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Cadernos de Estudos Africanos  

39 | 2020

Educação e Cooperação: Desafios de uma agenda


global

Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/cea/4683
DOI: 10.4000/cea.4683
ISSN: 2182-7400
Editora
Centro de Estudos Internacionais
Edição impressa
Data de publição: 1 julho 2020
ISSN: 1645-3794
 

Refêrencia eletrónica
Cadernos de Estudos Africanos, 39 | 2020, « Educação e Cooperação: Desafios de uma
agenda global » [Online], posto online no dia 23 setembro 2020, consultado o 01 outubro
2020. URL : http://journals.openedition.org/cea/4683 ; DOI :
https://doi.org/10.4000/cea.4683

Este documento foi criado de forma automática no dia 1 outubro 2020.

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Commons - Atribuição-NãoComercial-CompartilhaIgual 4.0 Internacional.
NOTA DA REDAÇÃO
Este número temático da revista Cadernos de Estudos Africanos
incide sobre Educação e Cooperação e pretende dar continuidade aos
Congressos Cooperação e Educação que, de forma regular, desde 2010
têm sido organizados pelo Centro de Estudos Internacionais do
ISCTE-IUL e o Instituto Politécnico de Leiria. O quarto congresso, que
decorreu no ISCTE-IUL entre dias 8 e 9 de novembro de 2018, teve o
apoio do Camões I.P., tal como acontece com a corrente publicação,
pelo que os organizadores exprimem o seu reconhecimento a essa
instituição. Subordinado à temática Cooperação e Educação de
Qualidade, o congresso reuniu um conjunto notável de especialistas
nesta área, entre os quais a maioria dos colaboradores desta
publicação (Barreto, Carvalho & Santos, 2019). A presente edição visa
aprofundar e desenvolver algumas das problemáticas abordadas
anteriormente nesse fórum através de estudos de caso ou reflexões
originais sobre as questões da cooperação em educação, das
implicações das políticas de língua, ou ainda sobre a perceção do
valor social dos diferentes níveis educativos. São aqui discutidas as
implicações das agendas globais no domínio da educação para os
países africanos e para Timor-Leste, recetores privilegiados das
ações da cooperação portuguesa na área da educação. 
SUMÁRIO

Dossiê

Educação e Cooperação: Desafios de uma agenda global


Antónia Barreto, Clara Carvalho e Filipe Santos

O Poder Simbólico e a Cooperação Portuguesa: Uma análise sobre o papel da


língua
Bruna Martins, Rui da Silva e La Salete Coelho

(Re)Edificação do Sistema Educativo de Timor-Leste: Evolução e desafios


atuais
Susete Albino

Influências da Globalização e da Cooperação na Educação e na Formação de


Professores em Angola
Sara Poças e Júlio Gonçalves dos Santos

Impactos e Efeitos de Programas de Cooperação para o Desenvolvimento em


Escolas: Um olhar focado sobre o programa de apoio ao sistema educativo da
Guiné-Bissau
Rui da Silva e Joana Oliveira

Perceções sobre o Desenvolvimento Psicomotor da Criança Moçambicana em


Idade Pré-escolar, em Contexto Rural, com Enfoque no Chibuto
Carla Marina Maia Ladeira

A Universidade nos PALOP: Que Espelho Mirar?Uma discussão tomando


como exemplo a disciplinaEconomia Regional e Urbana
Cassio Rolim

“Em Moçambique... Epa, porra! Os Filhos dos Dirigentes Tinham uma


Escola!” – Memórias de três gerações e suas narrativas escolares em África
subsariana
Xénia de Carvalho
Entrevista

Diálogo com Alberto da Costa e Silva: A participação africana na agricultura


brasileira e outros movimentos e contribuições transatlânticas
Flávia Alves Santos, Ana Louise Carvalho Fiuza e Carlos Ernesto Schaefer
Dossiê
Educação e Cooperação: Desafios
de uma agenda global
Antónia Barreto, Clara Carvalho e Filipe Santos

