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Teoria do Estado I

OLAVO DE CARVALHO

Aula 1
28 de agosto de 2003

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Seminário de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor, não cite nem divulgue este material.

Boa noite a todos!


Este curso vai dar-lhes algum trabalho, porque a minha ideia é a de que saiam daqui com a noção
mais clara possível do objeto e dos métodos dessa ciência – o que é, hoje em dia, considerando-se o
estado do ensino universitário no Brasil em geral, muito mais do que o que se espera de qualquer
curso. Digo isso pois leciono há quase vinte anos e em geral os meus alunos têm formação
universitária, mas durante esse período eu nunca encontrei um aluno que, proveniente de qualquer
curso, seja Ciências Sociais, Direito, Física, Filosofia, etc., tivesse uma noção sequer aproximada do
que é ciência – isso é decepcionante.
É evidente que um indivíduo pode viver na prática de uma determinada ciência durante vinte ou trinta
anos e nunca ter parado para pensar sobre o que é uma ciência – isso é perfeitamente possível e de
fato acontece. O que não é possível é o indivíduo, a partir dessa experiência, estabelecer um diálogo
com estudiosos de outras áreas ou um diálogo cultural em geral sem essa noção.
No caso da Teoria do Estado, o próprio nome já nos enuncia um problema na medida em que não
existe nenhuma ciência, nenhuma possibilidade de investigação científica, sem uma delimitação do
campo de tal modo que essa delimitação corresponda mais ou menos às fronteiras de um objeto que
esteja efetivamente distinto dos demais. Isso não acontece de maneira alguma; nem com a
denominação de “Teoria do Estado” – como veremos daqui a pouco –, nem com as outras versões
que existem dessa mesma ciência, mas que possuem outros nomes, e nem de ciências aparentadas –
como aquela que os americanos chamam de “Teoria do Governo”, ou a outra que os franceses
chamam de “Ciência Política”.
A noção e a própria expressão de “Teoria do Estado” são de origem alemã. A ideia de fazer do Estado
o objeto de uma ciência surge mais ou menos ao mesmo tempo com a ideia de que o próprio Estado
seria a culminação da racionalidade humana, isto é, a mais complexa e alta das criações humanas –
essa é uma ideia de Hegel: se não fosse essa ideia, não existiria sequer uma teoria do Estado. No
entanto, logicamente nós entendemos que o Estado Moderno – tal como concebido por Hegel, ou tal
como passou a existir na Alemanha, entre a época de Hegel e a de Bismark, mais ou menos uns 45
anos depois de Hegel – é apenas uma das formações estatais possíveis e também que o Estado é
somente uma das muitas formações políticas possíveis, ou seja, o Estado, em si, não é um objeto que
tem generalidade e universalidade suficientes para que, sozinho e como tal, seja objeto de uma
ciência.
O equivalente francês da expressão alemã para a “Teoria do Estado” – Allgemeine Staatslehre – é
“Science Politique”, e também possui uma ênfase específica tirada da sua origem na eclosão dos
movimentos positivistas de meados do século XIX.
Já no ambiente anglo-saxônico não existe nem uma coisa nem outra, mas algo que se chama “Teoria
do Governo”, que é especificamente um exame da estrutura do governo democrático parlamentar e
constitucional, tal como há na Inglaterra e nos EUA, fazendo desse fenômeno em particular uma
espécie de modelo, de régua, de unidade de medida através do qual se medem e se tentam
compreender todas as outras formações possíveis.
Em cada uma dessas concepções existe, evidentemente, uma limitação intrínseca na medida em que
o objeto da ciência é simultaneamente a circunstância social e cultural na qual nasce essa ciência –
nascimento esse, então, que já é marcado pela circunstância de um determinado momento e lugar que,
não coincidindo com a de outro momento e outro lugar, não permite, então, que essa ciência alcance
o nível de generalidade que lhe possibilite uma comparação efetiva entre fenômenos tão distintos
entre si como é, por exemplo, a monarquia constitucional inglesa e o regime do Irã, ou a estrutura do
Estado soviético ou do Estado nazista. Esses fenômenos são tão diferentes entre si, que a possibilidade
mesma de tentar compreender um deles a partir da comparação com o outro é demasiadamente
casuística.
No caso, os anglo-americanos estão tão acostumados com a ideia de que o sistema político deles ou
o Estado, tal como eles o concebem, é a forma normal e normativa da existência humana que boa
parte da teoria política inglesa consiste numa exposição e tentativa de explicar como é possível
acontecer a seres humanos uma infelicidade tão profunda de não ter nascido na Inglaterra – não que
lhes falte alguma razão, não que não haja alguma vantagem em se nascer em uma democracia
constitucional estável, mas a estabilidade e a duração de um regime não fazem dele um modelo natural
de comparação para se compreender os [demais regimes]; talvez ele tenha durado tanto tempo e
funcione tão bem justamente por ser tão diferente dos outros que não admite comparação.
A tentativa de descrever e compreender outros regimes a partir do modelo inglês ou do modelo
americano – que para os anglo-saxões, evidentemente, parece uma coisa natural – é evidentemente
tão impossível, tão inviável, quanto, por exemplo, tentar classificar todo o reino animal a partir de
comparações com uma espécie tomada enquanto “o animal típico”. Consideremos, por suposição,
que o animal com que estamos mais acostumados – um cachorro, uma galinha, uma vaca, um cavalo,
etc. – seja o animal normal, o animal essencial: todos os outros terão de ser descritos pelas suas
semelhança e diferenças em face desse. Se considerarmos a minhoca [como o animal essencial], por
exemplo: descreveríamos o cavalo [comparando-o com ela] e fazendo uma lista das diferenças entre
ambos. E daí faríamos também a mesma coisa com uma tartaruga, com uma águia e com todos os
outros animais. Compreenderíamos, então, que esse é um processo enormemente trabalhoso e,
ademais, fortuito, porque em um dos animais estudados pode haver certas características muito
importantes, mas que não aparecem na comparação dele com um determinado animal, mas somente
na comparação com um outro. Por exemplo, pode haver um grande número de cavalos marrons ou
marrons-avermelhados, bem como muitas minhocas da mesma cor: sob esse aspecto, as minhocas
não se distinguiriam, de maneira alguma, dos cavalos. [Conclusão:] sempre que tomamos uma
determinada formação política ou estatal como se fosse o modelo prototípico ou como se fosse a
manifestação direta da essência do fenômeno e tentamos estudar todas as demais formações a partir
dessa, caímos em um casuísmo sem fim.
Do mesmo modo, se para evitar isso nós procedemos como os franceses, que adotam o método
positivista da pura comparação e medição com abstenção de juízo de valor, chegamos às vezes à
impossibilidade de tentar descrever certas estruturas políticas construídas sob a ideia do bem comum,
logo, teremos de explicá-las sem ter uma concepção clara do que seja o tal do Bem, ou até sem ter a
ideia de se existe o Bem e o Mal. Se houve formações estatais construídas com o propósito, com a
ideia, ou com a desculpa – como queiram – do bem comum, então é absolutamente impossível
explicarmos essa formação fazendo abstração da ideia do Bem e, portanto, da ideia do Mal também.
Curiosamente as Ciências Políticas faziam parte do que os franceses chamavam Sciences Morales –
Ciências Morais – das quais a primeira característica dela é serem totalmente amorais, ou seja, a de
não poderem se pronunciar sobre o valor ou o desvalor moral dos fenômenos estudados.
Também não poderemos delimitar corretamente o nosso campo se não pudermos fazê-lo partir do
modelo germânico, francês ou anglo-saxônico e muito menos poderemos fazê-lo a partir do modelo
soviético – no qual o próprio Estado soviético explicava a si mesmo como a culminação de um longo
processo histórico do qual todos os outros Estados existentes não seriam senão capítulos anteriores e
já superados. Nós vemos que em todos esses casos existe uma confusão entre o que é o objeto de uma
ciência, entre o que é o objeto da investigação e entre o que são as concepções que um membro de
um determinado Estado tem a respeito desse mesmo Estado.
[Diante do exposto], nós temos de introduzir aqui uma distinção que é bastante trabalhosa e que em
geral é uma das mais ausentes no ensino universitário brasileiro: a distinção entre o que é, nas ciências
sociais, nas ciências humanas, ou mesmo em filosofia, um conceito e um símbolo auto-explicativo.
Quando, por exemplo, um teórico da democracia constitucional moderna descreve o Estado
Constitucional como um Estado no qual existem determinados direitos nas quais o cidadão é
protegido do Estado pelo próprio Estado: ele está descrevendo uma realidade objetivamente existente
ou um projeto do que esse Estado visa a ser embora às vezes não consiga? Dito de outro modo: ele
descreve uma realidade ou uma idealidade? Ele descreve o que o Estado é ou o que ele gostaria que
fosse?
Suponhamos que em um Estado Constitucional como, por exemplo, na Inglaterra, haja uma tal
proliferação de fenômenos de corrupção que o Estado, durante certo momento, caia nas mãos de
grupos que o utilizem em benefício próprio e sem que o restante da população perceba claramente o
que está acontecendo: esse Estado deixará de ser um Estado constitucional? Não. Mas, o fato é que a
lista dos direitos que permitem defini-lo como Estado Constitucional terá diminuído bastante. Basta
esse exemplo para percebermos que a ideia do Estado Constitucional não descreve uma realidade,
mas um ideal que continua servindo de plano de referência mesmo quando a realidade efetivamente
existente não coincide com esse ideal.
Ora, mas se quisermos compreender o Estado como formação histórica e efetivamente existente, se
nós queremos chegar a uma ciência geral que permita a comparação objetiva entre os vários modelos
de Estado, então temos de fazer um distinção muito clara entre: (I) o que é o conceito de Estado, pois
esse conceito tem de abarcar todas as variedades existentes de Estado; (II) o que é a estrutura efetiva
de cada Estado em um determinado momento; e (III) o que é o conjunto de valores auto-justificadores
que cada um desses Estados apresenta para si.
Por exemplo, se perguntássemos a um jurista soviético dos anos 40 qual é a diferença específica entre
o Estado soviético e os demais Estados, ele diria tecnicamente o seguinte: “Este Estado é o Estado
proletário, em distinção dos demais Estados, que são Estados burgueses”. Ora, essa resposta explica
a realidade do Estado soviético ou somente a sua auto-justificação? O que ele quer dizer com isso?
Ele quer dizer que os ocupantes dos cargos de governo, os governantes, são de origem proletária?
Não, não é bem isso. Na verdade, se considerarmos a primeira geração de dirigentes do Partido
Comunista que tomam o poder e formam o Estado soviético, só havia um proletário entre os noventa
e tantos. Os outros eram maciçamente, ou filhos da classe média, como o próprio Lênin, que era filho
de um pequeno funcionário, ou eram filhos de famílias aristocráticas ricas, como Plenkanov, ou filhos
de proprietários rurais, como era Trotsky, portanto, não havia nenhum proletário. Logo, a
característica do Estado proletário não era uma característica material do Estado soviético.
Comparemos, então, com os Estados denominados burgueses. Os Estados burgueses, como todos
aprendem na cultura de almanaque, se originaram na Revolução Francesa, quando em 1789 a
“burguesia” derruba a aristocracia e toma o poder. Quem já não ouviu isso? Todo mundo já ouviu.
Mas o que é a burguesia? É a classe dos capitalistas, dos detentores de capital que vivem do
investimento, seja financeiro, industrial, agrícola ou em qualquer outra atividade produtiva. Dentre
os líderes da Revolução Francesa, aqueles que derrubam o governo e sobem ao poder, quantos
capitalistas haviam? Estudem a vida dos líderes da Revolução Francesa, de todos os que ocuparam
postos no governo francês, desde a primeira assembleia geral, em que se uniram os Três Estados, até
a ditadura napoleônica e vejam quantos capitalistas haviam entre eles. Alguém sabe quantos?
Exatamente o mesmo número de proletários que havia no comitê central do Partido Comunista da
URSS: um. Os outros eram: muitos intelectuais, outros da pequena aristocracia, da aristocracia falida,
muitos eram clérigos, outros eram militares. Porém, burgueses, não havia nenhum. Havia um número
enormemente grande de aristocratas e, curiosamente, a burguesia francesa atual, os grandes acionistas
das principais empresas, está repleta de condes, marqueses, duques etc.
