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Passo Fundo
2018
Diocélia Moura da Silva
Passo Fundo
2018
Diocélia Moura da Silva
BANCA EXAMINADORA
____________________________
Prof.ª Dr.ª Carina Tonieto – UPF
_____________________________________
Prof. Dr. Altair Alberto Fávero – UPF
_______________________________________
Prof.ª Dr.ª Cínthia Roso Oliveira – UPF
A quem incentivou, educou e disse: “não desista do
curso, conte comigo” ...
AGRADECIMENTOS
O programa de filosofia para crianças e jovens iniciado pelo educador e filósofo Matthew Lipman é uma proposta
de educação que intenta levar a filosofia para a escola e para a sala de aula de crianças e jovens, a fim de
desenvolver a atitude do filosofar e consequentemente provocar um melhor pensamento. Contudo, conhecer
especificamente o que é o programa e qual é o seu objetivo não é suficiente para definir o seu significado e
possibilidade na educação básica. É necessário a compreensão do que tal proposta implica e em que elementos ela
se ancora. Por essa necessidade, esta pesquisa, marcadamente bibliográfica, investiga os elementos teóricos que
justificam o projeto lipmaniano de ensino de filosofia para crianças e jovens como uma proposta de educação para
o pensar, com a finalidade de explicar o significado educacional que a proposta fundamenta e o porquê de sua
possibilidade pedagógica. O problema responsável pelo início, meio e fim dessa produção, expressa-se na seguinte
pergunta: Quais são os elementos teóricos que justificam o programa de ensino de filosofia para crianças e jovens
de Matthew Lipman como uma proposta de educação para o pensar? Para construir uma resposta adequada ao
problema e satisfazer o objetivo geral que apresenta-se, foi dividido a presente pesquisa em três capítulos, onde de
modo geral, tentou-se em um primeiro momento compreender os princípios introdutórios da constituição do
paradigma da educação para o pensar. Em um segundo momento a pesquisa aprofundou-se na teoria do pensar de
ordem superior ou pensamento multidimensional e as possibilidades pedagógicas e metodológicas de ensino para
desenvolver esse pensamento. Por fim, estudou-se a concepção de filosofia e de ensino de filosofia de Lipman,
criador do programa, estabelecendo uma relação entre as características do paradigma da educação para o pensar
e a filosofia na composição do programa lipmaniano de filosofia para crianças e jovens. Após todo esse processo,
conclui-se que o programa de filosofia para crianças e jovens de Matthew Lipman está ancorado teoricamente e
metodologicamente numa proposta de educação para o pensar. Essa relação define o significado e a possibilidade
pedagógica do programa lipmaniano de filosofia para crianças e jovens.
Palavras-chave: Filosofia para crianças e jovens. Educação para o pensar. Matthew Lipman. Ensino de filosofia.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................... 9
2 A DEFESA DE UMA EDUCAÇÃO REFLEXIVA E O PARADIGMA DA
EDUCAÇÃO PARA O PENSAR DE MATTHEW LIPMAN ................................ 15
2.1 O paradigma padrão da prática normal e o paradigma reflexivo da prática crítica
................................................................................................................................... 15
2.2 Por que é necessário uma educação que objetive o fortalecimento do pensar? ..... 21
2.4 Repensar o currículo escolar em direção a educação para o pensar: a busca por
significados e uma educação racional....................................................................... 27
1 INTRODUÇÃO
1
Termo criado pelo intelectual, sociólogo e filósofo da Pós-modernidade Zygmunt Bauman. Esse termo representa
a ideia de fluídez que opõe-se a ideia de algo sólido ou permanente. Bauman (2001, p.8) atribuiu a fluidez “como
a principal metáfora para o estágio presente da era moderna”, porque percebe que nos tempos modernos a
consciência de que nada é durável, tudo é fluído, a efemeridade dos acontecimentos, a conturbação e as mudanças
assustadoramente constantes são características desse período. Mais detalhes sobre esse assunto ver Bauman
(2001).
10
de tal proposta a partir de um simples conhecer o que ela propõe em si ou em partes não seria
suficiente, pois corre-se o risco de mal entendidos. Abre-se, nesse sentido, um leque de
situações pelas quais faz-se necessário perguntar: Afinal, em que se ampara teoricamente e
metodologicamente a proposta de filosofia para crianças e jovens? Por que tal proposta seria
uma educação para o pensar? O que é entendido por pensar nesta perspectiva? Por que a escolha
da filosofia? A filosofia teria alguma coisa a contribuir com a educação de crianças, se sim, há
realmente um exemplo de relação da filosofia e a educação?
A partir da análise dessa contextualização geral, vê-se necessário ainda perguntar pelo
significado e possibilidade educacional do programa de filosofia para crianças e jovens de
Matthew Lipman como uma proposta de educação para o pensar. E um primeiro passo rumo a
descoberta ou redescoberta desse significado e possibilidade é pensar na seguinte pergunta:
Quais são os elementos teóricos que justificam o programa de ensino de filosofia para crianças
e jovens de Matthew Lipman como uma proposta de educação para o pensar?
Esse problema evidenciado é o que nos propomos enfrentar nos limites da presente
pesquisa tendo como objetivo geral a proposta de investigar os elementos teóricos que
justificam o projeto lipmaniano de ensino de filosofia para crianças e jovens como uma proposta
de educação para o pensar, a fim de explicar o significado educacional que a proposta
fundamenta e o porquê de sua possibilidade pedagógica. Perseguindo esse objetivo maior,
tomamos os seguintes objetivos específicos: (I) Reconstruir os parâmetros introdutórios do
modelo educacional reflexivo da Educação Para o Pensar, apontado nas obras de Lipman, para
compreender o que é e qual pertinência para o programa de filosofia para crianças e jovens;
(II) sistematizar as bases teóricas que figuram a teoria do pensamento de ordem superior, a qual
sustenta o paradigma da educação para o pensar e apontar como esse pensamento pode ser
provocado na educação básica; (III) projetar como a filosofia torna-se uma educação para o
pensar e identificar as possibilidades pedagógicas do Programa de Filosofia Para Crianças e
Jovens para o desenvolvimento do pensamento.
A nossa pesquisa quanto aos seus procedimentos técnicos é classificada como
bibliográfica. Entendemos a pesquisa bibliográfica como metodologia de pesquisa em que se
“utiliza exclusivamente publicações (principalmente livros e periódicos)” como recursos para
a análises e sistematizações (FÁVERO; GABOARDI; CENCI, 2014, p. 54). Considerando esse
tipo de classificação, detemo-nos em reunir e analisar fontes bibliográficas primárias e
secundárias referentes a artigos científicos, periódicos, teses, dissertações, resumos publicados
em anais e livros já publicadas sobre o assunto os quais demonstraram relevância e
cientificidade confiável para contribuir com a investigação proposta. Com esse levantamento
12
de dados bibliográficos, nosso intuito foi chegar a uma compreensão sólida sobre o que os
pesquisadores, filósofos e educadores já apresentaram sobre o assunto. Quanto aos objetivos,
classificamos esta produção como exploratória-explicativa onde nos propomos a compreender
o pensamento teórico relacionado ao programa de filosofia para crianças e jovens de Matthew
Lipman e a partir dessa compreensão explicar o significado educacional e a possibilidade
pedagógica de tal proposta. Nesse sentido, fizemos uma fusão de duas classificações quanto aos
objetivos da pesquisa, a primeira caracterizada como exploratória, é entendida como pesquisa
que tem como objetivo “familiarizar-se com determinado assunto”, ou seja, construir uma
compreensão sobre o assunto e, a segunda, caracterizada como explicativa, cujo objetivo não é
“apenas descobrir relações entre variáveis; é preciso mostrar quais são as causas do fenômeno
ocorrido” (FÁVERO; GABOARDI; CENCI, 2014, p. 53). Traduzindo essas duas classificações
da pesquisa quanto aos seus objetivos para o contexto da nossa presente produção, buscamos
não apenas construir uma compreensão sobre o assunto, mas poder explicar a relação dessa
compreensão com o tema envolvido. A exposição e explicação dos termos e conceitos obtidos
com a investigação serão tratados por um abordagem qualitativa, dessa forma, o critério a ser
utilizado não recorre a quantidades numéricas e sim a qualidade teórica dos dados bibliográficos
encontrados nos escritos analisados e interpretados.
Entendemos que para identificar e explicar a significação e possibilidade de um projeto
como o de Matthew Lipman, é necessário partir da teoria a qual nos possibilita a compreensão
da proposta de educação fundante que esse projeto traz. E, é por isso que a nossa abordagem
marcadamente teórica se justifica, por ser uma nova contribuição para a área de ensino de
filosofia com a clarificação teórica da importância, de um lado, da filosofia para a educação e
de outro lado, do oportuno esclarecimento dos pilares, teóricos e metodológicos, que sustentam
o programa de filosofia de Matthew Lipman. Contudo, adotamos a postura epistemológica
falibilista quanto a análise dos dados bibliográficos e a abordagem dos resultados que chegamos
com esta pesquisa. Por postura falibilista se entende que é “a posição epistemológica que afirma
que o conhecimento humano sempre é suscetível de erro, isto é, a justificação epistêmica de
proposições contingentes não se encontra garantida pela verdade” (PAVIANI, 2009, p.135),
assim, entendemos de antemão que uma posição ou conclusão mesmo bem justificada é
contingente, pode ser plausível de falhas, uma vez que, estas falhas podem fazer parte de todas
as pesquisas.
Levando em consideração os objetivos, ponderações e procedimentos desta pesquisa,
dividiremos tal produção em três capítulos:
13
sentido, sim, uma educação com bases teóricas e metodológicas fracas ou ineptas contribuem
em alto grau com a conservação e produção da irracionalidade da sociedade. Por outro lado,
uma educação que incentiva a reflexão e o pensar pode ter chances de mudar esse quadro.
Lipman (1990; 2008a), de certo modo, defende essa posição e aposta na educação como
possível contribuinte com a sociedade democrática como também o inverso, uma sociedade
democrática contribui com a educação. Seguindo essa constatação, surge a pertinência de
pensar no contexto do processo educativo e a sociedade que se precisa representar e estruturar.
Se considerar a influência da educação para a sociedade, a influência da sociedade para a
educação e que o ponto de partida de toda a sociedade é pautado pelo sistema educacional,
então segue-se a concordância com a necessidade de uma virada de concepções e métodos
educacionais. Ou seja, uma mudança de paradigma em que se trabalha e pensa na educação
como uma condição para uma educação e sociedade mais reflexiva.
Em suas pesquisas e inquietações filosóficas e educacionais acerca do sistema
educacional, Lipman (2008a, p. 28), defende esse símile raciocínio de repensar o paradigma da
educação. Preocupado com as deficiências do processo educativo, ele identifica a existência de
“dois paradigmas fortemente contrastantes da prática educativa: o paradigma-padrão da prática
normal e o paradigma reflexivo da prática crítica”. No paradigma-padrão da prática normal,
predominam as concepções de educação como “transmissão de conhecimentos daqueles que
sabem para aqueles que não sabem”, que entendem que o conhecimento “se refere ao mundo,
e o nosso conhecimento acerca do mundo é inequívoco, explicável e não ambíguo”. Esses
conhecimentos são divididos por disciplinas “que não são coincidentes e que juntas completam
o universo a ser conhecido”. Ou seja, os conhecimentos estão dominados e fechados em cada
disciplina, prontos para serem transmitidos tal qual produtos enlatados prontos para serem
consumidos. O professor é considerado como a figura de autoridade que detém e repassa esses
conhecimentos ao aluno por “intermédio da absolvição de informações” sobre assuntos
específicos (LIPMAN, 2008a, p. 28-29). Por essa concepção, é considerado que os alunos
pensam se conseguem reproduzir as informações fornecidas a eles. E, portanto, a concepção de
educação equivale ao abarrotamento de conteúdos legitimados pela historicidade e cultura, por
serem passados de geração em geração como princípios acabados e inquestionáveis os quais
objetivam estruturar o pensamento do sujeito.
Em contrapartida, o paradigma reflexivo da prática crítica é descrito por Lipman (2008a,
p. 29) como paradigma educacional que entende que a educação deve ser “resultado da
participação em uma comunidade de investigação orientada pelo professor, entre cujas metas
encontra-se o desenvolvimento da compreensão e do julgamento adequado”. Notavelmente,
18
2
Embora existam algumas aproximações do modelo de educação de Matthew Lipman com o de Paulo Freire, as
ideias de Lipman não sofreram influências das ideias de Freire, ambos tiveram apenas algumas leituras em comum
(KOHAN, 2018, p. 3-4).
19
[...] “pensadores autônomos” são aqueles que pensam por si mesmos, que não repetem
simplesmente o que outras pessoas dizem ou pensam mas que fazem seus próprios
julgamentos a partir das provas que formam a sua própria visão de mundo e
desenvolvem suas próprias concepções acerca do tipo de indivíduo que querem ser e
o tipo de mundo que gostariam que fosse (LIPMAN, 2008a, p. 36).
É nessa visão que, a educação pode ser considerada como contribuinte com o
desenvolvimento do raciocínio e do julgamentos dos sujeitos, que poderão, por sua vez, pensar
melhor sobre as circunstâncias do mundo, sobre a estruturação de sua sociedade e sobre a
construção de si próprio.
Diante desses dois paradigmas, é possível inferir que o paradigma padrão da prática
normal é o predominante no sistema educacional, como diria Thomas Kuhn em seu livro A
Estrutura das Revoluções Científicas (1998), é um paradigma normal vigente que é aceito pela
comunidade/sociedade. Porém, o seu objetivo é instruir e passar informações, ou seja, é um
modelo “instrutivo/informativo” (TONIETO, 2010, p. 75). Um modelo como esse não garante
a boa qualidade da educação e não serve como referência para desenvolver o pensar reflexivo,
porque seus parâmetros têm uma outra direção que já não é mais aceitável tê-la como princípio
e que precisa estar em segundo plano, pois, o processo educacional entendendo essa direção
como princípio se mostra como deficitário. Logo, essa situação remete a defesa de um
paradigma que tem por objetivo uma educação para fortalecer o pensar e que fornece uma
mudança de concepções e métodos que se articulam com um novo propósito educacional e uma
das possibilidades de ruptura do ciclo problemático educação-sociedade. Lipman (2008a;
20
2008b) defende o paradigma reflexivo da prática crítica que promete estruturar o processo de
ensino como pesquisa, investigação com o objetivo de desenvolver o pensar autônomo.
A respeito dos parâmetros da educação reflexiva, Lipman (1990, p. 163) comenta que
representa uma grande mudança de paradigma que redireciona o alvo da educação: “o aprender
deu lugar ao pensar”. As ideias que dão origem a essa ideia de educação estão ligadas ao
filósofo John Dewey,
quem descreveu o curso natural do pensamento na vida diária como uma concatenação
de esforços na solução de problemas, quem viu a ciência como purificação e perfeição
daqueles esforços e quem viu a educação como um fortalecimento da produção de
significado no processo falível de pensamento inerente a todos os seres humanos
(LIPMAN, 1990, p. 163).
