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MORFOLOGIA
63 Editorial
65 V. Oliveira
URBANA
Morfologia urbana: diferentes abordagens Revista da Rede Lusófona de Morfologia Urbana
85 A. C. Macedo e M. I. Imbronito
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
2016
Volume 4
Perspetivas
107 Morfologia urbana e legislação urbanística D. Antonucci Número 2
108 Praeter utilitas M. M. Bandeira
110 Uma reflexão sobre a necessidade e o contributo da morfologia urbana A. Fernandes
111 O FormaUrbis lab e a utilidade dos estudos de morfologia urbana S. P. Fernandes
113 Morfologia urbana pela estética, justiça social e sustentabilidade E. Mendonça
115 Como compreender as cidades? M. M. Gimmler Netto e S. A. Pereira Costa
117 Morfologia urbana: para entender as transformações urbanas K. S. Meneguetti
113 Para que serve a morfologia urbana? J. M. P. Silva
Relatórios
105 Rede Lusófona de Morfologia Urbana (PNUM), 2015-16 T. Marat-Mendes
121 5ª Conferência da Rede Lusófona de Morfologia Urbana, Guimarães, 2015 E. Mendonça
123 PNUM Workshop, Julho 2016, Vila Nova de Cerveira: Forma urbana e dinâmicas transfronteiriças
D. L. Viana
124 Curso ‘Morfologia urbana. Uma introdução ao estudo da forma física das cidades’, Porto, 2016
V. Oliveira
Notícias
64 Urban Morphology
84 PNUM 2017: Morfologia urbana: território, paisagem e planejamento
84 ISUF 2017: City and territory in the global era
105 ISUF Italia 2017: Learning from Rome – historical cities and contemporary design
Editor: Vítor Oliveira, Universidade do Porto, Portugal, vitorm@fe.up.pt
Os autores são os únicos responsáveis pelas opiniões expressas nos textos publicados na
‘Revista de Morfologia Urbana’. Os Artigos (não deverão exceder as 6 000 palavras, devendo
ainda incluir um resumo com um máximo de 200 palavras), as Perspetivas (não deverão exceder
as 1 000 palavras), os Relatórios e as Notícias referentes a eventos futuros deverão ser enviados
ao Editor. As normas para contributos encontram-se na página 2.
Desenho original da capa - Karl Kropf. Desenho das figuras - Vítor Oliveira
65 V. Oliveira
Morfologia urbana: diferentes abordagens
85 A. C. Macedo e M. I. Imbronito
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
Perspetivas
Relatórios
Notícias
64 Urban Morphology
84 PNUM 2017: Morfologia urbana: território, paisagem e planejamento
84 ISUF 2017: City and territory in the global era
105 ISUF Italia 2017: Learning from Rome – historical cities and contemporary design
Normas para contributos para a Revista de Morfologia Urbana
Os textos a submeter à ‘Revista de Morfologia Whitehand, J. W. R. e Larkham, P. J. (eds.)
Urbana’ deverão ser originais, escritos em (1992) Urban landscapes, international
Português, e não deverão estar em apreciação em perspectives (Routledge, Londres).
nenhuma outra revista científica. Os textos serão No caso de publicações com múltiplos
aceites para publicação depois da avaliação autores, todos os nomes devem ser incluídos na
favorável de, pelo menos, dois revisores lista de referências. Apenas as referências citadas
independentes. Os artigos não deverão exceder as devem ser incluídas na lista.
6.000 palavras, devendo ainda incluir um resumo
com um máximo de 200 palavras e até cinco Ilustrações e tabelas
palavras-chave. O título do artigo, o resumo e as Os desenhos e as fotografias deverão ter a
palavras-chave deverão ser bilingue, em dimensão adequada à sua reprodução. Nesse
Português e em Inglês. Como a autoria dos textos sentido, a dimensão das páginas da revista deverá
não é revelada aos revisores, o(s) nome(s) e o(s) ser tida em consideração pelo autor ao desenhar
endereço(s) do(s) autor(es) devem constar de uma as ilustrações. As ilustrações devem ser a preto e
folha em separado. As ‘perspetivas’ (também branco a menos que a cor seja essencial. Devem
sujeitas a ‘revisão por pares’) e os book reviews ser numeradas de forma consecutiva, referidas
não deverão exceder as 1.000 palavras. Os artigos diretamente no texto e submetidas em formato
e as ‘perspetivas’ devem ser formatados em word JPEG ou TIFF. As ilustrações fotográficas
e enviados por email para o Editor deverão ter uma resolução de, pelo menos, 1200
(vitorm@fe.up.pt). Os book reviews deverão ser dpi, e os desenhos de, pelo menos, 600 dpi. Todas
endereçados ao Editor dos Book Review as ilustrações devem ter uma designação. No
(marat.mendes@gmail.com). Os textos deverão final do texto, após a lista de referências, deve ser
ser submetidos em formato de coluna única com incluída uma lista das ilustrações, da seguinte
margens largas. Os autores não deverão tentar forma:
reproduzir o layout da revista. Todas as medições
devem ser expressas no sistema métrico. Figura 1. Análise metrológica de Lower
Os autores são os únicos responsáveis pelas Broad Street, Ludlow
opiniões expressas nos textos publicados na
‘Revista de Morfologia Urbana’. São ainda Deverá ser dedicada uma atenção especial ao
responsáveis por assegurar eventuais permissões layout das tabelas, devendo ser desenhada uma
para reprodução de ilustrações, citações extensas, tabela por página. As tabelas deverão ser
etc. desenhadas com o mínimo recurso a
normalizações quer na vertical quer na horizontal.
Referências Deverão ter margens largas em todos os lados.
Os autores deverão usar o sistema de
referenciação Harvard, no qual o nome do autor Página de título
(sem as iniciais) e a data são apresentados no Numa página em separado deverá ser indicado o
corpo do texto – por exemplo (Whitehand e título do artigo e o nome, a filiação académica
Larkham, 1992). As referências são apresentadas (ou profissional) e o endereço completo
por ordem alfabética no final do texto, sob o (incluindo email) do(s) autor(es).
título ‘Referências’, da seguinte forma:
Títulos
Conzen, M. P. (2012) ‘Urban morphology, ISUF Apenas na primeira letra e nos nomes próprios
and a view forward’, 18th International serão utilizadas maiúsculas. Os títulos deverão
Seminar on Urban Form, Montreal, 26 a 29 ser justificados à esquerda. Os títulos primários
de Agosto. deverão ser a negrito e os secundários em itálico.
Conzen, M. R. G. (1968) ‘The use of town plans
in the study of urban history’, em Dyos, H. J. Números
(ed.) The study of urban history (Edward Deverão ser usados algarismos para todas as
Arnold, Londres) 113-30. unidades de medida, à exceção de quantidades de
Hillier, B. (2008) Space is the machine objetos e pessoas, quando estas se referirem a
(www.spacesyntax.com) consultado em 9 valores compreendidos entre um e vinte. Nesse
Setembro de 2013. caso, os números deverão escritos por extenso.
Kropf, K. S. (1993) ‘An inquiry into the
definition of built form in urban morphology’, Por exemplo: 10 dias, 10 km, 24 habitantes, 6400
Tese de Doutoramento não publicada, m; mas dez pessoas, cinco mapas.
University of Birmingham, Reino Unido.
Moudon, A. V. (1997) ‘Urban morphology as an Provas
emerging interdisciplinary field’, Urban Durante o processo de publicação serão enviadas
Morphology 1, 3-10. provas aos autores. Nesta fase, apenas serão
corrigidos erros de impressão, não sendo
aceitáveis alterações de fundo.
Editorial
Uma parte dos textos contidos neste número Fainstein são dois exemplos notáveis de
da ‘Revista de Morfologia Urbana’ aborda investigação, sendo que o trabalho de
uma questão crucial para a nossa área do Fainstein, em torno do conceito da cidade
conhecimento – para que serve a morfologia justa, tem um enfoque mais claro na forma
urbana? Qual a utilidade da teoria e física das cidades. Uma ligação ainda mais
investigação em morfologia urbana não explícita entre justiça social e forma urbana
apenas para uma intervenção profissional tem vindo a ser desenvolvida por Laura
direta sobre os diferentes elementos que Vaughan, na University College London, no
compõem a paisagem urbana, mas também âmbito da segregação social. Ao longo das
para as dimensões ambiental, social e últimas duas décadas, Vaughan tem
económica da nossa vida coletiva em cidade? evidenciado uma correspondência entre
Recentemente identificaram-se cinco temas, segregação social e segregação espacial,
dentro das três dimensões referidas, para os distinguindo na cidade a existência de áreas e
quais a morfologia urbana pode dar um ruas pobres e espacialmente segregadas e
contributo fundamental: saúde pública, áreas e ruas mais prósperas e espacialmente
justiça social, turismo patrimonial, alterações integradas (Vaughan, 2007; Vaughan e
climáticas e energia (Oliveira, 2016). Se nos Arbaci, 2011; Vaughan e Penn, 2006).
dois primeiros e no último tema existe já No âmbito do terceiro tema, o turismo
trabalho consistente construído ao longo das patrimonial, uma parte significativa da
últimas décadas, em relação ao terceiro e ao investigação tem-se centrado na ‘oferta’, ou
quarto temas registam-se ligações mais seja, na interpretação, conservação e gestão
embrionárias. Os parágrafos seguintes dos recursos bem como nos serviços de
sintetizam, de modo muito breve, a apoio a quem visita esse património. Se para
investigação desenvolvida. a ciência da forma urbana é consensual que
A investigação recente sublinha que, por as cidades podem e devem transformar-se,
um lado, um conjunto significativo de um dos principais problemas que se colocam
benefícios de saúde pode ser alcançado quando se fala de património e de
através de uma atividade física moderada conservação é como lidar com o processo de
(incluindo percursos pedonais e cicláveis) e mudança, procurando contribuir para a
que, por outro lado, o desenvolvimento dessa manutenção de áreas e estruturas que
atividade física é efetivamente influenciado contenham em si mesmo o esforço e o
por um conjunto de características dos investimento de gerações passadas. Uma das
diferentes elementos de forma urbana. Estas linhas mais consistentes sobre conservação
características incluem a conectividade dos de áreas urbanas tem sido desenvolvida, ao
sistemas de ruas, a dimensão dos quarteirões, longo de mais de duas décadas, por Peter
a idade dos conjuntos edificados, a posição Larkham, primeiro na University of
dos edifícios no interior das parcelas, a Birmingham e, depois, na Birmingham City
mistura de funções, entre outros. Neste tema, University (Larkham, 1996).
uma das mais consistentes linhas de trabalho Blanco et al. (2011) sustentam que o
tem sido desenvolvida por Lawrence Frank, modo como os principais elementos de forma
primeiro no Georgia Institute of Technology urbana – como as ruas e os edifícios – e os
e depois na University of British Columbia sistemas de infraestruturas são organizados
(ver, por exemplo, Frank e Engelke, 2001; podem contribuir para a emissão de gases de
Frank et al., 2005). efeito de estufa e ampliar os impactos das
Do mesmo modo que no primeiro tema, alterações climáticas (o quarto tema
existe tambem um sólido trabalho sobre a identificado). De facto, a estrutura, a
relação entre as dimensões física e de justiça orientação e as condições específicas de ruas
social da cidade. David Harvey e Susan e edifícios podem aumentar a necessidade de
Revista de Morfologia Urbana (2016) 4(2), 63-4 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
64 Editorial
Urban Morphology
O último número da revista Urban Morphology aplicam o conceito de ‘cintura periférica’ numa
foi já publicado, sendo que a versão online se cidade multinuclear e em rápido crescimento.
encontra disponível, para os subscritores, em François Racine explora a componente
http://www.urbanform.org/online_public/2016_2. morfológica de uma prática de desenho urbano
shtml. Este número inclui quatro artigos. Andres em Montreal. Por fim, Jeremy Whitehand,
Sevtsuk, Raul Kalvo e Onur Ekmekci exploram a Michael Conzen e Kai Gu desenvolvem o método
influência de ruas, quarteirões e parcelas na de ‘análise do plano’ em duas cidades em
acessibilidade pedonal. Tolga Unlu e Yener Bas continentes diferentes, Como e Pingyao.
