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O Espírito da Crueldade na Peça

“Barrela” de Plínio Marcos

MARCO ANTONIO ARANTES*

Resumo:
Tendo como fio condutor à obra do dramaturgo Plínio Marcos (1935-1999), o
presente projeto analisa a importância da peça “Barrela” (1958), no contexto histórico-
artístico da dramaturgia brasileira, além da contribuição artística do autor santista dentro
do contexto histórico teatral brasileiro de seu período. Para isso, propõe analisar entre
outros temas, a atualidade da peça, demonstrando que a intenção humana é o ponto de
partida de sua crítica social.
O texto aproxima-se da visão cultural do ator, poeta e dramaturgo francês Antonin
Artaud (1896-1948), sobretudo da sua obra “Le Théâtre et son Double” “O Teatro e seu
Duplo” (1935). Em Artaud, a cultura é antes de tudo uma forma de ação, um protesto
contra o estado das coisas. Como em Plínio Marcos, os elementos estéticos da obra de
Artaud, afetam direta e indiretamente a ordem social existente, sem que isso signifique
um posicionamento político partidário.

Introdução
“Mas sou demoníaco, sou a loucura enlouquecida. Essa loucura selvagem que se acalma somente
para se compreender a si mesma” - Herman Melville – Moby Dick- 1851

No dia 1º de novembro de 1958, um ator de circo que trabalhava no Pavilhão Teatro


Liberdade de Santos, conhecido como o palhaço Frajola, abalou o cenário da dramaturgia
brasileira com uma peça teatral surpreendente. Um ano antes, comovido com a história
de um garoto preso por furto, coisa de somenos, e que foi recolhido em uma cela com

*
Professor Associado do Curso de Ciências Sociais da UNIOESTE - Universidade Estadual do Oeste do
Paraná. Doutor em Ciência Política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC/SP.
2

presos perigosos que tencionavam estuprá-lo e matá-lo, escreveu para si mesmo na


linguagem que lhe parecia mais familiar, o drama do garoto. O nome escolhido pelo ator
para a peça de um ato foi “Barrela”, que na gíria típica dos presos significa curra, um
estupro coletivo. A curra seria “uma expressão suprema de triunfo, para uns, e de
humilhação, para outros” (PRADO, 2001, p. 103).
Plínio Marcos iniciou a sua carreira como palhaço de circo. Fez parte de uma
geração de atores, poetas e dramaturgos, no qual o teatro ainda era uma referência na
produção do imaginário cultural. Plínio era santista de nascimento. Tivera até os 23 anos
uma trajetória de percalços e atribulações, a ponto de ser inimaginável sonhar em um dia
tornar-se dramaturgo. Na escola terminou apenas o primeiro grau, foi funileiro, camelô,
teve uma passagem rápida como jogador de futebol na Portuguesa Santista, foi
“bagrinho” no cais do porto e soldado na Aeronáutica. Mas foi nas pequenas companhias
circenses, atuando como o palhaço Frajola, que Plínio Marcos tomou gosto pelo teatro.
No circo realizou sua primeira leitura de “Barrela” aos amigos. Em seguida, o autor conta
que foi chamado por Paulo Lara que, a pedidos de Patrícia Galvão, a Pagu 1, procurava
um ator para participar da peça infantil “Pluft, o fantasminha”, de Maria Clara Machado.
O convite foi aceito e tornaram-se desde então grandes amigos. Dias depois, a peça
“Barrela” seria datilografada e oferecida à poetisa, que o mesmo diz “amava o teatro e
incentivava o teatro amador” (MARCOS, 1976).
Se, para alguns amigos de trabalho de circo, uma peça que fazia uso de palavrões e
termos chulos significava problemas com a censura 2, para Pagu, o texto carregava uma
força expressiva superior às peças de Nélson Rodrigues, pernambucano a quem
posteriormente tanto os críticos quanto o próprio Plínio Marcos tratariam de fazer
analogias temáticas e estilísticas. A atriz Cacilda Becker dizia-se espantada com o fato da
peça ter sido escrito com um vocabulário tão pequeno. Já Barbara Heliadora havia
observado de que não havia desperdício na composição das imagens de “Barrela” 3.

1
“A grande Pagu, um anjo anarquista que veio ao mundo para nos inquietar” (MARCOS, 2002, p. 161).
2
“Em 1977, o cronista e dramaturgo Plínio Marcos declarou ao Folhetim que tinha aprendido (sic) uma
coisa com a censura, não desistir. Afirma: “toda vez que ela me proibisse alguma coisa, eu escreveria mais
três”. (SANTIAGO, 2004, p. 1).
3
Há duas versões de “Barrela”: a original de 1958 e a versão definitiva de 1976. Na versão de 1958, o
personagem ‘Bereco” chamava-se “Pachorra”. A violência psicológica foi ampliada na segunda versão.
3

