da culinária,
do corpo (seus traumas e prazeres), dos nomes aos neonatos,
das fotografias, das cartas etc. São “memórias encarnadas”
que ganham visibilidade, lembrança e forma nas relações in-
tersubjetivas. Isso tudo, não temos a menor dúvida, os idosos
entrevistados apresentaram através de suas experiências em
diversos tempos e lugares. É difícil perceber, mas a memória,
para idosos, é, talvez, mais do que a palavra. O silêncio du-
rante as entrevistas pode conter apelos, exaltações de ações
em positivo ou negativo, ressentimentos, dentre outros aspec-
tos, um desejo de uma nova maneira de escutar, ou melhor,
de se fazer escutar. O silêncio revela a forma fragmentada
e esfacelada da memória, seus traços e destroços, “os limi-
tes do dizível”, tanto no horizonte do vivido quanto no cam-

426
FERRETTI, M. La memoria mutilata. La Russia ricorda. Milano: Corbaccio,
1993.
427
PASSERINI, L., op. cit., 2003. p. 39.
238 João Carlos Tedesco

po analítico, no caso da historiografia, da memória política e


“contornada” pela esfera pública, sobretudo quando envolve
sentimento de culpa.
Consideramos significativa a afirmação de Passerini
quando diz que os silêncios, os esquecimentos e as memórias
são aspectos do mesmo processo e que a arte da memória não
pode não ser, também, a arte do esquecimento por meio da
mediação do silêncio.428 Não obstante, a filtragem de memó-
ria, os silêncios e os enquadramentos também podem funcio-
nar como estratégias e racionalidades adaptativas dos que
lembram, ocorrendo, muitas vezes, até mesmo complôs no in-
terior do grupo. Na análise de Giron, a memória revelada ou
coletiva guarda com detalhes os êxitos e as vitórias pessoais,
o trabalho e os velhos costumes trazidos de longe. A memória
oculta esconde o fracasso, os vícios, os defeitos e o luto. Os
imigrantes, que haviam sofrido com a perda de sua pátria, na
nova terra rejeitam o seu passado pobre. A miséria e o luto
pela perda da terra natal, dos pais e da própria identidade
são sentimentos recalcados.429
Ricouer analisa o fato de que é comum, na sociedade, a
manipulação da memória e do esquecimento pelos detentores
do poder. Tanto a memória quanto o esquecimento podem ser
instrumentalizados, tornar-se “razão estratégica” (Habermas)
em oposição à “razão comunicacional”. Nesse sentido, abusos
de memória são, também, abusos do esquecimento. Geral-
mente, a memória é mobilizada para legitimar identidades;
logo, a fragilidade dessas expressa a fragilidade da memó-
ria. Legitimidade, carisma, ideologia, manipulação, mediação
simbólica, disseminação, credibilidade... são elementos de in-

428
PASSERINI, L. Soggettività e intersoggettività in sperimentazioni universi-
tarie di didattica e formazione. In: CIRIO, P. (a cura di). Individui, soggetti
e storia. Milano: Mondadori, 1991.
429
GIRON, L. S. Da memória nasce a história. In: A memória e o ensino da
história. Santa Cruz do Sul: Edunisc, 2000. p. 23-38.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
239

tegração identitária que, constantemente, demandam auxílio


à memória.430
Muitas memorizações forjadas se ajustam a comemora-
ções convenientes, processo que produz aquilo que Todorov
chama de “frenesi contemporâneo de comemorações”, com
seus cortejos de ritos e de mitos, cotidianamente ligados aos
acontecimentos fundadores evocados ao instante.431 Segundo
Todorov, há um “dever de memória” que envolve também o
trabalho do historiador, o qual se utiliza de referenciais do
passado para não somente estabelecer fatos, mas escolher al-
guns dentre eles como sendo mais importantes e significati-
vos. Esse trabalho de seleção e de combinação expressa, tam-
bém, o abuso de memória e a sua pertinência.
Para Ricouer, essa é a hermenêutica da condição históri-
ca da memória, de seu corpo político, de sua dimensão confli-
tual, de seu engajamento histórico, como matriz histórica (a
memória reduzida a um simples objeto da história) e de sua
manipulação.432
Nora, em seu texto que fecha o terceiro volume da série
Les lieux de mémoire – Les France – sob o título de “L’ère des
commémorations”, fala de uma obsessão, de uma bulimia co-
memorativa, de uma “tirania de memória” na formação de um
Estado-nação soberano francês. Para isso acontecer, segundo
o autor, tornou-se necessário recuperar tradições, memorizar,
comemorar, pertencer a certas épocas, de um dever de memó-

430
RICOEUR, P. La mémoire...
431
TODOROV, T. Les abus de la mémoire. Paris: Arléa, 1995. p. 13 e 150.
432
Ver RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli (p. 108). Para uma análise
interessante sobre o uso ideológico do discurso como forma de manipulação
do poder, do “dever de memória”, em nome da justiça das vítimas de abusos
de ideologias repressivas, ver RICOUER, P. op., cit., na discussão que o autor
faz do livro de ROUSSO, H. Le syndrome de Vichy, de 1944 à nos jours. Paris:
Seuil, 1987.
240 João Carlos Tedesco

ria como base moral, como evocação identitária, como cruza-


da contra o esquecimento.433
Já vimos que o esquecimento impede a tomada de cons-
ciência de um acontecimento traumático, porém a psicanálise
explica que o trauma permanece mesmo quando é inacessível
e indisponível.434 O esquecimento, segundo Ricoeur, interpre-
tando Freud, necessita de fenômenos de substituição, sinto-
mas que mascaram traumas. Nesse ponto, tanto Freud quan-
to Bergson são defensores do inesquecível, ainda que cada um
interprete o inconsciente a seu modo.
Para Ricoeur, o esquecimento pode ser uma estratégia
de fuga, possui uma dimensão ambígua (ativa e passiva, na
ótica da negligência, da omissão, da imprudência). A própria
memória pode se revelar como uma organização e exaltação
do esquecimento. “Narrar um drama pode significar esquecer
outro”, diz Ricoeur.435

Memória como valor de uso e o


uso como valor simbólico
Sabemos que a identidade é construída simbolicamen-
te e que, para sobreviver, reproduzir-se e redefinir-se, assim
como se perder, deve ter, entre outros fundamentos, a memó-

433
NORA, P. (Dir.). Les lieux de mémoire (III – Les France). Paris: Gallimard,
1986.
434
Ver, nesse sentido, ROSSI-DORIA, A. Memoria e storia: il caso della depor-
tazione. Soveria: Rubbettino, 1998.
435
RICOEUR, P. La mémoire, l’histoire, l’oubli, p. 584. Nessa obra (p. 536-589),
o autor faz uma excelente análise sobre a manipulação da memória, sobre
o esquecimento comandado principalmente durante a ocupação alemã na
França, sobre os movimentos de liberação, o anti-semitismo, a estrutura
política do país no período, a desmistificação do resistencialismo posterior, a
exortação ao esquecimento, à omissão, à cegueira, ao perdão, à anistia (essa
como esquecimento institucional e disseminado), à política de tolerância em
nome da unidade nacional e a uma “amnesia comandada” e privada da carga
traumática, um quadro de terapia social guiado pelo espírito do perdão.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
241

ria. Tanto a identidade individual quanto a coletiva neces-


sitam disso. É desse modo que não cansamos de dizer que a
memória não é um dado natural, é um pensamento social (ou
uma forma de seleção social da matéria cultural e histórica).
Halbwachs foi um dos primeiros autores, pós-década de
20 do século XX, a relacionar memória, identidade e cultura.
O autor afirma que a memória coletiva, ou o passado partilha-
do, só pode existir em presença de três fatores que lhe são ine-
rentes: o referimento às coordenadas espaciais e temporais, a
uma correlação simbólica do/no grupo e a uma reconstrução
contínua da memória mesma. A correlação espaciotemporal é
fundamental para a lembrança, aliás, esta é sempre situada
nessas duas esferas; quando se fala em traços de memória,
são os sinais/significados que eventos deixaram no espaço e
no tempo. Segundo Halbwachs, os traços de memória pro-
duzem, não obstante o fato de serem representação, ritos ou
simples “objeto”, uma imagem de permanência e estabilidade.
Já falamos que entendemos a noção de memória em Hal-
bwachs como uma forma de seleção social da recordação, de
construção social dos eventos, de produção de representações
que são construídas a partir de um trabalho de seleção, o qual
engloba ou exclui outras representações. Por isso, entende-
mos memória como possibilidade de se ter uma visão sobre o
passado. Nesse sentido, a memória apresenta uma dimensão
“política”, a qual pode exercer influência histórica, pedagógi-
ca, cidadã; pode construir, conscientemente ou não, objetivos
determinados; pode fornecer representações de significados e/
ou para nos dizer por que uma sociedade, uma cultura, uma
identidade é o que é no presente.
A correlação entre memória, antropologia e historiogra-
fia pode se tornar importante não só para dizer por que uma
cultura, uma sociedade e uma identidade são o que são no
presente, mas para dizer o que não são, o que poderiam ter
242 João Carlos Tedesco

sido, o que são outras sociedades, outras culturas.436 A seleti-


vidade da lembrança está em correspondência com a possibi-
lidade de constituir múltiplas formas de identidade coletiva.
É desse modo que a memória não é um simples e fiel “re-
gistro” do passado – como queria Bergson e que tanto Marx,
Freud e Halbwachs, se esforçaram para negar – mas uma re-
presentação do passado movida e dialetizada na correlação
entre lembranças e esquecimento.
A filtragem de memória e os esquecimentos podem tam-
bém ser manifestação de uma racionalidade interna que quer
fazer-se ouvir pelo caminho do ethos. Geralmente, as tradi-
ções só se mantêm onde são possíveis justificações discursi-
vas e diálogo aberto com tradições outras, mas, também, com
modos alternativos de fazer as coisas. E é esse alternativo e
essa outra possibilidade que confronta mundos, discrimina,
em parte, o passado e torna pretéritas determinadas relações,
funções, ações e sujeitos. Quando se tem a sociedade local e
algum momento de sua história como foco de análise, é neces-
sário considerar sua estrutura social e as relações sociais daí
decorrentes. É com esse pensamento que estamos tentando
refletir sobre a mudança social, que não é meramente sinôni-
mo de inovação, ainda que se saiba que toda a mudança im-
plica graus de inovação. O importante é perceber as múltiplas
operações de tradução que se efetuam entre as pluralidades
de espaços particulares de formulação e de tratamento dos
problemas pertinentes, especialmente entre gerações.
Há a necessidade de perceber a relação entre as poten-
cialidades técnico-científicas e as lógicas práticas (Habermas
fala muito sobre isso). Essa articulação vai no sentido de uma
normatização de atividades de produção ou, então, no sentido
de uma complexidade recíproca de práticas dos sujeitos envol-

MATERA, V.; FABIETTI, U. Memoria e identità. Simboli e strategie del ricordo.


436

Roma: Meltemi Editore, 1999.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
243

vidos. As técnicas mais cotidianas possíveis, aquelas do lar e


da cozinha, bem como a distinção, os gostos, o habitus de clas-
se, de estilo de família, da (dis)posição culinária das idosas,
dos saberes alimentares, da interiorização das gerações sub-
sequentes (socialização e aquisição de habitus) etc., passam
através das gerações, independentemente da funcionalidade
do sistema de objetos técnicos do lar em termos de redução de
tempo, de economia de mão de obra e de busca de tempo livre
e de ocupações internamente desejáveis.
As sociedades modernas são paradoxais: atribuem uma
autonomia em relação à técnica e, na superfície, enchem a
vida cotidiana de técnicas. O que podemos dizer é que existe,
na sociedade, em profundidade, uma vida que se vive no dia a
dia, fundada sobre a emoção, a inteligência imediata e sobre o
sentimento de presença imediata do mundo e, em aparência,
à nossa frente, uma história e instituições que se fundam so-
bre a base de uma racionalização do mundo e de um domínio
técnico da natureza.
Nessa visão, não podemos esquecer que os sistemas
simbólicos normatizam formas de agir; formam uma unida-
de heterogênea constitutiva de um modo de vida particular,
que estabelece, simultaneamente, relações de exteriorização/
objetivação com processos que traduzem padrões de compor-
tamento e controle da sociedade em geral, bem como repre-
sentações em transição, o que faz com que surjam inúmeras
estratégias adaptativas. É nesse sentido que as condições so-
ciais e as estratégias adaptativas no contexto da produção,
do trabalho e da família dos idosos devem ser entendidas e
inseridas no processo de elaboração e de materialização das
representações sociais no espaço da interação de tempos no
mesmo espaço (e com ampliação de seus vínculos externos),
como imagens construídas sobre o real.
244 João Carlos Tedesco

Partimos do pressuposto de que o cotidiano é o espaço


onde o econômico, a técnica e a cultura se relacionam. Essa
cultura técnica do colono, em plena modernidade, torna-se
um elemento de singularidade que imprime sua marca no
mundo rural. As novas tecnologias perpassam o cotidiano, en-
contrando nesse um diálogo de materialização e objetividade.
A experiência global da modernidade, do “novo”, vincula-se à
presença das instituições modernas nos atos cotidianos.
As experiências do vivido cotidiano refletem o papel da
tradição em constante mutação. Giddens437 entende tradição
como uma orientação para o passado, de tal forma que o pas-
sado tem uma pesada influência, ou, mais precisamente, é
constituído para ter uma pesada influência sobre o presente.
Nesse processo, o futuro não está ausente, pois as práticas
estabelecidas são utilizadas como uma maneira de organizar
o tempo do amanhã. Em outras palavras, a tradição é enten-
dida como integridade e continuidade que resiste ao contra-
tempo da mudança; está ligada à memória, ao passado re-
construído, tendo o presente como base e como reelaboração
referencial. A tradição é um processo ativo não só individual,
mas, fundamentalmente, social e coletivo, não simplesmente
identificado com lembrança.438
Velocidade, redução do tempo, papéis femininos, princi-
palmente no espaço doméstico, estão envolvidos num espíri-
to do ser moderno, porém se personificam nas tecnologias do
cotidiano (refrigerador, congelador, aspirador, máquinas de

437
GIDDENS, A. A vida em uma sociedade pós-industrial. In: BECK, U. (Org.).
Modernização reflexiva: política, tradição e estética na ordem social moderna.
São Paulo: Unesp, 1997. p.73-113.
438
GIDDENS (p. 112) tematiza o papel do ritual na preservação, garantia e
prática da tradição, no seu caráter moral, como medida de segurança. “O
ritualismo existe onde as atividades rituais estão ligadas a noções místicas.
A ritualização das relações sociais existe onde a interação social tem uma
forma padronizada adotada como modo de definição dos papéis que as pessoas
representam em ocasiões cerimoniais.”
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
245

lavar, microondas, lavadora de louças etc.), em processos téc-


nicos envolvidos em torno de identidades de gêneros no traba-
lho, os quais implicam cada vez mais o saber-fazer.
A adoção de um aparato técnico no universo familiar
de trabalho vem ao encontro de práticas e cotidianos no vi-
vido, construtores de um habitus comum. Padrões culturais
perduram quando há uma conservação de elementos que lhe
manifestam origem, ou quando mudam as significações para
resolver os desafios cotidianos. A tradição é aqui entendida
como orientação valorativa de significados passados, mas que
se manifestam comumente em momentos e em situações de
rupturas e/ou redefinições de processos sociais locais.
Uma outra questão importante que precisa ser entendi-
da é que a manifestação oral da memória da luta e das estra-
tégias de idosos, independentemente de sexo, para encontrar
espaços internos de significação e de preservação do e no gru-
po familiar, revela o desejo de jogar para longe a dependência
e o peso da velhice para si e para os do grupo. Possibilitar
uma face externa diferenciada de seu papel é uma forma de
“não deixar cair tudo”, como uma idosa comentou. A noção de
queda na velhice é algo de significado e sensibilidade profun-
da, porém não deixar cair significados de co-presença, o que é
fundamental para os idosos.
Agregar trabalho como valor de uso (insistimos na ideia
do uso como valor), bem como propiciar uma receita finan-
ceira para o grupo familiar, via aposentadoria, permitir uma
maior liberação da mulher das atividades educativas, morais
e de vigilância externa, bem como aproveitar esses momen-
tos e relações para o resgate do passado e desejar cristalizar
relações futuras (mesmo que não possam mais vê-las ama-
nhã!), contribuem, segundo os entrevistados, para legitimar
sua presença no núcleo familiar. A mobilidade de grupo, as
mudanças pessoais e coletivas, as rupturas são importantes
246 João Carlos Tedesco

referenciais nas representações sobre os espaços e tempos vi-


vidos.439
Enfim, não podemos fechar o capítulo sem dizer que en-
tendemos ser importante partir da memória para estruturar
a identidade (enquanto processo/projeto), porque a trajetória
da história pessoal à história coletiva é o momento da lem-
brança entre a percepção subjetiva do espaço e do tempo e dos
instrumentos para o seu conhecimento.

ECKERT, C., op. cit., p. 182.


439
TER C E IRA pa r t e

Ressignificação de memórias

O relembrar é uma atividade mental que não


exercitamos com frequência porque é desgastan-
te ou embaraçosa.
N. Bobbio
Capítulo 15

Memória, cultura e identidade étnica

Não sabemos o que seria de uma cultura na qual não


se saiba mais o que significa narrar.
P. Ricouer

Nesta parte, como já mencionamos, e também esporadi-


camente já fizemos referência no decorrer de todo o texto, re-
constituiremos e analisaremos alguns fragmentos de memória
de um grupo de idosos que convivem com parte de suas famí-
lias no meio rural e urbano da região colonial do Rio Grande
do Sul, mais especificamente nos municípios de Veranópolis,
Nova Prata e Guaporé, procurando dar ênfase aos elementos
socio-históricos e culturais que compõem o tempo do espaço
original e o tempo do espaço do início do “novo”, ou seja, o iní-
cio da nova colônia através do processo migratório interno e
das trajetórias migratórias para as cidades da região.
Intentamos analisar e perceber a ressignificação de
universos culturais, econômicos e sociais em conflito/tensão,
ambiguidades e ambivalências expressas no horizonte da fa-
mília, no trabalho, no religioso, na convivência comunitária,
dentre outros aspectos.440 Teremos presente, no decorrer da
análise, algo da produção socioantropológica do campesina-

Como já mencionamos, muito desse material empírico e muitas descrições de


440

falas estão nos estudos que antecederam o presente, tais como Terra, trabalho
e família; Memória e cultura e Um pequeno grande mundo: a família italia-
na no meio rural (ver referência mais completa na bibliografia). Aqui, parte
desse material será analisada com o objetivo de aprofundar os significados de
memórias, as reconstruções das formas de pensar e de viver, seja no horizonte
da fala, seja no âmbito do cotidiano vivido e no significado cultural para os
grupos de pertencimento étnico.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
249

to na região colonial com o objetivo de perceber e confrontar


oralidades com análises já constituídas no campo da memória
sobre esse.
Organizamos nossas indagações e conversas informais
com idosos em torno de variáveis como enquadramento social,
religioso e familiar, patrimônio cultural e histórico, o horizon-
te da narração, locais, objetos e fatos de memória, experiên-
cias e mudanças sociais e físicas.
Buscamos ter sempre presente um cenário em que o tem-
po, as coisas no tempo, o sentido da narração, a flexibilidade
cultural e social, a informação voltada para o prognóstico,
para o futuro, para a previsão, e não para o passado, em que
locais de memória, de certa forma, fetichizam o passado e se
transformam em espaços de circulação mercantil do tempo e
dos objetos; em que os idosos não são mais tanto os guardiões
de memória (como diz Halbwachs), mas indivíduos de pouca
significação étnica, social e econômica; em que o vivido está
fortemente ganhando espaços de liberdade dos elementos
normativos da família e da comunidade, porém é intensamen-
te influenciado em outros horizontes pela mass media, dentre
outras questões. Tendo isso presente, buscamos expressar al-
gumas angústias e tensões vividas pelos idosos como expres-
sivas de uma trajetória de adaptação íntima entre o homem e
o seu meio, mediada pela terra, pela família, pelo trabalho e
pelo saber-fazer, ou seja, elementos camponeses constituintes
da cultura de grande parte dos idosos entrevistados.
Orientamos nossa análise através de algumas variáveis
e de alguns temas que foram expressivos durante as entre-
vistas e os contatos informais. Não deixamos de lado a tenta-
tiva de idosos de tentar reconstituir, ainda que fragmentada
e localizada em pontos de referência considerados por eles de
maior importância, a história pessoal – uma incipiente histó-
ria de vida –, buscando perceber as memórias pessoais, que
250 João Carlos Tedesco

“mais livremente” os idosos tinham vontade de expressar.


Tentamos nunca esquecer a memória que idosos possuíam
do ser migrante, em grande parte, descendentes diretos de
imigrantes italianos e que viveram ou vivem ainda na e com
a colônia, da vida no meio rural e, nesse tema, a centralida-
de do trabalho, da família e da terra. No cenário do espaço
urbano, centramos a análise em torno de temas da vida no
meio urbano, como família, novas sociabilidades e trabalho.
A intenção era sempre ter presente a forma como os idosos
reinterpretam, narram e inventam as experiências vividas
em correlação a tempos e espaços diferentes, os liames entre
origem, trajetórias e situação atual.
Sabemos que a recordação acontece, em grande parte, por
associação (importância dos símbolos, fotos, objetos...). Ao longo
da vida, vamos organizando ideias e experiências, das quais as
que envolvem mais paixão são as mais fortes, enfáticas e fre-
quentes. O recordar/revisar implica muitas vezes a ampliação, a
interpretação a partir de referenciais subsequentes, de âmbitos
instrumentais e presentistas. É nesse sentido que percebemos
que os idosos revisam suas lembranças, tornam-nas amadure-
cidas como sua vida, sua experiência e seus contatos reduzidos.
Conforme as gerações se distanciam, repositórios de lembranças
se associam aos seus sucessores, segmentos de tempos vão se
conectando com lembranças mais antigas, “os mortos anexam
os vivos, que se tornam suas réplicas e sucessores”.441 Por isso,
é interessante compreender a memória como função não de
preservação, mas de adaptação, reconstrução, seleção, altera-
ção de códigos e percepções etc., os quais classificam o mundo
e imprimem significados à existência passada e presente.
Diz Lucena que é interessante indagar sobre os significa-
dos simbólicos que permeiam os universos culturais e refletir

HALBWACHS, M. A memória coletiva, p. 68.