Entendemos, então, que a auto-definição do Estado soviético como Estado proletário e a definição
que ele oferece dos outros Estados como Estados burgueses não descreve a realidade. Mas, de algum
modo, elas funcionam, pois se existiram no século XX milhões de pessoas dispostas a dar a própria
vida ou tirar a vida alheia para constituir Estados similares ao Estado soviético, é porque elas
acreditavam que eram um Estado proletário e que através disso o proletariado estaria “subindo ao
poder”. Embora esse “conceito” não sirva para descrever a estrutura real do Estado soviético, e muito
menos a composição social de sua classe governante, serve para descrever a expectativa moral, por
assim dizer, em que se baseou a sua construção.
Assim, entendemos que esses dois conceitos – Estado burguês e Estado proletário – não são
exatamente “conceitos”. A palavra conceito vem do latim conceptio – é o verbo cepio, cepir, que quer
dizer catar, captar ou agarrar; e con é um prefixo que significa junto. Isso significa que, dado um
conceito, quando apreendemos o nexo lógico dos elementos que estão dados no conceito, com isso
simultaneamente e juntamente devemos apreender um nexo real entre coisas reais.
Por exemplo, se tomarmos uma definição geométrica qualquer que diga que um quadrado é uma
figura plana de quatro lados e quatro ângulos iguais: esse enunciado verbal tem um certo nexo interno.
Basta esse nexo interno para que ele seja um conceito efetivo? Não. É necessário que a esse nexo
corresponda um outro nexo efetivo na figura efetivamente desenhada. Quando eu enuncio o conceito
de quadrado, eu não estou apenas enunciando um conteúdo lógico, mas um conteúdo geométrico
efetivamente, que se refere não ao objeto puramente lógico da minha fala, mas a um objeto
matemático que existe independentemente da própria fala humana. Se eu disser que um quadrado é
uma figura com quatro lados e quatro ângulos iguais, eu estou precisamente dizendo que, para o
quadrado ser isso, ele não depende de que eu o diga ou não, isto é, dizendo ou não dizendo, o quadrado
continuará sendo a mesma coisa. O conceito tenta reproduzir no campo dos nexos lógicos verbais um
nexo efetivamente existente em algo que não é o puro enunciado verbal. Por isso que se chama
conceptio – captar junto.
O nexo lógico está bastante claro quando o porta-voz ou o teórico do Estado soviético enuncia que o
Estado dele é um Estado proletário e que se distingue dos outros porque os outros são Estados
burgueses. Uma vez que exista a classe proletária, a classe que não tem a posse dos meios de
produção, e a classe burguesa que tem, mediante a posse do capital, a posse dos meios de produção,
e se cada uma constrói um Estado para que ela, enquanto classe, domine sobre as outras classes, então,
eis aí dada a distinção entre o Estado proletário e o Estado burguês, portanto, o nexo lógico aí está
dado. Mas esse nexo aparece na realidade? Não. Porque, de fato, o Estado proletário não tem
proletário nenhum e o Estado burguês também não tem burguês [algum]. Logo, deu-se o nexo lógico,
mas não o nexo real. Sempre que isso acontece – isso pode ser adotado como critério geral para este
estudo –, nós não estamos na presença de um conceito científico, estamos na presença de um símbolo
auto-explicativo.
Quando o teórico do Estado soviético o explica como Estado proletário, ou quando o teórico do
Sistema Parlamentar Inglês o explica como um Estado no qual existem tais ou quais direitos: eles não
estão descrevendo realidades; eles estão descrevendo princípios que orientam as suas próprias ações
e as suas próprias participações nesses Estados, quer dizer, eles estão, de certo modo, justificando a
existência desses Estados e a própria existência deles enquanto agentes desse Estado – isso se chama
símbolo auto-explicativo ou auto-justificativo.
O símbolo auto-justificativo não funciona como descrição de uma realidade, mas funciona como
descrição de uma orientação subjetiva da conduta. Os símbolos auto-justificativos ou auto-
legitimadores são uma realidade na existência humana.
Por exemplo, em qualquer discussão de marido e mulher esses símbolos aparecem em grande número.
Quando o marido irado diz à mulher: “Você é uma chata, você não trabalha, você é isso, é aquilo...”
– isso não quer dizer que ela seja realmente, mas sim que a conduta dele é justificada nessa base.
Entendem? O sujeito quer bater nela por algum motivo – ele não precisa sequer saber o motivo, ele
pode simplesmente bater nela porque está bêbado – e em vez dele descrever a si mesmo, ele a
descreve, porém, essa descrição é falsa.
O símbolo auto-justificador é um pseudo-conceito, é um simulacro de conceito que não descreve a
realidade do objeto, mas enuncia a posição que o falante tem perante ele: o que ele sente pelo objeto,
o que ele quer desse objeto, ou o que ele espera desse objeto. Não é necessário dizer que a quase
totalidade da discussão política no mundo inteiro, e mais particularmente no Brasil, não é feita com
conceitos, mas exclusivamente com símbolos auto-justificadores. Quer dizer, quando as pessoas estão
falando a respeito do que quer que seja, não estão falando a respeito “do que quer que seja”, mas
apenas delas mesmas.
O anúncio do programa político-partidário sempre se baseia em algo que nos é apresentado como se
fosse uma descrição do estado de coisas. Ele dirá: “O Brasil está assim, assim e assim. Tem esse e
aquele problema. Por causa disso e daquilo. E em vista de tal situação, vamos proceder a tais e quais
medidas etc.” – isso não significa que o Brasil tenha exatamente esses problemas, não quer dizer que
o problema seja esse, e muito menos quer dizer que o partido vá fazer tal ou qual coisa. Nesse caso,
pode acontecer de isso não ser sequer um símbolo auto-justificativo, mas uma terceira coisa. Para
explicar de uma maneira mais simples, podemos dizer que uma ideia qualquer possui sempre uma
dentre essas cinco funções.
A primeira é descrever a realidade. Um modelo de descrição da realidade seria, por exemplo, o que
um médico legista faz quando estica um cadáver em cima da mesa e diz: “Olhem, aqui há uma
perfuração de bala na testa, ali tem o macarrão que o sujeito comeu ontem, aqui a água no pulmão e
mais isso e mais aquilo” – o que ele está dizendo, para cada enunciado dele, corresponde a um fato
verificável pelos sentidos por quem quer que examine o mesmo corpo – é uma realidade descrita.
Em segundo lugar, temos os símbolos auto-justificadores. O indivíduo descreve o estado de coisas
não porque o estado de coisas seja exatamente assim como ele o descreve, mas porque ele quer uma
justificação e uma orientação da sua própria conduta dentro da situação. Por exemplo, o teórico do
Estado soviético, [0:30] que o explica como um Estado proletário, não está querendo dizer exatamente
que seja um Estado constituído por proletários, mas que: “Eu gostaria de sentir que estou aqui agindo
como ‘representante’ do proletariado, que eu sou uma espécie de proletário honorário” – é isso o que
ele está querendo dizer e não que o Estado seja efetivamente um Estado proletário.
A terceira função é influir sobre os outros. Nesse caso, o sujeito não está nem descrevendo a realidade
e nem indicando a sua própria posição dentro dela, mas está inoculando no próximo uma certa crença
que, se aceita, o fará agir de determinada maneira conforme o desejo do primeiro. Se vocês conhecem
a história de Otelo, sabem que quando o Iago contou que viu Desdêmona tendo encontros furtivos
com Cássio, ele não descrevia uma realidade, nem indicava a própria posição dentro dela, mas estava
apenas induzindo Otelo a matar a mulher – era isso o que ele queria. Então, [a terceira função do
discurso é] influenciar o próximo, independentemente da descrição da realidade ou do auto-
posicionamento dentro dela, é a terceira função.
A quarta função: o sujeito diz algo que não descreve a realidade, não justifica e nem explica o seu
próprio posicionamento dentro dela e nem exerce influência sobre o próximo, mas exerce influência
sobre si mesmo, ou seja, o sujeito gostaria de acreditar em tal ou qual coisa para motivar a própria
ação nesse ou naquele sentido – é uma espécie de auto-hipnose.
Finalmente, há a quinta função, na qual o que se diz ao outro não descreve a realidade, nem explica
a situação do sujeito dentro dela, nem influencia a ninguém, nem ajuda a moldar hipnoticamente a
sua própria conduta, mas ajuda a transmitir ao outro uma imagem do que ele quer que o outro pense
que ele é, ou seja, o sujeito está representando um papel, e ele o faz não em vista de uma ação real,
mas apenas porque quer simular algo naquele momento.
Vou lhes dizer uma coisa que vai parecer espantosa: a quase totalidade das discussões políticas no
Brasil é constituída de ideias dessa quinta função: elas não descrevem a realidade, não justificam
efetivamente a posição do sujeito dentro dela, não são calculadas para produzir um resultado efetivo
na conduta alheia e nem mesmo para produzir um resultado efetivo na conduta do falante, são feitas
apenas para que, no momento em que o indivíduo diz, ele dê a impressão de que ele é realmente
aquilo. Então, evidentemente, essa é uma função ilusória ou teatral. Até o fim do curso eu trarei
amostras e mais amostras de como o nosso discurso político corrente há muito tempo é constituído
principalmente de ideias desse tipo.
Ora, como todas essas ideias entram na discussão e no dia-a-dia político, elas fazem parte da realidade
que se chama política. Logo, tem algo que ver com a ciência política e com a Teoria do Estado.
Evidente, porém, que não podemos tratar todas essas ideias no mesmo plano e tratá-las todas como
se fossem conceitos descritivos apropriados.
Quando um psiquiatra ou um psicoterapeuta examina um paciente, tudo o que paciente imagina sobre
a realidade não será tomado como descrição da realidade. Também não será tomado como expressão
real e sincera da posição do doente perante a situação em que está, pois se o sujeito fosse capaz de ao
menos se pôr a si mesmo dentro da situação, ele não estaria tão louco assim. Igualmente não será
tomado como expressão de algum intuito manipulatório que o doente possua, ou seja: “Ele está
dizendo isso porque ele quer de mim, terapeuta, tal ou qual conduta e, portanto, ele faz isso para me
influenciar” – se o terapeuta pensasse isso, seria ele então o louco. Decerto o discurso do doente faz
parte de uma estrutura de fingimento e só pode ser compreendido como tal. Qual é a relação entre o
fingimento e a realidade? Percebemos que entre um discurso fingido e um discurso de descrição da
realidade existe uma série de mediações, a conversão não é imediata. Por trás do discurso delirante
de um maluco, há uma realidade efetiva – algo ele está sentindo, algo se passa com ele – e também a
estrutura interna da doença ou da patologia dele: “É isso o que eu quero descobrir! Eu quero descobrir
a realidade por trás do discurso, mas a conversão não é direta e imediata, como no caso do verdadeiro
discurso de descrição da realidade”.
Por exemplo, o discurso do médico legista perante o paciente: como é a conversão desse discurso em
realidade? É muito simples: para cada afirmativa que ele fizer sobre o corpo, eu posso observar um
fato correspondente nesse mesmo corpo. Se ele disser que há um buraco de bala no osso, basta eu
olhar o osso e, se o buraco estiver lá, está tudo certo; se não houver buraco algum, direi que está
errado. O discurso de descrição da realidade é, por excelência, o mais fácil de conferir. Infelizmente
a mesma coisa não se passa com os outros discursos.
À medida em que seguimos do primeiro desses discursos, que é a descrição da realidade, para o
último, que é o discurso do auto-fingimento, a sua conversão e tradução em realidade vai se tornando
cada vez mais difícil. Como todos esses tipos de discurso e de usos da linguagem fazem parte da
estrutura da realidade política desde que existe a realidade política, temos de levar todos em conta,
pois o que quer que um político, um representante da ordem, um representante da desordem, um
teórico, ou um cientista político diga sobre tal ou qual Estado, ou sobre tal e qual realidade política,
pode estar encaixado em um dos cinco tipos [de discursos].
Ora, mesmo que não tenhamos ainda uma ideia muito clara do que venha a ser o conhecimento
científico [...], esse conhecimento pretende ter algo a ver com a realidade e pretende, de algum modo,
ser uma tradução adequada da realidade de modo que, repetindo este discurso para outras pessoas,
elas possam conferir, por algum modo mais ou menos direto, a veracidade ou falsidade daquilo que
está sendo alegado.
Bom, a primeira obrigação da ciência política é traduzir em descrição da realidade os outros quatro
discursos, os outros quatro tipos de fala. Isso significa que pode haver situações políticas, formas de
Estado, formas de governo, formas de sociedade que não têm para si mesmas nenhuma translucidez
e que são inteiramente montadas com discursos que não são de descrições da realidade. Isso também
significa dizer que existem sociedades inteiras que jamais se compreenderam a si mesmas e que não
seriam capazes de descrever a si mesmas para outra.
