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Direito das Lutas

Democracia, diversidade, multinormatividade


Comitê Científico

Ary Baddini Tavares


Andrés Falcone
Alessandro Octaviani
Daniel Arruda Nascimento
Eduardo Saad-Diniz
Francisco Rômulo Monte Ferreira
Isabel Lousada
Jorge Miranda de Almeida
Marcelo Martins Bueno
Miguel Polaino-Orts
Maurício Cardoso
Maria J. Binetti
Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento
Paulo Roberto Monteiro Araújo
Patricio Sabadini
Rodrigo Santos de Oliveira
Sandra Caponi
Sandro Luiz Bazzanella
Tiago Almeida
Saly Wellausen
Direito das Lutas

Democracia, diversidade,
multinormatividade

José Rodrigo Rodriguez

1ª edição

LiberArs
São Paulo – 2019
Direito das Lutas: democracia, diversidade, multinormatividade
© 2019, Editora LiberArs Ltda.

Direitos de edição reservados à


Editora LiberArs Ltda

ISBN 978-85-9459-192-0

Editores
Fransmar Costa Lima
Lauro Fabiano de Souza Carvalho

Revisão técnica
Cesar Lima

Editoração e diagramação
Editora LiberArs
Nathalie Chiari

Capa
Fabio Costa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP

R696d Rodriguez, José Rodrigo

Direito das lutas: democracia, diversidade, multinormatividade / José


Rodrigo Rodriguez. - São Paulo : Liber Ars, 2019.
321 p. : il. ; 16cm x 23cm.

Inclui bibliografia e índice.


ISBN: 978-85-9459-192-0

1. Direito. 2. Direito democrático. I. Título.

CDD
2019-1563 340
CDU 34

Elaborado por Odilio Hilario Moreira Junior - CRB-8/9949

Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio,
das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos,
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura.
Foi feito o depósito legal.

Editora LiberArs Ltda


www.liberars.com.br
contato@liberars.com.br
Para todas as pessoas que lutaram e lutam pelo
direito democrático - Olívia e Antônio, exemplos
fundadores - todo o afeto e admiração, até o úl-
timo acorde do último violino.

Para Luiza Erundina e Olivio Dutra, o sonho da


democracia radical na prática
XXXV
Quando o governo viola os direitos do povo, a insurreição
é, para o povo e para cada porção do povo, o mais sagrado
dos direitos e o mais indispensável dos deveres.
Declaração Universal dos Direitos do Homem (1793)

“Desde a própria existência da sociedade civil, o atributo


mais belo do homem vem sendo reconhecido sem oposi-
ção, mas nem uma só vez pôde ver-se convertido em reali-
dade: a igualdade nunca foi mais do que uma bela e estéril
ficção da lei. E hoje, quando essa igualdade é exigida numa
voz mais forte do que nunca, a resposta é esta: "Calai-vos,
miseráveis! A igualdade não é realmente mais do que uma
quimera; contentai-vos com a igualdade relativa: todos sois
iguais em face da lei. Que quereis mais, miseráveis?" Que
mais queremos? Legisladores, governantes, proprietários
ricos; é agora a vossa vez de nos escutardes.
Todos somos iguais, não é verdade? Este é um princípio
incontestável, porque ninguém poderá dizer seriamente, a
não ser que esteja atacado de loucura, que é noite quando
se vê que ainda é dia. Pois bem, o que pretendemos é viver
e morrer iguais já que como iguais nascemos: queremos a
igualdade efetiva ou a morte.”
Manifesto dos Iguais (1796)

“Livre é somente aquele que quer tornar livre tudo à sua


volta, e o torna efetivamente livre por uma certa influência
cuja causa nem sempre se notou. Sob o seu olhar respira-
mos mais livremente; não nos sentimos pressionados, re-
primidos e cerceados por nada; sentimos um prazer inabi-
tual de ser e fazer tudo o que o respeito por nós mesmos
não nos proíbe.”
O Destino do Erudito (1794), Johan Gottlieb Fichte

“O lugar natural da virtude é junto à liberdade, mas não se


encontra mais junto à liberdade extrema do que junto à
servidão.”
O Espírito das Leis (1758), Montesquieu
Agradecimentos

Agradeço abaixo a todas as pessoas alunas, professoras e às instituições acadêmicas


que me incentivaram diretamente neste projeto com intensões autorais:

À UNISINOS (Universidade do Vale dos Sinos) por me oferecer um ambiente de


trabalho na Graduação e Pós-graduação (Mestrado e Doutorado) no qual pude en-
contrar a tranquilidade para uma tarefa do tamanho deste livro;

a Marcos Nobre e Ricardo Terra, os sempre entusiasmados companheiros de Te-


oria Crítica, permanentemente interessados em debater minhas ideias;

a Brian Z. Tamanha, pelo impulso inicial na trajetória que levou a este livro, a Klaus
Günther, pelo generoso incentivo a meu trabalho mais recente e a William Scheuer-
mann por debater publicamente comigo algumas das ideias presentes neste livro;

a José Arthur Giannotti, Tercio Sampaio Ferraz Jr. e Luiz Edson Fachin por
seu constante interesse em meu trabalho;

a Fabiana Severi, Marcus Dantas e Daniel Zugmann que se utilizaram de algumas


de minhas ideias para abordar alguns de seus problemas de pesquisa;

a Simone Schuck da Silva, José Renato Barcellos e Maria Cândida Simon Aze-
vedo, meus orientandos, que escolheram utilizar algumas de minhas categorias para
estruturar suas pesquisas;

a Mauricio Pedroso Flores, orientando, pela parceria na reflexão sobre Robert Co-
ver e a Winnie Bueno, orientanda pela parceria na reflexão sobre Patricia Hill Collins;

a Simone, em especial, pelo generoso empenho em me ajudar a aperfeiçoar vários


dos de meus conceitos;

às colegas e instituições que me convidaram para falar sobre minhas ideias nos últimos
anos e aceitaram debate-las, a saber, Tércio Sampaio Ferraz Jr., Fabiana Severi,
Luiz Edson Fachin, Juliano Zaiden Benvindo, Jeanine Nicolazzi Philippi, Ale-
xandre Travessoni Gomes Trivisono, Rafael Simioni, Marcelo José Doro, Ma-
theus Back, Marcos Catalan, Alexandre da Maia, Vera de Chueiri, Monique
Prada, Sandrali Bueno, Fernando Rister de Souza Lima, Mariana Fischer, Ar-
thur Stamford, Flavio Marques Prol, Bianca Tavolari, Gabriel Busch de Brito,
Grupo de Pesquisa Pura Teoria do Direito (Pará), ABRASD, REED, TST,
TRT-SP, TRT-PR, TRT-BA e AJURIS.

Parte deste livro foi desenvolvida no contexto do Projeto Temático FAPESP 2015-
02497-5, “Religião, Direito e Secularismo”.
Sumário

Introdução 11

ABERTURA – A luta ainda é por direitos? 25

I. DIREITO EM TRANSFORMAÇÃO 63

Parte 1 Democracia e Direito 63

Capítulo 1 – Forma Direito Democrático 65


Capítulo 2 - Democracia e Diversidade 81
Capítulo 3 – Liberdade de Insurreição 95
Capítulo 4 - Poder Instituinte X Poder Constitucional 111
Capítulo 5 – Poder e Dominação 125

Parte 2 – Direito, garantia de (des)ordem 143

Capítulo 6 – Direito e Status Quo 145


Capítulo 7 – Uma Constituição sem Vencedores 165
Capítulo 8 – Crítica da indeterminação do Direito 185
Capítulo 9 – A Democracia brasileira hoje 195

II. PERVERSÕES 209

Capítulo 9 – Perversão do Direito 211


Capítulo 10 – Lava-jato (I): A Política Judicial 235
Capítulo 11 – Lava-jato (II): Corrupção e Jeitinho Brasileiro 249
III. UTOPIAS 265

Capítulo 12 – Utopias Institucionais 267


Capítulo 13 – AS Duas Gramáticas do Direito Ocidental 287
Capítulo 14 – Normatividades Plurais 305

IV. POR UMA DEMOCRACIA MULTINORMATIVA 315

Capítulo 15 – Direito contra Direito 317


Capítulo 16 - Cidadania em Transformação 345
Capítulo 17 – Um Novo Ciclo Autoritário? 361

V. FECHO: Diante da Lei 383

VI. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 389


Introdução

POR QUE DIREITO DAS LUTAS?

O título deste livro pretende evidenciar que a Teoria do Direito que ele de-
senvolve tem como objetivo central reconstruir a ligação entre direito e democracia
para além das instituições clássicas do estado nacional, valorizando o direito produ-
zido pela sociedade a partir das interações entre os agentes sociais, ou seja, a partir de
seus conflitos, de suas lutas, dentro e fora das instituições formais.
Como ficará mais claro no correr da exposição, esta obra considera que as
transformações ocorridas no mundo ao menos desde a década de 90, muitas vezes
referidas com o termo genérico, “globalização”, além de abalarem o poder dos Esta-
dos de criarem todas as normas jurídicas que produzem efeitos sobre seu território,
também abrem espaço para imaginar um Direito que devolva à sociedade o poder de
criar normas jurídicas. Tal poder ficou concentrado nas mãos dos Estados nacionais
ao menos desde o século XIX e, atualmente, parece fazer parte do que muitos autores
diagnosticam como a crise da democracia, crise esta que, para mim, seria melhor ca-
racterizada como crise da democracia eleitoral de massas.
Além disso, iremos defender que este descentramento da produção do Di-
reito dos Estados nacionais não tem apenas efeitos negativos. Pode contribuir para
aprofundar a democracia ampliando a capacidade do Direito de reconhecer e proteger
a diversidade de formas de vida existentes na sociedade. Para que sejamos capazes de
formular teoricamente tal possibilidade, em primeiro lugar, será necessário diferenciar
ordens normativas democráticas de ordens normativas autárquicas, ou seja, estabele-
cer critérios para afirmar que determinadas modalidades de regulação social contri-
buem ou não para aprofundar a democracia, independentemente de seu reconheci-
mento pelo Estado. Por esta razão, será necessário também repensar o sentido do
conceito de validade em um contexto multinormativo, marcado pela existência de
diversas ordens normativas, dentre as quais será preciso identificar quais merecem e
quais não merecem a qualificação de direito.
Nem todas estas tarefas serão enfrentadas neste livro, mas todas as análises
contidas nele partem do pressuposto de que estes processos de transformação do
Direito contemporâneo devem ser descritos como projetos capitaneados por agentes
sociais em luta, ou seja, eles não decorrem, necessária e funcionalmente, de determi-
nadas transformações sociais. Estão assentados em justificativas que pretendem se
impor como alternativas legítimas para toda a sociedade. Nesse sentido, este livro

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buscará analisar, de maneira integrada desenhos institucionais, suas justificativas e os
agentes sociais aos quais eles favorecem, sempre buscando apresentar as alternativas
de direito que estão em conflitos, ou seja, os modelos de juridificação contrapostos,
sob a forma de “direito contra direito”. Afinal, como veremos no correr da exposição,
na falta do Estado para afirmar, em todos os casos e em última instância, o que vale
como direito e o que não vale, esta parece ser a melhor maneira de descrever o direito
contemporâneo.

QUAL TEORIA?

Antes de apresentar o conteúdo deste livro com mais detalhes, vale a pena
gastar algumas linhas para expor alguns pressupostos teóricos da análise que será re-
alizada aqui, em especial o caráter anti-estruturalista da Teoria do Direito articulada
nesta obra, ou seja, a importância atribuída aqui à ação humana e às alternativas de
direito em conflito na sociedade.
A despeito de haver casos de vítimas inquestionáveis, às quais não se pode
atribuir responsabilidade alguma sobre as relações em que se envolveram, parece razo-
ável afirmar que somos pessoalmente responsáveis pelo tipo de relação em que esta-
mos envolvidos. Por exemplo uma pessoa que seja capturada à força no meio do seu
habitat natural para ser levada para uma terra estranha na condição de mão-de-obra
escrava. Neste caso, ao menos no que diz respeito à condição inicial em que ela se
encontra, tal pessoa é evidentemente uma vítima de forças superiores à sua capacidade
de ação.
A partir dessa miserável situação, é claro, pode haver algum espaço para a
agência individual. Mas ele será praticamente irrelevante e, evidentemente, terá caráter
defensivo. O espaço de escolha, nestas condições, é muito próximo de zero, pois tal
pessoa não pôde decidir sobre o enquadramento de sua relação e não tem influência
política sobre as instituições que a produziram e a sustentam. Uma pessoa escravizada
não tem o direito de questionar sua condição publicamente em nenhum momento:
deve adaptar-se a ela ou fugir dela. Como aconteceu muitas vezes, aliás, com a criação
de Quilombos nos quais se praticavam formas de vida alternativas àquela imposta às
pessoas negras trazidas à força da África para o Brasil.
Exceto nestes casos extremos, as relações que mantemos dependem, em al-
gum grau, de nossas atitudes, tanto no que diz respeito ao nosso espaço de ação em
cada contexto, quanto ao enquadramento de nossas ações, ou seja, ao desenho das
estruturas que determinam nosso modo de ser e de viver. Ninguém é o que é sem mais
nada. Uma pessoa é o que é nas relações que estabelece com outras pessoas e nas
relações que estabelece com as normas que regulam a sua existência. Nesse sentido,
“ser” também deve significar “escolher”: escolher aceitar ou escolher transformar as
estruturas, os quadros que determinam seu comportamento; possibilidade esta que só

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será efetiva quando o regime político sob a qual ela vive se caracterizar como um estado
de direito democrático. Nesse sentido, o direito democrático é veículo da liberdade.
Mas deixemos este ponto um pouco mais claro.
Se tomarmos os dois extremos da riqueza e da pobreza, poderemos encontrar,
de um lado, algumas pessoas desumanizadas pela necessidade de garantir a mera so-
brevivência. Por exemplo, pessoas com baixa capacidade de demonstrar afeto e amor
em razão do excesso de trabalho e da insegurança em relação à sua sobrevivência,
fatores que podem inviabilizar relações pessoais que exijam saber lidar com os seus
sentimentos e com os sentimentos alheios. De outro lado, haverá também pessoas
muito ricas e bem-sucedidas também desumanizadas por um trabalho que exige delas
colocar a obtenção de lucro acima de tudo, inclusive, acima do amor, do afeto e da
vida pessoal. Pessoas assim não serão capazes de manter ligações significativas com
filhos, com companheiros, com amigos e com família, dedicando todas as suas energias
ao sucesso profissional.
Mas é possível também encontrar exemplos de alegria, afeto e positividade na
extrema pobreza e, da mesma maneira, pessoas ricas felizes, tranquilas, engajadas em
trabalhos de benemerência, cuidando com afeto de sua família e das pessoas próximas;
pessoas preocupadas em investir sistematicamente em seu aperfeiçoamento moral e
espiritual. De um ponto de vista estritamente pessoal, portanto, é muito difícil afirmar
quem leva a sua vida da melhor maneira, quem tem mais mérito ou menos o mérito
em sua maneira de viver, os pobres ou os ricos.
Se tomarmos como mero pressuposto o enquadramento destas relações, ou
seja, se deixarmos de lado os fatores estruturais que fazem com que alguém seja pobre
ou seja rico em uma determinada sociedade, a única maneira de julgar uma vida é exa-
minar, caso a caso, como cada pessoa se comportou em seu contexto; diante das con-
dições específicas que se apresentaram para ela. É muito difícil fazer qualquer juízo
radical e abstrato a respeito de uma vida humana em concreto, mais ainda quando a
pesquisa se afasta demais de um ponto de vista antropológico, mais próximo das inte-
rações sociais.
Já no que diz respeito ao raciocínio sobre estruturas, sobre o enquadramento
normativo das relações, a coisa muda completamente de figura. É o enquadramento
que determina o lugar das pessoas em suas relações sociais, por isso mesmo, é razoável
afirmar que uma sociedade que não permita que pobres se tornem ricos, ou que mu-
lheres, pessoas trans e pessoas negras não ocupem certas posições sociais, é uma soci-
edade evidentemente injusta. Afinal, tal sociedade condena determinadas pessoas, e
não outras, a permanecerem presas a uma certa maneira de viver, sem abrir a possibi-
lidade de que elas possam mudar sua condição por mérito e força de vontade, inclusive
por meio do controle de sua capacidade de definir a si mesma e, desta forma, desenhar
autonomamente um espectro de possibilidades de ação, um projeto de vida.

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Uma sociedade organizada desta maneira cria enquadramentos hierárquicos
arbitrários que podem ser figurados em narrativas sobre a vida e a ação de cada as quais
se mostram como verdadeiras prisões sociais e existenciais, situação descrita por Patri-
cia Hill Collins com o conceito de “imagem de controle”. Vale lembrar também a
trama do romance “Judas, o Obscuro” de Thomas Hardy, que tematiza as imagens de
controle que aprisionavam em seu lugar social os homens brancos pobres no século
XIX inglês, impossibilitados de frequentar a universidade e ascender socialmente.
A menos que retrocedamos alguns séculos para sustentar que a existência de
pessoas pobres e ricas é resultado do destino, da vontade de Deus ou do mero nasci-
mento, uma sociedade como esta merece nossa condenação moral: trata-se de uma
sociedade estruturalmente injusta. É verdade que alguns grupos religiosos defendem,
ainda hoje, esse tipo de pensamento, um pensamento que naturaliza formas de vida e
suas relações em uma estrutura hierárquica que abole o espaço entre estrutura e sujeito,
ou seja, que afirma que a vida deve ser como ela efetivamente é.
No entanto, a partir dos padrões de uma sociedade democrática, qualquer
forma de hierarquia estabelecida de maneira autárquica será considerada injusta, pois a
injustiça é o estancar arbitrário do poder de autodefinição, uma ação marcadamente
paralisante de construção e manutenção de prisões sociais que se fazem no campo do
imaginário, da narração do próprio self e do desenho das instituições formais e infor-
mais.
Fica claro, portanto, a imensa dificuldade de proferir juízos morais universais
sobre a ação individual - razão pela qual as pesquisas recentes sobre a ética do cuidado
tem especulado sobre a possibilidade de excluir a reflexão sobre o universal do campo
da ética - e a maior facilidade em julgar instituições, ou seja, julgar do ponto de vista
universal os procedimentos de criação e as estratégias de estabilização de normas juri-
dicamente obrigatórias (HELD, 2006).
Este livro procura explorar esta, por assim dizer, inversão, que vê no Direito
o centro de gravidade do debate contemporâneo sobre uma possível moral universal
institucionalizada a qual, a meu ver, em face da diversidade crescente das formas de
vida que habitam simultaneamente todos os cantos da Terra, deve assumir, necessari-
amente, feições jurídicas, isso se desejar contribuir para preservar e ampliar a diversi-
dade. Nesse sentido, a luta pela emancipação deixa de configurar como uma luta pela
conversão moral das pessoas a uma forma de viver democrática e passa a se mostrar
como uma luta político-jurídica pela diversidade radical e pela gestão democrática dos
conflitos inerentes a esta condição de fluxo permanente, que mantém a indeterminação
em seu ponto de fuga.
Trata-se de aliviar o sujeito de exigências morais universais padronizantes para
concentrar o debate de dever ser na disputa pelo desenho das instituições formais, ou
seja, no seu caráter democrático ou autárquico. Daí, como será visto, adiante, a centra-

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lidade do conceito de “direito democrático” para esta obra, a reflexão sobre a multi-
normatividade e a relativização da centralidade do estado nacional na produção do
direito. Esta transformação institucional é crucial para que seja possível atribuir força
jurídica a diversas formas de viver, oferecendo-lhes, assim, uma configuração institu-
cional mais adequada, ou seja, dotada de fonte de legitimidade própria; ponto que será
desenvolvido, em toda a sua extensão, em minha Filosofia do Direito (a ser publicada em
um futuro próximo), mas que será abordado aqui no capítulo “Direito contra Direito”.
Mas a diferença entre sujeito e enquadramento, entre sujeito e estrutura, entre
sujeito e norma é importante por outras razões. Vejamos mais uma delas: um pensa-
mento radicalmente voltado para refletir e demonstrar a existência e a autorreprodução
automática das estruturas, que não pense as estruturas na tensão entre indivíduo e nor-
mas sociais, poderia levar ao seguinte raciocínio: toda e qualquer pessoa beneficiada
por um certo enquadramento, por uma certa estrutura, tenderá a defender a sua ma-
nutenção e será inimiga da transformação social. Tal raciocínio, convenhamos, parece
perfeitamente razoável, não fosse a realidade das coisas.
Para voltar ao exemplo anterior, grande parte da resistência, por exemplo, ao
capitalismo nasceu das próprias classes burguesas. Grande parte da literatura, da filo-
sofia, da teoria e do ativismo (por exemplo, o movimento estudantil) do último século
foi uma resistência ao capitalismo protagonizado por pessoas beneficiadas por ele, in-
clusive no que diz respeito a Marx e Engels. Da mesma maneira, podemos encontrar
entre as pessoas mais prejudicadas pelo capitalismo aquelas que defendem com mais
afinco a sua manutenção e aprofundamento. Por exemplo, pessoas pobres que votam
alegremente em empresários e defendem o empreendedorismo e o mercado total-
mente desregulado de forma acrítica, como solução para todos problemas sociais.
Esta discussão remete a debates antigos e complexos sobre a relação entre
determinismo econômico e emancipação humana, sobre o papel das ideias, sobre o
papel da cultura; o papel do sentido que atribuímos às nossas vidas em nossa maneira
de estar no mundo. Trata-se de uma discussão que está na origem de boa parte do
pensamento crítico contemporâneo. Para simplificar uma questão extremamente com-
plexa, não é porque alguém se encontre em uma certa condição econômica ou ocupe
uma posição social qualquer que seremos capazes de deduzir a sua forma de agir e o
sentido que aquela posição terá para aquela pessoa específica. Estamos cansados de
ver pessoas para quem, para falar de modo coloquial, não falta nada, nem dinheiro,
nem amor, nem afeto, nem sexo, e mesmo assim, sentem-se infelizes, tristes, como se
algo faltasse em suas vidas. A felicidade não depende apenas do bem-estar material,
mas também de um sentido, de um propósito para a vida.
E aqui está o segundo ponto que eu gostaria de ressaltar nesta introdução:
quando adotamos um ponto de vista excessivamente ligado as estruturas, aos enqua-
dramentos, às normas postas, deixamos de enxergar a complexidade humana, a com-
plexidade das formas de vida e de compreensão do mundo as quais, inclusive, são

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capazes de, em permanente estado de conflito, colocar as estruturas em questão e
transformar o nosso modo de viver. Pois a transformação do mundo decorre, justa-
mente, desta dissociação, deste espaço, desta distância que separa sujeito e norma, su-
jeito e estrutura. Sem levar em conta este espaço não conseguiremos explicar nunca a
transformação da vida social.
Boa parte da sociedade cumpre as normas, age de acordo com as estruturas,
mas sem concordar completamente com elas, sem se adaptar completamente a elas,
mantendo espaços de resistência, de divergência, e muitas vezes, de questionamento
aberto. Como mostram autores como Joseph Raz, entre outros, o Direito não oferece
razões suficientes para a sua obediência, a despeito de se apresentar enquanto tal, como
se fosse interna e externamente obrigatório. Por isso mesmo, porque o direito exige
apenas conformidade de comportamento e não adesão subjetiva, as instituições vão se
transformando em função das disputas que acontecem no contexto de estados de di-
reito democrático, regime político que precisa funcionar bem para que esse processo
se desdobre sem atropelos, por exemplo, sem descambar para a violência física. Afinal,
sempre que o processo de disputa e transformação democrática for frustrado, a ten-
dência será o crescimento da insatisfação, de protestos, de atos de desobediência civil
e de violência contra a ordem estabelecida.
Um estado de direito autárquico, por definição, resiste à mudança, seja por se
configurar como um regime autoritário, seja por se utilizar de mecanismos de perver-
são. Reside nestes fenômenos, salvo engano, a explicação para a permanência e o ca-
ráter democrático do fenômeno da jurisgênese, conceito de Robert Cover que será abor-
dado no correr desta obra.
Assim, a dinâmica da transformação social democrática pode ser frustrada de
diversas maneiras. Por exemplo, pela criação de regimes autoritários que busquem simpli-
ficar coercitivamente ou acabar com a diversidade social e seu processo conflitivo de
produção de novas formas de viver, normas e interpretações de normas postas. Tam-
bém por um ataque dissimulado ao poder desestabilizador, transformador do estado
democrático de direito por meio de mecanismos que eu classifico de perversão do direito
os quais buscam neutralizar a ligação entre o conflito social e a produção de normas
jurídicas que regulam comportamentos e desenham as instituições formais – definindo
suas fronteiras e as suas relações com a sociedade -, tornando tal processo puramente
unilateral, autárquico.
Retomando a questão que colocamos logo acima, os adversários da transfor-
mação social não serão todas as pessoas supostamente beneficiadas pelas estruturas
dominantes, garantidas pelo direito posto. Da mesma maneira, os defensores da trans-
formação não são, necessariamente, todas as pessoas prejudicadas por elas. Os adver-
sários da transformação, insisto, não são todos os capitalistas, os burgueses, os patri-
arcas, os brancos, mas sim as pessoas que naturalizam a sua própria condição como a
única possível e negam ou criam obstáculos efetivos ao poder de transformação do

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estado democrático de direito. Pessoas que podem muito bem ser, a história nos en-
sina, proletárias, pobres, mulheres e negras, às vezes tudo isso ao mesmo tempo, em
nome da estagnação e não da estabilização, da organização democrática do fluxo dos
conflitos sociais.
Nesse sentido, podemos afirmar que refletir no nível das estruturas é impor-
tante, mas que a reflexão sobre transformação social está no trabalho, no debate, na
discussão, na interação, no questionamento, na relação com as pessoas, no estudo dos
conflitos sociais e de seu impacto sobre as instituições, ou seja, nas relações que estas
pessoas estabelecem entre si e, por via de consequência, com as normas que regulam
as suas vidas.
Assumir uma atitude crítica, assim, significa estabelecer relações críticas, face
a face ou não, com seres humanos, tanto beneficiados quanto prejudicados pelas nor-
mas que determinam, em parte, o nosso modo de ser e os padrões de nossas relações.
Isso tudo, partindo do pressuposto, é claro, de que uma sociedade contemporânea,
para ser democrática, deve estar aberta à mudança em função do surgimento constante
de novos agentes sociais e seus desejos e interesses, os quais devem ser levados em
conta pelas sociedades nas quais estão situados.
A cegueira causada por uma análise estrutural míope pode ser responsável
pelo fracasso de qualquer reflexão ou projeto de transformação social. O pensamento
crítico, ao menos como eu o imagino e procuro praticar, consiste em um antiestrutu-
ralismo tão preocupado com chão dos conflitos quanto com o céu das estruturas ins-
titucionais e das ideias abstratas.
Um pensamento que apresenta a sociedade como um conjunto de disputas,
de controvérsias, de discordâncias a respeito de nossa forma de viver, discordâncias a
respeito das normas que constituem as nossas vidas e sobre a possibilidade de criar
novas maneiras de viver – ou seja, a discordância entre diversos projetos instituintes
(ver capítulo “Poder Instituinte X Poder Constitucional”) - ; jamais como uma série de
estruturas e ideias autorreproduzidas em abstrato, apartadas da sua gênese conflitiva e
relacional, ou seja, afastada de seus potenciais de contestação e transformação.
Nessa ordem de razões, à falta de um sentido transcendental ou imanente para
a ação humana e para as estruturas sociais que as organizam de forma duradoura, a
democracia, o conflito, o diálogo, o debate, assumem, por assim dizer, para usar um
vocabulário clássico, um papel onto-epistemológico. Afinal, é na interação entre sujei-
tos e grupos sociais que as pessoas serão capazes de atribuir sentido às suas ações e,
por via de consequência, às normas que regulam as suas vidas. Ao discutir e debater
apenas as estruturas em abstrato deixa-se de lado os protagonistas de sua constituição,
reprodução e transformação, bem como eventuais “utopias institucionais” (ver capí-
tulo com este mesmo título) que articulam projetos de transformação social sob a
forma de um redesenho das normas que regulam e determinam a vida em sociedade.

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PARA QUE SERVE ESTE LIVRO?

Por todas estas razões, a teoria do direito articulada por este livro tem como
unidade de análise básica o conflito social sob a forma de uma “luta por direitos”,
compreendida como conceito descritivo e normativo ao mesmo tempo, pelas razões
expostas na “Abertura” deste livro e em seu primeiro capítulo. Na “Abertura”, eu apre-
sento um amplo diagnóstico do tempo presente a partir da situação do Brasil e discuto
o papel da Teoria do Direito neste contexto me utilizando de um aparelho conceitual
que será detalhado nos capítulos seguintes. Nesse sentido, a “Abertura” mostra a teoria
em funcionamento; já em ação para descrever e avaliar os problemas de nosso tempo,
antecipando alguns raciocínios e conceitos que serão apresentados em abstrato no res-
tante do livro.
Como ficará mais claro no capítulo “Direito contra Direito”, para articular os
problemas enfrentados neste livro em uma ideia, cabe afirmar que em um momento
histórico em que o texto legal se torna incapaz de conter o processo de atribuição de
sentido jurídico para os mais diversos conflitos sociais, não é mais razoável separar
metodologicamente (a) o estudo das normas postas, (b) o estudo do ato de interpretá-
las e (c) o estudo dos conflitos sociais que alimentam as divergências no processo de
interpretação. Os três fenômenos devem ser vistos de maneira integrada pela mesma
Teoria do Direito que irá combiná-los de uma maneira específica, característica da Ci-
ência do Direito.
Não há espaço nesta introdução para tratar do problema em toda a sua exten-
são, por isso remetemos as pessoas interessada à leitura do livro. Neste momento, é
possível dizer o seguinte: o estudo em apartado do direito e dos conflitos sociais só faz
sentido se consideramos que as leis produzidas pelo Parlamento são capazes, de al-
guma maneira, de estabilizar o conflito político, remetendo-o ao pano de fundo da
Teoria do Direito. Em uma situação como esta, a “luta por direitos” se dá até o mo-
mento da edição da lei. A partir deste momento, cabe ao Judiciário decidir os casos
concretos em sua especificidade extraindo o sentido de sua decisão do texto legal, sem
reabrir o debate político que esteve na origem da lei.
Ora, a Teoria do Direito, desde o final do século XIX, tem mostrado que o
ato de interpretar não é mais a mera aplicação da lei ao caso concreto, ou seja, a inter-
pretação tem um aspecto construtivo em face da indeterminação dos textos normati-
vos. De novo, como será exposto com mais detalhes em “Direito contra Direito”, tal
constatação tem como consequência o fato de que a divergência sobre a interpretação
dos textos normativos se torna algo normal. Tal fenômeno passa a fazer parte da vida
do direito, para alguns, como problema a ser lamentado e, se possível, eliminado e,
para outros, como ponto de partida para refletir sobre a racionalidade judicial de uma
outra maneira.

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Eu sustento que o conflito pela interpretação das normas jurídicas é parte
normal da vida do direito e, do ponto de vista de um projeto de estado democrático
de direito, ou seja, a partir de uma tomada de posição normativa em favor de um “di-
reito democrático” (ver “Forma Direito Democrático”), é necessário encontrar instru-
mentos para lidar com este fenômeno e não buscar elimina-lo. É preciso criar proce-
dimentos que permitam estabilizar certas decisões judiciais para que a sociedade dis-
ponha de regras capazes de orientar a ação dos agentes sociais em conflito permanente.
Tais procedimentos podem consistir, como mostrei no meu livro “Como De-
cidem as Cortes? Para uma Crítica do Direito (brasileiro)” tanto na criação de “cons-
trangimentos institucionais”, ou seja, mecanismos de controle das decisões judiciais via
desenho institucional do Judiciário e demais poderes quanto, de outra parte, na criação
de “modelos de racionalidade jurisdicional” ou “modelos hermenêuticos” ou “mode-
los de racionalidade jurisdicional” que busquem influenciar o modo de pensar das pes-
soas magistradas. Nos dois casos, ou seja, na tentativa de desenhar os mecanismos
determinam a autoridade e a forma de agir do Judiciário e no esforço por influir sobre
a racionalidade das pessoas magistradas, é preciso pensar democraticamente. Ou seja,
é preciso imaginar mecanismos que não concentrem o poder de dizer o direito apenas
nas mãos de uma aristocracia judicial supostamente iluminada, que atue de forma iso-
lada da sociedade utilizando uma racionalidade cifrada, inacessível para os reles mor-
tais.
Isto porque, como dissemos acima, a lei não é mais capaz de conter, de pôr
um ponto final ao conflito social na forma de uma luta por direitos que cesse suas
ações no Parlamento. O conflito social, atualmente, também se desenvolve como uma
luta pela melhor interpretação. E na falta de um critério estritamente textual - ou me-
tafísico, transcendente - para nos ajudar a decidir, afinal, qual é a melhor interpretação
dos textos normativos, é necessário imaginar desenhos de Estado e modelos de pen-
samento que proponham critérios de solução fundados na participação da sociedade
na construção da decisão final, garantindo que todos os interesses e desejos sociais
afetados por ela sejam considerados no processo decisório.
Por todas estas razões, na Teoria do Direito defendida neste livro há conflito
por todos os lados, desde as interações sociais, estudadas sob o conceito de jurisgênese,
que será explicado adiante, até a decisão judicial, passando pela luta parlamentar. O
conflito não cessa, não desaparece jamais, o que muda são as formas pelas quais ele se
manifesta, os agentes interessados em cada uma destas arenas e as possibilidades de
solução que elas oferecem, ou seja, o que se modifica são as maneiras de figurá-lo.
Pois é evidente que a luta por direitos no campo social, por exemplo, entre
pessoas que consideram lícito ou ilícito o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ao
ser levada ao parlamento ganha novos contornos, novos participantes e novas possi-
bilidades de solução, características dessa nova arena, a qual segue uma lógica muito
diferente da lógica da vida social. Os agentes sociais poderiam ter se conformado em

19
não levar este conflito ao Parlamento e encontrar soluções diferentes para dar forma
jurídica às suas relações, por exemplo, por meio de instrumentos jurídicos diferentes
do casamento ou, no limite, com a criação de uma ordem jurídica própria, em ruptura
com aquela em que estão situados, como veremos no texto “Direito contra Direito”.
Ao ser processado pelo campo da política em sentido mais estrito, o campo
da disputa pelo poder entre partidos políticos, o conflito social receberá uma nova
determinação. Ele se tornará elemento dos cálculos político eleitorais dos partidos que
disputam o poder, será levado em conta nas barganhas entre parlamentares, na relação
entre partidos e imprensa, entre outros elementos deste campo de atuação. Da mesma
maneira, ao ser levado ao Judiciário, o conflito será analisado à luz das normas jurídicas
positivadas e dos conflitos sobre a sua interpretação, alimentados, muitas vezes, pelas
disputas de poder entre Juízes, Promotores e Advogados, os quais estão longe de for-
mar grupos que pensam de forma padronizada.
No caso dos conflitos jurídicos, é papel da Teoria do Direito refletir sobre
todos estes elementos e pensar procedimentos capazes de produzir boas decisões a
partir deles, sem imaginar que seja possível retroceder ao mundo do legalismo e da
hermenêutica jurídica compreendida como mera aplicação da lei ao caso concreto e do
Direito como técnica destinada a eliminar o conflito social com fundamento em crité-
rios políticos definidos na lei. Este livro, se não for capaz de realizar esta tarefa em
toda a sua extensão, ao menos a levará muito a sério, começando por apresentar a
própria origem do estado de direito democrático como uma invenção das lutas sociais,
as quais seguem contribuindo para a sua reprodução ou para o seu enfraquecimento.
Em sua primeira parte, intitulada “DIREITO EM TRANSFORMAÇÃO”, o
livro dedica-se a essa tarefa, em diálogo de diversos autores, principalmente Franz
Neumann, Iris Young e Judith Butler, tendo como ponto de fuga alguns escritos de
Antônio Negri, Carl Schmitt e Jürgen Habermas. Os capítulos reunidos nesta parte
procuram pensar a relação entre direito e democracia a partir de uma ideia de demo-
cracia radical que inclui a garantia da assim denominada “liberdade de insurreição” (ver
“Liberdade de Insurreição”). Na esteira do que foi dito acima, trata-se de um pensa-
mento sobre a relação entre direito e democracia como processo de democratização
das decisões, mas também como processo de redesenho institucional permanente; ne-
cessário para abarcar o constante surgimento de novos agentes sociais e novos confli-
tos sociais (ver “A Forma Direito Democrático” e “Democracia e Diversidade”).
Nesse sentido, um direito democrático não é apenas um direito capaz de pro-
duzir, no limite, decisões inclusivas de todos os interesses e desejos sociais dos con-
cernidos. Ele também é um regime político em que o desenho das instituições precisa
se transformar constantemente para dar forma à transformação social sem buscar
contê-la ou neutralizá-la. Por assim dizer, para instituir uma democracia radical não
basta um processo democrático de formação de enunciados com sentido. É preciso
também instituir uma transformação constante na gramática a partir dos quais tais

20
enunciados são gerados para que esta, a gramática, não se torne um fator de normali-
zação, de opressão, de exclusão a priori de novos enunciados. Nesse sentido, como
aliás mostram diversos linguistas, a gramática deve vir depois e não antes da prática da
língua, neste caso, ela deve se mostrar como uma reflexão a posteriori a respeito do
instituído e a respeito dos projetos instituintes em disputa na sociedade.
Os capítulos desta parte também refletem sobre o significado da democracia
e da constituição brasileiras. Em “Uma Constituição sem Vencedores” e “Crítica da
Indeterminação do Direito” apresento o esboço de modelo de racionalidade jurisdici-
onal adequado para interpretar nossa Constituição ao qual denominei de “originalismo
democrático” a partir de uma certa visão sobre nossa história constitucional, mais es-
pecificamente, sobre o processo que culminou na edição da Constituição de 1988. No
texto seguinte, “Democracia Brasileira Hoje”, procuro avaliar a alegada crise de nossa
democracia à luz de acontecimentos recentes e das manifestações de junho de 2013,
em busca de pistas para investigar os possíveis impactos institucionais dos movimentos
sociais recentes, a saber, a adoção de práticas políticas tradicionais ou estratégias auto-
nomistas.
Na segunda parte do livro, intitulada “PERVERSÕES” apresento de maneira
mais detalhada do que na “Abertura” o conceito de “perversão do direito” e suas figu-
ras, “zona de autarquia”, “legalidade discriminatória” e “despersonalização jurídica”.
Como já foi dito acima, o direito democrático é pervertido quando funciona desligado
da sociedade civil, ou seja, quando suas normas são estabelecidas unilateralmente, sem
levar em consideração as pessoas afetadas por elas, ainda que sob a aparência de nor-
mas gerais e abstratas. A perversão do direito, ao contrário da criação de regimes au-
toritários, os quais restringem o direito de votar e eliminam ou restringem a participa-
ção da sociedade civil na formação das normas, produz autarquia de maneira mais sutil,
sempre sob a aparência de legalidade, sem necessariamente romper com uma aparente
normalidade institucional.
Esta parte do livro termina com dois textos que analisam a Operação Lava-
Jato em alguns de seus aspectos mais controversos. Ao contrário da opinião corrente,
os textos não criticam a operação pelo suposto desrespeito aos padrões do direito pe-
nal garantista. Em sentido diverso, os textos sustentam que o sentido de nosso direito
penal está em disputa e tal disputa faz parte da ordem democrática das coisas. No
entanto, a visão de direito emergente da Operação merece ser criticada por concentrar
poderes excessivos nas mãos do Estado sem prever mecanismos adequados para o
controle e para a participação da soberania popular na tomada de decisões, por exem-
plo, pelos membros do Ministério Público, processo que pode resultar na criação de
verdadeiras zonas de autarquia incrustradas em nosso Estado.
A terceira parte do livro “UTOPIAS INSTITUCIONAIS” examina o poten-
cial democratizante de algumas formas institucionais já presentes na tradição do direito

21
ocidental. As análises desta parte não descem ao detalhe dos diversos modelos de re-
gulação destinados a lidar com diversos de nossos problemas sociais; uma análise que
exige um trabalho de pesquisa contínuo, levado adiante por diversas pessoas pesquisa-
doras. O que esta seção do livro faz, por exemplo, no texto “As Duas Gramáticas do
Direito Ocidental”, é mostrar que, ao contrário do que pensa boa parte das ciências
humanas, o direito ocidental não é caracterizado apenas pela gramática das normas,
mas também pela gramática de regulação social, ou seja, que ele possui uma riqueza
gramatical ignorada por boa parte das escolas críticas.
Com efeito, o direito não regula os problemas sociais apenas por meio da
criação de normas que afirmam determinados comportamentos como desejáveis e ou-
tros como indesejáveis, ligando aos primeiros consequências jurídicas positivas e aos
segundos consequências jurídicas negativas. O direito é capaz de conferir força de lei
a normas criadas diretamente pela sociedade, abrindo espaço para que os agentes so-
ciais, ao lado do Parlamento, também atuem como instâncias criadoras de normas ju-
rídicas obrigatórias. Daí ser possível imaginar modelos de regulação que, ao contrário
do modelo dominante, devolvam à sociedade ao menos parte do poder normativo,
hoje concentrado nas mãos do Estado, processo que pode produzir normas jurídicas
mais adequadas aos desejos e interesses da sociedade. O capítulo “Normatividades
Plurais” discute este mesmo problema no contexto da regulação dos indígenas brasi-
leiros.
Esta parte do livro também examina a literatura a respeito da violência contra
a mulher para demonstrar que o direito regula este tema a partir de dois modelos re-
gulatórios diferentes. O primeiro, centrado no Direito Penal, limita-se a utilizar a gra-
mática das regras, assumindo feições punitivistas, individualizantes e vitimizantes, ou
seja, um modelo que reduz uma questão social altamente complexa a uma relação entre
vítima e algoz. O segundo, marcado por elementos da gramática da regulação social,
pensa em estratégias multidisciplinares para lidar com a violência, recusando-se a re-
duzi-la a um problema entre indivíduos desligados do contexto social e encarados de
maneira maniqueísta. No caso, não se trata de optar por um ou por outro, mas imaginar
estratégias combinadas que apresentem alternativas institucionais mais ricas para lidar
com a questão.
Finalmente, a quarta e última parte do livro, “POR UMA DEMOCRACIA
MULTINORMATIVA” reflete sobre as feições de uma Teoria do Direito pensada no
contexto de um mundo cada vez mais globalizado, marcado pela multiplicidade de
ordens normativas que regulam a sociedade, muitas vezes, sem controle possível pelos
Parlamentos nacionais.
A perda de centralidade do Estado na produção e na aplicação do Direito é
tomada aqui não como algo a se lamentar e combater, mas como possibilidade de
construir um modelo de direito democrático renovado. Assim, este livro não defende
a necessidade de retomar a centralidade do Estado nacional no processo de criação e

22
aplicação do Direito, mas sim convida a pessoa leitora a imaginar, a partir dos escritos
de Robert Cover, como um direito e uma democracia multinormativa poderiam ser,
ou seja, quais seriam as suas configurações institucionais, em especial, o seu processo
de criação e aplicação do direito.
Trata-se, portanto, de imaginar como seria possível identificar o que é direito
e o que não é direito dentre diversas ordens normativas atuantes simultaneamente em
um mesmo território sem afirmar, a priori, a superioridade do direito estatal; uma aná-
lise que exige repensar, para começar, o significado do conceito de validade. Ademais,
trata-se de criar critérios para diferenciar o caráter democrático ou não destes diversos
direitos, mas sem contar com as estruturas democráticas do estado nacional, distin-
guindo com precisão ordens normativas democráticas de ordens normativas autárqui-
cas. Uma distinção cada vez mais urgente diante de determinados fenômenos contem-
porâneos de caráter autárquico, examinados no capítulo intitulado “Um Novo Ciclo
Autoritário?”, como o “fake News”, o revisionismo nazista, a história conjectural e o
criacionismo, todos fenômenos protagonizados por grupos inimigos da ideia de um
direito democrático.

23
ABERTURA – A luta ainda é por direitos?

Introdução

Diversas análises das insurreições que eclodiram ao redor do globo nos últi-
mos anos, inclusive os protestos de Junho de 2013 no Brasil, sugerem que estejam
surgindo novos padrões para as lutas sociais neste começo de século XXI. Padrões
que não se enquadram na gramática da reivindicação de direitos que marcou as lutas
sociais durante a maior parte do século XX (ver MARSHALL, 1967; DOUZINAS,
2009). Tal fenômeno tem sido apontado por vários analistas como um indício de que
as instituições formais, como as conhecemos, não têm sido capazes de ouvir a voz
dos cidadãos e cidadãs (CELIKATES, KREIDE, WESCHE, 2015; GOHN, 2014;
ARANTES, 2014; NOBRE, 2013).
Parece haver um abismo de magnitude desconhecida entre as instituições
formais e a sociedade, nacional e mundial. Os organismos formais do estado e dos
órgãos internacionais têm mostrado sinais de serem claramente insuficientes para ca-
nalizar os desejos e necessidades dos cidadãos e cidadãs, que permanecem alienados
dos centros reais de poder.1 E, por isso mesmo, têm sentido a necessidade de encon-
trar outros meios para expressar sua voz, os quais não se confundem com canais do
sistema político e com as modalidades da gramática da reivindicação de direitos 2, es-
paços que parecem estar fechados ou não dar conta de seus desejos e necessidades.3
Para ser mais preciso, provavelmente se trata de um problema relacionado a
democracia em sua versão eleitoral, sistema que gira em torno do voto e disputa pela
representação via partidos políticos e não um problema que atinja a ideia de demo-
cracia per se, especialmente em suas modalidades participativas. Evidentemente,
como o modelo eleitoral parece ser amplamente hegemônico, é de se esperar que o
senso comum promova uma equivalência entre democracia e democracia eleitoral,
mas, como veremos adiante, esta equivalência não é necessária. Uma visão mais radi-
cal de democracia garante a liberdade de insurreição e transformação institucional
constante com a finalidade de aperfeiçoar os canais de escuta das demandas sociais.
Nesse sentido, pode-se dizer, provocativamente, que o direito está não à serviço da
hierarquia e da ordem, mas da insubordinação e da desordem.

1 Uso "alienação" aqui no sentido do texto de Franz Neumann, "O conceito de liberdade política", NEU-
MANN, 2013, publicação original de 1953.
2 Sobre o que eu chamo de “duas gramáticas do estado de direito”, ver adiante.
3 Sobre a situação Brasileira, ver NOBRE, 2014; para um panorama geral da questão, ver CELIKATES,

KREIDE, WESCHE, 2015, para uma análise dos meios de luta utilizados pelos movimentos sociais ao
longo de história, ver TYLLY, 2008 e THOMPSON, 1966.

25
No caso brasileiro, o abismo entre sociedade e instituições formais tem se
aprofundado com a contribuição da pesquisa acadêmica. Como mostraram Gurza
Lavalle, Castello e Bichir (2004), a pesquisa empírica sobre movimentos sociais no
Brasil a partir da década de 90 arrefeceu e assumiu um tom de balanço e fim de festa
pós-democratização, concentrando-se principalmente na atuação junto ao estado de
organismos da sociedade civil como partidos, sindicatos e ONGs. E a perda de inte-
resse no tema parece ter provocado, ao menos durante algum tempo, um efeito de ocul-
tação da teoria sobre práticas de ação coletiva efetivamente presentes na sociedade
civil. No mesmo artigo, os autores comprovam sua afirmação ao discutir resultados
de algumas pesquisas empíricas sobre o tema que destoam do padrão geral.
É provável que esta falta de interesse no estudo acadêmico sobre os movi-
mentos sociais e sobre a sociedade civil em geral possa ser explicada em parte pela
instalação de um padrão de relativa normalidade democrática no Brasil a partir da
Constituição de 1988, cujos protagonistas têm sido, principalmente, as entidades da
sociedade civil organizada, as principais protagonistas na luta social contemporânea
em um sistema político que gira em torno do voto, ainda seu principal instrumento
de escuta popular.
Acrescente-se a esta circunstância histórica a criação, pela Constituição e por
outras normas jurídicas, de uma série de fóruns participativos em diversos organismos
estatais Municipais, Estaduais e Federais. Tais fóruns abriram espaço para a partici-
pação da sociedade civil nas instituições formais e, como demonstraram Gurza La-
valle e Isunza Vera (2011), transformaram a pesquisa empírica sobre temas políticos
no estudo de mecanismos de accountability e procedimentos formais de participação,
fazendo arrefecer os temas clássicos da teoria democrática participativa e, observação
minha, fechando espaço para a análise e discussão da atuação da sociedade civil para
além de sua relação com o estado nas formas já garantidas pela Constituição. Rodrigo
Mendes Cardoso mostra que o tema da participação foi amplamente debatido e de-
fendido pela sociedade naquele período, o que explica sua consagração constitucional.
O autor mostra que, entre a convocação da Constituinte e sua instalação, foram dis-
cutidos e divulgados uma série de anteprojetos de Constituição, todos eles incluindo
mecanismos de participação, inclusive o anteprojeto da Confederação Nacional da
Indústria (CARDOSO, 2017, 24-37)
Os referidos mecanismos de participação prometiam uma transformação das
práticas políticas tradicionais e, por isso mesmo, seu funcionamento, não a dinâmica
da sociedade civil, passou a dominar a pesquisa neste campo com a finalidade de ve-
rificar a realização ou não desta promessa contida, inclusive, na Constituição Federal,
o que parece ter gerado um certo conformismo institucional no campo da pesquisa e
das forças de esquerda em geral.
Ademais, o principal partido da esquerda brasileira, o Partido dos Trabalha-
dores, protagonista da luta pela criação e da implementação pioneira de uma série

26
destes mecanismos de participação direta, como o orçamento participativo, durante
administrações emblemáticas no estado do Rio Grande do Sul e nas cidades de Porto
Alegre e Belo Horizonte, em determinado momento, deixou esta pauta em segundo
plano em favor de uma disputa pragmática pelo poder a partir das regras vigentes no
sistema político brasileiro perdendo, assim, o seu ímpeto instituinte.
A despeito de haver estudos mostrando que o Partido trouxe novidades na
forma de governar o país, especialmente por meio da realização de Conferências Na-
cionais de Políticas Públicas, as quais reuniram uma série de entidades da sociedade
civil para produzir sugestões a respeito das políticas a serem desenvolvidas pelo Es-
tado (AVRITZER, 2010, 2013; POGRENBINSCHI & SANTOS, 2011; SAMUELS,
2013), ainda não há critérios estabelecidos na literatura em ciências humanas para
medir seu efeito real sobre as políticas públicas (PETINELLI, 2015). Além disso, as
conferências parecem ter privilegiado as entidades da sociedade civil organizada, ou
seja, agentes com os quais o Partido já se relacionava ou que já desenvolviam ações
no âmbito da sociedade civil. Não localizei estudos sobre a eventual capacidade das
conferências de identificar e captar novos atores e novos interesses nascidos na soci-
edade civil.
No entanto, mesmo diante destas inovações, a inovação institucional e a for-
mação do protagonismo popular não foi o foco das atividades do partido em seus 14
anos de governo, desde a primeira eleição de Lula até o impeachment de Dilma Ro-
usseff (BAIOCCI & CHECA, 2007). Mesmo as Conferências não foram um avanço
institucional significativo do ponto de vista do que já havia sido consagrado no texto
da Constituição de 1988. A agenda do assim denominado “modo petista de governar”
(GENRO & SOUZA, 2001; BARRETO, MAGALHAES, TREVAS, 1999) ficou em
segundo plano em favor das práticas políticas tradicionais pertinentes ao presidenci-
alismo de coalizão praticado no Brasil (FIGUEIREDO, 2001, 2001; LIMONGI,
1999) em sua vertente peemedebista (NOBRE, 2013); um país que sistematicamente
elege Presidentes sem maioria no Congresso nacional.
É importante observar que a perda de força da agenda de transformações na
forma de fazer política pode ser encarada como algo natural para a trajetória de um
partido que decidiu disputar o centro político e ascender ao poder central do Brasil e
em qualquer outro lugar do mundo. Não parece razoável exigir de uma mesma agre-
miação a capacidade de inovar e conquistar o centro político ao mesmo tempo. Mas
o fato é que a agenda de transformação institucional da qual o PT era o protagonista
foi perdendo a sua força e a sua centralidade no campo da esquerda em razão da falta
de um agente político poderoso o suficiente para elevá-la a um outro patamar, dentro
ou fora do partido. Na falta de agentes sociais que impulsionassem a transformação
da gramática política do estado, grande parte da agenda de inovações se tornou letra
morta.

27
Esta mudança de rumo do PT, que se tornou mais aberto a alianças, mais
personalista e pragmático e menos propenso a lutar pela transformação institucional
do Estado e do sistema político organizado na forma partidária é produto direto da
vitória nas instâncias internas do partido do grupo político que até hoje gira em torno
do ex-Presidente Lula (AMARAL, 2013) mostrou-se uma manobra de grande sucesso
eleitoral. Por exemplo, o partido obteve a vitória em quatro eleições Presidenciais
seguidas, a despeito de seguir sem maioria significativa no Congresso nacional. Mas,
mesmo assim, o partido foi capaz de fazer avançar uma série de políticas distributivas
de grande sucesso, aprofundando um processo de inclusão que vinha ocorrendo
desde a democratização do Brasil.
No entanto, como afirma Luiza Erundina (BIMBI, 1996), esta escolha en-
cerrou o ciclo de inovação institucional do Partido dos Trabalhadores, que se torna
cada vez mais parecido com os partidos tradicionais, ainda que o PT tenha sido um
dos responsáveis por legitimar, dar centralidade e implementar uma pauta distributiva
voltada aos mais pobres. Importante lembrar também que há estudos mostrando que
tal pauta não pode ser totalmente atribuída a iniciativas do partido. Ela é resultado
também da existência de um sistema de sufrágio universal em que a presença de par-
tidos de esquerda competitivos, mesmo fora do governo e com minoria no Parla-
mento, empurra todos os partidos a apoiar políticas sociais (ARRETCHE, 2018).
Além destes elementos, outro fatore que pode ter contribuído para ampliar
o referido efeito de ocultação é o aparente predomínio da pauta da reivindicação de di-
reitos, em especial a reivindicação de criminalização de uma série de comportamentos,
que marca a atuação efetiva do movimento feminista, antirracista e LGBT (GRE-
GORI & DEBERT, 2008; RODRIGUEZ, PÜSCHELL, MACHADO, 2012; SI-
MÕES & FACCHINI, 2009). Nos últimos tempos, tais movimentos parecem ter em-
pregado a maior parte de sua força política para reivindicar a criação de leis crimina-
lizantes e uma série de outras políticas públicas de seu interesse4, por exemplo, a Lei
Maria da Penha5, o ensino da cultura africana das escolas e o casamento entre pessoas
do mesmo sexo, deixando em segundo plano práticas reivindicatórias e ações militan-
tes que coloquem o estado e a conquista de direitos como seu ponto de chegada.6
Tal situação, ao menos até Junho de 2013 no Brasil, parecia estar criando
uma certa ilusão de totalidade para todos aqueles que observam a política tanto do ponto

4 É claro que esta impressão pode ser resultado da espécie de pesquisas que veem sendo feitas, como
assinalei logo acima.
5 A Lei Maria da Penha não é essencialmente criminalizante, prevê também uma série de políticas para

o atendimento integral da mulher vítima de violência. No entanto, seu aspecto criminalizante ganhou
o primeiro plano no debate público e tem recebido muita atenção por parte das ações dos movimentos
sociais.
6 Sobre os problemas deste tipo de estratégia para os movimentos sociais e para a dinâmica da socie-

dade civil como um todo, ver a coletânea fundamental Left Legalism/Left Critique (BROWN & HALLEY,
2002) que faz um amplo balanço do significado dos direitos para a luta social. No Brasil essa reflexão
ainda é incipiente.

28
de vista do sistema político quanto do ponto de vista dos movimentos. Em razão
desta cegueira coletiva promovida, entre outros fatores, pelo conformismo institucional,
pela perda do ímpeto instituinte das forças sociais de esquerda e pelo sequestro de parte
da pauta de esquerda pela luta por criminalização, a sociedade civil deixou de ser vista,
aparentemente, como uma questão, como um problema a ser investigado, ou seja, como
um espaço no qual irrompem sem cessar novos desejos e necessidades com potencial
transformador, dotados da capacidade de promover a reconstrução permanente das
instituições pela destruição e transformação do elenco dos direitos positivados e do
desenho do Estado, portanto, com o potencial de desestabilizar as posições de poder
estabelecidas e garantidas pelo direito positivo.7
Ao invés disso, parte da pesquisa e dos agentes políticos tradicionais parece
ver a sociedade civil como um mero manancial onde se pode ir colher votos e seus
agentes como potenciais eleitores que falam em nome de demandas previamente
compreendidas a partir da gramática das instituições postas8, demandas estas que de-
vem ser capitaneadas por agentes sociais identificáveis, com os quais é preciso nego-
ciar para que o sistema político funcione a contento. A sociedade civil passa a ser
tomada, assim, como um espaço completamente transparente, sem nenhuma zona
sombria, cujos participantes são todos e todas dotadas de voz e falam a gramática dos
direitos, ou melhor, uma de suas gramáticas específicas, a gramática das regras. 9 Além
de se comportarem, principalmente, de forma passiva na maior parte do tempo, ex-
ceto no momento da eleição.
No campo da Teoria Crítica, o predomínio de uma visão do estado de direito
centrada no livro Direito e Democracia de Jürgen Habermas também parece ter tido seu
papel neste processo. O livro demonstra, é verdade, o potencial emancipatório das
estruturas do estado de direito como o conhecemos na tradição ocidental, demons-
trando a sua capacidade de fazer com que o debate na esfera pública influencie o
poder do estado e imponha limites à racionalidade instrumental. Especialmente em
seu último capítulo, Habermas defende uma versão reflexiva do Estado de Bem-Estar
Social em função da defesa de um paradigma procedimental do direito, tema de que
tratamos na introdução a esta obra. No entanto, como mostrou na primeira hora uma
resenha brilhante de William Scheuermann, o livro foi incapaz de “dar expressão ade-
quada ao desconforto e a ansiedade legítimos com relação aos destinos da democracia
representativa no final do século XX” (SCHEUERMANN, 2014, 158).

7 Sobre este ponto, ver RODRIGUEZ, 2013b. Para uma resenha crítica exaustiva de literatura sobre a
sociedade civil até os anos 90 do séc. XX, ver COHEN & ARATO, 1994. Para uma reflexão compatível
com a minha no que diz respeito à análise dos mecanismos de contenção da força instituinte da soci-
edade, ver NEGRI, 2002.
8 Sobre o conservadorismo deste modo de pensar a atuação do Poder Judiciário, que naturaliza uma

certa concepção da separação dos poderes, ver o texto de Marcos Nobre e José Rodrigo Rodriguez em
RODRIGUEZ, 2013a.
9 Sobre este ponto, ver adiante a conclusão deste texto e o capítulo “Gramáticas do Direito Ocidental”.

29
Segue Scheuermann, o livro não incorpora em sua discussão das instituições
liberais uma crítica da democracia realmente existente, apresentando uma visão sur-
preendentemente moderada e conciliadora de suas instituições fundamentais. Direito
e Democracia mostra que tais instituições são capazes, em abstrato, de conter o poder
meramente instrumental do estado e do mercado, mas não se preocupa em discutir
como seria possível modificar sua lógica de funcionamento e, por via de consequência,
o eventual desenho destas instituições, a despeito de afirmar a centralidade do debate
na sociedade civil para a democracia e a necessidade de introduzir deliberação nas
práticas administrativas do Estado.
Ademais, como mostra Scheuermann, em seus momentos cruciais, o livro
de Habermas procede como se a deliberação que ocorre na sociedade civil pudesse
ser simplesmente “transmitida” por meio do direito para estado e mercado, sem que
haja uma discussão efetiva sobre como combater as assimetrias de poder presentes
na sociedade que impedem uma deliberação realmente livre e igualitária (SCHEUER-
MANN, 2014, 166-167) e uma discussão de eventuais alternativas à democracia liberal
como a conhecemos.
Habermas vê o Parlamento como o centro das decisões políticas, em detri-
mento da sociedade civil, cuja função é apenas tentar influenciá-lo. Para Habermas,
“apenas em momentos de grandes conflitos, em períodos de crise, e que a legislatura
finalmente tem “a última palavra” e, em seguida, “determina factualmente a direção” da
tomada política de decisões” (SCHEUERMANN, 2014, 171-173). Como afirma a
mencionada resenha, essa é a ambiguidade essencial do livro: Habermas faz afirma-
ções radicais sobre a centralidade da sociedade civil e sobre a necessidade de demo-
cratizar o Estado, mas, ao mesmo tempo, parece apenas aceitar as instituições liberais
já existentes, sem ser capaz de pensar em alternativas a elas ou de dialogar com as
forças sociais e os autores que estavam procurando trabalhar nesta direção.
Tal modo de pensar, acrescento, também mostra que o livro não reflete so-
bre o efeito do desenho das instituições sobre o tipo de pensamento e de interação
que elas tendem a produzir e eventuais alternativas a elas. Para citar um exemplo
bastante óbvio, uma democracia eleitoral de massa baseada apenas no voto tende a
produzir um debate público plebiscitário que articula respostas sim ou não para pro-
blemas complexos, que é temporalmente localizado na época das eleições e é influ-
enciado pelo marketing político, um instrumento que está mais voltado mais para
convencer os eleitores do que para promover a reflexão de todas as pessoas. Uma
democracia marcada por instrumentos participativos, por sua vez, em que as decisões
sejam tomadas de forma descentralizada pelos cidadãos em regime de participação
direta pode, eventualmente, favorecer o debate racional sobre temas mais substanti-
vos, além de não tratar as pessoas como meras “clientes” da política, e sim como
participantes ativas de sua concepção e efetivação.

30
Evidentemente este é um problema complexo que exige uma reflexão mais
situada e concreta: mecanismos participativos podem ser capturados por determina-
das pessoas e grupos diretamente interessados nos temas em debate, podendo funci-
onar como mero simulacro de democracia. A depender de quem tenha sido convo-
cado e quem tenha tido condições materiais para estar presente a uma audiência pú-
blica, por exemplo, pode-se estar diante de um êxito de participação popular ou de
uma perversão do direito democrático, conceito que será explicado adiante. Mesmo
assim, este tipo de problema não tira a relevância deste tipo de discussão, ao contrário.
A sensação de alienação das pessoas diante dos mecanismos de tomada de decisões
políticas pode ser fator importante na perda de legitimidade da democracia diante dos
cidadãos (NEUMANN, 2013).
Não parece razoável interpretar estas ausências, a ausência do debate sobre
o desenho da democracia em geral e sobre as inovações institucionais levadas adiante
na periferia do capitalismo como mera ignorância por parte de um autor de capacida-
des enciclopédicas como Habermas. Parece mais razoável afirmar, com Scheuermann,
que Habermas não incorporou este debate a seu livro pois parece defender o desenho
das instituições liberal-burguesas em suas feições mais clássicas como elemento ne-
cessário para a emancipação humana, o que contribui para naturalizá-las.
No que diz respeito à disciplina Ciência Política, MIGUEL (2017), em sen-
tido muito semelhante, afirma que tal ciência “é vítima da crença em sua própria nar-
rativa dominante” segundo a qual “o conflito social é totalmente englobado pelas
instituições”. E “A parte do conflito que não se expressa por via institucional é tratada
como residual e como demonstração de um amadurecimento ainda incipiente do
nosso sistema político” (MIGUEL, 2017: 47). Mas este problema não parece afligir
apenas à Ciência Política ou a pesquisa em ciências humanas em geral.
Ademais, a meu ver, foi emblemática e, ao mesmo tempo, triste para a es-
querda no poder e para a política tradicional em geral, a interação e a posterior refle-
xão recente e por escrito de Fernando Haddad, jovem liderança petista, então Prefeito
da Cidade de São Paulo, com as insurreições de Junho de 2013 na cidade de São Paulo.
Em texto publicado em 2017, 4 anos depois dos acontecimentos, o então Prefeito
afirma que “No intervalo de uma semana as ruas estavam cheias, com uma pluralidade
de reivindicações desconexas e às vezes contraditórias entre si” (HADDAD, 2017),
ou seja, ele ainda se ressentia da falta de uma liderança com quem pudesse negociar,
de demandas claras, de uma pauta clara que ele pudesse atender, ou seja, sentiu falta,
exatamente, de tudo aquilo que Junho de 2013 não podia lhe oferecer por não ter sido
estruturada como uma manifestação organizada pelos partidos, movimentos sociais e
sindicatos que fazem parte da política como a conhecemos.
Outro fator a ser citado para a comprovação da ilusão de totalidade a que nos
referimos aqui foi a postura meramente negativa de uma parte da inteligência brasi-
leira situada no campo do pensamento crítico, principalmente a partir do primeiro

31
governo Lula. Refiro-me especialmente os estudos que apontaram para um suposto
“fim da hegemonia” e uma suposta “capitulação da esquerda” (RIZEK, OLIVEIRA,
BRAGA, 2010; ARANTES, 2007). Tais estudos sugeriam ter ocorrido o fechamento
completo de qualquer perspectiva para a mudança social emancipatória no Brasil da
era Lula-Dilma e no mundo, sempre em função do poder inescapável do sistema ca-
pitalista, inescapável em sua capacidade de domesticar o conflito social para reprodu-
zir a si mesmo.
Esta postura, quem tem sido desmentida pela realidade das insurreições con-
temporâneas ao redor do mundo, à esquerda e à direita, tirou do foco destes autores
a pesquisa e a interação direta com os agentes sociais, deixando fora de seu radar a
formação de novas gramáticas para a luta social e para o direito, já existentes ou ainda
em germe na sociedade civil, inclusive gramáticas ainda mais conservadoras do que
aquelas que vigiam no começo dos anos 90 do século passado. A adoção desta postura
eminentemente negativa, de mera denúncia da arbitrariedade do poder que pressupu-
nha, de saída, que a batalha da emancipação já está perdida, a fatura já estava encerrada,
parece ter contribuído para a perda de foco da esquerda em geral na análise e discus-
são da movimentação das forças sociais atuantes na sociedade civil.
As rebeliões recentes têm servido para praticamente obrigar os cegos a en-
xergar, mas o que está sendo finalmente visto parece não estar ainda lá muito claro.
Prova disso é a variedade de termos utilizados para caracterizar os eventos de Julho
de 2013 do Brasil: “manifestações”, “movimentos”, “revoltas”, “rebeliões”, “jorna-
das”, “levantes” entre outros. Também as diversas maneiras de avaliar seu significado
para as instituições formais: "crise da democracia", "crise dos partidos políticos",
"crise do sistema político", "crise de representatividade" ou, de maneira mais positiva,
"surgimento de uma nova cultura política".
Não há espaço aqui para organizar esta literatura, que não para de crescer 10.
A variedade de caracterizações e diagnósticos das rebeliões de Junho e das insurrei-
ções ao redor do mundo sugere que o sentido daqueles acontecimentos está em dis-
puta. Por isso mesmo, qualquer organização desta literatura deverá identificar os pres-
supostos de que partem cada analista para traçar um mapa mais preciso do sentido
das diversas interpretações sobre estes eventos11.
Mas o objetivo deste texto é outro. Trata-se de discutir aqui, a partir da ideia
de uma suposta "crise da democracia brasileira", quais seriam as tarefas mais urgentes
da pesquisa em Direito e, mais especificamente, qual a minha pauta pessoal neste
contexto mais geral. Adianto que considero estarmos assistindo ao surgimento, pro-
vavelmente, de uma nova cultura política (NOBRE, 2013, 2014) resultante de um

10 Além dos trabalhos já citados, ver também CASTELLS, 2013; JEDENSNAIDER, LIMA, POMAR, OR-
TELLADO, 2013; VÁRIOS, 2012; VÁRIOS, 2013.
11 Recentemente chegou às livrarias um volume sobre Junho de 2013 em que autores declaradamente

de direita, como Denis Rosenfield e jornalistas pouco entusiastas do que ocorreu, como José Nêu-
manne Pinto, apresentam suas análises e opiniões sobre o que ocorreu, v. FIGUEIREDO, 2014.

32
novo ciclo de lutas (BRAGA & BIANCHI, 2017; BIROLI, 2017) que não se encaixa
completamente nas instituições formais, em especial no sistema político como está
estruturado nos dias atuais, no Brasil, mas não apenas aqui. Mas, se existe uma crise
da democracia, ela é do sistema representativo-eleitoral.
A meu ver, como será discutido em mais detalhes adiante neste livro, toda
democracia está e, para permanecer democrática, precisa estar permanentemente em
“crise”, afinal, sempre haverá desejos e interesses que ainda não emergiram na esfera
pública, que ainda não logram transformar seu sofrimento em demandas que possam
ser direcionadas para as instituições formais e se transformar em direito positivo; ou
que possa se organizar na forma da gramática da regulação social em espaços auto-
organizados, protegidos em sua racionalidade própria pelos poderes soberanos e pela
forma direito democrático, ou seja, pelo respeito a determinados direitos fundamentais e a
um certo procedimento de produção das normas que regulam a vida social que ga-
ranta que os interessados nas mesas tomem parte de sua criação.
A transformação institucional deve ser constante para que as instituições que
um dia foram democráticas, não se tornem autoritárias em razão de sua naturalização.
Como será aprofundado adiante, uma democracia deve garantir o que eu chamo de
“liberdade de insurreição” para todo e qualquer agente social questionar as normas
vigentes e o desenho das instituições postas. Uma democracia radical está sempre por
fazer, pois a inclusão de novos desejos e necessidades de indivíduos e grupos nunca
é mera “inclusão”. Tal processo necessariamente desestabiliza a posição dos demais
indivíduos e grupos, dando lugar a conflitos que tornam as instituições em geral, in-
clusive as instituições no âmbito da sociedade, relativamente instáveis e indetermina-
das. Um exemplo: a positivação do casamento entre pessoas do mesmo sexo no Brasil
e no mundo tem provocado protestos por parte dos grupos religiosos e críticas no
que diz respeito ao seu caráter conservador por alguns intelectuais.
Alguns grupos religiosos, a despeito de gozarem de liberdade de culto e de
expressão protegida pelo Estado, sentem que seus valores estão ameaçados por este
novo direito que protege os interesses de determinado grupo social. De sua parte,
indivíduos e grupos criticam este reconhecimento, de outro ponto de vista, por rea-
firmar os valores familiares e a autoridade do Estado sobre as relações sexuais e afe-
tivas. Da mesma forma, o reconhecimento pretérito de direitos sociais para os cida-
dãos e cidadãs é até hoje combatido sob a alegação de que tais direitos diminuem a
produtividade do trabalho, prejudicam as empresas em sua necessidade de renegociar
salários em épocas de crise e tratam as pessoas de forma paternalista tornando-as
dependentes do Estado.
Como se vê, nas democracias, se as instituições funcionarem bem, todos os
direitos estarão permanentemente em tensão e em risco. Toda naturalização de direi-
tos, veremos adiante, será sinal de patologia e, a depender de sua forma, de uma per-
versão do direito; sinal de que grupos sociais ou indivíduos estão tentando imunizar

33
sua posição em relação à luta por direitos por meio de uma estratégia furtiva que
procura apresentar como legais atos meramente autárquicos.
É provável que estejamos vivendo hoje um momento em que o descompasso
entre instituições formais e a sociedade esteja se mostrando de forma ainda mais
aguda, no entanto, algum descompasso sempre haverá. Aa tarefas que irei descrever
aqui são perenes, não se limitam a este momento histórico, ao menos até que seja
atingida a redenção final da espécie humana, reconciliada consigo mesma em uma
forma política final e perfeita, como parecem ainda acreditar alguns fabulosos autores
da filosofia política contemporânea, defensores de políticas do amor e da amizade.
Neste momento, vou me concentrar em dois temas que reputo centrais para
a minha pauta de pesquisa e para a reflexão do direito em geral, aos quais denominei
“mapa das lutas instituintes”, que inclui a discussão sobre “utopias institucionais”, e
as “figuras da perversão do direito”. Como veremos a seguir, a reflexão sobre estes
dois temas liga-se ao motivo mais geral deste livro que é a necessidade do estado de
direito de dar voz à sociedade para que a democracia não entre em declínio e veja sua
legitimidade ser corroída por dentro.
As pesquisas realizadas no âmbito do mapa das lutas instituintes visam jus-
tamente descobrir como e porque parte da sociedade utiliza a gramática dos direitos
para formular suas demandas e se existem espaços de regulação autônoma em funci-
onamento, que se compreendem fora do Estado, ainda que possam necessitar de sua
proteção, em algum nível; ou que estejam ultrapassando sua esfera de ação e influência.
Nesse sentido, o mapa tem como objetivo identificar demandas que nos ajudem a
refletir sobre a melhor forma de organizar a sociedade, ou seja, nos ajudem a imaginar
utopias institucionais capazes de levar em conta e contemplar, no limite, todos os
interesses e demandas sociais.
Já as pesquisas sobre a perversão do direito têm como objetivo identificar
estratégias autoritárias que procuram, por meio de uma roupagem jurídica aparente-
mente de acordo com as leis e com a Constituição, suprimir o poder da sociedade de
controlar a produção de normas jurídicas que ajudam a traçar os limites de sua exis-
tência. As diversas formas da perversão do direito irão nos mostrar quais são as es-
tratégias furtivas de que diversas formas de poder se utilizam para ocultar sua ação
autárquica sob a justificativa do direito como mera forma.
Esta reflexão inicial, ainda que de caráter tentativo, parece ser necessária di-
ante de uma série de reações agressivas manifestadas diante das rebeliões de Junho,
dos protestos contra a Copa das Confederações e da Copa do Mundo e durante o
mais recente processo eleitoral brasileiro. O atual ciclo de insurreições deixa claro, de
um lado, que há desejos e interesses não atendidos e não formulados na gramática
institucional posta e, de outro lado, que há cada vez mais partidários de posições cla-
ramente antidemocráticas e repressivas, que se colocam contra a "bagunça" das rebe-
liões a favor da "ordem", clamando por um retorno aos padrões de funcionamento

34
da política como ela é, com alguns aperfeiçoamentos (REYS, 2014; BAKER & DA-
MÁZIO, 2014; FABIANO MENDES, 2014).
Posições como estas têm se manifestado na esfera pública de forma cada vez
mais explícita, o que nos leva a pensar sobre a possibilidade de que esteja se formando
no Brasil um discurso antidemocrático relativamente organizado, partidário da ordem
e da hierarquia contra o pluralismo, a diversidade, a "bagunça" da sociedade civil,
capaz de atrair adeptos para se organizar politicamente e disputar o aparelho de Es-
tado. A relativa falta de estudos organizados sobre as forças conservadoras de direita
e sobre as classes altas brasileiras contribuem para dificultar uma análise como esta12,
a despeito de, no mundo todo, diante do aprofundamento dos efeitos da crise econô-
mica de 2008 e do avanço de organizações fundamentalistas antidemocráticas em di-
versos países, estarmos assistindo à ascensão eleitoral e ao poder de representantes
destas forças, como ocorreu recentemente no Brasil.
Mesmo assim, a meu ver, ainda não está claro se estamos diante de eleições
que consagram verdadeiros anseios antidemocráticos, anseios pela implementação de
regimes autoritários nos moldes dos anos 30 do século XX, ou se estamos diante de
manifestações de uma oposição geral ao sistema político como ele está organizado
hoje. Como será discutido adiante, especialmente na parte final deste livro, minha
hipótese é que este novo ciclo autoritário, em suas linhas mais gerais, esteja, ao menos
nesse momento, mais voltado para a criação de espaços autárquicos no âmbito da
sociedade civil nacional e transacional do que com a conquista direta do aparelho
estatal para implementar regimes autoritários, como ocorreu na primeira metade do
século XX.
O Estado continua a ser disputado por estas forças políticas, mas, talvez
principalmente, com a finalidade de garantir que este aparelho não interfira na dinâ-
mica autônoma destes centros de produção normativa, apenas garanta sua imunidade
em relação a qualquer interferência externa. Trata-se de conquistar ou influenciar o
Estado para esvaziar seu poder e não criar um estado autoritário ou totalitário, mas
sim um estado cúmplice da autarquia societal ou, para utilizar os meus conceitos,
esclarecidos a seguir no capítulo sobre “as gramáticas do direito”, de uma regulação
social autárquica.
Para além do contexto atual, reflexões como estas são importantes em todo
e qualquer momento histórico. Afinal, é justamente a ideia de que a democracia po-
deria estar em crise ou que ela não seria capaz de lidar com os problemas contempo-
râneos que pode alimentar correntes autoritárias e fazer nascer agentes políticos ca-
pazes de disputar com chances de vitória o poder do estado. Exemplos históricos da

12
A exceção aqui é Antonio David Cattani, que desenvolve há muitos anos uma linha de pesquisa sobre as
classes altas brasileiras, ver CATTANI, 2019. Mais recentemente, a nova direita tem sido estudada mais siste-
maticamente, por exemplo: LACERDA, 2019; CASIMIRO, 2019; MACHADO & FREIXO, 2019.

35
ascensão de elementos marginais no sistema político para o centro da cena em cená-
rios de perda de crença nas instituições formais não faltam, a começar pelo regime
nazista para chegar nas atuais forças de extrema-direita em plena ascensão na Europa
e nos Estados Unidos.

Mapa das Lutas Instituintes de Utopias Institucionais

A primeira tarefa a ser levada adiante pela pesquisa em ciências humanas em


geral, e pela pesquisa em direito em particular, é investigar como e em que circuns-
tâncias a sociedade civil decide mobilizar a gramática das regras (sobre este ponto, ver
adiante o capítulo “As gramáticas do direito”) para levar suas demandas aos organis-
mos do estado. Trata-se de investigar quais são os movimentos sociais que efetiva-
mente apostam na reivindicação de direitos e que espécie de direito está sendo reivin-
dicado. Ou seja, como os agentes sociais formulam suas demandas e que setores do
ordenamento jurídico eles procuram ativar para satisfazer seus desejos e interesses.
Também, se for o caso, para quais poderes do Estado as demandas por direitos são
levadas sob a forma de demandas por novas leis, decisões judiciais ou normas regula-
mentadoras13. Além disso, que demandas tem o potencial de romper completamente
com a ordem vigente e criar outros centros autônomos de produção de normas.
Há demandas por direitos que se iniciam com campanhas na sociedade civil,
por exemplo, a atual demanda do movimento LGBT pela criminalização de atos con-
tra a identidade de gênero (SIMÕES & FACCHINI, 2009). O movimento feminista
e o movimento negro também têm mobilizado boa parte de seus recursos políticos
para reivindicar a criação de crimes que punam a violência contra a mulher e contra a
discriminação racial, com resultados positivos (GREGORI & DEBERT, 2008; RO-
DRIGUEZ, PÜSCHEL, MACHADO, 2012).
Temos assistido, portanto, à mobilização de um aspecto da gramática dos
direitos e do estado pelos agentes sociais com o objetivo de satisfazer seus desejos e
necessidades. O direito não tem tratado a sociedade como mero elemento passivo da
regulação: os agentes sociais têm utilizado ativamente a gramática das regras para tra-
duzir suas demandas em reivindicações por direitos que se consolidam em políticas
públicas as mais variadas, reivindicadas junto aos três poderes do estado (AGRIKO-
LIANSKY, 2010; CARDOSO & FANTI, 2013).
Desde 1988, diga-se, estamos assistindo a um duplo processo de socialização
do estado e judicialização da sociedade que tem como efeito a democratização crescente do
aparelho estatal, transformado pela reivindicação de direitos por parte dos agentes
sociais, e o aprendizado social do significado e da linguagem dos direitos. Tal processo
instaurou uma nova gramática para as lutas sociais brasileiras, pois a sociedade civil e

13A coletânea “Law and Social Movements” organizada por Michael MacCann traz uma série de textos
sobre estes problemas (MACCAN, 2008)

36
a esfera pública se juridificaram.14 Boa parte dos conflitos tomaram a forma de dis-
putas pela positivação de direitos, normalmente sob a forma de leis criadas pelo es-
tado destinadas a regular a conduta dos cidadãos e cidadãs.
Veremos adiante que a gramática do direito não se resume a esta forma de
regular. Ela pode também tomar a forma de regulação social autônoma, ou seja, a reivin-
dicação de espaços de produção normativa relativamente imunes ao poder do estado,
ainda que sujeitos a determinados limites impostos por ele. Espaços que produzem
normas próprias com a expectativa de gozar do respeito do Estado e dos demais
agentes e grupos sociais.
As demandas sociais criminalizantes, notemos bem, foram dirigidas princi-
palmente ao Parlamento em um processo de mobilização e pressão que ainda está
para ser estudado em maiores detalhes. Seria interessante investigar, por exemplo,
qual a justificativa dos movimentos sociais para dar tanta atenção ao direito penal e
de que forma eles planejaram e executaram suas ações. Com que representantes do
povo eles entraram em contato, que tipo de intervenção na esfera pública eles levaram
adiante para pressionar o Parlamento, se eles tinham contato com advogados, defen-
sores públicos, membros do Ministério Público no momento de construir e veicular
suas demandas, se eles tiveram alguma intervenção nas comissões ou nos debates no
plenário de algum dos braços do poder legislativo municipal, estadual ou federal.
Mas o Parlamento não é a única arena da luta por direitos no estado brasilei-
ros. O Poder Judiciário tem sido um espaço privilegiado para a disputa sobre o sentido
das normas de nosso ordenamento jurídico, processo que tem resultado em decisões
altamente relevantes para a sociedade, como a que reconheceu o direito de que pes-
soas do mesmo sexo constituam famílias, proferida pelo Supremo Tribunal Federal,
entre outras (FERREIRA & FERNANDES, 2013).
É necessário investigar como estas demandas chegaram ao Poder Judiciário,
se elas foram resultado da relação entre agentes individuais ou movimentos sociais
com advogados, advogadas, membros da Defensoria Pública ou do Ministério Pú-
blico ou outras autoridades. Também como estes agentes e movimentos atuaram para
tentar influenciar o tribunal em suas intervenções na esfera pública e por meio da
articulação de determinados argumentos jurídicos elaborados em interação com pro-
fissionais do direito. E como estas disputas se desenvolvem no interior do Poder Ju-
diciário: que argumentos são utilizados nos conflitos dogmáticos e quais são a deci-
sões proferidas pelos juízes de primeiro e segundo grau (RODRIGUEZ, PÜSCHELL,
MACHADO, 2012).

14Além dos estudos citados, vale a pena citar, como contraprova da presença pervasiva dos direitos
em praticamente todas as áreas das Ciências Humanas, a coletânea “Sexualidade, gênero, diversida-
des”, organizada por pesquisadores em psicologia, que traz uma série de textos que tocam em ques-
tões jurídicas (LAGO, TONELLI, SOUZA, 2013), as pesquisas sobre as controvérsias no campo religioso
de Paula Monteiro (MONTEIRO, 2012) e as pesquisas sobre direitos sexuais de Taysa Schiocchet
(SCHIOCCHET, 2007).

37
Aqui um ponto importante: o debate sobre o sentido dos direitos no interior
do ordenamento jurídico, ou seja, o estudo do direito do ponto de vista da dogmática
jurídica em uma sociedade democrática, deve ter um caráter dinâmico. Os direitos mu-
dam de função, como diria Karl Renner (RENNER, 1976), em razão do estado atual
das lutas sociais. As forças sociais emergentes questionam o direito posto, mobilizam
a linguagem dos direitos e transformam o conteúdo e o sentido do ordenamento ju-
rídico em um processo constante. Qualquer paralisação deste processo é provavel-
mente um sinal de que as instituições não são mais capazes de dar voz aos desejos e
demandas sociais em razão de algum mecanismo de naturalização dos direitos que
favorece os interesses deste ou daquele grupo.
Para Renner o motor da mudança do direito era a transformação social com-
preendida como algo de objetivo, ontológico, de acordo com o modelo clássico mar-
xista do choque das relações produtivas com as relações de produção o qual, segundo
ele, não provoca necessariamente a ruptura do direito posto: pode apenas transformá-
lo alterando seu sentido. Ao apontar as lutas sociais como motor da mudança, estou
atualizando a obra do autor para o atual momento histórico. Em minha interpretação,
muito próxima a de Franz Neumann, a mudança de função do direito está ligada à
indeterminação constitutiva do material jurídico em sociedades pluralistas que sempre
abre espaço para o surgimento de um sem número de interpretações diferentes, as
quais desestabilizam o direito compreendido como algo que emana das autoridades
instituídas.
Existe uma tensão constitutiva entre o direito como sentido e o direito como
poder, para usar os termos de Robert Cover, na qual a proliferação de sentidos coloca
o poder instituído em questão continuamente (COVER, 1995)15. Nos termos de Co-
ver, adaptados para as minhas finalidades, o processo de jurisgênese é constante,
nunca cessa: assistimos continuamente à criação de novas narrativas sociais sobre o
que é certo e o que é errado, sobre o que deve ser permitido ou proibido, ou seja,
surgem sempre novas práticas e formas de vida as quais podem se acomodar ao direito
posto ou assumir uma postura institutinte, reformista ou revolucionária.
Este processo desestabiliza continuamente o sentido do direito posto e pode
se constituir em um movimento de criação de ordens normativas relativamente autô-
nomas as quais podem ou permanecer insuladas no interior dos Estados, como uma
comunidade Amish, normatividades revolucionárias que entrem em choque aberto
com o Estado e procurem afastar completamente o seu poder de regular todo e qual-
quer assunto e, ainda, normatividades transversais como Uber e outras normativida-
des transnacionais, especializadas por assunto, que se colocam além do controle do
estado, ainda que, por assim dizer, de forma transversal ao tratar de alguns temas, sem
entrar em choque aberto com a totalidade do poder do Estado.

15
Minha segurança na utilização das ideias de Cover deve muito ao trabalho de mestrado de Mauricio Pedroso
Flores “Um Anarquista que Amava o Direito”, v. FLORES, 2018.

38
Nesse sentido, diz Cover, a pesquisa em direito deve incorporar não apenas
o ser e o dever ser, mas também a dimensão do vir a ser que se revela na fricção
constante entre novas práticas e formas de vida e o direito posto. É justamente por
esta razão que o poder político, econômico ou social pode pretender naturalizar o
sentido do direito e a sociedade a desestabilizá-lo continuamente, ideia que Franz
Neumann expressou por meio da dualidade “political rule of law” e “rational rule of
law”, em uma tradução criativa, “poder instituinte”, societal e insurgente, e o “poder
constitucional”, formal e conservador. Nada garante, é claro, que o poder instituinte
(ver adiante o capítulo “Poder Instituinte X Poder Constitucional”) mantenha-se cir-
cunscrito aos limites de uma certa ordem constitucional: ele pode tender a criar uma
nova, ou seja, assumir uma postura abertamente revolucionária.
A indeterminação social do direito fica bastante evidente em países nos quais
a jurisprudência tem um papel importante na criação de normas, como é o caso do
Brasil, especialmente depois da democratização do país, que também promoveu a
democratização do acesso ao sistema jurídico (RODRIGUEZ, 2009a e 2013a). A re-
cuperação da obra de Karl Renner, diga-se, autor esquecido nos últimos anos, parece-
me central diante do atual momento histórico. Pois o estudo das demandas sociais
sob este prisma permite identificar que espécie de direitos tem sido reivindicados pe-
los movimentos sociais16 e qual o significado e as consequências dessas reivindicações
para a sua compreensão e configuração mesma. Também é possível refletir sobre
quais são os agentes e movimentos que têm direcionado suas demandas para esta via
e quais aqueles que ficaram de fora por opção ou por falta de acesso aos poderes do
estado.
Como já dissemos acima, a demanda por cada vez mais crimes e penas parece
ser a tônica da parte das reivindicações dos movimentos sociais contemporâneos,
mesmo diante de críticas bastante intensas a respeito da inefetividade e seletividade
do sistema penal (CARVALHO, 2013). O movimento negro, adotando uma estraté-
gia diferente, apostou suas fichas em demandas de outra natureza como ações afir-
mativas em vários campos (PAIVA, 2013) e o ensino obrigatório de história da África
nas escolas, para ficar em apenas dois exemplos17.
Estas não são demandas por punição de comportamentos indesejados, mas
a reivindicação de medidas que visam a dar acesso à população negra a ensino de
qualidade e postos de trabalho no estado. O ensino de história da África, por sua vez,
procura valorizar a cultura negra para tentar afastar os estigmas que pesam sobre os
negros e negras brasileiros. No caso das religiões afro-brasileiras, se pensarmos no
terreiro como espaço de subjetivação e construção de formas de resistência aos ata-
ques por parte de determinados grupos religiosos, podemos apontá-los também como
alternativa de regulação social à hegemonia criminalizante.

16 Para a síntese de alguns estudos sobre jurisprudência nesta linha, ver RODRIGUEZ & FERREIRA, 2013.
17 Sobre a demanda por ensino da história da África, ver RODRIGUES, 2005.

39
De outra parte, demandas ecológicas e que atinem a comunidades indígenas
e quilombolas, têm perdido força junto ao Poder Executivo e ao Poder Legislativo,
tendo sido direcionadas principalmente ao Poder Judiciário, que julgou uma causa tão
importante quanto a demarcação de terras indígenas de Raposa Serra do Sol. A des-
peito disso, há análises que procuram mostrar como os conflitos ambientais brasilei-
ros, nos últimos anos, têm sido negociados por meio da relativização de direitos ga-
rantidos pela constituição, os quais se tornaram obstáculos para o avanço do projeto
neodesenvolvimentista levado adiante pelos últimos governos (ZHOURI & VA-
LENCIO, 2014). Minhas pesquisas sobre comunidades tradicionais também mostra-
ram como seus problemas têm sido deixados em segundo plano na agenda dos últi-
mos governos, com uma série de iniciativas que não tem tido nenhuma continuidade
(RODRIGUEZ et alii, 2011).
Estes são apenas alguns pontos que merecerão atenção na construção e re-
construção constante do mapa das lutas instituintes, uma iniciativa que pode ser ali-
mentada por uma série de projetos de pesquisas individuais e coletivos com o objetivo
mais geral de construir uma visão ampla da reivindicação de direitos no Brasil e em
escala global18; também dos grupos que não têm utilizado a gramática da reivindicação
de direitos, seja porque não acham esse caminho adequado para seus objetivos, seja
porque não têm conseguido acesso ao direito e aos poderes do estado ou, ainda, por-
que se sentiram incomodados com o reconhecimento de direitos que beneficiam ou-
tros indivíduos e grupos e pretendem destruir tais direitos ou conquistar direitos si-
milares para si.
A construção dinâmica e permanente deste mapa parece ser ainda mais ur-
gente diante dos recentes acontecimentos no Brasil, a contar da crise mundial de 2008
e as manifestações de Junho de 2013. Estamos imersos em um momento de acirra-
mento crescente dos conflitos sociais e políticos, ao menos se tomarmos nas mãos os
atuais diagnósticos sobre a economia brasileira e as características da última eleição
presidencial. Com efeito, desde Junho de 2013, há uma forte pressão sobre os gover-
nos pela melhoria dos serviços públicos, inclusive o transporte nas cidades, estopim
daquelas rebeliões. Parte do que ocorreu naquele ano certamente expressa uma pres-
são social por mais gastos públicos direcionados à classe média e aos mais pobres. O
problema é que o país parece não ter mais capacidade de investir mais e de forma
significativa a favor desta parcela da população sem tocar nos interesses de outros
indivíduos e grupos (MENDES, 2014a).
Durante o primeiro e o segundo governo Lula, diante do crescimento da
economia mundial, foi possível aumentar a renda dos mais pobres sem tocar nas ins-
tituições que perpetuam o rentismo brasileiro (LISBOA & LATIF, 2014; MENDES,

18Sobre os movimentos sociais no âmbito global, ver SANTOS & RODRIGUEZ-GARAVITO, 2007;
BÜLOW, 2014; KRON, COSTA, BRAIG, 2012; JELIN, 2003.

40
2014), uma série de benefícios fiscais, incentivos, financiamentos e tributos que favo-
recem à parte mais rica da população. A situação atual é diferente. Neste momento,
análises como a de Marcos Mendes mostram que a sociedade brasileira só vai conti-
nuar a melhorar os padrões de renda dos mais pobres mediante um conflito distribu-
tivo real, ou seja, mediante a alteração do equilíbrio de forças dos diversos grupos
sociais na participação da divisão dos recursos públicos.
Como a extrema desigualdade brasileira faz com que a disputa por estes re-
cursos seja muito acirrada, a desaceleração da diminuição das desigualdades brasileiras
pode levar a classe média emergente, em busca de uma parcela maior na riqueza social,
a questionar de fato os benefícios voltados aos mais ricos (MENDES, 2014a). Im-
portante dizer que o debate sobre o rentismo não é apenas nacional. Depois do livro
de Thomas Piketty, O Capital no Século XXI, publicado em 2013, esta discussão é mun-
dial e tornou mais difícil afirmar que a proteção dos ricos, por exemplo, com a utili-
zação de determinados mecanismos tributários, seja uma exclusividade de países
emergentes.
O livro de Piketty mostra que a renda é mais importante do que a produção
na geração de riqueza e, mais do que isso, que estamos assistindo a uma concentração
da renda em níveis próximos a do século XIX, tendo havido uma reversão do pro-
cesso de distribuição ocorrido no começo do século XX. Cada vez menos pessoas
controlam os destinos da poupança mundial e vivem dos rendimentos desse capital
não produtivo, o que aprofunda as desigualdades mundiais e desequilibra a balança
de poder em favor dos mais ricos (PIKETTY, 2014).
De um possível acirramento dos conflitos mundiais e nacionais em uma fase
de questionamento dos organismos internacionais e da capacidade dos estados de
lidar com os conflitos sociais pode resultar o surgimento de formas de protesto mais
agressivas, bem diferentes da reivindicação de direitos junto aos poderes do Estado.
É certo que o repertório das lutas sociais sempre incluiu outras formas de reivindica-
ção como manifestações públicas, boicotes, greves, festas, ocupações, atos de deso-
bediência civil, entre outros (TILLY, 2008; THOMPSON, 1966). Mas ao menos
desde a democratização do Brasil, após a Constituição de 1988, até as rebeliões de
Julho de 2013, o sistema político e a linguagem das regras pareciam dar o tom da
maior parte das lutas sociais brasileiras e ocidentais em geral.
Junho de 2013 no Brasil e outras rebeliões ao redor do globo mostraram que
as coisas parecem ter mudado. Os desejos e interesses de Junho se mostraram de
forma radicalmente plural (GOHN, 2014; NOBRE, 2013). Houve na época e certa-
mente haverá no futuro algumas ações violentas, em especial de depredação de agên-
cias bancárias e concessionárias de carro levadas adiante pelos Black Blocks, que con-
taram com baixíssima tolerância por parte da sociedade. Em minha opinião, a reação
dos meios de comunicação e da polícia foi desproporcional para responder a atos
isolados, com autores claramente individualizados, atos que não tomaram conta de

41
nenhuma manifestação, tiveram baixa relevância econômica e foram repudiados e
combatidos, inclusive, pela maioria dos manifestantes nas diversas ocasiões em que
ocorreram.
Seja como for, em um momento de possível acirramento do conflito e des-
crédito das instituições do estado de direito, é necessário refletir, a par da discussão
da reivindicação de direitos, sobre o sentido e a legalidade de outras formas de mani-
festação da sociedade, como por exemplo a desobediência civil; formas que não se
encaixam perfeitamente nos canais usualmente utilizados para promover a reivindica-
ção de direitos e a participação do povo na condução do futuro do estado.19 Neste
momento em que parece estar claro que há desejos e necessidades sociais ainda não
articulados em demandas organizadas, adotar uma postura muito agressiva e restritiva
perante manifestações vindas da sociedade civil pode contribuir para alimentar a ali-
enação desta em relação às instituições formais e a empurrar os grupos mais radicais
a adotarem meios cada vez violentos.
Não podemos ignorar que a história da democracia e do estado de direito é
feita de rebeliões contra o estado atual das instituições e contra o conteúdo do direito
posto. Nem sempre é possível promover e construir novos direitos e novas institui-
ções de forma completamente pacífica e sem que haja espaço para que a sociedade
questione abertamente o que está posto, advogando reformas ou simplesmente a su-
pressão de determinadas leis e instituições formais. Por exemplo, houve uma época
em que o direito posto considerava sindicalizar-se um crime e reivindicar direitos tra-
balhistas um desrespeito à liberdade de contratar entre empregados e empregadores.
Foi apenas com a desobediência aberta e sistemática às leis em conflitos, infelizmente,
sangrentos, que os trabalhadores foram capazes de mudar o direito e as instituições.
A reflexão sobre estes e outros tantos fatos históricos pode nos ajudar a evitar novos
banhos de sangue.
O legalismo radical e intolerante é uma patologia (ver adiante no capítulo
“Poder e Dominação”) que empurra a sociedade para a violência ao frustrar a pro-
messa democrática de criar um regime em que os cidadãos e cidadãs submetam-se
apenas às leis que eles mesmos criaram. Ora, diante de desejos e necessidades insti-
tuintes que se renovam a cada momento histórico, limitar a democracia à gramática
atual das instituições e da reivindicação de direitos; advogar que um regime democrá-
tico deve se pautar sempre pela obediência ao direito posto, ao poder constitucional
como o conhecemos, significa condená-lo ao declínio, pois ele irá perder legitimidade

19Exemplares aqui CELIKATES, KREIDE, WESCHE, 2015 e SCOTT, 2012. Vale a pena citar também a
interpretação original de Robert Cover para o fenômeno da desobediência civil, interpretada por ele
como a tentativa de um grupo de viver de acordo com a sua regra, de implicar seu corpo na defesa da
regra em que acredita. Desta forma, é possível colocar em xeque a regra que se julga injusta e imaginar
com maior concretude uma comunidade futura em que a regra defendida fizesse parte do direito
posto. Ver COVER, 1995.

42
por deixar de fora as demandas de novos grupos sociais as quais só podem ser inclu-
ídas com mudanças nas leis e no desenho das instituições.
É evidente que devemos respeitar as normas jurídicas sob pena de frustrar
sua função precípua: afastar a violência social aberta que prejudica, principalmente,
os mais pobres desorganizados e desprovidos de recursos para promover a sua auto-
defesa. Mas é também evidente que reformá-las, suprimi-las e protegê-las de qualquer
mecanismo de naturalização que as perpetuem acriticamente, que as coloque sempre
acima de qualquer suspeita, é uma tarefa central para o estado democrático de direito
e para juristas comprometidos com a boa saúde do regime democrático.
Resta mencionar mais um ponto importante para a reflexão sobre a capaci-
dade do direito de lidar com as lutas sociais, mais uma tarefa relacionada a este mapa.
Trata-se da discussão sobre a gramática que caracteriza o estado do direito ou, para
falar de maneira mais precisa, da identificação das duas gramáticas do estado de direito,
a gramática de regulação estatal e a gramática da regulação social.
Esta discussão também é importante para mostrar que a gramática do direito
é mais plástica, é mais aberta do que muitos de seus críticos imaginam (por exemplo,
FOUCAULT, 1999), tema que será abordado com mais detalhes adiante, em capítulo
específico.20 Com efeito, a maior parte das críticas ao estado de direito tem se con-
centrado na gramática da regulação estatal que cria normas abstratas de comporta-
mento para regular o comportamento da sociedade. Mas há também a gramática da
regulação social em que o estado atua como meio facilitador para que a sociedade
possa produzir normas jurídicas de maneira autônoma, sem passar pelo sistema polí-
tico, mas sempre dentro de determinados limites materiais e formais.
Talvez por fazer parte do campo da regulação social autônoma, os contratos
têm sido identificados como um fenômeno de matriz estritamente liberal. Mas esta
avaliação não esgota seu potencial para dar voz aos desejos e necessidades sociais. Por
exemplo, no caso da questão indígena, é possível organizar o direito para reconhecer
o caráter jurídico das normas criadas pelas várias comunidades que vivem no Brasil,
problema de que tratarei com mais vagar adiante (v. Cap. 14, “Normatividades Plu-
rais”). Como mostra Robert Cover, no limite, esta gramática pode resultar na criação
de um nomos separado, um mundo paralelo de normas, coerente em si mesmo e res-
peitado por uma determinada comunidade como os Amish e outros fenômenos se-
culares nascidos, por exemplo, da renúncia à Constituição norte-americana (COVER,
1995)21.

20 No fundamental Michel Foucault e o Direito, Marcio Alves da Fonseca constrói uma série de imagens
do direito a partir de sua interpretação da obra de Foucault e a última delas, que permaneceu menos
nítida, seria a imagem de um “direito novo” que não seria marcado pelo princípio da soberania e, por-
tanto, não seria caracterizado pela gramática da regulação estatal: ver FONSECA, 2012.
21 Cover apresenta aqui uma distinção importante para refletir sobre o tema da fragmentação do di-

reito, um tema de pesquisa dos mais importantes do mundo atual, em especial pelos desafios que põe
à capacidade regulatória dos estados e organismos internacionais em relação às empresas transnaci-
onais. Há fenômenos da fragmentação em que são desenvolvidos regimes privados de regulação que

43
Não há espaço para desenvolver este ponto aqui, mas é importante ao menos
pontuar que a sociedade pode reivindicar o direito para regular diretamente sua con-
duta ou para facilitar a regulação social autônoma22. É claro, tal reivindicação está
sujeita a variações em função do tema a ser debatido e pode ser reclamada em nome
de valores democráticos ou da violência. Por exemplo, no caso de violência doméstica,
a estratégia dos movimentos sociais tem sido chamar o Estado a intervir sobre a so-
ciedade de forma dura e inequívoca para retirar autonomia das famílias por meio da
criminalização das condutas dos homens violentos. Em campos como a questão in-
dígena, a estratégia parece ser outra. A demanda tem sido de conceder mais espaço
para a regulação social autônoma e menos espaço para a intervenção direta do estado
sobre as comunidades indígenas.
A partir das informações obtidas pela construção do mapa tendo em vista a
reflexão sobre as gramáticas do direito, é possível refletir sobre alternativas instituci-
onais mais ou menos democráticas, ou seja, mais ou menos capazes de transformar
as pessoas em autoras das normas que regulam as suas vidas, seja no processo de
criação de leis via Parlamento, seja com a criação e o reconhecimento de espaços
autônomos de criação de normas jurídicas. Tal reflexão sobre possíveis utopias insti-
tucionais a partir das possibilidades já inscritas na realidade, não devem tomar como
ponto de chegada o desenho atual do estado de direito ou seu modelo tradicional de
três poderes. O trabalho aqui é de expandir a imaginação institucional a partir das
demandas sociais, tendo em vista a radicalização da democracia.
Um exemplo histórico interessante pode ser evocado aqui: como se sabe, as
estruturas da previdência social resultaram de uma incorporação e transformação pelo
Estado de instituições criadas diretamente pelos trabalhadores, a saber, caixas de as-
sistência mútua (FALEIROS, 1980). O desenho das instituições do Estado Social não
foi feito, assim, em uma prancheta, a partir do zero, mas na interação entre demandas
sociais insurgentes que resultaram na transformação da forma do Estado em razão da
ação e das reações dos diversos agentes sociais e dos agentes do Estado. A construção
de utopias institucionais deve seguir este padrão.

Figuras da perversão do direito

A segunda tarefa da pesquisa em Direito, e da pesquisa em ciências humanas em geral,


é criar uma teoria da perversão do direito, projeto ao qual comecei a me dedicar em

se referem a um determinado assunto, por exemplo, a internet e a lex mercatoria (TEUBNER, 2003,
2005). E fenômenos de fragmentação que tendem para a formação de um nomos, ou seja, uma comu-
nidade separada, dotada de uma constituição própria. Para ficar em meu aparelho conceitual, o pri-
meiro fenômeno eu tenderia a classificar como “perversão do direito” e o segundo não.
22 Importante ressaltar que algumas análises dos movimentos sociais contemporâneos mostram que

é justamente essa a demanda prevalente entre suas diversas correntes, inspiradas principalmente em
ideias anarquistas. Por exemplo, ver DAY, 2005 e a parte final de CREAGH, 2009. Para um panorama
geral sobre os novos movimentos sociais, ver FILLIEULE; AGRIKOLIANSKY, SOMMIER, 2010.

44
minha tese de Doutorado, publicada sob o título de Fuga do Direito: Um estudo sobre o
direito contemporâneo a partir de Franz Neumann. Para a formulação do problema neste
texto, tomo a ideia de perversão do direto livremente inspirado nas páginas do livro Brasil:
Nunca Mais, o relatório das pesquisas da Comissão Justiça e Paz sobre a tortura no
Brasil na época da ditadura militar (ARNS, 2011). No livro, considera-se perversão
do direito a manipulação das normas com o intuito de dar forma jurídica a atos arbi-
trários que não seriam tolerados caso as instituições estivessem funcionando normal-
mente; atos que destoam da literalidade das leis ou que violam práticas evidentemente
legais. Em um sentido mais geral, todo obstáculo que se coloque no caminho da au-
tonomia da sociedade de gerir a sua própria existência, pode ser considerada como
uma patologia, nos termos de Honneth (2008; 2009), ou seja, que naturalize uma
forma de vida apresentando-a como a forma de vida definitiva e final. Em sentido
mais específico, perversão do direito é a estratégia de produzir tal obstáculo sob a
aparência de legalidade.
Nesse sentido, vou chamar de perversão do direito determinados comportamen-
tos institucionais que, mesmo sob a égide de um regime democrático, se utilizam da
aparência de direito para criar espaços de puro arbítrio nos quais é possível agir sem
o controle da sociedade civil, em função apenas dos interesses dos poderosos. Em
um regime democrático, insistimos, as normas que regulam nosso comportamento
devem ser responsivas aos desejos e necessidades sociais, seja em sua criação, seja em
sua aplicação. A criação de normas que não passem pelo crivo da sociedade ou que
atinjam de forma injusta determinados grupos e não outros caracterizam a perversão
do direito, a qual faz com que o estado de direito passe a funcionar de maneira pato-
lógica, frustrando a promessa que este regime faz às sociedades nas quais está presente.
A perversão do direito, veremos a seguir, pode se manifestar em três figuras diferentes:
legalidade discriminatória, zona de autarquia e despersonalização jurídica.

Fuga do direito

Em meu doutorado, eu chamei de fuga do direito em um diálogo com a obra


de Franz Neumann, em especial o livro O Império do Direito, escrito em 1936, publicado
em alemão e inglês apenas na década de 80 e em português em 2013 (NEUMANN,
2013) a tendência do poder de estabelecer espaços autárquicos, livres do controle
social, capazes de produzir normas de forma unilateral, sem a participação de seus
destinatários.
Minha interpretação do pensamento de Neumann, que apresento aqui em
uma síntese de meu livro Fuga do Direito, sustenta que nosso autor toma como central
para suas análises o fato de que, em determinado momento histórico, a classe operária
tenha se voltado para o estado com a finalidade de reivindicar direitos. Este processo
resultou na conquista dos assim denominados direitos sociais os quais, ainda no início

45
do século XX, promoveram mudanças profundas na forma do estado, na hierarquia
das fontes de direito e na balança de poder entre as classes.
A luta do proletariado, cujo objetivo era reconquistar a sua autonomia ex-
propriada pelo contrato de trabalho, compreendido como mera operação privada, só
pôde ocorrer em razão da existência do estado de direito. Em primeiro lugar, do
ponto de vista das interações entre sociedade e estado, o estado de direito, compre-
endido como forma de pensar e como meio de legitimação do poder, ofereceu uma
justificativa plausível para fundamentar as reivindicações insurgentes dos trabalhado-
res e trabalhadoras no momento em que os sindicatos ainda eram combatidos pela
polícia e a greve era considerada um crime, justamente por violar as regras do contrato
de trabalho.
Afinal, como explica Neumann, se o império do direito edificado pela bur-
guesia se apresenta na aparência como um regime que serve aos desejos e necessida-
des de todos, nunca a interesses de grupos específicos, não faz sentido tratar as rei-
vindicações do proletariado como se fossem ilegítimas. Para que a ideia de estado de
direito se mantenha na condição de justificação coerente do poder estatal, ele precisa
reconhecer e se propor a acolher as demandas vindas da sociedade.
O problema é que acolher novas demandas, por óbvio, desestabiliza os inte-
resses dos grupos incluídos, reconhecidos e protegidos pelas leis até então positivadas,
tornando necessário rearticular continuamente a justificação do que significa servir
aos desejos e necessidades de todos para que o direito positivado faça sentido racio-
nalmente a cada momento histórico e possa ser objeto de adesão dos cidadãos e ci-
dadãs. A oposição aos direitos trabalhistas para ficar apenas em um exemplo, não
cessou até hoje, mesmo nos países em que eles alcançaram relativa instabilidade, ou
seja, em parte do continente europeu.
Para Neumann, uma das explicações para o advento do nazismo foi, justa-
mente, a oposição da burguesia ao uso do estado de direito e de sua gramática em
favor dos interesses do proletariado. Diante destes desenvolvimentos indesejáveis do
estado de direito, porque contrariavam os seus interesses, a burguesia decidiu aban-
donar esta forma racional de justificação do poder, passando a tolerar ou a apoiar
abertamente a liderança carismática de Adolf Hitler contra a livre manifestação dos
desejos e necessidades da sociedade civil, com o objetivo de desarmar a ligação entre
demandas sociais e instituições formais.23
O nazismo procurou, portanto, negar à sociedade civil a liberdade de questi-
onar e transformar o direito posto ao expropriar a autonomia da sociedade com a
finalidade de desarmar o mecanismo que poderia fazer com que os debates morais,

23Contemporaneamente, o cientista político William Sheuermann mostrou como boa parte das atuais
formas de globalização da economia, como a lex mercatoria, podem ser vistas como uma maneira de
sabotar o controle da sociedade sobre a produção de normas que limitem os contratos. Ver SCHEUER-
MANN, 2008.

46
éticos e de qualquer outra natureza pudessem ter consequências efetivas para a cons-
trução autônoma do regime normativo daquela sociedade em razão de seu impacto
efetivo sobre o desenho jurídico de suas instituições formais.
Nesta época na Alemanha, novos ramos do direito estavam surgindo, por
exemplo, o direito do trabalho, cujo objetivo era, justamente, equilibrar as posições
dos empregados e empregadores na regulação do preço e das condições de trabalho.
No direito do trabalho, por princípio, a vontade livre é suspeita, justamente em razão
da desigualdade de poder econômico entre as partes, e são criadas cláusulas obrigató-
rias para todo e qualquer contrato de trabalho, por exemplo, o direito a férias e ao
salário mínimo.
Surgia também o direito da concorrência que visava disciplinar a livre-con-
corrência capitalista para evitar a formação de monopólios, instaurando a possibili-
dade de regular juridicamente as operações econômicas, ou seja, atingindo por outra
via os contratos compreendidos como centro do ordenamento jurídico. Na mesma
toada, a Constituição de Weimar elevou ao grau máximo da hierarquia das leis uma
série de direitos que beneficiavam as classes exploradas, por exemplo, a função social
da propriedade que passou a constranger os proprietários a utilizarem seus bens para
fins valorizados socialmente, ou seja, expropriou a burguesia do poder de dispor li-
vremente sobre bens que eram de sua propriedade.
Como mostrei no capítulo final de meu doutorado (RODRIGUEZ, 2009a),
esta tendência de fuga do direito é extremamente útil para refletir sobre fenômenos con-
temporâneos como a criação de regimes privados transnacionais, lex mercatoria e ou-
tros fenômenos da assim chamada globalização. Também para pensar qualquer re-
gime normativo que afaste a sociedade do controle da produção das normas jurídicas,
transferindo o poder normativo exclusivamente para as mãos daqueles diretamente
interessados nas mesmas, sem que haja a possibilidade de qualquer interferência da
esfera pública em seu processo de produção visando a salvaguardar interesses de ou-
tros interessados.
Nesse sentido, a ideia de fuga do direito é útil para flagrar e denunciar pro-
cessos de reprivatização autárquica do direito que implicam na neutralização do poder
da sociedade no processo de criação normativa, em favor dos interesses de entes al-
tamente poderosos que atuam na esfera internacional. A mesma ideia, insisto, também
poderia ajudar a compreender a instauração de regimes autoritários os quais, à dife-
rença das estratégias de perversão do direito, assumem abertamente um caráter auto-
ritário, prescindindo de uma certa aparência de legalidade.

Legalidade discriminatória

Chamo de legalidade discriminatória uma estratégia de fuga do direito mediante a qual


são produzidas normas aparentemente universais, mas que são efetivamente postas a

47
serviço de interesses parciais, por exemplo, atingir apenas a determinados grupos so-
ciais e não outros. Neumann discute a questão da legalidade discriminatória, sob a
denominação de “legalidade falsa” de maneira muito sugestiva em seu texto sobre "O
conceito da liberdade política" (NEUMANN 2013) ao analisar episódios do Maccar-
tismo norte-americano, em especial a perseguição a funcionários públicos por meio
de inquéritos administrativos. Nestes episódios, o autor identifica a utilização de nor-
mas e procedimentos aparentemente legais com fins claramente discriminatórios.
Como explica Neumann, o governo sempre terá o dever geral de despedir
empregados desleais. Mas o problema está em como se pode definir a deslealdade e
quais devem ser os procedimentos para a dispensa. Durante o maccartismo, a mera
suspeita de deslealdade, leia-se, comunismo, motivava dispensas arbitrárias em um
procedimento que não garantia aos empregados direito de defesa. Como se tratava da
dispensa de funcionários, segundo Neumann, a administração possuía de fato este
poder desde o princípio: ela não estava obrigada a conceder ao empregado oportuni-
dades de defesa. No entanto, este tipo de reação só ocorria diante de empregados e
empregadas suspeitas de serem comunistas.
Fica claro neste caso como um direito garantido pelas leis pode acabar fun-
cionando como meio para discriminar pessoas e grupos julgados suspeitos por uma
razão qualquer, sem que se possa identificar facilmente tal ato como discriminatório.
Pior do que tudo, naquele contexto histórico, ser demitido por suspeita de deslealdade
tinha consequências muito graves para a vida profissional destas pessoas. Sem que
fosse necessário enunciar, a deslealdade era identificada com "comunismo" e este es-
tigma era suficiente para que a pessoa nunca mais fosse contratada por nenhum órgão
do governo. Ser demitido desta forma condenava a pessoa a um verdadeiro ostracismo.
Klaus Günther se utiliza da ideia neumanniana de uma “falsa legalidade” para
analisar a legislação antiterror; leis que relativizaram uma série de direitos fundamen-
tais, caros à tradição democrática, como o direito ao habeas corpus, à intimidade e à
ampla defesa, com o objetivo de tornar a investigação e o processamento desses casos
mais célere. Günther manifesta surpresa diante da falta de indignação pública diante
dessas medidas e atribui este fato justamente à falsa legalidade (GÜNTHER, 2009).
De acordo com ele, os cidadãos e cidadãs tendem a concordar com essas
medidas, pois elas supostamente terão efeito apenas sobre a vida de pessoas "perigo-
sas", ou seja, sobre a vida de grupos de radicais muçulmanos por exemplo, e não sobre
a vida das “pessoas comuns”. A legislação antiterror, em tese, é formulada na forma
universal e tem como destinatários qualquer suspeito de terrorismo. No entanto, as
mesmas normas geram a expectativa de uma aplicação seletiva, supostamente incapaz
de incomodar as pessoas "de bem".
O conceito de legalidade discriminatória é especialmente útil para evidenciar
atos de discriminação praticados sob o manto abstrato do estado de direito ou de
quaisquer outras formas institucionais altamente formalizadas, espaços que passariam

48
despercebidos se nos ativéssemos apenas ao texto das leis sem prestar atenção em sua
aplicação e em seus efeitos sobre a sociedade. Sustento que uma das tarefas centrais
da pesquisa empírica em direito hoje é, justamente, identificar casos de falsa legalidade
para manter a legitimidade das promessas da democracia encarnadas na racionalidade
do estado de direito.

Zonas de autarquia

Na concepção ocidental do termo, estado de direito significa a imposição de limites


ao poder soberano e ao poder privado. Ninguém pode agir licitamente sem funda-
mento em uma norma jurídica ou em uma norma social que autorize diretamente uma
determinada conduta ou crie um espaço de autonomia dentro dos limites impostos
pelo direito de determinado ente soberano. Pode-se dizer, como veremos em detalhe
adiante neste livro, que há um estado de direito quando toda ação possa ser justificada
a partir de uma norma criada ou não pelo Estado e, neste último caso, reconhecida
por ele.
A afirmação de que a vontade do Estado deva coincidir com a vontade da
sociedade, ou seja, deva ser cada vez mais inclusiva, arma um mecanismo que tende
a colocar em xeque toda e qualquer instituição formal que deixe de se transformar
para abarcar novos desejos e necessidades sociais. Para Franz Neumann, esta é a es-
trutura essencial do Estado de Direito:

Trata-se de uma estrutura institucional que constrange o poder soberano a agir


conforme a vontade da sociedade por meio de normas gerais e as instituições
ligadas a elas (...), que instituem e garantem a separação entre soberania e liber-
dade, entre sociedade e Estado. (RODRIGUEZ, 2013a: 72).

Esta forma institucional possibilita que classes e grupos sociais se utilizem


dela para incluir continuamente suas demandas no direito positivo produzido ou re-
conhecido pelo estado. Por isso mesmo, pode-se afirmar que o Estado moderno pode
ser caracterizado pela existência de duas esferas: a da soberania e a da liberdade em
relação à soberania. A separação do Estado nessas duas esferas, acrescida da afirma-
ção de que ele deve servir às necessidades e à vontade de todos os cidadãos, possibilita
a ampliação do espaço de participação política das forças sociais na produção das
normas que regulam a vida em sociedade (RODRIGUEZ, 2009a: 84).

Trata-se de uma estrutura inclusiva e, por isso mesmo, aberta para o futuro,
capaz de apreender as novas demandas sociais. A questão não é mais qual é a
verdade substantiva que deve orientar a elaboração do direito positivo, mas
como construir instituições capazes de ouvir a voz da sociedade. (RODRI-
GUEZ, 2009a: 123).

49
A figura da zona de autarquia começa a revelar sua importância quando lem-
bramos que não apenas as normas gerais e abstratas são importantes para o estado de
direito, mas também os atos de aplicação destas normas a casos concretos. Textos
normativos costumam admitir múltiplas interpretações e, portanto, os órgãos que de-
têm a competência para utilizá-los na solução de casos concretos também precisam
zelar pela segurança jurídica. Mesmo quando o legislador confere expressamente um
espaço de liberdade para a aplicação do direito, as decisões proferidas não podem
deixar de se fundar em algum tipo de racionalidade que permita aos destinatários en-
tender por que se privilegiou uma solução jurídica em detrimento de outra.

... o conceito de Estado de Neumann é construído para dar conta do problema


da aplicação e seu controle. Para ele, o Estado tem, de um lado, uma dimensão
jurídica, o poder de estatuir normas individuais e normas gerais; de outro lado,
este mesmo estado tem uma dimensão sociológica: poder de impor suas normas
sobre um determinado território. Ele não se reduz ao direito positivado em abs-
trato, mas se projeta em suas decisões concretas, tomadas pelos poderes e por
todas as pessoas, públicas ou privadas, que atuam em seu nome (...). Em todos
os casos, estamos diante do objeto de estudo da ciência do direito. (RODRI-
GUEZ, 2012:81).

Se admitimos, com a teoria do direito do século XX, que os atos de aplicação


são criativos, fica claro que intenções arbitrárias podem se insinuar também neste
âmbito. Tal fato exige que a pesquisa em direito tenha, necessariamente, um momento
empírico cujo objetivo seja o de zelar pela manutenção do estado de direito pelo con-
trole da justificação das decisões de todo e qualquer órgão de poder. Tal controle se
faz pela descrição de como os órgãos jurisdicionais tomam suas decisões e com a
reconstrução da justificação oferecida em suas decisões. Desta forma, pode-se avaliar
o grau de indeterminação que caracteriza tais decisões e, eventualmente, propor re-
formas institucionais para mitigar o que se considere espaços de excessiva indetermi-
nação (RODRIGUEZ, 2012).
A partir do material obtido por pesquisas deste teor, os estudiosos do Direito
podem se pôr a criticar práticas institucionais reais, favorecendo boas justificativas
contra escolhas arbitrárias, ou seja, escolhas que naturalizem soluções e desenhos ins-
titucionais sem razão ou que não sejam justificadas de maneira coerente. Se lembra-
mos que em um Estado de Direito nenhuma função pode ser exercida de modo arbi-
trário, é razoável afirmar que o momento da decisão não pode estar fundado na mera
autoridade do juiz. Deve se legitimar também pelo fato de que as decisões sejam bem
justificadas, de acordo com os padrões vigentes em cada realidade jurídica específica.
O conceito de zona de autarquia tem, justamente, a função de ajudar a nomear setores
do ordenamento jurídico em que os órgãos de poder fogem do direito e atuam de
forma arbitrária, também para explicitar modelos autoritários ou meramente simbóli-
cos de legitimação das decisões para além das fronteiras estatais:

50
... chamaremos de zona de autarquia um espaço institucional em que as decisões
são tomadas sem que se possa identificar um padrão de racionalidade qualquer, ou
seja, em que as decisões são tomadas num espaço vazio de justificação. (...) zonas de
arbitrariedade em que a forma jurídica se torna apenas aparência vazia para justificar
a arbitrariedade do poder público ou privado. (RODRIGUEZ, 2013a:72)

Dificilmente uma autoridade declarará explicitamente “decido assim porque


quero”, ou “suspendo a norma para tomar em estado de exceção”. Atos arbitrários
em regimes em que o estado de direito esteja funcionamento normalmente são prati-
cados sob a aparência de direito e, por isso mesmo, tendem a passar despercebidos.
Além disso, é comum que regimes autoritários de base nacional e ordens normativas
transnacionais se utilizem da gramática jurídica para travestir atos meramente arbitrários.
A identificação tanto de zonas de autarquia quanto casos de fuga do direito
e falsa legalidade exigem atenção minuciosa aos procedimentos dos poderosos, o que
implica em mobilizar conhecimentos técnicos sobre o funcionamento da racionali-
dade institucional. Por isso mesmo, serão normalmente os juristas aqueles pesquisa-
dores mais bem equipados para identificar estas figuras da perversão do direito. Mas
basta estudar direito a sério para que um pesquisador em ciência humanas possa ter
o mesmo desempenho de um ou uma jurista nesta tarefa.
Uma zona de autarquia se caracteriza, insisto, nas situações em que não se
possa identificar nenhuma justificação racional, nenhum conjunto de regras que or-
ganize a fundamentação da decisão tomada. A zona de autarquia é formada por argu-
mentos sob a aparência de direito, mas que, na prática, não permitem o controle da
argumentação pela sociedade, uma vez que não possibilitam a reconstrução organizada
do raciocínio que serve de fundamento para a decisão ou para as decisões tomadas.
As zonas de autarquia são utilizadas pelos detentores de posições de poder
para, por exemplo, congelar as instituições postas e, por via de consequência, as po-
sições de poder que elas garantem e protegem:

Desta forma, os poderosos livram-se da necessidade de justificar racionalmente


suas posições de domínio ao excluir determinados conceitos jurídicos e dese-
nhos institucionais do debate público. (RODRIGUEZ, 2013a21)

Recentemente eu mostrei como a criação de zonas de autarquia no Brasil


está relacionada a um forte personalismo em nosso Direito. Estas zonas aparecem
“fundadas” em argumentos de autoridade que se utilizam de conceitos ou raciocínios
naturalizados para justificar decisões (RODRIGUEZ, 2013a) em um procedimento
que retira da esfera pública a possibilidade de debater as razões para decidir e a justi-
ficativa do desenho do Estado, tornando ambas completamente imunes ao debate
racional e público. É preciso tomar cuidado, entretanto, para analisar Tribunais como
o STF, que exercem, a meu ver, com toda a clareza, função legislativa, especialmente
51
em casos difíceis em que está em jogo a declaração de constitucionalidade ou incons-
titucionalidade, como nos ensina Hans Kelsen. Neste caso, se o Tribunal não está
isento do dever de justificação, é de esperar que ela se apresente sem apoio tão claro
nos textos legais. Mas retomemos o fio da meada.

