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ISAAC DEUTSCI II 1 1�

- autor de

Trotski - O Profeta Armado


Trotski - O Profeta Desnrmudo
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Kruschev, a reação contra ela e
as perspectivas atuais do movimento
operário.
Trata�se de obra de análise e crítica que muito
contribui para o esclarecimento de fatos que
repercutiram e perturbaram o mundo.

MAIS UM LANÇAMENTO DE CATEGORIA DA

CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
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, A REVOLUÇÃO
.INACABADA A REVOLUÇÃO INACABADA
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1
Em A Revo.'ução Inacabada, Isaac Deuts­
;cher procura esclarecer a marcha dos t
acontecimentos sociais e políticos, m. União
Soviética, que vai de 1917 a 1967. São r1
cinqüenta anos de revolução e de ação
construtora do mundo socialista. •.•
Isaac Deutscher é, sem dúvida, um dos
maiores conhecedores da história da re­
volução de 17 e dos homens que a con­
duziram à vitória e consolidaram o poder
soviético. Gozando de absoluta indepen­
dência, sem sujeitar-se a nenhuma orga­
nização partidária, pôde entregar-se a um
longo e paciente trabalho de pesquisa, de
exame e de análise que o levou a escrever
algumas das obras históricas mais impor-
tantes de nossa época.
A trilogia sôbre Trotski - O Profeta
Armado, O Profeta Desarmado e O Pro­
feta Banido - acompanhada da biografia
· de Stalin e de vários outros trabalhos, cons­
tituem uma obra monumental cuja leitura
é de todo imprescindível para o conheci­
mento seguro e imparcial, livre de qual­
quer falsificação ou de interpretação ten­
denciosa, do que se passou, na Rússia,
desde a fundação do Partido Social De­

í'
mocrático até a formação do govêrno atual,
após a queda de Kruschev.
Isaac. Deutscher morreu em 1967, su­

1
bitamente, quando escrevia a vida de
Lênin que seria o comp'.emento, preen­
chendo várias lacunas, de sua obra ante­
rior. A biografia de Lênin ao lado das
biografias de Trotski e de Stalin dariam
uma visão completa de um período histó­
rico tumultuoso e fascinante.

!1
il
A importância da obra de Isaac Deuts• ,
cher está no fato de ter permanecido fiel ·
à interpretação materialista da história.
Falando sôbre os críticos que o acusavam
de "marxista impenitente", Isaac Deutscher
declarou: "Sou marxista, decerto. . . O
marxismo, para mim, não é uma teoria in­
falível. Isto não pode existir. Porém,
como visão do mundo e método de análi­
se, o marxismo, em minha opinião, não
está em nenhum aspecto absoluto ou su­
perado. Provàvelmente, isto acontecerá
algum dia também com êle, mas ainda es­
tamos muito Ionge disso. As pessoas que
falam hoje sôbre 'marxismo anacrônico'
ainda não nos ofereceram nada que lhe
seja intelectual e politicamente superior."
Somente um marxista poderia escrever
a obra que êle escreveu.
A Revolução Inacabada focaliza com ori­
ginalidade e segurança alguns problemas
em foco da revolução russa e de nosso
tempo. Problemas ainda não resolvidos
que exigem um exame científico e não <,',
uma explicação emocional ou burocrática.
A revolução iniciada na Rússia permanece
inacabada. Não se pode isolar a Rússia
do resto do mundo.
Isaac Deutscher estuda a correlação entre
a revolução chinesa e a revolução russa,
o papel histó.rico de Mao Tsé-tung, a sig­
nificação política da desestalinização rea­
lizada por Kruschev, a reação contra ela
e as perspectivas atuais do movimento
operário.
Exercendo uma forte sedução sôbre os
leitores pela luminosidade de seu estilo,
Isaac Deutscher apresenta uma revolução
inacabada, mas que tem sentido perma­
nente.

EDMUNDO MONIZ
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PERSPECTIVAS DO HOMEM ISAAC DEUTSCHER


Volume 40
Série História
DrneçÃo DE MoACYR FELIX
.! 1:

A Revolução
Inacabada
(RÚSSIA 1917-1967)


1

Conferências do Curso George Maca ulay Trevely


an

Proferidas na Universidade de Cambridge


Janeiro-Março de 1967

Tradução de
ÁLVARO CABRAL

1:
civilização
brasi leira
1

(
Lk•°J /'o(.'l�MSl L�
z_oz..o
Do original em inglês
THE UNFINISHED REVOLUTION
RUSSIA 1917-1967
publicado pela
OXFORD UNIVERSITY PRESS
Ely House, London W.1

Copyright © 1967 by lsaac Deutscher

Agradecimentos
Desenho de capa:
MARIUS LAURITZEN BERN

Diagramação e superv1sao gráfica:


ROBERTO PONTUAL
Estas conferências são aqui publicadas tal como nunciei
na Universidade de Cambridge em janeiro-março de � 1967 Nutro
Do Autor, publicados por com carinho a recordação da calorosa recepção que me oi dispen­
esta Editôra: sada na Universidade por parte de audiências extraordinàriamente
TROTSKI - o PROFETA' ARMADO
atentas, dos diretores do Curso Trevelyan e, em particular, do rei­
TROTSKI - o PROFETA DESARMADO
tor de Peterhouse, do reitor, vice-reitor e corpo docente do Christ's
TROTSKI - o PROFETA BANIDO
College.
A sair: Estou grato a minha mulher pelas idéias sôbre o modo como
IRONIAS DA HISTÓRIA tratar, no âmbito de seis conferências, os grandes e complexos pro­
blemas de meio século de História Soviética. Ela ajudou-me a dar
clareza à difícil composição dêste exame; aquelas faltas que os
leitores indubitàvelmente encontrarão devem-se em exclusivo a mim
Direitos para a língua portuguêsa adquiridos pela próprio . Confesso-me agradecido ao meu amigo, o Prof. E. F. C .
EDITôRA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S . A. Ludowyk, pela compreensão crítica e a paciência com que leu o
Rua 1 de Setembro, 91 manuscrito; e meus agradecimentos são ainda devidos aos Srs.
RIO DE JANEIRO John Bell e Dan M. Davin, por suas úteis sugestões para aperfeiçoa­
que se reserva a prÓpriedade desta tradução. mentos.

1968

Impresso no Brasil
Printed in Brazil
1 ISAAC DEUTSCHER

Londres
março de 1967
,
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Índice

1. A PERSPECTIVA HISTÓRICA 1 ü

2. QUEBRAS NA CONTINUIDADE REVOLUCIONÁRIA 19 0

3. A ESTRUTURA SOCIAL 37
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INDECISÃO NA LUTA DE CLASSES 57/:::J
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5. A UNIÃO SOVIÉTICA E A REVOLUÇÃO CHINESA 75

6. CONCLUSÕES E PERSPECTIVAS 93
I

A Perspectiva Histórica

QUAL É o significado da Revolução Russa para a nossa


g•eração e época? A Revolução realizou as esperanças que sus�
citou ou não o conseguiu? É natural que essas interrogações
sejam formuladas de nôvo, agora que meio século passou
desde a queda do tzarismo e o estabelecimento do primeiro
govêrno soviético. A distância que nos separa dêsses aconte,,.
cimentos parece suficientemente longa para produzir uma pers�
pectiva histórica. No entanto, talvez seja ainda curta demais. 1
Trata�se da época mais agitada e catastrófica da Hisg,ria
mõêferna. A Revolução Russa suscitou questões muito mais
profundas, rovocou conflitos muito mais violentos e desen�
ca eou ôr as muito mais vastas o ue tu o o que estêve
;, envolvido nas maiores convu sões sociais o passa o. a e�
volução de maneira nenhuma já chegou a seu têrmo final.

' 1
Está ainda em marcha. Poderá surpreender-nos por suas vio­ ram em 1917 foram-se extinguindo; e, certamente, por essa
lentas e súbitas reviravoltas. É capaz de redefinir suas pró­ altura, seus filhos e netos já disseram adeus às possessões dos
prias perspectivas. O terreno onde ·estamos penetrando é da­ ancestrais, mesmo em sonhos. As fábricas e minas que seus
queles que os historiadores têm mêdo de Ri§ar ou o fazem pais e avós uma vez possuíram, são uma parcela diminuta _da
amedrontados. · indústria soviética que desde então foi criada e desenvolvida
Para começar, temos o fato, que todos consideramos sob o regime de propriedade pública. A Revoluç.ão parece t :r
ponto assente, de que os homens que atualmente governam _
sobrevivido a todos os possíveis agentes de restauraçao. Nao _
a União Soviética descrevem-se a si próprios como descen­ só os partidos do antigo regime mas, também, os menchev1-

dent•es le ítimos do Partido Bolchevista de 1917. Contudo, ques e os revolucionários sociais, que domi�aram o �ena�10
essa circunstância dificilmente evena ser tomaaa por axio­ põITiico entre fevereiro e outubro de 1917, deixaram mu1�0
mática. Em nenhuma das revolu ões modernas com aráv ·s de existir mesmo no exílio, mesmo como sombras deles ro­
com a convulsão na Rússia existe um recedente. enhuma p_tiQs. Sómente o Partido que o teve a vitória na insu�reíção
de as urou me10 século. Nenhuma delas manteve umacon­ de outubro ainda está aí, com todo o seu poder multiforme,
tinuidade comparável, mesmo relativa, nas instituições polí­ governando o país e ostentando a bandeira e os símbolos de
ticas, na política econômica, nos atos legislativos •e tradições 1917.
ideológicas. Pense-se apenas no aspecto que a Inglaterra apre­ Mas s·erá ainda o mesmo Partido? Poderemos realmente
sentava cinqüenta anos depois da execução de Carlos 1. Por falar da continuidade da Revolução? Os ideólogos oficiais so­
essa altura, o povo inglês, tendo vivido sob o r•egime da Co­ viéticos proclamam que a continuidade jamais foi quebrada.
munidade, do Protetorado e da Restauração, e tendo deixa­ Outros dizem que só foi preservada em sua forma externa,
do para trás a Gloriosa Revolução, estava tentando, sob o como uma concha ideológica ocultando realidades que nada
govêrno de William e Mary, pôr em ordem - ou até. esque­ têm em comum com as elevadas aspirações de 1917. A ver­
cer - tôda •essa rica e tempestuosa experiência. E nos cin­ dade parece ser, em minha opinião, mais complexa e ambígua
qüenta anos que se seguiram à destruição da Bastilha, os do que o sugerido por essas asserções conflitantes. Mas su­
franceses derrubaram sua velha monarquia, viveram sob a ponhamos, por um momento, que a continuidade é mera apa­
República Jacobina, o Termidor, o Consulado, o Império; viram rência. T•eremos de perguntar ainda o que fêz com que a
o regresso dos Bourbons e derrubaram-nos de nôvo para co­ União Soviética se apegasse a ela tão pertinazmente? E como
locar Luís Filipe no trono, cujo reinado burguês, no final da poderá uma forma vazia, não sustentada por um conteúdo
década de 1830, consumira exatamente metade das novas es­ correspondente, durar tanto tempo? Quando sucessivos líde�
peranças - a revolução de 1848 já assomava na distância. res soviéticos reafirmam sua fidelidade aos propósitos e an­
P2f sua própria duração, a Revolução Russa parece tor­ seios originais da Revolução, não podemos tomar essas de­
nar impossível a repetição de algo que se pareça com êsse clarações pelo seu valor superficial; mas também não as po­
ciclo histórico clássico. E inconcebível que a Rússia chame demos rejeitar como inteiramente irrelevantes.
a1gum dia de volta os Romanovs, ainda que seja apenas para Também neste caso os precedentes históricos são ins­
derrubá-los pela segunda vez. Nem podemos imaginar o re­ trutivos. Na França., a uma distância idêntica de 1789, não
gresso da aristocracia latifundiária russa, como regressou a ocorreria a nen.hum homem no oder a resentar-se como des­
francesa, durante a Restauração, para reclamar as proprieda­ cendente e arat ou Robespierre. A França já quase esque­
des, ou compensações por elas. Os grandes propdetários rurais cera . 0 grande papel criador que o jacobinismo desempenha­
franceses estiveram exilados apenas uns vinte anos; contudo, ra em seu destino - recordava apenas o jacobinismo como o
o país para onde regressaram estava tão mudado que se sen­ monstro ue e tava orãetrás da uilhotina no ·as do Ter�
tiram •estranhos nêle e não puderam recuperar suas glórias ror. õmente alguns outrinários socialistas, homens como
passadas. Os latifundiários e capitalistas russos que se exila- 'Buonarotti ( êle próprio vítima do Terror), trabalharam pela
2 3
reabilitação da tradição jacobina. A Inglaterra há muito fõra de. A herança da Revolução sobrevive, de uma forma ou outra,
empolgada pela sua repulsa contra tudo o que Cromwell e os na estrutura da sociedade e no espírito da nação.
puritanos representavam. G. M. Trevelyan, à dignidade de O tempo é r·elativo, evidentemente, mesmo na História;
cuja obra histórica rendo aqui o meu tributo respeitoso, des­ meio século poderá significar muito e poderá significar pou­
creve como essa "paixão negativa" dominou os esplrltos in­ quíssimo. Também a continuidade é relativa. Pode ser na
glêses, mesmo ainda no reinado da rainha Anne. Desde o verdade, é - semi-real e semi-ilusória. · Está sõlidamente ali­
final da Restauração, escreve êle, o mêdo de Roma renasce­ cerçada mas é quebradiça. 'f.em suas grandes bênçãos mas
ra; contudo, ·'os acontecimentos de cinqüenta anos antes foram também suas maldições. Em todo o caso, dentro do quadro
responsáveis por um mêdo correspondente do puritanismo, A da continuidade da Revolução, quebras profundas ocorreram,
deposição da Igreja e da aristocracia, a decapitação do rei e e espero examiná-los mais adiante. Mas a estrutura é suficien�
as leis rígidas dos puritanos deixaram uma impressão negati­ temente maciça e nenhum historiador sério pode destorcê-la,
va, quase tão formidável e permanente quanto a recordação ignorá�la ou permanecer-lhe imune. Não pode encarar os
da Bloody Mary e Jaime II". A fôrça da reação antipuritana acontecimentos dêste meio século como uma das aberrações
manifestou-se, de acôrdo com Trevelyan, no fato de,· no rei­ da História ou como o produto da maquinação sinistra de um
nado da rainha Anne, "dominar a concepção realista e an­ punhado de homens perversos. O que temos diante de nós é
glicana da Guerra Civil; os whigs escarneciam dela em par­ uma gigantesca, vibrante peça de realidade histórica objeti�
ticular mas só ocasionalmente se atreviam a contradizê-la em va, um des·envolvimento orgânico da experiência social do
público". 1 Certo, tories e whígs continuaram discutindo a res­ homem, u�a rasgada ampliação dos horizontes da nossa época.
peito da "revolução" mas os acontecimentos a que se referiam Refiro-me principalmente, claro, ao trabalho construtivo da
eram os de 1688 e 1689, não os da década de 1640. Dois sé­ Revolução de Outubro e não me desculpo por isso. A Revo­
culos tinham de passar, entrementes, para que os in�ê�q- lução de Fevereiro de 1917 ocupa seu lugar na História
apenas como o prelúdio de Outubro. As pessoas da minha r.
�:çassem a mu�ar de o inião a. res eito da "Gran e Reb -
l l!fil) geração viram muitas dessas "revoluções de fevereiro": vi�
e a falar so re e a com mais res eito - como uma re­
ct rrer para que es­
!'._oluc;;ão; e ainda mais tempo teria deeco mo�Ias, em 1918, em outros países além da Rússia - na Ale�
a
tátua de Cromwell pudesse ser colocada diante da Câmara manha, Áustria e Polônia, quando os Hohenzollerns e os
dos Comuns. Habsburgos perderam seus r•espectivos tronos. Mas quem fa�
lará ho · e em dia da revolu ão alemã de 1918 como um im�
Os russos ainda se aglomeram diàriamente na Praça Ver­ portante acontecimento ormativo ·• te secu o. eixou intata
m_Eha, num espírito de quase veneração religiosa, pa�­ a antiga or em sacia e oi a enas um relúdio para a ascen-
tar o mausoléu de Lênin. Quando repudiaram Stálin e o des­ são do nazismo. Se a Rússia tivesse para o, o mesmo modo,
pejaram do mausoléu, não lhe despedaçaram o corpo, como na Revolução de Fevereiro e produzisse, em 1917 ou 1918,
os inglêses fizeram ao de Cromwell e os franceses aos des­ uma variedade russa da República de Weimar que razão
pojos de Marat; voltaram, tranqüila e silenciosamente, a en­ haveria para supor que nos recordaríamos hoje da Revolução
terrá-lo à sombra da Muralha dos Heróis, junto ao Kremlin. Russa?
E quando os seus sucessores decidiram renegar uma parte de Não obstante, alguns teóric9s e historiadores ainda en�
seu legado, fizeram-no professando que regressavam à origem caram a Revolução de Outubro como um evento quase fortuito.
espiritual da Revolução, os princípios e idéias de Linin. Sem Alguns /;lrgumentaram que a Rússia poderia muito bem ter sido
dúvida, tudo isso faz parte de um bizarro ritualismo oriental poupada à revolução se o tzar fôsse menos obstinado em
mas, subjacente, flui uma poderosa corrente de. continuida- insistir nas suas prerrogativas absolutistas e tivesse chegado
a um acôrdo com a leal oposição liberal. Outros dizem que
1 G. M. Trevelyan, England under Queen Anne, Blenheim, cap. III. os bolcheviques jamais teriam uma oportunidade se a Rússia

4 5
não acabasse envolvida da I Guerra Mundial ou se tlvess,e Não é preciso pressupor que o curso da Revolução Russa
abandonado a tempo a sua participação no conflito, antes da estivesse antecipadamente determinado em todos os seus por­
derrota reduzir o país ao caos e ao desespl!ro. Os bolchevi­ menores ou na seqüência de tôdas as suas principais fases ,e
ques, segundo êsse ponto de vista, triunfaram por causa dos incidentes. Mas a sua direção geral não fôra fixada pelos
erros de cálculo cometidos pelo tzar e seus conselheiros, ou acontecimentos de um par de anos ou meses: fôra preparada
pelos homens que ocuparam o poder imediatamente após n sua pela evolução dos ·eventos de muitas décadas, de várias épo­
queda: e pedem-nos que acreditemos terem sido �sRes erros cas. O historiador que se esforça por reduzir a montanha da
de cálculo e êsses equívocos ocorrências fortuitas, acidentes Revolução a um punhado de contingências, coloca-se diante
individuais de julgamento ou decisão. Que o tzar e seus con­ dela tal qual os líderes políticos que procuraram impedir a
selheiros cometeram muitos erros idiotas é verdade, evidente­ sua erupção.
mente. Mas só os comet,eram sob a pressão dn burocrncia
tzarista e daqueles elementos, na classe prlvHegladu, que Depois de tôdas as revoluções, os seus inimigos põem
tinham seus interêsses ligados à manutenção da monarquia. sem re em dúvida a sua le itimidade histórica - por vêzes
Os governos do regime de fevereiro, os_,9.overnos do Principe tentam fazê-lo mesmo ois ou três séculos mais tar'éle. Per­
Lvov e de Kerens�i, ta_!!!P.Q.1;.l_ço eram age_1_g�J.ly_res. Mantiv,e­ mitam-me que recorde como Trevelyan respondeu aos histo­
ram a Rússia na guerr�orque, tal como osgovernos tzaris­ riadores que ainda duvidav.am se a Grande R,ebelião fôra real­
tãs, de endiam daqu�oderosos centros russos e estran­ mente necessária: "Era então impossível ao poder parlamen­
g:ir�� �o capita1 fin��ceir�� tar ganhar raízes na Inglaterra por menos do que êsse cisma
�- es�a__y��--�frnte�ent,e determi­
gY,
na._'g"_Qª-.�é:!...�ª füsse até ao.Tim.um mem.bro beligei·an­ nacional e apêlo à fôrça ... ? É uma interrogação que nenhu­
te da Entente.Õs · erros de cãÍculo" estavam socialmente con- ma pesquisa ou especulação, por mais profunda, pode resol­
ver. Os homens eram o que eram. imunes à influência da sa­
J dicíOnactÕs. Também é verdade que a guerra expôs e a�a­
vou dràsticamente as debilidades fataisdo anti o re I e. as bedoria tardia da posteridade, e assim agiram. Se um melhor
processo poderia ou não ter levado ao mesmo fim, foi à ponta
i ic1 mente se po eria sugerir sequer que õsse a causa de­
cisiva dessa fraqueza. A Rússia fôra abalada pelos tremores de espada que o Parlamento realmente conquistou o direito a o
revolucionários antes da· guerra: as ruas de Peters r o o­ sobreviver como fôrça dominante da Constituição inglêsa" . 2
briram-se de barricadas no verão e 191 . om efeito, a Trevelyan, que neste ponto segue os passos de Macaulay,
eaôsão das hostilidades e a mobilização aralis Õ­ presta rigorosa justiça à Grande Rebelião, mesmo quando
luç.ão incipiente e retar aram-na por ois anos e m,el9, o que sublinha que deixou a nação "mais pobre e menos digna" du­
apenas serviu para, finalmente, carregá-la de maior fôrça ex­ rant,e algum tempo, o que, infelizmente, num sentido ou noutro,
plosiva. Mes_!!!o gu_?__ Q_Q2�êrno do Principe Lvov ou de K,:e­ também é verdade sôbre outras revoluções, incluindo a russa.
re!l�f !ivess�_.i:_e.!!.!:�sl.2_2...E.ai�_gúerra:Tê-1ci;;fá' füfo s_q!:?.--con­ Ao acentuar que a Inglaterra ficou devendo sua Constituição
dis§§ de... uma_ crJse s�ci2-l tã -ei:Ofün.Oã-·e·grãv·e-� .0J:'ªr­ parlamentar, primordialmente, à Grande Rebelião, Trevelyan
tid2J2olchgyi_�ta__�ié!..Rt9.Y1Y.�-lme�}i véridâo.Làpês-al'. .de _tudo, adota um ponto de vista a longo prazo sôbre o papel dos pu­
se,..�?.<?_gw..J.217, algy_rr.1, .t�ffi.PQ g,e_pois. Isto é apenas uma hi­ ritanos. Foi Cromwell e os puritanos, diz êle, que estabele­
pótese, claro: mas a sua plausibilidade está agora reforçada ceram o 'rincípio da supremacia do Parlamento: e embora
pelo fato de que, na China, o _partido de Mao Tsé-tung <;,9n­ ê es próprios estivessem em esacor o com o prmcípio e pa­

a quistou o poder em 1949, quatro anos depois da Segunga


J C:uerra Mundial. Esta circunstância talvez projet,e uma luz
recessem obliterá-lo, o princípio sobreviveu e triunfou. Os
"bons atos" da revolução puritana duraram mais do que as
retrospectiva sôbre a conexão entre a I Guerra Mundial e a suas loucuras.
Revolução Russa: sugere que essa conexão talvez não fôsse
tão nítida quanto par,eceu na época. 2 G. M. Trevelyan, A Shortened History of England, Livro 4, cap. II.

6 7
...----------------�-- --·•"•- ·--
Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer da Revolução Parece-me que os discíeulos . de_ To�qu_ eville cometem
de Outubro. "Os homens agiram da maneira que agiram uma injusflç_a §lS_eE_mes_tre. Embora ·êle �}":Zasse_a_obra
Pº!.9-1:1�E-ã�odlall!-__ f.§:��:-1.� __<j� __Q!!!!'.9__�Q�o". Nuo podie1m criadora_E:,.<?_Eigin_a�--��-J:sçy_QJ.!l.<;.i!?
copiar seus ideais dos modelos de de1TI_Qç_1::aç1a _ parlamentar da _ ,. nãe> _!}_e_g_o\!_}1. S_llé:i nE:c�_ss\�!1-
de ou 1eg1timTciãde. Pelo contrario,_ ao cofoca-la na trad1çao
EurC>J)��tal. Foi à ponta de espada qu,e � btlv crnm p�a francesa, procurou "adotá-la", segundo seus próprios têrmos
os -Conselhos de Representantes dos Operário� e- Cnmponç_s�s . conservadores, e "incorporá-la" na herança nacional. Os seus
- e para o socialismo - "o direito de sobreviverem_como imitadores manifestam maior zêlo em -���0�_1'.��a_r _a. obra
li fôrça dominante" na Constituição soviética. E embora êles criadora-·eOrI_g!narctã._Revolução Russa do que elll ''é1d9tf!-:-la",
próprios reduzissem os Conselhos de Trabalhadores n uma sejam quais forem os têrmos eséõThidos. Mas ex_aminemos o
existência fantasmagórica, êsses Conselhos, os so,victcs, e suas argumento tocquevillesco mais minuciosamente. E óbvio que
aspirações socialistas, continuaram sendo as parcelas mais sig- nenhuma revoluç.ão sai do nada. Tôdas as revoluções operam
--0 11 nificativas da mensagem da Revolução Russa,_
no meio social que as produziu e com os materiais qu�­
Quanto à Revolução Francesa, sua necessidade foi posta contram nesse meio. "Estamos construindo a nova ordem com ü
em dúvida ou negada por uma longa estirpe de pensadores os tijolos que a antiga ordem nos deixou",. dizia Lênin. Os
e historiadores, desde Burke, temeroso do contllgio jacobino, métodos tradicionais de govêrno, as aspirações nacionais vi-
até Tocqueville, desconfiado de tôda e qualquer democracia tais, um estilo de vida, hábitos de pensamento e vários fa-
(! moderna, e Taine, horrorizado pela Comuna de Paris, e con- tôres de fôrça e fraqueza acumulados - são êsses os "tijo-
,....... ]l tinuando com Madelin, Bainville e seus discípulos, alguns �os los". O passado reflete-se através da obra inovadora da Re­
quais trabalharam depois de 1940, sob os olhares encoraJa­ volução, por mais audaciosas que as inovações possa_m ser.
dores do Marechal Pétain, no s,entido de Hguidar o espectro Os jacobinos e Napoleão continuaram, com efeito, edificando
da Revolução. Curiosamente, de todos êsses escritores, Toc­ o Estado unitário e centralizado que o regime antigo, até certo
queville desfrutou recentemente da maior voga nos palses de ponto, promovera. Ninguém enfatizou isso com mais veemên- P
língua inglêsa. Muitos dos nossos ,estudiosos mais esclareci­ eia do que IGrl Marx, no seu 18th Brumaire, que apareceu
dos tentaram modelar a sua concepç.ão da Rússia contempo­ alguns anos antes do Ancien Régimie, de Tocqueville. E é
rânea pela obra de Tocqueville, L'Ancien H.égimc ct la H.é­ igualmente verdade que a Rússia teve a sua arrancada con-
volution. São atraídos pelo seu argumento de que a Revolu­ creta para a industrialização no reinado dos dois últimos tza-
ção não se afastara radicalmente da tradição política francesa; res, sem o que o rápido ingresso da classe operária no cená-
que se limitara a seguir as tendências básicas que estiveram rio político não seria possível. Ambos os países, portanto, rea­
em ação no regime antigo, em especial a tendência para a lizaram no ancien régime alguns progressos em várias dire-
centralização do Estado e a unificação da vida nacional. Do ções. Isto não significa que o progresso continuass•e sempre
mesmo modo, prossegue o argumento, a União Soviética, na de um modo "ordeiro", sem a gigantesca "perturbação" re­
medida em que tenha alguma realização progressiva a seu volucionária. Pelo contrário, o que estava destruindo o an-
crédito, deu meramente continuidade à obra de industrializa­ cien régime era precisamente o progresso realizado sob o
ção e reforma que fôra iniciada pelo r,egime antigo. Se o tza­ mesmo. Longe de tornar a Revolução supérflua, fê-la ainda
rismo sobrevivesse, ou fôsse substituído por uma república mais necessária. As fôrças do progresso estavam de tal modo
democrática burguesa, essa obra prosseguiria, de qualquer comprimidas no espartilho da antiga ordem que teriam fa­
modo; e o progresso seria mais ordenado e racional. A Rússia talmente de explodir. A luta francesa pelo Estado unitário
poderia tornar-se a segunda potência in?ustrial do mundo fõra um conflito crônico com as barreiras criadas pelos parti­
sem pagar o terrível preço que os bolchevistas cobraram, sem cularismos de origem feudal. A crescente economia burgu_!-
ter de sofrer as expropriações, o terror, os baixos níveis de
vida e a degradação moral do stalinismo.
"'ª da França exigia um único mercado nacional, uma classe
C�mJ)onesa livre, o1ivre trânsito de homens e mercadorias; e
8 9
l,ukhcviqucs tinha a fôrça política e a autoridade moral para
o regime antigo só podia satisfazer essas necessidades dentro
dos mais estreitos limites. Como diria um marxista: as fôrças ohtcr da classe trabalhadora os esforços e sacrifícios que a
produtivas da França cresceram muito mais do que as rela­ Industrialização exigia. Nenhum possuía as perspectivas e
ções feudais de propriedade e já não podiam ser contidas na 111l'ntalidade modernas, a determinação e capacidade que a
1 concha da monarquia Bourbon, que conservava e protegia til refa requeria. ( O Conde Witte, com seus planos ambicio­
essas relações. Hos de reforma, foi a exceção que confirmou a regra: e, como
Primeiro Ministro. e Ministro da Fazenda, foi pràticamente
Na Rússia, o problema era semelhante mas mais com­ boicotado pelo tzar e a burocracia.) Parece inconcebível que
plicado. Os esforços realizados em. tem2:os tzaristas para mo­ qualquer regime não iner•entemente revolucionário fôsse capaz
dernizar a estrutura ·aa-V1cta·-nâciõnãfJ��!D:-:�1.§_gg�q.cJ.9Üe.lo de erguer uma naç.ão camponesa e semi-analfabeta a algo
denso resíduo de feudal. is�o. o subdesenvolvimento e f�Agi­ que se aproximasse sequer do nível atual ôe des•envolvimento
licTade da burguesia, �__J:iíl!g��--?U�QC:r_�t_ic:a, C> . sistema arcaico 1•conômico e educação da Rússia soviética. Neste pontó, o
d�vê�,!_!O e.J'.9.!J!.½:!1!.1.2 .!'.!1.ªê .Jl.�9_II].�Il_Qê_!II].p_e>,r.(ã,:ní�, ·a. ·Í;iepen­ marxista dirá também que as fôrças produtivas da Rússia
dê_!_!C:(�-��<lmka._ ��--Rússia em relação ao capital �strangei- progrediram o bastante, sob o antigo· regime, para estourar
o 1:2: o grande império erà; ·i10 rcinâcto dôS 'iihimOs RQman.QYS, com a antiquada estrutura social e sua superestrutura po­
lltica.
meio império e meio colônia. Acionistas ocidentais detinham
"'

90% das minas russas, 50% da sua indústria química, mais Contudo, não �.§ig �anismo eco.QQ!!!ifQ...l!U.12�?,!i-
de 40% das indústrias metalúrgicas e 42 % das ações de co que R1.'..Qfi!!za a. desmtegração .final de. uma velha ordem es­
bancos. O capital doméstico era escasso. A renda nacional tnbel�ç�_Qfl__QU _garanta O, _êxito_ de... um_a�ã�-Üm ·si�te-
ínfima, em relação às necessidãêles modernãs. rvfais de me­ ma social obsoleto poêlera estar declinando durante várias dé­
tãcief;rovinhiclaTavoura, que era profundamente retrógrada cadas e a maioria da nação não estar sequer cônscia disso. A "
li e pouco contribuía para a acumulação de capital. Dentro de consciência social está sempre em atraso, relativamente ãc;'
· limites, o Estado forneceu, com o dinheiro dos impostos, os 1,er social. As contradições objetivas do antigo regime têm
1 nervos da industrialização; construiu estradas de ferro,. por de traduzir-se em têrmos subjetivos, em idéias, aspirações e
exemplo. Mas, em sua grande maioria, a expansão industrial paixões dos homens que os impulsionem à ação. A essência
dependia do capi@L�anqeirQ.. Contudo, os inv,estidores es­ 11
trangeiros não tinham um interêsse contínuo em reinvestir seus d�_r�_yolução, disse Trotski é "a intervenção direta das massas
elevados dividendos na indústria russa, especialmente quando nos eventos históricos". Por causa dessa intervenção - um
os caprichos de uma burocracia obstinada •e a agitação social fenômeno tãd' real e tão raro na História - é que o ano de
os dissuadia. A Rússia só pôde iniciar sua "arrancada" indus­ 1917 foi tão notável e importante. A grande massa do povo
trial, para usar a expressão do Prof. Rostow, amparada nos foi avass_a@da pela mais intensa e premente consciência de
recursos de sua agricultura e graças aos esforços extraordi, d�1:tegração e 9odrecimento na ordem estabelecida. A per­
nários de seus próprios trabalhadores. Nenhum dêstes requi­ cepçao veio súbita. A consciência teve um sobressalto que a
sitos podia ser preenchido sob o antigo regime. Os ovemos colocou a par da existência e· impulsionou a transformação
tzaristas dependiam demasia�o dos financiamentos oci entais desta. Mas também êsse sobressalto, essa mudança súbita na
para que pudessem defender contra o capital alienígena os psi�ologi� das massas, não proveio do nada. Foram pr,ecisas
interêsses nacionais da Rússia; ·e eram por de�udalis­ m_tntªs decadas de fermento revolucionário e lenta evolução
tas, em suas bases e relações sociais, para libertarem a la­ das idéias - foi necessário o nascimento e morte de muitos
voÜra das garras paralisantes da aristocracia rural ( de ·cujo partidos e grupos - para ue se roduzissem o clima olíti-
m"éio era oriundo, inclusive, o Primeiro Ministro do primeiro co e moral, os líderes, os partidos e os méto os e ação de
govêrno republicano de 1917). E nenhum dos gov,ernos pré- 1917. Pouco ou nada houve de fortuito em tudo isso. Suben-

