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Edição promo-
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ÍOÍADO

Senhores:

ÃO quiz Deus que os meus cin-


coenta annos de consagração ao
direito viessem receber no templo
do seu ensino em S. Paulo o
sello de uma grande bençam,
associando-se hoje com a vossa
admissão ao nosso sacerdócio, na
solennidade imponente dos vo-
tos em que o ides esposar.
Em verdade vos digo, jovens
amigos meus, que o coincidir
desta existência declinante com
essas carreiras nascentes agora,
o seu coincidir num ponto de
intersecção tão magnificamente
celebrado, era mais do que èu
mereceria; e, negando-me a di-
vina bondade um momento de
tamanha ventura, não me negou senão o a que eu não devia
ter tido a inconsciencia de aspirar.
Mas, recusando-me o privilegio de um dia tão grande,
ainda me consentiu o encanto de vos falar, de conversar con-
osco, presente entre vós em espirito; o que é, também, estar
presente em verdade.
— 12 —

Assim que não me ides ouvir de longe, como a quem


se sente arredado por centenas de kilometros, mas de ao pé,
de em meio a vós, como a quem está debaixo do mesmo tecto,
e á beira do mesmo lar, em colloquio de irmãos, ou junto dos
mesmos altares, sob os mesmos campanários, elevando
ao Criador as mesmas orações, e professando o mesmo credo.
Direis que isto de me achar assistindo, assim, entre os
de quem me vejo separado por distancia tão vasta, seria
dar-se, ou suppôr que se está dando, no meio de nós, um
verdadeiro milagre?
r Será. Milagre do maior dos thaumaturgos. Milagre
de quem respira entre milagres. Milagre de um santo, que
cada qual tem no sacrario do seu peito. Milagre do coração,
que os sabe chover sobre a criatura humana, como o firma-
mento chove nos campos mais áridos e tristes a orvalhada
das noites, que se esvae, com os sonhos de antemanhan, ao
cair das primeiras frechas de oiro do disco solar.
Embora o realismo dos adagios teime no contrario, tole-
rem-me o arrojo de afrontar uma vez a sabedoria dos pro-
vérbios. Eu me abalanço a lhes dizer e redizer de não. Não
é certo, como corre mundo, ou, pelo menos, muitas e mui-
tíssimas vezes, não é verdade, como se espalha fama, que
"longe da vista, longe do coração".
O gênio dos annexins, ahi, vae longe de andar certo.
Esse proloquio tem mais malícia que sciencia, mais epigram-
ma que justiça, mais engenho que philosophla. Vezes sem
conto, quando se está mais fóra da vista dos olhos, então
(e por isso mesmo) é que mais á vista do coração estamos;
não só bem á sua vista, senão bem dentro nelle.
Não, filhos meus (deixae-me experimentar, uma ve;
que seja, convosco, este suavíssimo nome); não: o coração
não é tão frivolo, tão exterior, tão carnal, quanto se cuida.
Ha, nelle, mais que um assombro physiologico; um pro-
digio moral. E' o orgam da fé, o orgam da esperança, o
orgam do ideal. Vê, por isso, com os olhos d'alma, o que
não vêem os do corpo. Vê ao longe, vê em ausência, vê
no invisível, e até no infinito vê. Onde pára o cérebro de
vêr, outorgou-lhe o Senhor que ainda veja; e não se sabe
até onde. Até onde chegam as vibrações do sentimento,
até onde se perdem os surtos da poesia, até onde se somem
os vôos da crença: até Deus mesmo, inviso como os pano-
ramas íntimos do coração, mas presente ao céu e á terra, a
todos nós presente, enquanto nos palpite, incorrupto, no seio,
o musculo da vida e da nobreza e da bondade humana.

Quando elle já não estende o raio visual pelo hori-


zonte do invisível, quando sua visão tem por limite a do
nervo optico, é que o coração, já esclerotico, ou degeneres-
cente, e saturado nos resíduos de uma vida gasta no mal,
apenas oscilla mecanicamente no interior do arcaboiço,
como pêndula de relogio abandonado, que agita, com
as derradeiras pancadas, os vermes e a poeira da caixa.
Delle se retiiou a scentelha divina. Até hontem lhe ba-
nhava ella de luz todo esse espaço, que nos distanceia do
incommensuravel desconhecido, e lançava entre este e nós
uma ponte de astros. Agora, apagados esses luzeiros, que
o inundavam de radiosa claridade, lá se foram, com o
extincto scintillar das estrellas, as entreabertas do dia eterno,
deixando-nos, tão somente, entre o longínquo myslerio da-
quelle termo e o anniquilamento da nossa miséria desampa-
rada, as trevas de outro ether, como esse que se diz encher
de escuridão o vago mysterio do espaço.
— 14 —

Entre vós, porém, moços, que me estaes escutando, ainda


brilha em toda a sua rutilancia o clarão da lampada sagrada,
ainda arde em toda a sua energia o centro de calor, a que se
aquece a essencia d alma. Vosso coração, pois, ainda estará
incontaminado; e Deus assim o preserve.
Mettei a mão no seio, e ahi o sentireis com a sua se-
gunda vista. Desta, sobre tudo, é que elle nutre sua vida
agitada e criadora. Pois não sabemos que, com os antepas-
sados, vive elle da memória, do luto e da saudade? E
tudo é viver no pretérito. Não sentimos como, com os
nossos conviventes, se alimenta elle na communhão dos
sentimentos e Índoles, das idéas e aspirações? E tudo é
viver num mundo, em que estamos sempre fora deste, pelo
amor, pela abnegação, pelo sacrifício, pela caridade. Não
nos será claro que, com os nossos descendentes e sobrevi-
ventes, com os nossos successores e pósteros, vive elle de fé,
esperança e sonho? Ora, tudo é viver, previvendo, é existir,
preexistindo, é ver, prevendo. E, assim, está o coração,
cada anno, cada dia, cada hora, sempre alimentado em
contemplai o que não vê, por ter em dote dos céus a pre-
excellencia de vêr, ouvir e palpar o que os olhos não divi-
sam, os ouvidos não escutam, e o tacto não sente.
Para o coração, pois, não ha passado, nem futuro, nem
ausência. Ausência, pretérito e porvir, tudo lhe é actuali-
dade, tudo presença. Mas presença animada e vivente, pal-
pitante e criadora, neste regaço interior, onde os mortos
renascem, prenascem os vindoiros, e os distanciados se
ajuntam, ao influxo de um talisman, pelo qual, nesse má-
gico microcosmo de maravilhas, encerrado na breve arca
de um peito humano, cabe, em evocações de cada instante,
a humanidade toda e a mesma eternidade.
— 15 —

A maior de quantas distancias logre a imaginação


conceber, é a da morte; e nem esta separa entre si os que a
terrível afastadora de homens arrebatou aos braços uns dos
outros. Quantas vezes não entrevemos, nesse fundo obscuro e
remotissimo, uma imagem cara? quantas vezes não a vemos
assomar nos longes da saudade, sorridente, ou melancólica,
alvoroçada, ou inquieta, severa, ou carinhosa, trazendo-nos
o balsamo, ou o conselho, a promessa, ou o desengano, a
recompensa, ou o castigo, o aviso da fatalidade, ou os pre-
sagios de bom agoiro? Quantas nos não vem conversar,
affavel e tranquiila, ou pressurosa e sobresaltada, com o
affago nas mãos, a doçura na boca, a meiguice no sem-
blante. o pensamento na fronte, limpida, ou carregada, e
lhe saímos do contacto, ora seguros e robustecidos, ora
transidos de cuidado e pesadume, ora cheios de novas
inspirações, e scismando, para a vida, novos rumos?
Quantas outras, não somos nós os que vamos chamar
esses leaes companheiros de além-mundo, e com elles
renovar a pratica interrompida, ou instar com elles
por um alvitre, em vão buscado, uma palavra, um movi-
mento do rosto, um gesto, uma réstea de luz, um traço do
que por lá se sabe, e aqui se ignora?

Se não ha, pois, abysmo entre duas épocas, nem mesmo


a voragem final desta á outra vida, que não transponha a
mútua attracção de duas almas, não pode haver, na mes-
quinha superfície do globo terrestre, espaços, que não vença,
com os instantâneos de presteza das vibrações luminosas,
esse flmdo incomparavel, por onde se realiza, na esphera
das communicações moraes, a maravilha da photographia
á distancia no mundo positivo da industria moderna.
— 16 —