Um adendo: a perversão social do direito

A centralidade do direito para a reprodução racional da sociedade, como mostrou


muito bem Habermas, se deve ao fato da modernização (HABERMAS, 1991). Nem
costumes, nem tradição, nem a religião, nem concepções morais abrangentes parecem
ser capazes de evitar que sociedades pluralistas se desagreguem violentamente. Por
isso o direito ganha proeminência como meio de integração social, afinal, ele é capaz
de estabilizar temporariamente e de forma potencialmente coercitiva, um determi-
nado acordo, temporário e parcial, sobre qual deve ser o regime, ou seja, o conjunto
de normas que organizam a vida em uma determinada sociedade.
Para servir a este objetivo o direito não pode ser meramente norma posta,
positivada, passível de imposição pela força estatal. Ele precisa ter um papel também
como móbil da ação. Precisa ser dotado de uma força moral a qual as normas mera-
mente positivas ou, melhor dizendo, meramente técnicas, não tem (NEUMANN,
1956). Afinal, a capacidade de mobilizar os agentes para a ação de que são dotadas as
normas de direito advém do fato de que estes agentes tenham a oportunidade real de
tomar parte em sua formulação e reformulação constante.
Nesse sentido, o potencial emancipatório inscrito no direito exige que, de
fato, os indivíduos vejam nele uma alternativa emancipatória, ou seja, exige que a
sociedade veja no estado de direito uma alternativa adequada para formalizar as suas
relações e criar padrões de interação. A verificação da apropriação social da gramática
do direito deve ser feita por meio de análises empíricas das reivindicações dos movi-
mentos sociais e da interação social em espaços não formalizados para que se possa
identificar a maneira pela qual a sociedade utiliza e se relaciona a partir de uma disputa
sobre o sentido de termos como “norma” e “direito”; uma tarefa a ser realizada nas
pesquisas que formarão o mapa das lutas constituintes a que nos referimos acima.
Seja como for, posto o problema nestes termos, fica clara a importância de
compreender como as diversas interações sociais têm ou não como referência, em seu
pano de fundo, normas jurídicas estatais. Trata-se de saber, nesse sentido, que espécie
de interação social é estruturada, ou não, por normas jurídicas estatais, ou seja, em
que tipo de interação a posição dos agentes e o objeto da interação dependem ou não
da referência a normas jurídicas estatais para serem definidos. Trata-se aqui de exa-
minar como o direito funciona como justificação para ações situadas na sociedade e
não nos aparelhos de Estado.

52
Por exemplo, as relações de trabalho, formalizadas ou não, parecem ter como
referência necessária a regulação jurídica do trabalho. É razoável supor que ser regis-
trado ou não é fundamental para o pensamento e para a ação dos agentes sociais
envolvidos neste tipo de interação. Da mesma forma, as relações familiares e amoro-
sas parecem ter como referência necessária as normas promulgadas pelo Estado. Ser
casado ou solteiro, ser casado "no papel" ou não, é fundamental para definir as posi-
ções neste tipo de interação social, insisto, mesmo fora do estado e sem qualquer
contato com o poder judiciário.
De outra parte, teremos interações cujo pano de fundo não parece ser estru-
turado pelo direito formal, por exemplo, as relações de amizade e as relações religiosas.
Nestes campos, a referência a normas jurídicas estatais tenderá, imagino, a ser secun-
dária para a interação mútua. A distinção entre campos estruturados ou não pelo
direito estatal parece ser útil, portanto, para refletir de forma mais sofisticada, sobre
o tema clássico da "juridificação" das relações sociais, sob o influxo da gramática do
estado de direito. Nesse sentido, seria possível diferenciar interações sociais mais ou
menos dependentes das normas estatais; campos em que a autodefinição dos agentes
e a referência aos objetos de interação sejam dependentes ou não do direito estatal.
Ademais, esta distinção pode ajudar a refletir de forma mais precisa sobre a
"judiciarização" das relações sociais, ou seja, sobre a necessidade ou não de levar ao
Poder Judiciário conflitos ocorridos na sociedade. É razoável imaginar que, em inte-
rações sociais nas quais o status dos agentes e o objeto de interação seja dependente
de normas jurídicas estatais, haja maior propensão a se recorrer aos órgãos do Estado
para resolver conflitos do que campos independentes das normas estatais.
Desta maneira, a dependência do status dos agentes e do objeto das intera-
ções de uma referência às normas estatais parece determinar a maior ou menor capa-
cidade da sociedade de autorregular os seus conflitos, a depender dos várias modali-
dades de interação social. Parece evidente também que este modo de pensar pode
ajudar a refletir sobre projetos de regulação, ou seja, sobre diferentes desenhos insti-
tucionais destinados a regular as interações sociais, tendo em vista a sua maior ou
menor dependência das normas jurídicas estatais.
Por exemplo, fixado o objetivo de diminuir o espaço para a regulação social
no campo das relações entre homem e mulher, marcadas por assimetrias e violência,
o direito estatal tende a fazer as relações familiares mais dependentes da referência às
normas estatais, alterando assim os esquemas operatórios que definem a interação
não formalizada entre os agentes sociais e conferindo mais poder para o estado de
intervir sobre essas subjetividades quando a este aspecto. Por essa razão, o direito tem
escolhido a via da criminalização de uma série de condutas para dotar os agentes so-
ciais de um esquema de classificação referido a normas estatais capaz de dar nova
significação às suas interações sociais e oferecer novos elementos para a sua autode-
finição.

53
Ao contrário, se o objetivo for aumentar a regulação social, seria o caso de
eliminar ou diminuir a referência às normas estatais para a definição do status dos
agentes sociais e de seu objeto de interação atribuindo mais poder normativo à soci-
edade. Por exemplo, ainda no campo das relações familiares, poder-se ia eliminar do
ordenamento jurídico o conceito de "casamento" e remetê-lo ao poder das interações
sociais, cabendo ao Estado apenas reconhecer como casamento o que as pessoas as-
sim definirem como tal. De outra parte, há análises que mostram que a supressão do
status de “pessoa de direito”, ou seja, a redução das pessoas naturais a meras pessoas,
despidas da proteção do direito, reduzidas ao status semelhante ao de uma coisa ou
deum animal, as tornam altamente vulneráveis à violência de seus pares (NERIS, 2017;
WILLIAMS, 1991; SNYDER, 2015).
Diante do que foi dito acima, é necessário pensar as figuras da perversão do
direito de forma espelhada, por assim dizer, tanto no que se refere às justificativas
oferecidas pelas instituições formais quanto no que se refere às narrativas jurídicas
oferecidas pelos agentes sociais em interação. Pois os agentes sociais podem mobilizar
o direito para tentar expropriar a autonomia e calar indivíduos e grupos sociais rivais;
ou para tentar fugir do controle da sociedade em geral com o objetivo de criar práticas
privadas marcadas pela violência e pela injustiça supostamente jurídicas.
Neste nível de atuação, o direito funciona como justificação da violência e
da exploração, mediante a mobilização de regras estatais e espaços de regulação social
supostamente livres do poder do estado e de acordo com o seu direito. Nestes casos,
a perversão do direito se faz, portanto, sem a participação direta do Estado, mas com
a invocação do que seria a sua vontade de forma dogmática e naturalizada sob a forma
de violência simbólica a qual pode, até mesmo, justificar atos de violência física.
Conflitos no âmbito da sociedade podem resultar, como será visto no último
capítulo deste livro, em conflitos entre projetos de legalidade que pretendam se impor
como centros de produção normativa autônomos, independentes do Estado. Neste
caso, ao invés de uma luta por direitos estaremos diante de conflitos entre direitos
que reivindicam, ao mesmo tempo, o poder de regular os mesmos fatos sociais de
maneira diferente.

Despersonalização jurídica

A tarefa do pensamento crítico em relação ao direito e ao Estado é desfazer toda e


qualquer ilusão de totalidade com o objetivo de iluminar as zonas de sombra da soci-
edade civil e contribuir para que os agentes sociais que se encontram sem voz sejam
capazes de participar da formação e transformação constante de uma gramática insti-
tuinte que nomeie seus desejos e necessidades e os façam atingir e redesenhar cons-
tantemente as fronteiras do sistema político.

54
Como diz Patrícia Williams ao refletir sobre a experiência de sua avó, uma
pessoa escravizada nos Estados Unidos, apenas uma pessoa branca e privilegiada seria
capaz de desprezar a tradição ocidental do estado de direito em sua capacidade de
criar condições de igualdade entre as pessoas que vivem na mesma sociedade e per-
mitir que elas expressem a sua voz perante a sociedade e as instituições formais (WIL-
LIAMS, 1991).
A condição de “pessoa” em sentido jurídico é o primeiro passo para que
indivíduos e grupos sejam reconhecidos como iguais por seus pares e possam se ma-
nifestar em igualdade de condições junto às instituições formais. A história nos ensina
que seres humanos que não gozam do status de pessoa aos olhos do direito e, por-
tanto, que podem ser compradas ou vendidas, não costuma gozar de uma posição
privilegiada na sociedade. Tornam-se seres matáveis, à disposição para a violação de
seus corpos. Ao que tudo indica, a se levar a sério as lições de Williams, para realizar
esta tarefa básica, a moral jamais é suficiente. A condição de pessoa é uma condição
simultaneamente jurídica e moral, um pressuposto necessário para estes dois campos,
e não se pode ser pessoa sem ser reconhecido como “pessoa de direito”.24
Nesse sentido específico, o direito é constitutivo de Estado e sociedade ao
mesmo tempo, pois o reconhecimento do status jurídico de pessoas exerce, ao mesmo
tempo, funções morais e jurídicas ao afastar a violência e permitir uma interação que,
ao menos potencialmente, se abra à disputa por novos direitos, para além deste status
básico. A partir deste patamar, que diferencia seres humanos de coisas e de outros
seres sem autonomia, é tarefa da teoria crítica indicar a tendência emancipatória ins-
crita nesta realidade institucional pela ligação entre estado de direito e democracia.
Nesse sentido, trata-se de apontar que a tentativa constante de fazer coincidir a von-
tade da sociedade com a vontade do Estado é capaz de oferecer à sociedade um mo-
delo institucional capaz de positivar direitos legítimos e mantê-los instáveis em nome
dos desejos e interesses que ainda estão por nascer.
A manutenção de um hiato, de um espaço, de uma cisão entre Estado e so-
ciedade civil é a característica fundamental da política democrática, a qual deve ser
tratada como conquista emancipatória de que não devemos abrir mão. A promessa
de igualdade contida no estado de direito oferece uma gramática para que agentes
sociais formulem suas demandas por igualdade em relação a indivíduos e grupos que
já gozam de posições de proteção jurídica. De outra parte, esta mesma gramática ofe-
rece, como veremos com mais detalhe adiante (ver “Direito e Status Quo”), mecanis-
mos para desestabilizar, destruir e transformar as instituições sem cessar, desde que
sejam desarmados os mecanismos que procuram perverter o direito e estabilizar in-
justamente determinados indivíduos e grupos em posições de poder (NEUMANN,
2013; RODRIGUEZ, 2013b).

24 Ver o capítulo seguinte, “Direito e Violência”.

55
Seguindo essa linha de raciocínio, para além do que foi dito aqui, e talvez em
seu pano de fundo, eu considero que um dos temas centrais para o Direito e para a
política neste começo de século XXI é estudo do significado político do silêncio e
dos limites narrativos das duas gramáticas do direito em figurar a voz a todos aqueles
que se encontram em silêncio contra a sua vontade. Pois o silêncio pode ser voluntário,
o silêncio daqueles que não desejam participar da esfera pública por alguma razão. Ou
pode ser um silêncio eloquente, aquele que significa um sinal de assentimento em
relação ao rumo que a comunidade política está tomando.
Mas eu me refiro aqui a outro tipo de silêncio, o silêncio dos grupos que
sofrem, que se julgam privados de direitos e se encontram impedidos no todo ou em
parte de utilizarem os canais que seriam capazes de ouvir a sua voz e transmitir seus
desejos e necessidades para a esfera pública, como possível impacto sobre as institui-
ções formais. Podemos falar aqui de uma terceira figura da perversão do direito, a
despersonalização jurídica compreendida como privação sistemática do pleno acesso às
gramáticas dos direitos a determinados grupos sociais. Como diz Martine Xiberras,
ao menos quando falamos do ponto de vista das gramáticas do direito:

Existem, pois, formas de exclusão que não se veem, mas que se sentem, outras
que se veem mas que ninguém fala e, por fim, formas de exclusão completa-
mente invisibilizadas, dado que nós nem sonhamos com a sua existência, nem
possuímos a fortiori nenhum vocabulário para designá-las. (XIBERRAS, 1996: 20)

Note-se que o estudo da gramática institucional também é, de certa forma, o


estudo do silêncio social, posto que esta gramática traça os limites do que é possível
dizer ou não em matéria política25. E sempre acabamos por perceber que algo sempre
fica fora; um fora que pode ser acessado em momentos de rebelião como o nosso, ou
por meio de outras narrativas, outras gramáticas, outras formas de ciências que traba-
lham com formas e estratégias textuais diferentes.
Por exemplo, Patricia Hill Collins26 narra de maneira genial no fundamental
Black Feminist Thought, o processo de formação das mulheres negras como um sujeito
político, desde a completa invisibilidade até sua organização autônoma com a finali-
dade de ter acesso à esfera pública e reivindicar direitos (COLLINS, 2009). No co-
meço do processo, as mulheres negras não tinham espaço próprio no feminismo ou
acesso à esfera pública. Habitantes de lares dominados por homens negros e traba-
lhadoras domésticas em lares liderados por homens brancos, nos quais não gozavam
da solidariedade das mulheres brancas, que se utilizavam delas para construir sua pró-
pria emancipação das tarefas de casa, as mulheres negras permaneciam sem voz.

Para este ponto ver BROWN,2002 e BUTLER, 2002.


25
26
Minha utilização das ideias de Patricia Hill Collins não teria sido possível sem o trabalho de Mestrado de
Winnie Bueno, Pensamento Feminista Negro: Uma Introdução (no prelo).

56
Carentes de educação formal, incapazes portanto de escrever suas histórias,
e despidas de meios políticos para influir sobre o estado, sem direito sequer a votar,
estas mulheres começaram sua resistência, diz Collins, na relação com suas mães. Es-
tas mães negras buscavam construir neste espaço de intimidade a dignidade e amor-
próprio de suas filhas, objetivo que também era perseguido em espaços protegidos
como as igrejas, espaços em que elas podiam falar de seus problemas entre si com
liberdade.
De fato, a primeira vez em que as mulheres negras tiveram acesso à esfera
pública em seu próprio nome foi em razão de canções de blues gravadas por empresas
dirigidas por homens brancos que tinham interesse em vender discos para a comuni-
dade negra. Não era necessário saber escrever ou ler para compor as letras27 ou para
aprender a cantar, por isso as primeiras cantoras de blues foram pioneiras em narrar
seus problemas diante da esfera pública.
Nesse sentido, se expandirmos um pouco a análise de Collins, parece razoá-
vel dizer que, a despeito da incapacidade da gramática do direito, naquele momento
histórico, de veicular a voz das mulheres negras, a arte cumpria este papel, ainda que
não tivesse qualquer efeito sobre as instituições formais e, portanto, sobre as políticas
públicas. Vislumbra-se aqui, diga-se, uma possibilidade de colaboração entre direito e
crítica de arte, de música e de literatura que ainda não foi explorada em todo o seu
potencial pelos pesquisadores e pesquisadoras em direito.28
De qualquer forma, além dos estudos sugeridos pelo mapa das lutas consti-
tuintes e do desvendamento das figuras da perversão do direito aos quais este texto
faz menção, ambos centrados no estudo das instituições formais, abre-se aqui um
outro campo de investigação, altamente relevante para a legitimidade democrática,
que deve ter, necessariamente, uma configuração interdisciplinar.
O estudo constante de outras narrativas que figurem a sociedade diferentes
da linguagem dos direitos é fundamental para enriquecer a reflexão sobre a capacidade
de nosso aparelho institucional de dar voz aos desejos e necessidades sociais. Uma
análise mais completa deste campo de investigação exigiria estabelecer conexões entre
a pesquisa em direito com outras disciplinas que se debruçam sobre a ação dos ho-
mens e mulheres em sociedade como a antropologia, a sociologia, a psicanálise e a
psicologia social em busca de tudo aquilo que permanece relativamente invisível e
inaudito.
Outro campo que me parece profícuo para a reflexão sobre os limites do
direito sobre os sons do silêncio são aqueles eventos em que a sociedade classifica um

27 Recentemente, Angela Y. Davis, no âmbito de um projeto de análise da importância do blues e do


jazz para o feminismo, transcreveu, de forma comovente, todas as letras das canções gravadas de “Ma”
Rainey, as quais permaneciam sem registro escrito até os dias de hoje (DAVIS, 1998).
28 Roberto Schwarz utilizou a literatura como fonte para o conhecimento do Brasil do século XIX de

maneira exemplar, sem perder de vista suas qualidades estéticas, em continuidade aos trabalhos de
Theodor Adorno. Ver SCHWARZ, 2000, 2001; ADORNO, 2001, 2003)

57
indivíduo ou uma prática como monstruosa, anormal, criminosa, vergonhosa e assim
em diante. Não parece ser coincidência que os temas de praticamente todos os movi-
mentos sociais que surgiram no ocidente durante o século XX foram em algum mo-
mento considerados moralmente indesejados e/ou ilícitos pelo direito positivo, a co-
meçar pela regulação do contrato de trabalho, passando pela prática de sexo anal, a
igualdade entre brancos e negros, até o registro pelo estado de pessoas sem definição
de gênero, direito reivindicado por indivíduos e grupos em alguns países do mundo.
Olhar a moral e o direito positivo desta forma pode nos levar a formular a
hipótese provocativa de que é pesquisando aquilo que hoje é considerado abjeto e/ou
criminoso que poderemos encontrar elementos que nos ajudem a identificar o sofri-
mento dos grupos sociais sem voz e pensar em novas configurações institucionais
mais inclusivas, autônomas e, portanto, emancipatórias. Ao dizer isso, estou pro-
pondo uma reelaboração da conhecida frase de Oliver Wendell Holmes, importante
jurista dos EUA, que afirmou a necessidade de estudar o direito do ponto de vista
dos “bad guys”, ou seja, dos infratores das normas.
Infelizmente, não há espaço aqui para desenvolver os traços deste programa
de pesquisa, que passaria, por exemplo, pela mudança de olhar do pesquisador em
Direito sobre os processos criminais, que têm sido utilizados como fonte de pesquisa
sobre nossas sociedades em geral por pesquisadores tão diferentes e geniais como
Michel Foucault, Carlo Ginzburg e Maria Silvia de Carvalho Franco29, mas que para
os juristas tem sido apenas fonte de conhecimento sobre a racionalidade do direito
em sentido muito estrito.
De qualquer maneira, encerro esta reflexão com a afirmação de que este pro-
grama de pesquisa parte do pressuposto de que não há silêncio absoluto. O silencia-
mento imposto pelo aparelho conceitual de uma disciplina ou de uma determinada
prática social institucionalizada pode ser parcialmente superado por investigações em
outros campos, em um jogo de ocultação e desvelamento por meio do qual podemos
ter acesso às zonas sombrias da sociedade civil e antever alguns de seus possíveis
desenvolvimentos futuros. Mas esta é uma tarefa para outra ocasião.
No entanto, é importante dizer, parece ser esta uma tarefa adequada para a
pesquisa em direito. Afinal esta tornou-se uma das únicas depositárias da possibili-
dade de praticar uma visão complexa de razão30, caminhando no sentido contrário da
economia e de parte das ciências sociais influenciadas pelo reducionismo matemati-
zado com pretensões de ciência exata. O direito visto como ciência e como forma

29FOUCAULT, 1972; GINSBURG, 2005; FRANCO, 1997.


30O direito está em disputa, evidentemente, assediado por disciplinas que o encaram apenas como
um instrumento destinado a realizar objetivos que se definem fora dele (visão da economia e das ci-
ências sociais) e não como um espaço com dignidade própria cuja função é interpretar a sociedade
por meios próprios e imaginar decisões e instituições cada vez mais inclusivas e autônomas, capazes
de levar em conta toda a diversidade e complexidade social, modelo de pensamento que parece cor-
responder, em suas grandes linhas, àquele de Ronald Dworkin, especialmente em seu último livro,
“Justiça para ouriços” (DWORKIN, 2012).

58
institucional - o estado de direito – está comprometido com toda a sociedade, com os
desejos e necessidades de todos, com o ser humano em sua integralidade e não apenas
com aspectos parciais de sua existência.
Por isso mesmo o pensamento jurídico não pode se deixar instrumentalizar
por ciência ou interesse parcial algum e não pode naturalizar as suas categorias. Pois
para exercer com eficácia sua função social, ele precisa ser um espaço de reflexão com
alta densidade sociológica e filosófica capaz de refletir sobre os destinos dos homens
e das mulheres em seu país e no mundo e, ao mesmo tempo, capaz de produzir deci-
sões legítimas com efeito simbólico e material sobre a realidade. A menos que se pre-
tenda defender, nos moldes de Carl Schmitt, uma visão degenerada de legalidade des-
tinada a funcionar apenas em ambientes homogêneos31, como que em prenúncio do
autoritarismo e dos assassinatos em massa que já despontavam no horizonte da Ale-
manha nazista.
A mera reflexão sobre o direito, nesse sentido, pode vir a influenciar os agen-
tes sociais e estatais responsáveis por reproduzir e transformar o estado de direito,
tendo um papel relevante na justificação da ordem jurídica perante a esfera pública.
Não é por outra razão que pesquisa e o ensino em direito devem se preocupar com a
complexidade da sociedade vista como um todo, praticando um modo de pensar di-
fícil, denso e multifacetado, do qual este texto pretende ser um exemplo concreto.
Cabe citar, para encerrar este momento da exposição, mais dois casos elo-
quentes de despersonalização jurídica, o das mulheres que vivem da prostituição e das
pessoas trans. Como mostra Monique Prada no capítulo 4 (“Puta-Sujeito, Não Ob-
jeto”) do seu Putafeminismo, o tratamento como objetos das pessoas que vivem da
prostituição está ligada a algumas ideia feministas que encaram toda e qualquer forma
de sexo pago como estupro e à expectativa masculina, arraigada na cultura, de que
este tipo de serviço seja fornecido de graça, à exemplo do trabalho doméstico e do
trabalho reprodutivo (PRADA, 2018: 48, 69, 72).
Estas duas formas de objetificação ajudam a explicar a aliança política entre
forças conservadoras e representantes do feminismo radical em combater a possibili-
dade de se cobrar pelo sexo com a finalidade de extinguir a profissão de prostituta,
excluindo esta escolha profissional do campo de possibilidades do exercício da auto-
nomia das pessoas, uma medida evidentemente antiliberal e que priva, por exemplo,
mulheres pobres, muitas vezes imigrantes, de uma das ocupações que melhor remu-
nera pessoas sem educação formal ou sem conhecimentos suficientes da língua do
lugar em que se encontram (PRADA, 2018: 59-61).

31
A apropriação de Carl Schmitt por autores como Chantal Mouffe e José Arthut Gianotti deixa, acertadamente,
este aspecto da obra do autor de lado, o que me parece descaracterizá-lo completamente, tornando-o substituível
por qualquer outro autor que põe o conflito no centro da política, v. MOUFFE, 2015 e GIANNOTTI & MOU-
TINHO, 2017.

59
Segue Monique Prada para afirmar que boa parte das mulheres que optam
por esta profissão são pessoas pobres que escolheram este caminho pelas mais diver-
sas razões, inclusive por seu livre convencimento (PRADA, 2018: 102). Para atingir
o objetivo de diminuir o número de pessoas que escolhem viver de sexo seria muito
mais eficaz lutar para eliminar a pobreza do que seguir o caminho da repressão, que
apenas irá empurrar mais e mais mulheres para a clandestinidade (PRADA, 2018: 102),
já que não há evidências históricas de que o sexo pago um dia será erradicado no
mundo. Até os dias de hoje, o arranjo matrimonial mais convencional considera nor-
mal que o marido deixe de fazer sexo com a sua esposa, ou seja, que o sexo com ela
seja praticado apenas com fins reprodutivos (PRADA, 77-78) e ele passe a recorrer a
amantes e prostitutas para desfrutar de um trabalho puramente sexual.
As estratégias de combate à profissão de prostituta, que pode incluir, entre
outras medidas, sua proibição, a proibição da instalação de prostíbulos e a criminali-
zação das pessoas que se utilizam desses serviços, tem implicações graves sobre a
personificação jurídica das pessoas que vivem de sexo. Por exemplo, a proibição da
profissão implica na impossibilidade de organização de sindicatos e associações, o que
limita a participação dessas pessoas nos debates na esfera pública e praticamente as
impede de disputar suas ideias no campo político.
O mesmo se pode dizer sobre a criminalização da utilização desses serviços
que tende a inibir o debate aberto sobre o tema na esfera pública, abrindo espaço para
que manifestações a favor da prostituição como profissão possam ser caracterizadas
como incitação ao crime, como alguns juristas conservadores já tentaram fazer com
o mero debate e manifestações artísticas a favor da legalização de drogas hoje ilícitas
como a maconha.
Além disso, a proibição tem como efeito vedar ou dificultar o acesso a série
de serviços públicos e privados que dependem da manutenção de um emprego ou
ocupação lícita e comprovação de renda, por exemplo, junto a instituições bancárias
(abertura de contas e obtenção de financiamentos) e no campo da previdência social
(auxílio desemprego, salário família, aposentadoria, entre outros). De um outro ponto
de vista, a proibição também nega à pessoa o reconhecimento simbólico de que ela
possui um emprego digno, que não está desempregada, desocupada ou vivendo de
uma atividade ilícita, a qual a expõe aos mecanismos de repressão penal.
Ora, em uma sociedade capitalista como a nossa, negar acesso a uma ocupa-
ção lícita, negar acesso ao sistema bancário e a uma série de serviços do Estado tende
a reduzir estas pessoas a uma verdadeira morte civil em plena existência física. Em
grande parte, esta é a mesma condição das pessoas trans no Brasil e em diversas outras
sociedades32.

32Agradeço a Simone Schuck da Silva com a ajuda na redação deste trecho do texto que foi baseado
em seu trabalho de mestrado intitulado “Fora da Norma? Conflitos Dogmáticos nas Demandas por
Retificação de Nome e Sexo no Registro Civil” defendido na UNISINOS em 2017 sob minha orientação.

60
Sem se reconhecer e serem reconhecidas pelo nome e pelo sexo do seu re-
gistro civil original, as pessoas trans são impedidas de acessar seus direitos de cidada-
nia. O nome individualiza e personaliza o sujeito, torna a pessoa singular para a vida
em sociedade. No direito, o nome civil é o instituto responsável por materializar a
pessoa humana como centro de imputação de direitos e deveres. Quando o nome não
é capaz de identificar a pessoa, ele perde sua função nas relações jurídicas e também
gera sofrimento.
O nome e todos os dados de identificação da pessoa devem ser capazes de
efetivamente identificá-la, ou seja, remeter à singularidade da pessoa. Sem um nome
que represente a pessoa como ela é, ele causará constrangimentos e violências e im-
pedirá a plena satisfação da cidadania. Os documentos civis que não acompanham a
identidade de gênero das pessoas trans provocam sua expulsão das instituições em
um processo progressivo de despersonalização no direito.
Pelo medo da violência dos agentes, as pessoas trans são privadas da utiliza-
ção de serviços públicos e privados cujo acesso é feito com documentos de identifi-
cação oficiais. As pessoas trans são impedidas de realizar tarefas simples como tran-
sações bancárias, matrículas em escolas e universidades e consultas médicas no sis-
tema de saúde pela incongruência de seus corpos com seu registro civil. São muitas
vezes expulsas das casas de suas famílias pelo preconceito, sofrem violência fatal nas
ruas e ainda são impedidas de trabalhar pela sua exclusão no mercado de trabalho
formal, principalmente no momento da contratação, em que seus documentos são
apontados como ilegítimos.
Muitas vezes o próprio nome registrado, presente nos documentos oficiais
de identificação, é utilizado para humilhar as pessoas trans em uma explícita perversão
do instituto que deveria personalizá-las, torná-las pessoas no ordenamento jurídico.
Se o direito constrói a realidade intersubjetiva, se ele torna possível reivindicar modos
de vida como a transição na identidade de gênero, isso não significa que a identidade
de gênero da pessoa trans deve ser necessariamente exposta. É um ato de violência
forçar pessoas trans a explicitar sua travestilidade ou transexualidade contra sua von-
tade. A incongruência com o registro civil gera exatamente essa violência ao exterio-
rizar obrigatoriamente a identidade de gênero das pessoas trans.
Mesmo o nome social mostrou-se insuficiente para concretizar a cidadania
de pessoas trans e impedir sua despersonalização jurídica. O nome social era uma
política pública oferecida no Brasil pelo governo federal e por alguns entes federativos
com o objetivo de diminuir os constrangimentos sofridos por pessoas trans. Tratava-
se de uma carteira que substituía os demais documentos de identificação, como a
carteira de identidade. Mas agentes de órgãos públicos e privados nem sempre a re-
conheciam como um documento válido, o que levava à necessidade de apresentação
dos documentos de identificação de praxe. O nome social também não alterava o
registro civil. A pessoa continuava a ser identificada pelo Estado com o nome do

61
registro apesar de poder se apresentar com o nome da carteira social. Mesmo pessoas
trans usuárias do nome social passavam pela angústia de ter seu documento de iden-
tidade ou mesmo seu registro civil solicitado.
A mudança do registro civil no judiciário passou a ser reivindicada pelas pes-
soas trans porque o registro gera todos os demais documentos de identificação no
direito brasileiro. A identidade de gênero passou a ser compreendida como um direito
pelas pessoas trans exatamente quando houve a necessidade de acessar o sistema de
justiça para garantir seu exercício em liberdade. A mudança do registro civil se tornou,
para muitas pessoas trans, a possibilidade de viver sua travestilidade ou transexuali-
dade de maneira autônoma, ou seja, sem deixar de acessar as políticas públicas e os
serviços privados livremente, desobrigadas da necessidade de explicitar sua identidade
de gênero se assim não convir.
Mudar o registro civil é transformar o tratamento da pessoa pelas institui-
ções. É possibilitar autonomia no processo de identificação e de construção de sua
subjetividade na gramática jurídica. Essa perspectiva da cidadania, em que as pessoas
trans podem alterar seu registro civil, viver e construir sua própria existência, impede
a privação sistemática do pleno acesso à gramática dos direitos e a sua completa des-
personalização jurídica.

62
I. DIREITO EM TRANSFORMAÇÃO

Parte 1
Democracia e Direito
Capítulo 1 – Forma Direito Democrático

Um grande autor desconhecido

Foi justamente em razão de reflexões como a que segue abaixo que eu me


senti atraído pela obra de Franz Neumann, um autor alemão dissidente, amplamente
ignorado pela bibliografia, inclusive internacional, as bases do meu próprio pensa-
mento e de minha interpretação do Brasil:

… a esquerda desprezou, a meu ver, as grandes invenções políticas do século


XX, por causa do estigma do reformismo. Ao desprezar, não entendeu porque
o Estado de bem-estar foi destruído: de fato, ele ameaçou a acumulação. Coisa
em que a gente se recusou a pensar. Quando você coloca, na área da política, a
decisão sobre 50% do PIB (Produto Interno Bruto), isso modifica o capitalismo.
E a esquerda não se apropriou disso (OLIVEIRA, 2018, 160).

Em razão deste desprezo, quando chegou ao poder, a esquerda não soube


romper com a lógica da modernização conservadora brasileira. Na falta de um projeto
próprio, apenas seguiu a lógica do que ainda está vigente, tratando superficialmente de
alguns de seus sintomas sociais mais graves, pela inclusão de parte da população no
mercado de consumo.
Tal inclusão - e sigo aqui, de perto, o pensamento de Francisco de Oliveira
(OLIVEIRA, 2008) - se fez via crescimento econômico e benefícios assistenciais, ou
seja via mecanismos de gestão do Estado que despolitizaram a pobreza brasileira, dei-
xando de lado o debate sobre a nossa desigualdade estrutural que se assenta, até os dias
de hoje, na superexploração da mão-de-obra e em um sistema tributário que alivia o
peso dos impostos sobre os ricos e sobrecarrega a classe média e os pobres.
Esta desigualdade serve a um modelo econômico baseado na exportação de
commodities que precisa depreciar a mão-de-obra para que nossos produtos sejam
competitivos no mercado mundial. A aliança feita pela esquerda no poder com os se-
tores mais tradicionais da economia, que seguiu a lógica dos governos anteriores, man-
teve este modelo intacto.
Franz Neumann foi, sem sombra de dúvida, o primeiro autor de esquerda a
levar a sério o potencial emancipatório dos direitos sociais. Daí nasceu meu interesse
em estudar sua obra e, por essa mesma razão, o nome original do meu doutorado é “o
direito liberal para além de si mesmo “. Durante a minha graduação e mestrado eu
devo ter lido praticamente todos os livros e textos avulsos da intelectualidade de es-
querda brasileira, que só muito tardiamente começou a levar a sério o estado e o Di-

65
reito, talvez, justamente, no momento em que essas estruturas entraram na mais com-
pleta crise e o capitalismo internacional começou a destruir o pouco de poder de gestão
e distribuição que o Brasil ainda poderia exercer de forma autônoma.
Se a esquerda nacional teve sucesso em pensar e de forma decolonial a com-
binação brasileira de atraso e avanço, ou seja, nossa inserção no capitalismo avançado
que mantém em pleno funcionamento as práticas mais atrasadas – por exemplo, por
meio das obras-primas conceituais “razão dualista“ de Chico de Oliveira e. “favor“ de
Roberto Schwarz – ela não soube perceber com clareza as possibilidades emancipató-
rias das estruturas institucionais que aqui se implantaram, cujo marco fundamental é a
Constituição de 1988.
Por isso mesmo, antes de abordar o tema da forma direito, importante para
a compressão da visão de direito deste livro, é importante abordar algumas ideias de
Franz Neumann, autor cuja obra examinei, em detalhes, em meu Doutorado, publi-
cado sob o título “Fuga do Direito. Um Ensaio sobre o direito contemporâneo a
partir de Franz Neumann”.
A ideia que mais me interessa apresentar aqui é a invenção do direito demo-
crático pela luta social, que mudou o sentido do direito liberal burguês ao passar a
lutar por direitos, ou seja, ao passar a lutar pela transformação social por meio do
sistema jurídico e não apesar ou contra ele. Terei oportunidade de explicar adiante o
sentido desta formulação e suas implicações para o pensamento crítico.
Precursor da Ciência Política alemã, historiador do nazismo, funcionário do
Departamento de Estado dos Estados Unidos e jurista radical, autor de textos mili-
tantes sobre direito do trabalho e direito econômico, Franz Neumann tem sido lem-
brado, principalmente, por contribuições parciais a diversos ramos das ciências hu-
manas (THORNHILL, 2000; COTTERREL, 1995) e, eventualmente, como repre-
sentante da Teoria Crítica da Sociedade (HONNETH, 1999; SCHEUERMAN, 1997;
JAY, 1987). Seja como for, seus escritos, dispersos em publicações variadas, ainda
aguardam uma organização unitária e interpretações compreensivas1.
Parte da culpa por essa situação é dele mesmo. No necrológio que escreveu
para Neumann, Theodor W. Adorno disse nunca ter conhecido alguém tão pouco
interessado em sua própria obra2. Segundo Adorno, Neumann parecia ficar satisfeito
em investigar e compreender determinados fenômenos sem a preocupação de encon-
trar a melhor maneira de transmitir e organizar sua produção. Adorno, muito ao con-
trário, soube divulgar suas ideias com eficácia ao longo de toda a sua carreira. Ele
escreveu, como Neumann, obras complexas e seminais, mas também textos curtos,
que desenvolveram alguns aspectos de seu pensamento, e artigos para jornais e revistas.
Além disso, ministrou cursos e aulas abertas, inclusive por meio do rádio.
Neumann, de sua parte, nunca organizou seus escritos em livros, manteve

1. As exceções são os livros de: Intelmann, 1996; Scheuerman, 1997; Thornhill, 1999, Kelly, 2003;
Rodriguez, 2009a; e duas coletâneas: Perels, 1984; Iser & Strecker, 2002. Ver ao final a bibliografia
para os textos de Franz Neumann.
2. O texto aparece como apêndice à edição francesa de Behemoth de Franz Neumann, editada pela
Payot em 1987.

66
seus dois doutorados inéditos3 e nunca escreveu um artigo sintético com o objetivo
de organizar suas ideias. Cada um de seus textos aborda problemas e questões novas,
sem a preocupação de organizar seu pensamento na forma de uma trajetória coerente.
Eles incorporam novas questões e evoluem com elas, inclusive quanto a seu estilo de
escrita e campo do saber. Por exemplo, na passagem dos anos 1930 para os anos
1940, Neumann deixa de escrever como um jurista de esquerda e passa a produzir
como teórico crítico que trabalha nos marcos do assim denominado “materialismo
interdisciplinar” praticado pelo Instituto de Pesquisas Sociais (RODRIGUEZ,
2009a).
No entanto, ele próprio não traçou, de mão própria, essa trajetória, não se
preocupou em ligar os pontos de sua obra. É interessante notar que o único livro
completo que publicou em vida, Behemoth, é um estudo de caso: a obra procura de-
monstrar a singularidade do nacional--socialismo na Alemanha e não se apresenta
como ponto culminante ou conclusivo de seus escritos anteriores.
Não cabe fazer aqui o que Neumann, ele mesmo, não fez: conferir unidade
teórica a um trabalho que se volta mais para o problema do que para o sistema, mais
para as questões concretas de seu tempo do que para a filosofia4. Esta parece ser, na
verdade, uma característica de seu modo de pensar, e não uma falha em sua carreira
intelectual.
Neumann escreve sempre rente à empiria e ao mundo contemporâneo, sem
perder de vista os fenômenos sociais de seu tempo. Um pouco à maneira dos psi-
canalistas, seus conceitos seguem muito de perto o material empírico analisado.
Também ao modo dos analistas políticos e econômicos, seu interesse sempre se
volta para os acontecimentos contemporâneos, e não para a erudição filosófica ou
histórica.
Franz Neumann tinha em vista, principalmente, a singularidade dos fatos
históricos de sua época, em particular, a situa-ção da Alemanha e seus impasses jurídi-
cos, políticos e econômicos. Seu objetivo nos escritos publicados em vida não foi
construir alguma espécie de “teoria geral” capaz de abarcar fenômenos variados, se-
parados pelo espaço e pelo tempo. Quando Neumann se refere ao direito, como eu
mesmo neste livro, faz referência ao direito europeu e ocidental; quando discute polí-
tica, refere--se aos problemas da democracia na Alemanha e dos EUA (país para o
qual migrou em 1937), e assim por diante, mantendo explícito o material abstraído por
formulações conceituais.
Em seus dois textos mais sistemáticos, O império do direito – seu segundo dou-
torado – e Behemoth, seu método fica muito claro: a discussão de todas as questões

3. O primeiro foi escrito em 1923 sob a orientação de Max Ernest Mayer, ainda na Alemanha, e per-
manece inédito até hoje, inclusive em alemão. Seu título é “Introdução Jusfilosófica a um Tratado
sobre a Relação entre Estado e Pena” (Rechtsphilosophische Einleitung zu einer Abhandlung über
das Verhältnis von Staat und Strafe). O segundo doutorado foi escrito na London School of Econo-
mics, na Inglaterra, em 1936, sob a orientação de Harold Laski e se intitula “The Rule of Law:
Political theory and the legal system in modern society”. Foi publicado em 1980 em alemão e na
língua original, o inglês, em 1986.
4. Para um panorama da obra do autor, ver Rodriguez, 2009a.

67
teóricas é sempre fundada em análises institucionais detalhadas dos países a que ele
se refere. Não sabemos se no final da vida, caso ele tivesse sobrevivido ao acidente
de carro que o matou aos 54 anos, na Suíça (em 1954), Neumann teria desenvolvido
uma “teoria geral” organizada. As circunstâncias de sua vida e sua inspiração intelec-
tual, a Teoria Crítica, que procura sempre juntar teoria e práxis em análises situadas,
fazem supor que não.
Seja como for, Neumann procurou combinar durante toda a sua carreira as
atividades de militante e professor, tanto em seus anos de estudante de direito, época
em que foi militante estudantil, quanto depois de formado, em sua atuação como
advogado do movimento sindical durante a República de Weimar. Em seu exílio
norte-americano, não foi diferente: Neumann trabalhou para o Departamento de Es-
tado dos EUA como chefe de um escritório cuja função era fornecer informações
sobre a Alemanha, capazes de enfraquecer o regime nacional socialista e preparar a
desnazificação do país após a guerra.
Além disso, atuou no Tribunal de Nuremberg para investigar a ação dos na-
zistas contra a Igreja católica. Quando morreu, já na condição de professor de Ciência
Política da Universidade de Colúmbia, não havia abandonado suas atividades parale-
las. Tal continuidade em seu modo de proceder faz supor que este era seu modo de
pensar e de estar no mundo.
Para ser fiel à urgência e à atualidade do modo de pensar de Franz Neumann,
vamos falar dele a partir de dois problemas centrais em sua reflexão, a saber, a entrada
da classe operária no Parlamento e o advento do nazismo. A partir destas duas ques-
tões, apresentaremos algumas de suas construções teóricas, em especial o que eu
chamo de “forma direito”, e mostraremos sua utilidade, com as devidas adaptações,
para pensar problemas contemporâneos.
É razoável dizer que Neumann mostra a necessidade de relacionar as cate-
gorias jurídicas com as classes sociais para mostrar que a luta socialista por emancipa-
ção se dá também por seu intermédio. Franz Neumann faz uma combinação criativa
dos escritos de Max Weber e Karl Marx para explicitar que o debate sobre a materia-
lização do direito, tipicamente weberiano, é um momento da luta de classes, nos ter-
mos de Marx. Além disso, o autor mostra que, se em determinados momentos histó-
ricos, ser revolucionário significa destruir o Direito, em outras realidades e contextos,
ser revolucionário implica lutar pela emancipação por meio das próprias categorias
jurídicas5. Desse modo, ele fornece elementos para uma análise histórica e social do
direito tendo em vista a emancipação sem considerar o Direito como mera domina-
ção.
Os dois acontecimentos históricos a que já nos referimos – ingresso da classe
operária no Parlamento e advento do nazismo – são interpretados por Neumann como
rupturas de grande alcance que motivaram a rearticulação de conceitos e narrativas pro-

5. Para uma análise sobre a relação na obra de Neumann entre diagnóstico de determinado mo-
mento histórico e a função do direito para se buscar a emancipação, ver Prol, 2009.

68
movidas por seus escritos. São fatos que demandam rearticulação conceitual por desa-
fiarem o conhecimento de então. Nesse sentido, eles podem ser equiparados a uma crise,
categoria central para a tradição marxista.
Normalmente, a “crise” a que se refere tal tradição diz respeito ao colapso
do capitalismo: a “crise final” deste sistema que, para ser figurável, exige ação prática
revolucionária e rearticulação do conhecimento posto para desnaturalizar as catego-
rias que o moldam como se fosse algo natural, uma segunda natureza. No caso de
Franz Neumann, como veremos adiante, o assunto é o colapso do estado de direito
ocidental e a desnaturalização da concepção liberal-burguesa de direito por meio da
articulação entre teoria e práxis. Esse colapso do direito, promovido pelo nazismo,
não marca o fim do capitalismo, mas o fim da democracia, e tem consequências tanto
para a reprodução do sistema quanto para a ação revolucionária, que muda de sentido
nesse processo.
A partir da avaliação de Neumann sobre cada um destes problemas e da ligação
que estabelece entre ambos, será possível compreender e organizar melhor suas ideias
centrais. O ponto crucial a se compreender é a transformação sofrida pelo direito liberal
burguês no início do século XX. Este direito deixa de funcionar como mero instrumento
de dominação de classe e passa a ser veículo para a expressão de interesses variados.
Torna--se um espaço de disputa pela melhor maneira de regular a sociedade, inclusive a
utilização dos meios de produção.
Como veremos, este movimento do real faz com que o direito perca seu caráter
ideológico e se torne um momento necessário da emancipação humana na condição de
direito democrático, cuja forma básica precisa garantir alguma forma de participação das
pessoas interessadas na formação das normas que regulam as suas vidas.
É importante esclarecer que este potencial emancipatório não foi necessari-
amente encarado dessa forma pela classe trabalhadora de então, tampouco assumido
explicitamente em sua prática revolucionária. Franz Neumann, como teórico crítico,
identificou tal potencial e explicitou os processos sociais que criaram suas condições
de possibilidade por meio de uma ampla reconstrução conceitual sobre o que é o
direito para o campo marxista.
No momento histórico em que nosso autor escreveu, regimes autoritários
dominavam a Europa, o que dificultava apostar na forma direito democrático como es-
tratégia de luta: era preciso antes derrubar, eventualmente destruir com violência, o
totalitarismo. Como veremos, Neumann estava bem consciente desta necessidade.
Suas afirmações sobre o caráter emancipatório do direito só se aplicam a contextos
em que o direito esteja, de fato, em funcionamento, ou seja, contextos como o nosso.

A entrada da classe operária no Parlamento e a invenção do direito


democrático

A entrada da classe operária no Parlamento provocou, por meio de sua parti-


cipação no jogo eleitoral e parlamentar, uma mudança profunda nas estruturas do es-
tado de direito. A face mais visível deste processo foi a criação de direitos sociais (direi-

69
tos trabalhistas, direito à educação, à saúde etc.). Tais direitos representam explicita-
mente uma compensação pela exploração dos trabalhadores conquistada pela classe
operária a partir da luta social. Essa é a maneira pela qual eles foram justificados no
contexto da racionalidade do direito.
A seguinte passagem do livro Império do direito é essencial para compreender
o surgimento desses direitos sociais:

“O período pós­-guerra [1ª Guerra Mundial] é caracterizado pelo fato de que o


movimento trabalhista se torna politicamente autoconsciente, separando--se do
movimento liberal da burguesia, constituindo--se como organização política au-
tônoma e tentando transformar toda a sociedade conforme sua própria filosofia
de vida. [...] a massa da população agora tinha direitos políticos e não mais se
separava passivamente da elite governante” (NEUMANN, 1986, p. 269­-271).

Ou seja, a transformação do estado liberal em uma democracia de massas,


com o ingresso da classe proletária no Parlamento, é fundamental para permitir que
os trabalhadores aprovem leis que sejam favoráveis aos seus interesses. Neumann
menciona todos os direitos fundamentais previstos na segunda parte da Constituição
de Weimar como conquistas dessa transformação histórica.
Podemos compreender melhor o alcance dessa transformação institucional
ao refletir sobre os direitos trabalhistas, objeto de vários estudos de Franz Neumann.
Tais direitos assumem a forma técnico--jurídica de cláusulas que passam a integrar
todos os contratos de trabalho celebrados num determinado território, mesmo que as
partes não deliberem sobre elas e não as incluam no instrumento contratual. As partes
também não podem evitar que essas cláusulas estejam presentes nos contratos. Em
outras palavras, não podem decidir contratar de outra forma, pois seu papel é expli-
citamente diminuir a margem de exploração do trabalho com a criação de determina-
dos benefícios. Como Neumann explica em outro texto, no qual analisa as principais
características do direito do trabalho moderno:

“A relação trabalhista se baseia em obrigações recíprocas e no poder: seres hu-


manos estabelecem relações de dominação com outros seres humanos. Essa é a
base do princípio jurídico que obriga aqueles que possuem esse poder (a despeito
de serem capitalistas privados ou socialistas) a cumprir obrigações adicionais em
relação ao objeto da dominação, o trabalhador. Mas isso não [...] requer do tra-
balhador a execução de obrigações adicionais para o empregador, além daquelas
estabelecidas no contrato de trabalho” (Neumann in SCHEUERMAN, 1996, p.
235).

Ou seja: o empregador deve cumprir obrigações adicionais ao pagamento de


um salário para o trabalhador sem poder exigir nada em troca, a não ser o próprio
trabalho. Podemos citar como exemplos o 13º salário e as férias anuais remuneradas.
É obrigatório pagar estes benefícios a todos os empregados, sem exceção. Não é per-
mitido negociar seus termos, tampouco afastar sua incidência sobre o contrato de

70
emprego. Note--se que, a rigor, ambos os valores são pagos sem nenhuma contra-
prestação por parte do empregado. A remuneração das férias é paga, por definição,
sem que o empregado preste nenhum serviço adicional. Da mesma forma, o 13º sa-
lário é um valor que não está ligado a nenhuma contraprestação específica. A lógica
de ambos é permitir que o trabalhador recupere suas forças durante o descanso e
tenha mais dinheiro para gastar no final de cada ano. Os institutos diminuem a quan-
tidade de mais--valia que o empregador pode extrair de seus empregados, reduzindo
a margem de exploração imposta ao trabalhador.
Desse modo, é interessante notar como o direito liberal muda suas feições,
ao admitir a existência de direitos trabalhistas. A existência de contratos de emprego,
que antes serviam para ocultar a exploração de classe, ajuda agora a reduzir sua mar-
gem e, ponto central para esta análise, a explicitá--la na letra da lei. Ao contrário do
que diz Marx em O Capital, o contrato de emprego não serve mais para ocultar a
extração de mais--valia: ele expõe a exploração e torna--se um meio de reduzi--la6.
Como foi possível criar o direito a férias remuneradas e ao 13º salário, é possível criar
hoje novos direitos trabalhistas, novos benefícios.
Com esta mudança crucial, o direito liberal deixa de funcionar como forma
alienante e ganha uma inflexão emancipatória e antiburguesa, que, ao invés de natu-
ralizar, serve para explicitar o conflito de classes. Como afirmava Neumann no
mesmo texto mencionado, escrito originalmente em 1951: “Mais agora do que an-
tes de 1933 [ano da ascensão de Hitler ao poder na Alemanha], a proteção dos
interesses e direitos do trabalhador individual em face do empregador, seja capita-
lista, seja socialista, deve compor o núcleo do direito do trabalho” (SCHEUER-
MAN, 1996, p. 235).
Além do contrato de trabalho, podemos citar os efeitos desta movimentação
da classe operária sobre outro instituto fundamental da ordem capitalista, a proprie-
dade privada. A entrada da classe operária no Parlamento teve como resultado a alte-
ração no modo de se conceber e regular este instituto. A propriedade deixou de ser o
poder absoluto de deter, usar e abusar do bem e passou a ser definida de acordo com

6. Marx considerava que o contrato de trabalho, formulado nos termos de troca entre equivalentes,
servia para ocultar a exploração da força de trabalho (única mercadoria que consegue produzir va-
lor). Nesse sentido: “O comprador e o vendedor de uma mercadoria – a força de trabalho, por exem-
plo – são determinados apenas pela sua vontade livre. Contratam como pessoas livres, juridicamente
iguais” (MARX, 1998, p. 206). Contudo, continua antecipando algumas teses centrais apresentadas
por Neumann: “Temos de confessar que nosso trabalhador sai do processo de produção de maneira
diferente daquela em que nele entrou. No mercado, encontramo--lo como possuidor da mercadoria
chamada força de trabalho, em face de outros possuidores de mercadorias; vendedor em face de
outros vendedores. O contrato pelo qual vendeu sua força de trabalho ao capitalista demonstra, por
assim dizer, preto no branco, que ele dispõe livremente de si mesmo. Concluído o negócio, descobre--se
que ele não é nenhum agente livre, que o tempo em que está livre para vender sua força de trabalho
é o tempo em que é forçado a vendê--la e que seu vampiro não o solta ‘enquanto houver um músculo,
um nervo, uma gota de sangue a explorar’. Para proteger--se contra ‘a serpe de seus tormentos’, têm
os trabalhadores de se unir e, como classe, compelir a que se promulgue uma lei que seja uma barreira
social intransponível, capaz de impedi--los definitivamente de venderem a si mesmos, e à sua descen-
dência ao capital, mediante livre acordo que os condena à morte e à escravatura” (idem, p. 346, des-
taca--se). Não há espaço para desenvolver maiores comparações sobre as obras aqui.

71
sua função social7.
Por exemplo, tornou--se possível desapropriar imóveis que não eram utiliza-
dos pelos seus donos, estabelecer limites ao seu uso para impor o respeito à saúde do
trabalhador e, mais tarde, ao meio ambiente e aos consumidores, entre outras limita-
ções. Como diz o art. 153, § 2º, da Constituição de Weimar: “A propriedade impõe
obrigações. Seu uso deve constituir, ao mesmo tempo, um serviço para o mais alto
interesse comum”.
Não há espaço aqui para detalhar o regime da propriedade privada sob a
égide da função social. Para o que nos interessa, basta dizer que institutos jurídicos
liberais foram transformados pela ação parlamentar da classe operária. Para permane-
cer com nossos dois exemplos, o contrato de emprego deixa de ocultar a exploração
do trabalho e passa a funcionar como meio de proteção ao trabalhador; e a proprie-
dade privada deixa de ser sacrossanta e individualista e ganha inflexões coletivas: seu
conteúdo e sua função passam a ser disputados e definidos em razão dos interesses de
toda a sociedade. Este processo de transformação deixa claro, portanto, que o direito
liberal não é imutável e pode ser disputado por meio das instituições formais.

O direito é uma faca de dois gumes

Como resultado desse processo, a burguesia deixa de defender o estado de


direito e passa a apoiar outros modelos de regulação, nitidamente mais autoritários.
Afinal, o direito se revela uma faca de dois gumes. A defesa da implantação do estado
de direito foi um instrumento importante para destruir os privilégios da aristocracia e
impor limites ao exercício do poder pelo estado com o objetivo de proteger a proprie-
dade privada e a liberdade de contrato. No entanto, uma vez implantado e em funcio-
namento, o estado de direito, ou melhor, em minha nomenclatura, a forma “direito
democrático”, passou a ser utilizado pela classe trabalhadora para ameaçar o poder da
burguesia, impondo limites à exploração do trabalho e ao exercício individual da pro-
priedade privada, por exemplo. Como afirma Neumann:

“Toda norma geral que pretende estabelecer um limite à atividade do estado,


seja de direito natural ou de direito positivo, necessariamente- contribui com a
desintegração do status quo. Essa norma tem dois gumes; é uma espada de dois
gumes. [...] Mais cedo ou mais tarde, o progressivo reconhecimento do Império
do Direito (‘Rule of Law’) se torna perigoso para as posições de poder” (NEU-
MANN, 1986, p. 6).

7. Em uma perspectiva bastante inovadora para seu tempo, Neumann escreverá, no artigo “The con-
cept of political freedom”, de 1953: “As tarefas de uma teoria política preocupada com a liberdade
da humanidade são analisar se a propriedade privada cumpre sua função como um instrumento
eficiente da liberdade e descobrir quais mudanças institucionais são necessárias para maximizar
sua efetividade” (NEUMANN in SCHEUERMAN, 1996, p. 215). A ideia que Neumann tem em mente,
aqui, é a possibilidade de a sociedade democraticamente promover alterações na estrutura de
propriedade existente, inclusive levando em consideração suas diferentes manifestações: “O subs-
trato do direito de propriedade – terra, bens de consumo e bens de produção – pode requerer
tratamento diferenciado” (idem, p. 214).

72
No começo do século XX, o agravamento da chamada questão social com
o crescimento de poder da classe operária foi levando a burguesia a adotar um ideá-
rio cada vez mais autoritário, voltado à repressão do movimento operário, ao con-
trole das classes subalternas e ao abandono do estado de direito. Está criado o pa-
radoxo que se resolverá nos fascismos que dominarão a Europa: a mesma classe
que lutara para criar o estado de direito, um instrumento claramente racional de
legitimação do poder, passa a defender formas irracionais de legitimação como o
carisma do líder, a autoridade transcendente do Estado, o sangue do povo, o bem
da nação8.
Afinal, o direito exige que os poderosos prestem contas do que fazem, ou
seja, que suas decisões sejam justificadas com fundamento em normas jurídicas. Em
sua essência, o direito é justificação racional. Em formas de dominação irracionais, os
poderosos podem ser arbitrários e agir sem justificação, pois a legitimidade de seu
poder advém de outras fontes. Tradição, divindade, nação: diante do crescimento do
poder proletário, a burguesia foge do direito para construir um espaço de ação arbi-
trária e neutralizar as reivindicações das classes subalternas. O objetivo central desse
movimento é desarmar o mecanismo de controle do poder e evitar a formação de
demandas que contrariem seus interesses.
Um breve parêntese: os Estados Unidos da América, ao menos durante o
governo Bush, negou apoio a todo e qualquer mecanismo jurídico que pudesse criar
entraves ao exercício unilateral do poder, como o Tribunal Penal Internacional. Além
disso, impôs restrições aos direitos fundamentais para combater o terrorismo e criou
um tribunal de exceção para julgar Saddam Hussein ao invés de usar as cortes iraqui-
anas ou tribunais internacionais.
Poderíamos citar outros exemplos, como o esforço das corporações interna-
cionais para criar padrões próprios para a regulação, longe do controle dos estados e
da sociedade civil nacional, além de outras ações que têm como objetivo neutralizar a
arena jurídica quando ela confere a vitória ao adversário. Em suma, o processo de fuga
do direito, ou seja, fuga aos entraves impostos pela forma direito ao poder que se pre-
tende autárquico, parece ser um fenômeno absolutamente atual9.

O nazismo é um não estado de não direito

Mas retomemos o fio da exposição: a dissociação entre burguesia e estado de


direito, o divórcio entre direito liberal e classe burguesa, mostra--se de maneira clara
durante o regime nacional--socialista. No final do livro O império do direito, escrito por
Neumann em 1936, e em Behemoth, de 1942, nosso autor afirma que a Alemanha,

8. Na continuação da passagem acima citada, Neumann escreve: “O abandono da democracia é


acompanhado por uma reversão no sistema de valores da esfera filosófica. A ratio é desvalorizada.
[...] Permanece somente a justificação carismática, que é um caso típico de atitude extrema de
irracionalidade” (NEUMANN, 1986, p. 6). A referência à Hitler e ao nacional--socialismo é nítida.
Para mais, ver a introdução de Franz Neumann ao seu O império do direito (NEUMANN, 1986).
9. Para o desenvolvimento dessas ideias, ver Rodriguez, 2009a.

73
naquele momento, não era um estado e, além disso, não contava com um regime de
direito no sentido ocidental da palavra. Numa fórmula sucinta, para Neumann a Ale-
manha era um não estado de não direito e, apesar disso, o capitalismo funcionava
normalmente.
No final do livro O império do direito, Neumann escreveu: “O direito não mais
existe na Alemanha, porque ele é hoje somente uma técnica para transformar a von-
tade política do Líder em realidade constitucional” (NEUMANN, 1986, p. 298). Antes,
Neumann já havia afirmado: “Não se pode duvidar que a calculabilidade das relações
comerciais ainda existe, na medida em que serve aos interesses dos monopolistas”
(idem, p. 297). É exatamente nesse sentido que podemos afirmar, com Neumann, que
o nazismo eliminou o direito ao mesmo tempo em que garantiu o funcionamento do
capitalismo. em minha nomenclatura, o nazismo transformou o direito em pura au-
tarquia.
Antes de continuar, façamos uma pausa para refletir sobre o alcance do que
acabamos de dizer: segundo Neumann, na Alemanha nazista não havia nem estado
liberal burguês nem direito liberal burguês, embora o capitalismo continuasse funci-
onando. Ora, para qualquer militante ou teórico socialista, a supressão dessas duas
estruturas – estado liberal e direito liberal – deveria ser sinal do advento de uma soci-
edade socialista. No entanto, o nazismo foi capaz de suprimir ambas e manter o ca-
pitalismo. Como isso foi possível? Ou ainda: o que a continuidade do capitalismo, a
despeito do direito e do estado, significa para o papel desses últimos na luta pela
emancipação humana?
Para Neumann, a Alemanha era um não estado porque sua estrutura de po-
der deixou de se basear na tensão entre estado e sociedade e passou a ser baseada em
acordos instáveis celebrados entre burguesia, burocracia, exército e partido nazista,
mediados pelo Führer. Neumann intitula o livro que escreveu sobre o nazismo de
Behemoth justamente para ressaltar essa estrutura instável, disforme, singular e antide-
mocrática, a qual, segundo ele, não encontra paralelo na história ocidental e representa
uma ruptura com esta tradição política. Criatura bíblica que aparece no livro de Jó,
Behemoth é um monstro que, no Livro de Thomas Hobbes, é utilizado para representar
a guerra civil inglesa, ou seja, uma situação de destruição das instituições10.
Neumann chega a prever a implosão do nazismo em razão de sua formação
instável, mas a derrota da Alemanha na guerra não permitiu verificar se tal previsão
se confirmaria na prática. Seja como for, Neumann demonstra seus argumentos em
mais de 480 páginas de pesquisa empírica sobre o funcionamento de todo o aparato

10. Nas palavras de Neumann: “Todo sistema político pode ser caracterizado pela sua teoria política,
que expressa sua estrutura e seus objetivos. Porém, nós teríamos problemas se tentássemos de-
finir a teoria política do Nazismo. O Nazismo é antidemocrático, antiliberal e profundamente an-
tirracional. É exatamente por conta disso que ele não pode se utilizar de nenhum pensamento
político precedente. Nem mesmo a teoria política hobbesiana é aplicável. O estado Nazista não é
o Leviatã. Além do Leviatã, Hobbes também escreveu Behemoth, or the Long Parliament, que foi
editado em Londres pela primeira vez em 1889, por Ferdinand Tönnies, a partir do manuscrito
original. Behemoth, que simbolizava a Inglaterra do período do Long Parliament, foi construído
como a representação do não estado, uma situação caracterizada pela completa ausência do di-
reito (complete lawlessness)” (NEUMANN, 1966, p. 459).

74
nazista, percurso que, infelizmente, não podemos sequer tentar resumir aqui. Sigamos
adiante.
Como acabamos de explicar, a Alemanha nazista era um não estado. Resta
explicar por que este regime também foi classificado por Neumann como de “não
direito”. Em uma palavra: as regras que governavam a Alemanha eram produzidas
sem a participação da sociedade como um todo; eram criadas unilateralmente pelos
poderosos sem a participação de qualquer coisa que se possa identificar como soci-
edade. De fato, como diz Neumann, o Nazismo promoveu a destruição da tensão
entre sociedade e estado, criando um polo de poder único que não podia sofrer ne-
nhuma resistência. Em minha terminologia, julgo mais preciso dizer que o nazismo
instaurou um direito autocrático, destruindo a forma direito democrático.
Neumann não defende que a mera distinção entre sociedade e estado ga-
ranta, por si mesma, a emancipação. Mas, como desenvolveu em The concept of poli-
tical freedom (“O conceito de liberdade política”), a tensão é com certeza um dos
elementos constitutivos da ideia de liberdade:

“Em primeiro lugar e principalmente, liberdade é a inexistência de restrições. [...]


Assim compreendida, liberdade pode ser definida como negativa ou liberdade
legal (‘juristic’ freedom). [...] O elemento negativo da liberdade não deve ser des-
cartado – fazer isso conduz à aceitação do totalitarismo – mas não pode, por si
mesmo, explicar adequadamente a noção de liberdade política. Traduzido em
termos políticos, o aspecto negativo da liberdade necessariamente conduz à fór-
mula do cidadão contra o Estado. [...] O Estado não deve absorver completa-
mente o indivíduo; o indivíduo não pode ser entendido meramente como um
animal político” (NEUMANN in SCHEUERMAN, 1996, p. 197)11.

O sonho do poder autárquico é suprimir a sociedade ou qualquer outro en-


trave que impeça seu livre exercício. O direito democrático, ao menos em sua mani-
festação ocidental, impõe aos poderosos o dever de se justificarem perante a socie-
dade. Por isso mesmo, a supressão da tensão entre sociedade e estado destrói o di-
reito e, consequentemente, a própria liberdade.
O que havia na Alemanha não era direito, mas um conjunto de regras de
natureza técnica que visavam a atender a vontade do Führer e estabilizar expectati-
vas. Ou seja, regulavam, mas de maneira fundamentalmente autárquica. Tais regras
eram capazes de criar previsibilidade para os negócios e para os comportamentos em
geral. No entanto, sua formação era autoritária e sua obediência imposta pelo terror e
pela força. Qualquer oposição ou discordância, por mais insignificante que fosse, era

11. Mais à frente no seu texto, Neumann apontará os limites do conceito negativo de liberdade. Resu-
midamente, eles são: (i) a partir dessa definição, é impossível justificar a democracia como o me-
lhor sistema político; (ii) essa fórmula pressupõe que o único inimigo da liberdade é o Estado –
embora o poder social privado possa ser ainda mais danoso; (iii) a proteção da liberdade legal não
diz nada a respeito do conteúdo das leis que a protegem, permitindo, por exemplo, que um Estado
liberal brutalize seu sistema penal; (iv) o modo de aplicação dessas liberdades sempre permite a
existência de “cláusulas de escape” (escape clauses) que permitem a prevalência do poder político
sobre os direitos individuais. É impossível aprofundar esse tema aqui. Para mais, ver: op. cit., p.
208--210.

75
simplesmente suprimida.
Elas também desrespeitavam os preceitos básicos da ideia de império do di-
reito (rule of law) existente no auge do liberalismo, no século XIX. Segundo Neumann,
as regras do nazismo não eram gerais na sua formulação, tinham prescrições vagas e
abstratas e poderiam retroagir. Essa estrutura de regras não pode ser fundamentada
por uma concepção racional do direito. Sua legitimação depende de uma teoria que
Neumann denominou “decisionista”, a qual classificava como jurídicas quaisquer nor-
mas emitidas pelo poder político. Neumann apontou Carl Schmitt como um dos prin-
cipais defensores dessa tradição12. Claro, pode--se ampliar o conceito de direito e cha-
mar as regras nazistas de “jurídicas” ou de “direito”. No entanto, ao fazer isso, perde­-se
justamente a especificidade do nazismo que Neumann pretendeu evidenciar.

Direito liberal, mas não necessariamente burguês

Direito liberal e burguês: esperamos que, a esta altura da exposição, a con-


juntiva já não soe tão natural como poderia soar antes. O direito liberal é necessaria-
mente um direito burguês? O estado de direito serve necessariamente aos interesses
da burguesia?
Como acabamos de dizer, a estrutura institucional singular do nazismo, ou
melhor, Behemoth, conviveu, sem qualquer problema, com o regime capitalista. Em seu
livro, Neumann mostra como o nazismo ajudou a fortalecer as grandes empresas mo-
nopolistas alemãs, destruindo sistematicamente os pequenos negócios. Mostra tam-
bém como estas empresas passaram a contar com a ajuda do regime para competir
na arena internacional e, por isso mesmo, como o regime adquiriu uma natureza be-
licosa e expansionista para conquistar cada vez mais mercados.
A supressão de qualquer oposição social aos desígnios do capitalismo garantia
proteção à propriedade privada dos monopolistas e previsibilidade para os seus negó-
cios. Um movimento sindical livre, capaz de protestar na esfera pública, organizar gre-
ves e reivindicar direitos no Parlamento é muito mais nocivo ao capitalismo e gera muito
mais imprevisibilidade do que um regime autoritário. Com efeito, em seus escritos sobre
a Rússia, Max Weber já revelara a afinidade existente ali entre autoritarismo e capita-
lismo, mostrando como as elites preferiam fazer acordos com um pequeno grupo de
poderosos do que ter que lidar com as massas numa democracia e ter que negociar com
uma pletora de agentes sociais. Desde que respeitada a propriedade privada, tudo anda-
ria bem.
De qualquer forma, fica bastante claro, após a análise do regime nazista feita

12. Nesse sentido, a seguinte passagem do texto The change in the function of the law in Modern
Society (“A mudança na função do direito na sociedade moderna”) é essencial: “Se a lei geral é
a forma fundamental do direito e se o direito não é somente voluntas, mas também ratio, então
se deve afirmar que o direito do estado autoritário não possui caráter jurídico. O direito só é
possível como fenômeno distinto do comando político do soberano caso se manifeste como lei
geral” (NEUMANN in SCHEUERMAN, 1997, p. 138). Não há espaço para desenvolver esse im-
portante debate aqui, que também envolve um aprofundamento sobre as próprias caracterís-
ticas da definição de império do direito, em particular na teoria alemã, que Neumann definiu
como liberal--constitucionalista, e inglesa, democrático--constitucionalista. Para um aprofun-
damento, ver Rodriguez, 2009a.

76
por Neumann, que nem o direito nem o estado liberais são, necessariamente, institui-
ções burguesas. Ambos têm origem na revolução burguesa e serviram para destruir
os privilégios da aristocracia e proteger a propriedade privada e os contratos. No en-
tanto, o prosseguimento dos conflitos sociais conferiu a estas instituições novas in-
flexões.
A entrada da classe operária no Parlamento e a reivindicação de novos direi-
tos transformaram por dentro o estado e o direito liberais, conferindo a eles caracte-
rísticas completamente distintas. A movimentação política desta classe fez com que o
direito liberal se tornasse contraditório, ou seja, tornasse--se, ao mesmo tempo, meio
de manutenção e de transformação da sociedade. Este movimento marca o que eu
chamo de invenção da forma direito democrático.
Nesse ponto, Neumann faz uma crítica à interpretação pessimista do diagnós-
tico de “materialização do direito” descrito antes por Weber. Ao invés de compreender
as demandas crescentes por justiça social levadas ao direito como uma tendência anti-
formal ameaçadora do direito moderno, Neumann defende que, em uma sociedade de-
mocrática, elas servem justamente para favorecer as classes não privilegiadas. Sobre a
materialização do direito, Weber escrevera:

“Surgem com o despertar dos modernos problemas de classe, exigências mate-


riais dirigidas ao direito por uma fração dos interessados no direito (sobretudo
os trabalhadores), por um lado, e pelos ideólogos do direito, por outro, que re-
pudiam precisamente a vigência exclusiva de semelhantes critérios referentes,
apenas, à ética comercial e reivindicam um direito social baseado em patéticos
postulados éticos. Mas isso põe fundamentalmente em dúvida o formalismo do
direito [...] pretendendo justiça material em vez de legalidade formal” (WEBER,
2004, p. 146).

Portanto, o próprio Weber interpretava a transformação pela qual passava o


direito no início do século XX de modo pessimista, principalmente a partir da demo-
cratização do sistema político e da inclusão dos trabalhadores, ao imaginar que ela
enfraqueceria o caráter formal do direito, desestruturando--o (“reivindicam um direito
social baseado em patéticos postulados éticos”).
O que Neumann demonstrou, contudo, é que a destruição do direito demo-
crático pelo nazismo foi antes um abandono consciente daquele pela burguesia do
que uma de-formalização jurídica oriunda da democratização e das demandas materi-
ais. Em outras palavras, Neumann consegue articular o diagnóstico weberiano de ma-
terialização do direito, no qual demandas por justiça social e equidade são direciona-
das ao direito, com a democratização do estado, por meio da atuação de uma classe
política autoconsciente (o proletariado).
Assim, cada nova demanda incluída pelo direito implica a modificação de sua
estrutura: ele não é mais visto como meio neutro cuja função é transmitir a vontade
do poder, porque sua tessitura também está em disputa. Ela não permanece inalterada;
é transformada continuamente pelas lutas sociais. Para fazer uma analogia, podemos
dizer que os eventos linguísticos, quando levados em conta e incorporados pelas re-
gras formais do idioma, resultam na transformação da gramática. Em nosso caso, da

77
gramática institucional. Nesse sentido, a gramática é uma reflexão a respeito da língua
viva, o que explica a mudança de suas regras e a divergência entre especialistas.
O contrato de trabalho, que era apenas meio para ocultar a exploração,
torna--se instrumento de luta contra a exploração. A propriedade privada, que era um
direito sacrossanto e eminentemente individualista, ganha sentido social e limites ao
seu exercício, em nome do respeito ao trabalhador, ao meio ambiente, ao consumidor
etc. Numa perspectiva macroscópica, o estado mínimo se transforma radicalmente e
vai se tornando um estado social, cujas estruturas tributária, administrativa e política
são completamente diferentes daquelas que caracterizam o liberalismo clássico.
A possibilidade de controlar o mercado, impondo a ele um padrão racional
de funcionamento, abre a perspectiva de suprimir o capitalismo por meio das institui-
ções, e não somente a partir de sua destruição violenta. Afinal, mercado e capitalismo
não são sinônimos. O capitalismo existe quando sua lógica toma conta de todas as
esferas sociais. Uma das funções do direito é justamente impedir que isso ocorra.
Nenhum poder, seja ele político, econômico ou social, deve suprimir a tensão entre
uma esfera soberana e uma esfera de liberdade independente desta: em sua encarnação
mais conhecida, a diferença entre sociedade civil e estado.

O que é uma revolução? O que é emancipação?

Parece ficar claro que este movimento teórico e real resulta na modificação
do próprio sentido de revolução. Altera-se a visão da transformação social, que deixa
de ser concebida como uma ruptura temporalmente rápida e violenta das instituições
sociais e passa a ser pensada como um processo radical que se realiza na imanência
delas. Parece cair por terra, portanto, a dicotomia Reforma x Revolução, clássica para
a história do marxismo.
É evidente que, no que se refere à Alemanha nazista, Neumann não acredi-
tava haver nenhuma possibilidade de resistência institucional. Afinal, a forma direito
havia sido suprimida. A única solução para combater o nazismo seria uma vitória
militar, acachapante e inequívoca, acompanhada da desnazificação das posições de
poder do aparelho estatal alemão, programa que Neumann endossa explicitamente
em Behemoth e defenderá em seu exílio norte--americano (SALTER, 2007)13.
A possibilidade de emancipação via direito, ideia presente em especial no livro
O império do direito, pressupõe que o direito liberal esteja em funcionamento. Apenas
assim as reivindicações da sociedade podem alterar as instituições por dentro e os de-
tentores do poder são obrigados a justificar suas ações racionalmente.
A manutenção da tensão entre esses dois polos, sociedade e estado soberano,
torna-se essencial à emancipação humana. Neumann percebe que é a liberdade da
sociedade diante do estado que permite às classes oprimidas formularem suas deman-
das de transformação e utilizarem o direito para fazer avançar a emancipação humana.
O direito passa a ser não mais um mero instrumento de luta, mas parte constitutiva

13. No prefácio do livro Behemoth, datado de dezembro de 1941, Neumann afirma: “Uma derrota mi-
litar da Alemanha é necessária. [...] A superioridade militar das democracias e da União Soviética
deve ser demonstrada ao povo alemão” (NEUMANN, 1966, p. xix).

78
da sociedade emancipada. Deixemos este ponto mais claro.
Podemos identificar a emancipação, exclusivamente, com a realização dos
objetivos da classe operária? Se esta fosse a posição de Neumann, seria difícil sus-
tentar o que dissemos até agora. Como alguns marxistas, Neumann veria algo de
positivo no direito apenas quando ele servisse de instrumento para determinados
interesses, mas não como algo valioso em si mesmo.
Sua posição foi esta durante a república de Weimar; porém, mudou já em
1936, ano em que termina de escrever O império do direito. Nesse livro, Neumann
retira diversas lições do regime nazista recém--implantado, criticando com veemên-
cia toda e qualquer forma de legitimação irracional do poder. O livro mostra com
clareza que a tensão entre sociedade e estado é o que confere ao direito potencial
emancipatório: desde que mantida a separação entre estado e sociedade, é possível
organizar reivindicações, lutar por direitos e modificar por dentro as instituições.
É claro que Neumann não defende a forma direito em qualquer contexto,
sob qualquer hipótese e em qualquer de suas manifestações concretas. Nenhum pen-
sador marxista seria capaz de afirmar a validade de uma estrutura para além da história
e do contexto em que se localiza.
Mesmo diante de um estado de direito democrático em funcionamento,
Neumann não se esquivou de afirmar a necessidade de rever seu desenho para além
da separação de poderes em sua concepção tradicional, a seu juízo, um entrave para
pensar em formas mais radicais de democracia, ponto que desenvolveremos neste
livro no capítulo sobre o conceito de “liberdade de insurreição”14. Seria possível e
necessário, sugere o autor, pensar em outra separação de poderes, que não promova
um amálgama entre estado e sociedade, mas que distribua de maneira diferente o po-
der entre os diversos grupos sociais.
O que Neumann e, mais tarde, Habermas nos fazem perceber é o potencial
emancipatório contido na forma direito democrático diante de determinadas circuns-
tâncias históricas; bem como a necessidade de transformar, por dentro, seu desenho,
para radicalizar a democracia a cada momento, diante de novas demandas e de novos
interesses sociais. Formulados desta maneira, estes conceitos nos permitem analisar me-
lhor a conjuntura e pensar a práxis emancipatória de maneira mais ponderada e eficaz.
A pergunta, nesta altura, é a seguinte: diante de um estado de direito em funcio-
namento e da possibilidade de qualquer grupo ou indivíduo que se sinta excluído, injusti-
çado, desprovido de direitos, organizar--se para reivindicar seus interesses e postular mu-
danças nas instituições, é razoável dizer que o direito funciona exclusivamente como mero
instrumento de dominação de classe?
Com efeito, o direito democrático ainda hoje revela sua força quando pen-
samos, por exemplo, na ação de determinados estados e governos para se afastar de
qualquer regra nas esferas nacional e internacional, ou seja, para fugir do controle de
qualquer instância que se pareça com a sociedade civil. Também quando pensamos
na estratégia de grandes empresas que buscam fugir do direito, escolhendo países com
legislação social e tributária mais favorável aos seus interesses.

14. Ver texto de Neumann sobre Montesquieu, prefácio a uma edição norte--americana de O espírito
das leis, que está contido em Neumann, 1957.

79
Fugir do direito, perverter o direito é uma maneira eficaz de tentar construir
um espaço de autarquia livre de qualquer controle social. Dito isto, insistimos na per-
gunta: diante de um estado de direito em funcionamento, faz sentido apostar na vio-
lência e na destruição das instituições que garantem, justamente, a possibilidade de
lutar pela transformação social?
Se considerarmos que, hoje, a classe operária não é mais a única portadora
da emancipação; que ela não é mais a única porta--voz dos interesses de todos os
oprimidos, a importância da forma direito cresce ainda mais. Não há tempo de deta-
lhar este problema aqui. Mas é importante notar que Neumann escreveu antes de ele
ser colocado e, portanto, não o responde inequivocamente. Em sua época, “movi-
mento social” era sinônimo de classe operária: a reflexão sobre os assim denominados
“novos movimentos sociais” é posterior à sua morte e ganha corpo a partir dos anos
1960 e 1970.
Feministas, pacifistas, ativistas gays, ativistas queer, movimento negro, ecolo-
gistas, LGBT entre outros, mostraram que a luta distributiva voltada ao fim da explo-
ração do trabalho não era a única dimensão da opressão sob o capitalismo. Estas
novas demandas passam a ser dirigidas ao estado de direito, resultando em transfor-
mações nas estruturas de poder constantemente pressionadas pela proliferação de no-
vas desigualdades, encarnadas em indivíduos, grupos e movimentos sociais em luta
contra a opressão.
O estado social do pós--guerra no centro capitalista está se transformando
em algo novo, algo para o qual ainda não temos nome, mas que continua a experi-
mentar mudanças significativas. Mais importante: é difícil identificar uma linha reta
que ligue, hoje, uma determinada práxis com a sociedade emancipada do futuro. O
desenho dela, aparentemente, será muito mais plural, fragmentado e dinâmico do que
aquele antecipado pelo marxismo tradicional.
Num contexto plural como este, e aqui a reflexão de Habermas é central, o
direito ganha importância por ser capaz de promover uma disputa entre grupos sem o
uso de violência aberta. Acrescentando--se a este quadro as lições do nazismo e os fe-
nômenos contemporâneos que podemos classificar como “fuga do direito” ou “perver-
são do direito”, como será explicado adiante, em capítulo próprio, podemos olhar para
o estado de direito hoje com olhos bastante generosos.
Na falta de uma “verdade” para as reivindicações da esquerda, de um sen-
tido único para a emancipação humana e, ainda, diante dos perigos do arbítrio e da
falta de controle sobre o poder político e o poder econômico, o direito democrático
mantém e aumenta, na atualidade, seu potencial emancipatório. Afinal, trata--se de
um mecanismo capaz, desde que pressionado pelos movimentos sociais e enraizado
na sociedade a ponto de abarcar seus principais conflitos, de manter aberta a luta
pelo poder sem permitir que se recaia em regimes arbitrários.

80
Capítulo 2 - Democracia e Diversidade

Introdução

A abordagem feminista da política e da moral promoveu uma ruptura com a tradição


moderna, para a qual a emancipação da humanidade significava a ampliação dos di-
reitos civis e políticos para todas as pessoas, ou seja, punha a ideia de igualdade no
centro do debate político.
A primeira geração do feminismo, ainda seguindo esta tradição, engajou-se
na luta para que homens e mulheres gozassem em igualdade de condições de todos
os diretos garantidos pelo status de cidadão. É certo que esta vertente do feminismo
permanece atuante hoje, mas não é mais a sua única expressão. Parte do movimento
e do pensamento feminista passou a desconfiar da capacidade das categorias e das
instituições formais liberais de darem respostas adequadas para as demandas feminis-
tas, passando a evidenciar seu caráter preconceituoso, marcado por um modo de pen-
sar que utiliza o gênero masculino como modelo de pensamento, deixando assim de
acolher e lidar com as diferenças sociais, não apenas de gênero, mas de raça, classe,
idade, origem e tantas outras.
Esta mudança contribuiu para que encaremos a democracia como um regime
político capaz de expressar e acolher as diferenças sociais, inclusive em suas manifes-
tações corporais e emocionais; e não como uma forma de organizar a competição de
interesses ou a mera deliberação racional entre os cidadãos e cidadãs. A reflexão fe-
minista, portanto, não se limita a lutar pela igualdade entre homens e mulheres ou pôr
as demandas femininas no mapa da política. Esta reflexão trouxe uma contribuição
fundamental para a teoria da democracia.
O objetivo deste capítulo é evidenciar tal contribuição a partir da reflexão de
Iris Marion Young. Em sua primeira parte, o texto apresentará a crítica destas autoras
ao pensamento político e moral moderno, passando a mostrar, em sua segunda parte,
as consequências desta crítica para a teoria democrática, e para uma visão democrática
do direito, ao examinar, ainda que sucintamente, suas vertentes mais importantes no
debate contemporâneo.
Em sua parte final, pretendo mostrar a importância desta visão da democra-
cia para lidar com o panorama político atual em todo o mundo ocidental, marcado,
justamente, pelo fechamento de várias arenas de deliberação às reivindicações por

81
direitos nascidas da sociedade civil e por um endurecimento das instituições formais
na repressão de qualquer manifestação democrática que fuja do padrão argumentativo,
ou seja, pela oposição de obstáculos para a manifestação do poder constituinte.
Ademais, na conclusão deste capítulo, levantaremos a seguinte questão: todo
este debate ainda se situa no campo de uma democracia pensada em termos nacionais
e estatais, deixando de lado os problemas levantados pela necessidade de pensar a
democracia como fenômeno multinormativo capaz de promover a democratização
do estado e das ordens normativas presentes na sociedade, problema que será enfren-
tado na última parte deste livro. Para além do debate a respeito de uma democracia
liberal, participativa ou deliberativa, é preciso discutir a ideia de uma democracia mul-
tinormativa, tema da terceira parte deste livro.

A crítica feminista ao sujeito da política

A crítica feminista tem procurado mostrar que o sujeito a partir do qual pen-
samos tradicionalmente as questões morais, políticas e jurídicas precisa ser transfor-
mado para que seja possível acolher a pluralidade de questões e demandas presentes
hoje na esfera pública das várias sociedades ocidentais. Nesse sentido, o pensamento
moderno concebeu a política com a utilização de categorias estreitas demais, limitan-
tes demais, fato que se torna evidente quando colocamos diante de nossos olhos a
complexidade dos conflitos sociais contemporâneos.
O primeiro passo nesse sentido consiste em evidenciar que a política mo-
derna é dominada pela “lógica da identidade”, como argumenta Iris Marion Young,
com inspiração no pensamento de Theodor Adorno (YOUNG, 2012, 170). A lógica
da identidade, de acordo com a autora, insiste em pensar as coisas em função de uma
totalidade possível, ou seja, da construção de um todo que seria capaz de organizar
de forma completa todas as suas partes, ou seja, um pensamento sistemático. Ao pro-
jetar este todo possível, o pensamento é empurrado na direção da abstração da dife-
rença, que sempre mantém no horizonte a possibilidade de realizar a política em um
todo abstrato. Nesse sentido, diga-se, o direito democrático, a esfera pública, as esco-
las, Universidades e instituições científicas em geral poderiam ser tomadas como a ins-
titucionalização necessária para que a ideia de Dialética Negativa fosse viável na prática.
Mas não se trata de combater a abstração, segue Young, o problema da lógica
da identidade, que se torna incapaz de captar toda a complexidade sociais e põe como
o sujeito da filosofia, por exemplo, em Descartes, um eu desencarnado, geral, sem
gênero, sem raça e sem emoções. Expressamente inspirada na Dialética Negativa de
Theodor Adorno, Iris Marion Young adverte que não há nada de errado com a abs-
tração em si, mas sim como o desejo de controle ao qual ela pode vir a servir em
determinadas circunstâncias. Um desejo de controle que afasta, por indesejável, toda
forma de imprevisto, de mudança, de incerteza, de diferença, ou seja, que termina por

82
eliminar do mundo a alteridade, em especial, para o tema que nos interessa, a diversi-
dade irredutível das situações e a diversidade de sujeitos morais (YOUNG, 2012, 172).
Uma razão imparcial trata todas as situações com fundamento nas mesmas
regras, as quais devem ser reduzidas a princípios ou a um princípio comum. Verificada
a justeza das regras que servem de critério para os julgamentos, basta comparar as
situações concretas com ela para atestar sua justeza. Não cabem aqui sentimentos ou
inclinações pessoais no ato de julgar, também não é relevante para o pensamento a
especificidade de cada situação concreta e seu contexto particular. Além disso, este
modo de pensar também se põe à salvo de qualquer consideração sobre as pessoas
envolvidas na situação em exame, tampouco se preocupa em consultá-las sobre seus
interesses e perspectivas sobre a questão (YOUNG, 2012, 174).
Para este modo de pensar, ser imparcial significa ser desapaixonado, eliminar
a diferença das diversas experiências sensíveis e dos sujeitos envolvidos nelas. A neu-
tralização do desejo, da afetividade, das sensações produz uma unidade dicotômica e
não uma verdadeira unidade. Pois as diversas situações concretas não são reunidas
em um todo, mas passam a ser objeto de um raciocínio de inclusão ou exclusão a
partir das características selecionadas para servir de critério de julgamento. A diferença
não é acolhida, mas eliminada, à custa de uma hierarquização. Os casos que correspon-
dem ao critério serão considerados “normais” e os destoantes serão “desviantes”.
Desta maneira, tudo o que for emocional, pessoal, desejante será considerado
inferior, irracional e qualquer decisão tomada com base na simpatia, cuidado ou na
avaliação da singularidade de uma situação será considerada não objetiva, irracional,
meramente sentimental. A função do dever moral é justamente reprimir e censurar
esta natureza inferior e não procurar direcioná-la para a melhor direção possível.
Da dicotomia entre razão e desejo surge a dicotomia entre público e privado,
entre o espaço público da racionalidade e o espaço privado do sentimento, da pesso-
alidade, do desejo. No espaço público, no âmbito do Estado, deve vigorar a imparci-
alidade da razão que se contrapõe à privacidade da família, espaço onde vigora o de-
sejo e fica localizado o corpo, a sensibilidade. A exclusão das mulheres do público e seu
confinamento à esfera privada é uma das marcas deste modo de pensar dicotômico que
constitui o público contra o privado, que opõe razão e desejo. Um modo de pensar em
que as leis do Estado devem transcender os interesses particulares para exprimir algo
de universal, racional, que diz respeito a toda a humanidade (YOUNG, 2012, 183-184).
O feminismo tem feito a crítica desta dicotomia, com amplas consequências
para a reflexão sobre a democracia. No campo da interpretação jurídica, temos críticas
muito semelhantes, por exemplo, a de Klaus Günther, como será exposto adiante no
capítulo “Lava-jato II: Corrupção e Jeitinho Brasileiro”. A exclusão das mulheres, de
pessoas de cor, dos despossuídos do espaço público, por exemplo, pela negação a eles
do direito de voto, não foi um acaso, mas uma consequência deste modo de pensar,

83
que demanda uma situação de homogeneidade social para poder funcionar adequa-
damente. Historicamente, as mulheres, as pessoas de cor e os despossuídos foram
relacionados ao sentimento, à irracionalidade, às sensações.
A repressão ao desejo feminino, a valorização de mulheres castas, recatadas
e do lar, que não aticem os desejos dos homens, se fez em nome da preservação da
racionalidade masculina, adequada ao espaço público. Da mesma maneira, a atribuição
de características sensuais e irracionais aos negros e negras, sua figuração como figuras
imaturas, emocionais, infantis, muitas vezes ligadas ao mundo místico e a magia, fez
parte do mesmo processo. Da mesma forma, a exclusão das massas trabalhadoras se
fez também em nome da homogeneização dos cidadãos, que deveriam ser todos bran-
cos e proprietários para poder opinar no campo da política (YOUNG, 2012, 185-186).
É importante deixar claro, afirma Young, que a crítica feminista procura
mostrar as consequências desse modo de pensar dicotômico e não propor que razão
e sentimento passem a ocupar o mesmo papel que a razão abstrata ocupava. Trata-se
de criticar o confinamento do sentimento e das sensações ao mundo privado, ao âm-
bito da família, onde também ficam confinadas as mulheres. Também de evidenciar
as consequências excludentes de uma razão imparcial que funcione de tal forma a
deixar de fora da moral, da política e do direito tudo aquilo que destoar de seus crité-
rios homogeneizantes.
Iris Young segue, mostrando como a teoria do agir comunicativo de Haber-
mas é um bom ponto de partida para pensar a política de outra maneira. Afinal, a
razão, na visão habermasiana é uma prática que oferece e pede razões, é uma atividade
que demanda a disposição para falar e para ouvir. Não estamos diante de uma razão
judicativa, que julga a partir de critérios externos à situação ou às pessoas envolvidas
nela, mas sim de uma razão procedimental que obtém respostas após um processo de
discussão. No entanto, é necessário promover algumas correções nesta teoria para
superar seu comprometimento com uma posição de imparcialidade que tende, ainda,
a opor razão e desejo (YOUNG, 2012, 195-196).
É certo que Habermas pretende pensar uma razão contextual e dialógica que
obtenha respostas sem que as pessoas precisem abdicar de seus pontos de vista, de
seus sentimentos e de seus desejos. Será no processo de um diálogo em que todas as
perspectivas terão oportunidade de serem ouvidas e levadas em conta que as soluções
irão emergir. O problema é que Habermas frustra esta possibilidade ao submeter o
diálogo ao imperativo de obtenção de um consenso orientado pela busca cooperativa
da verdade. Para o autor, a discussão ocorre desde que as pessoas se empenhem em
buscar cooperativamente a verdade, deixando de lado quaisquer outras motivações
para deliberar (YOUNG, 2012, 196).
Ao apresentar a possibilidade de diálogo como resultado de uma busca coo-
perativa da verdade, Habermas afirma estar reconstruindo um pressuposto contido
de forma implícita em qualquer discussão real. Young acusa Habermas, nesse ponto,

84
de recair em uma posição metafísica. Não parece ser necessário pressupor que os
participantes e um diálogo estejam buscando a verdade para tomarem parte de um
debate. Outros motivos podem mover homens e mulheres a debater normas visando
o consenso: a percepção de algo como bem comum resulta da interação pública “que
expressa as particularidades ao invés de suspendê-las” (YOUNG, 2012, 197). Nesse
sentido, a ideia de verdade ressoa a uma pretensão de totalidade, de transparência na
comunicação entre os sujeitos que a crítica habermasiana pretendia ter deixado de lado.
Além disso, Habermas também parece separar os sentimentos e sensações
da racionalidade ao afirmar que as normas devem expressar interesses compartilhados.
Desta maneira, sentimentos e sensações ficam excluídos da discussão sobre normas,
que se refere apenas a aspectos universalizáveis da vida social. Tal exclusão fica mais
clara quando examinamos o tipo de comunicação valorizada por Habermas em sua
visão da ética. Os aspectos expressivos e corporais ficam excluídos do campo do agir
comunicativo, que fica restrito ao campo do discurso (YOUNG, 2012, 197).
No modelo ideal de discurso habermasiano, apenas o melhor argumento se-
ria capaz de convencer seus participantes e gerar consenso. Para que este consenso
seja possível, os participantes do discurso devem atribuir o mesmo significado aos
termos utilizados no debate, utilizando e compreendendo as expressões do mesmo
modo. Habermas presume, portanto, que os participantes do diálogo estão presentes
em si mesmos, são capazes de controlar o que dizem e que sempre será possível atribuir
o mesmo sentido a um determinado termo, gerando, eventualmente, entendimento.
Trata-se de um discurso que almeja ser transparente, eliminar aspectos afeti-
vos e sensitivos, deixar de lado imprecisões e incertezas para gerar entendimento com
base em significados únicos obtidos por meio de trocas de argumentos. Ora, há visões
de discurso mais corporificadas e sensíveis, que não procuram eliminar o corpo e os
sentimentos do processo de geração de significado.
Não se trata, insiste Young, de inverter a prioridade da razão afirmando a
primazia das sensações e sentimentos no campo da política. Mas parece ser necessário
expandir a compreensão do que possa valer como discurso em um processo de gera-
ção do entendimento para romper com o pensamento político dicotômico marcado
pela lógica da identidade. Um caminho possível é aquele que reconhece que o sentido
é gerado pela combinação de aspectos simbólicos e semióticos, como afirma Julia
Kristeva (YOUNG, 1987, 81).
O aspecto semiótico do discurso, para esta autora, designa os aspectos cor-
porais, inconscientes do que se diz, por exemplo, tons de voz, gestos, metáforas, jogos
de palavra. Já o aspecto simbólico é referencial, designando o modo como quem fala
se situa em relação a uma realidade que lhe é externa. Todo discurso, de acordo com
Kristeva, combina elementos simbólicos e semióticos: é por meio de seu relaciona-
mento que o significado é gerado. Mesmo o discurso da ciência é resultado de uma
certa combinação entre estas duas dimensões.

85
O discurso atinge os sujeitos como seres afetivos, não apenas em seu aspecto
racional, influenciando-os em seus modos corporais e inconscientes. Em situações
reais de discurso, o tom de voz, a expressão facial, os gestos, o uso de ironias, de
subentendidos ou de hipérbole, tudo concorre para levar a mensagem proposicional
do pronunciamento a outro nível de expressão, relacionando os participantes em ter-
mos de atração oi de afastamento, confronto ou afirmação (YOUNG, 1987, 81).
Os interlocutores não apenas dizem o que querem significar, mas o dizem
emocionalmente, de modo agressivo, de modo contundente ou ofensivo, e tais qua-
lidades emocionais dos contextos de comunicação não devem ser considerados pré-
linguísticos ou não linguísticos. Reconhecer, porém, tais aspectos semióticos, implica
admitir a multiplicidade e ambiguidades irredutíveis do significado. Quero dizer com
isso que só uma concepção da razão normativa e de estado de direito que inclua essas
dimensões afetivas e corporais do significado pode ser adequada a uma ética feminista.
Nesse sentido, é preciso pensar de outra maneira a distinção entre público e
privado. Para o feminismo, público é tudo aquilo que é acessível e aberto e privado o
que é inacessível e fechado. No espaço público temos expressões acessíveis a todos e
todas, as quais podem dar motivo a contestações e discussões entre das quais qualquer
pessoa pode participar. A política diz respeito a questões que afetam um grande nú-
mero de pessoas. De outra parte, privado é o que fica escondido, fora das vistas,
oculto. Na visão feminista, são os aspectos da vida que homens e mulheres podem
excluir do alcance dos outros (YOUNG, 2012, 198).
As fronteiras entre privado e público não devem ser dicotômicas, excluden-
tes, como na visão liberal. Nada pode ser excluído a priori do espaço público e ne-
nhuma pessoa pode ser forçada por ninguém e ficar relegada à privacidade. Questões
antes privadas como a violência contra a mulher e a homossexualidade foram trazidas
ao espeço público com a finalidade de explicitar e questionar os preconceitos e atos
violentos motivados por estereótipos relacionados às mulheres e aos homossexuais,
muitas vezes por meio de manifestações públicas que se utilizam de meios não dis-
cursivos para expressar suas demandas. Por exemplo, segue Young, faixas ornamen-
tadas com dizeres irônicos e divertidos, apresentações de teatro e música, danças,
bonecos gigantes, entre outros (YOUNG, 1987, 86).
Esta mudança de perspectiva também modifica o modo de pensar a discri-
minação contra a mulher. De uma perspectiva liberal, discriminar significa negar igual-
dade de condições entre homens e mulheres, negar às mulheres a possibilidade de
ocupar o espaço público e gozar de todos os direitos de cidadania. A crítica feminista
da política altera esta visão, pois a extensão de todos os direitos de cidadania às mu-
lheres não é suficiente para promover sua emancipação.
Desta perspectiva, discriminar significa não acolher, não reconhecer no dis-
curso público manifestações de cuidado, de sentimento, emocionais, tidas como irra-
cionais, inadequadas no contexto da deliberação democrática. Ou seja, nesta ordem

86
de razões, discriminar significa não reconhecer as diversas formas de expressão, a
variedade de formas de ser e de se comportar que caracterizam não apenas as mulhe-
res, mas outros membros da sociedade.

Feminismo e teoria da democracia

Levando em conta o que foi dito até aqui, podemos organizar o debate de-
mocrático contemporâneo em dois grandes polos opostos. De um lado, temos as
teorias democráticas marcadas pela lógica da identidade, ou seja, aquelas que privile-
giam a busca do consenso por meio da produção de homogeneidade, de um determi-
nado patamar de igualdade entre os seus cidadãos que tende à construção de um nomos
único, de uma narrativa unificada sobre o sentido global daquela experiencia social.
De outro lado, temos as teorias feministas ou compatíveis com a crítica fe-
ministas, que veem a democracia como um espaço de expressão da diferença, da he-
terogeneidade, de toda a complexidade social, ligando a busca de consenso a um pro-
cedimento de debate em que todas as perspectivas e posições possam se manifestar e
influenciar a produção das normas que regulam as nossas vidas, ou seja, teorias mar-
cadas pela lógica da diferença ou multinormativas, as quais consideram indesejável a
existência de um nomos social unificado e em comum.
Em uma palavra, parece ser possível pensar a democracia como uma forma
de produzir homogeneidade ou padronização ou como uma forma de produzir diver-
sidade e multiplicidade, sempre tendo no horizonte a necessidade de construir um
patamar mínimo de entendimento que permita que a sociedade funcione de forma
relativamente organizada, sem que se recorra à violência como principal meio de co-
ordenação do comportamento dos cidadão e cidadãs.
Este objetivo é, evidentemente, comum à ambas as estratégias, daí a impor-
tância do direito para imunizar determinado conteúdo básico em relação ao debate
político, qual seja, um conjunto de direitos fundamentais historicamente definido que
garantam a separação entre estado (ou outra estrutura de governo) e sociedade e que
permitam a esta ter voz no processo de formação das normas que regulam a visa
social. Para que isso seja possível, como já visto, é preciso superar a separação radical
entre público e privado feita pela concepção liberal de democracia, também a ideia de
bem comum, defendida pela concepção republicana e, como também já foi demons-
trado, ampliar a concepção de discurso da concepção deliberativa. Vejamos.
O debate sobre teoria democrática hoje gira em torno de três modelos de
democracia, organizados de forma didática por Jürgen Habermas (HABERMAS,
1995), quais sejam, a concepção liberal a concepção republicana e a concepção deli-
berativa. Vale a pena revisitar esta tipologia consagrada, que organiza boa parte da lite-
ratura contemporânea sobre o tema, para ressaltar a contribuição feminista, que põe

87
temas novos no debate, temas não abarcados por nenhuma dessas concepções de de-
mocracia, a despeito de guardar afinidades eletivas como a democracia deliberativa.
Para a concepção liberal, o processo democrático tem como objetivo pro-
gramar o Estado no interesse da sociedade. O Estado é concebido como um aparato
destinado à administração pública e, de outro lado, a sociedade é vista como estrutu-
rada em uma economia de mercado, de relações entre pessoas privadas e do seu tra-
balho social. Para esta visão, a política (no sentido da formação política da vontade
dos cidadãos) tem a função de agregar e impor os interesses sociais privados perante
um aparato estatal especializado no emprego administrativo do poder político para
garantir fins coletivos (HABERMAS, 1995, 39).
Para a concepção republicana da democracia, por sua vez, a política não se
esgota na função de mediação, ainda de acordo com Habermas, ela é um elemento
constitutivo do processo de formação da sociedade como um todo. A política é en-
tendida como forma de reflexão de um complexo de vida ético; um meio em que os
membros de comunidades solidárias se dão conta de sua dependência recíproca, e,
com vontade e consciência, levam adiante essas relações de reconhecimento recíproco
em que se encontram, transformando-as em uma associação de portadores de direitos
livres e iguais. Junto à instância de regulação hierárquica representada pela jurisdição
do Estado e à instância de regulação descentralizada representada pelo mercado (junto,
portanto, ao poder administrativo e ao interesse próprio individual) surge a solidarie-
dade e a orientação pelo bem comum como uma terceira fonte de integração social
(HABERMAS, 1995, 40).
Na visão liberal, o status dos cidadãos é definido pelos direitos subjetivos, os
quais podem ser opostos ao Estado e aos demais cidadãos. A condição de portadores
de direitos subjetivos é protegida pelo Estado desde os cidadãos defendam seus inte-
resses privados nos limites estabelecidos pelas leis. Os direitos subjetivos são negati-
vos, direitos que garantem um âmbito de escolha dentro do qual os cidadãos estão
livres de coações externas, inclusive de seus pares (HABERMAS, 1995, 40),
Os direitos políticos têm a mesma estrutura. Eles permitem que as pessoas
cidadãs façam valer seus interesses privados ao permitir que tais interesses possam ser
agregados a outros interesses privados, por meio de eleições e da composição do par-
lamento e do governo, até que se forme uma vontade política capaz de exercer uma
efetiva influência sobre a administração. Dessa forma as pessoas cidadãs, em seu papel
de integrantes da vida política, podem controlar em que medida o poder do Estado
se exerce no interesse deles próprios como pessoas privadas.
Para a concepção republicana, os direitos de cidadania, entre os quais desta-
cam-se os direitos de participação e de comunicação políticas, são melhor compreen-
didos como liberdades positivas. Garantem a participação de todos e todas em uma
prática comum, cujo exercício é o que permite aos cidadãos e cidadãs atuarem como
autores políticos responsáveis de uma comunidade de pessoas livres e iguais. Ainda

88
de acordo com Habermas, esse poder, na realidade, provém do poder comunicativa-
mente gerado na prática da autodeterminação dos cidadãos e se legitima na medida
em que protege essa prática por meio da institucionalização da liberdade pública (HA-
BERMAS, 1995, 43).
Para a visão republicana o Estado não tem como finalidade proteger direitos
subjetivos privados iguais, mas sim garantir um processo inclusivo de formação da
opinião e da vontade políticas em que cidadãos livres e iguais se entendem acerca de
que fins e normas correspondem ao interesse comum de todos. Com efeito, a supe-
ração de uma dicotomia rígida entre público e privado, como mostra Young, é fun-
damental para o pensamento feminista, pois tal separação hierarquiza as instâncias,
estes dois espaços sociais, subordinando o privado ao público e confinando a este
âmbito pessoas consideradas incapazes de participar da esfera pública. Mesmo que as
mulheres conquistem plena igualdade de condições de participar do espaço público,
a manutenção de uma hierarquia rígida entre público e privado ainda permitirá que
um grupo de pessoas seja confinado ao privado, sem gozar de influência sobre os
problemas coletivos discutidos na moral, na política e no direito.
A visão liberal concebe a política como uma luta por posições que garantam
o acesso ao exercício do poder administrativo. O processo de formação da opinião e
da vontade políticas na esfera pública e no parlamento resulta da concorrência entre
atores coletivos, os quais agem estrategicamente para conservar ou adquirir posições
de poder. O êxito destes atores é medido pelo número de votos obtidos em eleições,
afinal, por meio de seus votos os eleitores expressam suas preferências. Para os libe-
rais, a decisão de votar tem segue a mesma racionalidade de uma escolha realizada no
âmbito do mercado.
Para a concepção republicana a formação da opinião e da vontade políticas
no espaço público e no parlamento não obedece às estruturas do mercado, mas a
estruturas específicas, quais sejam, as estruturas da comunicação pública orientada para o
entendimento. O paradigma da política como autodeterminação é marcado pelo diálogo,
ou seja, compreende a política como um processo de argumentação racional, um pro-
cesso marcado pela persuasão cuja finalidade é obter acordos sobre uma forma boa e
justa, ou pelo menos aceitável, de ordenar os aspectos da vida que se referem às rela-
ções sociais entre as pessoas (HABERMAS, 1995, 46).
Para esta forma de ver a democracia, surge uma distinção estrutural entre o
poder comunicativo, nascido da comunicação política sob a forma de opiniões dis-
cursivamente formadas, e o poder administrativo, atinente ao aparato estatal. Exata-
mente por esta razão, o embate de opiniões passa a ser dotado de força legitimadora.
O exercício continuado do discurso político vincula a forma de exercer o poder polí-
tico: o poder administrativo só pode atuar se fundado em políticas e nos limites das
leis nascidas do processo democrático.

89
O modelo deliberativo, proposto por Habermas (HABERMAS, 1995, 47),
irá procurar combinar elementos liberais e republicanos. Nesse sentido, a concepção
deliberativa pensa a democracia como um processo de deliberação fundamentado em
um consenso de fundo, baseado no fato de que os cidadãos partilham de uma mesma
cultura. O procedimento democrático estabelece uma conexão interna entre conside-
rações pragmáticas, compromissos, discursos de autocompreensão e discursos relati-
vos a questões de justiça, e fundamenta a suposição de que sob tais condições obtêm-
se resultados racionais e equitativos.
Conforme essa concepção, a razão prática se afastaria da ideia de direitos
universais do homem (liberalismo) e da eticidade concreta de uma determinada co-
munidade (comunitarismo) para se situar naquelas normas de discurso e de formas de
argumentação que retiram seu conteúdo normativo do fundamento de validade da
ação orientada para o entendimento, e, em última instância, portanto, da própria es-
trutura da comunicação linguística (HABERMAS, 1995, 47).
Segue Habermas, para a concepção republicana, a formação da opinião e da
vontade políticas dos cidadãos é o meio pelo qual se constitui a sociedade como um
todo politicamente organizado. A sociedade centra-se no Estado; pois na prática da
autodeterminação política dos cidadãos a comunidade torna-se consciente de si como
totalidade e, mediante a vontade coletiva dos cidadãos, age sobre si mesma. A demo-
cracia é sinônimo de auto-organização política da sociedade. Mas desta visão resulta
uma compreensão da política que se volta polemicamente contra o aparato estatal (HABERMAS,
1995, 46).

Nos escritos de Hannah Arendt, segue Habermas, pode-se ver bem a investida
da argumentação republicana contra a cidadania privatista de uma população
despolitizada e contra a criação de legitimação por parte de partidos cuja refe-
rência primária é o Estado. Seria preciso revitalizar a esfera da opinião pública
até o ponto em que uma cidadania regenerada pudesse (re)apropriar-se, na forma
da autogestão descentralizada, do poder burocraticamente autonomizado do Es-
tado. (HABERMAS, 1995, 46)

Para a concepção liberal, a separação entre aparato estatal e sociedade não


pode ser eliminada. A força normativa presente da ideia de um equilíbrio de poder e
de interesses, para Habermas, é muito débil e precisa do complemento do estado de
direito democrático. Afinal, para os liberais, a democracia resulta de uma competição
entre cidadãos preocupados somente com seu próprio interesse, ou seja, cidadãos que
precisam da contenção dos direitos fundamentais, alguma forma de separação de po-
deres e a vinculação da administração à lei, sob pena de colocarem seus interesses
acima dos interesses de todos os demais cidadãos.

90
A competição entre os partidos políticos, de um lado, e entre governo e opo-
sição, de outro, deve fazer o Estado levar adequadamente em conta os interesses so-
ciais e as orientações valorativas da sociedade. Essa visão da política centrada no Estado
pode dispensar uma suposição considerada pouco realista, a saber: a de que os cida-
dãos em conjunto, por si mesmos, seriam capazes de ação coletiva (HABERMAS,
1995, 46).
A teoria do discurso concebe a política como a institucionalização de deter-
minados procedimentos e pressupostos comunicativos que permitem a ação coletiva.
Essa teoria não utiliza a ideia de um todo social centrado no Estado, uma espécie de
sujeito em grande escala que age em função de determinadas metas, tampouco vê a
sociedade como uma competição entre indivíduos egoístas que formam uma vontade
coletiva por meio da competição e da mera agregação de interesses.
O modelo deliberativo põe o processo político de formação da opinião e da
vontade comum no centro de sua visão, sem considerar o estado de direito democrá-
tico como algo secundário, ainda que, na formulação de Habermas, de acordo com a
crítica de Scheuermann exposta logo acima, o autor seja incapaz de imaginar institui-
ções diferentes o estado liberal parlamentar. Mas seja como for, a teoria do discurso
entende que os direitos fundamentais e os princípios do estado de direito são a melhor
forma de institucionalizar os pressupostos comunicativos do processo democrático.
Nesse sentido, os processos de entendimento se desenrolam nas instituições
parlamentares ou na rede de comunicação constituída por espaços públicos políticos.
Tais comunicações, segue Habermas, não podem ser reduzidas a um sujeito coletivo
global: em seu âmbito, pode ocorrer uma formação mais ou menos racional da opi-
nião e da vontade acerca de temas relevantes para a sociedade como um todo e acerca
das matérias que precisam de regulação (HABERMAS, 1995, 48).

A geração informal da opinião desemboca em decisões eleitorais institucionali-


zadas e em decisões legislativas por meio das quais o poder gerado comunicati-
vamente se transforma em poder passível de ser empregado em termos admi-
nistrativos. Assim como no modelo liberal, também na teoria do discurso os
limites entre o Estado e a sociedade são respeitados; mas aqui a sociedade civil,
como a base social de espaços públicos autônomos, distingue-se tanto do sis-
tema de ação econômica quanto da administração pública. Dessa visão da de-
mocracia segue-se normativamente a exigência de um deslocamento do centro
de gravidade da relação entre os recursos representados pelo dinheiro, pelo po-
der administrativo e pela solidariedade, dos quais as sociedades modernas se va-
lem para satisfazer sua necessidade de integração e de regulação. (HABERMAS,
1995, 48)

As implicações normativas, segue Habermas, saltam à vista: “a força da inte-


gração social que tem a solidariedade social, a despeito de não poder mais ser extraída
somente das fontes da ação comunicativa, deve poder ser desenvolvida com base em

91
espaços públicos diversificados e autônomos e em procedimentos de formação de-
mocrática da opinião e da vontade políticas, institucionalizadas em termos de estado
de direito; e, com base no meio do Direito, deve ser capaz de afirmar-se também contra
os outros dois poderes –o dinheiro e o poder administrativo” (HABERMAS, 1995, 48).
No entanto, como já exposto, para se tornar compatível como a crítica femi-
nista da democracia, a deliberação não pode abarcar apenas discursos voltados para a
obtenção da verdade baseado em argumentos racionais. É preciso ampliar a noção de
discurso para que o estado de direito seja capaz de abarcar a diversidade social no
processo deliberativo, admitindo-se manifestações de caráter visual, teatral, musical,
além de se levar em conta aspectos do discurso como tom de voz, uso de imagens e
metáforas e assim em diante.
Com efeito, no prefácio à nova edição do livro “Mudança Estrutural da Es-
fera Pública”, de 1990, Habermas admite que sua concepção esfera pública era rígida
demais, pois centrada demais na ideia de leitura, pensamento racional discussão, além
de pouco sensível à exclusão de uma série de grupos sociais, inclusive as mulheres, e
pouco atenta à presença de uma série de espaços de deliberação concomitantes e con-
correntes (HABERMAS, 2014, 37-49).
Em Direito e Democracia: entre facticidade e validade, Habermas apresenta uma
descrição da esfera pública que procura dar conta das críticas feministas, em especial
a crítica examinada neste texto. Para Habermas, a esfera pública passa a constituir,
portanto, um espaço plural e aberto a toda espécie de manifestação, como se pode
ver na citação seguinte, longa, mas necessária:

A esfera pública pode ser descrita como uma rede adequada para a comunicação
de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicativos são
filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixa-
das em temas específicos. Do mesmo modo que o mundo da vida tomado glo-
balmente, a esfera pública se reproduz através do agir comunicativo, implicando
apenas o domínio de uma linguagem natural; ela está em sintonia com a compre-
ensibilidade geral da prática comunicativa cotidiana.

(...)

Ela [a esfera pública] representa uma rede supercomplexa que se ramifica num
sem número de arenas internacionais, nacionais, regionais, comunais e sub-cul-
turais, que se sobrepõem umas às outras; essa rede se articula objetivamente de
acordo com pontos de vista funcionais, temas círculos, etc., assumindo a forma
de esfera públicas mais ou menos especializadas, porém, ainda acessíveis a um
público leigos (por exemplo, esferas públicas literárias, eclesiásticas, artísticas,
feministas, ou ainda, esferas públicas “alternativas” da política de saúde, da ci-
ência e de outras); além disso, ela se diferencia por níveis, de acordo com a den-
sidade da comunicação, da complexidade organizacional e do alcance, formando
três tipos de esfera pública: esfera pública episódica (bares, cafés, encontros de

92
rua), esfera pública da presença organizada (encontros de pais, público que fre-
quenta teatro, concertos de rock, reuniões de partidos ou congressos de igrejas)
e esfera pública abstrata, produzida pela mídia (leitores, ouvintes e espectadores
singulares e espalhados globalmente). Apesar dessas diferenciações, as esferas
públicas parciais, constituídas através da linguagem comum ordinária, são poro-
sas, permitindo a ligação entre elas. Limites sociais internos decompõem o
“texto” da esfera pública, que se estende radicalmente em todas as direções [...]
No interior da esfera pública geral, definida através de sua relação com o sistema
político, as fronteiras não são rígidas em princípio. (HABERMAS, 1997, 92-93).

Democracia Multinormativa

O debate político atual parece apontar na direção de um consenso sobre a


crise do atual modelo de representação política. O poder dos estados e dos cidadãos
está perdendo força diante das finanças e das empresas transnacionais, engajados em
processos e em ordens normativas que escapam do âmbito da política estatal. É cada
vez mais frequente que política nacional se veja sem meios de influir sobre um sem
número de decisões que irão ditar o destino de seus cidadãos e cidadãs.
Ademais, como mostramos no capítulo anterior, a política oficial constituci-
onal parece estar funcionando de costas para a sociedade, sintonizada mais com as
demandas do mundo financeiro, responsável for financiar os déficits crescentes dos
estados nacionais, o que está contribuindo para produzir crises de legitimidade da
política ao redor de todo o globo. Os estados tornam-se cada vez manos capazes de
expandir e efetivar direitos sociais, elementos responsáveis por elevar os gastos pú-
blicos e aumentar o custo da mão de obra, contrariando os interesses do capitalismo
financeiro (STREEK, 2013). Falaremos mais sobre este ponto adiante.
Diante desta situação, parece natural que os agentes sociais aumentem a vol-
tagem de sua insatisfação política, utilizando-se de meios não argumentativos em suas
manifestações públicas. Afinal, diante de uma ordem política que não é mais capaz de
ouvir sua voz, que não tem mais poder de acolher e efetivar demandas por direitos,
parece natural que a sociedade passe a manifestar sua insatisfação por meio de outros
registros de linguagem e utilizando um novo reportório de ação.
No que se refere aos movimentos sociais, por exemplo, são cada vez mais
comuns atos de ação direta como ocupações de prédios públicos e privados que visam
a obrigar o estado a agir, a tomar determinadas atitudes. Em um contexto como este,
a visão feminista do discurso democrático é essencial para que possamos olhar tais
manifestações como expressão de um desejo de radicalização da democracia e não
como ações que buscam afrontá-la. Aos olhos de uma política mais tradicional, de-
monstrações emocionais, teatrais ou formas de ação direta seriam encaradas como
manifestações pré-políticas ou mesmo como atos ilícitos, que se negam a participar
do discurso deliberativo.

93
Ora, uma avaliação como essa, pode estigmatizar e excluir do processo de-
mocrático justamente as manifestações e as forças sociais que seriam capazes de revi-
talizá-lo, ao promover transformações nas estruturas institucionais, reformadas para
serem capazes de abarcar a sua voz. Nesse sentido, um olhar feminista sobre a de-
mocracia, ou seja, marcado pela lógica da diferença e, como veremos, pela aposta na
normatividade social múltipla, contribui para manter a democracia vitalizada e em
contato com a sociedade, impedindo que se aumente o hiato entre a vontade social e
as instituições formais do estado.
Uma visão mais radical da democracia, com efeito, não pode assumir um
compromisso fixo com o Estado liberal parlamentar ou com qualquer outro desenho
final para as instituições formais. Uma democracia radical deve prever a possibilidade
de transformar continuamente as instituições formais do Estado ou de qualquer outro
centro autônomo de produção de normas jurídicas, para dar voz à sociedade, que
chamaremos de liberdade de insurreição, o que implicará também na capacidade de reco-
nhecer e interagir com centros autônomos de produção de normas, que serão debati-
dos adiante sob a denominação de regulação social.
Nesse sentido, ao invés de centralizar todo o poder de criar normas jurídicas
nas mãos do estado, uma democracia multinormativa deve ser capaz de reconhecer e
lidar com conflitos de normas jurídicas produzidas de maneira descentrada no âmbito
da sociedade, dentro ou fora das fronteiras de uma determinada nação, tema que será
tratado mais especificamente adiante nos capítulos intitulados “Gramáticas do direito
ocidental” e “Cidadania em transformação”.
Olhar a produção normativa desta maneira implica também em renunciar a
uma narrativa constitucional única e a exploração de formas de pensamento e expo-
sição que se girem em torno de ideias como a de “fragmento”, como no último livro
de Gunther Teubner ou de “mapa”, como eu estou propondo aqui. Seja como for, é
razoável imaginar que o pensamento deva migrar de uma visão principiológica com
pretensões sistemáticas e, no limite, ainda lógico-dedutivas, para uma visão que
aponte para a convivência de normas e suas interpretações, levadas adiante por múl-
tiplos centros de produção normativa e maneira simultânea e múltiplas narrativas
constitucionais em estado de contato e conflito constante.
Esta visão irá exigir, evidentemente, a construção de uma outra visão da ra-
cionalidade jurisdicional que aponte para além do paradigma procedimental centrado
na normatividade estatal e se constitua como uma estrutura polifônica e multicentrada
que integre em um modelo básico coerente, conflitos entre normatividades e conflitos
interpretativos. Às divergências sobre o sentido das normas, portanto, serão acresci-
dos conflitos sobre quais são as normas pertinentes ao caso e o seu âmbito de inci-
dência, questão que permanecia dormente no paradigma Estatal e nacional, em um
modo de ver o direito que será desenvolvido, em parte, nos próximos capítulos.

94
Capítulo 3 – Liberdade de Insurreição

Jurisprudenz

Gustav Klimt retratou o funcionamento das instituições judiciárias em um


painel intitulado Jurisprudenz1. A obra figura um homem que se defronta com o apa-
relho judicial. Completamente nu e curvado sob o peso de suas costas deformadas,
ele está à mercê da Justiça, subtraído de sua condição de sujeito. Seu corpo nu está
isolado dos outros corpos à sua volta por tentáculos de um polvo gigante, capaz de
esmagá-lo num átimo. Curvado e submisso, não é possível ver sua face com clareza,
não é possível individualizá-lo. É apenas um anônimo vencido que parece aguardar
indefeso o seu castigo.
As figuras femininas em primeiro plano sequer olham para ele, muito menos
fazem qualquer menção de que estariam ouvindo suas razões. O homem não está ali
para falar. Também não está ali para ouvir ou para ver: seus olhos, caso estejam aber-
tos, olharão para o chão sobre o qual serpenteiam os tentáculos descomunais que o
ameaçam.
O homem, curvado e nu, é mero objeto. Não há sinal de sofrimento, muito
menos de inquietude ou revolta em sua face ou em sua postura, atitudes completa-
mente inúteis para alguém que está à mercê de uma besta irracional. Suas mãos cru-
zadas nas costas impossibilitam qualquer gesto de proteção ou reação. Homem e
polvo estão tão próximos que podem sentir o cheiro um do outro; podem acompa-
nhar seus movimentos mutuamente sem precisar do olhar: basta que agucem o sen-
tido do tato. A morte ronda o homem enovelado pela besta, mas a impressão é de
calma e resignação: uma tensão fria envolve sua carne que quase toca a fria pele do
polvo.
Por que o polvo não o esmaga? Quem controla seus impulsos? O que garante
que, no instante seguinte e sem qualquer motivo, o animal não destrua seu corpo,
esmigalhando seus ossos? Gostaríamos de acreditar que as três figuras femininas que

1 Painel comissionado ao artista em 1894 e completado em 1907, sob encomenda da Universidade de


Viena. A obra fazia parte de uma trilogia composta pelos painéis “Filosofia” e “Medicina”. O resultado
final do trabalho causou tal escândalo que as pinturas nunca foram instaladas no local originalmente
destinado a elas, o hall da Universidade. Para um relato detalhado desta polêmica veja-se NEBEHAY,
Christian M. Gustav Klimt: From Drawing to Painting, Harry N Abrams, 1994 e SCHORSKE, Carl E. Viena
Fin-de-Siècle. São Paulo, Companhia das Letras, 1990. Jurisprudenz foi destruída pelo fogo em 1945.
Restaram apenas fotografias da obra.

