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06/06/2021 Brasil vira uma alegoria do suicídio geral em romances apocalípticos da pandemia - 21/05/2021 - Ilustrada - Folha

LIVROS
(HTTPS://WWW1.FOLHA.UOL.COM.BR/ILUSTRADA/LIVROS)

Brasil vira uma alegoria do suicídio geral em


romances apocalípticos da pandemia
Bernardo Carvalho e Joca Reiners Terron estão entre autores que não veem futuro
adiante

21.mai.2021 às 16h35
Atualizado: 22.mai.2021 às 15h15


EDIÇÃO IMPRESSA
(https://www1.folha.uol.com.br/fsp/fac-simile/2021/05/22/)

Walter Porto (https://www1.folha.uol.com.br/autores/walter-porto.shtml)

SÃO PAULO“O Brasil da pandemia tem um sentido quase vanguardista de


representação do horror”, afirma o escritor Bernardo Carvalho
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/2021/04/literatura-nao-e-manual-nem-modelo-de-

comportamento.shtml),
num tom de voz que nunca deixa de ser calmo e exasperado
ao mesmo tempo. “É quase como se o país fosse um emblema radical, uma
espécie de alegoria do suicídio geral.”

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06/06/2021 Brasil vira uma alegoria do suicídio geral em romances apocalípticos da pandemia - 21/05/2021 - Ilustrada - Folha

“A despeito desse sinal vermelho, a gente está acelerando em direção ao


muro”, afirma o autor sobre a nossa resposta, ou ausência dela, à calamidade
sanitária. “É como se dissessem, ‘tudo bem, a gente entendeu, mas foda-se,
não tem como frear’.”

Essa angústia com a incapacidade brasileira de dar um cavalo de pau para


escapar da tragédia tem proliferado na literatura. A gestão cega da pandemia
(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/05/emails-da-pfizer-comprovam-omissao-da-gestao-bolsonaro-na-busca-por-

vacinas-dizem-senadores-da-cpi.shtml), o empilhamento de centenas de milhares de mortos


e a constante crise
(https://arte.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/aceleracao-covid-no-brasil/)

institucional em Brasília têm gerado uma arte impregnada de ares


apocalípticos.

“O Último Gozo do Mundo”, a novela que Carvalho está publicando


(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/walter-porto/2021/04/biografia-caudalosa-de-philip-roth-vai-sair-no-brasil-pela-

companhia-das-letras.shtml), acompanha uma mulher que vê sua vida ruir e,


desconcertada, parte numa viagem em busca de um misterioso vidente —
uma figura que tem como maior credencial para supostas previsões do
futuro o fato de ter perdido completamente as lembranças do passado.

Dessa forma, a obra critica a ode ao messianismo numa terra que não vê
valor na memória, e isso num tempo pandêmico em que o presente se
esparrama numa série de dias infindáveis.

Ainda que tudo fique no terreno do alegórico e da parábola, citando poucos


nomes e fatos concretos do Brasil bolsonarista, é incontornável perceber que
“O Último Gozo do Mundo” foi escrito durante

a experiência de quarentena do autor em São Paulo.

“Depois de meses esmagados no presente, tinham desaprendido a fazer


projetos, desconfiavam das expectativas. O futuro era uma abstração
obscena”, crava a obra que Carvalho, colunista deste jornal
(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bernardo-carvalho/), define como “um arremedo de fábula

sem moral”.

A impossibilidade atroz de enxergar qualquer perspectiva de futuro também


guia a narrativa de “O Riso dos Ratos

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(https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/03/todavia-lanca-livro-de-joca-reiners-terron-em-

maio.shtml)”, o mais recente romance de Joca Reiners Terron


(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2020/04/coronavirus-vai-tornar-ainda-mais-dificil-ser-escritor-no-brasil.shtml).

O autor não é nada estranho ao tom apocalíptico, e sua literatura sempre


usou o bizarro e o fantástico como ingredientes importantes. Mas, agora,
algo está diferente.

“Meus livros eram muito calcados no aspecto imaginativo das histórias. No


entanto, ultimamente a realidade parece ter adquirido uma capacidade
própria de imaginar”, diz Terron. A ficção do autor, assim, ganha um tom
mais grotesco do que nunca, apenas se deixando entremear pela vida real
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/11/em-a-morte-e-o-meteoro-amazonia-e-destruida-e-homem-branco-e-

grande-mal.shtml).

O protagonista sem nome de “O Riso dos Ratos” é um sujeito que “assim


como nós, está preso a um presente permanente, à medida que a
possibilidade de futuro se achatou”. “Não consigo escrever agora um livro
que explore a ideia de futuro”, lamenta o autor.

A trama do personagem principal é disparada quando ele se vê desolado pelo


diagnóstico de uma doença terminal e por uma violência brutal sofrida pela
filha —e então se atira numa espiral obsessiva que o impede de ver com
clareza que o mundo ao seu redor está desmoronando.

