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GRONDIN, Jean. Introdução à hermenêutica filosófica.

Tradução: Benno
Dischinger. São Leopoldo: Ed. UNISINOS, 1999, 336p.

A HERMENÊUTICA UNIVERSAL DE GADAMER

De volta às ciências do espírito


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[...]

Auto-superação hermenêutica do historicismo

A reconquista da especificidade hermenêutica das ciências do espírito ocorre


na 2ª seção de 'Verdade e Método', na qual se encontra a "hermenêutica científico-
espiritual" ("geisteswisseñschaftliche Hermeneutik") de Gadamer, como ele a chama
sistematicamente. Em sua primeira parte, examina-se a história da hermenêutica no
século 19, para detectar as aporias do historicismo. A aporia básica situa-se na
circunstância de que o historicismo, apesar de todo o reconhecimento da
historicidade universal do saber humano, tem, não obstante, como objetivo um saber
absoluto da História.
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Dilthey, sobretudo, nunca 'teria sido capaz de conciliar a sua descoberta da
hstoricidade de tudo o que é vida, com o seu empenho epistemológico por uma
fundamentação metodológica das ciências do espírito. Somente com a revalorização
do mundo da vida por Husserl, e a mais fundamental hermenêutica da facticidade,
de Heidegger, teria sido afastada a obsessão epistemológica do historicismo. Sobre
sua base desenvolve Gadamer, na 2a parte sistemática de sua obra básica, os
'Traços fundamentais de uma teoria da compreensão hermenêutica'.
Ele inicia pela descoberta de Heidegger, da estrutura ontológica do círculo
hermenêutico. Ontológico significa aqui, como tão frequentemente em Gadamer:
universal. O círculo é universal, porque cada compreensão é condicionada por uma
motivação ou por um pré-conceito. Os pré-conceitos ou a pré-compreensão —
escreve Gadamer provocadoramente, valem, de certa forma, como "condições de
compreensão" transcendentais. A nossa historicidade não é uma limitação, e sim um
princípio de compreensão. Nós compreendemos e tendemos para uma verdade,
porque somos guiados neste processo por expectativas sensoriais. De maneira não
menos provocadora, o 1º título da 2a parte sistemática tratará da 'elevação da
historicidade da compreensão a um princípio hermenêutico'. Segundo Gadamer, foi
uma ilusão do historicismo querer afastar nossos preconceitos através de métodos
seguros, para possibilitar algo como objetividade nas ciências do espírito. Esta
posição combativa, oriunda do Esclarecimento, foi ela própria um preconceito do
metodológico século 19, que acreditava só poder obter objetividade pela via da
desarticulação da subjetividade, que compreende situadamente. O historicismo
também é superado por uma auto-aplicação: foi ele que ensinou, que cada doutrina
deve ser entendida com base em sua época. Essa concepção pode ser aplicada ao
próprio historicismo. Assim
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se comprova que o historicismo foi também um filho de seu tempo, ou seja, do
cientificismo. Logo depois que for desmascarada a dependência metafísica do ideal
científico do conhecimento com a ajuda de Heidegger, pode-se conquistar uma
compreensão mais adequada das ciências do espírito, a qual vai dar lugar à pré-
estrutura ontológica da compreensão, na determinação da objetividade das ciências
do espírito.
Não se pode tratar apenas de um simples afastamento dos preconceitos,
porém de seu reconhecimento e elaboração interpretante. Desta forma, Gadamer
identifica-se com a ideia de Heidegger, quando afirma que a primeiríssima tarefa
crítica da interpretação deve consistir em elaborar os seus próprios esboços prévios,
para que o objeto possa obter sua validade perante os mesmos. Já que a
compreensão pode deixar-se conduzir por pré-concepções enganadoras e nunca
escapa totalmente desse risco, deve ela esforçar-se no sentido de desenvolver, a
partir de sua própria situação, princípios de compreensão adequados à realidade: "A
elaboração de esboços corretos e adequados à realidade, os quais, como esboços,
são antecipações que só podem confirmar-se "nas próprias coisas", vem a ser a
tarefa permanente da compreensão." Esta citação enquadra-se mal na imagem
tradicional que se tem de Gadamer, Como caracterização de sua doutrina