95
cercam o pobre homem tivessem esse poder de controle. Colocadas em um plano
superior, em posição dominante, talvez estivessem guiando o polvo com seu olhar ou
com a força de seus pensamentos para que ele guarde e vigie aquele corpo devassado,
sem lacerá-lo. Mas elas estão alheias. Sua presença física impressionante contrasta
com sua ausência espiritual figurada em suas faces e em sua postura.
As três mulheres, completamente nuas, escondem seus seios e seu sexo. A
nudez é o único elemento que guardam em comum com o homem prostrado a seus
pés. Elas não mantêm qualquer contato entre si, não gesticulam, não confabulam, não
olham para nada que se possa identificar. Ao contrário do que se poderia esperar, não
estamos diante de um colegiado de juízes que refletem e preparam uma sentença. O
que fazem ali? Alheio às três figuras, vencido em seu desamparo, o homem deixa-se
estar completamente à mercê da besta.
Carl E. Schorske sugere que estamos diante das Erínias, apresentadas aqui
numa inversão do simbolismo clássico: ao invés de representarem do domínio de
Zeus pelo Direito racional e pelo poder patriarcal contra a lei da vendetta e da vingança
matriarcal, elas figuram a permanência da violência e da crueldade no interior do Di-
reito. Ao invés da vitória da razão e da civilização sobre o instinto e a barbárie, Klimt
mostra como a lei apenas ocultou e legitimou o instinto e a violência2.
A interpretação de Schorske oferece uma estrutura convincente para com-
preender o quadro (o mito das Erínias), mas simplifica demais a obra de Klimt. Não
estamos diante de uma condenação unilateral do Direito e da Justiça pela alteração do
sentido do mito grego, que parece não se prestar a isso, porquanto guarda uma ambi-
guidade impassível reduções unilaterais. Em Oréstia de Ésquilo, versão mais célebre
da história das Erínias, não há a vitória da razão sobre o irracionalismo e sim a pre-
sença marcada da ambiguidade razão e irrazão; convencimento e violência, situadas
num mesmo ambiente social, após a conversão das Erínias em Eumênides pelo poder
da palavra de Palas Atena.3 Klimt apenas preserva esta dualidade, atualizando-a.
Antes de continuar a análise de Jurisprudenz, vejamos como isso se dá na peça
de Ésquilo. Na passagem crucial da obra, Palas Atena consegue convencer as Erínias
(invocadas por Clitemnestra para que vingasse sua morte) e Apolo a submeterem-se

2 SCHORSKE, Carl E., ob. cit., p. 241. Esta interpretação segue o juízo de Karl Kraus: “Nenhum símbolo
pode explicar ao Homem, que no início do século XX já tinha pensamentos característicos do século
XX, relações mais ricas do que o do da jurisprudência; a omnipresença em todos os combates políticos,
sociais e económicos que aí paira, entre aqueles que detinham o poder e os que pretendiam lá chegar,
entre o alto e o baixo, os ricos e os pobres, o homem e a mulher, o capital e o trabalho, a produção e o
consumo – tudo isso já é, para nós, a jurisprudência... Mas para o Sr. Klimt, o conceito de <Jurispru-
dência> reduz-se às noções de crimes e penas, a Jurisprudência significa <Derwischen und Abkrageln>
(em dialecto vienense: apanhar e torcer o pescoço)”; citado por FLIEDL, Gottfried. Klimt, Colônia, Tas-
chen, 1998, p. 87.
3 Nossa análise segue de perto: VERNANT, Jean-Pierre; VIDAL-NAQUET, Pierre. “Tensões e ambigüi-

dades na tragédia grega” In: Mito e Tragédia Antiga na Grécia Antiga. São Paulo, Duas Cidades, pp. 17-
34, 1977; especialmente a análise que consta da nota 3 ao texto. As citações da Oréstia a seguir são
feitas a partir de: ÉSQUILO. Oréstia (trad. Mário da Gama Cury). Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1991.

96
a um julgamento para definir o destino do matricida Orestes. O desejo das Erínias era
vingar a morte de Clitemnestra, mãe de Orestes, assassinada por ele como vingança
pela morte de seu pai. Argumentavam que deixar de punir um matricida seria equiva-
lente a “soltar os freios que até hoje contiveram os homicidas”, que passariam a deixar
de temer o castigo, entregando-se à prática de seus crimes.
De outro lado, Apolo protege seu favorecido, argumentando que o assassi-
nato já teria sido purificado por rituais feitos em seu louvor e, ainda, que Orestes não
teria assassinado alguém de seu sangue, fato que colocaria por terra a versão do ma-
tricídio. Segundo ele, Clitemnestra teria sido apenas a depositária do filho, gerado
exclusivamente pelo esperma do pai. Segundo o deus, seria possível haver um pai sem
a necessidade de uma mãe.
Diante desta situação duvidosa, Palas Atena, com a anuência de todos os
envolvidos, organiza um tribunal, responsável por julgar a questão, formado por seis
jurados, velhos anciãos, sob a direção da Deusa. O resultado do julgamento é aper-
tado: os jurados votam, em igual número, a favor de Apolo e das Erínias, cabendo a
Palas Atena o voto de desempate, a favor de Orestes. A sentença é recebida com
revolta pelas Erínias que prometem amaldiçoar Atenas:

As gotas, destiladas uma a uma


por nossos corações, custarão caro
a este povo e à sua cidade;
uma praga mortal sairá delas,
fatal a todos os frutos da terra
e aos vossos filhos! Ah! Nossa vingança!4

Diante destas palavras, Palas Atenas apela para a razão das Erínias com esta
fala, crucial para nosso argumento:

Não vos considerei vencidas, pois da urna


saiu uma sentença ambígua, cujo efeito
é pura e simplesmente dar força à verdade
mas sem vos humilhar.5

A fúria das Erínias demorou a acalmar-se. Foi preciso que Palas Atena pro-
metesse acolhê-las em seu reino e cobri-las de glórias e poder para que elas finalmente
aceitassem renunciar a sua vingança. A Deusa, usando de todos os meios para conse-
guir dissuadi-las, afirma: “Jamais me cansarei de tentar convencer-vos/de que vos
convém aceitar minhas promessas”.

4 Idem, ibidem, p. 179.


5 Idem, ob. loc. cit.

97
A inversão do mito grego

Simplificando brutalmente o texto, conforme o registro proposto por


Schorske, a peça não condena completamente a vingança da mãe assassinada, muito
pelo contrário. As Erínias, apesar de vencidas no tribunal, assumem uma posição de
extremo prestígio e poder em Atenas sob os favores de Palas Atena, que promete:
“Sem vossa benção, nenhum lar prosperará”. Palas Atena, apesar de saber utilizar-se
com extrema perícia da persuasão, não desprezava o poder do medo da violência cega
das Erínias para manter o respeito às leis.
Retomando o quadro de Klimt, não estamos diante da inversão do sentido
do mito como quer Schorske, mas de sua atualização em um contexto diverso. Juris-
prudenz figura a permanência do irracional e da violência no interior das instituições
do Direito liberal, mas sob outra forma. As Erínias de Klimt não destilam seu ódio
ou urram de raiva diante do tribunal. Ao contrário, estão calmas e plácidas, com um
homem completamente à sua mercê, observadas ao longe pela Verdade, pela Justiça
e pela Lei6, as outras três mulheres colocadas no plano superior da cena; além dos
juízes, presentes no quadro como pequenas cabeças sem corpo. Além disso, as Erí-
nias aparecem como mulheres belas e sensuais, bem diferentes das figuras repelentes
da peça de Ésquilo:

o seu aspecto é tenebroso e repelente;


enquanto falam não se suporta seu hálito
e de seus olhos sai um corrimento pútrido;
seus trajes são inteiramente inadequados
a quem está diante dos augustos deuses
ou mesmo na casa de criaturas humanas.7

Estas Erínias desfiguradas são as enviadas das instituições judiciais modernas.


O Poder Judiciário aparece no quadro como algo irracional e desumanizador em seu
poder extremo, mas ao mesmo tempo, algo de belo e sensual, que seduz e submete
sexualmente. A posse do homem pelo aparelho judiciário em Jurisprudenz é também
posse sexual: ele está nu e submisso à beleza das Erínias, atraído e subjugado pela sua
nudez. A nudez do réu evidencia, ao mesmo tempo sua submissão física à força des-
comunal do polvo e ao poder insidioso do desejo sexual. Submissão não é apenas
violência, mas também sedução e ninguém é seduzido à sua completa revelia. O ho-
mem está sob o domínio do Direito e de seu desejo, sob o olhar atento da Verdade,
da Justiça e da Lei que controlam ao longe o desenrolar dos acontecimentos.

6 aqui também seguimos a sugestão de Shorske.


7 idem, ob. cit., p. 100.

98
Em frente à nossa vítima cantamos
um hino dedicado às sacras Fúrias,
vertiginoso e delirante, a ponto
de provocar nos homens a loucura
e de lhes imobilizar a mente,
canto sem os acordes de uma lira
que os horroriza e os seca de medo.8

Na cena de Klimt, a paralisia e a imobilidade do homem não parecem mar-


cadas pela loucura e pelo desespero, mas por uma submissão calma e plácida. O ho-
mem foi seduzido e não atormentado pelas Fúrias. Olhando mais atentamente, pode-
mos concluir que estamos diante de um homem culpado que está sendo castigado por
seu crime. Perceber isso é muito importante para compreender a ambiguidade do
quadro. Um detalhe significativo leva a esta conclusão: o homem traz suas mãos cru-
zadas atrás das costas. As Erínias de Ésquilo disseram:

Fechemos este círculo dançante!


Cantemos este pavoroso hino
anunciando como nosso bando
reparte a sorte entre todos os homens!
Consideramo-nos as portadoras
da justiça inflexível; se um mortal
nos mostra suas mãos imaculadas,
nunca o atingirá o nosso rancor
e sua vida inteira passará
isenta de nossos sofrimentos.
Mas quando um celerado igual a este
oculta suas mãos ensanguentadas,
chegamos para proteger os mortos
testemunhando contra o criminoso,
e nos apresentamos implacáveis
para cobrar-lhe a dívida de sangue!9

Note-se a semelhança das cenas: também em Oréstia as Erínias fazem um


círculo em volta do culpado, aos pés do templo. Diante delas, Orestes, evidentemente
culpado do assassinato de sua mãe10, provavelmente apresentou-se como o homem

8 Idem, ob. cit., p. 158.


9 idem, ob. cit., pp. 157-8.
10 A autoria de Orestes nunca esteve em questão, o problema era saber se o assassinato poderia ser

99
nu de Klimt: com as mãos escondidas e curvado sob o peso de sua culpa; o inverso
exato da postura física de um inocente que deveria exibir suas mãos impolutas como
o símbolo de sua condição.

Um Direito Racionalmente Irracional?

Não sabemos exatamente quais problemas Klimt tinha diante de si ao pintar


sua obra. Esta pequena análise não tem o objetivo de ser absolutamente fiel ao con-
texto em que o quadro foi realizado, muito menos pretende dar conta da interpretação
do mito grego, invocado aqui apenas como guia para interpretar o quadro de Klimt.
Por isso nos sentimos à vontade para perguntar, mesmo forçando um pouco a inter-
pretação da obra: de onde vem a indiferença, o alheamento, ou seja, de onde vem a
desumanidade que domina a cena e reduz o homem a um mero objeto? Porque os
tribunais teriam esta figuração, ao mesmo tempo monstruosa e sedutora? E que Di-
reito é este que serve a estes dois senhores?
A indiferença, o alheamento e a extrema crueldade e poder das figuras que
submetem o homem nu estão combinadas com elementos de forte apelo sensual. As
Erínias, belas mulheres lânguidas e nuas, excitam e seduzem, como pousadas ao lado
do poder irracional do polvo gigante. As serpentes, que inclusive compõem seu pen-
teado, são signos da morte traiçoeira que se insinua e não de uma violência feroz e
aberta.
Além disso, à distância e no fundo da cena, a Verdade, a Justiça e a Lei,
circundadas por diversos juízes - pequenas cabeças espalhadas pela cena - manifestam
sua aprovação silenciosa diante daquilo que se desenrola a seus pés; além de servirem
de sinal de uma justiça também feita de homens, apesar de sua estrutura mitológica.
Uma Justiça distante da execução de suas sentenças, mediada por meios de violência,
por assim dizer, pacificados. Não mais uma justiça de Erínias que urram e fedem, mas
de mulheres insinuantes e frias. Justiça de Deuses em processo de demagificação?
Todos os elementos da cena articulam-se de forma harmônica, evocando, ao
mesmo tempo, racionalidade e irracionalidade, sedução e violência, frieza e sensuali-
dade. Esta unidade contraditória envolve o réu numa atmosfera perturbadora. Mar-
cada por elementos complexos, afasta qualquer possibilidade de interpretação mani-
queísta.
Ao evidenciar tais ambiguidades do Direito, Klimt certamente causou es-
panto em espíritos iluministas: como seria possível pensar o Direito sem a ideia de
homem posta no centro de seu conceito? Para que serviria o Direito afinal, senão para

considerado justificado ou não. Diz Orestes: “Dá-nos agora, Apolo, teu depoimento/explica claramente
se quando a matei/agi de acordo com os ditames da justiça./Não vou negar a prática do ato em si,/mas
desejo saber se em tua opinião/este homicídio pode ser justificado;/desfazer as minhas dúvidas e as
dos juízes!” Idem, ob. cit., p. 170

100
impor o cumprimento das regras de cima para baixo e de forma racional e previsível?
De outro lado, a sensualidade e a harmonia presentes na obra impedem que pensemos
o aparelho judicial como violência pura.
O artista perturba qualquer possibilidade de redução das interpretações aos
polos violência e razão com sua figuração de um Direito desumano e irracional, harmô-
nico e sedutor, meio humano e meio divino. O painel apresenta uma execução que,
sob a presença da Verdade, da Lei e da Justiça, figura a opressão e a irracionalidade
do aparelho judicial, mas os elementos de harmonia e sensualidade contrabalançam
este diagnóstico, inscrevendo na cena a marca da ambiguidade do Direito moderno,
além da mistura de figuras mitológicas e cabeças humanas. Não poderia haver crítica
mais aguda a visões maniqueístas do Direito liberal e de sua justiça. Jurisprudenz parece
confirmar a seguinte afirmação de Giulio Carlo Argan sobre Klimt:

“a arte é o produto de uma civilização agora extinta, e na nova civilização indus-


trial não pode viver senão como sombra ou lembrança de si mesma. (...) Klimt
sente profundamente o fascínio desse crepúsculo histórico; associa a ideia da
arte e do belo à da decadência, da dissolução do todo, da precária sobrevivência
da forma ao final do conteúdo.” (ARGAN, 1992)

Ressalte-se que na peça grega a linguagem jurídica presta-se a fins diversos


daqueles visados por Klimt. Conforme análise de VERNANT & VIDAL-NAQUET
(1977), as tragédias não têm como objetivo retratar o funcionamento do Direito grego,
mas utilizam-se frequentemente da linguagem do direito para fim diverso, qual seja,
evidenciar a ambiguidade entre o mundo irracional da religião antiga e uma ordem
mais racional que emerge com a formação da pólis. A figuração desta ambiguidade
confere à tragédia seu efeito dramático.
O Direito e a ambiguidade (ou contradição?) entre racional e irracional, vio-
lência e convencimento, norma e fato, ordem e desordem: este é um tema que pode
servir como norte para nossa reflexão sobre este tema. Numa primeira aproximação,
poderíamos pensar o Direito como algo cuja função é articular elementos contraditó-
rios, presentes tanto em Oréstia quando em Jurisprudenz: a irracionalidade e a raciona-
lidade dos procedimentos judiciais, marcados, ao mesmo tempo, pela violência (não
mais pura, mediada pela forma direito) e pelo convencimento.
Nesse sentido, uma norma jurídica pode ser entendida como um artefato
humano destinado a mediar as relações entre o ódio irracional, que caracteriza a von-
tade de vingança e destruição diante da injustiça - ou apenas de um ódio cego - e a
necessidade social de racionalidade e paz. A norma jurídica acolhe o ódio e canaliza-
o para instituições destinadas a transformá-lo em assentimento impedindo a destrui-
ção física dos sujeitos.

101
O Direito está colocado no centro de um processo continuado e sempre
incompleto de metamorfose (ou racionalização) que visa a transformar ódio em deli-
beração, irracionalidade em racionalidade, força bruta em relação jurídica, sem lograr,
entretanto, suprimir definitivamente nenhum dos polos que o definem. Se não é capaz
de suprimi-los, pode sim transformá-los e mantê-los tencionados ao direcionar a vio-
lência aberta e o ódio irracional na direção da mediação da forma direito democrático de
acordo com o desenho institucional que define seu modo de funcionar, seu código,
em cada momento histórico da civilização ocidental.
Por resta razão, podemos dizer que o Direito ocidental em sua versão demo-
crática é uma forma destinada a lidar com as contradições humanas e traz inscrito em
si os restos daquilo que faz o homem, além de um ser racional, um animal movido
por suas pulsões. O direito democrático é o testemunho vivo de tudo que pode ser
dito moral ou amoral e por isso mesmo, é uma das melhores figurações daquilo que
chamamos, seja a que título for, de ser humano.
Mas, para completar nossa tarefa analítica, precisamos ser capazes de tocar o
animal irracional que as estruturas racionais do diálogo e do Direito conformam e
buscam - talvez em vão - domesticar. É preciso desvendar as mediações que ligam a
irracionalidade e a racionalidade humana e buscar um lugar para enraizar a norma
jurídica, forma destinada a conter o ódio irracional; contraparte necessária da racio-
nalidade do direito.
Considerada como uma figura do ódio, a norma jurídica não é mera forma,
instrumento técnico a seu serviço na condição de um meio neutro pelo qual ele simples-
mente passa sem metamorfose. A norma conforma o ódio, portanto, é elemento de seu
conceito e de sua transformação em alguma coisa de outro. Ao acolher a pulsão em
sua violência crua a norma constrói o ódio que, pensado fora deste registro, fica redu-
zido à animalidade pura, mergulhada no indeterminado de uma noite em que todos
os gatos são pardos.
O sujeito capaz de odiar juridicamente é sujeito e não besta: por isso sua ani-
malidade tem no Direito uma figuração necessária. O sujeito juridificado guarda tra-
ços de seu parentesco com as feras, mas ocupa um outro lugar. Para que possamos
odiar com algum sentido moral ou humano, é preciso que nos situemos dentro do
reino da razão e do direito. E este é um processo contínuo, que não cessa: estamos
sempre retornando a um estado de ódio puro que, se não puder ser mediado e trans-
formado pela forma direito se manifestará como pura violência.
Mas, por razões que não temos espaço de expor aqui, nossa conversão à
civilização nunca será completa: reside aqui a utilidade da forma direito para um pro-
jeto de vida que pretenda combater a violência pura, sem mediação. Ainda na chave
oferecida por Jurisprudenz de Klimt, pensamos o Direito e o ódio irracional como duas
dimensões de uma mesma realidade: para que exista Direito é preciso negar a irracio-
nalidade do ódio, ódio que permanece borbulhando dentro de nós e no interior da

102
sociedade juridificada, ainda que potencialmente modificado por novas determina-
ções: as Erínias tornam-se Eumênides pelas mãos de Palas Atena.
Nesse sentido, confundir os dois regimes - Erínias e Eumênides - é confundir
direito e não-Direito.11
Esta mesma questão foi posta há tempos - ainda que em outro registro teó-
rico - por Herbert Marcuse em Eros e Civilização que, apesar de não tratar do Direito
em nenhum momento, identifica um problema que está no centro de nossas preocu-
pações: como é possível criar uma sociedade em que a obediência ao poder não seja
percebida pelos sujeitos apenas como repressão? Ou seja, em minha linguagem, como
é possível construir um processo de subjetivação democrático que produza subjetivi-
dades democráticas?
Na realidade, de fato, trata-se de atualizar a questão de Jean Jacques Rousseau:
como organizar a sociedade civil de tal forma que os homens se mantenham e se
sintam tão livres quanto no estado de natureza? Em nosso caso e no caso de Herbert
Marcuse, Erich Fromm e Franz Neumann, olhando na direção do conceito de sujeito
pressuposto por esta espécie de formulação teórica, caberia perguntar: que sujeito
seria esse, capaz de perceber a heteronomia do poder como parte de si mesmo, ou
seja, como elemento constitutivo do seu ser, mas sem deixar-se diluir nele, mantendo
afastada a possibilidade de formação de um organismo total que suprimiria sua auto-
nomia?
Que sujeito seria este, capaz de manter-se fora e dentro de uma totalidade
sempre incompleta e em processo? Mais especificamente, que características um de-
terminado aparelho mental deve ter para ser capaz de sustentar a existência humana
no interior desta tensão, qual seja, a sociedade percebida como realização do sujeito
e, ao mesmo tempo, como ameaça de supressão do sujeito, mas não apenas como um
artefato destinado a subjugá-lo necessariamente?
Quanto à plausibilidade empírica, uma sociedade como esta, a exemplo da
democracia para Rousseau, seria possível apenas para um grupo de anjos? Ou quem
sabe devamos abandonar esta utopia angelical e aceitar a presença incômoda de uma
razão que nunca se resolverá completamente como razão e pensar, com Franz Neu-
mann12, quais seriam as neuroses e os desenhos institucionais mais e menos adequa-
dos para fundar e manter funcionando uma sempre frágil e instável democracia?
Uma democracia em que a renúncia à violência é instaurada e mantida, jus-
tamente, pela disputa radical e intestina por todos os bens socialmente valiosos? Um
regime em que todas as pessoas, e cada uma, correm o risco de serem aniquilados?
Sempre, em todos os casos, e de novo e de novo?

11 Atualmente, devemos esta confusão a AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer – O Poder Soberano e a Vida
Nua. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2002 e idem. Lo stato di eccezione. Bollati Boringhieri, 2003.
12 NEUMANN, Franz, “Anxiety and Politics” In: The Democratic and The Authoritarian State, Glencoe,

The Free Press, 1957.

103
Liberdade de insurreição

Novas subjetividades e grupos sociais podem se formar destruindo algo à


sua volta, por exemplo, a atual distribuição de bens materiais e simbólicos, seja no
âmbito da família, seja no âmbito da sociedade seja no interior do Estado. É razoável
que, em vários casos, este processo desperte o ódio alheio, no limite, que atraia para
si uma vontade de destruição a qual, por isso mesmo, precisa de contenção para que
a sociedade não se torne um meio homogêneo governado autarquicamente pelo mais
forte. Ódio entre irmãos, ódio entre grupos sociais, ódio entre classes, ódio entre
nações.
Nesse sentido, o processo de subjetivação e individuação dos diversos entes
pode colocar em risco as estruturas que organizam a vida em todos os contextos,
ameaçar a reprodução do que há de normal, de tudo aquilo que está posto, inclusive
as demais subjetividades e grupos. A imagem do processo de subjetivação, de dife-
renciação social, de formação de grupos e identidades não deve ser a de um processo
natural, harmônico, isento de conflitos, especialmente em sociedade pluralistas em
que a diversidade de visões da moral, da religião e mesmo do direito é a marca da vida
social.
Por isso mesmo, para que esta dinâmica possa prosseguir sem violência
aberta ou em um ambiente em que a violência se apresente mitigada, é necessário
estruturas de proteção, é necessário contar com a garantia jurídica da forma direito
democrático que deve proteger a formação de novas identidades e, ao mesmo tempo,
a possibilidade de transformação das normas vigentes, as quais seriam capazes de
barrar tal processo, muitas vezes de forma definitiva, caso fossem naturalizadas.
Por assim dizer, é preciso fazer coincidir os institutos de pessoa de direito e
pessoa sem mais nada. A despeito de os dois conceitos serem diferentes, afinal, pode-
se atribuir personalidade de direito a seres inanimados para determinados fins, por
exemplo, as pessoas jurídicas, as ciências humanas tem mostrado que, ao menos na
modernidade, uma pessoa que não seja pessoa de direito passa a ser passível de vio-
lência e, até mesmo, de eliminação13. Esta é, como já visto, uma das principais moda-
lidades de despersonalização jurídica.
Proteção jurídica contra o ódio à subjetivação e contra a naturalização das
normas postas: liberdade de formar-se contrariando o direito e a moral reinantes. O
limite da racionalização é o desassujeitamento, nos ensina Judith Butler (2004, 173) e
a garantia institucional mínima de continuidade deste processo está na existência da
liberdade de insurreição, instituto que faz a mediação entre subjetivo e objetivo, evi-
tando a naturalização de ambos os lados desta relação, em especial, a naturalização das
regras que determinam os sujeitos e suas práticas, sejam elas normas estatais ou não.

13
O trabalho de Doutorado de Simone Schuck da Sila, ainda sem título definitivo, abordará este tema. Agradeço
a Simone pela interlocução quanto a este problema.

104
Na introdução à edição mexicana do clássico de W. N. Hohfeld, “Funda-
mental Legal Concepts”, Genaro R. Carrió (2001) demonstra uma das vantagens de
sua tipologia de posições jurídicas fundamentais: a capacidade de descrever juridica-
mente determinadas relações de maneira muito mais precisa do que os termos “direito”
e “dever”, incapazes de dar conta da diversidade de formas de regular do mundo
jurídico. O exemplo utilizado pelo autor é uma luta de boxe, mais especificamente, o
estatuto da relação entre os lutadores do ponto de vista do direito.
Não faz sentido, com efeito, afirmar que ambos os boxeadores teriam o “di-
reito” de golpear um ao outro, afinal, não se pode afirmar que teriam o “dever” de
serem golpeados. Ao contrário, eles estão autorizados a evitar os golpes da melhor
maneira possível, a despeito de também não serem titulares do direito de exigir que
seu oponente não desfira golpes contra si. Como se vê com facilidade, a terminologia
“direito” e “dever” não é capaz de descrever com precisão o que está em jogo neste
caso e em outros casos que envolvam, por exemplo, conflitos sociais, segue Carrió.
O autor sugere, assim, que sejam utilizados dois termos correlatos da tipolo-
gia de Hohfeld, “privilégio” e “não dever”. Assim, cada boxeador tem o privilégio ou
liberdade de desferir golpes um contra o outro, ou seja, ambos têm a liberdade juridi-
camente protegida de fazê-lo ou não, afinal, a prática de boxe não é proibida pelo
direito dos Estados Unidos, brasileiro ou mexicano. De outra parte, ambos os boxe-
adores são titulares do “não-direito” correlativo à liberdade de seu oponente, ou seja,
estão desprovidos do direito de exigir que ele se abstenha de golpeá-los. Evidente-
mente, está pressuposto que ambos os participantes dessa relação são pessoas de di-
reito, além de pessoas naturais.
Em sentido semelhante, afirmei acima que a violência pura é neutralizada por
regimes políticos que garantam a liberdade de insurreição a qualquer pessoa, ou seja,
regimes que protejam a livre subjetivação e a formação constante de grupos que deem
origem a formas de ser e a demandas que ponham em risco as normas postas. Por-
tanto, a liberdade de insurreição também põe um limite à racionalização, a formaliza-
ção do direito e da moral, por exemplo, ao abrir espaço para subjetivações disruptivas
as quais seriam frustradas pelas normas postas.
A liberdade de insurreição é, por assim dizer, o mínimo institucional de um
processo de socialização não violento e democrático, elemento central de uma demo-
cracia multinormativa em que todas as pessoas possam se autodesenvolver e se autode-
finir sem violência e sem que as instituições formais se mostrem como um obstáculo
intransponível.
Como veremos adiante (em “Poder e Dominação”), Franz Neumann fala de
direitos pessoais, societários e políticos; respectivamente, direitos garantidos às pes-
soas isoladas (direito à segurança, a seus documentos, a seus pertences, direito a um
julgamento justo, direito a buscas e apreensões razoáveis); direitos comunicativos que
só podemos exercitar em relação aos demais membros da sociedade (liberdade de

105
religião, a liberdade de reunião e de expressão, direito de propriedade) e direitos deri-
vam da estrutura política dos estados, no caso das democracias, direito de liberdade
de concessão e acesso a todos os cargos públicos, inclusive o direito ao sufrágio, e a
igualdade de tratamento em relação a essas ocupações, profissões e nomeações.
O exercício dos direitos políticos pressupõe a liberdade pessoal e os direitos
societários: não há direitos políticos sem segurança pessoal e possibilidade de comu-
nicação em uma esfera pública democrática. Para Neumann, o debate democrático se
houver institucionalização de direitos de comunicação que resultam das lutas sociais,
elemento determinante para a sua implementação. Partindo da enumeração de Neu-
mann, só existe liberdade de religião em um ambiente de pluralismo religioso: não faz
sentido proteger a liberdade de religião se há uma única religião prevalente, ou seja,
se não há conflitos religiosos e conflitos entre religiões e entre as religiões e o poder
constitucional.
Da mesma forma, a liberdade de reunião e de expressão também estão a
serviço do conflito social. Não há democracia sem a possibilidade de que os cidadãos
possam se reunir para formar novos agentes políticos, os quais devem ter a liberdade
de expressar as suas demandas, inclusive no que se refere ao direito de propriedade o
qual, para Neumann, não é um direito meramente individual, deve ser pensado inter-
subjetivamente, em função das estratégias de distribuição de riqueza.
Notemos que a garantia legal e efetiva do pluralismo, institucionalizada pela
liberdade de insurreição, está no fundamento último de todas as liberdades. Afinal,
mesmo no caso dos direitos pessoais, eles só fazem sentido em um ambiente plural e
conflitivo: qual seria a razão para proteger a segurança de alguém se esta não estivesse
ameaçada potencialmente pelo convívio com as demais pessoas? A liberdade de in-
surreição, portanto, está na gênese lógica das liberdades em sentido jurídico por ga-
rantir, ao mesmo tempo, a livre produção de subjetividades mediante a possibilidade
de questionamento das normas postas. O direito de um sujeito se constituir livre-
mente mesmo contra as normas postas em determinado momento histórico.
Iris Marion Young diferencia, em sua obra tardia, “opressão” de “domina-
ção”, apontando para os aspectos subjetivo e objetivo dos obstáculos a emancipação
humana. A “opressão” atinge, de acordo com a autora, a livre formação do sujeito na
sociedade civil e a “dominação”, de outra parte, aponta para a sua sujeição às institui-
ções formais do Estado: a crítica deve ser feita, de acordo com ela, nestas duas di-
mensões, por assim dizer, subjetiva e estrutural, no âmbito do autodesenvolvimento
e da autodeterminação.
Apenas o equilíbrio entre estas duas dimensões é que nos permite afirmar que
um determinado regime seria justo. Este livro, diga-se, está focado na dimensão da domi-
nação. Pretendo, no futuro, produzir mais a respeito da dimensão da opressão na forma
de uma reflexão sobre a subjetivação democrática a qual, ao contrário talvez do que pen-
sasse Young, também depende do direito democrático, como já sugerimos aqui.

106
Para retomar o fio da exposição, de um lado, “muitas das injustiças estrutu-
rais que produzem opressão tem sua fonte em processos econômicos, as instituições
estatais são necessárias para minimizá-las e promover o autodesenvolvimento”
(YOUNG, 2000:156). De outro, “o poder do Estado ameaça a liberdade e a autode-
terminação e deve ser limitado pelo mercado e empresas econômicas independentes
e por uma forte rede de associações civis e políticas independentes” (YOUNG, 2000:
184). Uma sociedade civil vigorosa, por assim dizer, promove uma crítica constante
ao Estado, ou seja, de maneira mais sintética e geral, a existência da liberdade de in-
surreição é a garantia institucional mínima para que este tipo de postura crítica de
qualquer instituição formal se efetive, seja ela o Estado ou não.
Em sentido semelhante, Judith Butler define a atividade crítica, em comen-
tário ao texto tardio de Foucault “O que é a crítica?”, como a atitude de fazer visíveis
os limites das categorias que constituem o sujeito tomado como objeto de uma certa
manifestação do poder. Uma atitude crítica problematiza o horizonte epistemológico
dentro do qual uma determinada prática se desenrola, ou seja, faz com que seus limites
apareçam implicando, portanto, em uma transformação do próprio sujeito (BUTLER,
2014: 166).
Aos olhos de Butler, Foucault afirma que, ao recusar-se a obedecer à autori-
dade, a uma determinada forma de poder, cujas normas ajudam a definir a sua condi-
ção de sujeito, este mesmo sujeito expõe o limite desta prática e assume uma atitude
crítica, justamente, ao colocar em risco a norma que determina a sua própria subjeti-
vação. Foucault não está advogando pela anarquia, segue Butler, mas está se referindo
a episódios de desobediência específicos, trata-se da recusa desta ou daquela forma
de dominação (BUTLER, 2014: 168).
É evidente que, neste ponto, torna-se crucial compreender a motivação desta
desobediência, a fonte deste procedimento de questionar a legitimidade das normas
que fundamentam as diversas manifestações do poder. Afinal, em que circunstâncias
um determinado sujeito toma esta posição? Existiria alguma coisa como uma liber-
dade inata à alma humana? (BUTLER, 2014: 169).
Neste ponto, tanto Butler quanto Foucault soam excessivamente abstratos
ao afirmarem, aparentemente em acordo, que tal atitude seria uma “arte”, uma “vir-
tude” encenada pelo sujeito sem qualquer fundamento, um movimento reflexivo ca-
racterístico do esclarecimento, qual seja, o de resistir a autoridade (BUTLER,
2014:170). Soa mais convincente pensar a crítica de forma mais concreta, a partir de
uma sociologia do conflito social entre indivíduos, grupos e classes em determinado
contexto histórico.
Como nos mostrou Franz Neumann, a constituição do proletariado como
sujeito histórico encontrou seu limite na ordem capitalista: durante muitos anos a
organização de sindicatos foi considerada ilegal e a reivindicação de direitos contrária
a liberdade contratual no sentido liberal. O proletariado pôs em risco as normas que

107
organizavam o capitalismo com concorrencial do século XIX, que teve que se trans-
formar para sobreviver, assumindo a forma, ao menos no centro capitalista, de capi-
talismo monopolista desenvolvendo, logo em seguida, normas jurídicas destinadas a
limitar a concorrência e a exploração da pessoa dos trabalhadores.
De maneira semelhantes, comunidades tradicionais, indígenas e quilombolas,
por exemplo, tem reivindicado o direito de habitarem ordens normativas próprias em
que possam reproduzir suas tradições e viverem de acordo com as suas próprias re-
gras, o que implica na criação de Estados multinacionais e multinormativos. Mais
contemporaneamente, determinadas práticas comerciais em rede e atividades de na-
tureza transnacional pretendem manter ordens normativas independentes, a par dos
Estados, como a FIFA, a lex mercatoria, as regras da internet e as normas de uma série
de redes de compartilhamento como o AirBnb e o Uber, processo que vai relativi-
zando ou transformando o papel dos estados nacionais e do direito pensado exclusi-
vamente em função das normas emanadas do Estado (TEUBNER, 2003; BER-
MANN, 2007), como veremos adiante. E cada um desses movimentos põe em ques-
tão o desenho das instituições postas.
Tais processos são marcados por conflitos e, muitas vezes, por violência,
pois as normas postas não se deixam reformar sem luta. Da mesma maneira, como
Butler mostrará no clássico Gender Trouble (2015) em diálogo estreito com as pesquisas
em Antropologia, o surgimento de expressões de gênero como as pessoas trans evi-
denciam os limites das normas de gênero vigentes, que admitiam apenas o masculino
e o feminino, provocando uma crise da epistemologia destas práticas sociais, cuja
transformação se torna condição necessária para que esta e outras tantas novas ex-
pressões de gênero possam se manifestar livremente no espaço público.
Estas transformações, especificamente, estão longe de se desenrolar de
forma pacífica e estão longe de estarem consolidadas. Forças sociais conservadoras
permanecem atuantes na tentativa de restaurar o poder da dualidade masculino/fe-
minino. Daí a importância de afirmar a necessidade da garantia da liberdade de insur-
reição para caracterizar um regime efetivamente democrático, liberdade esta que pro-
tege o sujeito quando ele se torna perigoso para o status quo.
A liberdade que só faz sentido, evidentemente, se não permanecer apenas
prevista nas normas jurídicas, como mostrou Franz Neumann em seu estudo sobre a
liberdade política (2013b). A liberdade, veremos adiante no capítulo “Poder e Domi-
nação”, deve funcionar, ao mesmo tempo, como liberdade jurídica, liberdade socio-
lógica e liberdade volitiva. Mas há mais: como será visto no final deste livro, há pro-
cessos de subjetivação e de formação de grupos sociais que podem se revelar, eles mes-
mos, violentos e voltados para criar formas de vida homogêneas, como por exemplo o
movimento fundamentalista Estado Islâmico. A criação de novos sujeitos sociais em
efervescência na sociedade civil não é, necessariamente, sinal de democratização.

108
Minha hipótese quanto a este ponto, como será visto com mais detalhes no
capítulo final deste livro, é que estamos vivendo um novo ciclo autoritário em que as
estratégias autárquicas são mais societais do que estatais, ou seja, que não tendem a,
aparentemente, salvo em casos excepcionais, a criar novos estados autoritários como
no século XX. A tendência atual parece ser a criação de normativas autárquicas no
campo da sociedade que lutam para se manter independentes e longe da influência
estatal e negam a qualquer pessoa a liberdade de insurreição a qual é, por definição,
anti-hierárquica.

109
Capítulo 4 - Poder Instituinte X Poder Constitucional

Introdução

No mundo contemporâneo, a centralidade das Constituições para a política


ocidental pode ser interpretada como sinal da decadência do direito natural como
realidade institucional, ou seja, como um elemento central da reprodução das institui-
ções formais. A despeito do debate sobre o direito natural permanecer importante na
teoria e em momentos revolucionários, a reprodução institucional normal passou a
ser dominada pelas leis, especialmente pelas normas constitucionais, que declaram
direitos fundamentais e desenham as instituições do Estado.
Tais normas, especialmente depois do século XIX, passam a declarar expli-
citamente a existência de determinados Direitos Humanos, dos quais são titulares to-
dos os homens e mulheres, direitos estes criados pela soberania popular, seu único
fundamento. Os direitos humanos deixam de ter um fundamento transcendente, para
serem vistos como produto da vontade do povo. Por isso mesmo, porque são resul-
tantes da soberania popular, eles devem servir de limite para a gestão das coisas do
estado, para o exercício do governo, e, principalmente, para o exercício da soberania
popular ela mesma.
Este é um dos pontos mais interessantes e mais problemáticos da tradição
do constitucionalismo, que será criticado, por exemplo, por Antonio Negri no seu
livro essencial “O Poder Constituinte” (NEGRI, 2015). A gramática institucional do
constitucionalismo atribui aos textos constitucionais o poder de disciplinar a estrutura,
o governo do estado, além de impor limites à soberania popular contra o poder das
maiorias, em proteção das minorias. Nesse sentido, a Constituição resulta da vontade
do povo, mas serve também para disciplinar e limitar a atividade política protagoni-
zada pelo povo.
Esta autolimitação, tradicionalmente, exige um momento de manifestação
solene. Não estamos diante de qualquer manifestação da soberania popular, mas de
um momento especial em que o poder constituinte cria uma Constituição a qual não
poderá ser alterada a qualquer momento e sob qualquer pretexto. Espera-se deste
momento constituinte originário que ele seja marcado por um alto grau formalidade
e legitimidade, seja para criar, seja para alterar significativamente uma Constituição
que já exista.

111
A Constituição, na tradição ocidental, costuma disciplinar o funcionamento
do Estado e do governo, estabelecendo qual deva ser o desenho dos poderes e as
regras para a ocupação de seus postos. Criar mecanismos de escolha dos representan-
tes da sociedade para criar as leis no Parlamento, criar instrumentos para gerir o Es-
tado de acordo as leis pelo Executivo e construir um aparato para solucionar os con-
flitos sociais com fundamento nas leis pelo Judiciário, são momentos essenciais para
traçar os limites e o contexto em que podem ser dar os conflitos políticos.
Em momentos de acirramento do conflito político, todos estes limites ten-
dem a ser postos em xeque e, com eles, determinada maneira de definir e separar os
poderes. Por exemplo, em determinado momento histórico, os conflitos podem não
seguir os canais considerados “normais”, produzindo o fenômeno que alguns estudi-
osos chamam de “judicialização da política”. Os conflitos podem também promover
verdadeiras transformações institucionais, cujo resultado pode ser um novo desenho
da separação de poderes e do sentido dos direitos fundamentais. Ainda, os conflitos
políticos podem ameaçar romper as instituições, pondo em risco sua sobrevivência
em favor da deflagração de um processo revolucionário.
Redesenhar as instituições fora da solenidade do momento constituinte, por
exemplo, sem que o Congresso se manifeste por via de emendas constitucionais, será
sempre objeto de questionamentos quanto à sua legitimidade. No entanto, tal forma
de mudança constitucional parece estar se tornando a regra geral; o mecanismo mais
comum para a redefinição do desenho jurídico dos conflitos políticos, ao menos em
algumas democracias. Por exemplo, Bruce Ackermann tem mostrado, em seus alen-
tados volumes sobre a história constitucional dos Estados Unidos, intitulados “Nó, o
Povo”, que este país tem seguido um padrão informal de transformação institucional
(ACKERMANN, 2006).
Segundo Ackermann, nos Estados Unidos um Executivo superpoderoso
costuma praticar, de tempos em tempos, atos claramente inconstitucionais, os quais
tendem a ser legalizados logo adiante, por exemplo, pela Suprema Corte. No ciclo
constitucional seguinte, tais transformações são trivializadas e o que era inconstituci-
onal se torna constitucional até que o conflito social se acirre novamente e um novo
ciclo de inconstitucionalidades surja e seja normalizado, ou melhor, seja “legalizado”.
Em sentido semelhante, no que diz respeito ao Brasil, meu trabalho pessoal
em “Como Decidem as Cortes” tem evidenciado que a assim denominada “judiciali-
zação da política” pode ser vista, de um outro ponto de vista, como uma transforma-
ção em nosso desenho institucional, que passa a atribuir grande poder legislativo ao
poder judiciário (RODRIGUEZ, 2013a).
Esta transformação, resultante do transbordamento dos conflitos sociais de
seus canais usuais, considerados “normais” pelo senso comum, teve como resultado
fazer com que o Poder Judiciário passasse a falar diretamente com a sociedade, de-
senvolvendo mecanismos institucionais para esta finalidade. Por exemplo, o Supremo

112
Tribunal Federal hoje realiza, regularmente, audiências públicas e a aceita com libera-
lidade “amicus curiae” elaborados por diversos interessados e interessadas em opinar
nos processos em julgamento.
Antonio Negri, em seu mencionado livro, parece advogar por uma condena-
ção profunda e radical da tradição constitucionalista. Nesse sentido, ele pode ser visto
como um anti-neumanniano radical. Sua análise mostra que esta tradição, responsável
por elaborar uma teoria jurídica do poder constituinte, foi edificada com a finalidade
expressa de evitar a revolução, ou seja, domesticar qualquer transformação mais radi-
cal das instituições e da vida social. Por isso mesmo, esta tradição sempre olhou o
poder do povo, no que ele tem de transformador, com a mais extrema desconfiança.
Não é por outra razão que a expressão deste poder na gramática constituci-
onal liberal está cercada de uma série de limites e requisitos. O povo pode se mani-
festar, mas sempre sujeito a muitos limites e mecanismos de controle que visam con-
ter a força constituinte do povo, a qual seria capaz de transformar completamente
qualquer realidade político-institucional. Nesse sentido, toda esta tradição, para Negri,
deveria ser vista como essencialmente conservadora e antirrevolucionária.
Este capítulo tem como objetivo pensar todos estes problemas tendo em
vista uma reflexão sobre um eventual caráter crítico da tradição constitucionalista.
Para realizar esta tarefa apresentaremos, em sua primeira parte, as características gerais
do constitucionalismo, articulando os conceitos polares de Constituição e soberania
popular com os conceitos de direitos humanos, Estado e governo. Neste momento
da exposição, mostraremos a função e os limites da Constituição como expressão e
limite à soberania popular, em especial as aporias que esta configuração acarreta para
a transformação política.
A seguir, em sua segunda parte, apresentaremos a denúncia do constitucio-
nalismo por Antonio Negri em toda a sua radicalidade; um autor que parece sugerir
que a única maneira de refletir sobre qualquer forma de transformação social mais
radical é deixando esta tradição de lado. Finalmente, em sua parte final, a título de
conclusão, o capítulo apresentará uma solução diferente para o dilema da transforma-
ção institucional com base na obra de Franz Neumann, evidenciando seu caráter crí-
tico-normativo e interno à tradição constitucional vigente.
Esta parte do capítulo irá mostrar que a crítica de Negri ao constituciona-
lismo ignora seu cerne normativo, o qual permite conferir um sentido crítico para esta
tradição. Afinal, para os juristas críticos, não se trata apenas de descrever a transfor-
mação social e seus obstáculos em todas as suas modalidades, mas sim de pensar
formas de transformação social que afastem o arbítrio e a violência e favoreçam a
autonomia humana.
Após o advento do nacional-socialismo, para Neumann, o projeto constitu-
cional ganha cada vez mais importância e centralidade para a teoria crítica e para a
política do ocidente. Como veremos, em seu “O Império do Direito” (NEUMANN,

113
2013) e em “Behemoth” (NEUMANN,2009), uma análise detalhada do nacional-so-
cialismo, Franz Neumann mostra como a transformação social radical, se mais, não é
positiva em si mesma. Ela pode assumir uma face monstruosa e totalitária que resulta
na negação dos direitos humanos e do estado de direito como um todo, abrindo es-
paço para o assassinato em massa de um grande contingente de pessoas.
Por isso mesmo, a valorização da transformação social em si mesma, sem
que se dê a ela um sentido claramente emancipatório, especialmente depois do naci-
onal-socialismo, tem um alto potencial regressivo. Afinal, como veremos, para evitar
um desfecho monstruoso para qualquer processo de mudança social, Franz Neumann
mostra ser necessário defender normativamente a sua conformação à gramática pro-
funda do constitucionalismo, que estou apresentando neste livro sob a denominação
de liberdade de insurreição, buscando realizar, contra o totalitarismo, o projeto de
contenção de uma certa transformação social que se ponha em confronto com a
forma estado de direito. Ademais, o desenvolvimento da regulação de uma série de
práticas sociais hoje, como estamos debatendo ao longo de todo este livro, tem fugido
do direito para criar espaços de criação de normas livres do controle social. Também
quanto a este ponto, a crítica radical ao Constitucionalismo parece exigir uma relati-
vização.

O sentido do constitucionalismo

Como mostrou o historiador Hans Dippel, a Declaração de Direitos da Virgínia


de 1776, um dos textos centrais de revolução norte-americana, consolidou pela pri-
meira vez o vocabulário do constitucionalismo político contemporâneo em um do-
cumento organizado. Nenhuma das ideias presentes na declaração, diz Dippel, foi
inventada na ocasião, mas sua articulação em um documento coerente foi um fato
inédito (DIPPEL, 2007, 10).
Não por acaso, a Declaração da Virgínia influenciou todos os documentos
constitucionais que se seguiram a ela nos 200 anos seguintes. Com variações é claro,
dando maior ou menor importância a um ou outro deles, ou transformando alguns
deles em mera declaração de princípios, o vocabulário estabelecido nesta ocasião pas-
sou a marcar a política contemporânea desde então.
O documento teve como objetivo central declarar uma série de direitos de
titularidade de todos e todas, os quais deveriam servir de fundamento para o governo.
Uma “declaração de direitos” feita pelos “representantes do povo” que por sua vez
estavam reunidos em uma “convenção plena e livre” e não em qualquer assembleia
inespecífica qualquer. Os direitos declarados pertenciam ao povo e à sua descendência
e não apenas aos participantes da convenção, direitos estes que serviriam “de base e
fundamento do governo”, uma afirmação até então desconhecida da tradição política
(DIPPEL, 2007, 6-7).

114
O direito natural, como afirmado no documento, não se limitou a conferir
certos direitos e deveres, inerentes à natureza humana, de cujo exercício nenhum
pacto poderia vir a privar ou desapossar no futuro. Estes direitos foram declarados
como nascidos da vontade do povo, como estabelecidos por esta vontade, pois, afinal,
“todo o poder emana do povo”. Ao fazer esta afirmação, a Declaração de Direitos da
Virgínia proclamou ao mundo a soberania popular, os princípios universais e os di-
reitos inerentes à condição humana, declarados em uma constituição escrita como “a
base e o fundamento do governo” (DIPPEL, 2007, 7).
Pode-se afirmar portanto, com Dippel, que esta declaração estabeleceu as
dez características centras do constitucionalismo moderno e contemporâneo, quais
sejam: (1) a soberania popular; (2) direitos humanos; (3) governo representativo; (4) a
supremacia da constituição; (5) a separação de poderes; (6) o governo limitado; (7) a
responsabilidade e a possibilidade de controlar o governo; (8) a imparcialidade e a
independência dos tribunais; (9) o direito de reformar o governo;(10) o direito de
reformar a Constituição (DIPPEL, 2007, 10).
A Declaração dos Homens e dos Direitos dos Cidadãos francesa, elaborada
em 1789, foi influenciada por este vocabulário, adotando a racionalidade do constitu-
cionalismo presente na Declaração da Virgínia e em outros textos da revolução norte-
americana. O texto da Declaração francesa começa fazendo referência aos represen-
tantes do povo, aos direitos humanos, aos princípios universais e à soberania popular,
presente em seu famoso artigo 16: “Uma sociedade onde a garantia dos direitos não
for assegurada e a separação dos poderes estabelecida não tem constituição” (DIP-
PEL, 2007, 15).
A experiência constitucional francesa é importante também por apresentar,
pela primeira vez, a criação de “máscaras constitucionais”, como afirma Dippel, (2007,
18) – em meu vocabulário, uma figura de perversão do direito - que visavam ocultar a
concentração de poder. Nesse sentido, a Constituição do ano VIII (1799) concentrou
todo o poder nas mãos do Primeiro Cônsul, deixando de lado toda a construção po-
lítico-institucional do constitucionalismo nascente. A necessidade de adotar uma “fa-
chada constitucional” serviu de modelo para os regimes autoritários desde então, in-
clusive aqueles estabelecidos no século XX, evidenciando a força desta linguagem
para a organização de política.
O surgimento destas declarações de direitos e, logo a seguir, de Constituições
escritas que incluíam capítulos destinados a declarar direitos, definir a estrutura e o
modo de funcionamento do estado e estabelecer limites para o governo, é resultado
do processo de positivação dos direitos, surgido a par da consolidação dos estados
nacionais como protagonista da política moderna e contemporânea. Com efeito, um
dos elementos do processo de formação dos estados foi a concentração do poder de
dizer o direito em suas mãos, poder este que, na Idade Média, se encontrava disperso
em um pluralismo de fontes de direito e de jurisdições.

115
Como mostra António Manuel Hespanha (2012, 171-175) o direito da Idade
Média era marcado pela presença de cortes e costumes locais, regras e tribunais ecle-
siásticos, normas e juízes dos Reinos e Impérios, todas convivendo, nem sempre em
harmonia, sendo comuns a sobreposição de competências e o conflito entre normas
de origens diferentes. Este pluralismo de fontes e de jurisdições transformavam o
raciocínio jurídico, de fato, em uma técnica destinada a lidar com problemas jurídicos
sem pretensões sistemáticas.
O processo de organização e sistematização do direito, que culminou com a
criação dos Códigos e Constituições e com a concentração do poder de dizer o direito
nas mãos do Estado, é um dos resultados da ascensão da burguesia e dos pensadores
iluministas. A afirmação da lei como principal fonte de direito, com a eliminação do
poder dos costumes e do direito da Igreja em seu papel de regular a vida das socieda-
des, transforma a reflexão e a aplicação do direito em um raciocínio centrado no texto
das leis. Trata-se agora de procurar nas leis aquela mais adequada para solucionar
determinada controvérsia e simplesmente aplicá-la ao caso concreto.
Ora, este processo de concentração de poder nas mãos do Estado faz com
que sua vontade possa dar lugar a abusos. Afinal, não existem mais limites naturais,
transcendentais para o conteúdo das leis, que podem tornar lícito ou ilícito todo e
qualquer comportamento. Nesse sentido, a positivação do direito promove, de fato,
uma relativa separação entre direito e moral. Afinal, uma conduta que é considerada
hoje ilícita ou inconstitucional pode deixar de sê-lo amanhã, bastando para tanto que
as leis sejam modificadas.
A inexistência de limites de fato para a vontade do Estado pode resultar na
subordinação dos homens e das mulheres à vontade de um ditador ou de uma minoria,
que não encontrará, portanto, entraves para a sua dominação. O surgimento da tradi-
ção constitucionalista é, justamente, uma reação a este problema. As declarações de
direitos humanos em textos escritos, que também desenham as instituições do Estado
e afirmam a centralidade da soberania popular, visam criar entraves reais, obrigatórios,
coercitivos, à atuação do estado.
Alguns críticos do constitucionalismo afirmam que esta tradição tende a blo-
quear a política ao tentar submetê-la completamente ao direito, tornando impossível
fazer escolhas que não estejam detalhadamente previstas nas leis. E como a velocidade
do processo de modificar as leis não costuma ser capaz de responder adequadamente
à dinâmica das transformações sociais, este modo de organizar a política tenderia a
bloquear ações e mudanças constitucionais necessárias; também a adaptação do es-
tado a condições especiais, emergenciais ou simplesmente novas.
Em um ensaio extremamente interessante, “A Constituição federal: Uma
barreira para a política?” Dieter Grimm (2006, 125-135), jurista e juiz alemão, afirma
que a função da Constituição alemã é sim bloquear a política, mas não qualquer polí-
tica, apenas a política que não esteja de acordo com o projeto constitucional. Seu texto

116
realiza uma análise sumária, mas radical, do projeto da constituição alemã, expondo
as características centrais do federalismo alemão e de seu sistema partidário com a
finalidade de evidenciar em que sentido o texto procura conformar o processo político.
Mas é preciso considerar que o sentido do projeto constitucional pode estar
em disputa entre as forças sociais. Nem sempre é fácil, exceto quando nos situamos
em um nível muito abstrato de análise, definir o sentido das normas constitucionais.
Podemos todos e todas concordar que a Constituição protege a liberdade de expres-
são, mas para além dessa afirmação, qual seria o sentido da liberdade de expressão
nos diversos casos concretos?
Ademais, pode haver demandas sociais que excedam os limites do projeto
constitucional e coloquem em questão o texto constitucional, impondo mudanças
profundas no direito positivado. É certo que que as Constituições costumam prever
mecanismos de transformação constitucional, por exemplo, as emendas; ou admitir
mudanças no sentido de seu texto por meio do controle de constitucionalidade reali-
zado por Cortes Supremas. No entanto, críticos como Negri consideram que toda a
construção constitucional é conservadora ao buscar impedir a plena compreensão e
manifestação da soberania popular sob a forma de poder constituinte.
A história do constitucionalismo, como afirma Dippel, de fato, dá notícia de
vários momentos em que a garantia de algum dos elementos do constitucionalismo
ficou comprometida: soberania popular, direitos humanos, controle do governo, en-
tre outros. Mas será que estas limitações episódicas comprometem esta tradição como
um todo, tornando-a incompatível com qualquer transformação institucional mais ra-
dical? Nesse sentido, uma transformação radical só poderia ocorrer deixando de lado
a gramática política do constitucionalismo, tanto como instrumento de análise, quanto
como forma de organizar a política real?

O constitucionalismo como dominação

É o que parece sugerir o livro de Antonio Negri, “O Poder Constituinte”.


Segundo Negri, o poder constituinte é uma força ilimitada, “anômala”, que está ne-
cessariamente ligado à ideia de revolução. Os poderes constituídos do constituciona-
lismo procuram normalizar este poder com o objetivo de conter seu potencial de
promover a mudança. Para esta finalidade, utilizam as normas jurídicas, cuja fonte é,
justamente, o poder que tais normas pretendem conter (NEGRI, 2015, 1).
Partindo deste pressuposto circular, cabe notar que a ideia mesma de sobe-
rania popular já seria uma forma de conter a força do poder constituinte, que se ca-
racterizaria, justamente, por transbordar qualquer limite ou barreira jurídica. Ao afir-
mar a soberania popular como princípio, o constitucionalismo já revelaria, assim, seu
caráter essencialmente conservador.

117
Negri se põe, em seguida, a analisar em detalhes a tradição do pensamento
jurídico sobre o poder constituinte, em especial as obras de Georg Jellinek e de Hans
Kelsen. Para Jellinek, o poder constituinte nasce da autolimitação do poder, que se
dobra sobre si mesmo para criar uma disciplina para a política. No mesmo sentido,
Kelsen situa o poder constituinte fora do direito, atribuindo ao direito um fundamento
diverso, a saber, a norma fundamental. Como se vê, diz Negri, os dois autores situam o
poder constituinte fora do direito e condicionam a existência do estado de direito à sua
supressão ou sua absorção à normalidade institucional (NEGRI, 2015, 5-6).
Outros, segue Neri, consideram o poder constituinte como interno ao sis-
tema constitucional, como os autores que pensam a política como procedimento, por
exemplo, John Rawls. Ferdinand Lassale e Hermann Heller, ainda no começo do século
XX, também pensaram o poder constituinte de forma imanente. O primeiro afirmou
que a Constituição deve se adequar à realidade material em uma dinâmica de mudança
que é instaurada pelo poder constituinte, prévio e formador da ordem constitucional. Já
Hermann Heller afirma que o poder constituinte é imanente à estrutura do estado, fun-
cionando como motor endógeno da mudança constitucional (NEGRI, 2015, 6-7).
Finalmente, um terceiro grupo de autores pensa o poder constituinte como
simultâneo, coexistente e sincrônico à ordem constitucional. Por exemplo Max Weber,
para Negri, pensa o poder constituinte como situado entre o poder carismático e o
poder racional-legal. O poder constituinte é inovador como o poder carismático, ins-
tituindo o direito positivo, o qual normaliza o funcionamento da sociedade. Nesse
sentido, ele estaria situado na passagem da irracionalidade para a racionalidade, na
correlação entre a força inovadora do movimento social e a sua formalização no di-
reito. Na esteira de Weber, Carl Schmitt pensa o elemento formal do direito como
característico da constituição e o poder constituinte como princípio vital que promove
a inovação, cujo desenvolvimento resulta na ordem jurídica (NEGRI, 2015, 8).
Negri considera que todas estas formulações do poder constituinte falham
em captar o seu sentido, ao concebê-lo a partir da linguagem do direito público, mais
especificamente, da gramática do constitucionalismo. O primeiro grupo o vê como
força exterior que o direito capta, o segundo grupo o vê como imanente à dinâmica
normativa e, finalmente, o terceiro, como simultâneo à evolução do direito, mas de-
terminado por ela. Nas três versões, o destino do poder constituinte é ser transfor-
mado em poder constituído; é ser conformado pela ordem constitucional, perdendo
a sua força disruptiva, seu poder de transformação (NEGRI, 2015, 10).
A conversão do poder constituinte em elemento integrante do sistema cons-
titucional, para Negri, dentro dos limites do estado de direito, nega a sua natureza
mais essencial. O poder constituinte aponta para o porvir e por isso não pode ser
reduzido ao direito. Na verdade, Negri procura mostrar como pensar este poder a
partir das categorias do constitucionalismo faz com que seja impossível compreendê-

118
lo adequadamente, sendo necessário mudar o eixo de análise para abordá-lo como
fenômeno político propriamente dito.

Para um constitucionalismo crítico

A possibilidade de transformar as instituições por meio de uma revolução


que acabe com a exploração do trabalho marca é marca da tradição marxista. A de-
núncia de Marx do caráter conservador do estado liberal na visão de Hegel; um estado
que pretende promover a conciliação entre as classes sociais, mantendo oculta a ex-
ploração econômica, permitida pela propriedade privada dos meios de produção, faz
com que o pensamento marxista tenda a olhar estado e o direito como instrumentos
de dominação à serviço das classes dominantes. Este modo de ver o direito não deixa
alternativa: acabar com a dominação do trabalho sobre o capital significa destruir o
estado de direito, forma institucional comprometida com a dominação burguesa.
Autor da primeira metade do século passado e analista de primeira hora do
fenômeno nacional-socialista, Franz Neumann traz elementos para relativizar esta vi-
são. Sua obra procura mostrar o potencial emancipatório do estado de direito, permi-
tindo que pensemos a tradição constitucionalista de maneira crítica. Nesse sentido,
seu livro O Império do Direito (NEUMANN, 2013), promove a reconstrução teórica de
toda a tradição jurídica ocidental com a finalidade de evidenciar seu cerne progressista,
qual seja, a sua capacidade de fazer com que o poder seja obrigado a se justificar
perante os cidadãos e cidadãs.
Esta característica do estado de direito nasce, justamente, como as revolu-
ções burguesas e suas declarações de direitos humanos. A afirmação da igualdade de
todos perante o poder e a exigência de eliminação de qualquer forma de privilégio,
faz com que o estado seja obrigado a se justificar perante todos os cidadãos e cidadãs.
Nenhuma forma de dominação de uma maioria por uma minoria pode ser legítima,
natural, inquestionável quando consideramos os homens e mulheres como iguais. O
domínio da aristocracia sobre o restante da sociedade, o domínio dos clérigos sobre
a cristandade advinha de características especiais atribuídas a estes dois grupos. A justi-
ficativa para obedecer a seu poder estava fundada na vontade de deus ou na tradição.
Ora, em uma situação de igualdade, não pode haver outro motivo para obe-
decer ao poder senão a vontade dos homens e das mulheres, ou seja, a soberania
popular. Entre o poder do estado, de um lado, e os cidadãos, de outro, não há relação
se superioridade ou alguma marca sagrada e sim um ato de consentimento. Um ato
de consentimento que precisa ser universal, ou seja, precisa incluir todos os membros
da sociedade para que seja considerado legítimo.
A radicalidade dessa ideia era muito clara já para os revolucionários franceses
que disputaram as formulações do texto da Declaração Universal dos Direitos do

119
Homem com receio de que ela fosse interpretada em consonância com ideias socia-
listas, o que efetivamente ocorreu na esteira da radicalização da Revolução Francesa
impulsionada pelas classes populares (LEFEBVRE, 2019, 181-184. VOVELLE, 2019,
67-74).
Como já foi exposto na primeira parte deste capítulo, com o advento do
constitucionalismo, o fundamento de legitimidade do poder passa a ser a soberania
popular, que passa a produzir textos escritos, declarações de direitos e constituições
que pretendem representar os interesses de toda a sociedade, de todos os homens e
mulheres, sem admitir nenhuma espécie de privilégio.
A necessidade de justificação do poder perante a sociedade, elemento essen-
cial desta tradição política, abre espaço para que os agentes sociais promovam modi-
ficações importantes nas instituições formais. Se a constituição deve abarcar todos os
interesses, se ela deve levar em conta o ponto de vista de todos os cidadãos e cidadãs,
se ela se apresenta como fundamento de legitimidade da universalidade dos interesses,
é de esperar que novas demandas sociais sejam continuamente incorporadas pelas
instituições formais (NEUMANN, 2013, 39).
Foi justamente com este fundamento que a classe operária e todos os movi-
mentos sociais que se seguiram passaram a reivindicar direitos, buscando ampliar a
lista de direitos humanos fundamentais. Em determinado momento histórico, a desi-
gualdade econômica passou a ser percebida como uma opressão, também as desigual-
dades de gênero e de raça. Afinal, tais desigualdades estabelecem relações de privilégio
em que uma parcela da sociedade goza de um patamar diferente de direitos e de poder
em relação a outra.
Todas estas opressões, foram sendo traduzidas para a linguagem do consti-
tucionalismo e se tornaram reivindicações de direitos, justamente, em nome da igual-
dade prometida pela ideia de estado de direito, ou seja, pela ideia liberal de constitui-
ção. Nesse sentido, mostra Neumann, a tradição do constitucionalismo pode ser vista
como um mecanismo capaz de abrir espaço para reivindicações de novos direitos.
Nesse sentido, ele é um elemento de perturbação do desenrolar normal da política e
não apenas uma forma destinada a conter o poder transformador da soberania popu-
lar (RODRIGUEZ, 2013b).
Mesmo assim, a questão posta por Negri permanece. A visão jurídica do que
ele chama de poder constituinte, esta capacidade de inovação, de transformação, no
limite, de destruição institucional em nome de uma nova ordem política e de uma vida
diferente; de um mundo novo e mais justo, não restaria, de fato, domesticado pelo
constitucionalismo? Se é verdade que é possível promover mudanças por esta via, não
seriam elas apenas mudanças parciais, desimportantes, incapazes de modificar radi-
calmente as instituições e a vida?
Neste ponto da argumentação, ganha centralidade a obra Behemoth e a análise
da ascensão do nacional-socialismo feita por Neumann em “O Império do Direito”.

120
Logo no prefácio de O Império do Direito nosso autor caracteriza a tradição jurídica
ocidental como uma faca de dois gumes no que diz respeito à proteção dos interesses
da burguesia (NEUMANN, 2013, 40). A afirmação da universalidade serviu à esta
classe até o momento em que seus interesses se confundiam como o universal. Pro-
teção de direitos individuais, proteção da propriedade privada, controle do governo
pela sociedade, liberdade de contratar: enquanto era este o conteúdo das constituições,
o constitucionalismo liberal funcionou sem contestação.
No entanto, quando a classe operária conquistou espaço no Parlamento e
começou a ditar o conteúdo das leis, o constitucionalismo passou a ser contestado,
em especial no que diz respeito aos limites que deveriam ser impostos à soberania
popular. O direito ocidental e seu mecanismo de produção de reivindicações de novos
direitos começam a se tornar incômodos para os interesses da burguesia (NEU-
MANN, 2013, 40).
Como já exposto no primeiro capítulo deste livro, conceitos como “função
social da propriedade”, a criação de mecanismos de controle da concorrência e o sur-
gimento de direitos sociais, em especial o direito o trabalho, põem em xeque a liber-
dade de contratar e o direito de propriedades no sentido burguês, institutos centrais
para o funcionamento do mercado livre. Afinal, determinados contratos passam a ser
proibidos porque ameaçam a livre concorrência ou porque não cumprem um patamar
mínimo de direitos sociais e a livre disposição sobre a propriedade passa a ser limitada
pelo interesse público (RODRIGUEZ, 2013b).
Esta incômoda proliferação de direitos, os quais passam a ameaçar o sentido
tradicional de propriedade privada e a questionar a hierarquia entre trabalho e capital,
foi um dos fatores que levou à perda de apoio do estado de direito. O processo de
ascensão e consolidação do nazismo foi certamente marcado por fatores variados, de
natureza econômica, política, social e psicológica. No entanto, dentre os fatores que
levaram à sua ascensão, está o combate ao estado de direito e a defesa dos direitos no
sentido liberal-burguês, contra o texto da Constituição de Weimar.
Mesmo antes do advento do nazismo, em um texto fundamental, “O Ideal
Social das Cortes do Reich”, Otto Kahn-Freund mostrou como os juízes deixaram de
aplicar o texto da Constituição de Weimar, negando validade ao capítulo dos direitos
sociais em nome da proteção dos direitos individuais. Uma parte significativa dos
juízes das Cortes do Reich simplesmente negava constitucionalidade a uma parte do
texto da Constituição, afirmando que o capítulo dos direitos sociais estava subordi-
nado aos direitos humanos individuais, em um desrespeito explícito ao texto apro-
vado pela Assembleia Constituinte (KAHN-FREUND, 1981).
O nacional-socialismo, na condição de regime político, diz Neumann, se ca-
racterizou pela destruição da tradição constitucionalista como a conhecemos. Uma
das características centrais deste sistema foi, justamente, a eliminação da tensão exis-
tente entre estado e sociedade e a criação de uma suposta comunidade de interesses

121
entre todos os alemães, representados pela ideia de nação. A ideia de nação, mostra
Neumann, substitui a ideia de constituição como fundamento do poder, deixando de
lado uma noção racional e aberta à transformação social para adotar uma noção irra-
cional e avessa a qualquer tipo de contestação (NEUMANN, 1944, 98).
Todo o direito nacional-socialista foi marcado por esta noção. Por exemplo,
o direito penal passou a considerar como crime todo ato que contrariasse os interesses
do Reich, abrindo espaço para uma ampla manifestação da subjetividade dos juízes,
os quais eram recrutados e disciplinados para seguir as regras fixadas pela elite do
poder. Sob o nacional-socialismo, a tensão entre sociedade e estado, entre constitui-
ção e soberania popular, é totalmente desarmado em nome da afirmação dos interes-
ses da nação, considerada a expressão maior da unidade do povo alemão.
Foi justamente a destruição da tradição do constitucionalismo pelo regime
nacional socialista, mesmo que este regime tenha mantido vigente, como letra morta,
a “máscara constitucional” da Constituição de Weimar, que levou Franz Neumann a
repensar o direito e suas possibilidades críticas em contextos de desigualdade. Pri-
meiro, diante dos riscos levantados pela barbárie nazista ao arrepio da tradição cons-
titucionalista, valeria a pena abrir mão desta tradição em nome da transformação so-
cial? E, nesse sentido, a visão jurídica do poder constituinte, como quer Negri, não
pode ria ser lida como um projeto emancipatório e não como uma incapacidade de
captar as características essenciais este poder?
Nesse sentido, diante dos riscos da barbárie nazista, que não eram conheci-
dos por Marx e pela tradição política ocidental até então, não seria o caso de apostar
na gramática do constitucionalismo como estratégia de transformação social, radica-
lizando suas possibilidades emancipatórias? Valeria a pena deixar de lado a proteção
dos direitos fundamentais e do controle do governo e do Estado, por exemplo, em
nome da edificação de uma nova ordem política? Afinal, não existe garantia de que a
transformação que vá eclodir não seja tão monstruosa quanto o regime nazista.

Democracia e direito

Ao argumento anterior, podemos acrescentar o seguinte, agora recorrendo


às análises de Wiliam Scheuermann em seu texto “Franz Neumann, um Jurista da
Globalização?” (2001). O constitucionalismo tem perdido poder diante das transfor-
mações promovidas pela globalização. Os cidadãos e as cidadãs dos estados nacionais
têm cada vez menos controle sobre suas próprias vidas, pois não tem mais poder de
participar de uma série de decisões que os afetam nos mais variados campos.
Por exemplo, a ação das empresas transnacionais é cada vez menos sujeita
ao controle dos estados nacionais, afinal, estas empresas podem mover seu parque
produtivo para qualquer lugar em qualquer momento, tirando dos Estados a força de
cobrar tributos e impor o cumprimento de direitos trabalhistas. Da mesma maneira,

122
a diminuição do controle sobre a circulação de capitais no mundo tem concentrado
poder nas mãos dos grandes investidores, que podem impor suas condições para fi-
nanciar o déficit crescente dos Estados nacionais, causado, em grande parte, pela di-
ficuldade de cobrar impostos em um ambiente globalizado.
Como se pode ver, uma boa parte do processo de globalização se caracteriza
por tentar sabotar o mecanismo de criação de direitos inscrito na tradição do consti-
tucionalismo ocidental, negando poder para a soberania popular. Diante da dificul-
dade de criar instituições internacionais e transnacionais capazes de impor regras a
estados e agentes globais, estão sendo criados espaços de puro arbítrio que eviden-
ciam, por negação, o incomodo poder subversivo do constitucionalismo.
Em um quadro como este, a crítica radical a esta tradição pode terminar por,
paradoxalmente, fortalecer os interesses de empresas transnacionais e do capital fi-
nanceiro, para começar; contribuindo para aprofundar um processo de globalização
sem controle, que faz expandir as zonas de autarquia em detrimento da soberania
popular e do respeito aos direitos humanos. Não se trata, é claro, de negar os aspectos
positivos da globalização, mas sim de apontar seu caráter autoritário no que ele contribui
para suprimir o poder dos homens e mulheres de controlarem a sua própria vida.
Mas Negri poderia insistir e, nesse ponto da exposição, afirmar que, mesmo
assim, compactuar com a visão constitucionalista da política é um entrave a nossa
imaginação. Não deveríamos ser capazes de conceber uma forma política completa-
mente nova, que não estivesse marcada pelas contradições que apontamos aqui? Não
seria necessário estabelecer um zero absoluto, um ponto de partida novo, que nos
colocasse fora deste modo de pensar, viver e fazer política?
Cabe aqui retomar a reflexão de Neumann sobre o nacional-socialismo e re-
afirmar a importância de seu modelo crítico. É possível dar um salto sobre a própria
sombra? Alçar a si mesmo acima da imaginação de nossa época para criar uma política
inteiramente nova? Nesse sentido, o novo não irá surgir, como sugere Seyla Benhabib,
em uma formulação muito produtiva, ainda que isolada em sua obra, das “iterações
democráticas” (BENHABIB, 2006, 48) em que a sociedade parece repetir a mesma
gramática institucional, mas, na verdade, acrescenta elementos novos, que podem pro-
mover mudanças ao longo prazo?
Por isso mesmo, ao invés de aguardar uma redenção completa, alimentada
por uma imagem muito próxima da salvação cristã, talvez seja mais produtivo exami-
nar as contradições e inovações imanentes à atual gramática da política, estudar a ar-
raia miúda do direito e das instituições formais como elas estão sendo reafirmadas e
parcialmente renovadas pelos conflitos sociais com o objetivo de encontrar o novo
justamente ali, na empiria de um processo que apenas aparentemente repete o que já
havia sido dito e feito. Com a vantagem de não abandonar, como se fosse filho do
Demônio ele mesmo, a proteção dos direitos humanos e do controle do governo
contra qualquer ato de arbítrio.

123
Nos últimos anos, por exemplo, as ocupações de prédios públicos e escolas
que se espalham pelo Brasil parecem ser um bom exemplo dessas iterações democrá-
ticas. Se, por um lado, tais ocupações procuram fazer valer direitos sociais já consa-
grados na Constituição, como o direito à educação e o direito à educação, elas também
apontam para um desejo de autogestão, de controle social da vida e do poder, que
não se confunde com uma demanda por direitos e ponta para a instituição de novas
instituições formais em relativa continuidade e não em completa ruptura com a gra-
mática do constitucionalismo. Formas de vida não hierárquicas e autogeridas, como
mostra o livro “Escolas em Luta”, (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2015) re-
trato em primeira mão dos acontecimentos mais recentes nesse campo em São Paulo
no ano de 2015.
Pode ser que, em um futuro próximo, a reiteração deste tipo de ação coletiva,
manifestação de liberdade de insurreição, ligação institucional entre o instituinte e o
instituído, termine por transformar radicalmente as instituições formais, por exemplo,
para alterar o sentido do que significa gerir o Estado, sem romper completamente
com a tradição do constitucionalismo, como alias, ocorreu com a edificação dos esta-
dos de bem-estar social, hoje sob severo ataque por parte de forças interessadas em
implementar uma modelo neoliberal de economia.
No outro extremo, está a possibilidade de assistirmos à instituição de um
estado de não-direito em que poder e dominação terminam por se identificar diante
da impossibilidade de influir no processo de criação de normas, seja para referendá-
las, seja para transformá-las. Para ter clareza sobre a eventual efetivação destes dois
extremos, é importante saber diferenciar, em nosso contexto, poder de dominação.

124
Capítulo 5 – Poder e Dominação

Introdução

“Uma teoria política conformista não é teoria”, afirma Franz Neumann


(NEUMANN, 2013,3) em um de seus textos mais conhecidos, “O conceito de liber-
dade política”, publicado em 1952, mas ainda pouco estudado em toda a sua com-
plexidade. Com efeito, não há notícia de nenhuma interpretação ou apropriação es-
pecífica deste texto, exceto menções esparsas em histórias da Teoria Crítica, a des-
peito da extrema utilidade dos conceitos que Neumann desenvolve para a compre-
ensão dos problemas de sua época e dos contemporâneos, o que será demostrado ao
longo deste artigo.
Neumann abre o texto afirmando que existem basicamente duas abordagens
possíveis do fenômeno do poder. A primeira delas dedica-se a descrever o poder
como um fenômeno com a finalidade de decifrar como os mecanismos de poder
funcionam, ou seja, sua preocupação é desvendar como se dá a produção de obedi-
ência nos diversos regimes políticos. A segunda abordagem, por sua vez, se propõe
a investigar as circunstâncias em que o poder pode ser exercido para além de inte-
resses meramente egoístas; em nome de interesses universais, na tradição da filosofia
política clássica.
Neste segundo caso, trata-se de perguntar por intermédio de quais mecanis-
mos e com fundamento em que critérios o poder pode vir a contemplar os interesses
de todos e todas as interessadas em seu exercício. Esta abordagem do poder, nos
explica Franz Neumann, remonta a uma tradição iniciada por Platão e Rousseau,
autores preocupados com questões normativas, ou seja, preocupados em conceber
maneiras de exercitar o poder político de acordo com critérios capazes de diferenciar
o exercício legitimo do poder da mera dominação.
A primeira abordagem do poder, segue Franz Neumann, aceita-o como “um
dado ontológico, um fato natural” (NEUMANN, 2013, 1). Neste caso, a teoria está
preocupada apenas em elucidar as várias modalidades de legitimação política e sua
função parece ser apenas racionalizar, esclarecer os termos em que se dão as relações
de poder existentes. A política, assim compreendida, é um conjunto de fatos que
servem para produzir obediência e devem ser observados e organizados coerentemente.

Desse modo, a validade de uma teoria é determinada por um critério pragmático


-utilitário, em função da assistência que ela oferece para a defesa ou a conquista

125
de uma posição de poder existente, tendo como critério de verdade o seu su-
cesso propagandístico-manipulativo. (NEUMANN, 2013, 1)

A segunda abordagem do poder, por sua vez, está preocupada com a corre-
ção, com a justiça, com a definição de fundamentos para o seu exercício. Como diz
Neumann, de maneira muito eloquente, uma visão puramente descritiva, que encare
o poder apenas como uma estratégia, repele o homem comum. De acordo com o
autor, os homens e mulheres comuns acreditam que o poder deva ser exercido com
base em valores considerados justos, valores que contemplem os interesses de todos
e de todas aqueles e aquelas submetidas ao poder.

Por distinguir a promoção de uma ideia da propaganda para a venda de um sabão,


o homem comum se recusa a aceitar o ponto de vista de que a legitimação do
poder político é uma questão de preferência individual. Como homem político,
ele sente profundamente que sua preferência deve ser parte de um sistema de
valores universalmente válido, um sistema de direito natural ou de justiça, de
interesse nacional ou mesmo de humanidade. (NEUMANN, 2013, 3)

Como diz Axel Honneth, os teóricos críticos em geral partilham de um es-


quema básico de crítica ao capitalismo que percebe neste sistema uma forma de or-
ganização social “em que prevalecem práticas e modos de pensamento que impedem
a utilização social de uma racionalidade que já se tonou possível pela história. E ao
mesmo tempo, essa obstrução histórica [essa patologia, minha observação] apresenta
um desafio moral ou ético, porquanto impede a possibilidade de alguém se orientar
em termos de um universal racional, para o qual o ímpeto somente poderia proceder
de uma racionalidade completamente realizada”. (HONNETH, 2008, 407).
Tais obstáculos à realização da racionalidade, continua Honneth, produzem
sofrimento nos indivíduos, um sofrimento que deve ser empiricamente investigado
e questionado em seu potencial de transformação da realidade. Como mostra Neu-
mann no texto que analisado a seguir, a sujeição ao poder totalitário, o medo do
mundo externo e a alienação em relação à ação social e política são as três formas de
sofrimento social que limitam a autonomia dos homens e mulheres, as quais os três
elementos da liberdade visam combater. Homens e mulheres manifestam historica-
mente seu inconformismo com toda teoria política que aceita o poder como fato
natural ao construir coletivamente a possibilidade da liberdade em seus três elemen-
tos, os quais servem de contraprova e expressão tanto de seu sofrimento quando da
possibilidade real de emancipação.
Nesse sentido, não se trata de um sofrimento subjetivo, mas sim de um
sofrimento partilhado e encarnado em instituições formais que buscam afastar o
medo e produzir efeitos reais sobre o comportamento social. É certo que a política
também é uma luta pelo poder, “mas, nesta luta, pessoas, grupos e estados podem

126
representar mais do que seus interesses egoístas”, diz Franz Neumann. “Alguns po-
dem realmente defender os interesses nacionais ou aqueles da humanidade [como os
elementos da liberdade mostram empiricamente, observação minha] enquanto seus
oponentes apenas racionalizam suas demandas egoístas e particulares” (NEUMANN,
2013, 3),
Quem age desta forma, afirma Neumann, pensa o poder como uma estra-
tégia, como um instrumento capaz de gerar obediência. De sua parte, aqueles, que
pensam o poder como fenômeno valorativo, como uma maneira de consentimento
com base em valores partilhados, consideram que ele deve ser avaliado como justo
ou injusto, como poder legítimo ou como mera dominação.
Apenas nesse segundo sentido, diz Neumann, pode-se dizer que a teoria é
capaz de criticar o poder e não apenas de descrevê-lo. E é justamente nesse ponto
de vista que se situam os autores inspirados pelo pensamento produzido pelo Insti-
tuto de Pesquisa Sociais de Frankfurt. Dos autores que se dedicaram a temas políticos
e jurídicos, podemos citar Franz Neumann e Otto Kirchheimer para a primeira me-
tade do século XX e, mais recentemente, Jürgen Habermas, Seyla Benhabib, Iris Ma-
rion Young, Axel Honneth, Nancy Fraser e Rainer Forst.
Como mencionado acima, ganhou destaque entre estes autores Jürgen Ha-
bermas e sua obra Direito e Democracia: Entre Facticidade e Validade, livro responsável
por recolocar a política e o direito como elementos centrais para este campo da tra-
dição crítica. O livro aborda o problema do poder no mesmo sentido daquele fixado
por Franz Neumann, qual seja, promove uma reflexão sobre os mecanismos e crité-
rios capazes de proporcionar um exercício legítimo do poder, não a mera dominação
de uma parte da sociedade pela outra.
A preocupação com a qualidade do poder, tanto em Neumann quanto em
Habermas, parte de diferentes diagnósticos de seu tempo histórico. No entanto, em
linha gerais, os dois estão preocupados, ainda que com a distância de quarenta anos,
com a predominância de uma visão puramente descritiva do poder no campo da
teoria política, justamente em uma época em que fenômenos de dominação de
grande envergadura estavam se desenrolando diante de seus olhos.
Com efeito, a falta de preocupação da teoria com o fenômeno da dominação
deixa os estudiosos sem instrumentos para criticar os acontecimentos de sua época
e abandona os homens e mulheres a si mesmos na tentativa de elaborar as razões de
seu sofrimento, produzindo uma abordagem da política que tende ao conformismo,
à mera aceitação do poder em sua forma atual.
No caso de Franz Neumann, como veremos a seguir, sua preocupação cen-
tral era o avanço do Maccartismo e suas práticas de poder autoritárias. Para Jürgen
Habermas o problema era o avanço do processo de globalização neoliberal nos anos
90, processo que pôs em xeque o poder dos estados nacionais, em especial os estados

127
sociais europeus, tirando dos cidadãos e cidadãs o poder de determinar o rumo de
suas vidas, fatos aos quais o autor faz alusão no prefácio de Direito e Democracia....
Diante de fenômenos desta magnitude, deixar de praticar uma teoria política
crítica, incapaz de diferenciar objetivamente poder e dominação, como diz Franz
Neumann, significa compactuar com a última. Para Neumann e para Habermas, diga-
se, dominação significa “objetificação” de homens e mulheres; sua redução a meros
objetos passivos do poder. Na linguagem de Habermas, estamos diante do avanço
do sistema sobre o mundo da vida, o agir instrumental sobre o agir comunicativo e,
na linguagem de Neumann, da alienação de homens e mulheres diante do poder visto
como um mecanismo opaco, alheio à sua vontade.
Os dois autores buscam maneiras de pensar o exercício do poder político
com fundamento em critérios universais em um contexto moderno, ou seja, em um
contexto marcado pelo pluralismo de valores e de formas de vida. Diante da inexis-
tência de valores comuns a toda a humanidade, ou mesmo a uma determinada co-
munidade, capazes de fundar a autoridade do poder, sejam eles oriundos de uma
tradição qualquer ou de fontes metafísicas, como será possível pôr a questão do po-
der desta maneira?
Dizendo de maneira mais sucinta, como é possível derivar normatividade
da mera facticidade? Como é possível superar uma visão meramente descritiva do
poder em um contexto em que as normas não estão mais fundadas em valores co-
muns? Em que as normas não passariam de opiniões dos indivíduos e forças sociais?
Na falta de valores universais, como seria possível encontrar critérios para criticar o
poder e distinguir poder de dominação?
Pois é justamente este o argumento utilizado por Max Weber em “A Política
como Vocação” (WEBER,1993) para justificar sua abordagem, que consiste na cons-
trução de modelos típico-ideais de dominação legítima a partir de um extenso estudo
sobre as diversas modalidades de exercício de poder. Na falta de valores transcen-
dentes, diz Weber, na falta de uma tradição comum à qual a humanidade possa re-
correr para fundamentar o poder, diante do politeísmo de valores, só restaria ao ana-
lista buscar compreender as várias maneiras de exercer a dominação legítima e orga-
nizar tal saber em modelos compreensivos, sem fazer qualquer juízo de valor sobre
quais deveriam ser as finalidades da política.
Dito isso, cabe esclarecer que o objetivo deste capítulo é apresentar a visão
de Franz Neumann sobre o problema do poder e da dominação, apontando suas
características centrais, o diagnóstico do tempo ao qual ela responde e sua utilidade
para os nossos tempos. Para realizar esta tarefa, nos concentraremos no texto “O
conceito de liberdade política”, que apresenta seu modelo crítico de maneira mais
desenvolvida, ainda que em estado de esboço, afinal Neumann faleceu no ano sub-
sequente à publicação deste texto, 1954, deixando o trabalho sem desdobramentos.

128
Importante dizer também que a bibliografia sobre Neumann e, especificamente, so-
bre este texto, é escassa, ou melhor, inexistente.
O presente escrito talvez seja a primeira leitura organizada de “O conceito
de liberdade política” para identificar sua construção conceitual, útil para compreen-
der os problemas de sua época e problemas contemporâneos.

OS ELEMENTOS DA LIBERDADE
Liberdades e patologias sociais da liberdade.

A teoria política para Neumann busca reatar com a tradição clássica, em es-
pecial Platão e Rousseau, deixando de lado a tradição puramente realista, represen-
tada por Maquiavel e Weber. Este movimento, na direção de um pensamento nor-
mativo sobre a política, ou seja, de uma teoria capaz de diferenciar poder de domi-
nação, é justificado pelo autor por seu diagnóstico de tempo.
Na formulação inicial deste problema, que abre o texto, Neumann afirma que
o homem de sua época se sente alienado em relação ao poder, por ser tratado como
um mero objeto de dominação. Esse mal-estar do “homem comum”, nas palavras
do autor, é o ponto de vista a partir do qual deve ser construída uma teoria crítica da
política. Ao homem comum repugna a mera propaganda, afirma o autor, ele é capaz
de identificar quem defende interessas nacionais e universais.
Mas identificar tais interesses, ocupar tal ponto de vista, é a maior dificuldade
da política em um contexto de pluralismo de valores. Na formulação de Neumann,
este ponto de vista se identifica com a realização da liberdade política. Em suas pa-
lavras, a verdade da política é a liberdade política, ou seja, criticar a política significa
refletir sobre como seria possível realizar a liberdade. Mas o que significa liberdade
para Neumann?
Para o autor, a liberdade é composta de três elementos, o jurídico, o cognitivo
e o volitivo. Os três elementos se complementam e se articulam para realizar a liber-
dade política. Sumariamente, para Neumann, o elemento jurídico serve para limitar
o poder, afastando a patologia da autarquia que consiste na dominação completa das
pessoas pelos organismos de poder, pouco importa se do estado ou de um poder de
origem social.
No entanto, o direito não é suficiente para realizar a liberdade, afinal, pode
haver regimes plenamente legais, justificados por leis, que tratam seus cidadãos e
cidadãs como objetos de poder, por exemplo, algumas monarquias. Também pode
haver regimes de dominação privados fundamentados em normas, por exemplo, nor-
mas contratuais. Por isso mesmo, não devemos valorizar excessivamente o elemento
jurídico para não recair em uma visão legalista que nos impeça de desmascarar a do-
minação e realizar a liberdade.

129
O elemento cognitivo, por sua vez, aponta o caminho da liberdade por fazer
diminuir a patologia que consiste no medo do homem e da mulher diante do mundo
externo, da natureza, da sociedade e das estruturas políticas. Para compreender que
todos estes fenômenos são produto da ação humana é necessário um trabalho de
desnaturalização e historicização dos mesmos, realizado em parte pela teoria.
No entanto, aqui também a excessiva valorização do elemento cognitivo pode
produzir a patologia da naturalização. Pensar os fenômenos humanos e sociais como
totalmente compreensíveis, como totalmente redutíveis à teoria pode fazer com que
o poder seja exercido com fundamento em razões inquestionáveis. O poder que se
baseia em uma visão assim, que postule conhecer a essência da natureza, da sociedade
e das estruturas políticas não admite divergência em relação aos seus ditames; afinal,
ele seria capaz de falar em nome de verdade absolutas.
Finalmente, o elemento volitivo é aquele capaz de transformar a liberdade em
uma iniciativa do homem e das mulheres e não na dádiva de alguém ou de alguma
força externa à sociedade. Nesse sentido, Neumann entende que a única forma de
desenvolver estes elementos é promovendo a participação ativa de todos os homens
e mulheres nas atividades políticas, para evitar a patologia da alienação.
No entanto, aqui também podemos dizer que a excessiva valorização deste
elemento da liberdade pode levar ao que Neumann chama de voluntarismo utópico, uma
patologia que leva homens e mulheres a imaginar ser possível efetivar qualquer visão
da liberdade em todo e qualquer contexto, independentemente do que as diversas
ciências digam sobre ele.
Nos três casos, como veremos a seguir, estamos diante de elementos que se
constituem histórica e intersubjetivamente, ou seja, são resultado da interação dos
homens em conflito em determinado contexto histórico. A análise da liberdade por
Neumann consiste em uma exposição histórica da gênese de cada um de seus ele-
mentos, ainda que bastante sucinta, orientada pela ordem conceitual que seu modelo
crítico confere a esse material. O autor não oferece uma definição teórica abstrata de
cada um deles: o surgimento dos três elementos e de suas articulações está direta-
mente ligada à movimentação dos agentes sociais na história, que produziram tais
categorias no contexto de seus conflitos, as quais podem ser abstraídas da realidade
concreta em função dos objetivos do teórico crítico de construir uma teoria política
crítica.
Afinal, Franz Neumann se coloca, explicitamente, do ponto de vista do ho-
mem e da mulher comuns, partilhando do seu sofrimento com a objetivação promo-
vida pela autarquia do poder. Diante desta situação, sua tarefa passa a ser identificar
as razões deste sofrimento, que é individual, mas também é socialmente produzido
e partilhado, e pode ser identificado como fenômeno coletivo com a exposição dos
atos de resistência à autarquia do poder, encarnado na gênese dos três elementos da
liberdade.

130
A experiência social da autarquia, do medo e da alienação, diga-se, exigem de
Neumann uma teoria da subjetivação, tarefa que “O conceito de liberdade política”
não se propôs a levar adiante. Em “Angústia e Política”, uma reflexão, também inicial
de Neumann sobre estes problemas, encontramos sua formulação inicial sobre a re-
lação dos sujeitos e da subjetivação como o direito e com a política.

Direito e comunicação

O primeiro elemento da liberdade, que oferece um primeiro critério para


diferenciar poder e dominação, é o elemento jurídico, engendrado nas lutas entre a
burguesia e a aristocracia e, a seguir, entre a burguesia e a classe operária. Neumann
faz uma breve reconstrução da gênese da liberdade jurídica com a finalidade de de-
monstrar sua existência e seu sentido, análise que incorpora boa parte do material já
analisado por ele no livro de 1936, O Império do Direito.
Sua reconstrução identifica a liberdade jurídica com a liberdade negativa e
menciona o pensamento de Hobbes e de Kant como característicos desta maneira
de encarar a liberdade, a qual resulta na contraposição entre estado e indivíduo. A
seguir, Neumann mostra como estas ideias se transformaram em instituições políti-
cas, ou seja, se transformaram em direito positivado pelo estado.
Este ponto é importante para compreender como Neumann é capaz de jus-
tificar sua visão do poder e da dominação em um contexto de politeísmo de valores.
A gênese da liberdade negativa é uma gênese teórica e institucional ao mesmo tempo,
ela se desenrola no âmbito das teorias políticas que se sucedem ao longo da história
e, concomitantemente, no âmbito da construção conflitiva das instituições. Nesse
sentido, a constituição do elemento jurídico também depende da motivação dos
agentes sociais que edificam as estruturas do Estado. São ideias e instituições que,
por assim dizer, estão lá, situadas no desenrolar da história ocidental.
O elemento jurídico faz avançar a liberdade ao proteger a sociedade do to-
talitarismo. Mas faz tal coisa à custa de naturalizar uma contraposição entre estado e
indivíduo:

O elemento negativo não pode ser ignorado – isto levaria a aceitação do totali-
tarismo – mas ele, por si mesmo, não explica adequadamente a noção de liber-
dade política. Traduzido em termos políticos, o aspecto negativo da liberdade
necessariamente conduz à fórmula do cidadão contra o Estado. (NEUMANN,
2013, 4),

Neumann explica que a liberdade jurídica pressupõe o individualismo filo-


sófico, a visão de que “o homem é uma realidade completamente independente do
sistema político no qual vive” (NEUMANN, 2013, 5). Por esta razão, nesta formu-
lação, o poder político será sempre estranho ao homem: o homem não se confunde

131
completamente com o Estado, não se define completamente como um animal polí-
tico, e o estado não abarca completamente o indivíduo.
Esta ideia está presente nos direitos individuais positivados nas Constitui-
ções, as quais, para fins práticos, quase se confundem com a liberdade jurídica, a qual
só tem efeitos sociais quando institucionalizada em estados de direito. Como diz
Neumann:

Com o surgimento do estado e o monopólio institucional dos meios de coerção,


“direito natural” ou “direitos naturais inalienáveis” possuem um sentido político
somente se forem reconhecidos pelos órgãos do Estado – e, nesse sentido, eles
se tornam direito positivo. Este é precisamente o caso dos direitos civis quando
incorporados em uma constituição escrita ou reconhecidos, como no sistema
inglês, na prática jurídica e constitucional. As teorias filosóficas que dizem res-
peito aos direitos civis podem ter moldado sua promulgação e podem ainda ser
necessárias para interpretá-los em situações ambíguas, mas elas não determinam
sua validade legal. (NEUMANN, 2013, 7)

Estes direitos garantem a proteção de uma esfera de liberdade em relação


ao estado, mas não se trata de uma proteção absoluta. O estado pode intervir sobre
ela, desde que prove que pode fazê-lo legitimamente, ou seja, com base em leis cria-
das pelo parlamento. E tais atos de intervenção podem ser controlados pelos tribu-
nais com fundamento nas mesmas leis.
O direito positivo, Neumann mostra, não pode ser compreendido como
mera vontade de Estado, pois, se assim fosse, ele não se prestaria a proteger os indi-
víduos. Se tudo o que o Estado quiser for considerado direito, o direito se transforma
em mero instrumento do poder. O direito positivo só é capaz de proteger os indiví-
duos do estado se ele for geral, ou seja, se ele assumir a forma de normas universais.
Vejamos o porquê.
A generalidade expressa um julgamento geral do Estado sobre o comporta-
mento dos indivíduos, também considerados em geral. Não se trata de um juízo so-
bre uma pessoa em concreto, mas sobre uma generalidade dos cidadãos e cidadãs.
Além disso, em sua generalidade, o direito deve ser o mais específico possível. Ele
deve prever comportamentos da maneira mais clara e precisa possível. Desta maneira,
torna-se possível prever com exatidão como o estado irá agir em relação aos indiví-
duos nas ocasiões que possam ser enquadradas em uma lei.
Por exemplo, repugna ao direito uma lei que afirme “tudo aquilo que con-
traria os interesses do Estado será considerado crime”. Uma norma como esta legi-
timaria toda e qualquer ação do estado, pois será ele a fixar quais são os seus interes-
ses em cada caso concreto. Ademais, seus interesses poderiam ser atingidos por qual-
quer conduta, não há na lei a descrição precisa da conduta que pode ser objeto de
uma reação estatal.

132
Muito diferente seria uma norma que afirmasse: “falsificar assinaturas será
considerado crime”. Neste caso, há clareza do comportamento descrito, “falsificar
assinaturas” e nenhum outro, e dos indivíduos visados pela regra. Com normas assim,
os indivíduos podem ter mais certeza das circunstâncias em que o estado estará au-
torizado a investigar e condenar uma determinada pessoa.
A generalidade do direito, segue Neumann, pressupõe a separação de pode-
res e o controle judicial. Não deve haver coincidência entre quem cria a lei e quem
aplica a lei. Afinal, quem cria a lei teria interesse em ampliar o mais possível seus
poderes de intervir sobre a esfera privada. Caso houvesse alguma dúvida sobre a
amplitude de seus poderes, seria de se esperar que prevalecesse a interpretação a mais
ampla possível. Com este controle nas mãos do Judiciário, tal problema tende a de-
saparecer. O Judiciário, em tese, não tem interesse direto em intervir sobre a liber-
dade de ninguém: sua função central é resolver conflitos e dizer qual é o direito em
cada caso concreto.
O sistema jurídico liberal tem para Neumann uma função moral, uma fun-
ção econômica e uma função política. A função moral desse sistema consiste na ga-
rantia de um mínimo de igualdade e segurança, pois o estado deve tratar todas as
pessoas da mesma forma e só pode agir com fundamento nas leis. Como acabamos
de ver, todos devem saber com antecedência como seus atos serão avaliados pelo
estado; se eles podem ser punidos ou não. Daí decorre, também, a proibição de leis
retroativas. Como veremos adiante neste livro, especialmente em “Direito contra
Direito”, a globalização colocou em xeque, justamente, estas estruturas, daí necessi-
dade de repensar, neumannianamente, a ligação entre Direito e Democracia.
Além disso, segue Neumann, o direito liberal exerce uma função econômica,
pois uma economia competitiva é toda estruturada com fundamento em contratos,
que devem ser respeitados para que o sistema funcione bem:

A principal tarefa do estado é a criação de uma ordem jurídica que assegurará o


cumprimento das obrigações contratuais; a expectativa de que obrigações con-
tratuais serão respeitadas deve ser calculável. Essa calculabilidade somente pode
ser alcançada se as leis são gerais em sua estrutura – contanto que exista certa
igualdade de poder entre os competidores, de tal modo que cada um possua
interesses idênticos. (NEUMANN, 2013, 14)

Ademais, “A relação entre estado e empresário, particularmente no que diz


respeito a obrigações fiscais e interferências em direitos de propriedade, também
deve ser tão calculável quanto possível. O soberano não pode elevar os impostos
nem restringir o exercício da atividade empresarial sem uma lei geral, uma vez que
uma medida individual necessariamente prefere um ao outro e, assim, viola o princí-
pio da igualdade empresarial. Por essas razões, o legislador deve se manter como a
única fonte do direito” (NEUMAN, 2013, 14).

133
A função política do estado de direito está expressa, diz Neumann, na ideia
de um governo de leis e não de homens, ou seja, um governo em que a vontade de
toda a sociedade, expressa nas leis, governe a vida de todos e de todas e não a vontade
do estado ou a vontade de apenas uma parte da sociedade. Um governo assim só
existe onde o estado de direito seja democrático, ou seja, em um regime político no
qual as leis sejam produzidas por um poder legislativo (concentrado ou não no Par-
lamento, isso não importa para Neumann) sobre o qual toda a sociedade tenha a
oportunidade de influenciar. Em suma, um poder legislativo que seja capaz de ex-
pressar, em toda a sua extensão, o poder constituinte.
O sonho liberal, diz Neumann, é que a vida da sociedade fosse totalmente
racionalizada, juridificada, sujeita a normas jurídicas. Direitos individuais, respeito
aos contratos e às leis, criadas pela vontade da sociedade, seriam as instituições bási-
cas de uma sociedade liberal. Tais instituições seriam capazes de produzir um exer-
cício legítimo do poder, ou seja, uma forma de poder que transformasse os homens
e mulheres em sujeitos e não em objeto de dominação. Ademais, o sonho liberal é
que tais instituições determinassem todas as interações sociais.
Afinal, em um regime com tais características, homens e mulheres estariam
sujeitos apenas às regras que eles mesmos teriam criado, seja por meio de contratos,
seja por meio de leis. Não haveria mais uma fonte transcendente de poder a garantir
a reprodução da sociedade e sim um processo de criação autônoma de normas levado
adiante por determinadas instituições. Evidentemente, tais normas seriam a expres-
são de escolhas sociais, seriam a expressão de determinados valores, mas não de va-
lores transcendentes e sim de valores produzidos pelo processo de interação social,
ou seja, valores resultantes de uma determinada facticidade.
Nesse sentido, Franz Neumann fala da importância do que ele chama de
“direitos de comunicação” (NEUMANN, 2013, 21): direitos individuais que o estado
de direito garante, a par dos direitos civis clássicos. Para o autor há três tipos de
direitos, os direitos pessoais, os societários e os políticos. Os primeiros são aqueles
garantidos aos homens como sujeitos isolados, direitos que garantem sua segurança,
seus documentos, seus pertences, o direito a um julgamento justo, o direito a buscas
e apreensões razoáveis.
Os direitos civis societários são aqueles que só podemos exercitar em rela-
ção aos demais membros da sociedade, por exemplo, a liberdade de religião, a liber-
dade de reunião e de expressão, o direito de propriedade. São direitos que exigem a
limitação do direito dos outros e, por isso, são intrinsecamente comunicativos. Claro,
sem a segurança individual da pessoa, não pode haver comunicação livre: indivíduos
sujeitos a buscas e apreensões ou prisões arbitrárias relutariam em se manifestar li-
vremente.
Finalmente, os direitos políticos são aqueles que derivam da estrutura polí-
tica dos estados e, no caso das democracias, consistem no direito de liberdade de

134
concessão e acesso a todos os cargos públicos, inclusive o direito ao sufrágio, e a
igualdade de tratamento em relação a essas ocupações, profissões e nomeações. O
exercício destes direitos, evidentemente, pressupõe a liberdade pessoal e os direitos
societários.
Não há exercício de direitos políticos sem segurança pessoal e possibilidade
de comunicação em uma esfera pública democrática, como Jürgen Habermas de-
monstrará com detalhes alguns anos depois, em sua contribuição central para a Te-
oria Crítica, diga-se. De sua parte, Neumann mostra que o debate democrático só é
possível com a institucionalização de direitos de comunicação, os quais são resultado
direito das lutas sociais, que estão o elemento determinante para a sua implementação.
Em minha formulação, como visto acima, os direitos de comunicação pressupõem
o que eu chamo de liberdade de insurreição, que já foi objeto de análise neste livro.

Conhecimento e vontade

Franz Neumann afirmará a seguir que a liberdade jurídica é insuficiente para


realizar a liberdade. Primeiro, porque ela pode se apresentar como desconectada da
democracia. Nem sempre estado de direito e democracia andaram juntos na história
ocidental: por exemplo, há monarquias não democráticas que funcionam com fun-
damento em direitos que limitam a vontade do rei ou da rainha. Regimes assim sa-
botam a criação das normas pela livre comunicação entre os cidadãos e cidadãs.
Além disso, o Estado pode usar a mera forma da lei para legitimar abusos,
restrições a direitos, perseguições a grupos e indivíduos. Nem sempre o que está
previsto em lei pode ser considerado uma realização da liberdade. Como veremos a
seguir em detalhe, há várias estratégias de perversão do direito que utilizam a apa-
rência de legalidade para frustrar sua ligação com a esfera pública. Ademais, a liber-
dade jurídica é estática, ela não muda com a sociedade. Por exemplo, ela costuma ser
oposta às mudanças sociais que resultaram na construção dos Estados de Bem-Estar
Social.
Na versão liberal do problema, qualquer aumento no poder do Estado re-
sulta na diminuição do poder dos indivíduos, ou seja, um polo estará sempre em
competição e em oposição ao outro. Não há, neste caso, direitos que se refiram à
toda a sociedade e que beneficiem a todos e a todas ao mesmo tempo, sob a condu-
ção Estado, que aparece sempre, nesta versão, como o principal e único inimigo da
liberdade. Da mesma forma, o estado também não está preocupado em combater as
assimetrias de poder presentes na sociedade, em relação a qual ele é concebido como
contraposto,
Como resultado, podemos ter um estado de direito sem liberdade. Um es-
tado cujas ações estejam baseadas em leis, mas que exerça seu poder de forma ilegí-
tima, ou seja, que exerça mera dominação sobre os homens e mulheres, tratando-os

135
como mero objeto. Vê-se claramente, assim, que a liberdade jurídica é insuficiente
para realizar a liberdade política: é preciso mais, é preciso efetivar os elementos cog-
nitivo e volitivo da liberdade.
Para Neumann, o elemento cognitivo da liberdade está ligado à realização
do iluminismo na história do ocidente, ou seja, à superação do medo que o homem
sente diante da natureza e do universo. A realização deste elemento, portanto, im-
plica na superação pela ciência da impressão de que os fenômenos naturais sejam
produto de forças ocultas ou da vontade de Deus. De acordo com Neumann, Epi-
curo foi o primeiro pensador que procurou mostrar que a natureza é movida por leis.
Outro passo importante nesse processo, afirma o autor, foi o surgimento da psico-
logia de Spinoza, que aplicou o entendimento de Epicuro ao entendimento, à mente
humana.
Para Epicuro, é preciso compreender a razão, identificar e classificar as suas
emoções para que seja possível entendê-las e subjugá-las, linha de pensamento se-
guida por Freud, pensador que desenvolveu a psicanálise como uma tentativa de
compreender a mente humana e ampliar o espaço da autonomia humana em relação
a ela. É importante esclarecer que, neste ponto, as observações de Neumann são
muito sucintas, pouco desenvolvidas, deixando transparecer que o texto analisado
neste artigo, provavelmente, foi a primeira abordagem de um trabalho mais extenso,
que ficou por ser escrito em sua forma completa.
Seja como for, segue Neumann, a angústia humana, acompanhada da ne-
cessidade de romper com a sensação de isolamento e com a agressividade a tudo que
é estranho, foram exploradas pelo totalitarismo para suprimir a liberdade humana.
Homens e mulheres que permaneçam em uma situação de medo, de impotência,
isolados em sua tentativa de sobreviver, estão propensos à agressividade contra todos
aqueles que ameacem a sua liberdade e estão prontos a se identificar com quem os
proteja, mesmo que representem projetos de poder totalitário.
Um terceiro momento da efetivação do elemento cognitivo está na compre-
ensão, no conhecimento do processo histórico. Uma análise científica da natureza
somada a uma análise científica da mente humana precisa do complemento de uma
análise científica da história. O homem não pode ver a si mesmo como mero joguete
de forças do destino, deve compreender-se como autor de suas condições de existência,
como agente capaz de produzir suas condições de vida. Vico e Montesquieu são auto-
res importantes para este processo, em uma estrada que leva até Hegel e Marx.

O processo histórico inclui a aspiração do homem de assegurar um controle


mais efetivo de seu ambiente, de tal forma que o discernimento histórico é crí-
tico e programático. A função real do elemento cognitivo é expor as possibili-
dades para a realização das potencialidades humanas latentes em diferentes situ-
ações sociais. Por um lado, ele nos previne de repetir fórmulas tradicionais, mas
vazias. O que é progressista e tendente à liberdade hoje pode ser falso e uma

136
barreira à liberdade amanhã. Por outro lado, o elemento cognitivo limita o radi-
calismo utópico. Uma vez que o que homem pode alcançar é limitado ao seu
estágio de desenvolvimento social, a realização da liberdade não está à disposi-
ção da livre autarquia do homem (NEUMANN, 2013, 31).

Neste ponto, Neumann mostra como o estado e a propriedade podem se


transformar em elementos estranhos ao poder dos homens ou mulheres caso sejam
direcionados para a satisfação dos interesses de apenas uma parte da sociedade. Estas
duas estruturas podem passar a ser compreendidas como elementos quase naturais
de um certo regime político que se apresenta como a única alternativa possível para
a organização social.
Caso elas não sejam historicizadas, ou seja, compreendidas como produto
de uma determinada conformação de forças e interesses resultante de um determi-
nado processo histórico, elas podem terminar por serem percebidas como uma se-
gunda natureza, impossível de ser transformada pela ação humana. As revoluções
burguesas do século XVII e XVIII foram extremamente importantes para ampliar o
elemento cognitivo da liberdade ao mostrar que as estruturas políticas poderiam ser
completamente transformadas pela ação humana. Neste caso, também, de transfor-
mação do estado e da propriedade privada em meros fatos naturais, o exercício do
poder degeneraria em mera dominação.

Política e participação

Finalmente, Neumann analisa o terceiro elemento da liberdade, denomi-


nado por ele de volitivo:

O direito limita o poder político; o conhecimento nos mostra o caminho para a


liberdade; mas o homem só pode realmente alcançar a liberdade por seus pró-
prios esforços. Nem Deus, nem a história a garantem. É nesta compreensão que
repousa a formulação teórica da democracia como um sistema político que per-
mite a maximização da liberdade política. O elemento volitivo ou ativista é tão
indispensável para a constituição da liberdade política como os elementos “jurí-
dico” e cognitivo” (NEUMANN, 2013, 37).

Para que homens e mulheres realizem a liberdade neste terceiro sentido, eles
precisam participar ativamente da vida política. A liberdade em um regime democrá-
tico se efetiva apenas se homens e mulheres participarem ativamente da política:
Neumann considera que esta atividade é essencial para combater a sensação de alie-
nação que os cidadãos e cidadãs podem vir a sentir em relação ao poder. E passa a
defender este ponto normativamente, mostrando que parte dos pensadores políticos
consideram a alienação das massas em relação à política um bem e não um mal.

137
Há quem considere que a liberdade só poderá ser realizada fora do sistema
político, em uma forma de organização alternativa a ele. Na versão de Epicuro, o
homem deve se recolher para sua vida privada e cuidar de seu jardim e de sua mente
para realizar-se como ser humano. Mas se considerarmos que nos dias de hoje a
política determina as nossas vidas de maneira profunda, uma atitude como essa não
irá resultar em nada. Continuaremos nos sentindo objetos da dominação da política,
ainda mais, por não tomarmos parte dela. Além disso, iremos negar as obrigações
que temos em relação a nossos companheiros de cidade, permitindo que ocorram
situações como a opressão de minorias e de opiniões dissidentes.

As patologias da liberdade em ação: um diagnóstico de tempo

Para terminar a sua análise, Neumann mostra as patologias que podem ser
geradas pela falta ou pelo excesso de um dos elementos da liberdade. Vejamos como
isso acontece. Focar apenas na liberdade jurídica, como acabamos de ver, pode re-
sultar em aceitar regimes e poderes marcados pela autarquia, que se baseiem em leis
ou normas contratuais, mas que transforme os indivíduos em mero objeto de poder.
Podemos chamar esta patologia, como já visto, de legalismo. O regime demo-
crático, afirma Neumann, é o único capaz de ligar o elemento jurídico ao elemento
volitivo, pois considera o Estado como produto da vontade dos homens e mulheres,
exigindo sua participação ativa na política e exigindo o um tratamento igualitário de
todos diante das leis. A participação, portanto, pode ser um remédio para o legalismo.
Mas se este elemento for excessivamente valorizado, se a vontade humana
for considerada como o elemento supremo da liberdade, ela pode recair em um vo-
luntarismo inconsequente que ignora as limitações do contexto e da história. A pato-
logia do voluntarismo utópico pode ter versões à esquerda ou à direita, resultando
na ideia de que homens e mulheres, basta que assim queiram, realizar completamente
a sua liberdade em qualquer momento ou contexto histórico. Por isso é importante
valorizar o elemento cognitivo da liberdade.
No entanto, a valorização excessiva do elemento cognitivo, ou seja, a valo-
rização excessiva da compreensão do momento histórico e de sua complexidade,
também pode resultar em uma patologia. Afinal, sem o impulso de realizar algo novo
não é possível romper com as estruturas existentes e inventar novas maneiras de
organizar a sociedade. Os homens e as mulheres devem sentir-se capazes de realizar
a sua liberdade pelas próprias mãos, o que significa que devem poder olhar para a
realidade como algo passível de ser transformado, superando a patologia da naturali-
zação.
Desta forma, Neumann mostra que um poder legalista, naturalizado ou volun-
tarista é um poder ilegítimo, que transforma a política em mera dominação. E o cri-
tério para identificar as patologias mencionadas, como mencionado acima, é a ideia

138
de autonomia, ou seja, a capacidade de homens e mulheres de determinarem seu
próprio destino, de não serem transformado em simples objetos de poder.
O que Franz Neumann denomina de crise da liberdade em sua época se
deixa compreender com clareza a partir de sua visão das patologias da liberdade. O
autor afirma que em regimes autárquicos há uma reversão completa da ideia liberal
de que o estado só pode intervir na vida do cidadão e da cidadã justificadamente,
com fundamento em leis. Nesta espécie de regime, o estado está autorizado a intervir
sobre a vida privada sempre que assim quiser.
Na situação de sua época, os Estados Unidos dos anos 50 do século XX,
Neumann considera que as análises estariam sobrevalorizando o elemento jurídico
em detrimento dos demais. Isto porque uma série de medidas discriminatórias, por
exemplo, a demissão de funcionários públicos por suspeita de deslealdade, apareciam
como legais aos olhos do público. Afinal, a despeito de justificadas por leis, elas atin-
giam apenas os funcionários e funcionárias suspeitos de comunismo.
Esta forma de legalidade discriminatória é uma patologia da liberdade, ao
tender apresentar como legal um ato arbitrário, não referendado pela livre delibera-
ção democrática. A mera suspeita de comunismo motivava as demissões, as quais
privavam os empregados de um julgamento justo. Afinal, o estado tinha de fato o
direito de demitir seus empregados e empregadas sob o fundamento de falta de leal-
dade.
Vê-se claramente assim, diz Neumann, que o elemento jurídico é incapaz de
evitar a implantação de práticas autárquicas, pois pode ser utilizado para justificar
medidas que eliminem a participação da sociedade na definição das normas ou na
decisão de casos concretos. Havia problemas também, afirma Neumann, no campo
dos direitos de comunicação em razão de limitações à liberdade de expressão, algu-
mas delas referendadas pelas instituições, inclusive pela Suprema Corte.
Neumann afirmava, naquele momento histórico, que seria crucial refletir
sobre o elemento volitivo da liberdade, ou seja, sobre a participação de homens e
mulheres nas coisas do estado. Ele detectava que a apatia dos cidadãos e cidadãs
crescia, em grande parte, devido ao mau funcionamento da democracia, ou seja, em
razão da crescente complexidade do governo cada vez mais inacessível aos cidadãos
e cidadãs; do crescimento das burocracias, que invadiam e tomavam conta da vida
privada, tratando os sujeitos como objetos; da burocratização dos partidos, que dei-
xavam de representar os interesses sociais e do aumento da concentração do poder
privado social, especialmente do poder econômico.
A alienação crescia também sob a forma de recolhimento à vida privada, em
razão de uma rejeição do espaço público como digno da realização humana; também
como rejeição da política como um todo, sem articulação de uma alternativa. No

139
entanto, em sua forma prevalente na época, o mau funcionamento do estado demo-
crático, a alienação era ainda mais grave por contribuir para desacreditar o regime
democrático em função de sua ineficácia.
A percepção de que a democracia não funciona por ser incapaz de controlar
o poder econômico, por permitir que a máquina do estado seja dominada por grupos
poderosos, que passam a direcionar a administração pública para a satisfação de seus
interesses e não para atender aos interesses de toda a sociedade, corrói a legitimidade
deste regime político.
Na falta de um regime político capaz de ampliar a liberdade, corre-se o risco,
diz Neumann, de vermos nascer regimes que exploram o medo do outro como prin-
cípio de legitimação política.

(...) a transformação da democracia em ditadura parece proceder quando o sis-


tema político descarta seu elemento liberal e tenta impor um credo sobre seus
membros e condenar ao ostracismo aqueles que não o aceitam. Nas palavras de
John Dewey, isso será bem-sucedido se nos mantivermos no “estágio de desen-
volvimento no qual um sentimento vago e misterioso de incerto terror se apo-
dera da população” (NEUMANN, 2013, 48).

A liberdade na prática

O objetivo deste capítulo foi expor o modelo crítico esboçado em “O con-


ceito de liberdade política” de Franz Neumann, o qual consiste na construção de
uma teoria política crítica que se orienta pelo objetivo de realizar a liberdade, supe-
rando uma série de patologias que podem ser identificadas com a análise de seus três
elementos, o jurídico, o cognitivo e o volitivo.
Toda esta análise apresenta uma série de conceitos críticos capazes de de-
tectar casos de supressão da autonomia em diversos âmbitos sociais, sejam elas as
patologias do direito, a autarquia e o legalismo, as patologias do saber, o medo e a naturali-
zação, e as patologias da vontade, a alienação e o voluntarismo. A meu ver, o texto
apresenta uma agenda de pesquisa bastante extensa, que pode vir a integrar reflexões
sobre o direito, as ciências em geral e a ação política, para começar, em uma análise
interdisciplinar sobre as possibilidades realizar a liberdade em cada momento histórico.
A exemplo da análise de Neumann sobre sua situação histórica no contexto
do Maccartismo, este modelo crítico pode ajudar a organizar abordagens que consi-
gam integrar fatores de naturezas diversas em uma visão multicausal capaz de pro-
duzir avaliações críticas dos avanços e recuos da liberdade em nossa realidade histó-
rica. Tenho desenvolvido uma parte desta agenda ao desenvolver uma tipologia pró-
pria para as patologias do direito, sob a denominação genérica de perversão do di-
reito, que será apresentada logo adiante neste livro. Os resultados que tenho obtido

140
podem vir a ser integrados, com inspiração neste modelo de Franz Neumann, a re-
sultados obtidos por outros pesquisadores dedicados a pesquisas em outras discipli-
nas, ou mesmo servir de inspiração para o desenvolvimento de pesquisas próprias.
Além disso, o modelo de Neumann parece guardar muitas semelhanças com
aquele exposto por Axel Honneth em seu livro recente, “O direito da liberdade”.
Nesta obra, Honneth também pensa a liberdade em três momentos e liga a cada um
deles determinadas patologias sociais. A comparação entre estas duas abordagens,
com efeito, pode ser muito produtiva, tanto do ponto de vista de sua armação con-
ceitual interna quando ao diagnóstico de tempo ao qual cada uma delas tenta responder.
Afinal, em “O conceito de liberdade política” Franz Neumann põe o direito
no centro de sua visão da liberdade, mas afirma, explicitamente, que o momento ju-
rídico não é suficiente para efetivar a liberdade. Se lermos “O direito da liberdade”
tendo em vista “Direito e Democracia: entre facticidade e validade” de Habermas, o
primeiro poderia ser lido como uma tentativa de rever a centralidade do direito em
um projeto de emancipação social, para além do aparelho estatal, um movimento que
Neumann parece ter feito, de maneira análoga, de “O Império do Direito” de 1936
para o texto que analisamos.

141
Parte 2 – Direito, garantia de (des)ordem
Capítulo 6 – Direito e Status Quo

Desequilíbrio de poderes?

A melhor maneira de deixar de compreender o papel do direito nas demo-


cracias contemporâneas é encará-lo como um conjunto de regras claras que devem
ser aplicadas inequivocamente pelo Poder Judiciário. A visão do direito como “regra
do jogo”, ou seja, como uma série de normas dotadas de autoridade, cujo sentido
preciso pode ser identificado fora e antes da luta social, tem produzido avaliações equi-
vocadas da dinâmica das instituições do estado de direito, em especial, do papel dos
Tribunais Superiores.
Para uma parte dos analistas brasileiros, estaríamos vivendo uma grave “crise
institucional” que se explicaria pelo fato de o Supremo Tribunal Federal estar “inva-
dindo” o espaço do Poder Legislativo, ou seja, estar se comportando como não de-
veria. Qualquer sinal de “ativismo judicial”, identificado com a atividade de interpretar
as leis para além da literalidade de seu texto, seria perigoso para o equilíbrio entre os
poderes.
Afinal, de acordo com esta análise, as leis seriam a verdadeira expressão da
“vontade do povo”, pois votadas por um poder eleito democraticamente. “Desres-
peitar” seu texto ou mesmo preencher lacunas na legislação (na falta de texto expresso)
significaria usurpar a soberania popular e instaurar uma normatividade de caráter au-
toritário. Ao interpretar as leis, o Supremo estaria criando uma situação de “desequi-
líbrio entre os poderes”.
Por isso mesmo, seria necessário fazer soar todos os alarmes para alertar a
sociedade brasileira sobre os perigos da instauração de uma “ditadura dos juízes”,
supostamente capaz de ameaçar a vontade popular. A inação do Parlamento que tem
deixado de votar leis sobre assuntos importantes seria a principal responsável por este
avanço “antidemocrático” do STF sobre as prerrogativas parlamentares. Nesta ordem
de razões, seria preciso, portanto, que o Parlamento retomasse seu protagonismo “na-
tural” e reduzisse o Supremo ao seu “devido lugar”, combatendo a “judicialização da
política” (NOBRE & RODRIGUEZ, 2011).
Estamos realmente correndo o risco de uma inflexão autoritária de nossas
instituições? O quadro é tão grave quanto esta forma de pensar sugere? Para refletir
sobre este problema, parece-me importante retomar algumas questões fundamentais
a respeito da relação entre decisão judicial e legislação, um problema que ocupa os

145
juristas, mas não apenas eles, faz muito tempo. Trata-se de compreender, ao fim e ao
cabo, que espécie de poder exerce o poder judiciário ou, na formulação dos mais
radicais revolucionários franceses, afinal, para que servem os juízes?
Mas o que é mesmo uma lei, eu pergunto? As leis são capazes de expressar
de forma adequada a “vontade do povo”? Traduzir com perfeição o ethos de socieda-
des altamente complexas, conflitivas e fragmentadas? E determinar completamente
as decisões de casos concretos, mesmo os casos mais difíceis?
Está próximo o centenário de umas das obras mais importantes para a com-
preensão do Direito do século XX, a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen, um livro
cujo poder subversivo ainda se mostra atual em plena segunda década do século XXI
(KELSEN, 2009). Em seu capítulo final, Kelsen constata que as leis são incapazes de
fornecer critérios inequívocos para a atividade do juiz e para outros organismos com
poder para decidir casos concretos. As decisões judiciais devem ser descritas como
um ato de escolha feito diante de diversas alternativas interpretativas postas diante do
juiz; todas elas coerentes com o direito posto, ou seja, com as leis promulgadas pelo
Parlamento.
O texto da lei, observado na dinâmica social e institucional de sua interpre-
tação, como faz Kelsen, é incapaz de impedir a ação criativa dos juízes; é incapaz de
garantir, por si só, que as respostas oferecidas pelo Judiciário serão sempre padroni-
zadas e inequívocas. Pois o direito não se reproduz de fato por um processo pura-
mente cognitivo, lógico formal, de aplicação das leis abstratas aos casos concretos.
A indeterminação do direito não é uma qualidade (ou falta de qualidade) dos
textos legais. E ela não se “resolve”, não se “cura” com a edição de normas claras e
precisas. Estamos diante de um fenômeno complexo que deve ser compreendido em
função (a) das características o texto da lei, (b) das características da sociedade e das
instituições à qual ela se destina; (c) do modo de pensar da comunidade dos intérpre-
tes autorizados, em especial os juízes e (d) da interação entre advogados (promotores,
defensores), cidadãos e judiciário tendo em vista as demandas nascidas dos conflitos
sociais. Não vou tratar de todos estes temas aqui. Pretendo concentrar minha atenção
no segundo deles.1
É interessante notar, abrindo um parêntese, que as posições mais radicais
dentre os revolucionários franceses e os regimes totalitários do século XX, nazismo e
fascismo, imaginaram ser necessário transformar o juiz em mera “boca da lei” (SIL-
VEIRA, 1946). O estabelecimento de um poder absoluto que não admite nenhuma
manifestação de independência em relação aos seus desígnios e de leis que expressam
com fidelidade a vontade revolucionária do povo, transforma o poder judiciário e os
juízes, de fato, em meio de transmissão da vontade do executivo ou do parlamento.

1Trato deste problema com foco no texto das leis em RODRIGUEZ, 2012. Sobre as características do
modo de pensar dos juízes brasileiros, ver RODRIGUEZ & CUTRUPI, 2013 e RODRIGUEZ, 2013a.

146
Não é surpresa, portanto, que tenham sido propostos à assembleia revoluci-
onária francesa projetos de lei que aboliam a profissão de juiz e promoviam o fecha-
mento das Faculdades de Direito.2 Também não é surpresa que o poder judiciário
alemão, já extremamente conservador antes da ascensão nazista ao poder, tenha sido
reduzido à imagem e semelhança do Führer com a cassação de todo e qualquer juiz
que manifestasse independência em relação ao poder Executivo (MULLER, 1991).
Tampouco que a prática da advocacia tenha sido limitada a um papel secun-
dário e desimportante na Alemanha Oriental (DDR) (KIRCHHEIMER, 1961). Afi-
nal, diante de um direito que expresse como fidelidade a vontade do povo, encarnado
no Führer ou no Parlamento3, para que serviriam os juízes e o direito? Para que ser-
viriam os advogados senão para comunicar ao judiciário as violações de direitos líqui-
dos e certos, previstos em leis de sentido inequívoco?

