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Massimo Bonato
Rio de Janeiro
2009
“Transformações do catolicismo brasileiro pós-Concílio Vaticano II: uma
análise da ação pastoral do padre Alberto Antoniazzi”
Massimo Bonato
Aprovada por
_______________________________________________
Profa. Dra. Jessie Jane Vieira Souza
(Orientadora)
________________________________________________
Prof. Dr. Marcelo da Silva Timotheo da Costa
________________________________________________
Profa. Dra. Andréa Daher
III
Ficha catalográfica
Bonato, Massimo.
“Transformações do catolicismo brasileiro pós-Concílio Vaticano II: uma análise da ação
pastoral do Padre Alberto Antoniazzi./ Massimo Bonato. Rio de Janeiro: UFRJ/ PPGHIS,
2009.
v, 130
Orientadora: Jessie Jane Vieira Souza
Dissertação (mestrado) – UFRJ /IFCS/ Programa de Pós-graduação em História Social,
2009.
Referências bibliográficas: f. 113-130.
1. Igreja Católica. 2. Concilio Vaticano II. I. Souza, Jessie Jane II. Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em
História Social. III. Título.
IV
AGRADECIMENTOS
Tecnológico (CNPq) pelo financiamento, através de bolsa de estudos, por dois anos, para a
À querida orientadora, professora Jessie Jane Vieira Souza, pelos anos de dedicação,
expressá-lo.
amizade e pela troca de ideias e discussões sobre historiografia, que muito contribuíram para
Aos meus amigos e familiares, pelo apoio e compreensão, sou muito grato.
profundamente a você por tudo o que fez nesse período da minha vida, e que sempre me deu
Norbert Elias
VII
RESUMO
ABSTRACT
This work is dedicated to a historical study of the Italian scholar Alberto Antoniazzi’s
trajectory and pastoral action in the Brazilian Catholic Church, between 1965 and 2004.
Established in Brazil since 1963 and ordained as priest in 1965, by Belo Horizonte’s
Archdiocese, Father Alberto Antoniazzi played a significant role in the size of Brazilian
Catholicism. He participated, for about 35 years, in the drafting of key documents of
Brazilian’s Episcopal polity, and developing an intense activity in the making of the ministry
planning of the Church of Brazil, and in the study of the dynamics of contemporary religious
phenomenon, to the end of his life in 2004. This essay seeks to understand the transformation
of the Catholic Church in Brazil after the Council Vatican II, by monitoring the path of
Antoniazzi, examining their intellectual production and its proposals for a pastoral plan of
action for the Brazilian Church, inspired and guided by the ideas of Vatican II and
aggiornamento.
Keywords: Alberto Antoniazzi, Brazilian Catholicism, Council Vatican II, Catholic Church
and modernity.
IX
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 13
1
A tesi di laurea é o trabalho de conclusão do curso universitário italiano que corresponde, grosso modo, no
Brasil, à monografia final do curso de graduação.
14
Composto por intelectuais como Alceu Amoroso Lima e por figuras bastante
conhecidas, como os bispos Dom Evaristo Arns e Dom Helder Câmara, e teólogos como
Leonardo Boff, o catolicismo brasileiro também foi influenciado por personagens cujo papel,
ainda que menos visível, não deixa de ser importante e significativo sob diversos aspectos.
A partir dessas reflexões, nos aproximamos da trajetória intelectual de um italiano,
enraizado desde 1963 na arquidiocese de Belo Horizonte. De nome Alberto Antoniazzi,
nascido em Milão em 1937, será ordenado sacerdote na arquidiocese de Belo Horizonte em
1965. Professor de Filosofia na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC
Minas), e, mais tarde, vice-reitor da mesma, foi formador de presbíteros e estudioso dos
fenômenos religiosos. Combinou essas atividades com um intenso trabalho de planejamento
da ação pastoral da Igreja do Brasil, assumindo cargos na CNBB, aos quais se dedicou até os
últimos meses da sua vida, antes de falecer no dia 25 de dezembro de 2004.
Na escolha de analisar a trajetória de Alberto Antoniazzi na Igreja Católica do Brasil
orientavam-nos alguns pressupostos.
Em primeiro lugar, a atuação pastoral de Alberto Antoniazzi como assessor do
episcopado brasileiro, participando por cerca de 35 anos na preparação da maioria dos
documentos da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que assumiram sua
forma definitiva sob sua inspiração. Colaborando de forma intensa com a CNBB, Antoniazzi
teve um papel importante no âmbito do planejamento pastoral da Igreja do Brasil, por meio da
elaboração das chamadas Diretrizes Gerais da Ação Pastoral (DGAP).
Em segundo lugar, chama atenção na trajetória pastoral de Alberto Antoniazzi a sua
produção intelectual e, especialmente, a adoção de uma perspectiva sociológica através da
qual buscou examinar o catolicismo brasileiro nas suas dimensões religiosas, históricas e
culturais. Sua análise abarca os cenários ad intra e ad extra eclesiais com o propósito de
entender as mudanças da dimensão social e cultural e a influência que essas mudanças
tiveram na sociedade contemporânea brasileira. É nesse horizonte que podemos enquadrar a
dimensão intelectual de Antoniazzi que, por meio de diversas pesquisas, procurou auxiliar a
ação da Igreja Católica no intuito de levar a instituição a conhecer as mudanças da realidade
da sociedade contemporânea brasileira.
A palavra italiana aggiornamento, que pode ser traduzida, em português, como
“atualização”, é uma expressão que representa fielmente a ideia central que marcou o
pensamento e a ação de Alberto Antoniazzi. Intelectualmente, Antoniazzi procurou
aprofundar uma reflexão teológico-pastoral sobre as principais questões oriundas das novas
orientações propostas pelo Concílio Vaticano II, particularmente no que diz respeito à
15
2
O catolicismo e as mudanças no panorama religioso contemporâneo na modernidade secular são objetos das
análises da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger no livro Il Pellegrino e il convertito: la religione in
movimento. Bologna: Il Mulino, 2003. Para um aprofundamento de caráter introdutório das reflexões da
estudiosa francesa, ver CAMURÇA, Marcelo Ayres. A sociologia da religião de Danièle Hervieu-Léger: entre a
memória e a emoção. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religião: enfoques teóricos. Petrópolis:
Vozes, 2003. p. 263.
16
essencialmente com a própria preservação. Por essas razões, resulta fundamental compreender
a sua capacidade de promover mudanças internas e desenvolver novos vínculos com a
sociedade. Inevitavelmente, uma indagação formulada nesses termos nos leva a entrar em
questões tradicionalmente caras aos cientistas sociais.
Diversos estudiosos do século passado se dedicaram a realçar a importância do
aprofundamento do conhecimento de temáticas religiosas para uma reconstrução global dos
processos históricos.3 Mas é principalmente logo após o Concílio Vaticano II que, no âmbito
dos estudos de história da Igreja, se revitaliza um debate vivaz entre os sustentadores de uma
visão teológica e outra leiga da disciplina.4 O Vaticano II provoca uma série de impulsos em
favor da configuração de um campo disciplinar autônomo. Segundo o historiador italiano
Daniele Menozzi, para tentar compreender de forma mais exata o significado dessa mudança
no interior da historiografia católica, é fundamental considerar dois aspectos decorrentes do
próprio Concílio Vaticano II que favorecem uma abertura desse campo disciplinar: o primeiro
se realiza principalmente através da constituição Gaudium et Spes, que possibilita a criação
desse campo disciplinar que será influenciado pela disciplina da história; o segundo aspecto
se realiza através do ecumenismo, que provoca uma ampliação do horizonte de indagação no
que diz respeito à história de outras igrejas.5
A título de exemplo dos efeitos dessas mudanças intraeclesiais para o campo das
disciplinas históricas, podemos lembrar a proposta de um grupo de historiadores
colaboradores do Instituto de Pesquisa de Ciências Religiosas de Bolonha. Durante os anos
3
Novos impulsos em favor de uma evolução crítica para os estudos no campo da história da Igreja se
manifestaram no período entre as duas guerras mundiais, com os estímulos provocados por parte de estudiosos
leigos, como Delio Cantimori, com a obra Eretici Italiani del cinquecento: ricerche storiche. Firenze: Sansoni,
1939, e do historiador Lucien Febbre, Le probléme de l’incroyance au XVI siècle: le religion de Rabelais. Paris:
A. Michel, 1942. Expressiva também é a pesquisa de Gabriel Le Brás, estudioso das instituições eclesiásticas da
Idade Média, que fornece uma contribuição importante pensando-se em uma história da Igreja em diálogo com
as ciências sociais, L’église et le village. Paris: Flammarion, 1976, capaz de abordar uma análise em níveis
distintos, de acordo com os postulados da nova história social francesa. O trabalho de Le Brás tem um resultado
muito importante, pois consegue abrir horizontes e perspectivas significativas para toda a historiografia religiosa
em geral, principalmente com uma abertura para a dimensão disciplinar da sociologia da religião.
4
Esse debate já tinha precedentes que remetem ao começo do século XX. O exegeta e historiador francês Alfred
Loisy (1857-1940), principalmente através de uma das suas obras, L’Évangile et l´Église. Paris: Picard, 1902,
rompia com todos os princípios da apologética tradicional levando à aceitação e ao desenvolvimento do
modernismo em âmbito católico. As reflexões de Loisy provocaram a reação antimodernista do papa Pio X, que,
através da encíclica Pascendi Dominici Gregis, promulgada em 1907, condenava os erros do modernismo,
inclusive o próprio modernismo católico, atacando duramente os estudos de história da Igreja.
5
MENOZZI, Daniele. Cristianesimo, Storia del [verbete]. In: DE BERNARDI, Alberto; SCIPIONE, Guarracino
(Org.). Dizionario di Storiografia. Milano: Bruno Mondadori, 1996. p. 271-272; MENOZZI, Daniele. Il
cattolicesimo dal Concilio di Trento al Vaticano II. In: FILORAMO, Giovanni (Org.). Storia delle religioni:
Cristianesimo. Roma: Laterza, 2005. v. 4, ver p. 659.
18
que coincidem com o começo do Concílio Vaticano II, essa equipe de historiadores, da qual
fazia parte Giuseppe Alberigo, Paolo Prodi, entre outros, reunidos sob a direção do sacerdote
Giuseppe Dossetti e com a colaboração do historiador alemão Hubert Jedin, começa a
elaborar um projeto de constituir uma história dos concílios e da Igreja a partir dos princípios
centrais propostos no clima de aggiornamento do Concílio Vaticano II.6 Pensamos que a
importância dessa proposta, além do valor do trabalho histórico em si, pode ser avaliada na
medida em que se apresentava, também, como uma tentativa de profissionais da área da
história de afirmar, de forma sistemática, a independência e autonomia do próprio trabalho
frente à teologia, estabelecendo de tal modo a sua plena adesão à disciplina histórica e aos
seus métodos.
No Brasil, podemos assinalar como, a partir da segunda metade da década de 1960, a
recepção do Concílio Vaticano II estimula vivazes discussões sobre as reflexões acerca dos
seus documentos. As possibilidades de “atualização” que passam no interior do campo
religioso católico brasileiro afetam, em vários níveis e de diferentes formas, os diversos
setores da Igreja. Especificamente no interior dos ambientes intelectuais católicos, isso
significa uma maior sensibilidade para novas dimensões, como o ecumenismo, o diálogo
inter-religioso e com o propósito de uma reformulação da tradição anterior.
O historiador José Oscar Beozzo assinala que no Brasil o acontecimento do Concílio
Vaticano II se traduz no aumento de uma significativa produção teológica, acompanhada do
surgimento de uma série de revistas especializadas dentro das universidades e faculdades de
teologia. Segundo a opinião do religioso, no Brasil, o Concílio Vaticano II representou a
oportunidade para poder reinventar, de alguma forma, a Igreja.7
De fato, um impulso à produção de pesquisas sobre a história da Igreja, no Brasil, vem
do interior da própria instituição católica.8 É no âmbito confessional que emerge uma
expressiva contribuição, em termos quantitativos e qualitativos, através do projeto da
6
Sobre os começos desse projeto historiográfico, ver: ALBERIGO, Giuseppe. (Org.). L’ «officina bolognese»
1953-2003. Bologna: EDB, 2004; ALBERIGO, Giuseppe. Breve storia del Concilio Vaticano II. Bologna. Il
Mulino, 2005, p. 7-8.
7
BEOZZO, José Oscar. Padres conciliares brasileiros no Vaticano II: participação e prosopografia 1959-1965.
Tese (Doutorado em História Social)–Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2001.
8
O historiador brasileiro Ivan Aparecido Manoel sugere a hipótese de que uma rejeição ou desprezo pelas ações
da Igreja Católica no Brasil provocou um afastamento dos historiadores acadêmicos brasileiros em tratar as
temáticas relativas à história da Igreja. Isso fez com que uma parte considerável da produção de pesquisas nesse
âmbito fosse produzida por autores de outras áreas de conhecimento ou pertencentes a ambientes confessionais.
MANOEL, Ivan Aparecido. Igreja e Estado no Brasil: uma história de contraste e ambigüidades. Fragmentos de
Cultura, Goiânia, v. 16, n. 7/8, p. 663-684, jul./ago. 2006.
19
Comissão de Estudos de História da Igreja na América Latina (CEHILA), que propõe uma
“renovação” da história da Igreja Católica da América Latina.
Este projeto nasce como consequência das mudanças das realidades cristão–eclesiais
da América Latina, e como resultado de uma influência recebida da elaboração de uma
reflexão teológica para a América Latina.9
A ideia de re-escrever uma história da Igreja do Brasil fazia parte de um projeto mais
amplo concebido e dirigido pelo teólogo e historiador argentino Enrique Dussel. No início da
década de 1970, a proposta de Dussel, de uma história da Igreja da América Latina e do
Caribe, começava a ser realizada através do estabelecimento de laços com as diferentes
realidades nacionais do continente.10
No Brasil, em 1973 começava a tomar corpo o projeto CEHILA-Brasil que, na prática,
visava constituir uma história da Igreja no Brasil a partir da perspectiva do povo. Estabelecia
as suas bases na colaboração entre experts da área, entre historiadores e sociólogos,
antropólogos, teólogos, filósofos, mas sempre com certa ênfase na reflexão derivada de um
aprofundamento teológico.
Elementos peculiares caracterizam a produção historiográfica da CEHILA. Para o
historiador argentino Roberto Di Stefano os princípios teóricos que marcam essa produção
historiográfica são: a superação de uma dimensão “romana” da Igreja latino-americana, para
fortalecer uma identidade eclesial própria; escrita de uma história da Igreja a partir de uma
perspectiva que considera os “pobres”; superação da dimensão institucional da Igreja, em
favor de uma perspectiva que favorece maior atenção às dimensões “periféricas” das formas
religiosas e dos movimentos populares; proposta de uma visão ecumênica, capaz de
considerar e incluir as outras confissões cristãs.
Embora seja evidente a incorporação desses elementos “renovadores”, estimulados
pelas leituras dos documentos do Concílio Vaticano II, e como consequência das novas
concepções teológicas latino-americanas, permanece na historiografia da CEHILA o elemento
9
Referimos-nos, no caso específico, à chamada “Teologia da Libertação”. Sobre a relação entre a Teologia da
Libertação e uma nova proposta para a história da Igreja da América Latina e Caribe existem vários estudos,
dentre os quais podemos fazer referência aos seguintes: CEHILA, Para uma História da Igreja na América
Latina: marcos teóricos. Petrópolis: Vozes, 1986; HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na América
Latina e no Caribe: 1994, 1995 o debate metodológico. Petrópolis: Vozes, 1995; REGIDOR, José Ramos. La
Teologia della Liberazione. Roma: DataNews, 1996; DUSSEL, Enrique. Teologia da Libertação: um panorama
de seu desenvolvimento. Petrópolis: Vozes, 1997.
10
Dentre os estudos que realizam sínteses da história da Igreja da América Latina e Caribe, ver: DUSSEL,
Enrique. História da Igreja Latino-Americana (1930-1985). São Paulo: Paulinas, 1989; DUSSEL, Enrique. 500
Anos de História da Igreja na América Latina. São Paulo: Paulinas, 1992.
20
11
DI STEFANO, Roberto. Presentación. Prismas: Revista de Historia Intelectual. Buenos Aires, año 9, n. 9, p.
111-118, 2005.
12
Para análises historiográficas a respeito da temática da história da Igreja Católica do Brasil, ver: SOUSA,
Jessie Jane Vieira de. Círculos operários: a Igreja católica e o mundo do trabalho no Brasil. Rio de Janeiro: Ed.
UFRJ, 2002; PIERUCCI, Antônio Flávio. Sociologia da Religião: área impuramente acadêmica. In: MICELI,
Sérgio. O que ler na Ciência Social brasileira (1970-1995). São Paulo: Sumaré: Anpocs; Brasília: Capes, 1999.
LONDONO, Fernando Torres. Produção historiográfica sobre a Igreja da América Latina nos últimos 50 anos.
In: HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na América Latina e no Caribe: 1994, 1995 o debate
metodológico. Petrópolis: Vozes, 1995.
13
Paulo Roberto de Almeida explica que a definição de brasilianistas aplica-se desde o início dos anos 1960, ao
tomar impulso uma nova corrente de estudos brasileiros nos Estados Unidos, sob o impacto da Revolução
Cubana. O termo já vinha sendo utilizado pelo grupo que passou a beneficiar-se da concessão de bolsas de
estudos e de outras medidas de auxílio de Washington. ALMEIDA, Paulo Roberto. Tendências e perspectivas
dos estudos brasileiros nos Estados Unidos. In: ALMEIDA, Paulo Roberto; EAKIN, Marshall; BARBOSA,
Rubens Antonio (Ed.). O Brasil dos brasilianistas: um guia dos estudos sobre o Brasil nos Estados Unidos,
1945-2000. São Paulo: Paz e Terra, 2002. O historiador Carlos Fico relata que críticas de intelectuais brasileiros
atingiam os brasilianistas no final dos anos 1970, que eram acusados de terem acesso privilegiado a documentos
históricos e até mesmo de serem agentes disfarçados da CIA. Fico explica que a principal censura acadêmica que
se fazia aos pesquisadores norte-americanos interessados na história brasileira era a de fragilidade teórica. FICO,
Carlos. Ditadura militar e concordata moral. Topoi: Revista História. Rio de Janeiro, v. 4, p. 190-199, março
2002. Mas é importante dizer que é através também de brasilianistas dos Estados Unidos que, a partir de meados
dos anos 1960, o universo conceitual e terminológico das ciências sociais brasileiras passa a incorporar e a
21
16
Ambos os trabalhos foram realizados inicialmente como teses de doutorado e defendidas em universidades
francesas. ROMANO, Roberto. Brasil: Igreja contra Estado: crítica ao populismo católico. São Paulo: Kairos,
1979; ALVES, Marcio Moreira. A Igreja e a política no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1979.
17
LIMA, Luiz Gonzaga de Souza. Evolução política dos católicos e da Igreja no Brasil: hipóteses para uma
interpretação. Petrópolis: Vozes, 1979.
23
18
MAINWARING, Scott. A Igreja Católica e a política no Brasil (1916-1985). São Paulo: Brasiliense, 1989.
19
Os historiadores, ao contrário de profissionais de outras aéreas como cientistas políticos, sociólogos e
jornalistas, demoraram mais tempo antes de abordar o tema. Várias razões poderiam ser consideradas como
possíveis fatores que provocaram esse fenômeno; entre outros, pode-se pensar na postura dos historiadores de
optar por fatos mais distantes no tempo.
24
na sociedade. Esses trabalhos apresentam limitações porque não dão importância suficiente às
contradições internas da Igreja, às suas diferentes correntes e ao seu aspecto societário.