Por exemplo, se considerarmos qualquer tribo indígena e tentarmos descobrir qual é a origem e a
justificativa das instituições, eles responderão, primeiramente, com um mito cosmogônico, uma
pretensa origem mítica do cosmos que coincide, no tempo e no sentido, com a própria origem da
tribo. Entre os índios do Alto Xingu, havia uma tribo que achava que antigamente existia uma raça
de homens imortais que viviam num lugar maravilhoso chamado “A Terra sem Mal” que se localizava
acima das nuvens. Alguém, por burrice, certo dia abriu um buraco n’A Terra sem Mal pelo qual eles
caíram e foram parar ali. A função e a justificação da tribo é propiciar às pessoas o retorno para a
Terra sem Mal – essa é a explicação que os índios nos darão sobre a origem da tribo. Mas essa é a
explicação da origem dessa tribo em particular? Não. É da origem da humanidade, pois, para esses
índios, a tribo e a espécie humana são a mesma coisa. Não existem realidades para além da tribo.
Tudo o que não faz parte da tribo não faz parte da espécie humana. Assim, temos um discurso de
auto-justificação das instituições que, em primeiríssimo lugar, confunde uma pequena tribo – que
certamente surgiu em um dia e desaparecerá em um outro – como se [ela mesma] fosse a própria
humanidade. Isso é o mesmo que dizer: “Essa tribo ignora tudo sobre a sua origem histórica” – no
sentido em que nós entendemos a origem histórica.
Nós sabemos que a sociedade em que nós vivemos teve uma origem histórica determinada porque
nós sabemos que a origem dela não coincide com a origem da humanidade. Se uma pessoa
perguntasse qual é a origem do Estado brasileiro ou qual é a origem da sociedade brasileira, ela
aceitaria como resposta a narrativa do Gênesis? “Deus criou o Céu e a Terra, daí fez Adão, e depois
apareceu a serpente etc.” – isso é aceitável como explicação do Brasil? Essa é uma explicação da
origem da humanidade. Qualquer tribo indígena a qual se pergunte pela sua origem responderá com
um mito sobre a origem da humanidade. Para eles, não há distinção entre aquela sociedade em
particular e a humanidade em geral.
Vocês entendem, então, porque uma tribo se desmantela completamente ao simples contato mais
frequente com outras tribos e mais ainda com uma tribo maior? A simples descoberta de que aquela
tribo não é a humanidade desorienta-os completamente. Logo, para se destruir uma cultura indígena,
não é preciso fazer nada contra ela, basta ir uma pessoa lá: “Ora, vocês dizem que caíram daquele
buraco, mas eu apareci de outra maneira. Nós aqui, por exemplo, fomos descobertos em 1500, por
um português a navio” – se a pessoa contar essa história do navio, como o índio a entenderá? Vamos
supor que, por um esforço intelectual fora do comum, ele entenda que existem outras humanidades
que se originaram de outras maneiras: ele [ainda] entenderá essa narrativa por analogia com a dele.
Isto é, a [narrativa] dele explica a origem da humanidade, logo, da tribo, desde a queda de um estado
paradisíaco até um estado terrestre lamentável, portanto, ele entenderá a outra narrativa mais ou
menos como essa. Dito de outro modo, para o índio, a vinda do português para cá, teria sido mais ou
menos como uma queda desde o paraíso terrestre, onde Portugal equivaleria à Terra sem Mal, de onde
o desgraçado do português, Pedro Álvares Cabral, caiu por algum motivo e acabou vindo parar aqui
– esse seria o primeiro grande esforço intelectual do índio para entender a origem de uma sociedade
que não é a sua. Daí, até ele chegar à concepção de origem histórica e estabelecer todas as distinções
entre o que é a origem mítica, a origem temporal e a origem biológica, por assim dizer, da
humanidade, e de como se deu a formação histórica das várias civilizações e das várias culturas até
chegar a ele, vocês imaginem o tempo que ele vai precisar para chegar a compreender isso – não é
fácil, né!? Portanto, do nosso ponto de vista, nós entendemos que aquela tribo não se entende. Ela
não se entende historicamente como nós nos entendemos, mas miticamente, ou seja, ela tem uma
explicação para a sua própria existência. Explicação essa que não coincide com a realidade histórica,
mas que coincide com a origem da humanidade, no entanto, não com a origem temporal efetiva, mas
apenas com a sua origem mítica. Ora, essa origem mítica está no tempo?
Quando dizemos que a origem da humanidade vem de um estado como, por exemplo, o do mito
platônico da anamnese – já ouviram falar desse mito platônico né? que diz que antigamente as almas
existiam em um estado paradisíaco até que elas caíram na dimensão histórico-temporal na qual
vivemos e que elas só vagamente se lembram da vida de eternidade que tinham antes: essa queda está
situada no tempo? Não. Ela é apenas uma analogia temporal de um fato de ordem estrutural que não
tem nada que ver com o tempo. Que [fato é esse]? É o fato de que o ser humano, qualquer que seja e
em qualquer época que esteja, sente que o quadro espaço-temporal no qual vive é desconfortável e
limitador. Por que sentimos isso? Porque somos capazes de pensar ideias e de compreender realidades
que estão infinitamente acima da nossa duração temporal.
Por exemplo, quando uma criança aprende que dois mais dois é igual a quatro, neste mesmo instante
ela fica sabendo que dois mais dois será quatro eternamente, que dois mais dois já era quatro antes de
ela existir, que já era quatro antes de a humanidade existir e que seria quatro mesmo que não existisse
humanidade alguma.
Nós somos capazes de captar ideias como a de eternidade. Que é eternidade? Eternidade era definida
por um filósofo chamado Boécio como a posse plena e simultânea de todos os seus momentos. Somos
capazes de entender que a totalidade da duração do tempo forma uma unidade – é isso o que nós
chamamos de “eternidade”. Nós somos capazes de compreender isso, mas não somos capazes de
viver nela. Logo, existe um certo descompasso, uma certa defasagem, entre o alcance da nossa
inteligência e a forma de nossa existência temporal e biológica – daí o nosso desconforto. Entendem?
Ou seja, nós sabemos que vamos morrer, nós sabemos que dia a dia o nosso organismo se desgasta e
que nossa passagem pela terra é muito curta, mas, por outro lado, temos a intuição de coisas que
transcendem infinitamente a duração do nosso tempo. Como disse Espinoza: “Sentimus
experimurque, nos aeternos esse” – sentimos e experimentamos que somos eternos, ainda que
sabendo que não o somos; todo ser humano tem essa experiência.
Quando se pergunta ao índio a origem da sua tribo, ele responde não com a história da origem real,
mas com a expressão desse desconforto estrutural do ser humano. Compreendem? Ele simplesmente
traduz esse desconforto em um símbolo narrativo, em um mito. Esse mito, considerado como
narrativa temporal-histórica, é falso; considerado como símbolo de uma estrutura permanente da
condição humana, passa a ser verdadeiro – só que o índio não distingue entre uma coisa e outra. No
entanto, sobre essa confusão entre uma narrativa temporal e uma estrutura permanente, ele constrói
as instituições, as leis e os hábitos da tribo, ele cria formas de atividade econômica e de subsistência,
ele cria uma ocupação do território etc.
Por exemplo, entre os índios do Alto Xingu, se o sujeito tiver um filho indesejado, ele o joga no mato
– essa atitude é considerada normal: se pedirmos ao índio que justifique seus costumes, se
perguntarmos ao índio o porquê disso, qual é a justificativa para tal atitude, ele alegará como
justificativa do seu direito de fazer isso o seu direito de fazer isso [sic], pois esse direito, tendo sido
concebido de maneira mítica, não tem origem temporal e nem outra justificativa fora dele mesmo,
quer dizer, ele é a sua própria justificativa. Em uma circunstância tribal, nenhum membro da tribo
será capaz de conceber uma forma de justiça mais alta do que aquela existente dentro da tribo – essa
já é a justiça das justiças. A simples ideia de que o conjunto das justiças da tribo possa ser examinado
e julgado desde um padrão mais elevado e universal de justiça: isso não entra de maneira alguma na
cabeça [do índio]. [...]
Eis-nos então colocados no centro mesmo do problema da Ciência Política: a origem, a natureza e a
justificação das instituições de poder que permitem a existência de uma sociedade mais ou menos
estável e, de preferência, territorialmente localizada. Quando ouvimos a descrição do índio sobre a
origem mítica da sua tribo, quando o ouvimos justificar a existência das suas instituições pela própria
eternidade delas tal qual ele as concebe e entendemos que ele está raciocinando em circuito fechado,
ou seja, que a comunidade dele é o quadro máximo de sua referência dentro do qual tudo será
examinado, não havendo nada acima dela, nós entendemos que estamos diante de uma forma política
muito peculiar e bastante diferente da nossa. Por quê? Porque hoje, qualquer pé-rapado, analfabeto,
burro, que nunca estudou nada, ou que passou a vida recebendo diploma sem nunca ter entendido
nada do que estudou, olha para a nossa sociedade, na qual ele mesmo vive, e diz que é uma sociedade
injusta. Nesse instante, o que fez ele? Ele afirmou que possui o conhecimento de padrões e leis de
justiça que transcendem infinitamente a justiça da sociedade onde ele mesmo está – isso, hoje,
qualquer pessoa é capaz de fazer! Qualquer menino de rua pode dizer: “Eu sou vítima de uma
sociedade injusta”, ou seja, ele julga a sociedade como um todo, e para julgá-la, põe-se
intelectualmente acima dela, “Eu conheço algo mais justo do que essa sociedade. Eu conheço”, por
assim dizer, “um princípio de justiça divina e universal que é superior a esta justiça temporal e local
existente no Brasil”. Tal noção é precisamente a que o índio não tem. O índio será capaz de julgar a
justiça de outra comunidade e achá-la injusta, mas só a achará injusta porque é diferente da dele; ele
jamais julgará a justiça da sua própria sociedade. A hora em que ele conseguir emitir um único
julgamento sobre a totalidade das instituições do lugar onde vive, ele já não será mais membro dessa
tribo, ele terá se desligado dela.
Existe um conto belíssimo de Herman Hesse que se chama O Selvagem. É sobre um índio que, por
causa de uma mulher, se mete em uma encrenca com o pajé – o pajé é o depositário da tradição, o
depositário do conhecimento que a tribo possui sobre sua origem e suas instituições. Logo, é como
se ele brigasse com o espírito mesmo da coletividade e, por isso, é expulso da tribo. Desesperado,
solitário, amargurado, ele anda durante muitos dias pelo mato, até encontrar o mar, de cuja existência
ninguém da sua tribo sabia – ora, o mar é um dos símbolos mais evidentes da eternidade, do ilimitado.
Isso significa que, se antes ele fora expulso da tribo, agora ele efetiva a sua expulsão tornando-se
detentor de um conhecimento que transcende infinitamente o saber da tribo, agora ele não pode mais
voltar para a tribo. Mesmo que ele fosse perdoado pelo pajé, ele já não é mais um membro.
Qualquer um de nós, ao emitir um julgamento sobre a sociedade em que estamos – “É uma sociedade
injusta. É uma sociedade ruim. É isso, é aquilo. Etc.” – colocamo-nos mais ou menos na posição desse
índio, isto é, ele sabe que ele não pertence integralmente à sociedade, ele sabe que só pertence a ela
sob certos aspectos, mas que há nele aspectos que transcendem à sociedade. Como é que nós
chegamos a isso?
Eu dei o exemplo da tribo, mas ainda ontem eu estava dando uma aula para um grupo pequeno sobre
a Apologia de Sócrates, sobre o discurso de autodefesa que Sócrates faz perante seus acusadores, que
foi algo que não aconteceu em uma tribo de índios, mas numa sociedade que, se comparada a uma
tribo, é enormemente complexa – a cidade-estado grega. Pelo discurso de Sócrates, pelas objeções
que ele coloca a seus acusadores e pelas reações desses, tais como ele próprio as apresenta e as narra,
demonstra-se que a plateia inteira dos seus acusadores e dos demais presentes ao julgamento
dificilmente concebia algum princípio de justiça que fosse superior ao conhecido pela própria
sociedade. No entanto, a existência de uma justiça superior à da comunidade não era totalmente
desconhecida na cidade-estado grega. Como é que sabemos disso? Sabemos pelo teatro grego.
No teatro grego existem várias situações nas quais um personagem é posto, pelo destino ou pelas
coincidências, em oposição à comunidade. É o famoso caso, por exemplo, de Antígona, que quer que
o governante de sua cidade sepulte [1:00] no cemitério local seus dois irmãos que morreram em batalha.
