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Furor de arquivo

Suely Rolnik
O que causa a emergência do desejo de arquivar no atual contexto? Que políticas
de desejo movem as diferentes iniciativas de inventário e seus modos de apresen-
tação? Como, quando e a que ponto as diferentes posturas adotadas e os respecti-
vos dispositivos que inventam criam condições para que tais práticas possam ativar
experiências sensíveis no presente? Essas são algumas das perguntas que estaremos
problematizando, relativas a toda e qualquer proposta artística em que a obra não
se reduza ao objeto, mas se realize enquanto acontecimento. A performance situa-
se nesse contexto.
Políticas do inventário; “crítica institucional”; cartografia/diagrama; micro e macropolítica.

Uma verdadeira compulsão de arquivar to- O segundo bloco refere-se à situação que
mou conta de parte significativa do territó- engendra esse furor de arquivar: o que cau-
rio globalizado da arte nas duas últimas dé- sa a emergência desse desejo no atual con-
cadas – de investigações acadêmicas a ex- texto? Que políticas de desejo movem as
posições baseadas parcial ou integralmente diferentes iniciativas de inventário e seus
em arquivos, passando por acirradas dispu- modos de apresentação?
tas entre coleções por sua aquisição. Sem
dúvida, isso não é mero acaso. Vou propor algumas pistas de resposta a es-
sas perguntas, pensando sobretudo em duas
Perguntar-se pelas políticas do inventário se experiências que vivi recentemente. A primei-
faz necessário já que são muitos os modos ra é o projeto de constituição de um arquivo
de abordar as práticas artísticas que se quer de 65 filmes de entrevistas em torno da obra
inventariar não só do ponto de vista técni- de Lygia Clark e do contexto em que foi de-
co, mas também e sobretudo daquele de senvolvida, o qual realizei entre 2002 e 2006;
sua própria carga poética. Refiro-me à capa- a intenção consistiu em ativar a memória da
cidade do dispositivo proposto de criar as experiência sensível promovida pelas propo-
condições para que tais práticas possam ati- sições da artista em sua contundência poéti-
var experiências sensíveis no presente, ne- co-política e, mais amplamente, pelo meio em
cessariamente diferentes das que foram ori- que tem origem e condição de possibilidade
Ricardo Basbaum, Você ginalmente vividas, mas com igual teor de essa contundência. A segunda é minha inten-
gostaria de participar de densidade crítica. Problematizar esse aspec- sa participação, nos últimos 12 anos, no diá-
uma experiencia artística? to, no entanto, implica pelo menos dois ou- logo internacional que se vem travando em
tros blocos de perguntas. O primeiro refe- torno desse campo problemático.
projeto em curso,
iniciado em 1994, objeto
em aço esmaltado, 125 x re-se ao tipo de poéticas inventariadas: Que
80 x 15cm poéticas são essas? Teriam elas aspectos em Pois bem, há um objeto privilegiado por tal
comum? Estariam situadas em contextos his- ânsia de arquivo: trata-se da ampla varieda-
tóricos similares? Em que consiste inventariar de de práticas artísticas agrupadas sob a de-
Fonte das imagens: Guy Brett,

signação de ‘crítica institucional’, que se de-


Brasil Experimental, arte/vida:
proposições e paradoxos, org
poéticas e em que isso se diferenciaria de
inventariar apenas objetos e documentos? senvolve mundo afora ao longo dos anos
Kátia Maciel, Rio de Janeiro:
Contra Capa, 2005