hermenêutica, para a qual haveria abundantes referências, valeria antes que, em
face da estrutura preconceituosa da compreensão, não poderia existir nenhuma
"comprovação na própria coisa". Sua hermenêutica é aqui facilmente mal
interpretada. Se as manifestações de Gadamer talvez não se comportem sempre de
forma totalmente consistente, a sua "reabilitação" dos preconceitos conduz, todavia,
à admoestação crítica de "dar-se conta da própria preconceituosidade, para que o
próprio texto se apresente em sua diversidade e chegue, assim, à possibilidade
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de jogar sua própria verdade objetiva contra a própria pré-concepção." De outra
parte, Gadamer também não incide no apelo positivista em prol de uma negação da
estrutura pré-conceitual, para deixar as próprias coisas falarem, isentas de qualquer
perturbação subjetiva. Buscar simplesmente uma compreensão que se esforçará
para "não apenas realizar as suas antecipações, mas torná-las conscientes, a fim de
controlá-las e assim conquistar a correta compreensão a partir das coisas 12 eis o
que Gadamer recomenda com Heidegger, mantendo, ao mesmo tempo, o meio
termo entre uma autoextinção positivista e um perspectivismo universal como o de
Nietzsche. Apenas se questiona, como se pode chegar a tais esboços prévios,
"adequados à realidade" e que deixam falar as próprias coisas.
Assim, tudo aponta para "a questão realmente crítica da hermenêutica, a
saber, como se pode, enquanto podemos ter deles consciência, diferenciar os
verdadeiros preconceitos dos falsos, ou das pré-concepções que conduzem a mal-
entendidos? Existe algum critério para isso? Se existisse algo como um critério,
então todos os questionamentos da hermenêutica estariam resolvidos e não
precisaríamos mais discutir em torno do problema da verdade. Essa ambição por um
critério que, de uma vez por todas, assegure a objetividade, é também uma
depoente metafísica do historicismo. Mas, se não houver critérios realmente
seguros, há, no entanto, indícios. Com essa intenção, 'Verdade e Método' destaca a
produtividade dos intervalos de tempo. No olhar histórico retrospectivo, estamos
frequentemente em condições de reconhecer os princípios de interpretação que
realmente se comprovaram. Isso nos ocorre, por exemplo, na apreciação da arte
contemporânea. É quase impossível para uma época, descobrir os princípios
artísticos propriamente valiosos de seu tempo. Mas, graças à distância histórica, o
juízo se torna mais seguro. Assim se faz valer
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uma espécie de fecundidade da distância temporal. A essa produtividade associou
Gadamer em 1960 a solução da tarefa "crítica" da hermenêutica: "Nada mais além
dessa distância do tempo consegue tornar solucionável a questão propriamente
crítica da hermenêutica, a saber: diferenciar os verdadeiros preconceitos, sob os
quais nós compreendemos, dos falsos, sob os quais nós nos equivocamos.
Esta solução atua, todavia, de maneira um tanto unilateral. Porque,
inicialmente surge a questão, se a distância temporal se apresenta sempre de forma
tão produtiva. Porque um heideggeriano como Gadamer sabe muito bem, que a
História atua muito seguidamente de modo encobridor, e por isso, com demasiada
frequência se afirmam princípios de interpretação que obstruem o acesso às coisas
ou às fontes. Às vezes, é precisamente o salto para trás das interpretações
historicamente poderosas, que é hermeneuticamente enriquecedor. 15 Além disso, a
distância temporal não dá praticamente nenhuma informação, quando se trata do
domínio de interpretações contemporâneas. O próprio Gadamer reconheceu
recentemente a unilateralidade de seu princípio nesta questão. Quando 'Verdade e
Método', em 1985, apareceu em quinta edição nas obras completas, ele retocou a
passagem correspondente e substituiu o "nada mais além... por um
"frequentemente", de modo que o texto reza agora: "Frequentemente a distância
temporal é capaz de tornar solúvel a questão crítica da hermenêutica..." Embora o
problema permaneça sem solução, pode-se, não obstante, encontrar aqui um belo
exemplo para a disponibilidade que distingue a hermenêutica, de modificar a sua
própria opinião por uma concepção melhor.
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História efetual como princípio