Quanto ao tipo de abordagem adotada pelos vários autores, queremos frisar um aspecto que
consideramos de central importância numa avaliação dessa produção historiográfica: todas as
pesquisas sofreram as influências das teorias ou interpretações hegemônicas dos períodos nos
quais foram elaboradas. Nessa vertente de estudos houve, principalmente, uma predominância
do referencial teórico estruturalista. Os trabalhos que se enquadram nesse campo teórico
foram importantes, mas expressam uma visão excessivamente institucionalizada da Igreja
Católica.
Determinadas reconstruções históricas oferecem um tipo de discurso que procura
garantir um sentido específico, voltado para recuperação da ação da Igreja Católica na
transformação da sociedade brasileira.20 De maneira geral, esses trabalhos propõem uma
instituição que, a partir da década de 1970, resulta influenciada e renovada profundamente
pelos princípios fundamentais de determinadas concepções teológicas – a Teologia da
Libertação – e pela sua “opção pelos pobres”. Tais abordagens procuram reforçar uma
imagem geral da Igreja Católica do Brasil como “Igreja progressista” e “Igreja popular”.
Esses trabalhos se caracterizam pela busca da importância e centralidade do papel da Igreja
Católica na história contemporânea brasileira, no intuito de dar sustentação a um discurso em
favor do fortalecimento de uma identidade católica diante da crise de “civilização paroquial”21
do catolicismo brasileiro.
Por outro lado, se consideramos o conjunto da bibliografia, é possível perceber como,
ao realizar esses trabalhos durante o período do regime militar ou pouco tempo depois, os
diferentes autores foram influenciados, em níveis diferentes, pelo debate ideológico e político
que se centrava em uma discussão dialética entre conservadores e progressistas.
É preciso realçar que todos esses trabalhos, seja a partir de uma interpretação crítica,
analítica ou de defesa do papel da Igreja, em diferentes níveis, trouxeram importantes
contribuições em favor da compreensão da história da Igreja e da história da sociedade
contemporânea brasileira. Colocando uma consideração de ordem geral, pensamos que resulta
20
BRUNEAU, 1974; LIMA, 1979; MAINWARING, 1989.
21
Sobre as mudanças do catolicismo brasileiro e as formas que os estudiosos adotaram nas diversas pesquisas
para analisar essas dinâmicas, ver: PIERUCCI, 1999, p. 255; Danièle Hervieu-Léger utiliza nas suas pesquisas a
ideia de “civilização paroquial”. Essa expressão se refere a um modelo de catolicismo que na modernidade
contemporânea foi sujeito a uma total revisão. Segundo a socióloga francesa, uma série de fatores teria minado
os fundamentos sociais e culturais da dimensão religiosa paroquial. Para o catolicismo isso significaria ser uma
religião estatisticamente majoritária e, ao mesmo tempo, socialmente e culturalmente minoritária. HERVIEU-
LÉGER, 2003, p. 159-160.
25
Nessa perspectiva, podemos inserir a leitura de Edoardo Grendi, que fala de uma
renovação ampla que passa pela historiografia europeia, cujo resultado, caracterizado na
expressão “história em migalhas”, se colocava explicitamente como ruptura com o que se
esperava de uma história-síntese. Pensado em um contexto historiográfico, ao longo dos anos
1970 e 1980, o debate sobre as exigências teóricas se ampliou. Diante do recuo de paradigmas
científicos, as questões de atenção reservada aos atores individuais ou coletivos se
manifestam como uma possível alternativa de análise.23
Essas mudanças do cenário da produção do conhecimento histórico repercutiram sobre
a produção historiográfica sobre a Igreja, levando os especialistas à procura de outras
formulações teóricas e temáticas e de novas modalidades de escrita da própria narrativa. A
partir da década de 1990, isso se traduz na diminuição, pelo menos em nível quantitativo, de
obras publicadas que abordam o tema das relações entre Igreja Católica e regime militar.
22
CHARTIER, Roger. A beira da falésia: a história entre certezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. UFRGS,
2002, p. 8-9.
23
GRENDI, Edoardo. Ripensare la microstoria. In: REVEL, Jacques (Org.). Giochi di scala: la microstoria allá
prova del’esperienza. Roma: Viella, 2006. ver p. 227. [Edição brasileira: GRENDI, Edoardo. In: REVEL,
Jacques (Org.). Jogos de escalas: a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,
1998.].
26
Diante desse fenômeno, que podemos identificar como uma fase de recuo dos modelos
tradicionais da chamada história “científica” ou “história-síntese”, emergem elaborações
narrativas interessadas em rastrear as trajetórias de vida de grupos ou de indivíduos.
Nessa perspectiva de análise podemos situar o trabalho de outro brasilianista, Kenneth
Serbin, que em seu estudo Diálogos na sombra. Bispos e militares, tortura e justiça social na
ditadura, concentra a sua análise em um exame das ações e dos diálogos entre setores
militares e determinados bispos. 24 A análise de Serbin se concentra no exame do debate
ideológico, nos conflitos, nos compromissos e nas tensões entre as principais instituições em
sua competição para obter maior influência no interior da sociedade brasileira.
Apesar das suas heranças teóricas Serbin procura sair de uma narrativa interessada em
recriar uma imagem da “Igreja progressista” em oposição ao regime autoritário através de
uma investigação das relações entre as instituições E no exame dos seus diálogos sobre os
direitos humanos essa opção de Serbin e compreensível se inserida na atitude de uma nova
geração de acadêmicos norte-americanos que incorporou a ideia da “narrativa interpretativa”,
que procura interpretar o período autoritário da história latino-americana, as suas relações e o
seu impacto nos acontecimentos políticos atuais.25
Nessa mesma abordagem, relacionada com o debate político atual, o tema do
catolicismo brasileiro contemporâneo foi abordado por Lucília de Almeida Neves Delgado e
Mauro Passos no trabalho Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos (1960-1970), que
propõem uma abordagem do catolicismo brasileiro a partir de acontecimentos relacionados
com a questão da política dos direitos humanos para mostrar a complexidade da dimensão do
espaço religioso católico. Os autores buscam compreender a Igreja Católica como uma
instituição caracterizada por certo grau de complexidade e que traz dentro de si diversas
tendências culturais, políticas e comportamentos religiosos que podem ser entendidos como
sendo uma preocupação de fugir de interpretações de tipo maniqueísta, interessadas em criar
uma específica imagem da Igreja Católica.26
24
SERBIN, Kenneth. Diálogos na sombra: bispos e militares, tortura e justiça social na ditadura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2001.
25
SERBIN, 2001, p. 12, 444. Do mesmo autor recentemente foi publicada no Brasil a tese de doutorado:
SERBIN, Kenneth. Padres, celibato e conflito social: uma história da Igreja Católica no Brasil. São Paulo:
Companhia das Letras, 2008.
26
DELGADO, Lucília de Almeida Neves; PASSOS, Mauro. Catolicismo: direitos sociais e direitos humanos
(1960-1970). In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil republicano: o
tempo da ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2003. p. 93-131.
27
27
MELLONI, Alberto. Chiesa madre e chiesa matrigna: un discorso storico sul cristianesimo che cambia.
Torino: Einaudi, 2004, p. 9.
28
SANCHIS, Pierre (Org.). Catolicismo: modernidade e tradição. São Paulo: Loyola, 1992; SANCHIS, Pierre.
O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões? In: HOORNAERT, Eduardo. História da Igreja na
América Latina e no Caribe: 1994,1995 o debate metodológico. Petrópolis: Vozes, 1995. p. 81-131; SANCHIS,
Pierre (Org.). Fieis & cidadãos: percursos de sincretismo no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UERJ, 2001.
29
MONTES, Maria Lucia. As figuras do sagrado: entre o público e o privado. In: NOVAIS, Fernando A. (Org.).
História da vida privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras,
1998. p. 63-171.
28
modernidade, e discute sobre a ação da Igreja Católica na sociedade brasileira tanto nas suas
dimensões políticas e culturais quanto na esfera da subjetividade e da espiritualidade.
No entanto, é preciso considerar que, no que diz respeito especificamente à questão
das relações da Igreja Católica com as outras religiões, no período pós-Concílio Vaticano II,
há poucas análises, sobretudo se comparado com o volume de produção dos trabalhos que
examinam as relações da Igreja com Estado.
Outro estudo que contribui para ampliar a produção sobre história do catolicismo Pós-
Vaticano II foi realizado por Loiva Otero Felix, através do trabalho Escrevam porque as
ditaduras não duram para sempre. 30 A historiadora brasileira trabalha com o relato de Maria
Augusta Ghisleni, religiosa coordenadora de atividades pastorais da CNBB. O estudo de Felix
sobre o universo individual de um ator social ressalta a trajetória de vida de um membro da
Igreja, com o objetivo de enfatizar a dimensão subjetiva e individual de uma mulher no
interior de um poder institucional religioso e masculino. O estudo, dividido em duas partes, é
constituído, em primeiro lugar, por uma descrição do contexto histórico da Igreja brasileira no
período dos anos 1960 até 1980, e, em seguida, é constituído do relato da própria Maria
Augusta Ghisleni. Embora apresente uma abordagem metodológica renovada, o trabalho de
Felix continua a reforçar uma imagem tradicional da Igreja Católica brasileira na época do
regime militar. Baseando-se na primeira pessoa como ponto de vista, Felix se apoia na
memória subjetiva, que lhe permite viabilizar uma narrativa histórica com ênfase na
necessidade de assegurar à Igreja Católica brasileira uma imagem de “Igreja de libertação”.
Segundo Beatriz Sarlo, essa tendência, que hoje se expande sobre os estudos do
passado e os estudos culturais do presente, e se propõe a reconstituir a textura da vida e a
verdade abrigada nas rememorações da experiência, a revalorização da primeira pessoa como
ponto de vista, a reivindicação de uma dimensão subjetiva,31 faz parte de um programa que
coincide com a renovação temática e metodológica que a sociologia da cultura e os estudos
30
FELIX, Loiva Otero. Escrevam porque as ditaduras não duram para sempre. Passo Fundo: UPF, 2004.
31
É possível perceber como a dimensão intensamente subjetiva caracteriza parte da produção historiográfica no
presente. Como lembra François Hartog, prolifera a ideia de memória. Na pretensão de fazer memória de tudo, e
no desafio entre memória e história, é rapidamente dada a vantagem à primeira. O tom subjetivo caracteriza a
época atual, definida por alguns estudiosos como pós-modernidade. Se já não foi possível sustentar uma
verdade, florescem, em contrapartida, verdades subjetivas. Aparecem sujeitos para recuperar o passado e
adequá-lo ao presente. Segundo Hartog, “o historiador agora aprendeu a não reivindicar nenhum ponto de vista
dominante”. HARTOG, François. Regimi di storicità: presentismo e esperienze del tempo. Palermo: Sellerio,
2007, p. 30, tradução nossa. Cf. RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. Il futuro della religione: solidarietà,
carità, ironia. Milano: Garzanti, 2005.
29
culturais realizaram sobre o presente.32 Estas narrativas que privilegiam determinados grupos
ou sujeitos, outrora esquecidos demandam novos métodos para interpretar os processos
históricos marcados pelos “discursos da memória”.33
De fato, essa postura comum a muitos dos historiadores sociais, que abre brechas para
uma propensão favorável a um relativismo teórico, se apresenta também como um impasse na
própria concepção de história, que leva os especialistas a optar por detectar outros caminhos
de escrita de uma narrativa histórica. Isso pode ser entendido, também, como uma reação aos
critérios macroanalíticos de uma “história-síntese”.
No contexto acadêmico do Brasil houve, nos últimos anos, uma abertura entre os
especialistas de história ao debate epistemológico a respeito da prática da chamada micro-
história34 e das suas possibilidades de análise. Essa expressiva recepção é testemunhada pela
opção de diversos estudiosos de colocar no centro das suas investigações o exame das ações
dos atores sociais e sujeitos.
Essa abordagem, que desloca o foco dos seus interesses para as ações do indivíduo
está se difundindo não somente no panorama historiográfico brasileiro, mas resulta um
fenômeno que está se consolidando no panorama historiográfico global. Após um longo
período, o indivíduo voltou a ocupar uma posição central nas investigações históricas.
Segundo Sabina Loriga, isso poderia ser lido como uma consequência geral da crise da
“história científica”, da crise da interpretação marxista, do modelo estrutural, que levou os
historiadores a adotar uma posição que tentasse analiticamente estender e aprofundar a noção
histórica do indivíduo. Partindo dessas reflexões, podemos entender o generoso acolhimento
por parte dos historiadores do gênero biográfico. É importante considerar que, no momento
em que os historiadores recomeçaram a discutir a biografia como gênero historiográfico, fez-
se necessário ponderar cuidadosamente o uso da categoria de indivíduo como entidade na
qual apoiar o desenvolvimento da construção narrativa. A redescoberta da biografia,
argumenta Sabina Loriga, se deve principalmente às experiências, no campo da história,
32
SARLO, Beatriz. Cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte:
Ed. UFMG, 2007.
33
Para uma reflexão crítica sobre a metodologia da história oral e as suas potencialidades voltada para o estudo
dos acontecimentos e processos históricos, ver o trabalho de DELGADO, Lucília de Almeida Neves. História
oral: memória, tempo, identidades. Belo Horizonte: Autêntica, 2006. No que diz respeito a uma aplicação dessa
perspectiva metodológica no campo específico da história do catolicismo brasileiro, ver ANTONIAZZI, Alberto;
NEVES, Lucília de Almeida; PASSOS, Mauro (Org). As veredas de João na barca de Pedro. Belo Horizonte:
PUC Minas Editora, 2002.
34
Sobre a micro-história, ver REVEL, 2006. Ver LIMA, Henrique Espada. A micro-história italiana: escalas,
indícios e singularidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
30
35
LORIGA, Sabina. La biografia come problema. In: REVEL, Jacques (Org.). Giochi di scala: la microstoria
allá prova del’esperienza. Roma: Viella, 2006. ver p. 201-202.
36
COSTA, Marcelo da Silva Timotheo da. Um itinerário no século: mudança, disciplina e ação em Alceu
Amoroso Lima. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio; São Paulo: Loyola, 2006.
31
questão metodológica da redução de escalas na análise que vem sendo denominada de micro-
história.37
Giovanni Levi, a respeito dos usos das biografias, argumenta que o estudo de uma
vida nunca pode ser total e não traduz linearmente o real nem o aproxima por si só das
pessoas e seus atos passados. A biografia, explica ele, não é um método, mas um estilo
narrativo, uma perspectiva de reconstrução do contexto histórico e social. No uso da
biografia, se cruzam as relações entre normas e práticas, entre indivíduo e grupo, entre
determinismo e liberdade, entre racionalidade absoluta e limitada.38
Segundo Levi, a análise de uma temática histórica, a partir de uma experiência, de
uma trajetória individual, traz à tona um novo olhar sobre a história. O estudo de caso
representa o retorno necessário à experiência individual no que ela tem de significativo,
mesmo que possa parecer atípico. Essa valorização dos atores sociais pela micro-história
permite enfocar a relação entre os indivíduos e o mundo ao seu redor, priorizando as
interações em que se encontram envolvidos. Essa análise, sem ignorar as estruturas e as
instituições, também torna possível valorizar o processo social e as inter-relações das quais os
indivíduos são protagonistas. Permite, também, compreender o processo social onde são
forjados os interesses, as possibilidades e as alianças.39
No campo da sociologia foram realizadas críticas significativas, que geraram
discussões interessantes entre os intelectuais a respeito do uso do gênero biográfico. Pierre
Bourdieu explica que a história de vida é uma noção que entrou de “contrabando no universo
do saber”.
À diferença de Levi, Bourdieu propõe a ideia de trajetória de vida, que é entendida
pelo sociólogo como: “[…] série de posições sucessivamente ocupadas por um mesmo agente
(ou um mesmo grupo) num espaço que é ele próprio um devir, estando sujeito a incessantes
relações”.40 Para Bourdieu, não se pode compreender uma trajetória sem que se tenha,
37
Essa questão atual tem implicações entre vários estudiosos de tendências historiográficas das mais diversas.
Autores como Giovanni Levi, Carlo Ginzburg e Edoardo Grendi estão, cada um com suas especificidades,
problematizando a relação entre as estruturas e as ações humanas sobre as diversas tendências dos expoentes da
micro-história. Ver LIMA, 2006.
38
LEVI, Giovanni. Usos da biografia. In: FERREIRA, Marieta; AMADO, Janaina (Org.). Usos & abusos da
história oral. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas, 1996. p. 167-182.
39
LEVI, Giovanni. A proposito di microstoria. In: BURKE, Peter (Org.). La Storiografia contemporanea. Bari:
Laterza, 1992. ver p. 113. [ Edição brasileira: LEVI, Giovanni. Sobre a micro-história. In: BURKE, Peter (org.)
A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo, UNESP, 1992.]
40
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996, p. 81.
32
41
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 186.
42
BOURDIEU, 1996.
33
de Alberto Antoniazzi em seus diversos espaços físicos, buscando sempre situar no contexto
geral da Igreja e da sociedade do Brasil a sua ação pastoral. Nesta perspectiva, elaboramos a
seguinte subdivisão em capítulos:
Capítulo 1 – “De Milão para Belo Horizonte: primeiras aproximações e encontros com
o catolicismo brasileiro”. O primeiro capítulo começa com a análise da trajetória de vida de
Alberto Antoniazzi. Aqui, narramos as suas origens os lugares de formação religiosa e social,
as suas experiências de militância no movimento de Ação Católica de Milão. Buscou-se, neste
momento, mostrar os contatos que Alberto Antoniazzi estabeleceu com o mundo católico por
meio da arquidiocese de Milão. Procurou-se, também, situar a esfera das experiências
individuais de Alberto Antoniazzi articulando-as com a dimensão mais ampla das mudanças
da Igreja italiana às vésperas do Concílio Vaticano II. Em seguida, procuramos mostrar e
compreender os acontecimentos e a maneira através da qual Alberto Antoniazzi estabeleceu
os primeiros contatos com a realidade brasileira e as razões que o levarão a direcionar a sua
vida pelo ministério sacerdotal no Brasil. Em seguida, a nossa análise procurou mostrar a
maneira como Alberto Antoniazzi começou a interagir com essa nova realidade e buscou
transformar-se em sujeito ativo no campo das relações entre Igreja e comunidade.
Capítulo 2 – “A Igreja Católica do Brasil em busca de caminhos de aggiornamento”.
Aqui buscamos, a partir da trajetória pastoral de Alberto Antoniazzi, compreender as
dinâmicas da Igreja do Brasil frente à modernidade. Alberto Antoniazzi, sempre inspirado por
um espírito conciliar, por meio da ideia de aggiornamento, procura dirigir a sua reflexão
teológico-pastoral em direção a uma discussão crítica da pastoral, que permite introduzir no
meio eclesial do Brasil elementos de atualização. Para tanto, analisamos as reflexões na
dimensão da formação sacerdotal e as suas atividades de intelectual e pesquisador sobre o
catolicismo brasileiro. O exame dos seus escritos apresenta um percurso de análise que
começa a abordar os problemas dos presbitérios e chega a realizar uma reflexão aprofundada
sobre as questões de planejamento pastoral.
Capítulo 3 – “A Igreja Católica do Brasil pós-1989”. No terceiro capítulo narra-se
como, em um novo contexto sociocultural, alterado por um processo de erosão do modelo da
“Igreja de libertação” e por uma dinâmica de fragmentação dos diversos campos do
conhecimento, a reflexão de Alberto Antoniazzi se abre em direção de determinadas questões-
chave: pluralismo religioso, diálogo ecumênico e inter-religioso, subjetividade religiosa.