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60 e 70, e que transforma irreversivelmente lho de elaboração de suas próprias experi-
o regime da arte e sua paisagem. Naquelas ências sobre suas singularidades, bem
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décadas, como sabemos, artistas em diferen- de suas políticas de elaboração e produção
tes países tomam como alvo de sua investi- de conhecimento.
gação o poder do assim chamado “sistema
da arte” na determinação de suas obras: dos É toda uma concepção de modernidade que
espaços físicos a elas destinados e da ordem começa a esfarelar-se: transmuta-se subter-
institucional que neles toma corpo às cate- raneamente a consistência de seu território,
gorias com base nas quais a história (oficial) modifica-se sua cartografia, ampliam-se seus
da arte as qualifica, passando pelos meios limites. Um processo de reativação das cul-
empregados e os gêneros reconhecidos, turas até então sufocadas vem-se operando
entre outros tantos elementos. Explicitar, na resistência à construção da globalização
problematizar e deslocar-se de tal determi- comandada pelo capitalismo financeiro. É
nação passam a orientar a prática artística, verdade que tal resistência é obra de dife-
como nervo central de sua poética e condi- rentes tipos de força que se manifestam em
ção de sua potência pensante – na qual resi- diferentes políticas de criação: desde os
de a vitalidade propriamente dita da obra. fundamentalismos que inventam identidade
Dessa vitalidade emana o poder que terá originária e nela se fixam (negando-se, por-
uma proposta artística de ativar a sensibili- tanto, à relação com o outro e ao processo
dade daqueles que a vivenciam para o con- de globalização) até toda espécie de inven-
centrado de forças que nela se presentifica ção do presente com base nas distintas me-
e, por extensão, para as forças que agitam o mórias culturais e seus atritos e tensões im-
mundo a sua volta. Se essa ativação se con- plicados na construção da sociedade
cretizará ou não é questão que extrapola o globalizada. Processo que vem ocorrendo
horizonte da arte, posto que isso depende não só nos três continentes colonizados pela
da trama complexa de que são feitos os mei- Europa ocidental (América, África e Ásia),
os por onde circulará tal proposta e o jogo mas também nas diferentes culturas
de forças que delineia seu atual diagrama. sufocadas no interior do próprio continente
europeu. Entre estas salientemos as culturas
Não são, porém, quaisquer práticas artísti- mediterrâneas que nos concernem mais di-
cas realizadas no contexto desse movimen- retamente, em especial as da Península Ibé-
to nos anos 60-70 que a compulsão de ar- rica onde se operou o aniquilamento da cul-
quivar abraça, mas principalmente aquelas tura árabe-judaica ao longo de três séculos
que se produziram fora do eixo Europa oci- de Inquisição.
dental-EUA. Tais práticas teriam sido
engolfadas pela história da arte canônica Vale a pena nos determos nesse exemplo
estabelecida nesse eixo, com base na qual para evocar três aspectos históricos envol-
se interpreta e categoriza a produção artísti- vidos nesse processo. O primeiro é a
ca produzida em outras partes do planeta – concomitância entre a escravidão de boa
isso, quando elas aparecem no cenário in- parte do continente africano pelos então
ternacional da arte, o que não é óbvio. No nascentes Espanha e Portugal, e a Inquisição
entanto, com o avanço do processo de em seu interior que perseguiu e expulsou
globalização, de algumas décadas para cá, árabes e judeus; ambos os fenômenos ocor-
vem-se rompendo a idealização da cultura reram entre os séculos 15 e 17, no contex-
hegemônica pelas demais culturas até então to da conquista e colonização dos demais
sob seu domínio; há uma quebra do feitiço continentes pela Europa ocidental. Apesar
que as mantinha cativas e obstruía o traba- de a prática da Inquisição ter início no sécu-

