Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Furor de arquivo
Suely Rolnik
O que causa a emergência do desejo de arquivar no atual contexto? Que políticas
de desejo movem as diferentes iniciativas de inventário e seus modos de apresen-
tação? Como, quando e a que ponto as diferentes posturas adotadas e os respecti-
vos dispositivos que inventam criam condições para que tais práticas possam ativar
experiências sensíveis no presente? Essas são algumas das perguntas que estaremos
problematizando, relativas a toda e qualquer proposta artística em que a obra não
se reduza ao objeto, mas se realize enquanto acontecimento. A performance situa-
se nesse contexto.
Políticas do inventário; “crítica institucional”; cartografia/diagrama; micro e macropolítica.
Uma verdadeira compulsão de arquivar to- O segundo bloco refere-se à situação que
mou conta de parte significativa do territó- engendra esse furor de arquivar: o que cau-
rio globalizado da arte nas duas últimas dé- sa a emergência desse desejo no atual con-
cadas – de investigações acadêmicas a ex- texto? Que políticas de desejo movem as
posições baseadas parcial ou integralmente diferentes iniciativas de inventário e seus
em arquivos, passando por acirradas dispu- modos de apresentação?
tas entre coleções por sua aquisição. Sem
dúvida, isso não é mero acaso. Vou propor algumas pistas de resposta a es-
sas perguntas, pensando sobretudo em duas
Perguntar-se pelas políticas do inventário se experiências que vivi recentemente. A primei-
faz necessário já que são muitos os modos ra é o projeto de constituição de um arquivo
de abordar as práticas artísticas que se quer de 65 filmes de entrevistas em torno da obra
inventariar não só do ponto de vista técni- de Lygia Clark e do contexto em que foi de-
co, mas também e sobretudo daquele de senvolvida, o qual realizei entre 2002 e 2006;
sua própria carga poética. Refiro-me à capa- a intenção consistiu em ativar a memória da
cidade do dispositivo proposto de criar as experiência sensível promovida pelas propo-
condições para que tais práticas possam ati- sições da artista em sua contundência poéti-
var experiências sensíveis no presente, ne- co-política e, mais amplamente, pelo meio em
cessariamente diferentes das que foram ori- que tem origem e condição de possibilidade
Ricardo Basbaum, Você ginalmente vividas, mas com igual teor de essa contundência. A segunda é minha inten-
gostaria de participar de densidade crítica. Problematizar esse aspec- sa participação, nos últimos 12 anos, no diá-
uma experiencia artística? to, no entanto, implica pelo menos dois ou- logo internacional que se vem travando em
tros blocos de perguntas. O primeiro refe- torno desse campo problemático.
projeto em curso,
iniciado em 1994, objeto
em aço esmaltado, 125 x re-se ao tipo de poéticas inventariadas: Que
80 x 15cm poéticas são essas? Teriam elas aspectos em Pois bem, há um objeto privilegiado por tal
comum? Estariam situadas em contextos his- ânsia de arquivo: trata-se da ampla varieda-
tóricos similares? Em que consiste inventariar de de práticas artísticas agrupadas sob a de-
Fonte das imagens: Guy Brett,
98
lo 12 e, mais institucionalmente, no 13 (com Pois bem, o furor de arquivo aparece preci-
a bula Licet ad capiendos, promulgada pelo samente nesse contexto, marcado por guerra
papa Gregório IX em 1233), é no século 15 de forças pela definição da geopolítica da arte,
que ela se torna uma das mais tenebrosas a qual por sua vez se situa no contexto de
manifestações da crueldade humana, tal guerra mais ampla, em torno da definição
como ficou registrada no imaginário coleti- de uma cartografia cultural da sociedade
vo. É na Península Ibérica que isso acontece, globalizada. Há, porém, que precisar melhor
com a introdução de um Tribunal de Santo que práticas artísticas produzidas nos anos
Ofício pelos reis de Castela e Aragão, que 60-70 fora do eixo Europa ocidental-EUA
submeteram o poder da fé ao poder régio, impulsionam e alimentam esse furor. Sem
abolindo as regras que delimitavam o exer- dúvida, são especialmente cobiçadas as que
cício da violência. Se, até então, a tortura surgiram na América Latina e em outras re-
era prática esporádica e controlada, aplicá- giões que, como nosso continente, se en-
vel apenas a alguns casos e após julgamento, contravam então sob regimes ditatoriais (é
nesse contexto ela passa a ser corriqueira, o caso, por exemplo, da Europa do leste e
marcada por perversão sem limites. da própria Península Ibérica). Nessas situa-
ções, o movimento em questão ganha mati-
O segundo aspecto histórico é o fato de as zes singulares que se apresentam sob for-
culturas expulsas da África e da Península mas variadas. Um aspecto, no entanto, é re-
Ibérica estarem inscritas na memória de nos- corrente: agrega-se o político às dimensões
sos corpos latino-americanos, pois, assim do território institucional da arte, que pas-
como os africanos foram trazidos como es- sam a ser problematizadas.
