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Memórias da Primeira Guerra Mundial

Meir Kucinski*

Quando estourou a guerra em Tisha B'Av,1 os judeus disseram que era um


verdadeiro Tisha B'Av.
Nossa cidade se localizava perto da fronteira alemã e os russos saíram dela logo
que estourou a guerra.2 Quando eles a abandonaram, nós, crianças do cheder,3
entramos nas casernas e nos apoderamos de seus galardões e de seus botões
militares – o que para nós era um grande achado. Os russos incendiaram a
ponte de madeira sobre o Vistula e milhares de pessoas vieram ver como ela
ardia. Depósitos e reservatórios de combustível pertencentes à linha de trem
também se consumiam em chamas impondo grande medo na população que
passava o tempo dia e noite nas ruas. Passados três dias, apareceram alguns
jovens soldados alemães que viriam a ser novidade para o povo. Durante sete
dias a cidade permaneceu sob mando dos alemães, que raramente se
mostravam em público. Mais tarde, quando os russos retomaram, os judeus,
que tinham sido convocados ao serviço militar e os provedores, se esconderam
na esperança dos russos abandonarem novamente a cidade para escapulir de ir
à guerra. O novo contingente militar russo estava constituído por cossacos com
listas amarelas, que impuseram terror sobre a população judaica. Correu a
notícia, que no trajeto de Brisk à Wloclaveck, o condutor de carroça judeu,
Henich, o cego, infortunadamente conhecido pelo seu sobrenome Guerman (que
significa alemão em russo), foi enforcado pelos cossacos. Parte da população
polonesa se aliou aos soldados cossacos russos, e sem aviso prévio, entraram
nas lojas dos judeus levando o que lhe dava nas ganas. Na rua eles
importunavam judeus.
O rabino Kovalsky se dirigiu então ao general cossaco, com a intenção de
reclamar em nome da comunidade judaica. Os judeus ficaram estarrecidos pelo
que poderia lhe acontecer. O rabino, assim contaram, foi repreendido para
evitar que os judeus espionassem a favor dos alemães, sendo assim, mal algum
lhes aconteceria. Os militares russos permaneceram três semanas. Certa vez,
ocorreram enterros de cossacos mortos em batalha nas proximidades de
Nieszawa que ficava distante à vinte quilômetros de nós. Eles vieram
transportados por seus companheiros em caixões de defuntos abertos com os
braços cruzados sobre o peito. Eu os vi de soslaio, da nossa janelinha do terceiro
andar. Os judeus, durante os enterros dos cossacos, não se fizeram ver nas ruas.
Os milhares de acompanhantes civis eram apenas poloneses. Depois, os russos
se retiraram e os alemães retornaram. Durante alguns dias, a cidade não
pertenceu a ninguém. Neste ínterim, se constituiu uma milícia civil da qual
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Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 9, n. 16, maio 2015. ISSN: 1982-3053.
muitos judeus tomaram parte sendo que um de seus comandantes era também
judeu. Com o passar do tempo, houve uma confusão com o dinheiro. Dinheiro
russo não queríamos pegar, dinheiro alemão ainda não circulava, então, a
cidade e seus guardiães emitiram dinheiro próprio de Wloclawek. Dessa vez, os
alemães entraram na cidade aos milhares.
Eu, aluno de talmud-torá de onze anos, me livrei do peso que eram os estudos
do cheder (e assim o fizeram todos os meninos e os melamdim4 também...) e me
juntei (mitguefibert) aos soldados alemães: prestei serviços de guia por dez
centavos, indicando endereços, etc. Como todos meninos, fiz também uma
caixinha para vender cigarros colocando à vista dois artigos que os alemães
mais compravam. No segundo andar do nosso amplo e muito cômodo edifício,
que estava desabitado, se instalaram soldados alemães. Aí então é que me
familiarizei inteiramente com eles. Lembro que a noitinha eles rezavam a Bíblia
e logo depois os salmos. Os mais velhos costumavam fumar com longas piteiras
de porcelana. O tempo todo eles se ocupavam em limpar, trocar e buscar
piolhos nas roupas. Eles deram de presente aos vizinhos, de mãos cheias, balas
duras feitas de açúcar e pão também. Suas mochilas estavam repletas de
salame, sardinhas, carne e banha de porco.
Gente que estava a passar fome ganhava restos das suas refeições com pedaços
de carne, bem como sapatos gastos e aquecedores para as orelhas, o que era
uma novidade para nós. Oito semanas estiveram os alemães ali. Eram velhos
com capacetes negros de laminas pontiagudas. Logo a seguir, fizeram como os
russos: incendiaram as pontes de trem sobre o rio, arrancaram os trilhos e se
foram...
Com a saída deles, a cidade ficou apavorada. Nos dois meses que eles aqui
estiveram, a população ao final se acalmou. A noite inteira ouvimos passos
militares de milhares de soldados, caminhando e caminhando. Ao amanhecer,
os russos tinham voltado. Eles foram a pé atrás do exército alemão em retirada.
Nossa cidade era ponto de passagem. A população judaica havia preparado
carroças com produtos panificados e arremessava pães nas fileiras do exército
russo em movimento. Famintos, eles mastigavam o pão em movimento.
Eles carregavam pequenos canhões e corriam ligeiro atrás dos alemães. Das
fileiras se ouviu: ”sou judeu”. Então jogávamos pãezinhos, chale,5 maçãs. A
cidade se encheu de russos. Famintos, cansados com horas não dormidas.
Novamente um grupo de soldados veio até meu pai para consertar suas botas.
Lembro-me de que minha mãe cozinhou chicória na maior panela e arranjou
pão para eles, os soldados russos mais velhos se deliciaram. Minha mãe forrou
o interior de suas botas com novas camadas e meu pai e seu irmão consertaram