1 Este número temático da revista Cadernos de Estudos Africanos incide


sobre Educação e Cooperação e pretende dar continuidade aos
Congressos Cooperação e Educação que, de forma regular, desde 2010
têm sido organizados pelo Centro de Estudos Internacionais do
ISCTE-IUL e o Instituto Politécnico de Leiria. O quarto congresso, que
decorreu no ISCTE-IUL entre dias 8 e 9 de novembro de 2018, teve o
apoio do Camões I.P., tal como acontece com a corrente publicação,
pelo que os organizadores exprimem o seu reconhecimento a essa
instituição. Subordinado à temática Cooperação e Educação de
Qualidade, o congresso reuniu um conjunto notável de especialistas
nesta área, entre os quais a maioria dos colaboradores desta
publicação (Barreto, Carvalho & Santos, 2019). A presente edição visa
aprofundar e desenvolver algumas das problemáticas abordadas
anteriormente nesse fórum através de estudos de caso ou reflexões
originais sobre as questões da cooperação em educação, das
implicações das políticas de língua, ou ainda sobre a perceção do
valor social dos diferentes níveis educativos. São aqui discutidas as
implicações das agendas globais no domínio da educação para os
países africanos e para Timor-Leste, recetores privilegiados das
ações da cooperação portuguesa na área da educação.
2 As principais agendas para promover a educação universal têm sido
implementadas pelas organizações multilaterais, onde sobressaem as
agências das Nações Unidas, por um lado, e a Organização para a
Cooperação e o Desenvolvimento Económico (OCDE, 1960), por outro
lado. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), lançados
pela Assembleia das Nações Unidas em Nova Iorque em setembro de
2015, proporcionaram a ocasião para repensar a finalidade da
educação formal entendida como uma das ações prioritárias a nível
mundial. O objetivo 4 dos ODS especifica claramente a necessidade
de assegurar uma educação inclusiva e igualitária e promover o
ensino ao longo da vida para todos. Este objetivo sustenta-se em
iniciativas semelhantes e agendas lançadas em décadas anteriores.
Desde logo, estão presentes na Declaração Universal dos Direitos
Humanos (1948) e são evocados por sucessivos organismos
internacionais, onde sobressaem os World Surveys (desde os anos
1950) e os World Education Reports (desde 1991) (King, 2016, p. 954). A
iniciativa Educação para Todos, anunciada em Jomtien (Tailândia)
em 1990, elencou um conjunto de propósitos, retomados pelo Fórum
Mundial de Dacar em 2000 e expostos nos Objetivos do Milénio do
mesmo ano. Os esforços para universalizar o ensino básico
permitiram que, na África subsariana, o número de crianças fora do
sistema educativo tenha caído para metade desde o início do século
(UNESCO, 2014). Outro efeito positivo foi o alargamento do ensino
obrigatório até ao nível secundário na maioria dos países. O sucesso
das iniciativas internacionais e nacionais para o acesso universal à
educação conduziu a uma nova meta: garantir um ensino de
qualidade, conforme é afirmado nos ODS.
3 Os ODS incluem sete metas para o cumprimento do Objetivo 4,
Educação para Todos, a saber: garantir, até 2030, que todas as
raparigas e rapazes completam os níveis de ensino básico e
secundário de qualidade e gratuitos; no mesmo período, assegurar o
acesso aos cuidados de infância e ensino pré-primário; garantir que o
acesso ao ensino vocacional, técnico e terciário é igual para homens
e mulheres; aumentar, para o mesmo período, o número de jovens e
adultos com competências relevantes para o mercado de trabalho,
incluindo competências técnicas e vocacionais; eliminar as
disparidades de género na educação e propiciar uma educação
inclusiva que abranja crianças vulneráveis, com deficiência ou com
origem em grupos desprotegidos como as populações indígenas;
asseverar que todos os jovens e a maioria dos adultos tenham
competências em literacia e numeracia; implementar a educação
para o desenvolvimento e para a cidadania global. Muito embora os
ODS se afirmem como uma agenda global, têm sido sujeitos a críticas,
considerando-os a repetição das agendas dos países doadores da
Ajuda Pública ao Desenvolvimento (APD) que são impostas aos países
ditos recetores da APD (King, 2016, p. 953). As sete metas do ODS 4
têm sido paulatinamente integradas nas políticas educativas dos
países do Norte global, onde existem bolsas de desigualdade social.
Contudo, reconhece-se que os problemas mais pertinentes ocorrem
na sua concretização nos países do Sul global.
4 Outro organismo multilateral fulcral para o lançamento e execução
das agendas regionais comuns em prol da educação universal é a
Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Económico
(OCDE). A OCDE assegura, por um lado, o estabelecimento de
parâmetros e metas comuns de desenvolvimento do ensino formal e
de monitorização dos resultados obtidos; por outro lado, a sua
atividade no campo da cooperação internacional é executada pelo
Comité de Ajuda ao Desenvolvimento (CAD), lançado em 1961. Em
1996 os objetivos do CAD foram explicitados no documento Shaping
the Twenty-first Century: The Contribution of Development Cooperation,
onde são descritas as seis metas do desenvolvimento numa tripla
perspetiva: bem-estar económico, desenvolvimento social e
sustentabilidade ambiental. A educação surge aqui como uma
prioridade, sendo o alvo a atingir a universalização do ensino
primário até 2015 e o estabelecimento da paridade de género no
ensino até 2005 (King, 2016, p. 963). A educação passou a ser
encarada como o elemento central para se alcançar o
desenvolvimento humano e garantir os direitos civis, estando
presente em todos os programas de governo e da Ajuda Pública ao
Desenvolvimento mundial. O CAD avalia e inspira as agendas para a
cooperação dos seus países membros, onde se incluem aqueles que,
por razões históricas, se têm empenhado na cooperação para a
educação com os países do Sul global dentro da sua área de
influência. Neste enquadramento cabem as ações da cooperação
portuguesa com os países lusófonos, tal como as suas congéneres no
Reino Unido, França e Espanha fazem respetivamente para os países
anglófonos, francófonos e hispanófonos.
5 Apesar destes esforços conjuntos, no final de 2019 calculava-se que
57 milhões de crianças continuavam fora da escola e que entre os
que frequentavam um estabelecimento de ensino mais de metade
não possuía proficiência mínima em literacia e numeracia. A crise da
COVID-19 veio agravar esta situação, subtraindo 1,5 mil milhões de
crianças ao ensino presencial. A retoma do percurso escolar, a ser