Por essa época, Plínio Marcos não conhecia nem a pessoa e nem a obra de Nélson
Rodrigues. Deu-lhe nova vida, no entanto, os elogios feitos por Pagu. Com o seu aval, a
dramaturgia despontou para Plínio como um caminho a ser explorado. Plínio iniciou a
escrita de uma nova peça e passou a circular com atores de teatro que lhe apresentaram
as principais companhias de teatro amador que atuavam em Santos.
Contudo, a peça “Barrela” não teve o destino esperado pelo autor depois de sua
estreia. Era necessário passar por um único e difícil obstáculo para a sua liberação: a
censura do governo de Juscelino Kubitschek 4. Segundo o próprio Plínio Marcos, ele foi
o único autor de teatro censurado no governo de JK. Quando a peça foi enviada para os
censores, ela foi proibida5.
A versão mais conhecida do episódio envolve os nomes de Pagu e de Pascoal Carlos
Magno, político que gostava de teatro e era na época Ministro do Governo Kubitschek.
Pagu interveio a favor da liberação de “Barrela” junto a Magno, que foi um dos primeiros
a lê-la. Magno ficou impressionado com o estilo do autor e fez bons comentários da peça
na imprensa. Como resultado, Magno enviou um telegrama para a polícia de Santos,
afirmando que a peça não era um ultraje à moral e aos bons costumes, sendo favorável
pela sua liberação pública. Como resposta, a peça teria que ser montada exclusivamente
para a avaliação dos censores antes de sua estreia pública. Feito isso, os censores não
deixaram de frisar que “Barrela” pecava pelo uso abusivo de palavrões e que a liberação
ocorreria desde que fossem feitos alguns cortes. O pedido foi aceito, mas o argumento de
Plínio, de que o texto não mudaria uma vírgula, prevaleceu na estreia. Na noite de 1º de
novembro de 1959, no Centro Português de Santos6, o que se viu foi uma peça montada
sem nenhuma alteração ou corte7. Com a estreia, Plínio foi parar nos jornais.

4
“O trajeto histórico da censura no Brasil é extenso, pois percorre desde o período colonial chegando até
os nossos dias, com intensidades de atuação diferentes” (LIMA; CIOTTI, 2015, p. 98).
5
A proibição da peça suscitou vários debates na imprensa. O mais notório foi o promovido pelo Jornal
Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, na coluna de Van Jafa.
6
Segundo Plínio “a estreia no Teatro do Centro Português foi cheia de forrobodó: polícia, censura, uma
proibição atrás da outra” (MARCOS, 2002, p. 184).
7
Logo após a estreia, a peça foi censurada.
4

Para alguns, ele tornou-se um produto fabricado pelo Partido Comunista8 (partido
emblemático da oposição do período militar), um elo artificial com o povo; para outros,
a maior revelação do teatro nacional. Pode-se dizer de uma obra revolucionária, mas não
explicitamente engajada, pois, entre 1950 e 1960 “todos estavam imbuídos pela crença
inabalável do poder de fogo do teatro de mudar os rumos da história” (ZANOTTO, 2003,
p. 9)
Alguns anos depois, em 1968, Luís Carlos Maciel propõe uma nova montagem de
“Barrela”, agora com atores conhecidos do público, como Milton Gonçalves e Joel
Barcelos, atores que atuavam também na televisão. Dessa vez, a peça foi proibida pelo
Ministro da Justiça Gama e Silva, para ser liberada em 1979, ano em que o chefe dos
censores, José Madeira, anunciou cinicamente que não haveria “mais censores, mas sim
examinadores aptos a desempenharem essa função” (CRONOLOGIA DAS ARTES
CÊNICAS, 1996: 63).
Esse acontecimento inicial da trajetória de Plínio Marcos marca o limiar da relação
conflitante do dramaturgo com a censura do Governo Militar, que seria periodicamente
premido pelos órgãos de repressão estatal, cuja única finalidade era impedir o
desenvolvimento livre “artístico e cultural do país, reduzindo artistas e intelectuais à
condição de humilhados e castrados” (PEIXOTO, 1986: 231).
Isso não significa propriamente que Plínio tenha feito muito uso da alegoria ou da
metáfora para driblar a censura, recurso que Guarnieri chamava de “teatro de ocasião”,
mas fixa-se em situações extremadas que lembram às vezes a estética realista e outras
vezes, a naturalista, dado a força que o meio exerce sobre os personagens; mas deve-se
ressaltar, entretanto, que a análise psicológica de seus personagens contraria essa
classificação.

8
Plínio Marcos sempre negou o rótulo de comunista, pois dizia que os rótulos eram gerados pelas
contradições de uma sociedade capitalista-industrializada-consumista, que torna o homem um escravo da
cegueira. Para Plínio, antes de falarmos no povo, de mobilizá-lo para a ação revolucionária, era necessário
se desvencilhar das classificações. “O que eu gostaria é que as pessoas sentissem necessidade de trabalhar
dentro de si mesmas. Assim, despertas, poderiam por si próprias perceber onde estão os grilhões que as
prendem e, por seus próprios esforços, se libertarem deles” Plínio Marcos. Debate, in Jesus-Homem, São
Paulo, Grêmio Politécnico, 1981, p. 49.
5