441
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
251

sobre a mobilidade social, levando em consideração as repre-


sentações442 do rural e do urbano.
Como vimos, o cotidiano é o espaço por excelência de per-
cepção das formas, do significado e das redefinições da his-
toricidade e da dinâmica das representações sociais que nor-
teiam a vida de idosos. As tarefas cotidianas são ritualísticas,
seu grau de repetição é correspondente ao estágio de conheci-
mento, aceitação e repercussão ou influência das representa-
ções sociais do objeto ou da ação.443 Os valores da cultura só
podem ser analisados nos signos (sinais) que manifestam es-
ses valores, os quais, normalmente, são refeitos e reinterpre-
tados constantemente. Os valores éticos, estéticos, práticos
(do fazer) e técnicos podem estar presentes e agrupados num
conjunto de representações que, no caso dos idosos, são viven-
ciadas, cotidianamente, em seu plano de exteriorização e/ou
narração das experiências, na releitura narrativa de aspectos
das representações mais universalizantes. No conjunto das
representações sociais, há um processo de filtragem na ordem
do vivido do idoso, ou seja, filtra-se o percebido que não afeta
(rompe) a ordem cultural do vivido, que ocorre na ótica do
procedimento.
No universo epistemológico da representação social,
as experiências humanas afetivas, morais e culturais estão
presentes; o processo social como um todo não se fundamen-
ta unicamente em causas econômicas. Há experiências di-
ferenciadas nas quais a representação social constitui uma
experiên­cia social fundada nos costumes, nos processos e nas
instituições. Thompson nos auxilia na medida em que aglu-

442
As representações simbolizam traços de memória, reconstrução coletiva ou
individual, substituição e identificação objetal e simbólica de uma presença
ausente produzida na memória e passível de se fazer identificar. Nesse sentido,
ver CHARTIER, R. A história cultural entre práticas e representações. Rio de
Janeiro: Bertrand, 1990.
443
RASIA, op. cit.
252 João Carlos Tedesco

tina a vida material e sua estruturação classista com experi-


ências do vivido na constituição do pensamento e dos proce-
dimentos dos atores sociais. Isso não significa dar autonomia
e determinação aos processos histórico-estruturais nem aos
indivíduos.444 Há um horizonte de experiências e sentimen-
tos “coordenadas de sua cultura, como normas, obrigações
e reciprocidades familiares e de parentesco ou – mediante
formas mais elaboradas – como experiências artísticas e re-
ligiosas”.445 Valores e razão estão imbricados num campo de
lutas,446 de escolhas, de situações e adesões em confronto e/ou
conformidade com o patrimônio cultural (habitus)447 e a cons-
ciência afetiva e moral dos atores em questão.
Por mais que as representações da sociedade moderna
tendam a focalizar as práticas sociais derivadas da existên-
cia primeira dos indivíduos ou do somatório desses, resíduos
e imaginações irredutíveis brotam das próprias relações de
poder, as quais, porém, escapam do poder. A noção de habi-
tus familiar de colono, ligada à noção de experiência, resgata
ações do sujeito como determinado/determinante, não restrito
ao universo da classe, mas à esfera da cultura, à consciência
social do agente, incluindo aí suas representações, experiên-

444
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981.
445
Idem., 1981. p. 263.
446
A noção de campo perpassa inúmeros trabalhos de Bourdieu, referindo-se,
sinteticamente, ao espaço de disposições dos agentes em lutas e conflitos por
posições, recursos, legitimidades, status, delimitados por esferas possíveis de
ação, nas quais atuam de acordo com os interesses em jogo. Portanto, é um
espaço de disputas de interesses de posições e correlações de classes, reforçador
de legitimidade da estrutura social.
447
O habitus é o “sistema de disposições duráveis e transponíveis, estruturas
estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é,
enquanto princípios geradores e organizadores de práticas e representações
[...]; ele assegura a presença ativa das experiências passadas que, depositadas
em cada organismo, sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento
e de ação tendem, mais seguramente que as regras formais [...] a garantir a
conformidade das práticas e sua constância no tempo”. Ver BOURDIEU, P.
O poder simbólico. Rio de Janeiro: Difel, 1989. p. 91.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
253

cias socialmente demarcadas, passadas e presentes, confron-


tadas, em conflito e tensão com seus limites.448
Thompson enfatiza os elementos culturais sobre os de
natureza socioeconômica, salientando a importância de se de-
codificar o comportamento e de se desvendar normas invisí-
veis de ação, sem esquecer a estrutura das relações de classe.
O interesse de Thompson é pelas formas de existência e pelas
atitudes, não tanto pela transformação e pela causalidade,
postulando a interação dialética entre experiência e consci-
ência social. Demonstrar a motivação racional, autônoma e
coerente dos ativistas populares equivale a mostrar, em outra
esfera determinante, que os “inferiores” representaram um
importante papel na configuração de sua própria história,449
o que, para o nosso caso, significa resgatar os resíduos histó-
ricos constitutivos de relações em torno da família, configura-
dores do ethos de colono.
Como já vimos, a experiência aciona e influencia a cultura
e os valores, articula ações sobre outras atividades. A experi-
ência, para Thompson, é gerada na vida material, localizando o
ser no social e formando também sua consciência social, porém
a previsibilidade das ações não é totalmente determinada.
É por isso que reconstituir espaços, símbolos e permitir
ressignificações orais e objetais de uma cultura que possui
horizontes populares, que, mesmo não sendo conscientemen-
te trabalhada, reflete processos históricos e culturais de lon-
ga data, como é o caso da camponesa, é, no mínimo, reverter

Ver RASIA, op. cit.


448

As descrições e análises de Thompson sobre as rebeliões pela falta de alimen-


449

tos na Inglaterra do Século XVIII mostram-nos como os aldeões, movidos


por uma economia moral, impunham a coleta e a venda de grãos conforme a
tradicional economia moral, o que fez a pequena nobreza rever seus concei-
tos sobre o papel do ativismo coletivo, bem como manter alguns aspectos do
modelo paternalista. O papel de uma economia moral compartilhada torna-
se associado a questões de poder, identidade e imbricação aos horizontes da
estrutura social, demonstrando, assim, a importância dos fatores culturais e
comunitários na motivação dos sujeitos para construir sua própria história.
254 João Carlos Tedesco

um pouco o vetor da memória patrimonial tradicional, ainda


mais quando se fala de sujeitos que, estruturalmente, estão
em processo de esquecimento e de desvalorização, como é o
caso dos idosos na contemporaneidade.
Pensamos que é possível perceber temporalidades de
conceitos, possibilidades de apreensão de experiências vivi-
das, de uma hermenêutica do cotidiano do passado vivido e
significado, que tanto a temporalidade quanto a linguagem
que a fundamenta são possibilidade de acesso à informação,
que é possível interpretar vestígios, o aparentemente imper-
ceptível, as adaptações e os impulsos de denúncia. Significa
permitir vozes da dignidade, até porque se sabe que muitas
lembranças são guardadas na perspectiva de membros de
grupos (família, etnia, colonos, sobrenomes etc.).
Os idosos, sem haver deliberação, são encarregados de
guardar as lembranças do passado dos grupos; devem tam-
bém trabalhar, no presente, a transmissão de geração a gera-
ção, conservar objetos materiais importantes, promover ceri-
mônias que representem os percursos vividos por eles e que
sejam transmitidos aos “de hoje”.
Rituais religiosos na comunidade e na família (reza do
terço, “ascoltar la messa”, receber a santinha e convidar a
vizinhança), acervos de culinária, utilização de objetos e
ferramentas de trabalho, saberes cristalizados e considera-
dos eficazes, regramentos morais e éticos são estratégias e
tentativas de materialização de reatualização de ações e de
horizontes memorizáveis que idosos imprimem. O fato de
muitos idosos permanecerem por mais tempo e adquirirem
maiores responsabilidade educativas informais com os netos
talvez auxilie no processo de transmissão da memória. Pala-
vras, gestos, rituais de iniciação, apropriação dialetal, usos
de objetos, etc. poderão, nesse processo de contato, demarcar
fronteiras entre o visível e o invisível, de um passado visível
num presente invisível, fora do tempo, como se fizesse parte
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
255

de um domínio substrato em relação às mudanças considera-


das irreversíveis. Desse modo, imagens e visões de mundo,
duram mais e podem passar de geração a geração; tornam
possível a operacionalidade de sinais de memória coletiva, de
reencarnação de personagens e formas de vida passada: ou
seja, poderá acontecer, na prática, uma tendência de os idosos
transmitirem aos mais jovens conteúdos mais importantes da
experiência vital das gerações precedentes.450
Poderíamos dizer que esse é um trabalho submerso, mas
real, de idosos nas famílias e no seu estreito mundo social
existente; é uma tentativa de reconstrução incessante do fio
incerto da tradição familiar, é a trama invisível que sustenta
o ciclo da continuidade com as mudanças culturais. Temos
a convicção de que as narrações intergeracionais, principal-
mente em família de mais co-presença e pertencimento como
aquelas do meio rural da região de pesquisa, fazem-se sempre
intermitentes através do “peso” da experiência e do acervo
linguístico. Diz Paoli que é importante recriar a memória dos
que perderam não só o poder,
[...] mas também a visibilidade de suas ações, resistências e projetos.
Ela pressupõe que a tarefa principal a ser contemplada em uma polí-
tica de preservação e produção do patrimônio coletivo que repouse no
reconhecimento do direito ao passado enquanto dimensão básica da
cidadania, é resgatar estas ações e mesmo suas utopias não realizadas,
fazendo-as emergir ao lado da memória do poder e em contestação
ao seu triunfalismo. Aposta, portanto, na existência de memórias
coletivas que, mesmo heterogêneas, são fortes referenciais do grupo
mesmo quando tenham um fraco nexo com a história instituída. É
exatamente aí que se encontra um dos maiores desafios: fazer com que
experiências silenciadas, suprimidas ou privatizadas da população se
reencontrem com a dimensão histórica.451

450
Ver algo nesse sentido em KRZYSZTOF, P. De l´histoire à la mémoire. Revue
de Métaphysique et de Morale, Paris: CNRS, n. 1, jan./mar. 1998. p. 63-110.
451
PAOLI, M. C. História e cidadania: o direito ao passado. In: Secretaria Muni-
cipal da Cultura/PMSP. O direito à memória: patrimônio histórico e cidadania.
DPH, São Paulo, 1991. p. 27.
256 João Carlos Tedesco

Os valores culturais superpostos e as histórias conta-


das pelos migrantes aparecem carregados de subjetividade;
não são exatamente as representações do passado porque são
adaptadas às situações atuais, ou seja, ajustadas às identi-
dades no presente. Nas narrativas históricas misturam-se
sonhos, imaginação e realidade; imaginações compartilhadas
entre os habitantes dos espaços em múltiplas camadas de
tempo e de espaço, representações dinâmicas pelas quais os
migrantes percebem e confrontam mudanças nas suas condi-
ções de existência na intersecção de culturas.452

O cenário empírico: fonte e base de


memória de idosos
Relembrar é mais do que se deslocar para o
passado e deslocar para o presente fatos vividos.
Lucena

A agricultura foi o elemento aglutinador e formador do


espaço de vida e de sociabilidade do imigrante que chegou à
região colonial no final do Século XIX e início do Século XX e
do que migrou para as Colônias Novas nas primeiras décadas
do século XX. Viver da terra, com a terra e para a terra, no ho-
rizonte do trabalho e da interação entre dominação/explora-
ção e resultados produtivos, foi sempre a marca da identidade
camponesa de colonos da referida região.
Os idosos entrevistados e que migraram para os espaços
urbanos indicados também carregam as marcas no corpo, na
experiência de vida, em grande parte das relações cotidianas
na família e no meio social, de um tempo de vida vivido na
relação com a terra. A cultura urbana, nas cidades indicadas,

LUCENA, C. T. Artes de lembrar...


452
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
257

constituiu-se em uma mescla de valores e tradições culturais


do colono com as novas dinâmicas de vida urbana da moder-
nidade social e instrumental do cotidiano. Por isso, a noção de
reconstituição cultural de sujeitos em espaços diferenciados e
que se produz na e com a produção do espaço é fundamental.
A ideia de reconstituição, ou de reinvenção, em meio a
perdas e ganhos, é um fator de análise importante para en-
tender estratégias, preocupações, lembranças de espaços e de
fatos vividos pelos idosos.
Anderson fala de uma “comunidade imaginária”,453 ou
seja, sentidos que o presente dá, imagens coletivas que a con-
temporaneidade produz em relação ao passado e que esse não
possuía quando determinadas situações ocorriam. É desse
modo que a história pode ser fértil na determinação de senti-
dos de temporalidades, fundindo referências e textualidades,
refazendo itinerários de significados, conectando episódios
que, em termos de memória, estavam fragmentados e soltos.
Porém, não se pode esquecer que a dita “comunidade imagi-
nária”, em geral, é uma produção da história, uma constru-
ção de memória e não da memória; compreende, no presente,
uma imagem mental do passado.
Pinto afirma que a memória é mais do que uma pura re-
presentação; ela “assegura permanências, manifestações so-
breviventes de um passado muitas vezes sepultado, sempre
isolado do presente pelas muitas transformações, pelos cortes
que fragmentam o tempo. Memória como lugar de persistência,
de continuidade, de capacidade de viver o hoje inexistente”.454
Em termos empíricos, a derrubada da mata, a rotação de
culturas – tanto de subsistência quanto de caráter comercial –,
a reconstituição da fertilidade do solo, a depredação para cons-

Ver ANDERSON, B. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1982.


453

PINTO, J. P. Os muitos tempos da memória. Projeto História, São Paulo, n.


454

17, 1998. p. 207.


258 João Carlos Tedesco

tituir a roça, o plantio de culturas nativas (mandioca, milho,


feijão) associadas às europeias (trigo, batata, cevada) etc., pro-
duziram, reproduziram e esgotaram o espaço previamente de-
limitado, porém solidificaram, reproduziram e redefiniram um
modo de vida e uma estrutura familiar que se redefinem com a
contemporaneidade, independentes, porém influenciados, con-
tituidos por espaços de co-presença de idosos e que guardam
marcas em espaços e tempos variados e de longa data na região,
provocando deslocamentos e reorganização da vida no espaço.
A organização do sistema de economia agrícola na colô-
nia, com o passar das décadas, passou a sofrer e explicitar
pontos de estrangulamentos que giravam em torno da in-
fra-estrutura de comércio e de transporte, da depreciação e
baixíssimo valor dos produtos, do esgotamento do solo e da
impossibilidade de aquisição de novas áreas próximas. A poli-
cultura comercial começou a ceder parte de seu espaço para a
produção de suínos e seus derivados, especialmente a banha.
O solo fértil e a alta produtividade do milho daí decorrente
fizeram da produção de suínos o elemento de convergência
de relações de produção e de comercialização embasadas na
agricultura familiar do colono.
Idosos lembram, com nostalgia e um certo ufanismo, a
“chiqueirada de porco que se vendia [...], as roças de milho
que no inverno se dobrava pra depois, com o tempo e confor-
me ia tendo lugar no paiol, quebrar e guardar. Se consumia
paiol e paiol de milho, tudo se transformava em carne naque-
la época, viu. Se tribulava que guai, ma se descansava mais
do que agora”.
Os integrantes da unidade doméstica e de convivência no
meio rural (re)definem uma determinada organização de seus
processos de trabalho e de relações, estabelecendo acordos
básicos relacionados com a composição da família, com ne-
cessidades econômicas, distribuição da força de trabalho, das
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
259

variáveis demográfica e etária e do seu grau de dependência


com os circuitos comerciais e (agro)industriais. Isso implica
esquemas de percepção, de pensamento, de organização de ta-
refas, de uso do tempo e de recursos referidos à continuidade
e à reprodução do grupo familiar.
O forte vínculo que existia entre produção, consumo, co-
mercialização, trabalho e família, renda e número de filhos
reorienta-se com as transformações na vida doméstica, com
o crescente envolvimento da mulher na força de trabalho não
especificamente agrícola.
As relações sociais de gênero, a organização patriarcal,
a hierarquia em termos de idade, os espaços de trabalho, do
público, do lar etc. sempre marcaram e definiram a conduta
e o contato do agir cotidiano dos indivíduos na família e nas
ações sociais como um todo, por mais que suas intensidades
e repercussões tenham sido variadas. A profunda interação
entre família, terra e trabalho sempre definiu, e define ainda
hoje, as obrigações, os espaços, o poder, a submissão, os inves-
timentos, a prole, a saída e a permanência de elementos no
núcleo familiar.
A reprodução, a fragmentação e ampliação do patrimô-
nio, das responsabilidades etc. constroem o imaginário das
representações sociais definidoras dos papéis, sejam esses de
submissão, sejam complementaridade hierarquizada entre
seus membros, o que não quer dizer que não haja tensões,
conflitos, aceitações, normatividades, visibilidades e invisibi-
lidades de importância, incorporadas ou ideologicamente ex-
pressas em convivências de afirmação de autoridade e de po-
der. Enquanto representação social de gênero, não há dúvida
de que, até bem pouco tempo, talvez até com mais atraso no
meio rural (pelas especificidades políticas, culturais, econô-
micas...), as tarefas femininas situavam-se na ótica do secun-
dário, da incapacidade, sendo responsabilizadas mais por fra-
260 João Carlos Tedesco

cassos do que pelo sucesso tanto do marido quanto da família.


A ideia de que a agricultura é uma atividade da família, não
uma atividade individual, está bem presente na memória de
idosos, tanto dos que migraram para a cidade quanto dos que
permanecem no núcleo familiar rural
A memória da terra, correlacionada sempre com a pro-
dução e com o trabalho na ótica do sacrifício, não descuida da
presença e da centralidade da família. Nessa, como já vimos, a
casa é ponto focal, porém casa sem comida é como se o elemen-
to que a justifica não se fizesse presente. Comida abundante
como fruto da natureza e do trabalho das pessoas – “podia não
ter outra coisa, dinheiro, luxo, mas comida era a primeira pre-
ocupação, se fazia de tudo pela comida. As plantações davam
a comida, né, carne se tinha em abundância [...]”.
A expansão da ocupação do território, definido por várias
formas de colonização, deu-se muito rapidamente, começan-
do pela periferia das antigas colônias, seguindo por toda a
margem meridional do Planalto, alcançando os Aparados da
Serra, o vale do rio Uruguai, estendendo-se pelo Oeste cata-
rinense e paranaense. A região que realmente delimitou as
trajetórias de migrações internas foi a direção noroeste.
Vários fatores contribuíram para que houvesse o deslo-
camento de colonos de um espaço previamente definido para
outro. Fatores de ordem estrutural e conjuntural, ligados à
família, à terra, à demografia, à herança/matrimônio, ao nú-
mero elevado de filhos na família original, às promessas não
cumpridas dos agentes de imigração/colonização (pública e/ou
particular), aos conflitos com os nativos e os de sua nacionali-
dade, à diferença em termos regionais e dialetais, à heteroge-
neidade cultural, a sentimentos nacionais (principalmente do
país de origem), foram também determinantes, pelo menos,
foram também elementos assim referidos pelos nossos infor-
mantes que “ainda se lembram”. Disse-nos um “nono” migra-
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
261

do para uma nova colônia e, na década de 70, para a cidade de


Nova Prata: “Meu pai disse:
Olha não dá mais pra ficar todos aqui, eu, o Pedro e as moças vamos
mais pra frente, pra Serafina (hoje Serafina Corrêa), o Toni fica, se
casa e se vira sozinho aqui agora. E foi o que fizemos. Vuto quê? A
terra era poca, tinha de tentá onde ainda era possível fazer futuro.
Me lembro bem que não levamos muita coisa porque deixamos
quase tudo pro meu irmão. [...]. Começamos tudo de novo. [...].
Depois, quando tava colocado, nóis (cônjuges) é que fomos para a
cidade e os filhos ficaram em Serafina e um depois foi pra Casca
e se fizeram. Mas sei que não foi fácil pro meu pai, não, eu ainda,
graças a Deus, casei bem, a mulher era filha única e pegou um
bom pedaço de terra, foi isso que me deixou bem. [...]. Vontade de
trabalhar sempre tive. O exemplo do pai ficou bem firme em toda a
família. Mas não foram todos assim não, muitos que tinham pouca
vontade de trabalhar venderam fora tudo, italiano também, sim.

Os imigrantes e seus descendentes viam com certa hostili-


dade e desprezo o modo de vida principalmente dos negros e ca-
boclos que habitavam a região. A produção agrícola dos caboclos,
prioritariamente voltada para o autoconsumo, seu isolamento e
não-fixação por muito tempo num local, a forma como produ-
ziam, a pouca importância dada à apropriação da propriedade
privada, dentre outras, como características da sua organiza-
ção e do desenvolvimento socioeconômico, promoveu diferen-
ciações entre os estratos socioculturais no espaço agrícola.
A estruturação da propriedade pela determinação da
legislação, pelas condições econômicas dos colonos-migran-
tes, pelo seu caráter tradicional de relação com a terra e com
determinados tipos de produtos, pela topografia, em grande
parte muito montanhosa, pela expansão e facilidades natu-
rais e infraestruturais (rios, estradas) etc., sem dicotomizar
e/ou reificar a chamada “vocação empresarial”, fez da região
colonial um espaço de economia dinâmica.455

Ver ROCHE, J. A imigração alemã no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Globo,
455

1969. v. I.
262 João Carlos Tedesco

O trabalho artesanal na confecção de tecidos, na produ-


ção de inúmeros produtos coloniais, os moinhos, as atividades
artesanais profissionais,456 mesmo sendo de âmbito local, ser-
viam como complemento de renda para o colono, como recur-
so de subsistência, como fonte alimentar e como suprimento
de instrumentos domésticos e/ou domiciliares.457 Essas ativi-
dades e esses domínios técnicos emigraram com os colonos
até as Colônias Velhas e, dessas, para os novos espaços de
deslocamento; apenas se adaptaram às condições espaciais
e objetivas das colônias. Esse processo aglutinava as forças
plenas da família, bem como as marginais (no caso, crianças
e idosos).
A dimensão da racionalidade e da ética do trabalho que
a alimenta e, ao mesmo tempo, promove o acúmulo de capital
fez-nos entender também que, na concepção dos sujeitos da
pesquisa, progresso não se fazia sem sacrifício, aliás, sacri-
fício e progresso, para a ética do colono, são dimensões com-
plementares: o sacrifício era e continua sendo promotor do
progresso; com esse, o progresso vinha naturalmente.
As práticas de herança eram pensadas com o sentido de
evitar a fragmentação das unidades de produção. O direito
costumeiro e as várias formas do sistema de partilha, quando
havia, eram acionadas para determinar as regras de herança.
O problema da escassez de terra e da pouca perspectiva de
ter na terra possibilidade de reprodução econômica, a existên-
cia hoje de um mercado de trabalho fora da agricultura, em
atividades que não requerem tanta qualificação profissional,
facilitaram os arranjos e estão tornando menos problemática

Ibidem.
456

SCHNEIDER, S. Os colonos da indústria calçadista: expansão industrial e


457

as transformações da agricultura familiar no Rio Grande do Sul. Disserta-


ção (Mestrado) - Unicamp, Campinas, 1994; ver, também, do mesmo autor
Agricultura familiar e pluriatividade. Tese (doutorado) - Ufrgs, Porto Alegre,
1999.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
263

a concorrência interna pelas fatias de terra no âmbito das


famílias.
As condições de produção, a variável demográfica e de
gênero, o nível de influência do direito formal, em contraposi-
ção aos arranjos internos, entre outros, foram definindo mo-
mentos, decisões e lógicas internas do processo de transmis-
são do patrimônio. A preocupação dos filhos e/ou do possível
herdeiro com o retardamento, o desejo dos pais em preservar
a autoridade (na posição de proprietário), a falta de diálogo
interno sobre isso, a impensada e indesejada (interna e comu-
nitariamente) apelação para o direito formal ou a contrapo-
sição aberta à desigualdade etc. são conflitos e preocupações
(re)veladas. Percebemos que as soluções encontradas eram
várias e variáveis, contingenciais e pouco normativas; de-
pendiam de inúmeros fatores, inclusive da conjuntura socio-
econômica, das condições objetivas (econômicas) e simbólicas
possíveis e disponíveis nas unidades familiares; é possível di-
zer, com toda a firmeza, que faziam parte das racionalidades
adaptativas em razão das condições objetivas existentes.
A reprodução social do agricultor familiar estava intima-
mente relacionada à produção e à reprodução das unidades
domésticas e dos indivíduos nelas, mediante estratificações
individuais e cooperativas, o que implicava certa tensão in-
terna. Assim como as estratégias matrimoniais, os processos
de herança eram flexíveis, o que não necessariamente quer
dizer que não podiam seguir normas costumeiras e, muito
menos, do sistema jurídico. Os vários tipos, modelos e des-
vios de herança (indivisa, igualitária, divisível, diversidade
de bens etc.) não seguiam normas claras; enfim, eram adap-
tações de estratégias familiares num jogo em que se combi-
navam elementos internos e externos. Essa era a riqueza e a
diversidade de ações que envolviam o agricultor familiar.
264 João Carlos Tedesco

A infraestrutura para o escoamento e a comercialização,


o ritmo dos nichos de mercado, a disponibilidade monetária
do colono, o papel do Estado em termos de garantia do mínimo
de sobrevivência fizeram com que o espaço regional também
apresentasse dinâmicas econômicas heterogêneas em termos
de atividades e temporalidades.
Trabalhamos muito nas estradas, era a forma mais segura de
fazer dinheiro. Lembro que meu pai ficava até semanas fora, ou
trabalhando em construção, né, ou em estradas e abrindo picada.
Naquele tempo, era as carroças que passavam, mas logo, logo,
chegou o caminhão também aqui, viu e essas estradas tinham de
ser alargadas e melhoradas. Asfalto aqui veio só, acho, lá pelos
anos 70, final de 70. Tinha comércio aqui que só pra ver, iam pra
Muçum, atravessavam as Anta (Rio) e iam pra Caxias, pra São
Sebastião do Caí, até Porto Alegre muitos iam de carroça levá
produto. Meu pai fez muito isso. Quando viemos para Nova Prata,
começamos também com um pequeno comércio. [...]. Foi lá por 76.
[...]. Conservamos a tradição de comerciante.