A argúcia do Barão

O Espírito das Leis de Montesquieu relaciona o despotismo e a república com


a existência de leis simples, leis que não precisam ser interpretadas pelo poder judici-
ário. As reflexões do Barão, veremos a seguir, podem nos ajudar a reunir elementos
capazes de explicar as razões pelas quais Kelsen chegou às suas conclusões no começo
do século XX. Também para compreender as razões pelas quais as ditaduras e os
pensadores autoritários não gostam do direito. E porque a defesa normativa da sim-
plicidade das leis e de uma postura textualista por parte dos juízes pode ganhar infle-
xões autoritárias. Vejamos.
Em um regime despótico, explica Montesquieu, não é fácil compreender so-
bre o que, afinal, o legislador poderia legislar ou o magistrado julgar.4

Segue-se do fato de que as terras pertencem ao príncipe que quase não há leis
civis sobre a propriedade das terras. Segue-se do direito que o rei possui de su-
ceder que também não há leis sobre sucessões. O negócio exclusivo que ele faz
em alguns lugares torna inútil qualquer lei sobre o comércio. Os casamentos que
se contraem com as moças escravas fazem com que não existam leis civis sobre
os dotes e as vantagens das mulheres. Resulta que desta prodigiosa multidão de
escravos que quase não existem pessoas que possuam vontade própria, e que
consequentemente devam responder sobre sua conduta diante de um juiz. A
maioria das ações morais, que não são mais do que vontade do pai, do marido,
do mestre, são resolvidas por estes e não pelos magistrados.

2 Ver SIÉYÈS. E. J. Quelques idées sur la constituition aplicables a la Ville de Paris. In: Oevres de Siéyès,
Pris, Edhis. s/d.
3 Há uma nuance importante aqui. Para os revolucionários franceses a vontade do povo estaria ex-

pressa no texto das leis que deveria ser seguido estritamente. Para os nazistas, a vontade do povo
estava encarnada na vontade do Führer e se sobrepunha ao texto das leis. No entanto, nos dois casos,
os juízes representavam um entrave para a realização desses dois projetos radicais.
4 Para todas as citações a seguir MONTESQUIEU, 2000, p. 84-88.

147
De sua parte, as monarquias precisam de um judiciário que se esforce por
julgar sempre da mesma forma para que “a propriedade e a vida dos cidadãos sejam
garantidas e fixas como a própria constituição do Estado.” Isto porque, neste regime,
a justiça decide sobre a vida, a propriedade e a honra das pessoas. Há leis sobre todos
estes assuntos. E leis muito mais confusas e complexas.

Não devemos espantar-nos se encontramos nas leis desses Estados tantas regras,
restrições, extensões, que multiplicam os casos particulares e parecem fazer da
própria razão uma arte.

As diferenças de nível, de origem, de condição entre as pessoas se multipli-


cam e implicam em distinções sobre a natureza dos bens que podem ser “próprios,
adquiridos ou conquistados, dotais, parafernais; paternos e maternos; móveis de vá-
rias espécies, livres, substituídos; de linhagem ou não; nobres em alódio ou não-no-
bres; rendas fundiárias ou constituídas por dinheiro”.
Além disso, prossegue Montesquieu, em algumas monarquias há feudos que
foram divididos entre irmãos, o que torna a legislação mais complexa. Ademais, há
províncias com leis específicas promulgadas pelo monarca ou com costumes próprios,
suportados pelo mesmo monarca. Toda esta complexidade legislativa exige a presença
de um poder judiciário atuante. Por isso:

À medida que os julgamentos dos tribunais se multiplicam nas monarquias, a


jurisprudência toma decisões que às vezes são contraditórias, porque os juízes
que se sucedem pensam de maneira diferente, ou porque as mesmas causas são
bem ou mal defendidas, ou enfim por uma infinidade de abusos que se infiltram
em tudo que passa pelas mãos dos homens. É um mal necessário que o legislador
corrige de vez em quando, como contrário até mesmo ao espírito dos regimes
moderados. Pois quando somos obrigados a recorrer aos tribunais, isso deve vir
da natureza da constituição e não da contradição e da incerteza das leis.

Nos Estados moderados, informa Montesquieu, “onde a cabeça do menor


cidadão é considerável”, é preciso um longo exame para tirar dele sua honra e seus
bens. “Assim, quando um homem se torna mais absoluto, pensa primeiro em simpli-
ficar as leis”. Nas repúblicas, prossegue o autor, são necessárias tantas formalidades
quanto nas monarquias para julgar um homem e elas aumentam conforme a impor-
tância que se dê à honra, à riqueza, à vida e à liberdade dos cidadãos.
Nos estados republicanos, “é da natureza da constituição que os juízes sigam
a letra da lei”, pois neste regime todos os homens devem ser tratados como iguais, ao
contrário das monarquias.

148
Os homens são todos iguais no governo republicano; são
todos iguais no governo despótico: no primeiro porque são
tudo; no segundo porque são nada.

O espírito das repúblicas exige um juiz que decida sempre de acordo com o
texto da lei, pois neste tipo de estado as leis não incorporaram diferenças. Todos
devem ser tratados de forma igual e a legislação deve ser simples e escrita sob a forma
de lei geral, pois não há necessidade de diferenciar as pessoas em razão de sua origem,
condição, status etc.
Nesses estados não há, para utilizar a linguagem contemporânea, leis especi-
ais para determinados grupos sociais; leis destinadas a pessoas em condições peculia-
res ou que regulem certos fatos sociais de forma diferenciada.
O século XX assistiu a uma mudança radical na racionalidade do direito das
repúblicas, por assim dizer, que dificulta a utilização da análise de O Espírito das Leis
sem qualquer atualização. Pior do que isso, sem os devidos cuidados, o uso dos argu-
mentos de Montesquieu pode transformar em plataforma conservadora a defesa da
simplicidade das leis e da necessidade de julgar conforme seu texto. Afinal, ao con-
trário do que pensam aqueles que se assustam com a ação interpretativa do poder
judiciário, não é do espírito da constituição das repúblicas contemporâneas a simpli-
cidade das leis e juízes textualistas.
Utilizando as palavras de Montesquieu, as atuais repúblicas têm muito dos
traços das monarquias: as leis não são simples no sentido que o autor confere ao
termo, ou seja, simples a ponto de formar uma narrativa constitucional única, sem
contradições, e é preciso haver um judiciário atuante para conferir alguma racionali-
dade ao seu conjunto. Afinal, a pressão dos movimentos sociais, ao longo de todo o
século, resultou na criação de cada vez mais distinções reguladas por lei com a finali-
dade de conferir direitos especiais aos pobres, às crianças, aos doentes, aos velhos,
aos inválidos, aos deficientes, aos empregados e às empregadas, aos funcionários e
funcionárias públicas, aos trabalhadores e trabalhadoras do campo e, mais recente-
mente, às mulheres em geral, aos indígenas, aos negros, às travestis, às pessoas trans,
aos transgênero e a tantos outros grupos sociais que se organizaram para lutar por
melhores condições de vida.5 A relativa incoerência e contingência do direito é o
preço a pagar pela existência e defesa jurídica da diversidade social.

5 Como veremos a seguir, a incorporação de diferenças ao direito é um dos fatores que o torna com-
plexo a ponto de não ser mais possível interpretá-lo apenas por meio de raciocínios lógico formais. A
incorporação de cláusulas gerais como “boa-fé” e de outros recursos argumentativos como os princí-
pios jurídicos, especialmente a partir do século passado, está ligada à dinâmica dos conflitos sociais e
seu impacto sobre a complexidade das leis. Nesse sentido, ler o conceito de materialização do direito
de Weber do ponto de vista de uma sociedade civil livre e ativa faz com que se perceba seu potencial
democrático. É claro, a materialização traz o risco de arbítrio. Pode ter efeitos autoritários, por exem-
plo, em um Estado em que os juízes decidam sem fundamentação racional, o poder esteja concentrado
nas mãos de um líder carismático e em que sociedade civil esteja neutralizada, sem poder demandar

149
Se este não foi o único fator a conferir maior complexidade às leis6, certa-
mente estamos diante de um elemento fundamental deste processo.

Direito e diferenças

É importante observar que, para além desses grupos, o processo de reconhe-


cimentos de novos direitos não dá sinais de que vá cessar, a menos que vivenciemos
uma nova era de totalitarismos. Certamente, assistiremos ao surgimento de mais e
mais movimentos sociais organizados que irão mostrar sua face à esfera pública para
demandar novos direitos.
As diferenças reconhecidas pelas leis contemporâneas não são privilégios
como nas monarquias. São distinções criadas por leis especiais que tratam de maneira
diferenciada determinados tipos de fatos e categorias de pessoas e se inserem no con-
texto de sociedades de massa globalizadas, marcadas por acentuada diversidade social,
muitas vezes vivendo no mesmo território, algo muito difícil de ser sequer imaginado
na época de Montesquieu.7
O Espírito das Leis foi escrito, diga-se, como os textos de O Federalista, para
um grupo de notáveis8, ou seja, para sociedades dirigidas por um número limitado de
agentes de poder e em que não havia sufrágio universal9. Com a entrada no sistema
político de todos os homens e mulheres acima de uma determinada idade, ao longo
do século XX no Ocidente, parece natural e óbvio que a complexidade das leis ten-
desse a aumentar.
As distinções legais que vem sendo criadas têm reflexos sobre os mais diver-
sos domínios da vida, ou seja, implicam na regulação especial de determinados tipos
de bens, direito a rendas complementares, a um status pessoal ou familiar, entre ou-
tros.

direitos e acionar o judiciário. Para um exame mais detalhado desta ambiguidade ver RODRIGUEZ,
2009a.
6 Não há espaço aqui para discutir este problema em detalhes. Ele é abordado pela literatura em di-

reito sob a denominação de “juridificação”. Vou falar apenas de um de seus aspectos, aquele mais li-
gado à dinâmica dos movimentos sociais e responsável por questionar as hierarquias de poder. Para
um aprofundamento deste tema, ver Fuga do Direito... e FRIEDMAN, 1999.
7 Outra maneira de reivindicar direitos é pleitear a competência para criar normas em esferas imunes

à regulação estatal. Esta gramática, a gramática da regulação social, diferente da gramática das regras,
tem sido utilizada, por exemplo, para reivindicar direitos para comunidades indígenas as quais pre-
tendem manter suas regras em funcionamento a par das normas do Estado no qual se inserem. Por
razões de espaço, não vou tratar deste problema aqui que abordei adiante no capítulo “Normativida-
des Plurais”.
8 Reproduzo neste ponto a observação de Bruce Ackermann sobre os “founding fathers” em seu es-

forço de desfazer o mito sobre estes escritos e submeter as instituições dos Estados Unidos a uma
crítica racional. Ver ACKERMANN, 2010. Nesse sentido, é interessante acompanhar a discussão de
Montesquieu em O Espírito das Leis sobre a importância de uma definição clara sobre o número de
representantes nas democracias.
9 Para uma exposição sobre a evolução do sufrágio universal e as estratégias conservadoras para con-

ter seu poder subversivo, ver: LOSURDO, 2004.

150
Por exemplo, a legislação brasileira protege o imóvel em que as famílias resi-
dem contra a penhora, exceto quanto a dívidas ligadas ao mesmo como condomínio
e imposto predial (Lei 8.009 de 1990). Prevê o direito a uma renda mínima para famí-
lias com renda familiar mensal per capita de até R$ 120,00 (cento e vinte reais) (Lei
10.838 de 2004), reconhece o status de família a casais compostos de cônjuges do
mesmo sexo (STF, julgamento da ADPF n.º 132 e da ADIn n.º 4277), entre tantas
outras distinções.
A Constituição de 1988 legislou sobre uma série de diferenças sociais em
razão da pressão intensa da sociedade civil sobre a Assembleia Nacional Constituinte
o que resultou em um texto extenso, resultado de ampla participação social. 10 A acu-
sação frequente de que a CF é excessivamente detalhista, contraditória e desorgani-
zada negligencia as questões discutidas neste texto e, no limite, é uma afirmação re-
trógada e antidemocrática. Nossa Carta Constitucional - e a maior parte das Consti-
tuições criadas no século XX - são igualmente extensas, repletas de normas especiais
e representam, com efeito, uma evidência de que a democracia tem como corolário a
crescente complexidade das leis.
A Constituição de Weimar de 1917 foi uma das primeiras a reconhecer direi-
tos aos trabalhadores em função, evidentemente, das mobilizações operárias do co-
meço do século. A inclusão deste tipo de direito no texto constitucional foi objeto de
ácidas críticas 11 por motivos ainda hoje presentes na doutrina constitucional. Há
quem defenda que as constituições deveriam tratar apenas da estrutura do Estado e
dos direitos fundamentais: qualquer outra matéria não teria “natureza constitucional”
e, portanto, deveria ficar fora da Constituição e ser regulada por leis de hierarquia
inferior.
Este modo de pensar o fenômeno constitucional, a partir de um núcleo de
temas “constitucionais por natureza” ou “substantivamente constitucionais”, deixa
em segundo plano o fato de que, ao longo do século XX, algumas diferenças se tor-
naram tão relevantes para a sociedade que acabaram sendo incorporadas ao texto das
Constituições. Criar uma espécie de “cordão sanitário conceitual” em torno da maté-
ria constitucional é uma das maneiras de criar entraves ideológicos à dinâmica das
lutas sociais e naturalizar o direito posto e as posições de poder que ele protege.
É evidente, diga-se, que uma determinada sociedade pode escolher que uma
série de assuntos fique fora da Constituição. Desta maneira, será mais fácil modificar
as normas que os regulam, pois mudar um artigo constitucional é sempre difícil em
qualquer ordenamento jurídico. Em contraste, outros temas serão incluídos na Cons-

10Para este ponto ver SAMPAIO, 2009 e KINZO, 1990.


11Os juízes alemães chegaram a negar vigência a Constituição de Weimar em seus julgados. Para este
ponto ver a primeira parte do meu livro Fuga do Direito...

151
tituição exatamente pela razão contrária. Seja como for, estamos diante de uma esco-
lha e não de um fenômeno natural; uma escolha que deve ser feita no processo de
disputa social pelo sentido do direito.
Toda essa complexidade certamente causaria espanto ao arguto Barão, que
teria se debruçado com mais energia sobre o insight genial a respeito da boa-fé presente
nas mesmas páginas de O Espírito das Leis que tem nos ocupado aqui. O autor observa,
com certa surpresa, que a república romana e a França de sua época utilizavam fór-
mulas como “boa-fé”12 para julgar casos judiciais. Tal fato é certamente digno de es-
panto para Montesquieu, afinal, em uma república não deveria ser lícito fugir da letra
da lei. De acordo com o autor, a utilização da fórmula “boa-fé” seria mais afeita ao
espírito das monarquias e... A análise termina aqui!
Diante do que foi dito até este ponto, parece claro que defender hoje a in-
terpretação presa ao texto da lei nos mesmos termos de Montesquieu significaria
opor-se a toda a legislação especial dos últimos dois séculos, tendo em vista os “pro-
blemas” interpretativos que elas provocam; a contar das leis destinadas a regular a
situação de pessoas pobres, velhas, jovens e crianças, ainda que em bases estritamente
assistencialistas; uma legislação que constitui os primórdios do que se viria a transfor-
mar nos estados de bem-estar social do século XX.13
Tal constatação joga uma nova luz sobre a relação entre a indeterminação do
direito, as várias formas de autoritarismo e as diferenças sociais reconhecidas por lei.
Em uma sociedade realmente marcada pela diferença, ou seja, em que as diferenças
possam ser objeto de demandas por direitos, a defesa radical da simplificação das
leis14 acaba por se constituir em um obstáculo intransponível para o avanço de reivin-
dicações sociais.15
Não é por outra razão que autores autoritários como Carl Schmitt diziam
que, para funcionar adequadamente, o direito liberal precisa de homogeneidade social.
Para Schmitt uma norma só faz sentido se houver, de fato, uma situação social de
normalidade que a ela corresponda em concreto: em abstrato a norma é completa-
mente inútil e sem sentido. Na ausência desta normalidade real, caberia ao soberano,

12 Interessante notar que a reflexão sobre “boa-fé” e outras cláusulas gerais está na base do debate
sobre a materialização do direito formulado em seus termos clássicos por Max Weber em WEBER,
1966. O problema discutido pelo autor é a perda de previsibilidade do direito e suas consequências
para a reprodução do sistema capitalista em função da incorporação de valores no ato de julgar por
intermédio de fórmulas verbais como “boa-fé”. Neumann responde a Weber mostrando que tal inde-
terminação não compromete a reprodução do capitalismo: há outras formas de conferir previsibilida-
des a estas normas jurídicas de textura aberta. Para uma análise mais extensa deste ponto, ver Fuga
do Direito... e Por um novo conceito de segurança jurídica...
13 Para uma análise desta evolução, ver POLANYI, 2000.
14 De novo, este não é o único fator promove a criação de leis mais complexas, mas tem sido um fator

fundamental desde o século XX.


15 Um pensamento puramente instrumental que encare o direito apenas como meio para realizar fins

externos a ele, praticado por alguns Economistas, estudiosos de Direito Econômico, Law & Economics
e Law & Development revela aqui todo o seu potencial antidemocrático. Sobre este tema, ver: TAMA-
NAHA, 2006 e TELES, 2008.

152
se quiser estar à altura de seu nome, institui-la por meio de um ato de pura força,
externo ao direito (SCHMITT, 1966) para, desta forma, criar o marco zero de um
estado de direito.
Afinal, se a igualdade é da essência da democracia, conforme afirma o jusna-
turalista Schmitt, não restaria outra saída para um Estado que pretenda realizar a de-
mocracia do que instaurar e zelar pela unidade do poder, de um lado, e pela homoge-
neidade da sociedade, de outro. Na falta de um povo que esteja em relação de identi-
dade consigo mesmo, “identidade entre dominadores e dominados, governantes e
governados, dos que mandam e dos que obedecem” (SCHMITT, 2008), não há, para
Schmitt, democracia possível.
Para este autor, a democracia pode conviver perfeitamente com a ditadura.
Afinal, a igualdade não guarda relação necessária com o pluralismo político, ao con-
trário, é ameaçada por ele. Esta é a razão pela qual pode ser necessário instaurar e
manter a democracia - ou seja, a igualdade - por um ato de força.
E a criação deste poder unificado, ao qual deve corresponder a igualdade
social concreta16, é essencial para sobrevivência do Estado, ameaçada por toda e qual-
quer forma de pluralismo ou de partidarismo. Para Schmitt, todo estado normal é
necessariamente total e toda cisão cria, em potencial, um inimigo, uma ameaça para a
sobrevivência do Estado (SCHMITT, 2001). O pluralismo deve ser combatido a todo
custo.
Schmitt transforma o problema complexo e legítimo de criar unidade de co-
mando em face da diversidade humana e do pluralismo político, em uma mera questão
de fato. Trata-se de saber como é possível, de fato, criar um poder unitário que cor-
responda a uma sociedade igualitária. A questão perde, assim, toda a consistência teó-
rica. Seu fundamento é naturalizado e ela se transforma em um problema pragmático
e de mero senso comum.
Convenhamos: não é preciso teoria alguma para nos informar que o mais
forte é o único capaz de criar um Estado e uma sociedade homogênea, “em identidade
consigo mesma”. Dizer isso é permanecer no senso comum mais rasteiro. Acrescentar
que a homogeneidade é da essência da democracia, sem mais nada, não passa de uma
afirmação ideológica simplória que naturaliza um conceito sem discuti-lo racional-
mente.
O raciocínio de Schmitt “fundamenta” desta forma todo e qualquer ato de
violência realizado com o objetivo de eliminar o pluralismo político e social. O pres-
suposto naturalizado e sem demonstração de todo o seu raciocínio é o seguinte: ape-

16Em Les trois types de pensée juridique (Paris: PUF, 1995), Schmitt celebra o caráter verdadeiramente
germânico, de acordo com ele, de uma visão concreta do direito, ou seja, de uma visão que não se perca
em abstrações e volte sua atenção para a efetividade das instituições, para a correspondência entre
norma e realidade.

153
nas a homogeneidade social e a unidade do poder são capazes de garantir a sobrevi-
vência de um Estado democrático. Tal chantagem totalitária da unidade, posta na
condição de pressuposto inquestionável, justifica todo e qualquer ato de força que
vise instaurá-la.
Esta é, ainda hoje, a primeira lição de toda escolinha de ditadores, cujo pro-
fessor mais célebre é Carl Schmitt.
A necessidade concreta da unidade do poder, nos termos de Schmitt, não se
deixa limitar por juízes ou pelos tribunais. Na verdade, a existência de juízes e tribu-
nais autônomos e de leis estáveis pode ser um obstáculo para a sobrevivência do Es-
tado. Um juiz de direito que se oriente por critérios não políticos, ou seja, que aja
como um bom burocrata, será incapaz, de zelar pela unidade do poder, tarefa que
pode exigir o uso da força. E usar a força é negar a própria condição do juiz.
O despotismo de Schmitt, que já incorpora as lições de Kelsen, coloca a
vontade do Führer, não o texto das leis ou sua interpretação, no centro do sistema
jurídico. Em uma ordem política em que o Estado e a sociedade são idênticos, evi-
dentemente, não existe a possibilidade de que as leis especiais proliferem ou que haja
interpretações livres e variadas delas. O controle da normatividade está concentrado
nas mãos do poder absoluto do soberano.17
Seguindo as mesmas razões, seria igualmente deletéria para a unidade do so-
berano e da sociedade a presença de advogados militantes e de estratégias de litigância
voltadas a obter determinados direitos pela via judicial, direitos estes que estabeleçam
distinções que visem a regular de maneira especial determinados grupos sociais e tipos
de fato.
À semelhança do despotismo na versão do arguto Barão, o pensamento de
Schmitt subordina o direito à vontade de um agente social qualquer, capaz de eliminar
faticamente toda e qualquer diferença que ameace a unidade de seu poder. O direito
ocupa assim uma posição subordinada em relação à força, tudo em nome da sobrevi-
vência do Estado, da realização da democracia, ou seja, da manutenção da homoge-
neidade a todo custo.

A desintegração do status quo

Para desmontar esse raciocínio e explorar o potencial democrático da inde-


terminação do direito, Franz Neumann foi radical. Ele inverteu sem titubear o pres-
suposto totalitário de Schmitt ao afirmar que a democracia só pode se realizar de fato

17É importante notar que esta forma autoritária de poder serve perfeitamente ao capitalismo em sua
fase monopolista, ver NEUMANN, 1944. Em um regime de livre-concorrência - para Adam Smith, por
exemplo - a concentração de poder nas mãos do Estado é deletéria para a reprodução do mercado. Já
para o capitalismo em sua fase monopolista a unidade de poder combinada com a homogeneidade
social facilita o bom desenvolvimento dos negócios porque permite a padronização das regras de cima
para baixo, sem a interferência da sociedade civil.

154
se o direito reconhecer e lidar com as desigualdades sociais. Tal inversão foi possível
apenas em razão de seu modo de interpretar a ação dos agentes sociais, no caso, os
trabalhadores, ao reivindicar direitos no Parlamento. Por isso mesmo, Neumann sus-
tentou que toda forma de direito natural é mera ideologia, pois busca subtrair da luta
social a definição do que deva ser o direito. Vejamos o que ele escreve no prefácio ao
seu O Império do Direito, escrito originalmente em 1936:

Tentaremos mostrar adiante que uma justificação secular e racional do Estado e


do direito, isto é, uma justificação humana baseada nas vontades ou nas carên-
cias dos homens, pode ter consequências revolucionárias sob certas condições
históricas. (NEUMANN, 2013)

A promessa de igualdade posta pelo direito em uma sociedade desigual faz


com que os grupos sociais que se sintam injustiçados - desde que haja liberdade para
tanto (garantia de direitos de liberdade pessoal e liberdade política18) - possam formu-
lar sua insatisfação na forma de reivindicação por direitos. Para Neumann, o império
do direito, esta promessa de igualdade que jamais poderá ser cumprida, é que permite
a efetivação constante e renovada da democracia, cujo motor é a demanda constante
por novos direitos por parte da sociedade. 19
A racionalidade do império do direito, seu modo específico de legitimação,
exige que as normas sejam produzidas em função das demandas e carências sociais.
Para Neumann, apenas este modo de funcionar confere racionalidade ao direito: “...
uma fundamentação racional dos poderes coercitivos do Estado e do direito é uma
justificação baseada nas carências e vontades dos homens.”20
Posto isto, é razoável supor que o surgimento de novas carências e vontades
irá transformar o direito posto constantemente e desfazer as hierarquias a ele corres-
pondentes, ameaçando os interesses de quem estiver em posições de vantagem sobre
os demais grupos sociais. Em uma sociedade desigual, o direito tem um efeito desin-
tegrador:

Toda norma geral que pretende estabelecer um limite à atividade do estado, seja
de direito natural ou de direito positivo, necessariamente contribui com a desin-
tegração do status quo. Essa norma tem dois gumes; é uma espada de dois gumes.
[...] Mais cedo ou mais tarde, o progressivo reconhecimento do Império do Di-
reito se torna perigoso para as posições de poder. 21

Foi justamente o movimento da classe operária na direção do Parlamento


em luta por melhores condições de trabalho que mostrou para Neumann como o

18 Chamo esta estrutura fundamental de forma direito no meu livro Fuga do Direito...
19 Para as análises a seguir, ver Fuga do Direito...
20 O Império do Direito..., p. 72.
21 O Império do Direito..., p. 6.

155
direito pode funcionar, em suas palavras, como uma espada de dois gumes. 22 A luta
social ativou o potencial desintegrador do direito ao mostrar que é possível utilizá-lo
para contrariar os interesses da burguesia.
Ao prometer a igualdade a todos, o direito permite que as pessoas e os grupos
sociais comparem sua condição uns com os outros e sejam capazes de formular suas
percepções de desigualdade sob a forma de demandas por direitos.23 Por assim dizer,
com a entrada da classe operária no Parlamento, o direito se transforma em uma es-
finge que atormenta permanentemente o espírito da burguesia e de todos aqueles que
ocupam posições de poder.
O resultado desse processo foi o abandono do império do direito pela bur-
guesia, que passou a apoiar a criação de regimes autoritários, legitimados de forma
irracional, com o objetivo de manter seus privilégios e conter o ativismo reivindica-
tório da sociedade, estabelecendo na prática e de fato, a homogeneidade social negada
pelo próprio movimento social.

O abandono da democracia é acompanhado por uma reversão no sistema de


valores da esfera filosófica. A ratio é desvalorizada. [...] Permanece somente a
justificação carismática, que é um caso típico de atitude extrema de irracionali-
dade.24

Fica claro, assim, como a garantia de não coincidência entre governantes e


governados e entre norma abstrata e normalidade social concreta é crucial para a efe-
tivação da democracia. Esta não coincidência permite que as desigualdades de hoje
ponham em questão as leis atuais em nome de reivindicações que evidenciem a injus-
tiça do que está posto.
Também é esta distinção que garante institucionalmente que o Estado seja
racional, os termos de Neumann, ou seja, que ele seja obrigado a responder às carên-
cias e vontades da sociedade e, desta forma, abra espaço para que a sociedade deixe a
condição de massa governada e passe a viver a vida política de forma plena, movida
por uma autodeterminação consciente e livre.
A efetivação da igualdade por meio da força, a criação de homogeneidade
social pelo soberano significa, para Neumann, a destruição do direito e da democracia,

22 “O período pós-guerra [1ª. Guerra Mundial] é caracterizado pelo fato de que o movimento traba-
lhista se torna politicamente autoconsciente, separando-se do movimento liberal da burguesia, cons-
tituindo-se como organização política autônoma e tentando transformar toda a sociedade conforme
sua própria filosofia de vida. [...] a massa da população agora tinha direitos políticos e não mais se
separava passivamente da elite governante.”, O Império do Direito..., p. 270.
23 Há muitas críticas sobre o uso da linguagem dos direitos na luta social: para uma visão geral dessa

discussão, ver BROWN & HALLEY, 2002. À despeito delas, concordo com MINOW quando afirma que,
mesmo com seus limites, o direito permite que indivíduos e grupos chamem atenção da esfera pública
para pontos de vista que foram negligenciados pela maioria. Ver: MINOW, 1994, p. 389.
24 O Império do Direito..., p. 6.

156
ao menos como nós as conhecemos no ocidente.25 A normalidade obtida pela força
é fascista, a coincidência entre norma e normalidade social é o verdadeiro mal a ser
evitado. Um direito democrático só é imaginável no intervalo entre estas duas instân-
cias e desde que haja uma sociedade civil ativa que produza constantemente novas
demandas.26

Por um direito mais complicado

Um dos primeiros frutos deste processo de luta social via império do direito
foi a legislação sobre as relações de trabalho que formou o que se conhece hoje como
Direito do Trabalho. Outro fruto importante, colhido ainda no começo do século
passado, foi a criação do instituto jurídico da “função social da propriedade”, que
modificou radicalmente o sentido da regulação da propriedade privada em sua versão
liberal.27 Mas fiquemos apenas com o primeiro exemplo.
O Direito do Trabalho representa uma mudança radical na concepção liberal
de contrato segundo a qual as partes podem negociar livremente o preço e o objeto
da prestação. Vejamos por quê.
Ao comprar e vender um bem, por exemplo, um carro, conforme a concep-
ção liberal clássica de contrato, não há inconveniente algum em negociar livremente
o preço que as partes acharem mais justo pagar por ele, também a forma de cumprir
o contrato. A entrega do carro, objeto da prestação, não tem consequência alguma
sobre a pessoa do devedor, ou seja, sobre seu corpo físico.
Já nos contratos cujo objeto seja uma prestação de trabalho, a “coisa” ven-
dida coincide com a pessoa do devedor e implica seu corpo.28 A “entrega” da “coisa”,
a prestação do trabalho, exige o desgaste físico e mental da pessoa do devedor (que
se cansa, adoece, envelhece, morre...), ou seja, a entrega do trabalho não é algo desta-
cável dele. O devedor precisa colocar seu tempo, sua atenção, sua força física à dis-
posição do credor para cumprir a prestação.
O devedor de um carro não está subordinado ao seu credor: basta entregar
a coisa para que ele se desobrigue da prestação. Já o empregado, precisa comparecer
todos os dias na mesma hora a um determinado local e desenvolver seu trabalho sob
as ordens do credor. Por isso mesmo, ele está sujeito a problemas como excesso de

25 Para este ponto, ver o capítulo final de O Império do Direito e Behemoth... do mesmo autor.
26 Para uma análise do que Neumann chama de “elemento ativista” e “elemento volitivo” da liberdade,
ver NEUMANN, 1957.
27 Ver uma análise mais completa em Fuga do Direito...
28 Uma das melhores análises da peculiaridade do contrato do trabalho ainda é a de CARNELUTTI,

1999, publicado originalmente em 1940. Sobre o sentido mais geral da proteção jurídica do trabalho,
ver RODRIGUEZ, José Rodrigo. Direitos e questão social. In: IVO, Anete B. L. (Org.) Dicionário Desen-
volvimento e Questão Social. (no prelo).

157
trabalho (em intensidade e duração), falta de segurança e de condições salubres (pre-
sença de elementos tóxicos e perigosos) entre outros problemas, que derivam do po-
der do empregador em estabelecer a maneira pela qual o trabalho deverá ser realizado.
Ora, para retomar o exemplo anterior, se o carro for destruído antes ou no
momento de sua entrega, é possível indenizar o credor em dinheiro. Uma certa quan-
tia em dinheiro seria equivalente ao carro devido. Mas se o trabalhador ficar dente,
acidentar-se ou morrer durante a prestação de trabalho, a identidade entre a sua pes-
soa e prestação de trabalho torna qualquer indenização conceitualmente impossível.
Com o dinheiro pode-se comprar outro carro, mas não outra vida ou a capacidade de
trabalho perdida.
Na mesma ordem de razões, se o valor devido ao empregado como contra-
prestação, o salário, for insuficiente para que ele sobreviva, é difícil imaginar como
resolver tal problema sem aumentar excessivamente seu tempo de trabalho, em um
segundo emprego, por exemplo, o que iria certamente comprometer sua integridade
física, sua convivência social, sua vida familiar.
Em tese, o empregado poderia procurar um emprego melhor. Mas diante da
relativa imobilidade espacial da mão de obra em contraste com a liberdade de circu-
lação do capital, o trabalhador está quase sempre em desvantagem. Por exemplo, ele
não pode escapar com tanta facilidade da contração da economia em um país como
pode fazer o capital, especialmente o capital financeiro.
Em razão de todos estes problemas, os sindicatos lutaram para criar melho-
res condições de trabalho e conquistaram direitos trabalhistas, que se caracterizam
como obrigações adicionais (para além do pagamento do salário) devidas ao empre-
gado pelo empregador, sem qualquer contrapartida por parte deste. Por exemplo, in-
tervalos remunerados para descanso (dentro da jornada de trabalho, entre jornadas;
semanal, o fim de semana e anual, as férias), décimo terceiro salário, salário mínimo e
pisos salariais por categoria de trabalho entre outros. 29
Ao incorporar estes direitos ao “contrato” de trabalho, o conceito de con-
trato em seu sentido liberal-burguês foi completamente transformado. Afinal, em
troca destas obrigações adicionais o empregado não deve nada a seu empregador. São
prestações em contraprestação que servem para impor limites à exploração do traba-
lho e abrem espaço para superar o contrato como mera ideologia destinada a ocultar
a exploração, afinal, fica claro que o salário, apenas ele, não é equivalente ao trabalho
prestado.30

29 “A relação trabalhista se baseia em obrigações recíprocas e no poder: seres humanos estabelecem


relações de dominação com outros seres humanos. Essa é a base do princípio jurídico que obriga aque-
les que possuem esse poder (a despeito de serem capitalistas privados ou socialistas) a cumprir obri-
gações adicionais em relação ao objeto da dominação, o trabalhador. Mas isso não [...] requer do tra-
balhador a execução de obrigações adicionais para o empregador, além daquelas estabelecidas no
contrato de trabalho.” NEUMANN, Franz. O Império do Direito..., p. 235.
30 Para uma análise mais profunda deste ponto, ver Fuga do Direito...

158
Os direitos trabalhistas foram encarados no começo, e ainda o são por mui-
tos teóricos e políticos neoliberais, como uma violação da liberdade de contratar das
partes, uma intervenção indevida do Estado sobre a sociedade. Pois o estabeleci-
mento desta legislação especial coloca em xeque uma série de hierarquias, principal-
mente, o poder do empregador de determinar a maneira pela qual deve ser prestado
o trabalho e a possibilidade de que partes estabeleçam o seu preço.
Para retomar o fio da exposição, sob um estado de direito que funcione nor-
malmente, é natural que as leis especiais sigam umas às outras. Seria possível recons-
truir aqui, sob esta perspectiva, todo um século de lutas de empregados e empregados,
funcionários e funcionárias públicas, trabalhadores e trabalhadoras do campo, mulhe-
res, negros e negras, indígenas, travestis, pessoas trans, transgênero, entre tantos ou-
tros grupos que têm buscado estampar sua diferença nas leis do Estado.
As narrativas que justificam todas estas demandas por igualdade, de acordo
com a gramática do estado de direito, resultaram na criação de novas leis especiais em
um processo de destruição e reconstrução do direito posto que não dá sinais de arre-
fecer e tende a ampliar sensivelmente a complexidade das leis. Afinal, para que tal
processo termine ou bem todas as carências e vontades humanas devem estar satis-
feitas ou é preciso instaurar um regime autoritário que neutralize a sociedade civil.
Novas leis especiais geram uma série de novos problemas jurídicos. Para ficar
no âmbito do Direito do Trabalho, assistimos à criação de diversas medidas de pro-
teção ao trabalho da mulher, por exemplo, a garantia de estabilidade no emprego para
as gestantes.
De acordo com esta garantia, os empregadores não podem demitir as ges-
tantes desde a confirmação da gravidez até um determinado período após o nasci-
mento da criança. O objetivo da medida é proteger a mulher e a criança, em seus
primeiros momentos de vida, de uma eventual dispensa que torne sua vida material-
mente mais difícil.
Tal medida protetiva gerou e gera uma série de problemas jurídicos que difi-
cultam dar um sentido coerente à legislação trabalhista. Por exemplo, a proteção às
gestantes pode ter como efeito um desestímulo na contratação de mulheres. Afinal,
ao contratar apenas homens, os empregadores não veriam reduzido seu poder de de-
mitir seus empregados sem justa causa. Nesse sentido, a estabilidade da gestante, em
que pese a pretensão de ser protetiva, pode ter como efeito estigmatizar e prejudicar
as mulheres.31
Além disso, de outro ponto de vista, discute-se a partir de que momento a
grávida adquire estabilidade: a partir do momento em que ela comunica a gravidez ao
empregador ou a partir do momento em que ela fica efetivamente grávida?

31É importante notar que o sindicalismo nem sempre viu com bons olhos a atuação das mulheres
como trabalhadoras competindo com os homens pelos postos de trabalho. Para um bom panorama
do problema, ver os primeiros capítulos de GOLDMAN, 2002; ROBERTS, 1995 e MILKMAN, 1985.

159
Na primeira hipótese, discute-se se seria justo impor tal ônus, a proibição de
dispensa, a alguém que não sabia de nada, que nunca teve a intenção de discriminar a
mulher em razão da gravidez. Não tendo sido comunicado, por exemplo, do início de
uma gravidez ainda imperceptível a olho nu, a mulher demitida estaria agindo de má
fé ao entrar com uma ação reclamando este direito. Na segunda hipótese, de respon-
sabilidade objetiva, este problema desaparece. A garantia se constitui em uma respon-
sabilidade objetiva do empregador: medida de proteção que atribui um ônus ao em-
pregador por razões de ordem pública que substituem as intenções das partes.
Como diz Montesquieu, tais complexidades, de tempos em tempos, podem
ser “remediadas” pelo legislador, por exemplo, com a criação de uma lei que procure
pôr fim a uma determinada controvérsia. Ou mesmo pelos intérpretes que podem
terminar estabilizando um determinado modo de interpretar as normas jurídicas. No
entanto, o surgimento de novos problemas jurídicos, de novas complexidades, numa
democracia, nunca irá cessar. Pois o direito que hoje está posto e a interpretação que
se encontra estabilizada neste momento pode ser questionada logo a seguir por uma
nova reivindicação por direitos e por novas maneiras de interpretar as leis, nascidas
de ações judiciais.
Retomando o fio da exposição, discuti aqui apenas alguns problemas jurídi-
cos relacionados a um instituto bastante simples. A despeito disso, diante do que foi
dito, para retomar os termos de Montesquieu, é razoável afirmar que a miríade de
“regras, restrições, extensões, que multiplicam os casos particulares” conquistadas
pela luta social tende a transformar o pensamento jurídico em algo mais próximo de
uma arte do que uma simples operação lógico-formal.
Como Kelsen já notara lá se vão quase cem anos, se o direito for considerado
uma “ciência”, ele terá características muito diversas do que as que são atribuídas às
ciências “duras”. O pensamento jurídico será mais parecido com o raciocínio ético-
moral32, com uma forma de pensar relativamente indeterminada e dinâmica, que en-
cara a imprecisão como um fato da vida, uma consequência necessária da liberdade
da sociedade, que se traduz na possibilidade de reivindicar direitos e de lutar pela
melhor interpretação das leis, tendo em vista a indeterminação de seu sentido.33
Em uma democracia, portanto, os juristas devem se preocupar menos com
o sentido preciso do texto das leis e com a coerência do sistema jurídico do que com
a dinâmica da luta social.

Supremo intérprete

32 Para este ponto, ver Por um novo conceito de segurança jurídica... e RODRIGUEZ, 2002.
33 Sobre este ponto, ver Para um novo conceito de segurança jurídica... e os textos de Dogmática é Con-
flito (São Paulo: Saraiva, 2012), livro do qual sou coautor. Para um estudo sobre o avanço conservador
na disputa sobre o sentido do direito nos Estados Unidos, ver: The Rise of the Conservative Legal Mo-
vement...

160
Mas toda essa discussão é suficiente para explicar e justificar que o STF possa
atuar, para usar um termo técnico, como legislador positivo? Não seria esta a circuns-
tância responsável pelo eventual desequilíbrio de poderes em nosso país? Falando
especificamente deste tribunal, a nossa Corte Constitucional, é razoável que ele atue,
de fato, como um legislador, proferindo decisões que inovem a ordem jurídica? Antes
de discutir este ponto, alguns esclarecimentos conceituais.
Para Kelsen, autor chave também para este tema, a declaração de inconstitu-
cionalidade de uma lei, sua retirada do sistema jurídico, equivale a um ato legislativo.
Neste caso, não estamos diante da livre criação de uma lei, como ocorre no Parla-
mento. Este é um ato de criação que se produz no contexto de uma ação judicial. Mas,
mesmo assim, ao fim e ao cabo, a declaração de inconstitucionalidade tem efeitos
sobre toda a sociedade ao estabelecer que determinado comportamento deixa de ser
ou proibido ou permitido.
Por isso Kelsen afirma que a declaração de inconstitucionalidade em abstrato
tem os mesmos efeitos de uma lei, ou seja, tem a natureza de um ato legislativo. Trata-
se de um ato com ampla repercussão sobre a vida social e, por esta razão, deve ser
exercido com exclusividade por uma Corte especial de natureza constitucional que
faça parte do Poder Legislativo e não do Poder Judiciário. Daí nasce a ideia, por
exemplo, de que os juízes sejam indicados pelo Parlamento. Para Kelsen, esta confi-
guração institucional seria a mais adequada para manter o equilíbrio entre os poderes
(KELSEN, 2009).
Kelsen ajudou a criar a Corte Constitucional austríaca e atuou nela como juiz
durante muitos anos. Especialmente depois da Segunda Guerra, suas ideias foram
adotadas pela maior parte dos países do mundo, especialmente na Europa. Mesmo
em países que continuaram a atribuir a competência para examinar a inconstituciona-
lidade das leis a todos os juízes, neste caso, por meio de decisões válidas apenas para
as partes de um processo judicial em concreto, criaram, em paralelo, Cortes com a
competência exclusiva para declarar a inconstitucionalidade em abstrato. Outros paí-
ses ficaram apenas com uma Corte Constitucional, sede exclusiva de toda e qualquer
declaração de inconstitucionalidade (BREWER-CARÍAS, 2011).
O Brasil é um dos países que adotaram um sistema misto de controle de
constitucionalidade. O STF tem a competência exclusiva para declarar a inconstituci-
onalidade em abstrato e todos os demais juízes e cortes de outra natureza podem
declarar a inconstitucionalidade em concreto.
Mas vamos deixar esta questão de lado e focar no STF. Diante do que fala-
mos, para retomar o início deste texto, será que a suposta “crise institucional” brasi-
leira, o nosso suposto “desequilíbrio de poderes”, deve-se ao fato de que o STF atua
como legislador positivo, ou seja, ao fato de que este tribunal faça mais do que decla-
rar a inconstitucionalidade das leis em abstrato?

161
Se a crise for, de fato, esta, trata-se de um problema de dimensões mundiais,
um desequilíbrio de poderes capaz de tirar o planeta Terra de seu eixo de rotação,
tamanha a sua magnitude.34 Todas as 933 páginas do livro Constitutional Courts as Posi-
tive Legislators, que já citamos, são dedicadas a construir um diagnóstico mundial sobre
este tema. O livro traz relatórios sobre o assunto escrito por constitucionalistas de
todo o mundo, organizados por Allan R. Brewer-Carías, cujas conclusões nos ajudam
a colocar nossa corte em perspectiva.
O livro afirma que a atuação das cortes como legislador positivo, ou seja,
para além da declaração de inconstitucionalidade em abstrato, é uma tendência mun-
dial e se desdobra em quatro modalidades35:

a) interferências sobre o poder constituinte: por exemplo, alterando a competência dos


entres federativos, emendando a constituição ou alterando emendas, adaptando
provisões constitucionais a regras sobre direitos fundamentais, alterando a
forma de organização e atuação do estado;
b) interferências sobre a legislação existente: por meio da interpretação de leis conforme
a Constituição, adição de novas regras (novo sentido) a uma provisão legislativa
já existente, interferência sobre a validade temporal de uma lei, dar efeitos a le-
gislação anulada;
c) interferência sobre a inexistência de legislação ou sobre a omissão legislativa: atuação para
preencher uma omissão legislativa absoluta, atuação para preencher uma lacuna
decorrente de omissão legislativa; atuação como legislador provisório;
d) cortes atuando como legislador quanto a seu poder judicial de revisão: criação de seu
próprio processo judicial de revisão, criação de regras procedimentais.

BREWER-CARÍAS não se arrisca a levantar hipóteses sobre as razões pelas


quais estas quatro tendências se estabeleceram. Talvez elas sejam resultado do ati-
vismo da sociedade perante as Cortes Supremas. Mas de qualquer forma, seu livro
deixa muito claro que as Cortes Constitucionais, como as demais cortes, exercem am-
plamente sua função de interpretar as normas constitucionais e as leis de hierarquia
inferior das mais diversas formas. E faz isso sem alarmismo, sem afirmar que os fe-
nômenos identificados são alguma coisa a ser combatida em nome de um possível
modelo ótimo de equilíbrio entre os poderes.
Os poderes do estado não seguem estritamente o desenho abstrato previsto
na Constituição. Eles são definidos por seus embates, muitas vezes ativados por ações
judiciais propostas por indivíduos, partidos, associações, movimentos sociais entre
outros agentes políticos. A separação dos poderes se constrói, portanto, por reformas

34 Não há pesquisas organizadas sobre este tema ainda, mas me parece evidente que o STF julgou de
forma mais “ativista” apenas alguns poucos casos, em especial aqueles que se referiam a questões de
interesses de movimentos sociais cuja pauta está bloqueada no Congresso. Por exemplo, o movimento
LGBT há anos luta sem sucesso pela aprovação de um projeto de lei sobre uniões entre pessoas do
mesmo sexo de autoria da então Deputada Federal Marta Suplicy.
35 BREWER-CARÍAS, 2011, pp. 889-923.

162
parciais sucessivas levadas adiante por intermédio de leis ou decisões judiciais.36 O
desenho do estado não costuma ficar imune aos embates entre os diversos grupos
sociais, exceto em regimes autoritários ou no mundo ideal (e potencialmente autori-
tário) criado por teorias que defendem uma gestão tecnocrática do processo político.
Naturalizar a separação dos poderes em uma forma idealizada qualquer equi-
vale a agir como um vampiro de regimes defuntos; assumir o papel de representante
de tudo o que já está morto em um determinado contexto social por medo da “vil
multidão”, prenhe de carências e vontades.
Mas isso significa, por acaso, que devemos nos render à empiria e deixar de
criticar nossa democracia e seu desenho da separação de poderes? Devemos perma-
necer no nível descritivo, sem ter como objetivo de identificar aspectos disfuncionais
e problemáticos de nossas instituições? Sem discutir seus os aspectos regressivos e
emancipatórios? É claro que não. Mas a crítica precisa partir de uma boa descrição de
seu objeto. Precisa identificar com clareza o espírito do desenho institucional com o
qual está lidando, do contrário, corre o risco de passar longe de seu alvo. Este capítulo,
modestamente, pretende ter contribuído para afinar esta capacidade descritiva.37

36 Bruce Ackermann desenvolveu uma teoria da separação dos poderes em seu país em uma perspec-
tiva dinâmica, atenta à sua evolução histórica em A Nova Separação dos Poderes. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2013. Infelizmente, seu o texto naturaliza o novo desenho, o que diminui seu poder analítico.
Sobre o mesmo tema, ver também o livro-curso: SHANE & BRUFF, 2011.
37 Em Dogmática é Conflito... e Como Decidem as Cortes?... desenvolvo minhas críticas à fundamentação

das decisões jurídicas no Brasil, para mim altamente problemática, e esboço um modelo de crítica ao
direito em geral.

163
Capítulo 7 – Uma Constituição sem Vencedores

Introdução

As teorias sobre a constituição brasileira têm discutido, a maior parte das


vezes, qual seria o método mais adequado para interpretar nossa Constituição sem
levar em conta o sentido de nosso texto constitucional e seu papel dos últimos trinta
anos de história de nosso estado democrático de direito. Os estudiosos e estudiosas
deste campo, especialmente na academia, têm feito um trabalho competente e sofis-
ticado de atualização da pesquisa nacional sobre todos os temas de teoria da interpre-
tação e da constituição, tendo produzido uma série de teses e dissertações de alta
qualidade sobre grandes autores contemporâneos como Robert Alexy, Ronald Dwor-
kin e Jürgen Habermas, inclusive formulações reconhecidas como originais pela co-
munidade acadêmica internacional (por exemplo, ÁVILA, 2015).
No entanto, este campo de pesquisa parece ter deixado de lado a necessária
tentativa de construir uma teoria da interpretação que leve em conta a experiência
jurídica brasileira. Como explicam LUNARDI & DIMOULIS:

A doutrina constitucional tradicional considera que não faz parte de uma análise
do direito positivo investigar a natureza material dessa Constituição. Afirma-se,
assim, que é prematuro qualquer juízo sobre a natureza da Constituição de 1988,
evitando se referir ao tema. Mesmo quando apresentam análises históricas sobre
a Constituinte, os constitucionalistas evitam analisar o significado da Constitui-
ção de 1988, limitando-se a atribuir-lhe adjetivos generosos (cidadã, moderna,
inovadora), sem fundamentação lastreada em uma análise institucionalmente de-
talhada."(LUNARDI & DIMOULIS: 2013, 11).

Além disso, continuam:

(...) os constitucionalistas brasileiros com preocupações mais teóricas se dedica-


ram, nas duas últimas décadas, sobretudo a amplos debates sobre a natureza e
os melhores métodos da interpretação constitucional e sobre o papel e a legiti-
midade do Poder Judiciário. Temos, por exemplo, um amplo debate entre subs-
tancialistas e procedimentalistas, que invocam obras de filósofos sobre o signi-
ficado do ato de interpretar, o papel dos valores na Constituição, a postura do
intérprete, as formas e os limites da adjudicação e temas semelhantes. Mas se
preocupam menos com as características e o sentido político da Constituição de

165
1988, não analisando concretamente seu significado. Dessa forma, o debate per-
manece em alto nível de abstração, sendo, do ponto de vista disciplinar, mais
uma questão de teoria e filosofia do direito, e até de filosofia política, do que
propriamente de teoria da Constituição. Em especial uma teoria da Constituição
capaz de explicar o sentido da Constituição brasileira e as características de nosso
constitucionalismo. (LUNARDI & DIMOULIS: 2013, 11)

Esta situação, como será visto adiante, possui uma explicação racional: não
me parece resultado de mera negligência. No entanto, diga-se, para maior parte das
pessoas que escrevem sobre o direito brasileiro pode ser difícil visualizar o problema
ao qual eu estou me referindo aqui. Na melhor das hipóteses, mesmo que tais pessoas,
em algum momento se vejam diante dele, dificilmente lhe atribuirão alguma impor-
tância. Afinal, se partirmos do pressuposto de que nossa experiência jurídica é idêntica
ou muito semelhante à experiência jurídica de outros países, fica evidente a possibili-
dade de compreender nosso direito a partir de teorias estrangeiras sem necessidade
de adaptação.
Fica mais fácil também, por via de consequência, comparar nosso direito a
qualquer outro, tornando-se desimportante desenvolver um modo de pensar que se
proponha a adequar-se à nossa realidade social e institucional. Do ponto de vista da
divisão internacional do trabalho acadêmico, requer muito menos esforço importar
teorias estrangeiras e eximir-se da tarefa de criar teorias próprias, se for a vontade do
estudioso ou estudiosa, as quais podem ser redundantes e, portanto, desnecessárias
diante da produção intelectual de países cujo sistema universitário seja tradicional-
mente mais desenvolvido.
O silêncio da maior parte de doutrina constitucional sobre a necessidade de
pensar a realidade brasileira a partir de conceitos diferenciados, ou seja, sobre a ne-
cessidade de construir uma teoria constitucional materialmente adequada ao nosso
meio, faz crer que ela tenda a identificar-se com as ideias que esbocei acima. Mesmo
autores representativos da escola chamada de neoconstitucionalismo, preocupados
em encontrar teorias adequadas para interpretar nossa constituição, limitam-se a afir-
mar que ela é marcada por muitos princípios e normas abertas e, portanto, precisamos
promover uma atualização metodológica para lidar com ela por meio da importação,
sem grandes adaptações, de teorias estrangeiras como a teoria da argumentação de
Robert Alexy ou a teoria da integridade de Ronald Dworkin, as quais seriam adequa-
das à nossa realidade, portanto, por não utilizarem a subsunção como modelo de ra-
cionalidade jurisdicional. Como exemplo e exposição desta posição, ver o trabalho de
um de seus expoentes: NETO &: SARMENTO, 2015.
Esta maneira de ver o direito brasileiro deixa de lado o fato de que nossas
instituições, como como veremos adiante, foram construídas para impedir que se pro-
duzam julgamentos fundamentados em argumentações coerentes ao instituir nas cor-
tes superiores o direito ao voto individual e a decisão por maioria de votos. E o que

166
poderia soar como um mero defeito para observadores externos, no caso brasileiro,
é uma característica, com vantagens e desvantagens (RODRIGUEZ, 2013a).
De outra parte, mesmo as pessoas que estudam o assunto reconhecem as
peculiaridades de uma suposta cultura jurídica nacional podem terminar por atribuir
a ela pouca importância para a reflexão teórica. Basta que olhe para ela como algo
ruim, negativo, desprezível; algo que mereça ser criticado e transformado a partir do
zero, a partir de parâmetros definidos por teorias estrangeiras; estes sim supostamente
marcados por boas práticas institucionais.
Este modo de pensar, que domina a maior parte dos escritos brasileiros sobre
teoria da racionalidade jurisdicional de que temos notícia, não apenas no campo do
direito constitucional, a despeito de levantar pontos críticos importantes, ao apresen-
tar outras experiências jurídicas para contraste com a nossa, põe no horizonte um
projeto de reforma que parece postular a necessidade de um zero absoluto a partir do
qual algo melhor possa ser edificado. Ademais, este modo de pensar demite-se da
tarefa de refletir sobre as razões pelas quais nosso direito é como é e qual a sua raci-
onalidade específica, ou seja, como e por que ele funciona, ainda que não seja em
bases racionais e argumentativas (RODRIGUEZ 2013).
Nos dois casos, ao trivializar nossa experiência jurídica ou ao transformá-la
em uma realidade indesejável, forma e conteúdo da teoria da interpretação restam
separados. Ambos modos de pensar imunizam a teoria em relação à experiência jurí-
dica brasileira, na primeira versão porque tal experiência seria irrelevante para a teoria
e, na segunda, porque ela seria deficiente e seus defeitos deveriam ser sanados pela
importação das boas práticas estrangeiras.
Ao contrário de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy que procu-
ram reconstruir o material jurídico de seus países, por exemplo os casos constitucio-
nais julgados por suas cortes, e falar a partir de sua experiência jurídica concreta sem
postular, eles mesmos, a aplicabilidade de suas teorias para além de suas fronteiras,
nossa teoria do direito pensa, normalmente, contra ou sem a experiência jurídica bra-
sileira, utilizando de teorias estrangeiras abstraídas de sua respetiva experiência jurí-
dica, como se fossem conceitos totalmente independentes de seu contexto (RODRI-
GUEZ, 2013a).
O objetivo deste texto é propor uma outra maneira de refletir sobre a inter-
pretação das normas e da Constituição brasileira, um modelo que leve a sério nossa
experiência constitucional, cujo marco inicial é a Assembleia Nacional Constituinte.
Para realizar este objetivo de maneira positiva, serão propostos alguns lineamentos de
uma teoria da constituição adequada à nossa experiência, que sirva de baliza para ori-
entar a interpretação de nosso texto constitucional. Uma teoria que não abdique do
diálogo com a produção teórica mundial, mas que esteja também preocupada, em
primeiro lugar, em reconstruir e oferecer orientações para a experiência jurídica bra-
sileira.

167
A primeira parte deste texto irá apresentar uma reflexão sobre o fundamento
e legitimidade da Constituição advogado a partir do trabalho de Marcos Barbosa Pinto,
Constituição e Democracia (PINTO, 2009), o primeiro e provavelmente único autor de
que tenho notícia a relacionar a experiência constitucional brasileira à reflexão sobre
a teoria da constituição. Barbosa Pinto argumenta ser necessário fundamentar a nossa
constituição, ou seja, buscar argumentos para justificar a supremacia da Constituição
brasileira sobre a legislação ordinária em nossa experiência jurídico-política, sem diluir
tal fundamentação em afirmações formais e abstratas da supremacia da constituição.
Em texto publicado um ano antes, diga-se, Marcos Nobre mostrou que a
indeterminação da nossa Constituição é resultado da falta de hegemonia política no
momento da elaboração da carta e fator para sua estabilidade (NOBRE, 2008). No
entanto, o assunto de Nobre não é a construção de uma teoria da constituição, ou
seja, um conjunto de diretivas para interpretar a constituição diante de problemas
jurídicos concretos e sim a compreensão do processo político brasileiro. Outra fonte
importante de reflexão sobre este período, esta, uma pesquisa de primeira mão sobre
nossa Constituinte, ainda que não para a reflexão teórica, é o fundamental livro de
Adriano Pilatti, A Assembleia Constituinte de 1987 a 1988: progressistas, conservadores, ordem
econômica e regras do jogo (PILATTI, 2008). Cito ainda o livro de Rodrigo Mendes Car-
doso, A Participação Popular na Constituinte de 1987-1988 (CARDOSO, 2017).
Como veremos, Barbosa Pinto, o fundamento de legitimidade específico de
nosso texto constitucional, marco de nossa experiência político-constitucional recente,
é a Assembleia Nacional Constituinte. Em sua opinião, a Constituinte brasileira não
teve precedentes no mundo em termos de intensidade e riqueza do debate em razão
da imensa participação social. E porque nosso o texto constitucional foi produzido
desta forma, por um processo de altíssima voltagem política, a Constituição deve pre-
valecer sobre as leis ordinárias, produzidas com um grau muito menor de mobilização
social.
Em sua segunda parte, este texto apresentará uma visão da interpretação da
Constituição que chamarei de originalismo democrático, um conjunto de orientações para
a interpretação constitucional cujo objetivo central é transformar a experiência de
democracia da Assembleia Nacional Constituinte em um modelo de procedimento
para a interpretação das normas constitucionais, mantendo em nosso horizonte nos-
sas instituições como elas são. Desde logo esclareço que este modelo não faz sentido
algum se aplicado à atuação do STF na condição de jurisdição ordinária, por exemplo,
nos casos criminais que ele tem a competência de julgar. Seu pressuposto é que esteja
em ação sua competência na condição e justiça constitucional.
A ideia do originalismo democrático é propor a reprodução, por meio do desenho
institucional do STF a mesma intensidade política presente no momento da criação
de nossa Constituição e, desta forma, dotar a interpretação constitucional um grau de
legitimidade democrática análogo ao da Assembleia Nacional Constituinte, afastando

168
assim eventuais críticas sobre seu caráter antidemocrático, ou seja, sobre a sua capa-
cidade de declarar a invalidade de normas produzidas por poderes eleitos pelo voto
direto.
Nesse sentido, a interpretação constitucional não deveria se configurar como
uma atividade estritamente hermenêutica, um trabalho teórico-filosófico a partir de
textos realizado por técnicos especializados, mas sim como um procedimento parti-
cipativo que possui um momento textual e especializado, mas que não se resume a
ele. Nesse sentido, o originalismo democrático apresenta justificativas e alternativas para
que a interpretação constitucional deixe de ser vista como uma atividade meramente
hermenêutica, levada adiante por juízes e juízas burocratas.
Este modelo propõe que a tarefa interpretativa seja vista como uma tarefa
discursiva e participativa. Em uma palavra, trata-se propor um modelo de interpreta-
ção que ajude a promover a despersonalização de nosso Poder Judiciário, em especial
o Supremo Tribunal Federal e relativize a centralidade dos Juízes e Juízas no processo
interpretativo, que seriam transformados não em heróis individuais, mas, possivel-
mente, em anti-heróis responsáveis por coordenar procedimentos participativos des-
tinados a dar sentido ao texto constitucional.
A necessária superação da visão heroica e individualista da interpretação
constitucional implica na exigência de uma fundamentação institucional das decisões
do STF, uma decisão cujo objetivo seja incluir o máximo de argumentos possíveis,
especialmente os argumentos relevantes naquele contexto e momento histórico, iden-
tificados com o auxílio de mecanismos de participação direta da sociedade na inter-
pretação constitucional. Nesse sentido, a exigência de inclusividade argumentativa não se
refere a um eventual inventário de argumentos em abstrato, mas deve ser pensada
como máxima inclusividade contextualizada, fiel ao estado atual dos conflitos políticos e
seu possível desenvolvimento.

Uma constituição sem vencedores: o significado político da incoerência

Em Constituição e Democracia, Marcos Barbosa Pinto argumenta que o funda-


mento da supremacia da Constituição brasileira sobre a legislação ordinária reside em
seu processo de criação, dotado de uma intensidade política sem par, inclusive em
nível internacional, incomparável com a criação de qualquer lei ordinária brasileira.
Para justificar tal afirmativa, o autor mostra que a Constituinte foi a jusante de um
longo processo de luta social que começou na campanha pelas eleições diretas no
Brasil durante o período final da ditadura civil-militar, instaurada em 1964.
Antes de prosseguir, esclareço que não farei referência a outras fontes para
contar a história de nossa constituinte, exceto muito pontualmente, pois o que me
interessa aqui é reconstituir a argumentação de Marcos Barbosa Pinto e não esgotar
as fontes a respeito deste assunto para produzir uma interpretação própria do período.

169
Assim, sigo afirmando que o movimento “Diretas Já!” teve como marco inicial a
emenda do Senador Dante de Oliveira, proposta em 1983. A campanha mobilizou a
sociedade brasileira de forma nunca dantes vista. Seu momento culminante foi a ma-
nifestação ocorrida no dia 16 de Abril de 1984 que reuniu um milhão e meio de pes-
soas no Vale do Anhangabaú em São Paulo (Pinto, 2009:75), a maior manifestação
pública já registrada no Brasil até então.
A derrota da Emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional não sufocou
a demanda popular por um novo regime político, pois era isso que estava em jogo.
Atribui-se a essa imensa mobilização popular a eleição de Tancredo Neves como Pre-
sidente da República pelo colégio eleitoral, candidato que não era apoiado pelos mili-
tares. Com a sua morte trágica e prematura, antes da posse como Presidente, José
Sarney assume o cargo e convoca meses depois a Assembleia Nacional Constituinte.
Barbosa Pinto nos relata que a reivindicação por uma nova constituição fazia
parte da agenda do MDB, partido de oposição à Arena no sistema bipartidário criado
pela ditadura, e constou da ata da primeira reunião formal do comitê da campanha
“Diretas Já!” (PINTO, 2009, 76-77). Pode-se dizer, portanto, que sua convocação foi
impulsionada por um movimento de massas sem paralelo na história de nosso país e
que durou anos. Não é de se admirar, portanto, a intensa participação popular na
Assembleia Nacional Constituinte.
Para começar, a constituinte partiu do zero, ou seja, não teve como ponto de
partida um anteprojeto elaborado por um deputado, senador ou jurista de renome,
como é comum na produção das leis. Também não havia uma agenda prévia que
definisse os limites ou os objetivos da Assembleia Nacional Constituinte. Tudo pôde
ser discutido (PINTO, 2009). Adriano Pilatti produziu um relato detalhado do funci-
onamento da Constituinte que corrobora tais afirmações (ver PILATTI, 2008).
O dia a dia da Constituinte foi marcado por intensa participação direta da
sociedade nas comissões, responsáveis por elaborar as diversas partes do texto cons-
titucional. Além disso, foram encaminhadas ao Congresso Nacional emendas popu-
lares e sugestões de cidadãos e entidades variadas. Como relata Barbosa Pinto, foram
cerca de 120 emendas populares, legitimadas por 12 milhões de assinaturas, mais de
70 mil sugestões de cidadãos e organizações. Foram realizadas mais de 180 audiências
públicas que contaram com a participação da sociedade civil que compareceu para
debater as partes do texto constitucional que eram de seu interesse direto (PINTO,
2009, 81). O relato de Mendes Cardoso é ainda mais detalhado, mapeando a partici-
pação popular em todas as comissões temáticas da Constituinte e verificando seus
efeitos sobre o texto final (CARDOSO, 2017).
A sociedade civil organizou-se para participar e acompanhar a Constituinte
com a criação de espaços e entidades como o Plenário Pró-Participação Popular na
Constituinte, o Movimento Nacional Pela Constituinte, o Movimento Gaúcho Pró-

170
Constituinte. Entidades já existentes também se envolveram com intensidade no pro-
cesso como o DIAP – Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar, a OAB,
a Igreja Católica, organizações de defesa dos direitos da mulher, dos negros e negras,
CUT – Central Única dos Trabalhadores, CGT – Central Geral dos Trabalhadores,
FIESP – Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, CNI – Confederação
Nacional da Indústria, CONTAG – Confederação Nacional dos Trabalhadores em
Agricultura, MST – Movimento Sem-Terra.
Até mesmo os empresários, que raramente atuam politicamente de maneira
aberta, organizaram-se na União Brasileira dos Empresários, cujo objetivo foi defen-
der seus interesses na Constituinte. Foi criada também a Frente Nacional pela Livre
Iniciativa, que teve papel importante na discussão do texto final da Constituição
(PINTO, 2009, 82).
Em quase dois anos de debates intensos, abertos, realizados com ampla pu-
blicidade, 6 mil emendas foram apresentadas nas subcomissões temáticas, 7 mil nas
comissões especiais e 20 mil na comissão de sistematização. Esta última comissão
produziu três textos constitucionais completos que foram debatidos exaustivamente
para dar origem ao texto final, aprovado em duas rodadas de votação pelo Congresso
Nacional, após vários destaques votados em separado (PINTO, 2009, 83).
A despeito de tudo isso, como nos relata Barbosa Pinto, a Constituinte foi
objeto de uma série de críticas no que diz respeito à sua legitimidade. A primeira delas
aponta que nossa Constituição não foi elaborada por uma Assembleia Nacional Cons-
tituinte especificamente eleita para este fim e seu texto não foi aprovado diretamente
pelo povo por meio de um referendo. Outra crítica reza que nossa Constituição foi
vítima de grupos de interesse que se apropriaram de seu texto em seu favor e uma
última crítica afirma que a Constituinte não passou de um pacto entre elites que tinha
como objetivo impedir uma verdadeira transformação da sociedade brasileira
(PINTO, 2009, 85-96).
Barbosa Pinto refuta cada uma dessas críticas, demonstrando que o processo
constituinte foi marcado por um debate ideológico aberto e público e sustentando
que não haveria nenhuma garantia de que a escolha de qualquer outro caminho tivesse
gerado mais participação e mais discussão. A Constituinte foi “um processo extrema-
mente aberto e disputado em que não existiram coalizões estáveis e no qual partidos
políticos operaram de maneira fragmentada” (PINTO, 2009, 96), conclusão corrobo-
rada por Mendes Cardoso (CARDOSO, 2017).

No mesmo sentido, avalia Marcos Nobre:

Considero a CF de 1988 como expressão de uma crise de hegemonia advinda


do fim da ditadura militar e da redemocratização. No caso do processo de rede-
mocratização brasileiro, isso significa que o bloco de sustentação da ditadura

171
militar havia se desagregado, não tendo sido capaz de manter o controle da tran-
sição. Mas, ao mesmo tempo, não se formou nesse período um bloco alterna-
tivo, capaz de dirigir o processo, isto é, capaz de estabelecer de antemão as regras
que devem reger a própria disputa política. Com isso, o processo constituinte foi
marcado por novidades como uma intensa e influente participação da sociedade
civil organizada, um fenômeno de magnitude única na história brasileira. De outro
lado, foi marcado igualmente pela ausência de um bloco hegemônico, o que levava
as disputas invariavelmente para clinchs políticos” (NOBRE, 2008, 98).

O resultado foi este texto longo e marcado pela consagração de princípios


contraditórios que dificilmente podem ser organizados sistematicamente em um todo
coerente. Até hoje há críticas que apontam que a CF teria tornado o país ingovernável
justamente por esta razão. Por exemplo, Jose Sarney em entrevista ao Conjur em 2008
afirmou:

Foram incluídos na Constituição todas as reivindicações corporativas, tornando


o país ingovernável, com um desbalanço entre seu poder e seu dever. Nosso
sistema eleitoral é ainda o do voto uninominal proporcional, funcionando sem
partidos. Nosso sistema de governo mistura a competência dos Poderes. O me-
canismo da Medida Provisória tornou-se o principal meio de legislar. (SARNEY,
2008)

De fato, praticamente todos os conflitos sociais brasileiros estão expressos


no texto Constitucional que pode ser visto como um verdadeiro mapa das disputas
até hoje presentes em nossa sociedade civil. Políticas sociais, de saúde, incentivos à
livre-inciativa, intervenções do Estado na economia, conflitos raciais e em razão de
gênero, questões relativas à justiça tributária, federalismo, problemas empresariais, in-
teresses do funcionalismo público, conflitos de terra, conflitos indígenas e quilombo-
las, entre tantos outros, estão presentes no texto constitucional com a mesma hierar-
quia. Evidentemente, satisfazer a todos ao mesmo tempo significaria criar um país
perfeito e pacificado, subtraído de todas as suas divergências.
No entanto, não era objetivo da Constituição solucionar todos estes proble-
mas, ao contrário. Estamos diante do que eu denomino constituição sem vencedores. Um
texto Constitucional que acolheu todos os conflitos sociais brasileiros sem decidir
nenhum deles com a finalidade de oferecer à sociedade instrumentos para mediar suas
disputas mediadas por meio do direito, mas sem conceder a vitória final a nenhum
grupo social. Nesse sentido, trata-se de um texto radicalmente democrático.
Por exemplo, o estímulo à livre-iniciativa se fez a par da consagração de uma
série de direitos sociais e hipóteses de subsídios estatais às empresas e intervenção do
estado na economia, a Constituição estimula o desenvolvimento do mercado e pro-
tege os povos tradicionais, ou seja, para cada valor consagrado na Constituição, po-
demos encontrar valores concorrentes e até mesmo contraditórios.

172
Tal fato revela claramente que o texto não foi o resultado da hegemonia po-
lítica deste ou daquele grupo social sobre a sociedade brasileira. Antes, ela é um retrato
fiel de nossas mais profundas divergências. Por esta razão, todos os grupos sociais
podem e fazem referência ao texto Constitucional para defender seus projetos de país
e suas demandas. Por exemplo, como nos mostra Marco Nobre:

Foi no bojo desse processo de superação da crise de hegemonia da redemocra-


tização que a Constituição Federal adquiriu progressivamente a legitimidade de
que desfruta hoje. Por um lado, ao se propor a difícil tarefa de obter três quintos
dos votos nas duas casas do Congresso para alterá-la, o governo FHC reconhe-
cia a sua importância e legitimidade. Do lado dos opositores às reformas, a de-
fesa do texto original da CF era invocada contra as alterações propostas. O
mesmo PT que não votou a favor do texto em 1988 passou a defender o texto
com afinco na década de 1990. Portanto, se em 1993 a revisão constitucional
não se realizou e a CF era ainda largamente considerada como um Frankenstein
político-jurídico, dois anos depois ela era considera da referência partilhada por
todas as forças políticas do país. (NOBRE, 2008)

A figuração jurídica desta incongruência constitucional demorou a ficar to-


talmente explícita na teoria constitucional nacional. Salvo engano, nos primeiros anos
de vigência de nossa constituição, o debate jurídico se deu a partir do conceito de
“eficácia das normas constitucionais”, sob a imensa influência do livro sobre o as-
sunto escrito por José Afonso da Silva (SILVA, 1998) e comentado por todos os
primeiros intérpretes do texto Constitucional. Ou seja, o debate jurídico se deu em
função do texto da Constituição e não de sua interpretação. A disputa neste registro,
parecia partir do pressuposto de que o texto Constitucional havia consagrado clara-
mente uma série de direitos, os quais deveriam ser simplesmente efetivados pelo Po-
der Judiciário.
A estratégia das forças sociais e da disputa pela constituição na esfera pública
neste momento era reivindicar a mera implementação do texto constitucional. Por
exemplo, a década de 90 foi marcada por um ciclo de reformas do texto da Consti-
tuição levada adiante por Fernando Henrique Cardoso, que fez aprovar uma série de
emendas constitucionais (MELO, 2002). Nesta época, diga-se, tínhamos um Supremo
pouco atuante, ao menos em casos considerados inovadores para nossa tradição cons-
titucional. O debate sobre a mudança constitucional ficou localizado no Executivo e
no Legislativo.
À exceção de livros pioneiros como os de Paulo Bonavides (Direito Constitu-
cional) e Eros Grau (Direito Constitucional Econômico) (BONAVIDES,2006; GRAU,
2008), a produção teórica em direito constitucional reservava menos espaço à herme-
nêutica e à teoria da argumentação, que tardou alguns anos a se desenvolver a par da
explicitação de conflitos sobre o sentido da constituição que não podiam ser resolvi-
dos pelo mero recorrer à literalidade do texto constitucional. Com o passar dos anos,

173
houve uma explosão de escritos sobre interpretação constitucional e interpretação em
geral, explosão esta que parece seguir o ritmo do acirramento de conflitos sobre a
interpretação da Constituição, não mais sua reforma, em função de uma postura cada
vez mais ativa dos Tribunais em tematizar e inovar na interpretação do texto consti-
tucional.
A mudança de arena do Parlamento e do Executivo para o Poder Judiciário
ainda carece de explicação mais extensiva. Mas ao que tudo indica, esta transformação
é contemporânea ao auge do assim chamado peemedebismo, marca de nossa cultura
política desde a década de 80 (NOBRE, 2013). A lógica do peemedebismo, descrita
por Marcos Nobre, é tentar manter dentro de um mesmo partido e depois, dentro de
um mesmo governo, tendências heterogêneas e contraditórias por meio de um sis-
tema de vetos aos temas de interesse de cada grupo. Sob o peemedebismo, qualquer
grupo pode aderir ao governo e, caso consiga organizar um grupo de pressão, pode
vetar as medidas que digam respeito a seus interesses. Este sistema evita o confronto
aberto das forças políticas no espaço público em troca da criação de maiorias que
partilham o governo e tem a capacidade de impedir que uma série de pautas avancem.
A inclusão contínua de participantes na maioria tem limites, vide as manifestações de
junho de 2013 e a crise política que se seguiu e ainda não dá sinais de terminar (NO-
BRE, 2013).
Seja como for, parece fazer sentido dizer que uma série de pautas barradas
pela maioria que sustentou os governos nos últimos 15 anos foram direcionadas ao
STF. Um trabalho de pesquisa a ser feito para comprovar esta hipótese seria o mape-
amento da base social interessada nos julgamentos do STF nos últimos anos cruzado
com uma investigação sobre seu papel nos acordos políticos da maioria que sustentou
os últimos governos. O autor deste texto, tive a experiência pessoal de me deparar
com um desses vetos na condição de pesquisador, durante a realização do projeto de
pesquisa sobre Propriedade Intelectual e Conhecimentos Tradicionais financiado pelo
PNUD e coordenado pela Secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça.
Durante o projeto, fui convidado a dialogar com diversas áreas do governo para co-
nhecer suas expectativas sobre nossa pesquisa.
Na Casa Civil, fui convidado a conversar com o advogado responsável pelo
andamento dos projetos de lei sobre este tema no Legislativo. Nesta ocasião, me foi
dito claramente que o tema envolvia interesses da agricultura, especialmente no que
diz respeito a sementes, e pesquisa de conhecimentos tradicionais indígenas: sem um
acordo político claro entre essas forças, o governo iria “sentar em cima” (sic), ou seja,
o tema seria levado adiante e, portanto, minha pesquisa teria pouca utilidade imediata
para a elaboração de uma nova legislação.
O Supremo parece ter percebido com clareza que havia um espaço político
vazio a ser ocupado por este Tribunal, neste caso, exercendo funções claramente con-
tra majoritárias, a favor de pautas excluídas do acordo das maiorias peemedebistas.

174
Isto se deu principalmente a partir da Presidência de Gilmar Mendes entre 2008 e
2010 (FERREIRA & FERNANDES, 2013). A partir deste momento, este Tribunal
começa a estreitar as suas relações com a sociedade civil, passando a dar maior im-
portância às audiências públicas, por exemplo, e assumindo com clareza a tarefa de
dar sentido para o texto constitucional, diante de uma série de problemas sociais le-
vados a este tribunal por meio de ações constitucionais. Sobre este momento, afir-
mam Siddharta Legale Ferreira e Eric Baracho Dore Fernandes:

... a "Corte Gilmar Mendes" evidenciou um terceiro momento histórico, a partir


do qual o Judiciário definitivamente foi alçado à condição de protagonista no
cenário político brasileiro, proferindo decisões que ousaram ir um pouco além
das tendências autocontidas da "Corte Moreira Alves" e consolidando-se como
importante instância contramajoritária, na qual acabam sendo discutidos os mai-
ores dilemas institucionais da nação. Já consolidadas as técnicas de interpretação
e aspectos processuais mais relevantes dos instrumentos de controle concen-
trado, o Supremo passa a agir de forma mais ativista, como, por exemplo, no
caso da inconstitucionalidade por omissão, tema em relação ao qual a mudança
de entendimento foi considerável em relação ao momento anterior (FERREIRA
& FERNANDES, 2013: 21).

O movimento, por assim dizer, da eficácia à hermenêutica das normas cons-


titucionais, culmina, no entanto, diante da imensa dificuldade em atribuir um sentido
claro e evidente às normas extraídas do texto constitucional. Também organizá-las
em um todo coerente. Começa a ficar cada vez mais claro que qualquer solução pro-
posta para um problema jurídico que envolva a constituição envolve uma proposta
de ordenação de princípios e regras sempre passível de refutação e contestação por
propostas concorrentes. Como nos ensina Humberto Ávila:

A questão de saber se há prevalência ou hierarquia abstrata entre normas jurídi-


cas, no sentido e uma ordem imanente de preferência, é altamente conturbada.
Uma relação definitiva de prevalência entre normas jurídicas constitucionais (...)
é insustentável” (ÁVILA, 2015: 167).

Estas afirmações, em sentido geral, valem é claro, para qualquer interpreta-


ção jurídica, não apenas para a interpretação constitucional. Toda interpretação se dá
em um espaço de indeterminação que o intérprete irá preencher com fundamento em
determinados critérios, critérios os quais estão longe de ser objeto de consenso entre
teóricos e profissionais do direito. Mesmo diante de normas de comportamento que
estabeleçam tipos de fatos jurídicos em abstrato, a qualificação jurídica dos fatos con-
cretos não se dá por mera subsunção dos fatos à norma e tem sido descrita de diversas
formas, por exemplo, como um raciocínio essencialmente analógico ou tópico e não
subsuntivo (KAUFMANN, 2004 e VIEHWEG, 1979 respectivamente; para a relação
entre tópica e direito civil brasileiro, ver FACHIN, 2015).

175
Talvez seja este o único resultado consensual ao qual a teoria do direito che-
gou ao longo do século XX. Nenhum furto, nenhuma compra e venda, nenhum ca-
samento é igual a outro: cada conjunto de fatos concretos que se pretenda qualificar
juridicamente é dotado de características singulares as quais podem não se enquadrar
com total precisão no tipo abstrato descrito na norma. “São proibidos animais no
transporte público coletivo”: inclusive cães-guia de deficientes visuais? Também pei-
xes ornamentais transportados um saco plástico? Ou cães-robô que mimetizam o
comportamento dos animais reais?
A resposta a cada um destes problemas pode variar em função do método
interpretativo aplicado, por exemplo, em função das diversas maneiras de avaliar a
finalidade da norma em questão e da função atribuída ao poder judiciário no processo
de atribuir sentido às normas jurídicas. Posições textualistas ou que apelem para a
finalidade da norma, neste caso, propondo-se a investigar e sustentar a existência de
princípios a elas implícitos, produzirão resultados diversos; todos eles passíveis de
justificação coerente em face do material jurídico positivo à disposição do intérprete.
Ora, diante de um texto constitucional altamente complexo e incongruente
como o texto da CF de 1988 e da atual posição assumida pelo STF, o caráter cons-
trutivo, ativo, criativo do intérprete fica na mais completa evidência (RODRIGUEZ,
2013a). Mais do que isso, a tarefa de organizar as regras em um todo coerente com a
finalidade de tratar casos semelhantes de forma semelhante passa a ser desempenhada
em face de um grave risco político: atribuir a vitória a um valor e, portanto, aos desejos
e interesses de determinados grupos sociais, onde o projeto constitucional desenhou
um acordo indeterminado, sem vencedores claros.
Nesse sentido, a construção de interpretações coerentes do texto constituci-
onal, em determinadas circunstâncias, pode ser vista como um desvalor, afirmação
claramente contra intuitiva para qualquer jurista treinado no pensamento dogmático
mais tradicional, marcado pela ideia de sistema. A interpretação constitucional não
pode, por meio do ato heroico - e institucionalmente irracional, como veremos adi-
ante - de um juiz ou juíza isolada, pôr em risco o sentido aberto e sem vencedores do
pacto político-constitucional celebrado pela nação brasileira em 1988.
Apressar-se a resolver a suposta incoerência da constituição por amor a um
possível “espírito de sistema”, necessidade que muitos teóricos do direito entendem
como essencial ao direito, pode terminar representando um desserviço ao sentido e à
estabilidade de nossa Constituição, adequada para lidar com uma sociedade, plural,
complexa e rasgada por conflitos sociais deflagrados. Em uma palavra, a incoerência
de nossa Constituição exerce um papel político primordial.
Como veremos, isso não significa que as pessoas passem a evitar interpretar
a Constituição. Este texto não defende as pessoas encarregadas de interpretar o texto
se eximam da tarefa com o objetivo de deixar totalmente em aberto o sentido do texto

176
Constitucional. É necessário, em algum momento, estabilizar determinadas interpre-
tações, especialmente em casos controversos, A meu ver, o que foi dito até aqui evi-
dencia apenas que a interpretação constitucional inovadora não pode ser pensada e
praticada como uma atividade meramente intelectual, solitária, técnica, atribuída a ju-
ízes e juízas, certamente eruditos e eruditas, postos heroicamente (ou herculeamente)
entre o texto constitucional, o problema concreto, o passado do direito, seu futuro e
o poder de seus intelectos. As características da Constituição brasileira impõem a ado-
ção de um procedimento radicalmente democrático, que passe bem longe da mera
atividade hermenêutica. Como nos lembra Ferdinand Lassale:

...as constituições escritas não têm valor nem são duráveis a não ser que expri-
mam fielmente os fatores de poder que imperam na realidade social... (LAS-
SALLE, 2013: 46).

A figura do juiz Hércules criada por Ronald Dworkin (DWORKIN, 2007)


soa, nessa ordem de razões, completamente inadequada para figurar nossa tradição
constitucional, com o potencial de pôr em risco a instabilidade de nossas instituições.
Pois a interpretação constitucional no Brasil não pode ser concebida, diante das ca-
racterísticas de nossa tradição constitucional mais recente, como uma tarefa que diga
respeito à opinião supostamente esclarecida do juiz ou juíza individual, por mais que
Dworkin reconheça que a justificação não pode ser uma opinião, a expressão da cons-
ciência dos juízes ou juízas, ela precisa buscar expressar a “resposta correta” para
determinado caso em seu contexto, de acordo com o sentido do projeto constitucio-
nal e utilizando os materiais jurídicos presentes naquela tradição. Mesmo assim, o fato
é que os magistrados e magistradas divergem e o fundamento de sua divergência, para
Dworkin, são tomadas de posição filosóficas a respeito do problema jurídico em ques-
tão e não como a expressão dos interesses sociais em jogo em uma determinada so-
ciedade.
Toda interpretação constitucional tematiza o pacto político fundamental
plasmado no texto constitucional e por isso sempre será uma tarefa com grande sig-
nificado político que deve ser realizada, se possível, com um grau semelhante de legi-
timidade àquele da Assembleia Nacional Constituinte, ou seja, não pelo juiz ou juíza
isolados, mas pelo diálogo entre ele e ela e os cidadãos e cidadãs interessados e inte-
ressadas na decisão do caso, tendo em vista um projeto constitucional como o brasi-
leiro que se caracteriza, justamente, por se recusar a se fechar em uma narrativa coe-
rente, em um sentido claro, unívoco e organizado. Para ficar na tradição grega, não
precisamos de um juiz Hércules, mas de um juiz ou juíza Sócrates, um juiz ou juíza
que interpele constantemente os cidadãos e cidadãs na ágora para conhecer e testar
as razões que os levam a dotar esta ou aquela posição diante do problema enfrentado
pelo Tribunal.

177
Ora, não é possível criar uma situação que reviva, ainda que em parte, o
mesmo grau de voltagem política confiando apenas na consciência sábia e silenciosa
dos juízes e juízas. Para realizar esta tarefa será necessário agir institucionalmente, ou
seja, utilizar uma série de mecanismos institucionais como elementos capazes de fi-
gurar os conflitos sociais com o máximo de fidelidade possível com o objetivo de
fazer com que a decisão tomada seja a mais responsiva possível aos interesses em
conflito.

A indesejável coerência: um modelo para exportação?

Sabemos que toda interpretação jurídica se dá em um espaço de indetermi-


nação, ainda mais diante de um Constituição como a nossa, ponto que examinamos
no item anterior. Por isso mesmo, é muito duvidoso que qualquer interpretação, rea-
lizada por quem quer que seja, seja capaz de convencer facilmente nossa sociedade de
sua adequação.
Como também já foi visto, não é adequado ao projeto constitucional brasi-
leiro pôr-se a organizar, individual e abstratamente, o que o legislador deixou incon-
gruente e vago; pôr-se a sistematizar o que foi pensado como pacto aberto e sem
vencedores. Diante de nossa Constituição, o excesso de espírito de sistema pode evi-
denciar tendências com potencial autoritário, oligárquico ou aristocrático, que tende-
rão a passar por cima da manifestação da soberania popular, manifestada na Consti-
tuinte, circunstância marcada por alto grau de voltagem política.
O originalismo democrático, portanto, parte do pressuposto de que nossa expe-
riência político-constitucional não produziu valores claros e organizados, plasmados
em princípios constitucionais coerentes, mas sim uma pauta de problemas sociais dis-
ciplinados de forma aberta por nosso texto constitucional. Nesse sentido, nosso texto
deve ser encarado como um mapa político-jurídico dos conflitos sociais brasileiros,
cuja função é oferecer parâmetros para lidar com os conflitos sociais, sem oferecer-
lhe solução antecipada.
Nossa Constituição, lembremos, não é fruto de uma revolução, liberal ou
socialista, mas sim de uma crise de hegemonia. O caráter aberto, contraditório e ex-
tensivo da disciplina constitucional brasileira põe o STF, em sua nova postura ativista,
no centro da ordem política brasileira, abrindo espaço para que este poder se mani-
feste sobre os mais variados problemas sociais, desde que acionado para este fim é
claro.
Daí a necessidade de pensar a interpretação constitucional como uma tarefa
argumentativa e participativa ao mesmo tempo. A interpretação da Constituição deve
ter como objetivo fazer soar o máximo de vozes sociais em seu interior, utilizando-se
para tanto de diversos mecanismos institucionais os quais devem procurar reconstruir,

178
na medida do possível a experiência democrática participativa da Assembleia Nacio-
nal Constituinte. Os juízes e juízas devem estabelecer uma relação contínua com a
sociedade para tentar construir boas respostas para os problemas que irão enfrentar.
Por esta razão, o originalismo democrático vê a intepretação constitucional
como um processo que inclui a decisão dos Ministros e do Tribunal - seu momento
culminante – e também as audiências públicas (GODOY, 2017), os amici curiae e quais-
quer outros instrumentos capazes de promover o diálogo entre o Tribunal, outros
organismos do Estado, mas principalmente, com a sociedade. Inclusive, mecanismos
não institucionalizados como o exame de decisões de outras cortes e de Tribunais
internacionais por alguns Ministros (SLAUGHTER, 2005), diálogos com represen-
tantes da sociedade civil. Todos estes mecanismos não são vistos como externos ou
complementares à argumentação, mas sim como internos a ela. Explico.
A conveniência de estabelecer um diálogo direto entre as Cortes e a socie-
dade brasileira é essencial para a legitimidade da decisão. A utilização de mecanismos
que visem a internalizar as vozes sociais no processo decisório permite que os Tribu-
nais, especialmente o STF, busquem identificar quais argumentos têm mais ou menos
peso para as diversas forças sociais em conflito naquele momento histórico e naquele
contexto específico. É claro, sempre haverá inúmeros argumentos possíveis, relativos
a qualquer questão constitucional. E certamente haverá inúmeras nuances, capazes de
promover variadas modulações de sentido para argumento que parecem idênticos. A
despeito disso, há quem veja a argumentação como um processo abstrato que procura
levar em conta o máximo de argumentos possíveis tendo em vista o objetivo de es-
gotar todos os argumentos relevantes a determinada decisão e produzir um texto es-
crito totalmente articulado e coerente.
Considero este modo de pensar equivocado. A legitimidade de uma decisão
tomada em certo momento histórico precisa dialogar com os argumentos efetiva-
mente mobilizados pela sociedade na qual o conflito se desenrola tendo em vista seu
significado específico, suas nuances, suas diversas formas de mobilização. Tentar
identificar os temas e argumentos efetivamente mobilizados e o seu sentido concreto
é essencial para que as Cortes sejam capazes de compreendê-los bem e atribuir a eles
a eles a importância e o peso devido. Um argumento pensado em abstrato pode ser
útil em atividades de caráter classificatório ou analíticas, ou seja, para uma eventual
crítica acadêmica das decisões judiciais, mas deixa de ser útil como elemento de uma
argumentação, que só existe em concreto, diante de um determinado auditório, con-
texto e momento histórico.
Basta um exemplo simples para perceber a importância desta visão encar-
nada da argumentação. Imaginemos um caso judicial em que esteja em questão a pre-
servação de uma determinada área de floresta nativa no Estado de São Paulo. Imagi-
nemos também que a preservação desta área seja defendida de maneira radical, de

179
forma aparentemente unilateral, sem levar em conta as necessidades de desenvolvi-
mento econômico da região. Posta a questão desta maneira, em abstrato, a defesa de
qualquer argumento de forma radical soa desarrazoada, afinal, nosso texto constitu-
cional protege o meio ambiente sim, mas também a atividade empresarial. Soaria mais
adequada uma solução que buscasse um equilíbrio entre estes dois valores no caso
concreto. No entanto, se examinarmos o que resta da cobertura vegetal nativa do
Estado, qualquer solução que não seja a sua preservação completa passa a soar inade-
quada. Basta examinar a figura abaixo:

Outro exemplo: a definição do que seja um negro ou uma negra é objeto de


debates nas ciências sociais: a utilização de categorias pensadas para os Estados Uni-
dos para pensar a questão racial no Brasil por exemplo é amplamente disputada pelos
estudiosos do campo (GUIMARÃES, 2004). Afirmar que pessoas negras são titulares
deste ou daquele direito, necessariamente irá levantar este tipo de problema, que exige

180
uma compreensão da realidade nacional, em especial o acesso à visão dos agentes
sociais sobre si mesmos e sobre seus pares ou antagonistas.
O intérprete da Constituição que adote o originalismo democrático para orientar
sua atuação deve procurar aumentar a voltagem política do processo decisório com o
objetivo de ter certeza de que foi capaz, no limite de sua capacidade e da capacidade
institucional da Corte, incluir a maior quantidade possível de argumentos devida-
mente contextualizados quanto a seu peso no processo decisório. Pois como já visto,
é necessário argumentar a favor da supremacia da constituição e da interpretação
constitucional com fundamento em algo mais, ou seja, com fundamento argumentos
capazes de engajar uma determinada comunidade política no cumprimento da sua
constituição específica.
É interessante perceber que o STF tem dado passos claros na direção de uma
postura originalista democrática nos últimos anos com a realização de audiências pú-
blicas (GODOY, 2017), a aceitação de amicus curiae de maneira mais liberal (GODOY,
2017; BISCH, 2010) e o uso da TV e dos pedidos de vista para ativar a esfera pública
em casos controversos, a despeito das teorias da interpretação não terem incorporado
estes mecanismos como elementos internos à tarefa de interpretar a Constituição.
Por exemplo, como mostra Godoy, as audiências públicas têm sido utilizadas
na argumentação dos Ministros, mas funcionam como meio para informar o juízo e
não como espaços de debate sobre qual deveria ser a melhor solução para o caso e a
aceitação ou não dos amici curiae não tem sido bem fundamentada por este Tribunal
(GODOY, 2017: 242). Godoy defende que o STF se torne uma corte dialógica e
passe a debater, internamente e com a sociedade, nas fases pre-decisional, decisional
e pos-decisional desenvolvendo novos mecanismos institucionais para que isso se
torne possível.
Nesse sentido, até mesmo o sistema de votação praticado por esta corte,
objeto de ácidas críticas no “Como decidem as Cortes?”, poderia se mostrar adequado
para esta finalidade (RODRIGUEZ, 2013a). Esta obra mostra que nossas cortes fo-
ram institucionalizadas para produzirem decisões irracionais, ou seja, decisões cujo
fundamento é impossível de se verificar. Isto porque cada juiz ou juíza tem o direito
de votar individualmente e a decisão final é obtida por maioria de votos. Os votos
individuais podem ser fundamentados ao bel prazer de seus autores a autoras. Não
há nenhum limite para isso.
Pode haver variação de argumentos citados, de casos anteriores menciona-
dos como pertinentes, de autores de doutrina, filosofia, história e assim em diante,
utilizados como elementos da justificação. O STF pode julgar casos por unanimidade
de votos e, mesmo assim, será quase sempre impossível organizar e hierarquizar seus
argumentos, ainda mais em casos controversos em que os Ministros e Ministras sen-
tem a necessidade de estender seus votos por dezenas e por vezes centenas de páginas,

181
sem contar com um momento de síntese, de organização dos argumentos utilizados
em um voto da corte.
Os casos julgados, especialmente os controversos, contam com as opiniões
de todos os juízes e juízas, sem que suas argumentações contribuam para a formação
de uma razão institucional, coletiva, que fosse capaz de apresentar a corte em uma
face unitária, ao menos no que diz respeito aos votos vencedores. Segue Rodriguez,
no caso, eu mesmo, afirmando que a personalização da argumentação se revela muitas
vezes nas características físicas do documento produzido a título de julgado em inteiro
teor pelo STF. Não é incomum encontrarmos tipologias diferentes nos votos, espa-
çamentos diversos, votos entremeados a debates e pedidos de vista em um emara-
nhado representativo do andamento do processo e dos debates e não um documento
pensado com organicidade para expressar a vontade do tribunal.
Ainda de acordo com o referido autor, qualquer tentativa de conferir ao Su-
premo alguma racionalidade decisória deveria passar por repensar o sistema de vota-
ção individual, mais especificamente, por dotar o Tribunal de um momento reflexivo,
um momento de síntese argumentativa que organizasse os diversos votos vencedores
de tal modo a expressar para a sociedade quais foram afinal as razões de decidir do
tribunal como um todo, do tribunal como instituição, e não de cada juiz ou juíza
individual.
“Como Decidem as Cortes?” mostra que esta irracionalidade essencial e ins-
titucionalizada de nossas Cortes exerce papel político importante, por exemplo, alivi-
ando as cortes do peso político de adotar como seu diante da sociedade este ou aquele
argumento explosivo e permitindo que os julgamentos ocorram sem o constrangi-
mento de uma trama argumentativa formada por razões decisórias coerente que pu-
desse vincular casos futuros.
Sem prescindir de um momento reflexivo e sintético, hoje inexistente, a pos-
sibilidade de voto individual dos juízes pode ser útil para o diálogo entre a Corte e a
sociedade. A existência de diversos juízes e juízas com formações e posições muito
diferentes pode ser extremamente importante para que a Corte como um todo seja
capaz de formar uma visão adequada do conflito social subjacente ao caso. Evidente-
mente, desde que cada juiz ou juíza não assuma uma postura personalista, mas pro-
cure veicular uma visão do caso que coloque o mesmo sob uma nova luz.
Ademais, a existência de votos televisionados e de pedidos de vista, que sus-
pendem o andamento do processo, podem servir para ativar a esfera pública ao per-
mitir que ela se manifeste, por exemplo, por meio de artigos de jornal, blogues e es-
critos de toda natureza, sobre o caso a ser julgado, ou seja, permite que se ative a
esfera pública para debater aquela questão específica. Imagina-se que a demora de
alguns votos e pedidos de vista, muitas vezes, já esteja servindo a este fim, a despeito
de tal uso não ser declarado expressamente pelos Ministros e Ministras.

182
Não parece haver prejuízo em que este uso fosse feito de forma transparente,
conjugado com outros mecanismos destinados a ouvir a sociedade, sempre com a
finalidade de impregnar a corte dos mais variados argumentos e pontos de vista. De
novo, é evidente que o exagero no uso destes mecanismos e a ausência de justificação
clara destes pedidos de vista frustraria os potenciais democratizantes destes mecanis-
mos que eu estou apontando aqui.
Para além do contexto de sua criação, o originalismo democrático e as ins-
tituições que ele pressupõe pode ser pensado como um modelo decisório adequado
para ambientes em que o direito não corresponde mais a um nomos unificado, ou seja,
para ambientes em que o direito deixou de ser a expressão de um acordo entre as
forças sociais e passou a ser um instrumento para mediar seus conflitos de forma
relativamente pacífica, ou seja, no fundo, ele se tornou mais uma expressão destes
conflitos.
Assim, em um nível mais fundamental, para além da crise de hegemonia que
deu origem à nossa Constituição, estejamos diante de um texto constitucional e de
instituições que expressem a fundamental ausência de um nomos juridicamente regu-
lado na sociedade brasileira. Um texto que não está e não pode estar fundado em um
acordo substantivo de base, exceto quanto à formulação nominal de alguns princípios
muito abstratos, cuja concretização diante de conflitos reais irá variar sempre, a de-
pender do ponto de vista que se adote e do problema enfrentado.
Se o que foi dito estiver correto, a incoerência de nosso texto pode ser inter-
pretada como expressão de uma dificuldade ainda mais fundamental da sociedade
brasileira, qual seja, a de estabelecer laços de sociabilidade entre os seus componentes,
problema posto em sua forma clássica por Sérgio Buarque de Holanda:

Não parece fácil determinar quando os habitantes da América lusitana, dispersos


pela distância, pela dificuldade de comunicação, pela mútua ignorância, pela di-
versidade, não raro, de interesses locais, começaram a sentir-se unidos por vín-
culos mais fortes do que todos os contrastes e diferenças que os separam e a
querer associar esse sentimento ao desejo de emancipação política. No Brasil, as
duas aspirações – a da independência e da unidade – não nascem juntas e, por
longo tempo ainda, não caminham de mãos dadas. As sublevações e as conjuras
nativistas são invariavelmente manifestações desconexas da antipatia que, desde
o século XVI, opõe muitas vezes o português da Europa e do Novo Mundo. E
mesmo onde se aguça a antipatia, chegando a tomar colorido sedicioso, com a
influência dos princípios franceses ou do exemplo da América inglesa, nada
prova que tenda a superar os simples âmbitos regionais (HOLANDA, 1961: 9).

A dificuldade brasileira de constituir uma nação unida, em razão dos fatores


apontados acima, dificultou, de acordo com Buarque de Holanda, a formação de um
estado de direito no país. Se não existe este sentimento comum, se não há um funda-
mento igualitário em nossa sociabilidade, parece natural que as relações familiares e

183
os interesses pessoais prevaleçam sobre a coisa pública, ou seja, sobre normas univer-
sais impessoais que impõe um tratamento igualitário a todos os cidadãos e cidadãs,
como o autor argumenta em Raízes do Brasil (HOLANDA, 1991).
Não há espaço aqui para atualizar devidamente o pensamento de Sérgio Bu-
arque de Holanda para o momento contemporâneo, mas vale a pena refletir a partir
de sua obra sobre as dificuldades atuais em organizar a vida social em torno de valores
comuns e o impulso de diversos grupos sociais ao isolamento, o que pode resultar em
uma intensa fragmentação da sociedade. “Tribalização do mundo”, “modernidade lí-
quida”, “crise de valores”, há inúmeras versões para a narrativa da perda de centrali-
dade da moral e da ética e a tendência de valorizar a identidade de indivíduos e grupos,
cada vez mais isolados e desconfiados diante de tudo o que seja estrangeiro e diferente.
De uma certa maneira, talvez seja razoável imaginar que a ideia de um direito
baseado em um acordo básico excessivamente substantivo, cujo sentido seja evidente
para todos os cidadãos e cidadãs, a ideia de um projeto constitucional unificado, é
uma ilusão a ser evitada de projetos de sociedade etnicamente e culturalmente homo-
gêneas e localizados no centro do capitalismo. Projetos políticos que imaginam ser
possível chegar a amplos acordos estáveis sobre seus problemas mais fundamentais,
muito em função da abundância de recursos materiais para criar e garantir direitos
para todas as pessoas. Nesse sentido, talvez as instituições brasileiras, que se organi-
zam para lidar com conflitos radicais na base social sob um regime de relativa escassez
de recursos para financiar os direitos e não almejam a construção de uma visão raci-
onal e sistemática de seu texto Constitucional, tenha algo a oferecer ao pensamento
jurídico mundial.
Assim, ao invés de pensar sobre nosso direito tendo em mente o que falta a
ela para que ele atinja os padrões racionais de experiências jurídicas estrangeiras, talvez
possamos imaginar que nossa experiência jurídica constitui um possível experimento
institucional capaz de inspirar países marcados por alta diversidade cultural e étnica,
características que podem se agudizar, especialmente em razão da globalização, pro-
cesso que se acelerou a partir da década de 90 do século passado, ideia que irei perse-
guir, logo adiante, no capítulo “Direito contra Direito”. No mínimo, não parece ra-
zoável pensar nossas instituições a partir do que falta a elas para se tornarem iguais às
instituições de outras regiões do planeta, mas sim a partir do que elas efetivamente
são.

184
Capítulo 8 – Crítica da Indeterminação do Direito

Visões da indeterminação

Nós, os juristas, começamos e terminamos o século XX debatendo o


problema da indeterminação do direito e, neste início do século XXI, em vários
sentidos, não se pode dizer que houve muitos avanços. Assim como igualdade e
liberdade, questões centrais para a civilização ocidental, das quais a indeterminação,
aliás, é a expressão jurídica, o problema segue tão central quanto inquietante,
desafiando pesquisadores e pesquisadoras ao redor do mundo. E a grande quantidade
de autores e autoras que almejam resolver o problema de uma vez por todas a golpes
de teoria é a prova maior de que, de fato, ele segue sem encontrar uma solução defi-
nitiva.
De fato, não há uma semana em que não surja um jovem ou uma jovem
Jurista ambiciosa que pretenda encerrar todas as contendas a respeito do assunto e
apresentar a palavra final sobre não apenas a indeterminação do direito e também, se
for permitida a ironia, sobre a igualdade, a liberdade, e fraternidade, a política e o
sentido da vida. Em algum momento de minha trajetória de professor eu já achei
alguma graça nessa manifestação de ímpeto juvenil, nesse impulso desmedido, sem
mediações, por isso mesmo, ingênuo, de querer resolver todos os problemas do
mundo pela via conceitual.
Hoje em dia, desconfio, tal impulso parece fazer parte do problema que
devemos enfrentar e ele explica, ao menos em parte, a situação política e jurídica na
qual estamos enredados. O desejo de solucionar de vez a questão da indeterminação,
a depender da solução formulada, pode ser posto a serviço de posições demofóbicas
(para o sentido do termo, ver AGUIAR: 2018) que buscam restaurar visões hierár-
quicas de direito, incompatíveis com a ideia moderna e contemporânea de um estado
democrático de direito.
Mas não antecipemos esta discussão antes de organizar, ainda que
esquematicamente, as principais posições que tratam da questão da indeterminação,
ou seja, do fato de que os problemas jurídicos que enfrentamos, como mostrou
Kelsen na sua Teoria Pura do Direito, admitem sempre mais de uma solução (KELSEN,
2009) ou, na formulação de Viehweg, os problemas jurídicos, para serem
solucionados, dependem de um acordo argumentativo prévio sobre as premissas das

185
quais iremos partir para construir a sua solução (VIEHWEG, 1979). Assim, podemos
considerar que é diferente afirmar que:

(a) a indeterminação é um problema a ser eliminado para que o Direito funcione bem
(posição anticonstrutivista);
(a.1) a indeterminação deve ser eliminada conferindo-se mais centralidade e
protagonismo ao legislativo (posição anti-interpretação);
(a.2) a indeterminação deve ser eliminada com a adoção de um método de
interpretação positivista renovado e uma postura não-ativista por parte do
Judiciário com fundamento em determinados objetivos que devem ser
perseguidos por nosso sistema jurídico, os quais motivaram sua criação (po-
sição positivista renovada);

(b) a indeterminação é uma característica essencial do direito contemporâneo e precisa


ser gerida em nome da igualdade diante da lei e da segurança jurídica, ou seja, para
evitar a arbitrariedade dos juízes e juízas (posição construtivista-institucionalista);
(b.1) a indeterminação deve ser gerida por juristas especializados:
(b.1.1) por meio de um método especializado e rigoroso para
solucionar casos concretos (posição institucionalista aristocrática e tecno-
crática), ou,
(b.1.2) em função da escolha de pessoas com excepcional senso de
justiça, pessoas que possam funcionar, como disse um dos atuais
Ministros do STF, como “vanguarda moral da nação” (posição insti-
tucionalista aristocrática e moralista);
(b.2) a indeterminação deve ser gerida por constrangimentos institucionais
que padronizem as decisões sem, necessariamente, impor um modelo
hermenêutico padronizado para todas os juízes;
(b.2.1.) tais constrangimentos devem ter um caráter eminentemente
técnico, centrado no debate sobre segurança jurídica, com o
objetivo de transmitir as interpretações do topo do Judiciário para a
sua base (posição institucionalista aristocrática pro-Tribunais Superiores);
(b.2.2) tais constrangimentos devem ter um caráter eminentemente
deliberativo e participativo, ou seja, a indeterminação deve ser gerida
por juristas no contexto de constrangimentos institucionais abertos
à sociedade, tendo os juristas o dever de racionar seguindo um
método interdisciplinar – o que exige repensar profundamente a

186
técnica jurídica – que leve em conta não apenas o material jurídico
posto, mas também os interesses e desejos da sociedade na
construção de soluções para os casos concretos (posição
institucionalista democrática).

O problema da separação dos poderes

Não há espaço para explorar em apenas um artigo todas essas posições, mas
é fácil perceber que juristas defensores e defensoras da visão “a”, ou seja, os juristas
que encaram a indeterminação como algo a ser eliminado, advogam pela manutenção
de um modelo de separação de poderes tradicional em que o Judiciário deve se limitar
a aplicar a lei sem assumir papel construtivo no processo de interpretação.
Os defensores da visão “b”, por sua vez, partem do pressuposto de que o
Judiciário é criativo, ou seja, cria normas ao solucionar os casos concretos, mais ainda
no momento de controle de constitucionalidade. É preciso lidar, por assim dizer,
parafraseando John Rawls, com o “fato da indeterminação” para que as decisões não
sejam tomadas caso a caso, ou seja, para que a ideia de igualdade perante a lei e de
segurança jurídica permaneçam vigentes de alguma maneira, ainda que não de acordo
com o padrão do legalismo liberal que almejava criar regras precisas para solucionar
todos os casos concretos.
Como mostrou Kelsen, ainda no começo do século XX em sua “Teoria Pura
do Direito”, as normas jurídicas são o resultado da interpretação, ou seja, elas estão
no final do processo de solução dos casos concretos que tem como ponto de partida
os textos normativos (RODRIGUEZ, 2013). Em sociedades altamente complexas e
conflitivas em que os agentes socais disputam não apenas a produção, mas também a
interpretação das leis, (nos dizeres de Franz Neumann, ver RODRIGUEZ, 2009a), é
impossível prever todos os casos concretos em regras precisas, ainda mais utilizando-
se a linguagem natural, polissêmica por natureza, suscetível a dar lugar a várias
interpretações de um mesmo texto ao longo do tempo, como mostrou Hart no seu
O Conceito de Direito (HART, 1994).
Para ilustrar essa afirmação, basta imaginar o seguinte texto normativo
hipotético: “São proibidos animais neste condomínio: multa de X por dia até a retirada
do animal”. Pois bem: essa regra se aplicaria a peixes de aquário? De acordo com uma
interpretação estritamente textualista sim, mas se pensarmos na finalidade da norma,
argumentando que tenha sido elaborada para manter o silêncio e a higiene em espaços
comuns, a resposta seria exatamente a contrária: apenas animais barulhentos e que
produzam sujeira estariam incluídos em seu escopo, não os peixes.
Kelsen afirma expressamente no capítulo final da sua Teoria Pura do Direito
que não há critério jurídico para escolher entre uma interpretação textualista e uma
interpretação finalista: esse não seria um assunto para a Ciência do Direito, mas sim
187
para o que ele chama de “política jurídica”, prática que entregue, ainda de acordo com
o autor, à escolha subjetiva de juízes e juízas (KELSEN, 2009).
Para complicar ainda mais o problema, imaginemos a seguinte situação: essa
norma se aplicaria ainda a um cachorro-robô que se comportasse como um cachorro
de verdade, latindo e ganindo o tempo todo? Suponhamos também que o movimento
pelo direito dos animais encampasse tal questão em sua agenda política e passasse a
oferecer auxílio jurídico para todos os donos e donas de animais multados nos
condomínios ao redor do país, inclusive nos casos dos cachorros-robô. Imaginemos
também que grupos contrários aos direitos dos animais resolvessem entrar na briga,
patrocinando advogados para defender os condomínios. Qual seria o resultado de
toda esta ação político-jurídica para a estabilização de sentido dos textos normativos
em questão?
Será justamente para questionar essa visão de Ciência do Direito e da
racionalidade jurisdicional o qual, aparentemente, apenas diagnostica o fenômeno da
indeterminação sem oferecer meios de lidar com ele, que parte dos juristas da segunda
metade do século XX irá reconstruir o ideal de segurança jurídica em outros termos.
Tal reconstrução propõe uma nova visão da hermenêutica jurídica, fundada em nova
concepções de Teoria do Direito, como será exposto sumariamente a seguir (para
uma exposição mais detalhada, ver RODRIGUEZ, 2013a).
De sua parte, os juristas que defendem a visão “a1”, entre outros, Mark
Tushnet, autor de Taking the Constitution Away From the Courts (TUSHNET, 1999) não
estão preocupados com esses problemas. Sustentam que é necessário devolver o
poder político ao povo, ou seja, ao Legislativo, limitando o espaço para julgamentos
das cortes, especialmente das cortes constitucionais.
Já aqueles que defendem visão “a2”, como Frederick Schauer e Adrian
Vermeule, autores de, respectivamente, “Playing by the Rules” (SCHAUER, 1991) e “Ju-
dging Under Uncertainty” (VERMEULE, 2016) pretendem apresentar uma formulação
renovada do positivismo jurídico, propondo um modelo hermenêutico mais
sofisticado do que o modelo textualista característico da tradição da escola da exegese,
já incorporando a reflexão positivista contemporânea sobre o problema da
indeterminação (sobre o positivismo contemporâneo ver DIMOULIS, 2018).
Os juristas que defendem a posição “b” partem do pressuposto de que a
visão positivista da interpretação não faz mais sentido, sendo necessário (b.1) propor
uma nova visão de Teoria do Direito, de hermenêutica jurídica e de segurança jurídica,
com fundamento em outros pressupostos conceituais e/ou (b.2) delinear
constrangimentos institucionais que sejam capazes de padronizar as decisões, mesmo
que a Teoria do Direito abra totalmente mão de controlar a racionalidade dos juízes,
ou seja, controlar seu modelo de raciocínio no processo de tomada de decisões (para
mais detalhes, ver RODRIGUEZ, 2013a).

188
Entre Aristocracia e Democracia

A classificação apresentada acima deixa clara a complexidade do problema


da indeterminação e a dificuldade de tentar resolvê-lo de uma vez por todas. Em vez
de incorrer nessa manifestação de hybris conceitual, o mais razoável a fazer é seguir
refletindo e organizando as diversas posições a respeito do tema e, eventualmente,
desenvolver pesquisas a partir de cada uma delas, sem sonhar em colocar um ponto
final na discussão.
Para proceder dessa forma, é necessário partir do pressuposto de que cada
uma dessas posições expressa visões muito diferentes a respeito da relação entre
direito e democracia, as quais não admitem derrota definitiva, pois estão fundadas em
uma opção valorativa, ou seja, em uma tomada de posição na defesa deste ou daquele
projeto de Direito, ao qual correspondem uma certa visão de Poder Judiciário e um
determinado modelo hermenêutico ou modelo de raciocínio jurídico (ver RODRI-
GUEZ, 2013a).
Por isso mesmo, é importante perceber que as posições examinadas acima
terão consequências muito diversas para a balança de poder entre os diversos agentes
e grupos sociais em conflito. Por exemplo, um defensor da posição “a” pode não ter
consciência desse fato; contudo sua defesa da separação de poderes em sentido
clássico, no contexto brasileiro, irá limitar o poder do STF de criar normas,
devolvendo-o ao Parlamento; este que tem sido o órgão estatal menos sensível à
criação e garantia de qualquer direito voltado às minorias, como direitos que
beneficiem a população LGBT; um órgão que também tem relutado em aprovar
mecanismos de justiça distributiva para favorecer maiorias excluídas, como as cotas
nas universidades para a população negra. Como sabido, tanto a adoção de cotas em
universidades quanto os avanços na proteção da população LGBT foram
protagonizados pelo STF.
De sua parte, um jurista que, aceitando o “fato da indeterminação”, ponha
todo o peso na criação de um método rigoroso para produzir decisões as mais
congruentes possíveis, pode terminar advogando em favor da concentração do poder
de criar normas nas mãos de uma aristocracia judicial, ou melhor, de uma tecnocracia
judicial fechada para o debate com a sociedade. Afinal, se o direito é, de fato,
indeterminado, ou seja, se os textos admitem várias interpretações e a sociedade
diverge a todo instante sobre qual delas é a correta, qual seria razão para concentrar
o poder de escolha apenas nas mãos dos juízes e juízas?
De acordo com a visão clássica da separação dos poderes, a função
jurisdicional é, por definição, despersonalizada. Afinal, cabe ao juiz, nessa perspectiva,
apenas aplicar a lei, pouco importando suas convicções e características individuais.
Na verdade, o que é realmente relevante é sua capacidade técnica para extrair o
sentido de leis abstratas e solucionar casos concretos. Ora, ao admitirmos que o

189
direito é indeterminado, é preciso considerar a hermenêutica jurídica como uma
atividade construtiva, ou seja, uma prática que implica em fazer determinadas
escolhas; uma prática que implica em admitir que a norma jurídica não pode ser
confundida com o texto normativo pura e simplesmente, mas é o resultado de sua
interpretação.
Por assim dizer, é como se a norma jurídica transbordasse do texto para se
formar, de fato, no Poder Judiciário, no processo de solução dos casos concretos
(RODRIGUEZ, 2013a; FERRAZ JR., 2014), processo no qual a pessoa dos juízes se
torna central para a produção do direito. Ora, se o legalismo liberal nos permitia dizer
que pouco importava quem fosse a pessoa do juiz, pois ele seria apenas a boca da lei
ou um técnico especializado em extrair sentido delas, para uma visão construtiva da
hermenêutica jurídica a pessoa do juiz passa a falar, digamos assim, com a sua própria
boca. Nesse sentido, portanto, sob uma visão constrituva da hermeneutica jurídica, a
função jurisdicional sofre um processo de re-personalização.
Seguindo esta ordem de razões, qual seria o argumento para deixar a
sociedade de fora do procedimento de formação das normas jurídicas que regulam a
vida dos cidadãos, senão uma defesa, em certa medida, corporativista e aristocrática
da tecnocracia judicial? Pois se o poder de legislar em abstrato não é mais
exclusivamente exercido pelo Poder Legislativo, seu exercício exclusivamente pelo
Judiciário não careceria de um grave déficit de legitimidade?
Mesmo que esse problema não se coloque desta forma no debate sobre a
renovação da Teoria do Direito e a construção de modelos hermenêuticos, por
exemplo, com fundamento na ideia de razão prática, não me parece que ele possa ser
afastado da reflexão sobre este tema. A Teoria do Direito não pode deixar de refletir
sobre seus efeitos no debate político, mais especificamente, sobre o modelo de Estado
e de separação de poderes que cada visão da racionalidade jurisdicional acaba por
pressupor ao formular seus conceitos.
Ademais, para Aristóteles, como se pode ler em sua “Política” (ARISTÓTE-
LES, 2006) a relativa objetividade da razão prática estava ligada a uma aristocracia do
saber, a determinados homens virtuosos por natureza e, por isso mesmo, mais sábios
do que os demais, também por terem desenvolvido suas capacidades em razão de sua
educação e de sua experiência, o que os habilitava a proferir julgamentos mais justos
do que os demais em face dos conflitos sociais.
O estagirita reconhecia capacidades racionais em todos os seres humanos,
julgando que todos seriam capazes de aperfeiçoamento. No entanto, sua visão da
sociedade era hierárquica o que resultava, sob critérios contemporâneos, em uma
visão excludente da atividade política; excludente de escravos, bárbaros e mulheres.
Alguns nasciam para ser livres, outros para serem escravos e outros, ainda, para serem
sábios capazes de se tornarem juízes dos problemas sociais.

190
Tal menção a Aristóteles, lida a par da mencionada concentração de poder
nas mãos do Poder Judiciário, pretende sugerir, provocativamente, que a tentativa de
lidar com a indeterminação via aperfeiçoamento teórico-metodológico das teorias da
racionalidade jurisdicional ou a partir da visão do Judiciário como vanguarda moral
da sociedade pode vir a introduzir uma visão e uma prática hierárquicas no interior
do estado democrático de direito.
Afinal, excluída a possibilidade de encontrar princípios transcendentes para
conferir rigor a julgamentos práticos, inclusive no campo do direito, i. e., excluída a
possibilidade de estabelecer critérios a priori para orientar a razão prática (KELSEN,
2009), estamos, por assim dizer, condenados a construí-los nas interações entre os
agentes e grupos sociais, dimensão essa que um hegeliano chamaria de “experiência”
des-transcendentalizada e um husserliano, por sua vez, de “mundo da vida”. De
minha parte eu chamaria, para os fins deste texto, apenas de “política”.
Afinal, a indeterminação do direito é um dos resultados do advento da mo-
dernidade, ou seja, da fragmentação das visões de mundo e das esferas valorativas
(economia, direito, política, amor e outras esferas passam a funcionar com uma raci-
onalidade própria, ver WEBER, 1983), processo que fez com que nenhuma visão
religiosa ou ética seja capaz de abarcar e contemplar todas as formas de vida existentes
nas diversas sociedades. E é justamente porque uma teoria da justiça abrangente e
substantiva não é mais possível que o direito moderno passa a exercer o seu papel
específico: produzir arranjos provisórios nos desejos e interesses das pessoas e grupos
que seguem em permanente conflito e em permanente transformação. Não cabe ao
direito solucionar a fragmentação de sentido presente na sociedade contemporânea
(ver COVER, 2019)
A concentração de cada vez mais poder legislativo nas mãos do Judiciário,
consequência de uma visão e de uma prática construtiva da racionalidade jurisdicional,
pode resultar na concentração do poder de produzir normas gerais abstratas nas mãos
da figura personalizada de determinados Juízes e Juízas não eleitos, competentes para
decidir conforme a sua consciência individual.
Por isso mesmo, a meu juízo, apenas o regime democrático e sua promessa
de construir formas institucionais capazes de levar em conta todos os interesses
sociais no processo de formação das normas jurídicas parece oferecer uma resposta
adequada ao problema da indeterminação em uma sociedade multirracial,
multirreligiosa e marcada pela presença de diversas posições ideológicas sobre os mais
diversos assuntos. É preciso pensar a gestão da indeterminação de forma democrática
para evitar a configuração aristocrática que acabo de descrever.
Sem dúvida, é necessário haver juristas profissionais gerindo as escolhas
hermenêuticas em face da necessidade de especialização das funções em sociedades
complexas e de massa como as sociedades contemporâneas. Não é razoável imaginar
que esta função não se configure como uma atividade especializada. No entanto, ela

191
não deve adotar feições aristocrática, ou seja, será necessário pensar os juristas e os
profissionais de direito que atuam no Estado como representantes dos variados
interesses sociais em conflito e não como sujeitos personificados que falam em nome
de seu convencimento subjetivo (para a crítica do subjetivismo, ver STRECK, 2017).
Nesse sentido, aliás, é uma pauta de pesquisa em aberto trazer para este campo da
reflexão os problemas e resultados da teoria da representação com a finalidade de
pensar um judiciário democrático (por exemplo, ver URBINATI, 2006, 2014)
Apenas assim, a meu ver, as normas jurídicas não correrão o risco de serem
construídas por Juízes e Juízas paladinos e/ou Juízes ou Juízas tecnocratas que se
julguem supostamente capazes de falar, por estarem em posição de poder, em nome
da “consciência moral da nação” ou da “melhor resposta possível”, sem estarem
submetidos a um procedimento decisório que os constranja a estabelecer um diálogo
constante com os cidadão e cidadãs.
Daí a importância, no STF especificamente, de uma corte bem recrutada,
composta por Ministros e Ministras com diversidade de origem, modo de pensar,
experiência pessoal e profissional. E esse mesmo raciocínio deveria ser aplicado a
todos os tribunais superiores e a toda a magistratura, órgão que exerce, eu insisto,
função legislativa.
Além disso, não seria razoável excluir outros mecanismos capazes de
promover a participação da sociedade no exercício do poder de criar normas jurídicas
no âmbito judicial. Por exemplo, as já existentes audiências públicas e amicus curiae,
entre outros que venhamos a inventar. Por que não pensar em júris constitucionais
para julgar casos altamente controversos? Júris compostos de pessoas afeitas ao tema,
de variadas origens e formações, escolhidos por uma combinação de mérito e sorteio?
É importante reconhecer que estes mecanismos que procuram estabelecer
um diálogo entre as Cortes e a sociedade ainda são incipientes e sua eficácia, muitas
vezes, é contestada pela literatura especializada (para uma boa visão do problema ver
GODOY, 2017). Mesmo assim, é necessário insistir nesse caminho se quisermos
sanar o déficit de legitimação e o risco aristocrático que uma visão e uma prática
construtiva da racionalidade jurisdicional instaura no coração da separação de
poderes.