Assim, sempre inspirado pelo espírito conciliar, através da ideia de aggiornamento,
Antoniazzi procura dirigir a sua reflexão teológico-pastoral em direção a uma compreensão
das dinâmicas relacionadas com a modernidade religiosa. Também na dimensão da sua ação
34
43
Um depoimento oral a respeito desse momento nos foi dado Sandro Antoniazzi, irmão de Alberto Antoniazzi
(entrevista ao autor, Milão, 23 jan. 2007).
44
Para um aprofundamento sobre os conflitos entre os dois blocos políticos, ver: CRAINZ, Guido. L’Italia
repubblicana. Firenze: Giunti, 2000; LANARO, Silvio. Storia dell’Italia repubblicana: l’economia, la politica,
la cultura la società dal dopoguerra agli anni 90. Venezia: Marsilio, 1992. Cf. DE BERNARDI, Alberto;
GANAPINI, Luigi. Storia d’Italia 1860-1995. Milano: Mondadori, 1996.
36
entusiasmo e desejo de olhar para o futuro com esperança pela reconstrução sobre a fundação
de uma nova experiência política. Uma pluralidade de partidos de diversas tendências
(liberais, católicos, socialistas, comunistas) tinha constituído o bloco unido da resistência
antifascista. Mas, após a guerra, em um novo contexto de guerra fria, essa unidade política se
desfaz logo após o referendum de 1946 que proclama a Republica do Novo Estado Italiano.
Nessa conjuntura, o ápice desse confronto ideológico foram as primeiras eleições de 18 de
abril de 1948.
A Igreja se insere nesse conflito político essencialmente preocupada com a defesa do
seu poder religioso e se sentindo ameaçada com o avanço do comunismo, de uma parte, e com
o avançar de um processo de secularização na sociedade, de outra.45
Diante desse quadro, a Igreja por sua vez se sentia chamada a se posicionar e
encontrar uma maneira de intervir para manter o seu projeto hegemônico na sociedade e poder
enfrentar a minaccia rossa e certas teorias de laicismo do Estado. A hierarquia católica sente a
urgência de dar uma resposta vigorosa, consciente das dificuldades que se apresentavam, com
o objetivo de defender o seu status de religião dominante e reverter o declínio das práticas
religiosas, que poderia enfraquecer as identidades católicas. Por essa série de fatores, a Igreja
se mobiliza para dar uma resposta enérgica, capaz de evitar ou limitar a perda de sua
influência sobre os fiéis e a sociedade italiana.
No âmbito da política foram criados praticamente dois grandes blocos em disputa pelo
poder. De um lado, o mundo católico reunido no partido da DC,46 um partido de inspiração
católica e apoiado pelo papa e os seus aliados, e, de um outro lado, a “frente popular”, que era
animada pelo Partito Comunista Italiano (PCI) e Partito Socialista Italiano (PSI).
A Igreja Católica opta por se inserir de forma enérgica no campo da política partidária,
apoiando abertamente o partido da DC. Com o apoio da Igreja, e da sua ampla capacidade de
mobilizar extensos setores da sociedade, que se identificavam com o catolicismo, a DC
realiza uma intensa propaganda que busca identificá-la como sendo a antítese não só contra a
45
GARELLI, Franco. La Chiesa in Itália. Bologna: Il Mulino, 2007, p. 9-11. Cf. FILORAMO, Giovanni. La
Chiesa e le sfide della modernità. Bari: Laterza, 2007.
46
O próprio partido é muito heterogêneo. Inicialmente, a grande figura de Alcide De Gasperi consegue unir as
várias tendências presentes no partido. No interior do partido temos uma corrente influenciada pelo pensamento
filosófico e teológico francês, de forma particular E. Mounier e J. Maritain, que constituem os pontos de
referência das reflexões dos intelectuais do partido. Entre esse grupo de intelectuais podemos citar Giuseppe
Lazzati, Giorgio La Pira e Giuseppe Dossetti, que, através da revista Cronache sociali, se tornam a expressão de
esquerda demo-cristã. Esses intelectuais propõem uma reflexão que possa favorecer uma autonomia da
hierarquia eclesiástica. GUASCO, Maurílio. Chiesa e cattolicesimo in Italia (1945-2000). Bologna: EDB, 2005,
p. 23-24.
37
ameaça comunista, mas também contra a miséria e a instabilidade social. Com essa estratégia
a DC obtém um grande sucesso nas eleições de 1948, inaugurando um panorama político que
caracterizará por quase 50 anos a Itália republicana.47
Contando com o sustento financeiro e com apoio político dos Estados Unidos, a DC
consegue unir, através de um mecanismo complexo de equilíbrios, as reivindicações de um
mundo católico heterogêneo. Tal mundo foi construído por uma trama associativa que pôde
contar com uma sólida estrutura montada por diversas associações como: o movimento di
Azione Cattolica (AC), os Comitati Civici48 fundados pelo próprio presidente da Ação
Católica, Luigi Gedda, além do fundamental aporte da rede das paróquias presentes em todo o
país.
Em torno desse processo de polarização das posições ideológicas, no contexto da
arquidiocese de Milão, a hierarquia local tinha chamado os católicos a se engajar na vida
publica, e, no âmbito da política, a apoiar a DC. Esse processo de consolidação de um
consenso católico na arquidiocese de Milão se tornava mais explicito também por conta de
algumas questões vividas pela população local durante a Segunda Guerra Mundial.49 Nas
fases mais graves os civis se organizavam em torno da catedral e das paróquias, o que
terminou por deixar um legado de prestígio da Igreja no imaginário coletivo dos cidadãos
milaneses. 50
Em particular, ao longo do século XX e particularmente após a Segunda Guerra, nesse
espaço diocesano, cresce o dinamismo da própria Igreja no que diz respeito ao seu
envolvimento, através da ação do laicato com as questões sócias. Para que esse envolvimento
se tornasse possível foi fundamental a constituição de uma rede de intelectuais católicos que
desenvolvem um papel significativo tanto na dimensão política quanto na dimensão
religiosa.51
47
CRAINZ, 2000. Cf. DE BERNARDI; GANAPINI, 1996.
48
Os Comitati Civici foram uma organização dedicada à educação e mobilização civil e política na Itália. Foram
constituídos por iniciativa de Luigi Gedda, com apoio do papa Pio XII, com o objetivo de realizar, na campanha
eleitoral de 1948, uma eficaz propaganda anticomunista. Ver GUASCO, op. cit., p. 15.
49
RUMI, Giorgio. Milano durante il fascismo, 1922-1945. A cura di Giorgio Rumi, Virgilio Vercelloni, Alberto
Cova. Milano: Cariplo, [1994].
50
FORMIGONI, Guido; VECCHIO, Giorgio. L’ azione cattolica nella Milano del Novecento. Milano: Rusconi,
1989, p. 185.
51
Podemos fazer menção a este propósito com a figura particularmente representativa de Giuseppe Lazzati
(1909-1986), formado em letras e filosofia em 1931 na Universidade Católica de Milão. Professor na mesma
universidade a partir de 1958, a partir de 1968 assume o cargo de reitor. Além de intelectual, Lazzati foi homem
38
político e participou dos trabalhos da Assembleia Constituinte de 1946. Ver FORMIGONI; VECCHIO, op. cit.
Cf. CAMISASCA, Massimo. Comunione e liberazione: le origini (1954-1968). Cinisello Balsamo; Milano: San
Paolo, 2001.
52
A Igreja e a arquidiocese de Milão são denominadas “ambrosianas” por via da atuação de Ambrosio de Milão
(337 ou 339-397), seu padroeiro. Ambrosio foi governador da província a partir de 370, e por 22 anos de
episcopado teve um papel fundamental nos equilíbrios políticos do Ocidente.
53
A arquidiocese de Milão conserva uma antiga liturgia, o chamado “rito ambrosiano” e não a tradicional
liturgia romana. Foi uma diocese erigida no primeiro século e elevada ao nível de arquidiocese no século IV. Na
época atual, com cerca de 1108 paróquias, e com um grande numero de habitantes, é uma das maiores dioceses
no mundo.
54
ANTONIAZZI, Alberto. Entrevista (concedida a Luiz Fonte Boa pelo projeto “Memória e Poder” da
Assembléia Legislativa do Estado de Minas Gerais), Belo Horizonte, 20 jul. 2004. Religião e Sociedade, Rio de
Janeiro, v. 25, n. 1, p. 155-172, 2005.
55
Ibidem, p. 155.
39
56
Questão meridional – expressão que se refere ao problema de falta de desenvolvimento do Sul em relação ao
Norte, região mais desenvolvida e mais industrializada. Essa questão colocada por Antonio Gramsci entrou na
historiografia italiana, especialmente no que diz respeito ao âmbito da história contemporânea, como um tema
central de debate. Ver GANAPINI, Luigi. Storia contemporanea [verbete]. In: DE BERNARDI, Alberto;
SCIPIONE, Guarracino (Org.). Dizionario di Storiografia. Milano: Bruno Mondadori, 1996.
57
GUASCO, 2005, p. 26.
58
Giovannino Oliviero Giuseppe Guareschi (1908-1968) escritor e jornalista italiano. A sua criação literária
mais famosa é Don Camillo, com o seu personagem literário representado por um pároco generoso e disponível
com os seus paroquianos, mas sempre pronto a condenar os comunistas e o seus seguidores. Ver GNOCCHI,
Alessandro; PALMARO, Mario. Giovannino Gaureschi: c’era una volta il padre di Don Camillo e Peppone.
40
circunstâncias, parte já do próprio pároco, visto que muitas vezes se trata de sacerdotes não
muitos cultos.59
A paróquia, além de ser o centro de uma vida cultural e também social, é o lugar de
agregação e principalmente de uma formação direcionada para as crianças e os jovens. Se
pensarmos na dimensão da formação, as crianças eram deixadas na maioria das vezes aos
cuidados das mulheres que se dedicavam ao ensino do catecismo. 60 Quanto aos jovens,
funcionava, em geral, um grupo coordenado pelo pároco, onde era possível se dedicar a várias
atividades diretivas e de colaboração com a paróquia.
É preciso assinalar que, nesse momento, a dimensão católica milanesa era
caracterizada por uma vitalidade que se expandia e mostrava a sua presença de forma
significativa na vida pública da cidade.
Nesse ambiente, onde recebeu uma educação marcada em prevalência pela religião,
Alberto Antoniazzi, em 1956, entrou no movimento de leigos da Ação Católica. 61 Essa
passagem ao movimento da AC era bastante comum no ambiente paroquial italiano. A AC, de
fato, era uma passagem obrigatória para os jovens “mais promissores”, que queriam continuar
a ter um aprofundamento cultural e espiritual. No movimento católico italiano, foi educado a
pensar numa presença ativa na sociedade, tanto do ponto de vista social e político, quanto do
ponto de vista religioso.
Maritain. Essa abertura intelectual trazia para a cultura italiana da época novas possibilidades
de ser Igreja, dando novos sentidos para a vida dos cristãos.62
Antoniazzi se engaja em uma experiência de militância que lhe proporciona uma
mobilização semelhante à dos partidos políticos, por sua própria dinâmica, que o leva a
promover reuniões de trabalho e a visitar várias paróquias da arquidiocese, que apresentavam
grandes grupos de fiéis.
A AC, através dos seus homens bem preparados, devia atuar entre as fronteiras da
política e dos sindicatos, e as tarefas deviam ser confiadas aos leigos organizados e
espiritualmente formados na AC.63
É importante ter em conta as peculiaridades do contexto de Milão, que se refletem
também no seu movimento organizado de leigos. Por meio de uma certa tendência a favor do
papel da classe operária, cujo mundo sensibilizava os ramos mais jovens, o movimento
procurava se destacar nacionalmente. A influência do clima desse ambiente pode ser
comprovada por meio da declaração de Alberto Antoniazzi: “Já na universidade, eu comecei –
sob a influência dos colegas da Ação Católica – a nutrir simpatia pela chamada centro-
esquerda”.64
Na década de 1950, a Ação Católica italiana vive os seus melhores anos, chegando a
superar os três milhões de inscritos. É através dos militantes da Ação Católica que o mundo
juvenil católico fornece energias novas para a Igreja italiana. Um papel significativo nesse
momento de tentativa de renovação do catolicismo italiano era assumido por alguns dirigentes
da Ação Católica, que se engajavam em importantes iniciativas pastorais sociais a favor das
camadas mais pobres. Sob o impulso e o estímulo da recepção da teologia francesa mais
avançada, se oferecia o espaço para discussões a favor de uma maior autonomia dos leigos.65
Por sua parte, a hierarquia da Igreja italiana, preocupada com os primeiros sinais de
uma modernidade tomada como um sinal de perigo e de ameaça à integridade da instituição,
optava por se voltar em direção de um fechamento intelectual e com a permanência de uma
direção autoritária.66
62
FORMIGONI; VECCHIO, 1989; GUASCO, 2005, p. 45.
63
FORMIGONI; VECCHIO, op. cit.
64
ANTONIAZZI, 2005, p. 156.
65
Nesse momento, a influência vem das elaborações do teólogo dominicano francês Yves Congar,
principalmente através do livro Jalons pour une theologie du laicat. Paris: CERF, 1953.
66
Sobre o desenvolvimento da Ação Católica na década de 1950 na Itália, ver GUASCO, 2005, p. 39.
42
É preciso considerar que AC italiana, segundo as intenções de Pio XI,67 nasceu como
uma organização de leigos e com uma metodologia própria e estrutura específica, dividida em
diferentes ramos segundo a idade e o sexo. A Ação Católica italiana, organizada sob um
modelo que se aproximava ao de uma estrutura militar, desfilava na Itália em impressionantes
demonstrações públicas de lealdade ao papa, que a havia construído como uma organização
com privilégios especiais, concedidos através da hierarquia, sobre as outras associações
católicas. O papa imaginava a AC como um movimento capaz de ajudar a Santa Sé.
O intelectual italiano Antonio Gramsci definiu os caracteres e os limites dessa
organização leiga, procurando explicar o sentido e o significado do surgimento do movimento
católico, através de uma reflexão altamente elucidativa:
l’Azione Cattolica segna l’inizio di una epoca nuova nella storia della religione cattolica:
quando essa da concezione totalitaria ( nel duplice senso: che era una totale concezione
del mondo di una società nel suo totale), diventa parziale (anche nel duplice senso)…
l’Azione Cattolica rappresenta la reazione contro l’apostasia di intere masse, imponente,
cioè contro il superamento di massa della concezione religiosa del mondo. Non è più la
Chiesa che fissa il terreno e i mezzi della lotta; essa invece deve accettare il terreno
impostole dagli avversari o dall’indifferenza e servirsi di armi prese a prestito
dall’arsenale dei suoi avversari (l’organizzazione politica di massa).68
Frente aos problemas da apostasia das massas e das preocupações com o crescimento
do poder do Estado nacional, a Igreja precisava elaborar necessariamente uma nova estratégia,
o que se concretiza com a formação de um movimento de leigos de elite, absolutamente fiel
às determinações da Santa Sé e dos bispos. Pio XI confia ao seu exército, constituído pelos
leigos da AC e através dos seus grupos auxiliares, a tarefa de conter os excessos no âmbito da
67
Na encíclica Quadragesimo Anno (1931), o pontífice Pio XI propôs o modelo de corporação cristã, que se
distanciava ao mesmo tempo do individualismo liberal e do Estado totalitário. A ideia de Pio XI era de favorecer
os grupos intermediários, concebidos como organizações capazes de representar os interesses do homem nas
várias atividades econômicas.
68
“A Ação Católica marca o começo de uma nova época na história da Igreja e da religião católica: quando da
concepção totalitária (em duplo sentido: que foi uma concepção total do mundo de uma sociedade no seu total),
se torna parcial (também em duplo sentido)… A Ação Católica representa a reação contra a apostasia de massas
inteiras, imponentes, ou seja, contra a superação de massa da concepção religiosa do mundo. Não é mais a Igreja
que coloca o terreno e os meios de luta; a Igreja deve aceitar o terreno imposto pelos adversários ou pela
indiferença e se servir de armas tomadas de empréstimo do arsenal dos seus adversários (a organização política
de massa).” GRAMSCI, Antonio. Quaderni del carcere. Torino, Einaudi, 1975. v. 3, quaderni 12-29, p. 2086-
2087, tradução nossa.
43
política dos vários governos e assegurar uma presença disciplinada e controlada dos católicos
em todos os setores da vida pública.69
A AC italiana70 era divida em quatros ramos: os adultos, Unione Uomini e Unione
Donne; os jovens, Gioventù Italiana di Azione Cattolica (GIAC) e Gioventù Femminile (GF).
Ao lado desses grupos foram constituídos posteriormente alguns grupos especiais: a
Federazione Universitari Cattolici Italiani (FUCI), o Movimento Laureati e o Movimento
Maestri.
Após a Segunda Guerra Mundial, começa a ser debatida a possibilidade de abrir as
atividades da AC para um apostolado de ambiente alinhado à estrutura da AC especializada
da Bélgica e da França. No entanto, é importante lembrar que no ambiente dos operários, as
poucas tentativas feitas não rendem muitos resultados, por prevalecer uma linha nacional, que
privilegiava o centralismo, e também pelo fato de que o movimento especializado se
apresentava como alternativo às Associazioni Cristiane Lavoratori Italiani (ACLI), e aos
sindicatos de matriz cristã.71
No meio estudantil é preciso sinalizar que na arquidiocese de Milão existia também
um ramo da AC diocesana denominado Gioventù Studenti (GS), fundado em 1945 por
Giancarlo Brasca.72 O movimento de GS foi idealizado no intuito de desenvolver atividades
de apostolado nas escolas. Em relação ao mundo estudantil, a Igreja de Milão tinha um
69
Sobre o desenvolvimento e os efeitos da organização do movimento da Ação Católica no Brasil existe uma
rica e ampla bibliografia, dentre a qual podemos citar: SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. A JUC: os estudantes
católicos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984; SOUSA, 2002; MURARO, Valmir Francisco, Juventude
Operária Católica. São Paulo: Brasiliense, 1985; DALE, Frei Romeu O. P. A Ação Católica Brasileira. São
Paulo: Loyola: CEPEHIB, 1985; BEOZZO, José Oscar. Cristãos na universidade e na política: história da JUC
e da AP. Petrópolis: Vozes, 1984; ARANTES, Aldo; LIMA, Haroldo. História da Ação Popular da JUC ao PC
do B. São Paulo: Alfa-Omega, 1984; BANDEIRA, Marina. A Igreja Católica na virada da questão social (1930-
1964). Petrópolis: Vozes, 2000. Também os brasilianistas dedicaram amplo espaço à reconstrução dos processos
históricos relacionados à AC do Brasil: KADT, 1970; MAINWARING, 1989.
70
Ao mesmo tempo em que a Ação Católica se afirmava na Itália, nascia na Bélgica uma importante iniciativa
de apostolado religioso sob a denominação Jeunesse Ouvrière Catholique (JOC). Esse movimento nasceu pela
iniciativa de um sacerdote da Bélgica, filho de operários, de nome Joseph Cardijn, que, em 1921, por meio de
uma metodologia denominada “revisão de vida”, que se articulava em três momentos – ver, julgar, agir – havia
começado uma atividade pastoral com os jovens trabalhadores da sua paróquia. A JOC inicia, com sucesso, a
obra de apostolado no interior do ambiente social operário, levando em pouco tempo a AC da França e da
Bélgica a serem organizadas a partir da mesma metodologia, segundo uma forma particular e com específicas
referências sociológicas, que orientavam os leigos católicos a viver a experiência de militância no interior do
próprio ambiente social. Dessa maneira, era criada uma divisão em ramos especializados (estudantes, operários).