Mas o governante alega o seguinte: “Não, eu não posso fazer isso porque eles morreram lutando por
um Estado estrangeiro. Nós aqui não temos nada a ver com isso”. E Antígona, então, responde:
“Acima das leis da cidade existem as leis divinas, as leis não-escritas”. O que ela está fazendo? Ela
está pondo essas leis não-escritas contra as leis da comunidade e exigindo que a comunidade submeta
o império das suas próprias leis ao império da lei divina que não está escrita. Essa situação, em que
um indivíduo ou um herói se põe momentaneamente à margem ou fora da lei da comunidade, aparece
muitas vezes no teatro grego; nesse instante, ele se torna um porta-voz das leis não-escritas. Essa
façanha é tão comum no teatro grego que nós concluímos que certamente alguma intuição de que tais
situações existiam estava presente na mentalidade grega – mas reconhecermos uma situação no teatro
não quer dizer que a reconheçamos na prática social diária.
Mas, aconteceu que no julgamento de Sócrates, a situação que costumava acontecer no teatro,
aconteceu na realidade: um sujeito que argumentava contra as leis da cidade em nome de leis
superiores e de um conhecimento superior ao que ele tinha acesso. Notem bem, quando os acusadores
de Sócrates argumentam, eles tomam como base da prova que eles pretendem apresentar o consenso
da comunidade, ou seja, se eles conseguirem provar que o que eles estavam dizendo coincide com
que a comunidade já pensa, então está vitoriosa a tese deles. Mas Sócrates não apela ao consenso da
comunidade, mas à autoridade da prova lógica, de tipo geométrica. Ele tinha acabado de descobrir
que o tipo de demonstração geométrica servia para o estudo dos problemas de ordem moral e política:
quando Sócrates para as pessoas na rua e pergunta o que é o bem, o que é a justiça, o que é a ordem,
após uma longa discussão, o que faz ele? Ele aplica os métodos de demonstração geométrica ao estudo
desses problemas, que são problemas de ordem moral. Porém, ele era quem havia descoberto essa
possibilidade – possibilidade essa que, sem dúvida, existe – e, portanto, ela, naquele momento, só
existia para ele. Para os acusadores, o consenso da comunidade ainda valia mais, possuía mais
autoridade do que a mais exata demonstração geométrica. É por isso que Sócrates, após fazer para si
mesmo uma das defesas mais brilhantes da história, é condenado. A defesa dele resultava em
impugnar o próprio critério de julgamento no qual o tribunal se baseava. Sócrates estava ali
exatamente como o selvagem do conto de Herman Hesse ou como Antígona.
Ora, hoje, qualquer um de nós diz como se fosse a coisa mais óbvia do mundo: “A nossa sociedade é
injusta”. Não somos nem Sócrates, nem Antígona, nem o selvagem do conto de Hesse. Dizemos
dentro da sociedade: “A sociedade é injusta”. Mas a sociedade, em vez de nos condenar à morte,
como fez com Sócrates, ou expulsar-nos, como fez com o selvagem de Hesse, diz: “É verdade, é
injusta mesmo”. A diferença de estrutura e de ordem interna entre esta sociedade em que vivemos,
entre a cidade-estado grega e entre uma tribo de índio, é tão grande que é como se já fôssemos
membros de uma outra espécie animal. No entanto, se há de existir uma ciência política, ela deve ser
capaz de descrever o seu objeto com generalidade suficiente, não somente para abranger essas várias
formações políticas totalmente diferentes, mas para dar razão da diferença entre elas.
Vamos para o intervalo agora.

***

Aluno: Meu nome é Fernando, professor, e gostaria de falar o seguinte: o conceito que o senhor
expôs, exemplificado em uma tribo indígena do Alto Xingu, cabe perfeitamente, na minha opinião,
no conceito que tem de si mesmo o Estado de Israel. É um conceito místico que remete à própria
Criação, lhes dá unidade e justifica, entre outras coisas, o massacre que Israel promove contra o
povo palestino.
Olavo: Bom, eu não sei se você percebe, mas no seu enunciado existem quatro conceitos que [na
verdade] são símbolos autoexplicativos, não são conceitos. Percebe isso ou não?
Em primeiro lugar, o conceito da autoexplicação mítica, aplica-se ou não ao Estado de Israel? A
resposta é, evidentemente, sim e não. [risos] Claro, pois, eu não creio que exista ninguém no Estado
de Israel, nem uma criança pequena, que confunda a origem bíblica com a origem histórica – e é
exatamente essa confusão, ou impossibilidade de discernir as duas coisas, que caracteriza a concepção
mítica. O fato de que exista hoje um Estado no qual se encavalem ou se superpõem uma origem mítica
e uma origem histórica não desmente nada do que eu disse a respeito da origem mítica. Então, o
Estado de Israel terá, de certo modo, uma dupla origem: ele pode ser explicado miticamente pela
própria origem do povo judeu, identificada miticamente como a origem da humanidade, mas, por
outro lado, haverá uma história do Estado de Israel a partir da sua formação histórica. Pode-se dizer
que o Estado de Israel nasceu na hora em que Deus criou Adão, mas também pode-se dizer que nasceu
na assembleia da ONU, em 1947, quando Osvaldo Aranha era presidente. Ninguém irá confundir uma
coisa com a outra. Existe a origem mítica, mas ela não se confunde com a origem histórica.
Compreendem?
Do mesmo modo, se considerarmos os Estados islâmicos, todos eles, sabemos que o Corão não é
somente um texto religioso no sentido dos Evangelhos, mas todo um código civil; ele é a Constituição,
[por assim dizer], de uma sociedade. E, isso é apresentado como se fosse a sociedade primordial, ou
seja, era assim que Adão vivia. Os homens primordiais, os homens puros – hanifs, em árabe – viviam
ali de acordo com a lei corânica no pré-tempo e isso é renovado, então, pela revelação trazida pelo
Arcanjo Gabriel a Maomé. Todo muçulmano acredita nisso, porém ele não vai confundir essa origem
com a origem histórica do seu Estado – o muçulmano sabe, por exemplo, que o Estado iraniano foi
constituído em tal e qual época, assim e assado, que a República do Egito surgiu em tal época etc.,
enfim, eles não confundem a origem mítica com a origem histórica. O fato de haver uma origem
mítica não quer dizer que seja necessariamente essa concepção que estrutura o Estado. Portanto, o
que caracteriza a tribo indígena, no caso, não é a explicação mítica, mas o fato de não haver nenhuma
outra. Então, não confundam.
Quanto às respectivas origens míticas, é evidente que qualquer uma dessas origens – já que elas se
identificam com a ideia de origem da humanidade ou de lei primordial, tanto no caso judaico quanto
no caso islâmico [respectivamente] –, em ambos os casos, é um potente [motor para um] discurso de
auto-justificação.
Porém, todas as sociedades existentes têm discursos de auto-justificação. Uma característica
específica da sociedade moderna é que sempre há, junto com o discurso de auto-justificação de si
própria, outros discursos de auto-justificação de outras sociedades que estão enxertados nela e a
destroem por dentro – isso toda sociedade tem; a mais ou a menos, sempre terá. Não existe, por
exemplo, um discurso de oposição dentro do Estado de Israel? Existe. Não existe um discurso dentro
do Estado de Israel contra o Estado de Israel? Existe. Existe a mesma coisa nos países islâmicos, em
menor quantidade, mas também existe. Praticamente não temos nenhuma sociedade monolítica como
uma sociedade indígena em que o discurso de auto-justificação mítico é o único existente e na qual
não é possível conceber nenhum outro.
Quanto aos massacres: todos acusam uns aos outros de fazerem massacres – isso aí tudo, para mim,
[essas acusações mútuas], são parte do fenômeno que estou estudando e não do discurso que eu
gostaria de fazer.
Aluno: [inaudível].
Olavo: Massacre e acusações de massacre fazem parte do fenômeno político e não do discurso da
ciência política. Compreendem? Eu não creio que exista atualmente nenhum Estado no mundo que
não tenha sido acusado de fazer algum massacre e que, de fato, não tenha feito alguns. Alguns estão
hors concours: a China, por exemplo, matou 60 milhões de pessoas – ora, isso aí já chega a ser
“sublime”, chega a ser “maravilhoso”, sai da humanidade. [risos] Essas coisas existem, mas elas
fazem parte da ciência política como seu objeto e não como seu discurso. Isso não quer dizer que uma
pessoa que esteja seriamente empenhada na ciência política não possa, eventualmente, tomar partido
desse ou daquele regime, ou desse ou daquele Estado – claro que pode.
No Brasil nunca podemos fazer uma cobrança de honestidade na argumentação, sem que algum
espertinho se levante e diga: “Mas não existe neutralidade científica!” – todos falam isso. Mas ora,
neutralidade não tem nada a ver com honestidade. Em ciência, o necessário é honestidade e não
neutralidade. Por acaso a descrição do estupro de uma garotinha de três anos se torna mais científica
se o cientista se recusar a tomar partido da garotinha ou do estuprador? Não, né? Para se fazer uma
descrição perfeitamente científica de como aconteceu um crime de estupro, é preciso abster-se de
tomar partido? É necessário ser neutro entre o estuprador e a garotinha para se fazer uma descrição
científica do fato? Não. Logo, a objetividade científica nada tem a ver com neutralidade, mas com
honestidade, que é outra coisa completamente diferente. Essa discussão sobre a existência ou não de
neutralidade científica é babaquice de brasileiro: neutralidade científica só se discute no Brasil, o
mundo inteiro já sabe que a coisa não é assim.
Então, é evidente que se pode tomar partido, porém, para o estudioso, tomar partido não é tão fácil
quanto é para um indivíduo que não pretende chegar a um conhecimento do objeto, mas apenas
encarnar um papel dentro do drama que está sendo vivido. Um político ou um militante, sempre
apresentará um discurso que parece ser a descrição de um estado de coisas, mas que não é; ou é auto-
justificação, ou é influência exercida, ou é auto-persuasão, ou é delírio – nós temos de estudar todos
esses. Em praticamente todos os casos, os discursos feitos pelos políticos e militantes não são
descrições da realidade. Porém, se estamos estudando Teoria do Estado/Ciência Política, temos de
fazer um esforço monstruoso para fazer a descrição da realidade – por mais que nos doa. É impossível
que esse estudo não afete a longo prazo as suas tomadas de posição. Quanto mais estudarmos isso,
mais acharemos difícil tomar posição perante certas coisas. Mas, quando a tomarmos, a tomaremos
com mais certeza.
Quem quer ser um estudioso sério tem de fazer uma espécie de voto de pobreza em matéria de opinião,
justamente para que suas opiniões valham um pouco mais. Por exemplo, toda vez que puderem dizer,
explicar ou expor suas ideias dizendo: “Isto não é minha opinião, é a descrição exata do fato”, vocês
estarão num terreno de maior respeitabilidade e autoridade. Mas, para vocês chegar a esse ponto, é
preciso terem menos opiniões. Também é necessário saber distinguir entre conhecimento efetivo e
mera opinião; ora, até a Bíblia fala disso. Quando as pessoas perguntavam a São Paulo Apóstolo
durante sua pregação qual era o ensinamento de Jesus Cristo a respeito de tal ou qual assunto, ele
respondia: “O ensino é esse aqui, pois Jesus disse assim”. Outras vezes, ao perguntarem sobre outros
assuntos, ele dizia: “Olha, Jesus Cristo não disse nada, mas eu acho que...” – isso aparece diversas
vezes nas cartas de São Paulo, quer dizer, ele está distinguindo a doutrina que lhe tinham ensinado da
sua opinião e não dava o mesmo valor a ambas as coisas. Nós também temos de aprender isto: uma
coisa é o conhecimento e outra é [o palpite].
A resposta que dei sobre a relação entre a auto-explicação mítica de uma tribo indígena e a dos
Estados judeu e islâmicos não é uma opinião, é um conhecimento científico bastante fundamentado,
ou seja, nós temos um conceito científico claro e válido do que é a auto-explicação mítica e temos
uma descrição válida do estado de coisas nesses Estados modernos e sabemos portanto qual é a
semelhança e qual é a diferença [entre eles]. A diferença é que, na situação tribal, não há apenas a
presença da auto-explicação mítica, mas sim a ausência de todas as outras explicações, então, não se
pode ter distância em relação a ela.