Para uma Crítica da Indeterminação

Como se vê, o problema da indeterminação, tomado em toda a sua complexidade,


não admite soluções fáceis e definitivas. Trata-se de um problema radical que toca nas
características mais fundamentais do estado democrático de direito como o
conhecemos. É comum que uma questão com tais dimensões desperte delírios de
grandeza intelectual. Afinal, de um lado, se ela abre novas possibilidades para o
pensamento e para a ação, de outro, também pode gerar vertigens, em razão da

192
amplitude das possibilidades de mudança que se descortina diante de nossos olhos, o
que pode contribuir inclusive para o surgimento de fantasias regressivas.
Em ambos os casos, a ânsia por solucionar o problema de vez talvez seja,
afinal, expressão da dificuldade de suportar a indeterminação do direito e da
democracia no mundo contemporâneo a par da visão construtiva da racionalidade
jurisdicional o que pode motivar tentativas de excluir da política e da disputa pelas
forças sociais determinados bens e valores. Ou, ao menos, na tentativa de limitar o
debate sobre esses mesmos bens e valores a uma elite esclarecida, supostamente capaz
de gerir racionalmente o processo de disputa social, por exemplo, sobre a riqueza
econômica e sobre o reconhecimento simbólico.
Uma visão como essa, que poderíamos caracterizar de “demofóbica”, sem
negligenciar a necessidade de gerir as escolhas sociais com cuidado e racionalidade,
não deve ser descartada. Ela faz parte do jogo, possui legitimidade para disputar as
ideias na esfera pública. No entanto ela não pode servir para naturalizar uma
determinada visão do direito, do Judiciário, da separação de poderes e da
racionalidade judicial, levando a crer que a questão da indeterminação poderia ser
solucionada de uma única maneira, por exemplo, com a construção de uma Teoria do
Direito filosoficamente mais sofisticada do que todas as demais a ser utilizada para
decidir problemas jurídicos por uma elite intelectual esclarecida operando em
apartado do debate político que ocorre na esfera pública.
Como tentamos demonstrar neste texto, esse não é um problema
estritamente teórico, mas antes um problema ao mesmo tempo político, econômico,
social, filosófico e jurídico. Um problema que exige uma abordagem multidisciplinar,
que pode ser construída a partir das reflexões desenvolvidas pela Teoria Crítica da
Sociedade. Por isso mesmo, é necessário adotar uma visão crítica da indeterminação,
a qual eu procurei inaugurar neste texto, uma visão que nada mais é do que a expressão
jurídica de uma defesa normativa da diversidade social e da democracia radical, no
contexto jurisdicional, operada por Juizes e Juízas especializados, mas, para o bem da
democracia, mundanos, demasiadamente mundanos.

193
Capítulo 9 – A Democracia Brasileira Hoje

Crise, democracia e peemedebismo

A atual crise brasileira está redefinindo as fronteiras entre direito e política


uma segunda vez em menos de 30 anos de forma dramática e radical. Por diferentes
razões, quando a música parar afinal, é provável que a política e o direito brasileiro
nunca mais sejam os mesmos. Nosso sistema de justiça aparentemente revelou o
núcleo corrompido da vida pública nacional, aberto para fazer negócios escusos ao
menos desde a década de 1980 1 . Até certo ponto, a maioria dos representantes
políticos parece estar implicada nesta trama, os partidos políticos mais importantes
do país e quase todas as maiores figuras políticas e empresariais do país.
Este processo pode se mostrar uma boa oportunidade para radicalizar a
democracia brasileira ou pode se constituir em uma ameaça à sua integridade e
provocar a desarticulação de nosso sistema político. Seja como for, a crise não diz
respeito apenas à corrupção: ela também está relacionada, de alguma forma, com uma
segunda onda de democratização em curso, nascida no seio da sociedade civil
brasileira.
A primeira onda de democratização ocorreu ainda sob a ditadura militar e
produziu a Constitutição de 1988, na sequência de uma estratégia de luta por direitos,
processo que também ajudou a construir um Judiciário e um sistema de justiça fortes
e influentes. De fato, parece que o sistema de justiça hoje é o único setor do estado
capaz de ouvir e atender às demandas crescentes da sociedade civil brasileira.
Nos último anos o Judiciário tem assumido um papel central na política
nacional, especialmente o STF, ao julgar casos polêmicos de amplo interesse público,
os quais até pouco tempo atrás, permaneciam por anos estrategicamente esperando
para entrar em pauta, por exemplo, a demarcação de terras indígenas, a possibilidade
de aborto de fetos anencéfalos e a possibilidade de casamento entre pessoas do
mesmo sexo (FERREIRA & FERNANDES, 2013). Além disso, o STF julgou o caso
criminal do “Mensalão”, escândalo de corrupção ocorrido durante o governo Lula,
por ser dotado de competência exclusiva para julgar autoridades que ocupam cargos
no governo federal. Além disso, o sistema de justiça como um todo, Polícia,

1Evidentemente eu não estou afirmando que não havia corrupção no Brasil anteriormente. Estou ape-
nas afirmando que as suas características atuais parecem ter surgido nos anos 80.

195
Ministério Público e Judiciário, têm se voltado para combater a corrupção, nesse
momento, especialmente por meio da “Operação Lava-Jato”. Todo este movimento
pode ser interpretado como uma reação ao modo como a política brasileira tem
atuado, adotando práticas corruptas e voltando as suas costas para grande parte das
demandas da sociedade civil.
Com efeito, a implementação dos direitos constitucionais estabelecidos em
1988 foi parcialmente sabotada por uma cultura e estrutura política reacionária
chamada de "peemedebismo" (NOBRE, 2013), que se organizou durante a
Assembleia Constituinte brasileira (1987-1988), a fim de evitar o reconhecimento dos
direitos sociais pelo texto constitucional e enfraquecer os meios destinados a sua
execução e implementação. Além disso, a desregulamentação e a transnacionalização
dos mercados na década de 1990 tiveram seu papel em restringir a força da luta por
direitos, ao diminuir o poder do Estado de controlar e taxar o capital para financiar
as políticas públicas de caráter social.
O processo social em curso neste momento, desencadeado em junho de
2013, parece ser claramente uma reação da sociedade civil ao "peemedebismo". Ainda
não está claro qual será a forma específica de institucionalização a atual onda. No
entanto, sua inspiração autonomista e forma anti-hierárquica de ação social (GOHN,
2014) parece ter trazido ao centro do palco uma geração de ativistas de esquerda que
não está interessada em tomar parte na política tradicional ou ocupar posições de
poder do Estado. Em vez disso, esses ativistas parecem estar mais preocupados em
criar formas de vida auto-organizadas, utilizando a arte e a cultura como
instrumentos.2
É claro que a atual onda de democratização pode vir a ser absorvida pela
política eleitoral tradicional e ver seu potencial inovador frustrado, ou levar a algumas
consequências transformadoras de longo prazo. Por exemplo, ela pode
eventualmente dar lugar à criação diversas zonas autônomas, anárquicas e
experimentais, livres da influência do Estado. Ou talvez ela resulte em transformações
na forma de Estado, que pode ser privado de seu poder de regular diretamente a
sociedade, passando a desempenhar o papel de estimular e financiar os vários campos
sociais autogeridos, além de ajudá-los a lidar com os conflitos que surjam entre eles.
Estou certamente me arriscando com este comentário, pois estes são fenô-
menos recentes que ainda não foram estudados sistematicamente. Apesar disso, há
evidências de que estes novos movimentos sociais não demandam novos direitos,
estão mais preocupados em lutar contra o sexismo, o racismo e a violência sem a

2 A despeito deste fato, muitos destes coletivos são financiados pelo Estado por meio de leis de incen-
tive à Cultura por meio de isenções fiscais: Castilho, I. (2016). “Nas Periferias Nasce um Novo Femi-
nismo”, Outras Palavras, http://outraspalavras.net/oca/2016/01/04/nas-periferias-nasce-um-
novo-feminismo/.

196
intervenção do Estado, por exemplo, usando a cultura e outros mecanismos autôno-
mos para criar espaços seguros com a finalidade de tentar modificar a maneira pela
qual as mulheres veem a si mesmas, tendo como objetivo de produzir um impacto
direto em sua forma de viver (BIROLI, 2017).
Caso o Estado realmente se transforme no sentido que apontamos, não
teremos mais um Estado todo poderoso, mas uma entidade de coordenação que iria
partilhar o seu poder soberano com a sociedade, ou seja, que iria devolver o poder
normativo à sociedade - uma forma de poder atualmente concentrado no Parlamento
- e dedicar-se principalmente à resolução de conflitos entre os diversos espaços de
gestão autônoma. Ainda que não seja fácil imaginar uma possibilidade como esta se
efetivar na realidade, pois a nossa imaginação política parece estar quase
completamente dominada pela dualidade Estado e sociedade civil (SCOTT, 1998;
GRAEBER, 2004), é necessário considerá-la seriamente a fim de não subsumir
precocemente na gramática política tradicional o que pode haver de inovador nesta
nova onda de ativismo social.
É importante ressaltar também que a atual crise política brasileira é um dos
resultados positivos do desenvolvimento de um sistema de justiça forte, que inclui
um Poder Judiciário autônomo e muito bem pago e um igualmente poderoso e bem
remunerado Ministério Público Federal e Estadual, ambos sempre ávidos por mais e
mais remuneração e garantias de independência, o que tem sido objeto de muitas
críticas.(DA ROS, 2015; FIGUEIREDO, 2013). De fato, o Ministério Público
tornou-se tão poderoso e autônomo que parece razoável afirmar que ele atua hoje
como um novo poder do Estado brasileiro e não apenas como uma agência estatal
entre outras.
Nos últimos anos, quase todas as semanas o país vem descobrindo uma nova
peça chocante no que parece ser um esquema de corrupção quase universal, revelado
pela "Operação Lava-Jato” dirigida pelo Ministério Público Federal com a ajuda da
Polícia Federal e da Justiça Federal. É verdade que não há provas até este momento
de que todos os envolvidos tenham se beneficiado pessoalmente do esquema de
corrupção. No entanto, neste momento parece não haver mais dúvidas de que todos
os partidos políticos e uma enorme quantidade de figuras políticas, incluindo
membros do PT, recebeu dinheiro para financiar suas campanhas, despesas pessoais
e despesas do partido.
A "Operação Lava-Jato" parece ter atingido uma estrutura profunda e
fundamental da política brasileira. É claro que existe o risco de tudo permanecer o
mesmo depois que alguns bodes expiatórios sejam sacrificados nos altares da nossa
sociedade do espetáculo. Mas o cenário "tudo termina em pizza", neste caso, soa
menos plausível se lembramos das mudanças ocorridas no sistema de justiça brasileiro.
Pois é cada vez menos plausível que policiais, juízes e membros do Ministério Público
sejam manipulados pela esfera política quando seus poderes, atribuições e ganhos

197
financeiros não depende de negociações políticas, mas decorrem diretamente do texto
da Constituição.
Desde a promulgação da Constituição, o Brasil experimentou uma mudança
significativa em seu estado de direito que está modificando o padrão de funciona-
mento da política e que certamente irá mudar a autoimagem do país. Quando o poder,
os deveres e os rendimentos da polícia, dos juízes, dos promotores não dependem
exclusivamente de negociações políticas, mas derivam diretamente do texto da Cons-
tituição, torna-se menos provável que estes profissionais serão manipulados por inte-
resses político-partidários.
É claro que há negociações políticas todas as vezes em que um departamento
do estado pretende aumentar seu orçamento. O que estou afirmando é que estes ser-
vidores públicos estão protegidos pela Constituição e por sua seleção por meio de
concurso público que garante estabilidade na sua função e salários dos mais altos da
administração pública brasileira.

Primeira onda de democratização: A Constituição de 1988 e o peemedebismo

Antes de 1988, o pensamento e a ação social de esquerda nunca haviam


levado o Direito a sério no Brasil e por uma boa razão: a política brasileira sempre
funcionou de cima para baixo e utilizava as leis, principalmente, para legitimar
decisões autárquicas. Durante o século 20, o país alternou períodos democráticos
curtos com golpe de Estado e longos períodos de governos autoritários, durante os
quais as leis não eram elaboradas com a participação da sociedade civil. Vivemos
agora nosso período democrático mais longo, quase 30 anos.
Não espanta, portanto, que o marxismo ortodoxo e abordagens
foucaultianas sobre o Direito tendam a prevalecer no campo da esquerda acadêmica
brasileira (KASHIURA; AKAMINE; MELO, 2015), pois essas teorias aparentemente
descrevem nossa realidade de forma muito precisa, ao menos até 1988. Para um
intelectual de esquerda no Brasil, a tarefa tem sido sempre denunciar a opressão
implementada por meio das leis e não explorar suas características de “espada de dois
gumes”, como Franz Neumann afirma no prefácio de O Império do Direito
(NEUMANN, 1986). Pois o Direito só adquire esse caráter dual quando é objeto de
disputa pelos diversos grupos sociais, tanto no Parlamento quanto no Judiciário.
Franz Neumann ensina que, quando o proletariado começou a lutar por
direitos, expôs a iniquidade do direito burguês, especialmente no campo dos contratos
e do direito de propriedade (RODRIGUEZ, 2009a). A luta proletária deixou claro
que os contratos não promovem uma troca justa entre trabalho e salário e que o
direito de propriedade oculta o arbítrio egoísta sobre bens de interesse social. Assim,
para trazer algum equilíbrio à "troca" promovida pelo contrato de trabalho, a luta dos
trabalhadores afirma ser necessário adicionar ao contrato várias cláusulas obrigatórias,

198
que limitam a vontade do empregador, colocando limites à exploração do trabalho
por meio da garantia de direitos sociais, universalmente, a todos os trabalhadores.
Estas cláusulas obrigatórias compensam e ao mesmo tempo expõem a desigualdade
da troca de trabalho por salário
Como já expusemos neste livro com mais detalhes, o conceito de função
social da propriedade, nascido na Constituição de Weimar, impõe a regulação da
propriedade privada em nome do interesse social e não apenas em função de
interesses puramente egoístas. Por exemplo, para que alguém mantenha a propriedade
sobre um imóvel, deve explorá-lo de modo a satisfazer os interesses sociais, ou seja,
de acordo com critérios estabelecidos pelas leis, sob pena de poder ver seu bem
desapropriado para fins de interesse público.
Estas mudanças na função do direito, provocadas também por
transformações na estrutura e no funcionamento dos poderes do Estado, começou a
limitar o controle da burguesia sobre capital. Não é por outra razão que, de acordo
com Franz Neumann, o nazismo se seguiu à efervescência democrática da República
de Weimar. Pois quando o Estado de direito é posto a serviço das classes oprimidas
e ameaça o controle da burguesia sobre o capital, a burguesia procura fugir do direito
fornecendo apoio a formas irracionais e autárquicas de governo ou de regulação
capazes de neutralizar as demandas da sociedade civil. Por exemplo, durante o
nazismo ou hoje no Brasil, com o "peemedebismo" e, globalmente, com os chamados
“regimes privados transnacionais”, que até teóricos tradicionais como Gunther
Teubner admitem possuir uma tendência autoritária (TEUBNER, 1996; SCHEUER-
MANN, 2008).
Não há espaço para analisar detalhadamente estas diferentes figuras autár-
quicas neste momento, mas quero deixar claro que ao mencioná-las lado a lado eu
não pretendo sugerir que todas estas situações se equivalem. Estou apenas afirmando
que estas figuras podem ser interpretadas como reações do poder instituído à demo-
cratização.
Como já visto acima, Franz Neumann generaliza os resultados de sua análise
para explicar os EUA durante os anos 50 com a utilização dos conceitos de falsa
legalidade e alienação política (NEUMANN, 1953). Se as instituições formais não
respondem às demandas sociais, a sociedade tende a se sentir alienada da política, e
este estado de coisas, combinado com fatores psíquicos e com determinadas
circunstâncias legais, pode favorecer o surgimento de regimes autoritários ou formas
pervertidas de direito.
Uma dessas formas pervertidas é, nas palavras de Neumann, a falsa
legalidade que eu prefiro chamar de “legalidade discriminatória”. Por exemplo,
durante os anos de McCarthy, funcionários públicos foram investigados e, finalmente,
demitidos, simplesmente por terem siso acusados de comunismo. Embora o Estado
certamente tenha o direito de demitir seus funcionários, durante este período,

199
Neumann argumentou, esse direito foi exercido de forma discriminatória. O Estado
usou a forma universal do direito para disfarçar a discriminação contra os comunistas,
desrespeitando a soberania popular com a criação de uma zona de uso arbitrário da lei.
Um direito democrático deve permitir que os conflitos sociais tenham
impacto sobre o desempenho e sobre o desenho das instituições formais. Este ponto
fica claro nas últimas páginas de introdução de Neumann para "O Espírito das Leis",
de Montesquieu (NEUMANN, 1957). Neumann afirma que a visão clássica da
separação de poderes, considerada em seu contexto social, deve ser abandonada, uma
vez que constitui um obstáculo à transformação social. Ao contrário de intérpretes
comuns, Neumann propôs que a separação dos poderes de Montesquieu consistia na
ideia de que nenhum poder deve ser autorizados a tomar uma decisão sem revisão.
Isso é tudo.
Os poderes do Estado não devem ser necessariamente dois ou três e não
devem ter um conjunto prefixado de competências, pois é possível utilizar essa
estrutura naturalizada para deslegitimar qualquer transformação social. Por exemplo,
durante a República de Weimar, Carl Schmidt e juristas conservadores defenderam
que o Parlamento e as leis não deveriam poder disciplinar os direitos de propriedade.
Como resultado, para estes autores, todos os direitos sociais reconhecidos pela
Constituição de Weimar não eram dotados da mesma coercibilidade que as outras
partes da Constituição. Eram direitos de hierarquia inferior aos direitos individuais
clássicos e por isso os juízes negavam-lhes validade, decidindo como se eles não
existissem (KAHN-FREUND, 1981).
Desde 1988, a legislação brasileira tem perdido seu caráter autárquico. A
Constituição brasileira de 1988 tem mais de 200 artigos e foi resultado de um processo
de participação direta ainda foi pouco estudado. A assembleia nacional constituinte
durou quase dois anos e recebeu 120 emendas populares legitimadas por 12 milhões
de assinaturas, além de mais de 70 mil sugestões de cidadãos e organizações. Foram
realizadas mais de 180 audiências públicas que contaram com a participação da soci-
edade civil que compareceu para debater as partes do texto constitucional de seu in-
teresse direto (PILATI, 2008).
Claro que toda esta participação não nasceu do nada. Durante os anos 70 e
os anos 80, mesmo sob uma ditadura civil-militar, a sociedade civil brasileira foi capaz
de se organizar em vários movimentos sociais. O clássico livro de Eder Sader,
"Quando Novos Personagens Entraram em Cena" (SADER, 1988), conta a história
da luta dos clubes de mães, do sindicato dos metalúrgico de São Bernardo, da
oposição do sindicato metalúrgico de São Paulo e do comités de saúde da zona leste
de São Paulo e ajuda a explicar como a sociedade civil brasileira pode responder tão
rapidamente às oportunidades políticas abertas pela Assembleia Nacional
Constituinte (BRANDÃO, 2011). O livro também ajuda a explicar porque a reação a
este impulso democratizante foi organizada de forma tão rápida e eficaz.

200
De fato, o aumento do controle dos movimentos sociais sobre o orçamento
do Estado com a garantia de diversos direitos sociais, não ficou sem reação. Ainda
durante a elaboração da Constituição, um grupo de deputados federais e senadores
chamados de "centrão" organizou-se para combater a incorporação de uma agenda
progressista ao texto constitucional. Este grupo de representantes está nas origens da
cultura política reacionária chamada de "peemedebismo", que domina a política
brasileira desde então (NOBRE, 2013).
O "peemedebismo" generalizou e universalizou as práticas do "centrão" e do
PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro) para todo o sistema político.
O PMDB, na origem MDB, foi um partido criado durante a ditadura brasileira como
partido de oposição oficial a um governo autoritário que mantinha um bipartidarismo
de fachada, cuja atuação era bastante limitada. Ele nunca foi um partido ideológico,
pois foi criado para reunir todos os membros da oposição que a ditadura brasileira
era capaz de tolerar. Logo após a redemocratização brasileira, o PMDB se tornou o
maior partido do país, utilizando a sua expertise pragmática de incorporar novos
membros e simpatizantes, sem precisar desenvolver uma ideologia coerente, para se
manter permanentemente no poder. Desde então, o partido conseguiu ocupar uma
posição central em todas as coalizões para as eleições nacionais no Brasil. Hoje em
dia, é praticamente impossível governar o Brasil sem o apoio do PMDB, um partido
cujas práticas deixaram uma marca profunda na cultura política brasileira.
O sistema político brasileiro é organizado para formar grandes coalizões que
tendem a dissolver os antagonismos sociais. Na verdade, o sistema conseguiu se
perpetuar buscando ignorar o conflito social e atraindo mais e mais aliados por meio
da oferta de cargos no governo, os quais dão acesso ao controle de parte da despesa
pública. Quanto mais o sistema é capaz de evitar a influência da esfera pública, mais
ele se perpetua sem incorporar novas demandas sociais, tendo de lidar apenas com
interesse individuais no controle do orçamento por políticos aliados.
É verdade que o Brasil possui um sistema partidário fragmentado que torna
muito difícil a conquista da maioria no Parlamento. Mesmo assim, de 1993 até 2013
o país encontrou maneiras de organizar a competição política entre duas alternativas
claras, PSDB e PT, que se alternaram no poder na condição de líderes de grandes
coalizões que implementaram, respectivamente, programas políticos de centro e de
centro-esquerda (FIGUEIREDO, 2001, 2002; LIMONGI, 1999).
Como resultado de todo este processo de democratização e sua reação
conservadora, a Constituição de 1988 garantiu toda espécie de direitos de maneira
complexa e contraditória, o que torna impossível por vezes concluir, a partir do texto
constitucional, qual é o conteúdo e os limites deste ou daquele direito. Além disso, a
força obrigatória de muitos direitos sociais ainda depende de novas leis que nunca
foram aprovadas pelo parlamento. Capítulo por capítulo, pode-se identificar na
Constituição as marcas da luta social que teve lugar durante a sua elaboração, uma

201
luta que permanece aguerrida, posto que a Constituição não teve e ainda não tem
vencedores claros.
Mesmo depois de sua promulgação, os conflitos sociais continuaram a se
desenrolar de forma aguda, mas agora por outros meios. A implementação de direitos
por parte do Executivo e sua interpretação final pelo Judiciário, especialmente pelo
Supremo Tribunal do Brasil, desempenham hoje um papel central na política
brasileira. A indeterminação da Constituição, que expressa uma espécie de “clinch”
político entre as forças progressistas e as forças conservadoras, abre muito espaço
para interpretação. De 1988 até hoje, os brasileiros não fazem mais do que lutar pelo
significado e pela efetivação de sua Constituição, principalmente por intermédio do
Judiciário (RODRIGUEZ, 2015b), que tem sido acusado, não surpreendentemente,
por forças reacionárias e por cientistas sociais tradicionais, de desrespeitar "a"
separação de poderes, promovendo uma "judicialização da política" que estaria
desrespeitando os limites "naturais" entre os poderes estatais (NOBRE &
RODRIGUEZ, 2011).
A onda democratizante de 88 que produziu a Constituição e o
"peemedebismo" encontraram tanto o seu ponto culminante quanto a sua hora final
depois de dois mandatos muito bem-sucedidas do ex-Presidente Lula. A sociedade
civil organizou-se para disputar o texto da Constituição durante a sua elaboração e
continuou a fazê-lo por todos os meios disponíveis desde então. Não foi necessário
mudar a Constituição para implementar projetos de Lula: ele apenas implementou
muitas das suas partes mais progressistas
De outro lado, a implementação de um projeto maciço de privatizações e
medidas econômicas conservadoras durante os dois mandatos de Fernando Henrique
Cardoso exigiu grandes mudanças no texto constitucional (MELO, 2008). De fato, os
conservadores ainda afirmam que os direitos sociais garantidos pela Constituição de
1988 enfraquecem a competitividade internacional brasileira e exercem enorme
pressão sobre o seu orçamento, que ameaça a produzir défices públicos constantes
(PESSOA, 2011; ALMEIDA, LISBOA, PESSOA, 2015).
No final do segundo mandato de Lula, parecia que ninguém no país era
contra o governo. Não houve oposição significativa nos oito anos de governo,
momento em que coalizão governamental atingiu o seu ápice. Mesmo depois de
acusações de corrupção e a condenação de várias de figuras-chave do PT durante o
escândalo do "Mensalão", Lula ainda era um dos presidentes mais populares da
história. O ex-Presidente foi beneficiado por um “boom” internacional no preço das
commodities, fato que trouxe uma enorme quantidade de recursos para o Brasil, o
suficiente para financiar programas sociais e criar mais empregos sem acirrar o
conflito social. Explico.
O impulso radical que surgiu durante a elaboração da Constituição de 1988
parecia estar finalmente esgotado e domesticado, com benefícios e contradições: a

202
implementação de programas distributivos que reduziram a desigualdade no Brasil
para níveis historicamente baixos, financiada pelo “boom” internacional de
commodities e não por meio da reforma do sistema tributário brasileiro, regressivo e
iníquo, bem como por meio da revisão da pertinência de subsídios de eficácia
duvidosa que drenam enormes quantidades de dinheiro público para beneficiar
empresas brasileiras. Como o chefe da coalizão governante era um partido de
esquerda, parte da agenda progressista foi posta em prática, mesmo em um contexto
que manteve a execução de práticas políticas tradicionais e corruptas, sem mexer nos
mecanismos estruturais responsáveis por perpetuar a desigualdade social brasileira.

Segunda onda de democratização: junho de 2013 e o impulso autonomista

Inadvertidamente, algo completamente diferente aconteceu em junho de


2013, antes mesmo da crise econômica ter atingido o Brasil duramente, como está
acontecendo agora. Em 2013 o país viveu a maior onda de manifestações públicas de
toda a sua história, manifestações cujo estopim foi um protesto que reivindicava
transporte público gratuito para todos na cidade de São Paulo, por ocasião de um
aumento de 20 centavos na passagem de ônibus. A manifestação foi organizada por
um grupo de inspiração anarquista chamado "Movimento Passe Livre" (MBL).
Com efeito, durante esse ano, nada aconteceu como era de se esperar
(FIGUEIREDO, 2014; GOHN, 2013; JEDENSNAIDER, POMAR,
ORTELLADO, 2014; BORBA, FELIZI, REYS, 2014; VÁRIOS, 2014). O impacto
do aumento de 20 centavos no orçamento dos trabalhadores urbanos, que não
estevam no foco das políticas distributivas dos governos do PT, somado à insatisfação
com os primeiros movimentos do segundo mandato de Dilma Rousseff, que
começou a cortar despesas e investimentos públicos, fazendo exatamente o contrário
do que a candidata Dilma havia prometido durante sua campanha presidencial, ainda,
a extrema brutalidade da polícia do Estado de São Paulo que reprimiu com
derramamento de sangue uma manifestação pacífica ocorrida na Avenida Paulista,
causou revolta na população de São Paulo e atraiu mais e mais participantes para as
manifestações seguintes, convocadas pelo MBL, em um processo que resultou, afinal,
em uma demonstração pública enorme e desorganizada, ocorrida simultaneamente
em várias cidades, grandes e médias, do pais. Estas manifestações colossais, ocorridas
ao final do processo, já não tinham uma identidade política clara: todos e todas
pareciam protestar contra tudo e contra todos.
Quem esteve na rua nestes dias, como eu mesmo estive, teve a impressão de
que algo realmente novo estava acontecendo. Trabalhadores e estudantes jovens que
pareciam nunca ter estado presentes a uma demonstração pública, estavam nas ruas
lutando por transporte público gratuito, juntamente com membros da classe média e
mesmo das classes altas, que protestavam contra a corrupção e contra o governo. A

203
depender de onde alguém estava situado na manifestação, podia-se ouvir e ler slogans
diferentes e mesmo contraditórios, à esquerda e à direita. Pela primeira vez desde a
ditadura brasileira, diga-se, movimentos de direita se organizaram para sair às ruas e
protestar contra a corrupção e contra a hegemonia política do PT.
Na verdade, parece que todos esses grupos nunca mais saíram das ruas desde
então. Em 2014 e 2015, o país assistiu a novas manifestações públicas, o que deixou
claro que os acontecimentos de junho de 2013 não foram um episódio isolado.
Estamos diante de um impulso democrático novo e radical, nascido da sociedade civil,
à esquerda e à direita, que tem dado à luz a novos antagonismos sociais, nascidos bem
às costas de um sistema político corrupto e autocentrado, que parece incapaz de ouvir
as demandas sociais.
E novos personagens continuam entrando em cena: em 2015, em São Paulo,
os estudantes de segundo grau ocuparam 200 escolas públicas para protestar contra
o plano do Governo Estadual de fechar escolas supostamente subutilizadas e realocar
os alunos e alunas em outras unidades (HARRIS, 2015). A ocupação durou quase dois
meses e mesmo sob os ataques do Governo e da polícia de São Paulo, conquistou o
apoio da população e derrotou, ao menos até o momento, o plano de reorganização,
motivando também a demissão do Secretário de Educação. Além disso, entre 2014 e
2015 ocorreram centenas ocupações de imóveis urbanos desocupados, promovidas
articuladamente pelo MTST (Movimento dos Trabalhadores sem Teto) com a
finalidade de combater a especulação imobiliária nas cidades e o aumento abusivo dos
aluguéis (KACHANI, 2014).
Ainda em 2015, a chamada "Primavera feminista", uma série ações na
internet e manifestações públicas em várias cidades do Brasil, ocorreu em resposta à
aprovação de um projeto de lei conservador (n. 5.069 / 2013) apresentado pelo
deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) (EL PAIS, 2015). O projeto impôs
dificuldades para o acesso de mulheres estupradas à prática de aborto, um direito
garantido pela legislação brasileira. Notemos que o movimento feminista tem sido
extremamente ativo na internet com campanhas digitais de grande visibilidade, como
as que se propagaram por meio das hashtags #MeuPrimeiroAssedio e #
NãoPoetizeOMachismo (MEDEIROS, 2016). Também em 2015, a Marcha Nacional
das Mulheres Negras organizou a sua maior manifestação da história, em Brasília,
capital do Brasil, com a participação de cerca de 20 mil mulheres (GELEDÉS, 2015).
Para quem acredita na força transformadora do Direito sob um regime
democrático, é impossível escrever ou ler sobre estes desenvolvimentos tardios da
sociedade civil brasileira sem ficar profundamente comovido e, ao mesmo tempo,
sem sentir um profundo ressentimento em relação ao PT e à parte dos partidos de
esquerda, que não tem feito qualquer movimento significativo na direção desta nova
onda de ativismo. Por outro lado, estes novos movimentos sociais parecem não estar

204
de fato interessados em tomar parte na política formal, ao menos não da política como
tem ocorrido durante os últimos anos.
A onda de democratização de 1988 foi capaz de alterar profundamente a
política e o Direito brasileiro com a criação da Constituição, a consolidação da
gramática política da luta por direitos e a criação da PT, partido que elegeu o
Presidente do Brasil por 4 mandatos consecutivo.
De sua parte, as consequências institucionais formais da onda de 2013 ainda
não estão claras. O PT ainda se comporta como líder dos partidos de esquerda e,
contra todas as evidências, acusa o sistema judicial de punir apenas os membros da
esquerda nos escândalos sobre corrupção, além de praticamente não levar em
consideração o vendaval de ar fresco vindo da sociedade civil nos últimos anos. Como
qualquer partido burocratizado, parece insistir em permanecer na vanguarda do
mesmo modelo de coalizão que o levou ao poder, apelando aos sindicatos e
organizações camponesas que ainda apoiam o partido e o governo.
Por outro lado, a inspiração autonomista e anarquista dos vários novos
movimentos sociais, que preferem se organizar sob a forma anti-hierárquica de
coletivos, não mostra qualquer sinal de interesse nos velhos partidos políticos ou na
formação de novos. Os movimentos sociais de direita parecem não estar seguindo
este mesmo caminho: decidiram disputar as eleições oferecendo seu apoio a uma série
de candidatos saídos de seus quadros (VEJA, 2015). Ao que tudo indica, ao menos a
“Operação Lava-Jato" foi capaz de efetivar uma parte de suas demandas. Partidos de
esquerda mais radical, como o PSOL, também vêm a operação como uma
oportunidade para transformar a política brasileira e para dar voz à sociedade civil,
embora nenhum deles pareça estar em condições de oferecer uma voz política a estes
novos ativistas radicais.

Fecho

De fato, ninguém sabe hoje o que vai acontecer no futuro próximo3. Será
que a política brasileira voltará a ser o que era antes de 2013? O país experimentará
uma transformação radical da sua política, movendo-se para a direita ou para a
esquerda? A esquerda irá se dividir em mil pedaços, como a eventual perda de força
do PT, e terá de esperar por anos até que um Bernie Sanders seja capaz de levar a sua
voz de volta para o centro do sistema político? Será que os novos movimentos sociais
autonomistas irão ajudar a reinventar o Estado e os partidos políticos?
Tudo que eu me sinto seguro para dizer neste momento é, parafraseando
uma conhecida citação do poeta russo Vladimir Maiakovski ("É melhor morrer de
vodca do que de tédio!") é que ninguém vai morrer de vodca no Brasil, pelo menos

3
Para uma nota de otimismo, ver GOHN, 2019, que vê potencias de renovação de nossa democracia nos mo-
vimentos sociais contemporâneos e suas demandas por participação.

205
nos próximos vinte anos. Talvez de um ataque cardíaco, diante da velocidade dos
acontecimentos.
Depois do impeachment da Presidente Dilma Rousseff, cuja base legal foi
amplamente contestada pela sociedade brasileira, foi formado um novo governo em
torno da inexpressiva figura de Michel Temer, seu vice-presidente, um político de
bastidores do PMDB. Este governo ilegítimo decidiu, em meio a graves acusações de
corrupção direcionadas a Temer e a quase todos os membros do primeiro escalão,
lançar uma onda de reforma liberais completamente ilegítima, que pretende reformar
profundamente a legislação trabalhista, a previdenciária e cortar gastros sociais, um
projeto totalmente contrário aos interesses vencedores nas ultimas quatro eleições, o
que explica a baixíssima popularidade de Temer, o ocupante do cargo que goza do
menor índice de aprovação da história. Esta agenda- diga-se, foi retomada pelo
governo Bolsonaro, eleito em 2018, com a promessa de desmontar completamente o
que há de mais progressista na Constituição de 1988, pauta que parece ter sido
encampada pelo Congresso recém-eleito.
Diante do fracasso iminente da votação da reforma da previdência, o
governo Temer decretou uma intervenção federal na área de segurança pública no
estado do Rio de Janeiro sem planejamento prévio, sem objetivo certo, uma operação
que se revelou apenas uma imensa e irresponsável tentativa de fazer aumentar a
popularidade do moribundo Presidente, que sumiu completamente de cena ao deixar
seu cargo e que agora está preso, acusado de corrupção.
No âmbito da sociedade civil, durante 2016 uma onda de ocupações de
escolas públicas, agora no Rio de Janeiro, dialoga com o movimento paulista e
reivindica melhores condições para o ensino público brasileiro (NITAHARA, 2016):
a efervescência nas ruas não para de mandar sinais de que a reorganização palaciana
do sistema político não será suficiente para recolocar o direito e a política brasileira
nos eixos. Será necessário encontrar maneiras de redesenhar as instituições formais
brasileiras, sistema representativo e partidos; talvez destruir e reconstruir novamente
nosso modelo de separação dos poderes, para fazer com que a sociedade se sinta
novamente parte de nosso estado de direito.
Até que esta articulação encontre uma nova configuração, um novo ponto
de equilíbrio, a sociedade permanecerá em tensão com o Direito e o Estado e de
forma radical. Ou talvez comecemos a ver nascer uma forma de organização política
que, como sugeri no começo deste texto, tenha como objetivo central evitar que o
Estado se torne o senhor todo-poderoso da vida e dos destinos da sociedade, mas
sem recair em uma visão libertariana radical, ou seja, mantendo-se sua função de
patrocinador dos espaços autorregulados e de juiz dos conflitos.
“Dois axiomas, com efeito, parecem guiar a marcha da civilização ocidental
desde a sua aurora: o primeiro estabelece que a verdadeira sociedade se desenvolve
sob a sombra protetora do Estado; o segundo enuncia um imperativo categórico: é

206
necessário trabalhar”, nos lembra Pierre Clastres (CLASTRES, 1987). Para que uma
organização política assim seja possível, talvez seja necessário lidar com o segundo
imperativo mencionado: o trabalho. Ou seja, para conferir maior plausibilidade a esta
possível renovação nas formas de organização política, seria importante analisar esta
nova onda de ativismo deste ponto de vista, qual seja, sua eventual propensão a de-
fender novas formas de vida e de trabalho para além da competição e do capitalismo,
formas de vida que buscassem superar a divisão entre ricos e pobres, a qual se relaci-
ona de perto com a divisão entre dominantes e dominados, já que parte das funções
do Estado é garantir a propriedade individual contra ataques de terceiros; uma tarefa
a ser realizada em outra ocasião, por estar além de nossos objetivos aqui.

207
II. PERVERSÕES
Capítulo 9 – Perversão do Direito

Crise da democracia?

Já está se tornando um lugar comum afirmar que o Brasil e outros países do


Ocidente estão experimentando um momento de crise da democracia, regime político
que estaria se tornando incapaz de efetivar o seu projeto: construir e manter institui-
ções formais e informais capazes de criar as normas que regulam a vida em sociedade
a partir do debate público entre cidadãos e cidadãs.
De fato, a globalização, que se acelerou a partir da queda do muro de Berlim
em 1989, tem ajudado a modificar o poder dos Estados, por exemplo, em razão da
privatização da regulação por parte de empresas transnacionais e entidades privadas
como a FIFA, que são capazes de impor a validade de seus contratos e regras por
todo o globo. Estas empresas e entidades, inclusive, têm prescindido da intervenção
da jurisdição estatal para solucionar seus conflitos em favor da arbitragem ou de me-
canismos próprios de solução de controvérsias, por exemplo, a exclusão sumária do
mercado daqueles ou daquelas que não cumpram suas regras (TEUBNER, 2003,
2012).
Além disso, entidades regionais como a União Europeia e diversos organis-
mos internacionais, a maior parte de natureza econômica, como a OMC, tem criado
normas internacionais que limitam a margem de manobra dos estados nacionais em
um mundo cada vez mais interdependente. No contexto atual, ser sancionado pela
OMC pode significar prejuízos consideráveis a empresas e países, pobres ou ricos
(VARELLA, 2012),
Mais recentemente, uma série de movimentos sociais ao redor do mundo
têm manifestado sua contrariedade em relação a seus respectivos regimes políticos
que parecem ter perdido a capacidade de expressar sua vontade e a vontade do povo
em geral (GOHN, 2014). Em alguns países esses movimentos deram origem a orga-
nizações políticas que se pretendem alternativas aos partidos, como é o caso do “Po-
demos”, agremiação que já está tomando parte das disputas eleitorais na Espanha.
No Brasil, as jornadas de junho de 2013, os movimentos contra a Copa do
Mundo e várias manifestações populares e crises institucionais subsequentes têm
mantido o país em uma espécie de convulsão social permanente, sem que os partidos
e o sistema político como um todo tenha conseguido, até agora, oferecer uma resposta

211
à altura. Nenhuma força partidária parece ter sido capaz de traduzir as demandas des-
ses movimentos em uma agenda política positiva e, por isso mesmo, muitos analistas
interpretam esta situação como um sinal de esgotamento de nosso sistema político.
Uma explicação possível para este fenômeno, proposta pelos escritos de
Marcos Nobre, como já vimos acima, afirma que o peemedebismo, que caracteriza
nossa cultura política, teria blindado o sistema político brasileiro contra a influência
da sociedade, processo que contribuiu para a eclosão das jornadas de junho de 2013
(NOBRE, 2013) e para as manifestações subsequentes.
A cultura política moldada à imagem do PMDB, de acordo com Nobre, é
marcada por grandes acordos políticos, abertos a novos participantes – desde que
estes sejam fortes o suficiente para reivindicar sua participação no gasto dos fundos
públicos, gerido pelos ocupantes dos cargos no governo, que garantem o direito de a
iniciativas que firam os seus interesses mais imediatos.
Trata-se de uma política de conchavo, de gabinete e centrada na distribuição
de cargos entre os partidos; uma política que evita a qualquer custo o debate público
aberto. Se debater for, por alguma razão, estritamente necessário, deve-se buscar um
clinch político que respeite o direito de veto dos diversos grupos que participam do
acordo. Fácil perceber, portanto, que quanto mais amplo for o acordo, quanto maior
o número de participantes, mais vetos haverá e mais engessada e fechada ficará a
política em relação aos interesses da sociedade.

As formas da perversão

A análise da crise da democracia a partir deste ponto de vista macroscópico,


que aborda os limites do sistema político e do poder do estado, não alcança e não
exclui reflexões sobre a saúde deste regime feitas a partir da análise de processos mi-
croscópicos, responsáveis por perverter o estado de direito por fazer o regime demo-
crático perder o contato com a soberania popular.
Tais processos, como veremos, não estão necessariamente ligados aos movi-
mentos dos assim denominados novíssimos movimentos sociais ou ao processo de
globalização; também não são quando analisamos a política partidária e o funciona-
mento do sistema político. No entanto, eles também têm o poder de corroer de forma
significativa o poder da soberania popular, fazendo com que as instituições formais
permaneçam distantes e imunes à vontade popular.
Processos como estes, como veremos adiante, são resultado de projetos de
poder levados adiante por atores sociais variados interessados em fugir do estado demo-
crático de direito, ou seja, interessados em esquivar-se dos conflitos sociais existentes
no âmbito dos diversos estados nacionais e na esfera transnacional com a criação de
mecanismos institucionais postos completamente à salvo da influência dos cidadãos e
cidadãs, por exemplo, algumas ordens normativas transnacionais, como a FIFA.

212
Além disso, tais processos podem criar zonas de autarquia que se formam e
desaparecem logo a seguir, por ocasião da uma tomada de uma decisão, ou que per-
manecem definitivamente incrustradas em determinados setores ou departamentos
de instituições formais, estatais ou não estatais, sempre com a finalidade de mantê-los
livres da influência do debate público, funcionando sob a aparência de legalidade. Por
exemplo, como será visto adiante, a CTN-BIO.
Pode-se identificar também, no mesmo sentido, estratégias de legalidade dis-
criminatória que utilizam a forma geral do direito com a finalidade pervertida de atingir
apenas grupos específicos ou pessoas determinadas. Esta figura da perversão faz pro-
duzir textos legais que estatuem permissões e proibições abstratas e gerais, as quais
sequer fazem referência expressa aos problemas e práticas os quais elas terminam, de
fato, por regular e de forma discriminatória. Por exemplo, proíbe-se o sacrifício de
animais nos Municípios em nome da higiene e da saúde da população, uma ação que
inviabiliza práticas religiosas de matriz africana.1 Finalmente, como exposto na aber-
tura deste livro, temos a figura da despersonalização jurídica.
Tenho me referido a estas formas de utilização do direito com a expressão
“perversão do direito”, por se tratarem de desenhos regulatórios ou decisões institu-
cionais que se apresentam como aparentemente legais, mas cujo efeito final, indepen-
dentemente das intenções ou da justificativa explícitas de seus agentes, é neutralizar a
soberania popular, imunizando determinados processos decisórios ou instituições da
influência dos diversos agentes sociais em conflito.
Nesse sentido, para identificar casos de perversão do direito é necessário ir
além do valor de face do direito positivado, ou seja, ir além do texto das normas que
justificam formalmente tais decisões e instituições para investigar o sentido e os efei-
tos das normas jurídicas no processo de interação entre os agentes sociais pertinentes,
como ficará claro nos casos discutidos adiante. Por isso mesmo, esta proposta de
construção conceitual tem como objetivo final e necessário ser utilizada em projetos
de pesquisa empírica. A ideia de perversão do direito só funcionará adequadamente
se for utilizada em análises detalhadas de um determinado processo decisório e de
seus efeitos.
É importante ressaltar, de uma perspectiva mais abstrata, por mais surpreen-
dente que possa soar, que a maior parte das práticas autoritárias e discriminatórias nos
dias de hoje tende a serem levadas adiante sob a aparência de legalidade. Mesmo o
peemedebismo, prática política mencionada acima, pode ser visto desta perspectiva
como a formação perfeitamente lícita de uma coalizão de partidos que pretendem
governar o país em aliança. E este não é um fenômeno novo, a despeito de ter sido
ainda pouco estudado desta perspectiva específica: regimes autoritários, a começar do
nazismo, e práticas autárquicas dos mais diferentes matizes, têm se valido, para a usar

1A análise deste caso será objeto de um texto, ainda em processo de elaboração, escrito em parceria
com Winnie Bueno, mestranda em Direito na UNISINOS/RS.

213
a expressão de um importante historiador do direito, de “máscaras constitucionais”
(DIPPEL, 2007, 18) ou “máscaras legais” para se efetivar e desenvolver seus progra-
mas de ação.
Raramente o poder tem se apresentado completamente a nu, um poder sem
mais nada que poderia prescindir da justificação da gramática do direito, ou seja, um
poder que poderia abdicar de fundamentar a sua ação em alguma norma que o legi-
time, seja ela de direito público, seja ela de direito privado, ou seja, nascida de um ente
soberano ou da vontade de agentes privados (TEUBNER, 2003). Vai longe o tempo
em que era possível encontrar juízes como Lord Justice Farwell e Lord Justice Ken-
nedy capazes de negar abertamente o direito ao habeas corpus aos habitantes das
colônias inglesas diante do receio, expresso com todas as letras, de que estes, em
maior número, terminassem por eliminar os brancos (NEUMANN, 2014, 36-37).
De uma perspectiva bem abstrata, este fenômeno poderia ser tomado como
expressão do processo de modernização em que a tradição, a religião e a moral per-
dem a capacidade de funcionar como elemento de coesão para as interações sociais,
ou seja, não são mais capazes de proporcionar os valores básicos para uma vida social
relativamente pacífica e, por isso mesmo, o estado de direito ganha cada vez mais
centralidade por ser capaz de impor o cumprimento de normas de forma coercitiva e
permitir a modificação destas mesmas normas por meio do debate público (HABE-
RMAS, 1991).
Visto deste ponto de vista, as diversas figuras da perversão do direito podem
ser encaradas como indício da força do direito como gramática de legitimação do
poder no mundo contemporâneo: mesmo em situação de autarquia, o poder é com-
pelido a assumir uma forma jurídica para obter o mínimo de adesão por parte da
sociedade. Seja como for, identificar hoje situações de autarquia irá significar, muitas
vezes, examinar e avaliar textos legais aparentemente de acordo com a Constituição e
com as demais normas de mesma hierarquia ou que se utilizem da forma contrato
desligada da ideia de troca de equivalentes, apenas para impor o poder de uma parte
sobre a outra.
Importante esclarecer que utilizo a expressão “perversão do direito” para
designar, por assim dizer, um “direito autocrático”, em contraposição a um "direito
democrático", cuja gênese é determinada pelos conflitos sociais. Para Franz Neumann,
a expressão rule of law seria um sinônimo do meu “direito democrático” e a expressão
“não-direito" corresponderia ao meu “direito autocrático”. A perversão de que se
trata, seguindo a tradição da crítica marxista à Filosofia do Direito de Hegel, é evidenciar
as promessas não cumpridas pelas instituições efetivamente existentes, como aliás,
mostra Franz Neumann em “O Império do Direito” em seu capítulo a respeito do
pensamento de Hegel.
Para Neumann, a teoria hegeliana do estado como unidade ética só faria sen-
tido se os interesses dos diversos grupos sociais fossem idênticos, ou seja, que toda a

214
sociedade civil tivesse um interesse comum e unificado (NEUMANN, 2013a, 293).
Na falta desse pressuposto, ele poderia ser usado, como de fato o foi, para fins con-
servadores, como teoria do estado autoritário, ao descrever o estado como unidade
ética em uma sociedade cindida pela exploração do trabalho. No entanto, assinala
Neumann, tal teoria pode ser tomada como uma teoria revolucionária caso se de-
monstrasse a inexistência de harmonia entre as classes pela existência do proletariado
(NEUMANN, 2013a, 294-295).
A parte histórica de O Império do Direito procura tornar mais concreta esta
possibilidade ao investigar as diversas manifestações institucionais do estado de di-
reito na Europa de sua época. Esta pesquisa mostra que a tradição inglesa do rule of
law ligou, historicamente e de forma necessária, a vontade da sociedade à criação de
normas jurídicas, um modelo institucional capaz de fazer comunicar a complexidade
dos conflitos sociais com as instituições formais. A tradição alemã, por outro lado,
fala em “estado de direito” (Rechtsstaat) sem designar com esse termo uma relação
necessária entre estado e sociedade: para haver “estado de direito” basta que o poder
se autolimite, padronize seu comportamento, mesmo que a origem das regras que
fundamentam sua ação não seja a soberania popular. Tal forma institucional, portanto,
assume contornos claramente autárquicos, mantendo-se imune à dinâmica dos con-
flitos sociais.
A pesquisa de Neumann não se limita aos aspectos mais abstratos das insti-
tuições do estado de direito. Sob a influência dos escritos de Karl Renner (NEU-
MANN, 2013a, 84-97), Neumann também está preocupado como a configuração dos
diversos institutos jurídicos, por exemplo, os direitos fundamentais, a propriedade e
o contrato, fazendo um reparo explícito a Marx neste ponto. Para Neumann, Marx
teria se concentrado apenas em processos de mudanças institucionais revolucionárias
em que uma certa ordem jurídica é completamente substituída por uma outra, no
entanto, estes processos podem ocorrer no interior de uma determinada ordem social
em função do estado dos conflitos sociais (NEUMANN, 2013a, 95-97).
As diversas figuras da perversão do direito, na minha formulação, põem o
estado de direito democrático em questão pois neutralizam a vontade popular. Em
uma democracia, na definição clássica de Rousseau (2011), obedecemos apenas às
normas em relação às quais oferecemos nosso consentimento. Em uma democracia,
portanto, todos e todas somos, ao mesmo tempo, cidadãs e súditas. Para que um
regime assim seja possível, como nos mostrou Franz Neumann, sociedade e estado
devem permanecer em tensão. Esses dois âmbitos da vida social não podem coincidir
nunca, mas devem se comunicar e afetar um ao outro permanentemente, sem pers-
pectiva de reconciliação final (NEUMANN, 2013a).
É sabido que a necessidade de manter separadas sociedade e Estado não
aparece de forma tão clara na obra de Rousseau. Este autor parecia apostar, em vários

215
momentos de O Contrato Social, na possibilidade de construir uma vontade social rela-
tivamente uniforme, capaz de resolver seus conflitos por meio da ideia homogenei-
zante de vontade geral. Nesse sentido, postular a necessidade de uma vontade geral pode
resultar na eliminação da liberdade individual em favor do interesse do todo social,
fazendo coincidir estado e sociedade.
Para evitar este desfecho, Franz Neumann afirma, logo na introdução de O
Império do Direito que seu interesse se volta ao contrato social como forma e não como
conteúdo, ou seja, interessa a Neumann o contrato social visto como um mecanismo
institucional capaz de transformar os conflitos sociais, sempre presentes na sociedade,
em uma “vontade social” instável, provisória, dessubstancializada; uma resultante em
mutação de conflitos permanentes.
De acordo com este modo de pensar, o debate sobre democracia termina
por se confundir, em grande parte, com o debate sobre o desenho institucional do
estado de direito, ou seja, com a discussão sobre qual deve ser a melhor maneira de
desenhar as instituições democráticas para que cidadãos e cidadãs não sejam alienados
ou alienadas em relação ao poder do Estado (NEUMANN, 2013b). Afinal, as insti-
tuições de um estado de direito democrático exigem que as normas jurídicas sejam
produzidas a partir do debate público e levem em conta os interesses de todos os
agentes sociais. Para que este objetivo se efetive, será preciso desenhar as instituições
formais de modo que elas captem adequadamente a vontade dos diversos agentes
sociais.
No lugar da vontade geral rousseauniana, portanto, Franz Neumann põe a
rule of law ou o “direito democrático”, na terminologia deste texto, ou seja, um con-
junto de instituições cuja função é, primeiro, constranger os detentores do poder po-
lítico, econômico e social a justificarem e fundamentarem suas ações diante do todo
social, regulado pelo direito posto e, segundo, expressar a vontade cambiante da so-
ciedade em conflito. Neumann não tem muito a dizer em O Império do Direito sobre a
possibilidade de encontrar uma espécie de equilíbrio permanente entre estes interesses
em conflito do ponto de vista dos cidadãos e cidadão, ou seja, quais seriam os pres-
supostos subjetivos para a manutenção de estado de direito? Tal questão começou a
examinar a ser examinada por ele em um texto escrito um pouco antes de sua morte,
“Angústia e Política” (NEUMANN, 2017),
Retomando o fio da exposição, para realizar sua tarefa, o estado de direito
deve produzir uma série de normas de comportamento com a finalidade de estatuir o que
cidadãos e cidadãs devem ou não devem, podem ou não podem fazer. Além disso,
esta forma institucional produz normas de competência que autorizam a sociedade a criar
suas próprias regras de comportamento dentro de certos limites, por exemplo por
meio de contratos, cujos termos podem ser examinados pelo Judiciário em caso de
violação de certas normas de interesse público, como regras sobre a capacidade dos
agentes, a licitude do objeto, o respeito a limites ambientais, entre outros. As normas

216
de competência, diga-se, abrem a possibilidade de reconhecer a validade de verdadei-
ros ordenamentos jurídicos semiautônomos, paralelos ao direito estatal, como as nor-
mas produzidas por comunidades indígenas, a despeito de eventuais conflitos entre
estas duas ordens normativas (ver adiante), possibilidade que Neumann não explorou
em seus escritos.
Mas é evidente que, para Neumann, a democracia não se reduz ao estado de
direito, visto como regulação do comportamento e autorização para a regulação social,
a despeito de ter nele uma dimensão essencial de sua permanência em sociedades
plurais e conflitivas. Com efeito, para o autor, não haverá democracia se não houver
garantias institucionais que realizem a separação e comunicação necessária entre es-
tado e sociedade. Também não haverá democracia se não experimentarmos uma si-
tuação de conflito social aberto sobre a distribuição da riqueza, sobre a distribuição
de poder simbólico e de qualquer outro recurso de poder. Assim, toda figura de per-
versão do direito, ao retirar do debate público a discussão sobre um determinado
conjunto de normas e instituições com influência sobre a distribuição de poder, é uma
afronta à democracia.
A democracia pode ser vista, assim, com uma das respostas possíveis ao po-
liteísmo de valores instaurado pela modernidade, na expressão de Max Weber. Trata-
se de uma forma de sociabilidade capaz de lidar de forma pacífica com o pluralismo
político, religioso e social, além de tender a fazer desparecer a desigualdade econômica
entre os diversos grupos sociais. Afinal, apenas em um regime democrático e sob um
estado de direto, os diversos indivíduos e grupos podem perceber-se desfavorecidos
e lutar por uma melhor distribuição de poder e reconhecimento social. Ora, se as
sociedades ocidentais fossem capazes de produzir um acordo geral sobre as regras
que deveriam regular a dinâmica social, se todos partilhássemos dos mesmos valores
morais e os mesmos princípios éticos, se estivéssemos todos satisfeitos com o modo
como organizamos o trabalho e a distribuição de riqueza, não seria necessário viver
sob um estado democrático de direito.
Em uma situação de consenso como esta, todo o comportamento social po-
deria ser julgado com fundamento em normas claras e incontroversas, sendo dispen-
sável construir todo um aparato para fazer com que as normas respondam à vontade
social. Fácil é perceber que a democracia entra em crise, portanto, ao deixar de res-
ponder aos conflitos sociais, ou seja, ao perder a capacidade de produzir normas e
instituições sempre renovadas, resultantes do conflito entre os diversos agentes soci-
ais. A naturalização do direito e do estado em uma forma qualquer, portanto, é essen-
cialmente antidemocrática.
Nesse sentido, a partir destas reflexões, é possível dizer que a tarefa de uma
teoria crítica do direito é examinar as instituições formais em toda a sua complexidade
para, em primeiro lugar, examinar quais são as alternativas institucionais capazes de
dar voz aos desejos e demandas sociais da melhor maneira possível, operação que eu

217
tenho designado como uma busca por utopias institucionais, seguindo o exemplo das
análises de Neumann sobre as diversas configurações do estado de direito na Europa
de seu tempo e a sua análise da relação entre direitos fundamentais e institutos jurídi-
cos, tendo em vista as possibilidade de sua mudança de função em resposta aos con-
flitos sociais. De outra parte, cabe examinar as figuras da perversão do direito, ou seja, as
várias maneiras de organizar e operar instituições formais para impedir sua comuni-
cação com os conflitos sociais e, portanto, para impedir a sua transformação.

Seis casos
Observações iniciais

As figuras da perversão do direito corroem a legitimidade do regime demo-


crático ao imunizar normas e instituições da influência da vontade dos cidadãos e
cidadãs, pois, como já dito, o estudo de uma eventual "crise da democracia", não pode
ficar apenas restrita a questões macroscópicas, por exemplo, o mundo das eleições e
dos partidos políticos. Como veremos, muitas vezes é na minúcia das instituições do
estado de direito que a soberania popular perde seu poder e sua relevância para definir
o conteúdo das normas que traçam os destinos da vida dos cidadãos e cidadãs.
Apresentarei a seguir alguns resultados de pesquisa recentes que ajudam a
elucidar alguns mecanismos de perversão do direito. A despeito de tratarem de assun-
tos bastante diferentes, FIFA, CTN-BIO, política econômica, questões de zonea-
mento urbano, sigilo fiscal e trabalho dos estagiários e estagiárias em Direito, as pes-
quisas evidenciam situações em que o estado de direito se fecha à influência da von-
tade popular. Além disso, todas elas ou foram orientadas por mim ou mantiveram,
em algum nível, um diálogo com minhas pesquisas no âmbito do Núcleo Direito e
Democracia do CEBRAP e do Programa de Pós-Graduação, Mestrado e Doutorado
em Direito da UNISINOS.
Importante observar que algumas das situações de perversão do direito que
serão apresentadas em seguida podem ser descritas como estratégias deliberadas para
dar aparência jurídica a ações que procuram neutralizar os efeitos da soberania popu-
lar. Outras, de outra parte, consistem na naturalização de elementos estruturais das
nossas sociedades capitalistas, por exemplo, a discussão sobre direito e política fiscal,
sobre a FIFA e sobre os debates na CTNBio, por efeito da ação de uma série de
agentes sociais, sem que se possa identificar uma intencionalidade explícita. Para que
uma figura da perversão do direito se configure não é necessária a identificação de
uma intenção explícita de imunizar as instituições da influência dos conflitos sociais.
Nestes três casos, o direito é chamado a autenticar, chancelar, práticas que
delimitam as fronteiras entre o possível e o impossível, entre o que podemos afirmar
que seja a efetividade do mundo como se apresenta hoje e o que poderia ser um
mundo diferente, uma outra realidade possível. Nestes casos, portanto, a perversão

218
do direito revela todo o seu potencial conservador ao conferir ao que é a aparência
de algo que deve ser, ou seja, a aparência de algo que “é o que é” por ser “de direito”.
Tal uso do direito é uma estratégia evidente para tentar neutralizar qualquer ação
transformadora, ao apresentar o mundo, que sabemos ser essencialmente mutável,
como alguma coisa que deve ser como sempre foi.

Controvérsias Científicas na CTNBio

A dissertação de mestrado de José Renato Barcelos, “Controvérsias em


Torno das Sementes e do Direito Fundamental à Proteção do Patrimônio Genético
e Cultural”2, examinou uma série de decisões proferidas pela instância responsável
pela biossegurança no Brasil, a Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTN-
Bio) nos pedidos de liberação comercial e organismos geneticamente modificados
(OGM’s).
O trabalho buscou identificar a racionalidade destas decisões, mais especifi-
camente, quais foram os argumentos utilizados pelos participantes deste colegiado
deliberativo, no qual predominam cientistas, mas também estão presentes represen-
tantes da sociedade civil. O objetivo do órgão, a princípio, seria, justamente, contem-
plar as mais diversas visões sobre a pesquisa genética de modo a produzir decisões
representativas das controvérsias a respeito do assunto presentes na sociedade civil.
A pesquisa se concentrou nos Pedidos de Aprovação Comercial de Plantas Geneti-
camente Modificadas Aprovadas para Comercialização coletados no site da CTNBio
(www.ctnbio.org.br) na internet, principalmente os pareceres técnicos dos relatores
dos processos de pedidos de liberação comercial. Estes concentram um conjunto de
elementos essenciais para a pesquisa mencionada, inclusive aqueles que permitem o
acesso à a racionalidade por trás das decisões do colegiado.
Foram examinados pela pesquisa 163 (cento e sessenta e três) pareceres téc-
nicos – de um universo total de 244 (duzentos e quarenta e quatro) – concernentes a
pedidos de liberação comercial de OGM’s em um total de 3 (três) culturas (milho,
soja, feijão), de um universo total de 5 (cinco) culturas (milho, soja, feijão, algodão,
eucalipto), disponibilizados na fonte de pesquisa. A escolha destas três culturas se

2 BARCELOS, José Renato. Controvérsias em Torno das Sementes e do Direito Fundamental à Proteção
do Patrimônio Genético e Cultural. Dissertação de Mestrado (mimeo), UNISINOS: São Leopoldo, 2016.
A dissertação foi desenvolvida sob minha orientação no Programa de Pós-Graduação em Direito da
UNISINOS. Agradeço ao autor por ter produzido um resumo dos resultados de seu trabalho, o qual
serviu de base para a redação desta parte do texto. Ressalto que o diálogo do trabalho com as catego-
rias de análise de minha autoria não implica necessariamente na concordância de seu autor com os
meus pressupostos teóricos. Esta última afirmação vale para todos os trabalhos citados daqui em di-
ante, com exceção da dissertação de Daniel Zugman, que parece adotar expressamente o referencial
teórico de minha autoria, tendo desenvolvido, inclusive, leituras autônomas da obra de Franz Neu-
mann, autor que me serviu de inspiração.

219
explica pelo fato de que elas são responsáveis pela maior parte da base produtiva e eco-
nômica da agricultura familiar, das comunidades indígenas, das populações tradicionais,
das comunidades quilombolas, dos assentados da reforma agrária, dentre outros.
A pesquisa mostrou que no período referencial de exame e coleta de dados
foram submetidos e deferidos 45 (quarenta e cinco) pedidos de liberação comercial
de OGMs à CTNBio. Tais decisões foram lideradas por 99 (noventa e nove) relatores
diferentes e informadas pelos referidos pareceres.
Tratando-se de um órgão de composição plural, aparentemente desenhado
para abarcar várias posições sobre o tema, era de se esperar que tivesse havido algum
tipo de debate entre os representantes dos diversos segmentos sociais sobre os diver-
sos aspectos da liberação para o comércio de OGMs. Não foi o que os dados coleta-
dos mostraram.
Em primeiro lugar, é muito difícil mensurar a racionalidade das decisões, que
reúnem uma quantidade imensa de informação, tais como: pareceres técnicos ad hoc,
artigos científicos, pesquisas estrangeiras, exame de casos, pareceres de relatores, pu-
blicações de variados tipos, dentre outros. Diante desse manancial de informação, não
é fácil identificar quais foram os argumentos decisivos para a tomada de decisão.
Segundo, temas importantes para a sociedade, como a biossegurança, a con-
duta precaucionária e a análise e gestão de riscos foram levantados em várias ocasiões,
mas foram barrados pela maioria dos cientistas, que forma um grupo majoritário o
qual conduz as votações a seu bel-prazer. Os representantes da sociedade não pos-
suem poder algum no interior da CTNBio, que não possui outros mecanismos de con-
sulta popular ou discussão com a sociedade, como a realização de audiências públicas.
Os pedidos de liberação comercial de OGMs que ingressam na CTNBio pro-
venientes das empresas de biotecnologia foram 100% (cem por cento) aprovados, a
despeito de denúncias sobre a falta de rigor de uma série de estudos científicos que
serviram de base para tais decisões, as quais foram ventiladas pelos representantes da
sociedade na comissão e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).
O grupo dominante defende abertamente um modelo de ciência que privile-
gia a performance tecnológica, neste caso, a performance agronômica, em detrimento
da adoção de uma conduta precaucionária centrada na biossegurança e na análise e
gestão de riscos.
Não há debate ou busca de consenso na CTNBio, apenas a mera homologa-
ção generalizada e veloz dos pedidos de aprovação comercial de OGMs. O elemento
decisivo para as decisões é o número de votos do grupo dominante: não se percebe
da documentação levantada a existência de um debate efetivo entre os diversos com-
ponentes da comissão.
Diante deste quadro, a pesquisa sugere que a CTNBio pode ser considerada
um espaço autárquico, uma das figuras da perversão do direito. Não há como identi-
ficar com precisão seus critérios decisórios e isolar os argumentos determinantes para

220
a tomada de decisões. Esta maioria, que decide sempre da mesma forma, é composta
por cientistas que compartilham uma mesma visão de ciência e simplesmente descon-
sideram as opiniões contrárias, sem dar-se o trabalho de refutá-las com a utilização de
argumentos.

A FIFA entre o direito e a força

A dissertação de mestrado de Tiago Silveira de Faria, “Lex Fifa: Autonomia


e Poder de uma Ordem Jurídica Transnacional”3, estuda a normatividade da FIFA
classificando-a como um regime jurídico transnacional, conceito de Gunther Teubner.
Estes regimes caracterizam-se pelo fato de serem tematicamente especializados e rei-
vindicarem validade para além das normas criadas pelos estados e pelos organismos
de direito internacional público.
A dissertação mostra que a lex FIFA é um ordenamento jurídico-desportivo
transnacional peculiar que tem elementos de hard law e de soft law. O trabalho sugere
que a FIFA pode ser considerada o centro de uma espécie de “direito corporativo”
por contar com uma entidade abrangente, formalmente estruturada para controlar
seus membros e zelar pelos mecanismos de filiação e de desligamento da entidade.
A dissertação lembra que a FIFA convive hoje com uma crise sem preceden-
tes, resultante da maximização de sua racionalidade sem politização ou legitimidade
que se pretenda universal. Esta afirmação de autonomia sem controle, aparentemente,
está contribuindo para o exercício arbitrário do poder pela entidade, fato que poderia
ser classificado como uma zona de autarquia.
O autor evoca fontes que sustentam que estes regimes jurídicos transnacio-
nais tendem, de fato, a se tornarem totalitários, transformando-se em uma forma de
dominação que reserva pouco espaço para a contestação ou para a oposição política.
Esta tendência poderia ser revertida por uma eventual democratização destes meca-
nismos por meio da constitucionalização de direitos políticos e da descentralização
do exercício do poder.
No entanto, continua a análise, a tentativa de intervenção estatal para politi-
zar o subsistema desportivo ou para reparar a suposta perversão do direito - levada à
cabo por entidades como a FIFA - tem muitas limitações. Por exemplo, ainda que o
Tribunal Federal Suíço persista em assumir competência revisora ou rescisória das
decisões proferidas pela mais alta corte arbitral esportiva mantida pela FIFA, as orga-
nizações desportivas transnacionais podem transferir suas sedes para países que ad-
mitam maior autonomia da lex sportiva.

3FARIA, Tiago Silveira de. Lex Fifa: Autonomia e Poder de uma Ordem Jurídica Transnacional. Disser-
tação de Mestrado (mimeo), UNISINOS: São Leopoldo, 2016. A dissertação foi desenvolvida sob minha
orientação no Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Agradeço ao autor por ter pro-
duzido um resumo de seu trabalho, que serviu de base para a redação deste trecho do texto.

221
A mobilidade das entidades jurídico-esportivas, seu poder de excluir Estados
das competições ou torneios internacionais faz com que esta ordem jurídica transna-
cional seja soberana diante dos Estados. A fuga da jurisdição estatal visa proteger o
subsistema. Afinal, as normas da FIFA sairiam enfraquecidas se pudessem ser exami-
nadas pelas cortes judiciais estatais de duzentas e nove associações a ela filiadas.
Quando o confronto ocorre, a FIFA não entra na arena litigiosa estatal. Sua
estratégia é exercer uma forte coerção sobre as partes litigantes ou terceiros benefici-
ados com a finalidade de fazer com que desistam da lide sob a ameaça de uma série
de sanções desportivas. O conflito normativo entre o direito estatal e as normas da
FIFA permanece no plano teórico, já que a tendência é que nenhum tribunal vá de-
cidi-lo de fato.
A desistência do litígio, cuja natureza é dispositiva, deixa a jurisdição estatal
de mãos atadas. Ainda que o juiz da causa pretenda dar continuidade ao processo, ele
é obrigado a acatar a decisão da parte e homologar a desistência. A FIFA consegue
exercer sua força mesmo em processos judiciais em que as partes integrantes não
pertençam ao subsistema desportivo. Por exemplo, casos em que torcedores obtêm
decisões judiciais favoráveis a seus clubes e são pressionados por eles para desistirem
das demandas em razão do medo de sofrerem retaliações pela entidade.

O Regime Jurídico da Política Fiscal

A dissertação de mestrado de Flávio Marques Prol, “Direito e Economia:


Um Estudo do Regime Jurídico da Política Fiscal no Brasil”4, desenvolvido na Facul-
dade de Direito da Universidade de São Paulo, analisou os papéis exercidos pelo di-
reito na definição da política fiscal brasileira. O regime jurídico da política fiscal é o
conjunto de princípios e regras que disciplinam a gestão do gasto e do endividamento
públicos. A pesquisa realizou uma análise das funções deste regime jurídico combi-
nada com uma reflexão sobre o papel do direito para a legitimação social dos objetivos
da política fiscal.
O trabalho argumenta o regime jurídico da política fiscal foi reformado na
década de 1990 tendo em vista promover a agenda do ajuste fiscal e da sustentabili-
dade da dívida pública na gestão da política fiscal. Essa reforma implicou mudanças
significativas em quatro âmbitos: prerrogativas fiscais foram centralizadas na União,
em detrimento de estados e municípios; houve centralização do poder fiscal no Exe-
cutivo, em relação ao Legislativo; foram instituídos limites legais à gestão da política
fiscal, incluindo limitações com despesas com pessoal e com endividamento público;

4 PROL, Flávio Marques. Direito e Economia: Um Estudo do Regime Jurídico da Política Fiscal no Brasil,
Dissertação de Mestrado (mimeo), USP: São Paulo, 2014. Agradeço ao autor, com quem tenho deba-
tido faz alguns anos no Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP, por fornecer um resumo de seu tra-
balho que me auxiliou na redação deste artigo.

222
e foram criados novos mecanismos de transparência e prestação de contas da política
fiscal.
Ao contrário do que normalmente se argumenta na literatura, que enfatiza
os fatores domésticos que resultaram na reforma do regime, a pesquisa propôs uma
interpretação que combinou fatores domésticos com influências internacionais na ex-
plicação das determinantes da reforma.
O último capítulo analisou os efeitos da implantação do novo regime jurídico
para a política fiscal até o ano de 2014, os quais permitem perceber que, embora as
regras e os princípios jurídicos tenham efetivamente reduzido a margem de manobra
fiscal de estados e municípios, centralizado competências fiscais no Executivo e cri-
ado novos mecanismos de transparência e prestação de contas da política fiscal, é
possível defender que ainda existia um considerável espaço de discricionariedade na
definição e na gestão da política fiscal no âmbito do Poder Executivo federal, o que
é contrário aos objetivos dos proponentes da reforma da década de 1990.
Justamente neste último capítulo, a pesquisa sugere uma aproximação com
o conceito de zona de autarquia. Ao analisar as tendências atuais de desenvolvimento
institucional do regime jurídico da política fiscal, a pesquisa demonstra que atores que
ficaram insatisfeitos com os resultados da política na década de 2000 apresentam hoje
propostas que pretendem alterar os espaços institucionais que detêm poder para de-
cidir sobre este tema.
A proposta, basicamente, é a de criação do que organizações internacionais
têm chamado de instituições fiscais independentes, ou seja, órgãos independentes dos
poderes políticos tradicionais (Judiciário, Legislativo e Executivo), mas financiados
publicamente, responsáveis pela fiscalização, análise e pela sugestão (em algumas pro-
postas mais audaciosas, pela definição) da política fiscal.
Como se percebe, essa agenda de reforma institucional das finanças públicas
envolve aspectos centrais de instituições políticas de qualquer estado democrático. O
orçamento sempre representou um espaço de disputa política, democrática e jurídica
por excelência. As decisões fiscais sobre quantos e quais projetos públicos deveriam
ser financiados foram tradicionalmente interpretadas como sendo de competência do
Legislativo e/ou do Executivo, geralmente por meio do orçamento.
O caso brasileiro mostra que a criação de regras fiscais para delimitar a dis-
cricionariedade dos responsáveis pelas decisões fiscais foi um primeiro momento re-
levante de reforma do regime jurídico da política fiscal e dessas instituições políticas.
A criação de instituições fiscais independentes parece ser o segundo. A legitimidade
democrática da gestão da política fiscal parece ser disputada justamente no contexto
dessas reformas institucionais.

223
A política fiscal é legítima porque decidida politicamente e de acordo com
regras democráticas tradicionais ou ela é legítima quando protegida dos próprios po-
líticos que supostamente deveriam defini-la – e definidas de acordo com critérios su-
postamente técnicos a respeito da sustentabilidade prevista da dívida pública?

As armadilhas jurídicas do direito à cidade

A partir de sua dissertação de mestrado, "Direito e cidade: uma aproximação teórica",


desenvolvido na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Bianca Tavolari5
tem refletido sobre a relação entre o direito e conflitos sociais que ocorrem nas cida-
des, uma área tradicionalmente estudada pela disciplina direito urbanístico.
Sua participação na observação de uma série de operações urbanas que tem
ocorrido na cidade de São Paulo, publicadas sob a forma de textos de intervenção no
site "ObservaSP" (https://observasp.wordpress.com), os quais certamente merecem
uma reelaboração organizada e mais desenvolvida, traz exemplos interessantes para
ilustrar algumas modalidades de perversão do direito.
O texto "Concessão dos baixos de viadutos: armadilhas jurídicas", escrito em
parceria com Luanda Vannuchi6, analisa, no calor da hora, uma concorrência pública
para concessão de uso onerosa e requalificação das áreas do baixo do viaduto Júlio de
Mesquita Filho e de seu entorno, no bairro do Bixiga, lançado no dia 28 de dezembro
do ano passado pela Subprefeitura da Sé, na região central da cidade de São Paulo e
já em processo de modificação, diante de seus imensos defeitos.
Como explicam as autoras, "o edital foi uma surpresa para os grupos artísticos
e pequenos comerciantes que já ocupam o espaço e que, apesar de manterem diálogo
estreito com a Subprefeitura, sequer foram informados de sua elaboração". No dia 3
de fevereiro o edital foi apresentado em reunião convocada pela Subprefeitura por
meio do seu site, a qual exigia confirmação antecipada dos participantes e controle de
entrada no auditório.
Uma primeira observação é interessante aqui: a forma institucional escolhida
para divulgar e debater os termos do edital não privilegiou a participação dos interes-
sados e eventuais atingidos pela proposta, o que pode ser um indício de que esta
operação teria como objetivo oculto excluir da participação neste processo entidades
como o Teat(r)o Oficina, o Terreyro Coreográfico, a Rede Social Bela Vista, o movi-
mento negro, escritórios de arquitetura, o CONSEG Bela Vista e o Secovi; entidades

5 Agradeço à autora pela indicação de seus artigos que serviram de base para esta parte da exposição
e pelo diálogo que mantemos, faz alguns anos, no Núcleo Direito e Democracia do CEBRAP. Um resul-
tado de sua dissertação pode ser visto em TAVOLARI, 2016a.
6 TAVOLARI, Bianca; VANNUCHI, Luanda. "Concessão dos baixos de viadutos: armadilhas jurídicas",

Observa SP, https://observasp.wordpress.com/2016/02/18/concessao-dos-baixos-de-viadutos-ar-


madilhas-juridicas/, consultado em 23 de fevereiro de 2016.

224
que, a despeito da forma de divulgação escolhida, estiveram presentes na reunião
ocorrida na Prefeitura.
Ora, ainda que tendo adotado uma forma jurídica livre de ilegalidades aparentes,
a operação parece visar expulsar os atuais ocupantes da área, sem que se abrisse a eles
a possibilidade de intervir sobre o processo ou propor um projeto próprio nos termos
do edital. Tal impossibilidade fica mais clara quando as autoras examinam o edital e
apontam o critério de maior preço como seu eixo estruturante: “este edital tem como
finalidade de (sic) escolher a proposta com o maior valor de investimentos privados” (item 1.2.).
Como mostram as autoras, a qualidade do projeto, neste caso, não é um critério
imprescindível para a sua apresentação e aprovação. É verdade que, como o próprio
texto afirma, há um decreto municipal que regulamente a matéria, n. 48.378/2007, o
qual afirma "Art. 12. O julgamento das propostas deverá ater-se ao critério de melhor
contrapartida financeira para a área licitada, não podendo o uso pretendido pelo lici-
tante, ou qualquer outro detalhe técnico, constituir-se em critério de classificação das
propostas". No entanto, segue o texto, a lei federal que regula as licitações e formas
de contratação, 8.666/1993, permite que se eleja os critérios de “melhor técnica” ou
de “melhor técnica e preço” para contratar projetos de obras e engenharia (art. 46).
A lei de concessões públicas (Lei n. 8.987/1995), no mesmo sentido, prevê que os
critérios de melhor proposta técnica possam ser aplicados nas licitações (art. 15).
Além disso, como explicam as autoras, o edital proíbe que empresas de pequeno
porte e microempresas participem da licitação (item 5.3) com a justificativa de que
elas não teriam condição de investir o mínimo de quase R$13 milhões, também pre-
visto no edital. No entanto, o documento permite que consórcios de até cinco em-
presas apresentem propostas (item 5.5.).
Ora, qual seria a justificativa para excluir pequenas e médias empresas da pro-
posta, caso elas fossem capazes de formar um consórcio e prometer investimentos
no valor pretendido pela Prefeitura? Mais um detalhe relevante: o edital exige que as
empresas tenham experiência de gerenciamento de áreas equivalentes, de
11.500m2 ou mais, de exploração de espaços comerciais, estacionamentos e banheiros
públicos (item 8.3.1.).
Provavelmente apenas gestoras de shopping centers e grandes hotéis se encaixariam
neste perfil, o que permitiria que as cinco das maiores controladoras de shopping centers
atuantes em SP formassem um consórcio para ganhar o edital quase sem concorrência.
A proposta ainda está em debate, todas estas questões estão em aberto e podem
ser revistas. Mas é interessante notar que, repito, independentemente das intenções
explícitas da Prefeitura, o edital, na forma como está, pode ser considerado como um
exemplo claro de falsa legalidade. Por meio de uma formulação jurídica aparente-
mente universal e genérica, o diploma legislativo visa provocar efeitos seletivos, sendo
fácil identificar as pessoas que ficam sub-repticiamente excluídas da proposta e as
pessoas que seriam possivelmente beneficiadas por nela

225
Quem já utiliza a área, por exemplo, o Café da Mara, um sacolão, uma pastelaria
e um açougue, alguns em funcionamento ali há mais de vinte anos, poderiam ser ex-
pulsos da área, como está explícito no edital:

CLÁUSULA 40 – DOS ATUAIS COMERCIANTES: 40.1. À CONCESSIO-


NÁRIA ficarão sub-rogados todos os direitos e obrigações decorrentes dos
Termos de Permissão de Uso – TPU, concedidos para o local a terceiros a partir
da assinatura do presente CONTRATO, podendo optar:
I – pela manutenção dos Termos de Permissão de Uso – TPU, até seu prazo
final ditado pelo concedente;
II – pela rescisão amigável dos Termos de Permissão de Uso – TPU, por meio
de acordo com as partes contratadas; e
III – pela rescisão unilateral pelo PODER CONCEDENTE, caso os permissi-
onários não observem o prescrito nos Decretos Municipais;

Quem vencer a licitação poderá, portanto, optar por rescindir amigavelmente


ou unilateralmente as permissões dos atuais comerciantes da área. As autoras esclare-
cem que:

"A maioria destes questionamentos foi levantada publicamente na reunião do


dia 3 de fevereiro. A falta de diálogo com a população antes do lançamento do
edital, às vésperas do final do ano, e a relação direta entre valor pago pelo parti-
cular e o interesse público envolvido no projeto foram elementos criticados por
vários dos presentes, tanto aqueles contrários ao modelo de concessão quanto
os favoráveis."

Diante de uma série de respostas confusas por parte dos representantes da


Prefeitura presentes na reunião, "o diretor de desenvolvimento da SP-Urbanismo,
Gustavo Partezani, admitiu que o edital contém diversos problemas e que uma audi-
ência pública seria convocada, após o carnaval, para rever pontos estruturais da pro-
posta."

Os Critérios do Sigilo fiscal

Em sua dissertação de mestrado, "Processo de Concretização Normativa e


Direito Tributário: Transparência, justificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal",
desenvolvida na Direito SP (Escola de Direito de São Paulo da FGV), Daniel Leib
Zugman aplicou o conceito de zona de autarquia, ao qual eu mesmo denominava de
zona de autarquia em trabalhos anteriores, ao estudo do sigilo fiscal.7

7 ZUGMAN, Daniel Leib. Processo de Concretização Normativa e Direito Tributário: Transparência, jus-
tificação e zonas de autarquia do sigilo fiscal. Dissertação de Mestrado (mimeo), Direito SP-FGV: São
Paulo, 2014.

226
Em suas conclusões, o autor constatou que "o termo ‘sigilo fiscal’ é utilizado
de modo deveras convicto, para transmitir a impressão de que seria conceito dotado
de contornos muito claros". No entanto, na realidade, sua concretização normativa
não é passível de reconstrução em termas racionais,
Para começar, o Manual do Sigilo Fiscal, principal ato interpretativo da Re-
ceita Federal acerca do tema, não é disponibilizado ao público, a despeito deste ma-
nual conter a interpretação oficial praticada pelo principal órgão da Administração
Tributária. O mestrado analisou 130 decisões da Receita sobre o assunto, as quais não
desenvolvem argumentação alguma, limitando a citar o texto legal pertinente ao caso,
o Art. 198 do Código Tributário.
Não foi possível, diz o autor, " identificar um conceito geral e abstrato que
tenha sido utilizado em todos os atos analisados. Não se identificou a utilização de
uma racionalidade lógico-formal, que procura deduzir de proposições gerais e abstra-
tas, soluções para casos concretos".
O texto segue, mostrando que algumas autoridades recorrem a valores mo-
rais ou políticos para pôr de lado o texto do art. 198 sem a apresentação de argumen-
tos sistematizados que justifiquem a utilização desses elementos. Além disso, os ór-
gãos da Administração Tributária Federal divergem a respeito do tema.
Há discordâncias de três tipos: (i) entre órgãos distintos da Administração
Tributária federal, em relação ao mesmo tipo de informação; (ii) entre entes federati-
vos distintos, sobre a mesma informação; (iii) posições divergentes defendidas pelo
mesmo órgão em momentos diferentes.
O autor defende que, para desfazer esta zona de autarquia no que diz respeito
ao sigilo fiscal no Brasil, seria necessário dar publicidade aos atos de aplicação das
normas para que o processo interpretativo pudesse ser publicamente controlado. A
existência do sigilo, de acordo com o autor, já é sinal do potencial de transformação
que a divulgação desses atos possui.
A transparência do processo de concretização das normas tributárias implica
maior compartilhamento de expectativas entre os atores, realizando a derradeira fun-
ção do sistema do direito: filtrar e organizar expectativas, tornando inteligíveis as co-
nexões intersubjetivas bem como os limites e objetivos da atuação estatal.

Estágio ou precarização?

O projeto de pesquisa “Luta por direitos: a paralisação dos estagiários e es-


tagiárias do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul de 2014”, desenvolvido no
âmbito do Mestrado e da Iniciação Científica da Unisinos sob minha orientação, ob-
jetiva investigar causas e consequências da paralisação de estagiários ocorrida no final
de 2014 no Rio Grande do Sul na luta por direitos da categoria.

227
No início do mês de novembro de 2014, estagiários e estagiárias vinculadas
ao Tribunal receberam uma notícia por circular eletrônica: o recesso forense compre-
endido entre 20/12/2014 e 06/01/2015 não seria pago aos estagiários, a despeito de
ser pago a todos os demais trabalhadores da Corte e contra a postura adotada no
recesso anterior, quando houve pagamento integral.
Diante desse fato, estagiárias e estagiários mobilizaram-se e, paralisando suas
atividades, promoveram atos públicos, chegando a protocolar requerimentos admi-
nistrativos e impetrar um mandado de segurança contra o ato do TJRS. Depois das
reiteradas negativas em rever a posição, a categoria foi se desmobilizando e seguiu
com o sentimento de que tiveram seus direitos violados.
A condição socioeconômica peculiar de quem estagia impõe obstáculos e
evidencia um caso de perversão do direito. Investigações realizadas no âmbito desta
pesquisa, mostram que, de acordo com a análise de Carlos Eduardo Pereira Siqueira,
o TJRS teria tomado decisões que poderiam ser qualificadas como autárquicas. Veja-
mos.
Guy Standing8 , ao analisar a organização social diante das contemporâneas
estruturas econômicas, identifica modos de vida precários, estabelecendo algumas ca-
racterísticas do que chama “precariado”, enquanto classe inserida em relações de in-
segurança permanente, vulnerabilidade, flexibilidade e desagregação9.

O precariado tem características de classe. Consiste em pessoas que têm relações


de confiança mínima com o capital e o Estado, o que as torna completamente
diferentes do assalariado. E ela não tem nenhuma das relações de contrato social
do proletariado, por meio das quais as garantias de trabalho são fornecidas em
troca de subordinação e eventual lealdade, o acordo tácito que serve de base para
os Estados de bem-estar social.10

Na prática, eles [os estágios] são usados por muitos empregadores como um
meio de obter trabalho dispensável barato. 11

Os estágios são uma ameaça para os jovens que estão no precariado e em torno
dele. Mesmo que haja um pagamento, os estagiários estão fazendo um trabalho
barato sem perspectiva de progresso, que pressiona para baixo os salários e as
oportunidades de outros que normalmente poderiam ser empregados. 12

8 STANDING, 2014.
9 Não trataremos aqui das controvérsias sobre a caracterização do “precariado” como uma classe
“para si” ou não: no Brasil, Ruy Braga (2012) levanta esta discussão, estabelecendo uma divergência
com Guy Standing. Vamos nos limitar a tratar do precariado como o resultado da pressão econômica
atual sobre os trabalhadores e trabalhadoras, a qual tem produzido modos de vida cuja precarização
atinge níveis extremos.
10 STANDING, 2014, 25.
11 Idem, p. 120.
12 Idem, p. 122.

228
O estágio é um vínculo precário de trabalho que dá acesso a poucos direitos.
A Lei n. 11788/2008 afasta a atuação de estagiários e estagiárias do vínculo emprega-
tício (art. 3º), o que desobriga aquele que é beneficiado com o trabalho quanto a de-
veres trabalhistas. Criam-se vínculos efêmeros entre as partes, dada a transitoriedade
da relação (o art. 11 estipula o máximo de dois anos para o estágio), além de não ser
garantido o pagamento de salário mínimo, décimo terceiro salário, verbas previdenci-
árias, dentre outros direitos laborais.
Para piorar, não há, ao menos no caso dos estagiários e estagiárias em direito
no Rio Grande do Sul, Brasil, associação coletiva da categoria. Estagiários e estagiárias
estão submetidos ao poder de comando direto de seus superiores, havendo pouca
organicidade quanto à dinâmica de trabalho no âmbito do TJRS, pois, especialmente
nas Varas, cada magistrado possui um método de trabalho diferente, havendo Varas
de tamanhos e perfis muito diferentes ao redor de todo o Estado.13
É de se acrescentar que existem fortes indícios de que a mão-de-obra dos
Tribunais está sendo substituída por estagiários e estagiárias. Entrevistas exploratórias
realizadas com algumas das lideranças do movimento informam que muitas varas são
compostas majoritariamente por trabalhadores e trabalhadoras desta espécie, ha-
vendo casos em que a saída de um servidor efetivo foi imediatamente substituída por
contratação de estagiário.
No episódio que esta pesquisa está estudando, a “natureza” do liame serviu
para justificar a exclusão da categoria do debate sobre as políticas de recursos huma-
nos, além de “respaldar” tratamento discriminatório: apenas estagiários e estagiárias
sofreram corte nos vencimentos por ocasião do recesso de fim de ano.
Corroborando a suspeita de substituição de mão-de-obra, deve-se considerar
que, de acordo com dados publicados no sítio eletrônico do TJRS, 27,6% da força de
trabalho da corte (primeiro e segundo graus) era formada por estagiários e estagiárias,
considerando a quantidade total de magistrados (as), servidores (as) e estagiários (as).
Apesar de o art. 17 da Lei n. 11788/2008, que regula o número máximo de estagiários
por entidade, não se aplicar a estágio de nível superior (por previsão expressa do § 4º),
é interessante perceber a repercussão da grande representatividade dos vínculos de
estágio. Mesmo a doutrina mais tradicional considera que

A ideia do número máximo de estagiários tem por objetivo evitar a transforma-


ção de postos de trabalho em estágio para não ter vínculo trabalhista e diminuir
encargos. Visa evitar que a empresa substitua mão de obra permanente por es-
tagiários, com custo mais barato.14

13Caso a análise seja expandida para o estágio em escritórios, parece razoável afirmar que tal organi-
cidade irá se revelar menor ainda, diante das diferenças de perfil entre estes estabelecimentos e suas
culturas de trabalho específicas.
14MARTINS, 2012, p. 173.

229
Essas considerações são importantes porque mostra como a especial posição
subalternizada de estagiários e estagiárias está atrelada a obstáculos estruturais que de
fato lhe foram impostos pela administração do TJRS. Poder-se-ia dizer que está ha-
vendo uma ampliação das zonas de autarquia, pois a regulação pública está cedendo
espaço em favor da vontade unilateral do tribunal, aqui atuando como ente privado.
Boa parte da mão de obra que serve ao TJRS resta excluída do controle pú-
blico via direito administrativo e está entregue ao âmbito do direito privado, nota bene,
mesmo quando órgãos públicos são os interessados. Trabalhadores e trabalhadoras
que deveriam exercer suas funções sob a proteção do direito público ficam sujeitos a
um regime jurídico com menos direitos e sujeito a decisões unilaterais e arbitrárias
por parte dos órgãos públicos.
Nessa condição, se adotarmos a compreensão de Neumann de que o Estado
é constituído pela relação tensa e complexa entre soberania e Império do Direito 15,
teria havido um desequilíbrio entre esses elementos para fazer preponderar o poder
soberano sem controle social. Para o autor, “toda instituição é chamada soberana
quando possui poder não delegado e ilimitado para emitir normas gerais e comandos
(decisões) individuais”.16
No exercício desse poder, modernamente se costuma dividir a atuação estatal
em três funções básicas: legislativo, executivo e judiciário. Com isso, haveria mecanis-
mos de controle com o objetivo de evitar o acúmulo de poder por um órgão ou pessoa,
em especial a partir da formulação clássica de tripartição de poderes de Montesquieu.
Porém, os magistrados que compõem o TJRS, sobretudo sua cúpula, no caso que
estamos estudando, terminaram por exercer funções executivas, legislativas e judiciais
em relação ao mesmo caso.
Em primeiro lugar, editaram unilateralmente a norma aplicável ao paga-
mento da contraprestação do trabalho de estagiários durante o feriado de fim de ano.
Criaram, por deliberação da “Comissão de Supervisão de Estágio”, o regulamento
que estabelecia a paralisação da corte entre 20/12 e 06/01, prevendo o corte na bolsa
de estágio.
Em um segundo momento, diante da provocação jurisdicional levada a cabo
pela impetração do mandado de segurança pelos participantes do momento, o TJRS
atuou como juiz do caso, ratificando em liminar (e, posteriormente, no acórdão tran-
sitado em julgado) a determinação regulamentar. No terceiro momento, promoveu
auto-executoriamente a implementação das medidas, realizando a previsão abstrata
do texto normativo no plano fático-social.
Diante desse acúmulo de funções no mesmo ente, o judiciário foi, na prática,
instância revisora de seu próprio ato. Para questionar a conduta do tribunal, o mesmo

15 NEUMANN, 2013a, p. 38
16 Idem, ibidem, 69.

230
tribunal foi provocado, marcando a presença excessiva do poder soberano e tímida
do direito. Ainda segundo Neumann,

Em sentido sociológico, uma instituição é chamada soberana se possui não apenas


direitos jurídicos desse tipo [poder não delegado e ilimitado], mas também se tem
a habilidade para manter as normas e comandos emitidos por meio desses direi-
tos. Portanto, num sentido sociológico de soberania está incluído um elemento
tanto do direito quanto do poder.17

Mesmo que, na complexidade da relação entre soberania e Império do Di-


reito, a atuação estatal tenha que ser revestida de juridicidade, o poder de subordinar
pode apenas ter reflexo formal na legislação. Isso porque, em circunstâncias como a
do MS em estudo, será jurídico aquilo que o tribunal assim o declara, sem possibili-
dade real de controle do ato pela sociedade ou por um outro poder qualquer, confi-
gurando um caso de zona de autarquia.

Observações finais

Um dos papéis centrais da pesquisa jurídica crítica é vigiar o poder para co-
brar-lhe justificativas e identificar os momentos em que ele tende a decidir autarqui-
camente, ocultando seus reais objetivos e excluindo a influência da sociedade. O pes-
quisador crítico, nesse sentido, visa a denunciar situações em que o estado de direito
é evocado como uma forma sem correspondência à natureza da ação praticada, iden-
tificar espaços decisórios sem critérios racionais e movimentos que visam a evitar a
influência dos conflitos sociais sobre a produção de normas.
Para identificar este tipo de situação, é preciso atentar para a minúcia insti-
tucional, ou seja, é preciso reconstruir o funcionamento das instituições em detalhes
com a finalidade de identificar sua maneira de reagir ou tentar ficar imune à influência
do debate público que expressa os conflitos presentes na sociedade. Esta forma de
análise institucional tem sido levada adiante, principalmente, por uma série de pesqui-
sadores e pesquisadoras em direito, como as citadas neste texto.
Realizar esta tarefa significa ir além do sentido literal do direito e buscar
compreender seu significado no contexto no qual ele está sendo evocado tendo em
vista os interesses, os efeitos e as ações dos diversos agentes sociais envolvidos nos
conflitos com a utilização de metodologias de pesquisa variadas.
Independentemente de sua filiação ou não ao campo da Teoria Crítica ou à
minha construção conceitual, todos os trabalhos mencionados aqui buscaram elucidar
a racionalidade de uma série de instituições que exercem poder no interior do estado

17 NEUMANN, 2013a, 69.

231
e fora dele ao comparar sua face mais visível, seus objetivos expressos na lei com a
sua prática efetiva, reconstruída a partir de fontes de pesquisa diferentes.
Por exemplo, o estudo sobre a CTNBio comparou os objetivos expressos na
lei a respeito da atuação desta instituição com a sua ação efetiva, reconstruída especi-
almente a partir de pareceres técnicos, com a finalidade de mostrar como a prática
deste organismo não realiza sua finalidade de debater racionalmente e com a partici-
pação da sociedade civil, autorizações de pesquisa sobre transgênicos.
No mesmos sentido, a pesquisa sobre sigilo fiscal mostra, de diversas manei-
ras diferentes, com a reconstituição de casos julgados e o exame de documentos pú-
blicos, como a justificação do sentido e limites do sigilo não pode ser reconstruída
racionalmente, é sempre feita ad hoc e sem argumentos explícitos, como não seria de
se esperar em um estado de direito.
Assim, como já dito, todas as análises expostas aqui oferecem bons exemplos
do que eu chamo de perversão do direito em suas duas figuras, espaço autárquico e falsa
legalidade e propõem uma reflexão crítica sobre os critérios de justificação das decisões
de organismos institucionais que evocam o estado de direito como critério de legiti-
mação.
Não se trata mais, fique claro, de determinar a racionalidade do direito, ou
melhor, nos meus termos, seu caráter democrático ou autárquico, com fundamento
em valores transcendentes, postos além do direito positivo, em um procedimento
típico do jusnaturalismo. Trata-se de comparar as promessas feitas pelo estado de
direito e suas instituições com a sua prática efetiva.
Em O Império do Direito, Franz Neumann distingue dois sentidos atribuídos
ao Direito, o sentido político do direito e o sentido racional do direito. Em sentido
político, constitucional, direito é tudo aquilo que emana da vontade de um poder so-
berano qualquer, ou seja, um poder capaz de impor suas regras mesmo diante da
vontade de cidadãos e cidadãs recalcitrantes. Já em sentido racional, constituinte, o
direito pode ser incompatível com certos comandos do soberano, pois o que está em
jogo aqui é seu caráter universal, ou seja, sua capacidade de responder aos interesses
de todos os grupos sociais em conflito.
É evidente que alcançar a exata correspondência entre o direito e os anseios
da sociedade é uma tarefa impossível e indesejável. Sempre haverá novos interesses
sociais surgindo na esfera pública, sempre haverá novos grupos sociais surgindo e se
organizando. Tentar fazer sociedade, estado e direito coincidirem, em um contexto
como este, significa recorrer a modelos autoritários de dominação. Além disso, nem
sempre será possível compatibilizar as diversas demandas por direitos tendo em vista
os limites orçamentários de cada Estado, os limites de influência da soberania estatal
e os choques necessários entre as demandas dos diversos agentes sociais.
Posto isso, o papel da democracia e do pesquisador crítico é contribuir para
diminuir a distância entre direito e sociedade ao identificar e dar voz aos interesses

232
sociais que não estejam sendo levados em conta pelas instituições formais, zelando
pela abertura e capacidade de resposta destas instituições.
Ademais, em um outro plano de análise, é papel da teoria crítica, a par dos
agentes sociais em conflito, refletir sobre possíveis alternativas institucionais capazes
de incluir, figurar e compatibilizar as diversas demandas sociais em conflito, tendo
bem claro que a tarefa de tentar compatibilizar demandas é uma prática social confli-
tiva que pode contar com a colaboração da teoria crítica, sem que esta pretenda, por
óbvio, ter a palavra final sobre o assunto, sob o risco de recair em uma metafísica.
Seja como for, parte essencial destas tarefas reside na pesquisa e na identifi-
cação das figuras da perversão do direito em suas diversas modalidades, nos casos
mencionados neste texto e em tantos outros que ainda podem vir a ser descobertos.

233
Capítulo 10 – Lava-jato (I): A Política Judicial

O direito está nas mãos dos partidos?

O senso comum das críticas à Operação lava-jato e diversos de seus analistas,


na maior parte das vezes, ligados às ciências sociais ou aos políticos investigados,
costumam reduzir a atuação de seus agentes, especialmente Juízes e Promotores, à
política partidária. O comportamento destes profissionais e suas decisões técnico-ju-
rídicas passam a ser lidas, deste ponto de vista, a partir do metro da política, da qual
se revelariam um mero instrumento subalterno. Esta seria, afinal, a política partidária,
sua verdadeira e oculta natureza.
Entre Promotores peessedebistas, Juízes peemedebistas e Policiais democra-
tas, estaríamos diante de uma verdadeira colonização e consequente programação po-
lítica da atividade jurídica com a formação de uma zona de autarquia na qual a política
partidária assumiria a aparência de direito. Nesse sentido, a racionalidade específica
do direito seria mera cortina de fumaça destinada a esconder a sua verdadeira “reali-
dade”; “realidade” esta, capaz, com efeito, de explicar o que estaria realmente acon-
tecendo.
Ao analista caberia então levantar o véu para flagrar a pessoa destes juristas,
serviçais do poder, de calcas curtas, ou melhor, vestindo a camiseta de seu partido por
debaixo da camisa do terno ou sob a blusa de botões oculta sob o tailleur. Por exem-
plo, é comum dizer que os Ministros do STF estariam à serviço deste ou daquele
partido, desta ou daquela liderança política e que tal ligação seria capaz de explicar,
completamente, a sua atuação jurídica. Decisões são tomadas, petições elaboradas e
interpretações defendidas apenas para salvar ou favorecer este ou aquele personagem
do mundo político.
É evidente que a performance pública de alguns destas pessoas, agentes pú-
blicos, especialmente Juízas e Promotoras, tem contribuído para alimentar este tipo
de interpretação. O limite entre a ocupação legítima dos canais de mídia pelas autori-
dades para informar e esclarecer a população e a mera promoção pessoal, a meu ver,
tem sido claramente ultrapassado em várias ocasiões. Digo “a meu ver”, pois, eviden-
temente, este não é um assunto fácil. Os contornos mais adequados para a conduta
pública destas pessoas não estão desenhados em regras claras e evidentes e, ao menos
neste momento, ao que tudo indica, as instituições judiciárias estão pouco se impor-

235
tando com este assunto. Na prática, têm ignorado este tipo de crítica e seguem per-
mitindo que vários de seus profissionais deem vazão à sua evidente “star quality” a
qual, me atrevo a dizer, talvez fosse mais útil socialmente se exercida em outro tipo
de atividade.
Mas, seja como for, é especialmente inquietante, ao menos para mim, ver
Juízes e Promotores comparecerem a eventos públicos e se deixarem fotografar, sor-
ridentes e felizes, na companhia de políticos investigados pela Polícia Federal, além
de réus em diversas ações judiciais. Ou dando palpites a torto e a direito na política
cotidiana, fazendo reuniões com lideranças partidárias, dando conselhos públicos so-
bre como o sistema político deve ser organizado e como devemos votar.
Espera-se destes profissionais, salvo melhor juízo, que se comportem de tal
forma a não comprometerem a percepção pública de sua neutralidade. Guardadas as
devidas proporções, nenhum torcedor de futebol gostaria de saber que o técnico ou
algum dos jogadores de seu time passou o dia anterior ao jogo confraternizando com
o técnico adversário. Menos ainda de saber que tais encontros foram acompanhados
por cartolas e patrocinadores do clube.
Por mais profissionais e corretas que estas pessoas sejam, seja lá o que ocor-
rer no jogo do dia seguinte, o conhecimento do convescote será fatalmente levado
em conta na interpretação de cada lance, ainda mais os lances duvidosos. Imagine-se
que, depois de uma reunião como essa, o cobrador oficial de um dos times perca um
pênalti nos últimos minutos do segundo tempo. Seria difícil evitar insinuações de ma-
nipulação do resultado e é provável que a hipótese da manipulação se tornasse a in-
terpretação oficial, maculando a reputação de todos os envolvidos, que ficariam com
a fama de traíra.
Cabe reconhecer que, ao menos em alguns casos, a política partidária pode
determinar o comportamento de agentes do mundo jurídico, o que é imoral e ilegal,
diga-se. Mas, além disso, podemos identificar situações em que agentes do mundo
político e agentes do mundo jurídico se alinham, mesmo sem uma aliança explícita,
negociada face a face, para perseguir agendas próprias, mas de interesse mútuo. Afi-
nal, determinadas ações realizadas no mundo jurídico favorecem a certos grupos e
não a outros e podem ter boa ou má repercussão na opinião pública e render votos
na próxima eleição.
Três exemplos: há muitas acusações entre os analistas do STF que um deter-
minado Ministro, cujo nome não vou declinar, pois ele costuma processar seus críti-
cos, inclusive simpáticas e inteligentes comediantes e atrizes de TV, decide a favor de
certos grupos políticos. Não existem provas cabais, é claro, há indícios de conversas
e reuniões no curso de processos importantes e antes de decisões cruciais, além de
possíveis trocas de favores entre estas lideranças e pessoas ligadas ao Ministro. Man-
tendo o respeito ao princípio da presunção de inocência, podemos dizer que estamos

236
diante de um Ministro do STF a respeito de quem se levantam suspeitas de ser mero
instrumento subalterno da política partidária.
Mas também há casos de alianças a partir de pautas comuns: recentemente o
Ministério Público federal tentou - até o momento, sem sucesso - propor um projeto
de lei de iniciativa popular com uma série de vinte medidas contra a corrupção que
ampliavam o poder desta corporação para investigar suspeitos da prática deste crime.
Além disso, uma série de decisões judiciais ou ações do MP tem sido ou aplaudidas
ou criticadas pelos agentes políticos, sem que tenham sido, digamos assim, encomen-
dadas por lideranças políticas. Moro se desculpou publicamente e ao STF pela divul-
gação dos áudios, afirmando que não tinha a intenção de criar um fato político parti-
dário, mas é claro que seu ato favoreceu as forças que defendiam o impedimento da
Presidente Dilma Rousseff. Nestes dois casos, os agentes jurídicos agem em seu âm-
bito de atuação, conforme uma lógica própria, contando com o apoio ou a crítica dos
agentes políticos, podendo haver um alinhamento de interesses que passam a atuar
no mesmo sentido.
Nesse sentido, é importante perceber, para voltar ao meu assunto central,
que a Operação Lava-jato não é mera filial ou mero apêndice da política partidária.
As ações dos agentes jurídicos possuem uma racionalidade própria e, se quisermos,
encenam uma maneira própria de fazer política, uma “política jurídica” que se expli-
cita, principalmente, na tomada de decisões que implicam, necessariamente, em ado-
tar uma certa interpretação das leis e dos casos já decididos.

Lutas pelo direito

Nesse sentido, do ponto de vista da política jurídica, a Lava-jato pode ser vista como
um dos episódios centrais de uma disputa, já relativamente antiga, sobre o que deve
ser o nosso Direito Penal e o nosso sistema penal. Tal disputa é protagonizada, de
um lado, por um grupo de juristas e advogados garantistas, antigamente hegemônico,
e, de outro, por assim dizer, um grupo de juristas de Estado, especialmente situados
em carreiras públicas, que pretende reformar o direito brasileiro à luz, principalmente,
de determinadas práticas internacionais, defendidas por uma rede global de institui-
ções de combate à corrupção, as quais se comunicam, debatem suas estratégias e as
transmitem para funcionários públicos ao redor do globo (SHAFFER, 2011). Simpli-
ficando muito, tais práticas apontam para um direito penal mais pragmático, com me-
nos garantias, mais voltado para resultados do que para o respeito a ritos e formalida-
des e dotado de uma visão menos restritiva do que deve significar o respeito aos
direitos fundamentais e a interpretação das leis.
Nessa disputa está em jogo muito mais do que mera questão de interesse
intelectual. Não se trata de uma divergência acadêmica sobre qual deve ser a melhor
forma de desenhar as instituições ou interpretar as leis postas. Está em jogo o poder

237
efetivo das instituições, especialmente MP e Judiciário e sua busca por mais recursos,
mais funcionários, mais influência e mais poder para determinar os rumos do país. E
também projetos diferentes de como deve ser a relação entre sociedade e Estado e
sobre a função específica do sistema penal.
É claro, diga-se, que membros de cada um dos lados desta disputa irá dizer
que, sem sombra de dúvida, no tom retórico comum à produção intelectual de grande
parte de nossos juristas, todas as dúvidas foram devidamente “espancadas” e os gran-
des doutrinadores, nacionais e estrangeiros, estão a seu lado, demonstrando que a
resposta defendida por este ou por aquele grupo é de uma clareza solar, esgotado o
assunto a ponto de ninguém mais ousar escrever uma linha sequer sobre ele.
Evidentemente, há elementos mais moderados, que tentam conciliar as duas
posições, mas seja como for, é importante perceber que embate também se desdobra
no campo da produção de Teses, Dissertações, Manuais e Comentários ao Código
Penal e ao Código de Processo Penal, procurando, muitas vezes, naturalizar determi-
nadas categorias jurídicas, atribuindo a elas uma suposta verdade inquestionável, com
a finalidade de ganhar o debate de uma vez por todas (RODRIGUEZ, 2013a). Essa
disputa também se desdobra nos concursos e seleções de professores para as Univer-
sidades públicas e privadas brasileiras, também na fundação de institutos de pesquisa
independentes, como o IBCCRIM de São Paulo, uma das principais sedes dos garan-
tistas.
Basta entrar no site de uma livraria jurídica para encontrar os livros de vários
participantes destacados da Lava-jato e muitos de seus críticos (por exemplo, DAL-
LAGNOL, 2015; CALABRICH et. al., 2017), basta consultar os nomes das pessoas
que ensinam direito penal nas principais universidades brasileiras, informar-se qual é
a sua profissão, Advogado, Juiz ou Promotor e verificar a sua posição neste debate.
A batalha pelo estabelecimento de um paradigma científico, seguindo a análise de
Thomas Kuhn (2011), também passa pela criação e pela ocupação de lugares de poder
acadêmico. Não basta pesquisar e propor boas soluções para os problemas enfrenta-
dos por nosso ordenamento jurídico, é preciso ocupar lugares de fala dotados da au-
toridade para falar em nome da ciência.
Ainda que de forma muito breve, para o uso dos não especialistas, vou es-
boçar a seguir as ideias mais gerais de cada posição, evitando o jargão técnico, com o
perdão dos especialistas pelas imprecisões que irei cometer. Assim, de um lado, temos
o garantismo, que procura controlar fortemente o poder de punir do Estado ao criar
diversos obstáculos para a prisão das pessoas. Toda a lógica de interpretação das leis
e de todo o funcionamento do sistema penal é, neste caso, a de conter o poder estatal
de investigar e eventualmente prender a pessoa de seus cidadãos.
A condenação à pena de prisão deve se dar apenas em último caso, apenas
como resposta a crimes muitos específicos e depois de uma investigação e de um

238
processo cercado de garantias e prazos muitos estritos, com ampla proteção da pri-
vacidade, direito de defesa e sempre partindo do pressuposto que o acusado é ino-
cente. Para os garantistas prender é sempre indesejável, pois a pena de prisão deve
consistir em uma punição excepcional, a “ultima ratio”, como se diz no jargão deste
grupo, nunca a regra geral.
Na opinião dos antagonistas desse modo de pensar, e alguns deles se auto-
denominam “garantistas integrais” (CALABRICH et. al., 2017) para disputar o termo
“garantismo”, esta é uma visão do direito que dificulta muito a punição de certos tipos
de crime, especialmente os crimes de colarinho branco, por valorizar demais a prote-
ção do indivíduo em detrimento do poder estatal de investigar e punir. Especialmente
no caso dos crimes relacionados à corrupção, que são cometidos com dissimulação,
por meio de ações secretas e mediadas pelos chamados “laranjas”: para os garantistas
integrais, se o garantismo fosse efetivamente adotado, seria quase impossível punir os
acusados de corrupção.
Afinal, a pessoa corrupta raramente é pega, por assim dizer, como a boca na
botija, por exemplo, com a mão suja de pólvora, oriunda da arma que atirou em al-
guém. As condenações por este tipo de crime, quando ocorrem, costumam se basear
no cruzamento de uma série de informações e documentos, os quais permitam con-
cluir afinal, por exemplo, que a pessoa acusada se encontra em uma situação patrimo-
nial incompatível com a sua renda, ou que ela não consegue explicar com clareza a
origem dos bens dos quais usufrui.
Ora, é por isso mesmo, argumentam os garantistas que, para começar, a pena
de prisão não deveria ser utilizada para lidar com este tipo de ato socialmente repro-
vável. Afinal, como ficou claro apenas pelo que já foi dito até aqui, o poder dos agen-
tes públicos, de fato, é ampliado, do ponto de vista garantista, a ponto de se tornar
incontrolável. As condenações passam a depender de avaliações altamente subjetivas
que não se colocam acima de qualquer dúvida e extrapolam a tarefa jurídica por ex-
celência de encaixar os fatos nas normas jurídicas.
Para o garantismo, no âmbito do Direito Penal, mais do que qualquer outro
ramo direito, o Judiciário deveria se limitar a verificar se determinados fatos corres-
pondem a crimes descritos com a máxima clareza e precisão pelo texto das leis, as
quais não deveriam deixar nenhum espaço para interpretação por parte dos agentes
públicos. Também o legislador deveria se abster de criar crimes a respeito de assuntos
como esse, além de procurar definir, com o máximo de clareza possível, as ações que
ele pretende incriminar, as quais devem se referir apenas a alguns bens de alto valor
social, como a vida e a propriedade.

A política jurídica da Lava-Jato

239
Como é possível perceber, eu me recuso enfaticamente a discutir esta disputa
nos termos propostos por algumas análises recentes, que afirmam estarmos diante de
uma necessária “modernização” de nosso direito do embate entre uma “dogmática”,
supostamente atrasada, digna do século XIX, e uma visão “moderna”, arrojada, levada
adiante por jovens juristas, antenados com o que se passa nos grandes centros do
pensamento jurídico norte-americano (FARIA, 2018). Considero que apresentar a
questão desta forma prejudica a análise do problema e parece implicar uma clara to-
mada de posição, afinal, ninguém irá se propor a defender o “arcaico”, o “velho”, o
“ultrapassado” para impedir que o “moderno”, o “jovem”, o “contemporâneo”, ine-
vitavelmente, prevaleça, não é mesmo? Afinal, “o direito corre atrás dos fatos”, como
afirma um jargão repetido, quase sem pensar, por praticamente dez entre dez juristas
brasileiros.
A meu ver, a eventual “modernização” do direito - e do que quer que seja -
não pode ser vista como um processo inexorável, cujo final já é conhecido de ante-
mão. Expor nossas ideias desta forma significa ocultar, sem intenção ou deliberada-
mente, os embates, muitas vezes violentos, entre os diversos agentes sociais interes-
sados neste ou naquele desfecho do processo. Pensar e falar assim, em suma, significa
ocultar as ações dos protagonistas dos embates que constituem o que estou chamando
de política jurídica e são responsáveis por construir e destruir, afinal, as instituições
de nossa sociedade.
Parece ser muito mais preciso apresentar qualquer setor da vida social como
um conjunto de embates e disputas que revelam determinadas tendências, ou seja,
como um processo de conflitos alimentado por uma série de divergências sobre o que
a vida social deve ser, sujeito a avanços e recuos, mudanças de rumo e estagnações;
sempre mantendo a análise rente às ações e justificações dos agentes sociais em con-
flito. Menos ciência política quantitativa, menos tabelas e gráficos pizza, e mais antro-
pologia, mais escuta e análise qualitativa da vida social, poder-se-ia dizer.
As ciências sociais e o Direito deveriam ter aprendido alguma coisa com o
fracasso da teoria de secularização que, em determinado momento, apresentou a evo-
lução histórica como um processo de avanço inexorável da razão em detrimento da
religião, hipótese que tem sido desmentida por todas a microfibras de nosso tecido
social, como nos tem mostrado Peter Berger (2017) desde a década de 70 e como os
fatos do noticiário cotidiano não cansam de reiterar. Em uma análise mais fina, Deus
está em todas as partes, a fé em deus sempre esteve longe de desaparecer, talvez tenha
apenas mudado sua forma de expressão.
O Direito, como qualquer as demais ciências sociais, é composto de uma
série de debates e é palco de conflitos dogmáticos (RODRIGUEZ, 2012) no âmbito
do funcionamento de suas instituições, por exemplo, quanto às decisões judiciais. Em
determinado momento histórico - para ser mais preciso, durante o século XIX - a
ciência do direito imaginou, utopicamente, ser capaz de controlar tanto o legislador

240
quanto o juiz, ao construir categorias de análise válidas em todos os lugares e para
toda e qualquer situação.
A dogmática jurídica, neste registro, era vista como a investigação e desco-
berta de categorias de valor jusnaturalista que quase que se confundiam com as formas
ideais de Platão, como mostra o engraçadíssimo diálogo entre Deus e um jurista deste
jaez, que tudo indica ser Savigny em um texto satírico escrito por Jhering (1974). Um
século antes, por exemplo, durante a Revolução Francesa, a utopia era de que as leis
seriam tão claras e tão precisas que seria possível eliminar as faculdades de direito e
os juízes profissionais: qualquer cidadão seria capaz de resolver qualquer conflito com
a mera leitura da legislação e o exame dos fatos (BOBBIO, 1995). O século XX e,
ainda que de outra maneira, o século XXI, são os séculos do poder dos juízes e do
estudo da hermenêutica da decisão judicial. Fica claro que os juízes não podem ser
completamente controlados nem pela lei nem pela ciência do direito, como Hans
Kelsen nos mostra no genial e ainda pouco compreendido capítulo final de sua Teoria
Pura do Direito (KELSEN, 2009).
A solução no campo da teoria passa a ser tentar criar padrões de raciocínio
com fundamento, principalmente, em reflexões de influência aristotélica e kantiana,
para submeter a pessoa dos juízes e o raciocínio jurídico em geral a limites estabeleci-
dos em nome da necessária justificação democrática das decisões jurisdicionais (RO-
DRIGUEZ, 2013a).
No campo do desenho das instituições, a solução, antecipada por Franz Neu-
mann (2013) a partir das reflexões de Weber e Kelsen, passa a ser desenhar procedi-
mentos capazes de controlar a decisão dos casos judiciais, como propôs Kelsen ao
desenhar para a Áustria a primeira Corte Constitucional no espírito das cortes atuais
(KELSEN, 2013). Não é por outra razão, aliás, que a política jurídica ganha cada vez
mais espaço e relevância para se compreender o funcionamento das sociedades e do
Direito: o debate entre garantistas e garantistas integrais dificilmente irá se resolver
por um golpe de teoria: não será um grande livro ou uma pesquisa definitiva que irá
dirimir, de uma vez só, todas as divergências entre estes campos.
É claro que a pesquisa exerce um papel central nesse processo ao produzir
conhecimentos que irão permanecer relativamente incontroversos, ao menos por al-
gum tempo, conhecimentos esses que podem servir como ponto de partida para o
debate, por exemplo, as pesquisas em criminologia e o trabalho dos chamados dou-
trinadores do Direito. Certos fatos sobre o efeito do encarceramento sobre a crimi-
nalidade ou sobre as características do direito brasileiro, muitas vezes, se tornam re-
lativamente consensuais até que as leis ou a jurisprudência se transformem ou que
novas pesquisas empíricas revelem informações inéditas que nos obriguem a mudar
nosso modo de pensar.
Mas é preciso lembrar que as duas visões que apresentamos sobre o Direito
Penal e sobre nosso sistema de justiça têm implicações diretas sobre a extensão do

241
poder de Juízes e Promotores, sobre a quantidade de recursos que eles poderão soli-
citar para o Congresso nacional com a finalidade de contratar mais funcionários e
melhorar sua infraestrutura. Tal circunstância pode motivar determinados agentes pú-
blicos, inclusive, a defender posições contrárias ao que possa haver de evidencias ci-
entíficas mais ou menos consensuais (RODRIGUEZ, 2010a), com as que indicam,
por exemplo, que o aumento do encarceramento não tem efeito algum sobre a queda
da taxa de crimes em uma sociedade, fato incontroverso no campo da criminologia.
É justamente por esta razão que a inexistência ou irrelevância numérica de
um corpo significativo de professores e pesquisadores em tempo integral, cuja con-
sagração e, principalmente, cuja renda, dependa exclusivamente da produção de estu-
dos científicos, pode comprometer gravemente a racionalidade do debate jurídico,
transformando a política jurídica numa espécie de guerra de todos contra todos, mo-
vida por interesses corporativos e burocráticos. O domínio de Juízes, Advogados e
membros do Ministério Público sobre o ensino e a pesquisa em Direito tende a nos
privar de uma base mínima de conhecimento capaz de mediar e referenciar as dispu-
tas, fato que enfraquece nossa democracia.

Os ventos da mudança

Considero que a Lava-jato seja um momento chave em que a balança de


poder no âmbito da política jurídica se modificou radicalmente. Durante muitos anos,
ao menos no campo da ciência do direito, assistimos a uma clara hegemonia das ideias
garantistas, ainda que não se possa dizer o mesmo, com segurança, a respeito do Po-
der Judiciário e do Ministério Público sem realizar pesquisas empíricas mais detalha-
das. No entanto, parece legítimo levantar esta hipótese com base em minha percepção
pessoal e na percepção de um dos protagonistas da operação Lava-Jato que conversou
comigo em uma entrevista exploratória para um projeto de pesquisa ainda em fase de
gestação.
No que se refere ao Ministério público, já é fato conhecido que um grupo de
Procuradores e Procuradoras ligado a Rodrigo Janot, antes do início da Operação
Lava-Jato, já havia conquistado a liderança da instituição e estava realizando um tra-
balho de renovação de suas práticas, que passou pela reforma do currículo da Escola
Superior do Ministério público e mudanças nas câmaras recursais, responsáveis por
reexaminar pedidos de arquivamentos realizados pelos Procuradores e Procuradoras
Federais. É cedo para dizer se esta mudança se consolidou, é preciso mais dados para
saber se ela está, de fato, disseminada entre a maior parte dos membros do MP Federal
e dos demais ramos do MP. Mas seja como for, para ser incontroverso que este grupo,
em determinado momento, passou a liderar o MP Federal e buscou renovar seu modo
de atua.

242
A ideia do grupo era fazer com que a instituição trabalhasse de forma coor-
denada, abandonando uma forma de atuar individualizada em que cada pessoa, mem-
bro do Ministério Público, tomava suas decisões de forma isolada. Em Curitiba, teatro
de uma série de operações frustradas de combate à corrupção, como a operação Sati-
agraha, de São Paulo anulada em razão de irregularidades formais, havia um conheci-
mento acumulado sobre a atuação do Poder Judiciário e sobre a forma de operar da
corrupção no Brasil.
Quando a Operação Lava-Jato começou, digamos assim, estes dois fatores
entraram em regime de colaboração, formaram um círculo virtuoso, que produziu os
resultados que conhecemos. O grupo que então liderava o Ministério Público teve a
oportunidade de, finalmente, levar adiante com sucesso uma grande operação de
combate a corrupção, contando para isso com um grupo de Procuradores e um Juiz,
Sergio Moro, experimentado nestes assuntos. E tiveram a oportunidade de fazer isso
falando diretamente com a esfera pública, dirigindo-se diretamente ao público em
geral, sem a mediação da imprensa ou dos políticos. Mesmo determinados fatos con-
troversos da operação, por exemplo a ilegal divulgação dos áudios de Lula e Dilma,
podem ser vistos como uma ação agressiva para garantir o controle da opinião pública
pelo sistema de justiça e não como uma ação político partidária em sentido estrito.
Trata-se de atos realizados em nome dos embates e dos interesses presentes na polí-
tica jurídica, com efeitos sobre e com apoio eventual dos agentes da política partidária.
Em Curitiba e em Brasília os agentes do MP passaram a atuar em forma de
força-tarefa e a dialogar muito entre si e trocar informações e experiências. No âmbito
do Poder Judiciário, aos olhos de meu entrevistado, uma mudança semelhante ocor-
reu: um grupo de juízes e juízas, menos identificada com o garantismo e interessado
em atuar de forma mais ativa e incisiva, passou a examinar as decisões de Moro em
segunda instância e manter seus posicionamentos de forma sistemática. Cabe dizer
também que são precisos mais dados para saber se tal mudança é uma tendência ou
se estamos diante de um mero acaso.
Mas de qualquer forma, é razoável afirmar que tenha havido um verdadeiro
aprendizado institucional e uma renovação no modo de pensar o direito nestas duas
instituições, ao menos por parte de determinados grupos, que se tornaram protago-
nistas da operação, processo alimentado também por uma Polícia Federal muito ativa
e estimulada a agir desta forma, paradoxalmente, pelos governos que abrigaram uma
boa parte dos investigados e condenados da em razão da operação, os Governos Lula
e Dilma.
Mas toda esta história ainda está por ser contada com maior grau de detalhe:
no espaço deste texto, posso apenas levantar algumas hipóteses de pesquisa. O que
eu gostaria de ressaltar neste momento, no espaço deste ensaio, é que nada disso teria
acontecido, a meu ver, sem as rebeliões de Junho de 2013, que desestabilizaram o
sistema político em suas bases (NOBRE, 2013), contribuíram para a organização da

243
sociedade civil, à direita principalmente, deflagrando uma onda social anticorrupção
que teve como protagonistas uma série de grupos organizados, como o Vem Pra Rua
e o MBL, mas que se instalou para muito além deles.
O apoio genérico à Operação Lava-Jato sempre foi maciço desde o seu iní-
cio, a despeito das evidentes resistências do mundo político, inclusive por parte dos
meios de comunicação de massa, na esteira do movimento anticorrupção deflagrado
por Junho. Apenas esse apoio e o enfraquecimento do poder do sistema político, ao
que me parece, combinado com as transformações internas ocorridas em cada insti-
tuição, é que permitiu que a Operação alcançasse os resultados que alcançou até agora.
As instituições do sistema de Justiça, especialmente o Ministério Público, es-
tão desenvolvendo uma relação própria com a esfera pública, uma relação que não
passa pelo processo eleitoral e, aqui um há um risco para a democracia, não está sujeita
a procedimentos transparentes, que os coloca na posição de representantes dos inte-
resses da sociedade, mas uma representação que tem pouco a ver com a tradicional
representação política.