]O 11
J5JL
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í'I
tendido neste meio século de Revolução, avulta todo um sé� das. A Lei de Emancipação de 1861 isolou de nôvo. por con- /1
li culo de�forcos revolucionários. seguinte, os radicais e revolucio�s; e, com efeito, prote­
'"' A crise social em que a Rússia tzarista se debatia, m� lou a Revolução por mais de meio século. Entretanto, o�
festou�se no contraste violento entre sua posi>ão e importância blema agrário continuou sem solução. Os servos foram eman�
cÕmO-gii.nde otência e a fra ueza arcaica de sua estrutura cipados mas não receberam terras; e tiveram de contrair
s�l, entre os esp endores do império e o escalabro das suas grandes dívidas e d,e sujeitar�se a trabalhos forçados como
instituições. Bsse contraste foi pôsto a descoberto, pela pri� meeiros, para poderem continuar lavrando a terra. O modo
meira vez, com o triunfo da Rússia nas guerras napoleôni� de vida da nação continuava anacrônico. ::€sse estado de
cas. Seus espíritos mais corajosos foram impelidos à ação. cóisas e a opressão autocrática impeliam cada v,ez maiores
Em 1825, os decembristas levantaram�se em armas contra o contingentes de novos intelectuais à revolta, à ventilação de
Tzar. Era uma elite aristocrática, intelectual; mas tinha contra novas idéias e à experimentação de novos métodos de luta
ela a esmagadora maioria da nobreza. Nenhuma classe socia.1 política.
,� na Rússia era capaz d,e promover o progresso da nação. As Cada grupo sucessivo de revolucionários extraía de si
cidades eram poucas e de caráter medieval; as classes médias próprio a sua fôrça combativa; e para cada um dêles havia
urbanas, os comerciantes iletrados e os artesãos, eram politi� um impasse esperando no final do caminho. Os narodniks
camente negligent,es. Os servos�camponeses revoltavam-se es­ ou populistas, inspirados por Herzen e Bakunin, Chernishe­
poràdicamente; mas, depois da derrota d,e Pugachev, não y_skí e Lavrov, eram, objetivamente, a vanguarda dos campo�
houve mais nenhuma ação em larga escala que tivesse por fi­ neses militant,es.lMãs quando apelaram para os mujiques e
nalidade a emancipação dos servos da gleba. Os decembristas tentaram abrir-lhes os olhos para a fraude da emancipação
O 11 eram revolucionários sem uma classe revolucionaria que os e para os novos processos pelos quais o tzar e os latifundiá�
apoiasse. Foi essa a sua tragédia; e seria a tragédia de tõdas rios os mantinham sujeitos, os ex-servos recusaram-se a le�
as gerações sucessivas de radicais e revolucionários russos, vantar um dedo ou a escutar sequer os seus líderes. Não foi
quase até ao final do século XIX; em diferentes formas, a raro entregarem os .narodniks nas mãos dos gendarmes. Uma
tragédia projetar-se-ia também na época pós�revolucionária. classe social oprimida, com enorme potencialidade revolucio­
Recapitulemos sucintamente seus principais atos e moti­ nária, atraiçoava assim a sua própria elite revolucionária; Os
vos. Antes da metade do século Xlb fizeram sua aparM;;ãP sucessores dos narodniks, os narodnovoltsi, abandonaram a
novos r;idlcãlse- revolucionárJo.31 9.s_ f!!:�.11o_tchint$i. Proy1E_hJ3_m aparentemente inútil busca de uma fôrça popular revolucio- /r
dasclãssesmédias em lento crescimento; muitos ,eram filhos nária na sociedade. Decidiram atuar sozinhos como os man­
de servidores públi�os e de padres�· Também erem. r�v_olucio- datários de um povo oprimido e mudo. Seu terrorismo poll�
1 nários em busca . de uma . cla,sse revolucionária. A burguesia ticamente inspirado tomou o lugar do populismo agrário de
. ainéfâ' �r·a negllgénte.
- õs" funcionãdos e padres mostravam-se sêus antecessores. O propagandista ou agitador da era anterior,
aterrorizados com o comportamento de seus filhos rebe]des. que "se dirigia ao povo" ou tentava até viver entre os cam�
A gente do campo era apática e passiva. Apenas um setor poneses, foi substituído pelo conspirador solitário, tacitur­
da nobreza favorecia uma certa medida de reformas, nomea­ no, heróico, com a sugestão de umSuper�homem determina­
damente, os senhores rurais, ansiosos por adotarem os méto­ do a vencer ou morrer, tomando sôbre si a tarefa que a nação
dos modernos de lavoura, por se lançarem na indústria e no era incapaz de r,ealizar. O círculo cujos membros assassina- ,,,
comércio internacional, e que por isso d,esejavam ver abolida ram Alexandre II em 188 f consistia em pouco mais de duas
a servidão, liberalizada a administração do Estado e a edu­ v1ntenas de homens e mulheres. Seis anos depois, uma dúzia
cação. Quando Alexandre II, cedendo à persuasão daquel,es, de moços, apenas, entre êles o irmão mais velho de Lênin,
Ü aboliu a servidão, obteve para á dinastia, por êsse mot�Y.Qr__a formava o grupo que planejou um atentado contra a vida de
11 �delidade inabalável dos camponeses durante várias déca- Alexandre III. ::€sses grupos diminutos de conspiradores man�

12 13
tiveram o império gigantesco em suspenso e fizeram histó­ depois. Eram inspirados por uma fé quase mess1anica em
ria. Contudo, se o fracasso dos populistas das décadas de sua missão revolucionária e na da Rússia. Quando, por úl­
1860 e 1870 demonstrara a irrealidade da esperança de que timo, os marxistas subiram ao primeiro plano, herdaram uma
se conseguisse a sublevação dos camponeses, o martírio dos grande tradição e uma experiência ímpar; avaliaram ambas
narodnovoltsi da década de 1890 expôs, uma vez mais, a im� criticamente. Mas também herdaram certos problemas e di­
portância de uma vanguarda que agia sem o apoio de quais- lemas.
quer classes sociais básicas. Essas ex eriências ne atiy_é!�..J�n­ Os marxistás começaram, como tinha de ser, pela nega�
'/ sinaram lições inestimáveis aos revo ucionanos as d�fª_qas ção das tradições populistas e terrorist<!§, Rejeitaram o "so­
seguintes - e, nesse sentido, não foram infrutiferas. A moral cialismo agrário", a idealização sentimental dos camponese:::,
extraíaa por Plekanov, Zasulich, Lênin., Martov e_§� as versões radicais de eslavofílismo e a idéia quase messiâni­
maradas, foi a de que não deviam atuar como UillEl_ vanguªr­ ca da missão revolucionária ímpar da Rússia. Repudiar am o
da isolada mas procurar o apoio de uma_cl�s��- revolüc:i_oná­ terrorismo, a autoglorificação do intelectual radical e a elite
ria - e procurá-la mais além� camponeses. :Entrementes. conspiradora e auto�suficiente. O�taram p�a organização de­
Õinício da industrialização russa iria resolver-lhes êsse pro­ m�kamente orientada, o partíêlo e os sindicatos, e pelas
blema. Os propagandistas e <!9:.!�clores 1!8,!Xistas. � geElção modernas formas de ação das massas proletárias. Essa ati�
de Lênin encontraram ... - . entre os ....operários das
sua---audiência tude, "estritament,e" ou mesmo exclusivamente proletária e
1 novas fábri
cas:-·-----·-- descrente dos camponeses, era característica nos primórdios
Devemos notar a dialética transparente dessa prolonga­ do Partido Social Democrático russo; e manter�se�ia típica
da luta. Temos, primeiro que tudo, a contradi ão entre a ne­ dos mencheviques, no seu mdhor período. Mas o movimento,
cessidade social e a consciência social. enhuma necessidade ao_E§l� as;ão,..Jl--ª.9 EOderia ,basear:�?...l!_�ga_<i!º.�Ji�tr_ata
ou interêsse poderia ter sido mais elementar do que a fome das tradições revolucionárias nativas tinha de absorver o
dos camponeses e sua ânsia de terra e liberdade; e nenhuma que !'..�-ª!?. Jíavia de vitâl e transcend�jp.s. Foi o bolchevis- ,,
consciência social poderia ter sido mais falsa do que aquela mo que realizou essa tarefa e fê�Io muito antes__4�_l91J. Os
que permitiu aos camponeses contentarem-se, por meio sé­ bolcheviques herdaram· dos populistas sua sensibilidade em
culo, com uma Lei que, embora os emancipasse da escravidão relação aos camponeses e dos narodnovoltsi sua agressivida�
física, lhes negava terra e liberdade - uma consciência que de concentrada e determinação conspiratória. Sem êsses ele­
induziu gerações de mujiques a esperar que o Tzar-Batiush- mentos, o marxismo na Rússia não passaria de uma planta
11 k2 * corrigisse seus erros. Essa discrepância entre neces­ exótica ou, na melhor das hipóteses, uma excrescência teóri­
sidade e consdência estava na raiz das muitas metamorfo­ ca do socialismo da Europa Ocidental, como foi na brilhan-
ses sofridas pelo movimento revolucionário. A lógica da si­ te obra d,e Plekanov ou nos escritos da juventude de Lênin.
tuação produziu êsses modelos opostos de organização: a A aclimatação russa do marxismo foi, sobretudo, uma façanha !T
elite conspiradora e auto-suficiente, por uma parte, •e o mo� d�n. :Ble produziu a síntese da dÓutrina c:om -ª.._t_!'ad�� 0
vimento das massas orientadas, por outra; tipos ditatorial e n�insistiu na neces_sidadLdos operários, a fôrça motora
democrático de revolucionários. Convém igualmente nota r 9 da �ão, ganhar•em aliados nos camponeses; e atribuiu aos
ri papel especial, exclusivo e histõricamente efetivo que a intel­ intelectuais e à elite revolucionária uma pesada função educa�
lige.ntsia desempenhou em tudo isso - em nenhum outro tiva e organizadora do movimento das niãssas-trabalhadoras.
país encontramos algo que se lhe compare. Geração após ge­ �ss': �íntese foi a epí�e de um século de esfo_rç�u�
ração, atacaram a autocracia tzarista e espatifaram a cabeça c1onarios russos.
contra suas paredes, preparando o caminho para os que viessem • -se-eu parasse aqui, ter-vos�ia dado uma visão unilateral
dos elementos que participaram na feitura da Revolução. Em­
" "Paisinho Tzar". - ( N . do T. ) bora seja costume, no Ocidente, tratar o bolchevismo como

14 15
um fenômeno purament·e russo, será difícil exagerar a contri­ tão excelente consciência de tôdas as formas e teorias dos
buição que a Europa Ocidental lhe deu. Durante todo o sé­ movimentos revolucionários no mundo como nenhuma outra '
culo XIX, o pensamento e ação revolucionários da Rússia pessoa então possuía".
Em 191 7 e nos anos seguintes, não só os líderes mas
J foram, em todos os seus estágios, decisivament•e influenciados também a grande massa de operários e camponeses russos
pelas idéias e movimentos ocidentais. Os decembristas per­
tenceram, não menos do que os carbonários, por ex•emplo, à viram a revolução não como o problema da Rússia, apenas, mas
ressaca européia da Revolução Francesa. Muitos dêles foram, como parte da convulsão social que abrangia tôda a humani­
após a queda de Napoleão, jovens oficiais das tropas russas dade. Os bolcheviques consideravam-se os campeões de, pelo
de ocupação, estacionadas em Paris; e o contato com a revo­ menos, uma revolução européia, cujas batalhas travavam nas
lução, mesmo derrotada, foi suficiente para incendiar-Ilies o fronteiras adentais da Europa. Os próprios mencheviques
espírito. Os Petrashevtsi, Belinski e Herzen, Bakunin e Cher­ alimentaram essa convicção, e expressaram-na eloqüentemen­
nishevski, entre tantos outros, foram formadospelos �Q!!ie­ te, E não só os russos se viam a essa luz. No comêço do
cimentos de 1830 e 1848, pelo socialismo francês, a Jilºsofia século atual, Karl Kautski, princi ai teórico da Internacional
afomã, especialmente Hegel e Feuer,bach, e pe� E:conomia__Q.9- Socialista, traçou esta perspectiva: ' •epicentro da revolução
lítica britânica. Depois, o marxismo, consüOstan�iando tôd-ªs está se deslocando do Ocidente para o Oriente. Na primeira
essas influências, fêz a sua estupenda_ cônquista intelectual metade do século XIX estava situado na França, por vêzes
dos radicais e mesmo dos liberais russos. Não admira-que os na Inglaterra. Em 1848, a Alemanha ingressou nas fil.eiras
apologistas do tzarismo denunciassem o socialismo e o mar­ das nações revolucionárias. .. Agora os eslavos ... aderem às
xismo como produtos do ocidente "decadente". Não só Po­ suas fileiras e o centro de gravidade do pensamento e ação
bedonostsev, o rude pregador do obscurantismo e do pan-es- revolucionários está se transferindo, mais e mais, para a Rús­
, \1 lavismo, não só Dostoievski, mas o próprio Tolstói, repudia- sia". "T.end�- a Rússia r•ecebido do Ocidente tanta�ua
ram as idéias do socialismo em tais têrmos. E não estavam iniciativa revolucionária, poderá agora, por sua vez, tornar-se
equivocados, em absoluto: quer o Ocidente deseje recordá-lo uma fonte de energia revolucionária para o Ocidente", co­
ou não, investiu uma boa parcela de sua própria herança es­ mentou Kautski, a respeito do contraste com a situação em
piritual na Revolução Russa, Trotski escreveu certa vez a res­ 1848, quando a Primavera dos Povos, na Europa Ocidental,
peito do "paradoxo" do fato de que, enquanto a Europa Qci­ foi tolhida pela "áspera geada da Rússia"; agora, a tempes­
dental "exportou a sua mais avançada tecnologia para os Es­ tade russa poderia ajudar a limpar a atmosfera no Ocidente.
- Kautski_�creveu -��J�.�l�yras aci�E;� � pa�a._él re­
tados Unidos ... ª2'-:!ª- m? _��ªvançada ideologia fºi exporta­
da para a RQ�.5ia ... " Lênin assinalou omesmo, de um modo vista Iskra, d.�.:êiu.e.Lêni.n.:.:e.ra..C.O:.:edf.fur; e tal impressão cau�
claro e vigoroso, ao dizer: " ... no decurso de quase meio sé­ saram em Lênin que, quase vinte anos depois, citou-as com
culo, entre as décadas de 1840 e 1890, o pensamento pro­ irônico deleite contra o seu autor, agora furioso pelo cum­
gressista da Rússia procurou àvidamente. .. a correta teoria primento de sua profecia. De fato, a previsão era ainda mais
revolucionária e acompanhou com notável zêlo e meticulosi­ portentO§�qº qt1E: Ka_ut��i .�l! �!_:tlJn2��C_E!,!:>_�r_füll. Vimõs'como,
dade tôdas as 'últimas palavras' que nos chegavam da Eu­ em nossa época, o epicentro da revolução deslocou-se ainda
ropa e da América. Com efeito, a Rússia chegou ao marxis­ mais para Leste., da Rússia para a China. Um historiador
mo.. . através de sofrimentos, angústias e sacrifícios extre­ cõíitqueda para as -generalizações grandiosas poderia extra­
mos ... aprendendo, experimentanâo na prática ... e empe­ polar a perspectiva esboçada por Kautski e traçar uma linha
nhando-se num estudo comparativo da experiência da Eu­ mais ampla, ilustrando o avanço da revolução para Leste no
ropa. Em virtude do tzarismo nos ter forçado a levar uma curso de três séculos. A linha poderia começar na Inglaterra
existência de emigrado, a Rússia revolucionária . . . tinha no puritana, cruzar tôda a Europa, atingir a China e, finalmen­
seu comando uma tal riqueza de contatos internacionais e uma te, rematar na orla sudeste da Ásia,

16 17
Contudo, semelhante gráfico pode ser enganador: pode
sugerir um curso da História demasiado linear e fortemente
predeterminado. Mas seja qual fôr o grau em que o curso
t_enha sido determinado ou não, é evidente que possui sua
coerência e lógica intrínsecas. Goethe afirmou, certa vez, que
a história do conhecimento é uma grande fuga, em que as
vozes das várias nações aparecem umas após outras. Poder­
se-ia dizer o mesmo da história da Revolução. Não é a sin­
fonia mundial que alguns dos grandes revolucionários espe­
ravam. Nem é a melodia de solos discordantes, a cacofonia
·que os filisteus ouvem. É antes, a grande fuga �I!l-qu�as
vozes das várias nações, cada uma com suas próprias espe­ 2
ranças e desesperos, pi:rticiparn_su��sivÊ_f!l _e :g__ �.----

Quebras na
Continuidade Revolucionária

EM 1917, a Rússia foi o palco da última das grandes


revoluções burguesas e da primeira revoluçfuL proletária da 0
História da Eu� Asdüas revolu ões fundiram-se numa
só. Sua conjugaç,ão sem precedentes insuflou extraor inária
vitalidade e ímpeto ao nôvo regime: mas também foi a origem
de graves tensões e convulsões catastróficas.
Talvez deva mencionar aqui, com o risco de enunciar o
óbvio, uma breve definição de revolução burguesa. O con­
ceito tradicional, amplamente aceito por marxistas e antimar­
xistas, é que, nessas revoluções, na Europa Ocidental, a bur­
guesia desempenhou o papel dominante, colocou-se na cabe­
ça do povo insurreto, ,e conquistou o poder. :Ê:ste conceito está
18 19
implícito em muitas controvêrsias entre os historiadores; a re­ �a cria as_ to�dições e� qu�priedade burguesa pode
fforescer. E msso, e nao nos almhamentos particulares que
cente discussão, por exemplo, entre o Prof. Hugh Trevor­
se esta6eleçam du rante a luta, que reside a sua diferença es­
Roper e o Sr. Christopher Hill, sôbre se a revolução crom­1

welliana foi ou não burguesa, em seu caráter. Parece-me que pecífica.


essa concepção, sejam quais forem as autoridades a que a � também nesse sentido que podemos caracterizar a R e­
voluçao de Outubro como · uma combinação de revoluç('ks -
atribuamos, é esquemática e histõricamente irreal. Partindo
, dela, poderemos perfeitamente chegar à conclusão de que a �ma burguesa e uma proletária - embora ambas fôssem rea­
I revolução burguesa é quase um mito e que, na prática, ja­
l�3adas sob a liderança bolchevique. A historiografia soviéti­
mais ocorreu, mesmo no Ocidente. Os empresários capitalis­ ca descreve a revolução de fevereiro como burguesa e reser­
va� a et_iq�êt� de "proletária" para a insurn�ição de outubro.
t�s, os comerciantes e banqueiro� }lã9,.!�_�aH�tara_!!!_':_ntre ?S
Essa distmçao também é feita por muitos historiadores oci­
líderes dos puritanos, nem entre os comandant•es dos lronsi·
des, * no Clu��. Jªrnl>intL9µ. a testá ãas multidões que as­ dent�is e justi�ica�a com fundamento em que, em fevereiro,
sal!J:if.E:I]l.__ ª-1;3é!.&t.Uhª--.o.u _ invadiram as Tulherias. Tal_!).pou_co dep01s da abdicaçao do tzar, foi a burguesia que tomou 0
pod�r. Na verdade, a. combinação das duas revoluções já se
for_am êles que tomaram as rédeas do govêrno durante a Re­
volusfuL..ou dEr.��=�-o-Io'n;"gO perfodO que se lhe seguiu, q�er mamf.estara em fevereiro, mas de uma forma pouco nítida, O
tzar e o seu último govêrno foram derrubados por uma greve
na lng}élterra i quer na França. As baixas camadas da c;lasse
média, os pobres das cidades, os plebeus e OL��ns culottes, geral e uma insurreição em massa de trabalhadores e solda­
0 dos, que imediatamente criaram seus Consdhos ou Sovietes
formaram os grandes batalhões Óe in�urretos. Os chefes eram,
na sua maioria, pequenos fidalgos rurais, na Inglaterra, e os. �rgãos potenciais de um nôvo Estado. O príncipe Lvov'.
advogados, médicos, jornalistas e outros intelectuqis, na Milmkov e Kerenski receberam o poder das mãos de um con­
França. Aqui e ali, as sublevações te.rminavam em ditaduras
fuso e hesitante Soviete de Petrogrado , que de boa· vontade
o entregou àqueles; e só o exerceram enquanto os sovietes os
militares. Contudo, o car,áter burguês dessas revoluçõe�não
toleraram, Mas os seus respectivos governos não realizaram
parece, rá mítico, em absoluto, se as encararmos segundo um
critério mais amplo e obs,ervarmos o seu impacto geral na so- q�alquer ato importante de revolução burguesa. Sobretudo,
! ciedade. o seu resultado mais substancial e di:tradouro era a nao puseram fim aos latifúndios da aristocracia mas deram
terr�s aos camponeses. Até como revolução burguesa a de fe- ,, /"'\.
0 eilíiíina:ção das tnstituições s9ciais e poliiicas que dnha�i-
ficultado o cresci��!ll..Q_ga propriedade burguesa e da.§_ rda­ vereiro fracassou.
,J,,
ções sociais que o acompanham. Quando os puritanos nega­ Tudo isto sublinha a prodi9i.9sa contradição que os bol­
ram à Coroa o poder de tributação arbitrária,_ quando Crom­
cheviques _ d_e�idiram enfr.entar . quando, em outubro, promo­
veram � dmgir�m. a dupla sublevação. A revolução burguesa
well garantiu para os armadores inglêses uma posição mono ­
polística no comércio marítimo da Inglaterra com países es­ a que eles presidiram, criou condições que favoreciaih O de- 1J
trang,eiros e quando os jacobinos aboliram as pre rrogativas e senvo�vimento das formas burguesas de propriedade. A re­
privilégios feudais, c riaram, muitas vêzes irrefletidamente, as V_?Iuçao prol�tária, que êles levaram a cabo, visava à abÕii­
condições em que os fabricantes, mercadores e banqueiros çao da prowiedade.. 0 principal ato da primeira foi repartir a
iriam fatalmente conquistar a heg,emonia econômica e, a longo terra da anstocracia
. . Isso criou uma ampla base potencial
prazo, a supremacia social e até política. A revolução burgue- para o crescimento _ de uma nova burguesia rural. Os campo­
n�s·es que for am libertos de seus aluguéis e dívidas, e am­
0 Apelido que foi dado pelo povo à New Model Army de Cromwell, ph�ram suas fazendas, estavam inéeressados num sistema
primeiro exército da Europa Moderna a usar uniforme ( um jaquetão so�ial que oferecesse segurança ao que possuíam. Tampouco
vermelho sôbre as roupas civis) e cuja disciplina austera, aliada a uma foi apenas uma questao _
de lavou ra capitalista. A Rússia rural
grande eficiência combativa, serviria de modêlo aos exércitos europeus e� como diss,e Lênin, o sustentáculo do caP.italismo em geral:
do século XVII. - (N. do T. )

20 21
paganda marxista, a recordação ainda fresca da s lutas _de
merciantes da
muitos dos emp resários industriais e grandes co o e a opor­ 190�, a tradição de um século dee�fu�ços re�
Rússia eram de origem camponesa; e, co m o temp v lu�1onanos e a coerência Sin ular de JJ:rOpósitos dos -boi-) 1
tun idade ou a s circun stância s
favoráveis, os campones·es po­ �
c ���q e
ues, prepa ra ram os _tr_él�_aJ adores pa ra o seu papel. To­
ma c a e de emp resários m uito mais nu­
deriam te gerado
r u l ss a�am c?mo ponto assente a finalidade socia li sta da Revo­
foi que, em ru
merosa e moderna. A maior ironia de tudo isso o 0���9.a­ �ª.º· Nao se c_o�tentavam c om al@__que não acarretasse, no
gu� s, nE!! m sm n�mo: a. aboliçao da exp loração capitalista, a s ocia lizaç ão O
1917, nenhum dos partidg�_ b ur e e

li�s moderados, se atreveu �


sionar__�-.!�Y.�1:lição ag�€lri_ a �
a m�ustna e dos bancos, o contrôle operário da produção e
os campon.- e­
que se desenvolvera espont�neamente, visto que Itq. apt�s
0 govern o pelos s�vi-etes. Voltaram as costas aos menchevi­
s,es-·estávãmõéu12:ando as terras.sl.Ji . ..aristo craêi ã:-].iiµ
q . A err izado s com os py igo� Çl!!_e Úiues, � � uem segmam no princípio, porque os mencheviques
d� insur reição b olchevi ue t or
gJ.!_e§.�§._!'.e-
es diziam _que ª. �ús�fa ainda não estava "madura par a
fi�
ag_ieaçavam �propriedade urbani!, o�_parti�s
r
uma revo� uçao sooa lista . A aç ão operá ria, ta l com o a cam­
d
. a p pn clacI.� - l!rªI. 02,
1 lM v' 1 Jl. tusa ram-se a afolar os ali��
r
ro e
ponesa tmh� sua próp ria fôrça espontânea: o contrôle da
cioná i s da esq e cfa c ia]ista)
f bolcheviques ( e os revol pro�uça'... o �º!, ·estabelecido, no nível de fábrica, mui to antes
o u r so
<.." '"- u r
as.-sa.biam
<!'., 7,.1 J,_ colocaram-se sõzinhos à_ fr�!lte_ das revol tas agrar1etár iatfc:ã: da m surre1çao de outubro.
aj c; p l
[ l '\'.,.., ' � que, sem a sublevação do c�o, a_�
u ã o ro
er ia derrotada. Os camponese
s, re­ . C�n�ud�, Petrogrado e Moscou, e alguns outros centros
11 ria isolada nas c idades e s md� st�iai s di sseminados, constituíam uma base extremamen-
r_ d _ �os
c�ando uma_conira_.- r·�VQIUÇ?_Q_qu� udess e traze i�y
e olt
eg11!1 �_D0 T�h_�v . Ma s, te limitada para ta l emp reendimento. Não so · 0 povo em to· da
latif undiá rios, j ogar am tu_do no r
e

desde o princiEio, os a�E_ e � to s so c iali st a s da re v o lg��Q __ � s- ª 1_·mens1·da- o da Rus , sia rural se acotovelava para adquiri r pro-
priedades, enq_uanto os trabalhadores das duas capitais luta­
,, pertaram suas suspeitãs, mêOo e hostilictade. vam _por_ ab?l�-la; não só a revolução socialista estava em
nte pela
A revolução socialista f0_ apoiada s incerame peque� conflito 1mp lic1to com a b. urguesa; além disso, estava também
a c n i ía ma
, classe t rabalhadora urbana. Mas est o st tu u
pulação que rep eta de cont radições internas. A Rússia estava e não esta- 1,
na minoria da nação. Totalizava um s,exto da poreclond9.s; e va adura para a r,evolução socialista. M ostrava-se mais apta
s
vivia nas cidades, vinte milhões em numero roletária. O a d� e ro ta r suas _tarefas negativas d o que os p ositivas. Guia-
s, só m ade p d a s r d escrita como p �
dês te et o eri e
imo, em ârca do pelos b0Jç_�ev1ques-2_ p roletariado expropriou o s caQitalis­
núcleo da classe trabalhadora consistia, no máx _ tas e transf en u o poder 2ara os S(?Viete� mas não pôde es­
11as ingús�
de três milhões de homen s e mulhe�s �mpregado§.
, trias -modernas. Os marxistas calcularaJI! _ q�- º �-� ª lhag_o­ �a�eiecer uma economia e um modo de vida socialista nem
c dé!_ Q�_ _ça­ o1 �apaz de �_anter por muito temPQ a sua posi ção p� lítica
res industriais seriam a fôrça ma is � ca d� o ie �
cfa v ç socia}ista. Os dommante.
pitalista, os princip ai s � e n te s_ re olu ão
sob ra es s a es perança. . No in�cio, o caráter duali sta da revolu窰 f oi, como se "'- 0
trâbalhadores rus sos j ustificaram de
Nenhuma classe da sodedade russ a e n enhuma cla sse tr aba�
o, atuou com a ener-
�1sse, a on�em a� sua fôrça. Se uma rev oluç ão Oü rguesa ti�
lhadora, em qualquer ou t ra pa rte d o m u nd \ esse ocorrido mais :edo ( o� se, na época da Emancipação,
or ganização e o
1 gia, a inteligência política, a capacidade de ei:1 _ l 86 ! , os servos libertos tivess em recebido terras em con-
he roísmo com que os oper,ários russo s ag ir am em 1917 e d!çoes J ustas), os camponeses ter-se-iam convertido numa
er a civil. A� c n ânc i�a )nd.ústria f� rça cons_er.vadora; teriam f eito oposiç,ão acérrima à revol u-
depoi s, durante a gu r u st
­
r. russa moderm�consi stir..!ll\Y!..fH�queno número de__fáb ricélS _g i _ çao proletana, como acontecera na Europa Ocidental, parti­
gan,t_�çaS.-,,COllC.,�_:Qíradas 12riJJ.9P.a lm e n t�--- e� -P 1etro g.
s na s duas cap i­
r adg __ e cularmente na França' durante o se'culo XIX. o· seu conser-
Moscou, deu aos trabalhadores concentraclo óprios centr_<:>s vadonsm · o poder ia. ter, então,_ inf luenciado os próprios . tra.ba­
tais um extraordinário podercte ataque nos p dore s urbanos, mmtos dos quais tinham suas raízes n o cam-
r

�lgf� ô ,
s']Q_ :�__nff .9.ii: egítif é-:- Uua s· - aeca aas de. iíffensivã p�o:-
nevr
23
22
po . U ma or d �m bur � uesa ter�se -i a r·evestido de um pod er
mui tíssimo ma is estabiliz .ado d o �ue O detido p elo re gime se­
r
/_

essas esp erança s


c onfiantes com o amontoa
dades dêste meio sécul do de irracionali�
m if eud al e sem i_ºb urg ue - s . A COnJ unça- o das duas rev .. oluçõ es
c.=..:_='-'-'-"---c- o de H istória soviética Gran
de parte
dessa irracionalidade teve .
poss ibi!!!_�u a a hanç a: dos o--, � Il· os e do s camponeses, pela orig•em nas contradições e
du as revol uções da Rússia ntre as
qual Lên in lutar_a :_ e isso h 1 l f:� u os bolchev�esaganha­ , pois isso gerou uma lon
ga série
de crises q ue não podiam
,, re�guerra �1vil_ e re ch aªçar�� a íxitervefição -estÍangeira. ser solucionadas p
elos métodos
normais da h abilid
Embora as aspiraçoes �- a balhado res est ivessem em CQ.l}•
-------·- ade dos estadistas
. dação política. A com bin , por manobra ou acom o­
fl.i to .1m 1I- ClÍO com as - -- c;::·amp--y
dos o neses, nen -·- .. das duas
--iliuma .. ação das duas r
evo luções tornoJ:!:-
;·s""s"o Os'õp'•er ários re. a causa fun dament se
C]ãasses possma , ai·-- n a co nsc1en . c . 01 • J ub. i- al d a fraqueza so
-·- --··-- . ---sõ"b viética .
re os l atifun diários ; e
� irracionalidade das
1a
laram com o triunf o d os muJ . l q ues revol uções puritana e j ac
surgiu, em gra o bina
não viram contrad. -
içao 1guma
_ e ntre sua p ro , pn.a l uta por uma nde parte, do choq ue •en Ir
tre as esperanças
vadas dos povos e le­
e co nomi a col eti vi sta ·� ªo md1.. d 1. conômico dos cam- insurretos e as limitações
_ r �oluções . Para burguesas dessas
poneses. A contrad1ç_a<:> tor�� :.s:ª ;:��n�e �t!._d� ent� as massas revolt
adas, j amais um
ç�. Elas l uta a revo lu­
no final d a . g�� rr a c1v il,. q do a clas secrímponesa, que j a m pela liberd ade
0
f ratern io act e dos h omens e ig ualdade, pela
não estava m101d a pel o me_d<:> do regresso dos antig os amos, e a Comunidade .
A crise sobrevém
q uando a classe detentora
af. irm u vi orosamente êsse md. duah.
1v1. smo.1 de bens se impacienta, quer
co brar
� aí e! diante , o con fli to entre a �idade e o c�p_o, integralmente os b enefícios
�(5: q� a revolução lh e tro ux
-..::.:-�---, ciJir a acumula�p de r iq e e i ni­
I - dommaram o c•enano ueza . À me dida
aperta e condicio q ue a revolução a
na seus movimentos, a class
e re
�é�i�� f: u�s� �u::re �-���� década s, pe�
u

e a bastada pro­
d1920 e 1930· e as consequenci as ensomb ra� .
��sJ� cura contemporiz ar, entrar
. em com binações ou pôr t
movimento .revol u êrmo ao
. 1· tudes ao drama são multo conh ec1ºd as. cionário, j ustamente q uand
e
ria soviética . As' v1. c1ss o
béia s, desesperadas por tan s ple­
Lênm, · em seus últimos anos, t 'EE: �o����=-=-��T.:��-;:;-;:
t u resolver o dilema pacifi- ta f ome e privaçõ
as ma
es, faz em pres ­
ssa

são para transf orm


a çõ es so ciais d e
en
camente , por me1. 0 da N ova Polí . tica Econômica e d e um pro­ Foi isso o q ue aconteceu um cunh o mai s
radical.
j eto de economia ��sta ; m���:���o olta de 1927�28 a tenta- na !<ran ça, com
bi nismo, q uando os nouvea o declínio do j aco ­
1 tiva malograra . S resolver O co�flitopela ux niches reclamaram a a boliçã
� P;I � dos preços máximos e o
lô.rs a e m-eteu <:>m ros a c mada coleti viza�o . em massa dj1 estabelecimento do
º

livre comércio .
o
Os ple beus d escobr iram
lavoura. Divorciou a revol uç� ao so cial ista da burguesa
==--- - ··� -·mediante então q ue as sua
s conq uistas revo
luciõnárias foram falsifica ­
1 o""'aríiqu ilamento d�egu � d - �. das, q ue a Libert�a. mer
a liberd ade do tra amente,
Karl M arx e seus d isc1pulos alimentava m esperanças de balhador vender a sua fôr
ça laboral �e
que t
a os a.t
evoluç a
sos propo s
- <;>
it�� 1 t , . fôsse imune às convul so- es febr.
: ��: acessos de irracionalidad e �ue ca­
is,
Egalité significava_p�er disc
cado de trabalho, em têrmo
utir com o seu patr
s nominalment·e ig uai
ão, no mer­
s . N a Ingla­
terra, foi o momen
to em q ue os "cava
racter iz ar � m a r�v� 1uç a - o bur uesa Tinh am em mente, e cla ro, res " d es cobriram
dores" e os "n ivela do­
J � o poder da propriedade na
o u ç ao s a "f rma pura "; e partiram do Comunidad e. A
_ desilu são foi cruel. urgi
S ram brech as no
a r 1 e
prmc �1p�10 de q i� :t::co:r1er�a em país•es industriais avan ça dos, c,;ão. Os líderes são dilacera partido da revolu- ,
com um alto m, ve,1 de de senvolvimento econômico e c ultural dos por lealdades conflitan 1
a intensidade da tes. E
paixão e da a ção, que foi,
da sociedade . É f ac1·1 comparar ( mas també m é irrelevante ) s.ão revolucionária, a sua durante a as cen�
fôr ça criadora, converte-s
fôrça destrutiva, no perí
1 Foi essa a atitude f'.redom . a te e nhora a própria classe camponesa o do de estagna ção
e de clínio. Tam-
e numa
m b ,
estivesse dividida em ncos e po res_ ; e uenos grupos de camponeses bém en contramos muito di
sso na RússiaL ime
esclareci'dos tiv essem formado ·cpat19-va e acôrdo próprios coope- u gu �-ª...f!Yil, q uando � diatamente apó s
, , por 1n1 1 . ,, . sse camponesa_fo
rç ou�-º--il-C>.Y:�no
rativas e comunas agncolas, 1ogo a pós a Revolução e nos pnnc1p1os da d e Lên.ip. a_J;u·oclamar_"o re
;,_Qeito pela _p r.opri�dadçp,
década de 1920 ·
o in tiY..ada .....e
°.�.�_?; ir .EJ(Y.LÇ__C::Q.iTIÇ[.çi,o, enq
11.��!.°.._gu:�. �-222.:!i�.fü�.-�
re tr