Portanto, tomava corpo um modelo de Ação Católica “especializada” que se diferenciava profundamente do
modelo italiano – que, sobre uma orientação “geral”, subdividia os militantes segundo o sexo e a faixa de idade.
71
GUASCO, 2005, p. 94. Cf. FORMIGONI; VECCHIO, 1989.
72
Giancarlo Brasca (1920-1979). A partir de 1945 trabalha ao lado do fundador da Universidade Católica de
Milão, o padre Agostino Gemelli (1878-1959). Brasca, a partir de 1958 até 1964, é presidente da AC de Milão.
44
73
Essas dinâmicas, relacionadas ao movimento católico no meio estudantil da cidade do Norte da Itália, podem
ser entendidas a partir da noção de “saída da religião”. M. Gauchet indica com essa expressão o processo
histórico através do qual a religião perdeu a sua capacidade de estruturar a sociedade e em particular maneira a
forma política dessa sociedade. Essa noção ajuda a entender um processo histórico através do qual a religião
mostra uma perda de força na sua capacidade de estruturar e moldar determinados segmentos da sociedade. Tais
questões precisam ser enquadradas no plano de um processo mais amplo que mostra como na sociedade moderna
o indivíduo adquire um maior grau de autonomia e consequente poder de escolha. Esse tipo de processo se
manifesta em uma forte preocupação por parte da Igreja Católica de perder a sua própria capacidade de
estruturar a sociedade nos seus diversos planos, tanto na esfera cultural (entendida por parte da Igreja como
formação doutrinal) quanto na dimensão política. Sobre a noção de “saída da religião”, ver GAUCHET, 1998
apud HERVIEU-LÉGER, 2003, p. 61.
74
Na evolução desse tipo de discurso, em favor de uma maior autonomia, é fundamental a influência da reflexão
teológica sobre a eclesiologia de Yves Congar. Ver GIBELLINI, Rosino. La Teologia del XX secolo. 6. ed.
Queriniana: Brescia, 2007.
75
GUASCO, 2005, p. 32. Cf. GARELLI, 2007, p. 14-15.
45
76
RICCARDI, Andrea. Da Giovanni XXIII a Paolo VI. In: ALBERIGO, Giuseppe; RICCARDI, Andrea (Org.).
Chiesa e papato nel mondo contemporaneo. Bari: Laterza, 1990. ver p. 173. Cf. BUONASORTE, Nicla. Tra
Roma e Lefebvre:il tradizionalismo cattolico italiano e il Concilio Vaticano II. Roma: Studium, 2003.
77
RICCARDI, 1990, p. 180.
78
ANTONIAZZI, Alberto. Paulo VI e o diálogo da Igreja com o mundo moderno. Atualização: Revista de
Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 19, n. 216, p. 561-573, dez./jan. 1988.
46
79
Luchino Visconti, no seu filme Rocco e i suoi Fratelli, faz um retrato particularmente evocativo desse
momento e dos problemas sociais dessa época na cidade de Milão.
47
Outras atividades pastorais eram realizadas a favor dos operários. E preciso dizer que,
nesse contexto e beneficiada por uma situação econômica favorável, essas experiências não
deixaram de ter resultados importantes.
A partir de 1956, logo após sua entrada nos ramos juvenis da Ação Católica de Milão,
Alberto Antoniazzi começava a participar dessas iniciativas, entrando em contato com os
assistentes eclesiásticos que coordenavam as atividades apostólicas e entrando em contato
com o assistente de GS Dom Luigi Giussani.80
A partir de 1957, Alberto Antoniazzi passa a assumir o cargo de redator de L’Azione
Giovanile, jornal quinzenal dos jovens da Ação Católica de Milão. A partir de 1958, após a
nomeação como assistente da GIAC de Luigi Olgiati, a organização tinha uma nova energia e
realizava iniciativas importantes como a produção do jornal L’Azione Giovanile. O jornal era
caracterizado por uma abertura a temáticas novas para aquela época, como o ecumenismo, as
relações entre pais e filhos, o papel da indústria cultural e o testemunho de figuras espirituais,
como Follerau Scutz e Merton. Além disso, era apresentada no jornal uma reflexão baseada
no método de origem francês “de revisão da vida”, “ver, julgar, agir”. Além disso, tinha uma
sensibilidade para o movimento litúrgico e o incremento da dimensão missionária.
O cargo assumido na redação do jornal da AC de Milão permite a Alberto Antoniazzi
estabelecer relações com os membros da hierarquia diocesana local. Esta função permite que
entre em contato com figuras como o monsenhor Montini. Esse encontro na vida de Alberto
Antoniazzi nos permite compreender a sua trajetória e o desenvolvimento de uma certa visão
de Igreja. O encontro com Montini será para Alberto Antoniazzi uma experiência indelével,
influenciando significativamente o seu pensamento e a sua ação. O novo arcebispo de Milão,
homem de uma profunda e refinada cultura, se tornará um ponto de referência constante para
80
Monsenhor Luigi Giovanni Giussani (Desio, 15 de outubro de 1922 – Milão, 22 fevereiro de 2005) sacerdote,
teólogo, filósofo italiano, famoso por ser o fundador do movimento Comunione e Liberazione (CL). Percebe
muito bem a situação italiana e funda, em 1969, em Milão, o movimento que, em pouco tempo, se tornará uma
grande realidade católica nacional, com mais de 120 mil inscritos, e sucessivamente internacional. Com uma
certa crítica coerente, CL identifica no liberalismo e no marxismo os problemas do abandono das práticas
religiosas em âmbito católico. CL critica tanto o católico “moderno” quanto o simpatizante do comunismo,
propondo um espírito de cruzada e reunido, em torno de uma seita, que mostra uma grande capacidade
organizativa combinada a uma severa disciplina interna. Principalmente com o pontificado de Karol Woytyla,
que aprova o movimento, CL começa a crescer, criando uma rede além do meio eclesial. Principalmente no meio
universitário consegue, gradativamente, uma presença importante, criando: restaurantes universitários, moradias,
centros de congressos, cooperativas universitárias de livros, editoras gerenciadas com seriedade, mas sempre
com vista a uma luta contra “o declínio do sagrado”. Cf. LANARO, 1992, p. 388-389. Ver também TURCHINI,
A. Populismo e antistatalismo in Comunione e Liberazione. in: LA POLÍTICA dell’ideologia. A cura di G.
Guizzardi. Padova: CLEUP, 1978. Também o sociólogo brasileiro Luiz Alberto Gómez de Souza, no seu estudo:
A JUC: os estudantes católicos e a política. Petrópolis: Vozes, 1984, dedica algumas páginas ao movimento de
CL.; CAMISASCA, 2001, p. 94.
48
E’ giunto il momento di prepararci più intensamente alla Missione. E’ ora che usciamo
dagli ambienti “nostri”, dalle ristrette cerchie di amici, dalle chiesuole d’ogni specie per
andare incontro ai nostri fratelli e portare a loro la parola di Dio. E’ Cristo stesso che ci
manda, per mezzo del suo Vescovo. […] Abbiamo di fronte fondamentalmente due
campi d’azione: quello parrocchiale innanzitutto e poi quello d’ambiente. Ogni
parrocchia deve preparare la predicazione con una opera di sensibilizzazione e di
avvicinamento […] Si tratta di accostarsi ai lontani, di parlare con loro della Missione:
di presentarne il significato, di ricordare che è un invito che Dio rivolge a tutti.81
81
“Chegou o momento de nos prepararmos mais intensamente para a Missão. É a hora em que saímos dos
ambientes ‘nossos’, dos círculos fechados de amizades, de qualquer tipo de igrejinhas, para ir ao encontro dos
nossos irmãos e levar a eles a palavra de Deus. É o próprio Jesus Cristo que nos envia, através do seu Bispo. […]
Temos à nossa frente fundamentalmente dois campos de ação: antes de tudo aquele da paróquia e depois o do
ambiente. Cada paróquia deve preparar a pregação através de uma obra de sensibilização e de aproximação […]
Significa se aproximar dos mais afastados, para falar com eles da Missão; de apresentar o significado, de lembrar
que é um convite que Deus envia a todos.” ANTONIAZZI, Alberto. Verso i nostri compagni. L’Azione
Giovanile, Milano, anno 49, n. 27, p. 1, 22 sett. 1957, tradução nossa.
82
FORMIGONI; VECCHIO, 1989, p. 126.
83
CAMISASCA, 2001, p. 17.
49
sentido missionário, além da subestimação dos perigos de uma mentalidade desse ambiente.
Segundo Giussani, o problema dos movimentos da diocese estava no método pastoral que,
segundo ele, era uma das causas principais da perda da Igreja com as massas de jovens. É
importante sinalizar que começa uma relação de trocas e colaboração da GIAC com GS. De
qualquer forma, é preciso dizer que o projeto de Montini visava apoiar a AC em todas as suas
iniciativas como um instrumento que pudesse regenerar a comunidade cristã de Milão em
vista do concílio que ainda havia de acontecer.
Por sua parte, os leigos, principalmente os jovens da AC, eram estimulados a
participar a todas as ações das paróquias voltadas para as iniciativas missionárias. Semanas de
estudos e jornadas missionárias eram organizadas para atrair os interesse dos mais jovens e
estimular as vocações. Essa postura do grupo diocesano se enquadra em uma linha geral
adotada pela Igreja italiana diante do problema da crise de vocações sacerdotais, que era
aceita e colocada em prática pelas diversas congregações missionárias que estimulavam as
jornadas missionárias nas paróquias e que podem ser vistas, além de um incentivo em direção
aos fiéis para maturar uma consciência missionária, como uma forma para atrair os mais
jovens e incentivar possíveis futuras vocações. Nessa perspectiva, podem ser compreendidas
as diversas iniciativas como jornadas missionárias, experiências em missões por períodos
mais ou menos prolongados. Essa era uma forma que a Igreja tinha elaborado para se atualizar
e ficar mais atenta às novas mudanças, sensibilidades e orientações das comunidades.84
Giussani adotara gradativamente, no final dos anos 1950, nas suas iniciativas
apostólicas, a ideia de missão como reflexão (como discussão teológica) e como prática
(como experiência e testemunho direto de evangelização), concebida como uma tentativa de
ação pastoral para estimular as vocações sacerdotais e atrair os jovens estudantes da cidade
afastados da Igreja.
Por outro lado, é preciso considerar que as iniciativas relacionadas com a ideia de
missão haviam recebido impulsos fortes principalmente após a proclamação da encíclica
Fidei Donum, no dia 21 de abril de 1957. Com essa encíclica, o pontífice Pio XII estimulava
uma mensagem em favor do empenho nas atividades de missão. Diversas dioceses italianas
logo se mostravam abertas a um empenho de cooperação nas atividades de evangelização em
outras partes do mundo. A encíclica abrirá novos horizontes missionários, estimulando os
84
GUASCO, 2005, p. 44.
50
L’enciclica “Fidei Donum” ha aperto alle singole diocesi le vie delle missioni; gia
alcuni diocesi italiane ed estere sono in cammino; quella di Milano, con le sorelle di
Lodi e Crema, vuole essere anch’essa nella gara apostolica fra le prime oggi, fra le più
generose domani.86
Outros elementos que mostram nesse período um forte interesse pelo tema da missão
são revelados também pelo periódico L’Azione Giovanile, que dava amplos espaços a um
aprofundamento de diversas temáticas relacionadas com as atividades missionárias.
Indicações de leituras, cursos de orientação com responsáveis das várias congregações
85
Para um aprofundamento das influências das atividades missionárias sobre o panorama do catolicismo
italiano, ver: GUASCO, 2005, p. 43. Cf. GUASCO, Maurílio. La formazione del clero. Milano: Jaka Book,
2002, p. 75. A postura de cooperação missionária da Igreja e dos católicos na Itália se estabelece e se desenvolve
com critérios diferentes a respeito de outros países europeus, principalmente se comparada a outros países com
tradições de impérios coloniais. No século XIX, a presença missionária havia sido estimulada principalmente nas
áreas de forte emigração para procurar garantir aos emigrantes italianos uma forma de assistência religiosa que,
ao mesmo tempo, pudesse ajudar na adaptação às novas terras e na preservação das tradições no âmbito da fé e
das práticas religiosas. Na metade do século XIX nasce na Itália uma série de instituições religiosas voltadas
para o trabalho missionário. Em 1850 nasceu em Milão o Istituto delle Missioni Estere e em Roma, o Pontifício
Seminario dei SS. Apostoli Pietro e Paolo: a fusão das duas instituições levara ao surgimento, em 1926, do
Pontifício Istituto Missioni Estere (PIME). No curso do século XX, o número de religiosos engajados em
trabalho de missão tende a aumentar. Entre as congregações mais engajadas destacam-se os salesianos e as
salesianas, os franciscanos e os combonianos, etc.
86
“A encíclica ‘Fidei Donum’ abriu a cada diocese o caminho das missões; já algumas dioceses italianas e
estrangeiras estão nesse caminho; a de Milão, juntamente com as irmãs de Lodi e Crema, quer também estar na
disputa apostólica entre as primeiras hoje, entre as mais generosas amanhã.” MONTINI, Giovan Battista.
Giornata Missionaria Mondiale. L’Azione Giovanile, Milano, anno 52, n. 4. p. 8, 1960, tradução nossa.
51
Antoniazzi escreve nesse período artigos que tratam das missões e das Igrejas locais
dos países do Terceiro Mundo. Um artigo sobre a Igreja Católica na África fornece
informações gerais sobre as políticas dos países do Terceiro Mundo, os processos de
independência e, sobretudo, apoiando-se sobre uma série de dados estatísticos, apresenta um
panorama geral da presença do catolicismo no continente africano. Podemos perceber como já
começa a maturar, nesse momento, em Alberto Antoniazzi, aquele interesse por uma
indagação sociológica, principalmente pelas questões do catolicismo relacionadas com as
dinâmicas dos contextos culturais locais. É importante assinalar que essas análises são
orientadas dentro de uma linha de “sociologia católica” voltada para uma perspectiva de
evangelização que ainda encara como problema a concorrência dos adversários do
catolicismo:
Gli ostacoli che vi si frappongono sono ad esempio l’islamismo che rende difficile la
penetrazione negli ambienti in cui si è insediato, oppure i movimenti profético -
salvifici, che tanta fortuna incontrano nell’Africa nera (dando origine talvolta a delle
Chiese separate dalla Chiesa cattolica) e sembrano nascere proprio dallo scontro della
primitiva civiltà africana con la civiltà occidentale, oppure ancora il comunismo, che
comincia qua e la a infiltrarsi, e rappresenta invece il tentativo di imporre una visione
materialistica della vita che la civiltà africana non conosceva. E poi ci sono i problemi
che nascono dalle trasformazioni culturali, sociali ed economiche dell’Africa di oggi:
tanto che fenomeni assolutamente sconosciuti fino a pochi anni fa dall’Africa, come ad
esempio l’urbanizzazione o l’industrializzazione, stanno assumendo una importanza
nuova.87
87
“Os obstáculos que se apresentam são, por exemplo, o islamismo, que dificulta a penetração nos ambientes no
qual se inseriu, ou, ao invés, os movimentos profético e de salvação, que encontram muito sucesso na África
Negra (originando talvez Igrejas separadas da Igreja Católica) e parecem nascer justamente do choque entre
civilização primitiva africana e civilização ocidental, ou, ao invés ainda, o comunismo, que começa a se infiltrar
aqui e acolá e, em contrapartida, representa uma tentativa de imposição de uma visão materialista da vida que a
civilização africana não conhecia. E depois há ainda os problemas que nascem das transformações culturais,
sociais e econômicas da África de hoje: fenômenos absolutamente desconhecidos até poucos anos atrás na
África, como por exemplo a urbanização ou a industrialização, assumem uma nova importância.”
ANTONIAZZI, Alberto. La Chiesa e l’Africa. L’Azione Giovanile, Milano, anno 52, n. 4, p. 9, 1960, tradução
nossa.
52
Essas representações sobre realidades tão distantes nos aspectos sociais e históricos e a
profunda diferença, na dimensão cultural do contexto italiano e do seu catolicismo, precisam
ser consideradas dentro daquele forte interesse e sensibilidade com o qual muitos jovens do
mundo cultural ocidental olhavam para o Terceiro Mundo. São os jovens e, de forma
específica principalmente os estudantes, que resultavam particularmente sensíveis aos apelos
dos discursos em favor dos países do “Sul do mundo” e mais ou menos influenciados pelos
apelos das tendências terceiro-mundistas.
I quadri sociali devono essere riempiti e si attende molto dalla gioventù. Gli studenti
sono una forza che appassiona l’opinione pubblica. Basta vedere l’eco di una riunione di
studenti in Africa o la parte che gli studenti hanno sostenuto nella democratizzazione di
Colombia, Venezuela e Cuba (dove c’era perfino un esercito di studenti durante la
rivoluzione).88
88
“Os quadros sociais devem ser preenchidos, e se espera muito da juventude. Os estudantes são uma força que
apaixona a opinião pública. Basta ver o eco de uma reunião de estudantes na África ou o papel que os estudantes
desempenharam na democratização da Colômbia, Venezuela e Cuba (onde havia até mesmo um exército de
estudantes da revolução).” SOUZA, Luiz Alberto Gómez de. La Gioventù Europea e la realtà internazionale.
L’Azione Giovanile, Milano, anno 52, n. 6, p. 9, 1960, tradução nossa.
53
89
Aristide Pirovano, ordenado sacerdote pelo PIME, em Milão, em 1941. Parte para o Brasil em 1946 e em 1948
funda a missão de Macapá. A partir de 1955 se torna bispo de Macapá até 1965. Faleceu na Itália em 1997.
90
Marcello Candia (1916-1983) foi um empresário e missionário italiano. Conseguiu se formar em três
disciplinas: química, farmácia e biologia e, após uma atividade de industrial em Milão, vendeu as suas empresas,
que lideravam o setor da produção de gás, para construir um hospital na cidade de Macapá e começar a
desenvolver uma atividade de caridade e missionária que o levou a fundar: hospitais, centros para assistência da
lepra, conventos, escolas e várias cidades do Brasil. A partir de 1991, o Vaticano começou o seu processo de
beatificação. Cf. GHEDDO, Piero. Marcello dei lebbrosi. Novara: Editoriale Nuova, 1984; CANDIA, Marcello.
Lettere dall’Amazonia. A cura di P. Gheddo. Milano, 1997; TORELLI, Giorgio. Da ricco che era: la frontiera
del dottor Candia sul Rio delle Amazzoni. Bologna: EMI, 1992.
91
CAMISASCA, 2001, p. 197, tradução nossa.
54
uma grande cidade fosse mais adequado para aplicar a sua reflexão teológica e onde pudesse
realizar com mais resultados os seus projetos de evangelização.
Por essa série de razões, com o apoio de Giussani, em 1961, durante o período que vai
de 16 a 23 de julho, três moças e três rapazes da GS e da GIAC de Milão participam do
encontro da União dos Estudantes Católicos (UEC) de Belo Horizonte. Entre esses jovens
estava também Alberto Antoniazzi, na qualidade de presidente do jornal L’Azione Giovanile.
Nessa visita, ele teve a oportunidade de conhecer rapidamente a capital mineira e a cidade do
Rio de Janeiro.92
Um contato com a realidade estudantil da capital mineira foi possibilitada por Marco
Aurélio Velloso, líder da UEC de Belo Horizonte, que tinha visitado a Itália em 1961.93 É
dessa maneira que se estabelece um intercâmbio sistemático entre os jovens da Ação Católica
de Milão, principalmente através dos membros da GS, e o Brasil.
Nessa perspectiva de militância dos jovens leigos italianos era dada a oportunidade de
realizar uma particular experiência, que unia, ao lado de uma forte dimensão religiosa, uma
importante ação de voluntariado em âmbito social.