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lo 12 e, mais institucionalmente, no 13 (com Pois bem, o furor de arquivo aparece preci-
a bula Licet ad capiendos, promulgada pelo samente nesse contexto, marcado por guerra
papa Gregório IX em 1233), é no século 15 de forças pela definição da geopolítica da arte,
que ela se torna uma das mais tenebrosas a qual por sua vez se situa no contexto de
manifestações da crueldade humana, tal guerra mais ampla, em torno da definição
como ficou registrada no imaginário coleti- de uma cartografia cultural da sociedade
vo. É na Península Ibérica que isso acontece, globalizada. Há, porém, que precisar melhor
com a introdução de um Tribunal de Santo que práticas artísticas produzidas nos anos
Ofício pelos reis de Castela e Aragão, que 60-70 fora do eixo Europa ocidental-EUA
submeteram o poder da fé ao poder régio, impulsionam e alimentam esse furor. Sem
abolindo as regras que delimitavam o exer- dúvida, são especialmente cobiçadas as que
cício da violência. Se, até então, a tortura surgiram na América Latina e em outras re-
era prática esporádica e controlada, aplicá- giões que, como nosso continente, se en-
vel apenas a alguns casos e após julgamento, contravam então sob regimes ditatoriais (é
nesse contexto ela passa a ser corriqueira, o caso, por exemplo, da Europa do leste e
marcada por perversão sem limites. da própria Península Ibérica). Nessas situa-
ções, o movimento em questão ganha mati-
O segundo aspecto histórico é o fato de as zes singulares que se apresentam sob for-
culturas expulsas da África e da Península mas variadas. Um aspecto, no entanto, é re-
Ibérica estarem inscritas na memória de nos- corrente: agrega-se o político às dimensões
sos corpos latino-americanos, pois, assim do território institucional da arte, que pas-
como os africanos foram trazidos como es- sam a ser problematizadas.
cravos, pesquisas históricas recentes atestam
que grande parte dos árabes e judeus per- O foco da compulsão de arquivar colocado
seguidos refugiaram-se na América recém- nessas práticas situa-se num campo de for-
conquistada (são dessa origem, 80% dos ças em disputa pelo destino de sua retoma-
portugueses que colonizaram o Brasil, bem da no presente – variado espectro desde
como 80% dos espanhóis que colonizaram iniciativas que pretendem ativar sua potên-
o México, enquanto na Espanha apenas 40% cia poético-política até aquelas movidas pelo
da população tem essa ascendência). desejo de ver tal potência definitiva e
irreversivelmente desaparecida da memória
O terceiro e último aspecto deduz-se dos de nossos corpos. É nessas práticas que vou
anteriores: a modernidade ocidental funda-
concentrar a análise, movida pela urgência
se sobre o recalque das culturas que com-
de nos situarmos mais precisamente nesse
põem sua alteridade, até em seu próprio in-
terreno, de modo a afinar nossas interven-
terior, por meio de diferentes procedimen-
ções teórico-clínicas em sua paisagem.
tos. Em sua fase neoliberal, o procedimento
não mais consiste em impedir a ativação Despertando da anestesia
destas culturas; pelo contrário, trata-se de
incitá-las, mas para incorporá-las a seus de- Comecemos por assinalar que o caráter
sígnios, destituindo-as de suas potências sin- político de tais práticas não as constitui como
gulares e denegando os conflitos que essa uma espécie de militância a veicular conteú-
construção necessariamente implicaria. É essa dos ideológicos, como poderia parecer numa
modernidade que hoje se encontra na primeira aproximação. No entanto, tal in-
berlinda. Sua incidência na política de produ- terpretação ficou estabelecida pela história
ção de subjetividade e de criação/pensamen- canônica da arte, a partir de meados dos anos
to é o que nos interessa problematizar aqui. 70, com certos textos e exposições que se

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tornaram emblemáticos no mainstream em obras representadas ou ilustradas, funcionan-
que se definem os contornos desse territó- do como denúncia. O que faz a diferença
rio, com base nos quais tais práticas foram das propostas mais contundentes que se in-
designadas como ‘arte conceitual política’ ou ventam na América Latina no período é que
‘ideológica’. (Não por acaso, todos esses tex- o político se coloca nas entranhas da pró-
tos e exposições foram produzidos nos EUA pria poética. Encarnada na obra, a experiência
e na Europa ocidental, onde esta experiên- onipresente e difusa da opressão torna-se sen-
cia não havia sido vivida).1 Essa interpreta- sível num meio em que a brutalidade do ter-
ção não é nada neutra e veremos por quê. rorismo de Estado provoca como reação de-
fensiva a cegueira e a surdez voluntárias, por
O que faz os artistas nesse contexto agrega- questão de sobrevivência (por exemplo, Des-
rem o político a sua investigação poética é o vio para o vermelho, de Cildo Meireles). Esse
fato de os regimes ditatoriais então vigentes tipo de ação e seus possíveis efeitos são de
em seus países incidirem em seu corpo de ordem totalmente distinta das ações
modo especialmente agudo, já que atingem socioeducativas de ‘inclusão’ ou das ações pe-
seu próprio fazer, levando-os a viver o dagógicas e/ou doutrinárias de conscientização
autoritarismo na medula de sua atividade e transmissão de conteúdos ideológicos, pró-
criadora. Se o poder ditatorial se manifesta, prias da figura tradicional do militante.
mais obviamente, na censura aos produtos
do processo de criação, bem mais sutil e As intervenções artísticas que afirmam a força
nefasto é seu impalpável efeito de inibição política que lhes é inerente seriam aquelas
da própria emergência desse processo – que se fazem a partir do modo como as for-
ameaça que paira no ar pelo trauma ças do presente afetam o corpo do artista; é
inexorável da experiência do terror. Terror essa qualidade de relação com o presente
que faz associar o impulso da criação ao que tais ações podem eventualmente incitar
perigo de sofrer a violência do Estado, vari- em seus ‘perceptores’.2 Isso não quer dizer
ável da prisão à tortura, podendo chegar à que, nesse caso, a pesquisa formal se torne
morte. Tal associação inscreve-se na memó- secundária ou até dispensável. Pelo contrá-
ria imaterial do corpo: memória física e afetiva rio, aqui o rigor formal da obra em sua
de sensações de dor, medo e humilhação performatização é mais essencial e sutil do
(distinta, embora indissociável, da memória que nunca, posto que é indissociável de seu
da percepção das formas e dos fatos, com rigor enquanto atualização da sensação que
suas respectivas representações e as narra- provoca tensão. E quanto mais precisa sua
tivas que as enlaçam). Desentranhá-la é uma linguagem, mais pulsante sua qualidade in-
tarefa tão sutil e complexa quanto o pro- tensiva e maior seu poder de interferência
cesso que resultou em seu recalque (poden- no meio em que circula – poder de liberar
do, aliás, prolongar-se por 30 anos ou mais as imagens de seu uso perverso. Ativam-se
e só se plasmar de fato na segunda ou ter- outros modos de relação com as imagens,
ceira geração). outras formas de percepção e recepção, mas
também e sobretudo, de invenção e expres-
É evidente que na época a questão do polí- são. Elas podem implicar novas políticas da sub-
tico também se coloca de distintas maneiras jetividade e sua relação com o mundo, ou seja,
nas práticas artísticas que se fazem nos EUA novas configurações do inconsciente no cam-
e na Europa ocidental; porém, nesses con- po social, as quais redesenham sua cartografia.
textos, ela se refere a situações externas ao
terreno da arte (a Guerra do Vietnã, por Em outras palavras, o que define o teor po-
exemplo) que, muitas vezes, aparecem em lítico desse tipo de prática é aquilo que pode