O crescimento urbano e a formação de uma rede urbana


influenciaram, sobremaneira, a determinação do comércio na
região de colonização. Esse processo, em alguns momentos,
provocou a pulverização de recursos entre colonos; em outros,
foi indutor de pequenas indústrias subsidiárias, desenvolvi-
das a partir de atividades artesanais. De outro modo, a meca-
nização, os insumos, a tecnologia, a topografia montanhosa,
a redução da força de trabalho da unidade familiar, a mani-
pulação genética, os herbicidas, o baixo preço dos produtos, a
falta de tradição em relação a determinadas culturas, entre
outras questões, fizeram com que as trajetórias migratórias,
o espaço urbano, novas estratégias de sobrevivência se fizes-
sem presentes.458
As várias formas de variação da produção dos colonos
da região eram expressões também das condições econômicas

SCHNEIDER, op. cit.


458
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
265

diferenciadas entre ambos, dos tipos de solos, da disponibili-


dade de mão de obra e do acervo técnico disponível, da própria
dinâmica e interação entre as unidades familiares, do merca-
do de insumo e de subsídios técnicos para a agricultura, do
conhecimento de técnicas e recursos internos, etc.459
Os vínculos de vizinhança, honestidade e reciprocidade,
bem como uma contabilidade do tempo não muito racional e
formal, eram alguns dos requisitos que materializavam essa
prática histórica em meio aos colonos. A entreajuda situava-
se numa dimensão bilateralmente acordada em função de vá-
rias questões. A proximidade familiar e física, a precisão e
a solidariedade tradicional, como elementos constituintes do
ethos de colono, criaram formas de decisão.
Havia um saber incorporado e historicizado em função
das adaptabilidades temporais e econômicas, sobretudo mais
recentemente, quando essa atividade passou a ser uma va-
riação bem mais econômica do que agrícola. As estratégias
defensivas para dominar, prática e simbolicamente, o risco e
as perdas estão no âmbito do conhecimento, porém os idosos
não cansam de dizer que, quanto mais melhoram tecnicamen-
te na produção, mais sutilezas, mais debilidades e cuidados
aparecem; a vigilância e o saber empírico-técnico precisam
ser mais intensos e rapidamente acionados.
A forma integrada de produtos, processos, tempos, sabe-
res e força de trabalho agrega valores de uma atividade e de
um produto a outro, o que faz o resultado global – “a corrente”
– ser, em alguns momentos, positivo; são articulações agrega-
das, integradas, subordinadas ou não ao conjunto de fatores
e estratégias adaptativas de que os colonos dispunham e com
os quais se aventuraram em razão de necessidades, de carên-
cias, de processos globais, acumulações, presentes e ausentes,

Idem.
459
266 João Carlos Tedesco

formadoras e reprodutoras do ethos de colono e da sua “orga-


nização da vida” econômica e familiar.
A saída de pessoas (filhos) e ou de núcleos de famílias re-
cém formados para os novos espaços viabilizava a não divisão
do patrimônio da casa no espaço-mãe. O matrimônio, a mi-
gração e a propriedade eram partes de um mesmo modelo de
organização interna. Alguns tomaram “outros rumos” para
que o “rumo de até então” se reproduzisse e se solidificasse.
Os projetos de reprodução social e de patrimônio passam por
vieses não mais aglutinadores da colônia-mãe; os grupos vão
formando identidades redefinidas e os graus de parentesco
vão se tornando mais tênues.460
Por mais que a estratégia dos que migraram tenha sido
de estruturar-se em grupos, mesmo com diferenças étnicas e
regionais, os limites objetivos e estruturais, bem como afeti-
vos, obrigaram-nos a dimensionar certa solidariedade e vín-
culo vicinal.461 A busca de formação de grupos permitiu que,
mesmo traumatizada pela imigração/migração, certa homo-
geneidade cultural no interior das colônias se consolidasse,
preservando, assim, certo patrimônio cultural e social.
As condições materiais de produção, associadas ao meio
e às relações sociais que se constroem a partir disso, asse-
guravam processos sociais nucleados em torno da família,
da organização do trabalho, da comunidade, da vizinhança e
do parentesco, do mundo exterior, da sua organização social
para a sobrevivência, para a sociabilidade, para o domínio da
natureza e para a construção da individualidade.
A ordem social do colono fundava-se na ligação entre pro-
priedade, família e trabalho, este com sentido além do econô-

SCHNEIDER, op. cit.


460

SEYFERTH, G. Camponeses ou operários? O significado da categoria colono


461

numa situação de mudança. Revista do Museu Paulista, São Paulo, v. XXIX,


1984. p. 72-96.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
267

mico. O trabalho como obrigação, dedicação, dever moral, su-


peração, virtude, acesso à riqueza e à promoção da exaltação
do homem etc., ligado à propriedade, formaria o espaço social
e a trajetória sequencial das estratégias de reprodução fami-
liar e organização da individualidade do colono.
Compreender o feixe de relações que se aglutinam e se
anulam num processo de migração e localização num deter-
minado lugar não é tarefa fácil. A relação homem/natureza
foi resolvida pelo domínio daquele sobre esta (a ideia de des-
bravar, de pioneiro, de derrubar, de mexer com a terra, de
construir, perpassa muitos desses textos). As relações sociais
na produção são pouco ou nada inseridas ou até desconsidera-
das, ou, então, vistas só do prisma da produção, do econômico
e/ou do cultural. O social apresenta-se segundo o olhar dos
grupos que se sobressaíram, que cresceram, que assumiram o
poder político; ao mesmo tempo, são exemplos de moralidade
e de vida em família. Não são poucos os que misturam essas
questões com a dimensão da poupança, do trabalho penoso,
do desejo de fazer capital ou futuro, como dimensões gerado-
ras da riqueza para alguns.
É muito comum nos depoimentos de idosos aparecer a di-
mensão do tempo histórico como mitificado e mistificado pela
presença, em determinadas regiões, de uma cultura imbuída
de espírito empreendedor – “recém que chegamos... era puro
mato. [...]. Naqueles perau só trabalha quem tem coragem e
disposição mesmo”.
A construção de um espaço de colônia deu-se sob o sig-
no da propriedade da terra, localizando, desde o início, nes-
se espaço, o imigrante vinculado ao mundo da mercadoria. A
grandiosidade de ser o pioneiro, o sentido simbólico disso, a
transcrição oral da natureza rude e íngreme transferem para
o homem uma realização do rudimentar ao domínio do natu-
ral pelo trabalho; a dimensão do nada cede lugar à forma, ao
268 João Carlos Tedesco

formato, à adaptação. O ideário de pioneiro ignora a tempo-


ralidade anterior ou minimiza o papel e a importância, pelo
menos econômica, dos instalados anteriormente a sua chega-
da. A memória das picadas e dos travessões memoriza a es-
pacialidade e define os limites do espaço vazio e do ocupado.
A forma de pensar o tempo está baseada na agricultura, no
progresso, na sua participação no espaço.
Nesse horizonte da preservação da história e da memória
da família, é importante que se diga que, no relato de grande
parte dos idosos, o que é reflexo e expresso como constitutivo
da conservação da árvore é o lado masculino do parentesco.
A recriação de representações simbólicas e de práticas
sociais de um passado de trabalho penoso proporciona sig-
nificados e valorizações às suas vidas. Ao resgatarem e rein-
ventarem seu passado imediato no presente, ao conceberem
duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na comunidade,
entre idosos e jovens, esses idosos (homens e mulheres) adap-
tam-se, resistem à imersão em universos da modernização e
da racionalidade individual no seio familiar.462
É visível a correlação entre o ethos do imigrante com a
terra e com os animais. Esse processo se alimenta e se ritu-
aliza, em parte, ainda hoje, pelas falas dialetais, na econo-
mia familiar, no trabalho como riqueza e na unidade moral
da família traduzida em força de trabalho, na dialética da
vida cotidiana baseada na esperança e no medo (esperança de
saúde, colheita, trabalho, medo de desgraças físicas, morais e
produtivas), na preocupação em comprar terra para os filhos
em fazer capital para melhor “colocá-los”, na produção de ce-
reais e na criação de animais, na intercomunicabilidade vici-
nal e comunitária através de festas, filós, visitas, mutirões,
solidariedades aleatórias etc.

SEYFERTH, op. cit.


462
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
269

As representações que a sociabilidade moderna produz e


reproduz no social, dando destaque à divisão, aos ritmos e às
garantias da quantidade do tempo empregado, acabam por
redefinir o aproveitamento do que deu certo da experiência
passada. A absolutização do agora, do ganhar tempo, da ade-
quação individual ao tempo como imperativo social penetra
no cotidiano da vida social dos idosos. O acento utilitarista,
linear e quantitativo do tempo centrado na eficiência dicoto-
miza passado e presente, relegando àquele certo estigma de
extemporâneo e atrasado. O papel dos idosos e a (re)constru-
ção do ethos de colono vivenciam e integram esse processo, o
que não significa que tudo morreu e/ou se transformou.
Os processos em redefinição que aconteceram pós-déca-
das 50/60 são expressivos de trajetórias temporais (localiza-
das e contextualizadas), mas que não omitem o resgate. O
cotidiano do colono é um complexo inter-relacional de tempo-
ralidades e de significados em conflito. A memória caminha
junto com esses tempos que se redefinem.
Os significados das épocas passadas e as formas pelas
quais as experiências são vividas, lembradas e contadas
também se alteram no decorrer do tempo. Coisas que não se
falavam antigamente, pode-se falar agora e vice-versa. Era
comum ouvirmos depoimentos de idosas falando sobre a vida
sexual dos jovens, as formas de matrimônio alteradas, sobre
os negros sem o peso explícito do racismo, dentre outras.
Até bem pouco tempo, as famílias eram numerosas por
necessidade de mão de obra; hoje, com a mudança da base
técnica e mecânica da produção agrícola, com o controle da
natalidade e com a redefinição do papel da mulher, esse pro-
cesso ganha novos contornos. Mas essas não são as causas
primeiras da redução de filhos, e, sim, o problema da proprie-
dade e de sua real fragmentação.
270 João Carlos Tedesco

As próprias histórias representam a constante evolução


dos modos pelos quais os migrantes constroem suas vidas
através de suas histórias. As histórias orais dos migrantes
proporcionam evidências tanto sobre a experiência passada
quanto sobre as histórias de vida que são uma parte impor-
tante e material da sua experiência.463
Se tomarmos, por exemplo, o discurso e as práticas re-
ligiosas, sobretudo da Igreja Católica, sabemos que tiveram
grande repercussão na forma de aceitação, contraposição, de
racionalidades internas, de estratégias racionalizadas em ra-
zão dos limites, da ignorância e do saber camponês. Nem tudo
foi absorvido pacientemente e sem conflitos. Sabemos que as
sociedades camponesas relativizam, em muito, pregações de
regramento moral. Muitas práticas de cunho sexual são, no
seio camponês, norteadas por fatores de ordem cultural liga-
dos à família, à terra, racionalizadas a partir de estratégias
e adaptações internas. Todos sabemos das razões econômicas,
simbólicas e sociais do discurso pró-natalista instituído pela
Igreja e amparado pelo Estado, da demonização do desejo se-
xual, associado unicamente ao matrimônio com procriação.
Esse contexto desenvolveu a representação social, tornou-
se parte constituinte da cultura camponesa, o orgulho para
a mulher em ter muitos filhos como forma de produzir mão
de obra, de ter garantia de amparo na velhice (agora com os
netos), destacando os fatores de herança, a ligação entre a
casa, e a prática de ter filhos – ai de quem, principalmente a
mulher, não os tivesse –, tudo vinculado ao trabalho e à cons-
trução de capital – “para deixar mais para os outros do que
se recebeu”.
Ter e cuidar de filhos sempre foi uma orientação ética
básica da cultura camponesa da região colonial. Só o casa-

THOMSON, Alistair. Histórias (co)movedoras: história oral e estudos de mi-


463

gração. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 22, n. 44, 2002. p. 359.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
271

mento daria essas condições e, ao mesmo tempo, contradito-


riamente, promoveria certa autonomia dos filhos em relação
aos pais. A migração para novas colônias, a urbanização do
rural e a migração e/ou contato com o urbano também liber-
taram e abriram os “olhos da gente” em relação à autoridade
patriarcal e “mesmo dos padres. [...]. A televisão depois aju-
dou também e as escolas, as novelas...”.
Segundo Costa e também Vannini, afetividade, sensuali-
dade, sexo, desvios de conduta nesse campo não eram objeto
de muito diálogo e abertura no seio familiar. Algumas ido-
sas, principalmente, ainda hoje comentam isso.464 Quando se
entra nesse campo, as narrativas são carregadas de contra-
posição; ao mesmo tempo, ainda produzem desgostos, tabus,
ignorância, vergonha, subterfúgios, desconhecimento, mitos,
medo, conservadorismo; e revelam a existência de ações além
ou aquém do instituído e “orientado”. A cultura camponesa,
com seus valores, representações, suas relações sociais, pro-
duziu racionalidades e racionalizações “internas” adaptati-
vas, hierarquizadas e complementares ao seu mundo, ainda
que isso tudo seja produzido no encanto individual, escondi-
do, alternativo, resignado e, talvez, submisso publicamente a
uma proteção moral.
O olhar vigilante da Igreja, personificado na figura e
presença-ausência do padre, por meio de linguagens e signifi-
cados de repressão, normatizações e transgressões, produziu
uma ética sexual sentida, vivida, observada (levada em con-
ta), transgredida, sublimada, racionalizada a partir dos hori-
zontes (em geral, limitantes) da cultura camponesa, a qual se
reproduz e se redefine com os contextos, historiciza-se com as
dinâmicas e exigências sociais e culturais do grupo de perten-

Sobre esse tema, ver VANNINI, I. A. O sexo, o vinho e o diabo: demografia


464

e sexualidade na colonização italiana no RS (1906-1970). Passo Fundo: UPF


Editora, 2003; ver, também, COSTA, R.; BATTISTEL, A. Assim vivem os
italianos. Caxias do Sul: Ediucs, 1982.
272 João Carlos Tedesco

cimento. Estratégias internas, ainda que pouco visíveis pu-


blicamente, recriminadas e estigmatizadas (principalmente
quando tinham como foco negativo a mulher), apareciam, de-
senvolviam-se. Nas falas, principalmente de idosas que estão
no meio urbano, produzem-se representações de desejo e pra-
zer em contraposição às moralidades representadas e imagi-
nadas, seletivamente, por influências externas, demonizadas
por uma ideologia sexofóbica, pela cultura do silêncio e pelas
linguagens orais repressivas.
Na cultura camponesa, ainda hoje, incorporação e trans-
missão de saberes e de ideais levam muito em conta univer-
sos de seu conjunto cultural, os limites e possibilidades da
unidade familiar. A transmissão de saberes para o trabalho,
malgrado as interferências técnicas, acontece no próprio tra-
balho; é um saber-fazer que é transmitido pela família, como
temporalidades que se cruzam (via de regra o pai, que é o
representante do fazer-aprender-saber-transmitir).
A transmissão e incorporação de saberes sempre foram
mais do que uma transmissão de técnicas; eram expressão de
valores, construção de papéis, estrutura social, reprodução do
grupo etc. A produção e a reprodução dos bens simbólicos ca-
minhavam juntas, ou, então, antecediam a produção de mer-
cadorias. Havia uma produção de bens que era socializada
antes de socializar mercantilmente alguma coisa, dimensão
essa revestida de valores de uso e do uso como valor. Antes de
produzir cultivos, o trabalho produzia cultura; havia encade-
amentos de ações técnicas e de ações simbólicas, tornando um
processo ritual e cotidiano que era o trabalho.465
O trabalho continua sendo hoje uma categoria cultural
ou ideológica e tem múltiplos significados; expressa, acima de
tudo, uma ética (essa ligada à terra, à família e ao gênero).

Ver WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec,


465

1995; ver, também, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da


terra: a lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
273

Aprender a lidar com a terra e as plantas é aprender a lidar


com o ordenamento do mundo/natureza.466 Portanto, romper
com a prática da agricultura significa romper com toda uma
visão de mundo, pois o camponês não aprende só a prática
agrícola, mas, sim, todo um ordenamento de mundo mais
complexo. Por mais que os processos materiais e racionais mo-
dernos tendam a alterar essa lógica interna; por mais que os
valores não sejam imutáveis, o camponês reserva para si um
horizonte que resiste em se romper. O desafio está em perce-
ber dialeticamente as mudanças, seus conflitos/tensões e suas
reações, quem são seus promotores, aonde se quer chegar.
A dinamicidade da cultura (difusão, contato, mudança) é
correspondente à dinâmica dos processos sociais, temporais,
técnicos, simbólicos e significativos que dão unidade às rela-
ções e aos modos de comportamentos sociais.467 As condições
de existência do camponês, pelo seu trabalho, pelas práticas
sociais etc. vão criando um saber social cotidiano que é coleti-
vo, hierarquizado, lógico, e que objetiva dar conta das ações e
processos relacionais, necessários (pragmáticos) ao seu mun-
do vivido. Esse saber social coloca questões nas várias dimen-
sões simbólicas e materiais, como instrumento do agir social.
A sua lógica funda-se na ordenação, nas previsões, na difusão,
na regularidade, na classificação das ações cotidianas. É im-
portante que se articulem os saberes, que sejam priorizados e
valorizados, como ponto de partida, os conhecimentos e práti-
cas de quem verdadeiramente é o sujeito da ação educativa.468
O que nos parece é que, com a modernização da base téc-
nica da produção, cidade e campo tornam-se espaços que se
complementam, conservando-se especificidades ecológicas,

466
Ver WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K., op. cit.
467
DAMASCENO, M. N. A construção do saber social pelo camponês na sua
prática produtiva e política. In:_______ (Org.). Educação e escola no campo.
Campinas: Papirus, 1993.
468
Idem.
274 João Carlos Tedesco

sociais e culturais. No entanto, existe uma espacialidade so-


cioeconômica e cultural que se articula em razão de necessi-
dades essenciais de um processo mais amplo, o qual não se
funda totalmente nas decisões racionais e/ou científicas.
As famílias buscam utilizar mecanismos, até com res-
quícios de tradição, para melhor adaptar seus interesses aos
projetos individuais. A ida da nora para a casa do sogro ou
do marido e seu dote, estipulado num pedaço de terra ou no
seu valor monetário (o que vai ser apropriado pelo marido); a
tentativa de fazer permanecer um único filho nas terras da
família, levando a que as dos outros sejam adquiridas pelo
herdeiro, inclusive com a ajuda dos pais; a liberação de mem-
bros para outras atividades e para o estudo; as dribladas nas
partilhas em relação às mulheres (lote na cidade, estudo de
2º grau, parte em dinheiro...), dentre outros, são princípios de
manutenção da unidade da terra cultivável e da perpetuação
do patrimônio, os quais definem estratégias de partilha.
Capítulo 16
Ritualização verbal e não verbal da
cultura na memória

As formas das histórias de vida são tão importantes


quanto os fatos que elas contêm.
Bertaux-Wiame

Já vimos que o testemunho oral é fundamental para per-


ceber aspectos do interior dos processos de migração, de resis-
tência cotidiana dos que ficam e dos que saem, das posições
diferenciadas entre gênero e entre membros familiares sobre
esses mesmos processos. O depoimento oral geralmente pro-
picia a exteriorização de consciência vivida e significativa do
momento de sua materialização e da capacidade e importân-
cia dos atos de lembrança do tempo vivido “de antigamente”.
O depoimento oral pode ser útil na percepção de uma
alteração espacial que não signifique meramente um desen-
raizamento, mas um transplante cultural e espacial, cujas es-
tratégias de sobrevivência se baseiam nos mesmos processos
que qualificam e identificam o ethos camponês, tais como a fa-
mília, o parentesco, a vida comunitária e o trabalho centrado
na dimensão do núcleo coletivo como forma de enfrentamento
das novas demandas e das novas ordens de sociabilidade.469
Sabemos que em todas as culturas e etnias existem sem-
pre práticas mais ou menos ritualizadas com as quais cada

THOMSON, op. cit.