Morfologia urbana: diferentes abordagens
Vítor Oliveira
CITTA – Centro de Investigação do Território, Transportes e Ambiente, Faculdade de
Engenharia, Universidade do Porto, Rua Roberto Frias 4200-465 Porto, Portugal.
E-mail: vitorm@fe.up.pt
Revista de Morfologia Urbana (2016) 4(2), 65-84 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
66 Morfologia urbana: diferentes abordagens
geógrafo identificou uma hierarquia de cinco economia urbana (Whitehand, 1977). Mais
ordens baseada não só no plano de cidade, recentemente, o autor desenvolveu uma
mas também no tecido edificado (uma leitura preocupação explícita com os agentes no
tridimensional) e nos usos do solo. processo de transformação da cintura
Uma das características distintivas do periférica, realizando estudos sobre a
trabalho de Conzen é o detalhe da análise. interação entre proprietários, promotores e
Neste contexto, a relação entre as parcelas e planeadores nos processos de
as plantas de implantação dos edifícios desenvolvimento urbano (Whitehand e
assume um papel fundamental. Esta relação é Morton, 2003, 2004, 2006). Em termos de
conceptualizada no ‘ciclo de parcela escala de aplicação, Whitehand estendeu a
burguesa’: a ‘parcela burguesa’ representa a aplicação do conceito desde cidades até
posse de um cidadão proeminente num territórios mais vastos, como a conurbação
assentamento medieval; o ‘ciclo’ consiste no de Tyneside, Glasgow e Birmingham. Em
preenchimento progressivo, com edifícios, termos da variedade de contextos, também
das traseiras da parcela, terminando numa estendeu a aplicação a cidades em França, na
‘libertação’ de edifícios e, posteriormente, Rússia e na Zâmbia. Em 2009, M. P. Conzen
num período de pousio urbano antes do publicou uma análise comparativa da
início de um novo ciclo de desenvolvimento. aplicação do conceito nos diferentes cenários
Em Alnwick, o ciclo de parcela burguesa é culturais em que foi aplicada, refletindo
ilustrado com a evolução do Teasdale's Yard, sobre a eficácia e sobre os limites do
na Fenkle Street, entre 1774 e 1956. Este conceito na identificação e explicação de
ciclo é uma expressão particular de um variações na textura da forma urbana nesses
fenómeno mais geral em que as parcelas são diferentes contextos culturais (Conzen,
sujeitas a uma pressão crescente, muitas 2009). Finalmente, Ünlü (2013) apresenta
vezes associada a mudanças de requisitos um estado da arte sobre este conceito
funcionais numa área urbana em crescimento destacando as características distintivas de
(Whitehand, 2007). quatro tipos de ênfase – espacial, económica,
social e de planeamento. Três anos mais
tarde, o mesmo autor explora a aplicação do
Desenvolvimentos recentes conceito em cidades com padrões
multinucleares em contextos de rápido
Nas últimas quatro décadas, esta abordagem crescimento (Ünlü e Bas, 2016).
morfológica tem sido consistentemente Nas últimas décadas tem havido
desenvolvida pelo UMRG na Universidade aplicações e adaptações do conceito de
de Birmingham. O UMRG foi fundado em região morfológica e do método de
1974 por Whitehand (que foi sempre uma regionalização morfológica em todos os
figura central no desenvolvimento e continentes, bem como demonstrações do
consolidação do grupo e na promoção da seu potencial na conservação e planeamento
tradição Conzeniana) e é o principal centro patrimonial. Um importante estudo foi
de investigação existente no Reino Unido desenvolvido por Baker e Slater no início
dedicado ao estudo dos aspetos histórico- dos anos 1990. Tomando o núcleo de
geográficos da forma urbana. Worcester como caso de estudo, Baker e
Os parágrafos seguintes descrevem o Slater (1992) fornecem evidências para a
desenvolvimento dos três conceitos interpretação de algumas unidades de plano
apresentados na última subsecção – cintura como extensões planeadas criadas num curto
periférica, região morfológica e ciclo de período temporal e de outras unidades como
parcela burguesa. A investigação sobre produtos de um desenvolvimento mais
cinturas periféricas foi desenvolvida incremental. Neste capítulo de livro, o nível
principalmente por Whitehand, tendo tido de detalhe utilizado pelos autores na
também contributos de M. P. Conzen (filho explicação da aplicação do método é bastante
de M. R. G. Conzen) e de Slater. Na década invulgar. Numa revisão do método de
de 70, Whitehand explorou a relação entre as regionalização de Conzen e dos seus
cinturas periféricas e os ciclos de construção, desenvolvimentos ao longo de duas décadas,
demonstrando também a relação com a Whitehand (2009) sustenta a necessidade de
68 Morfologia urbana: diferentes abordagens
uma maior clareza nos métodos de Muratori prepara uma série de artigos para a
caracterização e de delimitação dessas revista Architettura sobre um conjunto de
unidades e uma maior apreciação do seu projetos arquitetónicos recentes construídos
potencial de aplicação na prática de na Europa. A sua prática profissional nesta
planeamento. Dois anos depois, Larkham e década inclui os planos para Aprília e
Morton continuam o estudo de Whitehand Cortoghiana (Maretto, 2012) e um conjunto
explorando o processo específico de desenho de projetos marcados pelo interesse pela
de limites entre diferentes regiões e composição de praças italianas, como temas
questionando a possibilidade de as regiões urbanos fundamentais, nos quais o ambiente
morfológicas, pelo menos nos níveis contruído envolvente é a razão
superiores da hierarquia, poderem ser contextualizada para a praça e para os
delineadas com rigor pela observação de edifícios monumentais que a conformam.
campo e pela análise de cartografia O segundo período, na década de 1940, é
(Larkham e Morton, 2011). marcado pelo desenvolvimento de uma
Slater continuou a linha de investigação perspetiva teórica e operacional. Neste
sobre parcelas – particularmente sobre os período, Muratori escreve uma série de
limites e as dimensões das parcelas – ensaios onde as ideias de cidade como
mostrando como a análise metrológica pode organismo vivo e obra de arte coletiva, e do
ser usada para reconstruir as ‘histórias’ dos desenho dos novos edifícios em continuidade
limites das parcelas. Como base na análise com a cultura construtiva do lugar parecem
das larguras das parcelas em Ludlow, Slater emergir. O programa INA-Casa, incluindo
foi capaz de especular sobre aquilo que tinha um conjunto de bairros em Roma, como
em mente o ‘agente’ medieval quando do Tuscolano (Maretto, 2012), são lançados no
desenvolvimento inicial da área bem como final da década de 1940. A Igreja de S.
inferir as larguras das parcelas originais e Giovanni al Gatano, em Pisa (Cataldi,
como elas foram posteriormente subdivididas 2013b), erguida neste período, tenta capturar
(Slater, 1990). as características fundamentais da arquitetura
românica.
A cidade é o tema principal da atividade
Abordagem tipológica projetual de Muratori na década de 1950. Os edifícios
projetados nesta década tentam abarcar dois
Esta secção divide-se em três partes: a dos períodos mais significativos da história
primeira e a segunda partes focam-se no da arquitetura italiana. Depois de uma fase
trabalho seminal de Saverio Muratori e de inicial em que parecia existir uma lacuna
Gianfranco Caniggia, descrevendo a sua conceptual entre os edifícios de Muratori,
atividade de investigação e ensino e a sua complexos e originais, e os seus planos, de
prática profissional; a terceira parte centra-se certo modo mais ‘banais’, no final da década
nos desenvolvimentos recentes desta de 1950 e, nomeadamente, na competição
abordagem, incluindo uma nova geração de para Barene di S. Giuliano, é construída uma
investigadores. forte ligação entre investigação (em
particular o Studi per una operante storia
urbana di Venezia, Muratori, 1959 – Figura
Saverio Muratori 2) e prática de arquitetura e planeamento.
Este plano corresponde uma recreação
Em Saverio Muratori: il debito e l’eredità, contemporânea, na margem da lagoa, de três
Cataldi (2013a), um dos principais momentos particularmente significativos da
proponentes da abordagem tipológica história urbana de Veneza (este plano será
projetual, divide a atividade de Muratori em retomado na penúltima subsecção).
cinco períodos correspondentes a cinco Território e civilização são os temas
décadas diferentes. O primeiro período fundamentais desenvolvidos por Muratori na
(1930-40) designado como ‘a década de 1960. Com base na experiência de
experimentação profissional’ corresponde Veneza (Muratori, 1959), Studi per una
aos primeiros anos após Muratori receber o operante storia urbana di Roma, publicado
seu diploma de arquiteto. Neste período, em 1963, constitui um atlas abrangente da
Morfologia urbana: diferentes abordagens 69
Figura 2. Studi per una operante storia urbana di Venezia – Quartieiri di S. Giovanni
Crisostomo, desde o século XI até aos anos 1950 (fonte: Muratori, 1959).