A partir desse pensamento e dessa nova meta da educação, outros princípios começam
a se modificar em um efeito dominó. O paradigma muda as concepções teóricas e
metodológicas. E em consequência também muda o objeto de estudo da epistemologia. Para
Lipman (1990, p. 164) “o problema da epistemologia não é mais o de como o receptáculo
estático e vazio de uma mente torna-se preenchido com representações da realidade estática,
mas, sim, o de como um processo de pensamento fluente e flexível consegue envolver e
interpretar seu ambiente”. Portanto, a educação reflexiva traz novos modos de compreensão
sobre a maneira como se constrói conhecimento, o papel dos estudantes nesse processo e como
acontece essa construção do conhecimento e a estimulação do pensamento no percurso da
investigação dos problemáticos aspectos estabelecidos no mundo. Com essa reformulação, é
possível afirmar que o papel da Educação para o Pensar ganha espaço como objeto de estudo
nas áreas de pesquisa em educação e ensino de filosofia3 em prol de aperfeiçoamento e
averiguação de suas possibilidades. Todavia, sobre essa mudança de paradigma surgem
objeções. Questões são levantadas, como por exemplo: A educação tradicional não daria conta
de fazer seus alunos pensar? Em que contribui uma educação para o pensar? A educação como
investigação desconsidera os conhecimentos e valores elaborados e conservados
historicamente? A aprendizagem deixa de ser o foco?
De forma resumida, poderíamos dizer que o caminho das respostas à essas perguntas
está imbricado na concepção de o que uma boa educação deve dar conta. Tentaremos nas
próximas seções deste capítulo, delinear alguns aspectos da teoria lipmaniana que diretamente
ou indiretamente implicam nessas questões.
3
Veremos no próximos capítulos que a filosofia terá um grande papel no paradigma de educação para o pensar.
21
2.2 Por que é necessário uma educação que objetive o fortalecimento do pensar?
Em uma sociedade complexa como a que se configura agora, no século XXI, em que o
ser humano tem que se reinventar sempre dentro da roda social para não ficar para trás, em que
a velocidade com que os problemas se modificam é quase que inexplicável, é necessário mais
que a retenção de meras informações de assuntos específicos.
Na escola, é dado aos alunos um conjunto de problemas e um conjunto de soluções que
não passam de informações descontextualizadas. Porém, não se é vivido sempre os mesmos
problemas. Para Tonieto (2010, p. 81), as sociedades complexas e plurais como a nossa “têm
como uma de suas características o surgimento de problemas científicos, morais e sociais nunca
dantes enfrentados”. Se a sociedade enfrenta problemas novos a cada minuto, então, a
quantidade de soluções para problemas específicos que são dados em um modelo educacional
instrutivo-informativo não são úteis em um sistema social plural de problemáticas correntes.
Em relação a essa questão, Lipman (2008b, p. 18) conclui que a “[...] prioridade da transmissão
não é mais aceitável, todos temos consciência da rapidez com que a menor parcela de
conhecimento pode tornar-se obsoleta”. Talvez não vivemos em uma sociedade da rapidez de
conhecimentos e sim em uma sociedade de fluxo de informações e soluções de problemas que
são descartados muito rapidamente. Logo, necessita-se mais do que educar para instruir e
informar, é obrigação enquanto coerência da escola como instituição educadora e democrática
proporcionar aos educandos uma educação que promova o aperfeiçoamento de suas
capacidades e habilidades, que proporcione condições para o desenvolvimento da autonomia e
um pensar mais cuidadoso e autônomo, pois “as instituições democráticas, já de estabilidade
precária em muitas partes do mundo, irão cambalear e desmoronar se a educação não preparar
as crianças para serem cidadãos autônomos, reflexivos e críticos” (LIPMAN, 1990, p. 56). Em
suma, Lipman (1990) defende uma ideia também defendida por Dewey (1979, p. 15), de uma
educação que considere importante que os alunos adquiram a “capacidade de julgar e agir
inteligentemente em situações novas”.
Lipman (2008a, p. 11) menciona que “sempre existiu uma linha educacional de
pensamento que sustenta que o fortalecimento do pensar na criança deveria ser a principal
atividade das escolas e não apenas uma consequência casual”. São muitos os motivos pelos
quais pesquisadores da educação defendem essa posição. Lipman (2008a, p.11) cita, por
exemplo, que há argumentos que defendem o fortalecimento do pensar porque “a escolarização
de futuros cidadãos em uma democracia acarreta a necessidade de estes fazerem uso da razão”.
Ou seja, é condição da sociedade democrática e é condição para a estruturação de uma
22
sociedade democrática. Há também argumentos que afirmam que é necessário defender essa
linha educacional porque “os sistemas sociais do mundo [...] estão se cristalizando na
racionalidade” e apenas as crianças que foram estimuladas à racionalidade na escola foram
preparadas adequadamente para enfrentar as complexidades dos sistemas sociais. Ainda outros
“advogam que ajudar a criança a pensar bem, assim como a pensar por si mesma, é necessário
não só por razões de utilidade social, mas porque a própria criança tem o direito de receber isto”
(LIPMAN, 2008a, p. 11). Sobre essas três posições destacadas é possível considerá-las
igualmente. Pois, decerto, considerando os problemas de ordem social e ético-moral na
sociedade que se transformam em situações e contextos novos a cada instante, se é necessário
que essa seja democrática e reflexiva, nada mais coerente se ter uma educação que disponha de
condições para ensinar a pensar democraticamente, que questione e pesquise buscando sempre
analisar soluções e estabelecer critérios para reconfigurar, talvez, a democracia. E se já temos
uma sociedade democrática, nada mais adequado do que uma educação para o pensar que
condiz com a democracia.
Conforme Lipman (2008a, p. 21), uma sociedade democrática carece de cidadãos
razoáveis e a razoabilidade implica na racionalidade “temperada pelo julgamento”. Theobaldo
(2000, p. 415), define que o conceito de racionalidade lipmaniano está envolvido com o
pensamento razoável e bem fundado. Ser racional, no contexto que Lipman fala, é ser um
pensador razoável, ponderado e criterioso em seus julgamentos, que se posiciona diante do
mundo e sabe justificar a sua posição sempre recorrendo a critérios que possuem
fundamentação. A racionalidade é a capacidade do bom raciocínio e do pensamento
multimodal. Uma educação que almeja desenvolver a racionalidade dos estudantes oferece um
modelo de vida racional que irá acompanhar os estudantes nas suas jornadas, em novas
situações, seja dentro ou fora da escola. Assim, certamente os sistemas do mundo, complexos
como são e rápidos para processar e descartar informações, exigem de cada indivíduo esse tipo
de racionalidade. O mundo exige que se aprenda a pensar e não só reproduzir. Uma das falhas
da educação escolar, talvez a falha mais severa, é negligenciar a educação como
desenvolvimento das habilidades do pensamento. Com efeito, essa incoerência educacional
também denuncia que as próprias instituições de ensino são irracionais. Lipman (1990, p. 35),
constatou isso, e para ele, “a irracionalidade das instituições deve ser evitada”, pois a tendência
é bem acentuada de que pessoas educadas em instituições irracionais se comportem de modo
irracional, e pessoas que se comportam desse modo irão conservar a irracionalidade de sua
sociedade. Por isso, segue-se que a escola não só deve ter a responsabilidade de dispor de meios
23
para desenvolver a racionalidade dos indivíduos como também deve em todos os seus aspectos
fundamentar-se racionalmente.
Porém, a educação para o pensar não se justifica apenas como meio para as demandas
sociais, justifica-se por ser um direito dos estudantes e por ser uma tentativa de melhoria na
educação. Interpretando Lipman (2008a), uma educação reflexiva que objetiva estimular o
pensar pode ser um meio para atingir um fim futuro, talvez, uma redefinição da sociedade, mas
também é um fim em si mesmo. A educação para o pensar se sustenta principalmente por ser
um fim em si mesmo, não porque deveria ser redentora da sociedade, mas por ser um modo de
vida, por promover condições de educação necessárias para a autoconstrução. Isso significa,
que os educandos não só precisam ser educados para serem profissionais autônomos e
participativos na sociedade ou para terem uma possibilidade de estabelecer uma sociedade
democrática. Eles merecem serem educados desse modo como uma necessidade de
autoconstrução, de verem a educação como significativa e não opressiva e para o próprio sentir-
se existente no mundo como ser autônomo que se relaciona em comunidade, que pensa no
contexto e faz bons julgamentos sem ser submisso aos julgamentos de outros.
A virada teórica-metodológica e epistemológica que Lipman defende, como vimos
antes4, implica em uma educação como e para a investigação. Para Lorieri (2004, p. 67), “o
investigar é inerente à vida animal e muito mais à vida dos ‘animais humanos’, os ditos
racionais”, os animais humanos desde pequenos sempre estão inclinados a buscar algo, eles
tentam explicar a sua origem, vivem a investigar os porquês da vida, pensam em suas escolhas.
Ou seja, os seres humanos são por natureza seres que investigam. Mas, pode se ter um impasse:
é concebível que todos nós, pensamos, investigamos e que somos racionais, entretanto, nem
toda a investigação, nem todo o pensamento é racionalmente bem feito: “precisamos do pensar,
do investigar, mas nem sempre o fazemos bem. Qual a solução? Aprender a pensar”. E aprender
a pensar nada mais é que desenvolver as capacidades do pensamento. Afirmar que se faz
necessária uma educação que objetive fazer os educandos pensar, não quer dizer que a educação
tradicional vigente de alguma maneira já não faça. Para Lipman (2008a, p. 154, grifo do autor),
“é claro que a educação tradicional compreendia o pensar, porém a qualidade deste pensar era
deficiente. O que era necessário não era simplesmente ensinar a pensar, mas ensinar a pensar
criticamente”, assim se justifica uma educação para o pensar.
4
Na seção 2.1 deste trabalho.
24
5
Catherine Young Silva norte-americana naturalizada brasileira fundadora do Centro Brasileiro de Filosofia para
Crianças (CBFC), quem trouxe as ideias de Matthew Lipman para o Brasil.
25
Mas o contratempo que ocorre, segundo Lipman e seus colaboradores (2001), é que os
métodos que são empregados na educação que tenta compensar a sua ineficiência são
semelhantes aos que fazem parte do próprio processo educativo, então a educação
compensatória já faz parte das concepções e métodos educacionais que são ineficazes, logo
poderíamos supor que tal medida não é uma solução, é apenas uma mera tentativa de remendar
um sistema que já não consegue se sustentar.
Para Lipman e seus colaboradores (2001, p. 20), “sem a compreensão clara dos fatores
que determinam a baixa qualidade existente no sistema educacional vigente, a educação
compensatória como normalmente é feita, tende a se preocupar com pouco mais do que aliviar
sintomas”, todavia, o que provoca esses sintomas ainda existe. Nada adiantará trazer ou tirar
inovações tecnológicas, estimular professores, propor a participação dos pais e outras medidas
que se possa tomar em relação a compensação da crise educacional, se todas essas medidas são
pensadas ainda dentro do paradigma educacional falho. Lipman e seus colaboradores (2001, p.
21-22) afirmam que, procuramos sistematicamente remediar a ineficácia da educação ao invés
de reformá-la. Essa atitude é o que mais agrava a problemática da educação: ao invés de se
reformar todas as suas bases atacando o seu problema, a sua lesão interna, tenta-se remendá-la
recorrendo a medidas que mais ou menos atacam os sintomas dos problemas da educação, no
entanto, a sua baixa qualidade continua impermeável.
Lipman e seus colaboradores (2001) compreendem que há muita preocupação em
criticar as ineficiências educativas, em afirmar que existe uma crise, mas pouco se faz para
propor soluções para corrigir. Em certas circunstâncias, é atribuído às condições culturais e
socioeconômicas como causadoras da má educação. Tonieto (2010, p. 72) em consonância com
Lipman e seus colaboradores, relata que em relação a ineficácia do processo educativo forma-
se “um ‘triângulo de críticas e interesses’: em um dos vértices estão os que criticam o sistema
atribuindo a má qualidade da educação à falta de recursos; no outro, os que apostam que o
problema está na formação dos professores” que não foram adequadamente preparados para
enfrentar as demandas do ensino e no último vértice estão os que afirmam que o sucesso ou
insucesso da educação se deve aos problemas culturais e sociais presentes no mundo.
Na verdade, esses vértices de críticas mencionados anteriormente são apenas desculpas
e tentativas de justificar a existência da crise do sistema educativo e não fazer nada a respeito.
Lipman e seus colaboradores (2001, p. 21) defendem que a educação deve ser reformulada de
modo que as condições culturais e socioeconômicas sejam vistas “como uma oportunidade para
que o sistema prove a sua boa qualidade, e não como uma desculpa para o seu colapso”. Desse
modo, não adianta culpar as circunstâncias do mundo, porque não importa em que
26
a si mesmo como preso a sua posição e impotente em relação à mudança”. E se isso acontece,
por qual abertura começar uma reforma educacional?
2.4 Repensar o currículo escolar em direção a educação para o pensar: a busca por
significados e uma educação racional
Segundo Lipman (2008a; 2008b; 1990), a escola que segue o modelo de educação
tradicional, tem como objetivo de ensino transmitir o saber. Nesse processo, elimina-se os
aspectos enigmáticos, problemáticos, controversos dos conhecimentos, e as experiências
significativas. As crianças em uma escola que segue esse padrão, gradativamente perdem a
curiosidade e a prontidão para buscar e descobrir relações. Isso é decorrente dos métodos
artificiais que abalam o desejo de continuação de aprendizagem. O fato é, que quando as
crianças entram na escola, elas são curiosas, inventivas e investigativas, elas entendem o mundo
como um enigma. O sentido delas em investigar esses enigmas se dá porque reportam às
experiências e relações das crianças com o mundo. Os enigmas sobre os quais as crianças
demonstram ter interesse são, em verdade, problemáticos e contestáveis, e por esses aspectos
incita-se uma imensa curiosidade. Anterior a entrada na escola, as crianças são curiosas, estão
na fase de descobertas, da aquisição da linguagem e veem tudo no mundo como problemático.
Mas, quando elas entram na escola, pouco a pouco começam a considerar o mundo um não
mistério, a busca por conhecimento deixa de ser algo significativo. Nesse aspecto, Lipman
(2008a) denuncia o que o seu mestre Dewey (1979) também denunciava, que a educação
tradicional não consegue proporcionar experiências educativas6. Se a escola não alimenta a
curiosidade e as experiências significativas de seus educandos, em pouco tempo, eles vão
considerar “que a educação escolar é enervante e desanimadora ao invés de animadora e
intelectualmente estimulante” (LIPMAN, 2008a, p. 24). Essa consideração que os alunos fazem
é resultado da ausência de sentido que eles têm diante das experiências educativas que lhes são
proporcionadas pelo sistema educativo. É esse um primeiro problema que a educação
tradicional apresenta. Conforme Lipman e seus colaboradores (2001, p.32), as crianças, assim
como todos os sujeitos, anseiam por sentido e experiências significativas, “tudo o que nos ajude
a descobrir significado na vida é educativo e as escolas são educativas apenas na medida em
que facilitam essa descoberta”. Então, deve-se pensar em como a escola pode promover
verdadeiros incentivos que garantam experiências que estimulem a descoberta de significados.
6
Os termos experiências educativas e experiências deseducativas são utilizados por Dewey (1979), mais adiante
forneceremos mais explicações sobre esses importantes termos.
28
7
Larrosa também observou que “não deixa de ser curiosa a troca, a intercambialidade entre os termos informação’,
‘conhecimento’ e ‘aprendizagem’. Como se o conhecimento se desse sob a forma de informação, e como se
aprender não fosse outra coisa que não adquirir e processar informação” (Cf. 2002, p. 22).
29
momento da historicidade humana que são importantes e, não podem ser desconsiderados na
educação. Mas só são importantes quando se considera o processo de investigação e enigmas
que esses produtos finais carregam consigo, por isso, se for desprezado o processo, o enigma e
a investigação, e centrar a atenção no produto, é negligenciado uma outra grande parte do
processo de construção do conhecimento. Quando essa negligência acontece na educação,
resulta que nenhum interesse ou motivação é criado, porque aos alunos é apresentado, de modo
fragmentado e dissociável das experiências deles, apenas a história e as informações de
determinado conhecimento produzido. No entanto, isso para os estudantes não faz sentido, são
desconexos da realidade.