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suscitar nas pessoas que são por ele afetadas lências do presente globalizado e o trabalho
em sua recepção: não se trata da consciência requerido para identificar e elaborar as ques-
da dominação e da exploração (sua face ex- tões que aí se colocam, tal como se mani-
tensiva, representacional, macropolítica), mas festam singularmente em cada contexto. Em
sim da experiência desse estado de coisas outras palavras, o equívoco da história
no próprio corpo (sua face intensiva, incons- institucional da arte é utilizado por tais críti-
ciente, micropolítica). Essa experiência pode cos e historiadores para alimentar uma es-
intervir no processo de subjetivação exata- pécie de surdez defensiva às discussões que
mente no ponto em que ele tende a tornar- se vêm travando em escala internacional,
se cativo e a despotencializar-se. especialmente à nova aliança que se estabe-
lece entre o poético e o político (em parti-
O que se ganha é mais precisão de foco, cular no terreno da arte). O efeito é a omis-
que em compensação se turva quando tudo são da responsabilidade de seu trabalho in-
que diz respeito à vida social volta a reduzir- telectual na construção do presente. Mais
se exclusivamente à leitura de sua dimensão preocupante é a inibição que o poder de tal
macropolítica e faz dos artistas que atuam posição provoca na produção artística e
nesse terreno designers gráficos e/ou publi- discursiva das novas gerações.
citários do ativismo. É verdade que esse tipo
de opção caracterizou certas práticas nas Nesse contexto, estão dadas as condições
mesmas décadas de 1960 e 1970 (e ainda para retomar o combate pela superação da
hoje), as quais poderiam efetivamente ser cisão entre micro e macropolítica que se
qualificadas como ‘políticas’ e/ou ‘ideológi- reproduz na cisão entre as figuras clássicas
cas’. Se esse tipo de ação é sem dúvida im- do artista e do militante, presente na base
portante, ele deve no entanto ser distingui- do conflito que caracterizou a conturbada
do das ações artísticas que trazem o político relação de amor e ódio entre movimentos
como aspecto de sua própria poética e que, artísticos e movimentos políticos ao longo
por isso, atingem potencialmente a dimen- do século 20, responsável em parte pelas
são sensível da subjetividade e não sua cons- frustrações de tentativas coletivas de eman-
ciência. Aqui situa-se o efeito mais grave do cipação (a começar pela Revolução Russa).
infeliz equívoco cometido pela ‘história da
O que, afinal, diferenciaria exatamente ações
arte’: ao generalizar a caracterização para o
micro e macropolíticas?
conjunto das ações artísticas propostas na-
quelas décadas na América Latina, perderam- Micro & macropolítica
se a essência da singularidade das ações aqui
focadas e o deslocamento que operara na Antes de responder a essa pergunta, cabe
relação entre o poético e o político. assinalar que macro e micropolítica compar-
tilham um ponto de partida: a urgência de
O lapso, entretanto, torna-se ainda mais enfrentar as tensões da vida humana nas si-
nefasto quando adotado como paradigma tuações em que sua dinâmica se encontra
pelos próprios historiadores e críticos lati- interrompida ou, no mínimo, esmaecida.
no-americanos, seguindo a tradição pura- Ambas têm como alvo a liberação do movi-
mente colonial. No Brasil, os que assumiram mento vital de suas obstruções, o que faz
essa posição tendem a rejeitar tudo o que delas atividades essenciais para a ‘saúde’ de
se produz na terceira geração de crítica uma sociedade. Refiro-me à afirmação da
institucional no terreno artístico, e a força inventiva de mudança, quando a vida
estigmatizá-lo como ‘não arte’. Isso sustenta assim o exige como condição para voltar a
e justifica sua tendência a denegar as turbu- fluir. Entretanto são distintas as ordens de