“Vontade do Povo” em zonas de autarquia

Este parece ser um problema inédito, ao menos se colocado desta maneira:


o Ministério Público e o Poder Judiciário passaram a falar diretamente com a socie-
dade, no caso do Judiciário, em especial, o STF, por meio de instituições específicas,
por exemplo, as audiências públicas e os amicus curiae e, no caso de alguns Ministros,
eventos de formação em seus gabinetes, nos quais recebem juristas e experts, como é
o caso do Ministro Luiz Edson Fachin. Há notícias de que as Defensorias Públicas e
o Ministério Público também realizam audiências públicas com uma certa frequência.
No entanto, todas essas inciativas parecem ainda estar situadas em um nível muito
baixo de institucionalização.
Ao contrário das eleições, que ocorrem periodicamente, são amplamente di-
vulgadas, possuem um procedimento muito claro e abrem espaço para a alternância
entre situação e oposição, estas formas de ouvir e de construir a vontade do povo
ainda estão entregues à inteligência ou à mera boa vontade dos agentes públicos, que
se utilizam de tais mecanismos apenas quando entendem ser necessário. E isso me
parece preocupante.
Em um contexto de política jurídica em que há uma disputa constante sobre
a interpretação das leis e dos casos, em que há interesses corporativos e sociais em
jogo, utilizar a moeda da “vontade popular”, jogar com a ideia de que determinado
curso de ação é desejado pela ampla maioria da população, pode ter um papel im-
portante no fiel da balança da formação da hegemonia sobre as ideias jurídicas, tantos
nos debates internos ao campo jurídico, quanto ao que se refere ao campo da política,
espaço no qual a principal moeda de troca é a quantidade de votos.

244
O problema é que a “vontade do povo” será exatamente aquilo que os ins-
trumentos destinados a captar a sua voz disserem que ela é. Em uma eleição majori-
tária, a “vontade do povo” é a maioria dos votos que aprovam um determinado pro-
grama partidário; em uma audiência pública, a vontade do povo se configura em uma
série de recomendações aos órgãos públicos, como no caso da extensa e complexa
audiência sobre temas de saúde, realizada no STF.
Ou seja, a “vontade do povo” pode ser desenhada de diversas maneiras, au-
ferida por meio de surveys, audiências públicas, votação por maioria, votação por acla-
mação ou por uma reunião fechada que defina suas estratégias e a partir da mera
percepção subjetiva dos agentes públicos e da consulta à mídia de massa e pesquisas
sobre a popularidade destas ou daquelas ideias. Como diz Pierre Bourdieu (1973) em
texto sobre o assunto, a opinião pública, ao menos no sentido implicitamente admi-
tido pelos que fazem pesquisas de opinião, não existe. Há diversas maneiras, como
mostra o autor, de produzir efeitos de consenso e de fazer as pessoas responderem a
perguntas as quais elas nunca se colocaram, criando situações artificiais que terminam
por medir mal a maneira pela qual as opiniões são expressas e se desenvolvem no
ambiente social, sempre de relacional, encarnadas em determinadas pessoas e grupos.
Eu insisto neste ponto, que me parece central: o Parlamento e o Executivo
são obrigados a escutar a voz do povo periodicamente e de forma altamente regulada,
por meio de procedimentos públicos e controláveis judicialmente. Já os órgãos do
sistema de justiça, atualmente, parecem estar livres para dizer que falam “em nome
do povo’ sob qualquer fundamento, sem regras claras, sem procedimentos detalhados
e controláveis judicialmente.
Apenas uma situação como essa pode explicar uma declaração recente de um
outro Ministro do STF que afirma ser seu papel atuar como “vanguarda moral da
nação”, uma frase, para dizer o mínimo, vaga e pretenciosa, mas, pior do que tudo,
com altíssimo potencial autoritário. Afinal, o Ministro atribui a “vontade do povo” à
sua exclusiva e, certamente, privilegiada, não tenho dúvidas, percepção pessoal, digna
de um gênio brasileiro. Há uma linha bastante tênue a separar um legítimo debate
entre posições dogmáticas, entre visões diferentes das leis e das instituições, e uma
usurpação de sabor aristocrático e mais ou menos arbitrário da “vontade do povo”
pelas carreiras de Estado.
A princípio, não há entraves nem legais nem éticos para a expansão dos ca-
nais de escuta da população também pelos organismos de Justiça. Não está escrito
nas tábuas da lei que a separação de poderes deva funcionar conforme um suposto
“modelo clássico” de três poderes, dotados de freios e contrapesos estandardizados.
A característica essencial da separação de poderes, como nos ensina Franz Neumann
(1964) é, apenas, que nenhuma decisão do poder reste sem controle por um outro
poder. No entanto, isso não pode significar que a “vontade do povo” seja construída
por dispositivos de escuta variados, estabelecidos ao bel prazer do poder público e

245
utilizados de forma meramente arbitrária para justificar uma certa visão do direito e
toda uma estratégia de ação que irá resultar, afinal, em gasto de dinheiro público para
investigar e punir determinadas pessoas e não outras.
É necessário pensar institucionalmente estes canais de escuta popular pelo
sistema de justiça e criar procedimentos claros para informar democraticamente a
formação dos juízos da burocracia judicial sobre a vontade popular, tema que hoje
parece estar fora da agenda da política partidária e dos debates da política judiciária.
Tenho utilizado o conceito de “zona de autarquia” para identificar fenômenos de
perversão do Direito que consistem na formação de espaços decisórios arbitrários no
interior de um determinado órgão ou a criação de todo um regime jurídico autônomo,
que toma decisões de forma estritamente unilateral (RODRIGUEZ, 2016a, 2016b;
SILVA, 2018; BARCELLOS, 2016; ZUGMANN, 2014).
Eu diria que, hoje, no que diz respeito à utilização da “vontade do povo”
para tomar decisões, o sistema de justiça, regra geral, salvo casos muito bem-sucedi-
dos de audiências públicas no STF e em outros órgãos, decide mergulhado em uma
“zona de autarquia”. Tenho sido a infeliz testemunha ocular de manifestações públi-
cas e palestras realizadas em Universidades, por exemplo, pelos membros da Opera-
ção Lava-Jato, profissionais que declaram ser necessário “fazer uma limpeza no país”
porque “é isso que a população deseja” com fundamento em sua percepção mera-
mente subjetiva e, muitas vezes, com base em um constrangedor festival de lugares
comuns sobre um suposto “jeitinho brasileiro”, ideia que já foi relegada ao esqueci-
mento pela mais recente pesquisa a respeito da corrupção e pela teoria social contem-
porânea (RODRIGUEZ, 2016c).
Fazer a limpeza do que, de quem, em que ordem, em que que prazo e com a
utilização de quais recursos? É claro que boa parte das decisões do MP por exemplo
não poderiam ser participativas e tornadas públicas no calor da hora para evitar que
os acusados ocultassem provas e frustrassem as investigações. No entanto eu acredito
ter direito de saber, como cidadão brasileiro, porque o MP de todos os níveis, Esta-
dual e Federal, decide levar adiante certas investigações e não outras, porque ele con-
centra forças em certos fatos e não em outros. Tal coisa poderia ser feita, sem grande
dificuldade, por exemplo, por meio de um relatório produzido a posteriori que per-
mitisse debater os critérios de decisão utilizados e, eventualmente, punir atos repro-
váveis e destituir chefias que atuem de forma inadequada. O mesmo pode ser dito
sobre determinadas escolhas estratégicas do Judiciário, das Defensorias e de outros
organismos do sistema de justiça.
A boca que escarra é a mesma que beija: é preciso tomar cuidado para que
uma Operação que fez e ainda fará tanto bem às nossas instituições por expor os
mecanismos mais vis de formação das maiorias políticas no Brasil, um processo sis-
têmico e generalizado que remonta à redemocratização brasileira, não termine por
corroer por dentro nossa democracia ao permitir que se formem zonas de autarquia

246
no interior das instituições de nosso sistema de Justiça para fornecer para uma série
de pessoas, Membros do MP, verdadeiras licenças para matar, como o agente 007. É
preciso evitar que o combate à corrupção transforme nosso Estado, no limite, em um
dispositivo autoritário, infestado de zonas de autarquia, ainda que mantendo a apa-
rência de legalidade.

247
Capítulo 11 – Lava-jato (II): Corrupção e Jeitinho Brasileiro

Muitas certezas e poucas dúvidas

A situação de nosso debate público parece marcada por um excesso de certezas


e muito poucas dúvidas sobre a corrupção, exatamente o oposto da situação impe-
rante no campo dos estudos acadêmicos sobre o tema. Dizem especialistas no tema
(AVRITZER, 2012; HOUGH, 2014; JOHNSTON, 2014; HOLMES, 2015) que a
pesquisa sobre corrupção é muito recente e ainda não produziu resultados conclusi-
vos. Não há receitas prontas para combater a corrupção nos diversos países, tam-
pouco há uma definição clara sobre que tipo de ação devemos considerar como cor-
rupção (HOUGH, 2013; JOHNSTON, 2014).
Para ficar apenas em um exemplo, o conceito de corrupção como abuso da
função pública para obter fins privados (ROSE-ACKERMANN, 1999) tem sido
questionado para que o termo “corrupção” passa a incluir práticas que não se referem
ao estado e não envolvem funcionários públicos, por exemplo, práticas consideradas
lícitas que buscam influenciar o mercado, como o lobby e o financiamento de cam-
panha.
Alguns autores questionam (JOHSNTON, 2014) se a legalização destas prá-
ticas não produziu uma situação na qual interesses econômicos terminam simples-
mente reconhecidos pelas leis, em numa verdadeira legalização de práticas antes con-
sideradas corruptas por permitirem a influência privada sobre os agentes públicos.
Além disso, o suposto sucesso de receitas de boa governança contra a cor-
rupção hoje indicadas por organizações internacionais como o Banco Mundial, têm
sido relativizadas por análises qualitativas que apontam para a necessidade de conhe-
cer cada contexto social antes de pensar nas medidas anticorrupção e estratégias des-
tinadas a implementá-las (ROUGH, 2013; JOHNSTON, 2014)
A primeira agenda de pesquisa sobre o tema, que se desenvolveu a partir da
década de 90 depois da queda do muro de Berlim, estava ligada à teoria da moderni-
zação e considerava o problema da corrupção como característico de países que pas-
sam por intensas transformações sociais. Países em que o peso das tradições se revela
nos processos de mudança na direção de um modelo institucional semelhante àquele
presente nos países ocidentais. Tais mudanças provocariam um mau funcionamento
das instituições, marcadas pela herança de um desenvolvimento atrasado que inclui

249
oportunidades para que as autoridades desviassem das normas e servissem a interesses
particulares, uma situação típica de países subdesenvolvidos (FILGUEIRAS, 2012).
Esta agenda de pesquisa também discutia como as diferenças culturais seriam
centrais para explicar a corrupção. Por exemplo, imaginava-se que países protestantes
tenderiam a ser menos corruptos do que países de tradição católica (FILGUEIRAS,
2012).
O debate atual põe outras questões. Para começar, as discussões atuais pro-
curam tematizar as diversas maneiras de conceber e experimentar a corrupção nos
vários países do mundo (JOHNSTON, 2014), situação que torna difícil identificar o
fenômeno com precisão e tentar mensurá-lo (AVRITZER, 2012). Além disso, o de-
bate sobre eventuais fatores culturais cedeu lugar para uma investigação entre a rela-
ção entre as características das instituições e os incentivos que elas oferecem aos agen-
tes sociais (FILGUEIRAS, 2012).
Por exemplo, a existência ou não de grandes concentrações de poder sem
controle nas mãos de algumas poucas pessoas e a presença de mecanismos de com-
bate à corrupção são fatores que influenciam o comportamento dos agentes públicos
e privados na tentativa de obter vantagens individuais em detrimento do interesse
público.
Ora, como argumenta Avritzer (2011), não seria possível explicar todo o es-
forço de aprimoramento institucional realizado pelo Brasil já nos anos 90, com a cri-
ação da lei orgânica dos Tribunais de Conta, a criação de Controladoria Geral da
União, entre outras mudanças, senão afirmando que nossa cultura está em disputa e,
portanto, não é completamente tolerante com a corrupção. Não é marcada, de forma
indelével, por uma espécie de “tara” que nos condenaria a ter que conviver com a
corrupção.
É evidente que pode haver tolerância à corrupção entre certos grupos de
brasileiros e brasileiras, mas também há pessoas e instituições que tem se esforçado
para combatê-la, como estamos testemunhando neste exato momento de nossa his-
tória. Por isso mesmo, encarar a corrupção no Brasil como um destino inevitável
torna inexplicável grande parte de nossa história recente, marcada pelo aprofunda-
mento da democracia e, com ela, dos mecanismos de controle da sociedade sobre os
organismos de poder do Estado.
Nesse sentido, a utilização de atalhos epistemológicos como o “jeitinho bra-
sileiro” ou a “cordialidade” que costumam ser tomados como explicações definitivas
para todos os nossos problemas, soam cada vez menos plausível. A utilização deste
tipo de argumento tem sido feita sem grande rigor com a finalidade de explicar os
mais variados fenômenos, sempre em função dos interesses ocasionais do autor deste
ou daquele texto (LAVALLE, 2004).1

1LAVALLE, 2004 faz uma crítica sistemática e organizada ao uso indiscriminado destas categorias,
que parecem isentar quem as utiliza do dever de prova. Em RODRIGUEZ, 2013b apresento uma crítica

250
Por exemplo, o livro A Cabeça do Brasileiro de Alberto Carlos de Almeida (AL-
MEIDA, 2007) argumenta que a tolerância à corrupção é maior entre os mais pobres
e aos menos escolarizados. Este argumento foi criticado, por exemplo, pela resenha
de FIALHO, 2008 que aponta para a temeridade do salto interpretativo realizado por
ALMEIDA que parte de apenas uma pergunta feita em um survey e segue na direção
de uma conclusão de ampla magnitude, sem sequer passar pela literatura acadêmica
pertinente ao tema.

Não, se atenta, por exemplo, para a discussão de Reis e Castro (2001): indivíduos
mais escolarizados, que tendem a ser os mais sofisticados, são aqueles que mais
lançam mão das "regras do jogo" a seu favor. Assim, quando se deparam com
determinada situação, mobilizam o "jeitinho" como recurso disponível (e legiti-
mado pelos costumes e hábitos brasileiros em determinadas circunstâncias) para
a viabilização de uma ação, e conseguem justificar o porquê da utilização deste
recurso. Porém, são também os mais propensos a vocalizar opinião contrária à
utilização do "jeitinho" em uma entrevista - que é, ela mesma, uma interação
social - e, dessa forma, a expressar adesão a valores socialmente desejáveis.

Segue o argumento:

Ou, ainda, poder-se-ia atentar para o debate sobre falsificação de preferências


(cf. Kuran, 1998), segundo o qual, diante de certos constrangimentos externos
(como a presença de um entrevistador, por exemplo), certas pessoas podem não
vocalizar suas reais preferências (por serem socialmente indesejáveis ou malquis-
tas) mas, sim, expressar aquelas socialmente bem-vistas. Considerando-se de tal
possibilidade, seria possível conjeturar se, no Brasil, indivíduos mais escolariza-
dos e/ou sofisticados seriam mais hábeis em identificar situações nas quais tal
falsificação pode ser uma opção de ação adequada à situação e assim agir. São
os mais escolarizados aqueles que defendem valores considerados mais "moder-
nos" pelo autor (condenando a prática do "jeitinho"); mas os comportamentos
que declaram contradizem tais valores. A interpretação de Almeida a partir de
sua análise, de que o aumento da escolaridade, sobretudo a formação superior,
conferiria ao Brasil padrões comportamentais e atitudinais mais "modernos",
sustentar-se-ia mesmo diante de tais proposições de Reis e Castro e de Kuran?
Não sabemos, uma vez que o autor não arrisca qualquer interpretação nesta di-
reção (FIALHO, 2008: 198).

Por todas estas razões, depois de uma rápida visita à literatura sobre corrup-
ção, fica claro que a maior parte dos discursos enfáticos sobre as causas e o combate
à corrupção atualmente presentes na esfera pública brasileira parecem ser mais a ex-
pressão de posições político-ideológicas deste ou daquele indivíduo, grupo ou insti-
tuição do que afirmações com algum fundamento científico.

semelhante.

251
Partidários desta ou daquela força política defendem a punição exemplar dos
culpados, por coincidência, seus adversários políticos, e fazem afirmações enfáticas
sobre as dimensões e as medidas supostamente imprescindíveis para combater a cor-
rupção. Representantes deste ou daquele órgão do Estado são enfáticos na necessi-
dade de combater com dureza a corrupção, também com a finalidade de conseguir
mais competência, liberdade de ação e recursos públicos.
Ainda, indivíduos e grupos de convicções liberais tendem a defender com
toda a ênfase medidas de compliance que atribuem ao mercado o dever de prevenir e
combater a corrupção, posição que se confunde com a sua visão normativa sobre o
papel que o Estado deve ter. De sua parte, indivíduos e grupos de inspiração socialista
e socialdemocrata apostam em aumentar o poder de fiscalização dos estados das mais
diversas maneiras, ampliando os mecanismos, os organismos e os recursos destinados
a prevenir e combater o problema (GUIMARÃES, 2011).
Todas estas supostas certezas, que se confundem com a posição política,
profissional ou social de seus defensores, podem ser explicadas pela situação em que
o Brasil está imerso neste momento. Uma situação de indignação e acirramento polí-
tico em que investigações como a Lava-Jato, levada adiante pelo Ministério Público
Federal, tem implicado em atos de corrupção diversas figuras políticas importantes e
grandes empresas brasileiras.
Uma situação como a que estamos vivendo, em que a palavra “corrupção”
parece designar todas as mazelas do pais e não um problema específico entre tantos
outros2, faz com que a esfera pública exija respostas rápidas e eficazes para seu com-
bate, o que favorece julgamentos apressados, propostas temerárias e uso retórico e
isolado deste ou daquele pedaço de informação. Um ambiente como este abre espaço
para que sejam oferecidas receitas mágicas para uma questão altamente complexa que
não se presta a este tipo de abordagem. Ao menos no que diz respeito ao campo da
reflexão acadêmica.
Um bom exemplo disso é a campanha “10 medidas de combate à corrupção”
levada adiante pelo Ministério Público Federal (MPF), que atualmente colhe assina-
turas para apoiar uma série de projetos de lei defendidos por esta instituição. A maior
parte das medidas implica no endurecimento da legislação penal e nenhuma delas foi
debatida com a sociedade brasileira ou,, talvez propositadamente, mereceu qualquer
análise sobre sua possível eficácia nos documentos relativos à campanha presentes no
site desta instituição.3 O MPF simplesmente parte do pressuposto de que estas seriam

2 "Corrupção adquiriu esses múltiplos sentidos. É como se resumisse as mazelas do país: vira um re-
sumo para um sistema que se fecha, para essa sensação de exclusão política”, disse Marcos Nobre para
a reportagem: “Internautas do UOL apontam corrupção como o principal problema das prefeituras do
país” por Débora Melo do UOL em São Paulo, 12/09/2012 (http://eleicoes.uol.com.br/2012/no-
ticias/2012/09/12/internautas-do-uol-apontam-corrupcao-como-o-principal-problema-das-
prefeituras-do-pais.htm).
3 Ver www.combateacorrupcao.mpf.mp.br/10-medidas.

252
as medidas necessárias para combater a corrupção, deixa de ouvir o que os estudiosos
sobre o tema teriam a dizer e aproveita o clamor popular para levar adiante a sua
aprovação, que resultaria em uma ampliação evidente do poder de investigação e ação
da instituição.
Por isso mesmo, parece ser urgente adotar um ponto de vista mais crítico
para refletir sobre estes problemas, buscando desmontar as supostas verdades do dis-
curso público com a finalidade de esclarecer conceitos, identificar o uso retórico de
afirmações sem fundamento conclusivo e identificar relações entre os discursos e os
desejos, interesses e projetos deste ou daquele indivíduo, grupo social, corporação
profissional ou partido político.
Para além da pesquisa científica sobre a corrupção, tarefa à qual têm se dedi-
cado, experts da ciência política e da ciência econômica, é necessário analisar e refletir
sobre o significado das controvérsias públicas sobre as causas e as receitas de combate
à corrupção sem partir de uma suposta verdade sobre o fenômeno. Como sabemos
há tempos, esta é uma tarefa que cabe aos filósofos, cuja missão é examinar a consis-
tência dos argumentos apresentados na arena pública com a finalidade de zelar pela
racionalidade dos debates na polis mesmo diante das mais intensas paixões políticas e
os mais desvairados desejos de poder e dinheiro; tudo isso sob o risco de morte; a
mesma morte que nos levou Sócrates e que hoje atende pelo nome de especialização
disciplinar e exigências de publicação massiva. Mas esse é assunto para outra ocasião.
É tarefa da filosofia, no sentido utilizado neste trabalho, examinar os termos
do debate público para identificar e evidenciar estratégias de naturalização conceitual
que buscam apresentar uma determinada afirmação sobre o mundo como incontro-
versa, mesmo que assim não o seja, com finalidade de deixar fora do debate demo-
crático uma determinada distribuição de poder ou implementar um determinado pro-
jeto de poder apresentando-o como inelutável (RODRIGUEZ, 2013b).
Como mostramos logo acima, de fato, as eventuais soluções para o problema
da corrupção variam conforme a posição política de seus defensores, mais ou menos
favorável à liberdade dos mercados e da intervenção estatal na vida da sociedade e,
por via de consequência, terminam por distribuir responsabilidades e poderes entre
os agentes sociais de maneira completamente diferente. Apresentar qualquer uma des-
tas posições como a suposta verdade sobre o assunto tem como efeito subtrair deter-
minada distribuição de poder do debate democrático.
Tal estratégia de pensamento tem sido praticada pelos representantes da assim
denominada Teoria Crítica da Sociedade, cujo texto fundador, “Teoria Tradicional e Te-
oria Crítica” de Max Horkheimer (HORKHEIMER, 1983) opõe-se a qualquer modelo
de pensamento que negue o caráter histórico do pensamento. Nesse sentido específico, a
Teoria Crítica da Sociedade guarda muitas semelhanças com outras vertentes do pensa-
mento contemporâneo, por exemplo, o pensamento de Michel Foucault, como o próprio
reconheceu em seus escritos no final de sua vida, ver FOUCAULT, 1991.

253
Reservo a expressão "teoria crítica" para nomear o pensamento dos autores
e autoras que circularam e circulam em torno do Instituto de Pesquisas Sociais de
Frankfurt, os quais costumam reivindicar expressamente o texto fundador de
Horkheimer como referência para a construção de sua própria posição. Esta reivin-
dicação normalmente implica em um projeto de atualização da obra de Karl Marx
com o objetivo de identificar o que ainda está vivo e o que caducou em seu trabalho.
O objetivo final destes autores é construir novos conceitos críticos capazes
de identificar tendências emancipatórias inscritas na realidade de cada momento his-
tórico, acessível por meio da reconstrução de teorias de natureza diversa e por meio
da pesquisa empírica das práticas sociais (para o sentido de "reconstrução", ver NO-
BRE et alii, 2013). A Teoria Crítica não possui uma doutrina comum que a caracterize
como uma escola. Ao contrário, os autores deste campo trabalham a partir de balizas
abstratas as quais abrem um espaço amplo para a construção dos mais variados "mo-
delos críticos" (NOBRE, 2004).
Tais modelos críticos são muitas vezes discordantes, podem surgir a partir
de estudos de direito, política, economia, psicanálise, arte, literatura entre outros cam-
pos do saber e podem variar ao longo da obra de um mesmo autor, sempre em função
da necessidade de pôr a teoria em dia com novos diagnósticos do tempo. É esta vari-
edade e liberdade constitutiva da teoria crítica a responsável pela imensa riqueza deste
campo do pensamento, capaz de produzir figuras como Leo Lowenthal, Friedrich
Pollock, Max Horkheimer, Erich Fromm, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Sig-
fried Krakauer, Franz Neumann, Otto Kirchheimer, Jürgen Habermas, Axel Honneth,
Klaus Günther, Rainer Forst, Seyla Benhabib, Nancy Fraser, Iris Young, Paulo Edu-
ardo Arentes, Roberto Schwarz e Marcos Nobre.
Uso a expressão "pensamento crítico" para caracterizar, com fundamento no
texto de Michel Foucault, "O que é a ilustração?" (FOUCAULT, 1991) todos aqueles
e aquelas que se deixaram influenciar pela revolução copernicana de Immanuel Kant,
ou seja, estudiosos e estudiosas que não consideram a "realidade" como alguma coisa
separada e independente de determinadas categorias do pensamento, as quais são as
responsáveis por traçar as fronteiras do que se pode pensar; tenham tais categorias
natureza transcendental ou histórica. Está incluída no campo do "pensamento crítico"
toda a Teoria Crítica; por autodeclaração no mesmo artigo, Michel Foucault e, entre
outros e outras, Nietzsche, Heidegger, Derrida e Judith Butler.
Retomando o fio da meada, adotar uma postura crítica parece especialmente
importante para a análise do tema que nos ocupa neste texto do ponto de vista de um
ou uma jurista o qual, como veremos, implica na referência a diversos argumentos jurí-
dicos. Os juristas tradicionais costumam falar em nome da suposta verdade de sua in-
terpretação dos textos legais e, assumindo a posição de vanguarda iluminada, veem a si
mesmos como uma elite intelectual destinada a orientar o processo de tomada de deci-

254
sões. Tais juristas pretendem ser capazes de oferecer a palavra final sobre qualquer con-
flito social mediado pelo Direito e pelo Estado, em nome de uma suposta verdade téc-
nica obtida por intermédio das ferramentas metodológicas da ciência do direito.
Ao agir desta maneira, tais juristas procuram seguir as pegadas de alguns fi-
lósofos, cientistas sociais e economistas que legitimam sua autoridade na esfera pú-
blica ao procurarem argumentar para além da política. A habilidade dessa espécie de
intelectual é tentar pôr algumas supostas verdades à salvo do vozerio desconexo, emo-
cional e alegadamente ignorante dos debates ocorridos na pólis.
No entanto, ao defender este ponto de vista, intelectuais públicos deste jaez
colocam em risco a democracia. Pois eles e elas tendem a naturalizar, contra a dinâ-
mica incessante dos conflitos sociais, uma certa visão do Direito e do Estado, uma
certa visão da Constituição. Ou seja, tendem a tornar imutáveis determinada distri-
buição de poder e recursos encarnada no direito posto; uma certa forma de vida e
modelo de sociedade desenhada pelo Direito.
Para pensar o Direito em um ambiente democrático, o jurista ou a jurista não
pode mais se colocar na posição de juiz ou juíza do debate público. Seu papel passa a
ser tomar parte do debate ao lado dos cidadãos e cidadãs, contribuindo para a radica-
lização da democracia a partir de sua posição específica. Nesse sentido, um jurista
democrático tem como tarefa básica desnaturalizar argumentos tidos como auto evi-
dentes ao identificar os agentes sociais, seus desejos e interesses defendidos via direito.
Também é sua atribuição aumentar o arsenal argumentativo da sociedade ao procurar
dar voz a grupos silenciados e buscando na experiência comparada possibilidades re-
novadas de regular os conflitos sociais. Finalmente, é seu papel cobrar coerência e
realismo dos agentes sociais e dos poderes do Estado, para tornar as demandas sociais
e as ações estatais factíveis, encarnadas e racionalmente justificadas.
A democracia é um regime de verdades frágeis e cambiantes, desenhado para
acolher a mudança e abrir espaço para o conflito não violento sobre suas consequên-
cias desestabilizadoras.4 Um jurista democrático deve ser capaz de auxiliar na cons-
trução de um ambiente que favoreça o florescimento da democracia. Um ambiente
de relativa paz, que favoreça a transformação social inclusiva, participativa e não vio-
lenta, o que implica em eximir-se de servir a qualquer forma de naturalização do sen-
tido dos direitos.5

Absolvição moral ou pânico moral?

4 Sobre este ponto, ver RODRIGUEZ, 2013a.


5 Sobre este ponto, ver RODRIGUEZ, 2014.

255
Ao abordar a questão da corrupção da perspectiva crítica como exporta
acima, podemos notar que há dois discursos circulando na esfera pública, dentre tan-
tos outros, que merecem a atenção especial dos pesquisadores em Direito por colo-
carem em xeque, de maneiras diferentes, o conceito de estado de direito.
O primeiro deles, que podemos ilustrar pela na celebérrima foto de José Dir-
ceu de punho em riste, em posição desafiadora diante das autoridades que iriam efe-
tuar sua prisão, parece sugerir que determinados atos praticados por ele e por outros
membros de seu grupo político, mesmo que considerados ilícitos, deveriam ser inter-
pretados como atos heroicos e, portanto, de acordo com a moral.
A ideia subjacente ao gesto de José Dirceu, presente na “Carta aberta ao
povo brasileiro” divulgada por ele na ocasião de sua prisão6 e reproduzida muitas
vezes por defensores dos últimos governos Dilma e Lula7, parece ser a seguinte: em
um ambiente de corrupção generalizada como o que caracterizaria a política brasileira,
não seria justo, a despeito de ser lícito, considerar os atos praticados pelos atuais acu-
sados e as acusadas como excepcionalmente graves. Não foram atos inéditos, atos
semelhantes aconteceram muitas outras vezes e, portanto, não foram praticados es-
pecificamente apenas pelos atuais governantes e pelos membros de sua base aliada.
Ademais, essa linha de raciocínio sugere que devemos considerar tais atos
quase como necessários para realizar os fins perseguidos pelos governos Lula e Dilma,
afinal todos os governantes, em maior ou menor grau, os teriam cometido como con-
dição sine qua non para serem capazes de governar. A corrupção faria parte, assim, das
regras do jogo da política brasileira, o que nos levaria à seguinte conclusão: ou bem
toda a classe política deve ser punida ou ninguém deve sê-lo.
Nessa ordem de razões, combater a corrupção punindo indivíduos seria ine-
ficaz e injusto. O objetivo central deveria ser acabar com os mecanismos que teriam
transformado a corrupção em elemento essencial do sistema político nacional. Impu-
tar a corrupção brasileira à ação individual de homens e mulheres seria equivalente a
falsear a questão. Mais do que isso, seja equivalente a utilizar determinados indivíduos
como bodes expiatórios, deixando impunes todos os demais participantes de um sis-
tema político corrupto. Daí Dirceu afirmar, em sua “Carta...”, que ele se considera
um preso político.

6 “Carta Aberta do Povo Brasileiro”, Blog do Zé, 15/11/2013, (http://www.zedirceu.com.br/carta-


aberta-ao-povo-brasileiro/).
7 “Globo decreta a prisão de Dirceu”, Blog Conversa Afiada,

13/07/2015 , http://www.conversaafiada.com.br/pig/2015/07/13/globo-decreta-a-prisao-de-dir-
ceu; “José Dirceu, sacrificado ao deus Mercado no altar da Mídia”, por Fábio de O. Ribeiro, Blog Jornal
GGN, 04/08/2015, HTTP://JORNALGGN.COM.BR/BLOG/FABIO-DE-OLIVEIRA-RIBEIRO/JOSE-DIR-
CEU-SACRIFICADO-AO-DEUS-MERCADO-NO-ALTAR-DA-MIDIA-POR-FABIO-DE-O-RIBEIRO; “Dirceu:
É a segunda vez que serei um preso político, por Miguel do Rosário, Blog O Cafezinho, 15/11/2013,
http://www.ocafezinho.com/2013/11/15/dirceu-e-a-segunda-vez-que-serei-um-preso-politico.

256
É claro que a atitude de José Dirceu e este discurso de absolvição moral causou e
ainda causa perplexidade em muita gente. Pois esta maneira de encarar as investiga-
ções e condenações judiciais recentes acaba funcionando como desculpa para qual-
quer ato de corrupção praticado no passado e para qualquer ato que venha a ser pra-
ticado no futuro. Afinal, não importa o que alguém tenha feito, pouco importa a apu-
ração de sua eventual culpa: seu capital moral e político deve ser preservado e sua
eventual responsabilidade deve ser atribuída ao sistema político como um todo.
Ser preso e ir para a cadeia neste caso, mesmo que seja lícito, jurídico, não
seria justo. Todo preso ou presa em condições como estas acabaria ocupando, se-
gundo este ponto de vista, a posição de um verdadeiro herói. Alguém que foi capaz
de jogar de acordo com as regras de um sistema corrupto, o seja, fazer política como
todo mundo faz, mas não para enriquecer individualmente, mas para promover mu-
danças sociais importantes para nosso país. Os fins justificariam os meios, portanto,
e a legitimidade da punição estatal e do estado de direito como um todo ficariam,
assim, em posição de cheque, na iminência de sacrificar um herói.
Alguns elementos nos permitem supor que um segundo discurso significa-
tivo está se formando no Brasil, o qual chamarei de discurso de pânico moral, o qual
caminha no sentido contrário ao anterior. Tal discurso também atribui a corrupção a
toda a classe política8 e a todos os brasileiros e brasileiras, ideia presente na noção de
“jeitinho brasileiro”. Viveríamos, assim, em uma cultura essencialmente corrupta,
marcada pela corrupção generalizada de funcionários e funcionárias públicas, cida-
dãos e cidadãs, setor público e setor privado.
Ao contrário do discurso anterior, o discurso de pânico moral afirma que se
todos são culpados pela corrupção, todo e qualquer ato que viole uma norma jurídica
com a finalidade de obter vantagem pessoal deve ser punido, por mais insignificante
que ele pareça. A permissividade com pequenos atos alimentaria a corrupção em larga
escala; uma afirmação que autorizaria o Estado brasileiro a promover uma verdadeira
caça às bruxas da qual quase ninguém iria escapar.
O que poderia soar como um pesadelo autoritário e paranoico, parece dar
sinais de que pode se tornar realidade. O Ministério Públicos Eleitoral do Rio de Ja-
neiro e o de São Paulo, aparentemente tomados por este clima de pânico moral, de-
cidiram processar pequenos doadores da campanha eleitoral do PSOL e do PSTU,
transformando seus agentes no que parece ser, se me for permitida a ironia, em um
verdadeiro CCCP, Comando de Caça aos Comunistas Pobres.9
O argumento para levar adiante essa ação radical moralizante é que doadores
e doadoras isentos do imposto de renda não poderiam ceder de 30 a 60 reais para

8 O Ministério Público de Rondônia lançou uma campanha de “Tolerância Zero à Corrupção” voltada
para o setor público, http://www.mpro.mp.br/web/caop-ppa/tolerancia-zero-contra-a-corrupcao.
9 Ver: “Após doar valores como R$ 30 e R$ 60 a partidos, eleitores são processados”, Felipe Amorim

do UOL, em Brasília 16/10/2015 (http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noti-


cias/2015/10/16/eleitores-sao-processados-por-doacoes-de-ate-r-30-no-rio-e-em-sp.htm).

257
seus partidos. Afinal, estes valores excederiam o teto de 10% da renda total da pessoa
física para doações eleitorais, limite este estabelecido pela legislação eleitoral. Com
efeito, tal fundamentação jurídica soa temerária pois ser isento do Imposto de Renda
não significa ter recebido zero reais por ano. Pressupor que 30 ou 60 reais de doação
excedem o limite legal é apenas um chute.
Ademais, perseguir pequenos doadores, salvo engano, não parece ser uma
prioridade no combate à corrupção eleitoral. Os valores envolvidos são irrisórios e,
por isso mesmo, o apoio desses doadores ao partido, com toda a certeza, não se deu
em troca de favores futuros em eventuais licitações ou contratos administrativos, a
serem celebrados caso os candidatos do PSOL fossem eleitos.
Seja como for, sob a forma de perdão moral ou sob a figura do pânico moral,
o debate sobre a corrupção no Brasil está produzindo problemas jurídicos e morais
com consequências práticas muito graves. De um lado, a insistência no perdão moral
dos supostos heróis de uma política corrupta pode contribuir para deslegitimar a pu-
nição jurídica dos acusados sob o argumento da corrupção generalizada e do bode
expiatório. De outro lado, a criação de uma situação de pânico moral pode motivar a
adoção de medidas temerárias, draconianas e sem eficácia comprovada no combate à
corrupção.
Nossa história recente nos ensina que este tipo de situação pode minar as
bases do estado de direito ao atribuir ao Estado poderes de investigação que criam
regimes de exceção que põe em segundo plano uma série de garantias fundamentais.
Nesse sentido, fui testemunha ocular de uma palestra do MPF na Escola de Direito
da UNISINOS (Universidade do Vale dos Sinos) em São Leopoldo, Rio Grande do
Sul, ocorrida na quarta-feira dia 14/10/2015 na qual a Procuradora-Chefe do Rio
Grande do Sul, Dra. Patrícia Maria Núñez Weber, afirmou publicamente que o mo-
delo institucional desejado por esta instituição é um direito penal de três velocidades,
defendido por uma série de autores para o combate ao terrorismo, visto aqui como
inimigo do Estado.
Nesta forma de direito penal, os acusados de determinados crimes não têm
direito a uma série de direitos e garantias presentes no direito penal de velocidade
normal, sempre em nome da maior eficiência em combater certos tipos de crime.
Como nos explica SILVA-SANCHES, 2002, o direito penal de primeira velocidade é
aquele que respeita as garantias constitucionais clássicas e gira em torno da pena de
prisão.
O direito penal de segunda velocidade o direito penal reparador busca subs-
tituir a pena de prisão por penas alternativas (penas restritivas de direito, pecuniárias
etc.) que impõem limites à vida do infrator e impõe obrigações proporcionais ao mal
causado, com dispensa de advogado em alguns casos e inexistência de denúncia e de
processo, como na lei brasileira dos Juizados Especiais (nº 9.099/95) que cria a pos-
sibilidade de transação penal (art. 76).

258
Enfim, o direito penal de terceira velocidade possui características dos dois
tipos expostos acima. Ele estaria centrado na pena de prisão, de um lado, e flexibili-
zaria e suprimiria diversas garantias penais e processuais penais, de outro. Aqui pode-
mos localizar a proposta de um assim denominado “direito penal do inimigo” elabo-
rada por Günther Jakobs e medidas de combate ao terrorismo como o “Patriotic
Act”, legislação aprovada nos Estados Unidos da América durante o governo de Bill
Clinton. Nestes dois casos, para combater certos tipos de crime, estaria justificado
flexibilizar o suprimir uma série de garantias legais constitucionalmente previstas (por
exemplo, prender suspeitos para interrogatório, fazer escutas telefônicas e quebrar o
sigilo de correspondência sem autorização judicial) o que resulta na ampliação do po-
der de investigação e de punição do Estado diante de seus cidadãos e cidadãs.10
Como se vê, os discursos da absolvição moral e o discurso do pânico moral
põem problemas centrais para o debate sobre a relação entre combate a corrupção e
estado de direito. Nesse sentido, podemos perguntar: em que circunstâncias seria con-
siderado razoável postular exceções ou a suspensão das normas que punem a corrup-
ção sem colocar em risco a legitimidade do estado do direito? Ainda, uma visão inter-
ventiva e altamente moralizante do direito, convidado a punir todo e qualquer ato que
se pareça com um ato de corrupção, por mais insignificante que ele pareça, ajuda de
fato a combater a corrupção e a consolidar o estado de direito?11

Contra o fanatismo textualista

Na parte final deste texto, com os meios da filosofia e não das poderosas
ciências política e econômica, pretendo oferecer algumas respostas para as questões
que acabei de propor. Para realizar esta tarefa, começo por comparar os discursos da
absolvição moral e do pânico moral para além de suas diferenças, discutidas acima.
Ao fazer isso, fica fácil perceber que ambos guardam uma semelhança im-
portante. Os dois discursos propõem que desconsideremos as peculiaridades dos ca-
sos concretos, irrelevantes para a absolvição de todos os eventuais heróis da pátria
acusados de corrupção ou para a condenação indiscriminada de todo e qualquer ato
de corrupção, por mais irrelevante que ele seja.

10Para mais detalhes, ver SILVA SANCHES, 2002.


11Em um contexto diferente e com conclusões mais ambiciosas, José Arthur Giannotti manifestava
preocupações semelhantes: “Preocupo-me com os ares de moralismo irracional e desvairado que, em
nome da moral, nega a legitimidade da política no seu caráter de jogo, pois já sabemos que essa nega-
ção leva ao terror. Temo qualquer programa político que se arme centrado na bandeira da moralidade.
Nada mais pretendo do que resgatar uma política republicana, em que cada instituição há de agir den-
tro dos limites que lhe são próprios, respeitando cuidadosamente os limites das outras. Exemplifi-
cando: que uma revista não construa uma informação na base do grampo de um telefone celular (pro-
cedimento tecnicamente impossível) [NOTA JR: Hoje isso é possível]; que um promotor não inicie um
processo a partir da suspeita que ele próprio transformou em notícia; que o Legislativo investigue a
corrupção disto ou daquilo, mas nunca a corrupção em geral, que foi de tal forma generalizada que
deveria começar investigando alguns corruptos que a requereram. É preciso dar mais exemplos da
confusão reinante?" (GIANNOTTI, 2001)

259
Parece razoável dizer, portanto, que os dois discursos são formas de um
mesmo fanatismo textualista que tende a tomar uma determinada regra (moral, ética,
jurídica) de forma absoluta e defender sua aplicação a tudo e a todos, doa a quem
doer, eliminando completamente um eventual espaço existente entre a formulação
abstrata da regra e seu momento de aplicação.
Muitos podem acreditar que o fanatismo textualista é a única posição com-
patível com ações sérias de combate à corrupção e a tantos outros atos considerados
graves. “Tolerância zero” para que nos tornemos, finalmente, um país sério, sem ter
pena de ninguém. Mas a filosofia do direito alemã nos traz elementos interessantes
para, eventualmente, convencer adeptos desta posição radical a matizar sua posição e
abrir espaço no direito para a complexidade dos casos concretos.
Tomemos um exemplo muito simples oferecido por Klaus Günther em seu
livro “Senso de Adequação” (GÜNTHER, 1992). Consideremos a seguinte situação:
“uma pessoa faz a promessa de comparecer à festa de seu amigo Smith, mas no dia
não comparece”. Em uma primeira análise, a norma pertinente a este caso é a seguinte:
“promessas devem ser cumpridas”.
No entanto, afirma Günter, ao examinar as circunstâncias do caso em que a
promessa foi feita, podemos chegar à conclusão que a regra deve ser afastada. Neste
caso, pode-se considerar que (1) não foi feita nenhuma promessa a Smith; (2) o que
foi dito Smith não era uma promessa de fato, mas apenas a afirmação de uma possi-
bilidade ou, (3) embora promessa tenha de fato existido, um outro amigo, Jones, es-
tava em sérias dificuldades e precisou de ajuda no exato momento da festa. E todos
consideramos correta a norma que afirma: “não devemos negar ajuda a um amigo em
sérias dificuldades”.
Este exemplo mostra que a análise completa de um caso concreto poder al-
terar ou mesmo afastar a aplicação de uma norma, que parece ser aplicável a ele em
uma primeira análise. Por isso mesmo, diz Günther, é preciso distinguir, de um lado,
a justificação das normas e, de outro, a aplicação das normas. No momento da justi-
ficação é necessário considerar em abstrato os interesses de todos os possíveis afeta-
dos pela norma que está sendo discutida. Afinal, a legitimidade das normas deriva do
fato de que elas sejam capazes de considerar todos os interesses dos afetados por elas.
O problema é a tentativa de antecipar os efeitos da norma se faz necessaria-
mente em abstrato, a partir dos traços comuns de uma série de situações concretas. E
é impossível investigar todas as situações relevantes para a elaboração de uma norma,
a menos que dispuséssemos de todo o tempo e de toda a capacidade de conhecimento
do mundo, além de todas as informações disponíveis sobre determinadas situações
no presente, no passado e no futuro. Afinal, os interesses das pessoas envolvidas na
elaboração de uma norma são mutáveis e contextuais.
Ao aplicar uma norma, portanto, é necessário suprir as deficiências do mo-
mento da justificação, levando em consideração efeitos não antecipados ou desconsi-
derados durante sua justificação em abstrato. Diante do caso concreto, pode-se tentar

260
identificar todos os seus efeitos possíveis e uma norma e verificar se ela é adequada
ao caso. Nesse sentido, a aplicação de uma norma deve ser realizada com “senso de
adequação”, ou seja, de modo a fazer com que a decisão seja aceita como legítima por
todos os interessados.
Mas voltemos ao nosso assunto, agora munidos das ideias de Klaus Günther.
Parece razoável assim tentar distinguir, lembrando dos discursos da absolvição moral
e do pânico moral, situações em que consideramos que abrir uma exceção às normas
em nome de interesses pessoais seja aceitável, de situações em que fazer algo assim
seja considerado claramente reprovável.
Para um fundamentalista textualista, propor esta distinção já significa com-
pactuar com a corrupção. Mas como nos ensina a teoria do direito e a filosofia em
geral, é preciso zelar pela sanidade da cidade em tempos de paixões violentas. E este
parece ser um passo necessário se quisermos preservar a legitimidade das normas e,
por via de consequência, do estado de direito.
Talvez seja uma boa ideia começar por desmontar o Comando de Caça aos
Comunistas Pobres, cuja temeridade já foi exposta acima, e refletir com cuidado sobre
este acontecimento. Para que ele não seja reconhecido no futuro como a o primeiro
momento de um período de desvario punitivista. Mas para não ficar apenas neste
exemplo, a construção jurisprudencial do crime de bagatela nos põe diante de um
raciocínio semelhante ao que proponho. De acordo com o princípio da insignificância,
podemos afastar a tipicidade penal e deixar considerar crime ações pouco ofensivas,
que não revelem nenhuma periculosidade social, que se mostrem pouco reprováveis
e provoquem uma lesão jurídica inexpressiva, por exemplo, o furto de um objeto de
baixo valor, por exemplo, um alfinete, um bombom, m vidro de shampoo, o seja,
uma verdadeira bagatela.12
À despeito da originalidade da formulação de Klaus Günther, o debate sobre
a indeterminação das normas está presente no campo da teoria do direito e da moral
ao menos desde o final do século XIX. Não há novidade alguma em simplesmente
dizer, por exemplo, que juízes criam direito em não se limitam a reafirmar o conteúdo
dos textos legais. Mesmo assim, diversas versões de posições fanáticas pelos textos
normativos têm surgido no espaço público, inclusive o fanatismo textualista atual.
Como tive a oportunidade de mostrar em escritos anteriores (RODRIGUEZ, 2010a),
o debate científico parece não ser suficiente para impedir o surgimento de posições
fanáticas como as que debatemos aqui, sempre que este tipo de discurso esteja ligado
aos interesses de determinados agentes sociais.
É importante lembrar que a pesquisa e a reflexão sobre a visão de direito e
de moral dos agentes sociais não se confundem e muitas vezes não se deixa influenciar
pelo debate ocorrido no campo da teoria. Da mesma forma, a crítica radical e demo-

12 Sobre esse assunto ver, entre outros, LOPES, 2002

261
lidora feita pela ciência biológica ao conceito de raça, mais especificamente pelos es-
tudos de genética, não teve o condão de impedir que o racismo surja e se manifeste
de forma radical e exuberante em diversas sociedades, inclusive a europeia e a norte-
americana.
Nesse sentido, juristas críticos que pretendam contribuir para o debate pú-
blico não podem reduzir a sua tarefa à busca de bons critérios para diferenciar direito
e moral e para caracterizar a racionalidade específica do direito em relação às demais
esferas de ação humana. É preciso compreender também a origem e a dinâmica das
visões de direito e de moral esposada pelos agentes sociais e de estado no contexto
das lutas sociais travadas entre si para tentar compreender as razões pelas quais tais
agentes adotam este ou aquele curso de ação.

A verdade é inimiga do pensamento

A despeito de todas as advertências feitas por este trabalho no que diz res-
peito ao tema da corrupção, especialmente sua relação com um suposto “jeitinho bra-
sileiro”, não deixa de ser irônico vermos prosperar o Brasil discursos textualistas ra-
dicais como aqueles que examinamos aqui. Para combater nosso suposto e atávico
“jeitinho”, o seja, para “curar” uma sociedade atavicamente doente de corrupção, es-
tamos vendo nascer posições radicalmente intolerantes com qualquer tipo de exceção
às regras. Posições que ameaçam a legitimidade de nosso direito não mais por sua
inoperância, mas por seu excesso de iniciativa, que pode levar, como já mencionado,
à punição de fatos claramente irrelevantes.
Saudades do “jeitinho”, talvez? Saudades de tempos mais cordiais? Saudades
da violência e do arbítrio privado que ocupava o lugar da violência e do poder estatal?
Nem uma coisa nem outra, eu ousaria dizer, pois a irracionalidade do fanatismo tex-
tualista é o contraponto necessário dos exageros interpretativos do “jeitinho”. Expli-
cações ponderadas e bem fundamentadas raramente se traduzem em excessos verbais
e cruzadas morais desta natureza.
O pensamento crítico tem essa característica: tende a ser frio. Ele é capaz de
inflamar os ânimos ao revelar as artimanhas do poder, explicitando o uso interessado
de supostas verdades e denunciando o caráter arbitrário de diversas instituições que
alegam falar em nome do direito. Mas em seu momento positivo, ao lidar com deci-
sões reais de uma política real, assim como n’ As Leis de Platão, é preciso deixar de
lado todo o radicalismo, abandonar os sonhos de uma cidade ideal concebida em
abstrato, como em A República, e comparar experiências e instituições variadas, sem
ter lá muita certeza sobre o melhor caminho a seguir.13

13Sobre as diferenças entre A República e As Leis de Platão, um tópico ainda pouco estudado pela
academia, ver em português o livro de OLIVEIRA, 2011.

262
A política real deve ser racional, mas nunca fundada em verdades definitivas
sobre a ética, a moral ou o direito. A verdade, nesse sentido, é a maior inimiga do
pensamento crítico.

263
III. UTOPIAS
Capítulo 12 – Utopias Institucionais

Introdução.

A literatura feminista brasileira tem discutido com frequência uma série de


problemas jurídicos relacionados ao direito, em especial no que diz respeito à Lei
Maria da Penha, diploma normativo que prevê diversos instrumentos para combater
a violência contra a mulher. No entanto, ainda não é possível encontrar na bibliografia
textos que organizem tais problemas e discutam criticamente as alternativas instituci-
onais em jogo.
O objetivo deste texto é suprir esta lacuna. A partir dos escritos mais impor-
tantes sobre a Lei Maria da Penha as principais alternativas institucionais em pauta e
seus dilemas serão avaliadas. Sua primeira parte identifica dois grupos de questões
pertinentes às características e limites do direito penal, de um lado, e à criação de
alternativas não penais no combate à violência, de outro. Ainda nesta parte, são dis-
cutidos os dilemas do que chamamos de pensamento utópico sobre as instituições.
A seguir, o texto mostra como a literatura feminista tem evitado o equívoco
de criticar o direito a partir de formas não institucionalizadas de regulação. O debate
neste campo tem girado em torno de alternativas institucionais que constroem de
forma diferente a relação entre sociedade e estado e a maneira de lidar com a violência
contra a mulher. Ainda nesta parte, o texto mostra como a literatura avalia o papel
direito penal e os seus limites, discute alternativas não penais para combater a violên-
cia e tematiza o papel dos agentes estatais na administração da justiça e na interpreta-
ção das normas.
Em sua terceira parte, o trabalho examina em detalhe as críticas feitas ao
direito penal e discute a relação entre o combate à violência contra a mulher e a pro-
teção à família, consagrada pela Lei. Em seguida, são examinadas as alternativas não
penais para o combate à violência, em especial no que diz respeito à vagueza que
caracteriza a regulação e o discurso dos agentes sociais sobre o assunto.
O texto levanta a hipótese de que esta vagueza possa ser explicada pela falta
de mobilização social em torno de tais alternativas, afinal, o movimento feminista tem
concentrado suas forças na luta pela efetivação da alternativa penal. Finalmente, o
artigo mostra a afinidade eletiva entre o discurso vitimizador e o modelo de juridifi-
cação característico do direito penal e sugere que esta afinidade é um obstáculo im-
portante para se pensar alternativas jurídicas ao direito penal.

267
Os perigos da utopia

Em entrevista concedida a mim e a Gabriela Justino em 11 de setembro de 2012,


Amelinha da Silva Telles, fundadora da União de Mulheres1, tocou em um ponto
fundamental para a reflexão sobre as instituições do estado de direito e o combate à
discriminação de gênero e contra as mulheres. Ao nos relatar os fatos que marcaram
o processo de elaboração e aprovação da lei Maria da Penha e avaliar seu impacto
sobre a vida das mulheres, Amelinha fez considerações importantes sobre a maneira
pela qual os conflitos são acolhidos pelas Delegacias de Polícia em comparação, por
assim dizer, com as utopias institucionais imaginadas pelo movimento feminista.

Amelinha: A própria delegacia já perdeu muito de seu vigor dos


anos 80, época em que ela foi criada, em 85. Hoje tem um homem
atendendo na delegacia, um homem atende as mulheres ali na frente
no balcão. E quem fez aquele balcão ali na frente? A delegacia tem
um formato totalmente antiacolhedor, não é? Porque é assim, você
senta e quando você é chamada “Qual que é a próxima?”, e você vai
lá no balcão, chegou lá no balcão, você tem que falar seu problema
na frente de todo mundo (grifos meus) e, na frente daquele funcioná-
rio que pode ser o faxineiro do prédio, pode ser quem for porque
principalmente quem vai na hora do almoço, porque na hora do
almoço todos da delegacia vão almoçar. (...) Aí ela tem que falar alto
porque se você fala muito baixo eles falam que não estão enten-
dendo o que ela está falando e aí ela fala, fica com vergonha porque
outras pessoas estão ouvindo...
(...)
Amelinha: Eu tinha um sonho de ter um lugar assim, sabe? Foi um
sonho que nós tivemos, nós feministas, de ter um lugar assim, muito
lindo, que a gente vê um filme, um filme americano...
E: Que filme?
Amelinha: Ah, eu não sei qual, eu sei que a gente viu um lugar assim
que era uma casa cheia de jardim assim, a mulher entrava lá, era

1 Organização não governamental feminista criada em 1981, cujos objetivos são: a) Promover a parti-
cipação das mulheres em defesa de seus direitos, buscando justiça e igualdade social e a consolidação
da democracia; b) Capacitar profissionais para promover o acesso das mulheres à justiça e aos direi-
tos humanos; c) Oferecer orientação às mulheres em situação de violência e criar condições para que
elas possam orientar outras mulheres sob uma perspectiva de gênero, raça, etnia, orientação sexual e
relações entre gerações; d) Oferecer oficinas e grupos de vivência; e) Promover ações em parceria
com ONGS e órgãos governamentais para garantir apoio e ampliação dos serviços e realização de
ações conjuntas, formação de redes e formulação de políticas públicas de combate à violência; f) Rea-
lizar o projeto das Promotoras Legais Populares.

268
recebida, sabe? Com massagem, nossa, era uma coisa tão legal, “Ah,
você continua com dor? Vamos ver, você vai passar na médica agora,
vamos ver a médica”, e primeiro elas passavam pelas mulheres e aí
depois conversava com a assistente social para ver o problema de
como vai ser o aluguel, não sei mais o que, um atendimento integral.
E foi nesse sonho que nasceu a primeira Casa, essa casa nasceu
desse sonho.
E.: O que é? Eu não sei o que é a Casa...
Amelinha: É uma Casa Eliane de Grammont da prefeitura para
atender as mulheres em situação de violência e a ideia era que tivesse
tudo na casa e, se você for na Vila Clementino, na Rua Doutor Ba-
celar, n. 20, você ainda vai ficar e falar “Nossa, o sonho mixou
mesmo, acabou, o sonho acabou”, porque a casinha é pequeninha,
cheia de goteira, cheia de infiltração, entendeu? As técnicas, porque
lá só tinham mulheres, foram se aposentando porque isso foi criado
na época da Luiza Erundina, e não são substituídas e então não tem,
está reduzindo o número de profissionais, o número de atendi-
mento, mas ela nasceu dessa ideia.
É o primeiro Centro de Referência da Mulher, tanto é que quando
a gente escreve na lei “Centro de Referência da Mulher” é porque a
gente tinha experiência da casa, entendeu? Quando a gente escrever
“Casa Abrigo”, a gente tinha experiência e lá em Porto Alegre as
mulheres fizeram a Casa Abrigo que é “Viva Maria, viva”, não sei,
um negócio assim, um negócio lindo que era e tinha aquele funcio-
namento. Então a lei parte de muitas experiências concretas que a
gente tentou nos vários municípios onde a gente tinha uma atuação
direta.
(...)
E.: Mas lembra o nome desse filme pra gente depois...
Amelinha: Ah, eu não consigo...
E.: Porque o sonho era...
Amelinha: Então, esse lugar seria um lugar ideal, você entendeu?
Um lugar bonito, as mulheres teriam um acolhimento para elas pen-
sarem, sabe? Para você atender bem essas mulheres você tem que
ter tempo filho, tempo. Eu já sentei com muita mulher de ficar o
dia inteiro conversando com elas porque é tempo. Você chega com
a cabeça cheia de problema ali, aquela coisa, sabe? Até você limpar
aquilo ali tem que falar muito para poder limpar o negócio dela. É
uma história que você consiga ter um desfecho, um caminho bom,
é muito difícil. Então isso tudo eu falo por causa da lei, a lei não é

269
nada disso, mas a gente tem que aquele sonho maior, né? Sonho
maior.

Estes três trechos da entrevista tocam em problemas centrais para a teoria


do direito, para a discussão sobre a efetivação das políticas previstas na Lei Maria da
Penha e para a reflexão sobre o problema da emancipação das mulheres. Como dis-
semos acima, Amelinha discute as delegacias de polícia como mecanismos de acolhi-
mento, de escuta dos problemas relacionados à violência contra a mulher. Contrapõe
à realidade das delegacias outro modelo de instituição corporificado no “sonho maior”
(sic) de uma Casa capaz de receber as mulheres de maneira mais afetiva e oferecer um
tratamento integral a seus problemas, para além da questão estritamente criminal, ade-
quado para que ela supere sua situação de sujeição.
São colocadas lado a lado duas formas institucionais distintas, cada uma delas
marcada por uma gramática diferente e por uma racionalidade diferente, a começar
por sua estrutura física. Na delegacia, a mulher precisa ir “lá na frente” no balcão, e
falar de problemas íntimos perante estranhos e/ou estranhas. O pior de tudo, nor-
malmente, ela será atendida por um funcionário homem sem treinamento ou sensibi-
lidade para lidar com o problema da violência contra a mulher. Já na “casa dos so-
nhos”, na visão de Amelinha, a mulher seria recebida em um ambiente privado, afe-
tivo, preocupado com seu bem-estar físico e, principalmente, será atendida sem pressa.
O funcionário ou funcionária da delegacia de polícia é retratado por ela como
alguém pouco interessado nos problemas que se apresentam diante dele; um buro-
crata cujo objetivo principal parece ser livrar-se do trabalho sempre que isso seja por
possível. Por esta razão, ainda de acordo com o relato de Amelinha, este funcionário
desqualifica os relatos de violência contra a mulher e procura encaminhar a vítima a
outros órgãos do estado. Na “casa dos sonhos”, ao contrário, o indivíduo será ouvido
e levado em conta em sua singularidade. O atendimento deve ser pensado em função
do relato de sua história; uma história que deve ser ouvida sem pressa em instalações
físicas adequadas para este fim.
As falas de Amelinha evidenciam uma visão muito clara da diversidade de
formas institucionais em sua capacidade de figurar os problemas sociais ao escutar as
vítimas da violência de maneira completamente diferente. Do ponto de vista dos de-
bates atuais da teoria do direito, estamos aqui um passo além do debate tradicional
sobre a juridificação das relações sociais.
Afinal, de acordo com Amelinha, não se trata de discutir se a regulação estatal
é boa ou ruim vis a vis a possibilidade de gestão autônoma dos problemas pela soci-
edade ela mesma. Ela não toca nesta questão. O que está em jogo aqui são, por assim
dizer, duas estratégias de juridificação diferentes, duas maneiras diferentes de regular

270
e lidar com o problema da violência contra as mulheres; um deles considerado inade-
quado e o outro adequado tendo em vista sua capacidade de figurar adequadamente
o problema que se coloca diante dele2.
É provável que o modelo da delegacia possa ser adequado para lidar com
outro tipo de problema social. A fala de Amelinha parece não condenar as delegacias
em abstrato. No entanto, ela reflete sobre a incapacidade deste órgão de lidar com um
tipo de problema que, de acordo com ela, exige sensibilidade, pois gera vergonha e
retraimento nas vítimas, além de demandar um atendimento que envolva múltiplos
aspectos, financeiros, criminais, emocionais entre outros.
Fica claro aqui que a maneira pela qual se desenham as instituições deve
guardar alguma relação com as questões sociais que ela irá enfrentar. A mera trans-
formação da violência contra a mulher em crime, de acordo do Amelinha, parece ser
incapaz de atender às necessidades efetivas do problema da violência. Dá-se a enten-
der que o crime e as instituições destinadas à persecução penal não figuram de maneira
adequada as questões postas pela violência contra a mulher.
Mas é preciso deixar claro que este argumento pode ser lido de duas maneiras
diferentes. Em primeiro lugar, ele pode levar à conclusão de que a violência contra a
mulher, em razão de suas características, não deve ser regulada por meio do direito
penal. Ela deve ser objeto de outras formas institucionais que não funcionem de
acordo com a lógica binária dos crimes e das penas; do criminoso e da vítima. De
outra parte, tal argumento pode ser lido como um ataque radical à racionalidade penal
como um todo. Com efeito, parece não haver argumentos razoáveis para que qualquer
outro crime, seja ele contra o patrimônio ou contra a vida, não deva ser compreendido
no contexto de uma série de outros problemas sociais, tão complexos quanto a vio-
lência contra a mulher.
Por exemplo3, uma pessoa que furta um tênis não está inserida em uma so-
ciedade consumista que a trata como objeto - e que trata a todos como meros objetos
– de modo a fazer a sua autoestima depender da posse deste tênis de marca? Posto
isto, tratar este fato como um crime não significa ocultar o que ele tem de mais es-
sencial em favor da lógica binária do criminoso e de vítima? Nesta mesma ordem de
razões, não seria razoável considerar que o direito penal como um todo é, por assim
dizer, uma patologia regulatória que deve ser combatida e evitada porque tem como
efeito principal ocultar aquilo que os problemas sociais possuem de mais característico?

2 A bibliografia sobre juridificação é imensa. Para uma visão relativamente completa da bibliografia
mais importante sobre o tema até os anos 90, ver: FRIEDMAN, 1999. Outra referência importante é a
obra de Jürgen Habermas. Na Teoria do Agir Comunicativo este autor via a regulação pelo direito como
algo eminentemente negativo por suprimir a autonomia da sociedade para lidar com seus problemas
em favor de uma gestão estatal, burocratizada. Já em Direito e Democracia, esta visão do direito se
altera. Habermas passa a pensar o direito como ambíguo, passível de disputa pela sociedade, ou seja,
passível de construir modelos de juridificação mais ou menos democráticos.
3 Agradeço a Marcella Beraldo pela sugestão do exemplo.

271
A despeito de minha simpatia pessoal por esta posição, é importante fazer
aqui uma distinção, crucial para aclarar os termos do problema com o qual estamos
lidando. Uma coisa é debater, em abstrato, a racionalidade penal e seus supostos efei-
tos deletérios. Este é um debate propriamente utópico que se dá descolado de qual-
quer contexto, das opções políticas enfrentadas pelos agentes sociais reais e do signi-
ficado social que cada alternativa adquiriu no processo de luta por direitos (RODRI-
GUEZ, 2013, 2015). Esta espécie de pensamento utópico parte do pressuposto de
que seria possível escolher entre alternativas institucionais as mais variadas em abs-
trato, dispostas na forma de um “cardápio institucional” que desconsidera o enraiza-
mento social das instituições.
Coisa muito diferente é debater as estratégias regulatórias postas na mesa, ou
seja, debater a partir do ponto de vista dos atores sociais reais e suas alternativas no
contexto dos embates que enfrentam e das instituições como elas existem atualmente.
É fácil compreender por que Marx se irritava tanto com os simpáticos, mas
deletério, pensadores utópicos (MARX, Karl, 2009). Afinal, este modo de pensar não
contribui em nada para a compreensão dos dilemas da luta social real. A utopia pode
eventualmente ser útil para ampliar o repertório das alternativas pensadas em abstrato.
No entanto, ela não diz nada sobre as reais escolhas possíveis, encarnadas em um
determinado contexto de luta por direitos.
Por isso mesmo, um pensador utópico, mesmo que à revelia de suas melho-
res intenções, pode terminar por desrespeitar os agentes sociais reais. Seu modo de
pensar e agir pode dar a entender que determinado agente social não é “radical o
suficiente”, pois não consegue “pensar o impossível” passando por cima de suas ne-
cessidades e possibilidades reais.
De um ponto de vista não utópico, eu não consigo identificar razões convin-
centes para afastar a estratégia penal do problema da violência contra a mulher. Esta-
mos diante de um fato social complexo como qualquer outro, um problema que en-
volve mais mediações e nuances do que a lógica binária do direito penal é capaz de
figurar. A não ser que se imagine ser possível pensar o direito penal para além das
ideias de crime e de pena. Mas esta já seria outra discussão.4
Seja como for, defender a suposta especificidade da questão da violência
contra a mulher para afastar o direito penal de sua regulação pode resultar no efeito
indesejado e conservador de remeter o problema de volta à esfera privada, como ve-
remos adiante.

4 Pensando livremente sobre esta possibilidade, tenho dúvidas sobre sua viabilidade. Classificar como
penais mecanismos regulatórios que não incluam “crimes” e “penas” em sua lógica de funcionamento
ou que não estejam majoritariamente relacionados com estes institutos jurídicos torna a expressão
inútil ou complexa a ponto de inviabilizar a comunicação. Nesse sentido, partindo do pressuposto de
que os problemas sociais são sempre complexos e cheios de nuances, todo “reformismo penal” seria
contraproducente. A única resposta emancipatória coerente seria o abolicionismo penal.

272
Para retomar o fio da exposição, em outro momento da entrevista, Amelinha
menciona que a preocupação do movimento feminista com a esfera penal, em seu
entender, era secundária. No centro de suas preocupações estava a discussão sobre o
problema da mulher e as diversas dimensões que ele encerra; problema que não pode
ser solucionado apenas pela esfera penal. A principal demanda do movimento, ainda
segundo o relato de Amelinha, sempre foi a construção de algo parecido com a “casa
dos sonhos”, encarnada em parte, por exemplo, no projeto da Casa Eliane de Gram-
mont criada durante a Prefeitura de Luiza Erundina na Cidade de São Paulo.
Percebe-se aqui também como Amelinha pensa a luta feminista, entre outras
coisas, como uma luta por determinados modelos de juridificação, uma luta por de-
terminados modelos institucionais, por um determinado desenho do estado em sua
relação com a sociedade. Um de seus objetivos parece ser refletir sobre as instituições
e imaginar formas institucionais, “utopias” institucionais, por assim dizer, mais ade-
quadas para lidar com os problemas das mulheres.
Escrevo utopia entre aspas, pois, na verdade, este modo de pensar guarda
pouca coisa de utópico. Trata-se de encarar o “direito”, as “instituições”, o “estado”
como alguma coisa de plástico, alterável, dialógico, em disputa, passível de construção
e reconstrução e não como algo engessado, rígido, imóvel e unilateral. Nesse sentido,
“juridicizar” as relações sociais pode significar muitas coisas, pode envolver várias
estratégias de políticas públicas, vários desenhos institucionais, inclusive aquele que
venha tratar o problema de maneira adequada e que ainda precisam ser inventados.
Vai ficando claro que o “estado de direito” não se resume às delegacias de
polícia, aos tribunais, às leis e aos direitos e deveres que elas protegem. Há mais pos-
sibilidades institucionais no interior desta gramática, possibilidades que passam longe
do mundo dos crimes e das penas sem deixar de se caracterizar como instituições
formais do estado de direito. Afinal, a “casa dos sonhos”, se chegar a ser criada de
fato, deverá ser gerida por funcionários públicos sob um regime legal, fará suas con-
tratações e compras sob o regime do direito administrativo, exercerá seu afeto e sua
escuta atenta regulada por leis, regulamentos e outros tipos de norma jurídica.

Violência e gênero: o papel do Estado e seus limites

A literatura sobre a Lei Maria da Penha tem discutido de maneira recorrente as ques-
tões abordadas por Amelinha em sua entrevista. Por exemplo, na abertura de um dos
textos centrais deste campo de pesquisas, escrito por Guita Grin Debert e Maria Fi-
lomena Gregori, encontramos a seguinte reflexão sobre a juridificação:

Alguns analistas consideram que essa expansão do direito e de suas instituições


ameaça a cidadania e dissolve a cultura cívica, na medida em que tende a substi-
tuir o ideal de uma democracia de cidadãos ativos por um ordenamento de ju-
ristas que, arrogando-se a condição de depositários da ideia do justo, acabam por

273
usurpar a soberania popular. As delegacias especiais de polícia voltadas para a de-
fesa de minorias são, no entanto, fruto de reivindicações de movimentos sociais e,
por isso, podem ser vistas como exemplo que contesta tal argumentação. Elas in-
dicam antes um avanço da agenda igualitária, porque expressam uma intervenção
da esfera política capaz de traduzir em direitos os interesses de grupos sujeitos ao
estatuto de dependência pessoal. (DEBERT & GREGORI: 2007 p. 166)

De modo semelhante ao que diz Amelinha, as autoras tomam a intervenção


do Estado sobre a questão da violência como passível de disputa, não como algo
necessariamente negativo. O texto segue para afirmar logo em adiante, citando Ha-
bermas, que o “sistema de direitos pode ser atualizado democraticamente” (ob. Loc.
Cit.), ele não é, necessariamente, um instrumento para suprimir a autonomia da soci-
edade. Nesse sentido, é preciso compreender, segundo as autoras, as negociações e
disputas que ocorrem no âmbito da justiça para avaliar as possibilidades e limites do
direito, no que interessa mais de perto a elas, as delegacias de polícia e os juizados
especiais, principais órgãos do estado responsáveis por combater a violência contra a
mulher.
Débora Alves Maciel, por sua vez, avalia a campanha da Lei Maria da Penha
também no contexto de mobilização social tendo em vista a criação de direitos por
meio dos tribunais e criação de instituições estatais, especialmente penais. A autora
afirma que prevalece na literatura brasileira sobre a mobilização coletiva das normas
e instituições jurídicas a noção de “judicialização da política” que exclui a análise do
papel do direito nos processos de conflito e mobilização (MACIEL: 2011 p. 99).
Este modo de ver o problema, ainda de acordo com a autora, aqui parafra-
seando texto de Andrei Koerner, fica “circunscrito ao problema da legitimidade for-
mal do poder governamental, dos possíveis efeitos da ampliação do poder judicial
sobre a relação entre os poderes e a tensão potencial entre princípios típico-ideais de
legitimidade decisória dos sistemas democráticos, o majoritário e o judicial” (ob. Loc.
Cit.).5 Ainda de acordo com Maciel, a agenda de pesquisa construída sob a égide do
paradigma da “judicialização da política”:

... deixa à margem questões relevantes sobre o próprio processo de mobilização


dos tribunais; quando, como e por que o direito e suas instituições se convertem
em recurso e estratégia de ação política? Com qual intensidade e de que modo
os agentes elegem, no decurso das disputas, uma ou outra das diferentes esferas
do poder governamental, Judiciário, Executivo e legislativo? (ob.loc.cit)

É justamente esta agenda, a maneira pela qual o direito está sendo disputado
pelas forças sociais e administrado pelos agentes do estado, que tem ocupado boa

5Sobre este ponto, NOBRE & RODRIGUEZ (2011) afirmam que a agenda da judicialização da política
tende a naturalizar as instituições em seu estado atual, em especial a separação de poderes, assu-
mindo significado conservador.

274
parte da pesquisa empírica sobre a violência contra a mulher nos últimos anos. Lour-
des Bandeira identifica como um dos problemas centrais para a efetivação da lei Maria
da Penha a “mudança nos paradigmas disciplinares no campo jurídico de formação
universitária e profissional” (BANDEIRA: 2009, p. 424) que têm impacto sobre a
atuação dos organismos do estado.
Logo a seguir, a autora cita estudos de sua autoria que apontam para a “ide-
ologia de conciliação” do judiciário. De acordo com a autora, este poder tende a de-
volver o problema da violência contra a mulher para o âmbito privado, eximindo o
poder público de intervir sobre aquela situação, tudo em razão de uma racionalidade
“familista” que coloca em primeiro plano a necessidade de promover a harmonia fa-
miliar (idem, p. 427 e 429).
Estes mesmos problemas são abordados por Guita Grin Debert e Marcella
Beraldo de Oliveira em texto que compara a atuação das Delegacias da Mulher com
os Juizados Especiais Criminais na cidade de Campinas e incorpora os principais re-
sultados da dissertação de mestrado de Beraldo de Oliveira, citada no trabalho. O
artigo mostra como os juízes e juízas tendem a buscar conciliar o casal, muitas vezes
assumindo uma postura paternalista e moralizante que procura “corrigir” o homem e
“melhorar” a relação entre os dois.
Esta postura não toca na questão da assimetria de poder entre os gêneros e
termina por reafirmar a superioridade do homem em relação à mulher ao deixar a
situação no estado em que se encontra por meio da oferta de conselhos sobre como
conviver bem e/ou pela tentativa de promover a conciliação do casal com a aplicação
de medidas alternativas, substitutivas da sanção criminal, como a entrega de um ra-
malhete de flores para a “companheira” (DEBERT & BERALDO: 2007).
Seja como for, a literatura que trata do tema parece considerar superada a
discussão sobre a “juridificação” das relações sociais focando sua atenção sobre a
qualidade das instituições do estado e seus limites, ou seja, sobre os instrumentos
escolhidos pelo estado para lidar com o problema da violência contra a mulher e seus
efeitos práticos; sua capacidade de dar conta de todos os aspectos da questão.
Nesse sentido, Cortizo e Goyeneche, em uma breve síntese desta literatura,
mostram o perigo de simplificação que a criminalização da violência traz em seu bojo
ao deixar de lado a complexidade do fenômeno da violência; em especial, ao não se
preocupar com o trabalho psicossocial a ser realizado com os agressores e pensar a
vítima em uma posição meramente passiva e sem poder de decisão (CORTIZO &
GOYENECHE: 2010, p. 106-107).
No livro Fuga do Direito de minha autoria proponho o conceito de “modelo
de juridificação” para dar conta deste tipo de discussão (RODRIGUEZ: 2009). Com
efeito, cada modelo de juridificação implica em uma determinada maneira de conce-
ber e regular a relação entre estado e sociedade, ou seja, implica em desenhos institu-
cionais diferentes que ajudam a construir uma determinada “gramática” destinada a

275
figurar as demandas sociais pelas instituições formais.6 O direito não é algo pelo qual
a demanda social “passa”, mas se torna constitutivo dela.
Nesse sentido, a fala de Amelinha sobre a forma de acolher e ouvir as de-
mandas nas Delegacias de Polícia e na “casa dos sonhos” ilustra com clareza esta
problemática, em especial os limites do direito penal para lidar com a violência contra
a mulher. É ocioso buscar o que seja “a sociedade” “fora” dos limites do estado de
direito. Algo supostamente “espontâneo” e “puro”.
O necessário avanço da juridificação neste caso, que ajudou a tornar pública
a questão da violência, antigamente relegada à intimidade (“em briga de marido e mu-
lher ninguém põe a colher”), precisa ser discutido em função de vários modelos de
jurificação e de sua gestão democrática não de uma eventual “retração” do estado de
direito em favor de uma suposta “autonomia” dos particulares.
A exemplo do mercado capitalista, que deixado a si mesmo produz mono-
pólios e desigualdade social pela exploração extrema do trabalho; as relações afetivas,
deixadas a si mesmas, parecem produzir posições assimétricas de poder, exploração
do corpo da mulher, discriminações de gênero de naturezas as mais diversas ou, seja,
violência. Por isso mesmo, autonomia não pode significar desregulação, mas regula-
ção no sentido da emancipação.
Em suma, no que diz respeito aos problemas relacionados ao atual modelo
de juridificação adotado pelo Brasil para lidar com a violência contra a mulher, a lite-
ratura parece gravitar em torno de três questões principais. Primeiro, (1) parece haver
clareza sobre o caráter parcial do processo de juridificação que, a despeito de neces-
sário para empoderar as mulheres por tirar a questão da violência do âmbito mera-
mente privado7, deixa de lado outras formas possíveis de solucionar o conflito, even-
tualmente não estatais, mas igualmente jurídicas.
Segundo, (2) a via escolhida pela Lei Maria da Penha, o direito penal, é visto
como uma estratégia problemática que apresenta limites muito claros, como será visto
adiante.
Terceiro, (3) a literatura mostra também, como vimos acima, que os agentes
estatais têm um papel crucial na administração da justiça e na interpretação das nor-
mas e precisam ser objeto de análise específica.
Nesse sentido, Maciel afirma que a partir de 2007 se inicia um novo ciclo de
mobilização do movimento feminista. Neste ano foi criado o Observatório Nacional

6 No último capítulo do livro mencionado acima, Fuga do Direito, eu afirmo que o estado de direito
dispõe de duas gramáticas básicas para lidar com os problemas sociais: a “gramática normativa” e a
“gramática da autorregulação” ou, em uma formulação mais recente (RODRIGUEZ, 2014), a gramática
da “regulação estatal” e a gramática da “regulação social”. A primeira utiliza normas criadas pelo es-
tado para regular as condutas, normas estas que são aplicadas por tribunais e outros organismos es-
tatais. Já a gramática da autorregulação atribui a instituições não-estatais competência para criar (e
eventualmente administrar e aplicar) normas jurídicas que regulam os problemas sociais.
7 Sobre este ponto, que não vou aprofundar aqui, veja-se Femicídio: algemas (in)visíveis do público-

privado de Suely de Almeida (ALMEIDA, 1998).

276
de Implementação e Aplicação da Lei Maria da Penha que se juntou aos Planos Na-
cionais de Políticas para as Mulheres, elaborados a partir de 2004. Esta fase é carac-
terizada pela reflexão e atuação sobre o Judiciário, objeto de lobby para a aplicação
da lei. Na fase anterior o alvo central o Poder Legislativo, pois o objetivo era o de
promover a aprovação da Lei Maria da Penha (MACIEL: 2011, p. 103-104).8

Responsabilização, “familismo” e misoginia.

A reflexão sobre a atuação do judiciário e sobre a juridificação da violência


em geral se desdobra em vários aspectos. Na bela síntese de Lilia Guimarães Pougy,
um dos problemas centrais do modelo judicial e penal é o fato de que ele individualiza
uma questão estrutural, sistêmica e relacional. Ao fazer um breve estado da arte da
literatura sobre o tema, a autora mostra, citando diversos estudos sobre o assunto,
que é preciso combater a “cultura vitimista” vê a mulher isolada e fragilizada, vítima
de um ato de violência sem levar em conta a hierarquia entre os gêneros, consubstan-
ciada em diversas dimensões das relações sociais, inclusive as relações conjugais.
A autora esclarece, citando estudo clássico de Gregori sobre a “lógica da
queixa”, ao qual voltaremos adiante (GREGORI: 1993), que a opressão à mulher não
se altera apenas com intervenções voltadas à sua consciência: é preciso focar a intera-
ção entre homens e mulheres, o lugar social em que os sujeitos se encontram e as
representações que orientam suas ações (POUGY: 2010, p. 78).
No que se refere especificamente à violência no âmbito doméstico, como já
discutimos no item anterior deste texto, a individualização do conflito é particular-
mente cruel ao deixar de lado a imensa dificuldade das mulheres romperem o ciclo de
violência em razão de sua fragilidade econômica, dos laços sentimentais que as man-
tém ligadas aos seus supostos companheiros, entre outros problemas. Por estas razões,
a violência doméstica já foi comparada com as práticas de “tortura” e “terrorismo”
pelos estudiosos do assunto para dar destaque à dificuldade de romper definitiva-
mente os laços que ligam vítima e agressor (ALMEIDA: 1998).
Outro problema central do modelo de juridificação adotado pela lei Maria da
Penha adotou é sua ligação muito estreita com a proteção à família, presente já no título
da lei, que prevê medidas para combater a violência doméstica e familiar. Debert e Gre-
gori afirmam que a aprovação da lei nestes termos se explica em parte pelo fato de que
este tipo de violência, a doméstica, é aquele que gera mais indignação na sociedade.

A ideia de que a violência contra a mulher não se reduz ao espancamento de


esposas e companheiras é um princípio básico do discurso das feministas que se
manifestaram contra a criação das Delegacias de Polícia de Proteção à Mulher
ou a seu favor. Mas são essas expressões que mobilizam a maior indignação e
por isso, apesar das ênfases dos militantes de não reduzir os problemas à dimen-
são familiar, a violência doméstica aparece como uma expressão englobadora

8 Sobre este assunto, ver o texto: MACHADO, RODRIGUEZ et ali, 2012.

277
das mazelas da sociedade brasileira e passa a ser confundida e usada como sinô-
nimo de violência contra a mulher, da violência contra a criança ou ainda da
violência contra o idoso (DEBERT & GREGORI: 2008, p. 170).

Este “deslocamento semântico”, ainda de acordo com as autoras, desloca a


discussão das assimetrias de poder entre os gêneros nas mais diversas relações sociais
para o âmbito familiar com o risco de diluir a violência de gênero nas políticas de
proteção à família. A observação etnográfica do atendimento concreto às mulheres
mostra que a violência, nesse enfoque, tende a ser tratada como características de
famílias desestruturadas, carentes de educação ou tradicionais (ob. Loc. Cit.) 9.
Esta moralização do problema detectada, por exemplo, nos Juizados Espe-
ciais Criminais de Campinas, pode resultar, no limite, na frustração completa dos ob-
jetivos de combater a assimetria do poder entre gêneros na sociedade. Deste modo,
o conflito moralizado é remetido de volta ao âmbito privado:

A vítima, de sujeito de direitos é constituída em esposa ou companheira; da


mesma forma que o agressor passa a ser marido ou companheiro. O crime se
transforma em um problema social ou num déficit de caráter moral dos envol-
vidos que, na visão da justiça, pode ser facilmente corrigido através de esclare-
cimentos e nos casos mais difíceis pode ser compensando por uma pequena
pena. A lógica que orienta a conciliação nos juizados implica em uma solução
rápida, simples, informal e econômica para os casos que não deveriam estar ocu-
pando espaço no Judiciário tampouco o tempo de seus agentes (DEBERT &
BERALDO: 2007, p. 172).

Como explica Lourdes Bandeira, os crimes contra a mulher são “crimes de


poder” que implicam no “controle viril do corpo feminino” e têm como causas “a
banalização e a incorporação do uso sistemático da violência para a resolução de con-
flitos cotidianos, as diversas situações de hierarquias que permeiam as relações de
afetividade” (BANDEIRA: 2009, p. 406).

Conforme atestado pela natureza das relações interpessoais e sociais existentes,


testemunhadas nas comunidades masculinas de origem, fragmentos de depoi-
mentos colhidos em pesquisas etnográficas, ilustram os argumentos usados pe-
los agressores-assassinos e seus advogados-defensores: “matei por amor, zelo...”;
“matei porque a queria demais...”; “matei para preservá-la da maledicência

9 As autoras não investigam expressamente no texto a razão desta indignação exacerbada que parece
se dever, justamente, à aproximação entre violência contra a mulher e proteção da família; tema que
guarda forte apelo para grupos religiosos e grupos conservadores. Proteger a mulher das assimetrias
de poder “no seio da família” é um objetivo muito diferente daquele de combater o problema da vio-
lência de gênero na sociedade como um todo; esta, uma pauta que encontra mais dificuldade em ser
abraçada pela esfera pública porque inclui questões relativas a mulheres que não se beneficiam da
imagem de “mãe”; além de gays, lésbicas, transgênero, travestis e outras manifestações de gênero. A
proteção da violência contra a mulher em função da família pode ter sido uma boa estratégia política
para fazer avançar a questão no legislativo, mas de outro lado, criou o “deslocamento semântico” men-
cionado o qual, diga-se, parece ser mais político do que meramente semântico.

278
alheia...”; “matei porque estava fora de mim...”; “fiquei louco de ciúmes, não
sabia o que estava fazendo...”; “matei para defender minha honra...” (ob. Loc.
Cit.).

A valorização da família tem sido acompanhada, se acordo com Debert e


Gregori, por uma revalorização de uma suposta liberdade de escolha das mulheres.
Nesse registro, a violência se transforma em uma questão de “falta de confiança”, de
“autoestima” ou em um problema de comunicação entre o casal, que poderiam ser
resolvidas por meio do diálogo (DEBERT & GREGORI: 2007, p. 173).
Esta tendência, segundo as autoras, pode ser situada num contexto mais geral
de reflexão sobre as instituições em que os tribunais não seriam mais responsáveis
pela segurança. Nesse registro ideológico, são necessárias uma reforma moral e uma
reconstrução ética dos envolvidos na criminalidade para que as questões sejam resol-
vidas:

Isso abre espaço para um amplo espectro de técnicas psicológicas recicladas em


programas para governas os excluídos, que atuam com os juízes de modo a apri-
morar a aplicação de mecanismos de mediação de conflitos. Neles, o pressu-
posto da escolha ética é central, a relação que o indivíduo estabelece consigo
mesmo é o alvo dos profissionais e o trabalho a ser feito em associação com os
diferentes especialistas é o de preparação dos indivíduos para se tornarem livres
(DEBERT & GREGORI: 2007, p. 175).

Tal estado de coisas levaram Debert e Gregori a se perguntarem se o pensa-


mento penal crítico não seria majoritariamente misógino, citando como evidência
disto estudo de Carmen Hein de Campos sobre o assunto (CAMPOS: 2007).10 Afinal,
a condenação da criminalização da violência contra a mulher, tout court, sem uma al-
ternativa clara que não promova sua desregulação e sua privatização, poderia ter como
efeito, no momento atual, devolver o problema definitivamente à esfera privada. O
pensamento utópico antipenal, neste caso, pode ter claros efeitos conservadores.
De fato, talvez seja este um dos problemas ao qual o poder simbólico da
categoria “crime” tenha prestado melhores serviços à emancipação da mulher, a des-
peito das críticas que se possa fazer ao excesso de criminalização dos fatos sociais

10Este questionamento poderia ser estendido para outros setores do direito, diga-se, em especial para
o direito de família e o direito do trabalho, para citar apenas dois exemplos. Por exemplo, uma pes-
quisa de 2008 mostrou que os Tribunais trabalhistas praticamente não examinavam nenhum caso de
discriminação contra as mulheres ou assédio sexual. Certamente isso não se devia (os dados foram
colhidos em 2008) à inexistência de fatos que pudessem ser enquadrados desta forma na legislação,
mas a obstáculos a sua identificação e processamento pelo direito do trabalho. A pesquisa levanta a
hipótese, tendo em vista a legislação espanhola, que a criação de comitês internos nas empresas para
receber denúncias de discriminação poderia funcionar para relativizar a hierarquia que marca as re-
lações de trabalho, hierarquia esta que, combinada com a possibilidade de demissão sem justificativa
presente em nossa legislação, dificulta a qualquer pessoa propor uma ação judicial no curso da relação
de emprego (RODRIGUEZ & NOBRE, 2009).

279
como um todo; e da necessidade de construir outros instrumentos para lidar com a
questão para além do aparato criminal.
Por exemplo, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo lamenta que a lei Maria da
Penha tenha acabado com a possibilidade de conciliação entre as partes, oportunidade
em que poderiam discutir seu conflito e serem informadas sobre as consequências de
seus atos. Azevedo critica a defesa sem reflexão da detenção dos agressores a qual,
segundo ele, tem pouca eficácia em resolver o problema, além de estigmatizar o agres-
sor.
Na opinião do autor, a melhor forma de combater a violência seriam as me-
didas não penais previstas pela Lei Maria da Penha, que incluem a criação de Centros
de Referência com atendimento multidisciplinar (AZEVEDO: 2008, p. 127-130). Ou
seja, a melhor solução seria pensar na juridificação para além do direito penal sem, no
entanto, acrescentaria eu, correr o risco de devolver a questão ao mundo privado, ou
seja, ao domínio da assimetria de poder entre os gêneros.
Não fica claro, ao menos para mim, porque Azevedo não poderia admitir a
hipótese de que o sistema penal funcionasse ao lado de outros mecanismos de aco-
lhimento, ao lado de outro tipo de instituição, cuja lógica não fosse aquela dos crimes
e das penas. Novamente, a crítica ao penal sem uma alternativa institucional real pode
provocar efeitos conservadores. O inimigo maior aqui parece ser não o direito penal,
mas o pensamento utópico.

Uma “utopia” feita de papel?

Com efeito, quanto a esse ponto, a literatura ressalta a importância de se


tratar a violência como problema relacional, estrutural, complexo. Menciona-se a ne-
cessidade de construir mecanismos adequados para lidar com suas várias dimensões,
em especial, a assimetria de poder entre os gêneros. No entanto, neste ponto os textos
e a fala de Amelinha tornam-se imprecisos e vagos. Não há clareza sobre que medidas
seriam as mais adequadas para lidar com a violência de gênero, não há alternativas
claras postas na mesa para além da alternativa penal vigente.
Tal estado de coisas parece estar provocando outro deslocamento político-
semântico de consequências negativas sobre a disciplina do problema: a identificação
do direito, da gramática do estado de direito, com a gramática dos crimes e das penas;
a gramática das leis, dos tribunais, das delegacias, dos juízes, dos advogados, promo-
tores e de uma narrativa que busca de um “responsável” individual que deve sofrer
consequências jurídicas negativas.
Nesse sentido, o desafio parece ser agora institucionalizar os organismos e
as políticas mencionadas pela Lei Maria da Penha, ou seja, criar e manter em funcio-
namento mecanismos que permitam construir, em função de sua estrutura, inclusive
de sua configuração física, outras narrativas sobre a violência de gênero. É disso que

280
trata a lei a afirmar que os Centros de Referência devam oferecer um “atendimento
multidisciplinar” capazes de acolher e constituir outras narrativas dos problemas que
irão enfrentar.11
Afinal, como observou Amelinha, a mulher precisa “ir lá na frente” em uma
Delegacia, porque o que importa neste caso são as informações sobre o crime, o nome
do agressor e as circunstâncias do fato supostamente criminoso. Para os fins do di-
reito criminal, ficam abstraídas as questões relativas às emoções da vítima, suas difi-
culdades para romper o ciclo de violência e ter coragem para ir até a delegacia. O
direito penal não foi construído para lidar com estes problemas. O corpo da vítima e
suas circunstâncias são menos importantes do que aquilo ela irá dizer, do que a notícia
do crime. E para este objetivo, um balcão “lá na frente” é mais do que adequado. Em
suma, ficar apenas com o direito penal parece ser insuficiente, mas renunciar ao
mesmo pode ter efeitos conservadores.
Seja como for, Cortizo & Goyeneche mostram que tais instituições e políti-
cas previstas pela lei ainda não foram criadas ou estão sendo criadas de forma desigual
ao redor do país (CORTIZO & GOYENECHE; 2010, p. 108). A lei exige que os
Centros de Referência sejam:

... espaços de acolhimento/atendimento psicológico, social, orientação e enca-


minhamento jurídico à mulher em situação de violência, que proporcione o aten-
dimento e o acolhimento necessários à superação da situação de violência ocor-
rida, contribuindo para o fortalecimento da mulher e o resgate da sua cidadania.

... devem exercer o papel de articulador das instituições e serviços governamen-


tais e não governamentais que integram a Rede de Atendimento, [...]

... devem prestar acolhimento permanente às mulheres que necessitem de aten-


dimento, monitorando e acompanhando as ações [...] (BRASIL, 2006, p.15).

O atendimento multidisciplinar deve “ser integrado por profissionais espe-


cializados nas áreas psicossocial, jurídica e de saúde” (BRASIL, 2006, Art. 29 e 60) e:

... fornecer subsídios por escrito ao Juiz, ao Ministério Público e à Defensoria


Pública, mediante laudos ou verbalmente em audiência, e desenvolver trabalhos

11 A tentativa politicamente equivocada de Foucault de valorizar a “justiça popular” em seu debate


com os maoístas parece-me motivada por boas razões: encontrar um modelo de jurisdição cuja nar-
rativa não seja individualizante e culpabilizadora (FOUCAULT: 1979). Em seu texto sobre o “hate spe-
ech”, Judith Butler toca no mesmo problema ao mostrar como a individualização do racismo pelas
decisões judiciais pode levar a resultados pouco adequados tocar no que a questão tem de mais es-
sencial (BUTLER: 1997). Robert Cover explorou as características da narrativa tradicional do direito
em textos geniais, mas ainda pouco lidos ao redor do mundo (COVER: 1995). O livro recente de Luc
Boltanski, mais do que um estudo sobre os romances policiais (BOLTANSKI, 2012), aborda o momento
histórico que deu centralidade a uma forma narrativa que caracteriza o direito penal contemporâneo
e influencia o desenho das instituições jurídicas em vários campos, como mostra Klaus Günther; em
texto crucial para compreender o direito contemporâneo (GÜNTHER: 2002).

281
de orientação, encaminhamento, prevenção e outras medidas, voltadas para a
ofendida, o agressor e os familiares, com especial atenção às crianças e aos ado-
lescentes.

Com efeito, a formulação genérica e abstrata do que devam ser os Centros


de Referência no texto da lei Maria da Penha parece estar à altura da utopia instituci-
onal; a “casa dos sonhos” imaginada por Amelinha Telles. Resta saber se a implanta-
ção destes organismos e as políticas levadas adiante por eles ficarão relegada apenas à
letra da lei.
Mas para que isso seja possível, diante dos obstáculos a que este texto faz
menção, parece ser necessária uma mobilização política com força renovada para que
sejam destinados recursos do estado para tal fim, ou seja, para que o combate à vio-
lência deixe de ser sinônimo de punir os agressores pela via penal.
A realização deste objetivo exige que se desvincule “criminalização” e “juri-
dificação” no debate público, abrindo um espaço maior para demandas dirigidas à
efetivação da lei diferentes de sua dimensão criminal. Novamente, o texto de Debert
e Gregori dá conta do problema ao propor a diferenciação clara, no contexto dos
embates contemporâneos, entre “violência” e “crime” (DEBERT & GREGORI:
2007, p. 176); diferenciação esta que parece estar ainda distante em uma esfera pública
dominada por demandas pela criminalização dos mais diversos problemas sociais
(AZEVEDO:2008).
No caso específico da violência contra a mulher, tal diferenciação é ainda
mais importante. Afinal, parece evidente que existe uma afinidade eletiva entre o dis-
curso da vitimização e a forma direito penal. E tal afinidade parece ter funcionado, a
par da indignação da esfera pública, mencionada por Debert e Gregori, como fator
importante no processo de aprovação da lei Maria da Penha pelo Congresso Nacional.
Pois se é verdade que a lei foi capaz de empoderar as mulheres ao tornar
público um problema privado, ela o fez utilizando um modelo de juridificação que
resulta em uma narrativa que individualiza o problema da violência e favorece o dis-
curso da vitimização, ao colocar o homem no papel de “agressor”, criminoso, e a
mulher na condição de “vítima”, ré, sem tocar as estruturas reproduzem a dissimetria
de poder que caracteriza as relações de gênero.12
Em seu estudo sobre o fracasso do SOS Mulher, serviço criado por militan-
tes feministas na década de 80, “Cenas e Queixas”, Maria Filomena Gregori deixa
claro, em primeiro lugar, para lembrar a discussão acima sobre juridificação, que a
criação de uma instituição em bases espontâneas, anárquicas e voluntaristas, com um

12O debate sobre a possibilidade ou não de responsabilizar penalmente ou não as pessoas jurídicas é
uma ilustração muito clara da “forma direito criminal”. O problema aqui é a dificuldade de se encon-
trar um indivíduo “culpado” por uma eventual ação criminosa de uma determinada pessoa jurídica. A
dificuldade se deve ao fato de que uma empresa, sociedade etc. pode ter um processo decisório que
envolva muitas pessoas, muitas instâncias, muitas fases, muitos atos encadeados e interdependentes.
Para este problema, ver: MACHADO: 2009.

282
espírito profundamente “anti-institucional” e que nunca se voltou para o estado com o
objetivo de buscar apoio para sua continuidade, produziu resultados constrangedores.
Gregori mostra como a atuação do SOS Mulher foi marcada pela profunda
incompreensão das militantes sobre a realidade das mulheres atendidas, todas de
classe social mais baixa13, além de uma falta de reflexão sofisticada sobre a dinâmica
complexa e cheia de nuances de uma relação conjugal violenta, analisada na segunda
parte do livro (GREGORI: 1991).
De acordo com Gregori, as militantes acreditavam que a mudança seria re-
sultado da conscientização das mulheres exclusivamente por meio do discurso; e que
era necessário evitar toda e qualquer forma de hierarquia e de limitação à atuação livre
de cada uma das pessoas envolvidas na atividade. A atuação do SOS partia do pres-
suposto de que havia uma experiência feminina universal que poderia ser despertada
por meio do discurso; de uma conversa esclarecida que tinha como finalidade cons-
cientizar as mulheres de sua condição de opressão.
Como resultado dessa postura, as mulheres atendidas nunca passavam da
primeira visita ao SOS mulher, não havia padronização no atendimento, as fichas de
atendimento eram incompletas e nunca foram catalogadas, cada militante dizia o que
queria no limite de seu conhecimento, os casos não eram debatidos coletivamente,
entre outros procedimentos de eficácia duvidosa (GREGORI: 1991).
Nesse sentido, é significativo que o SOS Mulher tenha fechado suas portas
em uma reunião que culminou com uma fala que acusa as mulheres atendidas de não
serem feministas, de irem até o SOS enviadas por deputados de direita e por agirem
como verdadeiras cúmplices de seus agressores (GREGORI: 1992, p. 116-118). Esta
fala, para mim, paradoxalmente, parece retratar as militantes como verdadeiras vítimas
da falta de compreensão ideológica das mulheres que elas pretendiam ajudar a mudar
de vida.
Além disso, e esse é o ponto que nos interessa mais de perto agora, a leitura
do livro de Gregori parece deixar claro, que o discurso vitimizador tem uma afinidade
clara com a forma narrativa que caracteriza o direito penal, ou seja, com a forma
narrativa jurisdição tradicional. A autora não afirma tal coisa em seu livro, mas após
ler a análise das entrevistas feitas por ela com diversas mulheres agredidas, fica evi-
dente que a penalização parece ter sido a resposta institucional mais adequada para a
demanda de uma política pública que vê a questão da violência a partir das figuras da
“vítima” e do “agressor”.
Ademais, ao ser consagrado na forma de uma lei que foi alçada à posição de
emblema pelo movimento feminista contemporâneo, o discurso penal passa a ser rei-
terado e revestido do poder simbólico que o estado de direito tem o condão de con-

13Gregori não cita este texto, mas parecem ser relevantes para esta questão as análises de SARTI,
2012.

283
ferir a tudo aquilo é transformado em lei e em decisão judicial. As categorias de “ví-
tima” e “agressor” passam a ser, cada vez mais, reforçadas em sua legitimidade pe-
rante a esfera pública14, o que torna cada vez mais difícil a separação política e con-
ceitual entre “crime” e “violência”.
Esta indistinção pode explicar em parte a falta de clareza da literatura que
estudamos a institucionalização dos organismos não penais previstos na lei Maria da
Penha. Apesar de estes textos discutirem os limites da forma penal, o debate na esfera
pública e as políticas públicas do estado brasileiro parecem estar ainda dominadas pela
dimensão penal da lei. Desfazer esta situação parece exigir, para pensar com Débora
Alves Maciel, uma nova fase de mobilização pela efetivação da lei Maria da Penha por
parte dos movimentos sociais. Afinal, os movimentos das categorias no discurso; os
deslizamentos semânticos mencionados por este texto, não podem ser apartados do
movimento das lutas sociais.
No entanto, é preciso ressaltar que as análises de Gregori também nos levam
a desconfiar que a efetivação do aparato não penal da lei Maria da Penha pode não
ser suficiente para superar a visão da violência contra a mulher como uma relação
entre agressor e vítima. No SOS Mulher o atendimento se propunha a escapar da
lógica penal, no entanto, não deixava de lado a ideologia da vitimização, a qual foi em
grande parte responsável, como mostrou Gregori, pelo fracasso da iniciativa.
A Tese de Doutorado de Jullyane Brasilino “Portas de Entrada para a Saída
do Inferno” estudou recentemente a rede de serviços de atendimento à mulher em
situação de violência oferecidos pelo Município de São Paulo. O trabalho mostra que
os serviços da rede, a despeito de serem poucos e de funcionarem de maneira precária,
de fato, parecem fugir da lógica da vitimização. É muito presente a utilização do con-
ceito de “ciclo da violência” para caracterizar a situação da mulher, conceito este que
aponta para a necessidade de encontrar alternativas para que as mulheres sejam capa-
zes de deixar a situação de violência em que se encontram de maneira autônoma
(BRASILINO, 2014: 95).
Por exemplo, no NUDEM, mantido pela Defensoria Pública do Estado de
São Paulo, a estratégia relatada pela autora inclui não pressionar as mulheres a denun-
ciarem a violência à polícia, respeitando-se o tempo de cada uma em compreender
sua situação e as diversas maneiras de lidar com ela. Na Casa Elaine de Grammont, a
nomenclatura utilizada “mulher em situação de violência” e não “vítima de violência”,
já indica o tipo de ação de que pretende realizar ali (BRASILINO, 2014: 127).

14Sobre o papel do direito na naturalização de categorias, ver BROWN: 2002. Para uma discussão so-
bre o papel do estado como centro de legitimação de discursos; sobre os perigos de abuso desta ins-
tância legitimadora e os problemas que a relação com o estado pode trazer para a ação dos movimen-
tos sociais, ver BUTLER: 2003. Os dois textos fazem parte da coletânea BROWN & HALLEY: 2002, de-
dicada à reflexão sobre a relação entre os movimentos sociais e o direito, em especial o movimento
feminista, no contexto norte-americano.

284
Parece realmente haver, ao menos no Município de São Paulo, um potencial
para criar serviços que superem a lógica agressor-vítima e funcionem em paralelo ao
sistema penal para atuar com foco nas mulheres tendo como alvo a superação da
situação de violência e não a mera punição do agressor. Tal fato indica que uma pos-
sível mobilização política em torno da implementação efetiva da parte não penal da
lei Maria da Penha poderia, de fato, contribuir para a superação da juridificação com-
preendida como criminalização da violência contra a mulher.
Há práticas inovadoras inscritas na realidade que poderiam ser ampliadas e
generalizadas caso o movimento feminista fosse capaz de canalizar sua força para este
alvo. Não estamos diante de possibilidades institucionais utópicas, mas de tendências
de desenvolvimento institucional reais, inscritas nas práticas sociais atuais.

* * *

Para além dos limites deste texto, que procurou tratar dos dilemas instituci-
onais presentes na literatura sobre a violência contra a mulher, em especial sobre a lei
Maria da Penha, há outras questões jurídico-políticas relacionadas ao tema que se in-
sinuam em nesta análise. Por exemplo, no universo dos textos examinados, aqui, a
discussão sobre a distinção entre violência contra a mulher e violência de gênero, da
qual a violência contra a mulher seria uma das expressões (SAFFIOTIS,2004) parece
não ocupar o centro do palco.
A começar pela fala de Maria Amália Telles, o debate sobre violência contra a mulher
parece se limitar, de fato, ao gênero “mulher” e, desta maneira, contribuir para reiterar
a importância da esfera da família e da figura da mãe no debate sobre a violência
doméstica. A ausência de uma crítica mais radical ao conceito de família no Brasil de
hoje (lembremos dos textos presentes em CANEVACCI, 1981), um conceito que foi
central até mesmo para o julgamento pelo STF da possibilidade de união entre pessoas
do mesmo sexo, parece ser uma lacuna importante na literatura que examinamos aqui.
O problema da distinção entre violência de gênero e violência contra a mu-
lher também aparece com força nas controvérsias sobre a possibilidade de utilizar a
Lei Maria da Penha para combater a violência direcionada a homens e a pessoas que
expressam seu gênero de maneiras diferentes da mulher.
Trata-se de saber, neste caso, se este diploma legal e suas instituições devem
ou não ser utilizados para proteger a violência em razão de gênero em geral, seja ela
qual for. Não há espaço aqui para tratar deste tema, que ainda não foi tratado de
maneira organizada em uma análise científica que reunisse os casos judiciais sobre o
assunto, os comentários da doutrina jurídica e as diversas posições que agentes sociais
variados expressam na esfera pública, em especial no interior do movimento feminista.

285
Capítulo 13 – As Duas Gramáticas do Direito Ocidental

Introdução: a gramática das regras e os seus limites

O direito é costuma ser estudado principalmente a partir da gramática de regras,


ou seja, das proposições que regulam comportamentos descritos em abstrato e ligam
a eles consequências jurídicas positivas ou negativas, respectivamente, prêmios e pu-
nições. É também a partir desta gramática que se costuma criticar o direito como uma
gramática que padroniza e normaliza comportamentos com a finalidade promover a
dominação de organismos de poder marcados por tendências burocratizantes sobre
a espontaneidade das interações sociais.
Ao descrever um comportamento em abstrato, ou seja, ao criar um padrão
para regular os conflitos sociais, o direito estaria utilizando uma gramática excludente
de tudo o que há de irrepetível e de singular no mundo social. Neste registro, muito
caro a representantes de posições críticas inspiradas em Nietzsche, o direito seria, por
excelência, a linguagem de um poder burocrático. Puramente instrumental, o direito
estaria interessado apenas em normalizar e excluir tudo que há de disfuncional, de
inusitado, de novo e de revolucionário na vida social. De acordo com a mesma raci-
onalidade, a função do juiz e do poder institucionalizado em geral seria subsumir ca-
sos concretos em normas abstratas de acordo com uma racionalidade tecnocrática
mais preocupada com a padronização do que com a singularidade dos indivíduos e
dos acontecimentos (FOUCAULT, 2004; DELLEUZE & GUATTARI, 2010).
Em sua análise da argumentação jurisdicional, Klaus Günther mostrou, ainda
que sem ter este foco argumentativo, o equívoco deste diagnóstico sobre a gramática
das regras. A especificidade da racionalidade jurisdicional segundo Günther é a do
caso e não a da norma abstrata pois esta é incapaz de antecipar e dar conta de todos os
casos concretos futuros (GÜNTHER, 2004). O juiz tem o dever de justificar sua deci-
são descrevendo o caso da maneira mais completa possível, tendo como limite o prazo
definido para que profira sua sentença. Seu trabalho deve procurar adequar o caso à
norma e não ignorar as especificidades do caso em nome de um padrão abstrato e rígido.
Além disso, a padronização não é um ato arbitrário. A criação de normas de
comportamentos conta com a participação dos cidadãos, ao menos nos estados de-
mocráticos, tanto os eleitores no Parlamento quanto as partes em um processo judi-

287
cial, as quais podem aproveitar diversas oportunidades para debater e questionar to-
dos os passos do procedimento de adequação do caso à norma, um processo que
resultará na criação de uma norma individual destinada a regular o seu caso específico
ou, em decisões de Tribunais, eventualmente, a criação de uma decisão que servirá de
padrão para decisões futuras. A criação de categorias abstratas resulta, portanto, de
um procedimento de produção normativa aberto à sociedade e não insulado em al-
gum órgão de estado.
Podemos sempre criticar o grau de abertura deste procedimento e propor
novos desenhos para a participação dos interessados nos casos concretos e em deci-
sões paradigmáticas sem, no entanto, apresentar este processo como se ele fosse uma
decisão autárquica. Com efeito, em um estado de direito em funcionamento, o cida-
dão só será submetido a regras de cuja formulação ele tenha participado (ROUSSEAU,
2011). Além disso, quando estiver envolvido em um caso concreto submetido ao po-
der judiciário, terá direito a um julgamento que se preocupará com a singularidade de
seu caso e não será objeto de uma racionalidade burocrática e padronizada, contribu-
indo para o mesmo com a oferta de argumentos a serem considerados pelo órgão de
poder (RODRIGUEZ, 2002). Fica claro, portanto, que a gramática de regras não é,
por definição, tecnocrática, normalizadora e exercitada de cima para baixo.
A despeito dessa discussão, há críticas recentes à gramática de regras, consi-
derada inadequada, em vários casos, para lidar com uma série de conflitos sociais. Por
exemplo, nos conflitos em família e naqueles ocorridos na escola, considera-se que a
utilização da gramática de regras pode destruir os laços sociais ao invés de restaurá-
los. Seria mais adequado, sugerem alguns autores, utilizar mecanismos jurídicos que
obtivesse soluções que levassem aquele grupo social a discutir e reafirmar seus laços
e não iniciar um processo em que vítimas acusam agressores com o fim de fazer com
que um terceiro, o juiz, imponha a eles uma determinada punição (BRAITHWAITE,
1999; BRAITHWAITE, 2002).
Além disso, há vários estudos que mostram como a regulação tem sido fra-
gmentada tematicamente com a criação de organismos que criam regras de forma
independente dos centros de poder soberano tradicionais (TEUBNER, 2003; TEUB-
NER-FISCHER-LESCANO, 2004). Este processo inclui o âmbito interno aos esta-
dos com a criação de agências reguladoras, conselhos com participação da sociedade
civil e outros mecanismos de participação e controle social de uma série de políticas
públicas. Além disso, há uma grande discussão sobre formas de criação de poder local
por meio de instituições que, assim como as citadas acima, não se encaixam no mo-
delo tradicional da separação de poderes (MATTOS, 2006; COELHO & NOBRE,
2004). Todos estes fenômenos apontam, em certo sentido, para o esgotamento ou
ao menos para a relativização desta gramática na regulação dos conflitos sociais.
De outro lado, mesmo que examinemos a gramática de regras em si mesma,
ela tem mostrado os seus limites como forma de lidar com os conflitos sociais. Os

288
debates no campo da teoria do direito ao longo do século passado apontaram que não
é mais possível pensar a solução dos casos concretos tendo a racionalidade lógico-
formal como modelo (ALEXY, 2001). Tem ficado claro que os juízes têm papel cen-
tral no estabelecimento de exceções a normas gerais, como mostrou com clareza a o
debate entre Hart e Fuller (HART, 1958. FULLER, 1958), indo muito além da mera
aplicação do texto da norma ao caso concreto. Casos novos e inesperados levam os
juízes a deixarem de aplicar determinadas normas em certos casos concretos, especi-
almente aqueles em que as consequências de fazer diferente seriam absurdas ou evi-
dentemente injustas (KENNEDY, 1973), fenômeno que motivou, por exemplo,
Klaus Günther a descrever a racionalidade jurídica como um procedimento que deve
ser marcado pelo senso de adequação do caso à norma. Um exemplo simples: “São pro-
ibidos animais neste recinto”, inclusive o cão-guia de um deficiente visual?
Diante de normas abertas que se utilizam de termos como “boa-fé”, “con-
corrência desleal”, “bons costumes”, “onerosidade excessiva”, a atividade criativa dos
juízes fica mais evidente e mais intensa. Nestes casos, a solução do caso implica em
conferir sentido ao termo aberto com fundamento em uma avaliação relativamente
indeterminada por parte do juiz. Tal avaliação pode ser orientada por casos anteriores
ou não, mas de qualquer forma, ela não resulta de um raciocínio lógico-formal, de um
juízo mecânico de mera aplicação da norma ao caso. Mais do que isso, ela ocorre em
um órgão que, de acordo com a separação de poderes clássica, não tem uma relação
política direta com a sociedade.
Tanto nos casos em que o juiz faz exceção a normas gerais, quanto nos casos
em que ele dá sentido a um termo aberto, é necessário justificar seu procedimento, se
possível, com base em fontes de direito reconhecidas pelo ordenamento jurídico em
que ele opera. O juiz pode apelar para a finalidade do texto legal, para um argumento
de razoabilidade, para um princípio de direito, entre outros fundamentos, mas não
pode decidir de maneira puramente arbitrária. E as razões invocadas para excepcionar
a norma geral ou para dar sentido a um termo aberto, fazem parte de um processo
instituinte que tende a resultar na formação de uma outra regra geral.
Por exemplo, pode-se estabilizar a interpretação, para ficar no exemplo ci-
tado acima, afirmando que os cães-guia podem entrar em recintos fechados, pois de
outro modo, estariam sendo violados os direitos de ir e vir dos portadores de defici-
ência visual, que são de hierarquia superior. Outro argumento possível é dizer que a
finalidade desta norma específica é zelar pela paz e pela segurança das pessoas: os
cães-guia, por serem altamente treinados, não provocam distúrbios e são incapazes
de ameaçar quem quer que seja. Seja qual for o argumento que se estabilize neste caso,
uma nova norma geral vai sendo formada pela via jurisprudencial. Por esta razão,
pode-se dizer que os casos o poder de redesenhar por dentro o ordenamento jurídico
e, consequentemente, alterar os protocolos interpretativos da dogmática jurídica, cri-
ando critérios para estabelecer exceções e critérios para atribuir sentido a termos abertos.

289
Considero que tal atividade instituinte do poder judiciário marca um limite
histórico para a centralidade da gramática de regras. Os debates hoje clássicos entre
Hart e Dworkin (SHAPIRO, 2007), e Hart e Fuller, bem como a discussão da mate-
rialização do direito por Max Weber retomada, em outro contexto, pelo Franz Neu-
mann de The Rule of Law (NEUMANN, 2013), são todos epifenômenos desta mesma
questão. Em outros autores, o problema é formulado com a crise da lei como estra-
tégia regulatória, tema comum a todos os países da tradição romano-germânica.
Como já visto, em determinado momento, começa a ficar claro, em especial diante
do fenômeno das cláusulas gerais, que a pessoa dos juízes tem um papel central na
criação normativa, o que embaralha as fronteiras entre Poder Legislativo e Poder Ju-
diciário, colocando em questão a concepção clássica de separação de poderes e a au-
todescrição do Judiciário como organismo que se limita a aplicar as leis produzidas
pelo Parlamento (RODRIGUEZ, 2010a).
Diante deste fato, é preciso reformular a justificação da função do juiz e do
poder judiciário, inclusive da racionalidade de sua atuação institucional e repensar a
função do Parlamento e da lei na produção do direito. No limite, pode-se mesmo
questionar se a pessoa juíza individual e o Judiciário como um todo seria o órgão mais
adequado para levar adiante esta atividade de criação normativa. Ainda, se este órgão
poderia ou deveria ser modificado para que este processo de criação normativa fosse
mais aberto e socialmente responsivo, com a adoção de mecanismos de participação
que corrijam um eventual déficit de legitimidade de um organismo criado para aplicar
normas o qual, nos tempos atuais, cada vez mais, cria normas jurídicas abstratas e gerais.
Esta discussão, como já dito, tem impacto também sobre a concepção da
racionalidade jurisdicional. A visão tradicional vê o direito como um campo técnico
em que a aplicação das regras é uma operação especializada que busca obter uma
única resposta correta. A relativização da gramática de regras pela discussão sobre as
exceções às normas gerais e sobre as normas abertas faz com que fique difícil reduzir
a racionalidade jurisdicional e a dogmática a um campo dominado por raciocínios
lógico-formais. As teorias da racionalidade jurisdicional têm sido reformuladas e,
mesmo quando se apresentam como formalistas, não reduzem o direito à mera sub-
sunção do caso à norma.
Nesse sentido, pode-se discutir se o processo de formação dos critérios para
excepcionar normas gerais ou para dar sentido a termos abertos deve ficar fechado
em um poder judiciário concebido em bases tecnocráticas ou se é interessante abrir
espaço para a participação da sociedade, por exemplo, por meio de jurados constitu-
cionais, nomeação de juízes vindos da sociedade ou outros mecanismos de participa-
ção no processo como o oferecimento de amicus curiae, a realização de audiência pú-
blicas, entre outros mecanismos, como já discutido neste livro.
Na mesma linha, uma dogmática jurídica pensada para um contexto como
este será mais aberta e mais permeada por escolhas entre alternativas, o que, por si só,

290
não é capaz de lhe tirar o caráter técnico (RODRIGUEZ, 2012). Afinal, como a me-
dicina, ao menos na visão de alguns estudiosos do tema, o direito comporta embates
entre posições diferentes, todas igualmente técnicas, informadas por conhecimentos
científicos. Diante de casos complexos, é comum que as instituições médicas formem
juntas para promover o debate entre especialistas sobre qual seria o melhor caminho
a se tomar.
Pensar a racionalidade jurídica nestes termos implica a torná-la mais aberta
ao debate da esfera pública, retirando seu caráter de técnica impermeável ao debate
democrático (RODRIGUEZ, 2012). Novamente, o paralelo com a medicina ajuda a
compreender o que estamos dizendo. Há uma demanda cada vez maior dos pacientes
por informações sobre as escolhas realizadas pelos médicos, as quais, como explicam
diversos autores, não estão completamente determinadas pelos conhecimentos da ci-
ência, mas dependem muito da interpretação do caso.
A medicina, como o direito, parece ser razoável dizer, faz parte do campo da
razão prática e implica em escolhas relativamente indeterminadas que podem ser jus-
tificadas de forma razoável, mas não se revelam como a única solução possível para
uma determinada situação (MONTGOMERY, 2005; BENSEÑOR & ATTA &
MARTINS, 2002). Por isso mesmo, e cada vez mais, juristas e médicos são pressio-
nados a justificar publicamente suas escolhas e discutidas com os pacientes e os cida-
dãos que não estão mais dispostos a aceitar seus veredictos apenas em nome da con-
fiança abstrata em sua capacidade técnica.
A necessidade de justificar as decisões e mesmo de abrir este processo para
a sociedade pode evitar a formação do que zonas de autarquia (RODRIGUEZ, 2018)
no interior do estado de direito. Em tais zonas, decisões são tomadas de forma insu-
lada e não transparente sob a alegação de que se está diante de um assunto técnico
que deveria ser objeto de um debate de especialistas, o qual seria falseado pelo debate
público. É evidente que a sociedade pode decidir que determinados assuntos serão
decididos desta forma. No entanto, para que não se forme uma zona de autarquia
apartada desta mesma sociedade, a decisão sobre quais assuntos serão submetidos a
este tipo de procedimento precisa resultar do debate político, ou seja, precisa ser jus-
tificada e aceita perante a esfera pública antes de se tornar norma jurídica.

Gramática da regulação social e estado de direito

Posta no contexto da análise da gramática do estado de direito realizada por


Jürgen Habermas em Direito e Democracia, a teoria de Klaus Günther completa a análise
do papel emancipatório do direito (HABERMAS, 1991; GÜNTHER, 2004), capaz
de transmitir os influxos do mundo da vida para as instituições de caráter sistêmico,
que passam a encontrar obstáculos para avançar sobre a sociabilidade, que se desen-
rola para além da lógica do dinheiro e da administração. Afinal, diante de um estado

291
de direito em funcionamento, as fronteiras mesmas entre sistema e mundo da vida
passam a ser objeto de deliberação pública.
No entanto, a gramática de regras, que é conforme o desenho clássico do
estado de direito e da regulação internacional, vem sendo profundamente transfor-
mada e posta em questão nos últimos anos. Tal mudança histórica, a depender de
como se interprete Direito e Democracia, pode vir a conferir à teoria crítica um caráter
exclusivamente defensivo. Afinal, o livro mostra como o estado de direito em suas
feições clássicas, ou seja, desenhado nacionalmente conforme a separação de poderes
tradicional; assume funções emancipatórias ao limitar o avanço do agir instrumental
e transmitir os influxos do mundo da vida para o sistema. No entanto, ao fazer isso,
o livro corre o risco de naturalizar tal gramática e atribuir à Teoria Crítica a tarefa de
preservá-la, refletindo apenas no interior da gramática de regras, ou seja, sem pensar
em alternativas a este modo de pensar o direito ocidental (SCHEUERMANN, 2014).
O objetivo deste texto é oferecer uma alternativa para este impasse, ou seja,
pensar Direito e Democracia como momento parcial de uma teoria da institucionalização
democrática que seja capaz de identificar, a partir de uma gramática institucional pro-
funda, a que chamarei de forma direito (RODRIGUEZ, 2009a) critérios para a inovação
institucional para além do modelo estatal tradicional, ou seja, para além da gramática
de regras. O critério para avaliar normativamente tais formas institucionais que, como
veremos, já estão sendo criadas de fato, é a radicalização da democracia, processo que
tem como motor o surgimento e a incorporação constante de novas demandas sociais
às instituições formais.
Para superar esta postura institucional defensiva é preciso constatar que a
análise de Habermas é parcial, pois não abarca todas as gramáticas do direito ocidental
já em funcionamento e, por isso mesmo, deixa obscurecidas possibilidades emanci-
patórias já presentes no direito contemporâneo. Habermas faz uma descrição precisa
da forma direito, a sua gramática mais profunda, que consiste na alegada co-origina-
riedade de soberania popular e diretos humanos, uma gramática afasta a possibilidade
de decisões arbitrárias e permite que o mundo da vida dirija suas demandas para as
instituições formais. Tal análise, a meu ver, dá conta da gramática de regras em sua
gestão pelo Poder Judiciário, especialmente após as correções e desenvolvimentos
propostos por Klaus Günther. No entanto, deixa completamente de lado o que vou
chamar de gramática de regulação social.
Além da gramática de regras, o direito ocidental se caracteriza pela gramática
de regulação social que deve ser considerada como parte do estado de direito, que se
expressa com mais força no campo do direito privado, em especial, no campo dos
contratos. De acordo com tal gramática, o poder soberano reconhece o caráter jurí-
dico das normas produzidas autonomamente pela sociedade, mas dentro de certos
limites, ou seja, desde que cumpram certos requisitos ou procedimentos em sua pro-
dução e não desrespeitem determinados conteúdos considerados invioláveis, seja por

292
estarem ligados diretamente à forma direito ou porque a sociedade decidiu assim ao
estabilizar temporariamente determinadas avaliações normativas.
Nesse sentido, desde sempre, o direito ocidental reconheceu a existência de
centros de regulação autônoma em seu interior, ainda que tenha afirmado a primazia
do Estado na condição de centro de produção normativa, relegando as fontes de di-
reito costumes e autonomia privada a um papel secundário e subordinado às leis es-
tatais (FLUME, 1998). Mesmo assim, ainda que de forma secundária, sempre foi ta-
refa do Poder Judiciário verificar, no caso dos contratos, se as partes eram capazes,
se o seu objeto era lícito e não contrariava os bons costumas antes de reconhecer
validade às suas normas. Da mesma maneira, no caso dos costumes, sempre coube
ao Judiciário verificar se, de fato, as normas costumeiras que pretendiam valer em
verto ordenamento eram de fato observadas com a convicção de serem obrigatórias
por um determinado grupo social e, ademais, se elas não contrariavam as leis do Es-
tado. Em suma, a par da tarefa de adequar normas jurídicas a casos concretos, o Ju-
diciário também exerce e exerceu a atividade de verificar requisitos de validade para
reconhecer normas produzidas por outros centros de produção normativa, diferentes
do Estado.
Como afirmam autores como Tamanaha, desde sempre o estado conviveu
com o fenômeno do pluralismo de normas em seu interior e, certamente, não foi
capaz de controlar, por meio do Poder Judiciário, a compatibilidade entre tais normas,
o conteúdo das leis estatais e os requisitos básicos do estado de direito, a saber, o
respeito soa direitos fundamentais (TAMANAHA, 2008). Nesse sentido, portanto,
podemos dizer que as diversas esferas sociais podem ser descritas como espaços mul-
tinormativos em que normas de natureza diversa, algumas delas consideraras como
jurídicas por determinados agentes sociais, convivem em um mesmo espaço.
É razoável afirmar também que por vezes tais normas entraram em conflito
e tantas outras não, ademais, que por vezes tais conflitos foram levados ao Judiciário
e outras não, foram resolvidos de forma autônoma pela própria sociedade. Além disso,
como nos mostrou Teubner em seu texto crucial, “Bukowina Global” (TEUBNER,
1996), algumas destas ordens normativas se expandiram para além das fronteiras es-
tatais, por exemplo, determinados regimes contratuais, constituindo verdadeiros regi-
mes jurídicos transnacionais ou, em sua terminologia mais recente, fragmentos cons-
titucionais (TEUBNER, 2016) que afirmaram sua validade para além das fronteiras
nacionais e criaram, inclusive, mecanismos próprios para a decisão de conflitos.
Tradicionalmente, as normas resultantes da gramática de regulação social são
consideradas secundárias e subordinadas àquelas resultantes da gramática de regras.
Mas não é necessário que as coisas se passem desta forma para sempre. De fato, a
gramática de regulação social tem sido expandida com a criação de organismos inde-
pendentes que exercem poder legislativo, ainda que em âmbitos mais restritos. Como
dissemos acima, agências reguladoras têm sido criadas em diversos países ao redor de

293
todo o globo para produzir normas sobre uma série de temas, muitas vezes comple-
tamente independentes dos Poderes Legislativos estatais. Além disso, assistimos tam-
bém à criação de diversos mecanismos de participação popular na gestão das políticas
públicas, muitos deles com poder normativo e, no campo internacional, organismos
independentes têm desenvolvido poderes normativos para além da soberania estatal
e em nome de sua especificidade técnica.