A educação escolar tradicional fere a busca de realidades dando aos alunos
conhecimentos que para eles são irrealidades, então, para estimular o interesse dos alunos, o
primeiro importante passo da educação reflexiva é estimular a construção de sentido e
significado. A respeito disso, Tonieto (2010, p. 72, grifo do autor) explica que ao considerar a
necessidade da reforma educacional, Lipman e seus colaboradores apontam para a
reestruturação do currículo escolar. E “repensar o currículo escolar traz como implicação direta
considerar a busca de sentido como um dos pilares de sustentação de um processo educacional
que seja capaz de promover no ambiente escolar a construção de significados”. Nesse contexto,
conforme a autora, justifica-se uma educação para o pensar.
Ao falar de paradigmas, a necessidade de uma reforma educacional em direção a
proposta de educação para o pensar e a reestruturação do currículo escolar, Lipman (1990, p.
40) explica que existe uma grande diferença entre um currículo racional e um currículo
irracional. Para ele, um currículo escolar que preserva a sua racionalidade “é organizado de tal
modo que cada passo prepara o caminho para os passos que o seguem e pressupõe, para o seu
domínio, os passos que o precedem”. E um currículo irracional, como é o currículo vigente, é
análogo a “uma escada em que faltam numerosos degraus, de modo que estudantes que
pretendam subi-la, na maioria das vezes, falham e desistem” (LIPMAN, 1990, p. 40). Um
currículo racional não admite a fragmentação e autossuficiência de cada disciplina, nem o
isolamento de seus conhecimentos. Se “os significados nascem da percepção das relações entre
partes e o todo, assim como das relações entre meios e fins” (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN,
2001, p. 26), então, o currículo precisa estar organizado de tal forma que os educandos possam
perceber essas relações de meio e fim, de parte e todo. Ou seja, o currículo deve ser planejado
de modo que uma disciplina faça ponte com a outra e considere a relação epistêmica, social e
identitária que faz parte da construção do sujeito. Para que isso aconteça, as disciplinas deverão
deixar de se estabelecerem como “áreas de conteúdo a ser apreendido” e passarem a ser tratadas
30
como “linguagens as quais os alunos aprenderão a pensar” (LIPMAN, 1990, p. 41). Outro
aspecto importante que Lipman (1990) ressalta sobre esta questão, é que deve-se impedir que
as disciplinas percam seus pressupostos éticos, lógicos, estéticos e epistemológicos e suas
ramificações porque estes são ‘contestáveis’ ou ‘controversos’. É exatamente os elementos
contestáveis, problemáticos e controversos que fazem com que as disciplinas sejam vistas como
linguagens cujos os conteúdos não são dados como finais e isolados e sim como enigmas e
relacionais.
Para Lipman e seus colaboradores (2001, p. 32, grifo do autor), “o pensar é uma
habilidade par excellence que nos habilita a captar os significados”, pois sobre tudo o que o ser
humano acessa e interage no mundo, o seu pensamento tenta organizar e construir um
significado. A construção do significado é realizada por relações, associações e disjunções de
complexos. Quando o pensamento faz uma relação, constrói os significados, ao fazer isso
descobre o sentido. Lipman (2008a, p. 96) defende que “a educação deveria fornecer
significados, e se ela não é capaz de fazê-lo, temos, então, um fracasso total”, pois, “obrigar
crianças a memorizar meros conteúdos é privá-las das oportunidades de discernir relações e
formar julgamentos; é fazer com que a experiência escolar seja sem sentido”, por isso investir
no desenvolvimento do pensamento está implicado em ajudar a desenvolver e fornecer
possibilidades para os sujeitos fazerem relações. Quando tudo é desconexo como é o processo
educacional para os sujeitos, é impossível descobrir o sentido e o que não tem sentido é
irrelevante e impensável.
Com isso, um grande erro cometido pela educação tradicional é não desenvolver ou, ao
menos, não provocar o pensamento dos estudantes. A partir disso, Lipman (1995; 2008a)
identifica um outro problema da educação tradicional, os sujeitos educados nela, na maioria,
apresentam deficiência de habilidades de pensamento. Lipman (1995) chegou a essa conclusão
após analisar testes8 de raciocínio com crianças do primeiro grau e com calouros universitários,
o resultado apontou que os calouros universitários apresentaram o nível de desenvolvimento
das habilidades cognitivas semelhantes a de alunos da 6º série, e o que é preocupante, é que não
eram os alunos da 6° série que estavam pensado melhor, é a baixa qualidade da educação que
ao longo do seu processo não dá conta de desenvolver satisfatoriamente as habilidades de
pensamento nos alunos.
Segundo Lipman (1990), isso se deve a concepção de que o pensamento é um processo
natural que não precisa ser aperfeiçoado. No entanto, “o ser humano ativo e consciente pensa
8
Ver também análises de outros testes de raciocínio estudados por Lipman (MORTIER, 2008, p. 60-74).
31
tão naturalmente quanto respira, mas fazê-lo pensar melhor exige estratégias de considerável
complexidade” (LIPMAN, 1990, p. 164). Pensar é processo natural, “mas também é uma
habilidade passível de ser aperfeiçoada. Existem maneiras de pensar mais eficientes e outras
menos eficientes” e os critérios pelos quais se fundamenta essa afirmação são os princípios da
lógica, que nos possibilitam distinguir o pensar habilidoso do pensar inábil (LIPMAN, SHARP,
OSCANYAN, 2001, p. 34). Uma educação reflexiva, que não é deseducativa, é estimulante
pela busca de sentido e da construção de significados, só pode ser promovida como educação
que objetiva desenvolver o pensamento. Quando os estudantes são provocados a pensar e fazer
relações, a qualidade e a intensificação dos significados que são forjados, é melhorado na
medida em que o processo do pensamento é aperfeiçoado e desenvolvido. E a forma mais
adequada e promissora de desenvolver e provocar o pensamento, no entender de Lipman e seus
colaboradores (2001), é pensar e introduzir na educação “novos conceitos que conduziram
novos modos de prática”9, isso é, pensar a educação teoricamente e metodologicamente como
investigação, proposta do paradigma reflexivo.
9
Tomemos de empréstimo a frase de Dewey sobre a necessidade de novos conceitos para novas práticas, ver
(DEWEY, 1979, p. XVI)
32
Se não sabemos para onde ir, qualquer caminho serve. Pode-se dizer que essa afirmação
é válida também na área da educação, pois se não sabemos que objetivos alcançar ou o que uma
educação deveria dar conta, qualquer caminho proposto serve. Para não haver inclinações para
essas circunstâncias, o ideal é definir, de modo inteligível, o objetivo que um sistema educativo
deveria ter. Lipman (2008a, p. 100), ao defender a emergência de um novo paradigma na
educação, a Educação Para o Pensar, estrutura uma teoria rica de concepções teóricas que
fundamentam a meta e prática desse modelo educacional. Para ele, a educação deveria dar conta
das seguintes instâncias: proporcionar estímulos para os indivíduos construírem e descobrirem
significados, desenvolverem a prática do bom julgamento, raciocinarem coerentemente,
pensarem por si com disposição para pensar de novas maneiras e de modo cuidadoso. Noutras
33
palavras, a educação deveria ter como escopo estimular e desenvolver o pensar de ordem
superior ou o pensamento multidimensional10.
A busca por esse pensamento é a base de sustentação do paradigma da educação para o
pensar. Mas, é importante salientar que Lipman (2008a, p. 37) não compreende esse objetivo
como uma finalidade em si mesma, isso é, o processo educativo deve proporcionar condições
para desenvolver o pensamento autônomo e melhores julgamentos afim de proporcionar aos
sujeitos experiências enriquecedoras de tal forma que o que é vivenciado em sala de aula sejam
experiências que terão continuidade na vida do estudante.
O pensamento de ordem superior é descrito por Lipman (2008a) como um conceito
normativo, a sua estrutura é reforçada por três pilares fundamentais: o pensamento crítico-
cuidadoso, o pensamento criativo e o pensamento complexo. A seguir tentaremos dar a
definição e explorar as inter-relações desses três estruturantes do bom pensamento.
Cada indivíduo é posto em um mundo complexo que propõe problemas novos de ordem
prática e teórica a cada instante, e solicita escolhas, discernimento e julgamentos. Crenças não
fundamentadas, doutrinação, pensamentos fracos e fora do contexto são reproduzidos
acriticamente e essa reprodução estrutura uma sociedade irracional, assim como indivíduos
irracionais. O cotidiano, a experiência do ser humano com o mundo e com os outros exige
julgamento e esse necessita da criticidade. Nesse sentido, surge o interesse pela definição e
consequências do pensamento crítico. Lipman (2008a, p. 170), explica que nas definições atuais
do pensar crítico se enfatiza mais o seu produto que se limita à afirmação de que esse resulta
em tomada de decisões e soluções. E se entende por pensar crítico, um “pensar reflexivo e
racional” que decide em que um sujeito pode acreditar, porém, “estas definições nos fornecem
um esclarecimento insuficiente” e genérico (LIPMAN, 2008a, p. 170).
Lipman (2008a, p. 213) concorda que “o papel do pensar crítico é defensivo: o de
proteger-nos contra sermos coagidos ou de que nos forcem a acreditar sem que tenhamos a
oportunidade de fazer nossos próprios questionamentos”, mas não apenas isso. O pensamento
crítico é preeminente a lógica, se estrutura e procura se movimentar pelas ideias reguladoras de
verdade e validade lógica. Por isso, não tolera o pensamento falacioso e conduz a tomada de
decisões. Todavia, o pensamento crítico não se reduz a um raciocínio logicamente perfeito,
10
Em seus vários escritos, Lipman também se refere ao pensamento de ordem superior como pensar excelente,
pensar bem, pensar complexo, pensar complexo de ordem superior, pensar multimodal ou pensar
multidimensional.
34
11
Para mais detalhes sobre o conceito de julgamento ver em Lipman (2008a, p. 33-35 e p. 170-172).
35
almeja resultar em julgamentos estruturados de modo cuidadoso. Julgamentos críticos não são
quaisquer julgamentos. Por recorrer a critérios, o processo e o produto (julgamento) do
pensamento crítico é fundamentado, explicável e sustentado por razões, porém não razões
comuns. Na verdade, “critérios são razões, são um tipo de razão, um tipo particularmente
confiável”, ou seja, uma razão como critério é razoável, confiável e convincente, “os critérios
formam subconjuntos de razões [...] de uma variedade particularmente eficaz” (LIPMAN,
2008a, p. 173 e 188, grifo do autor). Os critérios são bases para comparações pelas quais os
julgamentos podem adquirir um pilar sólido de sustentação, é parte metodológica do
pensamento crítico como um processo cognitivo lógico. Não é suficientemente razoável e
sustentável um julgamento em que não há boas razões para legitimar a sua configuração, por
isso, Lipman (2008a, p. 175) sustenta que o significado do pensar crítico é “responsabilidade
cognitiva”, que estabelece o cuidado lógico e ético no processo de formar julgamentos.
A escolha dos critérios é dado mediante outros critérios que são denominados por
Lipman (2008a) como metacritérios12 e megacritérios13. Segundo Lipman (2008a, p. 187 ), os
padrões são os graus em que os critérios escolhidos satisfazem a necessidade desses
metacritérios e megacritérios, por isso é possível encarar os critérios utilizados pelo pensamento
crítico como candidatos selecionados de acordo com alguns padrões seguidos com o intuito de
justificar e estruturar o julgamento. No caso do pensar crítico, os metacritérios que podem ser
utilizados é a pertinência, confiabilidade, força e valor, e como megacritério a ideia reguladora
de verdade.
O pensamento crítico tem como componente o raciocínio, aplica padrões e critérios no
julgamento, é regulado pela veracidade e para preservar-se das inverdades, também movimenta-
se rumo a tentativa de ser falseado. Porém, como mencionado anteriormente, esse modo de
pensar não debate-se apenas com a validade lógica e a verdade, e também não só seleciona bons
critérios para justificar um julgamento, como também é sensível ao contexto e autocorretivo.
De acordo com Elicor (2016, p. 49) no processo do pensamento crítico, utiliza-se critérios
lógicos, confiáveis e razoáveis, em certas circunstâncias, critérios universais e objetivos, porém,
a criticidade sempre considera a situação contextual em que será empregado os critérios para
fazer o julgamento crítico. Para Tonieto (2010, p. 79), “a utilização de critérios em situações de
julgamentos não se dá de forma mecânica e descontextualizada, mas levando em consideração
o contexto em que as situações-problema são analisadas”. Assim, o pensamento crítico só se
torna cuidadoso quando situado no contexto: considera com cuidado as circunstâncias
12
Critérios para escolher critérios.
13
São ideias reguladoras de alcance vasto (LIPMAN, 2008a, p. 176).
36
critérios afasta a “impressão de que este pensar é acrítico ou irracional”. Portanto, há uma
dimensão crítica que se funde neste pensar do mesmo modo que o pensar crítico tem um aspecto
criativo. No entanto, segundo Lipman (2008a), o modo como o pensar criativo emprega os
critérios é mais dialógico do que monológico. Um critério monológico parte basicamente de
apenas uma ideia reguladora ao passo que um critério dialógico trabalha com várias ideias
reguladoras. Mas isso não significa, segundo Lipman (2008a, p. 299), que não há critérios
monológicos no pensar criativo. Lipman (2008a, p. 298-299, grifo do autor) explica que no
pensar crítico um critério é um conceito solitário que pode ser realizado plena ou parcialmente,
assim como pode não ser realizado”; logo, não há o oposto do conceito e sim a sua ausência. Já
“no pensar criativo, os critérios tendem a ser compostos por pares dialeticamente relacionados
ou conjuntos onde cada conceito ajuda a criar a tensão mágica que mantém unidas as várias
partes do trabalho criado”. Isso significa que no pensamento criativo os critérios são
orquestrados em uma tensão de ideias: em um extremo existe um conceito e no outro extremo
está o seu oposto que gera uma tensão. Sobre isso, Kohan (1998, p. 111, grifo nosso), coloca
que o pensar criativo que Lipman define é expressivo e “dialético no sentido hegeliano, [...] é
pluralista: faz questão da variedade, da unicidade e da diferença; por último, ressalta os valores
do adequado e do íntegro muito mais do que do bom ou do correto”. Desse modo, o pensar
criativo se configura em um campo dialético de batalha entre conceitos e seus opostos. No caso
do artista, por exemplo, há “o critério orientador do contexto criativo e o critério emergente do
produto artístico, de tal maneira que o artista deve movimentar-se dialogicamente entre estes
ou deve criar algum tipo de solução conciliatória entre ambos” (LIPMAN, 2008a, p. 133).
Para Lipman (2008a, p. 118), os sujeitos envolvem-se em um pensamento criativo
quando “a noção de um objetivo fixo começa a ruir [...] e nos encontramos onde os objetivos
não são previsíveis” e então somos orientados pelo contexto situacional que surge do processo
do pensamento. Lipman (2008a, p. 179-180) identifica tanto o pensamento crítico quanto o
criativo como posturas intelectuais investigativas. O pensamento criativo, assim como o
pensamento crítico, objetiva conduzir o julgamento, mas a sua principal característica é ser
orientado pelo contexto da situação, ou seja, o pensamento criativo é uma postura cognitiva de
investigação; a investigação, por sua vez, movimenta-se por uma problemática e o desenrolar
dessa problemática é o que dá o contexto em que ocorre o processo do pensamento criativo. O
megacritério pelo qual esse modo de pensar se conduz é o do significado, portanto, o sujeito do
pensamento criativo tenta movimentar o pensamento, ampliando significados, mas preserva a
totalidade do significado. Lipman (2008a, p. 180) entende que o pensamento criativo “está
preocupado com a invenção e totalidade, se controla através do objetivo de ir além de si mesmo,
38
14
Lipman utiliza a explicação do filósofo e cientista Charles Sanders Peirce sobre a diferença entre raciocínios
explicativos e ampliativos. O raciocínio explicativo pode ser explicado com o exemplo do raciocínio dedutivo,
pois “a conclusão de um argumento dedutivo está presente pelo menos implicitamente nas premissas e apenas
precisa ser explicado”. Já o raciocínio ampliativo pode ser explicado pegando como exemplo o raciocínio indutivo
ou o raciocínio analógico “que não pode ser limitado ao o que é dado” (LIPMAN, 1990, p. 204).