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tensões que cada um desses modos de apro- to de conceitos quanto de formas de exis-
ximação permite vislumbrar, assim como as tência (sejam elas individuais ou coletivas)
manobras desse enfrentamento e as facul- como atos de criação, tal como os que se
dades subjetivas que elas envolvem. efetuam na arte. Em qualquer uma dessas
A operação própria da ação macropolítica ações micropolíticas tendem a se produzir
consiste em inserir-se nas tensões que se mudanças irreversíveis na cartografia vigen-
te. É que a pulsação desses novos diagramas
produzem entre polos em conflito na distri-
sensíveis, ao tomar corpo em criações artís-
buição desigual dos lugares estabelecidos pela
ticas, teóricas e/ou existenciais, as tornam
cartografia dominante num dado contexto
portadoras de potencial poder de contágio
social (conflitos de classe, raça, etnia, crença,
de seu entorno. Como escreve Guattari em
gênero, etc.). São relações de dominação,
1982, em Micropolítica. Cartografias do De-
opressão e/ou exploração em que a vida
sejo, livro que fizemos em coautoria: “Quan-
daqueles que se encontram no polo domi-
do uma ideia é válida, quando uma obra de
nado tem sua potência diminuída, por se
arte corresponde a uma mutação verdadei-
converterem em objeto daqueles que se
ra, não é preciso artigos na imprensa ou na
encontram no polo dominante e que os
TV para explicá-la. Transmite-se diretamen-
instrumentalizam (por exemplo, a força de
trabalho de uns usada para acumulação de te, tão depressa quanto o vírus da gripe ja-
mais-valia de outros). A ação macropolítica ponesa” (que hoje seria o da gripe suína).
inscreve-se no coração desses conflitos, em Ou em outro momento do mesmo livro:
“Considero a poesia como um dos compo-
combate por redistribuição de lugares e seus
nentes mais importantes da existência hu-
agenciamentos, visando a uma configuração
mana, não tanto como valor, mas como ele-
social mais justa.
mento funcional. Deveríamos receitar poe-
Já a operação própria à ação micropolítica sia como se receitam vitaminas”.3 Se o livro
consiste em inserir-se na tensão da dinâmica fosse escrito hoje, talvez Guattari tivesse
paradoxal entre, de um lado, a cartografia nuançado o entusiasmo contido nesses co-
dominante com sua relativa estabilidade e, de mentários, lembrando que nada garante que
o vírus crítico de uma ideia vá de fato proli-
outro, a realidade sensível em constante mu-
ferar como epidemia, nem que as vitaminas
dança – produto da presença viva da
do poético consigam realmente curar a
alteridade como campo de forças que não
anestesia ambiente. O que pode a arte é
param de afetar nossos corpos. Neste pro- lançar o vírus do poético no ar. E o que pode
cesso, a cartografia em curso torna-se dema- a clínica é insistir na ideia de que a arte é a
siado estreita ou inadequada, o que cedo ou mais poderosa das vitaminas. E isso não é
tarde acaba provocando colapsos de sentido, pouca coisa.
manifestos em crises na subjetividade que nos
forçam a criar, de modo a dar expressividade Em suma: do lado da macropolítica, estamos
à realidade sensível que pede passagem, alar- diante das tensões dos conflitos no plano da
gando a percepção e redesenhando nossos cartografia do real visível e dizível (domínio das
contornos. A ação micropolítica inscreve-se estratificações que delimitam sujeitos, objetos,
no domínio performativo não só artístico (vi- bem como a relação entre eles e suas respec-
sual, musical, literário ou outro), mas também tivas representações); do lado da micropolítica,
teórico e/ou existencial. estamos diante das tensões entre este plano e
aquilo que já se anuncia no diagrama do real
É evidente que o que acabo de afirmar só sensível, invisível e indizível (domínio dos flu-
faz sentido se entendermos a produção tan- xos, intensidades e devires).

