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COGNIÇÃO: CONCEITO,
OBJETO E ESPÉCIES
Após a análise dos aspectos ligados à teoria geral do D ireito Processual,
passa-se ao estudo das três espécies adm itidas de m ódulo processual, com e
çando-se pelo m ódulo processual de conhecim ento, ou cognitivo. Esse tipo de
m ódulo processual é assim denom inado por ter, com o atividade preponderan
te, a cognição, objeto de atenção nesse m o m en to .1
Cognição é a técnica utilizada pelo juiz para, através da consideração, aná
lise e valoração das alegações e provas produzidas pelas partes, form ar juízos
de valor acerca das questões suscitadas no processo, a fim de decidi-las.2 Trata-
-se de atividade com um a todas as categorias de m ódulo processual, em bora se
revele predom inante no m ódulo cognitivo.
Explique-se esse conceito: a finalidade essencial do m ódulo processual
de conhecim ento é a obtenção de um a declaração, consistente em conferir-se
certeza jurídica à existência ou inexistência do direito afirm ado pelo dem andan
1 É de se notar que a denominação “processo de conhecimento” (ou, como prefiro dizer aqui,
mais genericamente, módulo processual de conhecimento) é típica da linguagem dos proces-
sualistas brasileiros e italianos. Não é, porém, a mais freqüente entre os juristas portugueses,
que preferem designar essa espécie de processo pelo fim básico a que se destina, qual seja, a
declaração da existência ou inexistência do direito afirmado pelo demandante, razão pela qual
se fala, naquele país, em processo declarativo. Assim, por todos, Fernando Luso Soares, Direito
processual civil, p. 211.
2 Watanabe, Da cognição no processo civil, p. 41; Freitas Câmara, "O objeto da cognição no processo
civil”, p. 207.
308 Lições de Direito Processual Civil • Câmara
te em sua petição inicial. Para prolatar o provim ento capaz de perm itir que se
alcance essa finalidade, é preciso que o juiz exam ine e valore as alegações e as
provas produzidas no processo, a fim de em itir seus juízos de valor acerca das
m esm as. A essa técnica de análise e valoração é que se dá o nom e de cognição.
A cognição é elem ento essencial para a adequação do processo às ne
cessidades do direito m aterial, com o facilm ente se com preenderá quando da
análise das diversas espécies em que a m esm a pode ser dividida.
D iscute-se em d o u trin a qual é o objeto da cognição. N ote-se, antes de mais
nada, que o conceito de objeto da cognição não coincide com o de objeto do
processo, já estudado, sendo certo que este é m ais restrito, e encontra-se con
tido naquele.3 O que se busca aqui é saber sobre o que incide a atividade cog
nitiva do juiz, havendo profunda dissensão en tre os au to res que trataram do
tem a em definir os com ponentes desse objeto.
H á q u e se referir, em prim eiro lugar, aos au to res que defendem a ideia
de que o objeto da cognição é um binômio, 4 form ado pelos p ressu p o sto s p ro
cessuais e pelas "condições da ação”.5 De o u tro lado, encontram os os defen
sores da ideia segundo a qual o objeto da cognição judicial é form ado p o r um
trinômio de questões: "condições da ação”, p ressu p o sto s processuais e m érito.6
N ão se pode, ainda, deixar de referir a teo ria segundo a qual o objeto da
cognição seria um quadrinômio: p ressu p o sto processual, su p o sto s processuais,
"condições da ação” e m érito da causa.7
A questão que ora m e ocupa já m e preocupou antes, a p o n to de te r elabo
rado, a seu respeito, ensaio já aqui referido.8 Reitero, agora, a ideia ali enuncia
da, de que o objeto da cognição é, sim, form ado por um trinômio de questões, mas
não o trinôm io tradicionalm ente enunciado. Em vez de falar em pressupostos
3 Sobre a distinção entre objeto da cognição e objeto do processo, consulte-se Freitas Câmara,
“O objeto da cognição no processo civil”, p. 222, esp. nota de rodapé n° 30; Dinamarco, “O con
ceito de mérito em processo civil", Fundamentos do processo civil moderno, p. 204.
4 Entre estes destaca-se, sem sombra de dúvida, a figura maior de Chiovenda, Instituições de
direito processual civil, vol. I, p. 69.
5 Nunca é demais recordar que Chiovenda defendia uma concepção concreta da ação, o que
o levava a considerar que as “condições da ação” eram os requisitos para obtenção de um jul
gamento favorável, aí incluindo, portanto, a existência do direito substancial afirmado pelo de
mandante.