469
276 João Carlos Tedesco

grupo social ensina aos seus membros a arte da exterioriza-


ção da memória.470
Costuma-se dizer que as narrações imitam a vida, mas,
no fundo, é a vida que imita as narrações. As narrações for-
mam esquemas que permitem entender a realidade e que au-
xiliam na produção da percepção do mundo.
Narrar a viva voz alguma coisa a qualquer um significa instaurar
uma relação e produzir efeitos reais, e, ao mesmo tempo, real é
ouvir alguém. Possamos fazê-lo ou não, se o fizermos, alguma coi-
sa sucede. [...]. (O narrador) quando conta uma história, cria um
mundo cuja imaginação se desprende [...], se situa no mundo das
ações e das relações.471

Veremos nesse item alguns elementos que identificam


uma memória de uma cultura étnica, independentemente de
sua ligação com o meio urbano e/ou rural.472

Memória e etnia
A memória dos lugares pode ser diferente dos
lugares de memória.
Lucena

A memória e a cultura étnica localizam-se num cenário


presente de grande dinamismo presentista, porém de cunho
nostálgico, ufanista e de revalorização de práticas, ações, di-

470
YEATS, F. L’arte della memoria. Torino: Einaudi, 1972.
471
JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:
Mondadori, 2000. p. 60.
472
A análise contida nesse item baseia-se em estudos anteriores, já informados,
bem como na literatura sobre imigração que aborda fatores de ordem simbó-
lica, de formas de organização da vida do grupo étnico em questão, bem como
de projeções midiáticas recentes sobre determinados aspectos da cultura e
etnia italiana. A bibliografia aqui é muito vasta. Independentemente de suas
formas de abordagem, há aqui uma produção, acadêmica ou não, de grande
envergadura.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
277

mensões e simbologias da tradição; podem servir de tradição,


tradução, acomodação, crítica e redefinição.
No específico relacionado à cultura étnica, percebemos
que há muito pouco conteúdo expresso oralmente pelos ido-
sos referentes à colônia-mãe, escassa identificação da comu-
nidade com a pátria-mãe, porém há um certo pertencimento
vêneto que se embasa na presença do componente familiar,
do parentesco e da importância do fenômeno religioso, de sua
ideologização em torno do regramento da vida, porém com
sentimento de culpa pelo desregramento efetivo existente
nesse aspecto no seio familiar, individual e comunitário.
Grande parte desses processos, ainda que em redefini-
ção, mantém-se. Como já falamos, recordam-se muito a capa-
cidade de resistência em relação ao trabalho duro, as dificul-
dades do ambiente e da natureza, a presença e necessidade de
muitos filhos, o fato de se casarem cedo e, por isso, terem mais
tempo de fecundidade, os conflitos com caboclos, a centrali-
dade do fenômeno religioso e da Igreja, o ufanismo da noção
do desbravador, o “primeiro que chegou aqui”, o progressismo
sem a percepção de processos macro no campo político, social
e econômico.
Acreditamos que a memória e a cultura étnica devam
ser entendidas, acima de tudo, como prática e fenômeno so-
cioeconômico, que possuem ligação com a indústria cultural,
com instituições sociais, no caso específico, especialmente a
família, a religião e a comunidade, com os discursos e narra-
ções socio-históricas produzidas por instituições e conserva-
das ainda hoje, as quais produziram representações sociais
sólidas e que permitem a manutenção, ainda que redefinida,
de um horizonte de pertencimento.
Pensar a questão da memória, da família e da etnia cul-
tural é muito mais do que buscar cruzar temporalidades; é
ser testemunho da história; é localizar no tempo e no espaço
278 João Carlos Tedesco

raízes e ações que o presente e o passado remoto desvalori-


zaram, como é o caso do parentesco, da consanguinidade, de
compadrios, de famílias extensivas, de ressentimentos, de
ações significativas no tempo. É nesse sentido que a memó-
ria faz referência a uma ideia de persistência ou reinvocação
de uma realidade de uma maneira intacta e contínua.473 A
lembrança recoloca a esperança na capacidade de recuperar
alguma coisa que se possuía, um tempo que se esqueceu.
Segundo Guimarães, por sua própria natureza, à memó-
ria caberia a tarefa de realizar um retorno àquilo que a cada
vez se distancia mais e mais. Porém, exausta de repetir a re-
petição, sem forças para suportar o que lhe é destinado, inca-
paz de suportar o fracasso fundador de sua busca, a memória
procura fixar-se em alguma cicatriz, corte, descontinuidade
ilusória, capaz de demarcar, ainda que fugazmente, o recuo
incessante da origem.474 É nesse sentido que há rememora-
ções e vazios.
A memória cultural e étnica é marcada pela descontinui-
dade dos registros de tempo e pela heterogeneidade dos níveis
que a compõem. É nessa dimensão do tempo no espaço e do
espaço cultural no tempo da memória que muitas tradições
são ou podem ser inventadas e/ou redefinidas. Aliás, sempre
que possível, é comum, na sociedade atual, tentar estabele-
cer continuidade com um passado histórico apropriado, rede-
finido, transtemporalizado. Contudo, na medida em que há
referência a um passado histórico, as tradições “inventadas”
caracterizam-se por estabelecer com ele uma continuidade
bastante artificial. Isso porque toda a tradição inventada, na

473
JEDLOWSKI, P. Memoria. Rassegna Italiana di Sociologia, v. XXXVIII, n. 1,
gen./marz. 1997. p. 135-146.
474
GUIMARÃES, C. Imagens de memória: entre o legível e o invisível. Belo
Horizonte: UFMG, 1997. p. 21 e 37.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
279

medida do possível, utiliza a história como legitimadora das


ações e como cimento da coesão grupal.475
Fala-se muito que o tempo anda mais depressa e que as
pessoas vão junto com esse tempo. Vivemos apressados, que-
rendo fazer tudo logo porque amanhã há outras coisas para
fazer, e assim sucessivamente. Benjamin já analisou o fato de
que recebemos muitas informações a todo o momento, não nos
fixando em nada, pois o conjunto de informações recebidas
será logo substituído. É a chamada “dimensão presentista” do
tempo fugidio, do obsoleto, do escopo, da ética dos instantes,
do tempo real etc.
Paradoxalmente, como forma de compensação e/ou satis-
fação também momentânea ou atestado de não aceitação da
dimensão presentista, desenvolvem-se saudosismos, nostalgias,
ufanismos; desvelam-se ressentimentos, estratégias, racio-
nalidades internas e adpatativas; rompem-se silêncios, não
ditos, etc. Muito do que se produziu sobre memória da etnia
italiana está repleto dessa ambiguidade.
Biografias (principalmente de pessoas famosas na esfera
política, empresarial e midiática), genealogias, festas de famí-
lias, espaços do patrimônio público (ruas, praças, arquitetu-
ra...), cenários turísticos etc. são acionados para materializar
(situ)ações e fatos de memória cultural e étnica. Há uma pro-
funda relação entre memória e cotidiano, que desafia as des-
continuidades do tempo pela manifestação de rituais práticos,
de vividos no tempo e que são traduzidos no presente.
Já vimos na segunda parte de nosso trabalho que na me-
mória étnica geralmente se apresentam dimensões idealizan-
tes em torno de várias esferas do cotidiano vivido presente.
Vejamos algumas delas que se apresentam em nossa pesquisa
de campo e que serão discutidas melhor posteriormente.

LUCENA, C. T. Artes de lembrar e de inventar: (re)lembranças de migrantes.


475

Belo Horizonte: Arte e Ciência, 1999. p. 9, 10 e 21.


280 João Carlos Tedesco

A centralidade da família
O saber que vem de longe encontra hoje menos
ouvintes que a informação sobre acontecimentos
próximos.
Benjamin

A família é dimensionada por uma composição formada


pelo parentesco próximo, o compadrio, o sobrenome, a árvo-
re genealógica etc.; representa o dimensionamento de uma
memória coletiva, grupal. A família e sua dimensão cíclica
renovam-se pelos nomes, pois está presente aí a noção de
transmissão, de culto a uma tradição temporal e familiar, o
domínio público da vida social e, em geral, econômica. Não
há dúvida de que o nome/sobrenome possui uma valorização
simbólica na dimensão étnica da cultura. É por isso que a me-
mória da família se apresenta como um complexo de referên-
cias simbólicas imaginadas na esfera da integração/desinte-
gração, felicidade/desgosto, continuidade/descontinuidades.
Através de contatos informais com idosos, percebemos a
dimensão ambígua da ideia do alerta (da pedagogia do alerta)
no sentido da necessidade de reprodução do passado e das
transformações do presente; do espelho do passado e da ideo­
logização de um devir coletivo que deve se manter, porém re-
produzindo formas de vida e valores societais do passado no
presente.
Percebemos que existe uma certa congruência entre as
maneiras pelas quais os nossos informantes conceituam o
passado e como, na época, experimentaram o passado e re-
agiram ao ambiente social. A família aparece sempre sob o
veio da centralidade paterna, sendo comum essa dimensão
expressa por ambos os sexos; há um reconhecimento da mora-
lidade severa, da obediência e submissão feminina ao homem,
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
281

do domínio físico e econômico da natureza física e produtiva


(terra e matas) pelo homem, do trabalho rude reservado ao
homem, bem como sua visibilidade e importância pública,
própria dos mecanismos de repressão de uma organização fa-
miliar patriarcal, patrifocal e patrilinear.
As noções de forte e fraco, leve e pesado, para dentro e
para fora ganham conotações expressivas de normalidade e
funcionalidade nas diferenciações, pois foram vividas assim,
foram sedimentadas no cotidiano através de rituais tempo-
rais e culturais e na ótica da permanência e/ou com pouca
redefinição.476
Família e afetividade, para o ethos do colono, possuíam
vínculos de dimensões coletivas; pensava-se a família primei-
ro, por ser o centro nevrálgico que orienta ações individuais.
Por isso, quando falávamos sobre afetividade com idosas, a
tônica que se fazia presente era a correlação negativa, o con-
traponto de tempos e as implicações disso para o horizonte da
família. A afetividade aparece sempre relacionada com as mu-
danças atuais, com a falta de vigilância, de controle e respon-
sabilidade dos pais e com o exagero de autonomia dos filhos,
das filhas principalmente. As lembranças do campo afetivo
vêm carregadas e manifestas em ações de repressão externa
e de algumas poucas situações estratégicas, porém sempre
de respeito à autoridade paterna. No entanto, idosas do meio
urbano revelam que, se estivessem na cidade na época, tal
rigidez teria sido afrouxada, assim como é hoje. No campo das
idealizações aparece o estudo como quase completa ausência,
o fato de ser um elemento mediador para o trabalho fora da
agricultura, esse está em profunda contraposição, se compa-
rado à atualidade.

Ver WOORTMANN, E., op. cit., 1995.


476
282 João Carlos Tedesco

A subjetividade é um elemento forte na determinação da


elaboração da representação dos lugares, das coisas do espaço
que possui sua marca, do movimento das memórias/lembran-
ças, do “testemunho privado”,477 das imagens, do personifi-
cado “antigamente, eu...”, dos tempos e dos espaços que, no
presente, se entrecruzam e se reencontram.
Como diz Lucena, na consciência dos migrantes, os luga-
res e os tempos vão e vêm, a lembrança oscila entre o passado
e o presente em múltiplas camadas vividas e intercambiadas
no decorrer da existência.478

O mundo do trabalho
Já se foi o tempo em que o tempo não contava.

P. Valéry

A esfera do trabalho, em geral, é representada na forma


de memórias de ofícios, de sacrifícios, de despojamento e ru-
deza da vida. Nesse horizonte, há uma produção discursiva
muito extensa que busca valorizar o imigrante como branco,
civilizado e trabalhador, discurso esse produzido e incorpora-
do pela memória étnica e que não recebeu ainda total atenção
no campo analítico, no sentido de fazer aflorar contradições
nesse processo todo.
A memória do trabalho de idosos entrevistados organi-
za-se em torno da terra da família; articula-se com herança,
com peso, esforço, luta, o corpo como objeto e instrumento de
trabalho, o reforço da vizinhança e de compadres, a diferença

MALUF, M. Ruídos de memória. São Paulo: Siciliano, 1995.


477

LUCENA, C. T. Memórias de famílias migrantes: imagens do lugar de origem.


478

Projeto História, São Paulo, n. 17, 1998. p. 397-413.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
283

de trabalhos na ótica do gênero e da importância relativa aos


horizontes temporais e espaciais.
As idosas, especialmente, e com mais veemência as do
meio urbano, moviam-se através da rede familiar para encon-
trar trabalho, ou, então, muitas vezes, utilizavam-se da capa-
cidade de trabalho (lavar, passar, “fazer limpeza” etc.) para
encontrar famílias.479 Família e trabalho mesclam-se em ho-
rizontes espaciais variados e são manifestos constantemente
nos relatos de memória. Foi comum ouvir depoimentos infor-
mais de que o horizonte cultural do trabalho no espaço ur-
bano foi mais disseminado pelo homem, porém esferas que
articulam valores culturais e simbólicos foram conservadas e
reproduzidas pelas mulheres, como é o caso da culinária, da
língua dialetal, das vestimentas, das formas de organização
dos objetos e dos ornamentos dentro de casa, do espírito reli-
gioso e do convívio vicinal.
Os idosos reconhecem certo “descuido” com essas ques-
tões, porém identificam o maior envolvimento externo, seu
pragmatismo econômico e a busca de trabalhos externos e,
muitas vezes, desvinculados de seu horizonte de saber e de
cultura, como fatores que provocaram rompimentos com pro-
cessos históricos de vida e de sociabilidade familiar e comu-
nitária. O dialeto é um deles, pois não podia ser desenvolvido
em espaços de trabalho alheios ao seu horizonte próprio, que
era o meio rural.
Nas entrevistas, era lugar-comum a utilização, pelos
idosos, de formas e/ou palavras dialetais para tentar expli-
car ou comentar algo, principalmente quando se referiam a
alguma dimensão muito significativa vivida em tempos mais
distantes, em geral no horizonte do sacrifício no trabalho e
nas dificuldades econômicas. O referencial dialetal buscava

LUCENA, op. cit.


479
284 João Carlos Tedesco

preservar significados de conteúdo linguístico passível de ser


expresso com o fundo identitário, porém também manifestava
a marginalidade atual de sua importância, de seu desloca-
mento temporal e social.
Entendemos que as formas linguísticas, seja pelo silên-
cio, seja pelos seus padrões e suas metáforas, são importantes
na definição significativa das coisas a lembrar; revelam hori-
zontes de possibilidades que, sem o desejo de generalização,
enfocam significados e implicações do movimento temporal
dos conteúdos de memória e do alimento de muitas formas de
narração sem que, necessariamente, necessitem ser de passa-
dos longínquos.480

O ambiente de vida social e o espaço construído


O passado é o que você lembra, imagina que
lembra, convence a si mesmo que lembra, ou
finge lembrar.
H. Pinter

O cenário da vida social representa a memória do espaço,


da mobilidade física e econômica, presentificada por trajetó-
rias em cenários variados, sob o manto do pioneirismo e do
evolucionismo econômico (progressismo), mesclada ao hori-
zonte de memória da sociabilidade, da solidariedade, dos con-
flitos étnicos e intraétnicos.
Os lugares e os espaços marcam e recebem as marcas dos
que chegam e dos que saem. Essas marcas podem ser físicas,
na paisagem, no ambiente construído, no adornamento dos
ambientes, porém podem se constituir e se fixar nas imagens,

LUCENA, C. T., op. cit., 1999.


480
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
285

na rememoração, nos laços afetivos, na ligação com o mesmo


ambiente, nos contatos familiares.481
A lembrança, por exemplo, pode fazer desencadear espa-
ços, reencontrar tempos e ligá-los aos ambientes físicos, simbó-
licos e mentais. É na memória que os instantes do tempo e as
especificidades do espaço encontram-se; é ela que faz viajar pe-
los tempos e pelos espaços significativos. Os relatos de coisas
simples, comumente de algo construído pela mão dos idosos
em “tempos atrás”, transformam-se em imagens significati-
vas de um tempo sobreposto, de uma capacidade temporal
perdida e não mais reconhecida cotidianamente, ou seja, que
se transformou em relíquia para quem a significou. Perce-
be-se que os idosos têm necessidade de transferir temporal-
mente símbolos e de lhes dar significados num tempo perdido
como se fossem indicadores de sua passagem pelo espaço e
pelo tempo passado.482
A memória dos lugares fixa-se em um lugar preciso do
qual não se pode separar; os lugares da memória caracteri-
zam-se pela sua capacidade de transmissão.483 Ao ter presen-
te, por exemplo, os lugares comemorativos, veremos que, em
geral, expressam sofrimento exemplar (perseguição, morte,
humilhação, derrotas...); passam a ser fundamentais para
os valores de memória histórica e nacional. Existem lugares
que manifestam traumas, “traços de sangue das vítimas do
passado”, diz Benjamin. Por isso, produzir lugares de memó-
ria é também produzir a possibilidade do protesto contra o
sofrimento e as injustiças da história (lembrar os campos de
concentração).
Os lugares não possuem uma memória imanente, porém
são muito importantes para a construção do espaço cultural

481
LUCENA, op. cit.
482
Id. ibid.
483
ASSMANN, op. cit.
286 João Carlos Tedesco

da lembrança.484 Os lugares encarnam e expressam uma me-


mória vivida e co-participada dos indivíduos (a casa, o porão,
a praça, a roça, a terra, a comunidade etc.), mas também sím-
bolos que os transcendem. Há, sem dúvida, uma profunda li-
gação entre os lugares de memória e a história familiar dos
indivíduos. Por isso, podemos dizer que os lugares não se li-
mitam a fixar as lembranças e a certificá-las dando-lhes uma
localização territorial, mas encarnam uma continuidade de
tempo que vai além da dos indivíduos, das épocas etc.
Os tempos e os espaços confundem-se na lembrança dos
que migram. Contexto e temporalidade situam o migrante,
representam memórias, momentos, (situ)ações, deslocamen-
tos etc.485 A memória desloca-se do tempo para o espaço, do
espaço para o espaço, ao mesmo tempo que os unifica. O ru-
ral e o urbano não podem ser vistos separadamente, pois as
representações se entrelaçam nos espaços. Os idosos entre-
vistados manifestam fatos e circunstâncias da vida na cida-
de, no bairro e nos vários espaços significativos de trabalho.
Percebemos que diferentes espaços constituem seu cotidiano,
sejam públicos, sejam individualizados, coletivos e privados
(as festas comunitárias, a culinária, o trabalho variado e di-
ferente daquele do meio rural, a participação na Igreja etc.).
Ficamos com a certeza de que os espaços são narrados
mais pelo âmbito da fronteira, da separação sociocultural e
também simbólica. Rural e urbano, periferia e centro, casa e
trabalho, aparecem bastante polarizados em alguns momen-
tos; em outros, complementam-se e/ou cruzam-se.
Os tempos e os espaços diversos não são percebidos pelos
idosos totalmente na perspectiva do diverso, pois ambos se
confundem e se mesclam nas imagens lembradas. Diz Lucena
que o tempo é memória, é diferencial, é o situar-se no passa-

LUCENA, 1999, op. cit.


484

LUCENA, op. cit.


485
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
287

do: “O espaço, por sua vez, é o situar-se no contexto. Os dois


contextos (cidade/periferia e roça) não podem ser entendidos
separadamente, pois os migrantes possuem representações
de seus respectivos espaços, que se entrelaçam.”486 E para
Certeau, a “memória produz um lugar que não lhe é próprio.
[...]. A memória se desloca de um espaço a outro, e é no espaço
que se encontram os testemunhos de uma duração”.487

A força do simbólico
Nossos braços e pernas estão cheios de lembran-
ças entorpecidas.
Proust

Esse âmbito representa, no limite maior, o horizonte do


religioso, a memória do regramento, da honra, da moral da
vida, do transcendente, dos limites da vida humana e da ne-
cessidade da presença divina no cotidiano, a importância das
rezas, do padre, das estratégias de desregramento do conteúdo
significativo e ideologizado dos discursos institucionalizados e
pouco eficientes à eficácia da vida cotidiana do camponês.
O espaço da religiosidade, nos primeiros anos de migra-
ção, concentrava-se no capitel, nos espaços de maior perten-
cimento e identificação ritualística. O espaço simples e pouco
institucionalizado do capitel manifestava o “modo” camponês
de hospitalidade física ao sagrado e de prática de sua religião.
A presença mais intensa do padre, as condições econômicas
dos colonos um pouco melhores e o aumento do número de
habitantes no vilarejo levaram a que as igrejas fossem cons-
truídas. No entanto, os capitéis, ainda que reduzida sua im-

Id. ibid, p. 80.


486

CERTEAU, M. de. A invenção do cotidiano, p. 163.


487
288 João Carlos Tedesco

portância e participação de fiéis, continuaram, inclusive hos-


pedando santos e representando formas populares e simples
de materializar o sagrado na vida cotidiana.
A religião era, e continua sendo, importante para o ho-
mem que vivia, e vive, do cultivo da terra e faz do seu uso
um espaço vital. O sacro torna-se um elemento dinâmico da
cultura, seja como imaginário (mito), seja como organização
comportamental da vida, dos valores morais e dos rituais co-
tidianos. O espaço do sagrado é lembrado como uma unida-
de que liga vida e morte, como constitutivos de um conjunto
único. A religião busca ensinar a viver para melhor morrer.488
Vida e morte interligam-se no cotidiano dos colonos como pos-
sibilidades e ausências, imaginários e conhecimentos no ho-
rizonte do vivido. Os símbolos e as suas significações, para os
idosos, podem ser reconhecidos nos ritos, nas manifestações,
nos valores, nos costumes e na religiosidade. Esse processo
simbólico é fundamental para a luta pela definição e/ou rede-
finição da identidade social e cultural desses.
Os objetos que, ritualizados, tornam-se relíquias, podem
revelar comportamentos e convicções, motivos do passado,
pensamentos, ações, momentos suspensos no tempo, vitali-
dade histórica, vestígios palpáveis. Os objetos significativos
revelam a vida comum dos idosos, significados objetais e ex-
pressões da vida cotidiana; são fragmentos físicos, concretude
existencial: “passei por uma porta pela qual Shakespeare ha-
via passado, e entrei num bar que ele conhecera. Sentamos à
mesa [...] e encostei minha cabeça contra a mesma parede que
a cabeça de Shakespeare havia tocado, e foi uma sensação
indescritível”.489 Os lugares, os objetos e as imagens ajudam a

488
ZONABEND, F. La memoria lunga. I giorni della storia. Milano: Armando,
2000.
489
HANFF apud LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História,
São Paulo, n. 17, 1998. p. 161.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
289

transportar pessoas, sensações, lugares dos tempos atuais de


volta no tempo. Trajes, ruínas, escritas estão em fluxo, enve-
lhecendo e correlacionando-se com situações, com interesses
do presente e desenvolvendo consciência do passado, estímu-
los à memória, recordações, ajustamentos às nossas necessi-
dades. “Como o passado parece afastar-se de nós, procuramos
evocá-lo novamente multiplicando a parafernália que o cerca
– lembranças, mementos, romances históricos, velhas fotos –
e também preservando e reabilitando suas relíquias”.490
Na análise de Vygotski, para aprender e apreender a me-
mória, são fundamentais as mediações, a ajuda de sinais; por
isso, constroem-se deliberadamente monumentos para não
esquecer. O autor refere que nós podemos controlar a memo-
rização produzindo autonomamente estímulos que se ajun-
tam àqueles produzidos pelo ambiente e que são capazes de
guiar nossas lembranças. Nesse sentido, são fundamentais
os estímulos mentais, formando cadeias de significados, ima-
gens, linguagens (associações de palavras). Vygotski insiste
no uso do objeto externo (símbolo construído) produzido para
expressar bagagens culturais, políticas, exemplos de vida etc.
Desse modo, a memória potencializa o pensamento social, a
consciência coletiva como uma corrente (unindo tempos). Os
museus, os lugares de comemoração, as cerimônias, os símbo-
los objetais, de uma forma ou de outra, são potencializadores
de memória.491
Pierre Nora no verbete “mémoire collective”, contido no
livro La nouvelle histoire, registra que há uma proliferação
de memórias coletivas, a qual se funda num cenário de trans-
formações e rupturas que os meios midiáticos ocasionam nas

490
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo,
n. 17, 1998. p. 180.
491
VYGOTSKI, L. apud LEONE, G. I confini della memoria. I ricordi como
risorse sociali nascoste. Catanzaro: Rubbetino, 1998. p. 48-55.
290 João Carlos Tedesco

memórias coletivas, sobretudo naquelas que enraízam cultu-


ras, que produzem tradições, desenvolvem consciência nacio-
nal e étnica. Essa proliferação é produzida por uma memória
social e histórica, que intenciona reproduzir, analítica e obje-
tualmente, formas de organização de vida coletiva ajustadas
aos novos formatos de vida social, sentimentos do passado e
possibilidades de inventariar lugares para a percepção visual
e histórica de memórias.
Sobre isso, Nora diz que é possível, pela institucionaliza-
ção de lugares, indivíduos, famílias, nações e etnias encontrar
suas lembranças e reconstituir sua personalidade.
Lugares topográficos como arquivos, as bibliotecas e os museus;
lugares monumentais como os cemitérios e as arquiteturas; lugares
simbólicos, como as comemorações, as peregrinações [...].; lugares
funcionais, como os manuais, as autobiografias ou as associações:
esses memoriais têm sua história. [...]. A análise das memórias
coletivas deve e pode tornar-se a ponta de lança de uma história
que se vê contemporânea.492

Esse processo auxilia na (re)constituição da identida-


de. A lembrança do passado auxilia-nos na autoidentificação
identitária: “Saber o que fomos confirma o que somos”, diz
Lowenthal. A ausência de memória faz perder sentimentos,
destrói a personalidade e deixa a vida vazia de significados.
A identidade assegura e amarra a realidade do passado, con-
firma-a, inspira confiança pela possibilidade de testemunho,
ainda que se façam presentes o campo do provável, o caráter
pessoal e a mutabilidade.
“Toda a memória transmuta experiências, destila o passado em
vez de simplesmente refleti-lo. Assim a memória filtra novamente
o que a percepção já havia filtrado, deixando-nos somente frag-
mentos do que inicialmente estava exposto”.493

492
NORA, P. Mémoire collective. In: LE GOFF, P.; CHARTIER, R.; LADURIE,
Le Roy. La nouvelle histoire. Paris: CEPL, 1978. p. 401.
493
LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. p. 94.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
291

É por isso que os lugares de memória ganham concretude


pela sua simbologia, que lhes dá materialidade e permanên-
cia, porém esse processo depende muito da construção teóri-
co-explicativa, dos significados e rituais impressos e expres-
sos no conjunto das estratégias de lembrança/esquecimento,
eficácia e instrumentalidade da memória.
É nesse sentido que é possível interligar o uso da histó-
ria com a memória e vice-versa, como forma de visualização,
acessibilidade, alargamento e formalização das possibilida-
des de compreender e ritualizar a memória e o passado. Diz
Nora que “o sentimento de desvanecimento rápido e definiti-
vo combina-se com a inquietude do presente e a incerteza do
futuro, dando ao mais simples dos testemunhos a dignidade
virtual do memorável”.494 Daí advém a importância da me-
mória patrimonial, monumental, arquivística, espacial, en-
fim, de lugares e objetos passíveis de registro e identificação
memorial. Os lugares estão no entrecruzamento da história
com a memória, servindo de visualização, vestígio, resíduos,
que possibilitam constituir memórias, fragmentos do passado
passíveis de análise, de ressignificação e reconstituição.