24 -

25
-i �i -
r ária �E._Il.C!9.!-.L
.
ta�s... :tàdfa?
.
.
o o uma ra .
d · -':...rn-----···-· · t·- .içã-. . --
o ao soc al s social num mod o de produçã o q ue não é inerentemente social,
e tão incongruente e anacrônico q uanto a manutençã o do con­
t -
en contrava or trôle pr ivado ou se cional sô bre um processo produtivo que é
ID..�-�o_01a-� p uro em 2E-.�que a-Revoluçã o Russa setambém apanha- social .
e por que í f i
nou-se ainda ma1,:' gr.av °u�l quer revolução social o
is­ Na Rússia, essa condição prévia e b ásica do socialismo
a s o

do nas contra d . ç me rente s a q


rx f -n o s d-
,�
/.

faltou tal como deve faltar em q ualq uer outro p aís subdesen­
1 oes
, su bdesenvo1v1·do . Ma
ta q u: ocorr e 1:u1? pais
ala
e amadurece .P.º-...Y�!l.tE��a volvido . A lavoura, em q ue mais de três quartos da pop ula­
Q.Çill hsmo q ue c re sce
ia d ssia, a re- ção ganhava a vida, foi pulverizada entre 23_ ou_24 mi lhões de
de_r-se-i. a d'zer que na Rú
e s
11 s ociedade burguesa. P oveio u� a I fase m�ito prematur a da
e mbr o
p�uenos ro ri etári9 s, c�Jados pelas fôrças ,espontâneas
a inter
volução soci alist � t r tempo de amadurecer
. d��o . A in ústria nacionalizada era um pequen o en clave
gravidez, mui�o an.tes do rp , nessa primitiva e anár q uica economi a. Isto significava q ue �
1 o;:�• m: s t ampouco foi
O resultado nao fo1 um na::
um co o
Rússia não possu!a um outro requisit��� cial.. do socia!is­
viável de socialismo . e rroguem so -bre O q ue os mar - mo : uma aOundância d,e ben s e ..§.�Y-iç_<;>s q ue a sociedade .sl�ve
Talvez os l,eitores se int co m essa met'afora· A q ues- ter _s_�_gyis�r....sat.is.fo�_e.r - nun.1�!�y§_ciQ....!J:í_yel __d_e._ çiy_m�élS:ªº
ente
xistas q uerem d.i zer exatam ª o nosso tema ,e - incidental- --··,.·a··--·-·--·. ·--·-"···- ····-·--··-- ......., ........... ., ·-·"·····--· ·- ..�-
- as n ecessidades dos seus membros de um modo o mais nró-
nt l v nt e P
tão é cer t m �t 0 .1 dade ocidental, também . xim o 'possíve1 a igua!dade. Ainda nã o há muito tempo, a in-
a e e re e a

mente - par a os p : : ��derna. tendo substituído dústria russa não estava capacitada para p roduzir os artigos
roble1:11d
ú st i
M arx descreve como ª mã o-de-ob ra de q ue q ualq uer nação moderna requer para o seu fun ci onamen-
os artesã os e f aze
nde.irosm.mdependentes pelaro cesso pelo q ual to normal . C ontudo, o socialismo nã o pode ser fundado sôbre 1•
ou dessa mane.i ra t
odo p
assalari ados, alter . da O pr ocesso de produção trans - carên ci as e p obrez a . C ontra isso, tôdas as suas aspirações re ­
o

o h omem su ste nt v
a ' d.e atividades ind
ividuais � des- s uTtarã o impotentes. A escassez acarreta, inexoràvelmente, 2
a sua 1

formando-o, de uma mass etiv a e agr egada a cargo o e um desigualdade. Onde nã o houver alimentos em q uantidade su­
vidade col
conexas n,uma ati C�m a divisão do ficiente, vestuár io e casa p ara todos, uma minoria apanhará
ores associ· ados·
grande numero e produt d
, i co as nos sas fôrças p
rodutl- . o q ue puder; o resto p assará fome, vestirá. andraj os e a glo­
trabalho e o progresso tecn:!�; interdependentes; e acabam merar-se-á em favelas. Tudo isto i ria acontecer fatalmente
v as tornam-se cada vez g� ad as, ou tendem a ficá-lo , numa na Rússia.
por ficar socialmente inte mterna . 1 g isso precisamente Além disso, o verdadeiro ponto de partida foi um com­
escala n acional ..ou
mesmo d��f: · _·0 ,erií'br1ãõcfô so­ pleto desastre. Depois dos anos de guerra mundial......g�a
.. çã d pr pro
i iz �tt· :Bsse tipo �o- civ:�!__e intervençã o estrangeira, �9.!!en a indústri��--ª
oce 0
al a o o

11 cialismo no ven� _do CªI'}-a�n- e�i am��to sociai s · a propri edade


a soc
Rú��_ia possuía �trou ��ç9[a.,e�o . A�uinaria e os esto­
1 mo

, dutivo exige co. ntrole e p •


que-1es . O contrôl,e pr i- q ues estavam em ruínas e ex austos. Econômicamente, a naçao /f
pri v d chocam- se com a
ou nt -1
a sociedades ano- �grediu mais de meio século. A ente das cidades queimava
é e c 'd elas grandes mecanismo so­
r e a os

.Z
co
vado, mesmo c?mo os móve is p_ara aquecer a casa . triezenas de mi lhões de cam ­
1v � desorg aniza um
nimas da atualidade: d��d d , o q ual necessita
ser concret a e poneses foram at�id os PE:!ª . fome· e vA,gueavam __p elo__ Qgís
e mtegr
ci al essenci alment em Eusca de conilOa . Os p oucos mi lhões de op erári os q ue
a o

racionalmente integrad_o. contra o capitalismo assenta, so- ocuparamasbarr icadas de 1917 andavam di spersos e de ixa­
A acusaça- o marxista o. O
não ex�1�s1v . amente nesse argumento de­ ram de existir como fôrça social coesa. Os mais bravos pe­
bretudo, embor a . � xi t vê n p len r eceram na guerra civil; muitos assumiram postos na nova
mesmo é aplicável ao_ soc soei�
o
prin­
a
nd ministraçã o, no exército e na polícia; grandes contingentes
r s
.� . do processo produtivo a , o
iahs o o m

senvolvime nto d a� � i fugiram das cidades esfaimadas; e os poucos que permanece­


car e
do social i . S
cond1çao previ a
o sso
cipal •e históri ca
o em

. Tentar impor o contrôle


sm
n ram gastavam mais te• mpo trafi cando do q ue trab alh ando, tor-
t o
soci ali smo ser ia
um cas el o ar

27
26
naram-se declassés e f
oram t ragados pelo m
ercad o ne g ro.
r perigos do poder na socieda de pós-capitalista - não foi sem

t
mat iv altu ra em que motivos �u e s onharam com a •eliminação do Estado . Eu, pelo
F oram estas as circ unstâncias f or de 1920 est vam t ntan­
as na
d � : menos, nao conheç o livro algum que m ais aprofunde as raízes
o da dé ca a
os bolcheviqu es, no iníci
1
idá- lo . A o fa ze-lo , nao pu­ da corrupção pelo poder do que o State and Revolution de
do d ar forma ao regim e e con sol
consideravam a vanguar
­ Lêni� ( es�rito de um modo algo escolástico e dogmáti�o ).
deram confiar na classe de q ue se a senhora do nô o E s­ ' Havia, p0 1s, um elemento trágico na arriscada aventura bol­
:v
d a , a classe que , supostamente ,
era
mocr a�ia, º, �gente 1mp�es­ c� eviq� e : t�da a sua pro fun da e agu da consciência do pe­
t ado, 0 esteio principal da nova de sum1r
cindível do socialismo. Essa class ção bu�gu sa, a_p_esar
mente . Assim, enquanto que a rev
e
olu
a, f1s1ca e politica­
� .
1ve1s d� .Y1-3
·â':1 ngo na:> ev:tª".ª q ue o corressem; e tôda a sua repulsa pela
co rrupçao nao 1mped1a .
que a ela sucumbissem.
Como partido revolucionário, os bolcheviques não tinham
m n p a í s , so bre vivi a na s realid ades tang
f o e o
?_UJ? f a n tas ma susp� por onde escolher, a menos que abdicassem e se despoj assem
rural. a re vo lução socialista e� do poder, entregando-o, com efeito, aos inimigos q ue aca­
,, no vazio. chamad a degene- bav�m d: ser d:rrotados na guerra civil . S antos ou idiotas po­
�am essas as origens autê nticas da tâncias , "ditaclu a den am te-lo feito, mas os bolcheviques não eram um a coisa
gim . N c i r c uns �
'! rescência burguesa do r e e as ..
c ontrôl e p� ole� a­ ne m outra . Encontra�am-se , inesp erada��!}_te, numa posiçã o
", "d m o c ra ci a so vié t i ca ", .
do proJ.etar iado e . m­ que, mutatzs mutandzs, era , comparável à dos decembri st as
rio da indústria ", eram quase
slogans vazios , nos quais n
úd . A i� éi a d e d emocra­ populistas � narodnovoltsi, no século XIX, isto é1 a po�içã�
guém podia insuf lar qualque r con te o
_ de um a elite revolucion_áda sem uma classe re volucio nári a 1
Buk arm <!_!!XP�·
1

cia soviética, como Lênin, Trotski e se tr balhadora .ª-tiv e a respaldá-la. Mas a elite er a agorn o govêrno, na posse de

pressuE�n�él__<!__e.!istência d{ uma clas N so �
c r a o anczen uma fortale za sitiada que fôra precàriamente salva mas aind a
firm d o - se n ao ont
e ternamente vigilant e, a _
an
era preciso d e f en der, erguer das ruínas e converter na b ase
uer nova bu rocracia q
ue
régime m as também cont ra qualq de _ um a n?va ord em social . É muito difícil que um a fortale za
usurpasse . Com o a � la s se tra ? � ­
lha
_
abusasse do pod er ou o d ec1 d1ram s1t1ada seJ a alguma ve z g overnada de maneira democrática. " ....,
n t e , os b ol ch e v i q ues
dora estava f1sicamente ause u a vida se �� vencedores de . uma guerra civil raramente podem permi-
nte ·e procu rad or até q :
agir como seu lugar- tene isse . Entre­ t1r-se conce�er liberd ade de e xpressão e organizaçãoãosven­
classe trabalh a d ora su rg
norm al izasse e u ma nova .. t C! dos, especia�mente quan do êstes estão amparados por na-
r x c r m a di ª9t1r� o_ ­ � s est rangeiras poderosas . Por via de r gra, uma
mentes consideraram seu dev e e er e e
ç?� �rra
proletariado ine �_!_stent �quase e e
letária': •em nome d e um civil resulta no m on�ólio do poder pelos vencedores. 3 sis-
a dura bl!�<:>�r-ª�n. 2
ine xistente. Assim se estabeleceu él 4i!.Eoder. t�ma de partido único converteu-se numa necessidade inevi-
peT
poder sem contrôle e a corruJ:?çã o o ., .
. tavel para os bolcheviques. S ua própria sobrevivência e sem
m o pengo. D1facil�
Não é que os bolcheviques ignorasseç de Lorde Acton dúvida, a da Re vol ução, dependiam disso. Não visava� t al
mente ficariam perple xos com a e Além disso, omp r_ee�­
s nten a
m edida com pr�meditação. Estabeleceram-na com apreensão,
sôb re o poder . 2
C o nc or d a ria m c o m êle. �
d A n ·e seus di scípulos nao
atmg1 - �orn o um exl?ed1_ente t·emporário. O sistema de partido único u ''
deram al g o q u e L or e cto
a®, 1� contra as mclmaçõ e§, a lógica e as idéias d e Lênin , Tro ts-
também é J:º�er, pod er
con c entr
ram: que a_p roprie dad e d rpo­ ki . Kamenev. Bukárin, Lunacharski, _B.i'kov e tantos outros .
m onopohst1ca d as g ran es co
e q ue a pr oprie d ad e quase fici n m ent e
que atua a i n d a m a i s e e te
11 A Guerra Civil Americana parece ser uma exceção. Contudo tratou­
rações é poder absoluto
_de uma d e� ocr � par­ ac i
quando embrulhado nas roupagens os
s1, de uma guerra civil que não dividiu a nação como um tddo nem
tmham per f eita noç ao d mlocou uma class� contra outra em tôda a extensão dos Estados Unidos.
lamentar. O s .bolcheviques também O No,:te estava virtualm.ente unido em sua determinação de impedir a
H<•cessao dos Esta?os suhs!_as; sua superiorida�e e preponderância nunca
2 "O poder tende a corromper e o poder absoluto corrompe absoluta­ u�tiveram em pengo; e nao houve mtervençao armada estrangeira.
mente ."
29
28
Mas a lógica da situação impôs-se e fêz tábua rasa de suas bureau, apontando também_ para Stálin, jogou-lhe no rosto
estas pafavras: "Coveiro da Revolução!" E em 1928 foi esta
idéias e escrúpulos. O�xpedi-ente temporário converteu-se_��
11 � O sistema de partido único adquiriu uma perman
ên- a aterrorizada premonição de Bukárin: "Ele é o nôvo Gengis
s. Por um process o semelh ante à se­ Khan.. . êle nos abaterá a todos . .. afogará em sangue os ,,
cia e um ímpeto próprio
leção natural , a hierarq uia do Partido encontr ou o s· e u líder, levantamentos de camp�es". E não se tratava de comen­
tários ocasionais de um punhado de líderes. Atrás dêsses ho­
após a morte de Lênin, em Stálin, o qual, em virtude de uma
mens novas OJ)Osições se erguiam, desejando fazer com que
habilidade e talento notáveis, aliados a um temperamento des­
pótico e profunda ausência de escrúpulos, era o mais ade­ o Partido regressasse às suas tradições democrático-revolu­
ci� e aos seus compromissos socialistas. Foi isso o ue a
quado para deter em suas mãos o monopólio do poder. Exa­
minaremos mais adiante o uso que êle fêz dêsse poder, ao Oposição dos Trabalhadores e os Centralistas emocráticos
tentaram fazer em 1921 e 1922, o que os trotskistas fizeram
transformar a estrutura social da União Soviética, e veremos ',
de 1923 em diante, os zinovievistasde 1925 a 1927: os buka­
como essa mesma transformação, que manteve constantemen­
seu r�nistas em 1928 e 1929, e outros grupos menores e menosa.r-
te a sociedade num tremendo fluxo, ajudou a perpetuar o
Stálin se conside rava o procura dor-ger al tlculados, até stalinistas, em várias ocasiões. /
poder. Contudo, até
riado, o tutor da �evolu ção. Krusch ev, na sua e _ x­ Não posso alongar-me aqui na história dessas lutas e ex­
do proleta _ purgos, que já relatei alhures. Evidentemente,. à medida que
posição de 1956 sôbre os cri�es· e desum.anidade de St�h�, os sucessivos cismas eram suprimido� o monopólio do poder
disse: "Stálin estava convencido de q���º-._e!_é!__llecessario tornava-as mais intolerante e riglcfo. No comêço, o partido
para a de1esa 4:>J>)nterêsses da classe trabalhadora... En­
único ainda consentia liberdade de expressão ·e de iniciativa
carava tudo isso do ponto de vista. . . do interêsse do povo
política, pelo menos, aos seus próprios membros. Depois, a oli­
trabalhador ... do socialismo e do comunismo. Não podemos
dizer que êsses fôssem atos de um dés ota irres onsável. .
. �arquia go�ern� n�e privou�os dessa liberdade; e o monopó­
bolchev iques se lio do partido umco converteu-se, de fato, no monopólio de
11 Nisso reside tôda a tragédia". ontu o, s•e os
uma facção única - a facção stalinista. Na segunda década
sentiram, no princípio, com direito a agir como fiéis deposit�­
so­ da Revolução, ganhou forma o totalitarismo monolítico. Fi­
rios da Revolução e dos interêsses da classe trabalhadora, nalmente, o govêrno da facção única tornou-se o govêrno
mente durante o interregno da dispersão e virtual ausênc ia
autocrá tico, com todo o seu pessoal do seu chefe. O fato de Stálin só ter podido estabe­
da mesma, Stálin reteve o poder lecer a sua autocracia sôbre o cadáver da grande maioria dos
vigor muito �ois dessa situaçao ter cessado, em face de líderes originais da Revolução e de seus adeptos, e de ter es­
u�lasse traalhadora de nôvo reunida e em rápido cresci­
calado o poder apoiado nos corpos sem vida até de bons sta­
mento; e utilizou todos os recursos do terr� •e do embuste
para imp"eair que os trabalhadores, o povo, de u� �º?ºgeral, linistas, dá-nos uma medida da profundidade e do vigor da
seus direito s e sua heranç a revolu cionar ia. resistência que teve de quebrar.
11 reclam assem
As metamorfoses políticas do regime foram acompanha- 1
- A consciência do Partido �s�a'g, •em 9,erpét_uo conflito
com essas realidades do monopoho do po er. Ja em 1922,
• das_ ºr uma degradação das idéias de 1917. Ao povo foi en­
smaao que o socialismo não requeria meramente a proprie­
Lênin, apontando de seu leito mortuário para Stálin, advertia dade e planejamento nacionais, a rápida industrialização, co­
Grande
o Partido contra o "embusteiro", o dzierzhimorda, o letivização e educação popular, mas que, de certo moldo, o
Russo chauvinista que estava de volta para oprimir os fracos
arados ; e confes sou que se sentia "profu ndame nte chamado culto do indivíduo, o privilégio nu e cru, o veemen­
e os desamp te antiigualitarismo e a onipotência da polícia, faziam parte
ússia" ,. pÕriiãÕoo!e r
c�pado, J>erante os trabalhadores da �
anos depois , Kamen ev tentou _ _, integrante da nova sociedade. O marxismo, a mais crítica e
a vertido mais cedo. Três em
irreverente das doutrinas, foi esvãziado do seu conteúdo e re­

vão recordar a um tempestuoso Congresso do PartidQ.._Q_.Je
sessão d o Polit- duzido a um conjunto de sõiismas e cânones quase eclesiás-
tàíiiento de Lênin. Em 1926,. Trotski, numa

30 31
ticos, destinado a justificar cada u m dos decretos de Stálin e em 1921; a derrota de Trotski, em 1923, e a sua exp ulsão em
tôdas as su as extravagâncias pseu doteóricas. Os efeitos de­ 1927; as depurações da década de 1930; as revelações de
vastadores que tudo isso teve na ciência, arte e literatu ra so­ Krusch�v. sôbre Stálin, em 1956, para mencionar apenas estas,
viéticas ·e no clima moral do país são bem conhecidos. E C2!!!9 Os sectanos argu mentarão interminàvelmente a respeito dessas
o stalinismo foi, du rante mais de três décadas, a do u trina qu ebras na continuidade e apontarão aquelas em que a Re­
o1icial de u ma organização mu ndial, � degradação do �ocia­ volu ção foi "finalmente" traída e derrotada. ( Cu riosamen­
lismo e do marxismo também teve graves rep�rcussõ_��o te, o próprio T�, nos anos de seu último exílio, tentou
campo internacional, especialmente no movimento trabalhis­ persu adir algu ns de Se_!!S adeptos excessivamente -·zelosos de
tã ocidental; e pretendo examiná-las nu m diferente contexto. q ue a �evolução p.�o--; cheg� Bin com a su� de2ortação).
A Revolu ção Russa tinha alguns traços de irracionalic!a­ Ess�s dispu tas sectanas possu em se u significado próprio, es­
de em comu m com as revolu ções bu rg uesas de q ue ela foi a pecialmente para os historiadores que poderão extrair delas
tiltima. Isso representava, ll!:f_m certo se!_!_tid_o, o el,emento algu mas partículas de verdade. Os historiadores franceses, os
bu rguês em seu caráter. Como mestre das -�e.E_ttraçõ�s, StáITn n:elhores de?.tre �les, estão até hoje divididos em pró-jaco­
foi o descendente de_ Cromwell e Robespierre. O seu terror bmos e antl)acobmos, dantonistas, robespierristas, hebertis­
foi mu itíssimo mais cruel e repulsivo do qu e o de seus ante­ tas, defensores da Comu na, termidoristas e antitermidoristas,
cessores, pois exerceu o poder du rant•e mu ito mais tempo, em bonapartistas e antibonapartistas; e su as controvérsias sempre
circu nstâncias mais deprimentes e nu m país habituado desde tiveram u ma relação íntima com as preocu pações políticas cor­
remotas eras à brutalidade bárbara de se us governantes. rentes do cidadão francês. Estou convencido de qu e os his­
Stálin, convém recordar, era também o descendente de Ivã, toriadores soviéticos também se dividirão du rante mu itas ge­
o Terrível, Pedro, o Grande, Nicolau I e Alexandre III. Com rações, tal como nós, participantes do movimento comunista
efeito, o stalinismo pode ser descrito como um amálgama de das décadas de 1920 e 1930, nos dividimos em trotskistas
marxismo com o atraso primordial e selvático da Rússia. Em stalinistas, bukarinistas, z-inovievistas, decemistas, etc.; e es�
todo o caso, na Rússia, as aspirações da Revolu ção e as suas pero q�e algu ns dêles sejam também capazes de apresentar,
realidades encontravam-se mais profundamente separadas do sem medo nem embaraços, j ustificações para os menchevi­
que em qu alqu er ou tra parte; por isso foi necessário mu ito ques e revolucionários sociais.
mais sangue e mu ito rp.ais hipocrisia para tapar a terrível dis­ . Mas � gu es§_uôb����A�v<ilit5.ão
fica resolvida com �.S./fü�Q.!§.1}.J.!tas, pois as transcende. Tem,,,,1:_1_ª0
crepância. de
Então, perguntar-se-á, onde reside a continu idade da ser:--eé.-1Ufgã0ãpor ou tros e mãis an:ij;iOs--êrffêrios. Não é
Revolução? De que realidade se reveste, após tôdas essas me­ preciso reportarmo-nos a Clemenceau , qu e certa vez disse: "A
tamorfoses políticas e ideológicas? Depois de tantas eru pções revolu ção é u m bloco sólido do qu al nada pode ser su btraído".
de terror e ou tros cataclismos? Interrogações semelhantes su r­ Mas algo se poderá dizer de acôrdo com o critério de Cle­
giram a respeito de ou tras revolu ções. Onde e qu ando, por menceau, mesmo que o "bloco" seja u ma liga com uma gran­
exemplo, a Revolu ção Francesa chegou a se u têrmo? Foi qu an­ de percentagem de metal básico.
do os jacol5inos se •entregaram à su pressão da Comu na e dos Um modo de abordar nosso problema é dizer qu e os con­
Enragés? O u quando Robespierre su biu os degraus da gui­ temporâneos dE:.�.J'n'QJ�ãQ.,_f�.C9Jlh�çem. a sua continuida­
lhotina? No momento da coroação de Napoleão? O u no seu
e CC:m�t1I_!_!!.rrt9s. -.,;
ÇÍ,��-:í?2f���a�
de .���r�!lt.�ª!:� q!:f�.}�:SS_u me, m pe!_é:ll,��- �Í�etri�es
flSSim procedem também no nosso tempo. A
destronamento? A maior parte dêsses acontecimentos, apesar
do seu caráter drástico, está envôlta em ambigüidades; s.9- grandelinha divisória de 1917 ainda avulta, com a mesma mI:'
mente a qu eda de_Napoleão assinala, inequlvocamente, o fim tictez de sempre, na consciêncfã da hu manidade. Para os nos­
do ciclo históricQ, Na -mssia, u ma ambigüidade semelhante sos1deóJogos e estadistas, e mesmo para o povo comum, os
cerca�tecimentos tais como o levantamento de Kronstadt, probJ.emas então equ acionados ainda estão por resolver. E o

32 33
fato dos governantes e líderes da União Soviética nunca terem tos. Mas isso foi bastante para influenciar decisivamente a
deixado de invocar suas origens revolucionárias também tem evolução da União Soviética e inculcar uma certa unidade ao
sua lógica e conseqüências. Todos êles, incluindo Stálin, processo de sua transformação social.
Kruschev e os sucessores dêste, tiveram de cultivar no espí­ Mencionei a incongruência da tentativa para estabele­
rito de seu povo o sentido da continuidade da Revolução. Ti­ cer o �ontrô1e social sô.bre um processo produtivo que não é
veram de reiterar os compromissos de 1917, enquanto êles .
de car.ater social e também a impossibilidade de um socialis­
próprios os transgrediam; e de reafirmar, com insistência, a mo fundado na carência e na escassez. A história da União
fidelidade da União Soviética ao socialismo, E.sses votos e Soviética nestes cinqüenta anos foi tôda ela uma luta, em
fidelidades tinham de ser inculcados em cada nova geração
e grupo de idades, na •escola e na f.ábrica. A_t!'�c:Jjção da Re­ parte vitori°-
_ .��---e •em p�glória, para vencer ��inco�
volução dominou o sistema soviético de educação. Só por si. gruência e superar a carência e a escassez. Isso significou,
isso já constitui um poderoso fatõrêfêcõ-ntinüldade. É ce,rto em primeiro lugar, uma intensiva industrialização como um
que o padrão educacional está organizado de modo a ocultar meio para atingir um fim, nãb um fim em si mesmo. As re­
as quebras de continuidade, a falsificar a História e a elimi­ lações de pr�priedade feudais ou mesmo burguesas podem
ser compative1s com a estagnaçao _
nar suas contradições e irracionalidades. Apesar de tudo, econômica ou um ritmo in­
porém, o sistema educacional ,reavivou _ con-sfaiúemente _ na dolente de crescimento. A propriedade nacional não o é es­
m��-�<3- 4õ."iSJ�Qi_cQn._Sdência de.seu patrimônio r•evolucion�_rio. pecialmente quando foi •estabelecida num país subdesenv�lvi­
Subentendida nesses fenômenos ideológicos e políticos do, por meio de uma revolução proletária. O sistema com­
está a continuidade real de um sistema baseado na abo!isffio porta em si um impulso ir.resistível para o rápido progresso
dçi gropriedade_�ivada e na completa nacionaliz�5.füu!ªJ.n­ a necessidade de lutar esforçadamente pela abundância e �
dústria e dos banéõs.'rõéías as mudanças· cfegovêrno, lide­ ur�ência em desenvolver aquêle processo social produtivo que
rança partÍ<lãria e orientação política não afetaram essa bá- exige o contrôle social racional. No curso de seu progresso
1 sica e inviolável "conquista de outubro", É essa a roc�a q�e, para a Rússia, foi mais difícil do que precisava ser, em
onde a continuidade ideológica assenta. As relações de �[9- virtud� ?ªs guerras, corridas armamentistas e desperdícios
priedade ou as formas de propriedade não constit�ui burocratlcos, novas contradições foram surgindo; os meios e
fator passivo ou indiferente no desenvolvimento da socieda­ os fins er�m perpetuamente confundidos. A medida que a ri­
de. Sabemos com que profundidade a mudança das formas queza nacional era acumulada,_ a massa de consumidores, que
de propriedades feudais para as burguesias alterou o mo do também são os produtores, estava exposta a uma contínua, e
de vida e a configuração da sociedade ocidental. Ora, uma até agravada, carência e pobreza: e o contrôle burocrático
propriedade nacional p1ena e total dos meios de produção sôbre todo e qualquer aspecto cJ.a vida nacional substituiu-se
acarreta uma transformação a longo prazo ainda mais fun­ ao contrôle e responsabilidade sociais. A ordem de priorida­
damental e multilateral. Seria errôneo pensar que existe apenas des como que fôra invertida. As formas de socialismo foram
uma diferença quantitativa entre a nacionalização de, diga­ forjadas ant·es de existir o conteúdo, a substância econômi­
mos, 25% da indústria e li00% de propriedade pública. A ca e cultural:_ e, à medida que o conteúdo era produzido, as
diferença é qualitativa. Numa sociedade industrial moderna, formas deterioravam-se ou eram destorcidas. No início as
a propriedade pública total está fatalmente destinada a criar ins�ituiç�es político-sociais criadas pela Revolução erguia�-se
um ambiente essencialmente nôvo para a atividade produti­ mmto acima do nível real da existência material e cultural da
va e as ambições culturais do homem. Como a Rússia pós-re­ n�ção;_ depo�s, quando êsse nível subiu, a ordem político-so­
volucionária não ·era uma sociedade industrial moderna, a cial foi ,rebaixada pelo pêso da burocracia e do stalinismo. A
p.ropriedade nacional não podia, por si só, criar êsse ambien­ ?rópria finalidade_ foi abatida pelo nível dos meios: a imagem
te qualitativamente nôvo mas apenas alguns de seus elemen- ideal de uma soC1edade sem classes foi aviltada pelas misé-

34 35
rias dêsse período de transição e pelas nec•essidades mais
c�uª _§_de _ul!l,a_-ªgt_lllu!açã�Jim_itiva de .!' i__�u-��a.
Essa inversão de prioridades, essa confusão de fins e de
meios e a desarmonia resultante entre as formas e o cont•eúdo
da vida nacional. são as causas mais profundas das crises,
fermentações e agitação da •era pós-stalinista. O contrôl_�_b_u­
rocrático, que substituiu o contrôle social, converteu-se num
freio para novos progressos; e a nação está ansiosa por admi­
nistrar a sua própria riqueza e ser a s•enhora de seus próprios
destinos. Ignora-se como dar voz a essas aspirações ou o que

3
fazer a seu respeito. Várias décadas de govêrno totalitário e
de disciplina monolítica roubaram ao povo a sua .capacidade
de expressão própria, de ação espontânea e de organização.
Os grupos governantes improvisam e remendam reformas eco­
nômicas, perdem seu ascendente sôbre o espírito da nação
mas continuam fazendo tudo o que podem para manter o A Estrutura Social
povo inarticulado e passivo. São êsses os limites da deses­
talinização oficial, por detrás da qual se vislumbra uma deses­
talinização não-oficial, uma •expectativa generalizada de trans­
formações de alto a baixo. Tanto a política oficial como o es­
tado de espírito não-oficial alimentam ou reanimam as recorda­
ções não dissipadas do heróico período inicial da Revolução,
com sua muito maior liberdade, racionalidade e humanidade.
:8sse evidente
• retôrno ao passado, com a incessante peregrina­
ção ao túmulo de Lênin, provàvelmente encobre uma embara­
çosa pausa entre a era de Stálin e um renascimento no pensa­
mento criador e ação histórica da União Soviética. Seja qual
EXAMINEMOS AGORA, em têrmos gerais, as transfo
fôr a verdade, o mal-estar, os exames de consciência e os agru­ _ rma-
pamentos da era pós-Stálin testemunham, à sua maneira, a çoes que ocorreram na estrutura social da URSS _
um tal
exame poderá apresentar algo como um balanço socioló
continuidade da época revolucionária. gico
prov1sorio dêsses cinqüenta anos.
_ Ao discutir antes a questão da continuidade da Revolu

çao, sub linhei
_ .. ? .s�g�ificado da .�ircunstância de que O Esta­
do e �o a m1ciat1va privada ou a grande emprês
'. � ã'capi­
tahsta--L _e o n onsave l pela industr ializaç ão e modern
, ��� �o 1,
d� Umao Sov1etica. :8ste fato determinou a dinâmica do cres­
c� ento :co ôm1co so iét_i_fo t! O carãte_r datransformaç
. 7: _ � ão
social. Nao e necessano alongarmo-nos aqui sôbre o aspec­
_
to estritamente econômico do problema. Todos nós
sabemos
que a União Soviética guindou-se da posição da mais
atra­
sada das grandes nações européias para a categoria
' de se-

37
gunda potência industrial do mwndo; as conseqüências inter�
naci ona is da sua ascensão s ão acompan hadas por todos nó s tumulto dêsse meio século, pelo
que, em s
durante estas últimas décadas. Devo confessar, entr-etanto, o�an�os e perdas a onstrução e a de eu desenvolvimento,
: struição, foram inse�
como uma das pessoa s que testemunharam de perto as iases parave�s ; e a co mbma '.
çao de esfôrço produtivo, trabalho im�
in iciais dessa ascensão e as estarr ecedo ra s dif iculdades que produtivo e devastaç.ão afetou tanto a
clima espir itual da URSS. vida material como 0
as acom pan haram , que ainda n ão me habituei a confiar axio�
màticamente no result ado. Não acr editaria, digamos, !!m 1930,
nem mes mo em 191-9., q��_él__gn_ião SovTéüca progr·ediria tão
A primeira e mais impressionante carac
terística da cena
transformada é a ur ban
r apidamente @?nto O _fêz egue. em 1967 estaria produzindo ização maciça da União Soviética .
_:-para dar apenas uma indicação - 1'00 milhões de tonela� Depois da Revolução, a população urb
ana cresceu em mãis
das de aço por ano. Isso é mais do que a Grã�Bretanha, a d: .100 milhões d pessoas. Também n est
: e ponto se faz neces�
República Federal Alemã, a França e a Itália produze� s ana _ uma corr eçao na e
scala de tempo. A primeir
a década,
juntas, e apenas 20 milhões de toneladas menos do que foi depois de 1917, foi marcada por u
m despovoamento das ci�
p roduzido pelas siderurgias dos Estados Unidos. Tal. fato dades e um movimento inverso lento.
constitui a base de uma in dústria de engenharia e uma produ� Guerra Mundial foi i�ênt co, pelo . menos O efeito da Segunda
ção de bensessenciaisdi...ff�!!sfcir1_11aç�o �ndustrial �pr�xi�a� -� en _ ! : na Rússia européia.