1963, 1967). Para Muratori, o único modo de anteriormente tinha aprendido sobre as
resolver a crise existente consistia na características peculiares do ambiente urbano
capacidade do ser humano estabelecer, a uma genovês (Cataldi et al., 2002).
escala global, uma relação equilibrada com Uma das principais preocupações de
os seus territórios (Cataldi et al., 2002). Caniggia era transmitir as ideias de Muratori
Nos seus últimos anos de vida, nos em termos arquitetónicos, partindo da
projetos não concluídos Atlante territorial e convicção de que a sua difusão estaria, de
Tabelloni, Muratori tenta estabelecer uma algum modo, obstruída por dificuldades de
classificação universal das estruturas compreensão inerentes ao pensamento de
construídas pelo homem. Muratori. Caniggia tentou simplificar e
reduzir o sistema teórico de Muratori,
destacando os seus aspetos mais
Gianfranco Caniggia operacionais. Nomeadamente, sublinhando a
importância dos conceitos de tipo, tecido
Em 1963 Caniggia conclui Lettura di una edificado e edifício básico – a matriz
città: Como (tese orientada por Muratori), o formativa do edifício especializado (Cataldi
seu primeiro grande contributo para a et al., 2002). Enquanto Muratori procurou,
morfologia urbana e a tipologia do edificado dedutivamente, contruir um sistema
(Caniggia, 1963). A interpretação do filosófico capaz de interpretar a história da
processo de desenvolvimento urbano desta civilização através da arquitetura, Caniggia
cidade permitiu-lhe evidenciar nas casas tentou construir, de modo indutivo, um
geminadas romanas a persistência da domus método tipológico capaz de interpretar
como um tipo de substratum. Esta foi uma transformações no ambiente urbano para fins
intuição fundamental que abriu uma linha de arquitetónicos (Cataldi, 2003).
investigação sobre os processos de formação Cataldi (2003) identifica seis contributos
de casas pátio medievais em cidades fundamentais de Caniggia para a abordagem
históricas europeias (Cataldi et al., 2002). tipológica projetual: i) o desenvolvimento de
Enquanto assistente de Muratori, Caniggia um conjunto de conceitos formulados por
trabalha no tema dos tecidos urbanos. Muratori: tipo, tipologia, estrutura, tecido,
Na década de 1970, Caniggia teve de série; ii) o estabelecimento do método
deixar Roma e iniciar uma longa viagem que tipológico projetual; iii) a descoberta e o
constituiria uma das razões para a difusão da reconhecimento da domus (casa pátio) como
abordagem tipológica projetual em Itália. Em a matriz, na arquitetura e no planeamento
Génova e Florença, Caniggia desenvolve romanos, para todos os tipos básicos
uma linha de investigação, nos seus cursos, seguintes; iv) a distinção entre tipo básico e
desenvolvendo uma metodologia para a tipo especializado; v) a teoria da
interpretação da cidade e dos seus ‘medievalização’ e os processos de utilização
componentes. Progressivamente, consegue espontâneos de estruturas planeadas; e,
acumular uma sólida experiência de ensino, finalmente, vi) o método de interpretação por
que viria a constituir material de base para a fases da história de uma cidade em
preparação de Composizione architettonica e articulação com os processos tipológicos
tipologia edilizia, escrito com Maffei, e básicos.
dividido em dois volumes. O primeiro
volume, sobre a interpretação dos edifícios
básicos (ou comuns), foi publicado no final Desenvolvimentos recentes
dos anos 70 (Caniggia e Maffei, 1979).
O segundo volume de Composizione Os desenvolvimentos recentes da abordagem
architettonica e tipologia edilizia é tipológica projetual são enquadrados por
publicado em 1984, com um enfoque no duas organizações, o Centro Internazionale
desenho dos edifícios básicos (Caniggia e per lo Studio dei Processi Urbani e
Maffei, 1984). Caniggia desenvolve um dos Territoriali (CISPUT) e o ISUF Italia, uma
seus projetos fundamentais na década de rede nacional do International Seminar on
1980, o bairro Quino em Génova, onde tem a Urban Form (ISUF). O CISPUT foi fundado
oportunidade de pôr em prática tudo o que em Pienza em 1981 por Cataldi – o seu
Morfologia urbana: diferentes abordagens 71
método de análise dos padrões espaciais, ‘Sínteses teóricas’ reúne algumas das
com ênfase na relação entre as relações questões levantadas na primeira parte, as
morfológicas locais e os padrões globais. regularidades evidenciadas na segunda parte
Estabelece uma teoria descritiva dos tipos de e as leis propostas na terceira parte do livro,
padrões e, em seguida, um método de para sugerir como os dois problemas centrais
análise. Esta teoria e este método são da teoria da arquitetura – o problema forma-
aplicados, primeiro, a assentamentos urbanos função e o problema forma-significado –
e, depois, a edifícios. Com base nestas podem ser ‘reconceptualizados’.
aplicações, o livro estabelece uma teoria Hanson (1998) analisa a evolução da
descritiva de como os padrões espaciais têm organização do espaço doméstico e da
associados conteúdos sociais. estrutura familiar na Grã-Bretanha através de
Hillier (1996) sintetiza o um conjunto de registos de ‘casas históricas’,
desenvolvimento da sintaxe espacial nos exemplos de ‘casas especulativas’ e de
anos 1980 e no início dos anos 1990, arquitetura doméstica inovadora
sublinhando as dimensões configuracional e contemporânea. Decoding homes and houses
analítica desta teoria. O livro divide-se em mostra como o espaço doméstico fornece um
quatro partes: i) ‘Preliminares teóricos’ trata enquadramento partilhado para a vida
das questões mais básicas a que a teoria quotidiana, como diferentes significados
arquitetónica tenta responder: o que é sociais são construídos em diferentes casas e
arquitetura e o que são teorias (?); ii) como diferentes subgrupos dentro de cada
‘Regularidades não discursivas’ apresenta sociedade se diferenciam através dos seus
uma série de estudos nos quais foram padrões de espaço doméstico e de estilos de
estabelecidas ‘regularidades’ na relação entre vida.
a configuração espacial e o funcionamento
dos ambientes construídos, utilizando para
tal técnicas não-discursivas de análise para Desenvolvimentos fundamentais
controlar as variáveis arquitetónicas; iii) ‘As
leis do campo’ utiliza essas regularidades Hillier (2007) identifica os principais
para reconsiderar uma questão fundamental contributos para a teoria e o método da
na teoria arquitetónica: como é que o vasto sintaxe espacial nas décadas de 1990 e 2000.
campo de possíveis complexos espaciais é Em termos de método – frequentemente
constrangido durante o processo de criação correspondente ao desenvolvimento de novo
de cada edifício (?); e, por fim, iv) software – Hillier destaca os textos de:
Morfologia urbana: diferentes abordagens 73
‘vizinhança de von Neumann’ – as quatro modo como lidam com o espaço e como
células a norte, sul, este e oeste da célula capturam as dinâmicas espaciais dos
central. As regras de transição alteram os fenómenos – como podem ser mais úteis
estados das células ao longo do tempo, para os estudos urbanos e a prática de
simulando dinâmicas territoriais. O tempo dá planeamento.
assim a estes modelos um caráter dinâmico.
A combinação destes componentes permite
modelar a forma – através de células e de Modelos baseados em agentes
vizinhança – e a função das células – com
estados celulares e regras de transição (Pinto, Ao longo do século XX, a geografia
2013). incorporou ideias e teorias de outras
A designação ‘celular’ contribui com a disciplinas. Essas ideias fortaleceram a
estrutura espacial do conceito; a designação importância da modelação e da compreensão
‘autómato’ indica a capacidade de processar do impacto dos agentes individuais e da
este código (os estados da célula) de acordo heterogeneidade dos sistemas geográficos a
com um conjunto de regras de transição. Um diferentes escalas espaciais e temporais. Os
modelo no qual o espaço é constituído por Modelos Baseados em Agentes (MBA)
células diferentes será um modelo de permitem a simulação das ações individuais
autómatos celulares. Os modelos de AC de diversos agentes e a medição do
tiveram um desenvolvimento muito intenso comportamento e resultados do sistema ao
em diferentes áreas da física e matemática, longo do tempo. O desenvolvimento de
beneficiando dos avanços da computação abordagens de autómatos tem sido essencial
entre os anos 1950 e 1970. O trabalho de para os avanços nos MBA. Um autómato é
Wolfram compilado no seu livro A new kind um mecanismo de processamento com
of science (Wolfram, 2002) e Game of life de características que mudam ao longo do
Conway (publicado pela primeira vez por tempo com base nas suas características
Gardner, 1970, na revista Scientific internas, em regras e em inputs externos. Os
American) são dois exemplos notáveis. autómatos processam inputs de informação
Apesar de algumas experiências nas que lhes são fornecidos a partir da
décadas de 1950 e 1960 (Hagerstand, 1952; envolvente e as suas características são
Lathrop e Hamburg, 1965), os AC foram alteradas de acordo com regras que
aplicadas pela primeira vez em estudos controlam a sua reação a esses inputs. Dois
urbanos por Tobler no seu trabalho Cellular tipos de ferramentas de autómatos têm vindo
Geography. Tobler (1979) propõe um novo a dominar o debate – AC (que foram
modelo geográfico que recebe inputs do apresentados na última subsecção) e MBA
Game of Life e do conceito de vizinhança de (Crooks e Heppenstall, 2012).
von Neumann. Após este trabalho, vários Embora não exista uma definição precisa
autores passaram a implementar modelos de do termo ‘agente’, existem algumas
AC na simulação de fenómenos urbanos, características comuns à maioria dos agentes:
particularmente a partir dos anos 1980, os agentes são autónomos, heterogéneos e
quando a microcomputação amplia a ativos. Os agentes podem ser representações
utilização do cálculo computacional: de qualquer tipo de entidade autónoma
Couclelis (1985) sustenta a combinação de (pessoas, edifícios, parcelas). Cada um
AC e teorias de sistemas para estudar os desses agentes, animados e inanimados,
sistemas urbanos; White e Engelen (1993) possui regras que afetarão o seu
apresentam o seu primeiro modelo comportamento e as suas relações com
‘constrangido’, combinando mecanismos de outros agentes e / ou com o ambiente
escala micro e macro em regras de transição envolvente. O ambiente envolvente define o
de estados celulares. Couclelis (1997) espaço em que os agentes atuam, servindo
enumera uma série de questões-chave para apoiar a sua interação com o próprio
(relativas ao espaço e à sua modelação, às ambiente e com outros agentes (Crooks e
vizinhanças e à sua definição, e às regras de Heppenstall, 2012).
transição e à sua universalidade) para que os Os MBA têm muitas das características
modelos de AC sejam mais realistas no dos modelos de AC, exceto o ambiente e a
76 Morfologia urbana: diferentes abordagens
Abordagem Conzen (1960) Divisão tripartida da i) ruas, parcelas e 1992 - O plano para
histórico-geográfica paisagem urbana edifícios Asnières-sur-Oise,
Cintura periférica ii) escalas micro à França, de Ivor
Região morfológica macro Samuels e Karl Kropf
Ciclo de parcela iii) importância da
burguesa história
Abstract. This paper presents the origins, main characteristics and fundamental developments of four
dominant approaches in the international debate on urban morphology: historico-geographical
approach, process typological approach, space syntax and spatial analysis – including cellular automata,
agent-based models and fractals. After describing these four approaches, the article synthesizes their
fundamental elements; shows how each approach deals with urban form elements, levels resolution and
time; and illustrates the potential of each approach with applications in professional planning practice.