“Apurando a audição, ele se esforçou para captar algum ruído corriqueiro da


cidade que ainda existia ao redor”, escreve o romance em determinado
trecho, que ecoa os primeiros traumas com a imposição da quarentena.
“Qualquer sinal que comprovasse a cadeia das mãos humanas por trás deles,
pondo a cidade em movimento, acendendo postes, mas não escutou nada.”

O que acontece em seguida, no estilo surrealista de Terron, é que a trajetória


do personagem espelha uma história do Brasil escravista ao contrário. Ele
passa a habitar um mercado —ironicamente, uma filial do Futurama—, então
um quilombo, uma plantação e o porão de um navio.

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Não é muito difícil enxergar ali a metáfora de um país que anda para trás, e
um governo que, nas palavras de Terron, promove retrocessos sociais.
“Estamos perdendo conquistas simbólicas da sociedade. As pessoas têm
manifestado essa preocupação, e os jornais abordam concretamente o que
está se perdendo com o aparelhamento e o desbaratamento das instituições
promovido pelo governo.”

No romance de Bernardo Carvalho, que intercala outras histórias à da


protagonista de forma fragmentária, a situação também desemboca num
surto de confortável negacionismo. “Na falta de imunidade ao vírus, mais de
um terço da população tornou‑se imune à realidade”, como diz um trecho.

“É estranho", afirma seu autor. "É um governo que obviamente vai destruir a
Amazônia, poucas pessoas vão ganhar com isso —e no fim vão acabar
perdendo de qualquer jeito—, mas é uma sociedade que não se rebela contra
isso. Está sendo espoliada, sem nenhum artifício para disfarçar, e ainda
assim não se mobiliza.”

O flerte com a ideia de fim de mundo também se apresenta no “Projeto


Decamerão (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/05/decamerao-da-covid-usa-moldura-da-idade-media-
para-falar-de-hoje.shtml)”, uma publicação idealizada pelo jornal The New York Times

que convidou escritores de todo o mundo para criar contos sobre a


pandemia, inspirados no clássico da Idade Média, também escrito sob o
impacto de uma peste.

A americana Rivers Solomon cria personagens de uma família negra que


lidam com o coronavírus como o anúncio do armagedom, mas a visão mais
desesperadora na coletânea é a do —adivinhe— brasileiro Julián Fuks
(https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/12/livro-a-ocupacao-e-desconfortavel-e-instigante-ao-mesmo-tempo.shtml).

Em “No Tempo da Morte, a Morte do Tempo”, um conto ensaístico, o autor


costura o torpor da passagem das horas e da contagem das vítimas na
pandemia com a confiança de que o tempo, enfim, acabará com “os homens
sombrios que nos governam”, num desfecho que resvala na superação do
pessimismo.

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A postura pessimista pode parecer um sintoma de pura desmotivação. Mas


talvez essa seja uma visão errada, segundo Bernardo Carvalho, que carrega o
pessimismo como uma insígnia.

“O otimismo me parece sempre meio burro e paralisante. Algo no


pessimismo é criativo. A narração toma uma distância reflexiva do mundo, é
um permanente descontentamento com o presente. O otimismo me parece
uma satisfação com o que você tem.”

O escritor lembra o afã do movimento “Somos 70%”


(https://www1.folha.uol.com.br/poder/2020/06/somos-70-e-conta-que-nao-fecha-dizem-apoiadores-de-bolsonaro-ao-

preverem-base-solida-para-2022.shtml) ,
que há alguns meses procurava congregar
opositores do presidente Jair Bolsonaro com o que soava a ele como
otimismo excessivo de mobilização. Seu livro recente, aliás, tem todo um
desvio narrativo que compara o pensamento positivo a uma forma de
estupidez.

“Quem está indo em direção ao muro são as pessoas que dizem que está tudo
bem. Essa posição é a da cegueira, do negacionismo", diz ele. "Embutido no
pessimismo, como eu o entendo, está uma força incrível de crítica e de
superação.”

O ÚLTIMO GOZO DO MUNDO

Preço R$ 49,90 (144 págs.); R$ 29,90 (ebook)


Autor Bernardo Carvalho
Editora Companhia das Letras
Lançamento Evento em 7/6 com o autor e Alejandro Chacoff nas redes da editora e da
livraria Megafauna

O RISO DOS RATOS

Preço R$ 62,90 (208 págs.); R$ 39,90 (ebook)


Autor Joca Reiners Terron

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Editora Todavia
Lançamento Evento em 8/6, às 18h30, com o autor e Juliana Borges no YouTube da Todavia

O PROJETO DECAMERÃO

Preço R$ 79,90 (336 págs.); R$ 39,90 (ebook)


Autor Vários
Editora Rocco

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