A ulterior exigência de Gadamer por uma compreensão preocupada com a


objetividade nas ciências do espírito, deve ser constatada na elaboração da uma
consciência da história efetual. Por história efetual (Wirkungsgeschichte) entende-se,
desde o século 19, nas ciências literárias, o estudo das interpretações produzidas
por uma época, ou a história de suas recepções. Nela se torna claro, que as obras,
em determinadas épocas específicas, despertam e devem mesmo despertar
diferentes interpretações. A consciência da história efetual, a ser desenvolvida, está
inicialmente em consonância com a máxima de se visualizar a própria situação
hermenêutica e a produtividade da distância temporal. Porém, a consciência da
história efetual significa, para Gadamer, algo muito mais fundamental. Pois para ele,
ela goza do status de um "princípio", do qual se pode deduzir quase toda a sua
hermenêutica.
Ultrapassando a elaboração de uma disciplina colateral da literatura, a história
efetual expressa, em seu primeiro nível, a exigência de tornar consciente a própria
situação hermenêutica, para "controlá-la". Esta é a interpretação da própria pré-
compreensão, solicitada por Heidegger. Gadamer reconhece, no entanto, de um
modo mais marcante do que Heidegger, que essa tarefa não pode ser plenamente
resolvida ou concluída. A história efetual não está em nosso poder ou à nossa
disposição. Nós estamos mais submissos a ela, do que disso podemos ter
consciência. Em toda a parte onde nós compreendemos, a história efetual está em
ação como horizonte que não pode ser questionado retroativamente, até a clareza
definitiva daquilo que pode parecernos significativo e questionável. Desta forma, a
história efetual obtém a função de uma instância basilar para cada compreensão, a
partir da qual toda a compreensão continua determinada,
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evidentemente também ali onde ela não quer admiti-lo. Segundo 'Verdade e
Método', Gadamer encontrou a fórmula expressiva, segundo a qual a consciência da
história efetual seria propriamente "mais ser do que consciência". Ela impregna a
nossa "substância" histórica de uma forma que não permite ser conduzida à última
nitidez e distância.
Esta introspecção no próprio condicionamento histórico-efetual encontra
direta aplicação na controvérsia de Gadamer com o historicismo e a moderna
consciência metódica. Isso porque o historicismo esperava poder escapar do
condicionamento histórico, enquanto pudesse manter à distância a história que o
determina. Segundo o historicismo, uma consciência histórica especificamente
desenvolvida deveria ser capaz de emancipar-se desse condicionamento e
possibilitar, dessa forma, uma fase objetiva da história. Gadamer argumenta contra
isso, que o poder da história efetual independe precisamente de seu
reconhecimento. O surgimento da consciência histórica, no século 19, não
representava algo tão novo, que ela conseguisse neutralizar a eficácia subterrânea
da história em toda e qualquer compreensão. A história continua atuante, mesmo
onde nós ousamos sobrepor-nos a ela (e isso de tal modo, que até o historicismo
não se deu conta de sua própria origem positivista). É ela que determina a
retaguarda das nossas valorações, dos nossos conhecimentos e até dos nossos
juízos críticos. "Por essa razão", conclui Gadamer, "os preconceitos de cada um,
muito mais do que os seus juízos, são a realidade histórica de seu ser."
Desse modo, o conceito de uma consciência histórico-efetual revela uma sutil
ambiguidade. De um lado, ele significa que nossa consciência atual foi cunhada e
até constituída por uma história efetual. Nossa consciência é, assim, 'efetuada" pela
história. De outro lado, ela caracteriza uma
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consciência, a ser sempre reconquistada, desse ser efetuada. Essa consciência de
nosso ser efetuado pode, novamente, significar duas coisas: em primeiro lugar, a
exigência por um esclarecimento dessa nossa historicidade, no sentido da
elaboração de nossa situação hermenêutica, mas também e sobretudo um dar-se
conta dos limites estabelecidos para esse esclarecimento. Nesta última
configuração, a consciência histórico-efetual é a mais unívoca expressão filosófica
para a consciência da própria finitude. O reconhecimento da finitude humana não
gera, todavia, nenhuma atrofia da reflexão, antes pelo contrário. Obstrutivo era antes
o direcionamento histórico da compreensão para um ideal de conhecimento
metafisicamente condicionado. A consciência histórico-efetual promete, diante disso,
um ganho de reflexão. À exploração da profundidade dessa consciência, isto é, à
comprovação do caráter universal e especificamente hermenêutico da nossa
experiência de mundo, dedica-se a hermenêutica da finitude de Gadamer.

