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Concurso Nacional de Leitura

2.º Ciclo - 21|22

A partir do Conto Tradicional Português

O Doutor Grilo
Carlos Nuno Granja

Era um carvoeiro como tantos outros, mas diferente pela forma como pensava,
tinha pouco dinheiro e não desperdiçava. Comia couves de Bruxelas, rapava as
panelas, num tempo em que não abundava a comida, nem o que vestir. E falava, falava
tanto que poucos tinham paciência para o escutar. Contava histórias daqui e dali, do
tempo passado, do Japão ao Haiti. Sabia da vida de toda a gente, por isso se dizia que o
carvoeiro não vendia carvão, mas sim aguardente. Água que ardia na boca, arranhava
a garganta e deitava qualquer um na manta. O carvoeiro trazia a água que ardia num
saco escondido e de hora a hora bebia. Ao mesmo tempo que a boca abria, dizia
mentiras e o povo comentava que o carvoeiro dali só mentia, mentia, coisas que já
foram verdades. Cansado de estar no mesmo lugar, pôs-se na estrada e partiu sem
demoras para os lados de Coimbra, terra de estudos e de exercitar as memórias. Foi
lento pelo caminho, pois os mais velhos encontrava, acenava e repetia, que chegava
de Leiria, do campo quase deserto do pinhal que é bem perto. Sentava-se na berma da
estrada e demorava, a todos cansava pelas histórias repetidas, que qualquer um
adormecia. Foi-se aproximando da cidade dos estudantes, escaldava o chão, arrastava
as sandálias e levava o burro carregado de carvão.

Ao atravessar pela primeira vez a velhinha ponte de Coimbra, reparou num grande
aglomerado de estudantes em piquenique de bolos, amêndoas e rebuçados. Achou
logo o carvoeiro que estavam bem animados. Aquele adocicado repasto compensaria
o tempo gasto. E bebendo um trago de aguardente, pensou para si que se tornaria
estudante.

-Se para comer coisas tão boas é preciso ser estudante, também quero ser
estudante.

Não era tarde, nem cedo. Assim como que afastando o medo, inventou uma
maneira de ser um estudante sem que lhe desse para a asneira. Foi à cidade vender o
burro e o carvão, fez das sacas verdadeiras vestimentas, bebeu mais uns golos quentes
de aguardente e dirigiu-se apressadamente para a ponte. Comeu côdeas de pão de
milho, ora pois não tinha dinheiro para bolos, mas talvez enganasse tolos, espalhando
os bocados, estando ele a comer pão, talvez pensassem que comia rebuçados. Os
estudantes, muito surpreendidos, estranhando o novo colega, puseram-se com
mal-entendidos.

-Ó caloiro, o que andas a estudar?

O carvoeiro já habituado a dizer coisas que não são, respondeu de imediato que
estudava para adivinhão. Ficaram os estudantes admirados, de queixos quase caídos
no chão, mas que curso era aquele que desconheciam até então. Após meia dúzia de
dias um acontecimento atormentou a nação, havia sido roubado um tesouro e
ninguém sabia do ladrão. Para resolver a chatice o rei de Portugal dava prémio a quem
o descobrisse. Foram os estudantes ao palácio dizer ao rei, causando tamanha ilusão,
que havia um estudante a estudar para adivinhão. Sem mais tempo a perder foi o
carvoeiro chamado ao palácio para dar conta de um paradeiro. Onde andaria o ladrão
que se atreveu a tal crispação? Querendo o rei saber em que medida estava o
carvoeiro adivinhão adiantado na ciência, fez-lhe uma pergunta para ele responder
com paciência. Pois naquele tempo era usual os filhos terem nomes estranhos ao
quilo, chamava-se então o carvoeiro Fulano de Tal e Grilo. O rei aproximou-se dele
com a mão direita fechada e lançou um desafio:

-Diz-me o que tenho nesta mão e não criarás confusão.

O carvoeiro ficou logo aflito, perguntou se podia ir ao banheiro, que andava mal dos
intestinos, pois tinha comido pepinos e não dormira de madrugada. Com este
nervosismo o rei já contava. Pôs-se logo a engendrar castigo para este que o
aldrabava. Eis que o carvoeiro aflito soltando quase um grito lamenta o sucedido:

-Ai! Grilo, Grilo, em que mão estás metido!