Tão pouco medeia do Rio a S. Paulo! Por que não


conseguiremos enxergar de um a outro cabo, em linha tão
curta? Tentemos. Vejamos. Estendamos as mãos, entre
os dois pontos que a limitam. Deste áquelle já se estabeleceu
a corrente. Rapida como o pensamento, corre a emanação
magnética desta extremidade á opposta. As mãos já se
encontraram. Já num aperto se confundiram as mãos, que
se procuravam. Já, num amplexo de todos, nos abraçamos
uns aos outros. Em S. Paulo estamos. Conversemos, amigos,
de presença a presença.
Entrelaçando a collação do vosso grau com a com-
memoração jubilar da minha, e dando-me a honra de vos
ser eu paranympho, urdis, desta maneira, no ingresso á
carreira que adoptastes, um como vinculo sagrado entre a
vossa existência intellectual, que se enceta, e a do vosso pa-
drinho em letras, que se acerca do seu termo. Do occaso
de uma surde o arrebol da outra.
Mercê, porém, de circunstancias inopinadas, com o
encerro do meu meio século de trabalho na jurisprudência
se ajusta o remate dos meus cincoenta annos de serviços á
nação. Já o jurista começava a olhar com os primeiros to-
ques de saudade para o instrumento, que, ha dez lustros,
lhe vibra entre os dedos, lidando pelo direito, quando a
consciência lhe mandou que despisse as modestas armas da
sua luta, provadamente inútil, pela grandeza da patria e
suas liberdades, no parlamento.
Essa remoção da metade total de um século de vida
laboriosa para o desentulho do tempo não se podia coi|-
summar sem abalo sensível numa existência repentinamente
decepada. Mas a commoção foi salutar; porque o espirito
encontrou logo seu equilíbrio na convicção de que, afinal.
— 17 —

me chegava eu a conhecer a mim mesmo, reconhecendo a


escassez de minhas reservas de energia, para accommodar o
ambiente da época ás minhas idéas de reconciliação da po-
lítica nacional com o regimen republicano.
Era presumpção, era temeridade, era inconsciencía
insistir na insana pretensão da minha fraqueza. Só um
predestinado poderia arrostar empresa tamanha. Desde
1892 me empenhava eu em lutar com esses mares e ventos.
Não os venci. Venceram-me elles a mim. Era natural.
Deus nos dá sempre mais do que merecemos. Já me não
era pouco a graça (pela qual erguia as mãos ao céu) de
abrir os olhos á realidade evidente da minha impotência,
e poder recolher as velas, navegante desenganado, antes
que o naufrágio me arrancasse das mãos a bandeira sagrada.
Tenho o consolo de haver dado a meu paiz tudo o que
me estava ao alcance: a desambição, a pureza, a sinceri-
dade, os excessos de actividade incansável, com que, desde
os bancos acadêmicos, o servi, e o tenho servido até hoje.
Por isso me sahi da longa odysséa sem créditos de
Ulysses. Mas, se o não soube imitar nas artes medrançosas
de político fértil em meios e manhas, em compensação tudo
envidei por inculcar ao povo os costumes da liberdade e á
republica as leis do bom governo, que prosperam os Estados,
moralizam as sociedades, e honram as nações.
Preguei, demonstrei, honrei a verdade eleitoral, a ver-
dade constitucional, a verdade republicana. Pobres clientes
estas, entre nós, sem armas, nem oiro, nem consideração,
mi. achavam, em uma nacionalidade esmorecida e indiffe-
rmte, nos títulos rotos do seu direito, com que habilitar o
misero advogado a sustentar-lhes com alma, com dignidade,
com sobrançaria, as desprezadas reivindicações. As tres ver-
— 18 —

dades não podiam alcançar melhor sentença no tribunal da


corrupção politica do que o Deus vivo no de Pilatos.
Quem por uma causa destas combateu, abraçado com
ella, em vinte e oito annos da sua Via Dolorosa, não se
pode ter habituado a maldizer, senão a perdoar, nem a des-
crer, senão a esperar. Descrer da cegueira humana, sim;
mas da Providencia, fatal nas suas soluções, bem que (ao
parecer) tarda nos seus passos, isso nunca.
Assim que a bençam do paranympho não traz fel.
Não lhe encontrareis no fundo nem rancor, nem azedume,
nem despeito. "Os máus" só lhe inspiram tristeza e piedade.
Só "o mal" é o que o inflamma em odio. Porque o odio ao
mal é amor do bem, e a ira contra o mal, enthusiasmo divino.
Vede Jesus despejando os vendilhões do templo, ou Jesus
provando a esponja amarga no Gólgotha. Não são o mesmo
Christo, esse ensangüentado Jesus do Calvario e aquell'-
outro. o Jesus iroso, o Jesus armado, o Jesus do látego
inexorável? Não serão um só Jesus, o que morre pelos
bons, e o que açoita os máus?
O padre Manuel Bernardes pregava, numa das suas
"Silvas":
"Bem pode haver ira, sem haver peccado. "Irascimini,
et nolite peccare." E ás vezes poderá haver peccado, se
não houver ira; porquanto a paciência e silencio fo-
menta a negligencia dos maus, e tenta a perseverança :
dos bons. "Qui cum causa non irascitur, peccat" (diz
um padre); "patientia enim irrationabilis vitia seminal,
negligentiam nutrit, et non solum maios, sed etiam
bonos invitat ad malum." Nem o irar-se nestes termos
é contra a mansidão; porque esta virtude compreende dois
actos: um é reprimir a ira, quando é desordenada; outro,
— 19 —

excital-a, quando convém. A ira se compara ao cão, que ao


ladrão ladra, ao senhor festeja, ao hospede não festeja,
nem ladra: e sempre faz o seu officio. E assim quem se
agasta nas occasiões, e contra as pessoas, que convém
agastar-se, bem pode, com tudo isso, ser verdadeiramente
manso. "Qui igitur" (disse o Philosopho) " ad quae opor-
tet, et quibus oportet irascitur, laudatur, esseque is man-
suetus potest." (')
Nem toda ira, pois, é maldade; porque a ira, se, as mais
das vezes, rebenta aggressiva e damninha, muitas outras,
opportuna e necessária, constitue o especifico da cura. Ora
deriva da tentação infernal, ora de inspiração religiosa.
Commummente se accende em sentimentos deshumanos e
paixões cruéis; mas não raro flammeja do amor santo e da
verdadeira caridade. Quando um braveja contra o bem,
que não entende, ou que o contraria, é odio iroso, ou ira
odienta. Quando verbera o escândalo, a brutalidade, ou o
orgulho, não é agrestia rude, mas exaltação virtuosa; não é
soberba, que explode, mas indignação que illumina; não é
raiva desaçaimada, mas correcção fraterna. Então, não
somente não pecca o que se irar, mas peccará, não se irando.
Cólera será; mas cólera da mansuetude, cólera da justiça,
cólera que reflecte a de Deus, face também celeste do amor,
da misericórdia e da santidade.
Delia esfuzilam scentellhas, em que se abraza, por
vezes, o apostolo, o sacerdote, o pae, o amigo, o orador, o
magistrado. Essas faúlhas da substancia divina atravessam
o púlpito, a cáthedra, a tribuna, o róstro, a imprensa, quando

(1) "Luz e Calor", 1.» ed., 1696. Pag. 271-272


§ XVIII.
— 20 —

se debatem, ante o paiz, ou o mundo, as grandes causas


humanas, as grandes causas nacionaes, as grandes causas
populares, as grandes causas sociaes, as grandes causas da
consciência religiosa. Então a palavra se electriza, brame,
lampeja, atroa., fulmina. Descargas sobre descargas rasgam
o ar, incendeiam o horizonte, cruzam em raios o espaço.
E* a hora das responsabilidades, a hora da conta e do
castigo, a hora das apóstrophes, imprecações e anáthemas,
quando a voz do homem rebôa como o canhão, a arena
dos combates da eloqüência estremece como campo de ba-
talha, e as siderações da verdade, que estala sobre as
cabeças dos culpados, revolvem o chão, coberto de victimas
e destroços incruentos, com abalos de terremoto. Eil-a ahi a
cólera santa! Eis a ira divina!
Quem, senão ella, ha-de expulsar do templo o rene-
gado, o blasphemo, o profanador, o simoniaco? quem, senão
ella, exterminar da sciencia o apedeuta, o plagiario, o charla-
tão? quem, senão ella, banir da sociedade o immoral, o cor-
ruptor, o libertino? quem, senão ella, varrer dos serviços do
Estado o prevaricador, o concussionario e o ladrão público?
quem, senão ella, precipitar do governo o negocismo, a prosti-
tuição política, ou a tyrannia? quem, senão ella, arrancar a de-
fesa da patria á cobardia, á inconfidência, ou á traição ? Quem,
senão ella, ella a cólera do celeste inimigo dos vendilhões c
dos hypocritas? a cólera do justo, crucifixo entre ladrões? a
cólera do Verbo da verdade, negado pelo poder da
mentira? a cólera da santidade suprema, justiçada pela mais
sacrilega das oppressões?
Todos os que nos dessedentamos nessa fonte, os que
nos saciamos desse pão, os que adoramos esse ideal, nella
vamos buscar a chamma incorruptível, E' delia que, ao
— 21 —

espectaculo ímpio do mal tripudiante sobre os reveses do


bem, rebenta em labaredas a indignação, golfa a cólera em
borbotões das fraguas da consciência, £ a palavra sáe, rechi-
nando, esbrazeando, chispando como o metal candente dos
seios da fornalha.
Esse metal nobre, porém, na incandescencia da sua
ebulição, não deixa escória. Pode crestar os lábios, que
atravessa. Poderá inflammar por momentos o irritado co-
ração, de onde jorra. Mas não o degenera, não o macula,
não o reseca, não o caleja, não o endurece; e, no fundo são
da urna onde tumultuavam essas procellas, e donde bor-
botam essas erupções, não assenta um rancor, uma inimizade,
uma vingança. As reacções da luta cessam, e fica, de en-
volta com o aborrecimento ao mal, o relevamento dos males
padecidos.
Nest'alma, tantas vezes ferida e traspassada tantas
vezes, nem de aggressões, nem de infamações, nem de pre-
terições. nem de ingratidões, nem de perseguições, nem de
traições, nem de expatriações perdura o menor rasto, a
menor idéa de revindicta. Deus me é testemunha de que
tudo tenho perdoado. E, quando lhe digo, na oração do-
minical: "Perdoae-nos, Senhor, as nossas dividas, assim
como nós perdoamos aos nossos devedores", julgo não lhe
estar mentindo; e a consciência me attesta que, até onde al-
cance a imperfeição humana, tenho conseguido, e consigo
todos os dias obedecer ao sublime mandamento. Assim me
perdoem, também, os a quem tenho aggravado, os com quem
houver sido injusto, violento, intolerante, maligno, ou des-
caridoso.
Estou-vos abrindo o livro da minha vida. Se me não
quizerdes acceitar como expressão fiel da realidade esta
\