cravos, pesquisas históricas recentes atestam
que grande parte dos árabes e judeus per- O foco da compulsão de arquivar colocado
seguidos refugiaram-se na América recém- nessas práticas situa-se num campo de for-
conquistada (são dessa origem, 80% dos ças em disputa pelo destino de sua retoma-
portugueses que colonizaram o Brasil, bem da no presente – variado espectro desde
como 80% dos espanhóis que colonizaram iniciativas que pretendem ativar sua potên-
o México, enquanto na Espanha apenas 40% cia poético-política até aquelas movidas pelo
da população tem essa ascendência). desejo de ver tal potência definitiva e
irreversivelmente desaparecida da memória
O terceiro e último aspecto deduz-se dos de nossos corpos. É nessas práticas que vou
anteriores: a modernidade ocidental funda-
concentrar a análise, movida pela urgência
se sobre o recalque das culturas que com-
de nos situarmos mais precisamente nesse
põem sua alteridade, até em seu próprio in-
terreno, de modo a afinar nossas interven-
terior, por meio de diferentes procedimen-
ções teórico-clínicas em sua paisagem.
tos. Em sua fase neoliberal, o procedimento
não mais consiste em impedir a ativação Despertando da anestesia
destas culturas; pelo contrário, trata-se de
incitá-las, mas para incorporá-las a seus de- Comecemos por assinalar que o caráter
sígnios, destituindo-as de suas potências sin- político de tais práticas não as constitui como
gulares e denegando os conflitos que essa uma espécie de militância a veicular conteú-
construção necessariamente implicaria. É essa dos ideológicos, como poderia parecer numa
modernidade que hoje se encontra na primeira aproximação. No entanto, tal in-
berlinda. Sua incidência na política de produ- terpretação ficou estabelecida pela história
ção de subjetividade e de criação/pensamen- canônica da arte, a partir de meados dos anos
to é o que nos interessa problematizar aqui. 70, com certos textos e exposições que se
100
suscitar nas pessoas que são por ele afetadas lências do presente globalizado e o trabalho
em sua recepção: não se trata da consciência requerido para identificar e elaborar as ques-
da dominação e da exploração (sua face ex- tões que aí se colocam, tal como se mani-
tensiva, representacional, macropolítica), mas festam singularmente em cada contexto. Em
sim da experiência desse estado de coisas outras palavras, o equívoco da história
no próprio corpo (sua face intensiva, incons- institucional da arte é utilizado por tais críti-
ciente, micropolítica). Essa experiência pode cos e historiadores para alimentar uma es-
intervir no processo de subjetivação exata- pécie de surdez defensiva às discussões que
mente no ponto em que ele tende a tornar- se vêm travando em escala internacional,
se cativo e a despotencializar-se. especialmente à nova aliança que se estabe-
lece entre o poético e o político (em parti-
O que se ganha é mais precisão de foco, cular no terreno da arte). O efeito é a omis-
que em compensação se turva quando tudo são da responsabilidade de seu trabalho in-
que diz respeito à vida social volta a reduzir- telectual na construção do presente. Mais
se exclusivamente à leitura de sua dimensão preocupante é a inibição que o poder de tal
macropolítica e faz dos artistas que atuam posição provoca na produção artística e
nesse terreno designers gráficos e/ou publi- discursiva das novas gerações.