damente tª-.�9r.�_nde__ quanto a norte�amencana: A� mdustnas �� ���{fde urbam za,çél_2_ �!-�s1v_él foi:_alll e1_1tr� os anos de
.......L.... , e__�:gt_r�_l95Q e . .1965. Cêrca de 800
de bensde consumo estão, evide ntemente, mmt1_ ss1mo atrasa � �randes e médias proporções e mais de 2. 000 pequenos con
cidades dé
das em relação àquela . Mas, deixando de lado mais •estatísti� JU�t�s urbanos foram construídos. Em �
1926 havia apenas 26
cas econômicas, passarei a analisar agora, de preferência, as milhoe s de habitantes ci
tadin os. Em 196
concomitâncias e conseqüências soc10lóg icas do progresso d�tes em cida des atingia os 125 mi 6, 0 número de resi�
e.conômico. qu!nz e. ano�, a população urbana aum lhões. Só nos Ultlmos
ent
Antes de prosseguirmos, talvez fôsse conveniente reco,� l�oes, isto e, tanto quanto a população ou em 53 a 54 mi�
dar que êstes _<;_i�gyenta anos nffeo . constituíraII1 um _p�r_íodo mcas N? espaço de u a geração, a pe total das Ilhas Britâ�
: 31 rcentagem de habitan�
unitáriQ..�__ i11i!!_t�ri::�2to....ck.ç:r�çitI1gl}t.Q_e desenvolvime.l!t? S�_!e t s c1 tadmos, em relaçao
: à população total, passou de 15 para
o ou oito do s cinqüenta anos fo ram ocupados por host1.lidades
arm adas que_ r.esultaram e m gi::àve s r etroeoe sso s e d str ui õe s
cerca de 55'(a e está subindo ràpidame
nte para os 60%. No s
: � Estados Umd�s - tomando o registro
em vasta escala, sem paralelo em qualquer outro pais behge� - foram pvec1sos 160 anos para a popuprévio nesse do mínio
lação urbana aumen�
1 rante:rvtafs do ze ôí.i" treze º anos forâm co nsumidos em reparar tar em .100 milhões; ou, s
e fizermos a comparação percen�
e-sU.bstituir as _Qerd"ãs sofridas. Os períodos efetivos de _cr�s� tual mais relevante, fo i nece
ss á io um
Ir cimento abrangeÍri-:Õs··anos·cre 1928 a _1941e de 1950 em djagte, 1 �50 a 1950, para que a proporça� o de re século completo, de
sidentes ur,banos su�
cêrca de trinta anos no total. E, durante ê sse tempo uma pro� b1sse de 15 a 60%. Durante êsses ce
m anos o fe nomenal
porçao extraordinàriamente elevada dos recursos soviétic_os, cre�cimento das cidades e outras povo
ações ;m er icanas foi
cêrca de um quarto· da renda nacional, em média, foi a bsorvida estimulado e facilitado pela imigração
na cor ri da armam entista que precedeu e se seguiu à Segunda d� capital e té_c� ica estrangeiros e a imuenm massa O influxo
idade à i�vasáo ini�
Cfoerra Mundial. Se pudéssemos calcular o progresso em uni� miga e destr u1çao de guerra
, para n ão fal
dacfes ideais de anos verdadeiramente pacífico s, co ncluiría� los propí_5'.ios do clima . A urbanização sovarmos dos estímu�
mos que a Un ião Soviética logrou o seu P!ogress e m vinte
� e:� nao tem paralelo nª_J-fi§t9_!Hi. Sem iética , em ritmo e Ir
elh
ou, no máximo, vinte e cinco anos. Isto deve ser tido na de� ça� na estrutura social, se tivesse ocorrido ante trarislorma�
vida conta quando se procura avaliar o co metimento. Mas, mais favo ráve is, teria gera
em circunstâncias
do gigantescos ·e desconcertantes
é claro, a sociedade soviética atual é o produto da agitação e p_roblem!s ?e hab_i:a_ção, instalações, sa
úde
circunstancias sov1et1cas era co mo se tive e educação; .e as
ssem sido proposita�
38
39
'
damente arquitetadas para intensificar ·e ampliar, desmesura� da áspera natureza russa, a mourejar de sol a sol durante o
damente, a confusão e os choques. verão e a cochichar perto da lareira a maior part·e: do inverno.
Só uma diminuta .E��rção da expansão foi devida �o Eram forçados e condicionados agora a uma rotina de traba�
cr�.?cimeriFonãturãíou �--l11JB�él<;_à.g-�__ciilii!.d&9,s1 provenien� lho inteiramente nova. Resistiram, trabalharam apática e de�
tes de outras cidades. A massa dos novos habitantes urbanos sajeitadamente, quebraram ou danificaram ferramentas, e an�
era composta Oe camponeses, transferidos de suas aldeias, daram, turbulentos e descontentes, de fábrica em fábrica, de
1, ano após ano, e dirigidos para o trabalho industrial. T�J_como mina em mina. O ovêrno teve de impor a disciplina por meio
as antigas nações��is_ayémçiilclas_clo_ OcidenteL él União So� de códigos de tra�alho severos, ameaças de deportação e de­
viétic:2 encontrou a��ipal _reserva _ de _mão�<ie:obrél Lndus� portações concretas para os campos de trabalho forcado. A
trial_.E:�__gente do c_ª]P.J?O. Nos estágios iniciais, o crescimen� escassez de habitações e a aguda carência de bens de consu�
to Oa emprêsa capitalista ocidental foi acompanhado, fregüen� mo, devida em grande parte às medidas deliberadas de uma
temente, da expropriação obrigatória de agricultores - na política anticonsumidora ( o govêrno estava empenhado em
Grã�Bretanha, das enclosures* - e de uma legislação obter a máxima produção de bens de transformação indus�
trabalhista draconiana. Mais tarde o Ocidente contou, prin� triai e munições) agravaram ainda mais as agruras e a tur�
cipalmente, com o trabalho espontâneo do mercado de mão� bulência. Era comum nas cidades, ainda em tempos recentes,
de�obra, com suas leis de of.erta e procura, para atrair o con� várias famílias compartilharem de um único quarto e cozinha:
tingente humano requerido pela indústria. ,:Êste eufemismo e, nas áreas industriais, massas de operários viveram duran�
significa que no decorrer de muitas décadas, se não de sé� te muitos anos arrebanhadas em casernas. O crime impera�
culos, a superpopulação rural e, por vêz•es, a fome, atraíram va, desenfreado. Simultâneamente, porém, muitos milhões de
r grandes massas de mão�de�obra ociosa para o mercado de homens e mulheres recebiam educação primária ou mesmo se�
trabalho. NéLlJnião Soviética, o Estado assegurou o supri� cundária, eram treinados ·em profissões industriais especializa�
11 mento de mão�de�obra por meio de planejamento e direção. das e estabilizavam em novos meios de vida.
Sua posição econômica dominante foi o fator d-ecisivo; se:m Com o pass_é!_r��--,!��p<:>, a fri��E__s�ci�Le os coIJJlitos
êle, dificilmente seria possível executar uma transformação engendrados pela convulsão político�social Ioram�se atenuan�
tão gigantesca, num prazo tão curto. do. Desde a II Guerra Mundial, os feitos da indústria e das
A transferência da população rural teve início, de um armas soviéticas parecem justificar a violência, o sofrimento,
modo efetivo, nos primeiros anos da década de 1930, e -es� o sangue e as lágrimas. Mas pode�se sustentar, como sus�
tava intimamente ligada à coletivização da lavoura, o que ha� tentei durant,e tôdas essas décadas, que sem a violência, o
bilitou as agências governamentais a lançarem mão aos exce� sangue e as lágrimas, a grande obra de construção poderia
dentes de mão�de�obra e a deslocarem�na para a indústria. ter sido realizada muito mais eficientemente e com muito mais
O�primórdios dêsse Erocesso foram extremamente difíceis e salutares conseqüências sociais, políticas e morais. Seja como
/ envolveram o emp�go de mmta fôrça e violênciç.. Os liábi� fôr, a transformação da •estrutura social continua; e continua
tos da vida industrial organizada e r·egulada pela sirena da sem essa estimulação forçada. Ano após anC>,_aJ?Opulação ur�
fábrica, que noutros países foram inculcados aos trabalhado� ba�él _e,xpande�se nél I!l_esma escala de antes; e o processo, em�
res, de geração em geração, pela necessidade econômica e pela hora planejado e regulado, obedece ao s•eu próprio ritmo. Na
legislação, eram inexistentes na Rússia. Os camponeses acos� década de 1930, o,, govêrno teve de arrastar para as cidades
tumaram�se a trabalhar em sua gleba de acôrdo com o ritmo uma sombria e renitente massa de camponeses; na década
atua1,-·ou -uin poucó mais, o govêrno defronta�se com um fluxo
" Parcelas de terreno comunitário que, por fôrça de uma lei, o Enclosure constante e espontâneo de gente do campo para as cidades; e
Act, passaram à propriedade privada. Equivalente aproximado de coutada tem de esforçar�se para tornar a vida rural um pouco mais
ou terra defesa. - (N. do T. ) atraente, a fim de manter nas granjas a mão�de�obra jovem.
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tos e salários em v1gencia. Evidentement•e, na União Soviéti­
Mas a atual tendência da população ainda continuará, provà­ ca nada existe que se pareça à nossa desiguaiaade "normal"
velmente, por algum tempo; e em mais dez ou quinze anos, entre rendas que fora m ganhas legitimamente ,e rendas ime­
é muito possível que três quartos da população vivam em ci­ recidas. A desigualdade é apenas nas rendas auferidas no
dades. trabalho legítimo. Contudo, expor sua verdadeira extensão
Os trabalhadores industriais, a P'equena minoria de 1917, s·eria evidentemente uma iniciativa demasiado arriscada e pe­
formam agora a mais numerosa classe social. O Estado em- rigosa para o govêrno soviético. As discrepâncias nos venci­
11 prega cêrca de 78 milhões de pessoas em oficinas e escritó­ mentos dos trabalhadores parecem ser semelhantes às que se
rios; empregava 27 milhões no final da II Guerra Mundial. encontram na maior parte dos países; e são muito res­
Mais de 50 milhões de pessoas trabalham em indústrias pri­ tringidas pelo maior valor e alcance dos serviços sociais na
márias e manufaturadoras, na construção civil, transportes, União Soviética. Em anos recentes, a estrutura salarial foi
comunicações e granjas do Estado. O resto ganha a vida em repetidamente revista. O primeiro período de desestaliniza­
vários serviços: 13 milhões nél Saúde, Educação e Pesqui­ ção acarretou uma reduç,ão evidente das desigualdades, cuja
sa Científica. Não é fácil distinguir com precisão o número exte1:são é difícil avaliar. Subseqüentemente, a nova política
de trabalhadores manuais ,e técnicos, por uma parte, e de tra­ salarial defrontou-se com uma resistência crescente por parte
balhadores de escritório, por outra, visto que as estatísticas dos gerent•es e da aristocracia trabalhista. Contudo, numa
soviéticas os reúnem todos - o significado sociológico dessa economia em expansão contínua e rápida, a elevada mobili­
orientação será examinado mais adiante. O número de ope­ dade social não permite que a estratificação se torne incon­
rários, prõpriamente ditos, deve oscilar entre 50 e 55 milhões. venientemente rígida. Grandes_ massa� de trabalhadores são
A classe trabalhadora encontra-se altamente estratifica­ c?n�tantemente_ tr�im1c:41s_paFa o d�sempenho de ta"re1_ã.s·e�pe­
c1ahzadas e_tr_����am de,__ 9!.UJJ(>,S de __re:ri_da inf:erior para su-
da. A política trabalhista de Stáfuugavitava_:�m.JôrnQ daus­
calas a1ferenciais de vencim�!JJºê. �-�él)�i;jps, erguend.9 a aris­ perior. ·
tocracia operária muito acima da massa de trabalhadores se­ -·· A_, estratificação social e cultural da classe trabalhadora
mi-es ecializados e não-es ecializados mal rem a. Até � por vêzes, ainda mais importante do que a econômica. Eis
certo ponto, isso era justi icado pela necessidade de oferecer um tema que não se presta a uma descrição ou análise socio­
incentivos à especialização e eficiência; mas as discrepâncias lógica nítida; tudo o que podemos t•entar aqui é transmitir
salariais iam muito mais além. Sua extensão real era e ainda uma idéia geral e indicar a complexidade do problema. O
é rodeada por um extraordinário sigilo. Desde a década de crescimento prodigioso da classe trabalhadora redundou em
1 �O gue o govêrno não publica os dados pertinentes à es­ muitas incongruências e discrepâncias sociais, refletindo as
trutura salarial do país e os estudiosos têm ae contentar-se suc·essivas fases da industrialização e sua sobreposição. Cada
com informações fragmentárias. Durante a era staliniana de­ fase deu origem a uma camada diferente da classe trabalha­
senrolou-se uma feroz caça às bruxas contra os niveladores dora e produziu divisões significativas. A grande maioria da
- ou os "igualitaristas pequeno-burgueses"; mas foi menos classe operária está fortemente marcada por suas origens cam­
eficaz do que par•ecia e muito menos, por certo, do que as ponesas. São muito raras as famílias operárias que estivessem
caçadas políticas. estãbefecidas em cidades desde antes da Revolução e que ti­
A supressão de dados sôbre a estrutura de vencimentos ve!sem qualquer espécie de tradição ou recordações da luta
e salários indica com que consciência culpada os grupos go­ de classes ré-revolucionária. Com efeito, a mais antiga ca­
vernantes, sob o regime de Stálin e depois dêle, pross·egui­ ma a e trabalha ores urbanos é a que formou a si própria
ram em sua política não-igualitária. Essa mesma consciên­ durante o período de reconstrução da década de 1920. A sua
cia culpada n.ão impede os nossos capitães de indústria de adaptação ao ritmo da vida industrial foi relativamente fácil
darem publicidade aos seus lucros nem inibe os nossos go­ - êsses trabalhadores ingressaram nas fábricas por sua pró-
vernos de revelarem os fatos sô.bre as escalas de vencimen-
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pria iniciativa e ainda não estavam sujeitos à regimentação seus novos lugares um ambiente mais capacitado para absor­
rigorosa. Seus filhos são elementos mais ambientados e distin­ ver e assimilar os recém-chegados do que as cidades e esta­
tamente urbanos da população industrial. De suas fileiras belecimentos fabris da década de 30. O processo de adapta­
saíram os vidvizhe:ntsi, os elementos diretivos, os gerentes e a ção foi menos doloroso. Tornou-se mais fácil ainda para as
11 aristocracia operária das décadas de 1930 e 1910. Os que se levas seguintes de r·ecrutas que chegaram nas fá.bricas duran­
conservaram nas fileiras eram os últimos trabalhadores so­ te os anos pós�Stálin, quando os velhos códigos de trabalho
viéticos que se dedicavam livremente, ao abrigo da Nova foram abolidos, e que se instalaram· em suas ocupações numa
Política Econômica, às atividades trabalhistas, mesmo às gre­ relativa liberdade de mêdo e necessidades. Os grupos mais
ves, e gozavam de uma certa liberdade de expressão política. jovens, os imigrantes mais recentes, e os filhos criados nas
O contraste entre essa camada e a segl!.inte é extrem�­ cidades dos trabalhadores que chegaram primeiro, entravam
mente marcado. Cêrca de vinte milhões de camponeses fora_w nas oficinas com uma confiança em si próprios que faltara
transferidos ara as ciaades, na década de 1930. Sua adapta­ aos antigos; e desempenharam um importante papel na re­
çao oi penosa e ata a oa a. Por muito tempo, continuaram forma das antiquadas rotinas de trabalho e na transformação
aldeões desarraigados, cidadãos contra sua própria vontage, do clima reinante na vida das fábricas soviéticas. Quase todos
desesperados, anárquicos, nostálgicos e desam rados. Os possuem educação secundária ("completa ou incompleta") e
hábitos da fãbdca prostravam-nos e eram manti �r8 os sob con­ muitos seguem cursos acadêmicos em suas horas livres. :São
trôle por um treino e disciplina implacáveis. Fo_ram êles que freqüentes os choques entre êles e os seus capatazes e geren�
de.r<Jm .às...Q_g.§l_ci� soviéticas o .as1:ecto sombrio, Iilis�ráye1. se­ tes menos eficientes e menos civilizados. Trata-se, sem dúvi­
�bárbaro, qu� t�<.L!Ê�q{!:���Iile�_!e__e�anta os. vjsitan!es es­ da, do grupo mais progressivo da classe trabalhadora sovié­
tran9eir9s.1raf!.SJ)2��E�P1.. P?ra a indústr�<3: Q. in!fjy!gyaljs1110 tica, abrangendo os construtores das usinas nucleares, com­
pri�_it�voj?�-�!�l!�S. A po[ítica.?fi_c:l�l 1<?1191!.. cgp:1_ i�êQ,._in­ putadores e naves espaciais, trabalhadores tão produtivos
citanêio. os recrutas industriais a. competirem. �ntre si para a quanto seus congêneres americanos, embora a produtividaq.e
conquisfã ÔeÕÔnus, pr�aj�C>S e percentagens SÔbr,e a fabricação média soviética por homem�hora ainda seja apenas 40% ou
de peça·s·exfiâs. o oi;ierário ª'ª· assim, jogado ,contra o op�rá­ talvez menos da produtividade norte�americana. A baixa
rionãsEãncâdas das fábrica�; e os pretextos de "competi�ão média é devida, evidentemente, à grande diversidade da mão­
"1
socialista" foram usados para impedir a formação e manifes­ de-obra industrial soviética, às muitas diferenças e desigual�
tação de qualquer solidariedade de classe. O terror da déca­ dades nos níveis de cultura e de eficiência, como há pouco
da de 1930 deixou uma indelével marca nos homens dessa tentei descrever. Mesmo assim, a Erodutividade média sovié­
categoria. A maioria dêles, hoje na casa dos cinqüenta anos, tica está à frente da Europa Ocidental; e vale a pena lembrar
é provàvelmente - e não por sua culpa - o elemento mais que, na decada de 1920, quando a produtividade americana
retrógrado entre todos os trabalhadores soviéticos: sem edu­ era aproximadamente um têrço do que é no presente, a pro­
cação, gananciosos e servis. Sómente em sua segunda geração dução soviética por homem-hora atingia apenas um décimo
essa camada da classe trabalhadora poderá superar o choque da americana. 1
inicial da urbanização. Esta descrição, muito esquemática, dá�nos sõmente uma
Os campone,�f!�L'ltte__ c_h,�garam às fábricas na ressaca ela idéia geral da extraordinária heterogeneidade social e cultu­
Segunda Guerra Munctial ainda e�erimentaram as penos3;1s ral da classe trabalhadora soviética. O processo de trans­
condições de vida, a Iãlta vTrtuãrae um iar. a severa disci­ plantação ,e expansão foi demasiado rápido e tempestuoso
pllna de trãEãllíõ e o terror. Mas a sua maioria chegava às para permitir uma assimilação mútua das diversas camadas,
cidades voluntàriamente, ansiosa por livrar-se das aldeias de­ a formação de uma concepção geral e o desenvolvimento da
vastadas e famintas. Foram preparados para a disciplina in­ solidariedade de classe. Vimos como, poucos anos após a Re�
dustrial por vá.rios anos de vida militar e encontraram em volução, a retração e desintegração da classe trabalhadora
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/
./
permitiram que a burocracia se estabelecesse como fôrç/ so� tüo estupenda vitória em 1917 mas a que, por tanto tempo,
cial dominante. O que aconteceu depois propiciou�lhe cbnso� não foi capaz de dar continuidade.
l idar a sua posição. A maneira como os novos trabal hadores
industriais eram recrutados e o furioso rit:õ:iõâecrescimento

fu���i:é;t�!i:!�f�������J�;�f
un1ê!ade, e de ·e�_ç_�:q_trnr •.
c��:!tu� c�:��:,·n=�t�!.
s e

··sõcio:.p°.füfca. Os
O reverso da •expansão na .classe operaria é a contração
da classe camponesa. Há quarenta anos, os pequenos proprie­
tários rurais constituíam mais de três quartos da nação; atual­ , .'
-1:1.1?�1ª.§'qOacre
trabalhadores eram manietact s pe[C?_ ..P.!§Jlrig___�l].JlJ:.9,,.S.SrnTo mente, os agricul tores coletivizados somam apenas um quarto.
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consrallte ae sua�_J11e1�as. A 6urocracia fêz tudo o que pôde Com que dese· sp-êro os camponeses resistiram a essa tendên­
para mantê-los nesse estado. ""N,ão só jogava uns contra outros cia, que furiosa violência foi desencadeada contra êles, como
nas fábricas como instigava suas antipatias e antagonismos foram obrigados a contribuir para o fortalecimento da indus­
mútuos. Negou-.lhes o direito de formularem exigências e de trialização e com que ressentimento e renitência, com que de­
se defenderem através de sindicatos. Mas êsses dispositivos sinterêsse e apatia, trabalharam a terra, sob o vegime coleti­
e o terror não seriam tão eficazes quanto foram se a classe vista - tudo isso é conhecido. Mas, como o Prof, Butterfield
trabalhadora não estivesse dilacerada por suas próprias fôrças diz num contexto algo diferente: "A tend-ência dos contem­
centrífugas. O que tornava as coisas piores era a constante porâneos é para avaliarem a revolução, de um modo demasia­
promoção de operários brilhantes e dinâmkos aos postos d� damente exclusivo, P'elas suas atrocidades, enquanto que a
gerência, assim privando as fileiras de porta-vozes e líder�s posteridade parece sempre errar, dada a sua incapacidade
p�s. Embora a educação fôsse escassa entre os traba­ para levá-las em conta ou avaliá-las nitidamente " . 1 Como al­
lhadores a cujo cargo estavam as tarefas mais pesadas e não­ guém que testemunhou a coietivização nos primeiros anos da
especializadas, essa drenagem intelectual te ve importantes década de 1930 e criticou severamente seus métodos violen­
conseqüências: a. mobilidade social que beneficiava alguns tos, gostaria de formular aqui algumas reflexões sôbre o trá­
dos trabalhadores, condenav8 os restantes à debilidade social gico destino dos camponeses russos. Sob o ancien régime, o
eyolítica. cam o russo era eriõdicament e devastado ela fome, como
Se esta análise estiver certa, •então as perspectivas para acontecia no campo chinês e ain a suce · e na índia. Nosiri:
o futuro talve z sejam mais promissoras. Um processo objetivo tervalos entre as crises de fome, incontáveis ( estatisticamente
de consolidação e integração tem lugar na classe trabalhadora, ignorados) milhões de camponeses e filhos de camponeses
morriam de desnutrição e doenças, como acontece ainda hoje
acompanhado de uma crescente consdência social. Isto -
em tantos países subdesenvolvidos.2 O antigo sistema dificil­
assim como os requisitos do progresso tecnológico - obrigou mente poderia considerar-se menos cruel para com os campo-
o grupo governante a eliminar a velha disciplina fabril, con­
cedendo ao operariado muito maior liberdade do que na era 1 H. Butterfield, Christianity and History (Londres, 1949), pág. 143.
de Stá.lin. Há ainda um longo caminho a percorrer entre o 2 Foi isso, por exemplo, o que o correspondente de The Times em Delhi
que existe agora e a plena liberdade de expressão, a partici­ escreveu em 3 de fevereiro de 1967, sob o título "Os aldeões de Bihar são
pação autêntica do trabalhador no contrôle da indústria. En­ agora lentamente dizimados pela fome": "Notícias chegadas dos distritos
piormente afetados sugerem que a lenta inanição já marcou as paupérrimas
tretanto, à medida que a classe trabalhadora vai subindo de comunidades aldeãs". Com efeito, "talvez 20 milhões de trabalhadores ru­
nível de educação, homog·eneidade e confiança em si mesma, rais sem terras, nas áreas vitimadas do Uttar Pradesh oriental e de Bihar,
as suas aspirações concentrar-se-ão cada vez mais nessas exi­ estão ameaçados de fome, a menos que a administração os abasteça até ao
gências. E se isso acontecer, poderá reingressar na cena po­ outono. O horror foi agravado pela ameaça simultânea de falta de água";
"... assim que os poços das aldeias secam, o povo imediatamente se põe
lítica como um fator independente, pronta a desafiar a buro­
em marcha, em busca de água. Enormes multidões em movimento, em sua
cracia e a reatar a luta pela emancipação em que registrou aflitiva busca de água, têm forçosamente de complicar ainda mais a tarefa
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neses do que o regime de Stálin, só que a sua crueldade pa­ e muitas outras coisas: as pavorosas tensões geradas nas re­
recia fazer parte da ordem natural das coisas, o que até a lações familiares, na vida sexual e educação rural; e a apatia,
consciência sensível dos moralistas está inclinada a aceitar a inércia, num grau muito acima do normal, que caracteri­
como ponto assente. Isto não pode desculpar nem mitigar os zavam a vida do campo.
crimes da política stalinista; mas poderá colocar o problema
em sua perspectiva correta. Aquêl·es que argumentam que A_ infl:t!ência �. ca,IIIp<>nê�. na vida social e política da
_
tudo iria bem se os mujiques fôssem deixados em paz, os idea­ n!"lçao éfeêlinou vertkaTmente,
--
e_IP. consegüê!lQ_a...d�t.QdQi�§§es
lizadores do velho modo de vida rural e do individualismo a�1menlç·s.·A sifí.i'áçãodâ lavoura continuou um pro.ble�a
dos camponeses, estão alimentando um idílio que não passa causador de graves preocupações, pois afeta o nível de vida
de um produto de sua imaginação. As diminutas proprieda­ e o moral da população urbana. Uma colheita fraca é ainda
des primitivas, em todo o caso, eram demasiado arcaicas ara um acontecimento crítico, politicamente; e uma sucessão de
que udessem sobreviver numa é oca e in ustri liza .ão. Não má_ê__.�9.lheij:�ê.__C()E!r!�1Ü1:!J)ªrª. ª-..4Jtefla _c;le . Kiuschey
_ em 1964.
so reviveram na Rússia, como não sobreviveram nos Estados A gent,e do campo também não foi verdadeiramente integrada
Unidos; e até na França, a pátria tradicional dos pequenos na nova estrutura industrial da sociedade. Muita da antiga
agricultores, assistimos em anos recentes a uma redução dra­ lavoura individualista, do tipo mais rudimentar e arcaico, ainda
mática da classe camponesa. Na Rússia, a pequena proprie­ prossegue - atrás da fachada do colcós. A�f'.OS. metros
d�de era um formidável obstáculo ao progr•essoêta nação: era de,, emprêsas. _ au1omatizadas _ e dirigidas . por computadores,
incapaz de fornecer alimento para a crescente população ur­ ª!nê!°?�exi�!�e êle�ito�_bazaEE!S órié�tais apinhados de nego­
bana; não era sequer capaz de alimentar as crianças numa Clantes rura1s.-Contuêlo, já passou há muito o· tempo em que
vasta área rural superpovoada. A única alternativa razoável osbolchevistas receavam que os camponeses pudessem ser os
à coJ.etivização forçada residia numa forma de ã agentes de uma restauração capitalista. É verdade que existem
ou cooperação asea a no consentimento dos am oneses. Até colcoses ricos e pobres; e, aqui e além, um mujique esperta­
que ponto essa a ternativa seria realista para a União Sovié­ lhão consegue contornar tôdas as J.eis e regulamentos, arren­
tica ninguém poderá dizer agora com segurança. O que é dar terras, empregar sub-reptlciamente mão-de-obra assala­
certo, porém, é que a coletivização forçada deixoq um J.egado riada e ganhar bom dinheiro. Todavia, essas sobrevivências
de ineficácia agrícola e de anta onismo entre a cidade e o do__§.Qitªlisrp..9_primitivo_!l�<?.. Qass�m de um fenõm:eii_o·__W:ár­
camp.p que a União Soviética ain a não ogrou e iminar. g�l. Se a atual tendência da população - ã-mTgração do
Essas calamidades foram agravadas por ainda um outro campo para a cidade - prosseguir, a classe camponesa con­
golpe sofrido pelos camponeses, um golpe que ultrapassou tinuará diminuindo; e, provàvelmente, haverá uma transfor­
de longe tôdas as atrocidades da coletivização. A grande mação maciça das granjas coletivas em granjas estatais. Fi­
maioria dos 20 milhões de homens que a União Soviética nalmente, pode-se esperar que a lavoura seja "americaniza­
perdeu nos cam os de batalha da II Guerra Mundial era e da", empregando apenas uma diminuta fração da mão-de­
o camponeses. ão gigantesca era a carência de mão-de-obra obra nacional.
rural que, nos últimos anos da década de 1940 e durante a Entrementes, se bem ue a classe cam onesa este'a de­
década de 1950, na maioria das aldeias, só se viam mulheres, clinando, a tradição mujique ain a avulta na vida russa, nos
crianças, mutilados e velhos trabalhando nos campos. Isso ex­ costumes e hábitos, na língua, na literatura e na arte. Embo­
plica, em certa medida, a situação de estagnação da lavoura ra a maioria dos russos já viva na cidade, uma grande parte
dos romances russos, talvez quatro em cada cinco, ainda toma
de lhes dar de comer". Simultâneamente, Le Monde noticiava que 50% das a vida da aldeia como seu tema e o mujique é o personagem
crianças do Senegal estavam morrendo antes dos cinco anos de idade, por central. Mesmo em seu declínio, projeta· uma longa e melan­
desnutrição e doença. l!:sses fatos foram noticiados, num único dia, como cólica sombra sôbre a nova Rússia.
meras notícias em poucas linhas .