— 22 —

versão rigorosa de uma das suas paginas, com que mais me


consolo, recebei-a, ao menos, como acto de fé, ou como con-
selho de pae a filhos, quando não como o testamento de uma
carreira, que poderá ter discrepado, muitas vezes, do bem,
mas sempre o evangelizou com enthusiasmo, o procurou
com fervor, e o adorou com sinceridade.
Desde que o tempo começou, lento lento, a me decantar
o espirito do sedimento das paixões, com que o verdor dos
annos e o amargor das lulas o enturbavam,. entrando eu a
considerar com philosophia nas leis da natureza humana, fui
sentindo quanto esta necessita da contradicção, como a lima
dos soffrimentos a melhora, a que ponto o acerbo das pro-
vações a expurga, a tempera, a nobilita, a regenera. Então
vim a perceber vivamente que immensa divida cada criatura
da nossa especie deve aos seus inimigos e desfortunas. Por
mais desagrestes que sejam os contratempos da sorte e as
maldades dos homens, raro nos causam mal tamanho, que
nos não façam ainda maior bem. Ai de nós, se esta purifi-
cação gradual, que nos deparam as vicissitudes cruéis da
existência, não encontrasse a collaboração providencial da
fortuna adversa e dos nossos desaffectos. Ninguém mette
em conta o serviço contínuo, de que lhes está em obrigação.
Dirieis, até, que, mandando-nos amar aos nossos ini-
migos, em boa parte nos quiz o divino legislador entre-
mostrar o muito, de que elles nos são credores. A caridade
com os que nos malquerem, e os que nos malfazem, não é,
em bem larga escala, senão pago dos benefícios, que, mal a
seu grado, mas multo de veras, elles nos grangeiam.
Dest'arte, não equivocaremos a apparencia com a rea-
lidade, se, nos dissabores que malquerentes e malfazentes nos
propinam, discernirmos a quota de lucro, com que elles, não
— 23 —

levando em ta! o sentido, quasi sempre nos favorecem. Quanto


é pela minha parte, o melhor do que sou, bem assim o melhor
do que me acontece, freqüentemente acaba o tempo con-
vencendo-me de que não me vem das doçuras da fortuna
propicia, ou da verdadeira amizade, senão sim que o devo,
principalmente, ás machinações dos malévolos e ás contra-
dicções da sorte madrasta. Que seria, hoje, de mim, se o veto
dos meus adversários, systematico e pertinaz, me não houvesse
poupado aos tremendos riscos dessas alturas, "alturas de
Satanás", como as*de que fala o Apocalypse, em que tantos
se têm perdido, mas a que tantas vezes me tem tentado ex-
alçar o voto dos meus amigos? Amigos e inimigos estão, a
miude, em posições trocadas. Uns nos querem mal, e fazem-
nos bem. Outros nos almejam o bem, e nos trazem o mal.
Não poucas vezes, pois, razão é lastimar o zelo dos
amigos,.e agradecer a malevolencia dos oppositores. Estes
nos salvam, quando aquelles nos extraviam. De sorte que,
no perdoar aos inimigos, muita vez não vae somente caridade
christan, senão também justiça ordinária e reconhecimento
humano. E, ainda quando, aos olhos do mundo, como aos
do nosso juizo descaminhado, tenham logrado a nossa des-
graça, bem pôde ser que, aos olhos da philosophia, aos da
crença e aos da verdade suprema, não nos hajam contribuído
senão para a felicidade.
Este, senhores, será um saber vulgar, um saber rasteiro,
"ura saber só de experiência feito".
Não é o saber da sciencia, que se libra acima das nuvens,
e alteia o vôo soberbo, além das regiões sideraes, até aos
páramos indevassaveis do infinito. Mas, ainda assim, este
saber fácil mereceu a Camões o ter a sua legenda insculpida
em versos immortaes; quanto mais a nós outros, bichos da
— 24 —

terra tão pequenos", a ninharia de occupar divagações, como


estas, de um dia, folhas de arvore morta, que, talvez, não
vinguem ao de amanhan.
Da sciencia estamos aqui numa cathedral. Não cabia
em um velho cathecumeno vir ensinar a religião aos seus
bispos e pontifices, nem aos que agora nella recebem as or-
dens do seu sacerdócio. E hoje é féria, ensejo para tréguas
ao trabalho ordinário, quasi dia santo. Labutastes a semana
toda, o vosso curso de cinco annos, com theorias, hypotheses
e systemas, com princípios, theses e demonstrações, com leis,
codigos e jurisprudências, com expositores, interpretes e
escolas. Chegou o momento de vos assentardes, mão por
mão, com os vossos sentimentos, de vos pordes á fala com a
vossa consciência, de praticardes familiarmente com os vossos
affectos, esperanças e propositos.
Eis ao que vem o padrinho, o velho, o abendiçoador,
carregado de annos e tradições, versado nas longas lições do
tempo, mestre de humildade, arrependimento e desconfiança,
nullo entre os grandes da intelligencia, grande entre os
experimentados na fraqueza humana. Que se feche, pois,
alguns momentos o livro da sciencia; e folheemos juntos o da
experiência. Desalliviemo-nos do saber humano, carga
formidável, e voltemo-nos uma hora para este outro, leve,
comesinho, desalinhado, conversavel, seguro, sem altitudes,
nem despenhadeiros.
Ninguém, senhores meus, que empreenda uma jor-
nada extraordinária, primeiro que metta o pé na estrada, «e
esquecerá de entrar em conta com as suas forças, por saber
se a levarão ao cabo. Mas, na grande viagem, na viagem de
transito deste a outro mundo, não ha "possa, ou não possa",
não ha querer, ou não querer. A vida não tem mais que duas
portas: uma de entrar, pelo nascimento; outra de sair, pela
morte. Ninguém, cabendo-lhe a vez, se poderá f urtar á
entrada. Ninguém, desde que entrou, em lhe cheg ando o
turno, se conseguirá evadir á sahida. E, de um ao outro
extremo, vae o caminho, longo, ou breve, ningupm o sabe,
entre cujos termos fataes se debate o homem, pesaroso de
que entrasse, receioso da hora em que saia, cativo de um
e outro mysterio, que lhe confinam a passagem terrestre.
Não ha nada mais trágico do que a fatalidade, inexorável
deste destino, cuja rapidez ainda lhe aggrava a severidade.
Em tão breve trajecto cada um ha de acabar a sua
tarefa. Com que elementos? Com os que herdou, e os que
cria. Aquelles são a parte da natureza. Estes, a do trabalho.
A parte da natureza varia ao infinito. Não há, no
universo, duas coisas iguaes. Muitas se parecem umas ás
outras Mas todas entre si diversificam. Os ramos de uma
só arvore, as folhas da mesma planta, os traços da polpa de
um dedo humano, as gotas do mesmo fluido, os argueiros
do mesmo pó. as raias do espectro ele um só raio solar ou
estellar. Tudo assim, desde os astros, no céu, até os micró-
bios no sangue, desde as nebulosas no espaço, até aos aljo-
fares do rocio na relva dos prados.
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar
desigualmente aos desiguaes, na medida em que se desigua-
lam. Nesta desigualdade social, proporcionada á desigual-
dade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.
O mais são desvarios da inveja, do orgulho, ou da loucura.
Tratar com desigualdade a iguaes, ou a desiguaes com igual-
dade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real.
Os appetites humanos conceberam inverter a norma universal
da criação, pretendendo, não dar a cada um, na razão do que
— 26 —

vale, m as attnbuir o mesmo a todos, como se todos se ec|ui-


valessem.
Es ta blasphemia contra a razao e a fe, contra a civili-
zação e ta humanidade, é a philosophia da miséria, procla-
mada em Àome dos direitos do trabalho; e, executada, não
faria, senão inaugurar, em vez da supremacia do trabalho, a
organização- da miséria.
Mas,/se a sociedade não pôde igualar os que a natureza
criou desiguaes, cada um, nos limites da sua energia moral,
pode reagir sobre as desigualdades nativas, pela educação,
actividade e perseverança. Tal a missão do trabalho.
Os portentos, de que esta força é capaz, ninguém os
calcul/a. Suas victorias na reconstituição da criatura mal
dota aa só se comparam ás da oração.
Oração e trabalho são os recursos mais poderosos na
criação moral do homem. A oração é o intimo sublimar-se
d^Ima pelo contacto com Deus. O trabalho é o inteirar, o
desenvolver, ■ o apurar das energias do corpo e do espirito,
mediante a acção continua de cada um sobre si mesmo e sobre
o mundo onde labutamos.
O indivíduo que trabalha, acerca-se continuamente do
autor de todas as coisas, tomando na sua obra uma parte,
de que depende também a delle. O Criador começa, e a
criatura acaba a criação de si própria.
Quem quer, pois, que trabalhe, está em oração ao
Senhor. Oração pelos actos, ella emparelha com a oração
pelo culto. Nem pode ser que uma ande verdadeiramente
sem a outra. Não é trabalho digno de tal nome o do máu;
porque a malícia do trabalhador o contamina. Não é oração
acceitavel a do ocioso; porque a ociosidade a dessagra.
Mas, quando o trabalho se junta á oração, e a oração com
— 21 —