Em uma tribo, qualquer sujeito que saia da cosmovisão mítica da tribo está fora dela. Ora, isso
acontece no Estado de Israel? Por exemplo, o sujeito pode ser um judeu ateu ou materialista e,
portanto, não acreditar na origem bíblica, ele deixa de ser cidadão de Israel por causa disso? Não, ele
continua sendo. Então, é claro que não se trata da mesma situação, há apenas uma analogia – analogia
é uma mistura de semelhanças e diferenças, então, a analogia só vale alguma coisa quando as
semelhanças e diferenças estão bem definidas, senão, não é analogia, é uma mixórdia. Se a mixórdia
vem acompanhada de uma tomada de posição, então é apenas uma opinião – e opinião todo mundo
tem. Aqui, nós queremos ter algo mais. Não é proibido ter opinião, evidentemente, mas devemos nos
acostumar a tê-las poucas e boas.
Alguma outra pergunta?
Essa pergunta me foi muito útil, pois ajudou a lhes esclarecer. A partir da explicação que dei, por si
mesma, não dava para concluir a diferença que estou explicando; eu tenho que explicar, eu tenho que
expor essas diferenças. Portanto, qualquer pergunta ajuda. Mesmo que seja a pergunta mais cretina
do mundo, ajuda; pergunta cretina não atrapalha. Não fazendo perguntas sobre a minha vida sexual
ou sobre a minha declaração de imposto de renda, o resto, pode ser. Se eu souber a resposta, eu a
darei. Se eu não souber direito, direi que não sei.
“Teoria do Estado”, ou “Ciência Política”, ou “Ciência do Governo”, como quiserem chamar; seja
em alemão, francês ou inglês, eu prefiro chamar de “Teoria Política”. A Teoria Política, para valer
alguma coisa, tem de delimitar o seu objeto de tal modo que dentro desse conceito caibam todas as
variedades de formações políticas existentes – e algumas que ainda vão existir – para que nenhuma
delas seja tomada como modelo das outras, mas para que elas possam ser entendidas nas suas inter-
relações, comparações, semelhanças e diferenças reais.
Quando se faz como, por exemplo, na Ciência do Governo, a anglo-saxônica, que descreve tudo em
função de semelhanças e diferenças com a democracia britânica ou a democracia americana: isso é
baseado na ideia de que esse modelo normativo, chamado “Democracia Constitucional”, é
universalmente válido, que tende a se universalizar nos tempos futuros e que, portanto, desde já, está
autorizado a medir os outros por si mesmo – evidentemente essa não é uma premissa científica, é a
expressão de uma esperança, de um desejo. E se não acontecer assim, como é que vai ser? E se, em
vez de se universalizar a Democracia Constitucional, se expandir no mundo o regime iraniano e todos
nós formos obrigados a virar aiatolás? Como vai ser? A teoria não terá mais valor. Por melhor ou pior
que seja o modelo escolhido como princípio, esse procedimento é sempre inadequado, pois nele se
misturarão de maneira inextrincável conceitos científicos e símbolos de auto-justificação e, desse
modo, logo mais o sujeito já não vai saber do que está falando.
Vou lhes dar um exemplo desse tipo de confusão. Quando Thomas Hobbes, na entrada da Idade
Moderna, explica a origem da autoridade civil como um contrato através do qual os governados
cedem ao governante uma parte da autoridade que eles têm para governarem a si mesmos, ele está
falando de uma realidade ou de um ideal? Resposta: ele não sabe. Ele não chega a colocar essa
diferença. Ele não sabe se a ideia do contrato é a descrição de uma realidade ou a expressão de um
ideal político – isso acontece com quase todas as teorias políticas do Ocidente. Todas elas confundem
realidade e modelo normativo. Todas elas ficam abaixo do padrão de racionalidade que devemos
exigir de um conhecimento científico.
Na Modernidade, existe um autor, um filósofo, que todos dizem ter começado com a abordagem
científica da política: Maquiavel. Praticamente todos os manuais de Ciência Política e Filosofia
Política dirão que antigamente os autores construíam muitos modelos normativos, mas que Maquiavel
foi o primeiro sujeito que descreveu a realidade como era. Porém, mesmo no caso de Maquiavel,
vemos que tudo o que ele fez foi construir mais um modelo normativo – só que em vez de ser baseado
no Bem, era baseado no Mal. Ele concebe um governante ideal, a quem ele chama de “O Príncipe”,
que por meio do engodo e da traição obtém o poder total e unifica o país – a Itália –, derrotando não
só os seus adversários, mas destruindo todos os que o ajudaram a subir, isto é, cada um que o ajudou
a subir é um inimigo em potencial, logo, uma ameaça ao governante. Eles pensam: “Isso é tão ruim,
mas tão ruim, que não parece ser um modelo ideal, mas um modelo real” – mas não, é um modelo
ideal também; é um modelo ideal muito ruim, mas é um modelo ideal, pois nenhum governante pode
fazê-lo. Alguém como o “príncipe” de Maquiavel simplesmente não pode existir – muito menos
poderia existir no tempo de Maquiavel. Por quê? De todas as pessoas que ajudaram este governante
absoluto a subir, aquele que mais o ajudara teria sido o próprio Maquiavel, o qual é o escritor da
receita, portanto, se na época de Maquiavel algum governante chegasse a praticar a técnica dele e
conquistasse o poder absoluto e, depois disso, tratasse de liquidar aqueles que o ajudaram a subir, o
primeiro da lista seria o próprio Maquiavel, já que é o sujeito que tem a receita – “O cara que me deu
a receita, é com ele que eu tenho que mandar sumir imediatamente! E [também] mandar queimar o
livro!”. A teoria de Maquiavel não somente é um modelo ideal, mas é um modelo ideal totalmente
irreal e irrealizável. [1:30]
Do mesmo modo, o modelo do contrato social de Rousseau, o modelo que mais tarde constituirá a
famosa divisão tripartite dos poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário. Montesquieu dirá que o
Estado limita a sua autoridade, limita o seu poder, para não se tornar um Estado tirânico, dividindo-
se em três poderes autônomos: Executivo, Legislativo e Judiciário – que é o que nós temos até hoje.
Isso é a descrição de uma realidade ou de um modelo ideal? Dirão que é uma descrição da realidade,
pois de fato existem o Executivo, o Legislativo e o Judiciário. Como fato os poderes existem, porém,
como mecanismo de auto-limitação do Estado, existem? Não, pois esses três poderes são estatais. Se
somente eles limitam a si mesmos... [...]
Montesquieu está apresentando a ideia da limitação tripartite do poder em uma teoria do poder
ilimitado. O número de autores de teoria política que simplesmente não entendem o que dizem é
muito grande. Isso acontece não porque sejam burros, mas porque a teoria política é uma teoria da
própria situação em que vivemos – não podemos nos colocar fora da situação política humana do
mesmo modo como nos colocamos fora da vida das lagartixas, as quais podemos descrever sem nos
sentirmos pessoalmente afetados por isso; a realidade política nos abrange. Portanto, é difícil – muito
difícil – em cada situação distinguir o que é um conceito descritivo e o que é um discurso de auto-
justificação, um mito auto-justificador. Essa dificuldade existe, e não devemos condenar ou
ridicularizar aqueles autores que caíram nessa confusão. Mesmo porque a confusão às vezes aparece,
se torna visível, somente depois; antes, aquilo parecia uma descrição adequada da realidade. Às vezes
é somente por seus efeitos que percebemos que tal discurso não era uma descrição, mas uma projeção.
Existem discursos que às vezes são apresentados como se fossem de auto-justificação, mas que na
verdade não são, são discursos de indução ou de influência – e aí temos uma falsidade de segundo
grau. Por exemplo, Adolf Hitler, um pouco antes da II Guerra Mundial, em 1937, declarou a um de
seus colaboradores, Hermann Rauschning, o seguinte: “Eu sei que raça não existe absolutamente, sei
que tudo isso é uma fraude, mas nós precisamos disso para criar a unidade do Estado alemão” – ou
seja, o sujeito possuia duas camadas de engano: a primeira, apresentada como uma descrição da
realidade, de uma realidade biológica, mas que era um discurso de auto-justificação; e a segunda, que
era apresentada como um discurso de auto-justificação, mas que era um discurso somente de indução
ou influência.
Do mesmo modo, os americanos se juntam aos russos para atacar a Alemanha alegando que a malvada
Alemanha havia invadido a Polônia – de fato, a Alemanha havia invadido a Polônia, mas acontece
que a URSS também a havia invadido junto com a Alemanha. Então, vejam que coisa estranha, como
descrição da realidade valia, embora só parcialmente; como auto-justificação é que não valia. Era
uma descrição da realidade porque, de fato, a Alemanha havia invadido a Polônia. Como auto-
justificação não servia, porque a URSS era um dos invasores, que estava reagindo contra o outro.
O amplo uso da falsificação, da mentira, do engodo em política não deve nos assustar absolutamente
– o único risco que corremos é o de cair dentro de uma malha tão grande de mentiras que, para
encontrarmos um alívio, nos apeguemos a uma delas como se fosse verdade para declararmos que as
outras é que são mentiras; devemos nos resguardar disso. É melhor ficar na confusão durante um
tempo, permanecer na confusão conscientemente, do que cair em uma falsa explicação tranquilizante.
Na verdade, quando escavamos os discursos de indução e de auto-justificação em busca da realidade
efetiva que está em jogo, a coisa nos aparece bastante problemática.
Se fizermos isso com o problema entre Israel e os palestinos: “Os dois estão alegando direitos
históricos, mas ambos são Estados de formação bem recente, e ambos foram formados artificialmente
por um terceiro poder que se chama ONU. Portanto, a legitimidade da existência deles depende de
algo chamado ONU. E de onde ela tira a sua autoridade? Que exatamente é a ONU? Podem dizer que
a ONU é um agregado de Estados soberanos. Mas o que é um Estado soberano? É um Estado acima
do qual não há mais nada. Mas se na ONU existe algo chamado Tribunal Penal Internacional, então
todos os Estados que aceitem sua jurisdição estão submetidos a ele e, portanto, não são soberanos
evidentemente. Quer dizer, então, que no mundo atual só existe um Estado Soberano, que é aquele
que não assinou o acordo do Tribunal Penal Internacional, o EUA. Logo, Israel e a Palestina não são
Estados soberanos”.
Se pensarmos bem, a ONU é apenas um órgão burocrático, ela não tem tropas, não tem armas
atômicas, não tem nem território e, no entanto, ela é um patamar de soberania superior ao dos Estados
que a compõem, tanto que ela pode julgá-los, enquanto eles não podem julgá-la. Não é uma situação
estranha? Como explicaremos esse fenômeno chamado “ONU” a partir do conceito de soberania?
Temos aí outro tipo de fenômeno, que não existia antes e que requer um estudo em separado.
Vamos supor que, de todas as aulas que dei até aqui, vocês não tenham aprendido nada, se vocês
aprenderem apenas isso – que para se entender qualquer coisa é preciso estudar muito; que é melhor
não se ter nenhuma opinião até que se possa chegar a uma conclusão – eu me darei por satisfeito.
Porque eu sei o quanto é difícil depois que se forma uma convicção sem conhecer o assunto o sujeito
livrar-se dela.
Quando tinha dezoito anos de idade, eu entrei para o Partido Comunista e fiquei lá durante três anos.
Esses três anos me criaram uma confusão mental de vinte anos pela frente, pois eu já tinha tomado
posição – teoricamente, eu já sabia qual era o lado certo e o lado errado, já sabia tudo, na minha
cabeça. E depois para desmontar isso? Como faz? Só depois que eu tomei posição, foi que me
perguntei o que estava acontecendo realmente. Seria muito mais fácil eu chegar a alguma conclusão
se não tivesse tomado nenhuma opinião no começo.
Hoje em dia, a juventude é convidada a tomar posição. Qualquer político se dirija à plateia diz: “Nós
dependemos de vocês! Vocês é que são o futuro! Vocês são maravilhosos!” – como se o fato de o
sujeito ter nascido depois lhe conferisse alguma sabedoria em especial. Ora, se considerarmos todas
as ideologias de massa, as ideologias assassinas do século – nazismo, fascismo, comunismo –, todas
elas, se dirigem essencialmente aos jovens. Quem vocês acham que iam queimar loja de judeu na
Alemanha? Os velhinhos? Não. Eram todos moleques! Tenham cuidado com a juventude. Violência
política é coisa de gente jovem – isso é um fato, não uma interpretação.
Aluna: A ONU é um Estado soberano?
Olavo: Eu não sei. A ONU não é um Estado, ela é um poder soberano.