15
Funcionam como gavetas onde são organizadas as informações de acordo com alguns critérios como o
significado.
39
ensaio de Gilbert Ryle (1972) intitulado Thinking and Self-Teaching, o qual faz uma abordagem
sobre como aprender a pensar por si mesmo. Nesse ensaio, Ryle (1972, p. 113-114, tradução
nossa)16 lista algumas atitudes ou ações que bons professores têm ou realizam quando realmente
procuram ensinar seus alunos a pensarem sozinhos. Nessa listagem, Ryle explica que os bons
professores “não se repetem”, procuram diferentes formas de dizer as coisas e apontam vários
ângulos; eles “esperam que façamos as coisas sozinhos a partir daquilo que nos ensinaram”, ou
seja, que aprendamos a fazermos movimentos do pensamento por conta própria, resolver
problemas a tirarmos conclusões afins a partir daquilo que ensinado; eles “[...] nos mostram o
que querem que seja feito e “provocam-nos com perguntas, e então nos questionam sobre nossas
respostas”; bons professores nos conduzem pela mão até certo ponto do caminho depois nos
abandonam para que sejamos capazes de vencer sozinhos a etapa final; chamam atenção para
os problemas, nos fazem perceber o que há de errôneo; ajudam a reunir soluções e “quando
chegamos a uma solução, determinam para nós problemas subsidiários ou paralelos” (RYLE,
1972). Com essa listagem de Ryle, Lipman (2008a) pretende chamar atenção para o fato de
que isso é o que propriamente é feito no ato de pensar por si mesmo e do pensar criativo. Ora,
quando o pensamento se movimenta de maneira autônoma e criativa, há as convicções do
sujeito do pensamento, mas ele se propõe a colocá-las em exame tentando pensar de outras
maneiras. Então, ele procura não se repetir em seu próprio pensamento, buscando outros
ângulos ou pontos de vistas e maneiras diversas pelas quais pode-se apresentar um mesmo
pensamento, no entanto, também não procura repetir meramente os pensamentos ou posições
dos outros sujeitos. Nesse processo, há uma tensão: o sujeito do pensamento se depara com as
sus próprias formas de pensamentos, de convicções e com as formas como as outras pessoas
pensam ou como o mundo se apresenta. Essa tensão é representativa de um diálogo entre
convicções do sujeito e as convicções dos outros. Até um certo ponto, o sujeito do pensamento
parte de suas próprias convicções, mas chega em um momento que o sujeito do pensamento
segue o caminho contextual o qual o seu pensamento segue conforme o desenrolar da situação.
Nesse processo, precisa-se defender as próprias convicções de um lado, desenvolver do outro,
surgem implicações, então tem que rejeitar algumas convicções, buscar razões, modificar
alguns pontos, ampliar outros, pontos subjacentes surgem e esse processo vai “até descobrirmos
nossa própria maneira de fazer, expressar ou realizar, o que equivale a dizer que descobrimos a
nossa própria criatividade”, isto é, houve o pensamento autônomo o qual é o modelo que orienta
o pensamento criativo (LIPMAN, 2008a, p. 295). Por esse processo, o pensamento criativo
16
A listagem de Ryle na versão original pode ser conferida em: (RYLE, 1972, p. 113-114).
40
coloca a questão de que o bom pensamento não é uma repetição mecânica de o que as outras
pessoas dizem. Portanto, o pensamento criativo ganha a igual importância do pensamento
crítico. Posteriormente veremos, no item 3.2.3 deste capítulo, que a escolha do diálogo como
princípio e metodologia da educação reflexiva também implica nos aspectos do pensar criativo.
Lipman (2008a, p. 42 e 207) compreende que além do pensar crítico e do pensar criativo,
o pensar de ordem superior ou multidimensional envolve um terceiro elemento: o pensar
complexo. Para Tonieto (2010, p. 81) o objetivo do pensamento complexo “é a resolução de
situações problemáticas levando em consideração os procedimentos e os conteúdos, evitando,
desse modo, um pensar centrado no método com pouco conteúdo, assim como um pensar
restrito ao conteúdo com pouco método”. Quando o pensamento está envolvido com o processo
de formular julgamentos, há conteúdos, informações, conhecimentos, convicções e
experiências que constituem-se de fatos utilizados para comporem e fundamentarem
conceitualmente o julgamento. Porém, esses conteúdos, convicções e experiências precisam ser
articulados e organizados por procedimentos metodológicos. O pensamento complexo é a
postura cognitiva que ajuda a articular e avaliar o equilíbrio entre a articulação de conteúdo e
método em prol de formar um julgamento. Para essa articulação, o sujeito do pensamento deve
estar ciente das razões, provas e suposições que fundamentam o conteúdo assim como a
pertinência desse conteúdo em situações novas, isso é, analisar de onde veio o conteúdo, como
se sabe, por que é aceito, como ampliá-lo sem condená-lo ao vazio da perda de significado. Um
pensar com muito método e pouco conteúdo corre o risco de ser vazio de conceitos e um pensar
com muito conteúdo e pouco método pode em certas circunstâncias se tornar arbitrário e
inválido. Ora, de nada adiantaria, ter muita informação, porém, não saber metodicamente como
articulá-la. Também pouco adiantaria formas procedimentais abstratas e vazias.
Para Lipman (2008a, p. 42), o pensar complexo é o pensamento “que está ciente das
suas próprias suposições e implicações, assim como está consciente das razões e provas que
sustentam esta ou aquela conclusão”. Logo, não é um pensamento baseado em meras
convicções sem sustentação. É um pensar que pensa sobre os seus próprios procedimentos que
busca se afastar das autoilusões e preconceitos. Por isso, de acordo com Lipman (2008a), o
sujeito do pensar complexo, além de ter e avaliar seu próprio conteúdo, propõe e avalia os seus
procedimentos metodológicos tendo em vista a verificação da validade, pertinência e
adequabilidade desses procedimentos. Esse movimento cognitivo envolve o pensar sobre o
41
Lipman (2008a, p. 38-39), evidencia que o pensamento de ordem superior “não equivale
somente ao pensar crítico, mas à fusão dos pensamentos crítico e criativo [...] e inclui o
pensamento flexível e rico em recursos”. Para o autor, não existe pensamento puro crítico assim
como não existe o pensamento puro criativo, visto que, um atravessa o outro, um complementa
o outro. E nessa dimensão se agrega o pensar avaliativo do pensar (pensar complexo).
Porém, ainda existe um outro elemento que está presente no pensar de ordem superior
e que faz parte do pensamento crítico, este é o pensamento cuidadoso17. Para Lipman (2008a,
p. 41), o pensamento de ordem superior envolve valores que “são questões de importância.
Considerando que as pessoas geralmente expressam sentimentos intensos acerca destas
questões, é aqui que o elemento afetivo entra no processo do pensamento”. Segundo o autor,
em certo sentido, não há como separar as questões cognitivas da dimensão afetiva e valorativa
do pensador, ainda mais quando existem questões julgadas que para o sujeito do pensamento
são importantes e nebulosas. Os seres humanos são mais estimulados a pensar sobre uma
problemática quando de alguma forma essa problemática os provoca e aflige. Isso sugere que
pensar em temas-problemas usando apenas a razão (a criticidade) sem emoções é algo orientado
artificialmente. Contudo, no modo do pensar cuidadoso, isso não significa dizer que o
pensamento é dominado pelas emoções e inclinações desenfreadas, porque, por outro lado
emoções sem a orientação da razão tornam-se desmedidas.
O pensamento cuidadoso faz parte da dimensão do pensar crítico, por isso ao se
movimentar rumo a formulação do julgamento, seu fundamento é se guiar por critérios para
que não caia em arbitrariedade. De acordo com Sharp18 (2007, p. 248, tradução nossa) o pensar
cuidadoso ou atencioso (Caring Thinking) é fundado, além do pensamento crítico, pelo criativo
e afetivo. O pensamento cuidadoso “permite escolher o que achamos importante em um
17
Embora que na obra O Pensar na Educação, Lipman dá algumas pistas de uma dimensão afetiva e cuidadosa
do pensar fundada em critérios; segundo Kohan (1998), Lipman inseriu o pensamento cuidadoso algum tempo
depois de ligar os pensamentos crítico, criativo e complexo como estruturantes do pensar de ordem superior. Para
Kohan (1998, p. 110-111), Lipman “[...] no seu trabalho teórico mais importante, Thinking in education (1991),
traduzido por Pensar na Educação (1995) a palavra ‘caring’ (cuidado) nem sequer aparece no índice temático”.
Posteriormente, os trabalhos de C. Gilligan, N. Noddings e M. Nussbaum “forneceram a Lipman, através da noção
de cuidado ‘care’, a ponte que ele procurava para ligar os aspectos intelectuais ao afetivo do pensar”. Isso aconteceu
por volta de 1992, sendo que a primeira edição da obra o Pensar na Educação já havia sido publicada em 1991.
18
Foi importante colaboradora de Lipman na constituição do Programa Filosofia Para Crianças e Jovens.
42
19
Citação original: “Caring thinking is what enables us to pick out what we think important in a particular context
(ethical, aesthetic or scientific) - it determines what we focus on. In many ways, it is caring thinking that determines
our moral and aesthetic perceptions” (SHARP, 2007, p. 249).
20
Citação original: “thinking that values value” (LIPMAN, 1995 apud PHILLIPS, 2011, p. 15).
43
O que realmente justifica uma educação para o bom julgamento é o papel desse na
formação e continuidade da experiência. É notório que para Lipman (2008a), o ensino do bom
julgamento e do pensamento multidimensional cumpre o seu objetivo quando o sujeito do
pensamento os aplica ou aprende a entendê-los na vida prática, na relação do sujeito com o
mundo imediatamente ou à longo prazo em experiências futuras. Essa concepção configura a
noção de John Dewey sobre a experiência e as ideias. Para Lipman (2008a, p. 159), Dewey
denominou de “pensamento reflexivo” o pensamento que é “consciente de suas causas e
consequências”. Para esse autor, saber as causas das ideias é ter liberdade intelectual que traduz
a postura ativa do pensador em relação ao conhecimento e o pensamento. E “conhecer as
consequências das ideias é conhecer o seu significado”. Conhecer os significados das ideias é
encontrá-las nos aspectos práticos da experiência que afetam o ser humano, como a relação dele
consigo mesmo, com a natureza, com as coisas e com a sociedade. Isso equivale a dizer que o
significado das ideias está “nos efeitos que elas têm sobre a nossa prática e sobre o mundo”. É
pertinente ressaltar, que a educação tradicional, na concepção de Dewey (1979), oferece
experiências, entretanto, o problema se concerne na qualidade dessas experiências. Ao invés de
a educação proporcionar aos estudantes experiências educativas, proporciona o contrário,
experiências deseducativas. Por experiências deseducativas, Dewey explica que é “toda a
experiência que produza o efeito de parar ou distorcer o crescimento para novas experiências
posteriores” (DEWEY, 1979, p. 14). Experiências deseducativas se apresentam tal qual um
obstáculo epistemológico que impede o sujeito de buscar novos conhecimentos ou novas
experiências, o que faz com que o estudante, na escola, fique estagnado e não queira conhecer
o significado das ideias ou distorça o significado. Um exemplo disso, é quando em sala de aula,
os alunos mostram-se insensíveis às ideias e perdem o interesse e motivação em aprender
devido a experiência deles com o ato de apreender. O propósito de relembrar essa noção da
finalidade da educação é o de problematizar as seguintes questões: como ensinar o pensar de
ordem superior de modo com que haja liberdade intelectual do estudante, isto é, como ensinar
os alunos a pensarem de ordem superior e não ensiná-los apenas o que seria tal pensamento?
Como ajudar os estudantes a construírem bons julgamentos e encontrar os significados dessas
ideias em suas relações com o mundo ou na experiência prática?
Para Lipman (2008a, p. 97), os bons julgamentos são baseados na compreensão bem
fundada e na sabedoria prática. E “ambas, a compreensão e a sabedoria prática, são acentuadas
pela deliberação”. Em sentido aristotélico, Lipman defende que a deliberação figura uma forma
de investigação, ou seja, “é o questionamento que ainda não chegou ao estágio da afirmação”.
Deliberar invoca a investigação, discernimento e a experiência, é apontar todos os pontos sobre
45
determinada questão/problema, dialogar com esses pontos e discernir por meio da atitude
investigativa o mais provável, adequável e inteligível. O sujeito do pensamento que delibera,
faz isso levando em conta a sua experiência. E o consenso da deliberação, mesmo que
provisório, gera novas experiências.
Com efeito, o caminho mais viável para estimular o pensamento multidimensional
(pensamento de ordem superior) no campo educacional, é promover a deliberação. E o processo
da deliberação se torna possível pela investigação, na medida em que há a transformação das
salas de aula em comunidades de investigação regradas pelo princípio e metodologia do
diálogo.
21
Filósofo, lógico e cientista norte-americano. Foi a partir de suas ideias que se deu as bases da filosofia
Pragmatista, ele também propõe as bases de sua doutrina dos signos (semiótica) teoria da comunicação, incluindo
escritos filosóficos sobre linguagem, consciência e lógica, raciocínios. Além disso, Peirce, como também cientista,
estudou e teorizou cuidadosamente a metodologia da investigação científica que também é conhecida como teoria
da investigação, sendo o criador da expressão comunidade de investigação. Mais informações em (PEIRCE, 2005,
p. 193 e 284), (PEIRCE, 2008, p. 35-58), (DEWEY, 2008), (LIPMAN, 2008a, p. 157), (TONIETO, 2010, p. 89)
e (BACHA, 1997).
46
de uma inquirição pode ser falseado e gerar novos problemas que perpetuarão novas
investigações. Assim, o que hoje é estabelecido como crença justificada amanhã pode ser a
origem da problemática para a investigação.
Para Lipman (2008a, p. 31), a partir de Peirce o termo comunidade de investigação foi
ampliando “a fim de incluir qualquer tipo de investigação, científica ou não científica”. De fato,
o termo investigação não está restrito aos cientistas, as pessoas não precisam ser cientistas
profissionais para investigar, pois desde que haja um dúvida que incomoda, pode haver
investigação. De acordo com Lipman (2008a), no estudo sobre a história natural da investigação
científica, Dewey tenta mostrar que os povos, desde os primitivos, eram capazes de desenvolver
algoritmos (métodos) para a solução de problemas no cotidiano os quais são semelhantes aos
procedimentos da investigação científica. Esses procedimentos ou regras para solução de
problemas, eram desenvolvidos de acordo com a história de sucesso desses procedimentos na
resolução de problemas. Dewey identificou que quando esses povos percebiam alguma
dificuldade, eles notavam que alguma crença tida como verdadeira já não se sustentava mais,
então percebiam que havia uma dúvida. A partir da dúvida eles buscavam a solução aplicando
os procedimentos de definir o problema, converter desejos em possíveis resultados, formar
hipóteses como possíveis maneiras de alcançar os objetivos, considerando “imaginativamente
possíveis consequências de agir sobre essas hipóteses e, então experimentar sobre as mesmas
até que o problema fosse solucionado” (LIPMAN, 2008a, p. 158). Sobre essa menção é possível
ressaltar a ideia de que as pessoas, sejam profissionais da pesquisa ou não, podem ser
investigadoras desenvolvendo algoritmos para chegar na solução de situações-problema seja no
cotidiano ou sala de aula, ambiente de trabalho e na sociedade.