o trabalho, a segunda criação do homem, a criação do homem


pelo homem, semelha ás vezes, em maravilhas, á criação do
homem pelo divino Criador.
Ninguém desanime, pois, de que o berço lhe não fosse
generoso, ninguém se creia malfadado, por lhe minguarem
de nascença haveres e qualidades. Em tudo isso não ha
surpresas, que se não possam esperar da tenacidade e san-
tidade no trabalho. Quem não conhece a historia do padre
Suarez, o autor do tratado "Das Leis e de Deus Legislador",
"De Legibus ac Deo Legislatore", monumento juridico, a
que os trezentos annos de sua edade ainda não gastaram o
conceito de honra das letras castelhanas? De cincoenta
aspirantes, que, em 1564, solicitavam, em Salamanca, ingresso
á Companhia de Jesus, esse foi o único rejeitado, por curto
de entendimento e revêsso ao ensino. Admitlido, todavia, a
insistências suas, com a nota de "indifferente", embora pri-
masse entre os mais applicados, tudo lhe eram, no estudo,
espessas trevas. Não avançava um passo. Afinal, por con-
senso de todos, passava por invencível a sua incapacidade.
Confessou-a, por fim, elle mesmo, requerendo ao reitor, o
celebre padre Martin Gutierrez, que o escusasse da vida
escolar, e o entregasse aos misteres corporaes de irmão
coadjutor. Gutierrez animou-o a orar, persistir, e esperar.
De repente se lhe alagou de claridade a intelligencia. Mer-
gulhou-se, então, cada vez mais no estudo; e dahi, com estu-
penda mudança, começa a deixar ver o a que era destinada
aquella extraordinária cabeça, até esse tempo submersa em
densa escuridade.
Já é mestre insigne, já encarna todo o saber da renas-
cença theologica, em que brilham as letras de Espanha.
Successivamente illustra as cadeiras de philosophia, theo-
— 28 —

logia e cânones nas mais famosas universidades européas:


em Segovia, em Valhadolid, em Roma, em Alcalá, em Sala-
manca, em Ávila, em Coimbra. Nos seus setenta annos de
vida, professa as sciencias theologicas durante quarenta e
sete, escreve cerca de duzentos volumes, e morre compa-
rado com Santo Agostinho e S. Thomaz, abaixo de quem
houve quem o considerasse "o maior engenho, que tem tido
a igreja" ('); sendo tal a sua nomeada, ainda entre os
protestantes, oue deste jesuíta, como theologo e philosopho,
chegou a dizer Grocio que "apenas havia quem o igualasse".
Já vedes que ao trabalho nada é impossível. Delle
não ha extremos, que não sejam de esperar. Com elle nada
pode haver, de que desesperar.
Mas, do século XVI ao século XX, o que as sciencias
cresceram, é incommensuravel. Entre o currículo da theo-
logia e philosophia no primeiro, e o programma de um curso
jurídico, no segundo, a distancia é infinita. Sobre os mestres,
os sábios e os estudantes de agora pesam montanhas e mon-
tanhas mais de questões, problemas e estudos que quantos,
ha tres ou quatro séculos, se abrangiam no saber humano.
O trabalho, pois, vos ha de bater á porta dia e noite;
e nunca vos negueis ás suas visitas, se quereis honrar vossa
vocação, e estaes dispostos a cavar nos veios de vossa natu-
reza, até dardes com os thesoiros, que ahi vos haja reser-
vado, com animo benigno, a dadivosa Providencia. Ouvistes
o aldrabar da mão occulta, que vos chama ao estudo? Abri,
abri, sem detença. Nem, por vir muito cedo, lh'o leveis a

(I) P- FRANCISCO SUAREZ: "Tratado de Ias Leyes


y de Dios Legislador". Ed. de Madrid, 1918. Tomo I,
pg. XXXVII.
— 29 —

mal, lh'o tenhaes á conta de importuna. Quanto mais ma-


tutinas essas interrupções do vosso dormir, mais lh'as deveis
agradecer.
O amanhecer do trabalho ha de antecipar-se ao ama-
nhecer do dia. Não vos fieis muito de quem esperta já
sol nascente, ou sol nado. Curtos se fizeram os dias,
para que nós os dobrássemos, madrugando. Experi-
mentae, e vereis quanto vae do deitar tarde ao acordar
cedo. Sobre a noite o cerebro pende ao somno. Antemanhan,
tende a despertar.
Não invertaes a economia do nosso organismo: não
troqueis a noite pelo dia, dedicando este á cama, e aquella
ás distrações. O que se esperdiça para o trabalho com as
noitadas inúteis, não se lhe recobra com as manhans de
extemporâneo dormir, ou as tardes de cansado labutar.
A sciencia, zelosa do escasso tempo que nos deixa a vida,
não dá logar aos tresnoites libertinos. Nem a cabeça já ex-
hausta, ou estafada nos prazeres, tem onde caiba o inquirir,
o revolver, o meditar do estudo.
Os proprios estudiosos desacertam, quando, illu-
didos por um habito de inversão, antepõem o trabalho,
que entra pela noite, ao que precede o dia. A natureza
nos está mostrando com exemplos a verdade. Toda ella,
nos viventes. ao anoitecer, inclina para o somno. A esta
lição geral só abrem triste excepção os animaes sinistros e
os carniceiros. Mas, quando se avizinha o volver da luz,
muito antes que ella arraie a natureza, e ainda primeiro que
alvoreça no firmamento, já rompeu na terra em cânticos a
alvorada, já se orchestram de harmonias e melodias campos
e selvas, já o gallo, não o gallo triste do luar dos sertões
do nosso Catullo, mas o gallo festivo das madrugadas, retine
— 30 —

ao longe a estridencia dos seus clarins, vibrantes de jubilosa


alegria.
Ouvi, no poema de Job, a voz do Senhor, pergun-
tando a seu servo, onde estava, quando o louvavam as
estrellas da manhan: "Ubi eras. . . cum me laudarent simul
astra matutina?" E que têm mais as estrellas da manhan,
dizia um grande escriptor nosso, "que têm mais as estrellas
da manhan que as da tarde, ou as da noite, para fazer Deus
mais caso do louvor de umas que das outras? não é elle o
Senhor do tempo, que deve ser louvado a todo o tempo, não
só da luz, mas também das trevas? Assim é; porém as
estrellas da manhan têm esta vantagem que madrugam, ante-
cipam-se, e despertam aos outros, que se levantem a servir a
Deus. Pois disto é que Deus se honra, e agrada em presença
de Job". (')
Tomae exemplo, estudantes e doutores, tomae exemplo
das estrellas da manhan, e gosareis das mesmas vantagens:
não só a de levantardes mais cedo a Deus a oração do tra-
balho, mas a de antecederdes aos demais, logrando mais
para vós mesmos, e estimulando os outros a que vos rivalizem
no ganho bendito.
Ha estudar, e estudar. Ha trabalhar, e trabalhar.
Desde que o mundo é mundo, se vem dizendo que o homem
nasce para o trabalho: "Homo nascitur ad laborem." (2)
Mas o trabalhar é como o semear, onde tudo vae muito das
sazões, dos dias e das horas. O cerebro, cansado e secco do
laborar diurno, não acolhe bem a semente: não a recebe

(1) P.e M. BERNARDES: "Sermões e Praticas", l.a


ed.. de 1 762. Parte I. Pg. 297.
(2) JOB. V. 7.
— 31 —
i
fresco e de bom grado, como a terra orvalhada. Nem a
colheita açode tão suave ás mãos do lavrador, quando o
torrão iá lhe não está sorrindo entre o sereno da noite e os
alvores do dia.
Assim, todos sabem que para trabalhar nascemos. Mas
muitos somos os que ignoramos certas condições, talvez as
mais elementares, do trabalho, ou, pelo menos, mui poucos os
que as praticamos. Quantos serão os que acreditem que os
melhores trabalhadores sejam os melhores madrugadores? que
os mais estudiosos não sejam os que offerecem ao estudo os
sobejos do dia, mas os que o honram com as primicias da
manhan ?
Dirão que taes trivialidades, sediças e corriqueiras, não
são para contempladas num discurso acadêmico, nem para
escutadas entre doutores, lentes e sábios. Cada um se avem
como entende, e faz o que pode. Mas eu, nisto aqui, faço
ainda o que devo. Porque, vindo prégar-vos experiência,
cumpria que relevasse mais a que mais sobresáe na minha
estirada carreira de estudante.
Estudante sou. Nada mais. Máu sabedor, fraco ju-
rista, mesquinho advogado, pouco mais sei do que saber
estudar, saber como se estuda, e saber que tenho estudado.
Nem isso mesmo sei se saberei bem. Mas, do que lenho lo-
grado saber, o melhor devo ás manhans ejnadrugadas. Muitas
lendas se têm inventado, por ahi, sobre excessos da minha
vida laboriosa. Deram, nos meus progressos intellectuaes,
larga parte ao uso em abuso do café e ao estimulo habitual
dos pés mergulhados nagua fria. Contos de imaginadores.
Refractario sou ao café. Nunca recorri a elle como a esti-
mulante cerebral. Nem uma só vez na minha vida busquei
num pediluvio o espantalho do somno.
— 32 —

Ao que devo, sim, o mais dos frutos do meu trabalho,


a relativa exabundancia de sua fertilidade, a parte
productiva e durável da sua safra, é ás minhas madrugadas.
Menino ainda, assim que entrei ao collegio, alvidrei eu
mesmo a conveniência desse costume, e dahi avante o observei,
sem cessar, toda a vida. Eduquei nelle o meu cerebro,
a ponto de espertar exactamenle á hora, que cpmmigo mesmo
assentava, ao dormir. Succedia, muito a miude, encetar eu a
minha solitária banca de estudo a uma ou ás duas da ante-
manhan. Muitas vezes me mandava meu pae volver ao
leito; e eu fazia apenas que lhe obedecia, tornando, logo
após, áquellas amadas lucubrações, as de que me lembro
com saudade mais deleitosa e entranhavel.