Aluna: Mas os EUA, quando enfrentaram esse “Estado” declarando guerra ao Iraque, eles
enfrentaram o mundo todo e desfizeram a figura de soberania na ONU.
Olavo: Bom, de fato se desfez. E, no fundo, no fundo, a invasão do Iraque foi feita mais por causa
disso do que para [qualquer outra coisa]; o assunto era mais a ONU do que o Iraque, se você quer
saber. Se os EUA cedessem à ONU naquele ponto, então, virtualmente teriam cedido a sua soberania
– era isso que estava em discussão, e ainda está.
Até hoje, ao longo da história, para que um Estado conteste a soberania do outro, ele precisa ter muito
armamento, uma população grande, um território extenso, muita riqueza, além de custar muito
dinheiro contestar a soberania do outro. Vejam, para a Alemanha, que estava armada até os dentes,
invadir a Tchecoslováquia, que só tinha estilingue, já custou um dinheirão; deu trabalho e causou a
morte de muitos alemães. Qualquer contestação da soberania alheia sempre se fez ao preço do sangue
dos dois [envolvidos]. De repente, os caras inventam um jeito de eliminar a soberania através de um
simples papel, sem precisar ter tropa, nem dinheiro, nem coisa alguma – “Fazemos aqui uma votação
e estabelecemos do Tribunal Penal Internacional e pronto, acabou a sua soberania. Nós, que não temos
soldado algum, mando em todos vocês”. Essa é uma modificação tão profunda, que é espantoso que
esteja acontecendo diante dos nossos olhos sem nenhuma discussão. Com o episódio do Iraque, pode
ser que ninguém tenha ganhado coisa alguma com isso, mas pelo menos uma coisa ganhamos:
apareceu a questão! Pois nunca se fez uma mudança tão grande na estrutura política; ela não é secreta,
mas é feita quase que de maneira hipnótica. As pessoas repentinamente se atentaram para o fato de
que não podem mais tomar decisões autonomamente, que o governo delas não mais está ali, está em
Genebra.
Vocês sabiam que todos os programas educacionais do mundo são impostos pela ONU? Se um país
decidir que não quer mais ensinar essa porcaria para as crianças, que vai ensinar outra coisa? Se ele
fizer isso, ele está liquidado: “Ah, é? Você quer fazer o seu próprio programa educacional? Então
acabou o dinheiro do Banco Mundial, acabou o dinheiro do FMI etc.” – ou seja, não tem mais
dinheiro, não tem mais isso, não tem mais aquilo, não tem mais nada, e ainda fazem campanha contra
o país, acabam com ele na mídia internacional.
Vejam, não podemos chamar isso de imperialismo, pois não é um Estado que está mandando nos
outros, é um órgão burocrático. Não podemos chamar de guerra, pois um dos lados não tem tropa.
Contudo, é um assalto ao poder – eu não sei que gênero de fenômeno é [esse], mas é um tipo de
tomada de poder por via burocrática. Certamente é o fenômeno mais esquisito e, eu acho, o mais
importante que está acontecendo. Basta observar, pelas consequências que isso terá: nunca [na
história] existiu um poder mundial, e esse está se formando quase de graça. Quando a URSS quis
dominar metade da Europa, ela dominou; ela se expandiu, mas custou dinheiro e morreram muitos
russos – eles pagaram um preço por isso. Os EUA, quando se expandiram, quando entraram em guerra
com o México, tomaram o Texas: morreram americanos; eles pagaram um preço por isso. Já esse
pessoal da ONU não, eles simplesmente assinam um documento e pronto: o poder deles se multiplica
por mil, se transforma em poder mundial, sem custos e sem discussões.
Aluna: Atualmente o poder deles está diminuindo, não é? Houve uma queda...
Olavo: Diminuiu, mas não se quebrou. Por quê? Os EUA deram uma porrada forte na ONU, mas em
seguida alisaram. Nós não sabemos direito ainda quais são as relações entre a ONU e os EUA. Os
EUA estão realmente contra a ONU ou há alguma treta por trás? É briga mesmo ou é briga de
comadre? É difícil saber.
Agora, no Brasil ninguém sabe nada e nem quer saber – esse é o problema. O Brasil é o país onde
todas as notícias chegam ao contrário. Nos EUA, se observarmos os sujeitos mais conservadores, eles
são nacionalistas e contra a ONU, contra a tal da Nova Ordem Mundial. Por que eu sei disso? Eu
tenho informação, eu leio diretamente a mídia americana. Quando observamos a imprensa brasileira,
parece que os EUA é quem são a NOM. Mas, ora, é o contrário! Que raios de coisa é essa? Estamos
num país de loucos, evidentemente! Não sabemos nada do que está acontecendo no mundo. Estamos
todos cegos e dando tiros a esmo. Não há estudo sério, não há discussão séria. Nesse sentido, nos
últimos 20 ou 30 anos, o Brasil regrediu a um nível abaixo daquele dos anos 50.
Nos anos 40, o Getúlio Vargas estava perfeitamente consciente – pensem o que quiser de Getúlio
Vargas, não estou fazendo apologia ao homem – e sabia toda a situação mundial, sabia jogar de um
modo que tirássemos vantagem [dela]. Ele era um homem de formação fascista, mas, quando chegou
na hora, ele fez as contas e pensou: “Qual é o lado que dá mais vantagem?” – da noite para o dia ele
passou para o lado americano. Em troca disso ganhamos a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN),
ganhamos empréstimos, navios, um monte de coisas – a indústria brasileira começa graças a isso.
Então, ele era um homem que sabia jogar com as forças em atuação no mundo, ele compreendia a
situação mundial e sabia jogar [dentro dela].
Hoje, na esfera do governo, do parlamento, sequer da mídia, eu não vejo ninguém que saiba dessas
coisas. Às vezes dou essas informações para as pessoas, eu falo: “Quem chega e fala em NOM nos
EUA, o que o americano ouve?” – “NOM? Isso é coisa desses malditos socialistas da ONU que
querem tirar a nossa soberania, e com nosso dinheiro!”. Mas, aqui no Brasil, que é NOM? “É o
imperialismo americano que quer tomar conta da gente.” – não é possível, há algo errado aí.
Aluna: Mas é a própria mídia que milita...
Olavo: Mas acontece que esse pessoal que está militando também não sabe! Eu sou jornalista há 37
anos, meu Deus do céu! Quando me aproximo dos jornalistas e falo dessas coisas, eles quase caem
de costas. Daí eu mostro uma pilha de livros enorme: “Olhem só, está tudo aqui”.
Vocês sabem o que faz o brasileiro para saber o que acontece nos EUA? Ele lê um só jornal – ele lê
o The New York Times. Por quê? Porque imagina que o The New York Times é uma espécie de Rede
Globo dos EUA, que alcança 70% da audiência. Quando, na verdade, dentro do EUA, ele tem um
alcance mínimo. Lá não há uma “Rede Globo”. Não há ninguém que tenha 70% da audiência – mas
1%, 2%. Para saber o que se passa nos EUA, é preciso ler cinquenta jornais diferentes. Não existe um
[veículo de comunicação] que seja o “porta-voz dos EUA”. O brasileiro, ao analisar a situação do
outro a partir da própria situação existencial, faz a comparação errada. Para sabermos qual a opinião
dominante do Brasil basta ligar a televisão na Globo: “Catapimpa! Já sei”. Quem é que não sabe que
o candidato da Globo sempre ganha? Existe alguma rede de televisão ou cadeia de jornal nos EUA
com tal poder? Não há nenhuma! Eles sequer imaginam isso. Quando contamos para um americano
que existe isso no Brasil, ele cai de costas!
Nos EUA, quando morreu o Roberto Marinho, em todos os jornais saiu a notícia: “Morreu o
verdadeiro Cidadão Kane, o único que existiu!”. Mesmo o Hearst, em quem o Cidadão Kane foi
inspirado, não tinha poder nem sobre 10% da opinião pública americana.
A mídia brasileira, a classe jornalística, é muito mal informada. Os julgamentos que fazemos
atualmente são todos absolutamente fantasiosos.
Aluno: A ONU, conforme você falou, está criando um poder soberano. Mas isso se deve aos governos,
que não querem mais a soberania para eles mesmos? O que eles querem não é criar mais poder
soberano, através de leis, para governarem-se a si mesmos?
Olavo: Mas soberania é isso. Soberania, pelo que sei, é um poder territorialmente organizado, de
modo que ninguém de fora opine sobre o que se faz dentro do território.
Aluno: Mas, através do regime democrático, uma pessoa faz essas leis e políticas em vista da
soberania. Não estaria a ONU fazendo o mesmo com o mundo?
Olavo: Não. A ONU não tem território, não tem exército, não tem riquezas.
Aluno: Mas ela está, de fato, fazendo isso.
Olavo: Isso é que é o estranho. Estão criando um novo poder soberano, superior a todos – sem gastar
um tostão e sem pagar preço algum por isso –, através de um truque burocrático.
Aluno: Sobre a questão da informação no Brasil: você falou que os americanos acham que são os
socialistas é que estão fazendo isso.
Olavo: Claro. Nos EUA todos estão persuadidos que a NOM é coisa de socialista. No Brasil, todos
acham que é coisa do imperialismo americano.
Aluno: Mas mesmo a invasão do Iraque, o americano não acha que pode ser uma guerra
diplomática?
Olavo: Queria eu saber. Porque parecia que haveria um enfrentamento entre os EUA e a ONU. Parecia
que eles iam quebrar a NOM. No entanto, eles a quebraram um pouco, mas em seguida a alisaram.
Vocês sabem o que estava combinado às escondidas? Alguém tem ideia? Não, não sabemos; ninguém
sabe. Vamos levar uns 10 ou 15 anos para saber – espero que não saibamos tarde demais.
Aluno: Você falou [...] [inaudível].
Olavo: A regressão intelectual aqui é fantástica, e isso eu os asseguro. Eu já estudei muito história e
nunca vi isso acontecer com país nenhum.
Aluno: Pois então, [inaudível].
Olavo: Isso começou há muito tempo. Eu acho que, por exemplo, durante o regime militar, o governo
estava preocupadíssimo com as guerrilhas. Ele avançou para cima dela e encarou o problema
exclusivamente do ponto de vista militar, atacando-as o quanto pôde. Mas daí apareceu um camarada,
Golbery do Couto e Silva, com algo chamado “A Teoria da Panela de Pressão”. A “Panela de Pressão”
é o seguinte: “Não podemos apertar por todo o lado. Temos de deixar uma válvula de escape. Que
vamos deixar como escape? As universidades”. A universidade ficou sendo – não tem aquela
brincadeira de pega-pega? – o pique: que é onde os comunistas entram para fazer o que quiserem.
Resultado: o Golbery usou as universidades como se fossem uma privada. Assim, a universidade se
transformou num lugar de propaganda comunista – que na época era inócua, pois era restrita apenas
à universidade. E até hoje só vemos discussão comunista lá dentro: não se pode discutir mais nada,
não existe mais nada. Tanto que o Brasil é o país que tem mais intelectuais marxistas per capita –
mais até que na URSS. E não dá para discutir seriamente nada nesse ambiente – claro que não, eu já
fui comunista, eu sei como é que é isso, é um negócio de sacrossanto.
Essa situação, que em parte é culpa do regime militar e em parte é culpa dos próprios intelectuais
comunistas que transformaram aquilo no seu quintal, e que foram pedindo cada vez mais verbas
públicas, mais e mais dinheiro, já virou tudo uma palhaçada. Porém, esse é só um dos motivos;
existem outros, mais involuntários. Aqui, no caso, apontamos apenas dois culpados nominais: o
regime militar, que pelo seu total desprezo pelo lado cultural tratava a coisa toda apenas como se
fosse um problema policial militar; e os comunistas, pelo seu oportunismo: “Oba! Vamos pegar a
universidade e só nós poderemos falar” – isso mata uma universidade, pois ela não pode ficar na mão
de nenhuma corrente – nenhuma! Por quê? Porque ela não foi feita para moldar a cabeça das pessoas
em favor de um ou outro partido, mas justamente o contrário. A universidade tinha de ser o pique,
mas não o pique do governo militar, e sim o pique do debate ideológico: “Nós brigamos, concorremos
politicamente lá fora. Lá fora é que nós lutamos pelo poder, aqui não. Aqui nós queremos ajudar-nos
uns aos outros, queremos compreender o que se passa. Se você é marxista, conservador, católico, não
sei o quê, não interessa! Estamos aqui para estudar e, portanto, vamos ajudar-nos uns aos outros”.