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O primeiro tipo de tensão é acessado so- do ‘conceitualismo’, é inaceitável rotulá-lo
bretudo pela percepção, e o segundo, pela como ‘ideológico’ ou ‘político’ para marcar
sensação. Explico-me brevemente: a percep- supostamente sua diferença. É que se de fato
ção aborda a alteridade do mundo como encontramos nessas propostas um germe de
mapa de formas que associamos a certas integração entre o político e o poético,
representações de nosso repertório e as vivenciado e atualizado em ações artísticas,
projetamos sobre aquilo que estamos apre- bem como na vida cotidiana, embora frágil e
endendo, de modo a lhe atribuir sentido. impossível de nomear, chamá-lo de ‘ideoló-
Enquanto a sensação aborda a alteridade do gico’ ou ‘político’ é um modo de denegar o
mundo como diagrama de forças que afe- estado de estranhamento que essa expe-
tam nosso corpo em sua capacidade de res- riência radicalmente nova produz em nossa
soar. Nesse processo, o outro se integra em subjetividade. A estratégia é simples: se o
nosso corpo como molécula de seu tecido que aí experimentamos não é reconhecível
sensível e se torna presença viva a nos pro- na arte, então, para nos proteger do incô-
duzir inquietação por colocar em crise esse modo ruído, o categorizamos na política, e
mesmo repertório. É precisamente essa ten- tudo permanece no mesmo lugar. O abis-
são o que nos força a pensar/inventar uma mo entre micro e macropolítica se mantém;
obra de arte, um conceito, um modo de aborta-se o processo de sua fusão e, por-
existência ou outra manifestação em que ela tanto, aquilo que está por vir (no melhor
se faça presente. Aqueles que encontram dos casos, o germe permanece incubado).
qualquer uma dessas criações ganham uma Ora, o estado de estranhamento constitui
oportunidade de encarar tal tensão e, tal- experiência crucial porque, como sugerido,
vez, de ir mais longe ainda, ativando sua pró- ele é o sintoma das forças da alteridade que
pria potência de invenção. reverberam em nosso corpo e exigem cria-
Criação cafetinada ção. Ignorá-lo implica o bloqueio da potên-
cia pensante que dá impulso à ação artística
A figura clássica do artista costuma estar mais e sua provável interferência no presente.
do lado da ação micropolítica, e a do militan-
te do lado da macropolítica. Se é verdade Tomemos o caso do Brasil. A crítica à insti-
que essa separação já começa a dissolver-se tuição artística no país manifesta-se desde o
com as vanguardas modernistas da América início dos anos 60 em práticas especialmen-
Latina, tal dissolução se intensifica e se ex- te vigorosas e se intensifica ao longo da dé-
pande nas práticas artísticas da região nos anos cada, já então no bojo de um amplo movi-
60-70. Esboça-se nesse contexto um com- mento contracultural. Ela persiste mesmo
posto dos dois tipos de ação sobre a realida- após 1964, quando se instala no país a dita-
de não só na arte, mas na política da existên- dura militar, e, ainda, por um breve período
cia. É esse aspecto crucial da produção artísti- após dezembro de 1968, quando a violên-
ca do período no continente que parece ter cia do regime recrudesce por conta da pro-
escapado à história da arte. mulgação do AI-5.4 É exatamente nesse
Já de saída, ‘esta’ história não foi feliz ao momento que o político se agrega à poética
qualificar tais propostas como ‘conceituais’: da crítica institucional em curso na arte. No
mesmo quando lhes outorgando autono- entanto, no início da década seguinte, o
mia relativa às ações assim categorizadas movimento começa a arrefecer por efeito
nos EUA, o termo encobre suas singulari- das feridas nas forças de criação provocadas
dade e heterogeneidade. Em todo caso, pela truculência do regime. Muitos artistas e
ainda que as mantenhamos sob o chapéu intelectuais são forçados ao exílio – seja por