implementada nos países desenvolvidos, será mais complicada e
lenta para as crianças em situações de fragilidade. Nos países da
África subsariana, que mesmo antes da pandemia apresentavam os
piores índices mundiais no acesso à educação, calcula-se que menos
de metade das escolas do ensino básico tenha acesso a
infraestruturas básicas tais como eletricidade, acesso à internet ou
mesmo água e formas de lavagem das mãos, o que cria dificuldades
acrescidas para o regresso às aulas na atualidade.
6 Numerosos estudos têm sido conduzidos comparando a eficácia dos
diferentes programas implementados. As revisões sistemáticas de
literatura revelam que as intervenções nos sistemas educativos se
debruçam habitualmente sobre um dos eixos do problema, mas não
abordam a totalidade dos fatores que influem na qualidade do
sistema educativo (Conn, 2014; Masino & Niño-Zarazúa, 2015;
Morgan, Petrosino & Fronius, 2015). Os principais problemas
identificados na literatura situam-se a três níveis: recursos humanos,
condições de ensino e restrições sociais.
7 1. Os recursos humanos são escassos e pouco qualificados na maioria
dos países de baixo e médio rendimento. Em muitos países as taxas
de professores com formação considerada adequada para o exercício
de funções são inferiores a 75% (UNESCO, 2014). Também os níveis de
absentismo dos docentes são elevados. Finalmente, as políticas de
acesso universal à educação não foram suficientemente
acompanhadas pela capacitação dos recursos e construção de
infraestruturas, pelo que o rácio professor/aluno na região
subsariana é de 1/40, o mais elevado em termos mundiais (UNESCO,
2014).
8 2. As condições de ensino são caracterizadas pelas salas de aulas
sobrelotadas, pela falta de recursos didáticos e de infraestruturas
adequadas, e com tempos letivos reduzidos, as quais não promovem
um ambiente educativo adequado.
9 3. Outros fatores que influenciam o acesso e a continuidade do
percurso escolar são os custos da educação em geral e das propinas
escolares em particular, embora o ensino básico oficial seja por lei
gratuito (o seu não funcionamento ou funcionamento irregular leva
à opção pelo sistema privado ou comunitário). A falta de interesse no
percurso escolar, ou a necessidade de ajuda nos trabalhos
domésticos, conduzem à entrada tardia das crianças no sistema.
Finalmente, verifica-se que as raparigas abandonam mais cedo a
escolaridade devido ao casamento e à gravidez precoce, e ainda pelo
apoio à família.
10 A complexidade dos fatores evocados implica que apenas as
intervenções articuladas possam ter efeitos sustentáveis. A análise
das revisões sistemáticas de literatura revela que os principais
fatores com implicação na qualidade dos sistemas educativos são
uma combinação de intervenções, passando pela melhoria das
capacidades das instituições educativas, pela intervenção ao nível da
procura do sistema de ensino, pelo incentivo à participação da
comunidade educativa e por uma melhor gestão de recursos. Têm
sido implementadas diferentes estratégias, como por exemplo:
A melhoria das infraestruturas, a disponibilização de materiais didáticos, o aumento do
número e das competências dos docentes;
A mudança de atitude face aos docentes, aos discentes e às suas famílias. Investe-se no
pagamento de incentivos e nas promoções na carreira docente. As famílias e os alunos
são beneficiados com transferências monetárias condicionadas, com prémios de
mérito, bolsas, ou ainda com apoios em bens como as refeições escolares;
Incentivo ao envolvimento da comunidade no percurso escolar pela gestão
participativa, pelo envolvimento dos pais e pela descentralização do sistema.
11 Este conjunto de intervenções pode conduzir a resultados positivos,
desde que combinados entre si. Apenas uma abordagem
multifacetada que integre tanto a escola, os docentes, os discentes
como as respetivas famílias e comunidades, pode ter, a médio prazo,
resultados na qualidade do ensino ministrado. Contudo,
intervenções pontuais podem ter resultados significativos, tais como,
por exemplo, programas de incentivos financeiros para combater o
abstencionismo dos professores e dos alunos, ou ainda o
investimento na gestão escolar para melhorar a transparência e
monitorização das escolas.
12 A cooperação portuguesa insere-se neste esforço conjunto. Portugal,
membro fundador da OCDE, reintegrou o CAD em 1991, regendo-se
pelas indicações destes organismos para o estabelecimento das
prioridades das suas agências de cooperação – do Instituto da
Cooperação Portuguesa (1994-2003) ao Instituto Português de Apoio
ao Desenvolvimento (IPAD, 2003-2012) e ao Camões I.P. (2012 em
diante). As estratégias da cooperação portuguesa privilegiaram o
setor da educação como uma área prioritária, o que é expresso nos
acordos de cooperação bilaterais assinados com os países recetores,
desde logo os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP)
e Timor-Leste. Embora a estratégia da cooperação portuguesa passe
atualmente pelo alargamento a outros países, tanto no continente
africano como sul-americano, os PALOP e Timor-Leste continuam a
ser o foco central das ações e do financiamento da cooperação. As
ações da cooperação portuguesa são enquadradas pelo Conceito
Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020 e pela Estratégia da
Cooperação Portuguesa para a Educação, seguindo os objetivos das
declarações universais. Especificamente, a cooperação portuguesa
opera aos níveis da revisão curricular e de conteúdos programáticos;
da formação de professores; do ensino em português e da língua
portuguesa; e no apoio ao ensino superior. Neste âmbito os alunos
são direcionados para estabelecimentos de ensino em países
parceiros, ou são apoiados através de um sistema de bolsas tanto
internas como externas, estas últimas proporcionando a frequência
de instituições de ensino superior portuguesas (Teles Gomes, 2019).
13 Ações específicas da política de cooperação portuguesa na área da
educação é o tema central deste número, abordado através de
diferentes perspetivas e estudos de caso. A política linguística é
tratada por Bruna Martins, Rui da Silva e La Salete Coelho, num
trabalho intitulado “O Poder Simbólico e a Cooperação Portuguesa:
Uma análise sobre o papel da língua”. Os autores discutem o papel
central que a promoção da língua portuguesa ocupa nas políticas de
cooperação portuguesa. O ensino da língua enquanto política de soft
power é uma problemática discutida noutros estudos (Carvalho, 2019)
e comum a diversos contextos geopolíticos, desde logo presente na