Revista de Morfologia Urbana (2016) 4(2), 85-105 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
86 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
Figura 1. (a) Estrutura orgânica de uma folha (b) Estrutura urbana de corredores e
subáreas (fonte: fotograma; diagrama dos autores).
formado por faixas que têm a largura do subárea de pequenas dimensões, formada por
corredor. O miolo, que se denomina como ruas locais e delimitada por corredores que
subárea, é composto por vias de distribuição distribuem.
e ruas locais dando suporte a quadras, em Para este procedimento de análise urbana,
número que varia conforme o espaçamento procura-se aprofundar o entendimento e a
das faixas poligonais. sistematização dos tipos de corredores, de
A classificação de um corredor e a modo a se poder aplicar os tipos encontrados
determinação das subáreas relaciona-se com a outras situações de pesquisa. No momento
a escala de aproximação que se deseja trata-se especificamente dos tipos de vias que
observar. Os diferentes níveis de gradação de dão suporte para as duas categorias de
escalas relativizam os parâmetros para corredores (os que atravessam, os que
eleição dos corredores e para análise dos distribuem) e para as vias locais.
elementos do entorno. Deste modo, o
procedimento de estudar o tecido urbano por
corredores e subáreas é aplicável a qualquer Tipos de corredores
escala, desde a região até o trecho de
vizinhança formado por poucas quadras. Vias Corredor que atravessa o setor em estudo
de menor importância metropolitana
assumem papel estruturador ativo quando Em primeira análise do tecido urbano,
observadas no contexto de áreas menores. No evidenciam-se os corredores que atravessam
caso do fracionamento para a obtenção de um setor em estudo. Eles são de grande
subáreas pequenas, os corredores de importância por conectar setores diferentes
distribuição podem fazer parte da poligonal da cidade, interferindo na dinâmica urbana de
de contorno, como no estudo de caso que modo amplo e até regional. Outras vezes,
será apresentado a seguir. podem apenas recortar internamente partes
O que motiva este processo de análise em de um trecho do tecido urbano. Por este
especial é a possibilidade de estudar até a motivo, a definição de corredor que atravessa
menor unidade de fracionamento do espaço um setor urbano fica relacionada à escala de
urbano mantendo a relação com o todo do abrangência adotada para cada trabalho. O
tecido urbano da cidade. Particularmente, fotograma da Figura 1a ajuda a visualizar
compreender a formação de áreas de estes elementos por associação à estrutura
vizinhança formada por quadras de lotes orgânica de um vegetal. Em algumas
pequenos, de 100 m² para uso residencial, situações, o corredor que atravessa
entremeados (com certa frequência) por acompanha um limite definido por um forte
junções de lotes que chegam a 500 m², elemento físico difícil de transpor, como o
dimensão a partir da qual aparecem pequenos oceano, que forma uma barreira em um dos
galpões industriais. São quadras de 50 m de lados da avenida da praia, ou uma montanha
largura, que chegam a ter o comprimento de onde a via de contorno acompanha seu sopé
200 m, medida que marca a modulação entre separando dois tipos de área urbanizada.
vias de distribuição. Existem casos em que o Outra situação que causa o efeito de forte
responsável pelo loteamento inicial separação entre os dois lados de um corredor
organizou de forma tão intricada estas é quando ele é muito largo, formado por uma
quadras, que hoje elas formam remansos via expressa ou uma ferrovia, que separa
dentro do sistema urbano maior, contundentemente os dois lados da faixa de
evidenciando predominante uso residencial. lotes, constituindo um limite forte ou
Em consequência, este tipo de agenciamento barreira, indicando ser melhor estudar cada
das ruas e quadras desperta a curiosidade de lado em separado, apesar da possível
se investigar parâmetros para o que se possa existência de dispositivo especial para
definir o que é uma área de vizinhança numa transpô-lo, como por exemplo, uma ponte
cidade como São Paulo. Ou seja, uma (Lynch, 2006 [1960]).
88 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
Figura 2. (a) Município de São Paulo (b) distrito da Mooca no lado este do centro da
cidade (fonte: Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).
Corredores que distribuem os fluxos dentro estudo são referidas como área de
de um setor urbano vizinhança. Anteriormente se destacou a
questão da subárea pequena como
Os corredores que distribuem são contraponto às subáreas de alta concentração
importantes para análise em escala menor, de edificações.
pois têm a função de articular os corredores A evolução dos estudos do GPAC sobre a
que atravessam com as vias locais. Do ponto classificação de tipos de subárea, no tecido
de vista do uso do solo, eles fazem a urbano tradicional de São Paulo, evidencia o
gradação entre o comércio, serviço e interesse de se comparar um setor, composto
instituições de abrangência regional, por uma ou mais subáreas e corredores, com
instalado nos corredores que atravessam, para modelos de unidade de vizinhança do
uma oferta local. urbanismo moderno e os conceitos de cidade-
jardim, tão divulgados internacionalmente.
Ruas locais Sobre a cidade-jardim destaca-se o diagrama
proposto por Clarence Stein, em 1929, para
Esta subsecção aborda a ruas (ou vias) locais um neighborhood (área de 64 ha) nas
que servem para o acesso final ao destino do cercanias do município de Nova Iorque;
usuário. Uma parte das ruas locais se atualizado por representantes do novo
conectam com vias de distribuição e fazem o urbanismo no início deste século e logo em
papel de ligação com outras ruas locais, seguida por Douglas Farr (urbanismo
gerando percursos ainda mais específicos. sustentável) – Farr (2008). A investigação
Outras vezes elas são loop ou cul-de-sac sobre corredores e subáreas serve também
levando e trazendo os fluxos para uma rua de para se procurar uma resposta à pergunta:
distribuição. As ruas locais são importantes como poderá ser entendida uma área de
para a análise das subáreas pequenas, de vizinhança, em um tecido tradicional de alta
predominância residencial, que para efeito de densidade de uso e ocupação do solo?
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo 89
Figura 4. (a) Distrito da Mooca: vias que atravessam e distribuem; (b) área de estudo.
Figura 5. Área de estudo: (a) vista aérea, (b) numeração dos corredores
(fonte: Google Earth, autores).
minutos, fora dos horários de pico do tráfego. Tobias Barreto; ii) corredores que distribuem
A quantidade de linhas de ônibus foi retirada - 9. Sapucaia, 10. Trilhos e 11. Itaqueri; e,
do guia oficial da cidade de São Paulo. por fim, iii) ruas locais: A. João Santisi, B.
O objetivo é gerar uma avaliação Miraluz e C. Comendador Alfaia.
comparativa dos tipos de vias e aferir, in loco
e através do quadro comparativo, as
diferenças entre os tipos de corredores e vias Corredores de atravessamento
locais. Sendo que no presente estudo o foco
será apenas na forma física das vias, sem Corredor 1. Alcântara Machado
entrar no uso do solo das faixas de lotes
lindeiras. Na Figura 5b pode-se observar: i) É caracterizado pela Avenida Alcântara
corredores que atravessam – 1. Alcântara Machado que, no trecho em estudo, funciona
Machado, 2. Bresser-Paes de Barros, 3. como via de distribuição do Sistema Radial
Siqueira Bueno, 4. Fernando Falcão, 5. Rua Este (Figura 7). O conjunto Radial Este,
da Mooca, 6. Cassandoca, 7. Taquari e 8. metrô e ferrovia (Companhia Paulista de
92 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
vista geral apresentada na Figura 12, imagem institucional e baixa densidade, trechos com
que ilustra a variedade de tipos de tecidos edificações antigas com uso de comércio e
urbanos existente no setor escolhido para serviços, lote grande ocupado por
análise. universidade e condomínios verticais.
Este corredor conecta os corredores Bresser- Este corredor desenvolve-se desde a Rua da
Paes de Barros e Siqueira Bueno (1 180 m) Mooca na direção nordeste cruzando
prolongando-se na direção nordeste (Figura perpendicularmente o corredor Siqueira
13). Tem um tipo característico de uso e Bueno (Figura 14). No trecho de estudo tem
ocupação do solo com um grande lote de uso o comprimento de 850 m, de um total de
96 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
não há trânsito muito intenso e pouco uso Avenida Alcântara Machado, a Rua dos
comercial e de serviços. Há um trecho onde Trilhos marca a entrada da Mooca para quem
existem condomínios verticais de grande se desloca a partir do Sistema Radial Este
porte, totalmente fechados por muros, o que (Figura 16). Entrando na área de estudo, a rua
colabora para haver poucas pessoas nas ruas. corta a Avenida Paes de Barros e vai até a
Rua Itaqueri (Corredor 11). Trilhos é um
Corredor 10. Trilhos corredor comercial por excelência, com
diversos trechos em transformação. A rua
Fora do trecho em estudo, com início na tem uma extensão de 2 260 m.
98 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
Esta rua, com 167 m de comprimento, É uma rua estreita com 90 m de extensão,
localiza-se entre a Rua Sapucaia e a Rua cujos lotes em sua maioria tem frente de 10
Joaquim Lopes Figueira (Figura 19). Trata-se até 15 m (Figura 20). Observou-se uma casa
de uma rua estreita, que apresenta testada de em lote de 15 m de frente, com dois
lotes indo até os 10 e 15 m onde aparecem pavimentos, com acesso para estacionamento
sobrados de qualidade da construção dentro do lote (quatro carros), podendo
relativamente boa. significar que a família mesmo tendo uma
100 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
boa renda, preferiu ali residir. Nesta rua o dela originados. Os corredores foram
padrão das construções é relativamente bom, denominados conforme a via que lhe dá
considerando o tipo de vizinhança. origem, e são compreendidos pelo conjunto
desta via com a ocupação e volumetria das
edificações lindeiras. Para sua caracterização,
consideraram-se ainda critérios como tráfego,
Considerações finais presença de transporte público, uso do solo e
comprimento da via, além de uma descrição
O objeto principal deste artigo se restringiu de seu papel como conectora de setores da
ao estudo das vias de ligação como suporte cidade, a fim de determinar sua importância
para a posterior caracterização dos corredores hierárquica no sistema viário como um todo.