Por outro lado, é preciso lembrar que essas iniciativas logo mostravam os limites e as
fraquezas de um jovem e pequeno movimento, que por causa de uma concepção um pouco
ingênua, unida também a pouca experiência e uma total falta de conhecimento real dos
problemas e da situação social do Brasil naquela época, acabou se enfraquecendo. Nessas
circunstâncias, a maioria dos jovens, por dificuldades de adaptação, divergências nas visões
de mundo e da concepção de Igreja, e por uma série de outras razões, percorreram caminhos
que em pouco tempo os levaram a se distanciar do movimento e também da figura de Padre
Giussani.94
Anos mais tarde, o próprio Antoniazzi reconsiderará com certa ironia a postura
bastante ingênua desse movimento. Segundo a sua opinião, a esse grupo de leigos faltava, na
verdade, uma preparação adequada e uma efetiva consciência da real proporção do tamanho
dos problemas sociais. Ele evoca essa fase da sua trajetória dizendo:
92
ANTONIAZZI, 2005, p. 158. Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Gli stessi problemi a 10.000 chilometri da casa.
L’Azione Giovanile, Milano, anno 53, n. 18, p. 3, 20 sett. 1961a; ANTONIAZZI, Alberto. I giovani brasiliani
vanno verso il comunismo. L’Azione Giovanile, Milano, anno 53, n. 18, p. 5, 20 sett. 1961b.
93
Cf. Carta de Marco Aurelio Fernadez Velloso de Belo Horizonte, destinatário Alberto Antoniazzi, 13 nov.
1961. Archivio dell’Azione Cattolica della Diocesi di Milano, Armadio 17, G.I.A.C, Ripiano A, Corrispondenza
Antoniazzi, 2 p.
94
Ver capítulo “Missione: Il Brasile” em CAMISASCA, 2001, p. 194.
55
Hoje eu olho esse entusiasmo meio ingênuo com um sorriso, ou talvez com um pouco
de ironia a idéia que se pudesse transformar o mundo. Na verdade, o mundo é muito
mais complexo do que imaginava um movimento de jovens católicos, bastante isolado
no conjunto da sociedade.95
95
ANTONIAZZI, 2005, p. 155.
96
Sandro Antoniazzi (entrevista ao autor, Milão, 23 jan. 2007).
56
defendeu sua tese de doutorado sobre o tema: “A experiência de São João da Cruz.
Contribuição para uma fenomenologia da existência”. Porém, as oportunidades de
aprofundamento da própria fé e do estudo da teologia, permanecendo no laicato, não eram
muitas. Como ele mesmo afirma, “a decisão de entrar para o seminário foi uma possibilidade
de continuar as atividades na Ação Católica”.97
Além das memórias do próprio Alberto Antoniazzi, uma outra possibilidade para
compreender e entender a escolha de entrar para o sacerdócio no percurso pode ser proposta
através de uma leitura dessa trajetória de vida a partir da ideia de viagem.
Como assinala Marcelo Timotheo, a ideia de viagem é também um dos temas centrais
na história do cristianismo.98 Na trajetória de Alberto Antoniazzi a ideia de viagem pode ser
entendida como imagem, que através da escolha de seguir a vocação sacerdotal, representa
um percurso identificável com a metáfora escatológica de encontro com Deus.
Outra possível leitura da ideia de viagem, no percurso de vida de Alberto Antoniazzi,
pode ser interpretada como “acontecimento” crucial, ou como “experiência” marcante. Nessa
chave de leitura a viagem de Antoniazzi ao Brasil se torna também uma oportunidade de
descoberta e de encontro com uma outra realidade de Igreja e de catolicismo com as suas
marcas culturais, que exercitaram influxos profundos na dimensão individual do jovem
católico milanês.
A segunda visita ao Brasil é oportunidade de conhecer um pouco mais sobre o país e,
principalmente, a possibilidade de conhecer cristãos que escolheram viver uma profunda
experiência missionária. Alberto Antoniazzi, além de participar do congresso da JOC em
Petrópolis, viaja por vários lugares do Brasil. Conhece Macapá e a realidade daquela região.
Nessa oportunidade, encontra os sacerdotes do PIME e o bispo italiano Dom Aristide
Pirovano. Chamam a atenção de Antoniazzi as grandes dificuldades que esses religiosos
enfrentam para realizar as atividades missionárias:
L’attività dei missionari non si limita a Macapà […] ma si estende anche a i “Caboclos”
ed ai “seringueros” dell’interno. Ogni tanto uno o due missionari partono in barca,
viaggiano per giorni e giorni soli o con una guida, dormono la notte sulla riva del fiume,
durante la giornata spesso – per superare una rapida – sono costretti a scendere
dall’imbarcazione ed a trascinarla per un tratto di terra, nel fango e per sentierini scavati
nella foresta. La fatica, la solitudine, la paura le punture degli insetti e le malattie che ne
97
ANTONIAZZI, 2005, p. 157.
98
Essa interpretação é proposta pelo historiador Marcelo Timotheo, que adota a ideia de viagem para representar
e compreender a trajetória do intelectual católico Alceu Amoroso Lima. COSTA, 2006.
57
Em Belo Horizonte, tinha encontrado Dom Serafim Pontes e o Bispo Dom João
Resende Costa, e ambos deixaram claro que aceitariam seminaristas de qualquer parte
do mundo, porque na época, salvo engano, a arquidiocese só tinha dez seminaristas,
incluindo um holandês.100
Como é possível interpretar por meio dessas palavras, o fato de que a arquidiocese
mineira contava com poucas vocações naquele momento, e a cidade estava conhecendo um
grande crescimento urbano, tiveram certa importância na escolha de Antoniazzi de se mudar
para Belo Horizonte.
De volta à Itália, todavia, essas razões não eram suficientes para explicar a ideia de se
mudar para o Brasil. Perplexidade e dúvidas eram advertidas por parte dos membros do
movimento católico e pelas autoridades diocesanas de Milão, que não hesitaram em
manifestar os seus pareceres contrários.101
Pouco antes da sua partida para Belo Horizonte, em 1963, Antoniazzi explica as
razões da sua escolha. Em um artigo publicado no periódico L’Azione Giovanile, invocando a
ideia de missão, afirma que a influência das experiências maturadas por “un certo movimento
99
“A atividade dos missionários não se limita à Macapá […] mas se estende também aos caboclos e aos
seringueiros do interior. De vez em quando um ou dois missionários partem com um barco, e viajam por vários
dias em solidão ou eventualmente com um guia, e dormem à noite na margem do rio e, ao longo do dia,
frequentemente – para superar a correnteza – precisam empurrar o barco na terra, na lama e por caminhos na
floresta. O cansaço, a solidão, o medo, as picadas dos insetos e as doenças são escassamente pagos por uma
beleza natural que ninguém conhece.” ANTONIAZZI, Alberto. Macapà ingresso alla favolosa Amazzonia.
L’Azione Giovanile, Milano, anno 54, n. 4, p. 12, 15 febbr. 1962, tradução nossa.
100
ANTONIAZZI, 2005, p. 159.
101
Sandro Antoniazzi lembra que as autoridades diocesanas de Milão, o próprio arcebispo, inclusive, não
estimularam, mas, pelo contrário, tentaram dissuadir Alberto Antoniazzi da sua escolha de se mudar para o
Brasil (entrevista ao autor, Milão, 23 jan. 2007).
58
missionario di giovani fatto solo di giovani”102 contribuíram como uma das razões principais
da sua opção de se mudar para o Brasil.
Mesmo que ainda não apareça de forma clara e projetada, esse depoimento nos leva a
crer que o que anima essa decisão de Antoniazzi é um desejo de realizar um trabalho pastoral
a partir de uma ideia de missão.
Antoniazzi fazia referência à encíclica de Pio XII, Fidei Donum, explicando que na
decisão de se mudar para o Brasil “não pensou na sua diocese e no seu país, mas na Igreja
Universal.” Nessas palavras, Antoniazzi exprime uma concepção de Igreja que, através de
uma perspectiva de abertura a toda a humanidade e toda a história pretende realizar as
iniciativas de evangelização em uma perspectiva renovada.
Na maturação e na consolidação dessa convicção, baseada na perspectiva de Igreja
“missionária”, é preciso considerar também as influências do clima de debate e de
expectativas que os católicos viviam naqueles anos frente ao início dos trabalhos do Concílio
Vaticano II (1962-1965).
Somos levados a pensar que ao fortalecer essas convicções, muita importância haviam
tido as experiências e o percurso maturado no movimento de AC diocesana. Além desses
pontos mencionados, podemos avançar na hipótese de que na escolha de se mudar para o
Brasil contribuiu certo desgaste de entusiasmo e os poucos estímulos provocados por um
“catolicismo cansado” como o italiano.
Pelas razões acima mencionadas, acreditamos que Antoniazzi é mais voltado a dedicar
as suas atividades de trabalho pastoral para onde havia mais necessidade de energias em favor
das iniciativas de apostolado da Igreja. O depoimento se conclui com um post-scriptum no
qual Antoniazzi diz:
Vado soltanto a Belo Horizonte una città di circa 800.000 abitanti, con più grattacieli di
Milano, con un clima buono. Ci sono pero meno preti di qui, l’Azione Cattolica ha una
esperienza molto più breve, i problemi educativi e sociali sono molto più grandi.
Insomma, c’è qualche possibilità di lavoro in più.103
102
“Um certo movimento missionário de jovens feito somente de jovens”, tradução nossa. INTERVISTA:
Alberto Antoniazzi parte per il Brasile. L’Azione Giovanile, Milano, anno 55, n. 1, p. 5, 20 genn. 1963; LA
CHIESA in prima linea contro il razzismo, il colonialismo e la miseria. L’Azione Giovanile, Milano, anno 55, n.
1, p. 9, 20 genn. 1963.
103
“Estou indo apenas a Belo Horizonte, uma cidade de cerca de 800.000 habitantes, com mais prédios que
Milão e com um clima agradável. Possui, pelo contrário, menos padres que aqui (na Itália) e a Ação Católica tem
uma experiência mais jovem, e os problemas educativos e sociais são maiores. Enfim, possui mais possibilidades
de trabalho.” INTERVISTA: Alberto Antoniazzi parte per il Brasile, 1963, p. 2, tradução nossa.
59
categoria social definida por seu papel ideológico: eles são os produtores diretos da
esfera ideológica, os criadores de produtos ideológicos culturais, […] escritores, artistas,
poetas, filósofos, sábios, pesquisadores, publicistas, teólogos, certos tipos de jornalistas,
certos tipos de professores e estudantes, etc.106
É importante lembrar que existe um desejo de ativa participação por parte de vários
setores da sociedade, decididos a se engajar no processo de transformação da sociedade.
Podemos incluir nesse ambiente da intelectualidade alguns setores mais avançados da Igreja
Católica, como grupos de leigos, padres e bispos.
Em 31 de março de 1964 terminava a experiência democrática brasileira. Segundo o
cientista político Dreifuss, o golpe não fora um simples putsch militar, mas o resultado de
104
CAMISASCA, 2001, p. 198.
105
RIDENTI, Marcelo. Cultura e política: os anos 1960-1970 e sua herança. In: DELGADO, Lucília de Almeida
Neves; FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil republicano: o tempo da ditadura – regime militar e movimentos
sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
106
LÖWY, Michael. Para uma sociologia dos intelectuais revolucionários. São Paulo: Ciências Humanas, 1979,
p. 1.
60
uma campanha política, ideológica e militar tramada pela elite orgânica, composta pelos
setores que fazem parte do complexo IPES/IBAD.107
Os grupos internos da Igreja Católica, de modo particular os setores conservadores,
preocupados com a ameaça do comunismo, que era considerado um fenômeno de
desintegração e desordem social, se aliaram às forças que sustentaram o golpe.108 A Igreja
Católica e a sua cúpula institucional, organizados na CNBB, claramente tomavam partido das
posições conservadoras. A hierarquia apoiava a intervenção militar.
Em um manifesto de 26 de maio de 1964, um grupo influente de bispos elogiava o
golpe por ter afastado a ameaça de um “regime bolchevista” no Brasil.109 Mas é importante
observar, como bem pondera Daniel Aarão Reis, que não se pode dizer que a Igreja Católica
como um todo derivou para uma posição de direita.110
Nesse contexto, percebe-se dentro da Igreja Católica brasileira uma cisão. Enquanto
uma parte do clero e do laicato ainda continuava a apoiar o golpe militar de 1964 e a rejeitar
propostas de mudanças estruturais na sociedade brasileira, fundamentando-se ainda no
tradicional discurso da Igreja ultramontana,111 uma outra parte não só se opunha ao Estado
brasileiro militarizado e autoritário, mas lutava por reformas que levassem o país a adotar
soluções de tendências socialistas.
Depois de 31 de março de 1964, a estrutura da CNBB, que nos últimos anos havia
seguido um caminho que estabelecia uma divisão no interior da própria hierarquia, passando a
marginalizar os seus setores mais conservadores, sofria alterações significativas. Um grupo de
bispos, que até aquele momento havia ocupado posições de direção da entidade nacional,
promovendo uma renovação da sua ação pastoral na sociedade,112 é substituído por um grupo
de bispos conservadores contrários às medidas em favor das políticas de reformas de base na
sociedade.
107
DREIFUSS, René Armand. 1964: a conquista do Estado. Petrópolis: Vozes, 1981.
108
MAINWARING, 1989.
109
SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo 1964-1985. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
110
REIS, Daniel Aarão. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In: RIDENTI, Marcelo; SÁ
MOTTA, Rodrigo (Org.). O golpe e a ditadura militar 40 anos depois (1964-2004). São Paulo: Edusc, 2004. p.
37.
111
Perspectiva pela qual a Igreja devia ser compreendida como uma sociedade hierarquizada e autônoma, sob a
chefia direta do Pontífice Romano. Ver AZZI, Riolando. O Estado leigo e projeto ultramontano. São Paulo:
Paulus, 1994.
112
MAINWARING, op. cit.
61
-----------------------------------------------------------------------------------------------------------------
115
O manifesto foi assinado também por padre Alberto Antoniazzi, ver ANTONIAZZI, 2005, p. 162.
116
Raimundo Caramuru de Barros, ex-padre, foi assessor da CNBB nos anos 1960 e é autor de várias obras
sobre a Igreja.
63
Conhecemos um número imenso de padres, religiosos e leigos que sentem que ficaram
ou estão ficando para trás. Que as idéias que circulam na Igreja não chegam até eles.
Ou, quando chegam, vêm imprecisas, deformadas por críticos severos e parciais ou por
adeptos benignos e superficiais. Eles querem ser informados, eles têm direito de ser
informados com honestidade, objetiva e equilibradamente. Numa linguagem a seu
alcance, sem tecnicismos exagerados. Por pessoas competentes, especializadas, mas que
tenham a coragem rara de fazer divulgação sem mediocrizar. Por homens que estão
numa linha de abertura com o novo, o atual, sem medo de abrir caminhos, mas sem
aventureismo, sem cultuar o novo pelo novo; que saibam reconhecer, com o tato dos
117
BEOZZO, 2001, f. 36.
65
que vivem a Igreja, o que é atualização em termo de evangelho; que atualizem por uma
autêntica volta às fontes […] Não por uma regressão cronológica ao arcaico, ao
culturalmente primitivo, pois a evolução das culturas é irreversível.118
118
ANTONIAZZI, Alberto; RANGEL, Paschoal. Editorial. Atualização: Revista de Divulgação Teológica para
o Cristão de Hoje. Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 1-3, dez.1969.
119
RICCARDI, Andrea. In: ALBERIGO, Giuseppe. Storia del Concílio Vaticano II: la formazione della
coscienza conciliare ottobre 1962 – settembre 1963. Bologna: Il Mulino, 1996. p. ver p. 35. A expressão
aggiornamento entra na linguagem oficial do Concílio Vaticano II à luz da vontade de afirmação de uma visão e
de uma perspectiva eclesial não pessimista da realidade, tanto ad intra, para as coisas da Igreja, quanto ad extra,
para as coisas do mundo. Segundo o historiador Andrea Riccardi, o sentido desse termo revela a postura do papa
João XXIII, que procurava tomar distância de uma leitura negativa e catastrófica da situação da Igreja e do
mundo naquele momento. Podemos ver essa ideia de aggiornamento como uma atitude identificável com o
pensamento do papa, que se traduz numa maneira através da qual a Igreja Católica deveria se manifestar em
relação à situação religiosa, social, cultural e política daquela época. Segundo essa visão, a ideia de
aggiornamento indicava uma direção para efetuar uma superação daquela perspectiva cultural do suspeito e do
medo presente na Igreja. Em outros termos, aggiornamento significava, para a Igreja Católica, sair de um
isolamento em direção a um diálogo com o mundo. O aggiornamento pode também ser alinhado no plano de
outra expressão italiana: balzo in avanti da Igreja no mundo. Nesse caso, se entende um avanço, uma atitude em
favor de uma penetração nos Evangelhos também do ponto de vista missionário. Portanto, não somente uma
diretiva de ação no mundo, mas também uma reflexão mais aprofundada da Igreja sobre revelação. E, como
lembra Riccardi, esse seria um aspecto importante porque revela o método adotado pelos padres conciliares
através de uma atividade projetada em direção ao centro da mensagem cristã e, ao mesmo tempo, os empurra em
favor de uma representação em forma aggiornata.
66
120
Ver SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo 1930-1964. Rio de Janeiro: Paz Terra, 1982. Cf.
LEVINE, Robert M. Pai dos pobres?: o Brasil e a Era Vargas. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 119.
Cf. D’ARAUJO, Maria Celina Soares. O segundo governo Vargas 1951-1954: democracia, partidos e crise
política. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
121
Para uma explicação do conceito de “civilização paroquial”, remetemos à Introdução desta dissertação.
122
Pierucci define dessa maneira a produção de um grupo de quadros técnicos e intelectuais de uma ala
modernizante da Igreja Católica do Brasil. Entre estes, ele faz referência ao frei dominicano Francisco Cartaxo
Rolim e outros sacerdotes com uma preparação nas ciências sociais, como Gustavo Perez, Alfonso Gregory e
François Lepargneur. Esses sociólogos se inspiravam, na década de 1960, em um tipo de pesquisa sociorreligiosa
bastante forte em Louvanio, e que tinha como principal referência o padre Houtart. PIERUCCI, 1999.
123
MAINWARING, 1989, p. 66.
67
124
É através dessa atitude, definida com um modelo chamado de “neocristandade”, que a Igreja procurou
revitalizar sua presença dentro da sociedade. Como explica Scott Mainwaring, o modelo da neocristandade “era
uma forma de se lidar com a fragilidade da instituição sem modificar de maneira significativa a natureza
conservadora da mesma”. Ibidem. p. 69.
125
Sobre as discussões e as razões, que levaram a hierarquia da Igreja do Brasil a elaborar um planejamento
pastoral ver BEOZZO, 2001, f. 239.
126
PIERUCCI, 1999.
68
Devo nessa altura dizer, com franqueza, mas também com certa tranqüilidade: os
mineiros têm uma certa tendência à valorizar quem vem de fora, mas também é uma
forma de eles ficarem mais atrás e ver se vai dar certo, se der tudo bem, se não,
paciência. E aí queimar alguém que não era de Minas Gerais, como eu, não tinha
problema. Então eu fui um pouco usado para fazer o papel do teólogo meio progressista
que acompanha os Bispos de Minas Gerais que não eram muito progressistas.127
127
ANTONIAZZI, 2005, p. 163.