Os tempos, sua fragmentação, heterogeneidade


e hierarquia

Os tempos manifestam as rupturas e as redefinições, bem


como as continuidades, memória dos contrastes, do “meu tem-
po” e do tempo “dos de hoje”, das mudanças no cotidiano fami-
liar, social, cultural e no trabalho. Os tempos rompem-se por-
que “as coisas do tempo” se alteram, sofrem modificações e/ou

NORA, P. apud BREFE, A. C. F.; NORA, Pierre. Da história do presente aos


494

lugares de memória – uma trajetória intelectual. História. Questões & Debates,


Curitiba, v. 13, n. 24, jan./dez. 1996. p. 119.
292 João Carlos Tedesco

redefinições; reordenando as coisas, reordena-se a concepção


do tempo: ou fica para trás, ou anda depressa demais, ou é jo-
gado para frente negativa ou positivamente – “vais ver daqui
a uns tempos!”, “hoje se tem muito mais facilidade pra tudo”.
Os idosos reconstituem tempos em razão “do que dá pra
lembrar”, das concepções de mundo existentes no passado e
no presente e das presentificadas do passado. Porém, perce-
bemos que o tempo, para os idosos, não possui tanto a di-
mensão da ruptura. Vimos que eles se queixam das mudanças
sociais, das inovações, de seu espaço social restrito, de sua
aposentadoria “minguada”, de sua parca utilização social e de
valorização de sua experiência, porém não concebem as alte-
rações do tempo em termos de positividade nem de substan-
cialidade, ou seja, acreditam no retorno de muitos aspectos da
vida cotidiana do passado. No fundo, não seria bem um retor-
no, mas uma maior valorização de formas de convivência, de
contato com a terra, da alimentação sadia, de vínculos fami-
liares etc., pois, para muitos deles, os males da sociedade atu-
al são provenientes do rompimento das formas tradicionais
de convivência e, no caso da colônia, das formas modernas de
produzir, malgrado tenham tornado o trabalho “mais leve”.
Os tempos exigem movimentos, dinamismos de adapta-
ção e de percepção do futuro, porém sem se desvincular com-
pletamente do passado. Os tempos exigem estratégias tanto
no enfrentamento biológico do indivíduo quanto nos processos
de adaptação às mudanças sociais. Percebemos que os idosos
entrevistados não pararam no tempo. Malgrado a tendência
histórica de marginalidade social e cultural, além da econô-
mica, as racionalidades adaptativas, sejam no campo das ati-
vidades “que der pra fazer”, sejam no inferior da unidade fa-
miliar nas tomadas de decisão ou de expressão de formas de
poder interno (mais bem legitimadas pela utilidade material
da aposentadoria, da possibilidade de cuidar de netos/bisne-
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
293

tos e da necessária e funcional coabitação) e de processos de


adequação de formas modernas de pensar e de trabalhar, tais
como, no caso do meio rural, cobrar arrendamento pelo uso
da terra por algum filho utilizar sementes transgênicas para
evitar a capina e, com isso, deixar sua terra sem ervas dani-
nhas, etc.
No caso de idosas que cuidam de netos, é comum a pos-
sibilidade de opinião, de definição de ações no cotidiano da
casa e das formas de interação social de seus dependentes.
A recriação de formas de poder e de utilidade familiar e so-
cial de idosos revela processos de alteração social, estratégias
reconstrutivas, hierárquicas e complementares em relação a
novas formas que espaços e tempos sociais imprimem na vida
contemporânea.

O espaço e o momento do lúdico

Espaço e momento do lúdico são elementos que expres-


sam a memória da emoção em torno da saudade, dos símbolos
que manifestam a coexistência temporal e espacial de tem-
pos passados, de valores, ideais, desejos de continuidade.495
As festas de família, as homenagens presentes em situações
de recordação costuram, simbolicamente, objetos, discursos,
tempos, espaços, fatos etc., que manifestam trajetórias, mitos
fundadores, valorizações de grupos, sobrenomes etc.
Podemos afirmar, com toda a certeza, que o cenário da
festa é muito resgatado e/ou reconstituído na memória étni-
ca. Refaz-se, com isso, a eficácia da simbologia do vivido, da
saudade, do tempo e do espaço do trabalho e do não trabalho,
porém como fruto e culminância de uma reatualização da so-

LUCENA, op. cit.


495
294 João Carlos Tedesco

ciabilidade comunitária, da consciência de que algo se esvaiu


no e com o tempo.
As festas e os encontros comunitários, de famílias, de
jovens, de terceira idade, os festejos paroquiais, a festa do
padroeiro etc. são fatos que se desenvolvem em horizontes
públicos, de sociabilidade, de engajamento, de compadrio, de
responsabilidades e de hierarquias complementares (direto-
ria da capela e/ou do bairro ou da paróquia e paroquianos
em geral). São espaço/tempo de manifestação externa local
das diferenciações públicas de atividades e funções de gêne-
ro, agregação e congregação inter e intracomunitária, ponto
de referência do intercâmbio de falas, de existência social,
da obrigação de “gastar um pouco e se divertir mais, não é?
Quando é a festa do padroeiro, questa non perco mai”.
A festa permitia, e permite ainda, a visualização local
de algo novo adquirido pelos participantes: um caminhão,
um trator, um carro, uma roupa, enfim, algo que manifeste
progresso e evolução social, momento também para “negociar
e, para alguns, de acertar contas”. Nos primeiros tempos da
colônia, a festa religiosa reconciliava as relações dos homens,
seu trabalho, sua vida pessoal, as colheitas, os problemas co-
tidianos etc. com o sobrenatural, o sagrado, com a tradição
comunitária, mas, acima de tudo, religiosa.
[...] festa sem o religioso, sem uma boa missa, não era e não é festa.
Por isso, a missa vem ainda hoje sempre antes da carne: primeiro
o lado espiritual, né, depois, daí sim, o lado material. Hoje, nas
promoções dos jovens, nem mais missa tem!

A festa fazia parte do horizonte da cultura local, da cul-


tura de origem popular, a qual permite inovar ritos, porém
sem perverter por completo a dimensão da repetição/tradição,
do “sempre foi assim”. No meio urbano, a festa “não tem o
mesmo sentido e gosto do meio rural, não há aquela vivência.
Nós mesmos cansamos de ir pra fora nas festas”. As lembran-
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
295

ças de idosos revelam os festejos comunitários como pontos


de referência pública, como espaço e momento/ocasião do lú-
dico, do religioso, do social, do fortalecimento do interconheci-
mento, da afetividade e amizade – “momentos de alegria, mas
também de envolvimento de todo mundo”.

O papel da narração na vida cotidiana


Para tornar-se narrador é preciso aprender a ler
a marcha do tempo e interpretar os vestígios que
este deixa na natureza e no mundo histórico.
M. Augé

O processo de relatar representa a continuidade e trans-


missão, manifesta o fato de os idosos quererem ser os guardi-
ões da memória, os mediadores da tradição. Nessa dimensão,
está muito presente o saudosismo, o altruísmo, a personifi-
cação e a presentificação. Os idosos sentem a obrigação de
lembrar, querem permitir vestígios pelos lugares de memória
e pela memória viva; eles têm consciência da perda da nar-
ração, de espaço da fala na família e nos convívios sociais. É
nesse sentido que se tornam importantes vozes, momentos e
símbolos ilustrativos de memória, sejam eles as fotos, os am-
bientes construídos, as mobilidades espaciais e o conjunto da
família (presença nas gerações).
Sabemos que o motor da narração é o desejo de habitar
no mundo que a narração abriu e sua imaginação de que al-
guma coisa fique para a experiência dos outros; de se fazer
sentir; de ser entendido e aceito; de dar significado à vida; de,
através da narração, produzir uma relação social, pois quem
escuta é convidado também a participar do diálogo: “Uma
narração é um discurso a propósito de certos fatos, mas, na
296 João Carlos Tedesco

medida em que se manifesta numa narração, transita entre


um sujeito e um outro, se revela no interior de uma relação e
contribui a criá-la.”496
Narrar, contar histórias, já dizia Bérgson, manifesta
uma reação contra a finitude, uma compensação com respeito
à depressão que provoca em nós a consciência da caduquice,
dos limites da realidade, uma saída à racionalidade dos dis-
cursos, pois mescla realidade com fantasia, uma abertura de
mundos possíveis, uma expressão de “coisas vividas” ou “coi-
sas escutadas”, pode ser expressão de um mundo em tensão.
Percebemos que idosos por nós entrevistados repetem
muito as mesmas histórias, porém suas narrações não são es-
sencialmente orais, contam sobre a própria memória; em al-
guns momentos, utilizam a mediação dos referenciais objetais,
principalmente os que expressam suas marcas e presenças.
Pareceu-nos claro que, como diz Jedlowski, “a sua narração se
coloca entre fluxos de conversação nos quais do início ao fim de
cada história são colocadas menos exigências da história em
si mesma que aquela da própria situação”.497 Os idosos falam
com o corpo, com o silêncio, com o tempo, com a voz. Por isso,
a narração, como já vimos, é uma mediação simbólica, um
incessante trabalho de transformar algo natural (ou sobre-
natural) num universo de sentido (ligação entre fenômenos
naturais, chuva com formas de viver em sociedade, seus re-
gramentos, sua ética social etc.), de sentido de integração, de
emoção que se abre à imaginação. Acreditamos que, no míni-
mo, essa realidade expressa que a vida é mais perfeita, mais
satisfatória e mais inteligente daquela como conduzimos nos-
sa existência.498

496
JEDLOWSKI, P. Storie comuni. La narrazione nella vita quotidiana. Milano:
Mondadori, 2000. p. 25.
497
JEDLOWSKI, P. Storie comuni... p. 44.
498
Ibidem.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
297

Os idosos sentem curiosidade pela vida, lêem histórias


de vida de santos centenas de vezes e não gostariam que fos-
se uma experiência solitária (eles levavam para roça, para
o parreiral, contam como derrubaram o mato, dentre outras
coisas que manifestam dificuldade, sofrimento e rompimento
com o presente. Os urbanos caminham pelo bairro e mostram
como era antigamente, o que mudou, como está hoje, como
gostariam que fosse; a vida urbana disciplinada e, ao mes-
mo tempo, sem controle, caótica e sem valores tradicionais no
âmbito familiar, comunitário, afetivo e de vizinhança.
No querer narrar alguma coisa, ainda que seja a forma
como foi feito determinado objeto de uso pessoal, que já foi
substituído e agora apenas materializa o saber “de uma épo-
ca”, demonstra que há uma vida escondida, uma vida cotidia-
na, uma opacidade, algo não vivido expressamente.499
Contar aos outros as nossas lembranças é uma escolha
importante porque é um modo de oferecer o conhecimento de
uma parte precisa de nós, um prolongamento de nós mesmos,
do que fomos, somos e pensamos, enfim, de nossas verdades
e fantasias.500
Ficamos com a consciência de que há muitas contradi-
ções, conflitos e centralidades nas manifestações de memória,
principalmente por idosos. Suas lembranças orais e objetais
são, em grande parte, manifestação de ambivalências, pois
personificam a crítica de muitas relações no passado, ao mes-
mo tempo em que demonstram sua obediência e submissão,
suas estratégias limitadas e problemáticas, ainda que se te-
nham constituído (em torno do casamento, do que se consi-
derava pecado, da liberdade, da diferenciação de papéis de
gênero etc.). Nesse horizonte, a dita “memória de gênero” é

ECO, U. Sei passeggiate nei boschi narrativi. Milano: Bompiani, 1994. p. 111.
499

LEONE, G. I confini della memória. Catanzaro: Rubbetino, 1998. p. 11. Ver


500

algo nesse sentido em BOBBIO, N. O tempo da memória. Rio de Janeiro:


Campus, 1997.
298 João Carlos Tedesco

muito forte, revela processos diferenciadores, tempos e espa-


ços de excludência, principalmente no horizonte da cultura,
do vivido familiar, da ordem econômica e da sexualidade pú-
blica. As contradições apresentam-se, também, na dimensão
laudatária e ufanista, nos ressentimentos e enquadramentos,
na ideia de sacrifício com crescimento econômico.
O último aspecto, o econômico/progressista, como já vimos, a
esfera midiática utiliza muito, ou seja, dimensiona a simbologia
evolutiva que une sacrifício com mesa farta, do mato à lavoura, da
ruralização à urbanização, da tradição à modernidade, do regra-
mento e vigilância ao pluralismo, da flexibilidade e da liberdade.
Enfim, a memória étnica possui valores que se reprodu-
zem e são traduzidos, trazidos e tradicionalizados no tempo
presente como significativos e fornecedores de sentidos e re-
presentações histórico-culturais. Porém, utilizam-se a memó-
ria e a cultura étnica para mostrar contrapontos, permitir fa-
zer aflorar resíduos e vozes de vividos e de ações que contra-
puseram formas institucionalizadas de regramento da vida.
Não obstante, formas hegemônicas, alimentadas por certas
abordagens teóricas, ideológicas e midiáticas, são fortalecidas
e buscam imprimir o passado no presente, perdendo de vista
a historicidade dos tempos, dos lugares e dos valores sociais
em movimento na contemporaneidade.501

Ver BOBBIO, N. O tempo da...


501
Capítulo 17
Estragos e reconstruções do tempo
na memória

A importância e a necessidade de transmitir


O tempo nunca esconde seus estragos.
Guimarães

Ao fazer “escavações” (como diz Benjamin), a memória


remove um terreno com solo fértil de possíveis achados, sen-
sações, emoções, objetos e cheiros. A memória é um meio, um
meio “onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no
qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se
aproximar do próprio passado soterrado deve agir como um
homem que escava”.502
Com o desejo de preservação da história local e da me-
mória, é importante que se diga que o relato de grande parte
dos idosos é reflexo e expressivo de uma totalidade que se
manifesta no contexto étnico ligado ao modo do ser colono, de
uma forma coletiva, na qual dimensões sociais econômicas e
psicológicas acham-se interligadas, bem como em correlação
com processos produzidos espacialmente, seja na relação com
o urbano, seja com o rural. A ideia de transmissão perpassa os
relatos de memória. Para transmitir a propriedade, “passar
adiante”, o conhecimento entre gerações, deveria, segundo
alguns idosos entrevistados, haver regras, ordens definidas,

BENJAMIN, W. Obras escolhidas II. São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 239.


502
300 João Carlos Tedesco

uma família sólida que estruturasse relações interpessoais,


mantendo pressupostos do passado (fidelidade com a família,
com a tradição, “saber que o que é bom pra família é bom pra
todos”, o grupo).
Como vimos, Halbwachs enfatiza que, na ideia de trans-
missão, fazem-se necessários pontos de referência, os quais
estruturam nossa memória e formam uma memória coleti-
va, o sentimento de pertencimento, delimitando as fronteiras
socioculturais. As referências, sejam objetais ou simbólicas,
são sempre significativas, positiva ou negativamente, quando
relatadas na lembrança e referidas ao tempo e aos fatos. Se-
gundo Lucena,
[...] a rememoração do passado e o trabalho com as imagens do
lugar de origem são um ato estritamente vivo, pois o grupo possui
laços afetivos, laços familiares e ligações com o mesmo ambiente
material, não só devido às lembranças, mas também pelos contatos
com familiares que ainda vivem lá. [...]. E é na memória que se
encontra a relação tempo e espaço. O mundo da memória intervém
no momento oportuno e produz modificações no espaço. A sequência
da composição de lugar inicial, mundo da memória e modificações
no espaço, produz uma sequência que tem por começo e fim uma
organização espacial. O tempo fica como espaço organizado espa-
cial. O tempo fica como espaço intermediário. [...]. A memória se
estabelece em forma de viagem por espaços vividos pelo grupo e
as imagens das lembranças são construídas pelo material que os
depoentes têm à disposição. [...]. A transferência de símbolos e a
invenção de ritos passam a ser indicadores da memória do grupo.503

No desejo de transmitir, a concepção de tempo, na memó-


ria dos idosos, aparece carregada de uma dimensão ambígua
e contraditória, “dos de ontem e dos de agora”. A simbologia
do pioneirismo imprimiu progresso na região e, atualmente, o
lugar “é diferente”, pois

LUCENA, C. T., 1999. p. 83-85.


503
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
301

[...] naquele tempo se fazia dinheiro, hoje se faz é dívida, se traba-


lhava e se sofria, os de hoje não querem mais trabalhar e as coisas
são tudo bem mais fácil. Falar de sacrifício hoje não é que nem an-
tigamente. Se eu disser pros meus netos o que passei aqui quando
era puro mato, o que comia, o sacrifício pra ter água, o tempo que se
levava pra ir comprar alguma coisa, querosene – que luz não tinha,
né –, fósforo, sal e os mantimentos, né, nem presta, não acreditam,
além do mais nem dão bola.

Um idoso entrevistado diz que, “quando falava que era a


família mais importante no lugar, era só falar dos Palma que
não tinha um na redondeza que não conhecia. Agora, coitado,
mora sozinho, anda de cadeira de rodas e é lá, vécio e sensa
pol moverse”.
Na memória de colonos idosos, o tempo e o espaço, suas
relações locais, alteraram-se muito; as temporalidades cru-
zam-se, contrariando-se, ou, então, com pouca concordância.
O presente permite vestígios, a velocidade do tempo impressa
nas relações globais e locais e a consequente perda de referên-
cias espaciotemporais e afetivas.504 É desse modo que a forma
de pensar o tempo e o espaço que alguns idosos exteriorizam
pelo veio da memória presentifica, ideologicamente, uma di-
mensão da tradição que os legitima como sofredores, por isso
heróis, exemplares, constituidores de família e de boa família,
esta que está no centro dos referenciais de transmissão.
Os idosos, ainda que sejam pouco reconhecidos, são a
lembrança e a trajetória dessa referência institucional, ma-
terial, cultural, econômica e simbólica que é a família na
reconstrução do passado. As reminiscências, os desejos de
reconstruir os modelos (de família, de trabalho, de gerador/
geradora de filhos, presença e futuro/continuidade), os bens
simbólicos (poder patriarcal, a força moral, as hierarquias so-
ciais), os sofrimentos e as transformações são cristalizações

LUCENA, op. cit.


504
302 João Carlos Tedesco

de memória muito presentes na vida, nos espaços e nos rela-


tos ouvidos e presenciados.
A família constitui e dá continuidade à dimensão da pa-
rentela, da genealogia, da terminologia dos nomes, de uma
coletividade e de uma rede genealógica organizada numa di-
mensão espaciotemporal na qual se correlacionam passado e
presente (gerações).
A conservação da terra da família (patrimônio econômico,
histórico e cultural), a importância de ter filhos, o papel dos
parentes na cuidado dos filhos em situações de infortúnio dos
pais, a vida comunitária com sua discrição e vigilância interna,
os comportamentos sociais, os objetos de censura do grupo, o
controle da qualidade e da quantidade das aquisições etc. são
formas de ligar lembranças da família com a memória e com
as estrutura do próprio passado, com eventos que assinalam o
tempo vivido na própria unidade cultural, econômica e parental.
Os fatos históricos vêm filtrados através da família, em
relação aos tempos da família. Cada família elabora em seu
calendário particular, no restrito universo da comunidade,
onde cada um se conhece. Esse processo correlaciona aspec-
tos concretos do âmbito familiar para indicar o tempo, o ciclo
dos trabalhos e da produção agrícola, os quais dão ritmo ao
calendário anual. Inverno, verão, festas santos etc. estabele-
cem correlação no vivido com a terra, com o trabalho, os quais
não precisam ser relacionados na esfera da linearidade e da
continuidade; são tempos que, em sua cíclica repetição, vêm
transmitidos e vividos em sua base quase imutável dos retor-
nos das estações e das séries de gerações, e se harmonizam
com as exigências da natureza e da existência, confiados à
memória, à reatualização, à consanguinidade e à consciência
de afinidades.505

ZONABEND, F. La memoria lunga...


505
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
303

A vida rural é expressa por idosos como sendo uma dinâ-


mica que segue o curso linear entre vida e morte, mediada por
rituais sociais, étnicos, identitários, religiosos e de trabalho. Es-
ses rituais agregavam pessoas; produziam relações de compa-
drio, aproximavam parentes, uns mais, outros menos; dividiam,
uniam, retiravam e agregavam propriedades, patrimônios,
espaços, pessoas e cenários específicos. As identidades e coi-
sas ameaçadas possuem referências a espaços, como que or-
ganizando referenciais que permitem se agarrar a tempos e
lugares móveis, à existência de um vivido anterior e interior.
“O ser privado de lugar encontra-se num universo, sem lar,
sem eira nem beira. Não está, por assim dizer, em parte algu-
ma ou, antes, está em qualquer lugar, como destroços, flutu-
ando no vazio do espaço.”506
Para os idosos, a casa é esse horizonte de referência pro-
funda, que não os deixa flutuar “no vazio do espaço”, ou serem
seres dispersos, como diz Bachelard. O autor diz que
[...] é graças a casa que um número de nossas lembranças estão
guardadas: quando a casa se complica um pouco, quando tem um
porão e um sótão, cantos e corredores, nossas lembranças têm
refúgios cada vez mais bem caracterizados. A eles regressamos
durante toda a vida em nossos devaneios.507

A casa representa o núcleo da lembrança cotidiana, da re-


presentação do espaço, do sentido e da forma de família; nela
se mesclam passado e presente, referência à família, à vizi-
nhança, ao parentesco, ao convívio interno. Casa e família re-
presentam o centro da vida do grupo que migra; ambas mani-
festam com mais intensidade o velho e o novo no horizonte dos
papéis, no jeito de ser família, tanto no urbano quanto no rural.

POULET, G. O espaço proustiano. Rio de Janeiro: Imago, 1992. p. 18.


506

BACHELARD, G. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1988.


507

p. 27-28.
304 João Carlos Tedesco

Família, no ethos de colono, vai além da consanguinida-


de; reflete segurança, proteção econômica, garantia e obriga-
ção de alimentação, transmissão de habilidades, moralidade,
conhecimentos, cultura, relações sociais, controles afetivos,
contratos matrimoniais, centralidade de poderes, hierarquias,
papéis internos e externos, vizinhança, compadrios funcio-
nais e simbólicos, vínculos e identidades comunitárias.508
Algumas idosas se lembram de sua vida na infância fa-
zendo comparações com a de suas netas e/ou bisnetas; lem-
bram-se de quando crianças, dos rituais religiosos (Primeira
Eucaristia, Crisma...), dos poucos e marcantes passeios que
faziam com seus pais ou avós, da língua dialetal, do cuidado
com seus irmãos, da narração de histórias, dos componentes
culturais e étnicos dessas, da participação e da divisão dos
trabalhos, do corpo e do fator de obediência com o passar dos
anos, das aprendizagens, com seus pais e/ou nonos, da socia-
lização, da pedagogia do olhar, da severidade dos pais, do con-
trole das crianças, do desejo de estudar e da escola que não
existia, da vigilância social e familiar, do trabalho pesado em
substituição aos brinquedos e às atividades lúdicas, etc.509
As idosas não se cansam de fazer comparações entre a
sua infância e juventude com as de atualmente; cruzam tem-
poralidades, ou as excluem; falam das novas técnicas, dos no-
vos espaços para mulher, do cuidado dos netos, do estudo e
suas mudanças internas, do pouco diálogo entre gerações, da
escola, agora como promoção social, do urbano, da ausência
de severidade com as crianças, da ausência da disciplina co-
ercitiva “de uma vez”.

Ver LUCENA, 1999, op. cit.