48 49
E chegamos agora ao que, em qualquer·descrição socioló­
gica da URSS, constitui o mais complexo e intrigante pro­ longe de •esclarecer o assunto, ainda mais o obscurece. A po­
blema: o da burocracia, os grupos dirigente_ê', os es ecialistas sição do� grupo�yil��.9'_?Sna sociedade.S(?Viitiç_aé;mais
e a intelligentsia. Sya quantidade -1;:_,nês9 especí ico crescer'ClJn ambígua ão que. um ou outro EP.M<?. l:l!JiJ�fe. .Sles cons�Ju�m
enormemente. Entre 11 e 1 �i)hões<le __especiafo,tas_� ·ªdl;lli­ um_e]eaj�t1�1fo; -s���k-�Q.JJ.ma.•ç:Jil�§é7"-Põssuem
nistraaõressão em;eregados.na economia_nadonaL comparados certas características em comum com as classes exploradoras
com-apenas meio milhão na década de 1920 e menos de de outras sociedades; e faltam-lhes algumas das característi�
200. 000, antes da Revolução. A êsse contingente devemos cas essenciais das últimas, Gozam de-���télg_E:ns" mateda_is e
acrescentar dois e três mi.lhões . de membros . regulares . das outras que defendemJ?,!:!,llP.a}eJirµfãfm.�JJ,lf;. Neste ponto de�
hierarquias políticas e do e�!_�.!.E:S:!E?:.�!!!.() �ilitar. Numeri��� veniõittãiiiofm-precaver-nos contra generalizações destruti�
vas. Cêrca de 1:L!!J.=J-�.J:ÇO.�Qil..D.(tw.ero t()tal d� especiafüitas são
:�.[��ifu��·e1���{*a6; iã��u�s��c:�;*
ª
pro�Õr$j�i�t[c!J_ç_c;.1:!m�1:�J�_Qé!9ºs; a imprensa soviética fêz-se
quanto o total de camponeses coletivizados ( os colcoses têm ecó, recentemente, de muitas reclamações sôbre as condições
apenas 17 milhões de membros). Seu pêso social é, evidente­ de·vida do magistério. O mesmo acontece com a maioria. do
mente, muitíssimo maior. Contudo, .não devemos juntar toaos meio milhão de médicos existentes.'"'Mí.iifoscfôs-dois milhões
êsses grupos e classificá-los como a burocracia ou classe di­ cfe eng'eiíneirõs;'""ãgrônomos e econometristas ganham menos
rigente. Uma distinção clara deve ser feita entre os especia� do que o salário de um operário altament·e especializado. Seus
listas e os administradores com educação superior, por uma padrões de vida são comparáveis aos da nossa baixa classe
parte, e os que apenas possuem educação secundária, por média. .Ss�íveI._.P:2rém,.está reconhecidame1_1Je..muito..aciJna
outra parte. Os elementos dirigentes são, de fato, da pri­ do padrã��d�.!'i�ª-..Clgs, Ji:abéllgagor�s .. não. �espec.iªlgª-?.Os ..ou
meira categoria, embora não preencham a sua totalidade. Os sêiiiI�especia1izados. Mas seria fraca soci0Iog1a, marxista ou
especialistas com educação superior formam cêrca de 40% do não, condená:r-essa modesta prosperidade como baseada na
total. isto é, mais de 4,5 milhões de pessoas, ou talvez 5,5 mi­ exploração do trabalho. Sàmen!E:..� c�rn,ad�_�u,ee�ior da. bu_ro­
lhões se incluirmos os quadros do Partido e o pessoal militar. crada, da hierarq_uia d(). J?.q,rticto, cios e:ru os .ctif!aentes__gas
Será, então, a burocracia privilegiada que Trotski apontou, a
empresá_s_e:__4ç_9,�sso�Lmil_i �ar,__ ".i!�_e1;1.. con=içõe
certa vez co va inimi a dos trabalhadores? Ou é a , �. c��ª1:fh�eis
àsêlõsricos e dos novos-ricos na309edade ca�l!,sta. E 1m�
ova Classe de Djilas? ( r� como o leitor talvez recor­ possível definir as dimensões dêsses grupos - permitam-me
de, não aceitou o ponto de vista de qtfe a burocracia era que repita serem cuidadosamente ocultados os dados es(sitís­
/luma nova classe.) Devo admitir que: hesito em responder a ticos sôbre os seus números e vencimentos. O que êsses gru•
essas interrogações de um modo demasiadamente cate­ pos têm em comum com qualquer classe exploradora - estou
górico. Não posso abordar aqui a semântica do problema usando o têrmo na acepção marxista - é que suas rendas ,....
e discutir uma definição de classe. Direi apenas isto: faço uma derivam, pelo menos em parte, da "mais valia" produzida pelos
distinção entre desigualdade econômica e social. de um lado, trã6alhador�s.Além dissO:- dominam a sociedade soviética
•e antagonismo de classes, de outro lado. A diferença entre ,econômica, política e culturálmente.
trabalhadores especializados e altamente remunerados e os Mas o que falta a essa chamada nova classe é a proprie­
não-especializados, é um exemplo de desigualdade que não dade. Não possui meios de produção nem terras próp:r.ias.
equivale nem corresponde a um antagonismo de classes; é
uma diferença que exis te dentro da mesma classe social. Em
seus privilégios materiais estão confinados à esfera do con­
sumo. Ao invés dos elementos dirigentes na nossa sodedade,
meu entender, a concepção de Djilas sôbre uma "nova �não odem converter qualquer parcela de suas rendas
classe de exploradores" e idéias semelhantes sôbre a "so­ f
em capitª : não podem poupar, investir e acumular riqueza
ciedade de gerentes" soviética, são uma simplificação que, ná forma durável •e expansiva de ações industriais ou grandes
ativos financeiros. Não podem transmitir riqueza a seus des-
50
51
cendentes: quer veis. Estão no comando da indústria, tal como os nossos g,e­
cJasse, 3 Trotski rentes de emprêsa estão; e exercem o comando de um modo
-" =:,:.. ..: 2 ..,:
-:-
ca Iutaria -aü- 1 a'' a__._e""'l'o-d.:ire'-i�to e..:tr:.::a:!.nm=
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. =1s: t· ir::::.....:s::.u=a=-s=:.:o:.:s::s!:!es.....::::a:::..:..s�e:::::us absoluto. Mas, por detrás dos nossos gerentes empresariais
descen entes e que talvez tentasse expropriar o Estado, tor­ estão os acionistas, especialmente os grandes. Os gerentes so­
nando-se dona ou acionista de emprêsas e trustes. Essa pre­ viéticos têm não só de reconhecer que tôdas as ações perten- ·
v1sao, feita há mais de trinta anos, ainda não se realizou até cem à nação mas, além disso, declaram agir em nome da
hoje. Os maoistas afirmam que o capitalismo já está senq,o nação e, em especial, em nome da classe trabalhadora. Se
restaurado na União Soviética; presumivelmente, referem-se estão aptos ou não a manterem-se fiéis a essa pretensão, de­
à atual descentralização do contrôle do Estado sôbre as in­ pende exclusivamente das circunstâncias políticas. Os traba­
dústrias. As provas para demonstrar a veracidade dessas afir­ balhadores poderão consentir em que êles a respeitem ou não.
mações são muito frágeis, por enquanto. Teoricamente, é�­ Poderão, tal como um grupo inepto ou indiferente de acionis­
sível ue a atual rea ão contra o contrôle econômico su er­ tas, permitir maus gerentes; ou demiti-los. Por outras pala­
centra iza o sta mista estimu e tendências neocapita istas vras, o domínio burocrático assenta apenas na estabilidade de
entre os gerentes industriais. Penso que sintomas de� uma situação de equilíbrio político. Isto é, a longo prazo, uma
tureza podem ser encontrados na Iugoslávia - eu não iria base muitíssimo mais frágil para o domínio social do que
além disso. Contudo, é improvável que tais tendências che­ qualquer estrutura estabelecida de relações de propriedade,
guem a predominar na URSS, que mais não seja pelo fato de santificadas pela lei, religião e tradição. Falou-se muito, re­
que o abandono do planejamento econômico central seria um centemente, a respeito do antagonismo, na União Soviética e
golpe demolidor para o interêsse nacional e para a sua po­ na Europa Oriental, entre as hierarquias políticas e os tecno­
sição no mundo. cratas; e alguns jovens teóricos tratam êsses dois grupos como
Pondo de lado as especulações, o fato da burocracia so­ classes sociais opostas, falando de sua "luta de classes" de
viética não ter ainda obtido para si própria a posse dos meios um modo muito parecido ao que costumávamos usar qu-ando
de produção explica uma certa precariedade e vulnerabili­ se falava da luta entr•e latifundiários e capitalistas. Os tecno­
dade de seu domínio social. A propriedade sempre foi o ali­ cratas, assim nos dizem, com quem os trabalhadores podem
cerce de uai uer su remada de classe. A coesão e unidade aliar-se, almejam a derrubada da "hierarquia política central",
de uma c,lasse epende dela. propfi.edade é, para a classe que usurpou o poder depois da Revolução. Entretanto, se a
que a detém, um fator de formação do seu caráter. iE também "nova classe" que governou a União Soviética durante estas
o élemento positivo para cuja defesa a classe se une. O grit9 décadas, consistia unicamente numa "hierarquia política cen­
de batalha de qual uer classe .com osses é a "santidad e da tral", então a sua identidade é deveras impalpável. Sua com­
propriedade", a sua invio a 1 i a e, e não apenas o direito posição foi repetida e arrasadoramente alterada, de •expurgo
de explorar os outros. Os grupos privilegiados da sociedade em expurgo, durante a vida de Stálin e depois dêle. Com efeito
soviética não estão unidos por quaisquer vínculos compará- essa "nova classe" tem todo o aspecto de uma invenção so­
ciológica sem fundamento sério.
3 Podem, contudo, depositar dinheiro nas caixas econômicas, a uma Na verdade,_ a burocracia soviética tem exercido um
taxa de juro muito baixa. Em 1963, cêrca de 14 milhões de pessoas poder superior ao manipulado por qualquer classe detentora
tinham contas dêsse gênero; e o depósito médio era de 260 rublos. A de bens próprios, nos tempos modernos; mas a sua posição
média esconde as discrepâncias entre as somas de dinheiro depositadas é mais frágil e vulnerável do que a mantida, normalmente,
P?r vários indivíduos. Mas como é provável que poucas pessoas se
deem ao trabalho de depositar num banco economias inferiores a 260 por qualquer outra classe. O_ seu poder é excepcional porque
rublos, as discrepâncias não devem ser, presumo, socialmente impor­ é econômico, p�ico e cultural, ao mesmo t•empo. Paradoxal­
tantes. Na URSS, as pessoas com rendas elevadas preferem inves­ mente, porém, cada um dêsses elementos de poder teve sua
tir em bens duráveis de consumo, como automóveis e. datchas, em vez origem num ato de libertação. As prerrogativas econômicas
de manterem contas em bancos controlados pelo govêmo.

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moralidade subjacente e, ao mesmo tempo, algo da vitalldade
da burocracia derivaram da abolição da proeri-edade privada e fôrça impulsora da tradição revolucionária.
nã indústria e na finança; as politicas, da vitória total dos Além disso, os Jones soviéticos sobem em massa. São
trabalhadores industriais e agrícolas sôbre o antigo regime; educados em massa. Sempre que a estratificação social se
e as culturais, do fato do Estado ter assumido plena respon­ baseia exclusivamente na renda e função, e não na propde­
sabilidade pela educação do povo e pelo desenvolvimento dade, o progresso da educação em massa é uma poderosa e
cultural da nação. Em virtud,e da inépcia dos trabalhadores estruturalmente irresistível fôrça, no sentido da igualdade.
.,.-, em manterem a sup1:,_emac1a que detinbam em 1917, cada um Vimos que o número de especialistas soviéticos com educa...
dêsses atos de libertação converteu,..se no seu oposto. A bu... ção secundária e superior subiu, num período relativamente
rocracia assenhoreou ...se de uma economia s•em senhores; e es,.. curto, d,e meio milhão para 12 milhões. E o progresso conti...
tabeleceu uma tutela política e cultural sôbre a nação. M�o nua. Numa sociedade que se expande tão ràpidamente e em
conflito entre as origens do poder e o seu caráter, entre os escala tão vasta, os grupos privilegiados têm de absorver
usos libertadores que era intuito atribuir-lhe e os usos que constantemente novos elementos plebeus e proletários, a quem
lhe foram realmente dados, g·erou uma alta tensão política se torna cada vez mais difícil assimilar, o que também impede
perpétua e depurações repetidas que demonstraram uma e que a "nova classe" se consolide social e pollticamente.4
outra vez a falta de coesão social na .burocracia. Os grupos Referi... me à drenagem intelectual que, durante um longo
privilegiados não se consolidaram numa nova classe. Não eli­ período, reduziu a classe trabalhadora soviética a uma massa
minaram do espírito popular os atos de libertação donde êles inerte e resignada, Agora está ocorrendo o processo inverso:
derivaram seu poder nem foram capazes de convencer as a educação das massas está se desenvolvendo mais d·epressa
massas - ou até êles próprios de que estavam usando o do que a expansão dos grupos privilegiados, mais depressa
poder de um modo compatível com êsses atos. Por outras pa­ até do que o requerido pelas necessidades da industrializa­
lavras, a "nova classe" não conseguiu para si própria a sanção ção. Com efeito, vai correndo adiante dos recursos econômi­
da legítimidade social. Deve ocultar .constantemente sua pró­ cos do país. De acôrdo com as pesquisas educacionais recen,..
pria identidade, o que a burguesia e os latifundiários nunca tes, 80% dos alunos das escolas secundárias soviéticas, em
precisaram fazer. Tem o sentido de ser uma bastarda da His­ sua maioria filhos de trabalhadores, solicitam a admissão em
tória. universidades. As universidades não podem aceitá...los. A ex...
Já mencionei a consciência culpada que compele os gru- pansão da educação superior não pode acompanhar o ritmo
1 de expans,ão do ensino secundário; e a indústria precisa de
pos dominantes a reunirem "operários" e ",empregados" num
braços. E, assim, contingentes imensos de jovens estão sendo
só total estatístico e a fazerem da estrutura salarial e distri­
buição da renda nacional um segrêdo de Estado. Assim, a d�sviadosdosportões das universidades para os das fábri�
"nova classe" desaparece submersa na gigantesca massa cin...
zenta de "operários e empregados", Esconde o .rosto e oculta 4 Em 1966, 68 milhões de estudantes receberam instrução em escolas
de todos os níveis de ensino, comparado com 10 a 11 milhões, antes
o seu quinhão no bõlo nacional. Depois de tantas "caças às da Revolução. Por razões demográficas ( o baixo índice de natalidade
feiticeiras" contra os niveladores, não se atreve a defrontar durante os anos de guerra), o número de estudantes estêve estacionário,
o igualitarismo das massas. Como um observador ocidental . ! em 46-48 milhões, nas décadas de 1940 e 1950. Contudo, nos últimos
sete anos, registrou-se um salto de 22 milhões. 47 milhões freqüenta­
escreveu claramente: "Ao passo que em nossas classes mé,.. vam as escolas primárias e secundárias; 3,6 milhões as universidades;
dias a regra é cada um esforçar...se para snbir e andar na com... 3,3 milhões os institutos técnicos; 13 milhões recebiam instrução em
panhia dos Jones, na União Soviética as pessoas privilegia... classes de educação de adultos, entre êles cêrca de 2 milhões de tra­
das têm de recordar...se sempre de que devem descer para balhadores e técnicos que faziam cursos universitários sem interrompe­
andar na companhia dós Jones". Isto nos recorda algo que rem seu trabalho normal. Depois de 1950, o número de estudantes uni­
versitários triplicou.
é característico da ética da sociedade soviética, algo da sua
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cas. Apesar de tôdas as dificuldades que essa situação cria,


é também um caso único. Ilustra, com efeito dramático, como
o abismo entre o cérebro e o músculo é, de fato, eliminado na
URSS. A canse üência imediata é uma su er rodu .ão rela�
tiva de intelligentsia gue é impe i a para as fileiras da class,e
trabalhadora. Os inte]ectuais�operários são um demento cria�
dor mas também potencialmente explosivo no corpo político.
A fôrça da tradição revolucionária é suficientemente grande
para compelir a burocracia a dar aos trabalhadores muito
maior educação do que o requerido numa base estritamente
econômica e talvez mais do que é seguro para os grupos pri�
vilegiados. Poder�se�á argumentar que a .burocracia está ali� 4
mentando assim os seus próprios coveiros. Tal ponto de vista
talvez dramatize excessivamente as perspectivas. Mas é evi�
dente que a dinâmica da sociedade soviética está ficando en�
riquecida por novas contradições e tensões que não lhe permi�
tir,ão, creio eu, estagnar�se ·e ossificar�se sob o domínio de
Indecisão na
uma "nova classe".
Luta de Classes

ATÉ AGORA examinamos a cena soviética apenas pelo


seu ângulo interno, sem nos referirmos aos acontecimentos e
pressões int·ernacionais. Mas, é claro, a evolução interna da
União Soviética não pode ser isolada do seu contexto mun�
dial, do equilíbrio internacional de fôrças e diplomacia de
grande potência, ou do estado do movimento trabalhista no
Ocidente e as revoluções coloniais no Ori-ente. Todos êsses
fatôres tiveram um impacto quase contínuo sôbre os aconte� J
cimentos internos da União Soviética e, por sua vez, todos
êles foram afetados pelos segundos.
Lênin costumava dizer que a "Revolução de Outubro
quebrara, na Rússia, o elo mais fraco na cadeia do imperia�
56 57
lismo internacional". Esta imagem sugestiva epitomiza o pen�
sarnento do bolchevismo inicial sôbre si próprio e o mundo. países. Para grande mágoa dos reacionários, retirou da in­
A Revolução de Outubro não é aqui considerada um fenôme­ dústria a base nacional em que se situava... No lugar da
no puramente russo; o que aconteceu no "elo mais fraco da segregação local e nacional, da auto-suficiência, temos agora
cadeia" não foi, óbviamente, um ato auto-suficiente. Apesar um intercurso multilateral de nações e a sua interdependên­
do rompimento russo, o imperialismo - o capitalismo expan­ cia universal .
sivo das g.randes emprêsas industriais e financeiras - conti­
nuou sendo a fôrça dominante na economia e política mun­
�s; as classes trabalhadoras ainda terão de romper vários O socialismo tinha de princi iar onde o ca italismo ter- /
outros elos da cadeia. Onde, como e quando o farão? São minava. Baseando-se nos fatos o intercurso multilateral e
essas as interrogações. Será que um ou muitos dos sólidos interdependência de nações", organizaria suas fôrças produ­
elos cederão no Ocidente? Ou isso acontecerá num dos outros tivas numa escala internacional e habilitaria a sociedade a
elos mais frágeis do Leste, na China ou na índia? Seja qual remodelar o s•eu modo de vida em conformidade. No capita­
\ t'.fôr a resposta, a concepção subjacente é a universalidade da lismo, o impulso de integração internacional atua fortuitamen-
�' revolução e a do caráter, âmbito e destino internacional do te cegamente por crises e arrancos, em conseqüência de inú­
socialismo. m�ras' tendên�ias contraditórias; sob o imperialismo, encontra
Essa idéia. estava 12rofundamente arraigada no marxismo uma expressão destorcida na conquista e dominação econô­
�; e não se trâ.tava apenas de um postulado ideológico mica das nações fracas pelas fortes. O socialismo, aprovei­
mas de uma conclusão extraída de uma análise global da so­ taE_do a possibilidade que o capitalismo _abriu �as não _com­
ciedade burguesa. Evidentemente, mesmo em 1789, homens preendeu, criaria conscientemente a sociedade mternac1onal.
como Condorcet e Clcots, e os cosmopolitanos, entre os jaco­ Para Marx, Engels e seus amigos íntimos, essas eram as
binos, sonharam com a República Universal dos Povos. Mas idéias elementares, quase truísmos, sôbre as quais não era
o seu sonho estava em conflito com as possibilidades reais e preciso perder tempo. Mais de quarenta anos após o Mani­
éis tarefas concretas da época. Tudo o que a sua revolução festo Comunista, em 1890, Engels escreveu numa mensagem
pôde fazer foi retirar a França das divisões feudais e pós­ aos socialistas franceses:
feudais, convertendo o país num Estado-nação moderno. Não
poderia ir além do Estado-nação. Não existiam as condições
materiais ara qual or anização su ranacional da socie- Foi o vosso grande compatriota, Saint-Simon, quem pri-
11
d�. ó no sécu o o capita ismo industrial come ou a meiro viu ue a aliança das três randes na ões is
produzi-las. Com a sua tecno ogia mecânica e ivisão inter­ rança, Inglaterra, Alemanh a - era a condiçã o interna­
nacional do trabalho, criou o mercado mundial e, com êle, a cionáf primária para a emancipação política e social de tô­
potencialidade econômica de uma sociedade. Já em 1847 Marx dãa Europa. Espero ver essa aliança, o núcleo da aliança
e Engels escreviam no Manifesto Comunista: européia que porá fim, de uma vez por tôdas, às guerras de
governos e raças, realizada pelos proletários dessas três
nações .
·� A indústria moderna estabeleceu o mercado mundial r • •

deu um desenvolvimento imenso ao comércio, navegação e


comunicações por terra . . . A necessidade de um mercado ell) Que reflexão as palavras acima nos impõem sôbre a mo­
constante expansão para os seus produtos espalha a burgu..e­ rosidade dos nossos cérebros oficiais! Foram precisos três
sia por tôda a superfície da terra... A burguesia conferiy quartos de século - na verdade, cento e vinte anos, desde o
um caráter cosmopolita à produçã� e consumo em todos os Manifesto Comunista - para que os nossos estadistas e fa­
bricantes de opinião se apercebessem, ainda que tênuemente,
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de semelhante idéia e apresentassem uma versão conservado­ ex post facto diz-nos que, quanto às esperanças de uma imi­
ra tímida - seria preferível dizer um travesti? - da mesma nente revolução int•ernacional, estavam enganados. Mas uma
no chamado Mercado Comum. visão retrospectiva poderá não observar os acontecimentos
Com· que fir�_(!Za_C>__marxisino clássico repudiou qualquer mais nitidamente do que uma antevisão histórica audaciosa,
pret_ensão__de_auto-suficiência nacional_ no so�ialismo pode ser mesmo que parcialmente errônea. Os bolcheviques partiram 0
inferido das seguintes pafavras que Engels, pouco antes de da premissa de que a catástrofe de 1914 inaugurara uma
sua morte, dirigiu a Paul Lafargue, famoso socialista francês. é oca de guerras mundiais e de revoluçõe2, a época do de-
n
Engds advertia Lafargue contra uma tendência para exaltar cÍnio capitalista. Essa premissa ·estava histõricamente corre-
indevidamente o socialismo francês e atribuir-lhe um papel ta. As décadas. seguinte� estiyE!raJ!l r_�le��-· c!�_f�t�. gç_ çl_µ�Jos
superior ou excepcional. E escreveu: gigantescos entre a revolução e a contra-revolução. Em 1918,
a revolú .ão"dêr.iübou·os iní EriÕs HohenzóiJ.ern e Habsbur o,
ando origem, ainda que ºr pouco tempo, a representantes
a
Mas nem os franceses, os alemães ou os inglêses terão dos conselhos de trabalha ores em Berlim, Viena, Munique,
s� para si próprios a glória de haverem esmagado o capita­ Budapeste ·e Varsóvia. E mesmo depois da revoluç.ão ser der­
lismo. A França... talvez dê o sinal [para a revolução] mas rotada na Alemanha, Áustria, Hungria e outros países, o sis­
serã na Alemanha que a questão se decidirá;_ e mesmo a tema capitalista não recuperou a sua antiga estabilidade.
França e a Alemanha não garantirão uma vitória definitiva Andou tropeçando de crise em crise, até ao colapso mundial
enquanto a Inglaterra permanecer nas mãos da burguesia. de 1929, que o levou à .beira da ruína. As classes abastadas ,..,
li A emancipação do proletariado só pode ser um evento in­ salvaram inicialmente o seu predomínio ao concordarem numa
ternacional; você torna-a impossível se tentar convertê-la, série de reformas econômicas e políticas, pelas quais gera-
simplesmente, num evento francês . A liderança francesa ex­ ções de socialistas lutaram em v.ão antes da Revolução Russa.
clusiva da revolução burguesa - embora fôsse inevitável, 0-�is, o fascismo e o nazismo adiantaram-se como salvado- 1 O
por causa da estupidez e covardia de outras nações - levou, r�s do capitalismo. Insurreições coloniais e a grande revolu-
sabe aonde?, a Napoleão, às conquistas e à invasão pela Çé;S) chinesa de 1925-27 deram à crise um nôvo âmbito e pro­
Santa Aliança. Desejar atribuir à França o mesmo papel no fundidade. E na Europa, depoi� da sombra do Terceiro Reich
futuro é perverter o movimento proletário internacional e se espraiar pelo continente, a Áustria e a Espanha foram aba-
até. . . ridicularizar a França, já que os povos situados fora ladas por guerras civis e a França sofreu as tempestuosas
das vossas fronteiras troçam dessas pretensões . lutas de classes do período da Fr·ente Popular. Tudo isto in-
dica até ue ponto eram vastas as potencialidades revolucio­
nanas as éca as entre as uas uerras undiais. A II
Citei longamente os trechos acima, tão característicos do Guerra Mundial uma vez mais revelou a crise e desintegra-
marxismo clássico, porque me paroecem fornecer uma chave: ção do sistema social. Na Europa ocupada pelos nazistas, o
para a com reensão do bolchevismo e das relações entre a povo lutou não só por sua independência nacional; a guerra
Revolução Russa e o mundo. s bolcheviques cresceram na civil lavrava em mais de uma nação ocupada. O rescaldo re­
tradição de que Engels •expressou a quintessência; e mesmo volucionário da guerra na França, Itália e Grécia é matéria
depois do "epicentro da revolução" ter-se deslocado da Eu­ de registro histórico. A Europa Oriental foi transformada
ropa Ocidental para a Rússia, continuaram pensando no es­ pela revolução de cima para baixo. Desde as guerras napo­
tabelecimento do socialismo como um processo internacional, leônicas que a Europa não experimentava um colapso social
não um "evento" meramente russo. Sua propna vitória foi, comparável.
a seus olhos, um prelúdio da revolução mundial ou, pelo Os bolchevi ues com reenderam erfeitamente a
menos, de um fevantamento socialista europeu. Uma visão em que ingressaram no cenário da História

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época das guerras mundiais e das revoluções. O fato de tantos lado o capitalismo, Lênin não alimentava nem sombra da
esforços revolucionários terem sido frustrados ou serem com­ ilusão de Lafargue. :8Ie e seus camaradas sabiam que a eman...
provadamente prematuros não invalida a premissa em cuja cipação dos trabalhadores só poderia resultar do esfôrço con...
base agiram. Os homens em enhados na luta não contam junto de muitas nações: e que, se a nação-Estado fornecia
com a derrota antes da batalha ser trava a: é no próprio com... uma estrutura demasiado estreita, mesmo para o capitalismo
1 bate que o desfecho da luta se decide. Lênin e os seus cama... moderno, o socialismo era inteiramente inviável dent ssa
radas, por via de regra, não provocaram arbitràriamente a estrutura. ssa convicção impregnou o pensamento e ativida.... o
batalha; foi mais freqüente ser-lhes imposta uma prova de de bolcheviques, até ao final da era de Lênin.
fôrça. E os r,evolucionários podem aceitar o ponto de vista. Então, em meados da década de 1920, o fato da Russia
tradicionalmente mantido pelos soldados britânicos, de que é estar isolada no mundo acabou por causar uma profunda im­
possível perderem tôdas as batalhas menos a última e, entre:­ pressão, como um ato de vingança: Stálin e Bukárin destaca­
mentes, terão de travar os combates que lhes compete perder. ram-se ao expor a idéia de Socialismo Num Só País. Os bol­
Lênin e seus adeptos sustentaram a universalidade da cheviques foram obrigados a reconhecer a amarga necessida­
revolução ainda por um outro motivo. Viram poucas ou ne­ de da Rússia "prosse uir sozinha" enquanto pudesse; foi êsse
nliuma esperanças de realização do socialismo na Rússia, iso- o núcleo raciona a nova doutrina que cativou tantos interr
11 ladamente. A Rússia não seria capaz, ou não poderia por nacionalistas e da qual nem \Trotski,_ Zinoviev ou Kamenev
muito tempo, isolada dos países industriais avançados e re­ discordaram.
duzida a seus próprios recursos, superar a escassez econômi� Mas o significado especial da nova doutrina reside num
ca, o .baixo nível de sua civilização ou a fraqueza da sua outro fato: da necessidade fêz uma virtude e representou
classe trabalhadora: não poderia, sozinha, impedir a asc,ensão uma reação contra a concepção universalista da r,evo!ução.
da burocracia. ToÉos os bolcheviques - e aqui se inclui o Argumentando a partir d o isolamento da União Soviética.
próprio Stálin - es2eravam, no princípio, que a Rússia ade... Stálin e Bukárin formularam a palavra de ordem para uma
riria a uma comunidade socialista euro éia em que a Alema­ e1>pécie de isolacionismo ideológico. Proclamaram que a Rússia,
n a, rança ou ln !aterra assumiria a i erança e a ·u aria desamparada e desajudada por outras nações, podia e devia
a ússia a camin ar para o soda ismo e um mo o racional não só avançar para o socialismo, o que era axiomático para
e civilizado, sem nada que se parecesse com os sacrifícios, a todos os bokµeviques, mas que devia por si mesma realizar o
violência e a desigualdade social que acompanhariam a indus­ socialismo integral - uma sociedade sem classes, livre do
tria1izaç.ão de uma União Soviética isolada. Já em 1914 a pa­ domínio do homem pelo homem, o que era, na melhor das
lavra de ordem de Lênin era: Os Estados Unidos da Euro­ hipóteses, uma esperança ilusória. Di_:;;seraJ:rt�s. com efeito,
pa Socialista - embora mais tarde alimentasse suas dúvidas, que, salvo a guerra, Q_Q_est!_no da nova socied�q�__ J:]_QYiétiJ;;.a
não quanto à idéia em si mas sôbre se ela seria corretamente era compktamente independenteôoqüe se pãssav;Lno_.resto
entendida. Depois, em 1918, afirmou que o wcialismo "já é do mu_ndo; e que o soéíãlísmo podia ser e iria ser um sistema
uma realidade nos nossos dias; mas suas duas metades é como nacionalmente autorsuficiente, fechado e autárquico. Parafrar
se tivessem sido despedaçadas: uma metade, as condições po­ seando Engels, fizeram da "emãncipação do roletariado" um
líticas para o socialismo - o govêrno do proletariado ex-er­ eyento puramente russo e, essa maneira, tomaram impossír
cido através dos sovietes - foram criadas na Rússia; enquan­ vel essa emancipação. As implicações ráticas cedo se evir
to que a outra metade, os pré-requisitos industriais e cultu­ denciariam. Por mais de tres éca as. o ocia ismo Num Só
rais, existem na Alemanha". Para se realizar o socialismo, País foi Õ cânon oficial e o do ma central do stalinismo, im­
e�s "duas metades" têm de ser reunidas. Se Engels arg�­ pos os de um modo quase eclesiástico ao Partido e ao Estado.
mentou contra Lafargue que tanto os franceses como os ale­ Duvidar da sua verdade era blasfêmia e, porque duvidaram,
mães "não podiam ter tôda a glória para êles" ao ser aniqui- incontáveis multidões de membros do Partido e outros cidar
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dãos foram punidos com a excomunhão, o cárcer,e e a morte.
guês entendeu-o perfeitamente, ainda que cogitasse se deve•
Até ao presente, embora o socialismo se propagasse, ao que
ria ou não tomá-lo a sério. Durante o grande duelo entre
se supõe, a mais uma dúzia de países, o Socialismo Num Só
Stálin e Trotski, a maioria dos nossos estadistas e líderes da
País ainda não foi, entrementes, despojado de sua canonici­
OJ>inião pública sustentou que os interêsses do Ocidente seriam
dade. melhor servidos se Stálin vencesse. Ele era favorável à mo- /
Subentendida na idéia de um socialismo russo auto-sufi­ deração e à coexistência pacífica.
ciente havia a aceitai;ão tácita do ponto de vista de que as
Contudo, o stalinismo não podia fàcilmente desembara­
perspectivas de revolução no Ocidente tinham desaparecido
çar-se das lutas de classes e conflitos sociais no mundo à sua
para sem e. Isso 1:'efletia, sem dúvida, um estado de e pírito volta. Carregava consigo uma herança revolucionária que não
popular. 1A:pos
_
mmtos anos de fome, lutas e frustraço �
es, o podia alijar nem abandonar. A sede da Internacional Co�u­
povo estava desesperadamente cansado e indiferente à s ha­ nista era em Moscou; e a Internacional era a consubstancia­
bituais promessas do Partido de que a revolução int·ernacional,
ção da fidelidade bolchevista primitiva à revolução universal.
a grande fôrça libertadora do proletariado ocidental, em breve
Durante muito tem o tálin não foi capaz de desmantelar o
acorreria em sua ajuda. A nova doutrina sustentava uma di­
Comintern: só em 1943 e atreveu a es erir o oi e. ntre­
ferente perspectiva: assegurava ao povo que, mesmo se a Re­
mentes, fêz o que po e para a aptá-lo aos seus propósitos.
volução Russa tivesse de permanecer isolada para sempre,
Domesticou-o. Converteu-o num auxiliar da sua di lomacia
mesmo assim cumpriria a sua promessa de socialismo e es­
ou, · como 'firotski isse certa vez,. transformou os parti os
tabeleceria uma so.ciedade sem classes dentro de suas fron­
ã;'munistas ,estran eiros de "van uardas da revolu ão mun­
teiras. "l:t uma doutrina de consolação", confessou em parti­
d ia em acifistas e uardas fronteiri os da União Sovié­
cular EuÇTene Va�a, um dos seus eminentes articuladores.
tica. s partidos comunistas consentiram, de fato, em servir
Era tamEêm, poderíamos acrescentar, uma doutrina de exação,
osinterêsses diplomáticos e o egoísmo nacional do "pri�eiro
vis�o que em nome do Socialismo �um Só Pa s, <:..,E_OVO era Estado dos trabalhadores" porque êle fôra o primeiro Esta­
. �
solicitad o agora a abandonar suas liberdades civis e a supor­ do dos trabalhadores. Não tiveram coragem em insistir em
tar esados sacrifícios e privações intermináveis. Os homens
sua própria independência, apesar de que se o fiz•essem, sal­
do grupo dominante e a urocracia em geral tinham, além
variam sua dignidade política e eficácia revolucionária: l!!!Lª
disso, seus motivos próprios de Realpolitik e ra1ison d'État. O
Internacional o erando, merament•e, como a ente do Socia­
pensamento de uai uer burocracia está vinculado à na ão-Es­
lismo um Só País, era uma contra ição atética em têrmos.
tado • modela o or êste e suas 1m1tações são as mesmas.
A busca stalinista e segurança nacional, dentro o
A .burocracia bo c ev1sta escia agora as a turas do período
quadro do status quo internacional, poderia ter feito algum
heróico da Revolução para as profundidades da nação-Es­
sentido se o status quo fôsse inerentemente estável. Mas não
tado; ,e Stálin guiou a descida. Ansiavam por segurança para
foi êsse o caso. Nada poderia haver de 'mais precário do que
êles próprios e para a Rússia dêles. Esforçaram-se por salva­
guardar o status quo nacional e, sobretudo, o internacional, e
o e uilíbrio sociale o e uilíbrio internacioanl de fôrças nas
éca as entre as duas uerras. O equilíbrio sooa oi catas­
por encontrar um modus vivendi estável com as grandes po­
trõficament•e desfeito é�o rande cola so de 1929. Ó equilí­
tências capitalistas. Estavam convencidos de que o poderiam
brio m1 1tar e ip omático foi interrompido pela recuperação da
encontrar numa espéde de isolacionismo ideológico e mostra­
Alemanha da derrota de 1918 e sua determinação de derrubar
vam-se ansiosos por desvincular a União Soviética das lutas
o sistema baseado no Tratado de Versailles. A Rússia não
de classe e conflitos sociais que lavravam no resto do mundo.
podia isolar-se dos choques que êsses acontecimentos produ­