citários do ativismo. É verdade que esse tipo
de opção caracterizou certas práticas nas Nesse contexto, estão dadas as condições
mesmas décadas de 1960 e 1970 (e ainda para retomar o combate pela superação da
hoje), as quais poderiam efetivamente ser cisão entre micro e macropolítica que se
qualificadas como ‘políticas’ e/ou ‘ideológi- reproduz na cisão entre as figuras clássicas
cas’. Se esse tipo de ação é sem dúvida im- do artista e do militante, presente na base
portante, ele deve no entanto ser distingui- do conflito que caracterizou a conturbada
do das ações artísticas que trazem o político relação de amor e ódio entre movimentos
como aspecto de sua própria poética e que, artísticos e movimentos políticos ao longo
por isso, atingem potencialmente a dimen- do século 20, responsável em parte pelas
são sensível da subjetividade e não sua cons- frustrações de tentativas coletivas de eman-
ciência. Aqui situa-se o efeito mais grave do cipação (a começar pela Revolução Russa).
infeliz equívoco cometido pela ‘história da
O que, afinal, diferenciaria exatamente ações
arte’: ao generalizar a caracterização para o
micro e macropolíticas?
conjunto das ações artísticas propostas na-
quelas décadas na América Latina, perderam- Micro & macropolítica
se a essência da singularidade das ações aqui
focadas e o deslocamento que operara na Antes de responder a essa pergunta, cabe
relação entre o poético e o político. assinalar que macro e micropolítica compar-
tilham um ponto de partida: a urgência de
O lapso, entretanto, torna-se ainda mais enfrentar as tensões da vida humana nas si-
nefasto quando adotado como paradigma tuações em que sua dinâmica se encontra
pelos próprios historiadores e críticos lati- interrompida ou, no mínimo, esmaecida.
no-americanos, seguindo a tradição pura- Ambas têm como alvo a liberação do movi-
mente colonial. No Brasil, os que assumiram mento vital de suas obstruções, o que faz
essa posição tendem a rejeitar tudo o que delas atividades essenciais para a ‘saúde’ de
se produz na terceira geração de crítica uma sociedade. Refiro-me à afirmação da
institucional no terreno artístico, e a força inventiva de mudança, quando a vida
estigmatizá-lo como ‘não arte’. Isso sustenta assim o exige como condição para voltar a
e justifica sua tendência a denegar as turbu- fluir. Entretanto são distintas as ordens de
102
O primeiro tipo de tensão é acessado so- do ‘conceitualismo’, é inaceitável rotulá-lo
bretudo pela percepção, e o segundo, pela como ‘ideológico’ ou ‘político’ para marcar
sensação. Explico-me brevemente: a percep- supostamente sua diferença. É que se de fato
ção aborda a alteridade do mundo como encontramos nessas propostas um germe de
mapa de formas que associamos a certas integração entre o político e o poético,
representações de nosso repertório e as vivenciado e atualizado em ações artísticas,
projetamos sobre aquilo que estamos apre- bem como na vida cotidiana, embora frágil e
endendo, de modo a lhe atribuir sentido. impossível de nomear, chamá-lo de ‘ideoló-
Enquanto a sensação aborda a alteridade do gico’ ou ‘político’ é um modo de denegar o
mundo como diagrama de forças que afe- estado de estranhamento que essa expe-
tam nosso corpo em sua capacidade de res- riência radicalmente nova produz em nossa
soar. Nesse processo, o outro se integra em subjetividade. A estratégia é simples: se o
nosso corpo como molécula de seu tecido que aí experimentamos não é reconhecível
sensível e se torna presença viva a nos pro- na arte, então, para nos proteger do incô-
duzir inquietação por colocar em crise esse modo ruído, o categorizamos na política, e
mesmo repertório. É precisamente essa ten- tudo permanece no mesmo lugar. O abis-
são o que nos força a pensar/inventar uma mo entre micro e macropolítica se mantém;
obra de arte, um conceito, um modo de aborta-se o processo de sua fusão e, por-
existência ou outra manifestação em que ela tanto, aquilo que está por vir (no melhor
se faça presente. Aqueles que encontram dos casos, o germe permanece incubado).