relação das antigas potências coloniais com os países que lhe
estiveram subjugados. Em países que mergulham as suas raízes nos
jogos de poder da colonização, a adoção da língua do colonizador foi
obviamente uma opção dos primeiros governos modernistas, visando
a afirmação dos seus Estados no contexto internacional. A
continuidade das políticas de criação de comunidades linguísticas,
tais como a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) ou a
Agence Française de la Francophonie, conduz a uma afirmação
geopolítica que interessa sobretudo aos países destes grupos com
maior impacto no panorama internacional. Esta questão tem
suscitado debates apaixonados em diversos campos e é aqui
abordada de forma crítica através da análise detalhada da
Cooperação Portuguesa.
14 Os artigos de Susete Albino, sobre a “(Re)Edificação do Sistema
Educativo de Timor-Leste”, e de Sara Poças e Júlio Santos sobre as
“Influências da Globalização e da Cooperação na Educação e na
Formação de Professores em Angola”, tratam dois dos programas de
cooperação com maior relevo nestes dois contextos. O primeiro
analisa detalhadamente a construção do sistema de ensino básico e
secundário em Timor-Leste, para o período entre 2002 e 2015, após a
realização do referendo que determinou a independência da
Indonésia (1999). O sistema de ensino foi totalmente reestruturado,
com o apoio da cooperação internacional, nomeadamente do Brasil e
de Portugal. O artigo segue este processo através de uma análise da
documentação disponível e de entrevistas a atores-chave no
processo, debruçando-se sobre a identificação dos problemas e a
apresentação das respostas aos principais obstáculos, entre os quais
a implementação de um sistema de ensino em tétum e português.
Por sua vez Sara Poças e Júlio Gonçalves dos Santos abordam as
influências da globalização e da cooperação para o desenvolvimento
na educação e na formação de professores em Angola. Os autores
discutem a implementação do programa de Educação para Todos a
nível global e, em particular, as ações da cooperação dos países
membros da OCDE em Angola. Focam o lançamento e ações do
programa de formação de professores pelo governo angolano,
apoiado pela cooperação belga e portuguesa, inserindo-o no processo
mais geral da construção do sistema educativo em Angola. A
implementação dos programas de cooperação é igualmente referida
por Rui da Silva e Joana Oliveira através da análise em detalhe do
Programa de Apoio ao Sistema Educativo da Guiné-Bissau (PASEG) -
2000 a 2011. Concretizado pela Cooperação Portuguesa, dando
seguimento aos acordos bilaterais, este programa visava
especificamente suprir a falta de recursos humanos qualificados no
sistema educativo guineense e começou por ser implementado em
quatro liceus da capital. As áreas desenvolvidas foram a formação
contínua de professores, a lecionação direta, o ensino de adultos, a
gestão e administração escolar, a educação de infância e o ensino
pré-escolar. Os autores consideram os impactos positivos do
programa, mas também as suas limitações. Apontam para os
problemas concretos da implementação de programas exógenos nas
estruturas de ensino locais e consideram o risco de criação de
dependência do sistema educativo nacional de agências externas.
15 A educação de infância e o ensino pré-escolar passaram a integrar
expressivamente as agendas internacionais desde o lançamento dos
Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, como já foi referido. O
artigo de Carla Ladeira, sobre o desenvolvimento psicomotor da
criança moçambicana em idade pré-escolar no contexto rural, reflete
sobre a universalidade dos pressupostos desta agenda. Baseando-se
em pesquisa bibliográfica e no estudo de caso de um projeto
desenvolvido no Chibuto, Moçambique, a autora identifica os
problemas decorrentes da universalização do conceito de criança
aplicado a contextos económicos e socioculturais distintos,
nomeadamente ao meio rural de um país onde a maioria da
população é jovem e apenas 5% das crianças de idade inferior a 6
anos frequenta um estabelecimento de ensino.
16 Cassio Rolim debruça-se sobre a universidade necessária nos Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOP), partindo do
conceito discutido por Darcy Ribeiro (1969). Questiona-se sobre a
adequação do sistema universitário e do ensino ministrado ao
contexto africano, o tipo de entraves no acesso universitário e as
dificuldades em oferecer ensino de qualidade e aberto à população. O
autor identifica as principais dificuldades colocadas às universidades
africanas, incluindo os problemas financeiros, a concorrência entre o
ensino público e privado, a garantia da qualidade de ensino, as
medidas para promover o acesso a todos os grupos sociais, a relação
com o setor produtivo. Compara a situação entre o sistema
universitário nos PALOP e em todo o continente, e expõe as
possibilidades de implementação da “universidade necessária”,
adaptada às características e desenvolvimento regionais e nacionais.
17 A questão das desigualdades sociais é igualmente o alvo do último
artigo deste número temático, da autoria de Xénia Carvalho sobre a
influência da frequência do ensino na criação de hierarquias em
Moçambique. A autora questiona o papel da escola enquanto
alavanca da igualdade social, baseando-se nos percursos biográficos
de membros das três gerações de estudantes que identifica no
Moçambique atual e que designa por: Socialismo, 1975-1986;
Democracia, 1986-2005 e Neoliberalismo, 2005-presente. Na
perspetiva dos entrevistados, o sistema escolar privilegia e acentua
as hierarquias existentes. A autora reconhece igualmente a
importância da educação informal e da inserção familiar e
comunitária na educação individual. Esta perspetiva histórica e
interna do sistema escolar e da sua influência no percurso biográfico
de diferentes indivíduos é significativa das dificuldades e
potencialidades encontradas na implementação dos sistemas de
ensino universais.
18 Mas a implementação de uma educação de qualidade para todos,
mais do que um objetivo é um elemento de esperança que mobiliza
esforços de múltiplos atores em diferentes âmbitos. A produção do
conhecimento sobre as questões da educação e a sua análise crítica
são elementos relevantes no processo de procura da qualidade
educativa. Este número dos Cadernos de Estudos Africanos, pela
pertinência dos assuntos tratados e pela dimensão do público que a
ele acede, é um contributo para o enriquecimento desse campo de
estudos e para alimentação da esperança numa educação
transformadora.

