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Se alguém quer vir após mim, negue-se a se mesmo, e tome a cada dia a sua cruz, e siga-me.
Jesus Cristo, Lucas 9.23
Mas a alma que crê deseja e desfalece por Deus; ela descansa agradavelmente ao contemplá-
lo. Ela se gloria na vergonha da cruz até que lhe seja mostrada a glória da face divina.
Bernard de Claraval (1090-1153), Sobre o Deus de Amor
Muitas vezes fico conjeturando como foi quando Abraão recebeu a ordem divina de sacrificar o
seu filho Isaque. Abraão é o personagem principal na narrativa em Gênesis 22, e Isaque tem apenas
algumas falas curtas. Mas o que se passava na mente do rapaz? Só me resta imaginar o meu próprio
filho, que é mais ou menos da mesma idade que se supõe que Isaque tivesse naquele momento,
andando comigo para um lugar onde planejamos matar um animal. Só ao chegar lá eu lhe digo que
ele será morto no lugar do animal. Visualizo a confiança se escoando dos seus olhos. O seu pai,
sobre quem ele sabe que o ama ternamente e em quem depositou sua fé pueril, está pronto para
matá-lo. Imagino o olhar de terror nos olhos do meu filho quando ponho as mãos nele para fazer a
ação terrível.
Em geral, consideramos a angústia da perspectiva do devastado pai Abraão, mas quase não
dizemos nada acerca do igualmente devastado filho Isaque. Ele tentou fugir? Ofereceu resistência
enquanto o pai o amarrava com cordas ou o punha sobre o altar? Quando viu a faca ser tirada do
cinto, ele gritou e chorou? À medida que o pai lentamente orientava a arma em direção à garganta
do filho, Isaque procurou se contorcer?
Em meu gabinete, há a reprodução de uma obra de arte que prezo muitíssimo. Trata-se de
um quadro pintado por Rembrandt, grande artista holandês, intitulado Sacrifício de Isaque.
Rembrandt não usava cores vívidas, e a pintura é bastante parda e castanha. Mesmo assim a imagem
é forte. Isaque está deitado com as mãos amarradas às costas, apoiada em um feixe de lenha, tendo o
rosto completamente coberto pela mão esquerda de Abraão. A cena é terrível, pois a mão de Abraão
está empurrando a cabeça de Isaque para trás a fim de expor a garganta tenra do rapaz. Um pouco
acima de Abraão está o anjo, agarrando a mão direita do patriarca, à altura do pulso, enquanto a faca
está caindo ao chão. Não consigo discernir se o olhar de Abraão é mais de choque do que de alívio,
mas é bem possível ele ter sentido essas duas emoções no mesmo instante.
Quando olho o quadro, há um item em que mais pondero. É um ponto que sempre captura
o meu olhar primeiro e para o qual os meus olhos naturalmente vão. Trata-se da mão aberta de
Abraão em cima do rosto inteiro de Isaque. Teria ele colocado a mão ali para que o rapaz não visse a
faca? Ou será que ele pôs a mão para que ele mesmo não visse o olhar de terror nos olhos do filho?
Perguntas continuam me inundando a mente enquanto contemplo a obra-prima de
Rembrandt. Abraão estava cumprindo a ordem divina com uma atitude fria e distante, como um
homem de fé resoluta que em seu coração não tinha a menor dúvida sobre a ação terrível que ele
estava a ponto de fazer? Quando Jesus encarou o seu grande ato de fé no jardim do Getsêmani,
sentia dor e angústia. E Abraão sentia o mesmo quando estava prestes a sacrificar o seu único filho, o
filho da promessa?
Infelizmente, a narrativa mosaica não registra as emoções. Mas quando me ponho no lugar
de Abraão e nessa situação terrível, lágrimas me brotam dos olhos. Não dá pra imaginar a provação
severa que me teria sido, caso tivesse recebido a ordem divina de sacrificar o meu filho naquele altar
medonho.
E quanto a Isaque? Quantas vezes me ponho no seu lugar quando reflito na história?
Pouquíssimas vezes. Mas é exatamente isso que Deus está me mandando fazer. Ele quer que eu
posicione voluntariamente o meu corpo sobre o altar do sacrifício. Não há uma segunda pessoa
forçando-me a colocar-me sobre a lenha; a ordem divina é que eu me coloque ali voluntariamente.
Quando percebo que sou a pessoa a ser sacrificada, começo a me espernear, gritar e lutar
para ficar livre. Mas é precisamente no ato de sacrifício que sou mais livre. Jesus ensina que se eu
cobiçosamente me agarrar à vida, irei perdê-la.