qualquer uma dessas criações ganham uma Ora, o estado de estranhamento constitui
oportunidade de encarar tal tensão e, tal- experiência crucial porque, como sugerido,
vez, de ir mais longe ainda, ativando sua pró- ele é o sintoma das forças da alteridade que
pria potência de invenção. reverberam em nosso corpo e exigem cria-
Criação cafetinada ção. Ignorá-lo implica o bloqueio da potên-
cia pensante que dá impulso à ação artística
A figura clássica do artista costuma estar mais e sua provável interferência no presente.
do lado da ação micropolítica, e a do militan-
te do lado da macropolítica. Se é verdade Tomemos o caso do Brasil. A crítica à insti-
que essa separação já começa a dissolver-se tuição artística no país manifesta-se desde o
com as vanguardas modernistas da América início dos anos 60 em práticas especialmen-
Latina, tal dissolução se intensifica e se ex- te vigorosas e se intensifica ao longo da dé-
pande nas práticas artísticas da região nos anos cada, já então no bojo de um amplo movi-
60-70. Esboça-se nesse contexto um com- mento contracultural. Ela persiste mesmo
posto dos dois tipos de ação sobre a realida- após 1964, quando se instala no país a dita-
de não só na arte, mas na política da existên- dura militar, e, ainda, por um breve período
cia. É esse aspecto crucial da produção artísti- após dezembro de 1968, quando a violên-
ca do período no continente que parece ter cia do regime recrudesce por conta da pro-
escapado à história da arte. mulgação do AI-5.4 É exatamente nesse
Já de saída, ‘esta’ história não foi feliz ao momento que o político se agrega à poética
qualificar tais propostas como ‘conceituais’: da crítica institucional em curso na arte. No
mesmo quando lhes outorgando autono- entanto, no início da década seguinte, o
mia relativa às ações assim categorizadas movimento começa a arrefecer por efeito
nos EUA, o termo encobre suas singulari- das feridas nas forças de criação provocadas
dade e heterogeneidade. Em todo caso, pela truculência do regime. Muitos artistas e
ainda que as mantenhamos sob o chapéu intelectuais são forçados ao exílio – seja por
104
condições para uma experiência de sua Estudios Independientes (PEI) do Museu d’Art
contundência crítica no enfrentamento das Contemporani de Barcelona (MacBa). Seu trabalho tem
apresentada como paradigma universal); e 2 ‘Perceptores’ é uma sugestão do artista paulista Rubens Mano,
menos ainda para ficarmos gozando volup- para designar o tipo de relação que se estabelece em
jados no presente. 6 A ideia de que “a tarefa que nos cabe no presente é revolver,
no passado, os futuros soterrados”, me foi sugerida pela
doutoranda Elisabeth Pacheco, num seminário sobre o
Suely Rolnik é psicanalista, pesquisadora e curadora inde- presente ensaio (no Programa de Estudos Pós-Gradua-
pendente. Professora titular da PUC-SP (Pós-Graduação dos de Psicologia Clínica da PUC-SP), com base em sua
em Psicologia Clínica: Núcleo de Estudos Transdisciplinares leitura de Walter Benjamin (Obras Escolhidas, v.I, Magia e
da Subjetividade) e docente convidada do Master Oficial Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história
en Historia del Arte Contemporáneo y Cultura Visual, da cultura. São Paulo: Brasiliense,10 ed., 1996).
Universidad Autónoma de Madrid y Museo Nacional Cen-
tro de Arte Reina Sofía (MNCARS) e do Programa de