Compreensão aplicadora porque questionadora

Após o festivo registro da história efetual como princípio, 'Verdade e Método"


trata de reconquistar "o fenômeno hermenêutico básico", que tinha sido perdido nos
desvios metodológicos do século 19. A alavanca mais operativa dessa reconquista é
o problema da aplicação. A hermenêutica pré-heideggeriana tinha visto na aplicação
um negócio suplementar da compreensão hermenêutica. A determinação dos
objetivos da compreensão valia, de si, como meramente epistêmica e até noética.
Nessa questão era para ser entendido um significado estranho enquanto tal. Uma
explicação do assim entendido ocorria, no melhor dos casos, suplementarmente, em
disciplinas como a jurisprudência, na
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aplicação da lei ao caso particular, ou na teologia, por exemplo, na explicação
homilética de um texto bíblico. Segundo Gadamer, no entanto, a aplicação é, na
compreensão, tudo, menos algo secundário. Ele segue a intuição de Heidegger,
segundo a qual compreender é sempre um compreender-se, incluindo um encontro
consigo mesmo. Compreender significa, então, o mesmo que aplicar um sentido à
nossa situação, aos nossos questionamentos. Não existe, primeiro, uma pura e
objetiva compreensão de sentido, que, ao depois, na aplicação aos nossos
questionamentos, adquirisse especial significado. Nós já nos levamos conosco para
dentro de cada compreensão, e isso de tal modo, que, para Gadamer, compreensão
e aplicação coincidem. Isso pode ser muito bem visualizado no exemplo negativo da
não-compreensão. Se não conseguimos entender um texto, isso resulta do fato de
ele não nos dizer nada, ou não ter nada a nos dizer. Por isso, não é de estranhar, ou
de contestar, que a compreensão sempre aconteça de maneira diversa de época
para época e de indivíduo para indivíduo. A compreensão, motivada por eventuais
questionamentos, não é apenas uma conduta reprodutiva, mas também, já que ela
implica aplicação, uma conduta produtiva. A compreensão é tão co-determinada
pela situação histórico-efetual individual, que parece inadequado falar de um
progresso no decurso da história, ou, com Schleiermacher, de uma compreensão
melhor. Quando se reconhece a parte produtiva da aplicação em cada compreensão
bem sucedida, é suficiente dizer-se, e é assim que soa um conhecido dito de
Gadamer, que se "compreende de maneira diversa", quando realmente se
compreende.
A aplicação não precisa, no caso, ocorrer conscientemente. Ela também
continua sendo conduzida pela história efetual. A compreensão, ou, o que aqui é a
mesma coisa, a aplicação, é menos uma ação da subjetividade auto-suficiente,
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do que um "introduzir-se num acontecimento da tradição, no qual passado e
presente se intermediam constantemente." Entender um texto do passado significa
traduzi-lo para a nossa situação presente, escutando nele uma discursiva resposta
para os questionamentos da nossa era. Foi uma aberração do historicismo, tornar a
objetividade dependente da extinção do sujeito interpretante, porque a verdade, aqui
concebida como abertura de sentido (aléteia), ocorre apenas no decurso da
aplicação histórico-efetual.
A consideração da compreensão como um introduzirse num acontecimento
da tradição, significa que a subjetividade não é bem senhora daquilo que
eventualmente se lhe revela como significativo ou insensato. Como notava o jovem
Heidegger, nós incidimos na interpretação de nossa época mais pela via do
costume, do que se nós nos apropriássemos dela expressamente. A história efetual
é mais ser do que consciência, ou, falando hegelianamente: mais substância do que
subjetividade. Desse modo, nós pertencemos à história mais do que ela nos
pertenceria. Esta historicidade da aplicação exclui a representação de um ponto zero
da compreensão. A compreensão é sempre a continuação de uma conversação já
iniciada antes de nós. Projetados para dentro de uma determinada interpretação,
nós continuamos essa conversação. Dessa forma, nós assumimos e modificamos,
por novos achados de sentido, as perspectivas de significado que nos foram
transmitidas, com base na tradição e do seu presente em nós.
A hermenêutica da aplicação obedece, pois, conforme o comentário de
Gadamer, à dialética da pergunta e da resposta. Entender algo significa ter aplicado
algo a nós, de tal maneira que nós descobrimos nisto uma resposta a nossas
interrogações. Mas, "nossas" de tal forma, que elas foram também assumidas e
transformadas a partir de uma tradição. Cada compreensão, vista como auto-
compreensão, é
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motivada e inquietada por perguntas que determinam, de antemão, as trilhas visuais