BIBLIOGRAFIA
Barreto, M. A., Carvalho, C., & Santos, F. (Orgs.) (2019). Cooperação e educação de qualidade.
Congresso Internacional de Cooperação e Educação - IV COOPEDU . Centro de Estudos
Internacionais - Instituto Universitário de Lisboa.
Carvalho, C. (2019). A cooperação Portugal-PALOP no domínio da educação: Um instrumento
de soft power da política externa portuguesa? In A. Raimundo (Coord.), Política externa
portuguesa e África: Tendências e temas contemporâneos (online). Centro de Estudos
Internacionais - Instituto Universitário de Lisboa. https://ciencia.iscte-
iul.pt/publications/a-cooperacao-portugal-palop-no-dominio-da-educacao-um-
instrumento-de-soft-power-da-politica-externa/67082

Conn, K. (2014). Identifying effective education interventions in sub-Saharan Africa: A meta-


analysis of rigorous impact evaluations. Tese de doutoramento, Columbia University, Nova
Iorque, E.U.A.
King, K. (2016). The global targeting of education and skill: Policy history and comparative
perspectives. Compare: A Journal of Comparative and International Education, 46(6), 952-975.
https://doi.org/10.1080/03057925.2016.1216781

Masino, S., & Ni ñ o-Zarazúa, M. (2015). What works to improve the quality of student learning in
developing countries? WIDER Working Paper 33/2015. https://doi.org/10.35188/UNU- WIDER
/ 2015 /918-3
Morgan, C., Petrosino, A., & Fronius, T. (2015). The impact of school vouchers in developing
countries: A systematic review. International Journal of Educational Research, 72, pp. 70-79.
https://doi.org/10.1016/j.ijer.2015.04.010

Teles Gomes, G. (2019). A cooperação portuguesa na área da educação. In M. A. Barreto, C.


Carvalho & F. Santos (Orgs.), Cooperação e Educação de Qualidade. Congresso Internacional de
Cooperação e Educação - IV COOPEDU (pp. 17-22). Centro de Estudos Internacionais - Instituto
Universitário de Lisboa.
UNESCO. (2014). Teaching and learning: Achieving quality for all. Education for All global
monitoring report. Autor.

AUTORES
ANTÓNIA BARRETO
Instituto Politécnico de Leiria (IPL)
Rua General Norton de Matos
2411-901 Leiria, Portugal
Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL)
Avenida das Forças Armadas
1649-026 Lisboa, Portugal
antonia@ipleiria.pt
CLARA CARVALHO

Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL)


Centro de Estudos Internacionais (CEI-IUL)
Avenida das Forças Armadas
1649-026 Lisboa, Portugal
clara.carvalho@iscte-iul.pt
 

FILIPE SANTOS
Instituto Politécnico de Leiria (IPL)
Rua General Norton de Matos
2411-901 Leiria, Portugal
fsantos@ipleiria.pt
O Poder Simbólico e a Cooperação
Portuguesa:
Uma análise sobre o papel da
língua
The symbolic power and the Portuguese Cooperation: An analysis of the role
of the language