6 Essa é, sem dúvida, a doutrina dominante. Assim, entre outros, Buzaid, Do agravo de petição
no sistema do Código de Processo Civil, p. 90; Dinamarco, O conceito de mérito em processo civil, p. 205;
Watanabe, Da cognição no processo civil, p. 51; Machado Guimarães, Estudos de direito processual civil,
p. 99; Luís Eulálio de Bueno Vidigal, “Pressupostos processuais e condições da ação”, Revista de
direito processual civil, vol. VI, 1967, p. 5-11; Greco Filho, Direito processual civil brasileiro, vol. II,
p. 177.
7 Neves, Estrutura fundamental do processo civil, p. 199.
8 Freitas Câmara, "O objeto da cognição no processo civil”, passim.
Cognição: Conceito, Objeto e Espécies 309
13 Antônio Scarance Fernandes, Prejudicialidade, p. 53; Freitas Câmara, "O objeto da cognição no
processo civil”, p. 218.
14 Será visto mais adiante que há uma possibilidade de o juiz conhecer principaliter das ques
tões prejudiciais, hipótese em que a postulação referente a estas será julgada e, por conseguinte,
alcançada pela autoridade de coisa julgada. É o que se dá quando existe "ação declaratória inci-
dental" (arts. 5o, 325 e 470 do CPC).
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15 Note-se que, como julgar o mérito é julgar o pedido do autor, caberá ao juiz, quando da pro
lação da sentença de mérito, julgar procedente ou improcedente o pedido (e não a ação, como se
vê todos os dias na linguagem forense, e até mesmo na obra de diversos processualistas). Não se
deve falar em “ação procedente” ou em “ação improcedente”, uma vez que não é do julgamento
da existência ou inexistência do poder de ação que se trata aqui. O que está sob julgamento,
quando da apreciação do objeto do processo, é o pedido formulado pelo demandante. Admitir-se
como corretas as expressões aqui criticadas implicaria fazer-se uma concessão inadmissível às
teorias concretas sobre a ação.
16 Chiovenda, Instituições de direito processual civil, vol. I, p. 174-236.
17 Chiovenda, Instituições de direito processual civil, vol. I, p. 175.
18 Chiovenda, Instituições de direito processual civil, vol. I, p. 175.
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Ter-se-ia cognição sum ária nos três casos, sendo a cognição não definitiva
(na hipótese sub a), parcial (na hipótese sub b) ou superficial (na hipótese sub
c ).19 N as três espécies de cognição sum ária, ter-se-ia com o objetivo a antecipa
ção da execução, razão pela qual deu Chiovenda a essas m edidas provenientes
de cognição incom pleta o nom e de "declarações com predom inante função
executiva”.20 Adm itia, ainda, Chiovenda, haver cognição sum ária, em razão da
urgência, para concessão de m edidas provisórias, acauteladoras ou não.21
Essa classificação da cognição, em bora extrem am ente lógica, e tendo
sido defendida pelo m ais influente en tre todos os processualistas, não recebeu
acolhida da m elhor doutrina. É realm ente preferível adotar-se o u tra form a de
classificação, proposta no Brasil pelas vozes m ais autorizadas que trataram do
tem a.22 A ssim é que a cognição deve ser exam inada em dois planos, o horizontal
(da extensão ou am plitude) e o vertical (da profundidade).
N o plano horizontal, em que se verifica a am plitude da cognição judicial,
o que se busca é saber qual a extensão com que são analisados os elem entos
com ponentes do objeto da cognição. Fala-se, assim , em cognição plena (quando
todos os com ponentes do trinôm io são apreciados) e limitada (quando ocorre
algum a restrição na am plitude da cognição). A prim eira espécie é a m ais fre
qüente no m ódulo processual de conhecim ento, já q u e o princípio da econom ia
processual im põe se busque a existência de um processo capaz de assegurar o
m áxim o de vantagem com o m ínim o de dispêndio. A ssim sendo, na m aioria
dos processos cognitivos o objeto da cognição é inteiram ente analisado pelo
juízo, com o q u e se garante que a sentença resolverá a questão subm etida ao
crivo do judiciário da form a m ais com pleta possível.
Exem plo da segunda espécie, em que a cognição é lim itada no plano
horizontal, restringindo-se assim a análise do objeto da cognição, é o que se
tem nas "ações possessórias”, em que - com o notório - não se pode exam inar
a existência do dom ínio (vedação da "exceção de dom ínio”). A ssim , p o r exem
plo, se for proposta um a "ação possessória” em que figure com o réu o p ro
prietário do bem , este não poderá alegar em defesa o dom ínio. A cognição é,
portanto, lim itada, restringindo-se à análise da posse. Fica aberta, obviam ente,
a via da "ação p etitó ria” para que aquele que se considere proprietário possa
fazer valer esse direito em juízo.
N o plano vertical, em que se busca saber a profundidade da análise dos
elem entos a serem apreciados pelo juiz, têm -se três espécies de cognição: exau-
riente, sumária e superficial.