Para Lipman (2008a), Dewey, amparado pelas noções de Peirce de uma comunidade
de pesquisadores crítica cuja postura diante do conhecimento é entender a existência da
falibilidade e do contínuo questionamento e correção, traz o termo comunidade de investigação
e o método da investigação científica para a área da educação, mas também aplicou à ciência,
à lógica, à arte, dentre outras áreas de aprendizagem (LIPMAN, 2008a, p. 157). No campo
educacional, propôs a tese de uma reconstrução da educação rumo a proposta da educação como
e para a investigação, refletindo sobre o papel dessa reconstrução para a democracia.
Na tradução22 de Rosenbusch, Lipman citando Dewey entende que a democracia não é
apenas uma noção política, é uma ideia ética, um modo de vida, e como tal deve ser uma “noção
de democracia que investiga e questiona os seus próprios abusos”. A posição que se sublinha
22
Conversa de Lipman anexada no livro de Kohan (1998, p. 176).
48
aqui, é que a noção de democracia não é estática, é formada por ações e noções humanas e
necessita valer-se do questionamento, autocorreção ou investigação para não ser arbitrária. Para
que seja satisfeita essa necessidade, as noções e ações humanas devem valer-se, por
conseguinte, do questionamento e da investigação. Se tal concepção é de fato, nessa transição
para uma democracia como e para a investigação, agrega-se um componente educacional. Para
Lipman (2008a, p. 355), Dewey entendia que “quando a educação se transforma em educação
como investigação e educação para a investigação, o produto social desta mudança institucional
será a democracia como investigação e não meramente democracia”. Pois a educação como e
para a investigação oferece um ambiente comunitário de deliberação que requer um sujeito
agente. Lipman (2008a) entende que a comunidade de investigação em sala de aula é para
Dewey “um microcosmo da Grande Comunidade”, ou seja, representa uma pequena
comunidade democrática, questionadora e pesquisadora que busca resolver os problemas como
injustiças e equívocos com o método da investigação científica. Os integrantes dessa
comunidade, são integrantes também de uma comunidade maior, a sociedade. Quando a
educação é como e para a investigação, prepara os estudantes para serem pensadores-
investigadores e colaboradores que questionam o que há de problemático não apenas em sala
de aula como também em seus mundos cotidianos, culturais e sociais e isso é uma perspectiva
da construção de uma sociedade democrática questionadora e autocorretiva (LIPMAN, 2008a,
p. 373).
entanto, segundo Tonieto (2010, p. 90), a comunidade em sala de aula é um espaço que para
Lipman deve ser organizado de tal forma que possibilite a investigação. Pois formar uma
comunidade não é suficiente para ajudar os alunos a desenvolverem o pensar multidimensional,
é necessário uma “comunidade questionadora, uma comunidade interativa, colaboradora e
pesquisadora” (LIPMAN, 2008a, p. 373). Quando a comunidade passa a ser de investigação,
“aceita a disciplina de lógica e do método científico; pratica o ouvir uns dos outros, o aprender
uns com os outros, o construir sobre as ideias dos outros e o respeitar os pontos de vista uns dos
outros, e ainda exigindo que as asserções sejam garantidas por evidências e razões” (LIPMAN,
1990, p. 170). Nisso se funde a ideia lipmaniana de uma comunidade de investigação em sala
de aula.
A comunidade de investigação na sala de aula é uma comunidade deliberativa envolvida
com a construção de um pensamento mais rico, imaginativo e razoável. Por investigação,
Lipman (2008a, p. 355) entende que é “qualquer forma de prática autocrítica [que engloba a
autocorreção e a autotranscedência] cuja meta é uma percepção mais compreensiva ou um
julgamento mais trabalhado”. Na proposta de Lipman (2008a), os estudantes na comunidade de
sala de aula são desafiados a investigarem problemas que estão ligados aos conhecimentos das
grandes áreas do conhecimento humano e também ligados a experiência prática dos próprios
estudantes. Mas não apenas investigar, a comunidade de investigação é um ambiente em que
os indivíduos aprendem a construírem problemas a partir de alguma crença já justificada, a
duvidarem e desenvolverem o espírito da investigação. A concepção de dúvida de Lipman
(2008a) é semelhante a de Peirce (2008), uma dúvida real que incomoda e gera irritação23 no
pesquisador, nesse caso uma dúvida real que incomoda o estudante e o faz não medir esforços
para sair do estado de dúvida, porque é isso que movimenta a curiosidade do aluno fazendo
com que ele sinta vontade de investigar e discutir. A metodologia utilizada na comunidade de
investigação em sala de aula é análoga ao método empregado pelos pesquisadores: perceber e
evidenciar o que há de problemático, definir objetivos, criar e compartilhar teorias hipotéticas,
selecionar e fundamentar com boas razões a seleção de alternativas, perceber falhas
metodológicas, lógicas e conceituais, testar as teorias, corrigir o processo e seguir o caminho
que a investigação conduz até chegar num julgamento que é falseável, provisório e
experimental, porém, mais trabalhado, porque é produto da prática investigativa em
comunidade.
23
Termo utilizado por Peirce (2008, p. 45), ele afirma que a “irritação da dúvida causa um grande esforço
[investigação] no sentido de se alcançar um estado de crença”.
50
podem ser encontradas nas artes e ofícios, nas áreas humanas e nas profissões e, na verdade,
em todo lugar em que os seres humanos estejam envolvidos em fazer, realizar ou falar”. Na
investigação em sala de aula, portanto, os procedimentos da pesquisa científica e a lógica são
importantemente considerados, porém há outras formas de investigação “como o diálogo em
sala de aula” (LIPMAN, 2008a, p. 355 e 374, grifo nosso). Nesse aspecto, é possível detectar
que a possibilidade de uma pedagogia mais científica e de um processo educacional mais
científico por meio dos proponentes da investigação é dada pelo diálogo
3.2.3 O diálogo como princípio que fundamenta a educação e como uma forma de investigação
fala depois o outro e assim vai se estendendo a conversa como alternância de falas e
preenchimentos de significados ao passo que no diálogo os sujeitos colaboram para construir
um significado a partir de uma problemática.
Nas palavras de Tonieto (2010, p. 94), a discussão guiada pelo diálogo não fica
ancorada nas posições e inquietações pessoais. É certo que cada sujeito membro da comunidade
é uma individualidade, com interesses, concepções e pensamentos diferentes, “contudo, no
processo de investigação dialógica é dado um passo além, visto que as individualidades, unidas,
pensam coletivamente sobre as questões humanas que as atingem como seres particulares e
sociais”. Desse modo, no diálogo, há cooperação, princípios de respeito e aspectos
comunicativos, mas a finalidade é trabalhar junto e colaborar para construir a solução de
problemáticas que afetam os indivíduos em particular, que unidos formam a comunidade e que
portanto, são problemáticas que afetam toda a comunidade. O sentido colaborativo se explicita
pelo fato de que na investigação dialógica o objetivo não é defender uma posição pessoal,
embora isso também aconteça no sentido de que cada participante vai defender suas ideias
recorrendo a lógica das boas razões, o objetivo é colaborar com posições e ideias, e pensar
deliberativamente juntos em como essas ideias se tornam legítimas na comunidade de modo
que sejam possíveis hipóteses para resolução das problemáticas levantadas. Mas isso não se faz
sem o respeito, o estabelecimento e mudança de regras em um processo contínuo que a
comunidade de investigação sempre se faz e se refaz. Por esses aspectos, a comunidade de
investigação regrada pelo diálogo é, segundo Abel (2008, p. 217), concebida a imagem de
princípios democráticos24.
Para Tonieto (2010, p. 94),
24
Mais detalhes sobre os aspectos democráticos da comunidade de investigação ver (ABEL, 2008, p. 205-206) e
(TONIETO, 2010, p. 94-102).
54
25
Foi explicado mais detalhadamente sobre esse aspecto no item 3.1.2 na página 31 desta pesquisa.
55
26
Ver também (LÉVINE, 2008, p. 97-99).
27
Na obra Mind, Self and society [sugestão de edição 1967].
28
Na obra A formação social da mente [sugestão de edição 1994].
56
com o que vão falar sem escutar o outro ou sem acompanhar o desenrolar do diálogo. Eles
também podem estar imitando os procedimentos e respondendo questões de forma mecânica
sem refletir.
Daniel (2008, p. 39) em seus estudos sobre os pressupostos filosóficos e pedagógicos
de Matthew Lipman, enfatiza que, mesmo quando as questões levantadas sejam interessantes
para as crianças e adolescentes, o diálogo não se dá satisfatoriamente logo de início, portanto,
requer aprendizagem e constância. Ele ainda identifica que as discussões interessantes em sala
de aula podem ser:
1. Anedóticas: quando se tem uma problemática interessante para os estudantes e eles tentam
dar resposta, mas falam de forma não estruturada, não se deixam refletir pelas considerações
dos colegas e colocam seus pontos de vistas como conclusões fechadas;
2. Monológicas: quando os alunos começam a entrar em um processo de busca organizada,
porém buscam uma resposta única, não conseguem considerar todos os ângulos do problema
de investigação e têm dificuldades de justificar suas opiniões;
3. Dialógicas: quando os alunos investem na reflexão, constroem sobre as ideias dos colegas,
levantam hipóteses, justificam suas posições e buscam um objetivo comum, mas ainda
apresentam dificuldades de avaliar a pertinência dos seus pontos de vistas, percebem a validade
dos enunciados e a pertinência dos critérios;
4. Dialógica semicríticas: quando os estudantes utilizam procedimentos para resolver uma
problemática, alguns são críticos para questionar os enunciados dos outros, questionam a
validade, utilizam a lógica, no entanto, ainda há alguns alunos que não conseguem ser
criticamente influenciados pelas críticas dos outros e a discussão não se movimenta no sentido
de gerar mudanças de perspectivas da comunidade;
5. Dialógica crítica: quando os estudantes trabalham juntos e não só melhoram a perspectiva da
comunidade como também a modifica, acontecendo um avanço na compreensão. Os critérios
observados quanto a atitude dos estudantes é a preocupação ética e lógica sobre as deliberações,
os alunos buscam naturalmente a divergência, solicitam entre si razões, posicionam-se não de
modo conclusivo fechado, mas de modo hipotético e têm noção sobre a colaboração dos colegas
para enfrentar a problemática que a comunidade de investigação tenta resolver (DANIEL,
2008). É nesse ponto que acontece especificadamente uma discussão dialógica nos moldes que
Lipman (2008b) e Lipman com os seus colaboradores (2001) colocam quando propõem que o
diálogo como processo de iniciação a pesquisa possibilita o desequilíbrio das concepções e
convicções e a decorrente reflexão.
57
O Programa de Filosofia para Crianças e Jovens criado por Matthew Lipman é uma
proposta para o ensino de filosofia que tem como paradigma o modelo educacional reflexivo
da educação para o pensar. Seu objetivo é contribuir com esse paradigma na tarefa de ajudar os
estudantes a desenvolverem o espírito investigativo, as habilidades cognitivas para o pensar
multidimensional (pensar de ordem superior) e, principalmente, trazer as riquezas do
pensamento filosófico para a sala de aula a fim de fazer com que os alunos filosofem. No
capítulo anterior, adentramos nos elementos que constituem o paradigma da educação para o
pensar, onde investigamos o que dá o suporte à teoria normativa do pensar de ordem superior
ou multidimensional e a suas possibilidades de ensino as quais identificamos que é a pesquisa
em comunidade estimulada pelo diálogo. Tudo o que foi proposto até agora forma a base
propedêutica para o nosso objetivo geral, que é explicar os elementos teóricos dos quais se
constitui o programa de filosofia para crianças e jovens e definir o significado educacional de
tal proposta.
Para tanto, tomamos como objetivo no presente capítulo, projetar como a filosofia
torna-se uma educação para o pensar na concepção de ensino e de filosofia lipmaniana. Para
alcançar esse objetivo, primeiramente procuraremos explicar por que a filosofia é importante
para a educação para o pensar e como ela é incluída no referido modelo educacional por
Lipman. Após isso, identificaremos a viabilidade da filosofia como contribuinte para o
desenvolvimento dos quatro conjuntos de habilidades do pensamento indispensáveis para o
pensar multidimensional. Em seguida vamos esboçar como a pesquisa ou prática filosófica pode
estimular reflexão e o espírito investigativo dos estudantes desde pequenos com a apresentação
dos sete módulos de filosofia e suas respectivas organizações de habilidades, conteúdo e
pesquisa filosófica criados por Lipman em parceria com colaboradores. Nas últimas seções
daremos continuidade com a identificação da importância dos materiais que Lipman desenvolve
para o ensino de filosofia e o papel atribuído ao professor de filosofia na condução da
comunidade de investigação filosófica.
Tomaremos como textos bases os de Lipman (2008a; 2008b; 1995; 1990; 2000a; 2000b;
1998; 1991) e Lipman com seus colaboradores (2001). Como textos complementares Tonieto
(2007; 2010), Daniel (2008), Kohan (1998), Oliveira (2004), Sharp (1995) e Lorieri (2000).
59
pela filosofia como abertos, problemáticos, controversos e abrangentes tais como o conceito de
justiça, de bem, de ação moralmente boa, de verdade, de bons raciocínios, de beleza e de
conhecimento, são conceitos que transcendem todas as disciplinas, podem até ser tratados de
maneira específica em outras áreas do saber, moldam os nossos modos de criar, dizer e agir na
experiência, assim como também são encontramos os seus significados na experiência, porém
são, propriamente, conceitos forjados originalmente pelo ato do pensar filosófico.
Uma vez identificado que a filosofia lida com conceitos que compõem um vasto
significado, Lipman (1990, p. 111) ainda adiciona que “o estágio inicial da investigação de um
assunto recentemente descoberto é filosófico. É um estágio no qual as perplexidades são
abundantes, assim como as especulações de como resolvê-las”. A filosofia desde seu início se
preocupou em investigar o que é dado como certo, persegue o problemático, o controverso e é
atraída “pelas dificuldades conceituais que se escondem nas frestas e interstícios de nossos
esquemas conceituais” (LIPMAN, 1990, p. 50). Se assim é de fato, a filosofia por sua própria
natureza incorpora características de investigação e diálogo que se revigoram pela reativação
da dúvida a qual, como vimos no capítulo anterior, é o princípio para todas as formas de
investigação.