Bruna Martins, Rui da Silva e La Salete Coelho

NOTA DO EDITOR
Recebido: 01 de abril de 2020
Aceite: 17 de julho de 2020

1 O presente artigo tem por objetivo analisar e refletir sobre a


presença do poder simbólico de Bourdieu (2011) na Cooperação
Portuguesa Centralizada (CP) 1 .
2 A teoria de partida deste estudo é a estruturalista, seguindo,
também, as suas variantes – pós-colonial e teorias da dependência
(ver, por exemplo, Ashcroft, Griffiths, & Tiffin, 2007; Cornwall &
Eade, 2010; Grosfoguel, 2009; Harber, 2014). Esta abordagem atribui
um papel central às estruturas, veículos de “reprodução e repetição
de relacionamentos sociais” (Cravinho, 2002, p. 178). Estes
fenómenos geram desigualdades económicas estruturais e relações
de dependência e de dominação, que marcam as relações Norte-Sul,
criando um desenvolvimento desigual (Cravinho, 2002; Milando,
2005; Little & Green, 2009; Nogueira & Messari, 2005a e 2005b),
destacando-se os fenómenos do colonialismo e da colonialidade,
sendo este último proveniente do primeiro, mas possuindo um
caráter mais duradouro (Quijano, 2009, p. 73).
3 Em vez de nos posicionarmos como observadores externos,
consideramo-nos “amigos críticos”, uma vez que dois dos autores já
colaboraram/colaboram com a CP, assumindo este artigo, em parte,
um exercício de autorreflexão. O uso deste exercício enquanto
estratégia metodológica segue os pressupostos da literatura (Coghlan
& Brydon-Miller, 2014) e está em linha de outros estudos como, por
exemplo, Castanheira, Barreto, F. Santos, M. I. Santos, e Silva (2018).
4 O presente artigo centra-se no período de 1999 a 2019 seguindo uma
análise qualitativa a partir dos documentos: A Cooperação Portuguesa
no Limiar do Século XXI – Documento de orientação estratégica (Resolução
de Conselho de Ministros [RCM] n.º 43/99, de 18 de maio), Uma Visão
Estratégica para a Cooperação Portuguesa (RCM n.º 196/2005, de 22 de
dezembro), Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-2020
(RCM n.º 17/2014, de 7 de março) e a Resolução de Conselho de
Ministros n.º 82/2010, de 4 de novembro. Este período temporal foi
selecionado por ser um dos mais profícuos em termos de produção
de documentos da CP e por se terem operado alterações importantes
no que se refere à introdução de inovações à luz do contexto
nacional e internacional em relação a conceitos/teorias, práticas e
políticas nesta área.
5 O artigo está dividido em quatro partes: na primeira, realizamos uma
breve contextualização da CP; segue-se uma exposição sobre o
conceito de poder simbólico de Bourdieu; na terceira, procuramos
refletir sobre a presença e a função da língua portuguesa como
sistema de poder simbólico CP; na quarta são apresentadas breves
considerações finais.