da compreensão. Um texto só se torna falante, graças às perguntas que nós hoje lhe
dirigimos. Não existe nenhuma intepretação, nenhuma compreensão, que não
respondesse a determinadas interrogações que anseiam por orientação. Um
perguntar desmotivado, como o imaginava o positivismo, não interessaria a ninguém
e seria, consequentemente, desprovido de interesse científico. Não devemos
empenhar-nos pela exclusão das nossas questionantes expectativas de sentido, e
sim por realçá-las, para que os textos que procuramos entender, possam responder-
lhes tanto mais nitidamente. Assim acontece a compreensão como concretização
histórico-efetual da dialética entre pergunta e resposta. É precisamente aqui que se
pode estabelecer, em que direção a consciência histórico-efetual deve ser
filosoficamente enquadrada. O próprio Gadamer o marca nitidamente no final da
segunda parte de 'Verdade e Método', antes de a ampliação ontológica da
hermenêutica se realizar além do âmbito das ciências do espírito: "A dialética da
pergunta e da resposta (...) permite, agora, determinar mais de perto, que espécie
de consciência é a consciência histórico-efetual. Porque a dialética da pergunta e da
resposta que nós detectamos, faz a relação da compreensão aparecer como relação
recíproca do gênero de uma conversação (ou colóquio). "27A compreensão é aqui
especificada como relação e, mais de perto, como conversação. Segundo a sua
forma, a compreensão é, então, menos a captação de um sentido noético, do que a
realização de uma conversação, o "colóquio" que somos nós", acrescenta Gadamer
na mesma página, apoiando-se em Hölderlin.
Com muito acerto, é a consciência histórico-efetual que aqui é caracterizada
como conversação. A consciência perde nesse processo a autonomia do
autodomínio, que lhe era própria na tradição idealista e na filosofia reflexiva, da
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qual Gadamer se afasta aqui. Será uma tarefa da parte conclusiva de 'Verdade e
Método', legitimar esse caráter hermenêutico da conversação — cuja concretização
é a dialética da pergunta e da resposta — como a característica universal da nossa
experiência linguística de mundo.
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Linguagem a partir da conversação


[...]