69
Crise da estrutura paroquial, clero em debandada: eis o quadro que curiosamente, mas
compreensivelmente, acabou propiciando a emergência e constituição de uma postura
favorável à pesquisa sociológica entre os novos “planejadores” católicos. […] Eu diria
que a sociologia da religião em seu primeiro desenvolvimento no Brasil é
majoritariamente sociologia do catolicismo, não porque o catolicismo seja a religião
majoritária, mas porque nesse momento suas elites têm necessidade pastoral da
sociologia. […] E assim ocorreu porque o catolicismo, tomado como objeto central de
128
Para uma descrição do clima vivenciado no seminário de Belo Horizonte, ver ANTONIAZZI, Alberto, 2002.
129
Um estudo muito aprofundado, realizado pelo historiador norte-americano Kenneth P. Serbin, analisa a
história dos padres e seminaristas do Brasil em relação à questão do celibato. Nesse estudo, Serbin aponta os
problemas dos sacerdotes inerentes à sexualidade, explicando como as atividades, heterossexuais e também
homossexuais, foram bastante comuns ao longo do século XX. Mas, segundo o historiador, medir realmente a
atividade sexual dos padres no Brasil resulta numa operação particularmente difícil, por via do próprio sistema
da Igreja brasileira, baseado sobre uma ética tridentina que, no curso da sua história, fora empurrada para a
clandestinidade. Por outro lado, também as dificuldades de uma avaliação um pouco mais clara se dão por
motivo da postura assumida pela própria hierarquia da Igreja do Brasil, que se opunha ao conhecimento da vida
sexual dos padres. É também preciso lembrar que, na década de 1960, a própria hierarquia da Igreja se opunha às
pesquisas que abordassem diretamente a questão do celibato. De qualquer forma, é importante considerar,
referente a esse ponto, que a escassez de pesquisas que abordem a dimensão da sexualidade e das suas práticas se
deve ao fato de esse ser um assunto que sempre foi considerado tabu, principalmente pela Igreja, mas também
pela sociedade, que lida com essa dimensão sempre com certa dificuldade. Ver SERBIN, 2008 p. 177.
70
interesse dos sociólogos da religião, nesse movimento de se fazer objeto dos esforços e
das estatísticas dos sociólogos, descobria-se como um objeto em corrosão numa
sociedade em processo irreversível de modernização social e cultural, inescapavelmente
enredada num macro processo de secularização.130
130
PIERUCCI, 1999, p. 257.
131
ANTONIAZZI, Alberto. Como tirar palhas dos olhos dos outros (e através dos nossos): contribuição ao
debate sobre os presbíteros. Atualização: Revista de Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo
Horizonte, ano 1, n. 7, p. 17-24, jun. 1970.
71
dimensão de escolha dramática já pela maneira rígida com a qual “silenciosamente” essa
opção é considerada e recebida por parte da hierarquia eclesiástica.
Ao invés do silêncio, Alberto Antoniazzi adota uma postura favorável a discutir e a
debater essa questão. Por outro lado, podemos interpretar essa tomada de consciência e de
abertura ao debate de um problema real, presente na Igreja Católica do Brasil, como uma
adesão a uma postura que se coloca em direção das mudanças relacionadas com a realidade
cultural contemporânea daquele período.132 É possível pensar, também, na leitura do texto
como uma mensagem a favor do diálogo e da abertura, ao invés da negação de uma
experiência possível no interior da Igreja.
Podemos advertir, após uma análise dos processos históricos referentes ao catolicismo
brasileiro, como é possível identificar, com frequência, posições favoráveis a um apagamento
dos conflitos, através da adoção de soluções “disciplinadoras” e medidas autoritárias, voltadas
para a negação das tensões. Interpretações particularmente emblemáticas e representativas
dessa linha de ação podem ser vistas em figuras como Dom Vicente Scherer, que fechara a
JUC,133 e, como foi mostrado por Serbin, em toda uma série de iniciativas realizadas nos
seminários brasileiros.134
De fato, a postura de condenação dos conflitos inviabilizava um possível caminho em
direção à atualização da Igreja do Brasil e mostrava uma visão unívoca pelos problemas de
ação que a Igreja devia enfrentar.
Antoniazzi, na sua reflexão, coloca esse tipo de postura como uma grande dificuldade
pela ação da Igreja. Segundo ele isso seria o sinal evidente de um persistente modelo de
referencia cultural anacrônico, ligado a formas e modelos eclesiológicos e culturais de outras
épocas.
Segundo Antoniazzi, essa visão única de modelos de Igreja (entendida como Igreja
família, ou Igreja acima das classes sociais) se colocaria como um novo obstáculo à ação
pastoral.
132
Vários são os casos de sacerdotes que nessa fase da história decidem abandonar o sacerdócio. Diversas razões
poderiam ser colocadas a respeito dessa dinâmica. No entanto, no caso brasileiro especificamente, existem vários
casos de abandono relacionado também com a conjuntura política de regime militar. Mas se concentrar nesse
ponto não explicaria esse tipo de dinâmica relacionada com outros elementos no plano das mudanças da
sociedade, além de todas as variáveis de tipo subjetivo relacionadas com o espaço de possibilidades referentes ao
indivíduo.
133
Cf. SOUZA, 1984; BEOZZO, 1984.
134
SERBIN, 2008, p. 237.
72
135
Lumen Gentium: constituição conciliar sobre a Igreja, que define a própria instituição com a noção de “povo
de Deus” em caminho ao Reino, e que pretendia colocar um fim ao juridicismo, ao triunfalismo e ao clericalismo
eclesiológico que eram afirmados em seguida ao Concílio de Trento. MENOZZI, 2005, p. 659.
136
Além de um estudo da reflexão teológica de Congar, Antoniazzi procura construir o seu discurso em vista de
atualização dos sacerdotes, procurando um aprofundamento da história dos presbíteros, através da leitura de uma
historiografia influenciada pelas novas correntes teológicas europeias, produzida por teólogos como J. Danielou.
137
ANTONIAZZI, Alberto. A diversificação dos ministérios na Igreja. Atualização: Revista de Divulgação
Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 2, n. 18, p. 239-254, jun. 1971a.
73
época, Dom Serafim, tinha o objetivo de entender as condições reais do ministério sacerdotal
na Região Sudeste. A pesquisa procurava, em uma abordagem baseada na mesma perspectiva
das pesquisas do sociólogo italiano Silvano Burgalassi,138 entender o impacto das mudanças
da Igreja e do mundo e a maneira como estas se repercutiram na vida e nas tarefas dos
sacerdotes, no intuito de esboçar os possíveis elementos centrais para uma nova linha de ação
pastoral.139 Essa linha buscava respostas às insatisfações dos padres e se colocava em favor da
construção de condições pastorais que permitissem uma diversificação do ministério
presbiteral.
Nessa perspectiva, podemos perceber como, ao lado de um aprofundamento de viés
teológico, há um significativo e forte interesse pelo mundo das ciências sociais. Foco de
preocupação, como já mencionado, é o problema dos presbíteros e das vocações e, nessa
linha, precisa ser dada certa atenção para a produção de dados empíricos e estudos analíticos.
É possível pensar que nesse momento, que coincide com o começo da década de 1970,
havia certa confiança por parte da hierarquia eclesiástica brasileira de viabilizar um percurso
de aggiornamento da Igreja do Brasil através da contribuição de uma sociologia
fundamentada na visão de tipo tecnocrático:
O próprio Alberto Antoniazzi, citado por Pierucci, à distância de anos propõe uma
avaliação crítica da própria ação da Igreja nessa direção. Esse balanço oferece espaço para
uma leitura da ação de planejamento na qual Alberto Antoniazzi participou diretamente. Essas
colocações evidenciam um ponto de defasagem entre a dimensão especulativa (teológica) e
pratica (pastoral). Esse aspecto é um ponto bastante analisado na reflexão de Alberto
Antoniazzi. Encontra-se, aí, uma série de problemas na realidade concreta e na sua efetiva
aplicação.
138
Monsenhor Silvano Burgalassi (1921-2004), sacerdote, sociólogo italiano da Universidade de Pisa, é um dos
precursores da pesquisa sociológica italiana no campo religioso.
139
ANTONIAZZI, Alberto. O ministério sacerdotal. Atualização: Revista de Divulgação Teológica para o
Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 2, n. 22, p. 389-402, set. 1971b.
140
PIERUCCI, 1999, p. 257.
74
Por outro lado, é preciso assinalar que Alberto Antoniazzi é consciente do fato de que
na perspectiva teológica e no plano eclesiológico as coisas fluem com facilidade. As reais
dificuldades se encontram no plano da realidade e na sua dimensão de catolicismo em fase de
aggiornamento. A respeito disso, ele afirma:
Porém, no plano das aplicações práticas (na pastoral) a coisa não é tão fácil assim […]
assim acontece que, apesar das boas intenções e de estarem crentes de agir na nova
linha, muitos pastores continuam tendo o velho estilo e dificultando a renovação.141
141
ANTONIAZZI, Alberto. Que fizemos do Vaticano II? Convergência: Revista da CRB, Rio de Janeiro, ano
22, n. 199, p. 17-26, jan./fev. 1987a.
142
SERBIN, 2008, p. 293.
143
Ibidem, p. 156-157.
75
Essas experiências, relatadas por Serbin, após uma fase de radicalização conhecem um
rápido desgaste que, em poucos anos, as levam ao desaparecimento. Aumenta o número de
saídas do seminário e de abandono do ministério sacerdotal entre os anos de 1970 e 1975, e
isso contribuirá para a criação de um clima de resignação e enriquecimento dessas
posições. 144
Ao todo, o cenário contribuía para o clima e as dificuldades de um contexto político. A
partir do ano de 1974, o regime militar começou a promover uma abertura lenta, gradual e
segura.145 Depois de 1978, tem início um processo de abertura política que colocava novas
questões aos católicos progressistas, relacionadas com formas de promover a democracia.
Paradoxalmente, entretanto, à medida que prosseguia o processo de democratização, a
influência da Igreja popular entrava em declínio.
No entanto, gradualmente, a democratização permitiu o renascer da sociedade civil e,
como resultado, na Igreja se criavam condições mais propícias para a manifestação dos sinais
de superação da crise de vocações.
Em 1978 é criada a Organização dos Seminários e Institutos do Brasil (OSIB). A
instituição é constituída para promover e incentivar o intercâmbio e a cooperação acadêmica
entre os seminários. Na primeira diretoria, Alberto Antoniazzi assume o cargo de presidente e
se engaja nas diversas tarefas de melhorar a formação do clero brasileiro.
A OSIB, como instituição, ajudava a manter viva a ideia de uma visão nacional para a
Igreja do Brasil, embora não houvesse muita força política e não atuasse como um grupo de
pressão. Essa falta de poder atingia também os conselhos presbiterais diocesanos e, da mesma
maneira, isso valia para os encontros nacionais dos presbíteros. Segundo Serbin, a OSIB
procurou enfatizar o modelo de padre como um “santo moderno”: servidor e aliado dos
pobres, ativista e empenhado nas soluções dos problemas mais graves que afetavam a Igreja
(dentre os quais o brasilianista destaca a necessidade de desenvolver uma estratégia de
pastoral urbana).146
144
ANTONIAZZI, Alberto. A OSIB e os desafios da formação presbiteral. Vida Pastoral, n. 233, p. 26-31,
set./out. 2003.
145
SILVA, Francisco Carlos Teixeira. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil 1974-
1985. In: DELGADO, Lucília de Almeida Neves; FERREIRA, Jorge (Org.). O Brasil republicano: o tempo da
ditadura – regime militar e movimentos sociais em fins do século XX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2003. p. 256.
146
SERBIN, 2008, p. 294.
76
ser pensada em relação aos aportes introduzidos por João XXIII na dimensão do programa do
Concílio Vaticano II e também da linguagem.
Aggiornamento, “sinais dos tempos”, são as expressões que frequentemente aparecem
quando se procura entender este evento histórico da Igreja Católica. De fato, essa mudança de
linguagem poderia ser vista também como o sinal da uma mudança de estratégia da Igreja
Católica, decidida a obter, por meio de uma linguagem mais “accessível”, uma aproximação
da massa dos fiéis. A partir disso, se torna importante refletir sobre a maneira como a Igreja,
através de uma reflexão complexa sobre as relações e articulações das diversas realidades
sociais, elabora seu próprio discurso no momento em que a sua influência sobre as
consciências e sua hegemonia na esfera dos comportamentos sociais são desafiadas. Nessa
perspectiva, resulta interessante se pensar na forma coma a Igreja Católica procura viabilizar e
afirmar essa mudança no léxico e entender os seus efeitos na reflexão teológica e nas práticas
pastorais.
“Sinais dos tempos” evidencia uma atenção especial da Igreja na procura de uma
leitura das realidades atuais, que, entendida na perspectiva da ação pastoral da Igreja, leva,
necessariamente, para uma nova conotação da reflexão teológica em âmbito pastoral e,
consequentemente, de uma revisão do próprio planejamento pastoral.
É preciso lembrar que este processo no interior da Igreja não se dá de forma linear e
consensual. Ao contrário, se abrem, na realidade, os espaços para uma discussão conflituosa
na qual o Concílio Vaticano II é interpretado a partir de categorias em oposição. De um lado,
uma interpretação da assembleia em chave “doutrinal” e, de outro,151 uma leitura do concílio
na perspectiva “pastoral”.
A perspectiva “pastoral” procura superar o conceito pós-tridentino de ação
evangelizadora para poder abrir espaços na Igreja para uma ação pastoral, não somente
restrita aos pastores, mas que procure envolver e estimular a participação de todos os
membros da comunidade da Igreja, principalmente dos leigos. Outro ponto que vale a pena
ressaltar é que a ação pastoral pensada nesses termos é entendida como uma dimensão mais
ampla do que somente uma dinâmica intraeclesial, para edificação da comunidade. Nessa
perspectiva, a dimensão pastoral amplia os seus horizontes, reconhecendo como pastoral toda
atividade preocupada em estabelecer laços e relações de diálogo com as condições concretas
da sociedade.
151
ANTONIAZZI, Alberto. O que é pastoral? Atualização: Revista de Divulgação Teológica para o Cristão de
Hoje, Belo Horizonte, ano 14, n. 157/158, p. 3-18, jan./fev. 1983b. Cf. BEOZZO, 2001.
78
152
Gaudium et Spes, “as joias e as esperanças”: constituição que trata da presença da Igreja no mundo
contemporâneo. Giuseppe Alberigo lembra que uma nota desse documento explicava o significado de se referir a
ele como “pastoral”, afirmando que “sobre uma base de princípios doutrinais a constituição entende expor uma
postura da Igreja em relação ao mundo e aos homens de hoje”. Ver ALBERIGO, 2005, p. 154. Essa constituição
pastoral sobre a Igreja no mundo contemporâneo começava a reavaliar as suas relações com o poder em
perspectiva hierocrática.
153
ANTONIAZZI, 1983a.
79
Alberto era uma pessoa muito capaz de ser bom secretário, e ele não tinha preguiça e
assumia com muita frequência, para não dizer quase sempre, o cargo de secretario
dessas reuniões, é o cargo daquele que vai preparar as minutas depois das reuniões, que
são os textos-base que depois vão construir o texto fundamental. E como ele fazia
resumos e as notas, então muitas vezes, ao fazer isso, ele dava naturalmente, como se
diz em italiano, a impronta154 de Alberto. Tanto que eu acho que ele teve uma empresa
muito grande secretariando e trabalhando e sendo também um dos redatores da
comissão de redação […] Então, pela quantidade de trabalho e pela capacidade de
trabalho, pela facilidade de escrever, pelo enorme nível de conhecimento e de erudição,
ele tinha todas as qualidades para influenciar mais aquele grupo.155
Ele talvez foi um dos colaboradores por que o Brasil vivesse uma tensão dialética muito
interessante que até não deve ser muito dentro das regras da sociologia. Nós tínhamos
um episcopado, em geral, cuja maioria era de centro, e até um pouco conservador, e
tínhamos uma publicação da CNBB muito avançada. Como é que um corpo produz um
texto além da sua consciência possível? […] Eu acho que em parte isso se deve à cúpula
da CNBB, que estava mais avançada que o corpo, e também à habilidade enorme que
Alberto tinha. Ele era capaz de fazer propostas bem avançadas teologicamente, mas de
uma maneira tão cativante que mesmos bispos conservadores, desde que não fossem
reacionários, acabavam aceitando […] De maneira honesta, não é que fosse uma
maneira para enganar. Ele era jeitoso, hábil, sabia encontrar a expressão que não ferisse
a sensibilidade das pessoas e com isto conseguia que o episcopado brasileiro tivesse
uma atuação e sobretudo documentos além da “consciência possível” do episcopado.
[…] 156
154
Impronta – palavra italiana que pode ser traduzida em português como “marca” ou “impressão”.
155
Padre João Batista Libânio (entrevista ao autor, Belo Horizonte, 29 set. 2008).
156
Padre João Batista Libânio (entrevista ao autor, Belo Horizonte, 29 set. 2008).
80
157
ANTONIAZZI, 1983a; ANTONIAZZI, Alberto. Novas diretrizes para a ação pastoral da Igreja no Brasil?
Perspectiva Teológica (Belo Horizonte), Belo Horizonte, v. 25, n. 67, p. 58-64, set. 1993a.
158
GIBELLINI, 2007, p. 373-374.
81
Vaticano II, na reflexão teológica e pastoral de uma visão mais voltada para a perspectiva de
libertação, a partir de uma “opção preferencial pelos pobres”.159
Paralelamente a essa mudança de perspectiva na ação pastoral em direção a uma
recepção da reflexão da Teologia da Libertação, é preciso assinalar que na reflexão sobre a
evangelização começa a circular de forma mais aguda um discurso teológico pautado na ideia
de inculturação.160
Essa importante mudança na perspectiva de evangelização se encontra na dimensão do
planejamento pastoral da Igreja do Brasil quando, nas DGAP do período de 1983-1986, ao
lado da opção preferencial pelos pobres, é inserida a dimensão “cultural”, no que diz respeito
à transformação da sociedade. A introdução da perspectiva “cultural” abrira uma visão das
leituras dos problemas sociais não somente restrito no plano socioeconômico.161
Essa modificação no objetivo do planejamento pastoral, que inseria o elemento
cultural, revela certa dificuldade por parte dos bispos brasileiros na interpretação do
documento de Puebla, e abre espaço para uma divergência entre setores do episcopado.
Antoniazzi comenta essa nova perspectiva do documento assim:
Na realidade, não é fácil ser fiel a Puebla, pois o texto parece permitir mais de uma
interpretação (por exemplo: há quem acentua a “evangelização da cultura”, porque
atribui à cultura e às idéias um papel determinante nos rumos da sociedade; e há quem
acentue o papel das transformações econômico-sociais e políticas, pois julga que estas
são determinantes).162
159
Cf. BOFF, Leonardo. La Teologia, la Chiesa, i poveri: una prospettiva di liberazione. Torino: Einaudi, 1987;
REGIDOR, 1996; DUSSEL, 1997.
160
Conceito teológico que define no âmbito pastoral e litúrgico uma relação entre a fé e a pessoa (ou
comunidade) em um preciso contexto sociocultural. O encontro missionário dos “velhos cristãos” europeus com
povos de cultura e crenças diferentes e, sucessivamente, a opção do Vaticano II fizeram com que se
redescobrisse a importância das raízes culturais da mensagem de salvação. PENOKOU, Efoe-Julien.