[Contudo, foi o contrário], a universidade se transformou em disputa pelo poder: “Nosso partido tem
de mandar na universidade e botar os outros para fora”. Não existe nenhuma universidade no mundo
que sobreviva a uma coisa dessas – isso é impossível.
Se o governo tivesse feito ao contrário? “Nós vamos tomar a universidade e tirar de lá todos os
comunistas” – [se tivessem feito isso]? A teriam matado do mesmo modo!
Por mais que se odeie comunista, sempre pode aparecer um que ensine algo que não se sabe.
Eu não morro de simpatia pelo comunismo, mas eu nunca aprendi tanto sobre história colonial como
no livro de Jacob Gorender, O escravismo colonial: é o melhor livro de história colonial que existe;
é um livro indispensável. “Ah não, eu não vou ler esse livro porque o autor é comunista” – então
vocês vão deixar de entender o assunto só porque não deixou o comunista falar.
A universidade é o lugar onde todo mundo tem de ter total liberdade de falar com calma e paciência,
porque não se trata, [o discurso], de persuadir ninguém, na universidade; persuadir é lá fora, no
palanque. Dentro da universidade não se discute para persuadir, mas para aprender. Na discussão
política, o interlocutor está louco para vencer o adversário. Na discussão científica é o contrário, o
interlocutor está louco para que o adversário lhe mostre o seu erro – se ele puder. Se não, não há
diferença nenhuma entre concorrência política e debate científico. O critério de validade de uma teoria
científica é a resistência que ela possa oferecer honestamente às objeções. É o famoso critério da
falseabilidade de Popper: “Eis aqui minha teoria. Se aparecer uma objeção capaz de impugná-la, ela
não vale mais”. Alguém que tenha uma teoria científica não a defende como se defende uma fé, mas
ao contrário, ele a expõe a tudo quanto é ataque. Ele está louco para descobrir: “Se houver uma falha,
pelo amor de Deus, me mostrem!”. A universidade tem de ser um lugar onde não só haja a total
liberdade [de pensamento], mas sobretudo um lugar onde exista o convite para que as pessoas pensem
diferente. Por quê? Se o sujeito está em sua própria linha de investigação, ele pode errar pela própria
limitação, então é preciso, é absolutamente necessário, que venha um sujeito de uma outra direção
completamente diferente e lhe mostre o objeto por um outro aspecto, senão a ciência não progride,
meu Deus do céu! No Brasil, a universidade virou partido político.
Aluna: Você falou sobre a dominação ideológica que a mídia brasileira impõe ao nosso povo e que
nos EUA eles não entendem isso. Mas como você explica essas figuras políticas norte-americanas
que têm perfil hollywoodiano e são sempre eleitas?
Olavo: Não, não são sempre eleitas, não!
Aluna: Assim, aquela figura do caubói etc.
Olavo: Não, não são sempre eleitos. Veja a carreira do Ronald Reagan: ele era político desde o início.
A carreira dele, que foi o que assegurou a sua ascensão política, foi a carreira de sindicalista, não foi
a carreira de ator – presidente do sindicato dos atores, desde jovem ele era interessado nisso. Agora
aparece repentinamente o Schwarzenegger [2:00] do nada: “Ah, eu quero ser governador!” – você acha
que está sendo fácil? [Acha] que no Partido Republicano todo mundo aceitou? Não. Foi ataque de
tudo quanto é lado, ninguém gostou disso no Partido Republicano. Pode ser o Papa, pode ser o E.T.,
apareceu um camarada sem carreira política anterior, ninguém gosta.
Aluna: Mas a população americana gosta dessa figura de caubói.
Olavo: Não. Você considere os índices de sondagem de opinião: a coisa não está nada fácil para o
Schwarzenegger. Se ele subisse desde baixo...
Por exemplo, alguém que teria alguma perspectiva: o Clint Eastwood; ele foi prefeito de uma pequena
cidade.
“Muito bem! Para que se fale na sua candidatura, mostre que você é capaz de ser prefeito e daí –
quem sabe? –, o elejamos deputado, depois senador, e no fim até governador ou presidente. Mas sair
do nada?! Sair das telas para o governo do Estado? Epa, não é assim, não! Não vai ser fácil!”.
Vejam como é terrível. O cara se meteu a gostosão e o que aconteceu? Na semana seguinte, apareceu
um sujeito dizendo: “Eu descobri que seu pai era nazista” – isso apenas uma semana depois de lançada
a candidatura! Você acha que é fácil? Por sorte dele, ele mal conhecia o pai. [risos] É verdade! O pai
dele morreu quando ele tinha 3 anos. Ele, então, pôde dizer o seguinte: “Vocês investiguem, então, a
vida do meu pai. Me contem o que descobrirem, pois eu não sei nada” – ele não tem culpa nenhuma.
Mas, que queima o sujeito, queima, né?! Ele deu a cara à tapa, se achando o gostosão, mas não: “Você
não vai fazer sucesso. Vai levar muita porrada!”. E não era porrada do outro lado, do Partido
Democrata, era do Partido Republicano.
Nós temos uma ideia absolutamente falsa até sobre cinema americano.
Aluna: A maioria da população norte-americana...
Olavo: Não vai ao cinema! [risos] Cinema, hoje, é coisa para moleque.
Aluna: Eles concordaram com a guerra contra o Iraque, por exemplo. Isso de caubói, de guerra...
Olavo: Mas como isso? Brasileiro não faz ideia do [que é o] americano. Brasileiro mede o americano
pela sua própria burrice. As pessoas simplesmente não acompanharam os debates internos. Vocês
acham que nos EUA é fácil impor uma coisa dessas? Eu nunca vi um jornalista brasileiro que, [pelo
menos] uma vez que seja na vida, tivesse lido um único debate parlamentar americano sobre o que
quer que fosse. Eles possuem estereótipos, às vezes pejorativos, às vezes invertidos, e acreditam que
é isso o que se passa no mundo – mas estão todos loucos! Este país aqui está no mundo da lua –
mesmo! Por quê? Temos poucos jornais; as empresas jornalísticas são poucas e endividadas, elas não
têm autonomia. E nós, com o velho hábito de chutar, de falar do que não sabemos. Resultado: quem
não quer saber o que está se passando no mundo, é só ler a imprensa, a mídia brasileira.
Mas quem quiser saber, vá até o EUA, leia a mídia de lá e compare. Para saber o que é a mídia
americana dá trabalho, porque não há um jornal no qual se possa dizer: “Este aqui é representativo.
Se eu ler esse, lerei todos os outros” – não há isso lá.
Lá, no EUA, existe outro fenômeno, que é o chamado “jornalista sindicalizado” – o que não quer
dizer que pertença a um sindicato, mas que é um sujeito que trabalha como autônomo e vende a sua
coluna ao sindicato, que a redistribui a 700/800 jornais –, isto é, existem sujeitos que não escrevem
em nenhum jornal importante mas que têm mais leitores do que o The New York Times – isso não
existe no Brasil.
Qual o nome do jornalista americano mais lido, o mais influente? No Brasil ninguém sabe disso, eles
acham suficiente acompanhar os grandes colunistas do The New York Times. Resposta: é um sujeito
chamado George Will, que não escreve em nenhum grande jornal, mas em 1200 jornais pequenos.
Então, a mídia americana precisa ser estudada como ela é, para [que] se [possa] entender como [é
que] funciona, para se entender como é que se forma uma opinião lá – é muito complicado! As pessoas
aqui, [no Brasil], acham que americano é besta; que [basta] um sujeito divulgar um anúncio, que basta
aparecer vestido de caubói que todos o aceitam – ai meu Deus do Céu! Não diziam aqui no Brasil que
o George Bush era inculto e burro? “O quê?!”, [eu retrucava], “vocês sabem o que é um estudo
universitário nesse circuito que eles chamam de Ivy League? Vocês têm ideia do que é isso? Vocês
não têm ideia”.
Aluna: Gostaria de fazer algumas considerações, pois eu sei que isso embaralha bastante a ordem
de pensamento...
Olavo: É, vamos com calma. [risos] A tolerância para com o estado de dúvida é condição sine qua
non de uma carreira de estudos.
Aluna: Quando você fala dos tipos de discursos, da descrição da realidade, da questão da
neutralidade, esse debate até agora, me parece, fala da nossa incapacidade humana de descrever a
realidade no momento em que a vivemos.
Olavo: Incapacidade, não. Dificuldade, apenas, [pois] nós conseguimos.
Aluna: Muitas vezes, é uma dificuldade conseguir fazer uma leitura adequada do que você vem nos
expondo sobre a ONU, os EUA, o socialismo ou comunismo – talvez porque tenhamos impressões, e
não descrições da realidade – e que seria melhor cada Estado ser independente e soberano. Por que
não podemos, em tese, sermos uma única coisa como o corpo humano?
Olavo: Bom, todo o mundo sabe que eu detesto a ideia de Estado mundial. E o pessoal uma vez me
perguntou por que eu detesto e eu respondi: “Só por um motivo: se houver um Estado só, cadê o
direito de asilo?”. [risos]
Aluna: Pois é, aí [inaudível] na lua.
Olavo: Vou pedir na lua, é. Então, eu não gosto só por causa disso. [risos]
Aluna: Quer dizer que você acha importante que tenhamos um lugar de asilo? Será que isso...
Olavo: Para mim é fundamental! [risos]
Aluna: Aí vem a liberdade, né. E a liberdade para que...
Olavo: Para o meu próprio trabalho, para a minha própria vida, eu dependo absolutamente da
liberdade de opinião.
Aluna: Ok. Então a liberdade de opinião de certa forma também está podendo fazer parte da
descrição da realidade. Eis que vem uma questão que eu acho que é fundamental: todos nós fomos
formados dentro de uma cultura e para nós, o estupro, o assassínio de criancinhas, são coisas
absolutamente fora dos nossos padrões; talvez nunca tenha existido sociedade que aceitasse isso.
Olavo: Houve muitas que aceitaram, que acharam normal.
Aluna: Mas para nós é uma coisa abominável, porém, para outros padrões, [pode ser normal]. E
outras coisas a gente pode colocar também nessa questão. Mas como fica essa questão nossa questão
da [inaudível] com relação a isenção ou a neutralidade na hora de descrever a realidade?
Olavo: Não na neutralidade. Eu acabei de explicar que não é necessária neutralidade. Aliás, a
neutralidade bloquearia o pensamento humano.
Primeiro, não podemos fazer ciência se não temos uma opção pela verdade contra a mentira e o erro.
Se não queremos a verdade, tanto faz a teoria verdadeira ou a teoria falsa, aceitamos as duas – acabou
a ciência. Portanto, já existe uma opção moral fundamental no início da ciência – a opção pela verdade
é, sem dúvida, uma opção moral.
Segundo, se não somos capazes de discernir o bem e o mal, não somos capazes de graduar
qualitativamente duas teorias.
Aluna: Compreendi. O senhor acredita que o caráter do cientista tem que ser absolutamente neutro.
Olavo: Não! Eu acabei de dizer o contrário. Eu disse que não existe neutralidade científica – e não é
para existir. O que tem de haver é honestidade, e isso não tem nada a ver com neutralidade. Entendeu?
Por exemplo, se aqui houvesse um juiz julgando uma sessão: ele seria neutro? Não. Ele não é neutro.
Ele é contra o crime. Ele só não sabe se, no caso em questão, houve crime ou não – para ele saber
isso é preciso que ele seja contra o crime. Não existe neutralidade. Existe apenas a honestidade.
Nos últimos duzentos anos, houve no mundo inteiro um florescimento de ideologias de massa, de
movimentos brutais amparados numa propaganda violentíssima – as pessoas não têm sequer ideia da
extensão da propaganda que isso alcançou. Às vezes nós temos uma certa dificuldade para tentar ser
honesto; existe muita descrença em relação à inteligência humana. Todo o mundo, qualquer moleque
de rua, se aproxima da gente e diz: “Não existe verdade. Tudo é relativo. Mas a minha opinião é que
etc.” – ou seja, a inteligência humana é relativa, mas a opinião dele é absoluta. Eu prefiro pensar o
contrário: a inteligência humana tem uma capacidade ilimitada, ela é capaz de descobrir a verdade,
porém eu frequentemente erro, eu já errei mil vezes; mil vezes eu tive que admitir que não é assim.
Não há vergonha nenhuma nisso – ao contrário, a ciência vive disso.
Um dos exemplos mais bonitos da história foi o do famoso antropólogo Lucien Lévy-Bruhl. Quando
tinha 32 anos, ele apresentou uma teoria de que o homem primitivo, tribal, tinha estruturas lógicas
diferentes da do [homem] civilizado. Ele apresentou aquilo com tamanha documentação etc. – fez
um sucesso danado, vendeu livro para caramba, ganhou um prêmio na Sorbonne. Quando ele tinha
70 e poucos anos, ele pediu outra sessão na Sorbonne e disse: “Eu estava errado. Não é bem assim”.