-
Ao proclamar o Socialismo Num Só País, Stálin disse, com
ziram. Entretanto, o que Stálin, a sua diplomacia e seu dócil
efeito, ao Ocidente burguês, que não estava vitalmente int�­ ais e im edir até êsses
Comintern fizeram foi tenta · lar
réssado ,em socialismo nos outros países. E o Ocidente bur- ou mitigando os conflitos estrangeiros em
dioques
--=-' sustan o
64 65
tar o poder. Ora, o triunfo de Hitler em 1933 foi realmente
que a Rússia pudesse ver-se envolvida. O grande e implacá­ inevitável? Houve ci�cunstâncias º?j,etivas que ass!m ': deter- J /
v,el ditador, o suposto mestre de Realpolitik, foi, de fato, o , _ .
minaram? Ou o movimento operano alemao podena te-lo im­
Rei Canuto do nosso século, intimando as vagas da revolu­ pedido? Antes de procurarmos responder a essas interroga-
ção, contra-revolução e guerra e ficarem quietas. Em virtu­ ções, temos de considerar que, •em 1933, êsse movimento en- /v
de da tremenda autoridade gue Stálin exercia sôbre o comu­ tregou, sem luta, tôdas as suas osi ões a Hitler. Isto é ver-
nismo mundial. uma autoridade apoiada por todo o poder e da e no tocante aos partidos, o Social-Democrata, que con­
prestígio da União Soviética, a sua atitude e orientação eo­ trolava os sindicatos e tinha um corpo ·eleitoral de mais de
lítica muito influíram, é claro, na forma assumida pela His­ oito milhões de pessoas, e o Comunista, com mais de cinco
tória Mundial numa época decisiva. Ninguém pode dizer qual milhões de membros. Os elementos mais vigorosos e militan-
seria o aspecto do Ocident•e - ou do Mundo, em geral - tes do movimento operário pertencia m ao Partido Comunis-
na atualidade, se o movimento trabalhista fora da União So­ ta. Em virtude do seu próprio pêso político •e da influência
viética tivesse seguido seus próprios interêsses e tradições e
que a sua conduta exercia na massa mais inerte dos sociais­
não tivesse consentido que uma influência externa, stalinista
democratas, o comportamento do Partido Comunista era a
ou não,_ interferisse no ritmo e direção de seu desenvolvimen­ máxima importância. ontudo, minimizou deliberada e siste­
to. Talvez as nações avançadas do Ocidente já tivessem rea­
lizado suas respectivas revoluções socialistas; ou talvez es­ màticamente o perigo nazista, afirmando aos trabalhadores
que os sociais-democratas, ou "sócio-fascistas", não os nazistas,
tivessem mais próximas da revolução do que atualmente se eram o verdadeiro inimigo, sôbre o qual deviam "concentrar
encontram. todo o fogo". Os líderes de ambos os �rtidos, o Social-De­
Não creio que as derrotas da revolução e do socialismo mocrata e o Comunista, recusaram mesmo considerar a idéia
no Ocidente fôssem tão inevitáveis quanto hoje nos parecem. de uma ação comum contra o nazismo. Não havia qualquer
_
Nao penso que tenham sido tôdas causadas por circunstân­ raz,ão objetiva pe:la qual se comportassem dessa maneira. Sua
cias objetivas, isto é, pela "solidez" inerente à sociedade oci­ capitulação não era inevitável. A vitória fácil de Hitler, em
dental. Pelo menos, alguns dos maiores reveses do socialis­ 1933, não era inevitável. E Stálin, assim como o Partido sovié-
mo foram devidos a fatôres subjetivos, pela inconsistência da tico, não tinham interêsse algum em patrocinar a política de
política promovida por homens e part-idos que se supunha capitulação e nela persistir. Essa apatia e indif.erença, perante
serem os campeões do socialismo. As previsões marxistas sô­ o nazismo em ascensão, resultou exclusivamente do tem era­
bre a luta de classes no capitalismo não estavam tão longe do mento iso acionista e tá in e o seu esejo de manter a
alvo quanto hoje parece, se excetuarmos o fato de que Marx, União Soviética estranha a qualquer complicação que a obri-
Engels e Lênin não contaram com o stalinismo e suas conse­ gasse a intervir num conflito fora de suas fronteiras. Empe­
qüências internaciona'is. nhado na segurança, Stálin recusou todo e qualquer movimen-
Podemos dar um exemplo de vulto, a título ilustrativo, to comunista na Alemanha que pudesse conduzir a um con­
entre tantos que poderiam ser citados. Qualquer estudioso da fronto e, ossivelmente, à uerra civil entre a es uerda alemã
História contem orânea ficará impressionado e, talvez, er­ e o nazismo. erseguindo a miragem da segurança, dentro do
p exo e a tota assivi ade e in i erença com que, no início status quo internacional, a miragem do Socialismo Num Só
a década de 1930, oscou encarou a ascensao · o nazismo. País, o stalinismo rovocou a derrota do socialismo em mui s -o
Stálin, seus conselheiros e seus propagandistas, não revela­ outros países e expô,s � mao oviética a um pe:igo mortal.
ram nessa altura a menor idéia do que estava para acontecer. Alguns dentre nós r umentamos nesses anos mmt ntes de
Não pressentiram a fôrça que se acumulava e o dinamismo 19 , que um ovêrno nazista si nificava a uerra mundial e a
0
destrutivo do movimento nazista. De 1929 a I 933, instigar�m invasão a União Soviética; que era dever da esquerda alemã
o -Pa ido Comunista Alemão a cometer uma longa série de barrar o caminho de Hitler, em sua arrancada para o poder;
erros fatais, que tornaram muito mais ac1 a it er congui§-
67
66
que tínhamos uma boa possibilidade de o conseguir; e que, ropa do domínio nazista - podia ser "unicamente um evento
mesmo se fracassássemos, era preferível cair lutando do que internacional''. Não foram só os exércitos das grandes po•
aceitar passivamente a perspectiva de aniquilamento da es­ tências que fizeram a guerra. Guerrilhas,_ parvisans e resis­

,,, querda pelos nazistas. Fomos vilipendiados em Moscou como tentes de muitas nações também a travaram. Uma guerra civil
internacional, com tremendas otencia.lidades sociais revolu­
/ 1 fautor,es de ânico, belicistas e inimi os do roletariado ai -
mão e da União cionárias, de&enro ou�se entro a própria guerra. O stali­
nismo, porém, continuou amarrado à segurança convencional,
A ca itulação de 1933 foi a derrota mais esma adora
à razão de Estado e ao sagrado egoísmo nacional. Entrou
jamais so ri a pe o marxismo, uma derrota que iria apro un­
numa "Guerra pela Pátria", outro 1812, não numa guerra
dar-se ainda mais em conse üência dos acontecimentos ulte­
civil européia. Não defrontaria o nazismo com a idéia de so­
riores e a po ítica stalinista que se lhe seguiv: uma derrota, cialismo internacional e revolução. Stálin não acreditava que
111 enfim, de que os movimentos operários alemão e •europeu
a idéia inspirasse os seus ,exércitos na luta ou que iEso pu•
• • • 11 ainda não se restabeleceram. Se a esquerda alemã e, sobretu- desse contagiar e desintegrar os exércitos do inimigo, como
dõ, o Partido Comunista Alemão, não consentissem em que
acontecera nas guerras de intervenÇ,ão. Além disso, in�
os instigassem à capitulação, se possuíssem o bom senso de com os v,ários movimentos de resistência na Europa para q1
lutar pela própria existência, talvez nunn tive3re ef istido um ;e
lutassem exclusivamente pela libertação nacional, não pe o
Terceiro Reich nem havido uma Segunda Guerra Mundial.
socialismo. Em parte, foi impelido pelo desejo de preservar a
À União Soviética não perderia 20 milhões de mortos nos Grande Aliança; supôs corretamente_ que se a guerra amea�
campos de batalha. A fumaça das câmaras de gás de Ausch�
çasse convert·er�se numa revolu ão euro éia, Churchill e
witz talvez não escurecesse os anais da nossa civilização. E,
Roosevelt a an onariam a a iança na mesma hora. Em parte,
entrementes, a Alemanha talvez se convertesse num Estado
põrem, temia a agitação revolucionária que poderia abalar o
\ proietário.
equilíbrio político-social precário em que a sua autocracia se
Poderíamos dar outros exemplos de como a obsessão sta­ baseava, dentro da própria União Soviética. Stálin estava de�
linista da segurança acabou por conduzir à insegurança ca­ t•erminado a sair da i antesc onvulsão com o Socialismo
tastrófica, e como o isolacionismo ideológico agravou, inva­ um Só País e a sua autocracia intatos. ontudo, a lógica
riàvelmente, o isolamento da União Soviética, o que, é claro, dá guerra contrariou a sua ideologia isolacionista. Teve de
impeliu a política soviética para um isolacionismo cada vez enviar exércitos a uma dúzia de países estrangeiro3; e, em­
mais profundo. O círculo vicioso é reproduzido ,em quase todos bora marchassem à sombra das bandeiras da Pátria, eram
os estágios da diplomacia stalinista e pós-stalinista, sempre ainda Exércitos Vermelhos, que não seriam fàci.lmente persua­
que a razão de Estado soviética se impunha à política cfeum didos de que a sua vitória, paga por tão alto preço, termina­
importante setor do movimento ooerário ocidental. F01 êsse ria na restauração do capitalismo em tôdas as terras que êles
� o caso da Frente Popular, na França; da Guerra Civil Es- libertavam da ocupação nazista. As conseqüências revolucio­
1 panhola e das r•epercussões do Pacto Nazi-Soviético de 1939- nárias da guerra aí estavam. Como mantê�las sob contrõle e
. 41. Em todos êsses exemplos, não foi tanto a fôrça inerente como reduzi�las a um mínimo foi, •em Teerã e Yalta, a preo�
do capitalismo ocidental quanto o egoísmo nacional da políti­ cupação comum de Stálin, Roosevelt e Churchill. Enfrenta­
ca de Stálin ue infli iu derrota a ós der.rota às fôr as so� ram os problemas da aliança no espírito da diplomacia con�
eia istas do Oci ente; e cada uma dessas derrotas eram tam� - vehcional, distribuindo e delineando as respectivas esferas de
bêm um roetrocesso para a1lnião SoviétiÇil. influência.
A II Guerra Mundial e a invasão nazista forçaram a É o.cioso entrarmos agora no exame dos complicados con­
União Soviética a sair do seu isolamento. De nôvo a eman­ flitos subseqüentes, mesmo antes do final das hostilidades e
cípação dos trabalhadores - e, é claro, a libertaç.ão da Eu- do início da guerra fria. Basta dizer que, apesar da União

68 69
Soviética estar envolvida como nunca nas questões de tantos completamente controlada. Os iugoslavos desafiaram a lid�­
países, e de Stálin ter de garantir os frutos da vitória - a rança russa: e a Revolução Chinesa vitoriosa fêz-lhe frente,
hegemonia da União Soviética na Europa Oriental, por mé� implicitamente, com um gigantesco desafio. Não obstante, nem
todos quase revolucionários o stalinismo, no entan'.o, man­ mesmo a expansãõ da revolução curou a política stalinista do
teV1e-se fiel à sua mesquinhez nacional. A revolução na Eu­ seu egoísmo nacional e do isolacionismo; e, dêsses males, a
ro a Oriental não seria "o evento internacional rovocado política dos sucessores de Stálin ainda é a herdeira. Se bem
P'e os es or os con·untos do roletariado de muitas na ões". que o conceito de Socialismo Num Só País tenha oerdido tôda
Foi imposta e cima para baixo pela otência ocu nte e seus a reievância, a mentalidade, o modo de oensar e o estilo de
ag_ente§_, E as chamadas Democracias opu ares destinavam-se a�o política inspirados por êle sobreviverai.v.
a representar, simplesmente, a esplanada def.ensiva, antes de
atingidas as muralhas do Socialismo Num Só País. Na Eu­ Ainda um outro aspecto do impacto da União Soviética
ropa Ocidental, o domínio bur uês desmantelado e desacre­ sôbre a vida social e política do Ocidente poderá ser agora
ditado, foi restaura o e acôrdo com os pactos de Yalta e sucintamente examinado. Nos primeiros anos que se seguiram
Teerã; e 2s partidos comunistas ajudaram à restauração, �r­ a 1917, a mensag·em da Revolução de Outubro provocou uma
tici ando nos overnos do ós- uerra de De Gaulle e de reação profunda no movimento trabalhista ocidental. Em 1920,
0 '.1.1. Gasperi, co a oran o ara desarmar a esistência e re rimin­
por exemplo, os Congressos dos Partidos Socialistas francês
do o ra ica ismo indócil das classes trabalhadoras. Desta ma­ e italiano e o do Partido Socialista Independente alemão,
neira, as potencialidades revolucionárias do período pós-guer­ então o mais influente corpo político da esquerda aJ.emã, vo­
ra foram realizadas, mas desvirtuadas em sua realização, .::m taram, em grande maioria, pela adesão à Internacional c�
tôda a Europa Oriental; e foram anuladas na Europa Oci­ munista. Mesmo na Inglaterra conservadora os portuários de
dental. Assim, o stalinismo trabalhou de modo a roduzir um Londres, liderados por Ernest Bevin, expressarain sua simpa­
� resultado indeciso, um empate, na uta e classes, habilitan­ tia pela nova Rússia ao recusarem-se a carregar munições des.
0 · do a sua diplomacia a garantir a "coexistência pacífica dos tinadas aos exércitos poloneses que combatiam contra os so­
sistemas sociais opostos''. Uma vez mais, Stálin procurou obter viéticos. Parecia que o movimento trabalhista ocidental se
a segurança nacional na .base do status quo internacional, isto erguera, sob a inspiração da Revolução Russa, do marasmo
é, a divisão de zonas acordada em Teerã e Yalta. Contudo, a em que mergulhara em 1914. Também na II Guerra Mundial
diplõmacia não podia remover todos os pomos de discórdia a batalha de Stalingrado ergueria a Europa ocupada pelos ll'a­
que os senhores de Teerã e Yalta disseminaram ao longo das zistas dos abismos de desespêro, inspirando a R·esistência com
fronteiras de suas zonas: nem estava em condições de enfren­ a confiança na vitória e renovadas esperanças socialistas. Mas,
tar os perigos desconhecidos da era nuclear. E assim foi que tudo ponderado, o exemplo da União Soviética, neste meio
se deixou o mundo tiritando sob as rajadas desoladoras so­ século, longe de estimular os movimentos trabalhistas no Oci­
pradas pela guerra fria, que nada mais foi senão uma forma dente, dissuadiu-os de lutarem por suas aspirações socialistas. l
depravada da luta de classes empreendida pelas grandes po­
tências. Uma vez mais nos vem à lembrança a advertência de Paradoxalmente, a razão principal foi o fato dos traba­
Engels: "A lideran a francesa exclusiva da revolução bur­ lhadores verem a Revolução Russa como o primeiro grande
guesa levou - sa e aon e. - a apoleão, às conquistas e,.à teste histórico do socialismo. Não tinham conhecimento das
iny_asão pela Santa Alian�a". Mais de uma vez, a liderança dificuldades trágicas com que a União Soviética estava so­
russa exclusiva da revolução socialista and u sinistram nte brecarregada. Dissessem os teóricos marxistas o que dissess·em
perto e pro uzir os mesmos resultados. sô6re essas dificuldades, por mais lógicamente que argumen­
- Contudo, a época de liderança russa exclusiva estav tassem não poder uma sociedade livre e sem classes surgir
c�gando ao fim. ressaca revo ucionária a guerra não fôr� de um país assolado pela pobreza e ainda semibárbaro, para
70 71
a massa dos nossos trabalhadores eS'.'as coisas não passavam volução não leva a parte alguma". Muitos mergulharam na
de sutilezas da teoria abstrata. Para êles, o sociafismo na apatia política; e muitos outros reconciliaram-se com o status
Rússia não era uma questão de especulações teóricas mas de quo no Ocidente, que os booms ,do pós-gu�r�a e o .Estado
experiência prática. Evidentemente, não interesrnva à União Previdente tornaram mais toleravel. Os m.electuais, que
Soviética encorajar esperanças exageradas. Os líderes sovié� acreditaram no socialismo soviético, acabaram denunciando o
ticos, cientes de suas responsabilidades, teriam consciencio� "o Deus gue os traíra". O mito de Socialismo Num_ Só País
sarnente explicado a posição, como Lênin costumava fazer; e alimentou, assim, um mito ainda mais falso - um mito colos­
teriam esclarecido que as realizações da União Soviética, ainda sal - sôbre o fracasso do socialismo. Essa dupla mistifica­
as maiores, eram e só podiam ser preliminares do sodalismo, ção passou a dominar grande parte do pensamento olítico
não o verdadeiro conteúdo do socialismo. Poderiam assim oci enta e contri uiu imenso ara o im ass,e i eo ó ico em
evitar que se acalentassem ilusões e impedir que sobrevies­ que o mun o ainda vive, meio século depois de 1917.
sem as subseqüentes desilusões; e poderiam ter incutido no
movimento trabalhista do Ocidente a noção de sua co-respon� Contudo, o Ocidente não tem razão alguma para encarar
sabilidade elo isolamento e os a uros da União Soviética. êsse resultado com orgulho. Pois quando um russo observa a
Contu o, tá in e seus associados estavam muitíssimo preo­ crônica do Ocidente, em suas relações com a Rússia, que vê
cupados com o orgulho nacional e o prestígio burocrático êle? A extorsionária Paz de Brest-Litovsk, a intervenção ar­
para agirem dessa maneira. Ofereceram sua "doutrina de con­ mada dos aliados contra os sovietes, o bloqueio, o cordon
solação", seu mito de Socialismo Num Só PaísL aos .trabalha­ sanitaire, os prolongados boicotes •econômicos e diplomáticos;
dores não só da Rússia mas do mundo. e, depois, a invasão de Hitler, os horrores da ocupação nazista
Um efeito da propagação dêsse mito foi converter os as dilações engenhosas por meio das quais os aliados da
comunistas e socialistas ocidentais em m<cros espectadores. Rússia iam prorrogando a abertura de uma segunda frente
Como os russos diziam que eram perfeitamente capazes de contra Hitler, enquanto os exércitos soviéticos se imolavam
realizar ( ou já tinham realizado) o socialismo sem ajuda de nos campos de batalha; e, depois de 1945, a rápida inversão
quem quer que fôsse, par•ecia nada mais restar, aos povos do das alianças, a chantagem nuclear e o frenesi anticomunista
Ocidente, senão observar como é que os russos davam conta da guerra fria. Que crônica!
s
do recado. Durante trinta anos, a propaganda Etalinista falou Um marxista deve perguntar por que motivo as classe
dos mila res ue o socialismo estava o erando na URSS. e os seus partidos permit iram tanta
trabalhadoras do Ocidente

Os mais ar entes e os mais ingênuos acre itaram. A grande liberdade de iniciativa e ação a governos e estabelecime

o'
semelh ant· e crô•
maioria dos trabalhadores oCJdentais teve suas dúvidas, deixou tos que entre êles, eram os responsáveis por
um juízo em suspenso ou formou opiniões negativas. Relatos nica. historiador tem de sondar as circunstâncias obje:ivas
s
sôbre a pobreza, a fome e o terror soviéticos alimen�avarnõ que podem impedir o socialismo ocidental, no c�rso dess�
obnga r o Oci•
cepticismo. As grandes depurações e o culto de Stálin, zelo­ cinqüenta anos, de intervir radicalmente e de
ta­
sãmente defendido por todos os partidos comunistas. provo­ dente a encarar a Revolução Russa de um modo comple
cavam repugnância. Então,_ multidões de soldados americanos, mente diferente. Tem també m de levar em conta os efeitos
britânicos e franceses entraram em contato com os seus aliados negativos da prolongada e exclusiva _liderança r�ssa da revo•
soviéticos na Alemanha e Áustria ocupadas; e extraíram suas luç,ão socialista. Mas, tendo considerado cmda �o�amente
conclusões. Finalmente em 1956 houve o cho ue das reve tôdas as circunstâncias objetivas e feitos os necessanos des­
o
ções de Kruschev. Muitos milhões de traba adores ociden� contos como resumirá êle suas conclusões? Engels, faland
tais ponderaram sõbre essas experiências, com o passar dos a resp�ito da liderança francesa exclusi va da revo )ução bur­
sem
anos, e concluíram que "o socialismo não funciona" e "a re� guesa e suas conseqfrências nefastas, e tendo analisado,
72 73
dúvida, com todo o cuidado, as circunstâncias objetivas da
época, resumiu sua opinião nestas francas e sugestivas pala­
vras: "Tudo isso se tornou inevitável or causa da estu idez
e covardia as outras nações . Um futuro ngels terá de
lavrar a mesma sentença sôbre a nossa época?

A União Soviética
e a Revolução Chinesa

Eu PLANEJARA originalmente abordar neste capítulo o


impacto da Revolução Russa sôbre os povos coloniais e semi�
coloniais do Oriente. Mas, quando trabalhava o tema, ache1�o
tão vasto e com tantos e múltiplos aspectos que seria quase
impraticável o seu desenvolvimento num reduzido espaço; por
conseguinte, decidi limitar�me a uma só questão, aquela que
passou a ser o fulcro dêsse mesmo tema: as relações entre
as Revoluções Russa e Chinesa.
A Revolução Chinesa é, num sentido, filha da Revolu�
ção Russa. Sei que alguns sinólogos objetarão veementemente
a esta afirmação; e prontamente admito que as suas objeções
são válidas, dentro de certos limites. 'É óbvio que um fenômeno
74 75
histórico dessa amplitude tem suas mais profundas raízes no cou, o Segundo Congresso da Internacional conclamou os
próprio país, nas condições da sociedade em que se produziu. povos coloniais ou semicoloniais do Oriente e sublevarem-se
Isto precisa ser fortemente acentuado, em especial porque, ou a prepararem-se para a revolução. Começou a grande "im•
até há bem pouco tempo, era costume no Ocidente tratar o portação" da ideologia bolchevique pela China, acompanha•
comunismo chinês como uma espécie de fantoche russo. Mas, da, dentro em pouco, pela importação da arte militar e tecno­
por outra parte, não devemos tratá-lo como um movimento logia russas. Pelo seu próprio exemplo, a Rússia mostrara à
encerrado em si mesmo, que só pode ser entendido nos têrmos China como sair do impass_e: a China também tinha de ul- 1,
de seu ambiente nacional. Não devemos consentir que a tra assar a fase da revolu ão uramente bur uesa. Antiimpe­
Grande Muralha domine o nosso pensamento sôbre a Revo­ rialismo, redistri uição da terra, o papel hegemónico dos tra•
lução Chinesa. Procurei, anteriormente, descrever as nume- balhadores industriais na revolução, a formação de um Parti•
. rosas filiações entre a Revolução Russa e a história intelectual do Comunista e uma estreita aliança com a União Soviética
e política da Europa Ocidental. Citei o grande reconheci­ - eram estas as novas perspectivas que se abriam diante dos
mento, por Lênin, da dívida que a Revolução Russa tinha radicais chineses. O próprio Sun Yat-sen subscreveu algumas
para com o Ocidente, assim como as palavras de Trotski dessas novas finalidades, embora com algumas vacilações.
sôbr,e a "exportação pela Europa da sua mais avançada ideo­ Até então, o marxismo não exercera pràticamente qual­
logia para a Rússia". Ora, o impacto da Revolução Russa na quer influência na China. Algumas idéias desconexas do so•
China foi incomparàvelmente mais direto e. P.oderoso do que cialismo fabiano e metodista chegaram, em conta-gôtas, até à
o cla Europa Ocidental na Rússia revolucionária. intelligentsia de Xangai, Cantão ,e Pequim. Mas só em 1921,
- A Revolu ão Russa triunfou num momento em ue a setenta ·e três anos de ois de sua ublica ,ão ori inal, o Ma­
Chinesa estava num im asse. uando os chineses errubaram ni esto Comunista a areceu em chinês pela primeira vez. 1 D
a inastia manchu, em 91 L. t•entaram resolver seu problema marxismo da uropa Ocidental, com a sua concentração na
nacional mediante uma revolu ão urament bur uesa. A ten­ luta de classes em países industriais avançados, dificilmente
tativa racassou. A China foi proclamada República massÜás poderia impressionar a intellige.ntsia radical de uma nação
grandes uestões sociais e clíticas continuaram sem so u • o; camponesa semicolonial. Foi dos russos, e· na versão russa,
na verdade agravaram-�. A nação a un ava-se cada vez mais que os chineses receberam o seu marxismo. Como E. H. Carr
em sua dependência das potências estrangeiras; os chefes mi­ assinala corretamente na sua grande História da União So­
litares e compradores* esfacelavam-na; e os camponeses, viética, foi Lênin quem, ela rimeira vez, formulou um ro­
privados de t;do e oprimidos, não tinham possibilidade al­ grama marxista e a ao ue era ime iatamente re -evante ra
guma de modificar ou melhorar as condições em que viviam. os povos do dente. Pôde fazê-lo em virtude de sua sensi­
A revolução puramente burguesa demonstrara a sua impo­ bilidade narodnikista para os problemas dos camponeses e
tência; e· ninguém tinha mais consciência disso do que o seu também por causa de sua apreensão inteiramente original do
próprio líder, Sun Yat-sen. Depois, em 1919, deu-se o gran­ significado da luta antiimperialista.
de protesto nacional contra o Tratado de Versailles e eclodiu O bolchevismo estava simultâneamente voltado ara o
o movimento contra a perpetuação da sujeição da China às Ocidente e o riente. á vimos que, em face do Ocidente e
grandes potências. Era ainda uma tentativa para reanimar
a revolução "puramente" burguesa, embora fôsse inspirada 1 Um crítico de um ensaio sôbre o maoísmo, incluído em meu livro
por Chen Tu-hsiu,_ futuro fundador do Partido Comunista Ironies of History, recorda no Suplemento Literário de The Times que
alguns excertos do Manifesto foram traduzidos para o chinês e, ao que
Chinês. Também êsse movimento acabou num beco sem saída. parece, publicados num pequeno periódico, já na primeira década do
No ano seguinte ocorreu um acontecimento crucial: de Mos- século atual. Permanece o fato de que os leitores chineses da geração
de Mao Tsé-tung, e o próprio Mao, não puderam ler o Manifesto na
• Em português no original . - ( N. do T. ) íntegra senão em 1921.

76 77
considerando as perspectivas de socialismo aí existentes, Lênin pessoas orwellianas, mas tôda uma classe social - o proleta­
insistira em afirmar que a naç,ão-Estado formava uma base riado industrial chinês da década de 1920 - foi apagada da
demasiado estreita ara a trans - História e convertida numa não-classe. Veremos agora por
u ocialista. A.!_ê �
to os os gran es mani estos da lntern'acional Comunista cul­ que foi que isso aconteceu.
minavam num apêlo para os Estados Unidos da Europa So­ A sorte da revolução da década de 1920 foi bastante
calista. No Oriente, porém, a situação era muito diferente. trágica. Não só foi derrotada mas, ainda antes da derrota, já
as;eus povos viviam numB; época pré-industrial e mesmo fôra empurrada de volta ao impasse da revolução puramente
pré-burguesa, fragmentados por particularismos quase feu­ burguesa, para o qual o leninismo acabara d-e iniciar a única
dais, patriarcalismos tribais, sistemas de castas e caudilhis­ saída. Stálin, seus a ani uados e a entes na China, fizeram-na
mo militar. Se, para o Ocidente, a nação-Estado, a grande retroce �r. Nós, no Ocident·e, não precisamos fiar-nos nas "re­
conquista do passado, já constituía um obstáculo ao progres­ visões" stalinistas ou maoístas da História; suponho, por isso,
so, para os povos do Oriente essa realização ainda se situav que os leitores conhecem os acontecimentos em suas linhas
no uturo e era uma con 1çao essencia e progresso. Mas gerais; e recordarei, apenas, que a fuolítica de Stálin centra­
se, no Ocidente, a moderna nação-Estado fôra o produto va-se na idéia de que a revolução c inesa devia ter objetivos
de revolução burguesa, o Oriente tinha de ir além dessa re­ puramente burgueses e basear-se no chamado "bloco de quçt­
volução para atingir a mesma finalidade. Foi essa a nova e tro classes''. Com efeito, Moscou forçou os relutantes comu­
grande lição !=jUe Moscou divulgou no início da década de nistas chineses e submeterem-se incondicionalmente à dire­ . , t.. ,! ,-
1920. Apesar disso, não concebeu a revolução chinesa ou ção e disciplina do Kuomintang; a aceitarem o general Chiang
qualquer outra revolução no Oriente como uma luta pura­ Kai-chek como o líder e herói nacional; a absterem-se de en­
mente nacional, mas como parte de um processo internacio­ corajar revoltas agrárias; e, finalmente, em 1927, a desarma­
nal; e ainda atribuía à revolução socialista proletária do Oci­ rem os trabalhadores insurretos nas cidades. Dessa maneira
dente o papel dominante na luta mundia"I. O bolchevismo fÕi. suprimida a primeira grande e vitoriosa rebelião roletá­
pro·etava a sua pró ria ex eriência no cenário mundial. Na riãda Ásia, é!. Comuna e Xangai, seguindo-se o massaq:e
ússia, a evo ução tivera lugar na ci a e ,e no campo; mas cte comunistas ·e trabalhadores insurretos e,- finalmente, a der, 1
a iniciativa condutora, a inteligência e a vontade partiram rocada da revolução.
da cidade; e isso, pensavam os bolcheviques, repetir-se-ia T,em-se argumentado que, independentemente da políti-
numa escala global, em que o Ocidente industrial era a "ci­ ca de Stálin, a revolução de 1925-27 estava condenada, de
dade", ao passo que o Oriente subdesenvolvido era o "campo". qualquer modo, por causa de sua inerente "imaturidade", O
historiador não pode, num exame post mortem, destrinçar as
A revolução chinesa seguinte, que ocorreu em 1925-27, causas objetivas de um acontecimento como êsse das causas
parecia confirmar essa esperan� A Gra-Bretanha foi, nessa subjetivas, da política e ações dos homens; não pode afirmar
época, abalada pelas maiores lutas de classes da sua Histó­ qual foi, entre todos êsses fatôres, o que decidiu o resultado da
ria, a mais longa e pertinaz greve de mine1ros registrada até luta. O fato é que, fôsse a derrota da revolução inevitáv,el ou
hü!e e a Greve Geral de 1926. Na China, o alinhamento das não em 1927, o stalinismo fêz tudo o ue lhe era ossível 11
fôrças sociais assemelhava-se, em têrmos gerais, ao padrão para que assim ôssse. No riente, não menos do que no
russo: o país rural ardia na revolta agrária mas os trabalha­ Ocidente, a política stalinista foi acionada pelo mêdo de des­
dores urbanos eram a fôrça impulsiora da revolução. '.É ne­ truir ou perturbar o status quo, e pelo desejo de evitar en­
cessário recordar êsse importante fato, agora esquecido ou volvimentos profundos em conflitos sociais graves no estran­
ignorado. Grande parte da história chinesa recente foi, inf_e­ geiro, que pudessem redundar em "complicações internacio­
li!mente, escrita de nôvo por maoístas e stalinistas; e não só nais". No Oriente, não menos ue no Ocidente, o stalinismo
muitas personalidades históricas foram convertidas em im- agiu no senti o empat,e na luta de class�s.