Inculturazione [verbete]. In: CODA, Piero (cur.) Dizionario Critico di Teologia. Roma: Borla: Citta Nuova,
2005. p. 690. O próprio pontificado de João Paulo II já é, em princípio, caracterizado por uma retomada dessa
ideia na designação do sentido e do objetivo de cada obra de evangelização. Esse conceito sutil se prestava e se
adaptava a toda uma série de interpretações e aplicações, seja no plano antropológico ou teológico. O conceito
de inculturação tinha sido adotado, inicialmente, em 1974 pela Conferência dos Bispos Asiáticos, através da
contribuição dos jesuítas presentes no Japão. O uso da ideia de inculturação correspondia a um objetivo de
evangelização, através da introdução do fermento cristão em certo complexo cultural, no intuito de transformar
essa dimensão a partir do interior, exaltando certos valores sem por isso modificar radicalmente a esfera da sua
identidade.
161
ANTONIAZZI, 1983a.
162
ANTONIAZZI, 1983a, p. 496.
82
Acreditamos que não seja possível alinhar a posição e reflexão de Alberto Antoniazzi
de forma específica sobre um desses dois planos de interpretação. Antoniazzi procura sempre
fazer uma mediação que possa também considerar e incluir uma recepção da Teologia da
Libertação, através de uma leitura que procura ver:163
Um primeiro problema que está bastante claro e que provocou um avanço significativo
da teologia e da pastoral no Brasil é o desafio da pobreza e da inserção ativa das grandes
massas da população no processo político e na participação nos frutos do
desenvolvimento. Parece que se pode ver, na linha pastoral voltada para este sentido,
uma forma de “inculturação”: ou seja, lutando pela transformação da sociedade (e da
cultura a ela ligada).164
Essas reflexões mostram como padre Alberto olhava com certa simpatia para as novas
disposições decorrentes da Conferência de Puebla, de forma específica em direção a uma
“práxis de libertação”, ao mesmo tempo em que reservava sempre uma profunda atenção para
as dinâmicas relacionadas com a cultura.
Contudo, através das nossas análises, somos levados a crer que é possível que padre
Alberto pendesse mais pelas questões relacionadas com a “evangelização e cultura”. A sua
reflexão se voltava, com certa sensibilidade, de forma específica para dois aspectos: 1) o
problema da presença da Igreja na cidade; 2) a urgência de um maior aprofundamento e
preparação no âmbito cultural que não se limitasse somente a uma reflexão no âmbito da lutas
e disputas políticas.
De qualquer forma, é preciso assinalar que essa divergência entre posições diversas de
interpretação dos documentos e a ação pastoral colocada em um plano mais amplo revelam,
também, uma mudança pela qual passava a Igreja do Brasil no começo da década de 1980. Se
evidenciava o declínio da Igreja popular, ou melhor, mudava o papel da Igreja num período
de transição política. Após 1978, tem início um processo de abertura política que colocava
gradativamente novos problemas e outros desafios ao mundo católico brasileiro. No entanto,
gradualmente, a democratização permitiu o renascer da sociedade civil e, como resultado, a
Igreja não mais se sentiu compelida a se manifestar por ela da mesma forma que antes.165
163
ANTONIAZZI, Alberto. Inculturação: algumas reflexões como introdução ao tema. Atualização: Revista de
Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 18, n. 205, p. 3-12, jan. 1987b.
164
Ibidem, p. 9.
165
MAINWARING, 1989, p. 265.
83
166
Antoniazzi escreveu sobre esse tema as seguintes publicações: ANTONIAZZI, Alberto. Evangelização e
cultura. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de; VALLE, J. Edênio; ANTONIAZZI, Alberto. Evangelização e
comportamento religioso popular. Petrópolis: Vozes, 1978a. Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Evangelização e
cultura ocidental. Convergência: Revista da CRB, Rio de Janeiro, ano 8, n. 82, p. 266-279, jun. 1975;
ANTONIAZZI, Alberto. Evangelização: conteúdo e critérios – Segundo o documento de Puebla. Atualização:
Revista de Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 10, n. 117-118, p. 345-362,
set./out. 1979.
84
cultura e da situação econômico-social como elemento que determina o acesso das pessoas
aos diversos segmentos do “universo cultural”.
A partir dessas premissas, Antoniazzi coloca o problema de evangelização da cultura
brasileira dizendo que “importantes faixas desta cultura não chegaram a um desenvolvimento
religioso plenamente marcado pelo Evangelho”,167 e que de um outro lado “a Igreja não
assumiu plenamente as formas culturais brasileiras”.168 Para ele, a ação pastoral permaneceu
ainda bastante dependente de esquemas e modelos culturais estrangeiros.
É nessa direção que procuramos ver a elaboração de uma reflexão, que procura
entender dentro de um “espaço de possibilidade” as modalidades de adaptação da práticas
pastorais da Igreja e da modernidade brasileira. Dessa maneira, Antoniazzi apresenta uma
reflexão sobre a modernidade que procure, antes de tudo, entender (se não aceitar) as diversas
tradições presente no espaço diversificado do catolicismo brasileiro. Em outro termos,
Antoniazzi procura compreender, descrever nos vários níveis da formação social da realidade
brasileira, a questão do pluralismo cultural e religioso e de seus efeitos sobre sistema do
catolicismo brasileiro.169
A reflexão proposta por Antoniazzi é de busca por uma ação pastoral formulada na
perspectiva de uma evangelização brasileira, de uma proposta de aggiornamento que visa
“abrasileirar” o catolicismo, evitando trilhar o rumo do sincretismo. Por isso, ele propõe
refutar os modelos estrangeiros em direção à superação efetiva de uma aplicação dos modelos
centrais “romanizadores”.
Nessa direção, Antoniazzi aponta a necessidade de uma atualização da ação pastoral
da Igreja do Brasil que procure fazer frente a dois problemas: 1) uma atenção específica na
dimensão da realidade urbana – com as suas urgências e a demanda por uma reflexão sobre a
prática pastoral; 2) uma atualização da formação dos agentes da Igreja que participam pela
aplicação das disposições e práticas pastorais.
Contudo, as dificuldades de implementar esse tipo de proposta de aggiornamento em
uma tradução real e efetiva de práticas pastorais são bastante amplas. Ainda no começo da
década de 1980, surgem os problemas “antigos” das duas décadas anteriores. Em um artigo
sobre o tema do ministério do presbitério Alberto Antoniazzi confessa as dificuldades
167
ANTONIAZZI, 1978a, p. 90-91.
168
Ibidem, p. 96.
169
Ibidem, p. 96.
85
já se percebeu, após o Vaticano II, que é mais fácil mudar a doutrina no papel ou nos documentos
do que nas mentalidades e nas pessoas – Aparece mais claro que há forças psicológicas e
sociológicas, individuais e coletivas – que se opõem à renovação ou que orientam a mudança
num sentido diferente daquele que a teologia deseja.170
170
ANTONIAZZI, Alberto. “Vida e Ministério do Presbítero” – Algumas reflexões sobre o recente documento
da CNBB. Atualização: Revista de Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 11, n.
131-132, p. 494-506, nov./dez. 1980.
171
Padre João Batista Libânio (entrevista ao autor, Belo Horizonte, 29 set. 2008).
172
ROMANO, 1979, p. 19.
86
de não se cair no erro de uma tradução rigorosa do discurso teológico para o discurso
sociológico e vice-versa.
Portanto, após essas colocações, é preciso ter certa atenção, procurando uma
interpretação que leve em conta todas as considerações pertinentes para a compreensão dos
processos históricos relacionados com as mudanças da história da Igreja Católica do Brasil.
Ao longo das últimas três décadas, se consolidou uma imagem da Igreja Católica
brasileira como Igreja progressista. Emblemático dessa representação, na historiografia, pode
ser o trabalho do brasilianista Scott Mainwaring, que descreve, na análise sociopolítica, a
Igreja Católica do Brasil da seguinte maneira:
Essa representação da Igreja do Brasil, distante alguns anos no tempo, não deixa de ter
a sua importância, no sentido de uma análise sociopolítica das dinâmicas eclesiais. Contudo,
por todas as colocações feitas anteriormente, esse tipo de representação precisa ser
problematizado e discutido dentro das questões que emergem das análises das nossas fontes.
Aceitar plenamente essa visão prevalentemente “progressista” da Igreja de Brasil significa de
certa maneira negar uma série de conflitos que emergem nessa época no interior desse espaço
social. Reconstruções dos processos históricos, como a de Mainwaring, apagam toda uma
série de tensões que precisam ser consideradas por quem procurar compreender a
complexidade de dinâmicas sócio-político-religiosas. Essas estão, inclusive, longe de ser
processos homogêneos e lineares.
As próprias reflexões de Alberto Antoniazzi, das quais mencionamos alguns trechos
significativos, mostram como a perspectiva de aggiornamento e de implementação de uma
série de princípios, em direção à recepção do Concílio Vaticano II, nunca foi um processo
fácil e de imediata realização; principalmente no que diz respeito à sua aplicação na prática,
173
MAINWARING, 1989, p. 169.
87
seja no campo pastoral, seja na dimensão dos presbíteros ou na sua formação e no próprio
exercício do sacerdócio.
Determinadas tendências da Igreja do Brasil mostram como uma interpretação
progressiva ou automática da passagem de uma eclesiologia essencialista e universal a uma
visão articulada e pastoral da Igreja se revela, na realidade, uma tarefa particularmente difícil,
seja no sentido doutrinal ou no plano institucional.
Mesmo quando as disposições em favor de um aggiornamento foram traduzidas em
documentos no âmbito da CNBB, isso não significou uma real e efetiva implementação nas
práticas reais.
Ao lado dessas colocações é preciso ter em conta que, no começo da década de 1980,
com o processo de democratização do país, a Igreja Católica teve de atuar em um contexto
profundamente mudado. A maior parte dos bispos se posicionou contra as violações dos
direitos humanos, mas no momento em que se abriram as base para o estabelecimento e
afirmação de uma democracia diminuía o incentivo e o apoio a que a Igreja do Brasil se
envolvesse de forma direta na política do país.174
O discurso da Teologia da Libertação, que nos anos anteriores havia se afirmando com
certa força nos ambientes da CNBB e do seminário, começa a sofrer alguns sinais de
desgaste.
Acontecimentos emblemáticos, como as intervenções do prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé, o cardeal Ratzinger, contra o teólogo franciscano Leonardo Boff, tiveram
um forte impacto nos ambientes eclesiais brasileiros e também em toda a América Latina.
Outras medidas, como o fechamento de certos seminários e a nomeação de bispos menos
simpatizantes das posições progressistas, são tomadas.
Essas tensões são os reflexos de uma mudança da política, adotada pelo Vaticano, que
se manifesta através da crescente hegemonia exercitada pela Congregação da Doutrina da Fé,
que, segundo Giuseppe Alberigo, tende a exercitar um papel de liderança global, indo além
dos seus próprios limites de competência institucional.175
O Vaticano, através de um instrumento indireto, mas eficaz, intervém na Igreja do
Brasil através da nomeação de bispos. Dessa maneira, o Vaticano tem uma condição de
liberdade na escolha dos bispos, colocando de lado a função das conferências episcopais. Por
174
MAINWARING, 1989, p. 268.
175
ALBERIGO, Giuseppe; RICCARDI, Andrea (Org.). Chiesa e papato nel mondo contemporaneo. Bari:
Laterza, 1990, p. 120.
88
sua parte, as diversas conferências episcopais nacionais procuram reagir a essa tendência que
emerge e que quer limitar o seu papel institucional.
Influenciada também pelas disposições do Vaticano, a hierarquia da Igreja Católica do
Brasil começa a voltar as suas atenções para tarefas eclesiais e de evangelização. Diante de
um contexto não mais condicionado pelas polarizações ideológicas da Guerra Fria, se volta
para outras dimensões da modernidade e das linguagens contemporânea da fé, condicionadas
pela crescente importância dos meios de comunicação de massa. Entram em campo, de forma
mais expressiva, outras noções como modernidade ou inculturação. Essa variação de léxico
não é uma mera mudança linguística, mas é, também, indicativa de uma mudança de situação
na qual investe o campo religioso católico do Brasil e que se manifesta como um declínio de
certos discursos eclesiásticos vinculados a uma configuração eclesial denominada como
“Igreja da libertação”.
Alberto Antoniazzi, sempre inspirado por um espírito conciliar, através da ideia de
aggiornamento, procura dirigir a sua reflexão teológico-pastoral em direção de uma
compreensão das dinâmicas relacionadas com a modernidade religiosa. Através dessa sensível
recepção dos “sinais dos tempos”, padre Alberto direciona as suas análises e propostas
pastorais em direção de dimensões de evangelização como: pluralismo religioso, diálogo
inter-religioso, subjetividade religiosa, a Igreja do Brasil na esfera da cultura urbana.
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realizadas no intuito de esboçar um percurso “possível” para a ação da Igreja do Brasil frente
às dinâmicas da modernidade religiosa.
3 A IGREJA CATÓLICA DO BRASIL PÓS-1989
176
LIBÂNIO, João Batista. A Igreja da Libertação, sua crise e a explosão carismática. Teoria e Sociedade, Belo
Horizonte, Número especial: Passagem de milênio e pluralismo religioso na sociedade brasileira, p. 136-144,
2003.
91
“corrida”, a uma re-elaboração da própria linguagem, em busca de uma atualização que possa
ter mais consonância e apelo diante da mudança do quadro político-social.177
Nos setores de certa intelectualidade acadêmica e confessional, que simpatizavam com
a “Igreja popular”, se evidencia uma tendência a uma re-elaboração da própria reflexão em
favor de um afastamento de determinado “otimismo teórico” e de certos projetos vinculados,
em diversa medida, com as perspectivas de uma Igreja progressista.178
Ao passo que diminuía o interesse pelas CEBs e por uma série de iniciativas a elas
vinculadas, também no campo interno da formação presbiteral essa linha progressista começa
a ter seus efeitos diminuídos. Isso se traduz, na dimensão dos seminários, em uma abertura a
um clima de amplo individualismo, que se volta mais para a busca das realizações pessoais e
uma diminuição do interesse pela política. Isso se evidencia, no meio da formação dos
sacerdotes, na busca constante, através de uma reflexão teológica, de uma resposta a essa
conjuntura fortemente desafiadora.179
Segundo a antropóloga Maria Lucia Montes, essa postura que a Igreja Católica do
Brasil havia adotado, por meio de uma análise da realidade baseada de forma acentuada nas
elaborações da Teologia da Libertação, em que fé e política se tornavam de certa maneira dois
elementos indissociáveis, paga também um preço alto, de forma específica no que diz respeito
à grossa massa de fiéis. Segundo a estudiosa, uma porção de fiéis “não mais se reconheceria
nessa nova Igreja, vista por muitos como incapaz de lhes fornecer respostas quanto à
exigências da fé, não encontrado uma equivalência necessária no plano da política.”180
Ao lado dessa análise, podemos também acrescentar que esse período de declínio de
importância da “Igreja da libertação”, e do seu papel nos campos religioso e social, pode ser
visto como uma consequência do crescente processo de demanda dos indivíduos por uma
religiosidade que se expressa na forma de mística.181
177
DOIMO, Anna Maria. A vez e a voz do popular: movimentos sociais e participação política no Brasil pós-70.
Rio de Janeiro: Anpocs, 1995, p. 123.
178
Ibidem, p. 202. Não é por acaso que o lançamento do maior volume editorial de livros e documentos sobre
CEBs, Teologia da Libertação e pastorais tenha ocorrido durante a primeira metade da década de 1980, sendo o
pico em 1984.
179
SERBIN, 2008, p. 298. Cf. ANTONIAZZI, 2003.
180
MONTES, 1998, p. 79.
181
STEIL, Carlos Alberto. Da comunidade à mística. Teoria e Sociedade, Belo Horizonte, Número especial:
Passagem de milênio e pluralismo religioso na sociedade brasileira, p. 144-158, 2003.
92
Por outro lado, é preciso dizer que essas mudanças que afetam o campo religioso
brasileiro não proporcionam um processo de declínio absoluto da procura do sagrado e da
diminuição das práticas religiosas como um todo.183
182
STEIL, 2003. Cf. BINGEMER, Maria Clara. O Brasil e o seu catolicismo pluricultural. MAGIS: Cadernos de
Fé e Cultura: A presença da Igreja Católica no Brasil, n. 2, p. 223-242, nov. 2002.
183
Se consideramos esse processo em um plano mais amplo, em nível global, a corroborar esta visão podemos
considerar também a visão do sociólogo Enzo Pace que, recentemente, coloca em discussão a influência de uma
certa teoria da secularização, que nas décadas anteriores se afirmou. A secularização era considerada como um
processo irreversível. Segundo o sociólogo italiano, a ideia de um declínio inexorável da religião e a perda de
importância do sagrado foi resultado dessa concepção que, evidentemente, tem alguns limites. Essa ideia de
entender a secularização como um processo linear de ocultamento sagrado foi consolidada por via da visão de
alguns sociólogos que na década de 1960 e 1970 haviam previsto um declínio do religioso, diminuição das
práticas nos lugares de cultos, maior autonomia do indivíduo e, enfim, da fé, que se torna um elemento da vida
93
Nos últimos dois anos, manifestou-se no Brasil, entre teólogos e pastoralistas, um novo
interesse para com questionamentos e desafios que a “modernidade” põe à Igreja.
Numerosos artigos e livros levantam problemas, esboçam análises, mapeiam a
situação.186
privada. Sobre essas visões, é preciso considerar o peso das diversas afiliações ideológicas. PACE, Enzo.
Raccontare Dio: la religione come comunicazione. Bologna: Il Mulini, 2008.
184
BINGEMER, 2002, p. 232. Cf. MONTES, 1998.
185
Ver ANTONIAZZI, 1993a.
186
ANTONIAZZI, Alberto. Como repensar a pastoral face aos desafios da modernidade. Atualização: Revista de
Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 22, n. 233, p. 415-440, set./out. 1991.
94
187
MIRANDA, Mario França. Um homem perplexo: o cristão na sociedade. 3. ed. São Paulo: Loyola, 1989. v. 1;
AZEVEDO, Marcelo. Modernidade e cristianismo: o desafio da inculturação. São Paulo: Loyola, 1981; VAZ,
Henrique Cláudio de Lima. Religião e sociedade nos últimos vinte anos (1965-1985). Revista Síntese Nova Fase,
Belo Horizontes, v. 15, n. 42, p. 27-47, 1988. Alberto Antoniazzi elabora a sua reflexão teológico-pastoral
através de um aprofundamento das elaborações desses especialistas.
188
Expressão que designa não apenas uma questão interna das diversas confissões religiosas. Refere-se também
a concorrência com outros contendores não religiosos. O sociólogo de origem vienense Peter L. Berger
concentra a atenção dos seus estudos sobre o pluralismo religioso e o processo de secularização na sociedade
moderna. Ver BERGER, Peter L. Um rumor de anjos. Petrópolis: Vozes, 1973, p. 17-18.
189
ANTONIAZZI, 1991.
95
popular se deixe facilmente levar para o lado do pentecostalismo ou por outros espaços
religiosos que possam fornecer uma resposta mais “imediata” de cura divina.190
Nessa perspectiva dos estudos da Igreja Católica voltados para compreender as
dinâmicas do fenômeno dos novos movimentos religiosos podemos mencionar o estudo
realizado por Alberto Antoniazzi, juntamente com outros importantes especialistas da área,
Nem anjos, nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo.191 O estudo
procura compreender as razões do rápido crescimento, no Brasil, da expansão do
pentecostalismo e do crescimento de todo um universo de Igrejas.