Suponho que ninguém ficou mais feliz em ver o carneiro preso pelos chifres entre os
arbustos do que Isaque. Com certeza, pelo resto da vida, ele jamais esqueceu esse dia, e tenho por
certo que o seu pai não foi relapso em fazê-lo lembrar da grande provisão feita pelo Senhor.
Vários capítulos deste livro estão relacionados. A ideia de tomar a cruz engloba a
automutilação (capítulo 2), a dedicação espiritual absoluta, mesmo quando dói (capítulo 3), e o
auto-ódio (capítulo 8). Para não ser redundante, separei certos aspectos de tomar a cruz e os tratei
separadamente em cada um destes capítulos. De fato, este e o próximo capítulo terão muito a dizer
acerca do sofrimento, tópico relacionado à autocrucificação. Portanto, nem tudo associado a tomar
a cruz será analisado neste capítulo.
O meu propósito é lidar com o tema em três etapas simples. Primeiro, investigaremos o que
significava levara a cruz nos dias de Jesus. Em seguida, avaliaremos a nossa chamada para levar a
cruz. E por último, examinaremos por que temos de levar a cruz.
Negar-se a si mesmo não é questão de deixar algo, quer na quaresma quer por toda a
vida. Trata-se de dizer um terminante e resoluto “Não” a si mesmo, para as
esperanças, planos e ambições, para os gostos e desgostos, para os que nos são mais
próximos e mais queridos, por amor a Cristo.
F. F. Bruce (1910-1990),
Hard Sayings of Jesus (Declarações Difíceis de Jesus)
O Sacrifício do Eu
Consideremos o sacrifício animal. A vítima é erguida e colocada no altar, onde é amarrada e
o seu sangue derramado. Claro que não somos de uma sociedade em que o sacrifício de animais é
comum, mas nos tempos bíblicos a cena de sacrifício era bem conhecida.
Paulo ordena os crentes a apresentar o corpo em sacrifício vivo (Rm 12.1). Infelizmente,
como no exemplo da cruz, hoje nos escapa grande parte da imagem dessa poderosa figura de
linguagem. Mas tendemos imaginar como seria um sacrifício vivo. A vítima se contorce, se debate e
se prende com as garras. Ela não quer ser jogada sobre o altar, onde a garganta lhe será cortada.
Levar a cruz espontaneamente é como subir voluntariamente no altar para ser morto.
Como ocorre repetidas vezes no cristianismo, há certas frases e expressões repetidas tantas
vezes que perdemos de vista o seu significado original. Nesse caso, “tomar a cruz” entra nessa
categoria, e conjeturamos o que significa. A ideia de levar a cruz foi banalizada. Virou um desses
slogans evangélicos que diz: “Fui salvo dos meus pecados”, ou: “Já pediu para Jesus entrar no seu
coração?” Nenhuma dessas é de todo ruim, mas na tentativa de condensar a imagem do evangelho
em uma frase fácil de lembrar, tais declarações ficaram um tanto quanto inexatas e imprecisas. 1
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Para evitar confusão, deixe-me explicar. Não é que eu seja salvo dos meus pecados tanto quanto sou salvo do
efeito dos meus pecados. Para ser mais preciso, é da ira de Deus que sou salvo. Do mesmo modo, eu não peço para
Jesus entrar em meu coração, por mais útil que seja essa imagem, sobretudo para crianças. De fato, não há em
parte alguma da Bíblia menção para pedirmos que Jesus entre em nosso coração. Essas frases, ainda que úteis na
sua simplicidade, podem gerar confusão, porque são inadequadas e imprecisas.
O mesmo se aplica quando se trata de carregar a cruz. Sempre estamos ouvindo as pessoas
referirem-se a uma dificuldade como “a cruz que tenho de carregar”. Talvez a dificuldade seja
aguentar um colega de trabalho complicado ou impertinente, ou o automóvel que não sai do
conserto, mas não era bem isso que Jesus queria dizer. Nós diluímos o impacto desse mandamento
tornando-o um slogan do evangelicalismo. 2
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F. F. Bruce sustenta a mesma ideia, mas com palavras mais eloquentes. “Em geral, as pessoas usam a expressão
para referir-se a alguma deficiência física, experiência indesejável, companhia ou parente incompatível com quem
se tenha alguma relação: ‘Esta é a cruz que tenho de carregar’, dizem. Usamos a expressão desse modo menos
intenso, porque o seu sentido literal está distante de nossa experiência” (The Hard Sayings of Jesus [Downers
Grove, Illinois: InterVarsity Press, 1983], p.150).