Tenho, ainda hoje, convicção de que nessa obser-


vância persistente está o segredo feliz, não só das minhas
primeiras victorias no trabalho, mas de quantas vantagens
alcancei jamais levar aos meus concorrentes, em todo o andar
dos annos, até á velhice. Muito ha que já não subtraio tanto
ás horas da cama, para accrescentar ás do estudo. Mas o
systema ainda perdura, bem que largamente cerceado nas
antigas immoderações. Até agora, nunca o sol deu commigo
deitado e, ainda hoje, um dos meus raros e modestos desva-
necimentos é o de ser grande madrugador, madrugador
impenilente. ,

Mas, senhores, os que madrugam no lêr, convém ma-


drugarem também no pensar. Vulgar é o lêr, raro o reflectir.
O saber não está na sciencia alheia, que se absorve, mas,
principalmente, nas idéas próprias, que se geram dos conhe-
cimentos absorvidos, mediante a transmutação, por que
passam, no espirito que os assimila. Um sabedor não é ar-
— 33 —

mario de sabedoria armazenada, mas transformador reflexivo


de acquisições digeridas.
Já se vê quanto vae do saber apparente ao saber real.
O saber de apparencia crê e ostenta saber tudo. O saber de
realidade, quanto mais real, mais desconfia, assim do que vae
appreendendo, como do que elabora.
Haveis de conhecer, como eu conheço, paizes, onde
quanto menos sciencia se apurar, mais sábios florescem. Ha,
sim, dessas regiões, por este mundo além. Um homem (nessas
terras de promissão) que nunca se mostrou lido ou sabido
em coisa nenhuma, tido e havido é por corrente e moente no
que quer que seja; porque assim o acclamam as trombetas
da política, do elogio mútuo, ou dos corrilhos pessoaes, e o
povo subscreve a néscia atoarda. Financeiro, administrador,
estadista, chefe de Estado, ou qualquer outro logar de in-
gente situação e assustadoras responsabilidades, é, a pedir
de bocca, o que se diz mão de prompto desempenho, for-
mula viva a quaesquer difficuldades, chave de todos os
enigmas.
Tenham por averiguado que, onde quer que o collo-
carem, dará conta o sujeito das mais arduas empresas e so-
lução aos mais emmaranhados problemas. Se em nada se
apparelhou, está em tudo e para tudo apparelhado. Ninguém
vos saberá informar por que. Mas todo o mundo vol-o dará
por liquido e certo. Não aprendeu nada, e sabe tudo. Lêr,
não leu. Escrever, não escreveu. Ruminar, não ruminou.
Produzir, não produziu. E' um improviso omnisciente, o
phenomeno de que poetava Dante:
In picciol tempo gran dottor si feo." (')

(I) "Paradiso", XII, 85.


/ — 34 —

A esses homens-panaceas, a esses empreiteiros de todas


as empreitadas, a esses aviadores de todas as encommendas,
se escancellam os portões da fama, do poderio, da grandeza,
e, não contentes de lhes applaudir entre os da terra a nulli-
dade, ainda, quando Deus quer, a mandam expor á admi-
ração do estrangeiro.
Pelo contrario, os que se tem por notorio e incontestável
excederem o nivel da instrucção ordinária, esses para nada
servem. Por que? Porque "sabem demais". Sustenta-se
ahi que a competência reside, justamente, na incompetência.
Vae-se, até, ao incrível de se inculcar "o medo aos prepa-
rados", de havel-os como cidadãos perigosos, e ter-se por dog-
ma que um homem, cujos estudos passarem da craveira vulgar,
não poderia occupar qualquer posto mais grado no governo,
em paiz de analphabetos. Se o povo é analphabeto, só igno-
rantes estarão em termos de o governar. Nação de analpha-
betos, governo de analphabetos. E' 7 que elles, muita vez ás
escancaras, e em letra redonda, por ahi dizem.
Sócrates, certo dia, numa das suas conversações, que
"O Primeiro Alcibiades" nos deixa escutar ainda hoje. dava
grande lição de modéstia ao interlocutor, dizendo-lhe, com
a costumada lhaneza: "A peor especie de ignorância é
cuidar uma pessoa saber o que não sabe. . . Tal, meu caro
Alcibiades, o teu caso. Entraste pela política, antes de a
teres estudado. E não és tu só o que te vejas nessa condição:
é esta mesma a da mór parte dos que se mettem nos negocios
da republica. Apenas exceptuo exiguo numero, e pode
ser que, unicamente, a Péncles, teu tutor; porque tem cur-
sado os philosophos."
Vede agora os que intentaes exercitar-vos na sciencia
das leis, e vir a ser seus interpretes, se de tal geito é que
— 35 —

conceberieis sabel-as, e executal-as. Desse geito; isto é: como


as entendiam os políticos da Grécia, pintada pelo mestre de
Platão.
Uma vez, que Alcibiades discutia com Péricles, em
palestra registada por Xenophonte, acertou de se debater o
que seja "lei", e quando exista, ou não exista.
"— Que vem a ser lei ? indaga Alcibiades.
"— A expressão da vontade do povo", responde
Péricles.
"— Mas que é o que determina esse povo? O bem,
ou o mal?" replica-lhe o sobrinho.
"— Certo que o bem, mancebo.
"— Mas, sendo uma oligarchia quem mande, isto é,
um diminuto numero de homens, serão, ainda assim, respei-
táveis "as leis"?
"— Sem duvida.
"— Mas, se a disposição vier de um tyranno? Se oc-
correr violência, ou illegalidade? Se o poderoso coagir o
fraco? Cumprirá, todavia, obedecer?"
Péricles hesita; mas acaba admiltindo:
— "Creio que sim.
— Mas então", insiste Alcibiades, "o tyranno, que
constrange os cidadãos a lhe acatarem os caprichos, não será,
esse sim, o inimigo "das leis"?
Sim; vejo agora que errei em chamar "leis" ás
ordens de um tyranno, costumado a mandar, sem persuadir.
— Mas, quando um diminuto numero de cidadãos im-
põe seus arbítrios á multidão, daremos, ou não, a isso o
nome de violência?
— 36 —

"— Parece-me a mim", concede Péricles, cada vez mais


vacillante, "que, em caso tal, é de violência que se trata, não
"de lei".
Admittido isso, já Alcibiades triumpha:
"— Logo, quando a multidão, governando, obrigar os
ricos, sem consenso destes, não será, também, violência,
e não "lei"?
Péricles não acha que responder; e a própria razão
não o acharia. Não é "lei" a lei, senão quando assenta no
consentimento da maioria, já que, exigido o de todos, "desi-
derandum" irrealizavel, não haveria meio jamais de se chegar
a uma lei.
Ora, senhores bacharelandos, pesae bem que vos ides
consagrar á "lei", num paiz onde a lei absolutamente não
exprime o consentimento "da maioria", onde são as minorias,
as oligarchias mais acanhadas, mais impopulares e menos
respeitáveis, as que põem, e dispõem, as que mandam, e des-
mandam em tudo; a saber: num paiz, onde, verdadeiramente,
"não ha lei", não ha, moral, política ou juridicamente falando.
Considerae, pois, nas difficuldades, em que se vão en-
leiar os que professam a missão de sustentaculos e auxi-
liares "da lei", seus mestres e executores.
E' verdade que a execução corrige, ou attenua, muitas
vezes, a legislação de má nota. Mas, no Brasil, a "lei" se
deslegitima, annulla e torna "inexistente", não só pela bastar-
dia da origem, senão ainda pelos horrores da applicação.
Ora, dizia S. Paulo que boa é a lei. onde se executa
legitimamente. "Bona est lex, si ea legitimè utatur." (')

(!) S. Paulo: "I Timoth." I, 8.


— 37 —

Quereria dizer: Boa é a lei, quando executada com rectidão.


Isto é: boa será, em havendo no executor a virtude, que no
legislador não havia. Porque só a moderação, a inteireza
e a equidade, no applicar das más leis, as poderiam, em
certa medida, escoimar da impureza, dureza e maldade,
que encerrarem. Ou, mais lisa e claramente, se bem o en-
tendo, pretenderia significar o apostolo das gentes que mais
vale a lei má, quando "inexecutada", ou "mal executada"
(para o bem), que a boa lei, sophismada e não observada
(contra elle).
Que extraordinário, que immensuravel, que, por assim
dizer, estupendo e sobrehumano, logo, não será, em taes con-
dições, o papel da justiça! Maior que o da própria legis-
lação. Porque, se dignos são os juizes, como parte suprema,
que constituem, no executar das leis, — em sendo justas,
lhes manterão elles a sua justiça, e, injustas, lhes poderão
moderar, se não, até, no seu tanto, corrigir a injustiça.
De nada aproveitam leis, bem se sabe, não existindo
quem as ampare-contra os abusos; e o amparo sobre todos
essencial é o de uma justiça tão alta no seu poder, quanto
na sua missão. "Ahi temos as leis", dizia o Florentino.
Mas quem lhes ha-de ter mão? Ninguém."