508

Uma brilhante análise da relação entre crianças e idosos no mundo rural,


509

ver em MOSCOVICI, M. La personalité de l´enfant em milieu rural. Études


Rurales, I, 1961.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
305

Nona Justina (“nona Tina”, como é conhecida) relembra


dos seus 13 ou 14 anos (não lembra bem), quando saiu de
casa para estudar em colégio de freira; retornou depois de
dois anos, sob protesto dos pais e, como castigo, ficou em casa,
sem estudar. Narra as dificuldades que teve para enfrentar
os serviços domésticos, a readaptação na vida familiar, a
aprendizagem dos mistérios do próprio corpo, sua adolescên-
cia conturbada por uma paixão escondida, o aprendizado do
artesanato que sua mãe – que viera da Itália –, desenvolvia,
sua constante dependência econômica e moral em relação aos
pais, principalmente do pai. Lembra os bailes vigiados, o na-
moro mantido em segredo, o dia em que começou a frequentar
a casa do outro namorado e a aceitação dos pais sem maiores
objeções; conta causos de desvios de conduta sexual de ho-
mens e raramente de mulheres – “mas existiam também, oh
se existiam, é porque se contava menos do que os homens,
mas se sabia, e quanti, guai”! Lembra que ela mesma foi ár-
bitro no jogo matrimonial de suas filhas e de um filho; faz
questão de dar ênfase ao fato de que “hoje isso ainda bem que
se perdeu, porque quem sai perdendo é sempre a mulher”.
Honra e prestígio sempre fizeram parte da família de
dona Tina; por isso, não podia exigir tanta flexibilidade dos
pais:
[...] eu ainda era a mais reclamona, pois tinha estudado fora. Mi-
nhas irmãs aguentavam caladas, minha mãe ficou sempre do nosso
lado, mas na hora de as coisas serem decididas, ficava ao lado do
pai. [...]. Muitos pensavam que eu, por ter estudado em colégio de
freira, deveria dar exemplo moral e de obediência, e não inculcar
ideias contrárias.

Capital simbólico e capital econômico, segundo Bour-


dieu,510 em geral se equivaliam na relação cultural entre fa-

Ver sobre essa análise do capital simbólico que envolve reputação, respeitabi-
510

lidade, papel familiar, dentre outras, em BOURDIEU, P. Esquise d´une théorie


306 João Carlos Tedesco

mílias, sobretudo no meio rural. Por isso, eram importantes a


visibilidade e a fidelidade pública na troca dos de bens simbó-
licos e materiais, dos vínculos entre famílias, dos laços de so-
lidariedade e entreajuda (era comum o rapaz ir ajudar o sogro
nos trabalhos da lavoura e a moça auxiliar a futura sogra em
períodos de necessidade).511
Nesse horizonte, havia a preocupação em torno do en-
xoval, da casa, dos móveis, do quarto, da festa, do cerimonial
religioso, comunitário e familiar, dos rituais antigos da so-
ciedade rural, principalmente em torno da retribuição a con-
vites, dos vínculos e envolvimentos comunitários, rituais de
recordação (fotos, por exemplo), de compromisso público (no
caso, poderíamos identificar os padrinhos e os compadres).
Nona Tina lembra com um pouco de ressentimento, a
vida que teve como recém casada, em virtude do contato, da
transferência e convivência com os sogros; o problema enfren-
tado logo no início do casamento em torno da questão da he-
rança entre os cunhados, os conflitos aí gerados, as divisões,
responsabilidade, poderes, espaços domésticos, de poder e de
trabalho, vigilância, utilidades, intrusão, auxílios, segurança,
companhia, responsabilidade econômica, transferência de au-
toridade sobre todos os membros da família, divisão de sexo
no trabalho (oposições, complementaridades hierárquicas en-
tre o dentro e o fora), domínio, subalternidade, possessões,
prestígio, responsabilidades variadas e também hierárquicas,
controle econômico, financeiro e contábil, dentre outros.
Esses processos todos remarcam vividos anteriormente
nas famílias-mães, atualizadas, alteradas e/ou redefinidas em
razão das condições objetivas, subjetivas (projetos de vida) e

de la pratique. Genebra: Droz, 1972.


Vários autores enfatizam o fato de o casamento ser o cumprimento do destino
511

feminino. Ser casada, tornar-se mãe é expressão de um desejo de socialização


sentida pela mulher no meio rural. Por isso, o casamento se realizava, em
sua maioria, com idade entre 16 e 21 anos para as mulheres.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
307

afetivas da nova situação. Na narração da informante, são to-


dos processos vividos, harmonizados, acomodados, em laten-
tes conflitos e constantes atritos no espaço de coabitação;512
enfrentamentos recíprocos entre sogra/nora, sogro/genro, en-
tre cunhados, entre desejos contidos e expressos no campo da
afetividade, da sensualidade, da sexualidade, dos desvios de
conduta, da incorporação dos conhecimentos normatizadores
da vida camponesa, social, familiar e individual, bem como do
peso histórico dos costumes e das tradições étnicas.
A recriação de representações simbólicas e práticas so-
ciais de um passado de trabalho penoso proporciona signifi-
cados e valorizações às suas vidas. Ao resgatarem, reconsti-
tuírem e reinventarem seu passado imediato no presente; ao
conceberem duplicidades entre ambos em seu cotidiano e na
comunidade, entre idosos e jovens, os primeiros adaptam-se,
resistem à imersão em universos da modernização e da racio-
nalidade individual no seio familiar.513
A absolutização dos “de agora” em relação ao tempo “de
agora”, do ganhar tempo, da adequação individual ao tem-
po como imperativo social penetra no cotidiano da vida social
onde estão imersos os idosos. O acento utilitarista, linear e
quantitativo do tempo centrado na eficiência dicotomiza pas-
sado e presente, constituindo diferenças e redefinições. Desse
modo, na transmissão, a referência ao “tempo de antes” e ao
“tempo de agora” é importante para a percepção da negati-
vidade e da positividade das mudanças das coisas no tem-
po. Daí a necessidade da integração dos idosos no tempo pela
narração e pela possibilidade de lembrança.
Os idosos estiveram e estão integrados nesse todo e vi-
venciam-no, ainda que, em boa parte, crítica e negativamen-

512
LÉVI-STRAUSS, C. já dizia que “cada matrimônio compromete o equilíbrio
do grupo social”. Ver Le cru et le cuit. Paris: Plon, 1976. p. 334.
513
Ver LUCENA, C. T. Artes de lembrar...
308 João Carlos Tedesco

te; lutam, ainda que de uma forma incipiente (com as parcas


armas que possuem, uma delas é a memória), para preservar,
em meio às alterações, formatos de vida vivida e que, segundo
eles, faz sentido reviver no presente.
Atualmente, os processos em redefinição são expressi-
vos de trajetórias temporais (localizadas e contextualizadas),
mas que não omitem a reconstituição. O cotidiano do idoso
continua sendo um complexo inter-relacional de temporali-
dades e de significados em conflito. E a memória é expressão
localizada temporalmente disso tudo.

Marcos de referência de mudança


Quanto mais se acelera a velocidade na captação
das imagens, mais o olhar se paralisa.
Benjamin

A sociedade brasileira em geral e o meio rural em parti-


cular passaram, entre a década de 1950 e o final da década de
1960, por profundas transformações sociais. Foi um período
por excelência em que a sociedade foi induzida a se moder-
nizar em vários âmbitos produtivos, de convivência social e
familiar, de concepções de vida e de sociedade. Nesse período,
o meio rural foi induzido a se modernizar técnica e socialmen-
te, a racionalidade e a ingerência do dinheiro nas relações
sociais se fizeram sentir com mais intensidade, justificando
processos de migração interna para espaços novos tanto no
meio rural quanto no urbano.
O universo da cidade ganhou ares de liberdade; o trator e o
carro foram os grandes instrumentos técnicos que viabilizaram
alterações e concepções variadas de tempos, espaços, distâncias,
contatos com pessoas, com a terra, com a economia e com a iden-
tidade pessoal dos que os possuíam e dos que não os possuíam.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
309

A partir desse período, a ideia de um Brasil, de um povo,


de um urbano e de uma agricultura moderna se desenvolveu
com mais intensidade, passando a servir de marco de referên-
cia nesse período. No caso específico em questão, esse perío-
do é o marco de referência de grande parte das migrações das
Colônias Velhas para as novas e, para muitos, dessas para a
cidade.
O veio da temporalidade alterada, das invenções, da sub-
jetividade faz-se sentir com maior força narrativa nos relatos
de memória dos idosos tendo como referência marcante esse
período. Expectativas, entusiasmos, enfrentamentos, mudan-
ças e adaptações são expressões que se misturam nos relatos
em razão do que se esperava, do que aconteceu, do que “se
tem condições de dizer agora”, da intensidade do sofrimento,
das angústias, encantos e positividades.
As imagens do tempo e das coisas do tempo alimentam
as narrativas dos idosos, carregadas de imagens e de expe-
riências, comumente de situações de dificuldades (atrasado,
difícil, pobre e pesado, tendo a cidade como contrário de muito
disso), produtos da memória, de uma linguagem expressa no
cenário da tradição familiar, étnica, cultural e de gênero, as
quais ancoram, produzem e diferenciam significações.
O gênero está envolvido nesse processo de diferenciação
de lembrança. Percebemos que as idosas manifestam com
mais veemência as repercussões de um cenário de mudança
e o desejo de adaptação, têm entusiasmo no enfrentamento e
mais desejo de permanecer – “pra mim ficaria sempre onde
sempre estive; ele era o que sempre queria sair.” Os homens,
ao que nos pareceu, misturam mais ressentimentos e senti-
mentos de perda com o ufanismo da conquista e da supera-
ção, com o fato de ter se dado bem ainda que com muito mais
sacrifício; manifestam com força a negatividade das altera-
ções que a vida no espaço urbano e as novas “modernidades”
310 João Carlos Tedesco

no meio rural produziram nas relações de poder dentro da


família, pelo enfraquecimento da autoridade masculina, não
obstante permaneça ainda a centralidade, talvez um pouco
flexibilizada, da autoridade patriarcal.
Como nos diz Lucena, os homens e as mulheres que mi-
graram adultos são responsáveis pela recriação de práticas
sociais do passado rural na colônia-mãe e também, na cidade,
pela recriação de práticas rurais.514
A migração do rural para a cidade, ou, mesmo, do rural
para outro rural, aparece ambiguamente nos relatos como so-
lução e recriação de tensões econômicas, culturais, étnicas,
de expectativas novas, como qualificação, educação, saúde,
promoção e progresso pessoal; processos que são resultado de
uma apropriação simbólica do real adaptada às atuais e às
passadas identidades e expectativas.
A família está no centro da ideia e da prática migratória.
Trabalho mais leve ou mais pesado (assalariado, ou “come-
çar tudo de novo num lugar que nem gente tinha ainda”), a
questão da saúde, da educação e da profissão, “no espaço que
agora é da gente”, de menos sofrimento e desgaste do corpo,
mais conforto e facilidade, melhor adaptação, status, maiores
intervalos entre tempos de trabalho e de descanso, como é o
caso do meio rural e do uso das técnicas modernas nesse es-
paço, etc., produzem diferenciações, múltiplas interpretações
e representações; reformulam experiências e concepções so-
bre a realidade vivida e imaginada e estão muito interligadas
com a esfera familiar.
Alguns idosos demonstram claramente que eram vocacio-
nados para trabalhar na terra. “Gosto de ver o milho assim,
dessa altura, verde como está”, declarou um idoso que nos le-
vou a uma roça de milho de meio ciclo em solo adubado por

LUCENA, C. T. Artes de inventar...


514
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
311

cama de aviário – “esse adubo é que dá a diferença, faz vingar,


tem uma força a mais do que o outro. Antigamente, o milho
vinha sem adubo, agora o esterco de galinha é muito bom”.
O colono sentia-se potencializador da força da natureza,
dava-lhe maior poder de fertilidade; era um trabalho sobre e
com um ser vivo que cresce com e como natureza, transferin-
do-se para a identidade de colono. O colono sabe que sua ação
se dá com as forças vivas, algumas vivificadas pela mão (por
meio do trabalho). Nesse sentido, há uma apropriação/obje-
tivação, uma interação movida por saberes, sensibilidades,
mãos, animais e bichos, acrescidos de um artífice divino (ex-
tremamente valorizado), pelo menos para “os mais velhos”,
não tanto para “os de hoje”.
É por isso que a concepção de natureza, no cotidiano dos
idosos entrevistados, ganha contornos diferenciados daqueles
“dos de hoje”. A natureza apropriável (roça, mata, rio, água,
chuva, sol, morro...) é vista por alguns idosos na ótica de es-
paços contextualizados de significados positivos e negativos
(chuva, seca, períodos de pesca, caça...). “Os de hoje” aden-
tram para uma exuberante tecnologia, que controla o mundo
cotidiano natural, funcionando como códigos externos que,
para os idosos, invade e interdita a vida rural; são novas re-
gras de controle e domínio humano sobre o espaço de vida e
de trabalho, bem como do ambiente natural.
Os idosos querem que seus rastros não se apaguem, prin-
cipalmente os que produziram frutos. O rastro, como identifi-
cação com a memória, carrega consigo a ideia do esquecimen-
to e da tendência a se apagar.
A ideia de rastro é significativa no campo da memória
e nos remete a uma passagem marcante pelo tempo e pelo
espaço passível de se apagar, expressiva de sua fragilidade
interna, de sua ausência e desejo de plenitude num cenário de
poucas possibilidades de volta. Os idosos, quando nos levam
312 João Carlos Tedesco

para mostrar algo que possui sua marca, sua presença e sua
importância, dinamizam essa dialética da presença-ausência
que reflete a ideia de rastro.
O rastro é um signo inscrito (significado) e escrito (marca
material e visível), narrável ainda porque, para os idosos, tem
visibilidade e existência. Os idosos querem lhe dar um lugar;
querem, conscientemente, lhe propiciar uma digna sepultura
diante da ameaça do esquecimento e, consequentemente, de
sua insignificância. Uma idosa nos disse que chorou “dias e
dias” quando viu um vizinho que comprou uma chácara demolir
o moinho que seu “finado esposo levou mais de dois anos para
fazer” há cinquenta anos, pois, além de não funcionar mais, a
construção era feita de madeiras nobres, comercializáveis.
O rastro é consciente e intencionalmente passível de es-
quecimento, anulando sua existência, ou, é desejoso de sub-
sistir. Nessas duas dimensões entram critérios de verificação
e falsificação de experiências, enraizamento e esquecimento
de referências, sujeitos, fatos e objetos. No fundo, o que sem-
pre se reivindica é a presença da ausência ausente ou da au-
sência da presença; o que está em jogo é sempre a consciência
do poder da morte, ou para não ser mais lembrado, ou para
reconhecer sua vida e lhe permitir rastros de existência.
A apropriação humana da natureza pela mediação técni-
ca, e não pelas forças tradicionais e formas artesanais dos ido-
sos, deixa-os receosos, amedrontados, proféticos, apocalípticos
e um pouco negativistas. Com a mecanização da agricultura,
nem os homens, nem os animais tinham mais necessidade
de suar como antes; os cavalos e mulas foram eliminados da
agricultura e menos homens agora trabalham. “A técnica só
quer tirar e, qualquer dia, esgota”, em nome da racionalidade
do lucro, da redução do ciclo produtivo e de engorda, do au-
mento da produtividade e da diminuição do trabalho manual
e rústico.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
313

Alguns idosos não têm dúvida de que o uso exacerbado


de referenciais técnicos humaniza muito pouco o mundo natu-
ral que interage com o colono e com as formas de organização
social urbana, essa em razão da poluição, do perigo de andar
na rua, da valorização do objeto técnico mais do que devia,
dos altos custos para suas aquisições e manutenções, o que
demanda mais e mais trabalho e menos convivência social,
vicinal e comunitária.
No interior, nas comunidades pra fora, tu não encontra mais nin-
guém nos domingos, não porque não tem gente, tem gente, sim. Todos
vão trabalhar. Um período é porque tem de colher, outro porque tem
de plantar, outro porque querem fazer uma coisa e outra. Um pensa
assim e o outro também, no fim, ninguém mais vai na comunidade.
Tu não acha quatro pra jogar um quatrilho, bocha então nem se fala.
Mas, olha, me acredite, tu não arruma um vivente.

Como já vimos, nas trajetórias migratórias dos idosos,


que para a grande maioria se deu entre espaços rurais, ima-
gens do passado permanecem vivas, geralmente na ótica do
sacrifício e do novo que tiveram de enfrentar. As noções de
enfrentamento do desconhecido, do diferente, dos confrontos,
das novas necessidades, dos novos signos e novas imagens, da
aventura, do medo, das rupturas no grupo familiar estão pre-
sentes nos relatos. Os tempos cotidianos e os instrumentais
ganham novas roupagens e novos significados.
O tempo regido pela natureza (seus ciclos) no meio rural
rompe-se quando da migração para o urbano. Nesse espaço o
tempo é outro: é o do trabalho, da fábrica, do relógio, do dia e
da noite, tempo do compromisso definido pelos outros,515 por-
tanto, um tempo que depende muito pouco da determinação
do indivíduo. “Se chegava alguma visita, se dava pra atender,
tudo bem, senão ia embora, porque o horário de trabalho era
aquele e deu.”

LUCENA, C. T., op. cit.


515
314 João Carlos Tedesco

O espaço urbano aparece nos relatos como envolto na re-


definição, quando não na ruptura, pois a habitação, a convi-
vência, os encontros, a solidariedade, a proximidade, o paren-
tesco, o trabalho... desespacializam-se. A migração de mais
famílias conhecidas, a oportunidade de retornar ao meio ru-
ral para rever seu antigo espaço, para “fazer alguma coisa”,
para visitar filhos e netos, recompõem, em parte, aspectos do
lugar de origem, bem como reinventam novas ações, com no-
vos suportes afetivos e de interconhecimento.

Lembrança de afazeres, fazeres e saberes


Sem as minúcias das lembranças dos pais e
avós, teríamos que inventar a maior parte de
nós mesmos.
J. Anderson

Os idosos deixam claro que as lembranças estão em fluxo


contínuo, algumas são acrescidas, outras esquecidas, umas
emergindo, outras submergindo, etc., porém tendem a se am-
pliar com o avanço dos anos, com o transcorrer das experi-
ências. Incluem sentimentos, singularidades, detalhes, inti-
midades; publicizam acontecimentos e experiências pessoais,
modos de ser.
“Na verdade, precisamos das lembranças de outras pessoas tanto
para confirmar as nossas próprias, quanto para lhes dar continuida-
de. Ao contrário dos sonhos, que são absolutamente particulares, as
lembranças são continuamente complementadas pelas dos outros.
Partilhar e validar lembranças [...] estimulam sua emergência.
Acontecimentos que somente nós conhecemos são evocados com
menos segurança e mais dificuldade.”516

LOWENTHAL, D. Como conhecemos o passado. Projeto História, São Paulo,


516

n. 17, 1998. p. 81.


Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
315

Os idosos gostam de se lembrar de suas ações cotidianas,


buscam no cotidiano algo que lhes foi extraordinário; seus re-
ferenciais não vão muito além do que a rotina do dia a dia e
seus desafios lhes impunham. Por isso, os pontos de conver-
gência das lembranças eram a casa, a roça, a família, o traba-
lho, a comunidade, ou seja, cenários impressos com conotação
coletiva. Partilhar esses referenciais de tempo e de ações im-
pressas pelos mesmos pareceu-nos ser quase que uma exigên-
cia dos novos tempos, como uma cidadania do vivido.
A casa e a roça tem linguagens múltiplas na vida do co-
lono; ambas obedecem aos ritmos que o tempo marca e soli-
difica, bem como aquele das alterações promovidas por fato-
res externos e as grandes situações marcantes do cotidiano
(mortes, nascimentos, colheita farta, casamentos, conflitos,
temores etc.); dimensionam a visualização do que é público e
do que é privado; são espaços que se interpenetram através
de trocas que vão se intercambiando, trocas essas materiais,
simbólicas, mais e menos significativas em termos financei-
ros, contábeis e de reconhecimento.
A linguagem doméstica obedece ao ritmo. Contam-se as gerações,
as estações, o juízo e a loucura. A narração faz rimar o início e o
fim, cicatrizar as interrupções. Cada um na casa encontra o seu
lugar e o seu nome, e os episódios anexos. O seu nascimento e morte
também se inscrevem, irão inscrever-se no círculo das coisas e das
almas consigo próprias.517

Já vimos que a casa é lembrada como o espaço que cor-


respondia ao abrigo e ao aconchego doméstico, mas também
correlacionado e diviso com as necessidades da roça. Desse
modo, poderia servir para guardar comida, cereais; no porão,
ou embaixo da casa, quando possível, guardavam-se a carro-
ça, as pipas de vinho, a graspa, o salame, o cesto com o pão,

LYOTARD, F. O inumano; considerações sobre o tempo. Lisboa: Estampa,


517

1989. Ver, também, sobre isso AUGÉ, M. Le forme dell’oblio. Dimenticare


per vivere. Milano: Il Saggiatore, 2000.
316 João Carlos Tedesco

as ferramentas – as “coisas que não se usa mais se enfiava


tudo no porão”. O que necessitava de um olhar mais próximo
e vigilante era (res)guardado nos domínios da casa. No en-
tanto, pelo que pudemos entender, a casa possui um sentido
subalterno em relação à terra e aos trabalhos agrícolas. Diz
um ditado contado por um idoso que uma casa de “quatro tole
bastava”, mas de “tera prendere quanti ti può di piu aver”.
Malgrado sua concepção importante, mas secundada em
correlação à terra, a casa possuía uma função instrumental
com o seu entorno: a estrebaria, o galpão, o chiqueiro, a horta,
o pomar, o galinheiro etc., tudo deveria estar em correspon-
dência com a casa. Em geral, as casas eram simples, rústicas
e pobres. O espaço mais importante era a cozinha, em sua
funcionalidade com o fogão, com a comida, com o aquecimen-
to, com o contato coletivo etc.; em continuidade de importân-
cia estavam os quartos – espaço de domínio mais individua-
lizado, ainda que em muitas circunstâncias fosse coletivo. A
sala, quando havia, era secundada pela cozinha, espaço de
visitas não tão íntimas (pois essas poderiam ser realizadas na
cozinha) e/ou comumente masculinas.
Pudemos perceber pelas entrevistas que, não obstan-
te ter havido melhores condições em relação aos primeiros
tempos da colônia-mãe, pouco se alterou nos tempos da colô-
nia-migrada; a casa continuou a representar a continuidade
da família no tempo; sua historicidade cultural sedimentada
com o sentido e a representação de um espaço funcional à
vida camponesa e às condições econômicas obtidas na roça.
Diz uma idosa que “casa bonita e pouca terra não eram
um bom sinal”, pois isso não fazia parte da racionalidade eco-
nômica camponesa nem de seu ethos cultural. A alteração da
casa, quando ocorria, deveria de ser realmente uma manifes-
tação da evolução econômica, que demandava melhores con-
dições de aparência e de bem-estar.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
317

Na cultura camponesa do imigrante italiano de segun-


da e terceira gerações, o conceito de trabalho acompanhou as
exigências da vida, era condição para viver: “Se te vol cagar,
bisogna laorar, no le mia?” Esse processo era socializado em
família, e desde cedo.518
A casa era o espaço de um trabalho de não trabalho. Tra-
balho é o que transcende o espaço da casa. Desse horizonte,
reproduzem-se e derivam regras de comportamento, de edu-
cação e de trabalho comumente aprendidas dos pais. Divi-
sões, diferenciações, espacializações, especializações, gostos,
obrigações e interesses nascem e se desenvolvem no conjun-
to interligado entre casa e roça, mediado por outros espaços/
atividades funcionais, culturais e de gênero de menor impor-
tância. “Cuidar da casa e da roça era um dever de todos, mas
mais dos pais, né. Cada um tinha clara essa responsabilidade
e sabia o que devia fazer, apesar de que na roça a gente aju-
dava também e eles (marido e filhos homens) em casa muito
pouco, para não dizer nada”, declara uma idosa migrada para
o espaço urbano de Nova Prata.
O tempo da casa e o da roça dependem dos ciclos de vida
e de cultura dos produtos, e esses, de sua natureza biológi-
ca e climática. No entanto, como nos disseram alguns idosos,
sempre havia o que fazer; sabiam fazer combinações e con-
sorciamentos hierárquicos e complementares entre traba-
lho, produtos e clima, o que lhes permitia controlar, ocupar e
correlacionar tempos, espaços e atividades. Alguns produtos
sempre manifestaram o ethos de colono italiano: milho, trigo,
uva foram os mais citados – “con pan e vin vive el contadin” –
e são expressões de agregação cultural.
Comidas tradicionais da vida camponesa ganham tem-
poralidades longas (pão, queijo, polenta, salame, carne de

ZONABEND, F. La memoria lunga...