A Cooperação Portuguesa para o


desenvolvimento
6 O significado de desenvolvimento é mutável e deve ser enquadrado
no momento histórico em que se vive e nos pressupostos inerentes a
quem invoca a palavra. Não podemos também descurar que a noção
de desenvolvimento foi fortemente influenciada desde os séculos
XVII e XVIII até ao presente pelo percurso histórico dos países
ocidentais, industrializados e capitalistas (Cornwall & Eade, 2010;
Harber, 2014; Unterhalter & McCowan, 2015).
7 Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, com a consequente
criação da Organização das Nações Unidas (1945), do Banco Mundial
(1944), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Económico (OCDE) (1961) e o início dos movimentos anticoloniais
entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, a discussão sobre o
desenvolvimento centrava-se nas diferenças entre os países
desenvolvidos e os em desenvolvimento (Harber, 2014; King &
McGrath, 2004; Shields, 2013). Os principais critérios utilizados para
esta classificação eram o grau de industrialização da economia e a
capacidade de assegurarem às populações condições mínimas de vida
consideradas essenciais. Este facto levou a que os países mais ricos,
considerados desenvolvidos, tivessem a responsabilidade de ajudar
os mais pobres a se desenvolverem (Harber, 2014). Nesta altura, a
principal preocupação era o desenvolvimento económico associado à
industrialização da economia. Apesar da contestação entre a
classificação de país desenvolvido e em desenvolvimento e/ou países
do Norte e do Sul global, o conceito de desenvolvimento continua a
perdurar e a estar presente no debate político e académico (Harber,
2014). Contudo, é importante ter em consideração que o conceito de
desenvolvimento é polissémico e que, ao longo do tempo, se foi
alterando e, consequentemente, as modalidades, os atores, os
objetivos e o horizonte temporal da cooperação para o
desenvolvimento (Harber, 2014; King & McGrath, 2004; Klees, 2010;
Shields, 2013). Por esta razão devemos ter presente que a cooperação
para o desenvolvimento é um setor controverso (ver, por exemplo,
Klees, 2010; Milando, 2005), que envolve um número elevado de
pessoas e de dinheiro (Harber, 2014).
8 O primeiro documento oficial que menciona a CP em Portugal surge
em 1999, intitulado A Cooperação Portuguesa no Limiar do Século XXI –
Documento de orientação estratégica (RCM n.º 43/99, de 18 de maio), no
qual a língua portuguesa é destacada como meio de prossecução da
primeira prioridade setorial (“Formação, educação, cultura e
património”), uma vez que “Portugal partilha com os PALOP e com o
Brasil um meio de comunicação privilegiado, o português” (p. 2650).
Neste sentido, a prioridade geográfica dos projetos da CP incide nos
PALOP e em Timor-Leste (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p.
7186; e RCM n.º 17/2014, de 7 de março, pp. 1764 e 1766), verificando-
se um importante espaço ocupado pela lusofonia na CP, sendo a
língua portuguesa um instrumento de escolaridade e formação (RCM
n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7184).
9 Contudo, apenas em 2005, através da Resolução do Conselho de
Ministros n.º 196/2005, de 22 de dezembro, foi publicado o
documento Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa, o
primeiro documento oficial a clarificar os objetivos da CP, definindo
as áreas prioritárias de intervenção e os mecanismos para a
prossecução dos objetivos. Esta estratégia introduziu também
inovações à luz do contexto internacional em matéria de cooperação,
tais como os clusters, que podem ser definidos como um conjunto de
projetos com um enquadramento comum, na mesma área geográfica,
embora executados por diferentes instituições (Faria, 2014; Oliveira
& ACEP, 2012). Em 2010, é publicada a Resolução de Conselho de
Ministros n.º 82/2010, de 4 de novembro, sobre a missão fundamental
da CP; e, em 2014, o Conceito Estratégico da Cooperação Portuguesa 2014-
2020 (RCM n.º 17/2014, de 7 de março), último documento oficial
nesta matéria que refere continuarem a permanecer “válidos os
principais princípios e prioridades estabelecidos no documento Uma
Visão Estratégica da Cooperação Portuguesa […] nomeadamente no que
diz respeito às prioridades geográficas”, acrescentando, no entanto,
novas “áreas de intervenção, com destaque para o ambiente,
crescimento verde e a energia, o setor privado e o desenvolvimento
rural e mar”. No momento de escrita do presente artigo está prevista
a publicação de uma nova Resolução do Conselho de Ministros nesta
matéria.
10 A CP, nos últimos anos, pode ser caracterizada por colocar ênfase no
apoio aos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa; por focar-se
no setor das infraestruturas e serviços sociais; pela promoção da
língua portuguesa; por não cumprir as metas assumidas
internacionalmente, no que concerne, por exemplo, a disponibilizar
0,7% do Rendimento Nacional Bruto à Ajuda Pública ao
Desenvolvimento; e por não ser transversal aos ciclos eleitorais de
Portugal, dificultando o seu consenso, coerência, relevância e
estabilidade institucional.
11 A CP tem-se transformado, tendo em conta os seus objetivos
estratégicos (desde 2015), num meio de promoção e divulgação da
língua portuguesa (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro; e RCM n.º
17/2014, de 7 de março). Esta função de promoção/expansão da
língua portuguesa, à qual a CP está oficialmente ligada, tornou-se
mais evidente com a criação do Camões - Instituto da Cooperação e
da Língua, I.P. (Camões - ICL), em 2012, através da fusão entre o
Instituto Camões (Camões, I.P.), criado em 1992, e o Instituto
Português de Apoio ao Desenvolvimento (IPAD), criado em 2003
(Camões-ICL, s.d.). Este novo instituto manteve a função primordial
atribuída ao Instituto Camões – “promoção externa da língua e da
cultura portuguesas” (DL n.º 21/2012, de 30 de janeiro) –, intenção
assumida publicamente pelo vice-primeiro ministro à data, Paulo
Portas (Oliveira & ACEP, 2013). Após esta fusão, Portugal passou a ser
o único doador a colocar a cooperação para o desenvolvimento
associada à promoção da língua (Ferreira, Cardoso, & Faria, 2015),
sendo que, pelo menos aparentemente, a cooperação para o
desenvolvimento de Portugal passa a estar como subsidiária da
língua. Um exemplo desta predominância é facilmente verificado no
acesso ao sítio institucional da internet do Camões - ICL, onde as
questões da língua e da cultura têm destaque. O próprio nome,
Camões, invariavelmente associado a Luís Vaz de Camões, poeta e
autor de Os Lusíadas, que celebra os feitos marítimos e guerreiros de
Portugal, indubitavelmente associado à língua portuguesa e ao
imaginário dos “descobrimentos” que permitiu aos portugueses “dar
novos mundos ao mundo”, reforçando o surgimento de relações de
colonialidade cultural de caráter simbólico, aponta nesse sentido.
12 Esta (con)fusão entre os dois institutos foi alvo de críticas (Faria,
2014; Ferreira et al., 2015; Oliveira & ACEP, 2012) sendo a promoção
da língua portuguesa considerada um dos aspetos mais negativos da
CP na avaliação realizada pelo Comité de Apoio ao Desenvolvimento
da OCDE, em 2010 (OCDE, 2010). Este facto é apontado, porque o
objetivo da promoção da língua como um fim em si mesmo não é
considerado um “development objective” (OCDE, 2010), uma vez que
esta estratégia não é suficiente para fortalecer as capacidades
humanas e institucionais inerentes à cooperação para o
desenvolvimento.