A prim eira espécie é aquela em q u e a decisão judicial será proferida
com base em juízo de certeza. Cabe, aqui, um a explicação. É que to d o juízo
de certeza é, em verdade, um juízo de verossim ilhança.23 Tal se dá p orque o
juiz atua, em relação aos fatos da causa, com o o h isto riad o r em relação aos
fatos históricos, buscando reconstruí-los. A ssim é q u e o juiz, em sua ativida
de cognitiva, afirm a que dado fato é verdadeiro q u ando alcança aquele grau
de convencim ento que lhe é outorgado p o r u m a m áxim a verossim ilhança. A
certeza a que se refere aqui, p o rtan to , não é u m a certeza psicológica, m as um a
certeza jurídica.24
A cognição exauriente, portanto, perm ite a prolação de um a decisão ba
seada em juízo de certeza (jurídica), o que justifica a form ação da coisa julgada,
m anto que reveste de im utabilidade e indiscutibilidade o conteúdo dessa de
cisão. Em outros term os, a cognição exauriente perm ite a resolução definitiva
da questão trazida ao crivo do judiciário, im pedindo, assim , o surgim ento de
processo posterior que ten h a o m esm o objeto.
As principais características da cognição exauriente são a existência de
um contraditório antecedente ao provim ento jurisdicional (eis que o juiz só
poderá form ar o juízo de certeza após ouvir as razões de am bas as partes), o
qual deverá se realizar nos term o s predeterm inados por lei, e n a possibilidade
de o provim ento assim proferido ser alcançado pela im utabilidade e indiscuti
bilidade da coisa julgada substancial.25
A cognição exauriente, com o facilm ente se verifica, é freqüente nos m ó
dulos processuais de conhecim ento, um a vez que a finalidade essencial destes
é, precisam ente, a obtenção de certeza jurídica q u an to à existência ou inexis
tência do direito substancial afirm ado pelo dem andante.
A segunda m odalidade de cognição no plano vertical é a cognição sumária.
E sta se caracteriza p o r levar o juiz a em itir um provim ento baseado em juízo de
probabilidade. Cabe, aqui, o u tra rápida digressão. Os conceitos de possibilidade,
23 Piero Calamandrei, “Verità e verosimiglianza nel processo civile”, Opere giuridiche, vol. V,
p. 616.
24 Piero Calamandrei, “Verità e verosimiglianza nel processo civile", p. 617.
25 Essas as características apontadas para o que chama cognizione piena, e que corresponde ao
que aqui venho chamando cognição exauriente, Proto Pisani, Lezioni di diritto processuale civile,
p. 601.
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30 Vários autores, porém, fazem essa equiparação entre probabilidade e verossimilhança, que
me parece errônea. Por todos, Baptista da Silva, Curso de processo civil, vol. I, p. 113.
31 Marinoni, Tutela cautelar e tutela antecipatória, p. 24-25.
32 Já afirmei isso anteriorm ente, em Freitas Câmara, Lineamentos do novo processo civil, p. 68.
No mesmo sentido, Marinoni, Tutela cautelar e tutela antecipatória, p. 24, esp. nota de rodapé n°
30. Em sentido contrário, afirmando haver diferença de profundidade entre a cognição para
a tutela antecipada e para a tutela cautelar, entendendo ser a exigência para a tutela cautelar
mais tênue, Dinamarco, A reforma do Código de Processo Civil, p. 145.
33 Calamandrei, “Verità e verosimiglianza nel processo civile”, p. 621-622.
34 Calamandrei, “Verità e verosimiglianza nel processo civile”, p. 622-623.
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juízo de probabilidade, típico da cognição sum ária, pois este se realiza após a
produção de algum as provas.
A cognição superficial é típica das decisões lim inares em processo cau
telar (m as não em todas as lim inares, visto que algum as são deferidas com
base em cognição sum ária, com o no caso do m andado de segurança) .35 Pode-
-se, pois, afirm ar que a decisão lim inar será deferida com base n u m a cognição
que, no plano vertical, encontra-se um "degrau” acim a daquela exigida para o
provim ento final do processo onde a m esm a é prolatada. Assim , por exemplo,
no processo de conhecim ento de rito ordinário, o provim ento final - a sen ten
ça - é proferido com base em cognição exauriente. C onseqüência disso é que
a lim inar antecipatória dos efeitos da sentença deverá ser deferida com base
em cognição sum ária (um "degrau” acim a). Já no processo cautelar, em que o
provim ento final é de cognição sum ária, a lim inar deverá ser proferida à luz de
um juízo de m era verossim ilhança, ou seja, cognição superficial.
Afirme-se, por fim, que as diversas m odalidades de cognição podem ser
com binadas n u m m esm o processo, sendo possível adm itir-se a existência de
processos com cognição plena e exauriente, plena e sum ária, lim itada e exau
riente, e todas as outras com binações que se revelem possíveis en tre a am pli
tu d e (plano horizontal) e a profundidade (plano vertical) da cognição.36