518
318 João Carlos Tedesco

porco, acrescidos de feijão à brasileira). A ideia é de que comer


era um valor social, uma expressão e justificação da laboriosi-
dade – “povere, ma la tola piena”. A polenta não podia faltar,
como está presente ainda nas famílias do colono, inclusive
nos mais abonados. Sua combinação com o queijo e o salame
evidenciava-se no café e na janta como condição sine qua non,
aleatoriamente no almoço (presente, mas como combinação
secundária).519 “Pode engordar um pouco, todos podiam”, dis-
se uma idosa. Então, a garantia de combinação estava dada
– “qui non pò copar un porco vive tuto l’ano con el mus storto”.
A casa sem a horta seria como um corpo debilitado pela
ausência de algum órgão que comprometia o seu funciona-
mento. A horta subsidiava a casa com verduras, temperos,
alimentos ocasionais (batatinha, amendoim, pipoca...), que
não podiam “tomar o lugar da roça”. Nos comentários de ido-
sas, havia pouca inovação no cardápio diário. A comida cam-
ponesa “sempre foi pesada, forte e repetida, sem muitas in-
venções, nem se tinha tempo para isso”.
O ciclo agrícola aparece como organização, como estrutu-
ra e sucessão ininterrupta de tempos, de trabalhos a fazer em
função das estações, do desenvolvimento dos produtos e da
ecologia da unidade familiar. Era comum ouvirmos de infor-
mantes idosos e de meia-idade que, no verão, iriam fazer tal
coisa; no inverno, outra; depois da safra, aquilo; quando cho-
vesse, em tal lugar, etc. Inovação, conhecimento acumulado
por gerações precedentes, membros familiares e de vizinhan-
ça, introdução de variedades, dentre outras, (re)estruturam
ações (não só naturais/biológicas) cotidianamente associadas
a uma ciência prática.
Parece-nos que havia uma convivência carregada de
significações e símbolos, os quais, por si só, obedecem a uma

ZONABEND, op. cit.


519
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
319

racionalidade espontânea, interessada na experiência do tra-


balho produtivo e na convivência. O espaço é construído pelo
esforço, pelo sacrifício e não sem conflitos, formando uma to-
talidade social que norteia as relações sociais e de produção.
A ideologia da família ou do vínculo do parentesco legitima a
configuração do próprio trabalho familiar enquanto relação
de família. Nem todas as famílias conseguem se reproduzir
enquanto tal; alguns filhos, ao se casarem, buscam outras al-
ternativas, deixando grande parte dos frutos de seu trabalho
para os outros membros da família.
Saber organizar o processo de trabalho, seus instru-
mentos, seu saber empírico e técnico, saber compreender o
dinamismo da natureza na ótica do equilíbrio etc. são com-
binações a priori construídas no ethos de colono, porém que
se atualizam, se renovam e se governam no próprio fazer. O
saber/fazer, enquanto dinâmica construtiva, material e sim-
bólica, atualiza-se e transmite-se envolvendo valores e dife-
renciações de papéis e de hierarquias
O controle técnico dos meios de produção, do processo
de trabalho e da natureza faz parte de um saber, de uma tec-
nologia do colono (que preferimos chamar de racionalidades
adaptativas) que norteiam ações, funções e estratégias. O
prazer, a alegria do lazer e do trabalho, da sociabilidade co-
munitária e católica, jogos diversos e o contato cotidiano com
a bodega, todos são dinamizados nas narrativas pelos idosos,
o que expressa que havia um conjunto de fatores que propi-
ciam a integração intensa de momentos de prazer corporal.
A constante orientação aos filhos sobre o estudo e as
opções de trabalho diferentes, a dificuldade que os pais têm
de motivar todos os filhos para o trabalho pesado na roça, a
busca de trabalhos “pra fora” por parte de algumas mulheres
e, esporadicamente, por alguns homens, dentre outros, redu-
zem “os braços em casa”, fazendo aumentar a intensidade do
320 João Carlos Tedesco

envolvimento com atividades que reduzem o tempo de lazer,


principalmente dos cônjuges.
As marcas e os sinais da natureza, do estilo de trabalho e
da cultura identificam o corpo, o qual, ainda que seja o espelho
e a manifestação da individualidade, constrói-se no que faz, no
trabalho. Os colonos julgam-se os que mais se “judiam” e mais
“gastam” precocemente o corpo; a intensidade desse “gasto”
se dá pela dinâmica e pelo impulso no trabalho e em suas
variações. A busca de trabalho leve se dá em razão também
do “gasto” do corpo, nem sempre unicamente pela variável
remuneração. A ação do tempo nesse “gasto”, tende a ser in-
tensificada pela ação do trabalho, e do trabalho rude. Cuida-
do, trato, gasto, marcas, vestimentas, o andar, o movimentar
e descansar, o se expor, as manifestações externas do corpo
etc, expressam também tensões e vínculos, intensos ou não,
com o trabalho da roça; porém, orientam-se nos horizontes da
gestualidade, de intenções, decências, exibições, rudeza (ma-
chismo), desejos e razões, recatos, posturas, invejas, tramas,
desejo narcísico, demonstrações (“aparecer”), espacialização
de gênero, modernização/tradição, o que vem do coração, do
erotismo, o que é de (e da) família etc.520 São todos processos
de significados múltiplos e complexos que interagem no cam-
po da identidade espacial e cultural do colono e que se imbri-
cam com a família, com a terra e com o trabalho na intensa
vinculação às dinâmicas da sociedade envolvente.
Na memória de idosos do meio rural, a questão da su-
cessão é fundamental; a transmissão do patrimônio, para
eles, tematiza uma vinculação com a consanguinidade, com a
proximidade física, parentesco, pertencimento, como resposta
e materialização a um processo de adaptação de interesses
econômicos (integridade do patrimônio familiar) e de geren-

WOORTMANN, E. Herdeiros, parentes e compadres. São Paulo: Hucitec, 1995;


520

ver, também, WOORTMANN, E.; WOORTMANN, K. O trabalho da terra: a


lógica e a simbólica da lavoura camponesa. Brasília: UnB, 1997.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
321

ciamento da tradição e da família. Nas primeiras décadas do


Século XX, as Colônias Novas exerciam a descarga de tensões
no seio da família quando essa questão vinha à tona. Inú-
meros espaços de fronteira agrícola pós-década de 1950 tam-
bém foram determinantes para definir trajetórias individuais
aglutinadas em interesses coletivos.
As representações simbólicas e as práticas associadas ao
passado não podem ser interpretadas como mera nostalgia
– não é por nada que a maioria dos idosos que permanece
na colônia prefere se “envolver com as parreiras”. São cama-
das múltiplas de tempo e espaço que supõem significados e
valores culturais em conflito, representações dinâmicas per-
cebidas e confrontadas com as formas do vivido e concebido,
expressas nas condições de existência atuais.

Memória da migração para o urbano


Os lugares vão e vêm, podem nos abandonar, mas
também retornar e tomar seu lugar primitivo.
Proust

Lucena diz que a memória familiar não é homogênea,


mas é resultado de circunstâncias, de reavaliações e momen-
tos do grupo e/ou de indivíduos isolados.
“Do ponto de vista da mobilidade social, as histórias de família
fornecem meios para analisar as influências intergeracionais entre
homens e mulheres e um cruzamento de significados e valores cul-
turais dos diferentes espaços vividos pelos migrantes. As práticas
culturais dos migrantes estão sempre vinculadas aos princípios
familiares. As experiências de vida nos lugares de origem são
vinculadas à terra e à família.”521

LUCENA, op. cit., 1999. p. 54.


521
322 João Carlos Tedesco

Nas imagens de memória, as representações sobre o lu-


gar de origem e o de destino não são unívocas para os mi-
grantes: “O espaço social pode estar carregado de múltiplas
interpretações contraditórias [...] O que parece comum é que
a cidade é o espaço onde se encontra a solução para os proble-
mas da roça.”522
Para alguns idosos, a imagem da cidade vem carrega-
da da significação de violência, de movimento contínuo e que
“não pára”, dos gastos elevados para viver, de lugar do desco-
nhecido, de ressocialização no trabalho e na vida familiar e
social, nos hábitos (comida, higiene, fala etc.) e na aprendiza-
gem, de ausência e de novas dificuldades da vida em relação
ao espaço da roça.
Malgrado isso, a cidade ofereceu, também, para as idosas
maior possibilidade de descanso. O trabalho, ainda que tenha
continuado na ótica dos gêneros, ficou mais leve para elas,
possibilitando-lhes incorporar valores de classe média, espe-
cialmente quanto à arrumação da casa, a utensílios utiliza-
dos, à vestimenta etc.:
Possibilitou que a gente pudesse se realizar melhor. [...]. Outros
vieram também, vizinhos, gente da roça que nem nós, e daí a gente
se ajudou bastante e foi criando aqui quando a vila começou, quase
que uma comunidade rural.

Nas imagens da memória dos primeiros tempos de cida-


de, manifestam-se representações construídas no meio rural,
ou seja, a ideia de fazer capital, o sacrifício, a doença (a neces-
sidade de estarem próximos dos médicos e das condições de
saúde, realidade essa que o rural não oferecia), as facilidades,
os sonhos e os desejos de novos códigos de vida, a adaptação
às novas mensagens sociais e culturais, muito presentes nas
décadas de 1950 e 1960, de modernização social e pessoal.

Idem, p. 55.
522
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
323

A migração para a cidade de famílias que entrevistamos


necessitou do auxílio de novos migrantes e também favore-
ceu os posteriores, principalmente no campo do trabalho, na
continuidade da identificação da vida rural, na fortificação da
identidade do antes no momento da alteração do momento.523
Durhan diz que a migração sucessiva de membros de famí-
lias do mesmo local de origem possui a vantagem de favorecer
a posição anterior enquanto se tenta estabelecer uma nova
identidade, uma nova posição no contexto novo.524
Alguns idosos nos disseram que, nos primeiros tempos,
a cidade não se apresentou “tão distante assim”; ficou mais
difícil, sim, com o passar dos anos, pelas suas alterações nos
estilos e formas de vida.
Se conhecia pouco a cidade naquela época, eu mesma nunca tinha
ido porque, tu sabe, era só o pai que ia quando precisasse. Ou,
então, se tivesse que i no médico, mas só nessas horas, né. Mas
hoje eu lembro que estranhei, oh se estranhei [...]. Se tu vai ver,
no fundo, aqui nessa vila era quase todo mundo vindo da roça [...],
ficou muito do que se fazia lá.

Nos primeiros tempos, permaneciam coesos o ambiente


familiar, a hospitalidade, o sentimento de proximidade, o so-
taque dialetal do vêneto, um certo sentimento de localidade;
com o tempo, alguns desses elementos foram sendo alterados
em razão das mudanças, de ambições, individualismos, frag-
mentações familiares e de maior socialização no universo da
cidade e seus valores.
Segundo Lucena, é possível que o migrado do rural para
o urbano recrie a imagem da cidade em correspondência ou
apoiado na experiência e na memória.525 As idosas que migra-
ram para a cidade manifestam sua preocupação inicial com

523
LUCENA, op. cit.
524
DURHAN E. R. A caminho da cidade: vida rural e migração para São Paulo.
São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 130.
525
LUCENA, op. cit., 1999.
324 João Carlos Tedesco

o aspecto econômico, com o conforto da casa, com a possibi-


lidade de educação dos filhos. A cidade representou, e ainda
representa, desejos, medos, traição das pessoas, conforto, re-
gras impessoais, lugar desconhecido e do desconhecido, an-
gústia das mudanças profundas que ocorrem no âmbito fami-
liar, social e cultural.
A cidade representa o horizonte espacial dos ganhos e
das perdas: ganhos de novas aprendizagens, de novas relações
não de total dependência patriarcal, de novas sociabilidades,
confortos e adaptações sociais; perdas referentes ao tempo e
ao espaço tradicionais vividos nos tempos da roça regidos pela
natureza; pela desespacialização social,526 dos vínculos comu-
nitários, do suporte afetivo da família que transcende para o
horizonte do compadrio, do parentesco e da vizinhança.
Nas informações de idosas migradas para o urbano, sem-
pre houve dificuldade em constituir uma vida comunitária na
cidade. Na cidade vive-se mais agitado, com medo,
[...] eu mesma quando fiquei sozinha, que morreu meu marido,
nunca conseguia mais dormir sozinha, não tive mais coragem de
ficar uma noite sem ninguém, era sempre aquela folia e ficava
sempre nervosa. Agora me toca dormir sozinha porque é sempre
aquela incomadação senão, né, um dia vem um, outro dia tem de
vir outro. Tenho vontade de voltar pra fora e morar perto, não
junto, com minha filha casada, só que acho que não vou mais me
acostumar lá, pelo menos teria alguém conhecido e que fique mais
responsável por perto”.

Algumas idosas que migraram para a cidade com a fa-


mília expressam que a mobilidade não foi, no início, desejada
por elas em razão do desconhecido, da dificuldade de entrar
no ritmo da cidade, de suas novas exigências, dos seus temo-
res, ainda que “Nova Prata não era bem uma cidade daria
pra dizer”. No entanto, “Nova Prata, ainda que pequena, era

LUCENA, op. cit., 1999.


526
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
325

difícil pra gente se acostumar, porque a cidade é outra coisa.


[...]. Não se tava acostumado. [...]. Tudo ficou diferente”. Uma
entrevistada nos disse que, depois de migrada para Veranó-
polis, deu-se conta do quanto a cidade alterara a vida, o ritmo
anterior de organização do cotidiano, trazendo o conflito ex-
plícito de gerações, a necessidade de reinventar novas formas
e experiências, de adaptá-las ao ritmo da cidade e não mais
da colônia.
Percebemos, pela narração de algumas idosas, que as expe-
riências reinventadas se dão na esfera do cotidiano da casa, da
participação e organização comunitária, da vida religiosa, dos
contatos com a vizinhança, ou seja, nos espaços que ainda con-
servam relações de pertencimento e identificação étnico-cultu-
ral. Não exteriorizam tanto a dimensão econômica, o fato de sua
família ter acumulado capital ou não. O horizonte da lembran-
ça e dos referenciais cotidianos caminha mais pelas dimensões
simbólicas, afetivas, vicinais, da casa, das perdas de significados
considerados importantes para o passado e úteis para o presen-
te. A vida comunitária, ainda que bastante redefinida, guarda,
conserva e é dinamizada pela presença de idosos e idosas.
No fundo, segundo a opinião de várias idosas indagadas
sobre isso, elas mudaram de espaço, porém não se “desfize-
ram” totalmente de suas formas de organização do espaço,
principalmente o do cotidiano vivido na família e na comuni-
dade; já o do trabalho sofreu profundas alterações em razão
das atividades e dos espaços variados. Pelo que percebemos
nos relatos, o novo e o velho, em determinadas circunstân-
cias, mesclam-se, redefinem-se, excluem-se e readaptam-se.
Observamos é que, em espaços urbanos onde as formas de
sociabilidade assumem caráter étnico, como é o caso de Nova
Prata e Veranópolis, determinadas relações transcendem es-
pacialidades principalmente no campo de maior identificação
cultural, como é o caso da família e da vida comunitária e
326 João Carlos Tedesco

social. Desse modo, foi possível para muitos migrantes rurais


das décadas de 1950 e 1960 mesclarem práticas transferidas
desse espaço e adaptá-las ou reinventá-las no urbano. A mu-
dança de espaço não significa, na totalidade, alteração cultu-
ral, completa ressocialização; costumes, tradições, visões de
mundo, sociabilidades, coisas simples do cotidiano resistem
em se alterar e se cristalizaram no vivido caminham juntas.527
O passado, para idosos entrevistados que migraram para
a cidade, transfere-se no horizonte da coesão, do fortalecimen-
to dos laços sociais e familiares de espaços não do presente.
Isso é percebido quando, no urbano, limitam-se as fronteiras
desse processo e a forma de vida anterior à migração é acio-
nada para facilitar a vida no novo lugar. Daí a importância da
memória, da experiência na construção do novo. Diz Halbwa-
chs que, ainda que nem tudo fique para trás, muita coisa se
perde: “A população pobre também não se deixa deslocar sem
resistência, sem ressentimentos, e mesmo quando cede, deixa
para trás muitos traços de si mesma.”528
A comunidade representava uma integração fundamen-
tal para a estrutura do conjunto social e para o desenvolvi-
mento do homem no meio rural; ela tendia a promover a cons-
ciência em relação aos outros, desenvolvendo-se e operando
em concomitância com a consciência individualista. Era na
comunidade que a lógica das ligações sociais se processava,
que a compreensão e a difusão da também lógica do espaço re-
lacional e suas significações se viabilizavam. As vestimentas,
as festas, os causos, os de dentro, os de fora, os de mais fora,
os da cidade, a consciência de localidade, de estar e ser de um
lugar, da convivência, da ajuda mútua, da participação, da
religiosidade, da individualidade e dos individualismos deli-
neavam a configuração dos lugares mais acessíveis, menos

LUCENA, 1999.
527

HALBWACHS, M. A memoria... p. 138.


528
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
327

confortantes e de obrigatoriedades. A sede da comunidade


sempre serviu como espaço de convergência, de manifestação
do sagrado, do lúdico, de fuga da solidão, da transmissão e
intercâmbio da saudade, das notícias, da vida social etc.
Duas idosas nos disseram que, pelo menos, a vida comuni-
tária na cidade tem muito a ver com a do meio rural. A festa co-
munitária é um exemplo disso, por envolver obrigações comuns
entre famílias, costumes e memórias locais. Diz Lucena que,
[...] na cidade, a identidade do migrante é reinventada e reinter-
pretada em cada geração. Seus valores antigos não são abandona-
dos, nem os novos simplesmente sobrepostos, mas reconstruídos
e reinventados a partir de representações simbólicas e práticas
combinatórias indissociáveis do patrimônio cultural adquirido.
[...]. Embora o migrante passe pelo processo de ruptura com a
infra-estrutura material de sua terra, possui em seu imaginário
lembranças, imagens, códigos de um repertório cultural dotado
de força que lhe permitem recriar “artes de inventar” necessárias
para sua inserção na cidade desconhecida. Os migrantes se re-
conhecem, percebem as mudanças, os novos valores adquiridos,
contêm elementos de explicação da mudança e dos conflitos e não
apenas elementos de justificação do passado. O conhecimento que
o migrante tem da aventura de sua mudança está associado aos
momentos de outrora, aos contratempos da chegada, à vida no
cotidiano do bairro periférico e à luta pela sobrevivência. [...]. No
seu cotidiano, em sua trajetória, o migrante se defronta com uma
pluralidade cultural, com oportunidades de mesclar as fronteiras
culturais e simbólicas, de fazer interagir as características rurais
e urbanas e criar condições de vida, dentro de uma perspectiva de
“interseção de culturas.529

Na memória de colonos idosos, o local da capela, sua es-


colha, era sinal de prestígio, pois em torno dela se formava
um pequeno conglomerado de casas, a escola, o cemitério,
a bodega, a casa de comércio, a igreja etc. Na cidade, muito
disso se alterou, porém idosos fazem questão de dizer e de
mostrar algo que, nesses horizontes, seja expresso com os re-
ferenciais que o próprio urbano apresenta e que foi fruto da

HALBWACHS, p. 168 e 170.


529
328 João Carlos Tedesco

sua ação em correspondência com o que existia “lá fora” e que


manifesta deslocação de formas de vida pretéritas e presentes
em redefinição.
Algumas ações, mesmo que reguladas por um certo
habitus religioso definidor de dogmas, da doutrina e das for-
mas litúrgicas e culturais, podem, em certo sentido, revestir-
se de distintos significados nas suas modulações locais. São os
antigos ritos de expressão comunitária ou individual, de certa
forma, com a cumplicidade de párocos de origens camponesas
e/ou de prolongado convívio e inserção no meio.
O ritualismo, os sacramentos (como únicos mediadores da
salvação), o pecado, os santos, a conversão, o movimento no es-
paço e no tempo – as peregrinações, romarias, procissões, as pa-
lavras sagradas em latim, os componentes mímicos e ges­tuais,
o contato com os mortos etc. – são todas expressões e identifica-
ções em grande parte ainda presentes, como valores religiosos
e a sua normatividade no local/lugar do vivido do espaço rural,
principalmente dos mais tradicionais de regiões onde a dimen-
são do pertencimento, do campesinato e da família como unida-
de agregadora da vida e da casa do colono perdura.
Segundo Lucena, na memória mesclam-se resíduos de
diferentes espaços e diferentes tempos; misturam-se práti-
cas culturais e transferidas do rural com as novas práticas
aprendidas no urbano. O migrante muda de espaço, porém
seus costumes acompanham-no por toda a vida, assim como a
lembrança das paisagens, as datas, as tradições, a música e a
culinária. Se a passagem à vida urbana é um processo lento,
o migrante introduz no novo espaço os conhecimentos adqui-
ridos, o habitus,530 ou seja, os conhecimentos incorporados da
família, do grupo social ou de sociedade. “São experiências,
modos de vida que passam de uma geração a outra, e o deslo-

BOURDIEU, P. O poder simbólico...


530
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
329

camento de um grupo de uma região a outra não representa a


perda desse conhecimento adquirido.”531
Na visão da autora, na cidade, os idosos reinventavam
tradições e práticas cotidianas. Os mundos rural e urbano
viviam numa dialética de inclusão e exclusão, de inserção e
reincorporação de códigos diversos, de representações varia-
das e dinâmicas, de invenção de tradições e de processos que
produzem ancoragem social. Nesse sentido, há a possibili-
dade de o migrante reinventar na cidade processos vividos e
cristalizados no espaço de origem; há, na cidade, também no-
vos tempos, novas experiências de trabalho, aprendizagens,
esquecimentos de outros, principalmente em razão de que o
trabalho, nas situações atuais, reduz, consideravelmente, os
momentos da família. O indivíduo da cidade obtém um emar-
ranhado de signos que são elementos de referência do espa-
ço urbano em nível individual. A ideia de que a mulher não
trabalha vai sumindo na cidade. Para as mulheres, mais do
que para os homens, coexistem aprendizados do passado e do
presente, porém, é evidente, necessitam de novas ressociali-
zações, de hábitos, postura do corpo, vestimentas. Os homens
também têm a necessidade de se urbanizar, de entender no-
vos conceitos, novas condutas, novas regras etc. Esses pro-
cessos todos, para os idosos que viveram “outra época”, ex-
pressam conflitos, confrontos, novos valores culturais, como
resultado da multiplicidade de tempo e de espaço vivenciados
em sua história de vida.532
Não obstante, não cansamos de dizer que aspectos do
novo se juntam com o velho e vice-versa; ambos reordenam
novos símbolos, imagens e adaptações; refazem identidades
e espaços, bem como temporalidades entrecruzadas e exclu-
dentes.

LUCENA, op. cit., p. 78.