Assim, diferentemente das outras disciplinas a filosofia se identifica com a reativação
da dúvida. As outras disciplinas, conforme nos lembra Lipman (1990), estabelecem uma
taxionomia de classificação que, geralmente, se traduzem pelo objetivo de estabelecer a
exatidão, o equilíbrio. Ao passo que a filosofia considera as zonas imprecisas, a necessidade de
admitir que há exatidões parciais ou falhas que desiquilibram a exatidão como nos casos dos
problemas valorativos de ética, bioética e moral, problemas epistemológicos e metafísicos, e
assim por diante. Essas características peculiares da filosofia a tornam uma forte candidata para
o exercício da problematização e do pensar nas outras disciplina, visto que as linguagens das
outras disciplinas também tiveram inicialmente um estágio filosófico e, essa característica
deveria ficar com essas disciplinas sob forma de crítica. A filosofia fornece critérios para fazer
a crítica das críticas das outras disciplinas. Não obstante, a filosofia ainda tem a oferecer
conhecimentos humanísticos, o seu caráter reflexivo e “a familiarização com o processo de
raciocínio, a sua escrupulosa abordagem da análise conceitual e seu próprio compromisso na
investigação autocorretiva” (LIPMAN, 1990, p. 165). Portanto, é propícia para contribuir com
o desenvolvimento do raciocínio e do bom julgamento por ter como subáreas a lógica que
estuda habilidades argumentativas e fornece critérios para distinguir entre raciocínios bons e
raciocínios fracos ou falaciosos, a ética que propõe um pensar cuidadoso sobre os julgamentos,
a estética que se apresenta como uma forma de cognição apreciativa e criativa, a epistemologia
61
Como visto anteriormente, Lipman (2008b, p. 18) defende que não é possível uma
educação reflexiva plena sem a filosofia assim como também não seria possível uma formação
cognitiva adequada sem essa disciplina. Contudo, ele admite que tem que defender igualmente
o raciocínio oposto: é possível que, em determinas circunstâncias, a presença da filosofia no
currículo escolar na educação básica pode não ser viável. Essas circunstâncias são figuradas
quando a filosofia é transformada em uma disciplina erudita e fragmentada em que suas
características e significação são excluídas. Por isso, a ideia lipmaniana de uma filosofia
adequadamente reconstruída e corretamente ensinada. No entanto, como deveria ser uma
filosofia adequadamente reconstruída e corretamente ensinada?
Para Lipman (1990, p. 38), em qualquer forma de ensino, em qualquer disciplina,
“aprender bem alguma coisa é aprender com o mesmo espírito de invenção e descoberta de
quando foi inventada”. Esse espírito de invenção e descoberta é propriamente o espírito da
investigação, o cerne do paradigma reflexivo da educação para o pensar e o que mantém as
disciplinas vivas. Para o ensino de filosofia essa abordagem também é mensurada com a adição
de que o propósito educacional da filosofia é possibilitar o ser humano torna-se ou continuar
sendo um investigador. Lipman entende a filosofia por suas próprias peculiaridades como “o
62
exame autocorretivo dos modos alternativos de [criar]29fazer, dizer e agir” (1990, p. 197), é um
modelo de investigação conceitual (busca estabelecer e criar conceitos) e reflexivo (reflete
sobre a formação desses conceitos e os modos alternativos de aplicá-los na experiência). Esse
modelo possui em suas características práticas, o diálogo e a busca por entender não apenas
como as coisas são, mas também procura entender como as coisas deveriam ser. Noutras
palavras, a prática filosófica é uma forma de investigação normativa. Para descobrir as
alternativas de fazer ou criar, agir e dizer, “os filósofos persistentemente avaliam e examinam
suas próprias pressuposições, questionam o que outras pessoas normalmente têm como certo e
especulam imaginativamente sobre quadros de referência cada vez mais amplos”, e isso é um
movimento de pesquisa colaborativa ou dialógica (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN, 2001, p.
144). Nesse sentido, Lipman (1990) e ele com os seus colaboradores (2001), entendem a
filosofia, não como um sistema de conceitos e significados filosóficos já produzidos, esses são
os resultados ou consequências da filosofia. Eles entendem a filosofia como um modo prático,
o fazer filosofia: o filosofar, entendido, aqui, como modo de questionar e buscar de modo
colaborativo, os significados das ideias e da experiência humana. Essa definição lipmaniana de
filosofia não desconsidera o conhecimento filosófico já produzido, pois esse faz parte do fazer
filosofia, não é separado o fazer filosófico do feito filosófico. Por outro lado, também não
desconsidera o processo crítico, criativo e complexo pelo qual a filosofia se define, investiga a
si mesmo e se reativa, pois esse “nos ensina que devemos estar atentos à nossa própria
falibilidade e sermos autocríticos e autocorretivos” (LIPMAN, 2000b, p. 75).
Assim, a filosofia tem, na compreensão lipmaniana, duas funções:
[...] Uma é analítica. Cada disciplina é reflexiva e, pois, crítica quanto ao seu próprio
conhecimento. A filosofia engloba a crítica dessas críticas mediante uma análise
permanente dos critérios e padrões utilizados. [...] A outra função [...] é mais síntese
do que análise, mais especulativa do que empírica” (LIPMAN, 1997 apud LORIERI,
2000, p. 237).
Ligando as partes, a filosofia nas obras e escritos de Lipman, não é separada nem do seu
processo nem do seu produto. O processo é uma urdidura regrada pela lógica, busca rigor
metodológico e argumentativo e se amplia pela forma colaborativa de diálogo e autocorreção
de especulação e análise. O produto é uma urdidura resultante do processo, juntas formam a
trama do pensamento filosófico, o qual, segundo Lipman (1990, p. 20; p. 59), é um modelo
29
Em outra menção que Lipman faz juntamente com os seus colaboradores, sobre a filosofia como exame
autocorretivo e autocrítico das alternativas de fazer, dizer e agir, é substituído a palavra “fazer” por “criar”. Ver
em (LIPMAN; SHARP; OSCANYAN, 2001, p. 144) e contrastar com (LIPMAN, 1990, p. 197).
63
criativo disciplinado pela investigação intelectual, ou seja, a filosofia é um padrão “guiado pelo
ideal de racionalidade”: um pensar multidimensional.
A partir dessas caraterísticas, é possível supor que uma filosofia adequadamente
reconstruída é a que considera o processo e o produto, e se propõe como uma forma de
investigação normativa, ampliativa e criteriosa. Quanto ao ensino de filosofia, Lipman
prossegue com a afirmação de que “a filosofia é a disciplina cuja a forma e pedagogia são a
mesma coisa” (LIPMAN, 1990, p. 53). Sendo a mesma coisa, ensinar adequadamente a filosofia
deve ser da mesma forma como ela é, por natureza, definida e produzida, pelo fazer filosofia.
Por essas características, Lipman (1990; 1995) identifica a convergência entre as peculiaridades
da educação para o pensar, que de certo modo, é construída sobre fundamentos educacionais e
filosóficos, e as peculiaridades próprias da filosofia que também apresenta um significado
educacional de investigação, diálogo e a procura por estabelecer e se guiar por pensamentos
bem elaborados.
No entanto, se as peculiaridades da filosofia e da educação para o pensar chegam a
pontos que se cruzam, poder-se-ia perguntar se uma não substituiria a outra no campo
educacional. Na conclusão de que uma educação reflexiva não seria plena sem a filosofia já
chegamos anteriormente pelas próprias explicações que Lipman (1990) nos fornece. O mesmo
segue com o raciocínio ao contrário, o ensino de filosofia não seria pleno sem a educação
reflexiva, porque a filosofia ensinada na abordagem tradicional, conforme complementa
Tonieto (2007), transforma-se no ensino do produto da filosofia que desconsiderado o processo
torna-se fragmentada.
A filosofia como prática filosófica ou pesquisa colaborativa é uma forma de educação
para o pensar e, é nessas perspectivas que corrobora com a educação reflexiva. A partir dessa
concepção tomada como ponto central, Lipman cria o Programa de Filosofia Para Crianças e
Jovens – Educação Para o Pensar como proposta de ensino de filosofia que objetiva fazer com
que os alunos filosofem e por meio do raciocínio e pensamento filosófico aperfeiçoem cada vez
mais as habilidades de pensamento necessárias para o pensamento multidimensional ou de
ordem superior.
A seguir, abordaremos como a filosofia (como pesquisa filosófica colaborativa) dentro
do Programa de Filosofia Para Crianças e Jovens – Educação Para o Pensar contribui com o
desenvolvimento das habilidades cognitivas ou de pensamento.
64
haver raciocínio válido e inválido os quais tanto podem conter premissas verdadeiras e sólidas
e conclusão verdadeira e sólida como pode ser descuidado e arbitrário. Das habilidades que
constituem as habilidades de raciocínio, pode-se destacar, conforme Oliveira (2004), as
habilidades de inferir conclusões e pressupostos, detectar premissas e conclusões, formular
questões, exemplificar, constatar, deduzir, classificar, fazer comparações e relações de
semelhanças e diferenças, construir símiles, fazer comparações de relações.
As habilidades de raciocínio são indispensáveis para a construção e ampliação dos
significados, quando uma criança lê um texto e consegue inferir os implícitos do texto e
estabelecer relações, pode-se dizer que ela extraiu ou descobriu o significado que esse texto
apresenta. Na descoberta ou na construção do significado a criança contou com uma vasta
coordenação de atos mentais constituídos por movimentos lógicos e as habilidade de raciocínio.
Para explicar essa ideia, utilizaremos o seguinte exemplo, o qual o próprio Lipman (2008a, p.
63) utiliza: “um professor pergunta a uma criança de quarta série “como seria ser a única pessoa
na terra?” e a criança responde que seria como se fosse a única estrela no céu”. Nota-se que por
mais que a pergunta seja simples, a compreensão de seu significado exige um vasto número de
atos mentais de raciocínio e de lógica. Para formular esse raciocínio que a criança fez ao
responder a pergunta, foi estabelecido duas relações e depois mais uma relação de semelhança
entre essas duas relações: a relação entre pessoa e mundo vazio é semelhante à relação entre
estrela e céu vazio. O resultado desses atos mentais é a construção de um raciocínio analógico.
Como pode perceber, foi coordenado nesse ato de pensamento uma potência de habilidades de
raciocínio, das mais elementares como estabelecer e perceber a relação entre duas coisas, às
mais complexas como fazer comparação de relações, que é propriamente fazer relação entre
duas relações. Isso, no entender do autor, demonstra que a criança extraiu o significado da
pergunta. E no momento em que foi construído esse raciocínio, houve também um evento
criativo de ampliação do significado sem prejudicar a verdade ou tornar o raciocínio inválido.
O raciocínio é o “pensamento em movimento exercendo pressão progressiva para
frente” (LIPMAN, 1990, p. 48). Quando as convicções são colocadas em questão e é percebido
a existência de um problema, o pensamento habilmente investigativo procede elaborando,
testando e selecionando hipóteses que determinem a solução da questão, junto com esses atos
e movimentos cognitivos pelas habilidades de raciocínio pode-se ampliar a descoberta,
mantendo-se a verdade, a validade e o significado. Isso pode se dar a partir de um argumento
com premissas solidamente verdadeiras e organizado de modo válido em que tira-se conclusões
afins ampliando-se o significado.
68
altamente complexas e sofisticadas. O que está em questão, nesse caso, não é que o número de
habilidades cognitivas cresça e melhore ao longo da vida do sujeito, é o modo como as
habilidades cognitivas já adquiridas na infância são usadas e aperfeiçoadas de modo que elas
sejam orquestradas e se tornem atos mentais complexos e sofisticados.
(III) Habilidades de organização de informações ou conceituação:
Segundo Tonieto (2007, p. 85) “em estreita ligação com as habilidades de investigação
e de raciocínio estão as habilidades de organização de informações”, essas são habilidades
referentes a capacidade de organização das informações em grupos conceituais os quais figuram
redes de significados. Cada grupo conceitual possui redes de relações que podem ser de
semelhanças ou diferenças. De uma relação é descoberto ou forjado um significado, um grupo
conceitual, é, portanto, uma teia de significados. Na interpretação de Oliveira (2004, p. 47), é
através das habilidades de organização de informações “que os conceitos adquirem sentido,
tornam-se instrumentos de compreensão e possibilitam o conhecimento”. Ainda, prossegue a
autora, habilidades como fazer distinções, fazer conexões, agrupar, classificar, definir,
identificar significados e explicar, são algumas das habilidades envolvidas na capacidade de
organizar as informações em grupos conceituais.
Lipman (2008a) define três tipos básicos de organização de informação, são eles:
sentenças, conceitos e esquemas. As sentenças são unidades básicas de significados, são
constituídas por uma relação de palavras a fim de construir um significado. Podemos citar como
exemplo de sentenças, as perguntas, ordens, afirmações ou declarações, essa última representa
uma forma elementar de julgamento. Os conceitos são constituídos por relações de complexos
que podem ou poderiam definir algo. Noutras palavras, conceitos são formados por um
agrupamento de características relacionadas, as quais representam algo, segundo suas
semelhanças. Os esquemas são estruturas cognitivas dinâmicas e não estáticas nas quais
organizamos o conteúdo da experiência construindo o conhecimento. Os esquemas estão em
constante equilíbrio e desequilíbrio, modificando-se, ampliando-se ou, talvez, rompendo-se,
segundo as experiências do sujeito. Um exemplo simples que representa um esquema é uma
história em forma de narrativa: a sequência como é construída uma narração sofre um
desdobramento progressivo, voos e pousos, equilíbrio e desequilíbrio e isso uma característica
importante para causar interesse e atenção do leitor, pois a cada desequilíbrio, uma dúvida
surge.
De acordo com Lipman (2008a, p. 72), “o pensamento conceitual envolve relacionar
conceitos entre si a fim de formar princípios, critérios, argumentos, explicações”. A resolução
de uma problemática de pesquisa, em sua forma básica, é feita a partir de construções,
70
(1990), existe uma disciplina que tem muita aproximação com a investigação, formação de
conceitos, tradução e com o raciocínio. Essa disciplina é a filosofia. Como dito anteriormente,
a filosofia trabalha propriamente com os conceitos, com a especulação e análise detalhada das
redes de relações entre os complexos. Ela é uma forma de investigação e de criação conceitual
por excelência, pois busca com rigor metodológico e lógico explicar, ampliar, desenvolver
conceitos e aplicá-los em problemáticas filosóficas abrindo cada vez mais o leque de relações
e significados. Como a filosofia em si mesma propõe um pensar sobre o próprio pensar e os
conceitos com os quais ela se engaja, são abertos, problemáticos e controversos, a dúvida e a
reativação da investigação são constantes, o que conta ponto com as habilidades de investigação
e de formação de conceitos. Também, relembrando, a filosofia possui como um de seus
componentes a lógica, ramificação ou subárea filosófica que estuda os bons e maus raciocínios
fornecendo critérios e regras pelas quais é possível a reflexão crítica sobre os raciocínios fracos
ou falaciosos distinguindo-os de raciocínios bem elaborados. Não obstante, o desenvolvimento
do raciocínio pela lógica argumentativa é dado pelo trabalho com a interpretação e inferência,
análise da estruturação de argumentos e raciocínios, premissas conclusões, tradução do
pensamento cotidiano para as regras, símbolos e padrões da lógica, preservação do significado
e da verdade os quais são indispensáveis para a leitura, a escrita, a expressão oral, a escuta e a
tradução (LIPMAN, 2008b, p. 24-25). Além disso, as outras ramificações da filosofia, tais como
a epistemologia, a metafísica, a ética e a estética são conjuntos de estudos que trazem a melhor
compreensão e conhecimento sobre o que é o conhecimento, a reflexão sobre o pensamento
traduzido em arte e expressão ou a arte traduzida em pensamento, os princípios da ética
(princípios normativos) em consonância com a lógica (que fornece princípios críticos) e a
estética (princípios de apreciação de o que é belo, bom e desejado) pelos quais é possível o
envolvimento com o pensamento cuidadoso30. Nesse contexto, as ramificações da filosofia tem
muito a acrescentar no que tange a questão do desenvolvimento da excelência do pensamento.