O rei ignorava que o carvoeiro tivesse tal nome, abriu a mão acreditando que ele
fosse mesmo adivinhão. Tinha mesmo um grilo na mão direita. Mas com tal satisfação
decidiu fazer mais perguntas para que ele adivinhasse outro tanto. Mandou trazer uma
porca, uma que fosse minorca, dentro de caixa de madeira. Lembrando ao carvoeiro
tal frasco a sua garrafa e deu-lhe logo a sede do tamanho de uma girafa. Perguntou ao
rei repentinamente se podia beber da sua aguardente. O monarca não querendo saber
fez-lhe a pergunta a correr:

- O que está dentro desta caixa?

Temendo não ter resposta, fez um último pedido, se podia beber da sua aguardente
um travo, que ainda assim bem não lhe haveria de saber. Foi dizendo de mansinho,
preparando o caminho para o triste fado:

-Agora é que a porca torce o rabo!

O rei não se conteve, bateu palmas de confirmação, estava certo que o carvoeiro
era mesmo um adivinhão.

-É mesmo sangue de porca que tem no frasco. Anda daí adivinhão, tenho uma
aguardente especial reservado em bom garrafão. Serve-te com moderação. A seguir
tens três dias para descobrires quem roubou o meu tesouro.
O carvoeiro desiludido lamentou que os estudos o tivessem ali metido. Estando tão
desesperado não teve outro remédio que não tratar do recado. Espalhou-se assim pela
corte que andava pelo palácio um adivinhão que ia descobrir o ladrão. E dois criados
do rei, temendo serem descobertos, foram falar com o carvoeiro prometendo-lhe do
tesouro os restos.

-Se não disserdes ao rei e tiverdes ouvidos de frei serás carregado de ouro. Por nós
foi roubado o tesouro.

Nada mais havia para conversar, ele fez ouvidos de mercador e foi logo falar com o
rei.

- Saiba Vossa Majestade, sou conhecedor da verdade, foram dois dos seus criados
os ladrões endiabrados.

Mandou o rei prender os criados e teve o seu tesouro de volta. Aos criados
prevaricadores que tão cedo não andassem à solta prometeu-lhes rédea curta. Ao
pobre carvoeiro pretendia premiá-lo com justiça e que se deixasse estar descansado
mais uns dias pelo palácio, já que ele terminou com a cobiça. Num desses dias,
passeava ele nos jardins, quando vêm correndo médicos e curandeiros, que fosse
depressa, a desafortunada princesa, uma das mais belas, engoliu um osso de galinha,
mas atravessou-se-lhe nas goelas. Nem médicos ou curandeiros puderam fazer nada
do que estava nos letreiros. No meio de tanto alvoroço, o Grilo mandou deitar a
princesa de bruços e atirou-lhe bolinhas de manteiga. Assim de uma forma meiga,
rindo-se a princesa a valer, saltou-lhe o osso pela boca, acertando nas calças rotas do
apaixonado escudeiro. O rei nem teve como agradecer ao carvoeiro, estudante de alta
ciência, que com tanta paciência conseguiu ser adivinhão. Entregou-lhe convencido
uma grande quantia de dinheiro. Mas como se isso não lhe bastasse, atribuiu-lhe o
cargo de médico do hospital e da casa real.

Ora, o pobre do carvoeiro, sem saber quando nem como conseguiu ali chegar, só se
lembrava da sua gente e que deixara na sua casa uma boa e velha aguardente. Para
complicar a situação andava uma grande epidemia no reino que o chamaram para
salvar a população. Foi de porta em porta, de loja em loja, examinando os que estavam
de saúde. Saiu-lhe uma tontice que foi logo ampliada. Quem estivesse mais doente
seriam operados na manhã seguinte. Tal não foi o desvario que de manhã bem cedo,
saíram do hospital, uns apoiados em paus, outros em muletas, não parecendo
doentes, mais pareciam atletas. Espalhou-se de imediato a notícia que o novo médico
tinha perícia, apenas com a sua visita dava uma saúde perfeita.

O Fulano de Tal e Grilo convenceu-se da sua capacidade e foi estudar Medicina para
a Universidade. E como se dizia antigamente, tomou capelo, tirou o curso, mas não de
repente, estudou bastante e passou a ser chamado de Doutor Grilo. Mas ouvem-se
contos e ditos, julga-se que não perdeu a mania de contar histórias das que não
existiram e das que foram realizadas.

Concurso Nacional de Leitura – Fase escolar janeiro de 2022

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