531

LUCENA, p. 139-140.
532
330 João Carlos Tedesco

Novas experiências, novos ritmos, novos trabalhos, no-


vos valores, novas imagens e imaginários, novas representa-
ções. Esse todo novo se mescla e se referencia com o velho
deixado, trazido, incorporado, resistente, alterado dos lugares
e da cultura. Imagens do passado presentificam-se pela resis-
tência individual do idoso, pela recordação, pelo sentimento
e pela percepção da convivência cotidiana com a mudança.
Nesse conflito aberto e velado, algumas coisas são revigora-
das, outras são dispersas e outras se perdem; seleciona-se o
que pode ficar e o que, ainda contra a vontade, deve morrer.533
Magnani diz que a “cultura, mais que uma soma de produtos,
é um processo de sua constante recriação, num espaço social-
mente determinado”.534

Memória de gênero
A memória reescreve a realidade vivida.
Lucena

A realidade vivida no âmbito do gênero representa a sub-


jetividade e a construção de representações sociais, fases da
vida social, individual e familiar, classificações econômicas
(de trabalho), religiosas, sociais. Alguns autores dizem que
são as mulheres que humanizam a memória genealógica, pois
lhe dão função expressiva, de necessidade emocional, senti-
mentos e ligações entre pessoas; refletem certa ausência da
noção de tempo. Nos homens, as lembranças são mais arti-
culadas em torno do trabalho e dos símbolos materiais (casa,
empresa, ofícios...).535

533
Ibidem.
534
MAGNANI, J. G. C. Festa no pedaço: cultura popular e lazer na cidade. São
Paulo: Brasiliense, 1984. p. 18-19.
535
LUCENA, C. T., op. cit.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
331

Idosas lembram de que muito cedo as crianças eram in-


troduzidas, socializadas e ritualizadas cronológica e cultural-
mente na idade adulta, através do trabalho doméstico, cozi-
nhando, lavando, passando e cuidando dos irmãos menores.
A ritualização dos trabalhos e sua constituída naturalização
manifestam a consciência de sua pouca importância, de sua
possibilidade de ser feito por qualquer um desde que fosse
mulher.
Matos diz que as funções reconhecidamente femininas
ou em que as mulheres penetraram eram progressivamente
deserdadas pelos homens, desvalorizadas monetária e social-
mente desprestigiadas.536 Esse processo, segundo algumas
idosas, não se alterou muito no meio rural. No urbano, alte-
rou-se em parte nas famílias em que, logo ou depois a migra-
ção, a mulher e filhas optaram pelo trabalho fora, remunera-
do e com horários estabelecidos. Porém, sempre houve uma
dinâmica entre conflito/acomodação e naturalização histórica
das ações.
No meio rural, esse processo de gênero do trabalho e seu
significado não foram alterados significativamente. Altera-
ram-se mais profundamente, a partir da década de 1990, com
a presença maior de idosos nas famílias, em coabitação, com
a possibilidade de mulheres atuarem em espaços de pluria-
tividade no ramo de confecção têxtil no meio rural na forma
de ateliês ou de atividades a domicílio. No entanto, as idosas
são unânimes em dizer e reafirmar a experiência histórica da
continuidade da diferença de gênero nesse processo como algo
normal, comum, eficaz e eficiente em termos de diferenciação.
As fronteiras materiais e simbólicas entre o mundo do
trabalho e o da vida privada não eram muito nítidas, pois
entre esses dois mundos havia uma relação de complementa-

PINTO, M. I. M. B. Cotidiano e sobrevivência: a vida do trabalhador pobre


536

na cidade de São Paulo (1890-1914). São Paulo: Edusp, 1995.


332 João Carlos Tedesco

ridade ainda que hierárquica. Casa e roça, casa e rua fazem


parte no horizonte familiar do colono e do migrado, respecti-
vamente. Ainda que seus personagens principais sejam vistos
e concebidos diferencialmente, constituem espaços que se in-
terpenetram numa totalidade em ato, em constante recons-
trução/manutenção.
É comum, por exemplo, na literatura sobre a história de
mulheres camponesas descendentes de imigrantes italianos,
migradas para várias regiões do sul do Brasil, a dimensão do
incessante trabalho e sua mistura simbólica e material com
sofrimento, silêncio, capacidade de sobrevivência e de contri-
buir para a naturalização de sua situação histórico-cultural e
étnica. O casamento, por exemplo, ao invés de alterar, ressig-
nificava e fortalecia a situação; materializava o desejo contido
e a reprodução histórica da reconstituição, do novo, que nada
mais era do que uma atualização do velho processo cotidiano
de vida.
Segundo algumas idosas, a migração para a cidade era
idealizada pelas jovens (filhas) e por esposas como possibilida-
de de alteração do processo desde que houvesse oportunidade
de trabalho. O problema é, como nos diz uma delas: “Quem
é que lavaria a roupa, quem é que ia fazer a comida e arru-
mar a casa, lavar os lençóis? Pagar alguém não tinha sentido.
Esperar por eles (os homens), podia esperar sentada!” Sua
utilidade era acrescida não unicamente pela possibilidade e
efetivação do trabalho externo e sua consequente remunera-
ção, mas por poder conciliar ambos, e “sem reclamar”. O que
acontecia, segundo depoimentos, é que os homens,
[...] te valorizavam mais, gabavam as mulheres que faziam tudo,
diziam que não tinham mais os bichos pra tratar. [...], te tratavam
com um pouco mais de ternura e sem muita brutalidade como o
era na roça. Talvez com isso a gente também reclamava menos.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
333

Como nos diz Lucena, paternalismo e exploração são am-


bivalentes; podem se dar ao mesmo tempo, um alimentando
o outro, não se excluindo, pois podem implicar concessões que
caracterizavam as relações desses protagonistas históricos
no cotidiano dos domicílios; as práticas paternalistas mescla-
vam-se com medidas repressivas, constituindo estratégias de
um processo de enfrentamento e dominação, relações essas
negadoras de conflito, alimentando-se em imagens de coope-
ração. No espaço externo de trabalhos “nas casas” e, mesmo,
em espaços variados do meio urbano, as idosas entrevistadas
foram unânimes em dizer que a imagem de patrão se subs-
tanciava e alimentava por linguagens e imagens já conheci-
das na sua identificação de poder e do trabalho como extensão
da casa, de um horizonte que se externaliza e se complementa
reproduzindo-se quase que unilinearmente.537
Relatando sobre os momentos da migração para o atual
local, uma idosa nos disse que o trabalho era o alívio do sofri-
mento, da insegurança: “Trabalhando se esquecia tudo, porque
esse era o desejo de se estar aqui.” O trabalho era visto como
o elemento por excelência da redenção da vida e, para muitas
mulheres, também como resignação frente a sua situação, assim
como, pela dependência dos homens em relação às atividades
femininas, poderia tornar-se um horizonte de poder e de con-
traposição estratégica em relação à organização patriarcal e aos
processos de repressão afetiva, sensual e sexual.
A entrega ao trabalho dava-se com extremo despojamen-
to e tenacidade. Os imigrantes construíram laços de solidarie-
dade étnica, através de rica rede de parentela e amizade, algo
que é muito valorizado nas lembranças e, ao mesmo tempo,
extremamente sentido e criticado pela sua negligência e alte-
rações atuais.538

LUCENA, op. cit.


537

MATOS, op. cit., p. 47.


538
334 João Carlos Tedesco

A simbologia do trabalho na estrutura familiar está na


base da lembrança do trabalho. Com ela, seus limites, neces-
sidades, carências e projetos agregam noções de adversidade,
superação, enfrentamento (luta), coragem, divisões e especia-
lizações. Espaços e atribuições respectivas faziam parte do
elenco simbólico/prático do cotidiano do trabalho.
As mulheres eram (deveriam ser) boas donas de casa,
econômicas, trabalhadeiras, educadoras (socializadoras) dos
filhos, mantenedoras da tradição, da honra, dos conhecimen-
tos e das adaptações aos/dos novos conhecimentos e habili-
dades.539
Cabia a elas definir, destacar, singularizar, tipificar e
recriar, num novo espaço, tradições e a partir de uma nova
experiência cotidiana de convivência e trabalho. O trabalho
perpassava essencialmente a vida de homens e mulheres imi-
grantes; junto com a família e a religião, criava identifica-
ção étnica e se tornava fator de socialização e solidariedade
dentro do grupo. Através do trabalho e de suas relações, ma-
nifestavam-se claramente não só amizade, apoio, lealdade e
afabilidade entre os recém-chegados, mas também exploração
e abusos.540
O envolvimento com o comércio de vendas de miudezas e
de excedentes, com características totalmente mercantis, re-
gistra a memória da diferenciação de gênero no trabalho, res-
significando relações agrupadas na renda familiar, na obriga-
ção feminina, além dos encargos familiares. Esse processo de
diferenciação de trabalhos e de gênero nos produtos do traba-
lho e suas finalidades passava por uma racionalidade interna
e por um balanço entre oferta e consumo, entre necessidade e
oferta (do produto e dos recursos financeiros), entre carência

Ver MATOS, op. cit; também LUCENA, op. cit.


539

MATOS, op. cit., p. 49.


540
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
335

e projetos familiares, entre o preço de venda no momento e a


possibilidade do preço de compra num futuro próximo.541
Encontrar trabalhos alternativos sempre foi o desejo
de algumas idosas. “Se pudesse desviar da roça, mesmo sa-
bendo da precisão, né, era melhor.” Costurar era o desejo e a
alternativa de muitas delas, pois poderiam receber recursos
financeiros, reduzir o tempo de obrigação na roça, além de
terem uma profissão – “ser colona, nunca foi uma profissão
para mim”, declarou uma entrevistada. Atualmente, o traba-
lho nos ateliês de costura industrial localizados no meio rural,
sob o manto da racionalidade mercantil, favorece e, ao mesmo
tempo, precariza a vida e o trabalho de muitas mulheres que
se vinculam a essa atividade.542
O trabalho, a domicílio, de costura também, ainda que
desejado por várias mulheres, estava condicionado pela dis-
ponibilidade de mão de obra e por fatores de ordem institu-
cional e sociocultural, porém apresentava-se como uma das
as possíveis estratégias de sobrevivência criadas e recriadas
no cotidiano feminino; delineava, ainda, uma interconexão
e interpenetração entre o público e o privado, vinculado ao
ciclo sociocultural dos tempos e dos espaços das atividades
femininas, já desenvolvidas nos horizontes domésticos (lavar,
cozinhar, costurar, bordar).543
Esse saber cristalizado e que definia a identidade de es-
posa e mãe era identificado durante um período da vida das
mulheres, comumente pós-casamento, pois era aí que havia
a possibilidade de concatenar o ritmo, o espaço e o tempo do
trabalho doméstico com uma atividade remunerada e com ho-
rários flexíveis. O trabalho domiciliar, em contraposição ao

541
THOMPSON, E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
1999.
542
TEDESCO, J. C. Ateliês industriais no meio rural: racionalidades empresariais
e dinâmicas familiares. Passo Fundo: Clio Livros e Méritos Editora, 2003.
543
VERDIER, I. apud LUCENA, op. cit.
336 João Carlos Tedesco

trabalho externo, possibilitava flexibilidade de horário, ideia


de autonomia, fuga dos domínios totais do poder hierárquico e
patriarcal; contudo, não as desobrigava de outras atividades do
lar e no trato com os animais. Exigências, obrigações, formas
de controle do tempo e das atividades faziam-se presentes.
Envolvidas também na obrigação de “levar dinheiro para
casa”, as mulheres aumentavam seu tempo de trabalho e aden-
travam em atividades estratégicas propiciadoras de certa
remuneração, comumente atividades extensivas em relação
às já desenvolvidas e conhecidas no âmbito doméstico e so-
cialmente pouco reconhecidas e valorizadas. Desse modo, o
espaço domiciliar não produzia tantas fronteiras na relação
com os espaços externos, pois interpenetravam-se e comple-
mentavam-se, hierarquicamente, no horizonte dinâmico en-
tre produção e reprodução.
As idosas migradas falam, com veemência, das altera-
ções no cotidiano da vida familiar e social produzidas pelas
novas gerações, provocadas pelo estudo, pelo trabalho, pelas
facilidades que os jovens têm de viver na cidade; da alimenta-
ção (seu tempo, condições, qualidade e presença familiar); da
presença da mulher no espaço de trabalho; das relações de po-
der entre sexo, da continuidade da responsabilidade da mu-
lher por quase tudo o que lhe correspondia na divisão interna
de gênero antes da inserção no mercado de trabalho; do fato
de o trabalho e o estudo facilitarem a redução da autoridade
paterna das escolhas afetiva, matrimonial; das amizades, do
lazer das etc. Muito disso não foi possível para as idosas.
As narrativas de idosas, ao que nos parece, fortalecem a
ideia de pertencimento a um núcleo familiar, e isso é dito com
grande ênfase; seus vínculos comunitários (nas festas e nos
espaços e rituais religiosos e de caridade pública) represen-
tam um poder identificador com valores de solidariedade e em
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
337

torno de formas possíveis de convivência comunitária e pelas


trocas de experiência que isso possibilita.
As histórias narradas servem também para contar a
história do espaço de vida comunitário e a dimensão local da
existência e da sociabilidade. Os homens contam explicitan-
do alguns tipos de valores; as mulheres o fazem relativizando
aspectos narrados pelos homens; ambos explicitam projetos,
efetivação ou não de valores, julgamentos e comportamentos.
Desse modo, produzem-se representações e auto-identificação,
personalização e participação no espaço e na história local.
As lembranças vividas e narradas são expressas quase
sempre como comprometimento, como referenciais éticos em
torno de objetivos comuns, desejáveis e que podem ser reali-
záveis e mediados pela memória através de relações de gera-
ções. Nesse âmbito e, em muitos outros, o papel da memória,
da experiência e da narração do e para o idoso é fundamental.
Considerações finais
No decorrer deste trabalho trouxemos um conjunto de
obras que versam sobre o tema memória, dando uma maior
centralidade à análise social e histórico-cultural. Nosso inte-
resse maior foi tentar interpretar a noção de memória coleti-
va em Halbwachs. Buscamos analisar a memória e os atos de
lembrar como algo em construção, em dinamismo e que pos-
sui esferas em vários horizontes do real, o qual ganha maio-
res contornos no campo cultural e político, âmbitos esses de
maior uso e intenção dessa.
Diz Lowenthal que nenhum relato histórico consegue
recuperar a totalidade de qualquer acontecimento passado;
em razão de seu conteúdo ser virtualmente infinito, assimila
apenas uma fração mínima até mesmo do que foi considera-
do mais relevante do passado. Diz o autor que nem tudo o
que passou foi registrado e pouco do passado foi relatado.544 O
historiador não possui a totalidade do que aconteceu, mas re-
latos dos fatos. Levi-Strauss diz que o fato histórico não tem
realidade objetiva, existe apenas como reconstrução retros-
pectiva.545
A passagem do tempo tende a desgastar o passado, a fil-
trá-lo com o olhar do presente, reduzindo a capacidade com-
preensiva da comunicação.
Explicar o passado no presente significa lidar não apenas com
percepções, valores e linguagens que mudam, mas também com
acontecimentos ocorridos após a época examinada. [...]. Conhecer
o futuro do passado força o historiador a moldar a sua narrativa de
modo a fazê-la entrar em acordo com o ocorrido. [...]. Assim como a
memória, a história combina, comprime e exagera; momentos raros
do passado sobressaem, uniformidades e detalhes desaparecem.546

544
LOWENTHAL, D., op. cit.
545
LÉVI-STRAUSS, C. apud LOWENTHAL, D., op. cit., p. 112.
546
LOWENTHAL, D., op. cit., p. 116-117.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
339

É por isso que, no campo material, simbólico, compor-


tamental, fenomenológico, social e epistemológico, o tema
memória vem recebendo atenção. Estudar modernidade,
tradição, patrimônio, imaginários e representações sociais,
velhice, simbologia, narração, comemoração, esquecimento,
dentre outros determina que o tema memória esteja no foco
da análise. A questão da memória está no eixo central de uma
nova percepção do mundo e de cotidianidade que se constitui
em razão da busca de significados perdidos, reconstituídos, do
real que muda numa velocidade intensa, de comportamentos
que se alteram e, consequentemente, de visões de mundo, o
que aponta para novas atribuições ao social.
As referências em torno da cidadania social, a maior cre-
dibilidade do papel das vozes e das narrações como base de
compreensão e análise socio-histórica, os impasses do conhe-
cimento histórico e os valores da modernidade (ou da pós-mo-
dernidade para alguns), as fragmentações utópicas, as des-
construções do conhecimento e das formas de controle e de
vida social, o avanço da técnica aplicada e da midiologia, a
capacidade de armazenar e de guardar memórias que esta
última nos oferece, as reconstituições históricas e sociais de
fatos e situações políticas, biográficas e genealógicas esqueci-
das, ou, então, administradas em termos de visualização co-
letiva, dentre uma série de outros elementos, permitem-nos
dizer que o campo de análise da memória é uma grande arma
que possuímos, que está sempre atual, ainda que, aparente-
mente, pareça ser o contrário.
Repensar a memória, na contemporaneidade, implica ter
um olhar mais sensível, perceber outros espaços, outras vozes
e outros caminhos (talvez, em meio aos oficiais e consolidados),
como possibilidade de construir história e de legitimar ou não
referenciais culturais – muitos desses não tão lineares como
aparentam ser – pouco evocativos e que se constroem como
340 João Carlos Tedesco

possibilidades e estratégias de sobrevivência pessoal, social


e política.
Perceber os processos que fazem com que determinadas
memórias sejam expressas, desenvolvidas, e outras não é
também possibilitar a percepção de sujeitos da história, de
identidades firmadas e construídas em razão de imaginários
sociais, de vínculos de poder, de sentimentos sociais, individu-
ais e biográficos. A memória ajuda-nos a identificar sujeitos
históricos e a entender esquecimentos, a revigorar símbolos e
a reconstruir histórias de vida.
É nesse sentido que buscamos, ainda que de uma for-
ma pouco ou nada organizada e muitíssimo fragmentada, re-
constituir processos, vozes, intenções, símbolos, utopias, en-
cantos, desejos, ressentimentos, idealizações, negatividades,
em torno de memórias e lembranças de vidas familiares e de
histórias de vida de idosos, com caminhos e trajetórias tempo-
rais e espaciais marcadas por lembranças suas e de seu grupo
familiar.
Valores sentimentais estão unidos à memória, ligados a
uma figura familiar a quem originalmente pertenceu o obje-
to; ambos se mesclam com valores sociais que os classificam
como indicadores de importância e de identificação. Atraves-
sando gerações e cruzando temporalidades, os objetos de me-
mória vão adquirindo outros sentidos na sucessão temporal,
mantendo, em alguns casos, a referência original.
Buscamos analisar aspectos que cadenciam a vida de ido-
sos e que, vistos contextualmente, inseridos no horizonte da
cultura camponesa, revelam vividos práticos, nexos e significa-
dos, funcionando como armas contra a desfiguração e a pouca
importância social, contra as fortes alterações do presente e
do considerado novo, do presente sobre o passado e do futuro
sobre o presente, ou da falta ou garantia do futuro do passado
no presente.
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
341

Partimos do pressuposto de que são as histórias de vida,


em geral carregadas de emoção, as que melhor ressaltam os
conteúdos sociais da memória e que nos dão uma melhor cla-
reza das normas e dos valores narrados, expressos e transmi-
tidos como lugares de vida e de relações institucionalizadas,
como as familiares, as comunitárias e as de pertencimento
étnico. Nesse sentido, os idosos são os atores por excelência
desses conteúdos sociais de pertencimento e de normas e va-
lores enquadrados em seu cotidiano. A partir disso, a memó-
ria permite dar garantia de continuidade ao tempo bem como
sua alteridade, ao “tempo que muda”, às rupturas que são o
destino de toda vida humana; em suma, constitui um elemen-
to essencial da identidade, da percepção de si e dos outros.
O tempo histórico e o contexto social encontram-se, reela-
boram e resgatam significados de identidade cultural a partir
das exigências e das necessidades do presente. A não imutabi-
lidade da tradição no passado e no presente, sua transmissão
ou esquecimento inter ou intragerações podem ser relativiza-
dos em termos de significados por diferentes ou por idênticos
grupos sociais. Ligar os tempos e as gerações, chamar para o
presente vividos personificados e experienciados no tempo e
em determinados espaços alimenta a importância de que um
pouco dos idosos esteja presente e sobreviva no mundo dos ne-
tos e no espaço que permite suas marcas; manifesta o tempo
cíclico, uma referência temporal que, mesmo alterada, circula
sobre si mesma, completa-se e é sequencial.
É nesse sentido que lembranças orais e objetais dos ido-
sos trazem ao presente a crítica de muitas relações passadas
ao mesmo tempo em que relembram e as manifestam como
forma de mostrar sua obediência, suas estratégias limitadas
e seu vínculo pragmático na família e no meio comunitário.
A lembrança da família apresenta-se como um complexo de
referências simbólicas, imaginadas e representadas na esfera
342 João Carlos Tedesco

da integração, da ameaça de desintegração, de recordação, de


espaços de felicidade, de horizontes de profundos desgostos,
de desempenho moral e de honra, de pertença e identidade
com possíveis descontinuidades.
Existem objetos que nos identificam, que representam
a personificação de experiências vividas; que possuem cara,
nomes, costumes, afeições, continuidades, individualidades,
segredos, faces, olhos...; são seres, pois falam, simbolizam,
unificam e permitem a criticidade. Nessa perspectiva, o tra-
dicional não apenas sobrevive; não é um resíduo, ou, então,
o que resta, mas o que luta e desafia o moderno, que busca
encontrar espaços referenciais no presente, não meramente
como tradição, mas como presentificação, como pertencimen-
to, em outras palavras, como útil ao que o moderno apresenta
como importante.
Percebemos que existem racionalidades internas que são
resgatadas e reconstituídas no tempo para preencher vazios
da contemporaneidade, contrapor ressentimentos, desenvol-
ver encantos e utopias, dinamizar, em espaços variados, for-
mas de vida e de sociabilidades reconstruídas coletivamente
no seio familiar e/ou comunitário. Ao fazermos um esforço
para perceber práticas socioculturais de idosos, vimos que há
um processo endógeno de formação por meio da imitação e da
experiência do trabalho e do vivido familiar e social. É desse
modo que os idosos, pelo viés da memória oral e dos/nos ob-
jetos elaborados por eles, sentem sua participação, ainda que
reduzida, como de fundamental importância.
Entendemos que a narração de memória dos idosos con-
tribui grandemente para o enriquecimento da percepção e
dos caminhos do destino da sociedade. O sofrimento – tão em
evidência nos relatos em relação ao passado e ao presente –,
as regras de ordenamento da vida, os vícios, a consciência da
experiência, todos aparecem nos relatos orais e nos significa-
Nas cercanias da memória: temporalidade, experiência e narração
343

dos objetais como força subjetiva ao mesmo tempo profunda e


ativa; carregam consigo elementos de base para a construção
da própria personalidade e da consciência.
Os idosos, pela lembrança narrada, evocam uma expe-
riência sensível, muitas vezes carregada de resignação, de
revolta, de nostalgia e de esperança. Por meio desse ato, con-
seguem dar temporalidade e espacialidade ao fenômeno da
existência; produzir intersubjetividades temporais e cons-
ciências de mundo, verdades locais ancoradas no curso da
história e das culturas; emancipar o social, emancipando-se
como sujeitos mais do que conscientes de seus pertencimentos
e de sua utilidade social. A memória, nesse sentido, fornece o
instrumental necessário.
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Idosos entrevistados
Antônio Girardi (82 anos), residente no espaço urbano do Município
de Marau.
Raimundo Damo (70 anos), residente no meio rural do município de
Marau.
Ernesto Castelani (91 anos), residente no meio urbano do município
de Nova Prata.
Germina Fochesato (78 anos), residente no meio rural do município
de Veranópolis.
Luíza Tebaldi (86 anos), residente no meio rural do município de
Serrafina Corrêa.
Ernestina Confortim, (89 anos), residente no meio rural do município
de Guaporé.
José Borsa (86 anos), residia na meio rural do município de Casca.
Ademir Casagrande (87 anos), reside no meio urbano do município
de Guaporé.
José Palma (96 anos), residia no meio urbano do município de Santo
Antônio Palma.
Jacob Bassani (91 anos), residente no meio urbano do município de
Muçum.
Artério Perin (86 anos), residente no meio urbano de São Domingos
do Sul.
Otávio Busato (86 anos), residente no meio urbano do município de
Casca.
Juvite Dalla´Mea (93 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.
Santina Coldebella (79 anos), residente no meio urbano de Nova
Bassano.
Olívio Ciodelli (80 anos), residente no meio urbano de Santo Antônio
Palma.
GiustinaTomasi (84 anos), residente no meio urbano de Veranópolis.
Rovílio Três (91 anos), residente no meio urbano de Nova Prata.
Luiza Di Domenico (89 anos), residente no meio urbano de Nova
Bassano.
Valdenir Deon (78 anos), residente no meio rural do município de
Antônio Prado.

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