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo 101
De entre os corredores que atravessam, o utilizado por pedestres e com ativo uso de
Corredor 1. Alcântara Machado e o Corredor comércio e serviços. Os demais corredores
2. Bresser-Paes de Barros apresentam maior que atravessam têm menor calha viária, em
largura e fluxo. Destes, o primeiro tem muitos casos de largura idêntica. Muitas
caráter expresso, menos comércio local e vezes nestes corredores a pista é estreita para
menor uso das calçadas. O corredor a função viária que cumprem; as calçadas
Bresser-Paes de Barros, por sua vez, é não chegam a 3 m de largura e no entanto
amplamente utilizado para transporte atendem a um uso intenso misto de comércio,
público (com longo trecho de corredor de serviços (incluindo oficinas), institucional e
ônibus, que se dispersa justamente na área residencial. Este é o caso do Corredor 3.
de estudo), sendo intensamente Siqueira Bueno e do Corredor 5. Mooca, que
102 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
apesar da calha pequena, são vias uma porção nordeste e outra sudoeste. Do
significativas por apresentarem longa lado nordeste predomina o tecido ortogonal
extensão e atravessarem diferentes distritos. cortado transversalmente pela Rua Sapucaia
Deste modo, nota-se que um fator cujo traçado cobriu um córrego existente
determinante para a hierarquia da via dentro então canalizado. Na porção nordeste, a
do sistema de circulação do bairro, para além ortogonalidade do traçado segue o
de sua largura, é o comprimento da via e os alinhamento do Corredor 3. Siqueira Bueno.
destinos que conecta, e isto acaba Nesta porção do tecido, o espaçamento
determinando as características do uso do rigoroso de 200 m entre as vias
solo e a intensidade de fluxos de veículos e perpendiculares que distribuem o fluxo para
pedestres. O Corredor 6. Cassandoca, o interior da área estudada permite a
atravessa a área de interesse determinando identificação de uma retícula reguladora por
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo 103
trás do desenho das quadras, marcada por sem saída (cul-de-sac) e ruas em forma de
vias que distribuem e que apresentam largura loop, subdividindo as quadras regulares da
em torno de 16 m e traçado contínuo. Com malha. Este tipo de ocupação definiu as vias
base nesta malha inicial de 200 m, o traçado locais A, B e C analisadas neste estudo.
foi subdividido em função do parcelamento Nestas áreas, verifica-se que a não
em lotes com profundidade em torno de 25 continuidade do traçado das vias locais
m, possivelmente sob a iniciativa de auxiliou na preservação das vizinhanças
empreendedores independentes, o que residenciais horizontais. Contribuiram para a
determinou uma profusão de vias locais manutenção destas áreas as restrições de
estreitas e com pouca extensão (com um legislação e o intenso parcelamento com base
máximo de 200 m). em lotes de dimensão reduzida, o que não
A não padronização dos projetos para favoreceu o interesse dos empreendedores de
abertura de ruas locais resultou em um tecido grandes edifícios. É uma situação que
repleto de vias estreitas e descontínuas, ruas favorece uma diversificação de tipos de
104 Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
tecido urbano. Esta característica se repete análise. Espera-se desta maneira fornecer
em outros lugares da cidade, e aponta para a subsídios para a análise e o desenho da forma
necessidade de instrumentos de política física da cidade.
pública que possibilitem a manutenção e
implementação da qualidade ambiental destes
bolsões de uso predominante residencial. Agradecimentos
Deste modo, verifica-se que não apenas os
corredores assumem caráter próprio, mas Participou dos trabalhos de pesquisa de campo
para a elaboração deste artigo o estudante de
determinam subáreas que também poderão
arquitetura e urbanismo da Universidade São
apresentar características específicas muito Judas Tadeu, Anísio Serafim Júnior. Esta temática
diferentes dos corredores. Este facto está relacionada à sua pesquisa de Iniciação
corrobora a ideia inicial da investigação que Científica ora em desenvolvimento, com o título
sustenta o estudo do espaço urbano por partes ‘O distrito da Mooca, tipos do seu tecido urbano e
e a especificação de procedimentos de seus espaços de convivência’.
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo 105
Referências
tipos’, 5ª Conferência do PNUM, Guimarães, 15
Farr, D. (2008) Sustainable urbanism, urban e 16 de Julho.
design with nature (John Wiley & Sons, Nova Lynch, K. (2006 [1960]) A imagem da cidade
Jérsia). (Martins Fontes, São Paulo).
Imbronito, M. I. e Macedo, A. C. (2016) ‘Tecido Macedo, A. (2002) ‘O espaço urbano por partes’,
urbano do distrito da Mooca: um estudo de Revista Sinopses 38, 11-6.
Patterns of local streets and corridors in the district of Mooca, São Paulo
Abstract. This analysis of the urban fabric of the so-called Mooca district, in the city of São Paulo,
Brazil, involves the consideration of streets, street-blocks, plots and buildings taken in isolation, and also
of two other composite elements: ‘corridors’ crossing each city sector and corridors within each sector.
The corridor is understood as the articulation between the street, the plots on both sides of the street and
the buildings erected in these plots. Each corridor contains different information on the urban tissue
varying according to the scale of analysis: region, municipality and neighborhood. Each part of the city
contained inbetween corridors is a subarea. The paper offers an analysis of corridors in the formation of
traditional residential fabrics.
conferência teve lugar no centro histórico de Pereira da Costa e Maria Manoela Gimmler Netto
Guimarães, Portugal, mais precisamente no (Costa e Netto, 2015), sobretudo pelas suas
Centro Cultural Vila Flor. O número de perspetivas pedagógicas. Finalmente, é de se
inscrições efetivadas ao PNUM 2016 é salutar a continua divulgação de publicações
significativo e corrobora as expectativas da realizadas por membros do PNUM na revista
equipa organizadora do evento, coordenada por Urban Morphology, na secção book reviews e
Jorge Correia e Miguel Bandeira, da que inclui os livros ‘Urbanismo na composição
Universidade do Minho. Na edição do PNUM de Portugal’ de Luísa Trindade (Coelho, 2015) e
2016 regista-se a presença de um número ‘Os elementos urbanos’, de vários autores e
significativo de jovens investigadores e coordenado por Carlos Dias Coelho (Dufaux,
estudantes, entre os vários palestrantes, o que 2015).
constitui um contributo muito positivo para o É desejo do PNUM continuar a promover o
assegurar da continuidade de conhecimento no estudo da forma urbana junto da comunidade
âmbito da morfologia urbana, entre diferentes lusófona, mas também internacional. Foi nesse
gerações de investigadores. sentido que em Setembro de 2016, no ISUF
Imediatamente a seguir ao PNUM 2016, entre Council que teve lugar na 22ª Conferência do
19 e 23 de Julho, teve lugar em Vila Nova de ISUF, em Roma, foi proposto por Teresa Marat-
Cerveira, na Escola Superior Gallaecia, o 2º Mendes, conselheira deste órgão a necessidade de
Workshop promovido pela Rede Lusófona de se promover uma Task Force no ISUF que
Morfologia Urbana, com o tema ‘Forma urbana e visasse estudar e implementar uma articulação
dinâmicas transfronteiriças’. À semelhança do 1º entre as várias Local Networks do ISUF, das
Workshop, o programa do workshop de 2016 quais o PNUM é uma delas. O objetivo seria: i)
incluiu a análise e a aplicação de um conjunto de proporcionar um maior cruzamento das várias
abordagens metodológicas específicas – redes existentes dentro do ISUF; ii) contribuir
abordagem Histórico-Geográfica da Escola para o reforço da identidade multicultural do
Conzeniana, abordagem Tipológica Processual da próprio ISUF, dando-lhe contudo maior
Escola Muratoriana, Space Syntax e Sistemas de visibilidade; e ao mesmo tempo iii) proporcionar
Informação Geográfica (SIG) – em casos de uma identificação de eventuais linhas de
estudo em concreto, Viana do Castelo e Tui. Está abordagem morfológica partilhadas quer
também prevista a realização de um e-book com historicamente ou na contemporaneidade pelas
os resultados do workshop de 2016. várias Local Networks do ISUF. Caberá neste
No que diz respeito à atividade editorial sentido ao PNUM procurar como melhor
realizada no âmbito do PNUM, a Revista de contribuir também para este desafio.
Morfologia Urbana, editada por Vítor Oliveira,
tem continuado a assegurar a publicação de
perspetivas e artigos na área da morfologia Referências
urbana. Traduções portuguesas de trabalhos
seminais originalmente publicados em inglês na Coelho, C. D. (2015) ‘O urbanismo na
revista Urban Morphology continuam a ser composição de Portugal’, Urban Morphology
disponibilizados pela Revista. 19, 189-91.
Em 2016 foi publicado o e-book resultante do Costa, S. A. P. e Netto, M. M. G. (2015)
1º Workshop do PNUM, com o título ‘Diferentes Fundamentos de morfologia urbana (C/Arte,
Abordagens no Estudo da Forma Urbana’ Belo Horizonte).
(Oliveira e Monteiro, 2016), contribuindo para a Dufaux, F. (2015) ‘Os elementos urbanos’,
difusão dos resultados do workshop e da Urban Morphology 19, 103-4.
divulgação das metodologias de análise da forma Oliveira, V. (2016) Urban morphology. An
urbana promovidas no workshop junto de uma introduction to the study of the physical form of
comunidade estudantil mais alargada. cities (Springer, Dordrecht).
Sem qualquer desrespeito pelas várias Oliveira, V. e Monteiro, C. (2016) Diferentes
publicações entretanto disponibilizadas por abordagens no estudo da forma urbana (FEUP,
outros membros do PNUM, no último ano de Porto).
atividades, gostaríamos de indicar aqui duas
publicações que merecem a nossa atenção no
âmbito do estudo da forma urbana. Teresa Marat-Mendes, Instituto Universitário de
Designadamente, o livro ‘Urban Morphology. An Lisboa ISCTE-IUL, DINÂMIA’CET-IUL,
Introduction to the Study of the Physical Form of Departamento de Arquitectura e Urbanismo, Av.
Cities’, de Vítor Oliveira (Oliveira, 2016) e das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal.
‘Fundamentos de Morfologia Urbana’ de Staël E-mail: teresa.marat-mendes@iscte.pt
PERSPETIVAS
Debate sobre temas fundamentais
em morfologia urbana
O interesse pelos estudos e instrumentos definidos International Seminar on Urban Form (ISUF),
pela morfologia urbana surgiu por meio de anglo-saxã e italiana, baseadas nos ensinamentos
experiência didática desenvolvida na disciplina de M. G. R. Conzen e Saverio Muratori.
Urbanismo ministrada, inicialmente, em Porém, persiste uma preocupação maior –
diferentes semestres da Faculdade de Arquitetura apesar do aprofundamento dos debates sobre
e Urbanismo da Universidade Presbiteriana morfologia e projeto urbanos, pouco se evoluiu na
Mackenzie desde a virada do século. discussão da relação entre morfologia urbana e
Considerava-se, naquele momento, que as legislação urbanística. E ainda mais sério, a
Operações Urbanas (instrumento urbanístico relação entre análise morfológica e cidade real,
proposto pela gestão municipal para setores da não construída sob preceitos da legislação
cidade implicando parceria público-privada) urbanística.
seriam o instrumento urbanístico mais eficiente Deve-se destacar que se considera o Estado –
para a definição do projeto urbano, mas, o poder público municipal – como gestor dos
perguntava-se se deveriam ser sempre utilizadas. diversos interesses conflitantes existentes na
No entanto a análise morfológica é imprescindível cidade e o plano diretor como projeto social, e
para que esse processo se realizasse com sucesso. com este a distribuição racional dos benefícios
Ao longo de quase 20 anos, transitei por todas entre os diversos grupos de interesse na cidade.
as etapas da disciplina Urbanismo, abordando de A rentabilidade social dos recursos está
diferentes maneiras, da rua à região, a condicionada a uma intervenção mais ampla do
necessidade do conhecimento e reconhecimento poder público na produção do espaço urbano de
do facto urbano em suas diferentes escalas. Este modo a quebrar o círculo vicioso, que tem origem
conhecimento foi aprofundado pela utilização da nos vazios urbanos. Os vazios urbanos aparecem
metodologia proposta pela morfologia urbana a como causadores de problemas na cidade. Pode-
partir de duas vertentes reconhecidas pelo se deduzir que se todos os espaços vazios (lotes
Revista de Morfologia Urbana (2016) 4(2) 107-21 Rede Lusófona de Morfologia Urbana ISSN 2182-7214
108 Perspetivas
ou edifícios desocupados) existentes na área tornou um método de atrair capital e pessoas num
servida por infraestrutura fossem ocupados, os período de competição interurbana e de
problemas, em sua grande parte, encontrariam empreendimentos urbanos intensificados. Para
solução. que essas intervenções urbanas tenham um caráter
As premissas apontadas levam a refletir sobre democrático, devem ser precedidas de normas
dois pontos importantes, o caráter destemido - ou democraticamente elaboradas contidas no Plano
utópico - dos planejadores ao acreditar que por Diretor, que estabeleçam prioridades para a
meio de diretrizes poderiam dar uma nova cidade e na Legislação de Uso e Ocupação do
racionalidade a uma cidade já estruturada como Solo que as confirme.