Potencial democrático da gramática da regulação social

A expansão da gramática de regulação social, evidentemente, coloca proble-


mas de coordenação entre os diversos organismos produtores de normas e o poder
legislativo. É evidente a dificuldade de manter o controle das normas por um centro
que seja capaz de avaliá-las com o fim de evitar o desrespeito a limites impostos pela
sociedade em uma deliberação pública. Além disso, num estado desenhado desta
forma, fica em cheque a função tradicional do Parlamento e das organizações inter-
nacionais de direito público. Com a expansão do poder legislativo para outros órgãos
de Estado e seu exercício por organismos internacionais formados sem a participação
dos Estados, pode-se imaginar que o Parlamento ou alguma instância de caráter par-
lamentar venha a exercer funções de coordenação e fiscalização da distribuição de
competências normativas, passando a produzir mais normas de competência do que
normas de comportamento.
Além disso, podemos imaginar que possa existir uma instância de caráter
jurisdicional com a missão de zelar pela validade das normas em nome de limites
discutidos e impostos pela esfera pública. O judiciário já realiza esta espécie de ativi-
dade ao reconhecer como jurídicas normas costumeiras e ao verificar a validade de
normas contratuais criadas pela autonomia privada das partes. Nestes dois casos, não
se trata de resolver um caso concreto com base em uma regra ou norma aberta, mas
sim de verificar a adequação de seu processo de produção ou checar se seu conteúdo
não é contrário aos desígnios da sociedade.
Tais mudanças podem resultar na criação de órgãos de estado mais abertos
à participação social e favorecer a politização da sociedade. Estes órgãos podem con-
tribuir para aproximar estado e sociedade e para expandir a discussão política para
além do momento específico da eleição parlamentar, além de abrir para a participação
pública alguns espaços do processo legislativo que hoje estão insulados. Este poten-
cial de radicalização democrática, evidentemente, leva a uma rediscussão sobre o con-
ceito de representação (URBINATI, 2006).
Tal conceito precisa ser pensado, justamente, para além da esfera parlamen-
tar, em relação ao processo legislativo considerado em sua integridade. É preciso ava-
liar de que maneira a sociedade será acolhida em cada uma dessas instâncias, levando-
se em conta tanto a necessidade de legitimação das instituições quanto necessidades

294
pragmáticas de tomar decisões com fundamento em debates de caráter técnico e em
um espaço de tempo considerado razoável.
A participação efetiva dos cidadãos em todas as instâncias é evidentemente
impossível em sociedades complexas de milhões de pessoas. É inevitável criar órgãos
especializados que se encarreguem de uma série de temas. No entanto, este processo
não pode resultar na criação de zonas de autarquia, ou seja, espaços isolados da soci-
edade em que prevaleça uma racionalidade tecnocrática, que naturaliza a ciência e a
técnica e não problematiza a narrativa de justificação que alocou a decisão para este
foro. Além disso, um órgão como este pode naturalizar também as diversas escolhas
técnicas possíveis diante de um mesmo problema, todas elas passíveis de justificação
em face do estado atual das diversas ciências.
Insisto, a escolha mesma de criar ou não um organismo especializado precisa
ser justificada, não deve ser naturalizada em nome de imperativos técnicos irrefletidos,
afinal:

Real power in the modern world (...) comes from sitting in committees that filter
other interested decision makers or parties from key decisions, but in some way
or another can be read as representing the excluded. In such committee’s power
becomes concentrated in the hands of a few. Its exercise is democratically legiti-
mated by the symbolic links the committee retains with the many that are excluded
from the real decision making." (DRAHOS & BRAITHWAITE, 2002)

A fragmentação dos órgãos decisórios com capacidade normativa fundada


em narrativas de justificação técnicas pode servir, portanto, tanto a objetivos sociais
legítimos, quanto a estratégias de criação de espaços de decisão autárquicos. Este pro-
cesso pode (e deve) ser visto como uma possibilidade de (re)aproximação entre Es-
tado e sociedade, mas também pode estar à serviço da formação de zonas de autarquia.
Novamente, o ponto crucial aqui é examinar as justificativas técnicas para a criação
de organismos especializados as quais, como mostram Braithwaite e Drahos, tem alto
potencial autoritário.
Esta mesma discussão, como já vimos, pode ser posta diante de um poder
judiciário que atua como legislador a partir dos casos. O modelo de um juiz tecnocrata
isolado faz sentido para uma realidade como essa? Como discutimos acima, não seria
importante tornar o judiciário mais aberto ao debate plural e à participação da socie-
dade na discussão da justificação de sentenças com efeitos instituintes para que a so-
ciedade também tomasse parte da formação destas normas?

A regulação social na literatura sobre Direito e Sociedade

Pensar o estado de direito nestes termos implica em reavaliar diversos cam-


pos da literatura teórica e empírica sobre o direito contemporâneo. De um lado, há

295
uma série de autores que criticam a gramática de regras e propõem alternativas, mas
sem situá-las no contexto de uma teoria da democracia. De outro lado, há uma série
de estudos empíricos que identificam modelos organização para as instituições formais
alternativas à gramática das regras, sem se preocuparam com a dimensão normativa do
problema que permite avaliar tais formas institucionais à luz de critérios de justiça.
Günther Teubner é o autor central para a identificação destes dois campos, em
especial a partir da caracterização e crítica endereçada a ele em Direito e Democracia. Na
avaliação de Habermas, logo nos primeiros capítulos de Direito e Democracia, Teubner
leva adiante o diagnóstico de fragmentação da regulação de Niklas Luhmann em suas
pesquisas, mas termina por romper com o campo da teoria dos sistemas ao postular
a necessidade de um centro capaz de avaliar as normas nascidas de uma dinâmica
social descentralizada (ver, principalmente TEUBNER, 2016, 2006, 2004, 2003, 2000).
Por esta razão, Teubner evidenciaria, de um lado, a crise da gramática de regras e o
avanço da gramática de regulação social (evidente no processo de fragmentação da
regulação) e, de outro, a necessidade de afirmar um centro que evite a produção de
normas sem o controle da sociedade. Nesse sentido, Teubner tornaria explícita a ne-
cessidade de pensar a regulação social nos termos do estado de direito e de uma teoria
da democracia.
É interessante notar que a crítica de Habermas a Teubner é seguida de uma
tentativa de resolver os problemas postos por ele nos termos de uma gramática de
regras. Habermas não enfrenta, de fato, o diagnóstico da fragmentação do Direito.
Parece afirmar, implicitamente, que discorda dele e acredita que o Estado concebido
a partir da gramática de regras ainda seria capaz de funcionar como centro da regulação.
A tentativa deste projeto, como já foi dito acima, é pensar uma solução para o problema
posto por Teubner com a incorporação de outra gramática inscrita do direito ocidental.
De outra parte, podemos dizer que John Braithwaite que tem desenvolvido
extensas pesquisas empíricas sobre as características atuais da regulação, no contexto
de uma teoria da democracia que se afirma expressamente como republicana. Vários
de seus trabalhos, alguns em parcerias com Peter Drahos e Paul Petit, discutem a
expansão crescente da gramática de regulação social em nível nacional e global, mas
sem perder de vista a necessidade de formular critérios para avaliar normativamente
as instituições (BRAITHWAITE & PETTIT, Philip, 1993; AYRES &
BRAITHWAITE, 1995; BRAITHWAITE & DRAHOS, 2000; BRAITHWAITE,
2009). Em relação a ele, trata-se de discutir seus estudos e sua concepção de demo-
cracia e não de suprir déficits empíricos ou teóricos, como no caso dos dois grupos
de autores que passamos agora a apresentar.
A obra tardia de Michael Foucault (FOUCAULT, 2007, 2008a, 2008b) em es-
pecial nos momentos quem que ele postula a necessidade de desenvolver contra-práticas
para resistir à opressão, parece levar a impasses semelhantes àqueles enfrentados por
Teubner. Isso se pode dizer de vários escritos de Judith Butler, que explora e desdobra

296
os escritos deste Foucault tardio. Por exemplo, quando Foucault explicita sua avalia-
ção absolutamente equivocada da justiça popular chinesa e elogia um instrumento
essencialmente autoritário e opressor, podemos identificar, de forma dramática, como
este autor não foi capaz de pensar a gramática do direito para além da gramática de
regras. Tal limitação de sua imaginação institucional foi parcialmente superada em sua
obra tardia. No entanto, em termos gerais, a discussão do direito em Foucault pode
ser pensada como uma crítica radical da gramática de regras que, ao tentar formular
uma agenda positiva, encontra seus limites em um modelo de direito naturalizado
pelo próprio autor.
No mesmo sentido, podemos compreender melhor o significado da tarefa crí-
tica para Judith Butler (BUTLER, 1997a, 1997b, 2005, 2006, 2010). Para esta autora,
criticar é colocar em risco a condição de sujeito, constituído pela norma que o oprime.
Não há nada fora de regra, diz Butler e, portanto, para resistir é impossível sair do re-
gistro da norma, é preciso entrar em uma relação crítica com ela. Tal formulação, ex-
cessivamente abstrata e de difícil operacionalização em termos de uma teoria do Direito,
pode ganhar um outro sentido se que situarmos os escritos de Butler entre a crítica da
gramática de regras e a defesa normativa, mas sem formulação explícita, de uma gramá-
tica de regulação social para alguns problemas sociais, por exemplo, o hate-speech.
Nesse registro, resistir à norma significaria desenvolver outra narrativa de
justificação que permitisse ao sujeito reformular determinados problemas de acordo
com uma outra gramática jurídica, por exemplo, a gramática da regulação social. Por
exemplo, ao invés de lutar para que a legislação estatal inclua o casamento entre pes-
soas do mesmo sexo como modalidade lícita de casamento, poderíamos defender que
o papel do Estado, neste caso, deveria ser apenas registrar garantir os efeitos jurídicos
decorrentes do mero registro administrativo de qualquer união denominada de “ca-
samento” pelos agentes sociais, abstendo-se de defini-la (RODRIGUEZ, 2009a).
Este modo de ver o direito muda a relação entre sociedade e Estado para reconhecer
o valor jurídico da normatividade nascida da regulação social.
A despeito de Butler não ter vislumbrado com clareza este tipo de solução,
muito em razão da ausência de uma preocupação específica com o Direito em sua
obra, uma de suas contribuições para o debate crítico está nas críticas que formulou
ao Estado, ou seja, à necessidade contarmos com um centro dotado de poder para
dizer quais são os discursos autorizados ou não a circular na sociedade.
O Estado, que atua conforme a gramática de regras, é considerado como
problemático por ser dotado de um poder desmedido. Afinal, ele concentra nas mãos
de alguns indivíduos de carne e osso, em uma burocracia judicial composta de deter-
minados homens e mulheres, a competência para permitir ou para proibir a circulação
de uma série de discursos (BUTLER 19997). Butler pergunta a si mesma se não seria

297
melhor deixar que a sociedade negociasse livremente o poder dos discursos, sem con-
tar com um centro de poder dotado de um poder simbólico tal, capaz de barrar o
processo de ressignificação protagonizado pelos agentes sociais.
Este processo, que segue uma gramática de regulação social, tem o poder,
por exemplo, de conferir outro sentido a discursos que se pretendam agressivos e
pejorativos. Um exemplo de ressignificação fácil de visualizar está no processo de
incorporação do termo “porco” pela torcida do time de futebol paulistano Palmeiras.
O termo era usado para caracterizar os torcedores do time Palmeiras com o objetivo
de ofendê-los. Diante deste fato, a torcida resolveu, após algum tempo, adotar um
porco como seu símbolo oficial, transformando algo que se pretendia negativo e ofen-
sivo em símbolo positivo de sua identidade.
Mas este processo é adequado para regular a circulação de todos os discursos?
Ele seria adequado, por exemplo, para casos que envolvem violência física, por exem-
plo, a violência contra a mulher? Nesses casos, seria adequado deixar que a agressão
física seja objeto de um livre jogo de ressignificações ou é necessário estabilizar este
juízo a partir de um centro dotado de poder para atribuir um sentido oficial para este
ato? No caso do hate-speech e do casamento entre pessoas do mesmo sexo, Butler é, de
fato, muito reticente em relação à participação do Estado, considerando que as leis e
o Judiciário produzem mais malefícios do que benefícios às lutas sociais.
De qualquer forma, quando abordamos estes e outros problemas a partir de
seus escritos, fica claro que seu pensamento carece de uma teoria do direito mais
ampla, que inclua a distinção entre a gramática de regras e a gramática de regulação
social e estabeleça critérios para optar e organizar o funcionamento de ambas a partir
da vontade da sociedade que expressa na esfera pública. Com efeito, falta a Butler
uma visão mais clara e organizada do que significa fazer política e qual seria a sua
relação com o Direito.
Além de Teubner, Foucault e Butler, é importante para este projeto discutir
as ideias dos autores preocupados com o fenômeno do pluralismo jurídico. Em minha
avaliação, tais autores radicalizam o diagnóstico de fragmentação sem nenhuma pre-
ocupação com a necessidade de pensá-lo nos termos de uma teoria da democracia.
Esta tradição teórica mostra empiricamente os limites e problemas da gramática de
regras como descrição do direito, sem discutir a necessidade de um centro capaz de
controlar esta produção normativa descentrada. Podemos citar como exemplos Brian
Tamanaha e Boaventura de Souza Santos (TAMANAHA, Brian Z., 2008, SANTOS,
1994, 2000, 2006).
Muitas vezes, tais constatações empíricas são transformadas em crítica. Os
pluralistas denunciam o papel repressor do centro sobre a periferia do sistema, mas
sem fundar tal crítica em um conceito de direito nítido. O resultado é que este registro
teórico tende a considerar como norma jurídica praticamente qualquer fenômeno
normativo e, ao fazer isso, corre o risco de legitimar toda sorte de violência e opressão.

298
Robert Cover, a despeito de poder ser classificado como um autor pluralista,
procura se afastar dessa denominação, a meu ver, por ter procurado desenvolver uma
Teoria do Direito que coloque em seu centro o que ele chama de jurisgênese, ou seja,
o constante processo de produção normativa ocorrido na sociedade (COVER, 1995).
A partir desta ideia, Cover parece estar preocupado em repensar o que significa obe-
decer a uma regra jurídica, o que caracteriza tal regra e como se configuraria o Judici-
ário em uma realidade com múltiplas fontes normativas. Em razão de sua morte pre-
matura, os escritos de Cover permaneceram fragmentados, sem encontrar uma for-
mulação mais desenvolvida e organizada. Mesmo assim, trata-se de um interlocutor
importante para refletir sobre a regulação social, como tem mostrado alguns de auto-
res que tem utilizado suas ideias para pensar o direito no mundo contemporâneo
(BERMAN, 2012; BENHABIB, 2008).
Ao lado destes autores, é importante incorporar a esta reflexão pesquisadores
que têm evidenciado a disseminação da gramática de regulação social em diversos
campos sociais. Por exemplo, Eric Posner (POSNER, 2002) e Denis Galligan (GALLI-
GAN, 2006) têm se dedicado ao estudo das normas sociais, respectivamente nos cam-
pos do Law & Economics e do Law & Society. Seus escritos mostram as normas jurídi-
cas produzidas pelo estado interagem e dependem, para sua efetivação, de normas
sociais produzidas autonomamente pela sociedade. Ou seja, a gramática de regras está
ligada indissoluvelmente à gramática de regulação social. Nestes dois casos, toda uma
reflexão e uma série de pesquisas empíricas tem sido desenvolvida a partir da consta-
tação de que as regras não funcionam como previstas nos textos normativos e, para
compreender a sua efetivação, é preciso estudar sociologicamente o comportamento
dos agentes sociais em ação.
Elinor Ostrom (OSTROM, 1990, 2005) tem investigado há muitos anos me-
canismos de auto-gestão o que a levou a formular uma teoria da diversidade institu-
cional pensada de forma complexa, num contexto em que há diversos organismos de
Estado com poder normativo que precisam ser coordenados de alguma forma a partir
de um centro. Os trabalhos de Hugh Collins (COLLINS, 2003, 2008) no campo dos
contratos apontam para este mesmo problema. Este autor identifica a crise da gramá-
tica de regras no campo dos contratos, incapaz, segundo ele, de ter efeitos sobre o
comportamento das partes contratantes. Diante disso, Collins procura pensar em me-
canismos de regulação estatal capazes de manter o controle centralizado do processo,
impondo limites e entraves a abusos, mas de forma indireta.
Num horizonte teórico mais abstrato, a discussão sobre a gramática de regu-
lação social pode tomada como uma resposta ao diagnóstico de Niklas Luhmann que
aponta para a fragmentação da regulação em razão da especialização técnica. A ex-
pansão da gramática de regulação social, vista aqui como interna à tradição do direito
ocidental, pode ser vista como uma contratendência emancipatória ao processo de
fragmentação. Afinal, tal gramática pode contribuir para que a regulação estatal se

299
torne mais flexível e aberta às peculiaridades dos diversos campos da sociedade, mais
acessível à participação das pessoas afetadas por elas, sem abrir mão de um espaço de
controle centralizado em que se possa tematizar e deliberar sobre as diversas alterna-
tivas institucionais destinadas a regular os problemas sociais e seus critérios. Nesse
sentido, podemos afirmar que a relativização do poder estatal em favor da regulação
social em nível nacional e transnacional tem grande potencial democrático, a despeito
dos riscos de arbítrio.
Do ponto de vista da história das ideias de esquerda, a discussão sobre a
gramática de regulação social exige uma revisão crítica das correntes anarquistas (BA-
KUNIN, 1990; PROUDHON, 1994; KROPOTKIN, 1995). A divergência entre
Marx e Bakunin na Primeira Internacional referia-se justamente à liderança centrali-
zada do partido no processo revolucionário. Em sua última obra, Bakunin afirma que
tal centralização, transformada em modelo de Estado, iria resultar em uma ditadura
sobre o proletariado e não em uma verdadeira democracia. As propostas positivas da
literatura anarquista, por exemplo, O Princípio Federativo de Pierre–Joseph Proudhon,
discutem, justamente, a viabilidade de se criar estruturas de governo descentralizadas
em que o cidadão seja politicamente ativo e não seja instrumentalizado pelos órgãos
de poder.
Afora, evidentemente, o moralismo de parte destes escritos, a crença em uma
natureza humana substancializada e essencialmente individual que resulta em uma
aversão à ideia de representação, fato que pode vir a impossibilitar a criação de formas
institucionais adequadas para sociedade de massa e altamente complexas, o anar-
quismo foi pioneiro em imaginar possibilidades institucionais relacionadas à gramática
de regulação social. Anarquistas contemporâneos como David Graeber (GRAEBER,
2001, 2004, 2009), entre outros, têm procurado atualizar estas propostas anarquistas
para o contexto atual, o que os tornam interlocutores importantes para refletir sobre
estas questões, a despeito de pouco afirmar sobra a possível configuração institucional
de uma sociedade organizada em bases anarquistas, exceto exemplos de sociedades
em que as interações ainda se fazem face a face. Quanto a este ponto, os estudos de
Ostrom, que parte de outra base teórica, são bem mais sugestivos.

Fecho: para uma crítica da coerção.

A despeito das críticas que se possa fazer ao moralismo dos anarquistas, não
devemos desconsiderar os aspectos antropológicos que este projeto pressupõe, ou
seja, as condições possibilidade efetivas para e ampliar o espaço para a regulação social.
Para pensar este problema parece ser necessário voltar a tematizar a relação entre a
gramática de regras, a gramática de regulação social e o processo de acumulação de
riquezas irracional que caracteriza o sistema capitalista.

300
Para realizar esta tarefa, é preciso elaborar uma crítica da coerção, caracterís-
tica da gramática de regras, capaz de identificar seu papel na constituição dos sujeitos
e de sua relação com o regime capitalista. A afirmação abstrata da necessidade de
complementar a moral com a coercibilidade do direito em sociedades complexas feita,
por exemplo, por Habermas, entre outros, a partir de sua atualização da teoria moral
de Kant, não pode ser naturalizada como se fosse uma verdade antropológica. É pre-
ciso investigar em concreto como, em um sistema capitalista, a coerção funciona
como mecanismo destinado a impulsionar a acumulação desenfreada de capital para
que sejamos capazes de pensar, para além desse registro, na possibilidade de atribuir
outras funções a este mecanismo institucional.
Ao identificar o potencial democratizante da gramática de regulação social, é
fácil perceber também como ele se relaciona diretamente com outros aspectos da
organização das sociedades capitalistas. Em primeiro lugar, salta aos olhos a relação
entre tempo de trabalho e o tempo disponível para que os cidadãos se dediquem a
deliberar sobre questões de interesse geral. Quanto maior a jornada de trabalho, evi-
dentemente, menos tempo restará para outras atividades.
Nesse sentido, como reconhecia Max Weber, a concentração da atividade
política do cidadão no momento das eleições e a atribuição da atividade política coti-
diana a um corpo especializado de representantes é funcional para um sistema capi-
talista (WEBER, 2011). Ampliar a atividade política para além deste momento impli-
caria em tomar muito tempo do trabalho, o que poderia prejudicar o ritmo de acu-
mulação de riquezas. Qualquer modificação no desenho da política e do direito pen-
sado em função da instituição parlamentar precisa tocar na maneira de organizar a
produção de mercadorias.
Este ponto é importante também para qualificar melhor o processo de cria-
ção de organismos descentralizados para a tomada de decisão. Tais organismos po-
dem ser criados por um simples imperativo funcional cuja justificação afirmará o ob-
jetivo seja tomar decisões mais técnicas e mais rápidas. De outro lado, eles podem ser
criados em nome de mais participação social na tomada de decisões por parte dos
órgãos soberanos. Em uma sociedade em que as pessoas trabalham durante longas
horas, narrativas de justificação que apontem para mais participação esbarram no
pouco tempo livre dos cidadãos para tomar parte em atividades políticas e, portanto,
tornam-se menos plausíveis como elemento de convencimento da esfera pública.
Neste contexto, falar sobre tal assunto soa ingênuo.
Mas há mais. A coerção pode ser definida como um meio de negação da
deliberação racional e livre entre os homens. Ela é necessária quando alguém se recusa
a realizar uma conduta que lhe seja exigível com fundamento em uma norma moral
ou em uma norma jurídica. No campo moral, a deliberação abre espaço para a coerção
física, substituída pelo direito em sociedades que escolheram esta forma de organiza-
ção. Além disso, a coerção se presta a colocar fim a um processo de deliberação em

301
nome da necessidade prática de se obter uma decisão em um prazo razoável, como,
aliás, mostra Günther no campo do direito em trabalho já citado aqui.
Em diversas situações, a sociedade não considera razoável que a deliberação
se desenrole indefinidamente. Após um determinado lapso de tempo, uma decisão
precisa ser tomada, mesmo que haja muito mais a deliberar antes que todos fossem
convencidos de sua correção. Ora, é fácil perceber a relação entre estas dimensões da
deliberação e o tempo de trabalho socialmente necessário. A liberação de tempo livre
contribui para que o indivíduo possa participar de atividades políticas e diminui a
pressão sobre os processos de deliberação, que podem se alongar por não estarem
submetidos ao ritmo irracional da economia capitalista. Por isso mesmo, a expansão
do espaço para que a sociedade possa deliberar sobre suas questões, ou seja, a expan-
são do agir comunicativo, está diretamente relacionado ao modo pelo qual se desen-
rolam as relações de produção, mais especificamente, qual é a quantidade de tempo
livre disponível.
Além da liberação de tempo livre para a participação política e para que seja
possível destinar mais tempo para os processos de deliberação, a radicalização da de-
mocracia precisa também desnaturalizar conceitos e visões de mundo que permane-
çam imunes à argumentação racional. A existência de tempo livre para participar e
discutir, por si mesmo, não garante o sucesso da deliberação como meio de reprodu-
ção da sociedade. Indivíduos que sustentam ideias cristalizadas sobre uma série de
questões podem se tornar impermeáveis à deliberação racional, mesmo que ela se
desenrole por um longo tempo.
Os fatores que favorecem a cristalização de conceitos e visões de mundo
são certamente muito diversos. É impossível dar conta de todos eles. No entanto,
para o que nos interessa, podemos fazer um recorte significativo ao buscar identificar
os fatores ligados à justificação do processo irracional de geração e de acumulação de
riquezas que caracteriza o regime capitalista e que é responsável, como já visto, pela
diminuição do tempo destinado à regulação social. Sua análise, ao lado dos constran-
gimentos relativos ao tempo para participação e ao tempo destinado à deliberação,
completa o projeto de uma fenomenologia crítica da coerção.
Em primeiro lugar, é importante perceber que é preciso utilizar mecanismos
de coerção jurídica para manter o trabalhador em atividade durante as tantas horas
necessárias para que ele realize suas tarefas. Normalmente, tal coerção está fundada
em um contrato de trabalho ou em um contrato de prestação de serviços. Mas, além
disso, as normas jurídicas sancionam formas de pensar que estão na base das narrati-
vas que justificam a acumulação irracional de riquezas.
Quanto a este ponto, a questão chave a se considerar é a relação entre a
legitimação jurídica de certas formas de socialização identitária e o processo de acu-
mulação capitalista. Tais formas de socialização são parte constitutiva de narrativas

302
que justificam a acumulação e, por isso mesmo, mantém uma relação de reforço po-
sitivo com as coerções relativas ao processo de trabalho. A necessidade de acumular
cada vez mais bens para garantir o futuro da família, da empresa, do estado nação e
de certas regiões do globo é a justificativa para que se trabalhe cada vez mais com o
fim de acumular mais e mais riquezas, o que resulta no acirramento da competição
entre os agentes econômicos. A acumulação desenfreada é justificada em nome da
segurança contra vicissitudes futuras e, ao mesmo tempo, é o motor da insegurança
que ela pretende evitar.
Além disso, tais formas identitárias estão na base dos critérios de distribuição da
riqueza social. Por exemplo, a desvalorização do trabalho doméstico e das funções de
suporte emocional aos seres humanos em formação, desempenhada normalmente pelas
mulheres, se dá em favor da valorização o trabalho do chefe da casa. Sua missão é susten-
tar a família, acumulando riquezas para satisfazer as necessidades mais imediatas de todos
e para garantir o futuro do núcleo familiar contra os riscos da sociedade capitalista.
Ora a redistribuição do valor simbólico entre casa a rua, entre família e soci-
edade, pode contribuir para recolocar os termos desta questão. O trabalho não seria
mais realizado, neste registro, em nome do enriquecimento da família, da empresa ou
do país, mas em função de outros valores. Desta forma, o ímpeto de gerar riquezas e
os critérios de distribuição de recompensas entre as diversas formas de trabalho po-
deriam ser equacionados de outra maneira no contexto de uma economia de mercado
não-capitalista.
O desejo de acumular riquezas é importante para impulsionar os homens a
realizarem projetos de grande alcance e complexidade que geram benefícios para am-
plas parcelas da população. No entanto, ao ser pensado em termos identitários, como
parte da identidade das pessoas que vivem em sociedade, tal ímpeto legitima a con-
centração das riquezas nas mãos de determinados grupos, além de impulsionar a com-
petição pela riqueza social. Como resultado, temos a ampliação exagerada dos riscos
sociais e do tempo de trabalho, em detrimento da expansão da democracia radical, ou
seja, do agir comunicativo, para usar os termos de Habermas.
Por estas razões, é importante questionar se o direito deve legitimar e ratificar
a ligação entre a formação de certas identidades e o processo de acumulação de rique-
zas. É preciso evitar juridicamente a cristalização de identidades e desligá-las o mais
possível de narrativas que justifiquem a acumulação de riquezas. É difícil imaginar um
mundo em que tais identidades não se formem de fato, mas podemos pensar em uma
sociedade em que o direito não legitime e cristalize determinados institutos.
Posta a questão nestes termos, trata-se, portanto, de refletir sobre qual é o papel
do direito na radicalização da democracia, compreendida como ampliação do espaço para
a instalação de uma gramática de regulação social. A resposta a esta questão passa, como
tentei demonstrar, pela identificação das narrativas de justificação da acumulação desen-
freada de riquezas e o combate à sua cristalização, inclusive por meio do direito.

303
Em segundo lugar, é preciso identificar o núcleo conceitual desta narrativa e
verificar como a gramática de regras funciona para legitimar juridicamente seu funda-
mento. Sugerimos que existe uma relação entre determinadas formas de socialização
identitária e o processo de acumulação irracional de riquezas, responsável por dimi-
nuir o espaço para instituições deliberativas. Para que haja possibilidade de ampliar a
gramática de regulação social, é necessário enfraquecer a ligação entre acumulação de
riquezas para o bem da família, da empresa e do estado.
Tal enfraquecimento tem uma dimensão jurídica já que o direito, por inter-
médio da gramática de regras, legitima seus elementos fundamentais. Estratégico
neste ponto é desligar juridicamente trabalho e benefícios sociais, sobrevivência digna
e subordinação do trabalho capitalista, cujo primeiro passo é a garantia de uma renda
mínima universal paga incondicionalmente a todas as pessoas ao redor do globo.
Por isso mesmo, é preciso pensar a relação existente entre o direito e a for-
mação destas dimensões da socialização. Para além da dimensão instrumental que as
narrativas de justificação da acumulação veiculam – é preciso ter muitas riquezas para
garantir o futuro – é importante investigar também os aspectos simbólicos implicado
nelas. Para este ponto, é importante compreender a relação entre acumulação de ri-
quezas e autocompreensão dos indivíduos, ou seja, compreender como o dinheiro se
relaciona com a dimensão afetiva.
O novo Código Civil brasileiro é um ponto de partida interessante para discutir
esta questão. É interessante notar como ele separou em duas partes distintas os aspectos
patrimoniais e não patrimoniais da relação familiar, uma relação em que estes dois as-
pectos se confundem e se misturam de fato. A experiência da advocacia trabalhista,
infelizmente ainda não formalizada em pesquisas empíricas no Brasil, mostra que a ins-
trumentalização do dinheiro em função dos afetos e vice-versa é extremamente comum.
Esta mistura de registros nos conflitos familiares parece ser um campo fértil
para tentar compreender como a riqueza se relaciona com a dimensão identitária dos
sujeitos e, em outro nível de abstração, compreender como a acumulação de riquezas
liga-se à valorização do sujeito diante de si mesmo e diante da sociedade e como se
liga às narrativas que justificam a acumulação irracional de riquezas.
A monetarização da existência, confusão entre ter e ser, sobre a qual escreveu
Erich Fromm (FROMM, 2005), pode ser caracterizada como uma patologia da razão
(HONNETH, 2009) de importância fundamental porque central para as justificativas
para a acumulação irracional de riquezas que contribui para diminuir o espaço de au-
tonomia dos homens e mulheres sob o regime capitalista, fazendo com que eles se
reduzam a meros apêndices do processo de trabalho. Nesse contexto, é importante
compreender as razões pelas quais as pessoas trabalham (BAKKER & LEITER, 2010)
para compreender as razões que justificam a acumulação irracional de riquezas que
estão na base da justificação do sistema capitalista.

304
Capítulo 14 – Normatividades Plurais

Para além da teoria da modernização e de sua crítica

O capítulo final de As raízes e o labirinto da América Latina de Silviano Santiago


fornece um bom ponto de partida para as questões abordadas neste capítulo. Neste
livro, Silviano lê em conjunto Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Hollanda e O
Labirinto de América Latina de Octavio Paz, em suas próprias palavras, à La Derrida, e
um dos bons resultados deste empreendimento desconstrucionista é identificar, a par-
tir da obra de Paz, a oscilação de Sérgio entre a valorização e a superação das carac-
terísticas ibéricas de nossa modernização (SANTIAGO, 2005). Sérgio, segundo Silvi-
ano, mostra que a maior contribuição do Brasil para a civilização mundial, a cordiali-
dade, forma de socialização em que o amor que nasce de laços de sangue ocupa papel
central em todos os domínios, estaria sendo ameaçada pela modernização, marcada
por padrões exógenos de impessoalidade burocrática.
A defesa por Sérgio do funcionário patrimonial, solução de compromisso que
visava manter o que havia de positivo tanto no amor iberista quanto nos princípios
modernizantes, manifesta-se também em sua oposição ao projeto impessoal e buro-
cratizante do Estado de Direito defendido pelos juristas de sua época e em suas críti-
cas ao Manifesto por uma Escola Nova, que seguia os preceitos pragmatistas de John
Dewey. Na economia interna do livro de Silviano, este momento mostra que a opo-
sição entre Sérgio e Octávio, em certo nível muito radical, tem pontos de contato.
Raízes do Brasil não é a valorização do pensamento mitológico de raiz indígena contra
o colonizador como O Labirinto da América Latina e por isso não investe na lingua-
gem poética para mimetizar a cosmogonia das populações nativas e falar da posição
dos excluídos (ou foracluídos?).
A despeito disso, a solução de compromisso entre modernização e iberismo
de Sérgio também não abre mão de uma posição crítica diante da modernização ao
inverter, ao menos em parte, o espelho da análise para pensar o colonizador a partir
do colonizado, procedimento que, muito tempo depois, será radicalizado por Richard
Morse em O Espelho de Próspero, (MORSE, 1988) uma espécie de paródia dos ensaios
de interpretação do Brasil e da América Latina. Escrito por um estrangeiro, norte-
americano, com o fim de divisar a face de seu país no espelho do Terceiro Mundo, o

305
livro inverte não apenas o espelho, mas o ponto de vista, para interpretar seu país à
luz do que ele poderia ter sido num mundo livre de sua hegemonia.
O tema é delicado e sempre merece mais tempo e mais espaço. No entanto, é
importante gastar ao menos algumas linhas com ele, pois o movimento de inversão
do espelho é caracterizado por uma perigosa ambiguidade e o projeto deste capítulo
não deixa, em certa medida, de tentar realizá-lo. A ambiguidade deste procedimento
está no fato de, ao permitir que se veja o colonizador a partir do ponto de vista do
colonizado, abrir espaço para criticar o primeiro em nome do que ele destruiu, reve-
lando a face perversa da modernização capitalista, marcada por objetivos essencial-
mente mercantis. No entanto, de outro lado, tal procedimento pode abrir espaço para
a defesa da manutenção de características culturais essencializadas, por exemplo, na
forma de uma “nação” brasileira, alemã, norte-americana etc.; expediente favorito de
grupos fascistas ao redor do globo (NEUMANN, 2013; MANN, 2004).
Nesse registro, será possível condenar a influência de potências estrangeiras
que, supostamente, ameaçariam a preservação das características da nação e, além
disso, promover a repressão de indivíduos e grupos dissidentes que destoem desta
“essência” brasileira, alemã etc. Desta forma, a inversão ficaria incompleta com a
substituição do padrão ocidental por um antipadrão colonizado que ocuparia seu lu-
gar como instrumento ideológico.
É importante manter estas questões no horizonte, pois meu objetivo, inspirado
no motivo da inversão do espelho, é colocar a seguinte questão: O direito ocidental
pode ser um instrumento de promoção e defesa da diversidade cultural? Quais são as
possibilidades e limites da gramática do Direito ocidental para figurar, reconhecer e
proteger a existência e a reprodução da diversidade de culturas, inclusive culturas tra-
dicionais, marcadas por cosmogonias de características mitológicas?
Ao realizar a inversão do espelho no campo de pesquisas que tem pensado o
papel do direito no desenvolvimento dos diversos países, deixa-se de lado o modelo
ocidental como padrão a ser seguido por todo o globo e, mais do que isso, é levantada
contra ele uma grave suspeita. Trata-se de questionar sua capacidade de respeitar a
diversidade de culturas e suas respectivas normatividades; capacidade esta fundamen-
tal para a legitimidade do direito ocidental no contexto de sociedades multiculturais.
A possibilidade de colocar o problema desta forma resulta da crítica ao etno-
centrismo ocidental que atingiu a reflexão sobre as relações entre direito e desenvol-
vimento, uma crítica interna à cultura ocidental, diga-se. Quando ao direito, seu alvo
é a postulação de que o direito racional-formal1 deva ser um padrão a ser seguido por

1O direito ocidental é formal porque permite decidir conflitos a partir de critérios intrínsecos ao di-
reito e não com base em valores morais, éticos, políticos, econômicos etc. É um direito racional porque
remete a justificativas que transcendem o caso concreto e se baseiam em regras claramente definidas.
Para uma explicação mais completa weber, 1999 e TRUBEL, 2007.

306
todo o mundo. No contexto das teorias da modernização em que a diversidade cul-
tural era um valor secundário e desimportante diante da necessidade de emancipar os
povos em nome de um padrão de civilização que lhes seria superior, as questões que
trato aqui não fariam sentido algum. Apenas depois das críticas ao modelo de direito
ocidental e a abertura do campo do Direito e Desenvolvimento à diversidade de culturas
e ordens jurídicas é que questões como as que me interessam podem ser legitima-
mente tratadas.
O debate sobre estes problemas data de algumas décadas. O centro do debate
é a teoria da modernização e seu esquema de desenvolvimento em etapas, suposta-
mente capaz de ser replicado em qualquer lugar do mundo (THOMAS, 2006). Se-
gundo este modo de pensar, haveria uma fórmula geral capaz de promover o desen-
volvimento de todos os países e, por isso, é importante reproduzir por todo o mundo
modelos de direito padronizado à imagem do direito ocidental. Este modo de pensar,
que transforma a afinidade eletiva (WEBER, 2007) entre direito formal-racional e
capitalismo identificada por Max Weber, em uma relação de causalidade simplista,
tem sido objeto de críticas demolidoras (TRUBEK, 2007; CHANTAL, 20060, além
de desmentidos empíricos evidentes, especialmente com as análises do capitalismo na
Ásia (JAYASURIYA, 1997; CHEN, 1999), a despeito da sobrevida que ganhou no
campo do debate ideológico. Quando falamos no registro da ciência, qualquer das
ciências humanas, a defesa da modernização torna-se cada vez mais problemática,
especialmente diante da ampliação dos horizontes epistêmicos ocidentais em contatos
cada vez mais profundos com outras culturas (HALL, 2003; COSTA, 2006; SAN-
CHES, 2005).
Mas as marcas da teoria da modernização ainda são bastante profundas na
cultura ocidental, especialmente quando nos referimos a questões que envolvam a
relação entre direito e desenvolvimento. A ideia de que possa existir um padrão para
as instituições de todo o mundo, capaz de promover o desenvolvimento econômico,
marca o debate contemporâneo sobre o tema, ao lado de posições mais críticas ao
modelo ocidental, que também permanecem atuantes. Como mostra David Trubek
em texto recente sobre o assunto, após os anos 70 e 80, um tempo de críticas e de
ceticismo em relação a programas de ajuda aos países em desenvolvimento, assistimos
a seu ressurgimento irrefletido (TRUBEK, 2006). Não iremos especular aqui sobre as
razões desta sobrevivência, tema que merece em si estudo separado. Há autores que
veem neste movimento apenas e tão-somente uma ofensiva ideológica voltada a im-
por um modelo de desenvolvimento neoliberal aos países da periferia (MAGA-
LHÃES, 2005). Outros ligam-no a mudanças no capitalismo mundial, marcado por
uma fase de predomínio da lógica financeira acompanhada da desregulamentação do
mercado, entregue a sua própria lógica (GOLDSTEIN, 2004; LEYS, 1996). Seja
como for, não resta dúvidas de que é preciso continuar a criticar este modo de pensar

307
que parece ter ressurgido das cinzas com toda a força sob a forma de programas volta-
dos para a implantação do rule of law nos países em desenvolvimento (SANTOS, 2006).
A despeito da atual vivacidade desta discussão no campo do direito, especial-
mente nos Estados Unidos, o debate sobre a modernização e as questões a ele corre-
latas já está consolidado, ou seja, possui um conjunto significativo de teorias e argu-
mentos organizados em polos que disputam a melhor solução, sempre girando em
torno das hipóteses weberianas. Podemos organizar as posições existentes em duas
contraposições básicas. A primeira parte do pressuposto de que o desenvolvimento
econômico é um objetivo a se perseguir para perguntar: O direito racional-formal
favorece o desenvolvimento?2 A segunda contraposição desatrela o desenvolvimento
econômico do conceito de desenvolvimento ocidental e característico dos países cen-
trais para ampliar sentido e incluir, por exemplo, a possibilidade de escolha livre de
sua forma de vida e dos rumos que ela deve tomar (SEN, 2000). Como consequência,
as perguntas ligadas a esta posição são mais complexas, pois necessariamente ligadas
ao contexto e a realidade concreta dos diversos povos, regiões, nações etc. Nesse
registro, de um lado temos a visão padronizante do “one size fits all” e, de outro, por
assim dizer, uma racionalidade de alfaiate, direcionada ao singular.
Uma advertência importante: excluo de minha reflexão liminarmente a hipó-
tese de que preservar culturas em sua singularidade e originalidade seja um objetivo
possível de se cumprir no mundo de hoje. Não tenho espaço para discutir aqui as
críticas filosóficas a uma ideia essencialista de cultura, que as concebe como entes
isolados e estanques, passíveis de serem descritos em si mesmos, fora de um ambiente
relacional, marcado por um processo constante de construção e reconstrução moti-
vado pelo contato e pelo diálogo (YOUNG, 2000; INGLIS, 2004). Meu pressuposto
é que as culturas existentes podem se encontrar e se chocar, mesmo as mais isoladas
e, por este motivo, é necessário construir instituições capazes de lidar com os proble-
mas que decorrem desta realidade, especialmente para evitar a violência.
Podem-se imaginar situações em que pode ser necessário quebrar o isolamento
de uma cultura com o fim de preservá-la, por exemplo, caso algum fenômeno social
ou natural ameace a sobrevivência de seus membros e seja possível salvá-los, mesmo
que isso signifique questionar alguma regra que presida seu funcionamento (OLI-
VEIRA & OLIVEIRA, 2006). Do mesmo modo, a formação de uma nova cultura
que reivindique ser reconhecida diante da esfera pública coloca problemas de natureza
semelhante. Qual o limite para a criação de regras passíveis de serem respeitadas em
sua singularidade? Seria possível, por exemplo, admitir que uma cultura nova discri-
minasse as mulheres e adotasse práticas sexuais consideradas pelo direito ocidental
como ofensivas às crianças, em nome do pluralismo jurídico?3

2DAVIS & TREBILCOCK, 2009 organizaram tal contraposição nos polos “otimistas” e “céticos”.
3Veja-se o caso recente de uma religião, cujos membros vivem isolados em uma fazenda no interior
dos EUA, que foi acusada de tais práticas. Em razão de tal suspeita, 464 crianças foram afastadas de

308
Não há espaço neste texto para tratar destes problemas. Meu objetivo aqui é
apenas construir um instrumental conceitual que permita pensá-los em função do va-
lor da diversidade cultural, compreendida a cultura como um processo dinâmico de
construção e reconstrução de valores e instituições. Trata-se de pensá-los, como já
dito, no campo do direito ocidental em função dos limites desta gramática. Para fazê-
lo, é preciso examinar a relação entre direito e diversidade cultural, tanto no nível do
conceito abstrato de Estado de Direito quanto no nível dos diversos modelos de re-
gulação compatíveis com o primeiro. A hipótese que levanto neste texto, resultado
preliminar de um projeto mais longo, é justamente a necessidade de realizar estas duas
operações.
Pretendo mostrar que o problema não se resolve no nível abstrato de conceitos
como “estado de Direito”, “rule of law” ou “democracia”, mas que requer um traba-
lho suplementar, de avaliação de diversas possibilidades de concretização de tais con-
ceitos em modelos institucionais. Uma segunda hipótese, de que não vou tratar aqui,
mas que apresento para completar o argumento, é que esta avaliação dos diversos
modelos institucionais exige a construção de um critério para avaliar quais seriam
aqueles mais ou menos adequados à defesa da diversidade, critério este que deve estar
relacionado com os conceitos de democracia e estado de direito, mas que não se re-
solve neles. Esclareço também que não vou relacionar exaustivamente os modelos
abstratos que construirei com ordenamentos jurídicos reais, tarefa necessária para de-
monstrar cabalmente a utilidade de minha tipologia. Meu interesse maior, neste texto,
é mostrar a desvinculação entre a reflexão abstrata sobre a democracia e o estado de
direito do problema dos modelos institucionais.

Um caso-limite e os modelos de regulação

O caso-limite de uma cultura tradicional é particularmente interessante, pois coloca


problemas para qualquer concepção ocidental de estado de direito. Partindo-se do
pressuposto rousseauniano de que a legitimidade das normas jurídicas depende dire-
tamente da concordância dos afetados por elas, ou seja, que os membros do corpo
social devem ser ao mesmo tempo cidadãos e súditos, é de se perguntar se é possível
conceber instituições capazes de promover a adesão às normas de humanos que pra-
ticam formas de pensamento radicalmente diferentes.4

seus pais pelo Poder Judiciário. Ver: “Texan sect inquiry find injuries”, BBC News, 1 May, 2008,
http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7377873.stm, consultado em 18 de Janeiro de 2009. Uma de-
cisão posterior devolveu as crianças a seus pais. Ver: “Court win for Texas sect parents”, BBC News,
29 May, 2008, <http://news.bbc.co.uk/2/hi/americas/7426814.stm>, consultado em 18 de Janeiro
de 2009.
4 Rousseau não acreditava em modelos representativos em que os indivíduos alienassem sua sobera-

nia a terceiros, portanto, seu modelo de sociedade não seria compatível com a reflexão que farei adi-
ante. A atualização do modelo rousseauniano no campo da Teoria Crítica foi realizada por NEUMANN,
2013 e por HABERMAS, 1997.

309
O “radicalmente” da frase anterior deve ser bem compreendido, afinal, pensa-
dores como Lévi-Strauss (1990) e Viveiros de Castro (2002) têm demonstrado a com-
plexidade do, por assim dizer, pensamento selvagem, e suas semelhanças com o que
se pode denominar, na falta de termo melhor, de pensamento ocidental. Não cabe
aqui negar a possibilidade de encontrar um terreno comum em que a comunicação
entre grupos humanos heterogêneos acorra e, como consequência, que esta experiên-
cia seja institucionalizada de forma não violenta e participativa. Apesar da complexi-
dade deste problema, vou tomar esta possibilidade como um pressuposto (TAYLOR
& GUTMANN, 1994). A questão aqui é outra e, talvez, mais difícil de perceber e
delinear. O problema é: diante da necessidade de resolver conflitos por meio das ins-
tituições jurídicas ocidentais é possível conceber desenhos institucionais capazes de
manter o respeito à diversidade normativa?
O problema abstrato da possibilidade da institucionalização não violenta e par-
ticipativa ao qual se liga mais diretamente a capacidade, também em abstrato, de com-
preensão mútua entre os seres humanos, não se confunde e não resolve, em absoluto,
a questão da construção de regras e procedimentos jurídicos capazes de resolver con-
flitos concretos sob o imperativo dos princípios do Estado de Direito, capazes de
respeitar a diversidade de culturas. É importante separar com clareza as duas questões
para que seja possível seguir a análise.
Para tanto, parece útil construir abstratamente um exemplo dos problemas que
o direito tem que enfrentar nesse nível, o da decisão inescapável de conflitos apresen-
tados ao aparelho jurisdicional, sempre sujeita a prazos limitados. Em seguida, cons-
truiremos alguns modelos de regulação que permitiriam dar conta do exemplo que
construímos; o que nos permitirá evidenciar como as duas questões a que nos referi-
mos situam-se em planos diversos. O argumento aqui é que a resposta à primeira
pergunta não resolve os problemas relacionados à segunda. De um modelo abstrato
de democracia não decorre uma conformação institucional específica, ao contrário,
há sempre várias possibilidades de desenho institucional, possibilidade não são equi-
valentes seja lá qual valor seja tomado como referência para a análise.
Dito isto, passemos ao exemplo. Imagine-se que seja apresentado o problema
seguinte a uma autoridade decisória qualquer: é válido um contrato celebrado entre
uma pessoa representante de uma cultura tradicional e um empresário ocidental do
ramo farmacêutico por meio do qual foi trocado o conhecimento sobre ervas de valor
medicinal por ferramentas como facas e arados, úteis para as atividades de caça e
agricultura realizadas pelo primeiro? Sem levar em conta as regras atualmente presen-
tes no direito brasileiro ou em qualquer outro ordenamento jurídico, pode-se imaginar
diversas soluções para este problema. Cada uma delas terá como pressuposto uma
determinada visão da relação entre as duas culturas e estará baseada em modelos ins-
titucionais diferentes; a maioria dele compatível com o pressuposto rousseauniano
citado acima. Passemos a elas.

310
A primeira solução considera o representante da cultura tradicional como in-
capaz de compreender o significado da categoria contrato. Por conseguinte, a contra-
tação em concreto não produziria efeitos. Nesta hipótese, haveria uma regra que afir-
maria, por exemplo: “Os silvícolas são considerados incapazes”, portanto, uma das
partes do contrato em exame não teria sido capaz de emitir sua vontade de forma
juridicamente relevante, sem prejuízo de seus direitos fundamentais. Este modelo
pode ter duas variantes. Pode-se considerar que este o representante da cultura tradi-
cional seja essencialmente incapaz de compreender o significado daquela transação.
Nesse caso, ele seria incapaz de conviver com esta cultura e deveria ser isolado dela,
seja em um estabelecimento destinado para este fim, seja nos limites de seu meio
social.
Não é possível afastar esta variante, a que chamarei de modelo de exclusão, do
elenco de possibilidades à disposição de uma sociedade democrática, afinal, este é o
tratamento que dispensamos, por exemplo, aos doentes mentais graves. A despeito
de manter o incapaz isolado ou sob o poder de alguém ele tem direitos que devem
ser respeitados: é dever de todos respeitar seu direito à vida e dever dos responsáveis
por ele (particulares ou estado) de manter seu bem-estar material, sempre sob vigilân-
cia e poder de alguém. Claro, pode-se afastar essa possibilidade por meio de argumen-
tos científicos capazes de mostrar que representantes de culturas tradicionais são ca-
pazes de compreender nossa cultura e os doentes mentais graves não. No entanto,
nada garante que estes argumentos saiam vencedores no debate público e afastem, de
fato, a criação de um modelo de exclusão. Mais ainda, não parece razoável classificar
como antidemocrático tout court um Estado que considere incapazes os representantes
de culturas tradicionais, desde que sejam respeitados seus direitos fundamentais.
A outra variante desta solução considera o indivíduo oriundo de uma cultura
tradicional como dotado de potencial para compreender, ainda que no futuro, as re-
gras de uma cultura diferente da sua, ou seja, considera que ele poderá fazer parte do
universo cultural em que a suposta contratação é avaliada. O indivíduo pode ser inca-
paz em determinado momento e deixar de sê-lo. Além disso, sua incapacidade com-
porta graus que variam em função do desenvolvimento de seu potencial. Assim, para
julgar casos concretos, será preciso considerar o indivíduo implicado em sua singula-
ridade; não mais como o representante padronizado de uma cultura qualquer. Será
necessário, portanto, avaliar, por meio de uma perícia ou outro meio admitido pelo
direito, o desenvolvimento de suas capacidades no momento da prática do ato. Por
isso mesmo, o indivíduo incapaz pode ser deixado solto, ou ficar isolado durante o
tempo de aprendizado, sempre sob a tutela temporária de algum responsável por in-
tegrá-lo à cultura ocidental.
Denomino esta hipótese de regulação como modelo de tutela que pode ter duas
variantes, uma integracionista e outra não-integracionista. Para a primeira, integrar os inca-
pazes será um dever da sociedade e, nesse registro, as regras da cultura tradicional

311
serão vistas como primitivas, sendo necessário erradicá-las para desenvolver plena-
mente as capacidades dos indivíduos. Para a segunda variante, a despeito da possibi-
lidade real de integrar os membros de culturas tradicionais, este não é um objetivo a
ser perseguido no nível das políticas públicas. Note-se que também neste modelo
temos garantidos os direitos fundamentais dos representantes de culturas tradicionais.
Um terceiro modelo, que chamarei de modelo da regra especial, ao contrário, per-
mite que uma cultura alternativa funcione conforme suas próprias regras ao lado da
cultura ocidental desde que as mesmas sejam vistas como especiais em relação às nor-
mas estatais, gerais e abstratas.5 Evidentemente, nesta hipótese, será preciso estabele-
cer regras para os casos em que houver conflitos de normas da cultura tradicional
com normas da cultura ocidental, especialmente se houver conflitos que envolvam
representantes de duas culturas diferentes.
Ficou famoso no Brasil o caso de Paulinho Paiakan, índio caiapó acusado de
estupro, que se declarou inocente, pois seu comportamento não seria punível pelas
regras de sua tribo. No caso concreto que estamos discutindo, a autoridade decisória
deveria examinar as regras das duas culturas antes de decidir se o contrato tem vali-
dade, verificando se há incompatibilidades entre as regras especiais e as regras gerais
do direito ocidental. Tradicionalmente, o direito ocidental faz prevalecer normas es-
peciais sobre norma gerais, mas trata-se de um princípio interpretativo flexível, sem
valor absoluto. Seja como for, é essencial para este modelo a existência de regras para
solucionar este tipo de conflito.
Finalmente, o quarto modelo, que denomino modelo federativo ou modelo multinor-
mativo, vê a cultura tradicional com uma nação dotada de soberania, ou seja, um ente
capaz de gerar ordenamento jurídico próprio, como o qual é preciso estabelecer rela-
ções como se estabelecem relações entre países.6 Este modelo depende do reconhe-
cimento, pela cultura ocidental, de um centro de poder independente, muito prova-
velmente, no interior de seu território; um centro de produção normativa com ampla
competência e grande autonomia para gerir seus interesses. Para a decisão do caso
que montamos, o representante da cultura tradicional será tratado como estrangeiro
e ao contrato serão aplicáveis, entre outras, as regras de direito internacional privado.
Esta construção conceitual, que pretende ser aplicável às várias legislações
existentes7 pressupõe a possibilidade de combinação de modelos, no que eles forem

5 Neste modelo, haveria o reconhecimento do que Kymlicka (1996:26) chama de “group-differentiated


rights”, direitos especiais garantidos a certos grupos culturais. Mais especificamente, haveria o
reconhecimento dos assim denominados “polyethnic rights”, direitos cujo objetivo é: “to help ethnic
groups and religious minorities express their cultural particularity and pride without it hampering
their success in the economic and political institutions of the dominant society” (KLYMLICKA, 1996:
31).
6 Neste modelo estariam garantidos todos os “polyethnic rights” segundo Kymlicka, a saber, “self-

govenment rights”, “polyethinic rights” e “special representation rights” (KLYMLICKA, 1996: 26-33).
7 Para uma descrição das características gerais da regulação brasileira sobre o tema ver FILHO, 2006;

ALBUQUERQUE, 2008. Para uma discussão mais específica de todos os institutos e temas de que tra-
tam as leis brasileiras sobre índios ver VILLARES, 2009. Grosso modo, o Brasil começou por adotar

312
compatíveis. Pode haver, por exemplo, um modelo que combine características, por
exemplo, de tutela e regra especial e de tutela e federação: no último caso, será preciso
haver uma regra que decida qual dos ordenamentos será competente para regular a
capacidade dos envolvidos em conflitos. De qualquer maneira, meu objetivo com esta
tipologia é apenas ressaltar a diversidade de possibilidade de regulação do problema
que nos interessa; cada uma delas com implicações diversas sobre o respeito à diver-
sidade cultural.
Numa análise preliminar, os modelos da exclusão e da tutela, tomados em sua
forma pura, implicam na desvalorização da diversidade e, de outra parte, os modelos
da regra especial e o federativo abrem espaço para normatividades plurais em convi-
vência com as regras do direito ocidental. Importante dizer que nenhum desses mo-
delos, em si, garantiria o respeito à diversidade cultural, pois, mesmo num modelo
federativo, seria possível imaginar que regras nacionais proibissem determinadas prá-
ticas a membros da federação. Quando dizemos que o modelo da regra especial e o
modelo federativo favorecem a diversidade, estamos nos referindo apenas a um po-
tencial. Em primeiro lugar, será importante examinar detalhadamente a tutela do pro-
blema nos pelos diversos institutos jurídicos específicos e a atuação do Poder Judici-
ário para verificar sua capacidade de concretizar os grandes princípios que orientam
a regulação.

Qual modelo escolher? Princípio democrático e institucionalização

Neste ponto da análise, podemos abordar diretamente o problema que esbocei acima:
a opção por qualquer um destes modelos poderia ser afastada, a priori, pelo princípio
democrático rousseauniano? À luz do valor da diversidade, a escolha parece ser mais
ou menos simples. Do mesmo modo, a lei positiva pode resolver, ainda que aparen-
temente, o problema: basta criar uma regra que afaste determinadas soluções e adote
outra, ponto final. Mas ponto final até quando? Sabemos, as leis podem mudar a
qualquer momento. Ademais, se ficarmos apenas com o critério do direito positivo,

um modelo de tutela integracionista e evoluiu para um modelo de tutela não-integracionista, até che-
gar, com a Constituição de 1988, a um modelo de regra especial combinado com o modelo de tutela
não integracionista. Claro, é importante notar a diferença entre a letra da lei e a ação dos agentes
públicos, que promoveram um amplo extermínio das nações indígenas, especialmente durante o im-
pério. Ver TREECE, 2008. Um modelo que se aproxima do modelo federativo é o adotado nos EUA e
na Colômbia que vêm as diversas etnias indígenas como nações. Ver MECMILLEN, 2007; SIDER, 2002;
BARIÉ, 2003; CEPAL, 2006. A Declaração de Direitos dos Povos Indígenas da ONU, assinada em 2007,
aponta na direção deste modelo. Ela garante o direito à autonomia e ao autogoverno dos povos em
questões relacionadas com seus assuntos internos e locais, destacando o direito a dispor dos meios
para financiar suas funções autônomas. Além disso, ela afirma o direito destas populações a decidir,
junto com o Estado, sobre os recursos naturais nos seus territórios, e sobre o exercício da justiça co-
munitária, de acordo com seus valores e tradições ancestrais, legitimando assim suas autoridades lo-
cais.

313
não teremos elementos para criticar nenhuma solução institucional, desde que ela te-
nha sido positivada. Pois nada impede que as instâncias democráticas existentes ve-
nham a optar, por exemplo, pelo modelo da exclusão ou pelo modelo da tutela.
Como já dito, o modelo da exclusão encontra paralelo no tratamento dos doentes
mentais graves que não têm direito de votar ou de serem votados e, portanto, não
participam da sociedade na condição de cidadãos, a despeito de terem seus direitos
defendidos e respeitados em função de sua condição de seres humanos. O modelo da
tutela, da mesma forma, encontra paralelo no tratamento de doentes mentais e crianças
e mantém a preocupação com a proteção e com o aperfeiçoamento dos indivíduos,
visto aqui como a possibilidade e o dever de integrá-los na cultura ocidental. O modelo
da regra especial e o modelo multinormativo abandonam a crença na inferioridade da cultura
tradicional e, independentemente disso, também são compatíveis com o princípio ro-
usseauniano. Fica claro que, sem aduzir a este debate um critério adicional que per-
mita estabelecer distinções e preferências entre os quatro modelos que delineamos
acima, a teoria do direito permanecerá meramente descritiva e a reflexão filosófica,
no nível abstrato da democracia como modelo, inútil diante de escolhas institucionais
concretas.
Mas que critério seria este? A matéria deve ser deixada à pura disputa política;
ou seja, a decisão tomada pelos dos cidadãos, movimentos sociais e outros entes deve
ficar acima da crítica? Ou trata-se de uma decisão ligada a imperativos de adequação
e eficiência: aquele modelo que produzir melhores efeitos ou que funcionar melhor
deve ser adotado? Mas como avaliar estes supostos efeitos? Com base em que critério?
De que ponto de vista, como desenvolver um instrumental teórico para avaliar qual
o melhor modelo institucional para regular a diversidade cultural?
Não vou realizar esta tarefa aqui em toda a sua extensão. O que me importa é
ressaltar que não parece ser possível resolver esta questão sem fazer referência a uma
concepção normativa de diversidade cultural e de sua relação com o estado de direito
e com a democracia. Sem partir de um conceito de diversidade, o estudioso se limitará
a reconstruir o direito positivo e as demandas sociais sem poder avaliá-las para defen-
der uma democracia multinormativa. De outro lado, como fugir da mera opinião, de
posições meramente subjetivas? Outro problema, relacionado com esse, é imaginar
novos modelos que podem ser capazes de realizar de forma mais efetiva o ideal do
respeito à diversidade cultural. Para esta tarefa propositiva, também seria necessário
um conceito normativo de diversidade cultural que permitisse fazer a mediação entre
a teoria de democracia e os modelos institucionais, além de uma teoria da imaginação
instituinte (COVER, 1986; CASTORIADIS, 1995; JOAS, 1996) ao, por exemplo, de-
fender o caráter mais democrático do modelo multinormativo em face de todos os demais.

314
IV. POR UMA DEMOCRACIA

MULTINORMATIVA
Capítulo 15 – Direito contra Direito

A crise do legalismo liberal

Introdução

Hans Kelsen diferenciou os textos legais das normas jurídicas, um movi-


mento conceitual crucial para a compreensão da experiência social, política e jurídica
do começo do século XX (KELSEN, 2009). Afinal, talvez não seja exagero afirmar
que este movimento nos leve a concluir que a identificação entre texto e norma não
se sustenta mais, não pode mais ser fundamentada racionalmente, nem seja capaz de
descrever o funcionamento real do sistema jurídico de sua época. Estamos diante,
sem exagero, não de uma proposta de Teoria do Direito entre tantas outras, mas do
reconhecimento do colapso de toda uma constelação conceitual nascida com o libe-
ralismo que implica, por assim dizer, no rebaixamento evidente da Teoria do Direito,
como ficará mais claro a seguir.
A diferença entre texto e norma e entre ciência do direito e direito será res-
ponsável por dissolver a ilusão ideológica do legalismo liberal, resultado do impera-
tivo revolucionário, afirmado pela Revolução Francesa, que exige respeito à letra da
lei, expressão da vontade do povo manifestada no Parlamento (BOBBIO, 1995). Des-
respeitar a lei, para os revolucionários franceses, significava usurpar o poder do povo
reunido no Parlamento: a criação do Código Civil francês e o surgimento da escola
da exegese seguem o mesmo espírito, que olhava com desconfiança extrema a inte-
pretação dos textos legais e afirmava a centralidade da lei sobre o ato de interpretar.
Como mostrou Bobbio O Positivismo Jurídico (1995), os revolucionários chegaram a
propor a extinção das faculdades de direito e da profissão de juiz, convencidos de sua
capacidade de produzir leis tão claras e perfeitas que poderiam ser aplicadas a casos
concretos por qualquer cidadão.
Em outro nível de análise, para Hegel (HEGEL, 2010), ir contra a lei é situar-
se fora do contrato social, é praticar um ato contrário ao direito, ou seja, fora dele,
problema que permanece vivo, até hoje, na dificuldade técnico-jurídica de definir o
lugar conceitual da categoria de “ilícito” (MELLO, 1991). Assim, seria o ilícito um
fenômeno jurídico, ou seja, uma negação determinada do direito, que faz parte deste
campo de inteligibilidade? Ou o ilícito é antijurídico, está fora do direito, ou seja, é

317
alguma coisa que simplesmente nega o direito, sem qualquer determinação possível?
Uma interpretação fora da lei, nesse sentido, seria uma interpretação ilícita? E a exis-
tência de várias interpretações da lei implica em que seja possível falar de várias visões
do que seja ilícito?

A impotência da teoria do direito

A formulação do problema da interpretação por Kelsen sugere que a ideolo-


gia legalista liberal caducou e deve ser deixada de lado em favor de uma outra visão
sobre o direito e de uma maneira nova de praticar a ciência do direito. Nesta nova
ordem, a indeterminação do ato de interpretar os textos legais passa a ser visto como
um fenômeno natural e algo que ajuda a demarcar a fronteira entre o que é científico
e o que não é científico. Nas conhecidas palavras do capítulo final da Teoria Pura do
Direito, o ideal liberal de segurança jurídica só pode ser atingido por aproximação e
não há nada que a ciência do direito possa fazer a respeito disso. A interpretação, para
Kelsen, deixa de ser um fenômeno passível de estudo científico, pois passa a ser vista
como uma escolha subjetiva do juiz (KELSEN, 2009).
É fácil perceber que é consequência necessária desta visão a perda de nitidez
entre lícito e ilícito e da força normativa do texto das leis. Se a demarcação entre lícito
e ilícito tiver, por alguma razão, que permanecer funcionando, seja por exigências
morais, políticas ou meramente pragmáticas, ela precisará encontrar um outro fenô-
meno onde se apoiar, qual seja, o ato de interpretação. Não é por outra razão, aliás,
que Kelsen irá se debruçar sobre o problema do controle de constitucionalidade e
ajudar a inventar as Cortes Constitucionais (KELSEN, 2013), mecanismo institucio-
nal responsável por interpretar o direito em última instância e manter sua unidade e
coerência, para além do texto constitucional.
Apesar de afirmar que a elaboração de uma teoria normativa da interpretação
é uma tarefa impossível, Kelsen não descuida de fazer um diagnóstico muito preciso
do fenômeno, desenvolvendo mecanismos para submetê-la a controle e padronização.
Sus aposta não é no desenvolvimento de uma teoria prescritiva da interpretação, por
assim dizer, mas sim, principalmente, na reflexão sobre o desenho das instituições
como mecanismo de controle e padronização desta atividade.
Já neste passo da argumentação, é importante notar, foram transbordadas as
barreiras levantadas contra a atividade de refletir e agir contra a lei, criadas por Kant
em textos como “O que é o esclarecimento?” (KANT, 1974) e “O conflito das facul-
dades” (KANT, 2017). Para Kant, é permitido discordar da lei, questioná-la publica-
mente, mas principalmente no âmbito acadêmico, sem ventilar amplamente pensa-
mentos contra a lei, muito menos desobedecê-la abertamente.
Reside aqui a importância crucial do uso público da razão entre acadêmicos,
um uso contido pelo dever de obediência e limitado a espaços controlados, que não

318
contribuam para pôr as instituições em risco. Mas é claro, fica pressuposto neste ra-
ciocínio que a lei seja clara, que o seu sentido não seja objeto de controvérsia signifi-
cativa. Não é compatível com esta visão do direito a ideia da interpretação jurídica
como construção do intérprete. Em um contexto em que as leis são indeterminadas,
é controverso afirmar quem as estaria desrespeitando ou não.
Portanto, depois de Kelsen, parece ser necessário questionar o quanto este
modo de conceber o uso público da razão em relação ao Direito não seria dependente
de uma visão textualista, ou seja, que identifique texto normativo e norma jurídica.
Afinal, se a concordância social sobre o sentido do texto se torna essencialmente pro-
blemática e o sentido do texto se esfumaça e se deixar determinar por um sem número
de atos de interpretação, oficiais e não oficiais, a “desobediência” à lei deve ser enca-
rada de outra forma: agir contra lei deve adquirir um outro sentido, pois é justamente
sobre textos normativos que passamos a divergir.
Na mesma ordem de razões, é razoável afirmar que o respeito das pessoas
cidadãs deve ser direcionado não mais ao texto normativo tout court, pois ele se tornou
um dos pontos de partida e não mais o ponto de chegada do conflito social. O res-
peito deve ser direcionado ao ato que interpreta os textos normativos oficialmente,
ou seja, com força coercitiva, na formulação de Kelsen, a Corte Constitucional que
decide problemas jurídicos em última instância.
Tal corte é desenhada por Kelsen com inspiração no modelo dos Tribunais
que lidam com litígios apenas para ampliar sua capacidade de incluir argumentos con-
tra e a favor da lei “acusada” de inconstitucionalidade (KELSEN, 2003). Entre juristas,
é desnecessário explicar que, neste caso, tecnicamente, não há litígio algum, não há
pretensão resistida alguma, apenas a mais grave manifestação de invalidade - ou de
inexistência, para alguns - a qual poderia, inclusive ser declarada sem provocação por
qualquer Juiz ou Juíza.
Como resultado deste raciocínio, os atos de cumprir a lei e de transgredi-la,
por exemplo, tornam-se menos demarcados, mais triviais e passam a poder recorrer
ao mesmo vocabulário e ao mesmo material legislativo sem soarem, um para o outro,
como uma emissão sem sentido. Se o sentido da lei passa a ser objeto de controvérsia,
ele se pode dizer sobre a afirmação de que um determinado agente social possa tê-la
descumprido.

Direito contra direito

Como acabamos de afirmar, nesta ordem de razões, afirmar que algo é contra
lei passa a ser altamente duvidoso, afinal, nada garante que o desrespeito à lei esteja,
afinal, do lado desta acusação de transgressão específica. Assistimos o tempo todo a
choques entre interpretações dos mesmos textos (RODRIGUEZ, 2012), ou seja, si-

319
tuações de direito contra direito, mesmo que estejamos situados no interior da mol-
dura kelseniana. E o uso público da razão, portanto, deixa de servir apenas para criti-
car a lei em nome da razão e passa a ter papel um constitutivo de seu sentido. Por via
de consequência, a autoridade do poder jurisdicional de dizer o que é lícito ou ilícito
passa a soar cada vez mais discricionária, ou seja, menos racional e mais livre no exer-
cício de seu poder.
Insistimos, as normas jurídicas não se confundem mais com os textos legais,
não podem mais ser obtidas pela simples leitura das palavras da lei, mas sim a partir
delas no contexto de atos de interpretação realizados por Juízes, Juízas, Advogados,
Advogadas, Cidadãos e Cidadãs que podem ser justificados por argumentos variados,
que vão muito além da letra da lei. A neutralização política do Poder Judiciário não
pode mais estar assentada apenas na mera produção da lei pelo Parlamento. Ela surgirá,
de fato, apenas no final do processo conflito de interpretação dos textos em face dos
casos concretos. O poder de legislar e de julgar ganham assim uma nova configuração.
Posta a indeterminação característica dos textos e transformação no modo
de exercer o Poder Legislativo, a tradição ocidental, por razões políticas e pragmáticas,
passou a atribuir ao Judiciário a competência de produzir interpretações oficiais coer-
citivas, que tomam a forma da construção reiterada, constante, por meio do processo
judicial, das normas jurídicas adequadas para solucionar os inúmeros casos submeti-
dos a este poder. O poder de produzir normas jurídicas coercitivas, portanto, desloca-
se do Legislativo para o Judiciário.
Afinal, de acordo com a racionalidade de nosso estado de direito, não é ad-
missível que o Judiciário deixe de julgar um caso ou adie sua apreciação indefinida-
mente em favor de um debate infinito sobre a melhor interpretação do conjunto de
textos leiais pertinentes. No momento oportuno, um juiz ou uma juíza precisa bater
o martelo e encerrar o caso, exercendo o poder que lhe foi atribuído pelo Estado, em
uma atividade que passa a definir o direito e diferenciá-lo de outros campos sociais.
Um juiz, uma juíza precisam decidir: ele pode até pretender assumir a posição de filó-
sofo e se ocupar de todas as razões imagináveis, pertinentes à decisão do caso, mas
deve fazê-lo no prazo, com o cronômetro ligado (GÜNTHER, 2004).
Cabe notar que, para além do poder-dever de decidir, que lhe foi atribuído
pelo Estado, a visão kelseniana, por assim dizer, rebaixa o Judiciário ao desnudar a
autoridade do juiz e da juíza em sua face interna, ou seja, no que diz respeito à sua
capacidade para oferecer uma justificação técnica definitiva. Afinal, para Kelsen, a
decisão judicial se resolve, de fato e de direito, na escolha subjetiva de uma das inter-
pretações possíveis. A ciência do direito, diz o autor em texto já citado, pode formular
alternativas variadas para informar o ato de interpretar, pode levantar diversas possi-
bilidades, mas não tem o poder de indicar a interpretação mais razoável ou correta
(KELSEN, 2009). Nesse sentido, o conflito social e a política que pareciam ter sido
contidas pela lei, transbordam para o momento da decisão.

320
Diante desta constatação, que é a constatação de uma impotência, Kelsen irá
propor um modelo de teoria igualmente impotente, incapaz de determinar completa-
mente o ato de interpretação, uma frustração que o autor externará, a meu ver, ambi-
guamente, no capítulo final da Teoria Pura do Direito, sem tirar todas as suas conse-
quências para a posição de jurista. Seja como for, não se pode mais esperar do jurista
que ele diga o que a lei significa e, nesse sentido, torna-se evidente e, talvez pela pri-
meira vez, autoconsciente, a perda de poder do povo e suas leis e do jurista e seus
métodos em favor da pessoa juíza. Afinal, a lei não pode mais evitar e conter o ato de
interpretação e a teoria não tem o condão sequer de indicar qual deve ser modelo de
racionalidade adequado para obter respostas corretas.
O poder do Judiciário aparece, assim, completamente nu em seu momento
de escolha subjetiva: fácil compreender a importância de sua autoridade, de sua con-
dição de intérprete oficial para a sua legitimidade; a única qualidade capaz, no registro
de Kelsen, de diferenciar a sua interpretação das demais interpretações possíveis dos
textos legais. Um Judiciário que se mostra menos razão e mais violência organizada.
De um certo ponto de vista, fica evidenciado, assim, um déficit de justificação no ato
de interpretação ou, para o autor, a impossibilidade justificar racionalmente, do ponto
de vista de uma ciência que pretenda dizer a verdade sobre o Direito, de todo ato de
interpretação.
Não é por outra razão que, como lembra Stanley Paulson, em um texto bri-
lhante (PAULSON, 1990), Hans Kelsen não desenvolveu e jamais poderia desenvol-
ver uma teoria prescritiva da aplicação das leis. O que ele pôde fazer, acrescento eu,
por exemplo, nos debates sobre a criação da Corte Constitucional austríaca, foi dedi-
car-se a nos ajudar a refletir sobre a possibilidade de construir constrangimentos ins-
titucionais (TROPER; CHAMPEIL-DESPLATS, 2005) capazes de controlar a inter-
pretação. Esta é uma reflexão de natureza análoga ao debate contemporâneo a res-
peito do papel duplo grau de jurisdição, da maneira de recrutar juízes e juízas, dos
mecanismos institucionais destinados a formar jurisprudência, entre outros temas. A
força da decisão se deve não exclusivamente à sua justificação técnica, racional, mas
também a como o poder se exerce não como razão, mas como mero poder, de acordo
com um certo desenho institucional que determina o resultado da interpretação.
A meu ver, e este é um ponto crucial, isso não significa que a visão de Kelsen
seja incompatível como projetos político-jurídicos que defendam argumentativa-
mente um determinado modelo de racionalidade jurisdicional em nome de certos ob-
jetivos e valores. Não há nada em sua visão da interpretação judicial incompatível
como algo assim, ou seja, o desenvolvimento com uma política da argumentação a
par da discussão da melhor maneira de desenhar o Poder Judiciário e a função juris-
dicional (RODRIGUEZ, 2013a). Ao que tudo indica, Kelsen apenas duvidava do su-
cesso de um projeto como este, perseguido por diversos autores contemporâneos.

321
O que Kelsen pretende ter demonstrado é que, de um ponto de vista cientí-
fico, ou melhor, do ponto de vista de uma ciência que pretenda afirmar verdades
sobre o direito, que pretenda determinar uma única resposta correta para a interpre-
tação das leis, o ato de interpretar é irracional por ser estritamente subjetivo. Mas isso
não significa que ele deva permanecer assim na prática, ou seja, sem nenhum controle,
entregue à mera subjetividade do juiz. Kelsen apenas afirma que esta discussão não é
da alçada da ciência do direito como ele a concebia, é um problema de política jurídica,
para seguir utilizando a sua terminologia. É possível, portanto, desenvolver teorias
políticas da interpretação, ou seja, teorias que defendam um certo modelo de inter-
pretação em razão de uma certa visão do papel do Juiz e do Judiciário em um deter-
minado contexto social.
Todo este movimento conceitual, longe de ser meramente teórico, pode ser
explicado por transformações ocorridas na sociedade, as quais solaparam os pressu-
postos objetivos do funcionamento das leis nos padrões imaginados pela ideologia
legalista liberal. Em um dos textos clássicos sobre o tema, “A mudança de função da
lei na sociedade burguesa”, Franz Neumann (NEUMANN, 2014) mostrou como as
leis passaram a regular fenômenos individuais, como os monopólios e oligopólios,
transformando o padrão geral e abstrato de sua formulação tradicional. O mesmo
texto mostra também como as leis passaram a incorporar standards como “boa-fé”
ou “bons costumes” os quais abriram espaço para a utilização de argumentos não
legalistas, que colocavam o Judiciário na posição de buscar fazer justiça no caso con-
creto e não apenas aplicar, mecanicamente, a norma ao caso. Vejamos esta questão
mais de perto.
As leis devem ser gerais e abstratas para que sejam capazes de sinalizar a
todos e a todas, antecipadamente, as consequências de seus atos, sem estarem direci-
onadas a nenhuma pessoa em especial. Ao assumirem esta forma, as leis são respon-
sáveis por criar segurança jurídica para os agentes políticos e econômicos, favore-
cendo a construção de mercados livres, posto que tais agentes passam a ser capazes
de prever as reações do poder diante da conduta dos agentes sociais, por exemplo, no
que diz respeito à tributação, à garantia da propriedade e a garantia do cumprimento
dos contratos.
A regulação de monopólios e oligopólios frustra a forma abstrata das normas,
pois tais normas passam a regular fenômeno individualizados, ou seja, este ou aquele
monopólio ou oligopólio, alterando assim o padrão de regulação liberal. Por exemplo,
a regulação sobre petróleo no Brasil refere-se, exclusivamente, a uma única empresa:
a Petrobrás. Da mesma forma, o conceito de “boa-fé”, ao permitir que o juiz examine
e se manifeste sobre a maneira de celebrar e as consequências para as partes, por
exemplo, de um determinado contrato. O juiz deixa de ocupar o papel de garantir o
cumprimento dos acordos entre as partes, independentemente de seu conteúdo, e

322
passa a ter poder de examinar seu conteúdo e zelar pela justiça da troca, movimento
que rompe radicalmente com a racionalidade do direito liberal.
Reside neste ponto, diga-se, na possibilidade de examinar e intervir sobre o
conteúdo dos contratos, a raiz de toda a legislação trabalhista, protetiva de trabalha-
dores e trabalhadoras, uma legislação que promove intervenções do estado sobre os
contratos de trabalho com a finalidade de estabelecer uma situação de maior equilíbrio
entre as partes, por exemplo, com a criação de cláusulas obrigatórias como o direito
a férias e ao décimo-terceiro salário. Estas mudanças, é fácil ver, nasceram da pressão
social, de reivindicações em favor do controle sobre a livre concorrência e do controle
sobre a exploração do trabalho (RODRIGUEZ, 2009a), e ajudam a explicar o movi-
mento conceitual de Hans Kelsen, ainda que não apareçam explicitamente em sua
formulação do problema.
A possibilidade de que o Judiciário intervenha sobre o conteúdo dos contra-
tos para reequilibrar a posição das partes, evidentemente, nasce de demandas sociais
que advogaram a injustiça da contratação pensada apenas nos termos clássicos, sob a
égide da mera vontade das partes. Tais demandas sociais promoveram uma transfor-
mação profunda nas estruturas do estado no ocidente, que passaram a regular o tra-
balho, a controlar a concorrência e a conceder serviços protetivos ao trabalhador
como previdência sociais, saúde, educação e outros serviços, deixando a posição de
estado mínimo para passar a corrigir injustiças sociais (RODRIGUEZ, 2009a).
Transforma-se também o modo funcionar e interpretar o direito, que passa
a estar a serviço de determinados fins fixados pelo estado, passa a promover determi-
nados objetivos de justiça social consagrados na legislação, um direito que Bobbio
denominou de direito promocional, ou seja, voltado a realizar uma determinada visão
de sociedade coletivamente debatido previsto nas leis.

Legalismo Liberal x Legalismo Democrático

Para um judiciário aristocrático?

As tentativas contemporâneas de salvar o legalismo liberal e sua constelação


conceitual e institucional da hecatombe formulada por Kelsen passam, ainda hoje, a
meu ver, por dois caminhos principais. Primeiro, pela tentativa de transformar o modelo
de racionalidade jurídica que sustenta a autoridade do Judiciário e dos juristas sobre o
direito. Ou seja, trata-se da tentativa de desenvolver, nos termos de Kelsen, uma po-
lítica da interpretação que não abdique do objetivo de construir procedimentos inter-
pretativos supostamente capaz de indicar a melhor interpretação possível das leis nos
diversos casos concretos. Esta tentativa procura salvar a ligação entre lei, interpreta-
ção e o conceito clássico de separação de poderes.

323
De outra parte, em segundo lugar, encontramos tentativas de reforçar a autori-
dade da função judicial e do sistema jurídico como um todo, compreendido como insti-
tuição especializada em interpretar e aplicar as leis, mesmo que a legitimidade da jus-
tificativa de suas decisões permaneça enfraquecida, ou seja, mesmo que não seja mais
viável construir um modelo único ou dominante para a interpretação das leis por parte
das pessoas magistradas.
Estas duas vias de reflexão, às quais Tércio Sampaio Ferraz Jr chamou de
“cometimento” e “relato” (FERRAZ JR., 2018) e às quais eu chamaria, atentando
para os agentes sociais que defendem e lutam pelas ideias subjacentes, de “Projeto de
uma elite do poder” e “Projeto de uma elite da razão”, definem estratégias as quais,
em primeiro lugar, (a) advogam mudanças no modelo de racionalidade jurídica para
reafirmar a cientificidade da aplicação do direito, ainda que em novos termos, e, em
segundo lugar, (b) defendem o reforço da autoridade dos juízes e juízas e seus atos de
interpretação compreendidos como mero poder, concentrando em suas mãos o poder
de interpretar as normas jurídicas.
Tais estratégias fazem parte, até onde eu posso perceber, de um esforço de
viés elitista que não abre mão de manter o ideal de um Judiciário como poder especiali-
zado e técnico operado por uma elite jurídica dotada de poderes e de saberes igualmente
técnicos; tudo para tentar “salvar” o direito da pluralidade de interpretações possíveis,
um fenômeno, no limite, encarado como indesejável, disfuncional e passível de com-
bate por meio do reforçar do poder institucional da elite jurídica. Se não é mais pos-
sível afirmar, sem provocar ceticismo, que a pessoa do magistrado apelas aplica a lei,
é preciso poder afirmar que o poder de dizer o direito é especializado e complexo,
inacessível às pessoas comuns, e a autoridade da pessoa magistrada está acima de
qualquer questionamento.
Para dizer de outra maneira, em face da desestabilização do liberalismo lega-
lista, um pensamento jurídico de viés aristocrático têm procurado reafirmar o poder
das pessoas dos juristas na condição de detentoras de um saber-poder especializado, ati-
nente a profissionais e a autoridades especializadas, que devem concentrar em suas
mãos o poder de dizer o Direito, pois acederam a ele por um procedimento especial
(por exemplo, o concurso), tendo sido selecionados em razão de características pro-
fissionais e pessoais que os separam dos reles mortais. Tais elites, evidentemente, de-
vem ser conhecedoras de uma Ciência do Direito que se pretende dotada de um mo-
delo de racionalidade bastantes específico, um saber cifrado, acessível apenas a agen-
tes especializados.
A meu ver, como ficará mais claro, adiante, a valorização insistente da técnica
jurídica, a citação constante de autoridades dotadas de autoridade científica como
fundamento de atos de interpretação e a disputa aberta e constante pelo critério de
cientificidade do direito tenderão a crescer na medida em que as tentativas de salva-
mento do legalismo liberal forem se mostrando cada vez menos frutíferas.

324
A teoria do direito à serviço da aristocracia judicial?

Consideramos que tal forma de abordar o problema é aristocrática porque


ela tende ignorar ou, pior ainda, a ocultar a personalização necessária do Poder do
Judiciário, decorrência necessária da crise do legalismo liberal discutida no tópico an-
terior. Vejamos: sob a égide do legalismo liberal, caberia à pessoa que ocupa o cargo
de Juiz compreender e aplicar a lei, ou seja, falar em nome dela, da lei, e não em nome
de suas convicções pessoais, sejam elas de qualquer natureza, inclusive políticas. Afi-
nal, neste registro, a lei é a vontade do povo e, ao falar em nome dela, o intérprete
assumiria uma posição necessariamente despersonalizada e politicamente neutra em
relação ao debate público. É claro que a lei pode ser modificada sempre, a aprovação
de uma lei não encerra jamais o debate político, no entanto, os atos de interpretação
especializados, jurídicos, nesta ordem de razões, neste desenho institucional especí-
fico, seriam tomados como impessoais e politicamente neutros.
Até onde é possível compreender, a literatura a respeito da racionalidade ju-
risdicional, ao menos desde o começo do século XX, tem procurado neutralizar ou
simplesmente ocultar – ao deixar de mencionar o problema explicitamente - a perso-
nalização do Judiciário, apostando em sua despersonalização via sofisticação técnica
ou reforço de sua autoridade. Tudo isso sem questionar de maneira consequente a
crise da posição do Poder Judiciário em sua configuração clássica como organismo
responsável pela interpretação oficial das leis. Tal estratégia tende a reforçar o papel
da aristocracia judicial em um cenário em que ela não pode mais se apresentar, sem
mais, como simples voz do povo por falar em nome da lei.
Vale a pena insistir neste ponto para deixar o sentido desta crítica o mais
claro possível: o projeto da legalidade liberal não é, evidentemente, aristocrático. Ele
é plenamente compatível como um regime democrático desde que, evidentemente, as
leis sejam produzidas por meio de procedimentos democráticos. Afinal, ao aplicar a
lei a pessoa do Juiz ou da Juíza respeitam a vontade do povo, adaptando-a, se neces-
sário, para às peculiaridades de casos concretos. Em versões mais radicais, como nos
explica Bobbio, o projeto incluía, inclusive, a proibição da pessoa dos magistrados de
interpretar a lei (BOBBIO, 1995).
No entanto, a partir do momento em que a interpretação da lei passa para o
centro de gravidade estado de direito, ou seja, a partir do momento em que “texto da
lei” e “norma jurídica” passam a ser vistos como fenômenos diferentes e a interpre-
tação se transforma em um ato de atribuição de sentido, não é mais possível dizer que
“aplicar” a lei significa respeitar a vontade do povo, pois a “aplicação”, na verdade,
passa a ser construção de sentido.
Ainda, a partir deste momento é um equívoco manter na condição de pres-
suposto o desenho tradicional da função jurisdicional e da racionalidade jurídica como

325
a conhecemos que inclui a afirmação da centralidade do Judiciário, dos juízes e dos
juristas em geral na condição de profissionais especializados, dotados de um poder-
saber especial, capaz de interpretar e “aplicar” as leis corretamente. Um equívoco
porque manter tal desenho passa a concentrar, cada vez mais, o poder legislativo nas
mãos dos agentes jurídicos especializados em detrimento da soberania popular.
No limite, a depender de como o Judiciário e a profissão jurídica sejam de-
senhados, poderemos estar diante de uma verdadeira usurpação do poder de legislar
pela profissão jurídica com a formação de um grupo de profissionais que mereceriam
ser chamados, nessas circunstâncias, sem meias palavras, de aristocracia jurisdicional.

Para um legalismo democrático

À luz desta visão do problema, seria necessário examinar as diversas teorias


da racionalidade jurisdicional em disputa no mercado das ideias contemporâneo para
avaliar seu caráter aristocrático ou não com maior grau de detalhe, objetivo que não
cabe perseguir neste momento. Mas, de qualquer forma à primeira vista, uma defesa
irrefletida do legalismo liberal nos termos apresentados parece assumir características
claramente aristocráticas ao deixar de tirar todas as consequências do caráter necessa-
riamente indeterminado da decisão judicial e, por via de consequência, não questionar
a separação de poderes como a conhecemos.
Ao proceder desta maneira, o pensamento jurídico segue reafirmando como
objetivo do direito a fidelidade às leis, cujo sentido não está mais explícito em seus
textos, mas passa a ser resultado de um ato de interpretação fundado em argumentos
que permanecem em disputa mesmo após a decisão judicial (RODRIGUEZ, 2012).
Por isso mesmo, o resultado desta maneira de pensar tende a fortalecer a aristocracia
judicial na pessoa dos responsáveis por interpretar os textos normativos oficialmente.
É verdade que, neste contexto, as teorias da argumentação, desde que com-
prometidas como a consideração dos mais diversos pontos de vista no processo de
solução dos casos judiciais, ou seja, uma teoria conformada com a impossibilidade
efetiva de esgotar toda a riqueza argumentativa da vida social e obter a melhor solução
para o caso, têm evidente potencial democrático. Teorias que incorporem, explicita-
mente, o problema da indeterminação do direito. Por exemplo, a teoria do “senso de
adequação” de Klaus Günther (GÜNTHER, 2004) de acordo com a qual a argumen-
tação jurídica se diferencia da argumentação moral principalmente porque precisa ter-
minar a tempo de produzir decisões que sirvam de orientação para a vida social.
Por isso mesmo, é importante esclarecer que é muito diferente afirmar, em
defesa do legalismo, (a) que o juiz deve ser legalista, deve seguir sempre e de perto o
texto da lei, cujo sentido é tomado como claro e evidente, de afirmar que (b) que o
juiz deve levar a lei - os textos normativos jurídicos em geral - em conta em seu

326
processo decisório, ou seja, que ele não pode deixar a lei fora de seu elenco argumen-
tativo, pressupondo que o que “lei” irá significar naquele caso será algo construído
pela decisão no contexto de uma certa comunidade de intérpretes.
Afinal, todas as pessoas magistradas podem divergir sobre qual é o texto legal
pertinente ao caso, podem divergir sobre o sentido de um mesmo texto legal julgado
pertinente pare decidir determinado caso, extraindo dele normas jurídicas totalmente
diferentes e, entre outras tantas possibilidades, as pessoas magistradas podem concordar
sobre texto e norma e divergir sobre o sentido daquela norma para aquele caso concreto.
No caso de (a) temos a afirmação do legalismo liberal em sua versão clássica,
que identifica a defesa da fidelidade à lei com uma afirmação ontológica sobre o que
o direito é e deve ser. No caso de (b), temos a defesa genérica de um legalismo que
vou chamar de legalismo democrático, ou seja, não ontologizante, não essencialista; um
legalismo tomado como parte de um projeto de democracia que defenda a necessi-
dade de manter as leis e o Judiciário como referência para a disputa política, ou seja,
que defenda a necessidade de instituições jurídicas especializadas para solucionar con-
flitos sem o uso da violência e para garantir o direito das minorias contra as maiorias,
as quais podem e manifestar, por exemplo, em eleições majoritárias.
Além disso, para desenvolver mais um pouco o argumento, é diferente afir-
mar, partindo do legalismo democrático como pressuposto, que (c) o Judiciário deve
manter suas feições clássicas, desenhadas sob a égide do legalismo liberal em sua ver-
são tradicional, ou seja, que o Judiciário deve estar organizado institucionalmente em
função de Juízes e Juízas individuais e turmas colegiadas de Juízes e Juízas e, de outra
parte, afirmar que (d) é necessário repensar todo o desenho do Poder Judiciário, pois
o seu desenho institucional clássico e o modelos de racionalidade de que ele utiliza
para julgar casos concretos não são mais adequados para lidar com o fato de que a
indeterminação das decisões e os conflitos por interpretações da lei se tornaram a
regra, uma situação normal.
No caso da posição (c) estamos diante da defesa, que me parece problemática,
de um desenho institucional clássico em um contexto completamente diferente, um
contexto em que os pressupostos de funcionamento do Poder Judiciário como o co-
nhecemos não estão mais presentes. Pois, se o que foi dito na primeira parte deste
texto estiver correto, ou seja, se o ato de interpretar está no centro do funcionamento
do direito contemporâneo e não a lei; sob o legalismo democrático, torna-se difícil
afirmar que o ato de interpretação seja totalmente independente da pessoa que o ar-
ticula. Este, passa a ser um ato pessoal, que não precisa ser subjetivo, não precisa
consistir em mera escolha subjetiva, mas depende sim da política adotada pela pessoa
que o esteja praticando, ou seja, a sua política jurídica.
Ao invés, portanto, de apostar na “qualidade técnica”, na “sofisticação teó-
rica” ou na suposta “democracia” do método de interpretação ou da pessoa do intér-
prete, será necessário, como já dito, pensar a racionalidade jurídica como construção

327
e argumentação além de, eventualmente, abrir a possibilidade de ampliar o elenco de
pessoas que podem participar e desejam se ver representadas no procedimento utili-
zado pelo Judiciário para interpretar as leis. Ou seja, será preciso imaginar uma visão
não aristocrática da decisão também neste nível, o nível do exercício da função judicial.
Para deixar meu argumento ainda mais claro, talvez seja útil afirmar que man-
ter a função jurisdicional como um função exclusiva de especialistas, ou seja, juristas
formados por uma visão do Direito como um saber especializado em um momento
histórico em que fica claro que a interpretação é uma construção de sentido que de-
pende da pessoa do magistrado pode resultar na concentração de um poder excessivo
nas mãos da aristocracia judicial, contribuindo para deixar fora de nosso campo de
visão a possibilidade de democratizar o judiciário via desenho institucional, mais es-
pecificamente, por meio da participação das pessoas cidadãs no processo decisório.
Como se vê, evidencia-se no conceito de legalismo democrático o potencial
explicativo e prescritivo de uma Teoria do Direito pensada a partir da experiencia
constitucional brasileira,
É justamente neste ponto que eu manifesto uma série de discordâncias em
relação a boa parte de meus pares no campo da Teoria do Direito. Afinal, grande
parte do pensamento sobre interpretação jurídica no último século, os populares Ro-
nald Dworkin e Robert Alexy inclusive, adotaram a estratégia de reformar e fortalecer
a técnica jurídica em detrimento de uma reflexão paralela e necessária, a meu ver, a
respeito do desenho institucional do Poder Judiciário, ou seja, do sentido atual da
separação dos poderes e da função do Judiciário neste novo contexto (DWORKIN,
2007; ALEXY, 2001). Sua resposta para a repersonalização do Judiciário foi o forta-
lecimento do que eu chamei de “projeto de uma elite da razão”.
Outros autores, como Waldron (WALDRON, 1999) e Tushnet (TUSHNET,
1999), reafirmando, como os primeiros, os pressupostos da separação de poderes em
seu sentido clássico, afirmam que, diante do estado atual das coisas, o qual induz o
ativismo judicial, devemos devolver o poder de criar normas para o Legislativo e re-
duzir o poder do Judiciário. Ainda, autores Roberto Gargarella (GARGARELLA,
2014) ainda que afirmem ser necessário redesenhar o Judiciário, por exemplo, para
que ele realize diálogos institucionais no processo de tomada de decisões ou seja capaz
de tomar decisões estruturantes, que modifiquem o funcionamento do Poder Execu-
tivo, não dedicam muita atenção à criação de um modelo de racionalidade jurídica
adequada à sua visão do Judiciário, favorecendo a manutenção das atuais elites judi-
ciais, em um “projeto de elite do poder”.
Para resumir, se, depois de Kelsen, a afirmação da autoridade dos Juristas e
dos Juízes sobre o direito soa arbitrária, pode-se dizer o mesmo da criação de um
método único e objetivo para a interpretação e a aplicação do direito e a manutenção

328
do atual desenho da separação dos poderes. A melhor forma de abandonar estes im-
passes seria repensar em profundidade em que termos faz sentido defender tanto uma
técnica jurídica especializada quanto um determinado desenho de Poder Judiciário.
Esta linha de investigação, que relaciona modelos de racionalidade jurídica e
desenho institucional da função jurisdicional desenvolvidos por exemplo, no livro
“Como decidem as cortes?” (RODRIGIEZ, 2013), parece fazer ainda mais sentido
quando observamos o estado de guerra de todos contra todos em que se encontra a
metodologia jurídica atual, incapaz de oferecer à prática do direito um modelo con-
vincente a respeito da interpretação e a aplicação das leis. Também as acusações de
ativismo, egocentrismo ou de mero arbítrio dirigidas a diversos Juízes e Juízas indivi-
duais e Tribunais, que comprometem sua legitimidade diante da esfera pública.
E afirmamos tudo isso ainda que seja duvidoso asseverar que, algum dia, um
modelo de racionalidade hegemônico tenha de fato existido. Pode ser que tal impres-
são não passe de uma ilusão retrospectiva, resultante do modo de proceder da histo-
riografia das ideias no campo do Direito, normalmente desenvolvida em apartado do
estudo do efetivo funcionamento das instituições, ou seja, das sentenças dos juízes
tomadas em concreto.
Seja como for, não parece ser exagero afirmar que, nos dias que correm,
praticamente todas as semanas de todos os anos, algum estudioso ou estudiosa, do-
tada de um mínimo de ambição e percepção da confusão em que estamos envolvidos,
não se sinta na posição de propor uma nova revolução metodológica para o Direito
ao elaborar uma “nova” visão sobre a racionalidade jurídica.
É cada vez mais difícil dar conta da velocidade com que a literatura nacional
e mundial cria modelos de racionalidade jurídica novos, um processo que se desen-
volve, até onde posso avaliar, ao menos no Brasil, pelas costas da prática jurídica, que
parece estar cada vez menos preocupada com o que dizem os juristas e a teoria do
direito, funcionando de maneira cada vez mais fragmentada e com fundamento em
argumentos de autoridade (RODRIGUEZ, 2013a).

A impotência do judiciário como democratização

Repensar o sentido da técnica jurídica, problema que não vamos enfrentar


em toda a sua complexidade neste texto, implica em repensar toda a gramática da
política e do direito no contexto dos estados de direito, processo de difícil execução,
seja pela resistência das forças sociais interessadas e beneficiadas por uma certa con-
figuração institucional (RODRIGUEZ, 2010a), seja pela dificuldade em ultrapassar a
imaginação institucional característica desta potente tradição. De qualquer maneira,
para que este projeto possa avançar é necessário que o Direito se ponha no nível do
cidadão e da cidadã contra seu impulso aristocrático.

329
Este novo movimento de rebaixamento, que reputo análogo ao rebaixa-
mento da Teoria levado adiante por Kelsen no começo do século XX, diga-se, não
pretende apontar para uma eventual perda de complexidade e de densidade argumen-
tativa do direito e da função jurisdicional. Ao contrário, trata-se de substituir a ideia
de um Juiz, de uma Juíza, de um Jurista, de uma Jurista estritamente técnicas, pelo
ideal de uma racionalidade jurídica democrática, capaz de levar em conta todos os
argumentos pertinentes e relevantes para solucionar os casos concretos que venha a
enfrentar. Uma racionalidade jurídica que pense legislação e interpretação como es-
paços democráticos.
Tal racionalidade estará preocupada, principalmente, com a densidade, a co-
erência e a amplitude da justificação das decisões e não apenas com as características
do estilo de argumentação empregada e de seus autores, ou seja, com as características
do tipo de argumento utilizado pelas instituições oficiais e sociais. O direito, visto
desta forma, passa a ser uma disciplina e uma prática voltada para a avaliação crítica
interdisciplinar de argumentos de natureza variada, tendo em vista os projetos de le-
galidades, textos legais e os casos concretos a serem decididos por organismos espe-
cializados, mas debatidos amplamente pela sociedade.
Não temos espaço para refletir aqui em detalhes sobre esta proposta de con-
figuração do pensamento jurídico. A pretensão deste artigo é desenhar seu esboço,
apontando os problemas centrais com os quais ela deve lidar. Mas, como já foi dito,
este modo de pensar o direito e a política não escapará de se apresentar como um
trabalho interdisciplinar, capaz de lidar com argumentos sociais, econômicos e políti-
cos ao mesmo tempo; também com uma pluralidade de fontes normativas.
Esta nova racionalidade terá, evidentemente, implicações sobre o desenho
do Judiciário, ou seja, sobre o desenho das instituições responsáveis por julgar casos
concretos, as quais deverão depender menos dos juízes e juízas individuais e contar
com a participação direta da sociedade, por exemplo, por meio de audiência públicas,
amicus curiae, jurados nas mais diversas instâncias, inclusive em âmbito constitucional,
cortes colegiadas com a participação de representantes da sociedade, entre outros me-
canismos institucionais capazes de trazer para dentro do Judiciário as razões pertinen-
tes para decidir.
Nesse sentido, ao invés de tentar ocultar a fragilidade, a indeterminação, a
impotência, a personificação que caracteriza o ato de interpretar as leis diante de um
caso concreto com a criação de novas teorias sobre a racionalidade jurídica ou, ainda,
pela mera afirmação, sem mais nada, da autoridade do Judiciário e dos juristas na
condição de legítimos possuidores da prática e da reflexão a respeito do direito, é
preciso repensar a relação entre direito, política e sociedade juntamente com o dese-
nho e a relação entre todas as instituições do estado de direito, ou seja, falar a partir
deste fragilidade a qual, de fato, aponta para novas alternativas para desenhar o direito
ocidental.

330
Um outro direito: para uma democracia multinormativa

A jurisgênese

Um primeiro passo nesta direção exige reconhecer que os agentes sociais


também interpretam os textos legais, seja para concordar com seu sentido oficial, seja
para instaurar controvérsias públicas a seu respeito com a intenção de transformá-los
e, ainda, para justificar seu modo de agir em relação aos demais agentes sociais, me-
diante a afirmação de um determinado sentido para as leis, que pode coincidir ou não
com o seu sentido oficial. Nesse sentido, é razoável afirmar que o uso e o sentido
oficial do direito convivem com variados usos e sentidos sociais do direito, todos eles
referidos aos mesmos textos legais, sem que um deles elimine os demais ou seja capaz
de paralisar seu processo de surgimento. O ambiente do “direito contra direito”, as-
sim, passa a ser visto como algo trivial.
Não é porque um juiz, uma juíza ou uma corte superior tenha se manifestado
sobre um problema que toda a sociedade irá concordar e se conformar automatica-
mente com a sua visão do direito. Aquela decisão será dotada de força coercitiva, ou
seja, poderá ser imposta com o uso da violência legítima do estado, mas não terá o
condão de eliminar, ipso facto, comportamentos em desacordo com ela ou de fazer
cessar o debate social sobre o sentido do direito. Algumas dessas controvérsias e atos
de desrespeito, com efeito, serão levadas ao Judiciário ou ao Parlamento, por exemplo,
com o objetivo de modificar a redação de um texto legal ou de eliminá-lo do mundo
do direito. Mas outras controvérsias servirão apenas para orientar a conduta dos agen-
tes sociais uns em relação aos outros, sem a necessidade de manifestação oficial, ainda
que façam referência aos textos legais.
O estudo do direito e da política, portanto, nesse registro, não pode mais ser
encarado como uma reflexão sobre o sentido das normas, de um lado, e sobre as
diversas configurações do poder, de outro. A política e o direito se transformam na
disputa entre legalidades alternativas, como quer Judith Butler (BUTLER, 2014), ou
entre mundos constitucionais paralelos, como quer Robert Cover (COVER, 1995),
ainda, entre diversos projetos de legalidade ou projetos constituintes os quais desenham as
fronteiras entre sociedade e estado, entre direito e política, de formas as mais diferen-
tes em um processo de jurisgênese incessante, para usar a terminologia de Robert Cover.
A indefinição essencial do que seja lícito e ilícito, mesmo quando estamos
diante do direito posto, abre espaço para esta disputa sobre o sentido do conteúdo e
do desenho das instituições, alimentada pelo livre exercício da liberdade de insurrei-
ção, ou seja, de questionar e tentar transformas as normas postas. De novo, como
pergunta Judith Butler em Clamor de Antígona, para começar, há parentesco sem direito?

331
E podemos acrescentar, há pessoas sem direito? Há amor ou família sem direito? Ou
todos estes fenômenos já são a configuração de um determinado projeto instituinte do-
tado de pretensões de moralidade e de coercibilidade, que disputa com outros proje-
tos paralelos a proposta de afastar o Estado da regulação direta sobre determinado
âmbito social ou, em outros casos, exigir sua intervenção direta sobre as relações so-
ciais?
Se “lei” e “contra a lei” encontram-se agora confundidas e enredadas, sujeitas,
eventualmente, à manifestação de um poder oficial que, seja como for, não terá o
condão de transformar sua natureza de atos de intepretação, a reflexão sobre o direito
e sobre a política não deveria se voltar, justamente, para tais atos, os quais estarão, a
mais das vezes, em estado de conflito aberto?

Os usos do direito

Com efeito, um dos motores da gênese e da transformação do direito está,


justamente, nas controvérsias em que os agentes sociais questionam os textos legais
e/ou as normas jurídicas aplicadas a seu caso, tanto em seu sentido oficial quanto em
seu sentido social, ao afirmar publicamente sua ilegalidade ou a sua inconstitucionali-
dade; com o objetivo de convencer a opinião pública, seus pares e, apenas eventual-
mente, as instituições formais, a modificá-las.
Por isso mesmo, a prática e a pesquisa em direito não podem girar exclusi-
vamente ao redor dos textos normativos. Elas devem consistir no estudo das variadas
apropriações dos textos em argumentações públicas e privadas no contexto de con-
trovérsias oficiais e sociais a respeito dos vários sentidos do direito. Nessa ordem de
razões, o direito terá, necessariamente, um momento empírico social que consiste na
reconstrução dos variados projetos de legalidade que circulam nas instituições formais
e na sociedade e disputam a adesão da esfera pública e um momento empírico oficial,
qual seja, a reconstrução da atuação dos organismos formais.
O exame das instituições formais permitirá identificar os variados usos ofi-
ciais do direito, que também estarão, no mais das vezes, em estado de disputa, a par
dos atos de autenticação que irão validar, como veremos adiante, este ou aquele pro-
jeto constituinte em determinado momento e contexto e o desenvolvimento de crité-
rios para manter ou eliminar legalidades em disputa, ou seja, critérios para exerce o
poder jurispático de eliminar direitos. De outro lado, a pesquisa do uso social do direito
nos permite identificar as várias maneiras pelas quais os agentes sociais usam textos
legais e normas jurídicas contidas em decisões judiciais, em especial as controvérsias
públicas que eles instalam como a finalidade de disputar o sentido do direito.

332
Sobre o uso oficial do direito: jurispatia e conflito de legalidades

No primeiro caso, como já dissemos, estaremos diante do uso oficial do direito,


ou seja, um uso direcionado aos organismos responsáveis por solucionar casos con-
cretos com a utilização do material jurídico, mediado necessariamente por profissio-
nais do direito. Neste contexto, a utilização de argumentos estritamente jurídicos e
argumentos científicos, generalizações de cunho sociológico, argumentos relaciona-
dos a finalidades de políticas públicas, entre outros, ganham um sentido específico,
tradicionalmente estudado pela teoria da racionalidade jurisdicional.
Contemporaneamente, a reflexão neste campo tem discutido o significado e
a conveniência da expansão da racionalidade jurídica para além de argumentos fun-
damentados em regras jurídicas, com a inclusão de argumentos de princípio e de po-
lítica (pública), entre outros, para usar a formulação de Ronald Dworkin. Cada con-
junto de problemas jurídicos será acompanhado de uma determinada tradição de dis-
putas argumentativas relativamente sedimentadas, girando em torno de textos legais,
mas, como já dito, sem se limitar a eles. Este é o espaço para o desenvolvimento de
teorias da interpretação.
Ainda nesta hipótese de uso do direito, uma pergunta empírica relevante é
aquela que visa identificar possíveis relações entre os agentes sociais e agentes jurídi-
cos especializados, por exemplo, advogados, defensores públicos, entre outros, para
investigar a existência ou não de estratégicas de litigância organizadas. Em uma pala-
vra, neste caso, trata-se de estudar como os conflitos sociais são levados, por assim
dizer, da sociedade, de uma determinada arena de debates, até o poder judiciário.
Quem toma esta decisão? Por que e em que contexto ela é tomada?
Mais do que isso, será necessário também desenvolver critérios e modelos
de racionalidade para lidar com constantes conflitos entre legalidades, ou conflitos
entre ordens normativas, as quais buscam se afirmar com ou sem o reconhecimento
das instituições oficiais. Tais modelos e critérios devem alimentar não uma atividade
puramente hermenêutica, centrada em textos e fatos narrados por meio de textos,
mas um pensamento sociojurídico complexo, uma teoria da interpretação, por assim
dize, capaz de avaliar as legalidades em conflito por meio da escuta de diversas vozes
sociais, teóricas e políticas, pertinentes para a solução do caso.

Sobre o uso social do direito: autenticação, regulação social e conflitos limia-


res

Além disso, no segundo caso, iremos nos deparar com variados usos sociais do
direito nos quais argumentos jurídicos são mobilizados pelos agentes sociais com mo-
tivações diversas para atingir resultados também diversos; motivações e resultados

333
que ainda aguardam pesquisas empíricas mais detalhadas sob esta perspectiva. De
saída, é importante levantar a hipótese de que os diversos usos sociais do direito não
visam, necessariamente, obter a autenticação oficial, afinal, os agentes sociais podem
mobilizar o direito em seus discursos sem ter o objetivo prévio de propor uma ação
judicial futura, mas apenas para delimitar e articular sua relação com seus pares.
Um determinado episódio de uso social do direito pode culminar na propo-
sição de uma ação judicial ou a busca de um mecanismo qualquer de solução de con-
flitos, mesmo não estatal, com a finalidade de mudar a arena da controvérsia e, por
conseguinte, alterar as regras para a utilização dos argumentos que a informam, tam-
bém suas eventuais consequências, quais sejam, em especial, a possibilidade de ativar
o uso da violência estatal ou não estatal para efetivar um certo sentido atribuído a um
texto legal. O movimento pelo qual os agentes sociais decidem levar seus conflitos
até os mecanismos jurídicos formais para confirmar e fortalecer sua posição de poder
pode ser chamada de uma busca por autenticação junto ao poder do estado.
Por meio da autenticação, conceito utilizado por Otto Kirchheimer (KIRCH-
HEIMER, 1961) para compreender a função do Judiciário na segunda metade do
século XX, os agentes sociais pretendem afirmar sua posição como superior às demais
participantes da controvérsia, por meio da obtenção do reconhecimento simbólico
do judiciário e a consequente possibilidade de reivindicar o uso da violência estatal
em favor de seu projeto normativo. O debate sobre este ou aquele texto, normalmente,
terá como objetivo fazer com que o Estado ou outro mecanismo organizado de vio-
lência deixe de intervir sobre determinado tema ou, ao contrário, fazer com que ele
avance sobre ele e o regule em determinado sentido. A autenticação dos vários pro-
jetos constituintes, é importante dizer, também pode ser obtida junto ao Parlamento.

A regulação social autônoma

Posto isto, pode-se levantar uma segunda hipótese de pesquisa: os projetos


instituintes pretendem fazer avançar ou retrair o poder do estado sobre a ordem nor-
mativa controlada por determinados agentes sociais no âmbito das relações pessoais,
da família, das empresas e de tantos outros espaços de interação social. Em outras
palavras, estes projetos visam a promover ou criar obstáculos para a regulação social autônoma.
Além disso, estes projetos também podem pretender fazer com que o direito
estatal venha a coincidir com a visão deste ou daquele agente social sobre a regulação
de um determinado tema em uma tentativa de colonizar o direito positivo. Além disso, o
direito também pode ser utilizado para tentar enfraquecer ou eliminar adversários na
disputa do espaço social, mesmo sem que uma determinada visão do direito seja le-
vada à autenticação por uma instituição formal, hipótese que chamaremos de uso bélico
do direito.

334
Em poucas palavras, os projetos instituintes parecem estar sendo utilizados
para manter ou ampliar as fronteiras entre o direito positivo estatal e as regras criadas
ou reconhecidas pelos diversos agentes sociais; também para neutralizar ou destruir
competidores na produção desta normatividade. Para usar uma expressão de Robert
Cover, os agentes sociais, tomando o material jurídico como referência, parecem pro-
curar criar mundos constitucionais próprios que apenas em parte coincidem como a visão
de sociedade, por exemplo, presente em decisões judiciais. Nestes mundos constitu-
cionais paralelos e em disputa, o direito positivo estatal ocupará (ou não) papéis dife-
rentes e com sentidos diferentes, mas, provavelmente um papel sempre secundário
em relação às normas que regulam o comportamento das pessoas nestes variados
ambientes.
A existência de mundos constitucionais paralelos, ou seja, de práticas sociais
que podem mobilizar ou não os mesmos textos de maneiras variadas e em contextos
variados, para compor distintas narrativas sobre o mundo, não se limita a nenhum
campo do conflito social. As práticas dos agentes sociais não são completamente de-
terminadas pelo direito positivo, mas se relacionam com ele a partir de narrativas que
é preciso reconstituir a partir de investigações empíricas, por exemplo, como já dito,
no âmbito das famílias, das empresas, das universidades, de comunidades tradicionais
e assim em diante.

Conflitos limiares e transformação do direito

É provável que, e aqui levantamos uma terceira hipótese de pesquisa, no


momento em que as fronteiras entre ordens normativas relativamente estáveis entrem
em jogo, seja em razão de conflitos entre grupos ou da insatisfação de um ou mais
indivíduos, seja em razão do surgimento de uma nova ordem normativa, inicialmente
contrária ao direito posto, o conflito tenda a ser levado ao Poder Judiciário ou ao
Parlamento para que se procure reafirmar ou questionar o desenho de tais fronteiras,
reafirmando ou transformando o sentido das leis e, especialmente, da Constituição.
Um conflito limiar põe em jogo a identidade daquela formação social e/ou de
determinados agentes sociais. Por exemplo, a legalização dos sindicatos foi um passo
decisivo na reforma de todo o direito privado de tradição europeia e, logo a seguir,
do padrão de estado até então vigente. Legalizar um sindicato significava admitir que
a troca entre trabalho e salário não era necessariamente justa: os trabalhadores pode-
riam lutar por mais direitos além da remuneração, por exemplo, por restrições na
jornada de trabalho, por salário mínimo, por pagamento de horas extras etc.
Ao tornar legal esta possibilidade, o direito abriu espaço para que estas cláu-
sulas, antes negociadas privadamente, se tornassem, lei e, portanto, passassem a ser
aplicadas obrigatoriamente a todos os trabalhadores e trabalhadoras. A legalização
dos sindicatos, ou melhor, a autenticação de seu projeto normativo, portanto, foi o

335
primeiro passo na transformação de toda uma gramática institucional a par de trans-
formações sociais de grande transcendência, aquelas que resultaram na construção
dos Estados de Bem-Estar Social.
Podemos supor, portanto, que o processo incessante de criação de novos
mundos constitucionais e suas respectivas práticas e identidades, seja um dos motores
decisivos para a transformação da jurisprudência e da legislação postas, as quais ten-
derão a reagir a mudanças sociais significativas, ou seja, aquelas que ponham as refe-
ridas práticas e identidades em questão. Também para questionar seu poder e sua
legitimidade, diga-se.
A transformação do direito, portanto, seria resultado do acúmulo de conflitos
limiares, que nada mais são, no limite, do que a expressão de choques entre a legalidade
oficial constitucional e novos projetos constituintes, os quais problematizam sem tré-
gua a legalidade ela mesma e as fronteiras entre as diversas ordens normativas que
convivem em um mesmo espaço social, mantendo tanto o sentido do direito quanto
as identidades de indivíduos e grupos em constante fluxo. Sob constante ameaça de
ruptura e fragmentação. É nesse sentido que Cover afirma, neste ponto, concordando
com Franz Neumann, que juristas devem estudar não apenas as dimensões do ser e
do dever ser, mas também a dimensão do vir a ser (COVER, 1995. NEUMANN, 2013).
Parece ser possível reconstituir o histórico de conflitos limiares repetitivos que
acumularam a pressão social capaz de promover determinadas mudanças no direito
positivo, ou mesmo a criação de ordens privadas de regulação que procuram simples-
mente escapar ao controle oficial, como mostrou Günther Teubner, por exemplo, a
regulação do futebol ou da internet, aplicável a diversos países sem passar pela apro-
vação do parlamento dos estados (TEUBNER, 2003) . Ou a regulação de grupos
indígenas ou religiosos, como os amish nos Estados Unidos, que funcionam sob o
abrigo, mas em paralelo à ordem estatal.
Assim, tais conflitos podem motivar a criação de ordens normativas relativa-
mente autônomas, que permaneçam funcionando ao lado e em relativa harmonia com
o Estado, ou, ainda, podem motivar determinados projetos constituintes a romper
com o estado em favor da tentativa de criar um verdadeiro novo direito, dotado de
regras próprias para a criação de novas normas jurídicas e mecanismos próprios de
coerção. Este momento agônico e radical de conflito e criação de um novo direito
está presente em potencial no conflito entre ordens normativas.

Normatividades em conflito

A utilidade dos conceitos

Com este instrumental conceitual é possível compreender melhor a configu-


ração dos conflitos sociais contemporâneos, tanto no âmbito das arenas oficiais,

336
quanto no âmbito das arenas sociais. No âmbito do uso oficial do direito, trata-se de
investigar quais projetos instituintes estão sendo autenticados ou rejeitados pelos juí-
zes e juízas. Mais do que interpretar e aplicar normas, juízes e juízas reconhecem ou
negam coercibilidade para as várias normatividades alternativas em disputa, mesmo
em casos que parecem extremamente simples do ponto de vista técnico-jurídico. De
novo com Robert Cover, há na sociedade direitos demais e não de menos, cabendo
ao Estado, quando dotado de poder para tanto, conferir força coercitiva a certas nor-
mas em detrimento de outras, favorecendo uma ou outra forma de vida e seu projeto
instituinte.
Já no âmbito do uso social do direito, trata-se de investigar o surgimento e o
conflito entre projetos instituintes; também aquelas situações em que os embates
constantes entre tais projetos levam um determinado agente social a buscar uma au-
tenticação junto às autoridades oficiais. Lembremos que tais situações não irão ocor-
rer necessariamente. Há projetos instituintes que formam ordens constitucionais pa-
ralelas ou transcendentes aos Estados e outros organismos dotados de poder sobe-
rano, muitas vezes, prescindindo da intervenção direta destas instituições para funci-
onar, seja por serem dotados de alto grau de legitimidade, seja por estarem protegidos
por mecanismos capazes de obrigar a obediência. Um exemplo comum do último
caso são as assim denominadas lex mercatória e a lex Fifa, para utilizar a nomenclatura
de Gunther Teubner. Para sermos mais precisam, tais ordens normativas precisam do
estado para que ele as deixe em paz e reconheça a força de suas normas.

Um novo critério de validade

É importante dizer que a afirmação de uma norma como obrigatória, por si


só, não faz nascer um projeto instituinte, afinal, esta norma pode dizer respeito apenas
a um indivíduo ou grupo, pode ser um ato arbitrário, que não ressoa sobre a esfera
pública, a despeito de conter o germe de uma legalidade em potencial. Um projeto
instituinte surge quando a afirmação desta(s) norma(s) demanda respeito universal,
ou seja, quando ela pretende se impor à toda a sociedade, inclusive com a utilização
da força de algum órgão dotado de poder coercitivo sobre todos e todas.
Tal reivindicação faz com esta norma não queira ceder diante de nenhuma
outra, mesmo que seja com ela incompatível, independentemente de sua origem. Um
projeto instituinte, portanto, põe as normas sociais em estado bélico, reivindicando
para elas várias delas o status de direito ao mesmo tempo, em um gesto que não
depende, para se formar, de nenhuma instância soberana, mas pode vir a reivindicar
sua autenticação. Cover afirma que estamos diante de uma norma jurídica, e não de
uma norma qualquer, quando uma pessoa ou grupo está disposta a pôr seu corpo em
risco para defendê-la.

337
Por exemplo, podemos citar uma série de normas religiosas que não se con-
tentam em habitar o espaço da liberdade e diversidade religiosa no contexto de uma
determinada ordem constitucional, não se contentam em regular a vida de seus fiéis,
por exemplo, no interior de um Estado democrático, mas pretendem valer para além
dele, criando obstáculos para que o ensino público, a literatura, o humor ou mesmo
falas privadas informais as violem ou as afrontem.
Nesse momento, uma situação que poderia ser descrita como pluralismo
normativo ou como a convivência de vários âmbitos de regulação escalonadas, ou
como um espaço multinormativo, mostra-se como um embate entre projetos insti-
tuintes os quais, independentemente da autenticação por um organismo soberano,
manterão sua autodescrição como normas de direito, ainda que mantenham, de fato,
a condição de projetos. Por exemplo, a colisão da autoafirmação de um projeto insti-
tuinte e do direito constitucional oficial manterá a esfera pública e as instituições for-
mais em tensão constante, sob o risco de ruptura com as mesmas com a criação de
um novo direito, ou seja, de uma nova ordem normativa institucionalizada.
No mesmo sentido, a demanda da comunidade transexual pela possibilidade
de modificar seu nome de registro, mesmo sem a realização de cirurgia, uma “de-
manda” que tem sido apresentada por alguns indivíduos e grupos, logo de saída, como
um direito com a finalidade de deixar claro que qualquer decisão contrária a ela fará
com que as instituições formais incorram em inconstitucionalidade, em violação do
direito posto. E não se trata aqui, até onde posso ver, de mera estratégia argumentativa,
ou seja, da escolha da melhor maneira de apresentar uma demanda para que esta seja
reconhecida e autenticada pelo Estado.
Para esta forma de se colocar na esfera pública, a demanda é de tal modo
evidente e justa, seu valor intrínseco está de tal modo posto e autoafirmado social-
mente que o estado passa a ser chamado apenas para eliminar os obstáculos que este
projeto constituinte, insisto, autoafirmado como direito, está encontrando para alcan-
çar seu âmbito de vigência pretendido. Em uma palavra, neste caso, não estamos di-
ante de pessoas e grupos que se apresentem como carentes de reconhecimento para
a sua condição de transexuais; pessoas que busquem convencer a esfera pública me-
diante razões de seu direito à autenticação estatal.
Atingido este nível de tensão, estaremos diante de pessoas que passam a exi-
gir a autenticação de seu projeto, autoafirmado como direito constitucional, para que
ele não seja ameaçado ou inviabilizado. A negação de autenticação, diante deste grau
de agressividade, poderia resultar em desobediência civil, migração individual, reco-
lhimento para a esfera privada e, inclusive, em tentativas de criar ordens normativas
institucionalizadas independentes do estado, postas fora do alcance daquele orga-
nismo soberano específico.