O prestígio científico dele não caiu, ao contrário, aumentou. Portanto, não há problema em errar. Nós
precisamos apenas de sinceridade e honestidade – não precisamos de neutralidade. Compreende?
O treino básico da ciência é a sinceridade no sentido mais banal e pessoal da coisa. Uma pessoa que
perde a capacidade da sinceridade já no começo da vida, fica com a inteligência lesada para sempre.
Toda a honestidade intelectual consiste em não dizer que sabe aquilo que não sabe e nem dizer que
não sabe aquilo que sabe – é só isso. Não precisa ter pretensões de neutralidade e nem de ser superior
ao restante da espécie humana. Não é preciso sequer ser superior à cultura em que se está para poder
julgá-la, porque da cultura moderna – de qualquer cultura moderna – faz parte um certo coeficiente
de oposição interna: ela julga a si mesma e às vezes se condena.
Aluna: É por isso que isso que olhar para trás é mais fácil, né?
Olavo: Certamente.
Aluna: É nesse momento que é difícil entender o que é...
Olavo: Claro! Mesmo porque você não pode esquecer que todo poder – mais tarde nós vamos entrar
na fenomenologia do poder; eu vou falar como é que se forma o Estado, o que é o poder – é secreto
por definição. Um poder que é totalmente público, deixa de ser um poder, e é transferido para quem
o conhece. As pessoas falam: “Ah, nós precisamos ter um poder transparente” – mas poder
transparente, meu filho, é o quadrado-redondo: não existe e nunca vai existir. Sempre existe um certo
coeficiente de ocultação e, portanto, às vezes é preciso esperar passar certo tempo. Quando passa o
tempo, e abre-se a caixa preta, às vezes leva-se cada susto.
Tem outra pergunta?
Aluna: Só uma coisa. Você falou da sinceridade: essa sinceridade sempre se mistura com juízo de
valor, não é? Eles acabam se misturando...
Olavo: Não. Ela, [a sinceridade], é [em si] um juízo de valor. O juízo de valor não se opõe à atividade
científica, ao contrário, ele é inerente a ela; a ciência começa, o primeiro juízo de valor é este: “Eu
prefiro antes a verdade do que a mentira” – sem isso não tem ciência.
Aluna: Mas aí, na verdade, a sinceridade vai acabar operando à margem de uma determinada
situação.
Olavo: Não. Ao contrário. A sinceridade é a base de qualquer análise verdadeira possível.
O aprendizado da sinceridade começa na infância – aliás, esse é o assunto da próxima aula, um curso
de Ética. Quando alguém se reconhece como sujeito de seus atos – quem fez o que você fez foi o
próprio, não foi outro: é difícil assumir isso; uma criança pequena não sabe isso. Se perguntarmos
para um menino de três anos “Quem quebrou isso aqui?”, ele vai dizer “Não fui eu”. O que ele quer
dizer com esse “Não fui eu”? Sabemos que foi ele, mas ele diz “Não fui eu” – e [alguns às vezes]
falam “Você está mentindo, desgraçado!”. Por que o menino disse “Não fui eu”? Porque ele não quer
ter sido. Ele não conta a história tal como aconteceu, mas tal como ele gostaria que acontecesse – essa
é a realidade dele. Então, para alguém chegar a mentir, ele precisa sabe exatamente a diferença entre
o real e o ideal – coisa que a criança não sabe ainda. Para a criança, ser sincero não é dizer o que
realmente aconteceu, é dizer o que ela realmente sente. E o que ela realmente sente é: “Eu não gosto
de ter sido este. E, portanto, não sou.” [risos]
Aluna: [inaudível]
Olavo: Mas ele não está errado por fazer isso. Ele estará errado se continuar a fazer isso depois que
tiver a noção clara do que é, por assim dizer, uma narrativa histórica e uma expressão do ideal. Aos
três anos ninguém pode ter isso – portanto, a criança pequena não mente; diga ela o que disser, ela
está dizendo a verdade do modo dela.
Isso significa que existe um aprendizado da sinceridade e que não é fácil. Se o nosso aprendizado foi
corrompido durante a infância por maus hábitos da família, ou da própria sinceridade, ou nossos
mesmos, temos de nos consertar. Se vocês querem entrar no campo da ciência, se querem fazer algo
que preste, não pensem que a honestidade científica é diferente da sinceridade pessoal, pois não é; é,
na verdade, a mesma coisa. Uma verdadeira e séria investigação científica, seja em ciências naturais,
seja em ciências políticas, é feita, por assim dizer, com o coração na mão, sem nenhum fingimento.
Isso não é opinião minha, isso eu posso comprovar, a coincidência da sinceridade com a descoberta.
Por exemplo, existe um cientista chamado Michael Faraday. Ele tinha um diário de laboratório
imenso de oito volumes, onde ele anotava todas as hipóteses, tudo o que ele fazia. Dos oito volumes,
sete e meio são de erros, de pistas erradas que ele seguiu – sem brincadeira! “Ah, vamos ver se é
assim. Não é. Vou ter que voltar atrás” – ninguém faz isso sem uma grande sinceridade.
Agora, nas ciências políticas, nas ciências sociais e na filosofia em geral, a dose de charlatanismo é
muito maior. Por quê? Embora não sejam ciências novas, embora existam há muito tempo, elas são
problemáticas em si mesmas, porque elas nos comprometem muito mais. É mais difícil ser sincero
em uma coisa que mexa diretamente com o nosso interesse, com os nossos complexos, mas não é
impossível. Existem inumeráveis exemplos disso. Eu passei anos estudando a obra de Aristóteles, e
quanto mais eu a estudo, mais eu vejo a brutal sinceridade daquele homem.
Aluna: Aí vamos misturar verdades e sentimentos. E, eu aprendi que não se pode misturar ciência
com sentimentos. São duas coisas opostas.
Olavo: Mas como é que não vai misturar? Essa é a primeira coisa a se fazer. Nós não as separamos,
não. Nós simplesmente transcendemos o sentimento egoísta e mesquinho por outro sentimento
melhor. O próprio amor à ciência é um sentimento, né? A paixão pela verdade não é um sentimento?
Quando vemos os diários de Faraday, por exemplo, um sujeito que anos a fio perseguiu a verdade
através de mil erros – ele devia ter uma paixão imensa. Não se trata de abolir o sentimento. O
problema não é ficar sem sentimentos, mas é antes aquilo que Jesus Cristo enuncia na Bíblia – é uma
frase fantástica: “Na verdade, amais o que devíeis odiar e odiais o que devíeis amar”. Não se trata de
abolir o sentimento, mas de amar o que é digno de ser amado e odiar o que é digno de ser odiado –
isso tem de ser aprendido; não se nasce sabendo isso, é por experiência e erro que se aprende.
Aluna: Aí que está [o problema]. O que dizer do povo brasileiro, então? Ele aprendeu errado o que
é a verdade e o que não o é?
Olavo: Não o povo brasileiro. Se considerarmos a quase totalidade do povo, que é bastante inculto, e
que exerce uma atividade na qual é necessária uma dose ínfima de conhecimento, esse está
perfeitamente na realidade! Quem é que pode dizer que o pipoqueiro não sabe fazer pipoca? Ele sabe.
Ou que o varredor de rua não sabe varrer a rua? Ele sabe. O problema começa é nos andares
superiores. Quem está maluco não é o povo brasileiro, é a elite letrada brasileira. Se o povo estivesse,
todo ele, enganado, esse país já tinha acabado há muito tempo. Isso aqui só se mantém graças à
tremenda estabilidade e conduta do povo brasileiro – que é um povo terrivelmente rotineiro, capaz de
continuar fazendo as mesmas coisas durante muitos anos, com uma paciência fora do comum e sem
ficar louco – o que é um grande mérito. Porém, da elite para cima, do curso secundário para cima, é
que começa a loucura. Nós temos os piores intelectuais, a pior elite letrada da face da terra.
Vejam só que coisa. Eu compro todo ano o Anuário Científico da Enciclopédia Britânica, onde sai
uma lista dos prêmios científicos dados no mundo inteiro, nela encontra-se toneladas de pessoas da
Zâmbia, da Ucrânia, da Serra Leoa, do raio-que-o-parta, mas brasileiros nunca. Com todos os nossos
180 milhões de habitantes, território do tamanho de um continente e verbas de pesquisa monstruosas.
Eu vivi na Romênia; lá foi que eu soube o que era miséria. Ao mesmo tempo, [lá], eu via a dedicação
científica, a paixão científica daquelas pessoas. Anualmente há, [na Europa], vários torneios de
matemática e a cada dez torneios, os romenos ganhavam sete – e isso sem ter o que comer. Eu cheguei
a falar para eles: “Eu não sei onde enfio a minha cabeça, de vergonha; de ver a quantidade de recursos
que temos e a nossa total incapacidade científica” – mas, na verdade, não é incapacidade, é falta de
sinceridade, falta de paixão.
Aluno: Recentemente deram o Prêmio Nobel de economia a um psicólogo – não sei se o senhor sabe
disso. Em uma entrevista que ele deu, acho que à revista Veja na época, toda pergunta que era
referente à economia, ele respondia: “Eu não posso responder, porque eu não sou economista, sou
psicólogo”. O que a gente deve pensar a respeito disso? Como é que uma pessoa dessas...
Olavo: Mas isso não é [necessariamente] o problema. O sujeito pode, com uma graduação, às vezes
fazer uma descoberta fundamental para outro campo – isso acontece frequentemente.
Pasteur fez uma descoberta médica fundamental sem entender nada de medicina, ele era químico, ora
– pode acontecer, não há nada de errado nisso. E a importância do estudo dos elementos psicológicos
na economia pode ser fundamental. O meu falecido guru, o Dr. Juan Alfredo César Müller, que era
psicólogo clínico, dizia que economia é pura psicologia. É possível. Claro que não o acompanhei
também [no assunto]. Mas não o consideremos o Prêmio Nobel mais significativo, pois existem
centenas de outros prêmios, menores e mais sérios – no Nobel ainda pesa muito o elemento político
e propagandístico, mas em geral os prêmios acadêmicos não são assim, são descobertas efetivas. A
mingua do número de brasileiros aí é de envergonhar qualquer um se considerarmos a monstruosidade
de nossas verbas universitárias.
O Brasil é o país que tem mais professores universitários per capita por aluno; há um professor
universitário para cada oito alunos – nos EUA é um para cada vinte. Nós estamos, evidentemente,
jogando dinheiro fora. Não existe uma exigência, não existe uma cobrança em cima dos intelectuais,
como há sobre os políticos. Ninguém pergunta: “Ei rapaz, você está há trinta anos aí, sentado em
cima dessa cátedra. O que você descobriu? O que você fez?” – se for ver, não fez nada. Uma vez, era
repórter na época, eu fui cobrir uma reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência
(SBPC). Como havia 20 fóruns diferentes, pensei: “Vou acompanhar um em que eu tenha mais
conhecimento, pois assim eu vou entender melhor” – que era exatamente o de psicologia. Havia 104
trabalhos: 98 eram sobre ratinhos e repetiam experiências que já tinham sido feitas na década de 20
ou 30 – veja, aquilo tudo custa dinheiro, e se eles estão repetindo pela milésima vez a mesma
experiência, então não é experiência científica, é aprendizado escolar. Como é que em uma reunião
científica se leva trabalho de escola? Ao invés de levar pesquisa científica? Isso se chama corrupção.
Isso é dinheiro jogado fora. Mas aqui, a gente pensa que só deputado é que rouba. Nunca param para
pensar em professor universitário, cientista, cineasta, ator de teatro, ator de TV, cantor etc. Nunca
param para pensar quanto custa essa brincadeira. Corrupção política, perto disso, é brincadeira. [A
corrupção intelectual] me preocupa, porque faz parte da minha comunidade. Quantos aos políticos,
eles que roubem lá; outros políticos [é quem] vão falar deles. Eu não quero falar de políticos. Eu
quero falar da minha classe. Próxima aula vamos falar de ética, logo, esse assunto é mais propício
para a próxima aula.
Entenderam qual a é distinção entre conceito e símbolo auto-justificador? Se entenderam isso, está
dada a aula.
Obrigado! [2:26:20]

Transcrição: Leandro Diniz


Revisão: Luiz de Carvalho e Rahul Gusmão

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