78 79
--�---------------------

Nª China, porém, qualquer indecisão tornara-se impos


vel. A revolução fôra esmagada nas cidades; m as sí­ com Chiang Kai-chek; e por isso lhes ofereceu um pouco de
a contra­ publicidade barata nos jornais do Com inter�, s:m qu�lquer
revolução não foi capaz de consolidar a sua vitóri
a. A es­
trutura social do país estava fragm,entada. As revolt outra assistência. Considerava Mao um excentrico peao no
c�m oneses continuara�. O regime do Kuomintang asde seu tabuleiro de xadrez, colocado num dos cantos menos im ­
era
tico e corrupto, E epo1s, durante quinze anos, a invas raquí ­ portantes para o desenvolvimento do seu jôgo.
.ão ja­ _
E na verdade, a estratégia de Mao precisava, para o seu
ponêsa desferiu ol e sôbre oi e na estrutura social
gime político. Nada podia impe ir o processo de e no re­ êxito 'de uma extraÓrdinária co mbinação ou coincidêrícia de
deco mpo­ circu�stâncias que êle jamais. pre�ra ne m podia pr:ver.
s�o. _ Japonesas,
_
Foram precisos quinze anos de mvasao ·e ocupaçao
Contudo, a derrota de 1927 e os acontecimentos subse­ quinze anos durante os quais a China foi desm embrada e m er­
qQentes prepararam a cena para uma revolução _
rente da dos anos 20 e_!!!uito diferente, também. muito dife­ gulhou no caos; e foram recisas uma uerra m undial e a der­
do padrão rota do Japão para que os adeptos � ao so rev1vessem e
de 1905 e 1917. No final da década de 1920, ªEós o m assa­ _
ganhass·em fôrça; e para que o Kuommta':g �hegasse aquele
cre de seus m embros_, o Partido Comunista encontrou dificu põnto de exaustão e colapso em �e um exercito de cam one-

dades •extremas para reconstruir seus redutos urbanos. ses fôsse capaz de o levar de vencida. orma mente, em no�sa
Na _
década de 1930, tendo os japonêses conquistado tôda a Chi;a época - e isso assim foi, mesm o na Chma �u?des�nvolv1da.
costeira, entregara m-se ao desmantelamento industrial e _
m - a cidade domina o campo econômica, admm1strativa e mi­
tôciãsas cidades ocupadas, destruindo as fábricas e causan­ litarmente numa tal extensão que as tentativas de levar a re­
do, dessa maneira. a dispersão dos operários. Mesmo antes volução de campo para a cidade estão antecipadam ente . v?­
disso, porém, já Mao Tsé-tung insistia com o Partido Co­ tadas ao m alôgro. Mas em 1948 e 1949, quando os partida­
munista para que abandonasse as cidades e investisse tôdas rios maoístas entraram em Nangmm , Tientsin, Xangai, Can-
as suas energias na guerra camponesa, que seria deflag
rada tão e Pequim , caíram num vácuo virtual. A desintegraçã� ?º-:::>
nas áreas rurais onde a g•ente do campo estava em maior agi­ Kuom intang era com pleta. Disso não se �percebera Stah?,
tação. Sua estratégia política· foi resumida, m uitos anos depois nem mesmo em 1948, quando instou em vao com Mao T e­
na celebrada frase de que, na China, a revolução deve ser, iang c ncor­
tung para que fizesse a paz com _ . ai-chek � ?
-
levada não da cidade para o ca mpo m as do campo dasse na incorporar,;ão dos seus guerrilheiros no exercito de:
para a
11 cidade. Chiang. Mais u�a vez temeroso ?e "complicações" -:- da
_
m aciça intervençao am ericana nas areas do Extremo-Oriente
Seria essa estratégia um golpe de gênio político?
antes, o jôgo desesperado de um aventureiro? O Ou seria, contíguas às fronteiras soviéticas - Stálin ainda estava ten­
seu êxito tando ( em 1948!) restabelecer o statu's quo chinês de 1928. 1
final faz parecer que foi o primeiro caso. Mas, à
luz das cir­ . Entrem entes, o Caráter da revolu ão e o as ecto do co­
cunstâncias do tempo, foi um jôgo deveras arriscado
doso. A Moscou stalinista tratou-o durante m uito e duvi­ m unism o chinês m u aram radicalm ente. parti o de Mao,
t•empo co mo em ideologia e organização, apresentava poucas semelha1;ç�s
uma aberração inofensiva que nem m erecia sequer .
a
nlião como heresia. Incidental mente, Mao retribuiu excomu­ com o partido de Lênin ou o de Stálin. O _J1artid? .de 'Lenm
dülgência, manifestando exteriorment•e tôda a essa in­ tinha suas raízes mais profundas na classe operaria. O de
sua devoção Mao baseava-se uase exClusivamente na classe cam onesa.
ao culto de Stálin. Na opinião dêste, porém, os partid
de Mao, em bora acabassem controlando consideráveis ários Os o cheviques cresceram no seio de um sistema multipar­
rurais, não tinham possibilidade alguma de fazer áreas tidário que existira, m eio subm erso, na Rússia tzarista; e ha­
chegar a bituaram -se aos duelos da controvérsia intensa co m seus an­
revolução à cidade e derrubar o Kuomintang. Stálin
tava-se em usá-los como pedras em seu jôg de conten­ tagonistas, m encheviques, revolucionários sociais, liberais e
o barganha outros. Os maoístas, tendo vivido mais de vinte anos e m
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completo isolamento, entrincheirados em seus redutos subter­ Stálin. ( Não é sem motivo que Mao compõe os seus poemas
�ãneos e_ aldeias_ da� montanhas, tornaram-se profundamente no estilo clássico dos mandarins) .
mtrovert1dos. Nao tmham mencheviques nem revolucionários Por maior que seja o poder do passado sôbre o pres•ente
soc�ai� com quem se defrontarem em debates diretos. Suas não é preciso, entretanto, exagerá-lo. Na China, como na
P_olem1cas com o Kuomintang eram da natureza que caracte­ Rússia, o amálgama de uma ideologia revolucionária moder­
riza a propaganda de guerra que é preciso desencadear contra na com a tradição nativa primordial constitui fenômeno de
um i�i�igo, não uma controvérsia ideológica com um oposi­ uma época de transição. Num lado e noutro, a sociedade es­
tor seno. Os quadros partidários formavam o corpo de co­ tava convulsionada por uma transformação que reduz ou des­
mando dos adeptos e combatentes. Tudo, em sua vida estava trói a fôrça do costume ou hábito. Num lado e noutro, os go­
subordinado às necessidades im erativas de um confr�nto ar­ vernantes usaram a tradição para fins que erradicaram o
ma o. A organização, a disciplina, os á itos e pensamento, modo tradicional de vida. Vimos como a industrialização, ur­
a conduçao _
dos assuntos cotidianos, tudo estava militarizado. banização e a educação em massa tornaram o amálgama sta­
Por muito revolucionário e pouco convencional que fôsse 0 linista inaceitável para a sociedade soviética de hoje; e po­
seu militarismo, estava em flagrante contraste com O caráter der-se-á supor que nisso, se outros fatôres não existirem, a
p�edominantem,ente civil do Partido Bolchevique. Se O bolche­ União Soviética prefigura a imagem de um futuro não muito
vismo se t_ornou 1:1�nolítico, através de uma longa série de do­ remoto da China.
lorosa_ � cri ses pohticas e morais, após a supressão de muitas Em qualquer caso, os soldados de M3o, ao invés dos an­
.
opos1çoes internas, o maoísmo tinha pouco a suprimir em suas tigos exércitos de camponeses rebeldes, nã0 deixaram intata
próprias fileiras; o seu caráter monolítico era um r•esultado a estrutura atriarcal da sociedade chinesa. Eram. os agentes D
natural e espontâneo. E assim, embora o maoísmo se asseme­ e uma revoluçã0 burguesa moderna que não podia ser con­
lhasse ex�eriormente ao stalinismo, a semelhança ocultava pro- tida nos seus limites; e iniciaram uma revolução socialista.
Produziram, de fato. o segundo grande ato da sublevação in�
l! fundas diferenças. f·ernacional iniciada em 1917 na Rússia.
Os sinólog?s _comparam freqüentemente os guerrilheiros - Como foram êles capazes de produzi-la? Na Rússia, a
de Mao aos cxerc1tos de camponeses chineses que, ao longo dupla revolução foi o resultado de uma luta homérica desen­
das eras, se levantaram para derrubar dinastias e colocar seus cadeada, sobretudo, pelos trabalhadores industriais, liderados
P_:óprios cabecilhas no trono. Sem dúvida, os soldados de Mao por sua vanguarda autênticamente socialista. Q___partido_.de
sao, em certos aspectos, descendentes dêsses exércitos Tam­ Mao, como sabemos, não. tinha relações com qualquer prole­
bém na China o 1;.ª:sado s·e refletiu na Revolução - 0• passa­ táriãélo.industrial; e êste último desempenhou um papel signi�
do com suas trad1çoes de mandarinato, a par das sublevações ficativo nos acontecimentos de 1948-49. Os camponeses �de­
camponesas. Se o stalinismo foi o amálgama de marxismo fendiam a .redistribuição das terras e da propriedade priva­
com o b�rbarismo selvático da velha Rússia, o maoísmo pode da. A chamada burguesia nacional, desapontada e desmorali­
s_er cons�d�r�do um amálgama de leninismo com o patriarca­ zada pela corrupção e desintegração do Kuomintang, alimen­
hs1:10 pnm1ttvo e os cultos ancestrais da China. O maoísmo tava a esperança de que o maoísmo não excedesse os limites
esta, em todo o caso, muito mais impregnado dos hábitos e de uma revolução burguesa. Em resumo, em 1948-49, nenhu­
costumes nativos do que o comunismo urbano da décad.:i de ma classe social básica lutou na China peÍo estabelecimento
l 920. Até uma comparação literária dos escritos de Mao e de do socialismo.
Chen Tu-hsiu, predecessor daquele na liderança do Partido �o meter ombros à revolução socialista, o maoísmo inter�
revela a diferença: o idioma de Mao é muitíssimo mais ar� pretou o papel que os bolchevistas assumiram alguns anos
caico do �ue o de Chen, cuja linguag•em se aproximava mais depois de 1917, o de procuradores e guardiões de uma classe
dos marxistas europeus, especialmente os russos da era pré- trabalhadora industrial quase inexistente. Na medida em que

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gozavam do apoio camponês, os maoístas não eram uma elite blocos. Nessas circunstâncias, a· segurança da China resi­
revolucionária isolada, sem qualquer classe social atrás dêles. dianuma •estreita aliança com a União Soviética e na ajuda
Mas os camponeses, seu individualismo focalizado na econo­ econômica soviética; e isso re eria o ajustamento da sua e:,•
mia rural, eram, na melhor das hipóteses, indif.erentes ao trutura social e política ã da Ünião Soviétiq1.
que acontecia na cidade. Não era fácil para a nova China. realizar uma estreita
Ao irem muito além do horizonte camponês, os maoistas aliança com a URSS. As relações entre as duas potências
foram impulsionados por três motivos, pelo menos: (a) os comunistas eram tensas e, desde o início, cercadas de ambi­
compromissos ideológicos que aceitaram nos primeiros anos güidades. O egoísmo nacional do govêrno de Stálin era a
formativos; ( b) considerações de interêsse nacional; e ( c) principal causa das tensões. Ainda que Mao e seus camara-
\lllperativos de segurança internacional. EEJ: seus anos de mo­ das estivessem dispostos a esquecer como Stálin os usara na
cidade, en__g_uanto sofr��!'lm _ a_ influência _da __escol!!)E:!linista de década de 1920, como tratara então os guerrilheiros e obs­
pensamento, absorv�!._él_!!?.__ -ª.�-jqêjç:1_� 4Q -�9.<::iéll!s_xn_o prnktAri.o. truíra suas tentativas de conquista do poder, não podiam
Ditrãrite-as·dEêâôas- de sua imersão na China rural, tais idéias fàcilmente reconciliar-se com a posição mantida pela Rússia
eram de pouco ou nenhuma utilidãde e êles - identHlcarâ�_,..�e 110 Extremo Oriente, desde a derrota do Japão. Os russos
então com o individualismo c�onês. Mas, reentrando nas restabeleceram seu predomínio na Manchúria; conservavam
ciàaâes como governantes cta China, não podiam permitir-se em seu poder a Far Eastern Railway e Pôrto Arthur; e des­
ser unicamente guiados por êsse individualismo, o qual, tradu­ mantelaram e transportaram para a Rússia, como "prêsa de
zido em têrmos urbanos, significava iniciativa privada na in­ guerra", o parque industrial da Manchúrra - a província que
dústria e no comércio. Lutavam por unificar a nação, criar um era então a única .base industrial da China e da qual o seu
govêrno centralizado e edificar um moderno Estado-nação. desenvolvimento econômico dependia. Tampouco Moscou mos­
Não podiam basear-se num enfezado capitalismo nativo, vul­ trava quaisquer sinais de estar disposta a abandonar s•eu do­
nerável às pressões ocidentais. A indústria e os bancos nacio­ mínio na Mongólia Soviética, embora todos os líderes, no
nalizados forn•eciam um alicerce muito mais seguro para a passado, formulassem promessas repetidas e solenes de que
independência nacional e um Estado unitário, para a indus­ um dia, quando a revolução triunfasse na China, tôda a Mon-
trialização e o ressurgimento da China como grande potência. gólia se uniria numa só república, federada com a China. Em
Embora, em teoria, êsses objetivos fôssem compatíveis com tudo isso •estavam os germes de um conflito muito mais grave
uma revolução puramente burguesa, uma nação semicolonial em que Stálin e Tito haviam há pouco mer lhado, u�-
não podia, no século atual, atingi-los por meios burgueses. l{
ílfto tão grave quanto 0 que iria colocar ruschev e Mao
(Caracteristicamente, Mao não expropriou os capitalistas sem 1

frente a frente, uma década mais tarde. Contudo, em 1950,


compensação: paga-lhes até hoje, na forma de dividendos a ,....._
tanto Stálin como Mao não podiam desavir-se. Stálin preca-
longo prazo, e concedeu-lhes cargos de gerência no setor eco­ via-se de impelir os maoistas e os titoístas para uma fr.ente
nômico. Bste fato, porém, não diminui por si só o caráter so­ c�; e Mao, por sua parte, estava tão ansioso por obter
cialista da Revolução.) Finalmente, considerações de seguran­
ça internacional impeliram a nova China a aproximar-se da a boa vontade e a assistência soviética, que firmou um com­
promisso com Stálin e agarrou-se à aliança com unhas e
União Soviética. Até ao momento da v1tona, os maoístas ba­
teram-se com os exércitos do Kuomintang que eram "asses­ dentes. A União Soviética atuava como avalista da Revolu ão
Chinesa e o seu caráter sacia ista.
sorados" por generais americanos e equipados com armamen­
to americano; ocasionalmente, tiveram mesmo de travar com­ Evidentemente, a Revolução Chinesa foi assolada por
bate com os fuzileiros americanos. Os Estados Unidos sus­ tôdas as contradições que perturbaram também a Revolução
t�tavam Chiang como o pretendent; contra-revoluc1onár!Q: Russa: as que decorriam dos seus aspectos burguês •e socia­
� guerra fria atingia o auge; e o mundo dividira-se em dois lista ,e as inerentes a qualquer tentativa para estabelecer o

84 85
socialismo num país subdesenvolvido. Circunstâncias seme­ lução, as relações sociais e políticas, especialmente entre a
lhantes produzem resultados semelhantes. Daí, apesar de suas cidade ,e o campo, eram menos tensas na China do que o
diferenças, a afinidade entre o maoísmo e o stalinismo. Ambos foram na Rússia.
agiram dentro do sistema de partido único, como detentores Nada parecia entravar o caminho de uma associação
de um monopólio do poder e como fiéis depositários e pro­ ainda mais estreita entre as duas potências, especialmente
curadores do interêsse socialista, embora Mao, não possuin­ quando, após a morte de Stálin, os seus suces�ores dissolve­
do a experiência real de um sistema multipartidário, nem tendo ram as companhias de ca ital con ·unto, renunciaram ao con­
atrás de si a tradição do marxismo europ,eu, desempenhasse trô e ireto e evantaram a maioria das condi ões humilhan­
seu papel com muito menos culpa e muito mais à vontade do tes que ta m vmcu ara à aju a sov�ética. Com efeito, a época
que Stálin. E o maoísmo, tal como o stalinismo, refletia o parecia auspiciosa para o estabelecimento de algo como, u�a
atraso do seu meio nativo, que a revolução levaria muito comunidade socialista estendendo-se desde os mares da Chma
tempo para digerir e superar. ao Elba. Numa tal comunidade, um têrço da humanidade
A aliança, apesar de tôda a ambigüidade, acarretou .bene­ teria planejado em conjunto o seu desenvolvimento social e
fícios vitais para ambos os parceiros. Stálin obtivera não só econômico, na .base de uma vasta divisão racional do traba­
a anuência chinesa ao princípio de liderança soviética exclusi­ lho e de uma intensa troca de bens e serviços. O socialismo
va no campo socialista; também ganhou, através de compa­ poderia. finalmente. começar a converter-se num evento m­
nhias sino-soviéticas de capital conjunto, uma influência dire­ ternacional".
ta na condução dos assuntos econômicos e políticos chineses. Um empveendimento tão ambicioso teria, sem dúvida, e�­
Essas companhias mistas só podiam ferir as susceptibilidades frentado uma multidão de dificuldades, decorrentes das gi­
de muitos chineses, para quem pareciam novas versões das gantescas discrepâncias entre as estruturas econômicas e pa­
concessões ocidentais antigas. Não obstante, graças à ajuda drões de vida, entre os níveis de civilização e tradições na­
soviética, a nova China não se encontrava tão isolada no cionais das principais nações participantes. As brechas entre
mundo quanto a Rússia bolchevique nos anos que se segui- os ricos e os pobres, a parte mais onerosa do le ado ue
1 ram a 1917. O bloqueio ocidental não podia impor à China revolução socialista her a o passa o, ar-se-iam sentir, em
as agruras e privações que foram impostas à Rússia. A China qualquer caso. Os pobres, os chineses em primeiro l�ga�,
nao se encontrava veduzida, desde o princípio, aos seus pró­ fariam pressão, fatalmente, por um nivelamento dos mveis
prios recursos, desesperadoramente inadequados. A engenha­ econômicos e padrões de vida, dentro da comunidade; e suas
ria e a administração científica soviéticas, através de seus exigências chocar-se-iam, por certo, com as crescentes expec­
C<?_��-!�eiro�_e _t_�ct1ic_:_Qs1 e_ º_Jreino russo de •especialistas e ope­ tativas de consumo da União Soviética, Tchecoslováquia e
rários _chineses, . facilitaram desde o comêço a industrializa­ Alemanha Oriental. Mas êsses obstáculos não s•eriam insupe­
ção da_Qii!!?, aliviaram-lhe o fardo da acumulação priniith;a ráveis para uma séria tentativa socialista de transcender eco­
e aceleraram o seu "arranco". Por conseqüência, a China não nómicamente o Estado-nação. Uma ampla divisão do trabalho
teve de pagar o elevado pveço do pioneirismo, na estrada do e intercâmbio intensivo por certo produziriam consideráveis
socialismo, que a Rússia pagou, embora os chineses partissem vantagens a todos os membros da comunidade,. economizan­
cte níveis muitíssimo inferiores de desenvolvimento econômi­ do vecursos, poupando energias e criando novas margens de
co e cultural. O govêrno de Mao não t·eve de cortar, tão ra­ riqueza e novos espaços econômicos para todos.
dicalmente quanto Stálin, a renda dos camponeses, a fim de
írfstalar as bases nevrálgicas da industrialização; nem teve de Nada se erguia no caminho de um tal projeto, a não ser
manter os consumidores urbanos com rações tão •exíguas. a inércia da auto-suficiência nacional e a arrogância burocrá­
Essas circunstâncias ( e outras que não posso pormenorizar !'icn. Ao descrever como o pensamento de qualquer burocra­
aqui) explicam o fato de que, na primeira década da Revo- dél está vinculado à naç.ão-Estado, como por esta é modelado
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e condicionado, ·eu disse anteriormente que nem mesmo a pro­ Os maoístas pagaram aos russos na mesma moeda, a
pagação revolucionária poderia curar a política stalinista do moeda do egoísmo nacional. O que desde então passamos a
seu egoísmo nacional e isolacionismo ideológico; e que, quanto ouvir, proveniente da China, foi cada vez menos a argumen­
a êsses males, a política dos seus sucessores continuava a her­ tação racional numa controvérsia sôbre os meios e os fins do
deira legítima. Mesmo que o conceito de Socialismo Num Só socialismo e cada vez mais o clamor do orgulho nacional
País tivesse há muito perdido a sua relevância, a mentalida• ofendido e enraivecido, o clamor dos insultados e humilha­
de, o modo de pensar e o estilo de ação política por êle ins• dos. O choque traumático de 1960 agitou e extravasou dos
pirados sobreviveu. Em nenhum outro setor isso se mostrou maoístas todos os seus ressentimentos contra os russos
mais impressionantemente do que nas relações russo-chine­ por tanto tempo acumulados e suprimidos. Também libertou
sas. Mencionarei aqui apenas um acontecimento, nessa esfe- nêles alguns traços negativos do seu caráter, especialmente
/"\ ra: o súbito cancelamento pelo govêrno de Kruschev em ju- sua inveterada presunção oriental e sua hostilidade para com
\ lho de 1960, de tôda a ajuda econômica à China e a chama­ o Ocidente, do qual a União Soviética passou a ser vista
da de todos os especialistas, técnicos e •engenheiros soviéti­ como parte integrante.
cos que estavam em serviço naquele país. O golpe desferido No âmago do conflito res. idem as atitudes diferentes das
foi provàvelmente mais cruel do que, digamos, o breve e vio­ duas potências em relação ao status quo internacional. Os
lento impacto da intervenção armada soviética na Hungria. russos prosseguiram, durante todos êsses anos, sua velha busca
Como os es ecialistas e engenheiros foram instruídos ar de segurança nacional, dentro de um status quo internacio­
retirar aos chineses to os os planos e projetos soviéticos de nal. Foi suficientemente demonstrado, creio eu, que essa orien­
construções em curso, ao mesmo tempo que eram canceladas tação política não constituiu uma inovação dos sucessores de
as patentes ,e licenças respectivas, um grande número de em­ Stálin. O que os maoistas denunciam não é o feito do "revi•
preendimentos mdustriais chineses viu-se, de um golpe, ati­ sionismo kruschevista". O revisionismo é stalinista em sua
rado para um ponto morto. Os chineses investiram substan­ ori em; remonta à década de 1920 e ao Socialismo Num ó
cialmente nas fábricas e usinas em construção; êsses investi­ aís. Desde então, a lítica ·amais deixou de recurar evitar,
mentos foram congelados. Massas de edifícios semi-acabados ãTodo o custo, qualquer envolvimento pro un o e arrisca o
'. ,. ( e de máquinas semi-instaladas foram entregues à ferrug·em e nas lutas de classes e nos conflitos sociais e políticos do
ao apodrecimento. Para uma nação açoitada pela pobreza, mundo, fora de suas fronteiras. Foi essa, entre todos os seus
que apenas começava a equipar-se, foi uma perda ruinosa variados motivos e variadas circunstâncias do tempo, a sua
e paralisante. A industrialização da China estêve sus ensa preocupação constante. E a ela. durante mais de vinte anos,
durante cinco anos e a 1mmmçao o ritmo urou muito mais. subordinou Stálin a estraté ia e a tática do Comintern; depois,
Milhões __de operários foram condenados à ociosidade e às pri­ no período entre 43 e 1 . to os os interesses dos arti­
vaç���L t.��-º. _4� r_E!fa2:_E:_r p-�a:11,1in11o p�ra a_s suas aldeias mima dos comunistas. m relação à ina, Stãlin bate todos os
época em que estas ·eram asso 1 adas por inundações, sêc:ªs e recordes de "revisionismo • primeiro em 1927 •e- depois em //
colheitas péssimas. Não.posso evitar, neste contexto, relem­ 1_21.8. Na sua preocupação de segurança, tentou, como norma,
brar a extraordinária premonição com que, em 1922, em um preservar e mesmo estabilizar qualquer equilíbrio internacio­
de seus últimos escritos, Lênin se preocupou com o efeito que nal de fôrças existentes. Como agiu numa época de violentos
as açõe:s do "dzerzhimorda - o grande chauvinista russo e em­ deslocamentos e mudanças, teve de ajustar a sua política a
busteiro burocrático", poderiam ter um dia "entre aquelas uma situação em permanente renovação; e fê-lo repetidamen­
te, de um modo essencialmente conservador, Na década de
centenas de milhões de pessoas que, na Ãsia, movimentar-se-ão 1930, ada tau sua clítica e a das frentes o ulares à defesa

--
num próximo futuro para o primeiro plano do cenário his­ do sistema de ersai es, quando êste oi ameaça o pelo na­
tórico". zismo. Entr·e 1939 e 1941, "ajustou-se" ao predomínio do
88 89
1,'crceiro Reich na Eu_ropa. E, finalmente, dirigiu a sua polí­ na classe trabalhadora ou em qualquer tradição autênticamente
tica 2-ara a preservaçao do status quo criado pelos pactos de marxista, tudo isso os dispõe para uma estreiteza de vistas
�ta e Potsdam. Ê êsse status quo, ou o que dêle sobrou, nacional e um sagrado egoísmo, tão intenso quanto o stali­
que os sucessores de Stálin procuram agüentar, servindo-lhes nista; e por isso se inclinam também a subordinar os interês­
de ·escora contra as fôrças que o desintegram interiormente. ses dos movimentos .comunistas ou revolucionários estrangei­
ros à sua própria raison d'État e à sua própria política de
Contudo, para a nova China, êsse status quo é necessà­ poder. Até a ima em de socialismo dos maoístas •exibe o cunho
ria �ente inaceitável. Datando de muito antes .da Revolução stalinista: é a imagem de um um Só País, cer­
Chmesa, baseava-se no reconhecimento implícito do predomí­ cado pela Grande Muralha.2
nio norte-americano na ãrea do Pacífico. Não levara em
co1:_ta, portanto, a Revolução Chinesa e suas conseqüências. Com que ferocidade o maoísmo é dilacerado oor suas
É esse o status quo pelo qual a China continua sendo uma próprias contradições e até que ponto o conflito com -a União
nação proscrita da diplomacia int•ernacional; pelo qual está Soviética levou suas tensões internas a um nível explosivo, são
excluída das Nações Unidas, bloqueada pelas fôrças navais coisas evidentes atualmente. O "·epicentro da revolução" chi,,
e aér·eas americanas e sujeita a boicote econômico. Moscou, in­ nesa está emitindo novos tremores que abalam tôda a socieda-
vocando os perigos de guerra nuclear, está ansiosa por esta­ de chinesa, atingem a União Soviética e afetam o resto do
bilizar essa situação, se necessário fôr, impondo uma trégua mundo. Qual será o resultado dêsses tremores? Um regime
r tácita na luta de classes e nas "guerras de libertação" antiim­ que, como os inspiradores dos chamados Guardas Vermelhos
perialistas. A China tem todos os motivos para encorajar, prometeram, será mais igualitário, menos burocrático, mais di­
dentro de limites, aquelas fôrças que na Ásia e noutras re­ retamente controlado pela massa do povo, numa palavra, um
giões se mostram hostis ao estado de coisas . Não tem inte­ regime mais socialista do que aquêle em que vive a União So­
rêss� algum em impor uma pausa na luta de classes e_guerras viética? Uma revolução renascente e purificada? Ou o colossal
de hberta ão. Daí � incon_i atibilidade básica das politicas tumulto que testemunhamos em 1965-66 foi apenas uma da­
russa e c ?i·mesa. Dai, tam em, a voo erante riga, em par e quelas convulsões irracionais, típicas da revolução burguesa, // ':­
real mas em parte espúria, em tôrno do revisionismo. Daí, quando os homens e os partidos são impotentes para contro-
ainda, a acusação de que os russos, quando desejam uma lar as violentas oscilações do pêndulo político? Foram os
acom?dação com o Ocidente, alinham com o imperialismo Guardas Vermelhos, aglomerados durante meses e meses nas
a�encan� contra a Revolu ão Chinesa e contra os povos praças e ruas das cidades chinesas, os novos Enragés ou os
am a oprimidos pelo imperialismo. aí, finalmente, o esa io "Cavadores" e "Niveladores" do nosso século? Vencerão êles
chinês à liderança russa do "campo socialista" e a pretensão por fim? Ou, quando o longo paroxismo de fervor utópico �
maoísta a essa liderança. de atividade cessar, cairão exaustos e deixarão o palco para
o alto e poderoso salvador da lei e da ordem? Ou, talvez,
Contudo, d,!:!._as almas parecem coabitar no maoísmo: uma, todos os nossos precedentes históricos serão irrelevantes para
internacionalista; �utra. notóriamente repleta de presunção êsse drama? Seja qual fôr a resposta, o conflito entre os as­
onental. A oposição ao status quo e à política russa de poder pectos burgueses e socialistas da revolução ainda não foi re-
mduzm .
os maoístas a assumirem uma posição radical e a pro­
ferirem contra Moscou as palavras de ordem e os slogans do 2 Foi por isso que Mao, cultivando uma amizade diplomática com o
internacionalismo proletário-revolucionário. Mas seus próprios govêrno do general Sukarno durante muitos anos, encorajou o Partido
antecedentes e experiência, sua imersão profunda no atraso Comunista Indonésio a aceitar a liderança de Sukarno e a renunciar a
tôda a ação revolucionária independente, em favor de uma coalizão
do meio nacional, seu recém-adquirido - e, entretanto, tão com a "burguesia nacional". O papel de Mao em face do comunismo
antigo - orgulho em sua nação-Estado, o troféu por êlés i�donésio f?i, portanto, muito semelhante ao de Stálin, face ao comu­
.
conquistado em sua luta épica, sua falta de raízes profundas msmo chmes de 1920; e os resultados foram ainda mais desastrosos.

90 91
11 solvido; é muito mais profundo do que na Rússia. Primeiro, �.
elemento burguês avulta wbstancialmente na China, reere­
seritado como está pela classe camponesa, a qual ainda cons­
titui quatro quintos da nação, e pelos numerosos e influentes
r.obreviventes do capitalismo urbano. Segundo, o ímpeto an­
tiburocrático e igualitário da tendência socialista também mi­
rece ser maior do que foi na Rússia durante muito tempo.
Os antagonismos e as colisões, com imensas massas de povo
em jôgo, desenvolveram-se por algum tempo com uma espon­
taneidade tempestuosa como a União Soviética não voltou a
conhecer desde os seus primeiros dias de existência - uma 6
espontaneidade que nos recorda as turbulentas multidões de
Paris, em 1794, no período das lutas jacobinas de mútuo ex­

Conclusões e Perspectivas
termínio. Seja como fôr que êsse terrível espetáculo venha a
terminar e para que novas ·encruzilhadas venha a impelir tanto
a União Soviética como a China, uma lição dêsses aconteci­
mentos parece-nos clara: a abolição do domínio do homem
pelo homem não pode ser um evento puramente chinês, assim
como não podia ser um evento purament·e russ,o. Só poderá
ocorrer, se chegar alguma vez a ocorrer, como um evento ver­
dadeiramente internaçional, çomo um fato da História Uni­
versal.

e HEGANDO AO final dêste exame do meio século sovié­


tico, devemos retornar às interrogações com que principiamos:
A Revolução Russa realizou as esperanças que suscitou? E
qual é o seu significado para a nossa idade e geração? Dese­
jaria ser .capaz de responder à primeira destas perguntas com
franco e enfático sim, e concluir as minhas considerações com
uma nota apropriadamente triunfal. Infelizmente, não o posso
fazer. Contudo, uma conclusão desanimada e pessimista tam­
bém não se justificaria. Em mais de um sentido, trata-se ainda
de uma revolução inacabada. Sua crônica é tudo menos cris­
talina. Compõe-se de fracassos e êxitos, de esperanças frus­
tradas e esperanças realizadas - e quem pode medir espe­
ranças contra esperanças? Onde estão as balanças capazes
de pesar as realizações ·e as frustrações de uma tão grandio­
sa época e estabelecer as propórções mútuas? O que é evidente,
92 93
sem dúvida, é a imensidade e o caráter inesperado tanto dos tude da desigualdade reinante, ísso significa para muitos três
ê.xitos como dos fracassos, sua int·erdependência e seus fla­ ou quatro metros quadrados, ou ainda menos. A média ainda
grantes contrastes. Ocorre-nos a sentença de Hegel, que ainda é a mesma que no final da era de Stálin. Isto não surpreen­
não perdeu sua atualidade, de que "a História não é o reino derá se recordarmos que, sómente nos últimos quinze anos, a
! da felicidade"; que "os períodos de felicidade são as suas pá­ massa de habitantes urbanos cresceu numa proporção que
ginas em branco", porquanto, "embora não haja falta de sa­ iguala a população inteira das Ilhas Britânicas. Contudo, tais
tisfação na História, a satisfação que provém da realização estatísticas oferecem pouco alívio ou consolação às pessoas
de altos propósitos, excedendo qualquer interêsse particular,
que sofrem os angustiosos efeitos da superlotação; e, embora
isto não é o mesmo que usualmente se descreve como felici­
essa situação tenda a melhorar gradualmente, ainda haverá
dade". Por certo êstes cinqüenta anos não pertencem às pá­
ginas vazias da História. que esperar muito pela normalização completa. A desproporção
"A Rússia é um grande barco, destinado a grandes via­ entre os esforços e os resultados, exemplificada pelo proble­
gens", foi a frase famosa do poeta Alexander Block, em que ma habitacional, é característica de muitos aspectos da vida
sentimos a vibração de um intenso orgulho nacional. Um russo soviética. A URSS t·eve de correr muito d epressa em de­
que examine a crônica dêste meio século com os olhos de um masiados setores, empenhou-se, de fato, numa corrida ofe­
nacionalista, de alguém que veja a revolução como um evento gante, para descobrir que, no fim de contas, estava no mesmo
puramente russo, terá boas .razões para s·entir-se ainda mais lugar.
orgulhoso. A Rússia é agora um barco ainda muito maior, na­ Os viajantes ocidentais, impressionados pela preocupa­
vegando numa rota muito mais vasta. Em têrmos de poder ção intensa, quase obsessiva, dos russos com as coisas mate­
nacional, puro e simples - e muitas pessoas, por êsse mundo riais e os confortos da vida, falam muitas vêzes, a tal respei­
afora, ainda pensam nesses têrmos - o saldo é francamente to, de uma "americanização" da mentalidade soviética. Con­
favorável à União Soviética. Nossos estaaistas e políticos não tudo, as bas·es dessa preocupação são óbviamente diferentes.
terão outro remédio senão considerá-lo com inveja. Contudo,
parece-me que poucos russos da geração presente o conside­ Nos Estados Unidos, todo o "sistema de vida" e a ideolo­
gia dominante encorajam a preocupação com as posses ma­
ram com imperturbável exultação. Muitos têm consciência de
que Outubro de 1917 não era um evento puramente soviéti­ teriais, enquanto que a publicidade comercial trabalha fu­
co; ·e mesmo aquêles que a não têm não vêem necessàriamente riosamente para a excitar sem descanso, de modo a induzir
o poder nacional como ultima ratio da História. A maioria dos ou sustentar a procura artificial do consumidor e impedir os
russos parece cônscia, tanto das misérias como das grande­ excedentes de produção. A ânsia soviética de bens materiais
zas desta época. Observa o extraordinário ímpeto de sua ex­ reflete décadas de subprodução e subconsumo, a exaustão
pansão econômica, o número crescente de fábricas gigantes­ dêcorrente de carências e privações, e um sentimento popular
cas e ultramodernas, as rêdes cada vez mais densas de esco­ de que estas podem, finalmente, ser superadas. :8sse estado
las de todos os g�aus, os efeitos da tecnologia soviética, os de espírito popular obriga os. governantes a levar em conta,
vôos espaciais, a impressionante extensão de todos os servi­ mais do que estavam habituados a fazer, as necessidades po­
ços sociais, etc.; e têm um senso da vitalidade e élan de sua pulares e a satisfazê-las. Nesta medida,_ constitui, portanto,
nação. Mas também sabem que, para a maioria dêles, a vida um fator progressivo que ajuda a modernizar e civilizar o
1 cotidiana ainda é uma labuta excruciante, que troça dos es­ padrão nacional - um .. estilo" - de vida. Mas como o sis­
plendores de uma das superpotências do mundo. tema soviético de vida não está orientado para a acumulação
Para dar uma indicação: Apesar da escala imensa de individual de riqueza, a "americanização" é superficial e, com
construções habitacionais, a média de espaço habitável por tôda a probabilidade, característica apenas da fase atual de
pessoa ainda é apenas de cinco metros quadrados. Em vir- transição lenta da escassez para a abundância.