"Le leggi son. ma chi pon mano ad esse?


"Nullo." (')

Entre nós não seria licito responder assim tão em ab-


soluto a interrogação do poeta. Na constituição brasileira,
a mão que elle não via na sua republica e em sua época, a

(I) Dante; "Purgatório", XVI, 97-98.


— 38 —

mão sustentadora das leis, ahi a temos, hoje, criada, e tão


grande, que nada lhe iguala a majestade, nada lhe riva-
liza o poder. Entre as leis, aqui, entre as leis ordinárias e a lei
das leis, é a justiça quem decide, fulminando aquellas,
quando com esta collidirem.
Soberania tamanha só nas federações de molde norte-
americano cabe ao poder judiciário, subordinado aos outros
poderes nas demais formas de governo, mas, nesta, superior
a todos.
Dessas democracias, pois, o eixo é a justiça, eixo não
abstracto, não suppositicio, não meramente moral, mas de
uma realidade profunda, e tão seriamente implantado no
mecanismo do regimen, tão praticamente embebido através
de todas as suas peças, que, falseando elle ao seu mister,
todo o systema cahirá em paralysia, desordem e subversão.
Os poderes constitucionaes entrarão em conflictos insoluveis,
as franquias constitucionaes ruirão por terra, e da organização
constitucional, do seu caracter, das suas funcções, das suas
garantias apenas restarão destroços.
Eis o de que nos ha-de preservar a justiça brasileira, se a
deixarem sobreviver, ainda que aggredida, oscillante e mal
segura, aos outros elementos constitutivos da republica, no
meio das ruinas, em que mal se conservam ligeiros traços
da sua verdade.
Ora, senhores, esse poder eminencialmente necessário,
vital e salvador, tem os dois braços, nos quaes agüenta a lei,
em duas instituições: a magistratura e a advocacia, tão
velhas como a sociedade humana, mas elevadas ao cem-
dobro, na vida constitucional do Brasil, pela estupenda im-
portância, que o novo regimen veiu dar á justiça.
— 39 —

Meus amigos, é para collaborardes em dar exis-


tência a essas duas instituições que hoje sais daqui habili-
tados. Magistrados ou advogados sereis. São duas car-
reiras quasi sagradas, inseparáveis uma da outra, e, tanto
uma como a outra, immensas nas difficuldades, respon-
sabilidades e utilidades.
Se cada um de vós metter bem a mão na consciência,
certo que tremerá da pespectiva. O tremer proprio é dos que
se defrontam com as grandes vocações, e são talhados para
as desempenhar. O tremer, mas não o descorçoar. O tre-
mer, mas não o renunciar. O tremer, com o ousar. O tremer,
com o empreender. O tremer, com o confiar. Confiae,
senhores. Ousae. Reagi. E haveis de ser bem succedidos.
Deus, patria, e trabalho. Mettei no regaço essas tres fés,
esses tres amores, esses tres signos santos. E segui, com o
coração puro. Não hajaes medo a que a sorte vos ludibrie.
Mais pode que os seus azares a constância, a coragem e a
virtude.
Idealismo? Não: experiência da vida. Não ha forças,
que mais a senhoreiem, do que essas. Experimentae-o, como
eu o tenho experimentado. Poderá ser que resigneis certas
situações, como eu as tenho resignado. Mas meramente para
variar de posto, e, em vos sentindo incapazes de uns, buscar
outros, onde vos venha ao encontro o dever, que a Provi-
dencia vos haja reservado.
Encarae, jovens collegas meus, nessas duas estradas,
que se vos patenteiam. Tomae a que vos indicarem vossos
presentimentos, gostos e explorações, no campo dessas nobres
disciplinas, com que lida a sciencia das leis e a distribuição
da justiça. Abraçae a que vos sentirdes indicada pelo conhe-
cimento de vós mesmos. Mas não primeiro que hajaes
— 40 —

buscado na experiência de outrem um pouco da que vos é


mister, e que ainda não tendes, para eleger a melhor derrota,
entre as duas que se offerecem á carta de idoneidade, hoje
obtida.
Pelo que me toca, escassamente avalio até onde, nisso,
vos poderia eu ser util. Muito vi em cincoenta annos. Mas o
que constitue a experiência, consiste menos no ver, que no
saber observar. Observar com clareza, com desinteresse,
com selecção. Observar, deduzindo, induzindo, e generali-
zando, com pausa, com critério, com desconfiança. Obser-
var, apurando, contrasteando, e guardando.
Que especie de observador seja eu, não vol-o poderia
dizer. Mas, seguro, ou não, no averiguar e discernir, — de
uma qualidade, ao menos, me posso abonar a mim mesmo:
a de exacto e consciencioso no expender e narrar.
Como me dilataria, porém, numa ou noutra coisa, quando
tão longamente, aqui, já me tenho excedido em abusar de
vós e de mim mesmo?
Não recontarei, pois, senhores, a minha experiência,
e muito menos tentarei explanal-a. Cingir-me-ei, estricta-
mente, a falar-vos como falaria a mim proprio, se vós estivesseis
em mim, sabendo o que tenho experimentado, e eu me achasse
em vós, tendo que resolver essa escolha.
Todo pae é conselheiro natural. Todos os paes acon-
selham, se bem que nem todos possam jurar pelo valor dos
seus conselhos. Os meus serão os a que me julgo obrigado, na
situação em que momentaneamente estou, pelo vosso arbí-
trio, de pae espiritual dos meus afilhados em letras, nesta
solennidade.
E' á magistratura que vos ides votar?
— 41 —

Elegeis, então, a mais eminente das profissões, a que


um homem se pode entregar neste mundo. Essa elevação me
impressiona seriamente; de modo que não sei se a commoção
me não atalhará o juizo, ou tolherá o discurso. Mas não se
dirá que, em boa vontade," fiquei aquém dos meus deveres.
Serão, talvez, meras vulgaridades, tão singelas, quão
sabidas, mas onde o senso commum, a moral e o direito,
associando-se á experiência, lhe nobilitam os ditames. Vul-
garidades, que qualquer outro orador se avantajaria em
esmaltar de melhor linguagem, mas que, na occasião, a mim
tocam, e no meu ensoado vernáculo hão-de ser ditas. Baste,
porém, que se digam com isenção, com firmeza, com leadade;
e assim hão de ser ditas, hoje, desta nobre tribuna.
Moços, se vos ides medir com o direito e o crime na
cadeira de juizes, começae, esquadrinhando as exigências
apparentemente menos altas dos vossos cargos, e proponde-
vos caprichar nellas com dobrado rigor; porque, para
sermos fieis no muito, o devemos ser no pouco. "Qui fidelis
est in mínimo, et in majori fidelis ést; et qui in modico iniquus
est, et in majori iniquus est." (')
Ponho exemplo, senhores. Nada se leva em menos conta,
na judicatura, a uma boa fé de officio que o vêso de
tardança nos despachos e sentenças. Os códigos se can-
sam debalde em o punir. Mas a geral habitualidade e a
conveniência geral o entretêm, innocentam e universali-
zam. Dest'arte se incrementa e desmanda elle em pro-
porções incalculáveis, chegando as causas a contar a edade
por lustros, ou décadas, em vez de annos.

(I) Lucas, XVI, 10.


Mas justiça atrasada não é justiça, senão injustiça
qualificada e manifesta. Porque a dilação illegal nas mãos
do julgador contraria o direito escripto das partes, e, assim,
as lesa no patrimônio, honra e liberdade. Os juizes tar-
dinheiros são culpados, que a lassidão commum vae tole-
rando. Mas sua culpa tresdobra com a terrível aggra-
vante de que o lesado não tem meio de reagir contra o
delinqüente poderoso, em cujas mãos jaz a sorte do litígio
pendente.
Não sejaes, pois, desses magistrados, nas mãos de
quem os autos penam como as almas do purgatório, ou
arrastam sonos esquecidos como as preguiças do mato.
Não vos pareçaes com esses outros juizes, que, com
taboleta de escrupulosos, imaginam em risco a sua boa
fama, se não evitarem o contacto dos pleiteantes, receben-
do-os com má sombra, em logar de os ouvir a todos com
desprevenção, doçura e serenidade.
Não imiteis os que, em se lhes offerecendo o mais
leve pretexto, a si mesmos põem suspeições rebuscadas,
para esquivar responsabilidades, que seria do seu dever
arrostar sem quebra de animo ou de confiança no prestigio
dos seus cargos.
Não sigaes os que argumentam com o grave das
accusações, para se armarem de suspeita e execração
contra os accusados; como se, pelo contrario, quanto mais
odiosa a accusação, não houvesse o juiz de se precaver
mais contra os accusadores, e menos perder de vista a
presumpção de innocencia, commum a todos os réus, en-
quanto não liquidada a prova e reconhecido o delicio.
Não acompanheis os que, no pretorio, ou no jury,
se convertem de julgadores em verdugos, torturando o
— 43 —