Plínio Marcos nasceu para a dramaturgia em um momento histórico de renovação


do teatro nacional, promovido por inúmeras orientações estéticas e teóricas teatrais
dispersas por capitais como Porto Alegre, João Pessoa, Recife, Salvador, entre outras.
Porém, o impacto e a proximidade dos grupos teatrais que atuavam no eixo Rio de
Janeiro-São Paulo tiveram um impacto maior em sua formação, sendo referência às
experiências teatrais do Arena, do Teatro Oficina e do TPE (Teatro Paulista do
Estudante), grupos atuantes de São Paulo, e o Teatro Opinião, do Rio de Janeiro.
Em sua crônica “Saltimbanco do Macuco”9, Plínio afirma ter escrito por volta de
40 peças teatrais. O certo, contudo, é que ele, como dramaturgo, dar-nos-ia, entre o que
escreveu, pelo menos cinco peças do mais vivo interesse social e humano.
Para se compreender melhor a dramaturgia de Plínio Marcos, parece útil considerar
a sua posição em relação ao teatro brasileiro de sua época. Iremos perceber aproximações
e distanciamentos, alguns traços comuns e traços distintivos em relação ao teatro realista
praticado pelo Teatro de Arena de São Paulo que “evoca, de imediato, o abrasileiramento
no nosso palco, pela imposição do autor nacional” (MAGALDI, 1984, p. 7). Mas também
um afastamento, talvez até mais contundente, em relação ao profissionalismo e a
espetacularização do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), cujo modelo estético europeu
se pautou em uma “renovação estética dos procedimentos cênicos, da década de quarenta”
(MAGALDI, 1984, p. 7).
Quando “Barrela” foi finalizada, o Teatro de Arena era o grande reduto inovador
do teatro nacional. O TBC10 havia perdido a sua hegemonia, abrindo espaço para as
propostas vanguardista do Arena. As peças de Plínio Marcos herdam essa estética mais
simples11, em que “uma simples cadeira à volta de um espaço e iluminação precária
podiam recriar a atmosfera propícia ao fenômeno cênico” (MAGALDI, 1984, p. 8). Plínio

9
Plínio Marcos. Saltimbanco do Macuco, in, A Crônica dos Que Não Tem Voz, Fred Maia, Javier Arancibia
Contreras e Vinícius Pinheiro, São Paulo, Boitempo Editorial, 2002, p.183.
10
“Já o TBC tem como principal mérito haver introduzido – sob a égide do profissionalismo – alguns
procedimentos inéditos no setor, como a ênfase na atividade do diretor, a leitura minuciosa das peças por
todos os membros do grupo (donde se alcançava a pretendida fidelidade ao texto dramático), a rotina austera
de ensaios, etc” (BRANCO, 2005, p. 38).
11
O seu teatro é a própria problematização do que é fazer teatro. Nada de espetacularização e ostentação
das grandes salas. É uma luta contra o teatro de seu tempo.
6

fez uso de parcos recursos cênicos. Suas peças se misturavam com a música popular. Para
atrair o público, grupos de samba era convidados para tocarem antes das peças. Ricardo
Barros, ator e filho de Plínio Marcos, explicou a proposta.
“O Bando [nome do grupo de artistas que se juntou para montar a peça Barrela]
acabou sendo premiado como alternativa de produção etc., justamente por
trazer essa linha das coisas de baixo para cima. (...) Começava o espetáculo
com o samba, os maiores sambistas de São Paulo estavam no grupo, que era
Zeca da Casa Verde, Jangada, Toniquinho Batuqueiro, Talismã. Eles faziam o
samba e isso trazia o povão” (BARROS, 2017, p. 1).

“Barrela” era um modelo de como despetacularizar e dessacralizar o espaço cênico.


Plínio surge após as encenações de grandes peças que iriam revolucionar o teatro
nacional, notadamente “Vestido de Noiva” (1943), com os seus “desvãos do
subconsciente”; “A Moratória”, (1955) de Jorge Andrade, com a temática rural; “Auto da
Compadecida” (1957), de Ariano Suassuna, em que misturava “folclore nordestino com
milagre medieval”, e sobretudo “Eles Não Usam Black-Tie”, (1958), de Guarnieri, que
tratava dos problemas sociais provocados pela industrialização. (MAGALDI, 19884,
p.28).

A CRUEDADE EM BARRELA
“Barrela” foi a primeira peça teatral de Plínio Marcos. É também a sua peça
preferida. Ela dará a tônica de seus trabalhos posteriores, tais como “Abajur Lilás”,
“Navalha na Carne” e “Dois Perdidos Numa Noite Suja”, este último inspirado no conto
“Terror em Roma”, de Alberto Moravia. “Barrela” é uma peça de um ato, ambientada em
um espaço disciplinar no qual o sono é a imagem da morte e a detenção uma crônica da
privação da liberdade12. Como muito de suas peças, há poucos personagens. É uma peça
cuja linguagem reflete a economia dos gestos e do tempo, assim como a complexidade
das relações sociais.
Muitos elementos referentes ao estilo de linguagem de “Barrela”, nos anos
posteriores terão sequência noutras peças do autor. A linguagem de rua voraz e cortante,

12
A abordagem desse tema também está presente em peças como “A Mancha Roxa” e em contos como
“Inútil Canto e Inútil Pranto Pelos Anjos Caídos, em Osasco”.
7

a solidão, o desespero, a falta de esperança, a agressividade, às gírias 13, os palavrões, a