A universalidade do universo hermenêutico

A pretensão de uma universalidade da compreensão, tematizada pela


hermenêutica, desencadeou numerosas discussões. Mas, em que consiste, afinal,
essa pretensão tão vivamente debatida? Deve ela ser concebida como uma
pretensão de validade universal da filosofia gadameriana? Neste caso, como pode
ela ser conciliada com a tese hermenêutica originária da historicidade de toda
compreensão?
Inicialmente convém observar, que o uso da palavra por Gadamer, em assuntos de
universalidade, é particularmente explícito e descritivo. Quando se analisa 'Verdade
e Método" fielmente ao pé da letra, vê-se que a universalidade
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é concedida a diversos candidatos. O título da última seção fala do "aspeto universal
da hermenêutica", onde fica em aberto se hermenêutica significa a própria
hermenêutica filosófica (a de Gadamer), a compreensão, ou a linguagem encarada
hermeneuticamente. Em verdade, todas as três possibilidades podem ser
constatadas e fundamentadas. Gadamer fala de fato da "universalidade" da
"dimensão linguística da compreensão" de uma "hermenêutica universal", que se
refere à cosmovisão universal do ser humano, bem como da ampliação da
hermenêutica "para um questionamento universal". Com frequência encontram-se
títulos gerais como a "Universalidade do problema hermenêutico", que é o título do
Tratado de 1966, ou o da "dimensão hermenêutica". Não se poderia dizer que as
controvérsias, conduzidas em larga escala em torno dessa universalidade, tenham
gerado clareza. Sabidamente, Gadamer também se importa pouco com rigorosos
esclarecimentos conceituais, os quais, ao mesmo tempo, pagam tributo à tendência
da lógica dos enunciados de fragmentar a linguagem em unidades significativas.
Mas, para delinear com maior nitidez a universalidade da dimensão que
Gadamer tem ante os olhos, parecem necessárias algumas balizas. Inicialmente
convém direcionar a atenção para a circunstância de que se trata sempre da
universalidade de uma "dimensão", e bem menos da pretensão de universalidade de
uma filosofia, como por exemplo da gadameriana, como o sugere o discurso
habermasiano de uma "pretensão de universalidade da hermenêutica" Gadamer
nunca reivindicou pessoalmente uma validade universal definitiva — e isso
significaria algo absoluto para a formulação de sua própria posição: "a filosofia
'hermenêutica' não se compreende (...) como uma posição 'absoluta'." Gadamer
problematiza justamente, em nome da insuprimível historicidade, a pretensão de
absolutidade,
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por exemplo, da filosofia transcendental, como auto-equívoco da filosofia." Não é em
vão que os últimos parágrafos de 'Verdade e Método' aduzem a sentença do
Simpósio platônico: nenhum dos deuses filosofa. Nós não filosofamos porque
possuímos a verdade absoluta, mas porque ela nos falta. Como realidade da
finitude, a filosofia precisa recordar-se de sua própria finitude. Se somos possuidores
de um saber definitivo, então, no máximo, é precisamente o saber dessa nossa
finitude universal.
No âmbito de 'Verdade e Método', o discurso sobre um 'aspecto universal" da
hermenêutica tem um significado de fácil identificação. Ele sinaliza, em primeiro
lugar, uma ultrapassagem da hermenêutica tradicional, a científico-espiritual, em
direção a uma hermenêutica filosófica, que libere o "fenômeno hermenêutico" em
toda a sua amplitude. Esta universalidade do questionamento hermenêutico
significa, para a filosofia, que ela não se deixa limitar ao problema colateral de uma
metodologia das ciências do espírito. A busca por compreensão e linguagem não é
apenas um problema metodológico, porém uma característica básica da facticidade
humana. O "aspecto universal" da hermenêutica deve, pois, ser contraposto a uma
hermenêutica puramente "científico-espiritual": "Hermenêutica é, pois, um aspecto
universal da filosofia e não apenas a base metodológica das assim chamadas
ciências do espírito. " Todo o empenho filosófico, acentuadamente especulativo, de
Gadamer, visa ampliar de tal forma o horizonte da hermenêutica além da estreiteza
das ciências do espírito, que ele se torne a preocupação central da filosofia. É
precisamente isso que expressa a ampliação da hermenêutica a um questionamento
universal da filosofia e a "virada ontológica da hermenêutica", da qual se fala no