réu com severidades inopportunas, descabidas, ou indecentes;


como se todos os accusados não tivessem direito á protecção
dos seus juizes, e a lei processual, em todo o mundo civili-
zado, não houvesse por sagrado o homem, sobre quem recae
accusação ainda inverificada.
Não estejaes com os que aggravam o rigor das leis,
para se acreditar com o nome de austeros e illibados. Por-
que não ha nada menos nobre e applausivel que agenciar
uma reputação malignamente obtida em prejuízo da verda-
deira intelligencia dos textos legaes.
Não julgueis por considerações de pessoas, ou pelas
do valor das quantias litigadas, negando as sommas,
que se pleiteiam, em razão da sua grandeza, ou escolhendo,
entre as partes na lide, segundo a situação social dellas, seu
poderio, opulencia e conspicuidade. Porque quanto mais ar-
mados estão de taes armas os poderosos, mais inclinados é de
receiar que sejam á extorsão contra os menos ajudados da
fortuna; e, por outro lado, quanto maiores são os valores
demandados e maior, portanto, a lesão arguida, mais grave
iniqüidade será negar a reparação, que se demanda.
Não vos mistureis com os togados, que contrahiram
a doença de achar sempre razão ao Estado, ao Governo,
á Fazenda; por onde os condecora o povo com o titulo de
"fazendeiros". Essa presumpção de terem, de ordinário,
razão contra o resto do mundo, nenhuma lei a reconhece
á Fazenda , ao Governo, ou ao Estado.
Antes, se admissível fosse ahi qualquer presumpção, ha-
via de ser em sentido contrario; pois essas entidades são
as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de
corromper, as que exercem as perseguições, administra-
tivas, políticas e policiaes, as que, demittindo funccionarios
— 44 —

indemissiveis, rasgando contratos solennes, consummando


lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores
de taes attentados os que os pagam), accumulam, con-
tinuamente, sobre o thesoiro publico terríveis respon-
sabilidades.
No Brasil, durante o Império, os liberaes tinham por
artigo do seu programma cercear os privilégios, já espan-
tosos, da Fazenda Nacional. Pasmoso é que elles, sob a
Republica, se cem-dobrem ainda, conculcando-se, até, a
Constituição, em pontos de alto melindre, para assegurar
ao Fisco esta situação monstruosa, e que ainda haja quem,
sobre todas essas conquistas, lhe queira grangear a de um
logar de predilecções e vantagens na consciência judiciaria,
>no foro intimo de cada magistrado.
Magistrados futuros, não vos deixeis contagiar de
contagio tão maligno. Não negueis jamais ao Erário, á Ad-
ministração, á União, os seus direitos. São tão invioláveis,
como quaesquer outros. Mas o direito dos mais miseráveis j
dos homens, o direito do mendigo, do escravo, do criminoso,
não é menos sagrado, perante a justiça, que o do mais alto
dos poderes. Antes, com os mais miseráveis é que a justiça
deve ser mais attenta, e redobrar de escrúpulo; porque são
os mais mal defendidos, os que suscitam menos interesse, e os
contra cujo direito conspiram a inferioridade na condição
com a mingua nos recursos.
Preservae, juizes de amanhan, preservae vossas al-
mas juvenis desses baixos e abomináveis sophismas. A nin-
guém importa mais do que á magistratura fugir do mêdo,
esquivar humilhações, e não conhecer cobardia. Todo o
bom magistrado tem muito de heroico em si mesmo, na pu-
reza immaculada e na placida rigidez, que a nada se dobre.
— 45 —

e de nada se tema, senão da outra justiça, assente, cá em


baixo, na consciência das nações, e culminante, lá em cima,
no juizo divino.
Não tergiverseis com as vossas responsabilidades, por
mais atribulações que vos imponham, e mais perigos a que
vos exponham. Nem receieis soberanias da terra: nem a
do povo, nem a do poder. O povo é uma torrente, que rara
vez se não deixa conter pelas acções magnanimas. A intre-
pidez do juiz, como a bravura do soldado, o arrebatam, e
fascinam. Os governos investem contra a justiça, provocam
e desrespeitam a tribunaes; mas, por mais que lhes espumem
contra as sentenças, quando justas, não terão, por muito
tempo, a cabeça erguida em ameaça ou desobediência
deante dos magistrados, que os enfrentem com dignidade
e firmeza.
Os presidentes de certas republicas são, ás vezes, mais
intolerantes com os magistrados, quando lhes resistem, como
devem, do que os antigos monarchas absolutos. Mas, se os
chefes das democracias de tal jaez se esquecem do seu logar,
até o extremo de se haverem, quando lhes pica o orgulho,
com os juizes vitalícios e inamoviveis de hoje, como se have-
riam com os ouvidores e desembargadores d'El-Rey Nosso
Senhor, frágeis instrumentos nas mãos de déspotas coroa-
dos, — cumpre aos amesquinhados pela jactancia dessas re-
beldias ter em mente que, instituindo-os em guardas da Cons-
tituição contra os legisladores e da lei contra os governos,
esses pactos de liberdade não os revestiram de prerogativas
ultra-majestáticas, senão para que a sua autoridade não torça
ás exigências de nenhuma potestade humana.
Os tyrannos e barbaros antigos tinham, por vezes, mais
compreensão real da justiça que os civilizados e demo-
— 46 —

cratas de hoje. Haja vista a historia, que nos conta um pre-


gador do século XVII.
"A todo o que faz pessoa de "juiz", ou ministro", dizia
o orador sacro, "manda Deus que não considere na parte a
razão de príncipe poderoso, ou de pobre desvalido, senão
só a razão do seu proximo... (1) Bem praticou esta vir-
tude Canuto, rei dos Vandalos, que, mandando justiçar uma
quadrilha de salteadores, e pondo um delles embargos de
que era parente del-Rey, respondeu: "Se provar ser nosso
parente, razão é que lhe façam a forca mais alta." (2)
Bom é que os barbaros tivessem deixado lições tão
inesperadas ás nossas democracias. Bem poderia ser que,
barbarizando-se com esses modelos, antepuzessem ellas, en-
fim, a justiça ao parentesco, e nos livrassem da peste das
parentelas, em matérias de governo.
' Como vedes, senhores, para me não chamarem a mim
revolucionário, ando a catar minha literatura de hoje nos
livros religiosos.
Outro ponto dos maiores na educação do magistrado:
corar menos de ter errado que de se não emendar. Melhor
será que a sentença não erre. Mas, se cair em erro, o peor
é que se não corrija. E, se o proprio autor do erro o reme-
diar, tanto melhor; porque tanto mais cresce, com a con-
fissão, em credito de justo, o magistrado, e tanto mais se
solenniza a reparação dada ao offendido.
Muitas vezes, ainda, teria eu de vos dizer: Não façaes,
não façaes. Mas já é tempo de caçar as velas ao discurso.
Pouco agora vos direi.

(1) Levitico, XIX, 15.


(2) P.e M. Bernardess "Sermões", Parte I, pg. 263-4.
— 47 —

Não anteponhaes o draconianismo á equidade. Dados


a tão cruel mania, ganharieis, com razão, conceito de máus, e
não de rectos.
Não cultiveis systemas, extravagâncias e singulari-
dades. Por esse meio lucrarieis a néscia reputação de ori-
gmaes; mas nunca a de sábios, doutos, ou conscienciosos.
Não militeis em partidos, dando á politica o que deveis
á imparcialidade. Dessa maneira venderieis as almas c
famas ao demonio da ambição, da intriga e da servidão ás
paixões mais detestáveis.
Não cortejeis a popularidade. Não transijaes com as
conveniências. Não tenhaes negocios em secretarias. Não
delibereis por conselheiros, ou accessores. Não deis votos
de solidariedade com outros, quem quer que sejam. Fazendo
aos collegas toda a honra, que lhes deverdes, prestae-lhes o
credito, a que sua dignidade houver direito; mas não tanto
que delibereis só de os ouvir, em matéria onde a confiança
não substitua a inspecção directa. Não prescindaes, em
summa. do conhecimento proprio, sempre que a prova ter-
minante vos esteja ao alcance da vista, e se.offereça á veri-
ficação immediata do tribunal.
Por denadeiro, amigos de minha alma, por derra- .
deiro, a ultima, a melhor lição da minha experiência. De
quanto no mundo tenho visto, o resumo se abrange nestas
cinco palavras:
Não ha justiç, onde não haja Deus. 'f-
Quererieis que vol-o demonstrasse? Mas seria perder
' inpo, se já não encontrastes a demonstração no especta-
' ulo actual da terra, na catastrophe da humanidade. O
gcnero humano afundiu-se na matéria, e no oceano violento
da matria h'uctuam. hoje, os destroços da civilização meio
— 48 —

destruída. Esse fatal excidio está clamando por Deus.