São Paulo, e ainda pensar ser possível um Para avaliar-se a forma urbana atual de São
processo não voltado para o mercado imobiliário. Paulo, deve-se conhecer de um modo mais
Verifica-se a ausência de nuanças no atuar dos sistemático os tecidos urbanos que se formaram
planejadores, que não consideraram a presença em setores de bairros na cidade de São Paulo,
dos agentes produtores da cidade, o setor privado durante o século XX. Para isso torna-se necessária
e muitas vezes, o próprio setor público que age a análise dos tipos de tecidos urbanos, por meio
independente de regras racionalizadoras, ou de sua descrição e possíveis qualidades,
apesar delas. inserindo-os na lógica do processo de produção
A legislação urbanística ao estabelecer formas da cidade, ressaltando o papel da legislação
permitidas e proibidas, acaba por definir urbanística na sua definição. Esse instrumental
territórios dentro e fora da lei. analítico, colocado à disposição dos planejadores
A metodologia da análise tipo-morfológica urbanos, urbanistas e arquitetos, permitirá melhor
pode vir a contribuir na aplicação de novos qualificação de proposições relativas a planos e
instrumentos urbanísticos contidos na recente projetos urbanos para a cidade de São Paulo.
legislação do Município de São Paulo (Plano A partir da reflexão sobre um sistema de áreas
Diretor Estratégico, Planos Diretores Regionais e e respetivo conjunto de demandas, pode-se pensar
Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo). na antecipação de novas referências urbanas. A
A aprovação recente da nova Lei de perspetiva de expressão das áreas a serem
Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo (Lei n.º estudadas pressupõe reflexão teórica pela qual
16 402, 22/03/2016) não permite avaliar o quanto seria possível reconhecer conceitualmente
a cidade mudará a partir de sua aplicação. O que situações urbanas emergentes e elaborar projetos
trouxe de inovador foi a participação da que aumentassem suas potencialidades. Novas
população em sua formulação final. possibilidades seriam então consideradas por
A análise tipo-morfológica de setores de meio da articulação de projetos públicos e a
bairro construídos lícita ou ilicitamente permite transformação da cidade a partir de pontos
verificar a permanência da lei e os processos de estratégicos de renovação, garantindo sua
transformação causados por sua utilização. legitimidade.
As demandas por uma cidade inserida na A formação dos tecidos urbanos deve ser
economia global sugerem a participação do analisada, por meio de estudos sistemáticos,
Estado não apenas como coordenador, mas como condicionados pela estruturação urbana que passa
instigador de mudanças no espaço urbano, que pelo processo de produção, apropriação e
garantam acessibilidade e qualidade de vida aos consumo da cidade.
cidadãos e à cidade. Os estudos morfológicos abrirão novas
As cidades (e os seus governantes) tentam perspetivas para a compreensão da paisagem
hoje criar uma imagem positiva e de boa urbana, permitindo uma avaliação qualitativa do
qualidade de si mesmas, e têm procurado na espaço urbano e apontando caminhos tanto para a
arquitetura e no projeto urbano o atendimento a preservação e requalificação do tecido urbano
essa necessidade. Dar determinada imagem à quanto para a elaboração de projetos urbanos para
cidade por meio da organização dos espaços se áreas degradadas ou ainda não ocupadas.
Praeter utilitas
Miguel Melo Bandeira, Câmara Municipal de Braga, Praça do Município, 4700-435
Braga, Portugal. Centro de Estudos de Geografia e Ordenamento do Território, Via
Panorâmica s/n, 4150-564 Porto, Portugal. E-mail: miguel.bandeira@cm-braga.pt
Atualmente, tudo aquilo que não se justifica pela mesmo considerado como sendo inútil por uma
sua utilidade parece carecer de sentido, ou é ampla banda de pragmáticos. Até o próprio
Perspetivas 109
conhecimento, pela sua incondicionalidade e espaço urbano, em geral. Dada a sua natureza
voluntarismo intrínseco, que popularmente era física (os traçados e os planos) tende a privilegiar
tido por ‘não ocupar espaço’, hoje em dia, sugere- a análise visual do espaço urbano (desenho e
se, só poder ‘valer’ sentido, ou sequer merecer ‘morfo-volumetria’), pelo que frequentemente se
crédito, sobretudo, de quem se arvora de o confunde com o domínio da ‘paisagem urbana’. A
referenciar, se tiver uma aplicabilidade prática, morfologia urbana pode ser entendida à escala de
tanto melhor, quanto mais esta for imediata e diversas tipologias de plano, como por exemplo,
contenha uma suscetibilidade tecnológica. geomórfico, radio-concêntrico, ortogonal,
E no entanto, à questão de ‘para que serve’, no irregular, compósito (espontâneo e planeando).
caso, ‘a morfologia urbana’, para lá da sua Por outro lado, pode ser decomposta em
dimensão utilitarista, que não utilitária (tendo em dimensões espaciais, como nos propõe Rossi e
conta o fim), desde logo inscreve-se o valor Tricart (Lamas, 1993): a cidade, o bairro e a rua,
hermenêutico do que esta pode significar para o ou por elementos básicos: o solo, os edifícios, o
conhecimento e a compreensão dos fenómenos e lote, o quarteirão, a fachada, o logradouro, o
dos estudos urbanos. Questão, ela própria, que traçado / a rua, a praça, o monumento, árvores e
convoca outras bem mais elementares. O que é, vegetação, e mobiliário urbano (Lamas, 1993).
então, a morfologia urbana? Que importância A evolução das teorias relativas à forma
tem? E por fim, naturalmente, para que poderá urbana pode igualmente inscrever-se em diversas
servir? tradições fundamentais: os trabalhos pioneiros de
No princípio é sempre o étimo. Dos helénicos geografia urbana franceses e alemães, do início do
morphé e logos – μορφολογοσ – simplesmente século XX, com referência a R. Blanchard, Karl
remissível para o estudo das formas. Isto é, o Hassert e Otto Schlüter; a obra de M. Halbwachs,
conhecimento da ‘forma urbana’, uma das mais baseada nos estudos de E. Durkheim (Capel,
antigas apreensões do estudo da cidade, de cuja 2002); a abordagem italiana, fundada por Saverio
‘episteme’ geográfica nos pode ajudar a fixar uma Muratori, nos anos 1950, tendo por princípio ‘a
genealogia do desenvolvimento metodológico e história como processo de recuperação do sentido
do objeto de estudo. Diríamos, uma espécie de de continuidade de prática arquitetónica: tipo,
‘geomorfologia’ da geografia urbana. Desde logo tecido, organismo, e história operativa’,
alicerçada na indagação da origem da cidade, desenvolvida na década seguinte por duas
veiculada às condicionantes geomórficas do tendências: Muratori / Caniggia versus Aymonino
‘sítio’ e da ‘posição’; depois, ao estudo do ‘plano / Rossi; e o enfoque anglo-saxónico, com três
urbano’ (combinação dos ‘espaços construídos’ e abordagens. Neste caso, a ‘histórico-geográfica’,
os ‘livres’: de ‘circulação’ e ‘verdes’ (Oliveira, centrada na figura de M. R. G. Conzen, que
1973), e ao estudo sistemático dos elementos do estabelece três elementos concetuais básicos: o
desenho e da forma urbana, desde Mumford ‘plano de cidade’, o ‘tecido edificado’ e os ‘usos
(1961), um dos grandes sintetizadores deste do solo’; a abordagem ‘normativa’ que concorre
estudo interdisciplinar aplicado ao urbanismo. De da vontade de contribuir, através do planeamento,
espécie ou género (eidos) de caracterização para estabelecer a ‘boa’ forma urbana e melhorar
clássica da cidade, que considera ‘a forma como a qualidade do ambiente urbano (Christopher
princípio ativo do composto substancial’, a forma Alexander, Kevin Lynch, Gordon Cullen e Rob
urbana, na visão ‘Kantiana’, passa a ser uma Krier); e a abordagem ‘quantitativa’, desde os
‘estrutura sensível’ (espaço / tempo) do anos 1960, com Leslie Martin e Lionel March,
pensamento humano, para, a partir da uma investigação feita a partir da relação das
fenomenologia de Hegel, jamais se admitir formas com as estruturas urbanas (Oliveira,
destituída de conteúdo. Isto é, do estudo 2016). Finalmente, na península ibérica, as
epidérmico, estrito da configuração e / ou origens dos estudos sobre a cidade, baseiam-se na
estrutura externa, evoluiu até à morphé, pela qual, sua evolução morfológica, muito particularmente
glosando o romancista Victor Hugo, a forma em Portugal, onde se dá como referência pioneira,
urbana ‘é o fundo que remete à superfície’. A ‘A Physionomia de Setúbal’ (1918) de Fernando
morfologia urbana exprime, pois, ‘a organização Garcia.
económica, a organização social, as estruturas Hoje, o debate morfológico mais significativo
políticas, os objetivos dos grupos sociais centra-se em temas como o ensino da morfologia
dominantes’ (Capel, 2002), a cultura, as urbana, os estudos comparativos e a relação entre
cosmologias, utopias, etc., compreendendo os teoria morfológica e prática de planeamento
estudos sistemáticos da origem das cidades, dos (Oliveira, 2016) e são dinamizados pelo
processos e dos agentes de crescimento e de International Seminar on Urban Form (ISUF) e a
desenvolvimento (‘morfogénese’), do plano e da sua publicação, Urban Morphology, e também
estrutura de uma cidade, em particular, e do pelo promissor Portuguese-language Network of
110 Perspetivas
que a necessidade e o contributo desta área de prática profissional diz respeito, as opções
conhecimento assume o seu papel de forma estratégicas a ter em conta para uma atuação
preponderante junto da sociedade. direta em temas da morfologia urbana, que deverá
Num momento histórico (h) – o palimpsesto, e terá de ter o apoio incondicional da academia, a
como diversos autores o referem, que a partir das partir dos estudos e investigações morfológicas
várias camadas apostas, devidamente realizadas no âmbito teórico, contribuindo assim
identificadas nos seus mais variados elementos para uma aproximação, mais que desejada, entre
físicos, na relação intrínseca entre eles e a estas duas realidades – a prática e a teoria.