violência, os espaços sufocantes, os personagens do submundo (cafetões, assassinos,
traficantes, drogados, prostitutas, travestis).
A peça abre-se com um sobressalto. “-Não, não, não!!”. Era o personagem
“Portuga” acordando de um pesadelo. E isso nunca mais deixou de acontecer desde que
assassinou a sua esposa. Ficou o trauma do homicídio que o acompanhava nas horas de
sono. O pesadelo de Portuga poderia ser mais um pesadelo, mas ele tem uma outra
significação no espaço da cela. O grito de Portuga desencadeia uma sucessão de
acontecimentos e revelações da alma dos personagens. O seu grito gera incômodo, tensão,
medo, pressentimento da morte e vingança. Ele descortina o corpo e revela às fraquezas
humanas. Dormir pode ser uma abreviação da morte. Como nenhuma outra peça do
período, as ciladas da comunicação, seja voluntária ou não, pode voltar-se para si mesmo,
tornando-se uma extensão do corpo, dos ossos, dos nervos e da musculatura. Manifestar-
se sobre sexualidade pode encurtar a vida ou prolongá-la. A sexualidade está na linha
tênue que separa a vida da morte. Ela pode libertar, mas também pode castigar. Tudo está
imbricado. Ela pode desencadear violências e ameaças, mostrando que o espaço que
ocupam é movido por nervuras, ódio e revoltas que são parte constitutiva do espaço. Nem
se trata de ressentimentos, que é uma culpa imaginária, mas uma culpa que se apresenta
como inevitável. A culpa é de todos, mas ela pode ser de apenas um. Por isso que a força
do silêncio e as negociatas são a matéria prima para uma vida fragilizada e vulnerável.
Atrapalhar o sono de um colega de cela é muito mais que um despertar incômodo, é a
própria morte anunciada. “Por querer ou não, esse filho da puta me fez perder o sono.
Desgraçado, vou te aprontar uma sacanagem que você vai parar na solitária. Lá não
enche o saco de puto nenhum”.
Os personagens de Plínio estão no plano das possibilidades restritas, mas
apresentam-se como politicamente uteis ao sistema. E neste ponto, tanto para Plínio, tanto
para Artaud, o teatro é uma máquina de produção de subjetividades, um campo de
“batalha” das “guerras declaradas”.

13
Para descrever a vida do submundo, Plínio Marcos fazia uso de uma linguagem próxima da oralidade
popular, com abusos de gírias e vocábulos obscenos” (MARINHO, 2006, p. 16).
8

“Barrela” também não é uma expressão da violência contemporânea. A violência


para ele é apenas um recurso de expressão. Mas ele toca na segregação, essa apartação
física produzida pela reclusão em penitenciárias, esse mal que insistem em extirpar da
sociedade, e que caracteriza a instituição prisão como produtora mor da delinquência, que
em “Barrela”, está longe de ser uma maldade absoluta. Ela é a matéria prima, a base
imaginária essencial de sua arquitetura dramática. Ali estão as fantasias, os desejos, os
terrores, os ilegalismos expostos numa grande salada imaginária. Plínio não banaliza a
violência e o preso tal como nos noticiários policiais. Batista (2010) chama isso de
“adesão subjetiva à barbárie”. Mas Plínio não quer punir, e não internaliza subjetivamente
o desejo da violência. Em “Barrela”, não se compraz em ver pessoas pobres presas sendo
torturadas, estupradas e mortas. Ele é um cronista de um mau tempo. Seus personagens
destilam uma violência voraz, que desemboca em um grande conflito infernal, em que a
morte parece ser a lei e a tortura um princípio.
Em “Barrela”, o universo humano está além das paredes da penitenciaria. O mundo
violento e opressivo das prisões, no qual “somente a força e a coragem podem lhe valer
alguma coisa” (VIEIRA, 1994, p. 13), faz do cárcere uma potencialização das lutas
cotidianas. Em Plínio o mundo de fora sempre é transposto para um pequeno mundo: um
quarto de um prostíbulo ou uma cela de prisão. A solidão, violência (em muitos casos
manifesta na linguagem, a formação da delinquência, a violência física, o uso de gírias
populares, a dificuldade para se comunicar, o sentimento de impotência, a ordem que se
esfacela, os ranços moralistas, a vingança que não cessa, os preconceitos latentes nos
personagens, a crueza linguística, são temas recorrentes nas peças de Plínio.
Como em Artaud, gritos, gestos, sons, suor, também são parte constitutiva da
linguagem no teatro pliniano. Nota-se que os gestos, os sons, os gritos, são a própria
materialização de uma poética da crueldade. Mas crueldade, no sentido artaudiano, não
deve ser confundida com poesia. Para Plínio e Artaud a violência e o sangue foram
“colocados a serviço da violência do pensamento” (ARTAUD, 1984, p. 92). Para Artaud
o teatro era um refazer violento do corpo. Mais do que isso, “O Teatro e Seu Duplo”
apresenta a existência e a vida como um processo catártico, e o faz sem se opor as outras
escolas de teatro. “Artaud fez do teatro não só um campo de atuação e expressão cultural,
9

mas uma forma de engajamento num processo radical de reconstrução de si” (QUILICI,
2012, p. 19). Em ambos os autores os espaços falam por si. As palavras falam com o
espaço. Elas sugerem imagens que soam sensações na ação dramática. Na sua economia
de palavras, cada entonação tem um significado. Eles não querem invocar um realismo,
mas problematizar o universo humano. Estão longe de um teatro analítico. Não querem
conscientizar, mas problematizar a existência como um todo14.
Em “Barrela”, a utilização de gírias é fiel e franca ao seu meio, e a curra é uma
metáfora de um universo humano imensurável. Seus personagens revolvem-se no mesmo
espaço, e como num panóptico invertido, atiram contra os próprios pés, sem darem-se
conta que estão mergulhados no abismo. Como diz Esslin em relação a Artaud, o teatro é
político sem estar vinculado a movimentos e partidos políticos, mas “o teatro torna-se
cada vez mais político e a política cada vez mais teatral” (ESSLIN, 1978, p. 89).
“Barrela” remete aos espaços reais que também podem estar carregados de tensas
relações de poder. Que poderes são esses? Ele está presente na formalização de grupos de
poder, claro na construção do personagem ‘Bereco”, o xerife da cela, que negocia
pequenos prazeres quando se sente ameaçado. “- Se vocês querem, a gente queima o
fumo”. São os chamados “espaços de tensões”, como às prisões, espaços destinados aos
indivíduos com comportamentos desviantes. A cela funciona como uma feroz caricatura
da sociedade que violenta do lado de fora. “Barrela” é a odisseia do medo, da dor e do
sofrimento. O que ela diz ainda não findou. Ela é atual e viva como a tela “A Ronda Dos
Presos” de Van Gogh. Personagens como “Bereco”, “Louco”, “Portuga”, entre outros,
representam pequenas tragédias humanas de uma sociedade maior, àquela do lado de fora,
e que os cuspiu para o lado de dentro. A este excluídos, são reservadas às heterotopias do
desvio, os espaços de exclusão, espaços punitivos e espaços disciplinares. São também
espaços onde se opera, contesta e se produz poder. “Isto significa que os lugares que a
sociedade dispõe em suas margens, são antes reservados aos indivíduos cujo