Com essa afirmação, poder-se-ia conjecturar, no entanto, em incluir o ensino dessas
ramificações ou subáreas da filosofia fundidas nas outras disciplinas como temas transversais
ou o estabelecimento de cursos de lógica ou do pensamento crítico para desenvolver habilidades
sem a inclusão da filosofia no currículo como disciplina. Contudo, é importante lembrar que as
30
Lipman (2000b, p. 74) inclui duas formas ou exemplos de pensamento cuidadoso ou atencioso que estão
presentes na filosofia: o pensamento normativo e o pensamento apreciativo. O pensamento normativo tem a ver
com os princípios da ética e do pensamento crítico e o pensamento apreciativo engloba princípios da ética e da
estética. Como diz o autor não apreciamos apenas os belos objetos como também podemos apreciar “a repulsão
ao feio do mesmo modo que nós apreciamos a atração do belo [...] quando nós refletimos sobre nossos sentimentos
e desejos”.
72
31
Sílvio Gallo (2007, p. 17) faz um alerta quanto a interpretação e foco do ensino da filosofia. Para ele, “ao ensinar
filosofia tomando como objetivo central o desenvolvimento de certas competências e habilidades específicas,
como de leitura de textos, articulação de saberes e sua contextualização corremos o risco de desfilosofar a aula de
filosofia pela perda de seu conteúdo específico.”
73
como principal objetivo “induzir o comportamento filosófico” nas crianças e jovens fazendo
com que eles investiguem de modo colaborativo respostas para problemas filosóficos
(LIPMAN, 1990, p. 206-207). Para isso, é proposto que as crianças e jovens, na aula de
filosofia, formem uma comunidade de investigação e por meio do diálogo, metodologia base
utilizada pelos filósofos para construir conhecimento filosófico como, por exemplo, o filósofo
grego Sócrates, se construa pensamentos que revelam movimentos característicos do
comportamento filosófico.
Em linhas gerais, a sugestão de Lipman (2008a), sobre como a pesquisa filosófica
colaborativa deveria iniciar, tem como ponto de partida a provocação de uma dúvida seguida
da identificação de um problema. Como é uma proposta de ensino como iniciação ao processo
de pesquisa, uma sugestão é começar pela apresentação de um texto. Mas não um texto erudito
ou descritivo, é mais adequado um texto narrativo em forma de história que seja mediador entre
a cultura e o indivíduo, e o mais importante, que seja provocativo e que coloque em questão
situações do cotidiano e da experiência dos estudantes elucidando problemas filosóficos. As
novelas filosóficas, as quais ainda trataremos nas próximas seções, são exemplo de materiais
que compõe o Programa de Filosofia Para Crianças e Jovens e que são sugestões para se utilizar
nessa etapa. Uma outra etapa32, seria partir da leitura do texto seguido de provocações e
tentativas de compreender os significados que o texto apresenta, pois só pode ser afirmado que
um texto cumpriu a sua função, quando é compreendido o seu significado. O texto não tem um
valor em si mesmo, ele é considerado por Lipman e seus colaborados (2001) como um pretexto
para desencadear a dúvida e a discussão filosófica. Em um próxima etapa, os estudantes deverão
ser incentivados a formular perguntas, dúvidas as quais eles consideram interessantes e que de
modo direto ou indireto podem ter ligação com o significados que o texto apresenta. Segundo
Daniel (2008, p. 38), nessa etapa de coleta de perguntas, supõe-se que o aluno não apenas
aprenda a formular perguntas, mas perguntas “de ordem filosófica”. Essa tarefa não é difícil
32
Explicaremos os desdobramentos da metodologia da pesquisa filosófica colaborativa em sala de aula
organizando em etapas por fins de organização textual da nossa pesquisa. No entanto, talvez, essas etapas não
sigam uma sequência fiel dos passos delineados por Lipman, porque na edição do Pensar na educação que
utilizamos (2008a, p. 349-351), da tradução brasileira, parece que Lipman não define de modo fechado os passos,
ele aponta uma sugestão com pontos de explicações que são critérios pelos quais podemos nos basear para
organizar as etapas metodológicas do ensino de filosofia e a prática pedagógica. Contudo, nas edições de 1991 e
1995 da tradução brasileira, dessa mesma obra, a tradução aponta que Lipman define esses passos metodológicos
como estágios. Na nossa presente pesquisa, interpretamos esses passos como critérios que orientam a metodologia
da aula de filosofia, mas não são fechados ou encarrados como uma receita pronta para ensinar a filosofia como
investigação. Kohan (1998, p. 85-110), por exemplo, baseado nos critérios que Lipman define, propõe como
sugestão para o ensino de filosofia os cinco passos ou partes de uma aula de filosofia para crianças e jovens: 1
Atividade prévia ao trabalho textual, 2. Apresentação do texto, 3. Problematização do texto, 4. Discussão
filosófica, 5. Atividade posterior à discussão.
74
quando o texto ou provocação inicial cumpre o seu papel e o professor de filosofia apresenta
competência para desenvolver nos estudantes o engajamento pela dúvida filosófica. É
necessário apontar que quando os alunos se propõem a formular as questões, muitas questões
poderão surgir, no entanto, é preciso de um ponto em comum para iniciar a discussão. Por causa
disso, Lipman (2008a) sugere como uma próxima etapa a elaboração da agenda filosófica a
qual tem como finalidade organizar as perguntas de acordo com o interesse dos estudantes
valorizando todas, mas selecionando uma para a discussão e as outras poderão ser agendadas
para discussões futuras. O próximo passo é a discussão colaborativa. Uma vez definido qual é
o problema filosófico que precisa ser pesquisado começa a busca de respostas para o problema.
Essa busca é feita de modo dialógico, isto é, colaborativo. A colaboração é posta em prática
pelo equilíbrio e desequilíbrio do pensamento em que os estudantes manifestam suas hipóteses,
suas convicções, seus conceitos ou tentativas de explicações que eles acreditam ser prováveis
para contribuir com a solução do problema. Ao mesmo tempo, a comunidade testa
deliberativamente as consistências dessas hipóteses.
Inicialmente pode haver discussões e manifestações de convicções pessoais e de senso
comum, mas a proposta é superá-las, analisando-as em conjunto, pensando em como seria se
fosse de outro modo e passar a um nível de discussão de ideias. Podem haver divergências entre
as hipóteses, entre colocações e opiniões, o que faz os membros da comunidade pensarem
melhor sobre suas convicções ao mesmo tempo em que tentam considerar as convicções dos
demais. Isso é importante, porque é apenas com o desequilíbrio de pensamento que provoca no
indivíduo o engajamento por buscar respostas. Na perspectiva de Lipman e de seus
colaboradores (2001, p. 52), quando se trata de problemas filosóficos, esse desequilíbrio é mais
provável ainda, pois “a filosofia implica precisamente esse permanente esforço de lidar com
questões que não permitem nenhuma solução simples, e que exigem contínuas reformulações”.
Os estudantes serão incentivados a refletir sobre as colocações dos colegas, construir ideias
sobre essas colocações, contrapô-las, defendê-las com a busca ou exigência de razões e
explicações para fundamentá-las ou descartá-las. Nesse sentido, as colocações dos estudantes
são colaborações para a resolução do problema filosófico. Para o fechamento da discussão
Lipman (2008a) sugere a síntese da discussão, porém, as respostas ao problema não devem ser
colocadas como únicas e absolutas.
A parte metodológica do Programa de Filosofia Para Crianças e Jovens é apenas uma
parte da proposta, como veremos a seguir, Lipman desenvolveu um vasto currículo de filosofia
como pesquisa colaborativa. Nesse currículo, cada série, desde as séries iniciais com crianças,
75
4.3 O projeto de filosofia para crianças e jovens como iniciação ao processo de pesquisa
filosófica colaborativa desde as séries iniciais
Lipman (1990) demonstra ter grande atenção à educação das crianças. Para ele, é infeliz
a educação que fecha as portas das crianças à filosofia. Pois as crianças e a filosofia
compartilham o mesmo espírito de especulação e deslumbramento quando tentam entender os
aspectos estranhos que estão além da superfície das coisas e das experiências. Sobre essa ideia
Lipman comenta em sua conferência, intitulada Filosofia Para Crianças e o Ensino do
Pensamento33(1991), que ao longo do tempo, os adultos não alimentam o espírito de
questionamento e de busca pelo significado de suas experiências. Assim, os fenômenos, os
detalhes mais profundos e complexos das simples experiências passam despercebidos, e o
adulto assume uma postura cognitiva passiva diante das coisas, das ações e das ideias. Ao
contrário disso, os filósofos e as crianças demonstram o mesmo deslumbramento e inquietação
com a complexidade profunda das coisas. Para Lipman (1991, p. 10, tradução nossa)34, além da
superfície das coisas há “alguma inspiração louca”, algum significado, um aspecto mágico e
extraordinário das coisas e das experiências “que só filósofos e crianças notaram até agora”. As
crianças acham o mundo interessante, maravilhoso e enigmático quando não encontram uma
explicação fácil para o que ele representa. Perguntas simples, mas com um vasto significado,
são feitas pelas crianças toda hora, por exemplo: por que determinada relação tem esse
significado e não outro? O que é um significado? O que é uma relação? Por que temos que agir
desse modo e não de outro? Como é possível o corpo das pessoas crescer? Para onde vai o nosso
pensamento quando dormimos? Como são os lugares quando não os observamos? Por que os
animais não falam como as pessoas? O que é a amizade?
O que não tem nenhuma explicação ou que tem uma ampla rede de significado como
essas perguntas move a curiosidade das crianças e elas sentem prazer ao se colocarem na
condição de investigadoras para descobrir e explicar os fenômenos. Segundo Lipman (1991),
as crianças são perseguidas pelos seus próprios pensamentos, esses são uma parte delas e elas
percebem que são enigmáticos. Talvez não exista inquietação mais filosófica que as interfaces
33
Essa tradução é nossa, o título original da conferência é: Philosophy for Children and the Teaching of Thinking.
34
Citação original: “[...] deep down there is some crazy inspiration to it all that looks beneath the surface of things,
and then sees the bewitchedness and the extraordinary uncanny aspect of things that only philosophers and children
have hitherto noticed”.
76
do pensamento humano. Por essa característica natural das crianças e da filosofia, Lipman e
seus colaboradores (2001), afirmam que as crianças não só são capazes de desenvolver
comportamentos filosóficos ao fazer filosofia como também elas acham prazeroso fazê-la.
Conforme Tonieto (2007, p. 41), Lipman ainda nos mostra que a relação entre as disciplinas e
a filosofia é demonstrada nas perguntas das próprias crianças. Essas perguntas manifestam a
busca por conceitos amplos e gerais que só a filosofia pode ajudar a resolver, como por
exemplo, “o que é um número?” “o que é o colonialismo?” “o que é gravidade”, “o que é uma
explicação?”. Por isso, “talvez em nenhum outro lugar a filosofia seja mais bem vinda do que
no início da educação escolar [...] (LIPMAN, 1990, p. 20).
É evidente que Lipman (1990), ao persistir na ideia de trazer a filosofia para as crianças
desde as séries iniciais, não está considerando que deve-se ensinar as crianças os sistemas
complexos e eruditos da história da filosofia que são vistos normalmente em universidades.
Seria realmente inoportuno e exaustivo para as crianças conhecer os vastos e abstratos sistemas
filosóficos. Por outro lado, a filosofia pode ter um significado educativo muito maior para as
crianças quando apresentada em seu modo simples e característico como espírito crítico de
busca, descoberta e invenção. Por isso, a necessidade de tradução dos pensamentos filosóficos
para linguagens acessíveis e a apresentação da filosofia como pesquisa filosófica colaborativa.
Isso mostra, que a filosofia pode ser simples e ligada com as experiências do ser humano. Desse
modo, está bem longe de não proporcionar experiências educativas.
Outro contraponto à ideia de trazer a filosofia para crianças, conforme nos lembra
Lipman, são os argumentos que recorrem às menções do filósofo Platão no livro sétimo da
República quanto ao ensino de filosofia aos jovens. Lipman (1990) questiona se realmente
Platão considerou a filosofia inadequada para os jovens. Após uma análise minuciosa da
questão, o autor explica que Platão condenou o ensino de filosofia reduzido a retórica em que
é ensinado os jovens imitarem comportamentos filosóficos mas que na verdade são
comportamentos que apenas se valem da disputa de ideias, argumentação e refutação sem
preocupação colaborativa com a questão filosófica. Portanto, o que Platão condenou “não era a
prática de filosofia pelas crianças enquanto tal, mas a redução da filosofia aos exercícios
sofísticos na dialética ou retórica, cujo os efeitos sobre as crianças seriam particularmente
devastadores e desmoralizantes” (LIPMAN, 1990, p. 31). Não que seja necessário banir a
argumentação e a refutação no ensino das crianças. O que é posto em questão é transformar a
sala de aula em disputas argumentativas. Praticamente, no ensino de filosofia proposto pelo
Programa Filosofia Para Crianças e Jovens, os estudantes são estimulados a argumentar e
refutar teorias se assim for entendido que é o exercício de pedir e explicar em que razões e
77
35
Porém não significa dizer que o módulo não tem em vista desenvolver o pensamento criativo e avaliativo, a
proposta dos sete módulos é promover a fusão desses pensamentos.
80
suposições. No entanto, sobre a questão da escrita, Lipman (1990, p. 145) nos lembra que a
escrita adequada não só envolve habilidades de raciocínio como também envolve apreciação e
arte: “considerações como graça e surpresa, textura e ritmo, paixão e inteligência”. Portanto, no
entender do autor, o campo da filosofia que tem mais a acrescentar com o desenvolvimento
desses aspectos é a área de estética. No módulo de investigação estética, considerando as
habilidades que possibilitam a relação do pensamento com a escrita, Lipman (1990) sugere que
há uma série de temas a serem trabalhados, como a natureza da experiência, a relação da arte
com a experiência, a relação do pensamento com arte, a relação do pensamento com a escrita,
atenção, relações estéticas, perfeição e exatidão, e os significados.
7. Marcos e o módulo da investigação social
Marcos é uma novela filosófica que tem como público alvo os jovens de 2º e 3º ano do
Ensino Médio e da Educação de Jovens e Adultos. Publicada a sua segunda versão em 1980,
porém ainda não traduzida para a língua brasileira, trata-se de um modelo narrativo pertencente
ao módulo filosófico de investigação social o qual procura abordar temas ligados às área de
filosofia social e política como, por exemplo, temas ligados aos aspectos da sociedade,
organização social, comunidade e comportamento humano. Algumas das habilidades a serem
desenvolvidas por esse módulo, destaca-se “praticar a democracia”, ser “solidário” “respeitar
regras” “reconhecer e exercer direitos” e dar e solicitar boas razões (KOHAN, 1998, p. 96). Nas
palavras de Lipman (1990) um currículo de estudos sociais deve ser pensado como uma
educação que possibilite os estudantes a pensar de modo reflexivo sobre as leis, o governo, as
instituições sociais, a comunidade, a natureza humana, a liberdade e a justiça. Portanto, o
módulo da investigação social propõe que o estudo social não é uma questão de meramente
tornar o aluno familiarizado com as civilizações, com as instituições e as regras sociais. A
proposta de investigação social descrita por Lipman (1990, 136) salienta que é importante que
os estudantes saibam “compreender e identificar as situações sociais em que se encontram” e
relacionar com aquelas civilizações, instituições e regras que foram conhecidas e estudadas nas
aulas. Outro aspecto importante, é que as habilidades de pensamento dos alunos devem ser
exercitadas, estimuladas e reforçadas constantemente. Assim, Lipman categoriza que um
currículo de estudos sociais adequado deveria:
Nesse sentido, Marcos e o módulo da investigação social, que assim como os outros,
traz para os estudantes de ensino médio a pesquisa colaborativa filosófica e o desenvolvimento
das habilidades cognitivas sem deixar de lado os conhecimentos humanísticos e sociais tratados
pela história da filosofia. Desse modo, seria um erro supor que a proposta de ensino de filosofia
de Lipman é pensada apenas para as crianças de ensino fundamental ou é uma proposta que
desconsidera o conhecimento humanístico elaborado ao longo da história da filosofia. O que
acontece, é que os módulos de investigação, os planos, as habilidades e as narrativas filosóficas
são elaborados de acordo com a faixa etária dos estudantes em cada etapa de ensino. Por
exemplo, as crianças pequenas pouco se interessariam por saber sobre quem foram os filósofos,
embora, na forma de narrativas, a proposta do programa de ensino de filosofia de Lipman traduz
a investigação e os conhecimentos que os filósofos desenvolveram. Ao longo do processo, o
qual é contínuo da educação infantil à educação superior, o nível de complexidade aumenta e
as abordagens filosóficas que a proposta traz se avançam e se englobam em um esquema
pensado em que os módulos se complementam e produzem redes de relações entre eles no
currículo de ensino de filosofia. Nessa perspectiva, quanto a questão da investigação filosófica
colaborativa e as novelas filosóficas na educação média, Lipman e seus colaboradores (2001,
p. 81) salientam que “o currículo para o 2º grau deveria ser formado por uma série de
abordagens que representassem uma área de especialização filosófica mais avançada. Novelas
distintas, cada qual com o seu próprio manual, deveriam ser criadas nas áreas de ética,
epistemologia, metafisica, estética e lógica”.