diversas escalas, se permite conhecer os vários Em suma, tendo por analogia os momentos
estádios históricos, desde a sua criação, ao seu enunciados, entendo a cidade na sua forma: como
desenvolvimento, passando mesmo pela foi (h); como é (a); e como será (f). E no que ao
reinterpretação do tempo presente (Coelho, 2013), ‘homem urbano’ se refere: o que fomos (h), o que
alterando-a para um novo e futuro tempo, logo, somos (a), e o que seremos (f)., devendo-se em
mais um estádio temporal da forma urbana. grande parte, a partir da necessidade do
Num momento atual (a) – em que o desenho conhecimento e consequentes contributos da
da cidade, intentado pela prática profissional, seja morfologia urbana.
feito de forma consciente, informada e
fundamentada, pelo já largo lastro do
conhecimento da morfologia urbana. Para tal Referências
contribuem não só a formação específica
académica nos mais variados cursos superiores, Coelho, C. D. (2013) Os elementos urbanos
ao nível dos últimos ciclos de ensino, como (Argumentum, Lisboa).
especificamente e de forma direta, os vários Costa, S. A. P. e Netto, M. M. G. (2015)
encontros internacionais e nacionais, ISUF e Fundamentos da morfologia urbana (C/Arte,
PNUM respetivamente, onde se congrega uma Belo Horizonte).
grande parte do conhecimento sobre a morfologia Lamas, J. (1993) Morfologia urbana e desenho da
urbana, e que por vezes, paralelamente, se cidade (Fundação Calouste Gulbenkian,
ensaiam e experimentam as diversas abordagens a Lisboa).
partir de formações complementares e optativas. Oliveira, V., Mendes, T. e Pinho, P. (2015) O
Num momento futuro (f) – o planeamento da estudo da forma urbana em Portugal (U.Porto
cidade, que deriva diretamente daquilo que à Edições, Porto).
a situação do indivíduo que estava posta em causa linha de pensamento que adotou a cidade
mas a do agrupamento humano da cidade, construída como modelo conceptual para a sua
enquanto organismo urbano. Uma postura ‘contra própria criação e renovação. A cidade herdada
a cidade’ baseia-se na inevitabilidade da morte da tornou-se assim o objeto de estudo e a morfologia
cidade existente, no desaparecimento de uma urbana o método para descodificar os mistérios
realidade e do objeto que conhecemos e no que envolvem o processo de produção de uma
surgimento de um novo artefacto para uma nova entidade física complexa e extraordinária, tão
sociedade. Outra postura é ‘a favor da cidade’, no fascinante nos ambientes que cria como, às vezes,
sentido da continuidade histórica de um objeto aparentemente inexplicável na expressão física
herdado, onde se concentram os valores que materializa.
civilizacionais e da vida coletiva, um organismo O fundamento dos procedimentos de leitura,
que se renova e se ajusta às circunstâncias de cada tal como o próprio conceito de morfologia urbana,
momento, sem deixar de ser o suporte foi estabilizado em meados do século XX, em
fundamental da vida do Homem em sociedade. diferentes contextos culturais e até disciplinares.
Foi no contexto deste debate que se afirmou No sul da Europa a morfologia urbana adquiriu,
uma das posições teóricas mais relevantes e no âmbito do urbanismo, o estatuto de nova
fecundas sobre a cidade e veio a determinar o disciplina. Esta conheceu uma ampla difusão
nascimento da morfologia urbana como uma nova através dos arquitetos formados na linha
disciplina, cujos fundamentos culturais foram ideológica de Saverio Muratori que a partir do
construídos sobre os valores da memória e do contexto italiano influenciaram profundamente as
contexto, adotando as disciplinas da história e da diversas abordagens ao estudo da forma urbana,
geografia como suporte basilar para defender a mas também a postura sobre a conceção do seu
permanência da cidade como objeto eterno. processo de produção, formulada a partir da ideia
Esta nova atitude sobre a cidade despontou em de projeto urbano e da noção de cidade como
meados do século XX, aquando da revisão crítica organismo compacto (Muratori, 1959).
das pretensões científicas do urbanismo moderno, Quando há pouco mais de dez anos se
e teve como objetivo compreender a cidade como constituiu na Faculdade de Arquitetura da
obra de arte, como manufacto e como processo de Universidade de Lisboa um laboratório de
construção no tempo longo. O retorno à cidade investigação em morfologia urbana com o
histórica e à leitura da forma da cidade construída desígnio original e ambicioso de empreender o
reclamou a autonomia disciplinar do inquérito à forma da cidade construída em
procedimento análise e a responsabilidade da sua Portugal tomou-se como referência a
investigação uma competência específica dos Encyclopédie de l’Urbanisme dirigida por Robert
arquitetos, dado que a problemática da produção Auzelle e Ivan Jankovic que, no seu prefácio, se
da estrutura física da cidade é em primeiro lugar assume como um ‘instrumento insubstituível de
um problema de composição espacial. trabalho e cultura’.
O conceito de morfologia surgiu O FormaUrbis Lab é coordenado por Dias
pioneiramente como um termo genérico que Coelho, catedrático de urbanismo de Lisboa,
remete para o estudo das formas e da sua origem. tendo-se constituído a partir de uma equipa
Quando no final do século XVIII Johann Wolfgan pluridisciplinar de docentes / investigadores,
von Goethe se interessou pelo estudo da doutorandos e bolseiros de investigação com
mutabilidade das formas vegetais adotou o termo interesses comuns e perspetivas complementares
morfologia enquanto ciência de observação da sobre o estudo da forma urbana que tem vindo a
forma, mas o interesse do humanista alemão não ser publicada através da coleção ‘Cadernos de
se restringia somente à classificação, tendo morfologia urbana’ (Coelho, 2013, 2014).
abordado o estudo da forma no âmbito da Este grupo de trabalho integrou trabalhos
botânica a partir das noções de formação, anteriores que os membros fundadores haviam
transformação e metamorfose das plantas. realizado como ‘A praça em Portugal. Inventário
Etimologicamente o termo utilizado por morfológico’ e tem neste momento o objetivo de
Goethe é construído pela combinação da palavra construir o Atlas Morfológico da Cidade em
grega morphê, que remete para a noção de forma, Portugal, tarefa que se encontra em
e da palavra logos, que se reporta ao conceito de desenvolvimento e que trata 100 cidades sob o
estudo, de ciência ou de tratado, permitindo hoje ponto de vista da sua forma global e da forma dos
compreender o significado da expressão elementos que a compõem (Coelho e Lamas,
morfologia urbana como estudo da forma da 2007).
cidade e dos fenómenos que a determinaram, ou O objetivo da investigação empreendida pelo
seja, dos processos de produção. FormaUrbis lab é construir uma base de dados
A transposição do estudo da formação dos operativa baseada na utilização do desenho como
corpos orgânicos para o estudo das formas o principal instrumento de estudo da forma da
urbanas – morfologia urbana – provém de uma cidade. O desenho que se assume como parte
Perspetivas 113
Figura 1. O processo de evolução urbana de Ouro Preto (fonte: Costa e Netto, 2015).
foram fundadas pelo geógrafo Conzen e pelo tradicionais de morfologia urbana, inglesa e
arquiteto Muratori, respetivamente, a partir dos italiana, permitem observar que a metodologia
anos de 1960. O livro ‘Fundamentos de desenvolvida por cada escola divergia e convergia
morfologia urbana’, publicado em 2015 no Brasil, paradoxalmente. Divergia, pois a escola inglesa
se propõe a apresentar as escolas tradicionais de iniciava os estudos pela escala ampliada da cidade
morfologia urbana e introduzir suas bases e sucessivamente reduzia a escala para observar
conceituais, com aplicação prática na cidade de os tecidos urbanos e os lotes, enquanto que a
Ouro Preto. Os diferenciais da obra consistem na escola italiana propunha o processo inverso,
maneira didática da aplicação das técnicas e na iniciando pela edificação, ampliava-se a escala
inauguração em língua portuguesa de referência aos tecidos e por fim ao território. A convergência
bibliográfica sobre o assunto (Costa e Netto, explica-se por compreender que ambas as escolas
2015). reconheciam que a variação das escalas de
Pesquisas realizadas com foco nas interações observação dos elementos formais e o
entre os conceitos e aplicações das escolas conhecimento dos processos culturais ao longo do
Perspetivas 117
Esse texto é fruto de uma reflexão estimulada construção do conhecimento potencializado pelas
pelo questionamento: para que serve a morfologia operações de analise e síntese de forma dialética.
urbana? Seu desenvolvimento segue o grande Lefebvre nunca se aventurou pelos estudos da
desafio de responder a questão travestida de morfologia urbana. Entretanto com seu livro ‘O
simplicidade, mas que na verdade guarda, entre direito a cidade’ de 1969, e ‘A revolução urbana’,
suas possíveis respostas, o coletivo de pensadores em 1970, o autor analisa as relações de forças
que auxiliaram na construção do conhecimento exercidas entre grupos sociais, destacando em
referente à morfologia urbana. seus estudos, a necessidade, de determinados
Procura-se não cair no ciclo vicioso onde os grupos em dar forma à cidade para atender seus
fundantes da matéria são citados por ordem interesses (Lefebvre, 1969, 1999 [1970]).
cronológica de contribuição, destacando seus Estes estudos sociológicos permitem afirmar
diversos estudos emblemáticos que motivaram o que a forma urbana não está descontextualizada
aprofundamento do saber referente à matéria. A das contradições sociais que a produzem.
pergunta não se refere a como foi construído o Portanto, adota-se a morfologia como estudo das
conhecimento que temos hoje a respeito da formas e dos fenômenos que lhes deram origem
morfologia urbana, mas sim ao significado desse como muito bem colocado por Lamas (1993). No
conhecimento para a vida prática ou para a caso brasileiro tal interesse nos é lembrado por
construção das ideias. Costa (2007), quando afirma que os primeiros
Decide-se então tomar o rumo da prática e o estudos sobre o tema estão relacionados aos
empréstimo de saberes outros, que não aspetos económicos, sociais e políticos das
necessariamente se debruçaram sobre a formas urbanas brasileiras, empreendidos por
morfologia urbana. historiadores, como Sérgio Buarque de Holanda, e
Algumas experiências profissionais (Silva e sociólogos, como Gilberto Freire na 1ª metade do
Manetti, 2012; Silva et al. 2013) e académicas século XX.
(Macedo, 1997; Magalhães, 2016; Silva, 2013) Podemos concluir que o interesse pelo estudo
documentam a contribuição da morfologia urbana da forma urbana nasce despido de qualquer
para levantamentos, diagnósticos e proposições de máscara disciplinar. Pode-se afirmar que
transformações urbanas. Entretanto a pergunta interessa-nos entender a forma, para assim,
ínsita em buscar a resposta nas causas primeiras, conhecer a sociedade e seus grupos sociais
isto é, nas razões mais fundamentais que compostos por individualidades.
justificam os estudos e usos dos saberes referentes Entretanto, nos distintos campos disciplinares
a morfologia urbana. a morfologia urbana toma diferentes matizes.