título da terceira parte de 'Verdade e Método'. Nesta parte conclusiva, ultrapassando
a hermenêutica científico-espiritual das duas primeiras partes, deve
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ser realçada a universalidade maior — portanto, a dimensão ontológica ou filosófica
— do questionamento hermenêutico.
Mas, como se pode falar da universalidade de uma dimensão ou experiência
hermenêutica, sem revestir a filosofia que a considera, com uma pretensão de
absolutidade? A palavra universalidade leva, aqui, facilmente a um engano.
Seguindo indicações de Gadamer, pode-se constatar nos textos, que o verdadeiro
chão para o discurso sobre universalidade, em 'Verdade e Método, deve ser
buscado no domínio verbal de "universum". A universalidade da linguagem, ou da
compreensão, sublinha, por isso, que ela forma o nosso universo, isto é, o elemento
ou o todo, no qual nós vivemos como seres finitos. Assim, Gadamer aponta, p. ex.
— aparentemente de forma bem complementar — para o discurso do biólogo von
Uexhuell, que fala de um "universo da vida, que não é o da física". Gadamer também
se referiu à formulação de Leibniz, de que a mônada é um universo, no sentido
específico de que o mundo todo pode nele espelhar-se. No contexto de 'Verdade e
Método', o Universum, ou a universalidade da linguagem dirige-se, no caso, contra a
tese da limitação, que a respectiva linguagem parece revelar, por haver tantas
linguagens diferentes. Pois, pode parecer uma limitação da razão, o fato de ela ser
desterrada para uma linguagem específica. Não é assim, contesta Gadamer, porque
a linguagem justamente se distingue, por ela poder buscar expressão para tudo.
Neste contexto encontra-se, por primeira vez, o discurso sobre uma "Universalidade
da linguagem", que sustenta o passo com a infinitude da razão.
Esta dimensão da linguagem é universal e forma o universo, no qual se
realiza toda a compreensão e toda a existência humana. É claro que não se pensa,
que a linguagem tenha preparada uma expressão para tudo. A verdadeira linguagem
jamais esgota o enunciável. Sua universalidade é
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a da busca da linguagem. A dimensão universal, que prende a respiração da
hermenêutica, é, por isso, a da palavra interior, da conversação, da qual toda
expressão recebe a sua vida. Certamente nós encontramos, no caso, palavras bem
adequadas e comunicáveis. Porém, essas palavras não são, ao mesmo tempo,
nada, senão o fim visível de um desejo inesgotável por linguagem ou por
compreensão. Hermeneuticamente significativa, na linguagem, é a dimensão da
conversação interior, a circunstância de que nosso dizer significa sempre mais do
que ele realmente expressa: "Um pensar, um visar, vai sempre além daquilo que,
concebido em linguagem, em palavras, realmente alcança o outro. Uma não
silenciada aspiração pela palavra adequada - é isso, por certo, que perfaz
propriamente a vida e a essência da linguagem.
Nesse desejo revela-se nossa finitude. Não nos é garantido nenhum
autodomínio definitivo, em linguagem ou em conceito. Nós vivemos em e a partir de
uma conversação, porque nenhuma palavra pode conceber o que nós somos e
como nós devemos entender-nos. Através dessa finitude se expressa a nossa
consciência humana da morte, a qual, sem falar e buscando linguagem, vai
tendendo em direção ao próprio fim. Dessa forma, Gadamer deduz uma estreita
conexão entre a insaciabilidade da nossa busca pela palavra correta, e "o fato de
que nossa própria existência se encontra no tempo e perante a morte.
Na palavra interior, na aspiração por compreensão e linguagem, que a
constitui e que perfaz a finitude de nosso ser, enraíza-se a universalidade do
filosofar hermenêutico. Pode haver, para a filosofia, algo mais universal do que a
finitude? A filosofia contemporânea — que vai em busca da universalidade de nossa
finitude, a realizar-se num interminável querer entender e dizer— estabelece, a partir
disso, uma pretensão de universalidade. A filosofia hermenêutica
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realiza, no entanto, a auto-interpretação da facticidade humana, que tenta prestar
contas da sua finitude como a do horizonte universal, a partir do qual tudo pode
fazer sentido para nós, sabendo muito bem, que nenhum dos deuses filosofa.
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