14
É muito mais que uma crítica social. Para Carvalho “Por meio de diálogos rápidos e cenas construídas
sobre uma tensão crescente, as personagens vão revelando suas dores e conflitos interiores, forjando uma
complexa relação entre palco e plateia” (CARVALHO, 2017, p. 10).
10

comportamento é desviante relativamente à média ou à norma exigida” (FOUCAULT,


2013, p.22).
A sua linguagem é voraz, seca e direta, e caminha em direção a uma catarse e a uma
ruptura de abscessos. Nenhum palavrão é gratuito. Nada soa falso. A linguagem se
apresenta como uma ferramenta psicológica para debater questões humanas comuns a
todos, “digamos assim, com a vida normal de todo o mundo” (VIEIRA, 1994, p. 13). E
como toda metáfora, ela cria um novo sentido após a comparação entre dois termos ou
duas realidades, fazendo uso da identidade, equivalência e analogia. É esse recurso
linguístico acrescenta “dados novos ao saber acumulado, mas sem alterá-lo
substancialmente”. (MOISÉS, 1988, p. 331).
Sobre questões de gênero, podemos dizer que os personagens criados por Plínio
Marcos, estão quase sempre tensionados por situações limites, e “Barrela” não foge à
regra. Em “Barrela”, a prisão é um símbolo da masculinidade. Não ser violento e não
demonstrar ser contrário a homossexualidade, significa colocar-se numa posição de
vulnerabilidade. O cárcere é lugar de homem. E se não for homem, terá que forçosamente
aparentar ser, para não ser “comida de gango”. Ser “mulherzinha”, “marica”, “bicha”,
“veado”, “fresco”, “bonequinha, é sinal de fraqueza e submissão. Fica latente as
representações dualistas sobre sexualidade e questões de gênero, no qual a dominação
masculina é uma voz dissonante no cárcere. Tudo que é avesso a masculinidade masculina
é imoral. Mas o mundo para Plínio não é dual. Ele é instável. Ele é impermanente e
indefinido. Ele não busca sentidos ou faz julgamentos. Não polariza o mundo. Os
personagens são o que são. No mais, todas as questões pessoais morais se coabitam com
as questões institucionais. Elas apresentam-se como uma lei para a sobrevivência. A
moral torna-se uma norma num pequeno espaço controlado institucionalmente. Pouco
importa para os detentos a existência de uma lei maior, o que vale é o que acontece face
a face. A agressividade apresenta-se como uma linguagem da resistência. “A brutalidade
do ambiente carcerário é algo como a norma vigente; romper com ela significa
deslegitimar os mecanismos alternativos de controle que se estabelecem para a
manutenção da ordem instituída pelos detentos” (BRANCO, 2005, p. 41).
11

Como observou Artaud, a linguagem também é feita de fogo, gritos, suor, gestos e
sons. Esses elementos estão presentes no universo linguístico inóspito e ferino de Plínio
Marcos. Não há delicadezas e polidez nas palavras. Ele é pincelar ao meio retratado. A
sua aproximação com o tema do Teatro da Crueldade problematiza as questões humanas.
Ele proporcionou uma comunhão entre o político e o estético, de maneira que a sua
linguagem ferina alcança a similitude do lirismo.
As agressões verbais e as torturas estão na base dos seus diálogos. A
imprevisibilidade e o tema da morte são incessantemente invocados. “...vemos em Plínio
Marcos avultarem os temas da solidão e da decadência humana, do círculo vicioso da
tortura mútua, da absoluta falta de sentido nas vidas degradadas, do beco sem saída da
miséria e da violência, da morte como horizonte permanente” (ZANOTTO, 2003, p. 8).
Não há solidariedade entre eles e nem mesmo uma identificação de classe. É o
salve-se quem puder. É a terra de ninguém e de todos, dos alcaguetes, homossexuais,
cafetões, de muitos seres em conflito com a lei. Em “Barrela” há “tentativas de reação
abortadas pela dependência visceral que se estabelece entre algozes e vítimas, que se
revezam na função de carrasco” (ZANOTTO, 2003, p. 13). A moral individual é sempre
colocada em dúvida. Caguetar pode ser a salvaguarda de uma condição e a manutenção
de um poder. Bereco, ao proibir a “curra” na cela, sentiu seu poder se esvair, pois ali,
todos resistem a um processo de dominação. Nada se perpetua. É quando Fumaça diz:
“FUMAÇA - Tua barra tá suja. Bereco. É melhor afinar BERECO – Se vocês querem, a
gente queima o fumo”.
Ademais, as ambientações plinianas servem-lhe de argumento para discutir
questões que não se restringem aos problemas do sistema carcerário e a organização de
um meio delinquente. A cela em “Barrela” é um pequeno grande universo na sua
dramaturgia. Lá estão todas às angústias humanas. Pouco importa os valores e as
verdades. O que importa é sobreviver, custe o que custar. Não existe piedade e compaixão
pelos corpos em suas peças. Em seus espaços, os demônios humanos são exorcizados.
“Barrela” expressa a concretude das palavras, dos gestos e expressão, que tal como o
Teatro da Crueldade, tira o teatro “de sua estagnação psicológica e humana” (ARTAUD,
1984:115). “Barrela” é a antiabstração. É vida anímica que corre nas veias.
12