Quando elle tornar a nós, as nações abandonarão a guerra,
e a paz, então, assomará entre ellas, a paz das leis e da
justiça, que o mundo ainda não tem, porque ainda não crê.
A' justiça humana cabe, nessa regeneração, papel
essencial. Assim o saiba ella honrar. Trabalhae por isso
os que abraçardes essa carreira, com a influencia da altíssima
dignidade, que do seu exercício recebereis.
Delia vos falei, da sua grandeza e dos seus deveres,
com a incompetência de quem não a tem exercido. Não tive a
honra de ser magistrado. Advogado sou, ha cincoenta
annos, e, já agora, morrerei advogado.
E' entretanto, da advocacia no Brasil, da minha pro-
fissão, do que nella, em experiência, accumulei, pratican-
do-a, que me não será dado agora tratar. A extensão já
demasiadissima deste colloquio em desalinho não me consen-
tiria accrescimo tamanho. Mas que perdereis, com tal omis-
são? Nada.
Na missão do advogado também se desenvolve uma
especie de magistratura. As duas se entrelaçam, diversas nas
funcções, mas idênticas no objecto e na resultante: a justiça.
Com o advogado, justiça militante. Justiça imperante, no
magistrado.
Legalidade e liberdade são as tábuas da vocação do ad-
vogado. Nellas se encerra, para elle, a synthese de todos
os mandamentos. Não desertar a justiça, nem cortejal-a.
Não lhe faltar com a fidelidade, nem lhe recusar o con-
selho. Não transfugir da legalidade para a violência nem
trocar a ordem pela anarchia. Não antepor s poderosos aos
desvalidos, nem recusar patrocínio a estes ontra aquelles.
Não servir sem independ' leia á justiça, nem ebrar da ver-
— 49 —

dade ante o poder. Não collaborar em perseguições oi


tados, nem pleitear pela iniqüidade ou immoralidadi
se subtrair á defesa das causas impopulares, nem á
rigosas, quando justas. Onde for apuravel um gr;
seja, de verdadeiro direito, não regatear ao attribulad o
solo do amparo judicial. Não proceder, nas consulta
com a imparcialidade real do juiz nas sentenças. Ni
da banca balcão, ou da sciencia mercatura. Não s
com os grarides, nem arrogante com os miseráveis,
aos opulentos com altivez e aos indigentes com >
Amar a patria, estremecer o proximo, guardar fé e
na verdade e no bem.
Senhores, devo acabar. Quando, ha cincoen
saía eu daqui, na velha Paulicéa, solitária e brumt
hoje sais da transfigurada metrópole do maximi
brasileiro, bem outros eram este paiz e todo o nu
dental.
O Brasil acabava de varrer do seu territ
vasão paraguaya, e, na America do Norte, pou
antes, a guerra civil limpara da grande republi;
veiro negro, cuja agonia esteve a pique de a soss
pedaçada. Eram dois prenuncies de uma alve
doirava os cimos do mundo chrlstão, annuncian
victorias da liberdade.
Mas, ao mesmo tempo, a invasão germanú
terras de França, deixando-a violada, traspassada
e cruelmente mutilada, aos olh1 * —■>« e mdiff i. cs c, rs
outras potências e mais naçõe ro, rand pc
quenas.
Ninguém percebeu que semeí
tivcito c a subversão dp mune; nenos c
— 50 —

annos, aquella atros exacerbação do egoismo político en-


volvia culpados e innocentes numa série de convulsões, tal,
que acreditarieis haver-se despejado o inferno entre as nações
da terra, dando ao inaudito phenomeno humano proporções
quasi capazes de representar, na sua espantosa immensidade,
um cataclysmo cósmico. Parecia estar-se desmanchando e
anniquilando o mundo. Mas era a eterna justiça que se
mostrava. Era o velho continente que principiava a expiar
a velha política, desalmada, mercantil e cynica, dos Na-
poleões, Metternichs e Bismarcks, num cyclone de abo-
minações inenarráveis, que bem de pressa abrangeria,
como abrangeu, na zona das suas tremendas com-
moções, os outros continentes, e deixaria revolvido o
orbe inteiro em tormentas catastróphicas, só Deus sabe
por quantas gerações além dos nossos dias.
O Briareu do inexorável mercantilismo que explorava
a humanidade, o colosso do egoismo universal, que, durante
um século, assistira impassivel á entronisação dos cálculos
(Jos governos sobre os direitos dos povos, o reinado impio da
a mbição e da força rolava, e se desfazia, num desmoro-
níimento pavoroso, levando por ahi a rojo impérios e dy-
na.stias, reis, domínios, constituições e tratados. Mas a me-
donha intervenção dos poderes tenebrosos do nosso destino
rnal estava começada. Ninguém poderia conjecturar ainda
como e quando acabará.
Neste canto da terra, o Brasil "da hegemonia sul-
americana", entreluzida com a guerra do Paraguay, não
cultivava taes velleidades, ainda bem que, hoje, de todo em
todo extinctas. Mas encetara uma era de aspirações jurídicas
e revoluções incruentas. Em 1888 aboliu a propriedade
servil. Em 1889 baniu a coroa, e organizou a republica.
— 51 —

Em 1907 entrou, pela porta de Haya, ao concerto das nações.


Em 1917 alistou-se na alliança da civilização, para empenhar
a sua responsabilidade e as suas forças navaes na guerra das
guerras, em soccorro do direito das gentes, cujo codigo aju-
dara a organizar na Segunda Conferência da Paz.
Mas, de súbito, agora, um movimento desvairado pa-
rece estar-nos levando, empuxados de uma corrente subma-
rina, a um recuo inexplicável. Dirieis que o Brasil de 1921
tendesse, hoje, a repudiar o Brasil de 1917. Por que? Por-
que a nossa política nos descurou dos interesses, e, ante isso,
delirando em accesso de frivolo despeito, iríamos desmentir
a excelsa tradição, tão gloriosa, quão intelligente e fecunda?
Não: senhores, não seria possivel. Na resolução de
1917o Brasil ascendeu á elevação mais alta de toda a nossa
historia. Não descerá.
Amigos meus, não. Compromissos daquella natureza,
daquelle alcance, daquella dignidade não se revogam. Não
convertamos uma questão de futuro em questão de relance.
Não transformemos uma questão de previdência em questão
de cobiça. Não reduzamos uma imraensa questão de prin-
cípios a vil questão de interesses. Não demos de barato a
essência eterna da justiça por uma rasteira desavença de
mercadores. Não barganhemos o nosso porvir a troco de
um mesquinho prato de lentilhas. Não arrastemos o Brasil
ao escândalo de se dar em espectaculo á terra toda como a
mais futil das nações, nação que, á distancia de quatro
annos, íe desdissesse de um dos mais memoráveis actos de
sua vida, trocasse de idéas, variasse de affeições, mudasse de
caracter, e se renegasse a si mesma.
O , senhores, não, não e não! Paladinos, ainda hontem,
do direito e da liberdade, não vamos agora mostrar os punhos
— 52 —

contrahidos aos irmãos, com que commungavamos, ha


pouco, nessa verdadeira cruzada. Não percamos, assim, o
equilíbrio da dignidade, por amor de uma pendência de estreito
caracter commercial, ainda mal liquidada, sobre a qual as
explicações dadas á nação pelos seus agentes, até esta data,
são inconsistentes e furtacôres. Não culpemos o estrangeiro
das nossas decepções políticas no exterior, antes de averiguar-
mos se os culpados não se achariam aqui mesmo, entre os a
quem se depara, nestas cegas agitações de odio a outros po-
vos, a diversão mais opportuna dos nossos erros e misérias
intestinas.

O Brasil, em 1917, plantou a sua bandeira entre as da


civilização nos mares da Europa. Dahi não se retrocede
facilmente, sem quebra da seriedade e do decoro, se não dos
proprios interesses. Mais cuidado tivéssemos, em tempo, com
os nossos, nos conselhos da paz, se nelles quizessemos brilhar
melhor do que brilhámos nos actos da guerra, e acabar sem
contratempos ou dissabores.

Agora, o que a política e a honra nos indicam, é outra


coisa. Não busquemos o caminho de volta á situação colo-
nial. Guardemo-nos das protecções internacionaes. Acau-
telemo-nos das invasões econômicas. Vigiemo-nos das po-
tências absorventes e das raças expansionistas. Não nos te-
mamos tanto dos grandes impérios já saciados, quanto dos
anciosos por se fazerem taes á custa dos povos indefesos e
mal governados. Tenhamos sentido nos ventos, que sopram
de certos quadrantes do céu. O Brasil é a mais cobiçavel das
presas; e, offerecida, como está, incauta, ingênua, inerme, a
todas as ambições, tem, de sobejo, com que fartar duas ou
tres das mais formidáveis.
— 53 —

Mas o que lhe importa é que dê começo a governar-se


a si mesmo; porquanto nenhum dos árbitros da paz e da
guerra leva em conta uma nacionalidade adormecida e ane-
mizada na tutela perpétua de governos, que não escolhe. Um
povo dependente no seu proprio território e nelle mesmo su-
jeito ao dominio de senhores não pode almejar seriamente,
nem seriamente manter a sua independência para com o
estrangeiro.
Eia, senhores! Mocidade viril! Intelligencia brasileira!
Nobre nação explorada! Brasil de hontem e amanhan! Dae-
nos o de hoje, que nos falta.
Mãos á obra da reivindicação de nossa perdida auto-
nomia; mãos á obra da nossa reconstituição interior;
mãos á obra de reconciliarmos a vida nacional com
as instituições nacionaes; mãos á obra de substituir pela ver-
dade o simulacro político da nossa existência entre as nações.
Trabalhae por essa que ha de ser a salvação nossa. Mas não
buscando salvadores. Ainda vos podereis salvar a vós mesmos.
Não é sonho, meus amigos: bem sinto eu, nas pulsações do
sangue, essa resurreição ansiada. Oxalá não se me fechem
os olhos, antes de lhe ver os primeiros indícios no horizonte.
Assim o queira Deus.

mmsmst*
V.•

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