338
A dinâmica social das ordens normativas

A ocorrência reiterada de conflitos limiares, que negam a autenticação de


projetos em disputa, podem resultar, portanto, na criação de novas ordens normativas
institucionalizadas, novos direitos, processo ao qual Robert Cover se refere, em uma
(in)feliz metáfora orgânica, como “mitose normativa”, ou, ainda, no simples aban-
dono individual do âmbito de vigência de uma determinada normatividade. Infeliz,
esclareço, por não apontar para os agentes sociais que protagonizam estes processos.
Torna-se relevante aqui lembrar do pouco explorado modelo teórico de “sa-
ída, voz e lealdade” elaborado por Albert O. Hirchmann no livro que leva, justamente,
este nome, o qual pode nos ajudar a compreender a dinâmica destes conflitos de di-
reitos contra direitos (HIRCHMANN, 1973). Afinal, a radicalização da democracia
tem como pressuposto a circunstância de que indivíduos e grupos permaneçam no
âmbito de validade de uma determinada ordem normativa e o enriqueçam com suas
autoafirmações, contribuindo para transformar constantemente as instituições for-
mais e para enriquecer a normatividade social nos mais diversos âmbitos.
O fato do pluralismo, assim, é menos um fato do que uma construção polí-
tico-institucional que requer o trabalho constante de evitar a fragmentação do mundo
político-jurídico pela criação de novos centros de produção normativa e legislação
com pretensão totalizante; também a saída de indivíduos e grupos do âmbito de re-
gulação de uma determinada ordem normativa, o que resultará em seu empobreci-
mento existencial e reflexivo. Nesse sentido, a desestabilização do sentido do que
significa lícito e ilícito, que tem como marco a separação entre texto legal e norma
jurídica, também abre espaço, ao menos um espaço conceitual, para que legalidades
alternativas construam a pretensão de criar ordens normativas com poder exclusivo
sobre determinado espaço ou tema.
Neste ponto da exposição, parece ter ficado claro como a dinâmica do con-
flito político se transformou. Ao lado de uma luta pelo reconhecimento de demandas
conforme a linguagem do “direito a ter direitos”, na formulação clássica de Hanna
Arendt, passamos a ter também uma dinâmica de possíveis enfrentamentos de afir-
mações de direito, ou seja, uma dinâmica marcada por situações possíveis de “direito
contra direito”. De fato, vai ficando claro aqui como a demanda por um direito, no
sentido do conflito no registo do “direito a ter direitos”, pode ser intensificada a ponto
de se transformas em uma luta de “direito contra direito”, com riscos de fragmentação
ou saída individual de uma determinada ordem normativa.
De acordo com Hirchmann, a opção de saída, no contexto de uma empresa,
mostra que o cliente insatisfeito com o produto muda para outra, ou seja, utiliza o
mercado para defender seu bem-estar ou para melhorar a sua situação. A opção de
voz, ao contrário, é a opção de permanecer naquela posição, externando críticas à si-
tuação vigente, desde e tímidos murmúrios até protestos violentos. A opção de voz

339
pode ser dita política por excelência. Os clientes, diante de um eventual declínio da
qualidade do produto, antes de qualquer coisa, decidem se vão continuar a manter ou
não uma relação com a empresa, independentemente da eventual voz que possam vir
a ter neste contexto. Apenas se decidirem não mudar é que irão decidir reclamar. Se
os clientes estiverem muito convencidos de que a voz terá poder efetivo, podem adiar
a saída.
A voz, eventualmente, pode funcionar como complemento da saída ou como
substituto dela. Hirchmann define a voz como qualquer tentativa de modificação de
um estado ao qual se pode fazer objeções, através de petições individuais ou coletivas
aos responsáveis, apelos a superiores com a intenção de pressionar a direção ou, vá-
rios tipos de ação e protesto, inclusive os destinados a mobilizar a opinião pública.
Aquele que não usa a saída é candidato à voz, e o volume da voz aumentará conforme
diminuam as oportunidades de saída, até o ponto onde a saída seja completamente
impraticável, cabendo à voz toda a responsabilidade de alertar sobre as falhas.
A presença de lealdade diminui a probabilidade de saída e pode ampliar a voz.
A lealdade consiste na disposição de trocar a saída pela incerteza da melhoria do pro-
duto degenerado e, ainda, pela avaliação da força de sua voz. A lealdade facilita a reto-
mada do equilíbrio ao aumentar o custo da saída, obrigando as pessoas a optar pela
criatividade ou pela mera passividade, posto que a lealdade implica na resistência à saída
mesmo diante do descontentamento.

De novo, a crise do legalismo liberal

A perda de força da legalidade oficial, seja por sua contestação social intensa,
já evidente no começo do século XX, como mostram os escritos de Franz Neumann,
seja pelo aprofundamento do processo de globalização, especialmente depois dos
anos 90 do mesmo século, enfraqueceram significativamente a lealdade aos estados e
os mecanismos de voz dos cidadãos e cidadãs, ou seja, enfraqueceu o ideal de cons-
trução de estados de direito, especialmente em razão da dependência dos estados na-
cionais de recursos do mercado financeiro para se autofinanciaram, como mostrou,
entre outros, Wolfgang Streeck (STREECK, 2013).
Este processo foi captado em dois livros chave para a sua compreensão, O
Império do Direito (1936) de Franz Neumann, para o começo do século, e Direito e De-
mocracia entre facticidade e validade (1991) de Jürgen Habermas, para a década de 90, livros
que nos ajudam a compreender o papel do estado do direito neste processo e o avanço
de mecanismos de saída, como a criação de ordens normativas paralelas ou transcen-
dentes aos estados, e mecanismos de perversão do direito e da democracia, que não
veiculam abertamente a saída de uma determinada ordem normativa, mas procuram
sabotar seu poder coercitivo, ainda que, em certos casos, mantendo a aparência de
cumprimento das leis.

340
O estado de direito quando ligado a um regime democrático, mantem as ins-
tituições formais sob tensão diante da necessidade de acolher as diversas afirmações
de direito nascidas na sociedade em razão de sua promessa de igualdade de todos e
de todas diante da lei. Qualquer indivíduo ou grupo que se sinta excluído de um de-
terminado estado de direito, seja por injustiças distributivas seja por questões de status
social pode formular sua insatisfação na forma de um direito que pretensa ser reco-
nhecido pelo estado, dando lugar à diversas ondas de direitos, como mostrou T. H.
Marshall em seu escrito fundamental (MARSHALL, 1967). A desmontagem relativa
deste mecanismo pela globalização, como estamos procurando mostrar, está alte-
rando a gramática do conflito político contemporâneo, marcado, capa vez mais, por
disputas de “direito contra direito”.
Os agentes sociais, ao invés de permanecerem no Estado, votando e exer-
cendo ativamente a sua voz, estão procurando maneiras sair de seu âmbito de regula-
ção, seja com a criação de ordens normativas transnacionais, como as já citadas lex
mercatoria e lex FIFA, seja pela tentativa de construir práticas autonomistas, as quais
podemos afirmar estejam localizadas no interior dos estados, um fenômeno seme-
lhante à formação de comunidades como os amish.
Para usar uma analogia com os anos 60, talvez estejamos testemunhando um
processo de proliferação de “comunidades hippies” parciais capitalistas, dotadas de
normatividade própria, cujo projeto inicial é apenas sobreviver ao poder do estado e
das demais ordens normativas e, adiante, disputar com ele a hegemonia sobre a regu-
lação da vida das pessoas. Evidentemente, este processo abre o risco de privatização
da regulação com o respectivo aumento da arbitrariedade de poderes sociais e econô-
micos, agora despidos do controle dos mecanismos constitucionais do estado de di-
reito.
Nem todas estas ordens normativas têm a pretensão de formar direitos au-
tônomos, ou seja, elas não pretendem, necessariamente, substituir a regulação estatal
em todos os seus detalhes ou mesmo prescindir de sua força coercitiva, embora casos
assim não possam ser descartados. Mas de qualquer forma, parece ser cada vez mais
comum o movimento de virar as costas para a arena política oficial, deixar de lado o
direito de voto e a atividade político-partidária, em favor de práticas sociais que apon-
tam na direção da (re-)apropriação social direta do poder legislativo ou, ao menos,
que reivindicam mais autonomia de ação em relação ao estado.
Dois bons exemplos deste processo são aos recentes embates entre diversas
cidades, estados nacionais e os aplicativos “Airbnb” e “Uber”. Ambos, até onde posso
ver, podem ser considerados como verdadeiras ordens normativas relativamente au-
tônomas, nascidas de determinadas práticas contratuais, as quais criam e efetivam re-
gras próprias sobre a prestação do serviço e sobre a conduta de seus participantes, as
quais formam verdadeiros ambientes com racionalidade própria no qual as pessoas
trafegam e se relacionam.

341
A meu ver, estes aplicativos, e tantos outros, criam verdadeiros mundos pa-
ralelos em que as pessoas, por meio de avatares de si mesmas, estabelecem relações
entre si e se avaliam mutuamente em função de sua conduta na utilização dos serviços.
Nestes mundos, ter uma boa reputação é tudo, ou seja, é crucial para todos e todas
ser bem avaliado ou avaliada pelos demais, afinal, uma má avaliação pode significar
muito para a renda e para a forma de viver de pessoas que aluguem seus quartos e
casas ou ponham seus carros à serviço do aplicativo. O acesso e a permanência nestes
serviços dependem do cumprimento de uma série de regras, as quais se referem, in-
clusive, a noções abertas como a “boa educação”, "bom papo", "limpeza", alguns
critérios de avaliação criados pelo Uber.
Motoristas, passageiros, hospedes ou anfitriões que se comportem inadequa-
damente, por exemplo, que sejam mal-humorados ou mal-educados, seja lá o que isso
possa significar em cada contexto, irão gozar de má-fama publicamente, em razão dos
comentários e da classificação por meio de estrelas, gerenciadas pelos sites. No limite,
eles e elas podem ser excluídas do serviço e, ainda que decisões como estas possam
vir a ser revistas pelos tribunais dos diversos países, sua execução será direta e imedi-
ata: os aplicativos podem simplesmente bloquear quem quer que seja do uso de suas
facilidades.
Parece que estamos diante aqui de uma apropriação de fato da regulação da
vida das pessoas por meio de ordens normativas que procuram impor suas regras a
todos e a todas e postulam o status de direito, o que levanta uma séria de problemas
quanto à sua legitimidade e à possibilidade de controlar sua ação por meio das estru-
turas tradicionais do estado de direito, neste caso, por meio do Judiciário. Há ganhos
emancipatórios na apropriação de parte do poder legislativo estatal pela sociedade?
Sob que critérios? Ainda, que forma institucional seria capaz de controlar ou zelar
para que a formação destas ordens normativas não se revele como meros atos arbi-
trários destinados a escapar do controle da sociedade civil dos vários estados coma
afirmação de interesses sectários ou práticas violentas contra o controle do estado de
direito?

Perspectivas: a Teoria do Direito como Democracia Multinormativa

Todas estas questões, como se vê, apontam para um amplo programa de


pesquisa que demanda uma revisão profunda no modo de refletir sobre o direito. Em
primeiro lugar, será necessário refletir sobre a possibilidade de uma ciência do direito
para além da hermenêutica, que pense o direito como um espaço decisão democrático,
informado por argumentos de diversas naturezas. Nesse sentido, a decisão jurisdicio-
nal deixará de ser vista como um ato de interpretação ou de aplicação de textos legais
e passa a ser vista como um processo de interação democrático entre interesses e
argumentos conforme uma outra racionalidade e uma outra institucionalidade que

342
será preciso detalhar. Nesse sentido, é necessário revisitar com mais profundidade,
em um programa de pesquisa mais amplo, uma série de autores clássicos da teoria do
direito, especialmente aqueles citados neste texto.
Além disso, um outro campo de investigação se abre a partir deste diagnós-
tico, qual seja, a formação e os conflitos entre diversos projetos instituintes, ou seja,
um estudo de normatividades em conflito, as quais disputam tanto as instituições formais
quando o uso social do direito. Tal estudo deve observar e avaliar o potencial de tais
conflitos para alterar as instituições formais e as relações sociais, ou seja, o uso oficial
e o uso social do direito, mas também a possibilidade de que eles se transformem em
atos de perversão do direito, de desobediência civil, atos de saída como a deserção de
uma determinada ordem normativa por meio da migração ou o recolhimento à vida
privada de indivíduos e grupos, ainda, o impulso na direção da formação de novas
ordens normativas institucionalizadas, nos casos em que tais conflitos se configura-
rem na forma de “direito contra direito”.
Finalmente, um terceiro campo de investigação residem na reflexão sobre
critérios para avaliar a formação de novas ordens normativas institucionalizadas,
tendo em vista sua capacidade de ampliar ou diminuir a autonomia de homens e mu-
lheres. Como diferenciar uma ordem normativa legítima de uma ordem normativa
marcada exclusivamente pela dominação por meio da força? Que critérios utilizar para
fazer essa diferenciação, ou seja, para avaliar o grau de autonomia ou de perda de
autonomia que tais ordens estejam provocando? Em uma palavram como ligar direito
e democracia em uma ordem de coisas em que o estado não é mais o único centro de
produção de normas jurídicas?

343
Capítulo 16 - Cidadania em Transformação

Introdução

A cidadania tem funcionado como uma modalidade de pertencimento a ordens


políticas nacionais que provê aos cidadãos e cidadãs uma série de direitos, bens e
serviços, principalmente a possibilidade de participar da formação das normas que
compõem a referida ordem política. Ser cidadão ou cidadão de um país implica em
ser titular de um determinado status jurídico composto de uma série de direitos e
deveres destinados exclusivamente a estas pessoas.
Como nos ensina Andreas Niederberger (2015), boa parte do debate sobre
cidadania tem se concentrado no conteúdo deste status jurídico, tendo como finalidade
de diferenciar as várias concepções de democracia, por exemplo, como veremos, a
visão liberal e a visão republicana. A maior parte das análises tem deixado de lado a
dimensão de pertencimento que caracteriza a cidadania e o conflitos políticos e sociais
relativos à tal status.
Como será demostrado neste texto, a compreensão das mútuas relações en-
tre cidadania, estado nacional e a eventual possibilidade de criar de uma sociedade
global é o que nos permitirá compreender melhor as características e desafios da ci-
dadania no mundo contemporâneo. Afinal, depois de ao menos trinta anos de estudos
sobre o fenômeno da globalização, não é razoável abordar os problemas da cidadania
no mundo de hoje sem levar em conta a globalização das relações sociais e a finan-
ceirização do capitalismo, fenômenos que, como veremos, parecem estar destruindo
os pressupostos político-institucionais da existência da cidadania como a conhecemos
até hoje.
Portanto, não se trata de debater apenas qual é ou qual deveria ser o conte-
údo da cidadania, mas é preciso discutir também o seu lugar privilegiado na gramática
da política contemporânea. Em uma palavra, trata-se de debater se o conceito de ci-
dadania como o conhecemos é capaz de abarcar uma série de modalidades de perten-
cimento que se referem não apenas às comunidades políticas estatais, mas também a
ordens normativas de outra natureza, surgidas ao redor do globo. Como veremos, tais
ordens estão pondo em xeque as fronteiras estatais como condição e limite para o
exercício da cidadania no mundo de hoje.

345
Por um lado, a imigração crescente e a presença temporária de homens e
mulheres no interior de diversos estados, em temporadas de trabalho e estudo, mos-
tram como a cidadania ainda é monopólio dos nacionais dos Estado, sendo incapaz
de dar voz a todas as pessoas que sofrem os efeitos das normas criadas no âmbito de
uma determinada ordem política. Olhando o problema desta perspectiva, nos depa-
ramos com pessoas que sofrem efeitos de normas sobre as quais não tem poder de
influência algum; efeitos os quais podem se protrair no tempo, por exemplo, no caso
de nacionais de um país que trabalham ou estudam em países próximos por períodos
longos.
De outro lado, uma série de problemas sociais estão saindo do controle da
vontade política dos cidadãos e cidadãs, como por exemplo o controle do das transa-
ções financeiras internacionais, das questões ambientais e a regulação da atividade das
empresas transnacionais. Atividades como estas produzem um conjunto de regras
próprias as quais tendem a escapar do podem de influência dos cidadãos e cidadãs
nacionais, pondo em questão o poder dos Estados e a capacidade do regime demo-
crático de garantir a participação de todos e de todas na produção das normas que
influenciam as suas vidas.
A cidadania se mostra, assim, em suma, no primeiro caso, como um instru-
mento de discriminação injusta; um instrumento de dominação não democrático e,
no segundo caso, como um instrumento ineficaz para que homens e mulheres deter-
minem autonomamente o seu destino.
Para dar conta de todas estas questões, abordaremos neste texto, inicialmente,
a relação entre cidadania, democracia e estado de direito em sua forma clássica, ou
seja, a cidadania referida às fronteiras dos estados nacionais. Em seguida, apontare-
mos os principais desafios da cidadania no mundo contemporâneo e suas alternativas,
que passam pelo debate sobre a possibilidade ou não da formação de uma sociedade
mundial, ou seja, um regime político que funcione para além dos limites territoriais
dos estados nacionais ou, ainda, de um regime que promova uma articulação com-
plexa entre ordens normativas organizadas em múltiplos níveis, estados nacionais in-
clusive.
Logo em seguida, apresentaremos as principais propostas teóricas presentes
no debate contemporâneo que pretendem manter o conceito de cidadania como parte
da gramática da política contemporânea, ainda que com reformulações, quais sejam,
na formulação de Niederberger, a cidadania cosmopolita, a filiação política sem cidadania e a
cidadania-constelação. Finalmente, na última parte deste texto, retomaremos a discussão
das duas partes do artigo para reforçar as ligações conceituais entre os principais con-
ceitos aqui discutidos e mostrar as possibilidades teóricas e práticas da ideia de uma
cidadania-constelação, proposta por Niederberger para fazer frente aos problemas en-
frentados pela cidadania no mundo contemporâneo.

346
Cidadania, democracia e estado de direito

O debate atual sobre a cidadania concentra-se na definição de seu conteúdo,


deixando em segundo plano seu significado como forma de pertencimento a uma
comunidade política. Assim, para a visão liberal de cidadania, ser cidadão, significa
poder exercitar a escolha livre na maior parte dos âmbitos de sua vida (NIEDERBERGER,
2015, 84). De acordo com esta posição, uma ordem política será considerada legítima
se permitir que os homens e mulheres decidam livremente, sem entraves externos
sobre a sua vontade, sobre os problemas que os afetam.
O único limite legítimo à vontade individual, para a visão liberal, é aquele que
vise a garantir que a mesma parcela de liberdade possa ser exercitada por todos e
todas. O exercício da minha liberdade, portanto, não pode ser um empecilho para que
outras pessoas possam exercer a sua: daí a necessidade de criar alguns limites para a
liberdade dos cidadãos e cidadãs. Por exemplo, a criação de um poder policial, visto
desta perspectiva, tem como objetivo impedir que indivíduos ou grupos tomem as
leis e suas mão e, com o uso da violência, dominem os demais.
Da mesma maneira, o controle da concorrência nos mercados pode ser visto
como uma forma de evitar a formação de grandes conglomerados empresariais, sufi-
cientemente poderosos para manipular as regras do mercado livre e prejudicar injus-
tamente empresas menores. De um outro ponto de vista, para além da questão dos
mercados, a existência de poderes privados arbitrários, ou seja, de poderes que deter-
minem a vida das pessoas com fundamento em argumentos científicos, morais entre
outros, sem que essas pessoas afetadas possam tomar parte na criação de suas normas,
também entra na mira da versão liberal da cidadania, a qual pretende garantir a liber-
dade individual acima de tudo.
De sua parte, para uma visão republicana da cidadania, seguindo aqui a ex-
posição de Niederberger (2015, 84), seu conteúdo pode variar com as ordens políticas
historicamente consideradas sem que haja uma ligação especial entre cidadania e li-
berdade. Para este modo de ver o problema, a liberdade individual é apenas uma das
dimensões da cidadania, uma dimensão central sem dúvida, mas que precisa ser con-
jugada com outros valores sociais.
A centralidade da liberdade individual, para este modo de ver o problema,
reside na necessidade de que o conteúdo da cidadania e, portanto, as normas que
compõe a ordem política como um todo, resultem da vontade de seus membros. Os
republicanos e republicanas admitem, portanto, que as escolhas individuais sejam li-
mitadas em nome do bem comum, desde que tais limitações sejam resultado da von-
tade de todos e todas, apurada por intermédio do sistema político.
Com efeito, para esta visão, eventuais limitações à liberdade individual não
afetariam o direito de liberdade, pois, por exemplo, seria necessário garantir um de-
terminado grau de igualdade para que a liberdade possa ser, de fato, exercitada. Tal

347
argumento clássico, como é sabido, remonta a Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx
(ROUSSEAU, 1989; MARX, 2010). Para Rousseau a desigualdade econômica exces-
siva prejudica o exercício da cidadania, pois estimula a ganância e a busca por dife-
renciação social, em detrimento dos interesses gerais. Na visão de Marx, neste ponto
um discípulo original de Rousseau, a desigualdade sob o capitalismo subordina uma
parte dos homens e mulheres a outros, a saber, subordina aos proprietários privados
dos meios de produção todos aqueles e aquelas que não são mais capazes de manter
sua subsistência, sendo compelidos a venderem a sua força de trabalho no mercado.
Nesta última formulação, a existência formal da cidadania política em uma
sociedade na qual impere a dependência econômica entre os homens e mulheres é
uma espécie de farsa cujo função é legitimar o fato de que uma parte da população
não tem autonomia para determinar o rumo de suas vidas. Afinal, a vender a sua força
de trabalho no mercado significa permitir ser utilizado como instrumento no processo
produtivo, sob as ordens e sob as regras impostas pelos proprietários dos meios de
produção. De acordo como esta crítica, sob dependência econômica de outrem, a
liberdade prometida pelo liberalismo torna-se uma quimera, uma farsa ocultada pelas
normas jurídicas.
Ambos os valores, igualdade e liberdade, para a visão republicana, gozam do
mesmo status e, por isso mesmo, ser cidadão significa, principalmente, ter o poder de
tomar parte na criação das normas que buscam compatibilizar os dois valores, ou seja,
exercitar o poder legislativo, seja pessoalmente, seja por meio de seus representantes.
Mesmo que tal exercício imponha limites à liberdade individual de alguns em benefí-
cio dos interesses coletivos, por exemplo, com a criação de clausulas obrigatórias para
uma série de contratos privados com a finalidade de proteger, por exemplo, as figuras
do consumidor, do trabalhador e do meio ambiente.
Para ficar em um exemplo simples: a criação de limites para o desmatamento
de determinadas propriedade privadas imóveis, localizadas nas margens dos rios, visa
a proteger o meio ambiente em nome do interesse coletivo, afinal, ao evitar a erosão
das margens dos rios e seu consequente assoreamento, tais regras protegem a todos
e a todas dos riscos de uma eventual interrupção no fornecimento de água e da ces-
sação da atividade de pesca.
Diante do que foi dito até aqui, parece razoável afirmar que, seja em sentido
liberal, seja em sentido republicano, a cidadania oferece uma justificação para a ordem
política para além dos interesses individuais dos cidadãos e cidadãs. Uma ordem polí-
tica serve, evidentemente, para satisfazer os interesses dos cidadãos e cidadãs, no en-
tanto, para além dessa dimensão, ela se destina a garantir a liberdade e igualdade deles,
afastando o arbítrio do Estado. Explico.
O poder estatal só age legitimamente caso as suas ações possam ser justifica-
das nas leis que garantem os direitos dos cidadãos e das cidadãs. Nesse sentido, o
conceito de cidadania, em sua expressão jurídica e política, permite o controle vertical

348
do soberano pelos os cidadãos e cidadãs (NIEDERBERGER, 2015, 85), um controle
que tem sido institucionalizado, principalmente, por meio de organismos jurisdicio-
nais. Nesse sentido, é possível propor ações judiciais em face do Estado para garantir
o exercício pleno dos direitos relativos à cidadania, caso esse mesmo Estado crie obs-
táculos ou limites ilegais para o exercício deles. Ações como o habeas corpus e o
mandado de segurança, para citar apenas duas, têm como objetivo central promover
o controle e a eventual invalidação dos atos ilegais praticados pelas autoridades do
Estado.
Uma ordem política que reconheça a cidadania nestes termos também per-
mite o controle horizontal das relações privadas. Afinal, como explicamos logo acima,
um dos objetivos da ordem política deve ser garantir que cidadãos e cidadãs não sejam
mero objeto de dominação. Ou seja, é preciso que a ordem política garanta a todos e
a todas poderes equivalentes na constituição de suas relações mútuas e na participação
da produção da vontade do Estado. Sabemos que há, de fato, uma série de assimetrias
de saber e de poder entre os cidadãos e cidadãs, as quais podem resultar no domínio
privado de uns sobre os outros. Por exemplo, a desigualdade resultante do direito de
herança, a qual pode atingir um dos valores centrais de uma ordem liberal, qual seja,
a igualdade de oportunidades.
Afinal, a depender de como a sociedade estiver organizada, uma herdeira ou
herdeiro rico terá mais oportunidades de formação escolar e acadêmica do que os
demais cidadãos e cidadãs, além de poder empregar seus recursos na criação de em-
presas e negócios os quais podem aumentar ainda mais o seu poder econômico. Essa
assimetria de poder no ponto de partida, visto da perspectiva da liberdade e do mérito
individual, não se justifica adequadamente. Afinal, o fato de nascer não é mérito de
ninguém: quem nasce rico ou rica, por assim dizer, teve apenas sorte na loteria do
nascimento; não empreendeu nenhuma atividade ou esforço que justifiquem o gozo
de vantagens sobre os demais cidadãos e cidadãs.
Para evitar que distorções desta natureza ocorram, é necessário estabelecer
algum tipo de controle sobre as relações horizontais com a finalidade de garantir que
a liberdade e a igualdade possam ser exercitadas de fato (NIEDERBERGER, 2015,
86), controles os quais podem limitar direitos individuais, por exemplo, o direito de
atribuir e de gozar de herança.
Como acabamos de mostrar, tal necessidade se aplica também para a versão
liberal da cidadania que vê na igualdade de oportunidades um de seus elementos cen-
trais. Para ficar no exemplo citado, é possível evitar que a desigualdade resultante da
herança impeça a efetivação da igualdade de oportunidades com a instituição de um
imposto sobre as heranças que equalize as condições iniciais para a competição no
mercado entre todos os cidadãos e cidadãs.

349
Resumindo o que foi dito até aqui, pode-se dizer que a cidadania, compre-
endida como a possibilidade de que todos e todas tomem parte na formação da von-
tade do estado, resolve dois problemas políticos fundamentais. Ela fornece meios de
controle vertical e horizontal do poder, impedindo que o soberano assuma um caráter
arbitrário ao impor a ele a necessidade de justificar os seus atos; e por evitar que as
assimetrias de poder privado resultem no domínio de indivíduos ou grupos sobre os
demais cidadãos e cidadãs.
A cidadania, compreendia desta maneira, está ligada necessariamente ao re-
gime democrático e ao estado de direito. Toda ordem política deve respeitar as leis,
as quais declaram e fornecem meios de proteção aos direitos da cidadania, normal-
mente expressos em textos constitucionais. Todo ato de poder deve poder ser justifi-
cado nas leis, produzidas com a participação de todos os cidadãos e cidadãs. Além
disso, não pode haver mais nenhuma fonte legítima de produção de normas gerais
além do poder do Estado para que fique afastada a possibilidade de que se configurem
situações de dominação privada de um cidadão pelo outro. Exercer o poder só é pos-
sível com fundamento nas regras produzidas pela vontade de todos e todas.
Em seu estudo clássico sobre o assunto, T. H. Marshall mostrou que as di-
versas concepções de cidadania são objeto de disputas ao longo do tempo, especial-
mente em sociedades marcadas por desigualdades de classe. Como mostra o autor, a
cidadania é um status de igualdade concedido a todos os membros de uma comunidade
política para a sua participação integral na mesma. De outro lado, a classe é uma marca
de desigualdades econômicas (MARSHALL, 1977, 62). São os conflitos entre as clas-
ses pela participação na comunidade política que vão formatando as diversas confi-
gurações históricas da cidadania, marcadas pela aquisição paulatina de direitos civis,
políticos e sociais.
Os direitos civis, na formulação clássica de Marshall, são aqueles que se re-
ferem a liberdade individual, ao direito de ir e vir, à liberdade de imprensa, pensa-
mento e fé, a propriedade e o acesso à justiça. Tais direitos formam a base da versão
liberal da cidadania. Já os direitos políticos são aqueles que garantem a participação
no exercício do poder político, ou seja, o direito de votar e de ocupar cargos públicos.
Tais direitos, diga-se, direitos não foram conquistados prontamente por to-
das as classes sociais, como mostra Marshall, afinal, sempre constituíram uma ameaça
clara aos interesses das classes proprietárias (MARSHALL, 1977, 85). Eleitos, os re-
presentantes de classes desfavorecidas poderiam ameaçar a posição econômica das
classes proprietárias ao influenciar a criação das leis de acordo com seus interesses. Os
direitos sociais, surgidos no século XX, são um exemplo claro disso, pois oferecem a
todos os cidadãos e cidadãs um certo patamar de igualdade econômica e de segurança,
inclusive o direito a educação e a saúde. Tais direitos criam limites claros à livre inciativa,
especialmente à liberdade de contratar trabalho. Os direitos civis e os direitos políticos,

350
diga-se, também podem ameaçar o poder ao permitir a qualquer cidadão ou cidadã re-
sistir aos atos do poder e tomar parte no processo de criação das leis.
Vale lembrar também que a sequência de criação destes direitos variou his-
toricamente de país para país (CARVALHO, 2002). No caso do Brasil, por exemplo,
os direitos civis e políticos sofreram restrições nos diversos momentos em que esti-
veram vigentes regimes autoritários. Já os direitos sociais tiveram seu marco inicial de
implementação na década de 30, momento em que o país estava dominado por um
regime autoritário e, décadas depois, foram aprofundados pela Constituição de 1988,
que marca a saída do país da civil-ditadura militar implementada em 1964.
Retomando o fio da exposição, não foi por outra razão que Franz Neumann,
algumas décadas antes de Marshall, afirmou que o estado de direito pode ter efeitos
revolucionários em sociedade desiguais (NEUMANN, 2013; RODRIGUEZ, 2009a).
Para Neumann, um estado de direito em funcionamento permite que os diversos in-
teresses sociais busquem conquistar a forma de direitos de modo a ampliar o conte-
údo da cidadania para que ele leve em conta os interesses e necessidades dos diversos
agentes sociais, agentes que não param de surgir ao longo da história. O estado de
direito tem como fundamento de legitimidade, justamente, a promessa de governar
levando em conta os interesses e necessidades de todos e de todas.

Cidadania, representação e participação

A possibilidade de participar da formação das regras que compõe a ordem política


tem se dado, principalmente, por meio do voto, ou seja, pela eleição periódica de
representantes do povo para ocupar os cargos na estrutura do estado. A necessidade
de eleger representantes, explica Max Weber (WEBER, 1993), está relacionada ao
desenvolvimento das sociedades de massa e de mercado que promovem um aumento
no número de pessoas vivendo em sociedade e aumentam o tempo de trabalho des-
tinado à sobrevivência.
Em sociedades organizadas desta maneira, é impossível, como se fazia em
Atenas, reunir todos os cidadãos na ágora para debater os problemas da cidade, ex-
clusive escravos e mulheres. O tempo de trabalho necessário para garantir a sobrevi-
vência de cada um torna impossível o exercício da política pela participação direta de
todos os cidadãos e cidadãs. Em “Política como Vocação” (1993), texto em que trata
destes problemas, Weber menciona, a este propósito, o exemplo de um médico, in-
capaz de exercer a sua função e fazer política ao mesmo tempo.
Por todas estas razões, surge nos estados nacionais uma classe de políticos
profissionais que exercem a atividade política em tempo integral e disputam periodi-
camente o voto dos cidadãos e cidadãs, como todos os riscos inerentes a esta inovação,
discutidos por Weber em seu texto. Afinal, ao delegar a política para profissionais, a

351
sociedade abre a possibilidade que a seus representantes ponham a permanência em
seus cargos, o acesso a seus empregos, acima da atividade de representar a sociedade.
A cidadania nos tempos atuais parece não poder escapar, portanto, do insti-
tuto da representação, mesmo que temperado como mecanismos de participação di-
reta. Em uma sociedade complexa, com tempo livre limitado e jornadas de trabalho
extensas, existe um entrave estrutural para a participação direta de cidadãos e cidadãs
na atividade política.
Com efeito, na explanação de Nadia Urbinati (2006), a representação pode
ser exercida de duas maneiras diferentes, a depender da maneira pela qual o represen-
tante e a sociedade pensam a relação entre representação e democracia. O represen-
tante pode ser visto como parte em um contrato celebrado com seus eleitores: trata-
se do modelo jurídico da representação. Esta maneira de ver a representação parte do
pressuposto de que a sociedade é composta de indivíduos portadores de determina-
dos interesses conflitantes entre si e o momento da eleição serve para que eles dispu-
tem competitivamente os votos disponíveis. Ao elegerem seus representantes, cida-
dãos e cidadãs passam a esperar que eles façam valer estes interesses em seu âmbito
de atuação, cumprindo o contrato celebrado por meio do voto e referendado pelas
urnas (URBINATI, 2006, 192).
O modelo jurídico configura a relação entre representado e representante con-
forme as linhas de uma lógica individualista e não-política, pois supõe que os eleitores
julgam as qualidades pessoais dos candidatos, ao invés de suas ideias políticas e pro-
jetos. Desta forma, a representação não é e não pode ser um processo, nem pode ser
uma matéria política que implique, por exemplo, uma demanda por representatividade
ou representação justa, pela simples razão de que a representação é, por definição,
qualquer coisa que for feita após o tipo correto de autorização e dentro de seus limites.
Este modelo de representação está fundado em um dualismo bem definido entre
Estado e sociedade o que faz da representação um instituto centrado rigorosamente
no Estado, cuja relação com a sociedade é deixada ao juízo do representante. Ainda,
este modo de conceber a representação restringe a participação popular a um mínimo
procedimental, qual seja, as eleições compreendidas como meio de escolha e nomea-
ção dos representantes (URBINATI, 2006, 198).
Esta visão da democracia e da representação pensam o instituto em termos de
vencedores e perdedores, ou seja, os vencedores da eleição devem levar adiante os
interesses de seus representados, cumprindo seu contrato com eles, em detrimento
do restante da sociedade. Nesta lógica de funcionamento, a representação pode levar
a situações em que o vencedor leva tudo, mesmo que a diferença de votos entre os
competidores seja pequena. Afinal, os eleitos e as eleitas não irão governar para a
sociedade como um todo, levando em conta seus interesses conflitantes, pois o voto
não representa ideias gerais, mas sim interesses deste ou daquele grupo (URBINATI,
2006, 212).

352
Uma visão deliberativa de representação caminha em outro sentido. Para esta
visão, a representação é concebida como um processo, um diálogo participativo entre
representante e representados. A representação não pertence apenas aos agentes ou
instituições governamentais, mas designa um processo político estruturado nos ter-
mos da circularidade entre as instituições e a sociedade. Nesse sentido, a representa-
ção não é confinada à deliberação e decisão apenas no momento do voto, mas implica
em um processo contínuo de debate com as forças sociais em uma constante redefi-
nição de seus objetivos (URBINATI, 2006, 212).
Esta visão da representação defende que, em um governo que deriva sua
legitimidade de eleições livres e regulares, a ativação de uma corrente comunicativa
entre a sociedade política e a civil é essencial e constitutiva da atividade política. As
múltiplas fontes de informação e as variadas formas de comunicação e influência que
os cidadãos ativam através da mídia, movimentos sociais e partidos políticos devem
dar o tom da representação em uma sociedade democrática.
Nessa ordem de razões, a representação política não elimina o povo de seu
exercício, mas despreza a ideia de que os eleitores em vez dos cidadãos ocupem este
centro. Para a representação compreendida como deliberação, o ato de autorização
não deve ser mais importante do que o processo político de deliberação que liga re-
presentantes e representados de maneira contínua e ajuda a definir, assim, o conteúdo
da cidadania com a criação e a eventual revogação de direitos.

Desafios da cidadania no mundo contemporâneo

O momento atual põe uma série de desafios para a cidadania, tanto no que
diz respeito à sua dimensão de controle do poder e de pertencimento a uma ordem
política, quando à sua capacidade de legitimar e promover a participação dos cidadãos
e cidadãs na criação das normas que regulam suas vidas.
Em primeiro lugar, como afirma Andreas Niederberger (2015, 89), assisti-
mos a um aumento significativo no número de pessoas que vivem de forma mais ou
menos temporária em um determinado território, estão sujeitas à sua respectiva or-
dem política, mas não são consideradas cidadãs, por exemplo, trabalhadores e traba-
lhadoras temporárias. Segundo: os cidadãos e cidadãs das diversas ordens políticas
estão hoje sujeitas ao efeito de normas que não foram produzidas pelos estados em
que estão situadas; normas sobre as quais, muitas vezes, sequer seus estados têm po-
der de influência. Neste caso, é o poder de legislar supostamente garantido pelo status
de cidadão que fica comprometido.
Um bom exemplo deste segundo fenômeno está nas assim denominadas or-
dens privadas transnacionais, assim designadas por Gunther Teubner (2013). Teubner
mostra que uma série de normas de caráter privado destinadas a regular temas como

353
a internet, o futebol mundial e o comércio internacional, começam a reivindicar apli-
cação sobre todo o globo, mesmo sem terem sido aprovadas pelos estados nacionais.
As assim denominadas lex digitalis, lex FIFA e lex mercatoria, para citar apenas três
exemplos, tem efeitos sobre os cidadãos e cidadãs dos vários estados nacionais,
mesmo sem que eles e elas tenham a oportunidade de participar de sua elaboração e
de influenciar sua eventual modificação.
E estes são apenas três exemplos de normas criadas por organismos privados
que regulam uma série de atividades e relações de alcance transacional da qual tomam
parte agentes sociais determinados, nem todos capazes de influenciar a criação destas
normas. Tais ordens privadas transnacionais contribuem para diminuir o alcance e a
relevância do poder legislativo dos estados nacionais e, por via de consequência, do
poder da democracia e dos cidadãos e cidadãs que participam dela. Afinal, as referidas
ordens privadas transnacionais regulam de fato uma série de atividades e fenômenos
que antes eram regulados exclusivamente pelas normas estatais.
Podemos imaginar que a solução para o problema dos habitantes transitórios
de um certo território poderia consistir na concessão de algum poder de influência à
todas as pessoas que sofrem os efeitos de uma determinada ordem política, mesmo
que elas não sejam consideradas cidadãs desta ordem. No entanto, esta solução apre-
senta a dificuldade de passar por cima dos laços simbólicos e identitários que ligam
os cidadãos e seus respetivos estados. Conceder poder de influência em uma deter-
minada ordem política a um habitante transitório pode significar atribuir um status
muito semelhante ao de um cidadão a pessoas que não são vistas como membros
daquela ordem (NIEDERBERGER, 2015, 89).
O segundo problema que mencionamos é ainda mais difícil de resolver di-
ante da impossibilidade de remeter a cidadania para uma ordem política mais ampla,
supostamente capaz de impor limites a todas as ordens normativas existentes (NIE-
DERBERGER, 2015, 90). A multiplicação de ordens políticas de níveis os mais di-
versos, local, nacional, regional, internacional e transnacional, dificulta a criação de
estruturas capazes de articular e coordenar toda esta complexidade normativa. Afinal,
uma boa parte das normas no mundo de hoje parece mesmo estar migrando para
ordens normativas que funcionam em paralelo a ordem estatal, tendo como protago-
nistas agentes privados como empresas, agremiações esportivas, agências de risco e
agentes financeiros, entre outros.
O resultado é que nossas vidas passam a ser afetadas por normas de origem
as mais diversas, em relação às quais assumimos posições muito diferentes, nem sem-
pre a de cidadãos e cidadãs dotadas do poder de influir decisivamente sobre a sua
criação. Por exemplo, um torcedor de futebol suporta os efeitos das normas da FIFA,
que determinam o modo de funcionamento de uma série de campeonatos ao redor

354
do mundo. Tais normas, inclusive, preveem sanções aos times em razão do compor-
tamento de sua torcida, os quais não tem voz alguma na criação ou alteração dessas
regras.
Da mesma maneira, um usuário da internet sofre os efeitos de uma série de
normas produzidas por agencias variadas que regulam as diversas dimensões da inter-
net, por exemplo, o funcionamento dos provedores de internet, o registro dos sites,
o tipo de conteúdo que pode ser publicado nas redes sociais e assim em diante. Em
vários destes casos, de pouco adianta ser cidadão ou cidadã de um Estado nacional,
pois tal status não tem poder algum sobre a produção destas normas.
Um terceiro problema enfrentado pela cidadania no mundo de hoje é sua
perda de importância em vários Estados nos quais o acesso a este status não garante
poder de influência sobre a produção das normas ou o acesso a bens, serviços e di-
reitos (NIEDERBERGER, 2015, 90). A transferência de poder para comitês e orga-
nismos técnicos torna cada vez mais difícil identificar os locus onde são tomadas as
decisões sobre os mais diversos assuntos. Para dizer o mínimo, o parlamento não é
mais o único espaço onde normas relevantes para as nossas vidas são criadas.
Ademais, como mostra com clareza STREEK (2013), a expansão do capita-
lismo financeiro e o crescente endividamento dos estados nacionais criam limites para
a expansão dos direitos sociais e para a expansão da cidadania em geral. A necessidade
de financiar a dívida dos Estados pelos bancos faz com que eles passem a trabalhar
para dois senhores ao mesmo tempo.
De um lado, os financiadores da dívida pública fazem exigências de austeri-
dade fiscal e contenção crescente de gastos e, de outro, os cidadãos e cidadãs conti-
nuam articulando novas demandas por direitos. Este estado de coisas, qual seja, o
compromisso necessário dos Estados com os organismos financeiros, vai deixando
cada vez mais claro para os cidadãos e cidadãs que seu o poder para determinar as
regras que regulam a sua própria vida se encontra limitado, mesmo que seus candida-
tos saiam vencedores nas eleições; um fato que, na opinião de STREEK abre uma
grave crise para os regimes democráticos ao redor do mundo.
Além disso, uma série de medidas recentes tem diminuído a importância da
cidadania mesmo em seu sentido liberal clássico, como por exemplo as leis de com-
bate ao terrorismo. Esta legislação, em nome de combater o risco de ataques, tem
relativizado uma serie de direitos fundamentais para a investigação e persecução de
possíveis delitos. Tal legislação inclui uma série de normas que ampliam as hipóteses
de detenção e prisão sem as garantias tradicionais do devido processo legal, criam
hipóteses de investigação com quebra do sigilo de informações pessoais, além chega-
rem ao limite de prever a possibilidade de eliminar fisicamente cidadãos e cidadãs em
nome da assim denominada “guerra ao terror” (NIEDERBERGER, 2015, 91).
Um quarto problema enfrentado pela cidadania no mundo de hoje é o fato
de que ela não é mais a única arena na qual a sociedade disputa sua forma de vida e

355
seu projeto de futuro. A ordem política é pensada pelos seus membros como um
instrumento de proteção de interesses individuais, mas nem sempre como um instru-
mento para realizar objetivos coletivos.
Por exemplo, em alguns países há uma forte tendência de recorrer ao judici-
ário com a finalidade de transformar as normas que compõem a ordem política sem
fazer as demandas passarem pelo processo de votação e participação política (NIE-
DERBERGER, 2015, 92), questão que no Brasil tem sido debatido sob a denomina-
ção equívoca de “judicialização da política” (NOBRE & RODRIGUEZ, 2011). Em
razão deste fenômeno, a criação das normas que regulam a vida em sociedade deixa
de ser protagonizada apenas pelo Parlamento e passa a contar com a participação do
Poder Judiciário, fato que contribui para retirar a centralidade das eleições para o
exercício do poder legislativo.

Alternativas para a cidadania?

Há algumas propostas na mesa que procuram dar conta dos problemas que
acabamos de elencar. São elas, na síntese de Niederberger (2015, 93) a cidadania cos-
mopolita, a participação política sem cidadania e a cidadania-constelação. Examine-
mos cada uma delas, ainda que sucintamente.
A proposta de uma cidadania cosmopolita tem sido defendida por David Held
e Daniele Archibugi e consiste em manter em funcionamento a cidadania tradicional,
ligada aos estados nacionais, acrescentando uma nova dimensão à cidadania; uma di-
mensão suplementar à cidadania doméstica que tem como finalidade suprir as suas
deficiências. Sob a égide da cidadania cosmopolita ficaria garantido aos indivíduos
tanto o status de cidadão de seus estados quanto a possibilidade de participar de or-
ganismos internacionais e organismos jurisdicionais de alcance global.
A cidadania cosmopolita incluiria, portanto, o direito dos indivíduos de pro-
cessar estados em tribunais internacionais, regular eventuais influências indevidas ou
conflitos entre ordens políticas nacionais, obter recursos para lidar com catástrofes
que envolvam refugiados, entre outras medidas que se imponham para além das fron-
teiras nacionais. Tal cidadania seria um complemento da cidadania doméstica, pois
lidaria com problemas os quais esta não tem condições de lidar por ultrapassar seu
âmbito natural de atuação (NIEDERBERGER, 2015, 93-94).
Esta proposta enfrenta uma série de dificuldades, para começar, a inexistên-
cia de instituições capazes de efetivar os direitos prometidos por ela. Afinal, de fato,
não existem hoje organismos internacionais ou tribunais capazes de suprir as defici-
ências da cidadania doméstica. Não existem no âmbito internacional instituições for-
mais suficientemente poderosas para impor normas obrigatórias para todos os países
e indivíduos ao redor do globo. Além disso, mesmo que instituições assim existissem,

356
elas poderiam rapidamente assumir caráter tirânico, caso deixassem de levar em conta
a vontade dos estados e dos cidadãos e cidadãs de cada localidade.
Ademais, não é fácil identificar com clareza o que são questões de interesse re-
gional e o que seriam questões de interesse cosmopolita. Muitas vezes a divergência
que se instaura entre os agentes sociais diz respeito, justamente, a discordâncias
quanto ao âmbito de relevância de um determinado problema, por exemplo, nos casos
que envolvem uma possível intervenção humanitária de organismos internacionais
em países envolvidos em conflitos internos ou em guerras. A hierarquia entre a ordem
doméstica e a ordem cosmopolita não se apresenta, assim, de forma evidente a ponto
de permitir decisões inequívocas sobre as eventuais providências a tomar.
A segunda proposta em debate, na formulação de Niederberger, é a ideia de
participação política sem cidadania. De acordo com esta proposta, seria garantido a todos
e todas as afetadas por uma determinada ordem normativa a possibilidade de partici-
par dela. Assim, bastaria que alguém fosse afetado por uma determinada decisão para
ter a possibilidade de influir sobre ela, como se essa pessoa fosse um cidadão ou ci-
dadã daquela ordem política (NIEDERBERGER, 2015, 94-96).
Há uma dificuldade evidente nesta proposta: ela ignora que diversas questões
decididas no âmbito de uma ordem normativa dependem de uma colaboração de
longo prazo entre os cidadãos e cidadãs. Por exemplo, o acesso aos benefícios garan-
tidos pelos direitos sociais exige a criação de toda uma estrutura de arrecadação, or-
ganizada pelos Estados nacionais com o objetivo de financiar coletivamente os diver-
sos programas sociais.
A revisão constante dos membros de uma ordem política, neste caso, poderia
pôr a perder a viabilidade de oferecer tais benefícios, afinal, tal variação afetaria tanto
o seu financiamento quanto a demanda por novos benefícios sociais. Além disso, esta
proposta poderia ser aplicada apenas a sistemas fechados, bem localizados territorial-
mente. Ora, como já vimos, há uma série de ordens normativas que transcendem as
fronteiras dos estados e, portanto, não poderiam funcionar nos termos da proposta
de concessão de direitos de participação política sem cidadania.
Outra versão desta mesma ideia, chamada de cidadania transnacional (NIEDER-
BERGER, 2015, 95) foi elaborada por David Owen e advoga a possibilidade de que
qualquer um possa participar das estruturas e instituições que tenham influência sobre
sua a vida e tenha acesso aos sistemas de cooperação, desde que esteja disposto a arcar
com seus custos e com os deveres que eles impõem.
Esta proposta também é de difícil implementação, afinal, não há como diferen-
ciar com clareza a participação política da cidadania propriamente dita. Por isso
mesmo, oferecer a possibilidade de participar nestes moldes equivaleria a equiparar o
beneficiado ou beneficiada aos cidadãos e cidadãs de um determinado Estado, o que
teria implicações simbólicas e identitárias indesejadas. Além disso, essa proposta pa-
rece dar conta apenas do caso de pessoas que circulam ao redor do mundo, pessoas

357
que podem entrar e sair do âmbito de influência de ordens políticas claramente iden-
tificadas. A cidadania transnacional não dá conta do fato de que as ordens políticas e
normativas tendem a se sobrepor umas às outras e, muitas vezes, a entrar em conflito.
Finalmente, Niederberger menciona a proposta de Roger Bauböck, a cidadania-
constelação (NIEDERBERGER, 2015, 95-96) antes de apresentar a sua solução, elabo-
rada a partir dela. A cidadania-constelação parte do pressuposto de que existem ordens
políticas plurais dispostas em níveis diferentes, a saber, local, regional, nacional, inter-
nacional, transacional e assim em diante. Para esta visão da cidadania, as pessoas po-
dem ser cidadãs de várias ordens ao mesmo tempo, sendo titulares, portanto de múl-
tiplas cidadanias.
Portanto, deveria haver várias maneiras de influir e de controlar as ordens polí-
ticas e normativas. De acordo com algumas delas, será possível participar diretamente
da política e, portanto, da formação das normas. Em outras, por outro lado, a pessoa
será titular de um status limitado e derivado de sua participação em outra ordem po-
lítica, o que poderia abrir a ela a possibilidade de controlar apenas alguns efeitos das
normas que influenciam a sua vida, mas não de participar de maneira completa do
processo político.
Por exemplo, pode-se imaginar a possiblidade de garantir a todos e a todas,
mesmo aqueles e aquelas que não sejam cidadãos e cidadãs plenas de um determinado
Estado, a possiblidade de votar e opinar em nível local, por exemplo, em questões
relativas à região ou à cidade onde moram. Desta forma, múltiplas formas de cidada-
nia e de pertencimento a ordens normativas poderiam coexistir, garantindo a todos e
a todas a possibilidade de influir sobre as normas que afetam as suas vidas.
Para Andreas Niederberger, a possibilidade de efetivar esta proposta de cidada-
nia exigiria a construção de dois tipos de instituições formais. De um lado, teríamos
ordens políticas singulares em funcionamento, dotadas de instituições que deveriam ser
capazes de garantir condições não arbitrárias de funcionamento. De outro lado, seria
necessário edificar estruturas e instituições de segunda ordem, capazes de garantir que
tais ordens políticas não dominem umas às outras e que não se tornem internamente arbitrárias
(NIEDERBERGER, 2015, 98).
A ordens políticas singulares, para esta proposta, deveriam garantir para todos e
para todas a possibilidade de participar da formação de suas normas e construir me-
canismos judiciais que garantam o seu cumprimento. As mencionadas estruturas de
segunda ordem, por sua vez, deveriam ter alcance regional ou global e capacidade de
intervir sobre aquelas ordens políticas singulares que passarem a funcionar de maneira
arbitrária, seja porque:

a) elas se tornaram internamente arbitrárias, por exemplo, em caso


de violação de direitos humanos;

358
b) elementos de uma ordem passaram a dominar a outra, promo-
vendo interferências arbitrárias, por exemplo, no caso da externali-
zação de danos ecológicos;
c) os indivíduos não conseguem agir em condições não arbitrárias,
por exemplo, quando houver pessoas vivendo em situação de guerra
civil ou em estados totalmente desarticulados;
d) quando a revisão de certos elementos da ordem normativa possa
aumentar seu carácter não arbitrário, por exemplo, pela manutenção
de administrações custosas em locais diferentes (NIEDERBER-
GER, 2015, 99-100).

Para o autor, tais estruturas de segunda ordem deveriam ter a forma de me-
canismos judiciais, os quais assumiriam funções semelhantes àquelas exercidas pelo
Poder Judiciário nacional, mas tendo como objeto as diversas ordens políticas singu-
lares em funcionamento no espaço global (NIEDERBERGER, 2015, 100). Como é
amplamente sabido, uma das funções do Poder Judiciário, entre outras, é verificar se
determinados comportamentos se adequam ou não às normas jurídicas e, além disso,
no contexto de algumas ordens políticas, exercer o controle constitucional com a fi-
nalidade de examinar a adequação de determinadas normas e instituições às normas
constitucionais.
Em uma estrutura como esta, os cidadãos e cidadãs poderiam construir livre-
mente ordens políticas em múltiplos níveis, desde que elas não dominassem umas às
outras e funcionassem de forma não arbitrária. Haveria, portanto, uma pluralidade de
comunidades políticas heterogêneas, cada uma tratando de problemas e assuntos di-
ferentes, por meio das quais as pessoas poderiam colaborar para realizar os mais di-
ferentes objetivos, utilizando-se, para esta finalidade, as mais variadas modalidades de
participação política.
Como se vê a reinvenção da democracia nestes termos exigia uma revisão no
modo pelo qual olhamos para as ordens políticas singulares, uma perspectiva que deve
fugir da visão tradicional, centrada em Estados nacionais os quais poderiam vir a for-
mar uma possível sociedade mundial. De acordo com a proposta da cidadania-cons-
telação, a visão da democracia centrada nos Estados deve ser deixada de lado. A plu-
ralidade política de ordens normativas exige o reconhecimento de múltiplas formas
de pertencimento, mantido o caráter não arbitrário do funcionamento dessas diversas
ordens normativas e uma relação de não dominação entre elas, garantida por estrutu-
ras judiciais de alcance regional e global.

359
Conclusão

A cidadania precisa se transformar para manter a centralidade na gramática da política


contemporânea tendo em vista as mudanças sociais ocorridas no final do século XX
e neste começo de século XXI. Tais mudanças abalaram a centralidade dos Estados
nacionais como fonte das regras que influenciam a vida das pessoas em razão da glo-
balização das finanças e da criação de ordens normativas de outra natureza, e criaram
situações de moradia transitória e de circulação de pessoas que estão contribuindo
para a relativa obsolescência do conceito de cidadania. Além disso, problemas como
o combate ao terrorismo estão levando à relativização de uma série de direitos típico
da cidadania, supostamente em favor do incremento da segurança.
Ser cidadão de um estado nacional, tradicionalmente, significa pertencer a uma
determinada comunidade política e, por isso mesmo, ser levado em conta na criação
das regras que presidem a vida em sociedade e ter acesso a uma série de direitos e
benefícios. Pelas razões discutidas neste texto, todas estas dimensões da cidadania
estão sendo ameaçadas, o que faz com que o conceito perca a centralidade na descri-
ção do status político dos homens e mulheres que vivem ao redor do globo.
Para manter a centralidade do conceito, Andreas Niederberger examina diversas
concepções de cidadania presentes no debate acadêmico contemporâneo e propõem
a ideia da cidadania-constelação que admite diversas formas de pertencimento às variadas
ordens normativas singulares existentes e propõe a criação de instituições de tipo ju-
risdicional com poder para manter estas ordens funcionando em padrões democráti-
cos e para evitar que uma ordem ameace colonizar a outra.
Esta proposta tem como finalidade manter em funcionamento a estrutura básica
do conceito de cidadania, que é capaz de garantir participação na criação das regras
que presidem as nossas vidas e o acesso a uma série de direitos e benefícios. A alter-
nativa seria a fragmentação das ordens normativas e sua eventual colonização uma
pela outra. Fica claro, neste ponto, o caráter normativo da proposta de Niederberger,
uma proposta que tem como objetivo conservar os ganhos democráticos do conceito
de cidadania normativa sem deixar de levar em conta as transformações sociais con-
temporâneas.

360
Capítulo 17 – Um Novo Ciclo Autoritário?

Introdução

Quatro fenômenos contemporâneos ocorridos no campo da ciência, da his-


tória, do jornalismo e do direito, como será demonstrado a seguir, merecem ser objeto
de uma reflexão em conjunto para que se possa identificar suas características comuns
e sua relevância para a reflexão sobre o direito e a política contemporâneas. Vou
agrupá-los, para começar, sob a denominação de “perversões” por se utilizarem de
formas de saber consagradas, esvaziando-as de suas funções e objetivos socialmente
reconhecidos e, a desenvolverei uma reflexão sobre o sentido destas utilizações para
compreender o direito e a política. Estamos falando, a saber, do “criacionismo”, do
“revisionismo histórico”, do “fake news” e do “direito autárquico”.
Utilizarei aqui o termo “perversão” para me referir a uma mudança radical
no sentido estabelecido de determinada instituição, uma mudança tão radical que
priva tal instituição de suas características conhecidas e faz com que ela funcione em
um sentido completamente diverso de seu uso corrente. Para deixar esta ideia mais
clara, façamos, desde já, uma analogia: uma cadeira sem uma de suas pernas ou que
permaneça rente ao chão, ao menos no ocidente, não pode mais ser utilizada como
uma cadeira. Por via de consequência, chamá-la de cadeira passa a soar estranho, ex-
ceto se estivermos em uma casa decorada no estilo japonês.
Para pôr a questão de maneira mais técnica, o conceito de cadeira permite
fazer uma série de inferências sobre o que é uma cadeira, como ela deve ser utilizada,
como ela se relaciona com as pessoas e com outros objetos, o que ela significa do
ponto de vista da cultura, da economia e assim em diante (BRANDOM, 2009). Nesse
sentido, o conceito de cadeira é normativo, ou seja, em determinado tempo e contexto,
ele impõe certas regras para seu uso, ele desenha certas possibilidades e impossibili-
dades de sentido as quais podem ser, evidentemente, objeto de transformações ao
longo do tempo. Mudanças promovidas pelos agentes sociais em constante interação.
Nesse registro, a perversão consiste em um uso arbitrário, abrupto de um determi-
nado conceito, fora de seu horizonte de sentido, ou seja, um uso que desconsidera a
normatividade contextual que lhe é específica.
Assim, uma suposta ciência que não pratique a verificação racional de suas
hipóteses deixaria de tomada como ciência, um suposto jornalismo sem verificação

361
de fatos, deixa de ser tomado como jornalismo: pode-se dizer o mesmo de uma su-
posta história ou de um suposto estado de direito que funcione sem a ideia de igual-
dade. Todas estas instituições, privadas de determinados procedimentos e formas de
pensar, deixam ser tomadas como eram no contexto de uma determinada comunidade
de sentido.
E pouco importa se as palavras utilizadas para designar tais fenômenos con-
tinuassem a ser as mesmas. Pouco importa que a cadeira sem pernas continue a ser
chamada de “cadeira” ou de “não-cadeira”, “ex-cadeira, “não-mais-cadeira”, “cadeira-
que-deixou-de-se-lo” ou simplesmente “cadeira morta”, para citar um famoso sketch
do programa Monty Python Flying Circus, “Papagaio Morto”. O fato é que ela terá
sofrido uma perda de funcionalidade tão radical que o uso do termo “cadeira” para
designá-la passa a soar arbitrário, sem sentido ou como uma piada. Usar a mesma
palavra para designar tal objeto, sem nenhuma qualificação, significaria, para os fins
deste texto, perverter o sentido da palavra “cadeira” em seu uso normal, tentar, pro-
vavelmente sem sucesso, fazer parecer que uma coisa ainda é o que ela deixou de ser.
Tal fato fica mais claro quando imaginamos que o gesto de oferecer para
alguém uma cadeira sem pernas poderá seu tomado como uma piada, como uma
agressão, como um convite nada sutil a se retirar do recinto, como um sinal de loucura
de quem ofereceu o objeto, mas jamais como uma ação normal, que siga a normati-
vidade imposta pelo uso normal da palavra. Exceto, naturalmente, em um lar japonês
ou na loja de animais mortos do Monty Python´s Flying Circus.
É importante apontar a gravidade destes fenômenos de perversão que atin-
gem em sua essência, por assim dizer, instituições dotadas de autoridade para estabe-
lecer o que é a verdade e instituições destinadas a promover o tratamento igualitário
entre as pessoas. Verdade científica, no caso da ciência; verdade dos fatos contempo-
râneos, no caso do jornalismo, verdade de fatos passados, no caso da História e tra-
tamento igualitário no caso das instituições destinadas a atribuir e a garantir direitos
iguais para todas as pessoas.
Mas quais seriam as consequências sociais destas perversões? Ora, na falta
de informações confiáveis sobre o presente e sobre o passado e sem um método
confiável para obtê-las; na falta de dados científicos confiáveis sobre a natureza e sem
disciplinas reconhecidas e em funcionamento destinadas a construir tais dados, ainda,
na falta de mecanismos reconhecidos, com poder para atribuir direitos de forma igua-
litária, boa parte do que se compreende como modernidade simplesmente deixará de
existir.
O projeto moderno de justificação racional de todo e qualquer fato e de todo
e qualquer direito perante esfera pública por meio de um diálogo racional do qual
todas as pessoas possam participar e sejam levadas em conta, poderá ver solapadas as
suas condições de possibilidade simbólicas e institucionais. Tal ameaça se deve, eu
levanto a seguir a hipótese, à ação de agentes sociais interessados (1) na criação ou

362
expansão de formas de vida hierárquicas legitimadas pela (2) na construção ou a ex-
pansão de narrativas que não dependam de fatos, que não precisem ser verificadas
por métodos racionais.
Ora, em uma era de precarização do trabalho em que as pessoas são contra-
tadas para realizar trabalhos mal pagos, de curta duração e altamente instáveis e pre-
cisam sobreviver sem o apoio de estados de bem-estar social, especialmente em países
periféricos como o Brasil, é cada vez mais difícil prever o futuro, ao menos para quem
vive exclusivamente do seu trabalho. Em um contexto como este, atribuir todos os
problemas à providência divina, aos signos do zodíaco, à intuição visionária de um
líder ou a qualquer outra força irracional, pode ser um modo de pensar muito útil para
manter as coisas como estão. Pensando desta maneira, as pessoas tenderão a se con-
formar com o seu destino, sem tentar entender quem são os responsáveis pela sua
vida ser como é e sem imaginar ser possível modificar as regras que desenham as
condições de existência.
Como afirmou Franz Neumann no seu “O conceito de liberdade política”
(NEUMANN, 2013; RODRIGUEZ, 2017), ideia que ajuda a inspirar esta análise, a
efetivação da liberdade depende da existência de um estado de direito, que garanta
que os conflitos sociais se desenrolem sem violência aberta, depende da prática da
ciência, que mostre que o mundo e a história não são dados, podem ser transformados
pela ação humana e depende de instituições políticas democráticas, que permitam que
as pessoas tomem parte no processo de formação das normas que regulam as suas
vidas. A meu ver, como será demonstrado a seguir, os fenômenos para os quais estou
chamando a atenção atingem diversos dos pressupostos desta visão da liberdade eli-
minando alguns de seus pressupostos fundamentais.
É importante deixar claro que não estamos sustentando aqui a ideia de que
estaríamos experimentando, necessariamente, um retrocesso no processo de expan-
são da ciência e do sabe técnico em favor de formas não racionais e totais de justifi-
cação da vida social. Ciência, expansão da técnica, e, no limite, expansão do capita-
lismo, podem se desenvolver paralelamente a diversas formas de religiosidade e irra-
cionalismo, como mostrou Peter Berger em seus estudos sobre a religião (BERGER:
2017).
Berger argumentou, de forma muito convincente, que mesmo pessoas que
praticam o pensamento racional e científico para viver, que pensam racionalmente em
bases cotidianas, por exemplo, um médico militante, pode ser completamente funci-
onal em sua profissão e agir, simultaneamente, “como se” suas crenças não existissem,
mantendo, assim, esses dois universos separados. Nesse sentido, o avanço da racio-
nalidade e da ciência não resulta, necessariamente, na secularização crescente da vida
social. Berger argumenta que a teoria da secularização precisa ser revista e, é razoável
acrescentar, a capacidade efetiva do estado de direito e da política, via esfera pública,
de regular e racionalizar a vida social, especialmente o debate público.

363
Afinal, o debate na esfera pública pode se desenrolar por um longo período
“como se” seus participantes fossem laicos e acreditassem no poder da argumentação,
“como se” as pessoas aderissem às normas editadas pelo estado de direito até o mo-
mento em que determinadas forças sociais reúnam poder suficiente poder político
para impor sua visão de mundo. No caso do direito esta é, justamente, a qualidade
que permite a esta forma institucional mediar os diversos conflitos sociais, qual seja,
a possibilidade de que toda pessoa possa respeitar as normas jurídicas sem aderir sub-
jetivamente a elas, mantendo assim suas objeções éticas e morais ativas no debate
público em nome de uma possível revisão das leis por intermédio dos procedimentos
regulares de criação de normas jurídicas existentes em todos os estados de direito.
Por isso mesmo, excluída uma solução jacobina radical que proibisse a reli-
gião e qualquer forma de culto ou pensamento irracional, sempre haverá a possibili-
dade de pregar e de viver sob formas de vida irracionais sob um estado de direito que
funcione em bases racionais, sob a proteção da liberdade de religião e de crença. Sem-
pre haverá espaço, portanto, para que ordens normativas autocráticas e imperialistas,
como veremos a seguir, se formem e se desenvolvam, com o potencial de entrar em
choque com o estado de direito. Este é, provavelmente, um paradoxo insuperável de
qualquer regime que se pretenda democrático.
Nesse sentido, entendo que estas figuras de perversão funcionam como ins-
trumentos propícios para que agentes interessados procurem criar ordens normativas
autárquicas, em determinados casos, com pretensões totalizantes, ou seja, ordens nor-
mativas que produzam suas normas unilateralmente, sem passar por procedimentos
democráticos de formação da vontade. Algumas destas ordens podem pretender ins-
tituir explicitamente, sem a mediação do Estado ou do parlamento, formas de vida
hierárquicas, contrárias à ideia de igualdade de direitos, contrárias à tradição iluminista
e muitas vezes, pretendem, explicitamente, enfraquecer o poder do Estado, como é o
caso de certos grupos religiosos ou de inspiração religiosa e de grandes negócios ca-
pitalistas transnacionais.
A perversão do direito, nesse sentido, tem sido fundamental para viabilizar a
estratégia de globalização das trocas comerciais e da atividade financeira nas últimas
décadas (RODRIGUEZ, 2009). A disciplina jurídica dos negócios capitalistas tem
deixado de lado o constrangimento das leis nacionais e suas exigências, ou seja, es-
sencialmente, a cobrança de impostos e o respeito a direitos fundamentais, direitos
sociais inclusive, para assumirem formas contratuais que constituem verdadeiros re-
gimes privados de regulação, imunes à influência das sociedades civis estatais e aos
instrumentos coercitivos à disposição dos Estados.
Nestes regimes contratuais radicalmente privados, um eventual equilíbrio de
poder entre as partes depende apenas de seu poder econômico e não do direito, que
fica privado da capacidade de promover a igualdada das partes. No caso de partes
contratuais com poder muito desigual, por exemplo, empresas monopolistas como o

364
Google, o Facebook, o Uber ou bancos e fundos de investimento bilionários, estes
“contratos” perdem completamente seu caráter de troca de equivalentes e se tornam
mera justificação formal para a imposição unilateral e autárquica de determinadas nor-
mas. O contrato deixa, assim, de expressar uma troca de equivalentes e se torna mero
instrumento de dominação, um “contrato de dominação”, para dizer de forma mais
sucinta, mediante o qual todas as cláusulas são impostas unilateralmente e podem ser
alteradas sem nenhum aviso, o que estabelece uma espécie de ditadura no âmbito
privado que elimina completamente a autonomia privada.
O conceito de “ordens normativas autárquicas”, como discutido a seguir,
será construído em diálogo com os escritos de Robert Cover, também uma hipótese
sobre o seu surgimento. Assim, este texto irá perguntar se o enfraquecimento do po-
der dos Estados com a liberalização dos mercados, especialmente dos mercados fi-
nanceiros, a partir da década de 70, não teria sido responsável por abrir espaço, justa-
mente, para que certas ordens normativas assumam feições autárquicas a pretendam
criar espaços normativos autônomos, hierárquicos e não democráticos, utilizando-se,
para isso, das já referidas estratégias de perversão.
Evidentemente, este processo terá variantes nacionais significativas. Nos Es-
tados Unidos por exemplo, historicamente, o Estado permite ampla liberdade para
que a sociedade civil crie normas e formas de vida relativamente autônomas 1, como
o próprio Robert Cover debate em sua obra ao analisar o grupo religioso dos Amish.
De qualquer forma, parece razoável imaginar que o enfraquecimento do poder dos
Estados nacionais em regular seu próprio território, como será debatido a seguir, te-
nha permitido que uma série de ordens normativas com pretensões autárquicas arris-
cassem afirmar a sua independência perante os Estados e as demais ordens normati-
vas no que poderia ser descrito como um ciclo de conflitos radicais entre ordens nor-
mativas plurais, um ciclo que pode apontar para verdadeiros estados de guerra entre
ordens normativas mutuamente incompatíveis. Nesse sentido, temos o exemplo o do
grupo radical Estado Islâmico que, aparentemente, pretender criar espaços autôno-
mos sob o seu arbítrio. (WOOD, 2016)
Em outros tantos casos, como será sugerido neste texto, seja por falta de
interesse ou por falta de poder para criar ou disputar o controle de meios de coerção,
estatais ou não estatais, algumas ordens normativas parecem preferir adotar estraté-
gias de dominação furtivas, ou seja, as mencionadas figuras da perversão, sem entrar
em conflito aberto e violento com algum Estado ou com outras ordens normativas.
Uma das tarefas da pesquisa em Direito e Política em geral, a meu ver, é descrever
tais processos, os quais serão abordados aqui, por falta de espaço, apenas no que se
referem a alguns casos exemplares.

1
Sobre o avanço do extremismo nos EUA, ver POGGI, 2015.

365
Nesse sentido, diante do enfraquecimento do poder do Estado, pode-se per-
guntar também se estas figuras da perversão não poderiam ser consideradas como
uma manifestação contemporânea da tradição política conservadora e autoritária, uma
espécie de “novo ciclo autoritário” estabelecido para além do poder estatal e de suas
estruturas de organização sanção. Se esta avaliação for razoável, poderíamos dizer que
estamos diante de formas conservadoras e autoritárias, plurais e descentradas, orga-
nizadas na forma de múltiplas ordens normativas autárquicas em razão do declínio
do poder do Estado ou para evitar seu poder.
Essa linha de investigação sugere a necessidade de estabelecer um diálogo
entre a tradição da Teoria Crítica, os escritos tradição do pluralismo jurídico, os escri-
tos de Robert Cover e a tradição foucaultiana, uma pauta de pesquisa que não é pos-
sível, evidentemente, desenvolver neste espaço. No entanto, vale a pena dizer algumas
palavras sobre a escolha de Robert Cover como interlocutor deste texto.
Como será visto adiante, trata-se de um autor que, para os fins deste texto,
propõe uma maneira muito produtiva de abordar a relação entre direito e sociedade.
As relações sociais, para ele, não se desenvolvem “fora” do “direito” e “chegam”, de
alguma maneira, até as “instituições judiciais” para serem “juridificadas”. Para Cover,
“sociedade” e “direito” não aparecem como dois elementos externos um ao outro,
mas como determinações de um mesmo fenômeno dinâmico de atribuição, disputa e
perda de sentido, no contexto da ação social, como fica claro em seu conceito de
jurisgênese.
Além disso, Cover não pensa o direito ligado, necessariamente, ao aparelho
estatal. Não é a produção de normas pelo aparelho estatal que diferencia “direito” de
“não-direito” e sim, como já foi dito acima, uma determinada atitude de natureza
grupal que implica na atribuição do sentido “jurídico” a certas práticas e estruturas,
abordagem muito útil para refletir sobre o processo de criação e destruição de direitos
na vida social.
Em terceiro lugar, Cover concebe a jurisgênese, ao mesmo tempo, como um
processo de criação e de destruição de direitos a partir de conflitos que se desenrolam
entre ordens normativas e no interior das diversas ordens normativas em razão da
criação de novas narrativas sobre o sentido do mundo e sobre seu desenvolvimento
futuro. Narrativas estas que podem tanto buscar reinterpretar normas jurídicas já po-
sitivadas ou instituir novos centros de produção normativa, em conflito aberto como
aquele competente para pôr o direito até então vigente. Neste caso, pode ocorrer o
que Cover chama de “mitose normativa”, ou seja, a possível criação de uma nova
ordem normativa, dotada de mecanismos e critérios próprios para a criação de nor-
mas jurídicas.
Os fenômenos analisados neste texto, como anunciado acima, podem ser
explicados, como veremos a seguir, com o auxílio do aparelho conceitual de Cover,

366
ainda que modificado: estamos diante de práticas que parecem pretender instituir no-
vas ordens normativas contra o poder do Estado; ordens normativas autárquicas e
hierárquicas, relativamente incompatíveis como a tradição do direito e da ciência mo-
derna.
Para retomar o fio da exposição, como veremos na segunda parte deste texto,
as evidências históricas parecem indicar que os modelos analíticos de Robert Cover,
do pluralismo jurídico e os micropoderes são mais adequados do que o modelo da
soberania estatal para descrever o funcionamento das instituições contemporâneas,
mas certamente não para criticá-las: daí a necessidade de introduzir modificações nos
conceitos de Cover.
É importante fazer notar que nem a tradição do pluralismo jurídico nem a
tradição foucaultiana oferecem critérios claros para distinguir normatividades autár-
quicas de normatividades democráticas, ou seja, não estamos diante de modelos de
análise preocupados com questões normativas. De fato, tais modelos são valorativa-
mente indiferentes aos rumos que a sociedade irá tomar, eximindo-se da tarefa de
discutir possíveis critérios para organizar a vida social.
E, caso faça sentido considerar que o surgimento de ordens normativas é
algo normal em uma democracia, ou seja, que a narrativa constitucional do Estado
não deva ser totalizante, mas deva abrir espaço para várias formas de vida em um con-
texto de multinormatividade, a construção de tais critérios se torna fundamental para
a sobrevivência do regime democrático.
Por isso mesmo, diante de tais transformações sociais, é certamente impor-
tante imaginar, como tem feito, por exemplo Andreas Niederberger e Mireille Demas-
Marty (NIEDERBERGER: 2015; DELMAS-MARTY: 2009), formas institucionais
construídas para além do modelo estatal (e do direito internacional de matriz estatal),
capazes de organizar a proliferação de ordens normativas para que não haja interven-
ções arbitrárias e violentas de umas sobre as outras e seja possível resolver conflitos
entre elas de forma não violenta. Este tema, que também não será abordado aqui em
detalhes, trata do que podemos chamar de “utopias institucionais”, ou seja, da tenta-
tiva de propor alternativas institucionais novas, capazes de dar conta das transforma-
ções das sociedades contemporâneas sem deixar de lado a ideia de democracia (RO-
DRIGUEZ, 2015).

Perversões

Fenômenos no campo da ciência, da história, do jornalismo e do direito tem chamado


a atenção dos estudiosos destas áreas e nos fazem refletir, especialmente quando exa-
minados em conjunto, sobre o seu significado mais amplo. Pois estes fenômenos,
como será demonstrado adiante, parecem revelar um padrão, característico das estra-
tégias de dominação utilizadas por uma série de agentes de poder contemporâneos,

367
qual seja, a apropriação meramente formal de determinadas formas de saber, esvazi-
adas de suas funções características e postas à serviço de objetivos contrários aos quais
elas costumam servir.
Podemos mencionar, nesse sentido, (a) o surgimento do “criacionismo”
como uma suposta modalidade de ciência alternativa à ciência como a conhecemos;
(b) o estabelecimento de certas modalidades de “revisionismo histórico” que se utili-
zam da aparência de métodos historiográficos consagrados para propagar ideias con-
servadoras como o revisionismo do nazismo2 e a assim denominada “história virtual”;
(c) o surgimento de práticas e veículos dedicados ao assim chamado “fake news” que
se esforçam por oferecer, nas palavras de um de seus protagonistas, “fatos alternati-
vos” ao público3 e, finalmente, (d) a utilização de leis gerais para produzir efeitos dis-
criminatórios sobre determinados grupos e a utilização da linguagem do direito para
criar ordens normativas, cujas normas não passam por mecanismos democráticos de
formação da vontade, fenômeno que podemos chamar de “direito autárquico”4.
Todos estes fenômenos se assemelham, pois resultam na utilização de for-
mas de saber socialmente consagradas, dotadas de legitimidade e autoridade para falar
em nome de fatos e da igualdade com a finalidade de perseguir objetivos que contra-
riam abertamente seu propósito original. Por assim dizer, é como se estas formas de
saber, socialmente autorizadas a falar em nome da “verdade” e do “direito” estives-
sem sendo hackeadas para servir a fins privados, ou seja, para favorecer aos interesses
e desejos de determinados agentes sociais, mas sem perder sua aparência, sua mera
forma universal. Por assim dizer, são reduzidas à mera forma de formas esvaziadas
de saber, mas que ainda aparentam falar em nome da “ciência”, da “verdade histórica”,
da “verdade jornalística” e do “lícito”, a despeito de serem postas à serviço da cons-
trução de formas de viver hierárquicas e de narrativas que não podem ser verificadas
por procedimentos racionais.
Estamos assistindo, assim, ao surgimento de formas pervertidas (a) de “ci-
ência”, cujas hipóteses não podem ser falseadas pela pesquisa empírica, (b) de “histó-
ria”, que não está preocupada com o que efetivamente ocorreu, composta da apre-
sentação de informações falsas, enviesadas ou de meras especulações sobre o que a
história poderia ter sido ou pelo, (c) de “jornalismo”, que não depende da apuração
de fatos por meio da consulta e do cruzamento de fontes, (d) de “direito” que se
torna uma forma vazia, programável unilateralmente por determinados agentes de
poder, um “direito” cujas normas não passam por processos democráticos de forma-
ção da vontade. Tais estratégias podem surgir sozinhas ou combinadas, especialmente

2
Sobre este tema, que foi objeto de um processo judicial na Inglaterra no qual funcionaram como peritos
grandes estudiosos da história alemã, ver LIPSTADT, 1994, 2017. Ver também o resultado da perícia de
Richard J. Evans, “Lying About Hitler” que analisa detalhadamente o uso deturpado e mal-intencionado da
análise de documentos e de fatos para produzir uma versão enviesada da história (EVANS, 2002).
3
Sobre o tema ver D’ANCONA, 2018; KOVACH & ROSENTIEL, 2014.
4
Sobre este tema ver RODRIGUEZ, 2018.

368
no que se refere à perversão do direito. Por limitações de espaço, examinemos dois
destes exemplos mais de perto, o criacionismo e a assim denominada história virtual.
O combate ao evolucionismo nos Estados Unidos data do começo do século
XX e passou por três fases principais, as duas primeiras julgadas inconstitucionais
pelos tribunais norte-americanos (MATZKE: 2015). A primeira buscava, simples-
mente, banir seu ensino em todos os níveis. A segunda exigia que a teoria do “design
inteligente” fosse ensinada com o mesmo destaque dado à teoria da evolução e como
alternativa a ela. Já a terceira, afirma Matzke, a estratégia do “criacionismo furtivo”,
busca aprovar leis que permitam o avanço do ensino do criacionismo, mas sem men-
cioná-lo expressamente, em nome da liberdade acadêmica.
Leis mais recentes pretendem permitir o ensino do “design inteligente” a
pretexto de submeter o evolucionismo, o aquecimento global e a clonagem humana
a uma análise crítica, desviando, assim, o foco do evolucionismo. Matzke nos informa
que 11 leis como estas já foram aprovadas, muitas delas copiadas de dois projetos de
lei originais, aprovados na Louisiana e no Tennessee. A conclusão do autor é que as
estratégias de combate à teoria da evolução parecem estar sendo reinventadas, a des-
peito das decisões judiciais contrárias.
A justiça americana já se pronunciou para dizer se o criacionismo e a teoria
do design inteligente são ou não são formas de ciência, ou seja, se seguem os padrões
de racionalidade da ciência ou se não passam de veículos para a divulgação da fé cristã,
equiparando-se, portanto, a uma forma de ensino religioso. Note-se que a denomina-
ção “design inteligente” foi adotada após uma decisão da Suprema Corte dos EUA
contra o ensino obrigatório do criacionismo, o caso Edwards v. Aguillard de 1987. No
fundo, como reconheceu a justiça americana, estamos diante das mesmas ideias sob
nova denominação (MATZKE, 2009).
No caso Kitzmiller v. Dover julgado pela Corte Distrital do Distrito Central da
Pensilvânia nos EUA, a justiça reconheceu que o design inteligente é uma forma de
religião, pois afirma que o criador do mundo é o Deus cristão. Por isso mesmo, esta
forma de saber não deve ser obrigatoriamente ensinada como alternativa à teoria da
evolução. Não se trata de uma teoria científica, a despeito dela se apresentar sob esta
forma, baseando seus argumentos em algumas lacunas da teoria da evolução, a saber,
a passagem da inteligência dos hominídeos para a complexidade do pensamento homo
sapiens. Porque a teoria da evolução ainda não explica esta passagem com toda a pre-
cisão, o criacionismo e o design inteligente afirmam que residiria aí a prova da inter-
venção divina (DENNET & PLATINGA, 2011).
Como se vê, a estratégia de certos grupos cristãos, neste caso, foi criar formas
de falsa ciência, por assim dizer, esvaziadas da racionalidade científica, um mero reci-
piente vazio esvaziado dos raciocínios normais das ciências, apenas com o objetivo
de divulgar a fé cristã e combater a teoria da evolução. Tal teoria, de fato, a depender
de sua formulação, pode ser um obstáculo claro para a difusão desta fé.

369
Sem mencionar expressamente toda esta controvérsia, o esclarecedor debate
entre Daniel C. Dennett e Alvin Platinga mostra que uma pessoa cristã pode aceitar
a teoria da evolução, desde que siga acreditando que Deus foi o responsável por de-
senhar todas as formas de vida e provocar todas as mutações genéticas que resultaram
na criação do homem. De acordo com Platinga, filósofo cristão, o que a fé não pode
aceitar é que todo processo de evolução com suas diversas mutações genéticas, espe-
cialmente as que produziram o homem, tenham ocorrido por mero acaso ou em fun-
ção de processos adaptativos independentes da intervenção divina. Platinga diz clara-
mente que aceita a teoria da evolução, mas não está disposto a aceitar o que ele chama
de “naturalismo”, uma visão que prescinde de Deus para explicar a natureza, sob os
protestos irônicos de Dennett.
Nada disso, significa, fique bem claro, que seja necessário afirmar a fé, seja
ela qual for, por meio de uma forma pervertida de ciência que se pretenda tornar, por
meio de lei, de ensino obrigatório no contexto da disciplina de Biologia. O debate
tradicional e sempre renovado sobre as relações entre Ciência e Fé não precisa estar
ligado, necessariamente, a esta estratégia política de difusão de uma falsa ciência que
se tentou contrapor por meio da coerção estatal à teoria da evolução.5 Da mesma
maneira, não estamos sugerindo aqui que a religião sempre antagonize com a norma-
tividade laica e tenda a produzir situações de violência, como parece sugerir o senso
comum a respeito do assunto, minuciosamente desmentido por Karen Armstrong
(ARMSTRONG: 2016).
Na terceira fase do combate à teoria da evolução, nos informa Matzke, o
“criacionismo furtivo”, presenciamos uma estratégia de fuga do embate direto com a
teoria da evolução, derrotada duas vezes nas cortes americanas, em favor de uma
forma de perversão do direito que eu denomino de “legalidade discriminatória”, como
será examinado em detalhes mais adiante. Neste caso, a lei geral é elaborada de tal
forma a permitir a produção de efeitos discriminatórios, os quais, a princípio, seriam
claramente proibidos por lei. Por exemplo, uma lei que proíba o sacrifício de animais
em uma cidade, elaborada em nome da saúde pública, pode gerar o efeito discrimina-
tório de impedir a realização de rituais religiosos de matriz africana ou outros que
incluam o sacrifício de animais.
No caso, a estratégia do “criacionismo furtivo” parece ser, de acordo com
Metzke, aprovar leis que permitam o exame crítico da teoria da evolução, abrindo
espaço para o ensino do design inteligente, mas sem impor tal teoria como de ensino
obrigatório. Desta forma, sem mencionar a teoria do design inteligente, abre-se a pos-
sibilidade de inclui-la no currículo, juntamente como o exame crítico de outros fenô-
menos, como o aquecimento global e a clonagem humana. A menção do design inte-
ligente ao lado destes outros fenômenos tem como objetivo claro desviar o foco do

5
Sobre esse tema, ver HARRISON: 2014.

370
evolucionismo, supostamente em nome da crítica, sempre necessária, à ciência. Ne-
cessária, mas certamente não sob esta forma.
Mas este não é, como já dito, o único fenômeno de perversão que encontra-
mos no mundo contemporâneo. Em outro campo do saber, a história, um fenômeno
semelhante ao criacionismo, ainda sem o seu alcance e repercussão, tem buscado al-
cançar reconhecimento científico. Vou chamar este fenômeno de “revisionismo his-
tórico”. Tratarei aqui de uma de suas modalidades, na descrição do historiador Ri-
chard J. Evans, a assim denominada “história virtual”. Um dos produtos mais célebres
desta abordagem é o livro intitulado “História Virtual” do historiador conservador
Niall Ferguson, que procura apresentar esta abordagem como metodologia séria para
o estudo da história (EVANS, 2013).
Séria pois, como nos relata Evans, a escrita de histórias alternativas, de his-
tórias possíveis, diferentes do que realmente ocorreu, sempre teve lugar no campo
literário, mas para fins cômicos, distópicos ou de mero entretenimento erudito. A
novidade está em sua prática como alternativa acadêmica supostamente legítima. Em
sua análise do livro de Ferguson e obras assemelhadas, Evans nos faz notar que esta
abordagem, essencialmente contrafactual, tem sido praticada apenas por historiadores
abertamente conservadores como forma de criticar uma suposta historiografia mar-
xista, a qual apresentaria a história de maneira determinista, como uma sucessão ne-
cessária de fatos orientados por leis universais.
Mais especificamente, afirma Evans, trata-se de uma crítica a historiadores
como Eric Hobsbawm e Edward Thompson. Nesse sentido, a história virtual teria
como objetivo denunciar o determinismo destas abordagens ao mostrar que a história
pode seguir em vários sentidos possíveis; que a cada momento histórico se abrem
diversas possibilidades, as quais não podem ser previstas antecipadamente. Evans se-
gue sua análise para mostrar, em primeiro lugar, que a abordagem determinista, su-
postamente criticada pela história contrafactual é apenas um espantalho. Nenhum dos
historiadores mencionados pelos conservadores apresenta a história de maneira de-
terminista. Ao contrário, são conhecidos no campo como críticos deste tipo de abor-
dagem.
Mesmo os textos de Marx e Engels, quando examinados de perto, não tratam
as pessoas e as suas decisões como totalmente determinadas por supostas leis histó-
ricas, a despeito de Evans reconhecer que algumas de suas formulações abrem espaço
para leituras deterministas. O que estes autores dizem é que os homens não escolhem
todas as circunstâncias em que vivem: parte de sua existência é determinada, o que
significa que nem todas as possibilidades estão abertas o tempo todo (EVANS: 2013:
35-6).
Além disso, e esse ponto parece ser o mais relevante para meus propósitos,
Evans pergunta se a proposta de uma “história virtual” não estaria contribuindo para
minar a pretensão da História de estabelecer relações de causalidade entre fenômenos,

371
apresentando o processo histórico como completamente imprevisível e impassível de
análise racional.
Historiadores costumam estabelecer hierarquias de causas, explica Evans,
juntando evidências variadas para serem capazes de identificar quais eram as alterna-
tivas postas na época e quais fatores foram mais ou menos importantes para o desfe-
cho que se seguiu. Afirmar que este tipo de raciocínio seria impossível levaria a His-
tória a mergulhar na contingência total, pois se a cada momento houver inúmeras
possibilidades e se elas são sempre infinitas, seria impossível explicar e narrar o que
quer que seja. A contingência radical leva ao caos (EVANS: 2013, 59).
Nem mesmo os “historiadores virtuais”, demonstra Evans, seguem a sua
própria cartilha, admitindo que as possibilidades abertas são sim finitas e afirmando
que as coisas tomariam este rumo ou aquele com base em uma série de pressupostos,
os quais não incluem a contingência radical do curso da história. Além disso, a des-
peito da abordagem contrafactual pretender se limitar à leitura de episódios e decisões
específicas, muito bem recortadas, com a finalidade apenas de levantar as diversas
alternativas possíveis naquele momento, ela tem produzido análises moralistas dos
fatos históricos que terminam por repreender determinados personagens por suas
decisões, sempre de um ponto de vista conservador, configurando quase que uma
vingança contra os mesmos (EVANS: 2013, 101).
Cabe notar que este modo de abordar a História não depende da busca de
documentos e de evidências. A “história virtual” está livre para basear-se apenas em
especulações, as quais podem estabelecer os mais variados cursos de ação, a depender
da escolha dos antecedentes e das ligações possíveis entre os eventos encadeados, os
quais nunca ocorreram de fato afinal, tudo organizado apenas pela imaginação livre e
fértil do “historiador” (EVANS: 2013, 61).
A despeito de Evans não se arriscar apontar possíveis consequências mais
amplas deste modo de pensar, no contexto de nossa análise, podemos afirmar que a
“história virtual” contribui para esvaziar este campo de métodos racionais de explica-
ção, apresentando a realidade como um processo supostamente caótico, radicalmente
contingente, impassível de previsão e planejamento. Ou seja, uma realidade que não
pode ser submetida a projetos que pretendam implementar transformações a partir
de determinados objetivos socialmente estabelecidos, impossibilitando qualquer mo-
dalidade de pensamento e de ação racional, especialmente por parte daquele que pre-
tendam identificar determinadas tendências para a evolução da sociedade e ter alguma
influência sobre elas.
Ordens normativas autárquicas

A que servem estes fenômenos de perversão? Qual é o seu sentido no con-


texto político contemporâneo? Que interesse eles favorecem, que agendas políticas
eles contribuem para fazer avançar?

372
É razoável afirmar que tais fenômenos de “perversão” parecem estar à ser-
viço, principalmente, de formas de saber dogmáticas, características de ordens nor-
mativas autárquicas que pretendem configurar as normas que regulam a vida social à
sua imagem e semelhança, destruindo qualquer possibilidade de alteridade no interior
de seus domínios e estabelecendo formas de vida hierárquicas e narrativas irracionais,
impassíveis de verificação, como veremos a seguir.
Para usar uma analogia, é como se estivéssemos assistindo a um processo de
secessão não estatal com a tentativa de criação de espaços normativos autônomos e
autoritários. Utilizando um termo de Robert Cover (COVER, 1983), em um sentido
modificado, estamos diante de ordens normativas autárquicas que parecem pretender
criar regimes de regulação hierárquicos com a instituição e estabilização de uma série
de normas e estruturas autárquicas, postas à salvo da reflexão racional e da formação
democrática de suas normas.
Para atingir este fim, determinados grupos de inspiração religiosa e negócios
capitalistas procuram enfraquecer, corroendo por dentro, a ciência, a história, o jor-
nalismo e o direito, instâncias capazes de produzir uma reflexão crítica sobre as nor-
mas que estão sendo criadas e de opor entraves efetivos à sua institucionalização,
como ocorreu no caso da intervenção da justiça dos EUA sobre a expansão do ensino
do criacionismo e do design inteligente. No caso da expansão das transações econô-
micas internacionais, como já dito, a estratégia é criar espaços de autorregulação livres
da influência dos Estados e dos cidadãos, cujas regras sejam estabelecidas unilateral-
mente pelas empresas transnacionais e pelas instituições financeiras, uma forma de
perversão do direito, de perversão da forma contratual, que eu denomino de “zona
de autarquia”, como veremos adiante.
Cabe observar que o surgimento constante de ordens normativas não deve
ser encarado como algo estranho ou necessariamente ruim. Com Robert Cover e
Brian Tamanaha, podemos encarar a criação de ordens normativas como um pro-
cesso normal e permanente, o qual muitas vezes não se deixa observar diante da ilusão
de um suposto caráter totalizante do direito estatal (COVER, 1982; TAMANAHA,
2007). Para Cover, o processo de jurisgênesis, de criação de ordens normativas, é
permanente e está ligado a uma permanente criação de narrativas sobre o possível e
o impossível, sobre o certo e o errado, sobre o válido e o inválido, narrativas estas
que conferem sentido ao aparato que organiza a sanção, que pode ser estatal ou não
(COVER: 1982, 4).
Estas ordens normativas podem assumir ou não um caráter autárquico e to-
talizante: mais recentemente, ficou claro com a obra de Günther Teubner que ordens
normativas sobre temas específicos podem se autonomizar e, inclusive, ganhar um
alcance global, como a chamada lex mercatória e a lex sportiva configurando verdadeiros
regimes jurídicos autônomos especializados por tema, dotados de aparatos sanciona-
tórios próprios (TEUBNER, 1997). Vale dizer que este processo de jurisgênese não

373
é harmônico, será sempre marcado por conflitos entre as diversas ordens normativas.
Examinemos com mais detalhes estes problemas a partir dos escritos de Robert Cover.
Um universo normativo é mantido, segundo Cover, pela força de compro-
missos interpretativos, "alguns pequenos e privados, outros imensos e públicos", que
determinam o que o direito significa e o que ele deverá se tornar. Isso quer dizer que
o direito não é apenas uma questão de regras distintas: como o autor sugere, duas
ordens jurídicas idênticas podem diferir em termos de significado se em uma das or-
dens os preceitos são universalmente aceitos, mas são considerados injustos na outra
(COVER: 1983, 7).
Para a Cover, criação de significado jurídico, batizada por ele de jurisgenesis,
que eu chamarei de jurigênese, implica não apenas na criação de novas regras, mas na
instituição de novos mundos, universos normativos que, cumpre ressaltar, não são
necessariamente criados pela ação do Estado e ajudam a constituir determinadas for-
mas de vida. A jurisgênese é um processo coletivo ou social essencialmente enraizado
em um meio cultural, o que implica na possibilidade de que grupos e comunidades
articulem suas próprias criações jurídicas sem qualquer prejuízo interpretativo em re-
lação às legislações estatais (COVER: 1983, 11).
A centralidade do Estado na criação e manutenção do direito não decorre,
segundo Cover, de uma superioridade interpretativa, mas unicamente do fato de o
Estado ser capaz de garantir, por meio da violência, o comprometimento necessário
para a afirmação do significado jurídico. Cover mostra, por exemplo, de que forma
comunidades religiosas como os amish e os menonitas tendem a constituir seus pró-
prios nomoi baseados em textos fundamentais e escrituras sagradas, segundo um mo-
delo batizado pelo autor como autonomia insular (COVER: 1983, 34).
Nesses casos, as comunidades com pretensões de autorregulação estabele-
cem significados próprios para interpretar os princípios constitucionais dos Estados
onde se localizam. Sempre que possível, tais comunidades procuram respeitar as nor-
mas do Estado (no caso, a Constituição Americana), mas negam que ele detenha o
monopólio da interpretação sobre o direito. Nasce daí uma luta constante para definir
e manter a independência de seus nomoi em relação ao Estado, uma vez que este detém
a violência necessária para destruí-los.
Do ponto de vista da legalidade estatal, é plenamente justificável que os Es-
tados não estejam facilmente inclinados a aceitar a afirmação de um nomos autônomo
dentro de seus domínios. Como afirma Cover, "cada grupo deve acomodar dentro de
seu próprio mundo normativo a realidade objetiva do outro" (COVER: 1983, 28-29),
o que costuma resultar em conflitos interpretativos ou mesmo sangrentos. As narra-
tivas amish e menonita são, não por acaso, marcadas pela resistência e pela necessidade
de rápida adaptação a mudanças, dada a dificuldade da tarefa de procurar um lugar
para poder viver conforme seus preceitos sem sofrer perseguições.

374
Nesse sentido, é possível imaginar alternativas institucionais que se destinem
a homogeneizar as formas de vida sobre um determinado território, inclusive com o
desenvolvimento de política ativas de integração de todas as pessoas a uma mesma
forma de pensar e de viver. O processo de formação dos estados nacionais e a codi-
ficação do direito com a unificação de suas fontes no Parlamento é representativo
desta alternativa, responsável peça destruição de uma série de formas de vida e suas
normas jurídicas (OPHÉLE & REMY, 2007). Também é possível imaginar alternati-
vas institucionais que tratem esta diversidade de formas de vida como casos particu-
lares de normas gerais, as quais sempre irão prevalecer em caso de conflito, deixando
clara a posição dominante de uma determinada forma de vida e marcando seu caráter
igualmente imperial (RODRIGUEZ, 2010).
Finalmente, é possível imaginar modelos de regulação, por assim dizer, mul-
tinormativos, os quais admitam e estimulem a presença de diversos nomoi e suas res-
petivas ordens jurídicas em um mesmo espaço social, com a previsão de regras para
solucionar conflitos, ponto ao qual Cover dedicou pouca atenção, diga-se. Nesse caso,
para usar uma expressão de Fernand Braudel em sentido modificado, a sociedade se
torna em uma espécie de “conjuntos dos conjuntos” (BRAUDEL, 2009).
Mas, diga-se também, não passa despercebido a Robert Cover o fato de que
o nomos estatal apresenta notáveis diferenças quando comparado a qualquer um dos
nomoi formados por grupos ou comunidades menores. Pensando nisso, o autor esta-
belece uma distinção entre dois modelos típicos de constituição de nomos. O primeiro
modelo, denominado paideico, é responsável por "criar mundos"; surge quando grupos
ou comunidades criam seu próprio espaço normativo a partir de um corpo comum
de preceitos geralmente provenientes de textos sagrados. Nesse modelo, a possibili-
dade de novas interpretações encontra-se permanentemente aberta, e o direito assume
um caráter pedagógico: os indivíduos são educados na lei (COVER: 1983, 12-13).
Já o modelo denominado imperial caracteriza-se, por sua vez, pela objetivi-
dade de seus preceitos, normas jurídicas abstratas e universais, e pelo fato de que sua
aplicação fica a cargo de instituições devidamente constituídas para esse fim. Em sua
maior parte, é como o direito moderno funciona; é uma forma de "manter o mundo"
diante de suas tendências plurais e potencialmente destrutivas, tornando possível a difí-
cil tarefa de acomodá-las dentro de um mesmo espaço normativo (COVER: 1983, 13).
Parece razoável dizer, indo além de Cover, que o modelo imperial corres-
ponde a uma ordem normativa paidética estabilizada ou olhada de forma estática, no
processo de reprodução de suas fronteiras. Nesse sentido, seria mais preciso afirmar
que todas as ordens normativas são paidéticas e, portanto, criam mundos e formas de
vida, mas que algumas estão em processo de mera reprodução de suas fronteiras pela
destruição de novos direitos insurgentes, como veremos adiante, e outras estão em
processo de conquista de seu espaço autônomo de regulação, ou seja, estão em estado

375
de insurreição. Enfim, podemos reorganizar os conceitos de Cover para afirmar, tal-
vez com mais precisão e simplicidade, que há ordens normativas estabelecidas e or-
dens normativas insurgentes.
Se a forma de organização social adotada pelos estados-nação modernos se
aproxima bastante com o modelo imperial, ou seja, ao modelo de ordens normativas
estabelecidas, as narrativas que preenchem os seus preceitos com diferentes significa-
dos remetem, por outro lado, ao modelo paideico (COVER: 1983, 16), o que significa
que no interior de uma ordem normativa estabelecida há conflitos constantes que
podem dar lugar a ordens normativas insurgentes. Desse estado de coisas deriva, se-
gundo Cover, a conclusão de que "há uma dicotomia radical entre a organização social do
direito como poder e a organização do direito como significado." (COVER: 1983, 18)
Tendo em vista nossa distinção, construída a partir de Cover, é mais plausível
conceber que um tribunal, ao proferir uma sentença que afete a constituição de um
nomos, não está afirmando um direito hermeneuticamente superior, mas apenas o po-
der que emana de sua autoridade acerca do sentido do direito no interior de seu ter-
ritório. Mas isso significa que o Estado, essa ordem normativa estabelecida, deveria
reconhecer integralmente um nomos com regras tão divergentes das suas ou seja, com
potencial insurgente?
Não há resposta óbvia para esta questão na obra de Cover assim como, pro-
vavelmente, em qualquer outra abordagem do problema. Percebe-se, aliás, certa am-
biguidade no pensamento do autor nesse ponto. Do fato de que o Estado deveria
reconhecer outras ordens normativas – uma vez que não possui o monopólio do di-
reito – não deriva a conclusão de ele sempre deva buscar aceitar as regras elaboradas
pelos diversos grupos e comunidades. A jurisgênese pode ser incontrolável, mas isso
não implica que os tribunais devam se abster de controlar as possibilidades de signi-
ficados jurídicos, de formas de vida, no interior de seu espaço normativo.
Para tanto, as cortes recorrem a um elemento que, segundo o autor, é indis-
sociável da interpretação legal: a violência. "A intepretação legal", começa Cover em
seu artigo chamado Violence and the Word, "tem lugar em um campo de dor e morte."
(COVER: 1986, 1601). Em outras palavras, a interpretação legal sempre justifica uma
violência que já ocorreu ou que está por acontecer. Entenda-se violência aqui tanto
em sentido físico – conter fisicamente os condenados e levá-los para a prisão, ordenar
execuções, entre outras formas de sanção – como em sentido epistêmico – o ato de
afirmar determinado significado jurídico em detrimento de outros, o que significa eli-
minar interpretações que não sejam aceitas, posto que toda interpretação jurídica está
encarnada em determinadas maneiras de ser e de viver.
Ao mesmo tempo em que estimula a criação e a proliferação de novos uni-
versos normativos (COVER: 1983, 68), Cover faz uma espécie de apologia ao traba-
lho "violento", mas aparentemente necessário, dos tribunais:

376
[...] o princípio jurisgenerativo pelo qual o significado jurídico se prolifera em
todas as comunidades nunca existe apartado da violência. A interpretação sem-
pre tem lugar à sombra da coerção. E a partir desse fato podemos reconhecer
um papel especial para as cortes. As cortes, ao menos as estatais, são caracteris-
ticamente "jurispáticas". (...) É a multiplicidade de leis, a fecundidade do princí-
pio jurisgenerativo, que cria o problema para o qual o tribunal e o Estado são a
solução. (COVER: 1983, 40)

Essas duas tendências conflitantes sugerem que, sempre que possível, a vio-
lência deve ser contida, deixando que novos universos normativos floresçam; no en-
tanto, não se deve esquecer que às vezes ela é necessária. O direito deve ser violento,
isso é inevitável para que uma certa ordem jurídica se estabeleça. Mas deve ser o me-
nos violento possível: o trabalho das cortes jurispáticas é fundamental para colocar uma
ordem mínima dentro de universos normativos que, de outra forma, se desintegrariam
completamente.
Não há espaço aqui para desenvolver de forma mais elaborada a tensão entre
violência e interpretação legal na obra de Cover. De fato, este parece ser um ponto
mal resolvido de seu pensamento; um ponto que poderia receber uma resposta mais
adequada por meio de uma reflexão normativa que apresente critérios para que se
possa escolher entre uma forma de vida social homogênea ou uma forma marcada
pela multinormatividade, ou seja, uma reflexão que deixe mais claro o sentido do
termo “violência”. Este ponto, diga-se, permitiria aproximar, inclusive, a obra de Ro-
bert Cover da Teoria Crítica.6
Para que isso seja de fato possível, para evitar as eventuais confusões que o
uso do termo “violência” possa causar, será preciso diferenciar as ordens normativas
não apenas em função de seu caráter estabelecido ou insurgente, mas também quanto
a seu caráter autárquico ou de democrático. Ou seja, será preciso diferenciar (a) or-
dens normativas autárquicas que criam e impõe unilateralmente e arbitrariamente as
normas a seus destinatários e, portanto, tendem à homogeneidade interna, buscando
suprimir qualquer tipo de conflito normativo de seu interior de (b) ordens normativas
democráticas as quais adotam um processo democrático de formação de suas normas
e, portanto, favorecem a multinormatividade interna, buscando compatibilizar e so-
lucionar conflitos entre as diversas narrativas jurisgenéticas presentes dentro de suas
fronteiras.
Cabe notar, entretanto, que Cover está atento às implicações, para o direito
estatal, de se aceitar ou não a presença de novos significados jurídicos. Os preceitos
que denominamos direito são marcados "pelo controle social sobre sua origem, seu
modo de articulação e seus efeitos" (COVER: 1983, 17), e os tribunais não podem

6
Para uma tentativa nesse sentido ver BENHABIB, 2006. Uma aproximação mais detalhada poderia cami-
nhar no sentido de uma reflexão sobre o lugar do pensamento de Cover em uma teoria da institucionalização
democrática como transformação institucional permanente, no sentido de RODRIGUEZ, 2013.

377
escapar da responsabilidade de assumir esse controle. A despeito de não ter apresen-
tado critérios claros para realizar a tarefa de eliminar ordens normativas insurgentes,
Cover vê muito claramente tal necessidade, pois parece preferir, como já visto, ordens
normativas multinormativas a ordens normativas homogêneas.
No entanto, quando pensamos no mundo contemporâneo, marcado pelo
enfraquecimento do poder dos estados nacionais e a criação de ordens normativas
autônomas de alcance global, o problema muda de figura e o potencial autoritário de
ordens normativas autárquicas se vê amplificado. Afinal, é razoável supor que o en-
fraquecimento do poder estatal abra espaço para o avanço de ordens normativas com
pretensões imperialistas e totalitárias, tanto no interior dos estados, quanto em âmbito
global. Na falta de um poder capaz de conter a jurisgênese autárquica, no limite, o
direito pode se confundir de fato com a mera força e passemos a viver em um cenário
de verdadeiras guerras normativas.
A criação de ordens normativas plurais, descentradas do estado, é marca do
mundo contemporâneo, um processo que é facilitado pelo avanço da internet, pelo
desenvolvimento dos meios de transporte e pela ação política dos agentes interessa-
dos neste estado de coisas, por exemplo, os agentes do mercado financeiro que são
pródigos em financiar candidaturas e apoiar, por meio de empréstimos, aquelas lide-
ranças políticas que esvaziem, cada vez mais, o poder do estado nacional e que favo-
reçam a privatização e fragmentação do direito.
Nesse sentido, é importante perceber que as análises de Jürgen Habermas
sobre a ligação entre direito e democracia, salvo o conceito de agir comunicativo,
conquista da qual a Teoria Crítica não pode abrir mão - pois ele acabou com a ilusão
metafísica de uma emancipação protagonizada por um agente social unitário, sujeito-
objeto idêntico, na formulação de Lukács - referem-se ao século passado e, por isso
mesmo, são incapazes de dar conta do atual estado de coisas. Não é plausível que o
direito estatal e as estruturas do direito internacional, igualmente dependentes da força
dos estados nacionais, sejam capazes de se impor diante dos fenômenos que já men-
cionamos, ainda que se admita, como faz Seyla Benhabib em seu esclarecedor Another
Cosmopolitanism, que estejamos assistindo a uma disputa entre forças pro-fragmentação
e forças cosmopolitas (BENHABIB, 2006).
Habermas desenvolveu em Direito e Democracia, é verdade, uma crítica extre-
mamente útil das patologias do direito paternalista e burocrático dos Estados de Bem-
Estar Social, advogando corretamente por sua democratização, mas não tem sido ca-
paz de superar imaginação institucional do século passado para tratar das questões
que nos afligem atualmente e mesmo as questões que o afligiam no livro, como mos-
tra William Scheuermann em uma resenha precisa do trabalho (SCHEUERMANN,
2014).

378
Um caminho mais promissor, que Habermas abandonou nos primeiros ca-
pítulos de seu datado livro é estabelecer um diálogo produtivo com autores que pen-
sam o direito atual de forma plural, ou seja, caracterizada por vários centros de pro-
dução normativa, para imaginar como seria possível construir uma democracia mul-
tinormativa, ou seja, que admita explicitamente a existência de vários centros de pro-
dução normativa, sem abdicar do objetivo de garantir que todos os seres racionais
afetados pelas normas jurídicas participem ou sejam levados em conta ativamente em
sua formação. Reside aqui a importância de debater a obra do precursor deste modo
de pensar o direito, Robert Cover (COVER, 1983), além de autores contemporâneos
como Paul Schiff Berman (BERMANN, 2012), como tive a oportunidade de começar
a fazer em outro lugar (FLORES, RODRIGUEZ, 2017).
Como nos explica Klaus Gunther (GUNTHER, 2016), em muitos campos
sociais interligados globalmente por tecnologias de comunicação, por exemplo, a In-
ternet, o esporte e a ciência, podemos identificar processos de padronização norma-
tiva autônomos e não estatais que incluem, muitas vezes, a criação de instituições e
procedimentos de monitoramento com poder de coerção. Podemos dizer o mesmo
de diversas comunidades religiosas, étnicas ou culturais que adotam normas e insti-
tuições próprias como expressão de sua autonomia. Este último caso deixa claro que
qualquer ordem legal, mesmo que sejam uma ordem nacional, convive com uma série
de outras ordens normativas.
Segue Gunther para explicar que atores, organizações privadas ou públicas
podem criar livremente padrões de comportamento aos quais se vinculam, acompa-
nhados de meios de monitorar e impor seu cumprimento, por exemplo, os códigos
de condutam de empresas multinacionais e certificados que garantem a observância
de certos padrões e procedimentos de qualidade na realização de um determinado
serviço. Nesse sentido, todo e qualquer espaço social pode ser considerado um espaço
multinormativo no qual convivem, colaboram ou entram em conflito normas de na-
tureza diversa.
Tal afirmação, é claro, traz para o centro de investigação o problema de ser
capaz de produzir critérios para distinguir as ordens jurídicas de outros tipos de or-
dens normativas, por exemplo, moral, ética, religiosa ou social. Ora, as melhores teo-
rias do pluralismo jurídico costumam responder a este problema da seguinte maneira:
será considerada jurídica a ordem normativa que os seus participantes afirmarem que
é jurídica e estiverem dispostos a defender na prática em face de qualquer conflito
com outras ordens normativas (TAMANAHA, 2008, COVER, 1983).
Mas a questão mais relevante quanto a este ponto, segue Gunther, é investi-
gar quais são as razões pelas quais determinados agentes afirmam que estamos diante
de normas jurídicas e não diante de qualquer outro tipo de norma, ou seja, que inte-
resses, que objetivos estes agentes estão perseguindo as pretender que tais normas

379
sejam reconhecidas como jurídicas. Pois é evidente que estes agentes podem preten-
der deixar de cumprir determinadas normas em favor de outras com finalidades di-
versas, inclusive a de praticar atos de violência. Assim, seria razoável afirmar que é
jurídica uma norma reivindicada enquanto tal por um agente ou coletividade que pre-
tende deixar de pagar impostos devidos ou praticar violência contra mulheres? Ao
remeter o critério do jurídico exclusivamente aos agentes interessados, é muito difícil
deixar de oferecer uma resposta positiva a esta indagação.
Diante do que foi dito, a melhor forma de investigar estes fenômenos parece
ser a tentativa de encontrar maneiras de gerir estes ambientes multinormativos sem
partir do pressuposto de que os Estados são capazes de produzir normas para todas
as finalidades e sem abrir espaço para um processo de fragmentação da sociedade que
facilitaria a manifestação de diversas assimetrias de poder e a prática de violências de
natureza variada, tudo sob a denominação de “direito”. Para que isso seja possível, é
necessário desenvolver uma reflexão a respeito dos casos em que a multinormativi-
dade é desejável ou é indesejável, ou seja, em que casos estamos diante de uma ordem
normativa que esteja servindo para solucionar de maneira adequada um determinado
problema social ou, ao contrário, esteja servindo a um poder autárquico ou violento.
Ou seja, será necessário construir uma série de princípios que garantam o respeito e
a tolerância entre as diversas ordens normativas que sirvam de critério para gerir pos-
síveis conflitos.
Esta linha de análise não aposta em uma volta ao século XX, mas pretende
atualizar a ideia de democracia para o mundo atual, ou seja, para a configuração das
instituições formais contemporâneas. Trata-se de recusar o desenho institucional da
democracia constitucional como uma espécie de ideal a ser atingido em favor de uma
investigação detalhada do funcionamento das instituições atuais e da estruturação das
diversas ordens normativas presentes na sociedade.

Considerações finais.

Cabe observar que as figuras da perversão que identificamos podem ser in-
terpretadas como estratégia de ordens normativas autárquicas para evitar o conflito
aberto com o Estado ou com outras ordens normativas, evitando assim ser objeto de
seu aparato repressivo. Tais estratégias furtivas podem estar sendo empregadas com
o objetivo de criar ordens normativas marcadas tanto pela hierarquia, contra a tradi-
ção igualitária do estado de direito, quanto por narrativas irracionais, contra a tradição
racional representada pela Ciência, pelo Jornalismo e pela História.
Em “Territory, Authority, Rights: From Medieval to Global Assemblages”,
Saskia Sassen organiza a literatura sobre a relação entre estados e globalização até a
primeira metade dos anos 2000 e defende que o poder do Estado tem sido relativizado

380
pela institucionalização de empresas transnacionais, a desregulação de transações eco-
nômicas entre fronteiras e a proliferação de regimes legais privados como a reinven-
ção da lex mercatória e da lex digitalis (SASSEN: 2006, 230). Sassen mostra que este
processo se deu a partir da ação dos Estados, ou seja, com a colaboração dos mesmos,
os quais promoveram a convergência de normas sobre concorrência e propriedade
intelectual com a participação de entidades internacionais dedicadas a estes temas; a
criação de entidades privadas com poder normativo, como câmaras de arbitragem e
agências de rating.
Nesse sentido, grande parte deste processo só pode ser compreendido com
a descrição da disputa política interna a cada país, no interior dos quais determinadas
forças políticas fizeram avançar estas agendas, inclusive a liberalização do mercado
financeiro, a começar pelos Estados Unidos, processo que se repetiu ao redor do
mundo. Os protagonistas destas mudanças foram agentes sociais interessados em re-
tirar poder do Estado e ampliar o poder de determinadas ordens normativas, como
empresas transnacionais e grupos religiosos.
No campo econômico, o resultado é que os Estados hoje têm pouco poder
sobre os fluxos financeiros e sobre as transações econômicas ao redor do mundo,
perdendo, inclusive, a capacidade de cobrar impostos, fato que diminui sua capaci-
dade de criar e implementar políticas públicas (SASSEN: 2006, 222-271). Na avaliação
de Wolfgang Streeck, os Estados hoje dependem do mercado financeiro para se fi-
nanciar e por isso são pressionados a trabalhar com políticas de déficit zero, fato que
limita a sua capacidade de atender a demanda crescente por direitos de seus eleitores.
De acordo com o autor, os Estados hoje trabalham para dois senhores, os eleitores e
o capital financeiro, tendo perdido a capacidade de financiar as suas atividades sem
recorrer a empréstimos nacionais e internacionais (STREECK, 2014).
O enfraquecimento do poder dos Estados nacionais em razão da globaliza-
ção e da financeirização implica, como vimos, o enfraquecimento do controle da con-
corrência, da capacidade de cobrar impostos e da capacidade de garantir direitos por
meio de políticas públicas, processos que tendem a enfraquecer a ideia de igualdade
de direitos tour court. Afinal, afirmação de uma promessa de igualdade puramente abs-
trata, sem a possiblidade de efetivação por meio de direitos protegidos pelo Estado,
tende a perder paulatinamente a adesão das pessoas pelo simples fato de se apresentar
como uma alternativa impossível de ser implementada.
Por isso mesmo, insistimos, parece razoável dizer que o desenvolvimento do
capitalismo financeiro em um contexto de globalização tem exercido um papel im-
portante no avanço de ordens normativas com pretensões autárquicas representativas
de posições políticas anti-iluministas que combatem a ideia de igualdade de direitos e
defendem regimes sociais marcados pela hierarquia de sexos, de raças, de civilizações.
Afinal, sob a égide do estado de direito, tanto a expansão do poder privado econô-

381
mico quanto a expansão do poder privado religioso permaneciam sob relativo con-
trole em razão da existência de mecanismos fiscais com poder distributivo e mecanis-
mos de combate à concorrência a par de mecanismos que protegem a liberdade e a
pluralidade das religiões. É o enfraquecimento destes mecanismos que tira a capaci-
dade dos Estados de estabelecer limites para ordens normativas insurgentes com per-
fil autárquico.
A estratégias de certos grupos religiosos parece ser a mesma: retirar poder
do Estado e ampliar seu próprio poder sobre, no caso do criacionismo, a formação
dos estudantes. Nesse sentido, parece razoável levantar a hipótese de que a disputa
eleitoral e a política nacional em geral sejam protagonizadas por diversos grupos in-
teressados em enfraquecer o Estado em favor da regulação por ordens normativas
insurgentes. Grupos que não estão interessados em debater as políticas públicas tendo
em vista algo que se poderia chamar de “interesse geral”, “bem comum”, “comuni-
dade política” ou “projeto de país”. Ao contrário, sua estratégia é fortalecer fontes
normativas que pretendem se livrar dos entraves normativos dos Estados nacionais,
esvaziando, inclusive, o poder da esfera pública de formar as normas que regulam a
vida social.

382
V. FECHO: Diante da Lei
Uma mulher negra da cidade vê o guarda parado diante da lei e logo percebe
que não vai conseguir entrar. Essa é a função do guarda. Ele foi treinado para isso.
Não adianta tentar conversar. Apenas alguém muito ingênuo ou muito desinformado
seria capaz de imaginar que uma negra poderia tentar dialogar impunemente com o
exército ou com a polícia. Talvez um homem ou mulher do campo, e alguém que viva
de fato completamente isolada, ainda poderia pensar que a violência estatal é capaz
de diálogo. Na cidade ou no campo de hoje ninguém é assim, tão estúpido, tão estú-
pida.
A mulher negra da cidade sabe que é preciso lutar pela lei. Como fizeram os
sindicatos desde o começo do século XX, época em que eram considerados ilegais.
Estavam fora da lei, como ela se sente hoje. E é exatamente por isso que o guarda
permanece ali, diante da porta aberta, com ordens expressas para não deixar ninguém
entrar, custe o que custar. Pois há muitos negros e negras fora da lei e todos eles e
elas têm plena consciência de sua condição. Eles e elas sabem como é lá dentro. Sa-
bem dos benefícios de que gozam todos aqueles e aquelas que já estão dentro da lei:
acesso a recursos públicos e a meios simbólicos de reconhecimento.
Armado até os dentes, com o dobro do tamanho do maior dos maiores dos
guerreiros chineses gigantes de argila, o guarda grunhe, retesa os músculos e olha para
todos os lados. De vez quando examina suas armas para checar se estão realmente
carregadas. Pela quantidade de munição, alguém poderia dizer que ele está preparado
para uma verdadeira guerra. A mulher negra da cidade tem medo do silêncio do
guarda, um silêncio que prenuncia a sua vontade de bater e matar, sem contato visual,
sem afeto, sem palavras. Não há espaço para papear, negociar com ele ou tentar su-
borná-lo. Não há nenhuma empatia.
Não adianta culpar o lobo por ser lobo: essa era uma dificuldade mais do que
esperada. Mas ainda assim as pernas da mulher negra tremem assim que ela grita o
mais alto possível para que o guarda se afaste e a deixe passar. O guarda permanece
impassível, alheio ao que se passa em sua volta. A mulher avança passo a passo, apro-
ximando-se do corpo do guarda. Outras mulheres e homens surgem por detrás dela,
alguns armados de paus e pedras, algumas portando facas e espadas, outros armados
de revólveres e fuzis, outras completamente desarmadas. O soldado aponta seu rifle
para o corpo da mulher negra da cidade enquanto todos os outros e outras permane-
cem estáticos.
Em breve poderia haver golpes e tiros para todos os lados e sangue espa-
lhado por toda a cena caso eles e elas ultrapassassem a linha de segurança e tentassem
entrar à força dentro da lei. Em breve poderia não haver tempo para recarregar as
armas diante da quantidade de homens e mulheres que tentariam derrubar o guarda.
E haveria reforços. Um homem receberia, talvez, um tiro no rosto e jazeria estirado
por ali mesmo. Mulheres negras da cidade feridas, atingidas à queima-roupa, gritariam:

385
“Canalha! Canalha!”, por detrás de um leque de sangue, envoltas em um coro de vozes
em fúria.
Outra mulher e outro e outra e outro e outra e outro e outra e outro e outra
ficariam tontas com as coronhadas aplicadas pelo guarda, agora cercado de todos os
homens e mulheres que ainda restariam de pé. Talvez fosse preciso feri-lo ou matá-
lo ou torcer para a que ordem de resistir fosse revogada pelas autoridades competen-
tes. Talvez fosse preciso produzir mais pilhas e pilhas de mortos e feridos mais sangue
embebendo o cimento sujo de restos de couro, borracha, chiclete e cigarros, como de
hábito em todas as lutas pela lei que se desenrolaram pela história recente do Ocidente.
Mas talvez nada disso ocorra de fato. Talvez nada disso seja mais possível.
Basta que se imagine que a lei não mais exista. Também o estado e a sociedade civil,
apenas regras privatizadas nascidas de contratos. Regras que reduzem tudo a interes-
ses privados e reclamam validade sobre todo o Globo, bem longe da mulher negra da
cidade que agora procura uma porta por onde ela pudesse querer entrar. Uma porta
suspensa no ar, talvez, uma porta enterrada na terra, bem fundo, imune à luta social,
pairando na esfera rarefeita do mundo transnacional, que fica em todos os lugares e
em lugar nenhum. A mulher negra anda em círculos sobre uma superfície curva e sem
fissuras, sem um resquício sequer de cor, em busca de um guarda e de uma porta
impossíveis neste mundo branco sólido e compacto que começa a dobrar-se sobre si
mesmo.
Hoje sabemos quão estúpido é postar-se diante da lei. Depois da história de
um século, sabemos que criticar a lei é lutar por ela. Crítica é insurreição. Por isso
mesmo, as portas e os guardas continuam desaparecendo e com eles a memória das
portas e a memória de entrar e sair. Hoje se trata de convencer a todos e a todas que
tudo o que existe e poderia existir significa permanecer onde e como já está. Destruir
a memória social de entrar e de sair, pois as regras estão fugindo do direito. As normas
contratuais estão sendo novamente imunizadas para se verem totalmente livres da
força da lei.
Para voltar a lutar pela lei será preciso lembrar como um dia a luta social a
inventou. Será preciso lembrar de sua gênese na luta da igualdade burguesa contra um
pântano de privilégios de direito natural, gozados por religiosos venais e nobres de
sangue azul e pútrido. Será preciso reinventar a lei; lembrar do desejo de dar a lei a
nós mesmo, de instituí-la autonomamente, contra a privacidade dos contratos. Será
preciso lembrar como a classe operária civilizou o direito conferindo a ele a ambigui-
dade que motiva e acirra o processo de fuga da lei.
Será preciso lutar, de novo, contra a liberdade das partes e de mercado e pelo
controle coletivo de nossos destinos. Pois a lei ainda é o inimigo que eles e elas mais
temem. Lei que transforma tudo em que toca em espaços de escolha humana coletiva.
Lei que torna mutável e plástico todo conteúdo supostamente inscrito na face de so-
lenes e vetustas “tábuas da lei”. Lei que é o último refúgio possível para a autonomia

386
em um mundo marcado pela tecnocracia e pelo biopoder que deseja transformar tudo
em natureza animal imutável. A lei não é eterna e pode desaparecer da face da Terra.
A verdade da lei é a luta social.
Em um mundo branco, compacto e sem fissuras, multidões andam em cír-
culos sobre espaços vazios que se dobram sobre si mesmos. Procuram alguma coisa,
insatisfeitos, insatisfeitas, indignados, assustados, mas não encontram sequer uma
sombra. E ninguém fala com eles ou com elas, nada e ninguém lhes diz respeito, não
há inimigos a enfrentar. O solo é grosso sobre seus pés, não faz calor nem faz frio,
milhões de pontos brancos, negros, vermelhos e amarelos vagam sobre uma superfí-
cie branca e contínua que será necessário quebrar. Abrir buracos, fendas, fissuras,
crateras para atingir o que está dentro. Mas por enquanto, todos e todas apenas cami-
nham. Perplexos, perplexas, ocupando espaços vazios, incomodando o trânsito, ofe-
recendo espetáculos coloridos para a internet e para a televisão. Ainda sem gume.
Ainda.

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