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as solas. Apesar deles pechincharem no preço, o pagamento, no entanto, foi por
conta dos agradecimentos que eles fizeram.
Dessa vez os russos não importunaram os judeus. Somente em alguns casos em
que eles levaram botas das lojas de sapatos. Sete dias eles permaneceram na
cidade até que despontou a grande batalha. Morávamos no terceiro andar do
maior edifício, na moradia mais alta da cidade e nosso telhado era de vidro.
Subiu então um russo e ordenou que não acendêssemos luz ou que
tampássemos os vidros. À noite, ouvíamos tiros de metralhadoras com
frequência, sem cessar, num único tom. Era o final do verão, as cinco da
madrugada. No alvor da manhã, com o cessar do tiroteio, agarrei minhas calças
e sai fugitivamente de casa. Na rua se encontravam alemães de bicicletas e a
cavalos. A população civil se encaminhava para o down town em direção a três
quilômetros ao sul de Wloclawek. Como vi que iam o rabino e Jacob Neta
Kruschynski fui também. Pelas ruas do down town.

Tradução: Avraham Milgram.


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* Meir Kucinski foi escritor e professor. Nascido na Polônia, em 1904, Kucinski


imigrou para o Brasil em 1935, estabelecendo-se em São Paulo, onde faleceu em
1976. Vários de seus contos, alguns deles premiados, foram publicados no
Brasil, traduzidos para a língua portuguesa, na coletânea Imigrantes, mascates &
doutores, com organização e seleção de Hadassa Cytrynowicz e Rifka Berezin, e
em O conto ídiche no Brasil, organizado por Genha Migdal e Hadasa
Cytrynowicz.

Notas
1 O nono dia do mês de Av no calendário judaico, dia de luto religioso e

nacional dos judeus que lembram e lamentam a destruição do 1o. e 2 o. Templo


em Jerusalém, rezando em jejum. Também a expulsão dos judeus da Espanha
começou em Tisha B`Av.
2 No último quartel do século 18, o estado polonês foi conquistado e seus

territórios repartidos entre o Império Russo que se apoderou da Polônia


Central, que ficou conhecida como a Polônia Congressista, o Império Austro-
Húngaro que dominou o sul da Polônia, denominado Galícia, e o Império
Prusso que ficou com a parte ocidental da Polônia. No final da Primeira Guerra
Mundial, com os acordos de Versalhes, a Polônia voltou a ser um estado

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Arquivo Maaravi: Revista Digital de Estudos Judaicos da UFMG. Belo Horizonte, v. 9, n. 16, maio 2015. ISSN: 1982-3053.
independente. A cidade de Wloclaweck, onde nasceu Meir Kucinsky, pertencia
até então ao Império Russo.
3
Escola inicial para estudos da Torá.
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Instrutores que tinham por função alfabetizar as crianças e transmitir o ensino
básico das escrituras, principalmente o Pentateuco.
5
Pão especial para os sábados e dias festivos.

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