ANTONIN ARTAUD E O TEATRO DA CRUELDADE


As ideias de Artaud sobre o teatro modificaram-se ao longo de sua trajetória como
ator, poeta e dramaturgo. Como dramaturgo, juntamente com outros intelectuais, ele
esteve à frente de um movimento de renovação do teatro europeu na primeira metade do
século XX.
Nascido em 1896 na França. Os escritos de Artaud repercutiram não apenas na
dramaturgia, mas marcou de modo contundente sua influência no campo da poesia,
literatura, esoterismo, pintura, filosofia, medicina, antropologia e psiquiatria. O melhor
relato de quem foi Artaud, chegou-nos pelos escritos de Anaïs Nin, escritora por quem
Artaud se apaixonou em 1933. Em seu diário, Nin escreveu: “Para ele, o teatro é um lugar
para se gritar a dor, a raiva, o ódio, para representar a violência que há em nós. Ele é o
ser drogado, contraído, que anda sempre só, em busca de produzir peças que são como
cenas de tortura” (NIN, 1983, p.164)
Artaud teve um papel importante no teatro contemporâneo, a ponto de ser difícil
ignorar as suas experiências e propostas artísticas. Artaud é considerado o dramaturgo da
crueldade, que não significa necessariamente que tenha escrito sobre horror e violência
física. A crueldade esteve presente em todas as etapas da vida de Artaud, mas é no
manifesto publicado na obra “Le Théâtre et son Double” (1935), que ele apresenta-se em
sua plenitude15.
Crueldade para Artaud significa uma explosão libertadora da violência. O papel da
crueldade é desalienar e libertar o espírito humano das forças alienantes. Aqui está o
sentido político da crueldade. Uma violência que agrega experiências subjetivas e
sensoriais. Uma violência feita de sentidos, imagens, movimentos, e que expulsa o grito
de dentro de si. Artaud recusa a associação do Teatro da Crueldade com o mal físico,
sadismo, suplício, sangue. A crueldade está presente nos humanos, mas nos animais ela
é apenas instinto e fome. A crueldade dos animais deve-se a um devir: um tigre tem garras

15
Artaud publicou dois manifestos. O primeiro em 1932 e o segundo no ano seguinte. Escreveu também
várias cartas e ensaios suplementares sobre o tema, tais como “Le Théâtre Alchimique” (1932) e “Em Finir
Avec Les Chefs-d´Ouvre” (1933).
13

e dentes fortes. A forma de seu corpo é uma adaptação as formas de vida. Mas somente o
homem carrega essa percepção da crueldade. Ele sabe que uma coisa tem que morrer para
dar continuidade ao ciclo da vida. E morrer aqui significa nascer de novo, pois devir para
Artaud significa “a ideia furtiva da passagem e da transmutação das ideias em coisas”
(ARTAUD, 1984, p. 140). É uma perspectiva Nietzschiana. Morre-se e vive-se todos os
dias. “E não há objetivo nesta luta. Não é por causa do desejo, mas porque a gente tem
impulso, energia, força” (Marton, 2020).
Foucault, por exemplo, ficou encantado com a personalidade literária de Artaud, e
lhe forneceu subsídios importantes em suas reflexões sobre o corpo. Quando Foucault
fala no suplício do sujeito, ele está trilhando uma linha de pensamento aberta por Artaud.
No caso de Deleuze, quando teoriza sobre o Corpo sem Órgãos, a referência principal é
Artaud. É evidente, que ambos os autores se servem de Artaud de forma distinta e diversa.
Artaud está presente em História da Loucura (1965), juntamente com Nerval, Nietzsche
e Van Gogh.
De Artaud, Foucault partirá para análises sobre as relações entre a obra e a loucura.
Foucault se interessa por essa obra abafada por saberes médicos. Pois Foucault sabe,
assim como Artaud, de que a loucura não teria existido sem a medicina e a psiquiatria.
Ao se contestar os saberes vindos da medicina e da psiquiatria, abre-se uma nova etapa
de estudos sobre o corpo.
“Uma vertente do discurso de Artaud sobre o corpo humano decorre desta
concepção da imaginação como sendo delirante, num sentido antimédico –
imaginação que é livre porque ultrapassa os limites do espaço de
funcionamento razoável que supostamente lhe estaria atribuído”
(SARDINHA, 2017, p. 201).
Para Foucault, Artaud é um autor que causará fissuras nas estruturas do pensamento
sem fazer literatura, filosofia e ciência16. Com efeito, Artaud, vai além de teorias e
conceitos. A ciência não basta para Artaud. Ele é um transgressor. Um rebelde. Não se
trata de uma outra perspectiva sobre o que já foi dito pela ciência. Ele diz o não dito pelo
texto acadêmico17. É uma perspectiva singular sobre as questões de seu tempo. Isso que