Em síntese, cada um dos sete módulos de investigação desenvolvidos por Lipman e
colaboradores prepara os estudantes para pensar nos subsequentes. Todas as habilidades de
alguma maneira são privilegiadas em todos os módulos, mas em cada um há enfoques diferentes
os quais são preparações para as próximas etapas. Por exemplo, o primeiro módulo, a
investigação criativa e imaginativa apresenta Elfie, narrativa que “focaliza o fazer distinção,
conexão e comparação, habilidades que preparam o caminho para o tratamento mais sofisticado
de classificação e comparação encontrados em Pimpa” (LIPMAN, 1990, p. 169). Assim
acontece com os próximos, a investigação lógica pressupõe que anteriormente os alunos tenham
desenvolvidos habilidades de investigação analógica e conceitual, a investigação ética
pressupõe as anteriores como a lógica e assim acontece com as demais. Lipman (1990; 2000b),
afirma que essa organização é dada de forma lógica, um valor normativo para organizar e
83
É quase que um consenso geral a ideia de que o texto é um grande aliado do professor
para trazer aos estudantes uma forma de melhor compreensão sobre os temas da filosofia. No
entanto, é recorrente ser posto em questão o seguinte: que tipo de texto? em que momento
abordá-lo? qual é a sua necessidade?
Na metodologia da pesquisa filosófica colaborativa do Programa de Filosofia Para
Crianças e Jovens, o texto pode ter uma finalidade especial, a de motivar os estudantes a
engajarem-se pela dúvida filosófica. Nessa perspectiva, na interpretação de Lipman (1990), os
textos em forma de romances e narrativas filosóficas são uma exigência crucial para motivar os
estudantes a formarem comunidades de investigações filosóficas. Uma forma de fornecer esses
textos é dramatizar a filosofia. Nessa proposta, dramatizar a filosofia significa “[...] situá-la
84
dentro da modalidade de narrativa ficcional” (LIPMAN, 1998, p. 113). Essa é uma forma de
tradução das discussões filosóficas das diversas áreas da filosofia para uma linguagem comum,
acessível e divertida para as crianças. Mas não apenas isso, as novelas que compõe o projeto
lipmaniano de filosofia sustentam a hipótese de “o texto que dá início ao processo de pensar
deve ser ele mesmo um modelo desse processo” (LIPMAN, 2008a, p. 313). Ao ser dessa
maneira, é mais propício que as crianças pensem melhor e se engajem na pesquisa filosófica
colaborativa quando elas têm acesso a modelos fictícios de investigação que representem
crianças da mesma idade envolvidas com o questionamento e com a pesquisa em grupo. Esses
modelos devem mostrar aos educandos as formas práticas de encontrar o pensamento filosófico
nas experiências que eles têm com o mundo. Portanto, a pressuposição sobre as novelas
filosóficas, é que essas ilustrem os conceitos ou relações de cunho filosófico sendo aplicados
pelas crianças fictícias da história em suas próprias práticas. Também demonstrem o
movimento cognitivo que essas crianças fictícias realizam, movimentos e comportamentos de
busca, descoberta, invenção e de incorporação da perplexidade diante das problemáticas
filosóficas. Essa organização é pensada de forma à provocar a dúvida, ajudar as crianças a
construírem e reconstruírem experiências educativas e terem exemplos de como desenvolverem
ou iniciarem seus próprios processos de questionamentos e pesquisas.
Para a elaboração da literatura filosófica para as crianças, Lipman (2008a) sugere a
mudança da natureza do texto. Assim, ao invés de textos descritivos na terceira pessoa, é
necessário centrar a atenção em textos narrativos na primeira pessoa. Ao invés de textos em que
se apresente o conhecimento filosófico “mastigado” para as crianças e jovens, é viável utilizar
textos enigmáticos que iniciem o processo de investigação, de dúvida e invenção que deu
origem a este ou aquele conhecimento. Consequentemente, esse movimento de
problematicidade dá vida ao processo de discussão das problemáticas envolvidas. No entanto,
isso não sugere que ao longo do processo de ensino não se possa utilizar textos descritivos ou
que não se possa fundir a narração com a descrição, contudo, o ponto inicial é a história em
narrativa e dramatizada a qual pode-se denominar de texto dialógico. Essa condição é
importante, porque segundo a proposta lipmaniana, o texto dialógico não se coloca como
superior ou como uma autoridade cognitiva a qual descreve ao leitor a verdade que ele deve
seguir e abstrair, o que permite a afirmação de que no texto dialógico o leitor e o texto pensam
e questionam juntos, onde o leitor se identifica com o drama filosófico que o personagem vive.
Isso é possível, porque o texto dialógico apresenta ambiguidades, insinuações, ironias,
problematicidade que não só se esgotam por si só com uma resposta e não são tão claros, então,
85
programa de filosofia escritas para fins de tal proposta. Portanto, são uma parte da ideia do
programa.
É possível que o programa de filosofia para crianças e jovens como uma proposta de
educação para o pensar não se concretize de fato se não for compreendida pelo professor e
também se não for compreendido que o papel do professor é o ingrediente principal dessa
proposta. Como nos lembram Lipman e seus colaboradores (2001, p. 120), “o currículo de
Filosofia para Crianças não foi, de modo algum, planejado para não depender dos professores”.
O professor deve ser um sujeito consciente de que faz parte da comunidade de investigação e
deve compreender o seu papel e a sua prática para trazer à tona a educação reflexiva e filosófica.
A respeito dessa questão, uma primeira coisa a ser sublinhada é a existência do dilema teoria
ou prática: ou seja, para um professor ser realmente competente em uma disciplina, cujas as
metas é educar para o pensar, é necessário dominar os aspectos teóricos quanto ao
conhecimento que deve trazer a disciplina e as maneiras pelas quais a educação reflexiva pode
se concretizar em sala de aula ou dominar a prática do fazer isso acontecer.
Nos dizeres de Lipman (2008a, p. 30), “se não formos capazes de compreender a prática
– as maneiras em que a educação reflexiva pode de fato ocorrer na sala de aula – poderemos
ser, muito provavelmente, vítimas dos mal-entendidos, assim como aqueles cujas vidas são
cheias de prática e vazias de teoria”. Isso significa que no contexto em que a educação reflexiva
é sistematizada, não existe o dilema teoria ou prática, as duas são necessárias e uma corrobora
a outra. A prática vazia de teoria é insuficiente assim como a teoria vazia de prática. Também
essa questão vale para todo o campo do processo educacional e no campo da docência de
filosofia não é diferente. O professor de filosofia empenhado em desenvolver nos estudantes a
atitude do pensamento investigativo e filosófico por meio do Programa de Filosofia Para
Crianças e Jovens tem que ter competências filosóficas e competências pedagógicas. Isso
equivale a afirmar que o professor deve dominar o conhecimento filosófico básico das diversas
subáreas da filosofia necessário ao exercício de ensino na disciplina de filosofia. Não obstante,
o professor “não só deve saber filosofia, mas deve também saber como introduzir esse
conhecimento [de forma adequada e] no momento adequado [...]” (LIPMAN; SHARP;
OSCANYAN, 2001, p. 119). Por assim dizer, segundo Lipman e seus colaboradores (2001), o
papel atribuído ao professor na comunidade de investigação filosófica é o de mediador ou
87
professores sejam ensinados da mesma forma ou em um mesmo modelo de como eles irão
ensinar, isso é, os professores devem ser ensinados em um modelo reflexivo e de investigação.
Um outro problema, que é delineado por Lipman (1990) sobre a formação do professor
na abordagem tradicional, é que houveram tempos em que deu-se muito enfoque no
conhecimento do conteúdo da disciplina e tempos em que deu-se muito enfoque para o
treinamento dos professores de modo que eles dominem os métodos de ensino. O problema do
primeiro enfoque é que muitos professores podem dominar um vasto número de conhecimentos
de uma disciplina mas que não sabem como ensiná-los (vazio da prática) e o problema com o
segundo enfoque é ter “professores bem treinados em ‘método de ensino’ mas que não sabiam
suas matérias” (vazio de teoria). Sobre essa questão, o autor ressalta que é o momento de pensar
a formação de modo a “encontrar o equilíbrio entre método e conteúdo educacional” (LIPMAN,
1990, p. 174-175).
Assim o paradigma educacional da educação para o pensar e o programa de filosofia
para crianças e jovens como uma proposta de educação para o pensar não só implicam em uma
questão de repensar a natureza da filosofia e o significado que ela comporta para a educação
assim como repensar a educação básica e o seu currículo teoricamente e metodologicamente,
implicam em repensar a formação do professor e do professor filósofo, no equilíbrio entre
método e conteúdo, estendendo-se esse compromisso aos cursos de formação de professores,
às pesquisas educacionais e filosóficas e à universidade.
89
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
ambas eram apontadas e descritas nos escritos de Matthew Lipman. Porém, ao longo do
desenvolvimento da presente produção, das leituras, releituras e sistematizações foi possível
descobrir que o programa de filosofia para crianças e jovens e a educação para o pensar não são
a mesma coisa, embora os princípios teóricos que as justificam estabelecem entre essas duas
uma relação de semelhança e complementaridade uma da outra. Conclui-se, portanto, que por
trás do programa de filosofia para crianças e jovens de Matthew Lipman há uma ampla proposta
de educação que não apenas vale para o ensino de filosofia como também para todo o campo
educacional. Essa proposta é colocada pelo paradigma da educação para o pensar ou paradigma
reflexivo da prática crítica. Esse paradigma é um modelo educacional que nasce da insatisfação
quanto à possibilidade pedagógica da educação tradicional em desenvolver um pensamento
mais elaborado e autônomo. O paradigma da educação para o pensar se opõe ao paradigma
tradicional de educação propondo uma mudança teórica-metodológica nas concepções de
formação de professores, concepções de materiais didáticos, de ensino e construção do
conhecimento, desenvolvimento das habilidades de pensamento e metodologia de ensino.
Enquanto o primeiro propõe uma educação centrada em desenvolver nos estudantes a postura
intelectual do pensamento autônomo, o último não consegue atingir esse objetivo com
qualidade, porque a sua teoria e metodologia são restritas à transmissão de conteúdos os quais
são detidos por cada disciplina. Para essa transmissão, são selecionados conhecimentos
específicos ou produtos de determinadas áreas de investigação e classificados em disciplinas.
No entanto, essa classificação é fechada tornando o conhecimento fadado a ficar em uma
redoma que o torna fragmentado de modo que perde o significado, pois a possibilidade de fazer
relações entre os conhecimentos das diversas disciplinas é comprometido. Esses conteúdos
fragmentados são transmitidos aos estudantes por uma concepção de relação assimétrica entre
professor e aluno, onde o professor é quem sabe e o aluno é quem recebe esse saber. Nesse
modelo de educação, não há aprendizagem significativa nem desenvolvimento do pensamento
autônomo e quem é educado nessas proporções julga que sua experiência com o processo de
educação é desconexo de sua realidade. Nesses moldes, a educação é reconhecida como
irrelevante e desmotivadora. Esse reconhecimento por parte dos estudantes é apenas um dos
sintomas que o modelo educacional tradicional provoca, pois, além disso, há pouco incentivo
para o desenvolvimento das habilidades de pensamento necessárias para o bom
desenvolvimento da leitura, cálculo, escrita, expressão e interpretação.
Uma vez identificado que o paradigma educacional tradicional é deficitário, Lipman
supõe a necessidade de repensar a educação, apontando o paradigma da educação para o pensar.
Esse paradigma traz implicações teóricas e metodológicas quanto ao modo de ensino, como se
91
entende por ensino, o papel do professor e a forma como se deve pensar o currículo escolar e a
formação dos professores. Assim, na educação para o pensar, a proposta é desenvolver nos
alunos um pensamento mais crítico e cuidadoso, criativo e avaliativo, a fusão desses
pensamentos resulta em um pensamento multidimensional ou de ordem superior. Ou seja,
resulta em um pensamento com conteúdo e procedimentos, ambos esses dois elementos
manifestam criação, cuidado e autocorreção ancorados em regras, razões e critérios. Tendo em
vista o desenvolvimento desse pensamento, a proposta teórica e metodológica da educação para
o pensar figura a ideia de transformar o processo de ensino e aprendizagem em uma iniciação
ao processo de investigação em comunidade na qual a forma de investigação é o diálogo, ou
seja, é a colaboração rumo à descoberta e invenção. As concepções de relação entre aluno e
professor, conhecimento e aluno também são dadas pela concepção de diálogo, o que equivale
a dizer que o diálogo não é apenas uma metodologia, sua significação teórica abrange todo o
processo educacional, desse modo, é um elemento teórico que guia a educação para o pensar.
Sendo dessa forma, o paradigma da educação para o pensar nos propõe um pensar em todo o
campo da educação, visto que a proposta de iniciar os alunos ao processo de pesquisa pelo
diálogo rumo a desenvolver o pensamento multidimensional é proposto para todas as
disciplinas seja a filosofia, a história, a matemática e implica na formação dos professores, na
seleção e escrita de novos materiais didáticos, no consenso entre a necessidade de equilíbrio
entre conteúdo das disciplinas e iniciação ao processo de pesquisa.
Os elementos teóricos que constituem o referido modelo educacional tem bases
educacionais filosóficas nas ideias de John Dewey, quem propõe que a educação deve ser
reconstruída rumo a torná-la uma proponente de investigação para formar pessoas
pesquisadoras e autônomas que pensam de modo reflexivo na sociedade. E bases científicas em
referência a teoria da comunidade de investigação dos cientistas e da dúvida como princípio
para todas as investigações do filósofo e cientista Charles Sanders Peirce. Ambos os autores
contribuíram com a defesa de Lipman sobre o modelo educacional da educação para o pensar.
Tendo como base o paradigma da educação para o pensar, Lipman cria o programa de
filosofia para crianças e jovens a partir da compreensão de que a filosofia quando ensinada de
modo correto e reconstruída de modo adequado, pode ser uma contribuição ou um exemplo de
educação que é dialógica e que inicia os estudantes ao processo de pesquisa. Nesse sentido, o
programa de filosofia para crianças e jovens é alicerceado em dois pilares, o primeiro no grande
pilar do paradigma da educação para o pensar e o segundo na capacidade da própria filosofia.
Esses dois pilares se relacionam pelo seguinte motivo: a filosofia possui características próprias
como, o modo como ela consegue provocar a reativação da dúvida constante, o diálogo o qual
92
REFERÊNCIAS
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