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ter sido presos ou por correr o risco de sê- sua continuidade em função das forças que
lo, seja simplesmente porque a situação se pedem passagem em nosso presente. Essa é
tornara intolerável. Como todo trauma co- a política de desejo que, de diferentes ma-
letivo desse porte, conforme já mencio- neiras, move uma série de iniciativas geradas
nado, o debilitamento do poder crítico da pelo furor do inventário.
criação estende-se por mais uma década
No entanto, essa mesma situação mobiliza
depois da retomada da democracia nos anos uma política de desejo diametralmente opos-
80, quando se instala o neoliberalismo no ta: no momento em que tais iniciativas rea-
país. É verdade que uma agitação cultural tem parecem, o sistema global da arte as incor-
início no bojo do movimento pelo fim da pora imediatamente para transformá-las em
ditadura, no começo dos anos 80, e prosse- fetiches, congelando os germes de futuro que
gue ao longo da década, mas é ignorada pelos mal começavam a reaquecer. Se o movimen-
críticos e historiadores da arte.5 Só mais re- to de pensamento crítico que se deu intensa-
centemente a força crítico-criadora da arte mente nos anos 60 e 70 na América Latina
volta a ativar-se como movimento coletivo foi brutalmente interrompido naquele perío-
visível na vida pública, por iniciativa de uma do pelo regime ditatorial que preparou o país
geração que se afirma a partir da segunda para a instalação do neoliberalismo, no mo-
metade dos anos 90. Um duplo fator está mento mesmo em que sua memória come-
na origem de tal movimento: seu primeiro ça a reativar-se esse processo é novamente
aspecto é que estão dadas as condições para interrompido, agora com o requinte perver-
uma retomada coletiva da vida pensante que so e sedutor do mercado da arte, muito dis-
havia sido interrompida pelo trauma; o se- tinto dos procedimentos grosseiros e explí-
gundo é a plena instalação do capitalismo citos das ditaduras militares. Os arquivos de
financeiro em escala internacional, que mo- tais práticas convertem-se então numa es-
biliza esse tipo de interrogação na nova sa- pécie de botim de guerra disputado pelos
fra de artistas, que volta a problematizar a grandes museus e colecionadores da Euro-
pa ocidental e dos EUA, antes mesmo que
relação entre o poético e o político.
o que estava incubado nas propostas artísti-
A situação favorece a retomada de um mo- cas inventariadas tenha voltado a respirar.
vimento tendente a superar a dissociação Um novo capítulo da história não tão pós-
colonial quanto gostaríamos...
entre micro e macropolítica, agora com ou-
tras estratégias, já que é outro o regime de Revolver, ativar, revulsionar
opressão e de produção de subjetividade,
se comparado ao que opera em ditaduras Ora, se o fato de vislumbrar o surgimento de
militares. É precisamente nesta situação que uma nova figura da fusão entre o poético e o
surge o desejo de inventário. É que a expe- político no século 21 não é apenas um sonho
riência da fusão poético-política vivida nes- datado historicamente que insistimos em so-
nhar, deveríamos nos perguntar: que novos
sas práticas ficou sob esquecimento; só as
problemas estariam convocando a retomada
conhecemos em sua exterioridade e, assim dessa articulação? Que estratégias têm sido
mesmo, de maneira lacunar. Sua potência inventadas para seu enfrentamento? Que
disruptiva e o que ela abriu e poderia conti- novos personagens tomam corpo nesse com-
nuar abrindo em seu entorno ficaram soter- bate? Que alterações provocam no relevo do
rados por efeito do trauma das ditaduras. território da arte?
Neste estado de coisas impõe-se a urgência
de ativar essa potência, libertando-a de sua Os inventários que pretendem ativar tais po-
interrupção defensiva, de maneira a viabilizar éticas deveriam pensar-se de modo a criar

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condições para uma experiência de sua Estudios Independientes (PEI) do Museu d’Art
contundência crítica no enfrentamento das Contemporani de Barcelona (MacBa). Seu trabalho tem

questões do presente, de modo a adensar


ampla circulação internacional, em publicações, conferên-
cias, cursos e workshops. Autora de Cartografia Senti-
as forças de criação que nele se afirmam. mental. Transformações contemporâneas do desejo (Es-
Esse esforço, porém, nada tem a ver com o tação Liberdade, 1989); 2 e 3 ed. revistas (Sulinas, 2006,
desejo de conquista de lugares mais glorio- 2007) e, em colaboração com Félix Guattari, de