Partimos então a analisar a obra de Henri Assim como, conforme a estrutura educacional de
Lefebvre, sociólogo francês, que trata da cada país, os campos disciplinares são moldados
120 Perspetivas
eventos. O evento considerado como uma relação Kosik, K. (2011) Dialética do concreto (Paz e
entre objetos perdeu a sua passagem e neste Terra, Rio de Janeiro).
aspeto é em si mesmo um objeto. Este objeto não Lamas, J. M. R. G. (1993) Morfologia urbana e
é o evento, mas apenas uma abstração intelectual. desenho da cidade (Fundação Calouste
O mesmo objeto pode ser situado em muitos Gulbenkian & Junta Nacional de Investigação
eventos e, neste sentido, até o evento como um Científica e Tecnológica, Lisboa).
todo, visto como um objeto, pode voltar a ocorrer, Lefebvre, H. (1969) O direito à cidade (Ed.
embora não o próprio evento com a sua passagem Documentos, São Paulo).
e com as suas relações com outros eventos’ Lefebvre, H. (1999 [1970]) A revolução urbana
(Whitehead, 1929, p. 54). (UFMG, Belo Horizonte).
É preciso, portanto conhecer o objeto a ser Macedo, S. S. (ed.) (1997) ‘Litoral urbanização:
estudado por meio da leitura de suas ambientes e seus ecossistemas frágeis’,
‘rugosidades’, tendo a consciência do constante Paisagem e Ambiente 12.
processo de ‘totalização’ e dos nossos limites de Magalhães, N. C. T. (2016) ‘Unidades morfo-
percepção da ‘totalidade’ mutante. territoriais: estratégias de entendimento dos
Uma análise morfológica se mostra processos de produção da forma urbana’,
insuficiente para chegarmos a identificar as Dissertação, Pontifícia Universidade Católica de
relações de forças existentes. Por ‘onde’ ocorrera Campinas, Brasil.
a intervenção ou ação de planejamento? ‘Quem’ Santos, M. (1996) ‘A natureza do espaço: técnica
será impactado por elas? ‘Como’ se interfere no e tempo; razão e emoção’ (Editora Hucitec, São
território? Quais ‘conexões’ de facto serão Paulo).
estabelecidas? Entretanto o estudo da forma Silva, J. M. P. (2013) ‘As unidades de paisagem
possibilita ler concretamente os movimentos de como método de analise da forma urbana:
transformação da cidade. reflexões sobre sua incorporação pelo campo
Finalmente, respondendo à pergunta em uma disciplinar da arquitetura e urbanismo’,
única frase: a morfologia urbana nos serve para Cadernos do PROARQ 20, 71-93.
analisar o legado da ação humana sobre o Silva, J. M. P. e Manetti, C. (2012) ‘Memória,
território e desta maneira potencializa refletir mobilidade e complexidade: consideração pela
sobre como provocar deslocamentos convenientes história local’, Risco: Revista de Pesquisa em
a um querer socialmente construído. Arquitetura e Urbanismo 16, 61-77.
Silva, J. M. P., Manetti, C. e Tângari, V. R. (2013)
Referências ‘Compartilhamentos e unidades de paisagem:
método de leitura da paisagem aplicado à linha
Costa, S. A. P. (2007) ‘O estudo da forma urbana férrea’, Paisagem e Ambiente 31, 61-80.
no Brasil’ (http://vitruvius.es/revistas/read/ Spinoza, B. (2009) Short treatise on God, man
arquitextos/08.087/220) consultado em 10 de and human welfare (A. & C. Black, Londres).
Janeiro de 2013. Whitehead, A. N. (1929) The aims of education
Hall, S. (2006) A identidade cultural na pós- and other essays (Macmillan Company, Nova
modernidade (DP&A, Rio de Janeiro). Iorque).
compondo 27 sessões paralelas. O elevado nível remetendo aos conceitos de Metápolis, acerca do
científico desses trabalhos propiciou debates futuro da cidade, conforme Ascher. A segunda
avançados. A maioria destes trabalhos relaciona- reflexão, direcionada especialmente a professores
se a pesquisadores de centros universitários e também, a alunos, referiu-se a como ensinar a
portugueses e brasileiros, percebendo-se também ler a forma urbana contemporânea. A autora
algumas participações de professores e alunos de alertou para a importância na aquisição de
outras nacionalidades. Os trabalhos aceites, cujos competências de leitura, escrita e de raciocínio
autores atenderam ao convite de submissão de espacial. Teresa Heitor indicou a importância de
texto completo, encontram-se publicados em e- incluir no estudo da forma urbana o exame da
book, compondo assim, as Atas do PNUM 2016 paisagem, do traçado, dos espaços exteriores, do
(http://193.136.14.37/Atas%20PNUM%202016.p espaço edificado, dos usos, metabolismo e
df) e permitindo consultas e estudos continuados. desempenho, elencando abordagem que abrange
Há que se destacar a qualidade das duas uma série de autores consagrados na morfologia
palestras principais, respetivamente nas sessões urbana. Com base na demonstrada complexidade
de abertura e de encerramento. Renato Leão urbana contemporânea, a palestrante assinalou
Rego, da Universidade Estadual de Maringá, que a escala de abordagem deve ser local x
Brasil, ao apresentar sua investigação sobre ‘As global, referindo-se a Moudon. Ao debater
cidades novas da Transamazônica e a morfologia possibilidades didáticas para o ensino da forma
urbana’, chamou a atenção para a importância do urbana a palestra apresentou ainda, a simulação
estudo da forma urbana não só a partir do exame de realidades virtuais por meio de jogos digitais,
de projetos, mas também dos resultados como aplicações ao estudo da forma urbana,
alcançados em projetos realizados. Ao analisar o especialmente atrativas para jovens estudantes.
planejamento urbano-rural empreendido no Brasil O PNUM 2016 propiciou uma estimulante
dos anos de 1970 com a implantação de visita de estudo, a pé, guiada por Maria Manuel
agrovilas, ao longo da rodovia federal construída Oliveira, da Universidade do Minho, ao espaço
na ocasião e conhecida como Transamazônica, o público requalificado da Praça do Toural e da
palestrante questionou uma suposta analogia Alameda de S. Dâmaso, em Guimarães. Como
entre este e projetos de cidades novas no norte do autora e coordenadora do projeto de
Estado do Paraná, sul do Brasil. Ao analisar requalificação desenvolvido pelo Centro de
detalhadamente o projeto, sua implantação e Estudos da Escola de Arquitetura da
situação recente, o autor assinalou como um dos Universidade do Minho, Maria Manuel Oliveira
fatores de insucesso da proposta, a tentativa de compartilhou pessoalmente com os participantes,
alteração da lógica estabelecida no modo de vida o conhecimento preciso e minucioso de inúmeros
nortista brasileiro relacionado ao rio pela detalhes acerca do projeto e de sua cuidadosa
inscrição de uma lógica rodoviária, que execução. A inserção da mobilidade urbana a
permanece incompleta. Em seu estudo, Renato serviço do pedestre foi um dos preceitos
Rego chama a atenção ainda, para o isolamento norteadores da proposta e plenamente evidentes
da região e para a dificuldade dos colonos, nos resultados. Os estudos sobre a forma urbana
previamente selecionados, de se manterem nas da área de projeto, realizados anteriormente por
áreas urbanas previstas para sua moradia, tendo estudantes, a título de atividade académica, foram
em vista a distância destas da área rural, que destacados como fundamentais para
necessitava de constante vigilância e trabalho. embasamento de diversas decisões de projeto. A
Além de transmitir conhecimento sobre uma corajosa inserção de arte pública contemporânea
realidade urbano-rural pouco comum, a palestra e o convívio desta com o retorno do histórico
permitiu vivenciar um exercício de morfologia chafariz resultaram em determinações tão
urbana, adotando-se como referência Conzen e complexas quanto acertadas, a julgar pela
Kropf, abrangendo diversas escalas geográficas e qualidade estética alcançada e pelo modo de
incluindo o elemento relativo à cultura em seu apropriação possibilitado. A suavidade dos
estudo. aclives /declives no estudo de acessibilidade ao
Teresa Valsassina Heitor, do Instituto longo da Alameda, bem como o estudo de
Superior Técnico, Portugal, ao encerrar o evento arborização que acompanha este percurso,
com sua palestra ‘Para ler a forma urbana é indicam sensibilidade de projeto e respeito à
preciso abrir portas e construir pontes’, assinalou pessoa que caminha. Além destas qualidades,
possibilidades para o avanço do debate e o ficou evidente a consideração com o interesse do
exercício da prática de ensino. Sua reflexão habitante de Guimarães, percebido no uso do
versou sobre duas abordagens. A primeira espaço e nos relatos quanto ao processo de
referiu-se ao papel da morfologia urbana. Neste participação realizados durante o projeto.
contexto a palestrante chamou a atenção para o Cabe ainda o registo do surpreendente
facto das cidades não serem organismos ou ambiente ao ar livre, que acolheu o descontraído
máquinas e sim sistemas complexos adaptativos, jantar da conferência, no Museu Alberto
Relatórios 123
Figura 1. Curso ‘Morfologia urbana. Uma introdução ao estudo da forma física das cidades’: The
game of cities (fotografia: Cláudia Monteiro).
Conselho Científico
65 V. Oliveira
Morfologia urbana: diferentes abordagens
85 A. C. Macedo e M. I. Imbronito
Tipos de corredores e ruas locais no distrito da Mooca, São Paulo
Perspetivas
107 Morfologia urbana e legislação urbanística D. Antonucci
108 Praeter utilitas M. M. Bandeira
110 Uma reflexão sobre a necessidade e o contributo da morfologia urbana A. Fernandes
111 O FormaUrbis lab e a utilidade dos estudos de morfologia urbana S. P. Fernandes
113 Morfologia urbana pela estética, justiça social e sustentabilidade E. Mendonça
115 Como compreender as cidades? M. M. Gimmler Netto e S. A. Pereira Costa
117 Morfologia urbana: para entender as transformações urbanas K. S. Meneguetti
119 Para que serve a morfologia urbana? J. M. P. Silva
Relatórios
105 Rede Lusófona de Morfologia Urbana (PNUM), 2015-16 T. Marat-Mendes
121 5ª Conferência da Rede Lusófona de Morfologia Urbana, Guimarães, 2015 E. Mendonça
123 PNUM Workshop, Julho 2016, Vila Nova de Cerveira: Forma urbana e dinâmicas transfronteiriças
D. L. Viana
124 Curso ‘Morfologia urbana. Uma introdução ao estudo da forma física das cidades’, Porto, 2016
V. Oliveira
Notícias
64 Urban Morphology
84 PNUM 2017: Morfologia urbana: território, paisagem e planejamento
84 ISUF 2017: City and territory in the global era
105 ISUF Italia 2017: Learning from Rome – historical cities and contemporary design