16
Para Deleuze, autores como Kerouac, Burroughs, Lawrence e Miller sabem mais sobre esquizofrenia que
os psicanalistas e psiquiatras. (DELEUZE, 1992)
17
“A linguagem para Artaud deve emergir dessa profundidade, dessa putrefação pura do ser” (LINS, 1999,
p. 15)
14

une Artaud a Foucault. Ambos são indóceis e donos de uma escrita intensa. A respeito
dos escritos de Artaud, diz Foucault:“...é o pensamento falando, é o pensamento, de algum
modo, sempre aquém ou além da linguagem, escapando sempre a linguagem”
(FOUCAULT, 2012, p. 53).
Sem dúvida, ele forneceu a Foucault, que o admirava, um foco primacial de estudos
sobre a loucura, ao explorar o parentesco da loucura com o sol e o fogo. Artaud, na sua
visão, escancarava os segredos mais profundos da loucura que vive “no âmago de nossa
cultura” (FOUCAULT, 1995, p. 171). A loucura de Artaud é uma loucura que pertence a
sua obra, mas que não explica a razão deste mundo. Essa loucura é exatamente “a ausência
de obra” (FOUCAULT, 1995, p. 583).
E neste ponto, Artaud encarna o pensamento nietzschiano como nenhum outro
pensador. Dizer que a arte traz novas cores para a vida nos remete a Nietzsche. Ela é mais
autêntica que a ciência. A arte enriquece a vida 18.
Artaud não é um contestador de estéticas teatrais. Não era este o seu interesse, se
opor, por exemplo, a Shakespeare ou Strindberg. O seu interesse é transpor para o teatro
questões culturais sem se desvincular das questões relativas a vida. Para ele, eram duas
coisas que estavam desvinculadas. E cultura para Artaud
“se assemelha à fome – a busca de Artaud é sempre de uma arte visceral, viva,
vital, mágica – como a ideia de lançar-se no abismo de Nietzsche... essa arte
atinge quem dela participa de forma física, e causa uma transformação
(alquimia)” (COPELIOVITCH, 2007, p. 7).
O teatro incendeia a alma humana, e neste sentido, ele é uma revolução cultural. O
teatro não é apenas representação, não é apenas palavras. Ele não quer representar a
psicologia dos personagens e nem a realidade. “O teatro nunca foi feito para descrever o
homem e o que ele fez, mas para constituir um ser de homem que pudesse nos permitir
avançar na estrada do viver sem supurar nem feder” (ARTAUD, 1986, p. 277).
O teatro é o que vem depois das cinzas? Não sabemos. Ele não existe para criar
mitos. Ele também é vida, sensações, transes, gritos, êxtase e sentidos. E se você grita,
você é reconduzido para outros estados. Se a peste decompõe o homem, ela também

18
“Artaud buscou diminuir a fissura entre força vital e forma, restaurando-as em uma coisa só: a vida”.
(DIONÍZIO, 2018, p. 224).
15

decompõe as nossas certezas19. O teatro desestrutura a ordem social e nos coloca diante
da vida. “Como a peste, o teatro pode ter uma ação epidêmica, que dissolve os quadros
regulares da vida social, e faz eclodir forças sombrias e disruptivas” (QUILICI, 2012, p.
42-43).
O teatro é muito mais que um texto, porque a palavra é incapaz de captar a vida
interior. “Não é que ele rejeite, de saída, qualquer utilização do texto. Reivindica apenas
que o encenador tenha, em relação a esse texto, uma inteira liberdade de manobras”
(ROUBINE, 1998, 63). O teatro vai além de um texto e sua representação no palco. Ele
é também ritual20. Daí o seu interesse pelo teatro balinês e pela cultura tarahumara. O
teatro deixa de ser apenas um espetáculo ou uma ideia estética. E rito para Artaud não
significa uma sacralização teatral, ou algo que produza um corte distintivo entre as
culturas tradicionais ou modernas, mas um elemento constitutivo da cultura “pelos quais
certas representações, valores, significados, traduzem-se nas ações corporais dos
indivíduos” (QUILICI, 2012, p. 35).
Ademais, o teatro tem um caráter intuitivo que a lógica não consegue reproduzir.
“Não se trata de suprimir o discurso articulado, mas de dar às palavras mais ou menos a
importância que elas têm nos sonhos” (ARTAUD, 1984:120). É como se o corpo fosse
tomado pela palavra, a ponto de fixar “uma dimensão sensível de sonoridades corporais”.
(VITTORI, 2012, p. 6).
O próprio teatro é um duplo21 que interpreta por meio de metáforas: peste, alquimia,
magia. É peste porque o teatro também representa algo mágico, ritual, atroz e perigoso.
Não é mais o teatro texto, mas o teatro que se vive. Ela fala por imagens e as palavras nos
chegam como nos sonhos. Não significa desprezar a palavra, mas fazer com que elas nos
cheguem por outras vias. “Assim como nossos sonhos atuam sobre nós e a realidade atua