sos e/ou glamorosos do que o papel de fi-


Micropolítica. Cartografias do desejo (Vozes, 1986; 8 ed
2007), publicado em cinco países.
gurantes ou mesmo de ‘sem papel’ que nos
coube até aqui na história canônica da arte, Notas
escrita pela Europa ocidental e pelos Esta-
dos Unidos. E se, diferentemente dessa von- 1 Para nos limitarmos aos principais autores a partir dos quais
tade egoica de devir celebridade, a meta
estabeleceu-se esse tipo de interpretação podemos
mencionar o espanhol Simón Marchan Fiz (Del arte
consiste em traçarmos outra(s) história(s) da objectual al arte del concepto, Madrid, Comunicación
arte, tampouco interessa fazê-lo se for para 1974), o inglês Peter Osborne, o norte-americano
mantermos a mesma lógica, apenas inver- Alexander Alberro; entre as exposições, Global
tendo-lhe os sinais (a ‘nossa’ história agora
Conceptualism (Queens Museum, 1999).

apresentada como paradigma universal); e 2 ‘Perceptores’ é uma sugestão do artista paulista Rubens Mano,
menos ainda para ficarmos gozando volup- para designar o tipo de relação que se estabelece em

tuosamente no papel de vítima, coçando a


propostas artísticas cuja realização depende de seu efeito
na subjetividade de quem delas participa. Noções como a
casquinha da ferida. Em compensação, se de receptor, espectador, participador, participante, usuá-
esse esforço de fato vale a pena, é porque rio, etc. são inadequadas para esse tipo de proposta.
pode contribuir para ‘curar’ a interrupção da 3 Guattari Félix; Rolnik, Suely. Micropolítica. Cartografias do
vida pensante em nossos países, causada pela desejo. São Paulo: Vozes (1986), 8 ed. revista e amplia-
superposição dos traumas das ditaduras e da, 2007:132 e 269. Versões em espanhol: Micropolítica.
do estatuto do pensamento/criação sob o
Cartografías del deseo. Madrid: Traficantes de Sueños,
2006:132-133 y 263. Micropolítica. Cartografías del
neoliberalismo que as sucedeu. Não por aca- deseo. Buenos Aires: Tinta Limón (colectivo Situaciones),
so tal regime foi designado por vários teóri- 2006:162 y 328. Versão em francês. Micropolitiques.
cos como ‘capitalismo cultural’ ou ‘cognitivo. Paris: Le Seuil (Les empêcheurs de penser en rond), 2007.
É que neste contexto, como sabemos, o
Versão em inglês: Molecular Revolution in Brazil. Nova
York: Semiotext/MIT, 2007.
conhecimento e a criação convertem-se em
objetos privilegiados de instrumentalização
4 O Ato Institucional n. 5, promulgado pela ditadura em 13
de dezembro de 1968, permite ao governo militar dis-
a serviço da produção de capital. A reativação solver o Congresso e lhe dá plenos poderes, o que tor-
de tais práticas não escapa a esse destino; na qualquer ação ou atitude que o regime considere
espero que o furor de arquivo contribua para subversiva passível de prisão, sem direito a habeas corpus.
que o enfrentemos – ao menos o suficiente 5 Essa observação foi feita por Ricardo Basbaum, por ocasião
para desobstruir o acesso a esses germes de uma discussão sobre este texto no grupo de estudos
incubados de futuros soterrados,6 tão dese- de que ele participa no Rio de Janeiro, em 09.05.2009.

jados no presente. 6 A ideia de que “a tarefa que nos cabe no presente é revolver,
no passado, os futuros soterrados”, me foi sugerida pela
doutoranda Elisabeth Pacheco, num seminário sobre o
Suely Rolnik é psicanalista, pesquisadora e curadora inde- presente ensaio (no Programa de Estudos Pós-Gradua-
pendente. Professora titular da PUC-SP (Pós-Graduação dos de Psicologia Clínica da PUC-SP), com base em sua
em Psicologia Clínica: Núcleo de Estudos Transdisciplinares leitura de Walter Benjamin (Obras Escolhidas, v.I, Magia e
da Subjetividade) e docente convidada do Master Oficial Técnica, Arte e Política. Ensaios sobre literatura e história
en Historia del Arte Contemporáneo y Cultura Visual, da cultura. São Paulo: Brasiliense,10 ed., 1996).
Universidad Autónoma de Madrid y Museo Nacional Cen-
tro de Arte Reina Sofía (MNCARS) e do Programa de

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