95
A vida espiritual e política da União Soviética também rando por Godot". Mas também neste aspecto as compara­
é afetada em vários graus pelas grandezas e misérias dêste ções entre fenômenos semelhantes na União Soviética e no
meio século. Comparada com o reino de mêdo e terror de, di­ Ocidente podem suscitar equívocos. O desespêro que impreg­
gamos, quinze anos atrás, a União Soviética de hoje é quase na muitas obras recentes da literatura soviética raramente é
uma terra da liberdade. Desapareceram os antigos campos de inspirado por qualquer sentido metafísico do "absurdo da con­
concentração, cujos reclusos morriam como mõscas, sem saber dição humana". Expressa, muito mais freqüentement·e, de um
por que eram punidos. Acabou o mêdo generalizado que pul­ modo alusivo ou qualquer outro, uma espécie de cólera abafa­
verizara a nação inteira, fazendo com que cada homem e mu­ da a respeito das ultrajantes anomalias da vida política so­
lher receasse falar até com um amigo ou parente e tornando viética, em especial, as ambigüidades da desestalinização ofi­
a União Soviética um país virtualmente inacessível ao estran­ cial. O espírito dêsses escritos é mais ativo, satírico e militan­
geiro. A nação está recuperando a consdênda e a fala. O te do que aquêle que produziu variações ocidentais recentes
processo é lento. Nem é fácil às pessoas abandonarem hábitos sôbre o velho tema da vanitas vanitatum et vanitas omnia.
que formaram durante várias décadas de disciplina monolíti­ O malôgro da desestalinização .constitui o núcleo dêsse
ca. De qualquer modo, a mudança é notável. Os jornais so­ mal-estar. Já decor mais de uma década desde ue, no XX
viéticos agitam-se, hoje em dia, com espetaculares .controvér­ Congresso, Krusche v expôs as ma eitorias e tá in. .E:sse
sias embora freqüentemente abafadas. E a gente comum ato só faria sentido se fôsse o prelúdio para um esclarecimento
não é grandemente inibida em expressar seus sentimentos e autêntico das questões por êle suscitadas e um franco debate
em escala nacional, sôbre o legado da era de Stálin. Mas não
idéias políticas, com sinceridade, a pessoas estranhas , mesmo foi o que aconteceu. Kl};lschev e o grupo dominante mostra­
turistas de paises hostis cuja curiosidade nem sempre é inó­ ram-se ansiosos não por abrir o debate mas por impedi-lo. A
cua. Contudo, o cidadão soviético irrita-se freqüentemente
sua intenção foi ue o rólo o constituísse também o e ílo O
com a tutela burocrática relativamente branda, sob a gúal vive
a esestalinização. Houve circunstâncias que os obrigaram
agora, como jamais se atreveu a impacientar-se com o des­ a iniciar o processo: êste tornara-se uma necessidade impera­
potismo de Stálin. Sente que a sua liberdade espiritual tam­ tiva da vida nacional. Como os protagonistas e até os segui­
bém está limitada a algo parecido com os seus cinco ou seis dores de tôdas as oposições anti�stalinistas foram extermi­
metros quadrados de moradia. ;8 um dos traços sublimes do nãaos, só sobravam os o círculo de Stálin ara inau­
caráter humano que os homens jamais se satisfaçam com o
que realizaram, especialmente quando suas conquistas são du­ ��ar a desestalinização. fV!_as a tare a era-lhes antipática;
1a contra a essência de seus hábitos mentais ,e interêsses. Só
vidosas ou consistem em meios-ganhos. Tal descontentamen­ poderiam levá-la a cabo um tanto a contragosto, sem grande
to é a fôrça motriz do progresso. Mas também pode resultar, convicção e de um modo perfunctório. Levantaram uma ponta
como acontece às vêzes na União Soviética, numa fonte de do véu que encobria a era de Stálin, mas não podiam desta�
frustração e até de cinismo estéril. pá-la completamente. E, assim, a crise moral provocada pelas
Em sua vida política, também os russos sentem freqüen­ revelações de Kruschev continua por resolver. Suas denúncias
temente que correram depressa demais para ficar no mesmo causaram alívio e choque, confusão e vergonha, perplexidade
lugar. A semiliberdade que a União Soviética obteve, depois e cinismo. Foi um alívio para a nação ver-s·e livre do fantas­
da era de Stálin, pode, na verdade, ser ainda mais torturante ma do stalinismo; mas foi um choque compreender até que
do que uma completa e hermética tirania. Recentes escritos ponto o fantasma prostrara o corpo político do país. Eviden­
soviéticos, a.lguns publicados na URSS, outros no estran­ temente, numerosas famílias sofreram com o terror stalinista
geiro, expressaram a mortificação que promana dêsse estado e conheceram-no em pormenor: mas só agora lhes era consen­
de coisas, o soturno pessimismo que por vêzes alimenta e até tido fazer uma idéia, pela primeira vez, das verdadeiras di­
algo semelhante ao estado de espírito de quem está "Espe- mensões nacionais dêsse terror. Contudo, essa idéia de relan-

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ce também ·era suficiente para confundir os espíritos. E cons­ eia, se um conhecimento •esclarecido do passado contribuirá
tituiu uma humilhação_ dolorosa _recordar-se_do modo_ im_eo­ ou não para a sabedoria dos estadistas e para a inteligência
tente como a nação sucumbira ao ter.ror e dàcilmente o su- política das pessoas comuns. Alguns acreditam que sim;
. - �ra_.- ___
port ··p-i!]-_a__!!_l.�!H�,__§{>...JJ.�rnt�;!
·r;···-·--.,·---···"··-···-- déi_...d...�.............
.... e cinismo.. podedam
·--·------- re-
......... . outros aceitam a opinião que Heine expressou, certa vez, no
sultar do fato das reve]-ªS.,q_��tôdas. serem feitásJ>eÍOs ..c(Ú:ÍJ.� aforismo de que a história nos ensina que não nos ensina
pfi_<:���-.:!>!12.2-!_�Q__u!�_fuAlin, os quais mostrandQ_ 1.!_�. J:>9J!CO coisa alguma. Na sociedade de classes, o pensamento políti­
da �upa suja que guar�ava� em __casa, ".oltaram_ a bater_ a co, governado pelo interêsse da classe ou grupo, sàmente se
_ _
porLa e nao se fãloii mais msso.
-·�-·-·--·-----,_...........,..,.,_7,c., _.._••-.-...__......,, ... __ ,,., beneficia do estudo do passado dentro dos limites requeridos
A questão foi demasiado grave e funesta parà··ser tra­ ou permitidos pelo interêsse. As próprias opiniões do histo­
tada assim, especialmente se atendermos à sua importância riador estão condicionadas pelas bases sociais e circunstân­
para a política corr·ente. A desestalinização oficial criou novas cias políticas. Normalmente, "as idéias da classe dominante"
, brechas e agravou as antigas. Os comunistas "liberais" e "ra­ teclem para ser "as idéias dominantes de uma época". Em
dicais", da "ala direita" e da "ala esquerda" só podiam fazer certas épocas, essas idéias favorecem um estudo mais ou menos
pressão para que se promovesse uma liquidação de contas, objetivo da História e o pensamento político ganha com isso;
sem inibições e em escala nacional, com a era d,e Stálin, aca­ em outras, atuam como poderosos fatôres de inibição. Seja
bando completamente com ela. Os cripto-stalinistas, entrin­ qual fôr o caso, não há grupo ou sociedade, mesmo que s•eja
cheirados na burocracia, estavam ansiosos por salvar o má­ apenas um pouco mais do que semicivilizado, que possa fun­
ximo possível do método stalinista de govêrno e da lenda de cionar sem possuir uma certa forma de consciência histórica
Stálin. Fora da burocracia, especialment,e entre os operários, satisfatória para si próprio, sem uma consciência que confira
muitas pessoas sentiram-se tão repugnadas pela hipocrisia da à maioria dos membros do grupo dominante, e da sociedade
desestalinização oficial que por pouco não se converteram ao em geral, a convicção de que a sua noção do passado, espe­
culto de Stálin, ou não quiseram mais saber do caso e prefe­ cialmente do passado recente, não é apenas um tecido de fal­
riam ver tôda a questão enterrada de uma vez para sempre. sidades mas corresponde, pelo contrário, a fatos e ocorrências
Subentendido nas divisões está o fato da sociedade so­ reais. Nenhum grupo dominante pode viver só p,elo cinismo.
viética não se conhecer a si mesma e ter disso uma consciên­ Estadistas, líderes e pessoas comuns necessitam todos possuir
cia intensa. A história dêste méio século é um livro fechado, um sentimento subjetivo de que aquilo que representam ou
mesmo para a intelligentsia soviéti�. Como alguém que ti­ por que lutam está moralmente certo; e o que está moralmen­
vesse sido há muito vítima de um ataque de amnésia e só agora te certo não pode assentar em distorções ou falsificações his­
começasse a convalescer, a na ão, i norante do seu assado tóricas. E, embora as distorções e mesmo as contrafações mais
recente, não compreende o presente. éca as e falsificação descaradas façam parte do pensamento de tôda e qualquer
stalinista induziram a amnésia coletiva: e as meias-verdades nação, sua eficácia depende do fato da nação em causa as
com que o XX Congresso iniciou o processo de recuperação aceitar ou não como verdades.
estão impedindo o seu progresso. Mas, mais tarde ou mais Na União Soviética, a crise moral dos anos pós-Stálin
cedo, a União Soviética fará um inventário dêste meio sé­ consiste numa ·erturbação rofunda da consciência histórica e
culo, se quiser que sua consciência política se desenvolva e se po ítica da nação. Depois o Congresso, o povo tomou
cristalize em formas novas e positivas. consciência das falsificações e mitos que compunham muito
Trata-se d,e uma situação de especial interêsse para his­ daquilo em que êle acreditara. "Quer saber tôda a verdade mas
toriadores e teóricos políticos: oferece um raro, talvez único é-lhe negado acesso a ela. Os governantes disseram-lhe que,
exemplo da estreita interdependência da história, política e virtualmente, todo o registro histórico da Revolução fôra fal­
consciência social. Os historiadores indagam, com freqüên- sificado; mas não lhe mostraram o registro verdadeiro, colo-
98 99
- -��- -------,

cando-o aberto diante de seus olhos. Daremos apenas alguns


exemplos: o último grande escândalo da era de Stálin, a cha­ des criadoras. A atual e incongruente combinação alimenta as
mada Conspiração dos Médicost foi oficialmente denunciado, mais intensas decepções; e, por causa disso, as misérias da
na base de que a conspiração fôra uma trama inventada. Mas Revolução podem, aos olhos do povo, acabar sobrepondo-se
de quem era a trama? Quem a inventara? Stálin era o único à sua grandeza, obscurecendo-a. Quando isso aconteceu em
revoluções passadas, o resultado era sempre o mesmo: res­
responsável por -ela? E qual a finalidade que se propunha
tauração. Mas, embora a restauração fôsse um tremendo re­
atingir? Estas perguntas ainda não foram respondidas. Krus­
chev sugeriu que a União Soviética poderia não ter sofrido trocesso, de fato, uma tragédia, para a nação que lhe sucum­
bira tinha suas características positivas: demonstrava a um
as gigantescas perdas que lhe foram infligidas na última
guerra, não fôssem os erros e enganos de cálculo. de Stálin. pov� desiludido com a revolução até que ponto a alternativa
reacionária era inaceitável. O regresso dos Bourbons e d9s ,...
Contudo, êss·es "erros" não foram sujeitos a um amplo deba­
Stuarts ensinou ao povo muit� mais e _ melhor do gu: os ?u­
te. O Pacto Nazi-Soviético de 1939 ainda é oficialmente tabu.
ritanos, jacobinos ou bonapartistas o fizerall!, que nao existe
�����, . i�1!·in��Ui�a�§!t
t�o�1[I%:!-1t'.i�adài1;:r ��j��;���: caminho de volta ao pass.ª-.do; que o trabalho básico de uma
m�cITõ� foram.
néfe'fl:fép:ur�çõês" �:11ce12éiclas. Mas as víti­
mas dos expurgos, salvo raras exceções t não foram reabili­
revolução é irreversível e deve ser salvaguardado para o f�-
turo. Sem querer, a restauração reabilita, ª�sim, a �ev�luçao fl o
.
ou, pelo menos,. as suas realizações essenciais e racionais.
�s. Ninguém sabe quantas pessoas foram deportadas para
os campos, quantas morreram nêles, quantas foram massacra­ Na União Soviética, como sabemos, a Revolução sobre­
dãs, quantas sobreviveram. Uma cons iração de silêncio r - viveu a todos os ossíveis a entes de restaura ão. Contudo,
deia, i ualmente as circunstâncias a co etiviza ão for ada. parece estar so recarregada por u'a mas�a de _de�ilusõ_es
Tôdas essas perguntas foram formula as; nenhuma foi res­ acumuladas e de desespêro que, em outras circunstancias h:s­
p�. Mesmo neste ano jubilar, a maioria dos líderes de toncas, seriam a fôrça impulsionadora de uma restauraçao.
1917 continua sendo de "não-pessoas"; o nome da maior parte Por vêzes a União Soviética parece estar carregada de po­
dos membros do Comitê Central que dirigiu a sublevação de tencialidades psicológicas e morais de uma restauração que
'" outubro não é ainda mencionável. O povo é solicitado a ce­ não pode conv·erter-se numa realidade_ política. Grande parte
lébrar o grande aniversário mas não pode ler um único rela­ da crônica dêstes cinqüenta anos esta pr�fundamente desa­
to fidedigno dos acontecimentos que está celebrando. (Nem creditada aos olhos do povo; e não seriam os R�manovs que�,
pode deitar mão a uma história da guerra civi.l.) O edifício se regressassem, iriam reabilitá-la. Ayevoluçao deve reª-bi- 1
ideológico do stalinismo ex lodiu; mas, com seus alicerces litar-se a si própria, por seus próprios esforços.
aBa a os, o teto arranca o, as aredes ene reciclas e amea­ A sociedade soviética não pode conformar-se por muito
çan o ruir ragorosamente,_ a estrutura ainda agüenta; e mais tempo a continuar sendo um mero objeto de h_is!ória e
rr pede-se ao povo que viva nel� a depender dos -caprichos dos _autocratas ou das d�cisoes ar­
Ao iniciar esta série de conferências, aludi às bênçãos e bitrárias das oligarquias. Precisa recuperar o sentido de ser
maldições da continuidade do regime soviético. Temo-nos senhora de si própria. Precisa obter o contrôle sõbre os seus
ocupado das bênçãos; agora vemos também as maldições. Pro­ governos e transformar o Estad , que há tanto t�mpo se er­
gueu infinitament·e acima da soCieda_de, em me�o. instrumento �
<:>
tegidos pela continuidade, os aspectos irracionais da Revolu­
ção sobreviveram e perduram em conjunto com os racionais. da vontade e dos interêsses da naçao, democraticamente ex­
Podem ser separados uns dos outros? .Ê evidentemente de in­ pressos. Precisa, em rimeiro lu ar, restabelecer � liberdade
te-rêsse vital para a União Soviética poder superar as irracio­ de expressão e associação. rata-se de uma aspiraçao mo­
nalidades e libertar de sua influência as energias e capacida- desta, comparada com o ideal de uma sociedade sem classes
e sem Estado; e é paradoxal que o povo soviético tenha agora
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101
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de lutar por aquelas liberdades elementares que figuravam


em todos os programas liberais burgueses, programas êsses com muito espaço de manobra e retirada. Uma ditadura bu­
rocrática pós-ca italista dis õe uito menos âmbito: a sua
que o marxismo corretamente sujeitou às suas críticas impla­ primeira m a e defesa, a olítica, é também a última. Não
cáveis.
a mira, portanto, que de en a essa linha com tôda a tenaci­
Contudo, numa sociedade pós-capitalista, a liberdade de dade que possa reunir.
ex r•essão e associa ão tem de desem enhar uma fun ão ra­
dicalmente diferente da ue I e coube no ca italismo. Não As relações pós-capitalistas entre Estado e sociedade são
seria preciso acentuar até que ponto essa liber ade é essen­ muito menos simples, porém, do que imaginam alguns críticos
cial para o progresso, mesmo sob o capitalismo. Todavia, na ultra-radicais. Em minha opinião, não está em causa a apre­
sociedadebu�uesa, pode ser únicamente uma liberdade for: goada abolição da burocracia. Esta, como o próprio Estado,
mal.. As relações de próprleàãde que predominam assim a tor­ não pode ser simplesmente obliterada. A existência de grupos
nam, uma vez que as classes abastadas exercem um contrôle especializados e profissionais de servidores públicos, de admi­
quase monopolístico sôbre todos os meios de formação de opi­ nistradores e gerentes, faz parte e é uma parcela da divisão
nião. As classes trabalhadoras e seus porta-vozes intelectuais social de trabalho necessária que refJ.ete vastas discrepâncias
conseguem assegurar-se, na melhor das hipóteses, facilidades , e brechas entre várias capacidades e graus de educação, entre
marginais para sua expressão social e política. E�stando a ró­ mão-de-obra especializada e não-especializada e, mais funda­
t mentalmente, entre cérebro e músculo. Essas discrepâncias e
pria sociedade controlada pela propriedade, não controla eeti-
1 vamente o Estado. Tanto mais generosamente lhe é consentido brechas estão diminuindo; e sua redução faz prever um
entregar-se à ilusão de que realmente o controla - salvo se tempo em que se tornar.ão tão insignificantes socialmente, que
manter viva a ilusão causar à burguesia muito embaraço e o Estado e a burocracia podem, com efeito, desaparecer. Mas
despesa. Numa sociedade como a soviética, a liberdade de essa perspectiva é ainda relativamente remota. O que nos pa­
expressão e associação não pode ter um caráter tão formal e rece possível, num próximo futuro, é que a sociedade s�a
ilusório: ou é real ou não existe. Tendo sido destruído o capaz de recu erar suas liberdades civis e estabef.ecer um con­

º
poder da propdedade, sàmente o Estado, isto é, a burocracia trô e po ítico sô re o Esta o. Ao lutar por isso, o povo so­
/) domina a sociedade; e seu domínio baseia-se exclusivamente viético não está apenas ressuscitando uma das velhas .bata­
na supressão da liberdade do povo para criticar e opor-se. lhas que o liberalismo burguês travou contra o absolutismo;
capitalismo pôde ermitir-se a concessão do direito de voto estará, sobretudo, dando seguimento à sua própria e grande
às c asses tra a a oras porque con ia em seu mecanismo eco­ luta de 1917.
nômico para mantê-las sujeitas; a burguesia mantém a sua O desfecho, evidentemente, dependerá imenso dos acon­
preponderância social mesmo que não exerça o poder políti­ tecimentos nos demais países. A tr•emenda e ainda obscura
co. Na sociedade pós-capitalista nenhum mecanismo econô­ convulsão chinesa também deve afetar a União Soviética. Na
�i_co automático mantém as massas em sujeição; é a fôrça po­ medida em que afrouxar ou derrubar uma estrutura burocrá­
htica pura que o faz. Certo, a burocracia deriva uma parte tico-monolítica pós-revolucionária, libertando as fôrças popu­
de sua fôrça da posição de comando, livre de contrôles, que lares que s·e ergam das profundezas da sociedade para uma
ocupa na economia; mas também a ocupa por meio da fôrça ação política espontânea, o exemplo chinês poderá estimular
política. Sem essa fôrça não pode manter a supremacia social; processos semelhantes do outro lado da fronteira soviética. ln­
e qualquer forma de contrôle democrático priva-a de sua dubitàvelmente, a China é mais progressiva do que a União
fôrça. Daí o nôvo significado e função da liberdade de ex­ Soviética em alguns aspectos, que mais não seja por ter po­
pressão e associação. Por outras palavras, o capitalismo tem dido aprender com a experiência russa e evitar alguns erros e
_
sido ca az de lutar contra os seus inimi os de classe, a arti hesitações soviéticos; e tem sido menos afetada pela ossifi­
de numerosas in as de defesa econômica, po ítica e cultural. caç.ão burocrática.· Por outra parte, a sua estrutura eco-
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nômica e social é primitiva e retrógrada. Por consequen­ da "convergência de estrutura em países com uma organiza­
cia, as lições que pretende ensinar ao mundo têm, freqüente­ ção industrial avançada" e examina os principais pontos de
mente, pouca ou nenhuma relevância para os problemas das convergência na sociedade americana. Existe a supremacia
sociedades superiormente desenvolvidas; e mesmo quando o dos elementos administrativos das emprêsas: o divórcio entre
maoísmo tem algo de positivo a oferecer, fá-lo quase sempre a gerência ou direção empresarial e os donos das emprêsas; a
de um modo tão rigidamente ortodoxo e em formas tão ar­ contínua concentração do poder indus.trial e a ampliação da
caicas que o conteúdo positivo é fàcilmente ignorado. E quan­ escala de operações: o definhamento do laisse·z fa ire e do
do os maoístas tentam galvanizar o culto stalinista, apenas mercado; o crescente papel econômico do Estado: e, conse­
conseguem chocar e antagonizar os elementos progressistas qüentemente, a inevitável necessidade de planejamento, que
da URSS. Mas talvez o conflito sino-soviético acarrete uma é necessário não só para evitar baixas repentinas e depres­
lição importante, a saber: das arrogantes oligarquias burocrá­ sões, mas para manter também a eficiência social normal. Diz
ticas, incorrigíveis em sua mediocridade e ,egoísmo nacionais, o Prof. Galbraith: "Vimos que a tecnologia industrial tem
não se pode esperar qualquer solução racional dêsse ou de
um imperativo. que transcende a ideologia". Rebatendo con­
qualquer outro conflito; muito menos podem criar os alicerces
estáveis para uma comunidade socialista dos povos. cepções errôneas correntes no Ocidente sôbre "o renascimen­
to da economia de mercado na URSS", o Prof. Galbraith
Os acont,ecimentos no Ocidente contribuirão ainda mais
comenta: "Não há qualquer tendência nos sist,emas soviéti­
decisivamente, para o bem ou para o mal, na evolução inter­
co e ocidental para uma convergência por meio do regresso
na futura da União Soviética. Poderemos deixar de lado os
freqüentemente discutidos e mais óbvios aspectos diplomáticos da União Soviética ao mercado. Ambos os sistemas ultrapas­
e militares do problema; é bastant,e evidente que severas res­ saram essa fase. O que existe é uma perceptível e muito im­
trições a guerra fria e a corrida internacional dos armamentos portant·e convergência para a mesma forma de planejamento
podem acarretar para o àesenvolvimento do bem-estar e a sob a crescente autoridade da firma comercial". Nesta apre­
ampliação das liberdades na URSS. Mais fundamental e di­ sentação, a "convergência" parece ocorrer não tanto a meio
fícil é o probJ.ema da indecisão na luta de classes. cujas ori­ caminho entre os dois sistemas mas, sobretudo, dentro das
gens foram anteriormente examinadas. Irá perdurar êsse im­ próprias fronteiras do socialismo, e o quadro não é tanto o
passe? Ou é apenas um momento transitório de equilíbrio? A de uma indecisão ou impasse mas, pelo contrário, uma diago­
opinião de que vai durar muito ganhou muitos adeptos, re­ nal resultante do paralelogramo das pressões capitalista e so­
centemente, entre os teóricos políticos e historiadores ociden­ cialista.1
tais; muitos estão inclinados a considerá-lo o resultado final
do duelo entre o capitalismo e o socialismo. ( Sem dúvida, Os historiadores encontram um precedente para essa si­
essa opinião também tem seus adep tos na União Soviética e tuação na luta entre a Reforma e a Contra-Reforma. O Prof.
na Europa Oriental.) O argumento é conduzido em vários Butterfield, um dos primeiros expoentes dessa analogia, acen­
níveis econômico-sociais e históricos. tua que, no início do conflito, tanto o protestantismo como o
As estruturas sociais da URSS e dos Estados Unidos catolicismo aspiravam à vitória total: mas, tendo chegado a
da América, acentua-se, tendo evoluído desde pontos de par­ um beco sem saída, foram ambos compelidos a procurar uma
tida opostos, encaminham-se uma para a outra, aproximam-se acomodação mútua, a "coexistir pacificamente" e a contenta­
tanto e cada vez mais, que as suas diferenças vão se tornan­ rem-se· com as respectivas "zonas de influência" no cristia-
do irrelevant·es e as suas semelhanças são decisivas. Entre
outros, o Prof. John Kenneth Galbraith expôs essa idéia nas 1 As citações são das Conferências Reith do Prof. Galbraith, tal como
suas Conferências Reith. Fala-nos enfàticamente a respeito foram publicadas em The Li�ener (15 de dezembro de 1966) .

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2
?i��o oc�dental. Entrementes, o seu antagonismo ideológico dois sistemas sociais e a um equilíbrio temporário entre am- / 1
1mc1al fo1 atenuado por um processo de assimilação mútua: a bõs. Quando o duelo entre os sistemas de vida feudal e bur­
Igreja . de Roma revigora-se absorvendo elementos do pro­ guês prosseguiu, assumiu novas formas ideológicas. A cons­

testantismo, enquanto este, tornando-se mais dogmático e sec­ ciência burguesa mais amadurecida do século XVIII expres­
tário, perde muita de sua atração e acaba por parecer-se com sou-se não em ideologias religiosas mas secularistas, filosó­
o adversário. A indecisão da luta foi, portanto, indissolúvel ficas e políticas. O empate entre o protestantismo e o catoli­
e final; o mesmo ocorre ao impasse verificado entre as ideo­ cismo foi perpetuado como que à margem da História; para
logias opostas do nosso t•empo. Neste ponto, os argumentos tôdas as razões históricas de ordem prática, na ação social e
dos nossos historiadores e teóricos políticos ou econômicos política efetiva, êsse empate fôra transcendido, Não só o con­
convergem. flito social não foi congelado pelas divisões religiosas mas
A analogia histórica, embora convincente em alguns continuou sendo travado até ao fim. No fim de contas, o ca­
pontos, tem seus defeitos e falhas. Como sucede muitas pitalismo obteve a vitória total na Eurgpa. E conseguiu-a
vêzes, negligencia as diferenças básicas entre épocas histó­ através de uma variedade de meios e métodos, por revolu­
ricas. Na época da Reforma, a sociedade ocidental estava ções de baixo para cima e de cima para baixo, e depois de
fragmentada numa multidão de principados feudais, semifeu­ muitos impasses temporários e derrotas parciais. Assim, nos
dais, pós-feudais, pré-capitalistas e capitalistas incipientes. A têrmos dessa analogia, parece pelo menos prematuro concluir
consdência protestante desempenhou um papel predominante que a present•e indecisão ideológica no duelo entre o Ociden-
na formação do Estado-nação; mas êste fixou os seus limites te e o Oriente pôs têrmo à confrontação histórica entre capi­
externos às tendências unificadoras. A reunificação do cris­ talismo e socialismo. As formas e expressões ideológicas do
tianismo ocidental sob a égide de uma só Igreja era uma im­ antagonismo podem e devem variar; mas não se deduz daí que
poss1fültdade histórica. Em contraste com essa situação, a o ímpeto do conflito tenha diminuído ou esteja at•enuado. Inci­
base tecnológica da sociedade moderna, sua estrutura e seus dentalmente, a história da Reforma oferece-nos muitas adver­
conflitos, são internacionais ou mesmo universais em s,eu ca­ tências contra as conclusões apressadas sôbre os impasses
ideológicos. íQuando se diz que cento e vinte anos decorreram
desde o Manifesto Comunista, sem uma única revolução so- li
ráter; tendem para soluções internacionais ou universais. E
existem agora perigos sem precedentes, ameaçando a nossa
existência biológica. :E:stes, sobretudo, pressionam no sentido cialista vitoriosa no Ocidente, pensa-se logo, quer se queira
de. uma unificação da humanidade, que não pode ser conse­ ou não, nas muitas arrancadas "prematuras" da Reforma e na
gmda sem um princípio integrador de organização social. maneira demorada como a sua ideologia e movimento foram
ganhando forma. Mais de um século separa Hus de Lutero;
. O protestantismo e o catolicismo defrontaram-se, primor­ e ainda outro século decorreu entre Lutero e a Revolução
dialmente, em têrmos ideológicos; mas, no fundo, havia o
Puritana.
grande conflito entroe o capitalismo nascente e o feudalismo Mas a análise marxista da sociedade e as aspirações uni­
decadente. Êsse conflito não foi, de maneira alguma, levado
a um ponto morto pelo impasse ideológico-religioso. A divi­ versais da Revolução Russa não terão sido invalidadas pela
assimilação mútua dos sistemas sociais opostos? É inegável
são das esferas de influência entre a Reforma e a Contrã:Re­ um certo grau de assimilação; e é devido ao impacto nivela­
forma correspondeu, de um modo geral, a uma divisão entre
dor supranacional da tecnologia moderna, assim como à lógica
de qualquer confronto importante que imponha métodos idên­
2 J:I., Butt�rfield, lnternational Co flict in the Twentieth Century, A
;" ticos ou semelhantes de ação aos antagonistas. As transfor­
Ch7:istian View (Londres, 1960), pags. 61-78. A minha crítica à ana­
logia do Prof. Butterfield não diminui a solidez de seus apelos cornjo­ mações na estrutura da sociedade ocidental, especialmente na
sos em favor de uma détente internacional' que dirigiu às audiências norte-americana, são deveras impressionantes. Mas quando
americanas na década de 1950. as examinamos de perto, o que vemos? O divórcio cada vez
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mais profundo entre a gerência e a propriedade, a importância a análise e prognóstico marxistas. Pouco depois, contudo, a
dos ele_mentos de administração empresarial, a concentração economia foi abalada por convulsões mais violentas do que
de capital, a cada vez mais •elaborada divisão do trabalho nunca e a humanidade foi arrastada para uma época de
den�r� de qualquer das gigantescas emprêsas e entre estas; o guerras mundiais e revoluções.
decli:110 do mercado e do laissez fa ire; o incremento do pêso
. Nada poderia ser melhor acolhido, especialmente pelos
economico
_ do. Estado; e a necessidade tecnológica e econô­
marxistas, do que o reconhecimento de que as relações ca­
mica do plane1amento - tudo isso é, de fato, uma manifesta­
pitalistas de propriedade tinham se tornado tão irrelevantes
ção múltipla daquela socialização dos processos produtivos
na sociedade ocidental que não mais impediam a organiza­
que, de acôrdo com o marxismo,· se desenvolve no capitalis­
ção racional de suas fôrças produtivas e podêres criadores.
mo. Com efeito, a socialização foi imensamente aceierada. Na
Contudo, o teste para isso é apurarmos se a nossa sociedade
�escriç�� do processo que Marx nos oferece em Q Capital, poderá controlar e dirigir os seus recursos e energias para
ele_ vaticinou claramente essa evolução e as tendências que
ho!e par_ecem uma novidade revolucionária para os analistas fins construtivos e para o seu próprio bem-estar geral; e se
_
ocidentais. Nao nos descreveu o Prof. Galbraith algo com poderá organizá-los e planejá-los tanto internacional como
que estamos, ou devíamos estar, familiarizados - isto é 0 nacionalmente. Até ao presente, a nossa sociedade fracassou
nesse teste. Nossos governos impediram as depressões eco­
/ ráp�do. cr·e��imento do_�·em.brião de socialismo no ventre 'do nômicas planejando para a destruição e a morte, não para a
capitalismo ? O embnao está ficando, evidentemente, cada
vez _ maior. Deveremos concluir, então, que já não existe ne­ vida e o bem-estar. Por alguma razão nossos economistas,
cessidade de parto? O marxista refletirá sôbre o paradoxo peritos financeiros e especuladores interrogam-se, sombria­
de que, enquanto na Rússia a parteira da Revolução interveio mente, sô.bre o que aconteceria à economia ocidental se, por
antes do embrião ter tido tempo de amadurecer, no Ocidente exemplo, o govêrno norte-americano não gastasse cêrca de
o •embrião poderá muito bem ter amadurecido demais; e as 80 bilhões de dólares por ano em armamento. Entre tôdas as
conseqü�ncias poderão tornar-se extremamente perigosas para imagens sombrias do capitalismo declinante, descritas pelos
o orgamsmo social.
_ marxistas, nenhuma é mais negra e apocalíptica do que a li
O. fato é que, independentemente de tôdas as ioavaçQ.es imagem apresentada pela realidade. Embora, há sessenta 11
key_ne�ianas, nosso processo produtivo, tão magnificam-ente anos, Rosa Luxemburgo vaticinasse gue, um dia, o militaris­
_
socializado em mmtos as ectos, ainda não está socialmente mo converter-se-ia na fôrça impulsora da economia capita­
controlado. A pr rie a e, por muito que esteja divorciada lista, até essa previsão empalidece diante dos fatos.
1i
da gerência ou aministração empresarial, ainda controla a É por isso que a mensagem de 1917 permanece válida
economia. O lucro do acionista ainda é seu motivo re ulador para o mundo em geral. O presente impasse ideológico e o
sujeito apenas às necessidades o mi itarismo e da uta mun� status quo social dificilmente podem servir de base para a
\ dia! contra o comunismo. Em todo o caso, nossa economia e solução dos problemas da nossa época ou para a sobrevivên•
existência social permanecem anárquicas e irracionais. A anar­ cia da própria humanidade. Evidentemente, seria o desastre
qu�a poder� 1;1ão se manifestar em depressões periódicas e final se as superpotências nucleares tratassem o estado de
�aixas :7er�ica�s, embora, numa visão mais ampla, nem mesmo coisas .como um brinquedo e tentassem alterá-lo pela fôrça
isso SeJa mteiramente certo. O capitalismo europeu, dentro das armas. Nesse sentido, a coexistência pacífica do Ocidente
de seu âmb_ito mais limitado, conhec•eu, depois da guerra e do Oriente é uma suprema necessidade histórica. Mas a
franco-prussiana de 1870, uma prosperidade semelhante e até situação social não pode ser perpetuada. Karl Marx, falan­
mais prolongada, sem ser afetada por depressões ou baixas do a respeito de indecisões no resultado de passadas lutas
v�olen�as; e isso le':ou Edward Bernst-ein e seus colegas re­
. de classes observa ue elas terminam, usualmente, "na ruína
visiomstas a conclmrem que os acontecimentos desmentiram comum das classes conten oras . m impasse in

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mente prolongado e garantido pelo equilíbrio perpétuo dos
dissuasores nucleares, certamente levará as classes e nações
contendoras à sua ruína comum e final. A humanidade ne�
cessita de unidade para a sua sobrevivência, pura e simples;
onde a poderá encontrar, senão no socialismo? E por muito
que as revoluções Russa e Chinesa avultem na perspectiva
do nosso século, a iniciativa do Ocidente ainda é um fator
essencial para o avanço do socialismo.
Hegel observou, certa vez, que "a História do mundo
desloca�se do Oriente para o Ocidente" e que a "Europa re�
presenta o final da História Universal", ao passo que a Ásia
foi apenas o início. Esta opinião arrogante foi inspirada pela
convicção de Hegel de que a Reforma e o Estado Prussiano
eram o apogeu do desenvolvimento espiritual da humanida�
de; contudo, muitas pessoas no Ocidente, que não prestam
culto ao Estado nem à Igreja, acreditavam até há bem pouco
tempo que a História do mundo tivera, de fato, sua morada ESTA OBRA FOI EXECUTADA NAS OFICINAS
final no Ocidente, e que o Oriente, nada tendo de significa� DA COMPANlflA GRÁFICA LUX, RUA FREI
tivo com que contribuir, só poderia ser o seu objeto. Mas nós CANECA, 224 - Rio DE JANEIRO, PARA A
EDITÔRA Civ:ILIZAÇÃO BRASILEIRA S.A.
estamos melhor informados. Vimos com que vigor a Histó�
1 ria retrocedeu para o Oriente. Contudo, não será preciso
supor que vai terminar aí e que o Ocidente continuará para
sempre falando com sua atual voz conservadora, contribuin�
do para os anais do socialismo com mais algumas páginas em
branco, apenas. Q socialismo tem ainda alguns atos revolu�
cionários decisivos a desem enhar tanto no Ocidente como
no riente; e em arte nen uma a História che ará a seu
têrmo. O Oriente oi o primeiro a ar efeito ao grande prin�
cípio de uma nova organização social, o princípio original�
mente concebido no Ocidente. Cinqüenta anos de história so�
viética dizem�nos que progresso estupendo uma nação atra�
sada realizou aplicando aquêle princípio, mesmo nas condições
mais adversas. Só por isso êsses anos apontam para os novos
horizontes ilimitados que a sociedade ocidental pode abrir
para si própria e para o mundo se se libertar de seus fetiches
conservadores. Neste sentido, a Revolução Russa ainda en�
frenta o Ocidente com um grave e desafiador tua res agitur.

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