19
Segundo Rosa, Artaud dá “ao acaso uma predominância sobre o determinismo, à contingência uma
primazia sobre o necessário” (ROSA, 2009, p. 441)
20
Esse sentido ritualístico do Teatro da Crueldade prescinde de uma transformação do espaço cênico que
diminua a distância entre espectador e atores, ou seja, “um espaço cênico que tenha os espectadores situados
ao centro (...) quer justamente marcá-los e envolvê-los de uma forma mais intensa, profunda e significativa”
(SCHEFFER, 2008, p. 159).
21
A peça “Arden de Faversham” uma adaptação da obra de Gide, foi a escolhida para inaugurar em 1932
o “Teatro da Crueldade”. Com o fracasso, Artaud “se submete a um tratamento de desintoxicação no
hospital Henri-Rousselle” (LINS, 1999, p. 88).
16

sobre nossos sonhos, pensamos que podemos identificar as imagens da poesia com um
sonho, que será eficaz na medida em que será propulsionado com a violência necessária”
(ARTAUD, 1984, p. 110).
É um teatro corporal que emana, que gesticula, que dança, que exorciza, que delira,
que grita, que gira. É um teatro que mostra que a palavra não diz mais nada quando o
corpo diz. É mais a cena da palavra do que a palavra em cena. Para Artaud, o teatro carece
de especificidade, e não pode ser confundido com literatura e artes plásticas.
Deleuze diz que sua escrita artudiana não busca significantes, mas cartografias.
Após ler “Para Acabar com o Juízo de Deus (1948), afirmará que ele um agrimensor da
palavra. Ele mapeia o que está ainda por vir. “Conectar, conjugar, continuar: todo um
"diagrama" contra os programas ainda significantes e subjetivos” (DELEUZE, 1996, p.
22).
Ao propor essa questão ele quer desestabilizar uma ordem social inerte 22. O teatro
tem a capacidade de desestabilizar tal como a peste bubônica da Idade Média 23. E a peste
também desestabiliza o corpo. É o corpo que luta para viver. O que Artaud deseja é que
a peste faça com que o homem olhe para si próprio. O que importa é o corpo em
permanente mutação. Esse corpo precisa estar possuído, vibrante, carregado de
eletricidade. É o oposto do corpo máquina, do corpo disciplinado, tão estudado por
Foucault. Ser ator no Teatro da Crueldade, é ser um interprete do mapa da vida.
A crueldade expulsa a vida aprisionada dentro de si. Ela é catártica, vulcânica e
proliferante. Ela é o desassossego da existência humana. Da crueldade surge a consciência
de si próprio. Jamais a literatura foi para Artaud um lugar para se organizar o caos. “O
teatro não é o lugar do caos. Ele o anuncia e o prepara. E, se necessário, ele dá aos
espectadores o desejo anárquico de destruição de toda ordem social” (DUMOULIÉ, 2010,
p. 64). O seu sentido é mais amplo. “Pode-se muito bem imaginar uma crueldade pura,
sem dilaceramento carnal. E, aliás, filosoficamente falando, o que é a crueldade? Do

22
. Como diz Camus em “A Peste” (1947), as reações diante da peste são inusitadas. A peste desafia a
ordem social: “A tolice insiste sempre, e compreendê-la-íamos se não pensássemos sempre em nós. Nossos
concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios” (CAMUS, s/d, p. 30).
23
“A retomada de uma poesia da crueldade traz consigo uma escrita mais próxima da morte, uma forma
totalmente longe de Deus e mais próxima da carne e do sofrimento humano” (PAVINI, 2014, p. 482).
17

ponto de vista do espírito, a crueldade significa rigor, aplicação e decisão implacáveis,


determinação irreversível, absoluta” (ARTAUD, 1984:132).
O ensaio de Artaud “O Teatro e a Peste” tem um paralelo significativo com a obra
de Plínio Marcos, que elaborou um teatro capaz de instigar a conscientização dos
problemas sociais e políticos de seu tempo. É importante ressaltar que a visão cultural de
Plínio não se limitou a negar os estrangeirismos descartáveis, mas foi acrescida de uma
visão mais coletiva da vida e por uma ação transformadora por meio do teatro. Tal como
Artaud, o teatro para Plínio possibilita o desenlace dos conflitos e o vazamento de
abscessos coletivos. Para ambos os autores, o teatro desempenha um papel revolucionário
e dispõe de elementos estéticos que afetam direta e indiretamente a ordem social
existente, sem que isso signifique um posicionamento político partidário. Tudo passa por
uma integração social através da cultura e não apenas limitada através da política.
Outro aspecto presente em ambos os autores é a disfunção entre duas culturas
aparentemente opostas. De um lado Artaud contrapõe uma cultura que se adere mais à
vida, que tem a mesma força das coisas reais, a uma cultura desvinculada da vida, abstrata,
erudita e elevada à condição de uma ordem sagrada. Artaud prevê que essa última está
fadada à morte e à poeira das bibliotecas, pois ela é “preguiçosa e inútil”, e “deve-se
entender que não se trata da vida reconhecida pelo exterior dos fatos, mas dessa espécie
de centro frágil e turbulento que as formas não alcançam” (ARTAUD, 1984: 22). De
outro lado, Plínio retoma o velho tema da oposição entre a cultura erudita e a cultura
popular. Para Plínio, a cultura popular é encarada de forma preconceituosa pelas elites
“portadoras” de uma cultura erudita. Em algumas crônicas e depoimentos, o autor deixa
claro que o aperfeiçoamento da cultura erudita passa pelo conhecimento da cultura
popular. “Um homem que não consegue acreditar na cultura popular não consegue
receber ensinamentos” (MARCOS, 1981:59). A cegueira, o poder econômico e a
imposição de uma ciência que legitima o saber erudito, impede que a riqueza dessa cultura
seja legitimada. Cabe, portanto, às elites entenderem melhor o alcance e a importância da
cultura feita pelo povo.
18

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