Através desse estudo, Alberto Antoniazzi, além de procurar entender o crescimento
desse fenômeno religioso no Brasil, coloca algumas anotações críticas a respeito de certos
aspectos que revelam as dificuldades e os limites provocados por via da postura assumida pela
Igreja do Brasil:
Mais geralmente, não parece arriscado afirmar que a Igreja Católica aparece, aos olhos
do povo, mais “secularizada” e, portanto, mais distante da religiosidade popular. As
práticas religiosas católicas, estritamente enquadradas num sistema religioso de origem
ocidental, mais racional às vezes do que aberto aos sentimentos e à emoção, aparecem
como distantes do próprio catolicismo popular, mais do que o pentecostalismo, apesar
da ruptura deste com a devoção dos santos. Não por último, outro caráter do catolicismo
oficial é sua clericalização e sua escassa vida comunitária, sua dificuldade de
estabelecer relações humanas mais próximas e diretas, sobretudo no âmbito da
paróquia.192
Podemos perceber como um dos elementos que caracteriza a abordagem desse tipo de
pesquisa é uma perspectiva que olha para o pentecostalismo como uma ameaça ao papel
majoritário da Igreja Católica no campo religioso brasileiro. Mas, por outro lado, a pesquisa
revela como o desafio do pentecostalismo proporciona à Igreja Católica um processo de
autocompreensão que, em diversa medida, favorece um percurso de autocrítica diante de uma
série de problemas aos quais é preciso responder com uma proposta concreta. Entre as várias
medidas adotas pela Igreja Católica do Brasil nessa direção podemos ver o apoio reservado ao
movimento da Renovação Carismática Católica.
190
MONTES, 1998, p. 91.
191
ANTONIAZZI, Alberto. A Igreja Católica face à expansão do pentecostalismo: pra começo de conversa. In:
ANTONIAZZI, Alberto et al. Nem anjos, nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo 2. ed.
Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: CERIS, 1996.
192
ANTONIAZZI, 1996, p. 21.
96
Acontece, não raro, que paróquias católicas são criadas em bairros de periferia, quando
já se encontram, no mesmo território, uma ou duas dezenas de igrejas pentecostais, sem
falar de “centros” e “terreiros”. As causas desse “atraso” não podem ser reconduzidas
apenas à crônica escassez de clero católico brasileiro.194
Provavelmente, nisso contribuem diversos fatores, assim como uma série de razões de
ordem histórica, que evidenciam que, talvez, em determinadas situações, certos setores
eclesiásticos brasileiros se inclinaram para posições mais próximas das elites que do povo.
Além disso, a pesquisa realizada por Antoniazzi revelava um outro aspecto importante
que vale a pena ter em conta no momento em que são considerados os caminhos de novas
perspectivas pastorais que a Igreja Católica procura trilhar nesse período. Segundo a opinião
de Alberto Antoniazzi, o crescimento das “seitas” pentecostais tem efeitos negativos no que
diz respeito a um percurso de ecumenismo e de diálogo com outras confissões. Antoniazzi
explica que o crescimento dessas seitas provocava uma significativa diminuição do interesse,
por parte do episcopado brasileiro, por um pleno diálogo ecumênico.
Não existem declarações oficiais a este respeito, mas uma pesquisa interna da CNBB,
no final de 1990, mostrava que em nenhuma diocese o ecumenismo era uma prioridade
nos planos pastorais.195
193
Ibidem, p. 19.
194
ANTONIAZZI, 1996, p. 20.
195
Ibidem, p. 18.
97
Essa atitude, assumida também por um número sempre maior de bispos da Igreja do
Brasil, teria contribuído para diminuir o interesse pelo diálogo ecumênico em âmbito católico,
sob influência da convicção que, em diversas medidas, teria contribuído para facilitar a busca
de experiências religiosas alternativas em âmbito católico.
196
BINGEMER, 2002, p. 229.
197
Sobre as disposições centrais do Vaticano II, ver ALBERIGO, 2005, p. 166-167. Ver também MENOZZI,
2005.
198
No que diz respeito ao âmbito das relações da Igreja com as outras religiões, e ao fácil otimismo que segue a
uma certa criatividade depois dos anos de1963-1965, alguns acontecimentos provocam, segundo o historiador
Pietro Rossano, um ponto de transição nos anos de 1973-1974 da postura de Paulo VI em relação às religiões
não cristãs. Um primeiro aspecto é a nomeação do cardeal Sergio Pignedoli para presidente do secretariado para
os não cristãos em 1973; o segundo aspecto é a celebração do sínodo dos bispos sobre o tema da evangelização,
que acontece em Roma no mês de outubro de 1974. É através do cardeal Pignedoli que Paulo VI sai abertamente
em direção de um diálogo com as outras religiões e de toda uma atividade sistemática em nível global. Frente ao
dinamismo de Pignedoli, Paulo VI mostra um momento de parada e até reticência no uso da palavra “diálogo”.
Na realidade, se apresentava uma preocupação por parte de Paulo VI no uso da ideia de diálogo, especialmente
no momento que aparecem as dificuldades de uma adoção livre do conceito de diálogo que, em certos ambientes
da Igreja, era feita. Uma hermenêutica pessoal ou individual da ideia de diálogo podia provocar sérios danos
para a Igreja e comprometer o trabalho de evangelização e de missão. O termo “diálogo” voltará a ser utilizado
de novo com certa ênfase com a chegada de João Paulo II, que voltará a utilizar essa ideia. João Paulo II difunde
e consolida aquela reflexão de diálogo elaborada por Paulo VI e proposta pelo Concílio Vaticano II. ROSSANO,
98
Pietro. In: ALBERIGO, Giuseppe; RICCARDI, Andrea (Org.). Chiesa e papato nel mondo contemporaneo.
Bari: Laterza, 1990.
199
TEIXEIRA, Faustino. A teologia do pluralismo religioso na América Latina. In: VIGIL, Jose M.; TOMITA,
Luiza E.; BARROS, Marcelo (Org.). Teologia pluralista libertadora intercontinental. São Paulo: Paulinas, 2008,
p. 28.
200
Conceito que designa um voltar-se para representantes de uma outra religião, com base na própria confissão,
visando um melhor conhecimento e uma compreensão mais profunda. O empenho pelo diálogo com outras
religiões recebeu impulsos decisivos no Concílio Vaticano II (1962-1965).
201
ANTONIAZZI, Alberto. Os ministérios numa perspectiva ecumênica. Atualização: Revista de Divulgação
99
amplo sobre o estudo das religiões e do campo religioso, movido por uma motivação de busca
constante de atualização da sua preparação e de compreensão da realidade cultural
contemporânea.
Entre essas elaborações podemos fazer menção ao artigo Teologia e pastoral face às
religiões não-cristãs e ao espiritismo brasileiro, 202 no qual Antoniazzi procurava mostrar a
evolução da teologia ao longo do século XX, frente às outras religiões, e suas consequências
no âmbito da reflexão pastoral. Sempre considerando as posições dos documentos conciliares,
procurava mostrar as perspectivas e os problemas abertos na reflexão teológica. Partindo das
elaborações de teólogos como Karl Ranher e de Raimon Panikkar,203 padre Alberto buscava
uma inspiração teológica para procurar fornecer novos impulsos na esfera da ação pastoral
diante da situação religiosa do Brasil.
Contudo, aquilo que nos indicam os seus escritos é que a situação ainda não era
propícia para viabilizar um percurso pastoral deste porte. Naquela época ele assinalava:
[…] mesmo aceitando plenamente a teologia do Vaticano II, não seria prudente ignorar
umas outras questões. Esta teologia a respeito das religiões não cristãs é muito recente,
quase imatura: não teve ainda tempo de ser provada e depurada nem pelos debates
intelectuais, nem pela vivência prática. Merece ser refletida e precisada mais. Um
exemplo: o Vaticano II distingue elementos “positivos” e elementos “negativos” das
religiões não cristãs.204
Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 5, n. 54/55, p. 247-259, jun./jul. 1974; ANTONIAZZI,
1975; ANTONIAZZI, Alberto. História das religiões (Bibliografia comentada). Atualização: Revista de
Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 9, n. 103-104, p. 361-368, jul./ago.1978b.
202
ANTONIAZZI, Alberto. Teologia e pastoral face às religiões não-cristãs e ao espiritismo brasileiro.
Atualização: Revista de Divulgação Teológica para o Cristão de Hoje, Belo Horizonte, ano 4, n. 44, p. 917-925,
ago. 1973.
203
Segundo o teólogo e filósofo Raimon Panikkar, para compreender a evolução e as mudanças do cristianismo,
é preciso considerar as suas “especificidades” como religião. Segundo Panikkar, a mensagem do cristianismo
deve sempre ser colocada em relação ao contexto, ao ambiente e à cultura na qual se encarna. Portanto, segundo
ele, não existe “uma” especificidade pura, mas uma “adaptação” relacionada com o ambiente social e cultural.
Segundo essa visão, a partir do momento em que o ambiente ou o contexto são diferentes (se relacionados ao
Ocidente europeu), será necessário que o próprio cristianismo mude o seu perfil. Essa visão, se aplicada no
âmbito pastoral, demonstra uma abertura de acolher experiências de diversidade no interior do catolicismo.
PANIKKAR, Raimon. Tra Dio e il cosmo: uma visione non dualista della realtà. Bari: Laterza, 2006, p. 134.
204
ANTONIAZZI, 1973, p. 921.
100
Segundo Gianni Vattimo, nessa fase histórica, definida por ele como idade da
interpretação, o diálogo ecumênico, e sobretudo o diálogo inter-religioso, representa para a
Igreja Católica um dos problemas centrais a ser superados. Segundo Vattimo, a possibilidade
de estabelecer realmente um diálogo com outras religiões seria um grande desafio, um
caminho possível para a Igreja abandonar o autoritarismo e evitar o perigo de voltar a ser uma
pequena seita fundamentalista. Mas, para realizar um caminho de diálogo, a Igreja deveria
realmente assumir a mensagem evangélica frente à dissolução de qualquer pretensão de
objetividade.206
Nesse contexto de modernidade,207 onde se enfrentam em um quadro social
pluralístico diferentes “interpretações”, se proporciona no âmbito da reflexão teológico-
pastoral um processo que padre Alberto Antoniazzi assinala como “fragmentação da ação
pastoral”.208
205
ANTONIAZZI, Alberto. Novidades nas “Diretrizes gerais da ação evangelizadora da Igreja no Brasil 95-98”.
Vida Pastoral: Revista Bimestral para Sacerdotes e Agentes de Pastoral, São Paulo, v. 36, n. 184, p. 2-8, set./out.
1995a.
206
VATTIMO, Gianni. L’eta dell’interpretazione. IN: RORTY, Richard; VATTIMO, Gianni. Il futuro della
religione: solidarietà, carità, ironia. Milano: Garzanti, 2005, ver p. 52.
207
Para uma breve reflexão teológica sobre esse tema, cf. ANTONIAZZI, Alberto. Teologia, modernidade e pós-
modernidade. Fragmentos de Cultura, Goiânia, v. 5, n. 14, p. 61-67, nov. 1995b.
208
ANTONIAZZI, 1991. Cf. ANTONIAZZI, Alberto. Enfoques teológicos e pastorais no Brasil hoje. In:
LIBÂNIO, João Batista; ANTONIAZZI, Alberto. Vinte anos de teologia na América Latina e no Brasil.
Petrópolis: Vozes, 1994a.
101
A crise dos paradigmas parece ter chegado também à reflexão pastoral, com o resultado
de tirar credibilidade tanto dos esquemas conservadores quanto dos esquemas
progressistas de interpretação da realidade sócio-cultural e eclesial. De um lado, não é
mais possível sonhar com uma volta ao passado e continuar a se apegar aos valores, da
sociedade rural, identificados – sem razão – aos valores cristãos ou evangélicos. Por
outro lado, não é possível basear a interpretação da sociedade sobre um esquema
simplificado, economista, que ignora a dimensão da cultura e seu peso extraordinário
sobre o comportamento social e religioso. Poder-se-ia dizer que as duas partes estavam
erradas no seu unilateralismo ou, mais positivamente, que cada um das partes tinha suas
razões válidas, mas, somente somando-as, ou melhor, integrando-as, será possível
alcançar uma visão mais realista e menos inadequada da realidade moderna.209
209
ANTONIAZZI, Alberto. A inculturação da fé cristã no Brasil de hoje. In: CAGNASSO, Franco et al.
Desafios da Missão. São Paulo: Mundo e Missão, 1995c.
102
210
FILORAMO, 2007.p. 8.
211
ANTONIAZZI, Alberto. Princípios teológico-pastorais para uma nova presença da Igreja na cidade. In:
ANTONIAZZI, Alberto; CALIMAN, Cleto (Org.). A presença da Igreja na cidade. Petrópolis: Vozes, 1994b. p,
103
Esse tipo de abertura na reflexão de Antoniazzi acreditamos que pode ser enquadrado
como uma procura por elaborar, diante de um momento de impasse, uma ação pastoral que
seja capaz de levar em conta a dimensão subjetiva, através de uma abertura de espaços de
diálogo para a acolhida da experiência religiosa pessoal, subjetiva.
Portanto, Antoniazzi procura elaborar uma reflexão teológico-pastoral que seja capaz
de considerar as manifestações mais significativas da subjetividade, que se apresentam através
de buscas pessoais: da felicidade, liberdade, realização no plano afetivo e sexual, relações de
troca e de comunhão; busca de uma dimensão afetiva e emocional também no plano da
religião; busca de uma espiritualidade própria.
Danièle Hervieu-Léger explica que a frase “a modernidade religiosa é o
individualismo” constitui, na época atual, o tema principal das reflexões sociológicas sobre a
dimensão religiosa.212 A “modernidade religiosa” se configura, segundo as elaborações desta
estudiosa, como o produto de uma operação que se realiza através do absorvimento de
tendências como o individualismo religioso e o individualismo moderno, sob o signo da
valorização do mundo de um lado e de uma afirmação do sujeito crente, de um outro.213
Portanto, podemos avaliar como a dimensão da subjetividade, com as diversas e
complexas tendências que a compõem, se torna o ponto central da análise da realidade
religiosa contemporânea que, além das diversas concepções e propostas quanto à
modernidade, a Igreja Católica do Brasil precisa sempre ter em conta no seu magistério.
O foco de preocupação de Antoniazzi na realidade do catolicismo brasileiro se
evidencia essencialmente através da tomada de consciência com um enfraquecimento do
sentimento de pertencimento dos sujeitos à Igreja, e também com os riscos decorrentes de um
subjetivismo na interpretação da fé e de uma forte tendência crítica à uma religião
institucionalizada.214
Segundo Antoniazzi, para que na Igreja do Brasil se possa realizar uma ação pastoral
eficaz é preciso ter em conta a afirmação de novas configurações de comunidade que se
apresentam como espaços complexos, caracterizados por uma forte componente de
individualismo, onde o indivíduo vive uma rede complexa de relações e onde o centro é si
mesmo.
p. 86.
212
HERVIEU-LÉGER, 2003, p. 125.
213
HERVIEU-LÉGER, 2003, p. 130-131.
214
ANTONIAZZI, 1991.
104
O problema central segundo Alberto Antoniazzi é que a Igreja do Brasil, nas ações
pastorais, tende a se tornar mais “rural” e “paroquial”, enquanto a sociedade do Brasil tende a
se tornar mais urbana.
A reflexão de Antoniazzi procura favorecer um deslocamento do planejamento
pastoral da Igreja do Brasil em direção do mundo urbano, que possa ter em consideração as
215
ANTONIAZZI, 1995c, p. 113.
105
216
ANTONIAZZI, Alberto. Desafios do mundo urbano para a pastoral e a catequese. Revista de Catequese, São
Paulo, v. 17, n. 66, p. 13-19, jun. 1994c. Antoniazzi retoma as elaborações do antropólogo italiano Massimo
Canevacci, que realizou um estudo antropológico sobre a evolução no século XX da metrópole de São Paulo.
CANEVACCI, Massimo. La città polifonica. Roma: Seam, 1997.
217
GARCÍA CANCLINI, Néstor. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006, p. 15-16.
218
Diversos são os artigos que Alberto Antoniazzi dedica ao estudo da dimensão urbana: ANTONIAZZI,
Alberto. Religião e participação urbana. Signum: Cadernos do Núcleo de Estudos e Pesquisas Multidisciplinares,
Belo Horizonte, ano 1, n. 1, p. 87-89, jul./dez. 1992; ANTONIAZZI, Alberto. Para um programa de pastoral
urbana. Vida Pastoral: Revista Bimestral para Sacerdotes e Agentes de Pastoral, São Paulo, v. 34, n. 169, p. 29-
32, mar. 1993b; ANTONIAZZI, 1994c; ANTONIAZZI, Alberto. Situação e perspectivas da Pastoral Urbana.
Revista de Catequese, São Paulo, 1999.
219
ANTONIAZZI, 1994c.
106
Em outras palavras, a pastoral tradicional punha o acento sobre o “emissor” (logo sobre
a ação do pastor ou do clero); a pastoral urbana deverá colocar o acento sobre o
“receptor” ou, ainda melhor, deverá substituir, a um processo de comunicação vertical
ou unidirecional (pastor ⇒ fiéis), um diálogo ou uma inter-comunicação (pastores
⇔ fiéis).220
Mas como efetivamente abrir espaço às pessoas e aos seus carismas, à sua experiência
subjetiva dentro das práticas pastorais da Igreja do Brasil?
Segundo a reflexão de Antoniazzi, como já mencionado, um primeiro passo seria a
superação da concepção pastoral tridentina, especialmente no que diz respeito a uma ênfase
demasiada dada aos aspectos jurídicos e intelectuais em detrimento da dimensão simbólica e
afetiva. Essa correção, no plano pastoral, seria realizável através da adoção de uma autocrítica
nas diversas dimensões (litúrgica, catequética, social) no intuito de sair de um dogmatismo e
de um intelectualismo.
220
ANTONIAZZI, 1994b, p. 86.
221
ANTONIAZZI, 1994b, p. 87.
107
222
ANTONIAZZI, 1993b.
223
ANTONIAZZI, 1994b, p. 93.
224
ANTONIAZZI, 1994b, p. 93.
225
LIBÂNIO, João Batista. As lógicas das cidades: o impacto sobre a fé e sob o impacto da fé. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 214.
108
Estaríamos diante, muitas vezes, de pessoas que além de sem terra ou sem casa, sem
emprego, sem instrução, também se tornaram “sem religião”? E volta a pergunta
angustiante: eles abandonaram as igrejas ou as igrejas também os abandonaram ou, pelo
menos, pouco cuidam dele?228
Dessa maneira, Por que o panorama religioso no Brasil mudou tanto? constitui,
segundo nossa interpretação, um ponto ideal que pode representar emblematicamente o
“princípio” e o “fim” da trajetória intelectual de Alberto Antoniazzi.
Representa o “princípio” no momento em que o título dado a essa pesquisa representa
de fato a pergunta central que, desde os começos da sua atuação intelectual e pastoral, move
as indagações de Antoniazzi. Investigações, as suas, sempre em busca de uma contínua e
constante leitura da realidade, na procura de um aggiornamento próprio, na dimensão
intelectual, e da ação da Igreja no mundo, na dimensão pastoral.
Representa o “fim” porque a pergunta do título, Por que o panorama religioso no
Brasil mudou tanto?, é uma pergunta que pode representar também o epílogo de uma
experiência de um homem, de um intelectual, de um pesquisador, de um sacerdote que não
acreditou saber, poder, conhecer; mas, com modéstia, procurou sempre compreender e tentar
acolher os desafios dos tempos modernos, encarando-os positivamente como chance, como
desafio, como provocação à qual procurava reagir.
226
Padre Alberto Antoniazzi faleceu no dia 25 dezembro de 2004, em Belo Horizonte, aos 67 anos.
227
ANTONIAZZI, Alberto. Por que o panorama religioso no Brasil mudou tanto? São Paulo: Paulus, 2004.
Antoniazzi, com a expressão “sem religião”, se refere não somente aos ateus, mas a um grupo constituído
também por pessoas que abandonaram as práticas religiosas e os vínculos com a Igreja por diversas razões.
228
Ibidem, p. 48.
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