Mas levar a cruz dificilmente tinha o objetivo de tornar-se um lema atrativo. O propósito
era ser uma prática vitalícia e transformadora de vida. Em linha com o que vimos nos três padrões
de tentação (1 Jo 2.16), quero investigar como levar a cruz tem o significado de opor-se a essa
táticas do Maligno.
Crucifique e eu Sexual
Infelizmente, os pecados sexuais são comuns no Corpo de Cristo. Ainda que raramente nos
recreemos neles como fazia o irmão imoral em Corinto (1 Cor 5), esse tipo de pecado existe. Em
uma sociedade que nos satura de imagens sexuais, muitos crentes caem presa dessa tática efetiva de
Satanás.
Poucos impulsos da natureza humana são mais fortes do que o impulso sexual. Infelizmente,
com o avanço da tecnologia, ficou muito mais fácil matar a sede desse desejo voraz. A
concupiscência dos olhos pode ser satisfeita com vídeos alugados, softwares pornográficos e revistas
que parecem onipresentes, e hoje mais eficazmente por meio da internet. No passado quase todas as
maneiras de satisfazer os desejos desse pecado envolviam olhar outra pessoa nos olhos, quer
comprando uma revista por baixo dos panos, quer alugando um vídeo. Para algumas pessoas, ter de
vencer a barreira desse embaraço bastava para mantê-las afastada do pecado. Mas hoje a pessoa pode
se sentar na privacidade da sua casa e entregar-se a esses “prazeres” sem jamais ter de dar explicações
a quem quer que seja.
A mentira traiçoeira é que nos enganamos quando acreditamos que ninguém sai ferido; nós
nos esquecemos da determinação de Paulo concernente ao pecado sexual: “Todo pecado que o
homem comete é fora do corpo; mas o que se prostitui peca contra o seu próprio corpo” (1 Cor
6.18b). Sempre que pecamos sexualmente estamos nos destruindo em primeiro lugar.
Quando Jesus disse no Sermão da Montanha que temos de arrancar o olho que no faz pecar,
não foi por engano que esse mandamento veio logo após os seus comentários sobre adultério. Na
realidade, se seguirmos a progressão nesse ensino, veremos que Jesus observou que o adultério
começa no coração, pode facilmente passar para os olhos e, depois, ir para as mãos. Isso nos
proporciona valiosos esclarecimentos sobre como lutar e conquistar esse impulso pecaminoso.
No capítulo 1, comentei que a pobreza material é um meio para a pobreza espiritual.
Especificamente, se conseguirmos refrear nosso desejo natural por comida por meio do exercício do
jejum, aprenderemos a controlar melhor os outros impulsos naturais. No capítulo 3, vimos áreas de
dedicação, uma delas envolvendo a mente. Aquilo em que fixarmos a mente acabará frutificando
em nossas ações. Por exemplo, muitos acreditam na mentira de que podem olhar pornografia e
terminar aí, sem que isso os leve a maiores males. Mas esse viciado em pornografia pode dizer
honestamente que esse hábito não começou primeiro com um olhar sem importância e
aparentemente inofensivo? Acreditamos tolamente que podemos abrir só uma fresta da porta para
Satanás e nada mais. Todavia, é obvio que ele não se contentará em ficar espiando do lado de fora.
Só ficará contente quando tiver entrado.
Esse raciocínio não só é espiritualmente tolo, mas nem mesmo se sustenta diante da
sabedoria mundana. É claro que quem foi promíscuo antes do casamento tem chance muito maior
de tornar-se adúltero do que quem permaneceu puro antes do casamento. Satanás raramente nos
apresenta diante dos olhos o mais escabroso dos pecados. Ele prefere nos tentar de modo mais sutil
e, antes que percebamos, fizemos coisas que pouco antes jamais havíamos sonhado que faríamos.
Em que permitimos que os nossos olhos se demorem? Percebo alguém vindo pela rua; é
uma mulher bonita e os meus olhos a contemplam naturalmente por um momento. Se o meu olhar
for somente esse, então não pequei. Mas se decido dar uma olhada mais longa para absorver todos os
detalhes, e, prosseguindo, eu me demorar mentalmente nesses detalhes permitindo-me sonhar
pensamentos não-mencionáveis, então cometi adultério em meu coração. Uma vez que deixo que
tais coisas entrem em meu coração, em pouco tempo elas acabarão se infiltrando em minha mente
repetidamente. Uma vez que a minha mente se torna corrupta, as minhas ações logo a
acompanharão.