O conceito de poder simbólico de Bourdieu


13 Para o presente artigo, tendo em consideração que aborda a língua
portuguesa enquanto sistema de poder simbólico na CP, importa
referir que, para Bourdieu (2011, p. 4), o poder simbólico é “esse
poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade
daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que
o exercem”.
14 Para este autor, o poder simbólico é exercido por sistemas simbólicos
– arte, religião e língua – “instrumentos de conhecimento e de
comunicação”, que são estruturas estruturantes. Seguindo uma
lógica durkheimiana, Bourdieu (2011, p. 6) encontra uma função
social nestes sistemas – uma função de integração social e de
reprodução da ordem social.
15 Na construção da sua teoria, Bourdieu insere o conceito de
dominação numa lógica marxista e engeliana, afirmando que “a
cultura dominante contribui para a integração real da classe
dominante”, sendo a integração social dos indivíduos e culturas num
posicionamento mais frágil, uma integração fictícia. Observa-se,
então, uma legitimação da cultura dominante e o posicionamento
das restantes culturas “pela sua distância em relação à cultura
dominante” (Bourdieu, 2011, 2014, p. 7).
16 Deste modo, para além da sua função social, os sistemas simbólicos
possuem uma função política, enquanto instrumentos de imposição
ou de legitimação da dominação, verificando-se uma violência
simbólica, conceito que Bourdieu (2014, p. 223) define como “formas
de constrangimento que assentam em acordos não conscientes entre
as estruturas objetivas e as estruturas mentais”, cujo monopólio é
detido pelo Estado (Bourdieu, 2014). Para completar a sua síntese
sociológica, Bourdieu refere a expressão weberiana “domesticação
dos dominados” (Bourdieu, 2011, pp. 7-8).
17 O poder simbólico revela-se, assim, como “uma forma transformada
[…], transfigurada e legitimada, de outras formas de poder […] capaz
de produzir efeitos reais sem dispêndio aparente de energia”
(Bourdieu, 2011, pp. 11-12).
18 Importa ainda salientar que, segundo Bourdieu (2013, p. 134), e no
que concerne às relações de dominação linguística, estas têm uma
lógica específica, não procurando uma “dominação estritamente
económica”. Enquanto sistema simbólico, a língua desenvolve-se
graças a condições institucionais de codificação e imposição
generalizadas (Saussure, 1960, citado em Bourdieu, 2008, p. 31).
Segundo Bourdieu (2008, p. 31), a língua garante, num grupo, “o
mínimo de comunicação que é a condição da produção econômica e
mesmo da dominação simbólica”, principalmente se se tratar de uma
língua oficial, produto de uma dominação política e condição de
dominação linguística.

A presença do poder simbólico na


Cooperação Portuguesa: a língua portuguesa
19 Como referido anteriormente, na política externa portuguesa a
língua reveste-se de uma importância estratégica basilar, sendo
considerada um valor fundamental e promovida pelos projetos de
educação no âmbito da CP (RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p.
7181; e Despacho n.º 25931/2009, de 26 de novembro).
20 De acordo com Uma Visão Estratégica para a Cooperação Portuguesa
(RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro, p. 7181), a língua portuguesa
constitui uma vantagem estratégica no âmbito da cooperação para o
desenvolvimento nos países de língua oficial portuguesa.
21 Considerando que as políticas de planificação linguísticas se
traduzem na “manutenção do status quo do dominador” (Calvet,
2007, citado em Bastos, 2015, p. 269), na luta simbólica específica
pela ordenação simbólica do mundo, podemos considerar que a
“lusofonia” enquanto conceito 2 exerce um papel de destaque,
enquanto a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP)
surge como entidade política que a promove (Sousa, 2006).
22 Neste contexto, importa salientar que a língua portuguesa é
considerada um meio ou alavanca do desenvolvimento económico,
social e cultural no espaço lusófono (RCM n.º 196/2005, de 22 de
dezembro, p. 7185; RCM n.º 17/2014, de 7 de março, p. 1767),
verificando-se uma procura de poder efetivo, nomeadamente o
económico, a par da perpetuação de poder simbólico (Bourdieu,
2011; Quijano, 1992, 2009), sendo a língua uma componente de soft
power (Palma, 2006), conceito definido por Nye (2004, p. x) como “a
capacidade de alcançar o que se pretende pela atração em
detrimento da coerção ou de pagamentos”, sendo “proveniente da
atratividade da cultura, ideologias e políticas de um país”. Nos
projetos de CP, a língua portuguesa é a língua priorizada em
detrimento de outras línguas, mesmo línguas maternas ou faladas
pela maioria da população, porque, ao contrário destas, o português
é considerado uma “língua global” (Reto, 2012) e possui base de
apoio legal e político (Melo-Pfeifer & Pinto, 2018).
23 No âmbito da CP, a língua, para além de ser alvo de políticas de
promoção, surge como um objetivo em si mesmo – “a expansão da
língua portuguesa” – e fator de “persistência de certos mitos (“a
língua portuguesa é a nossa pátria”; “os amigos e os inimigos de
Portugal distinguem-se pelo uso e pelo apoio demonstrado à
utilização do português”)” (Pereira, 2005, pp. 9-11).
24 Enquanto componente crucial dos projetos da CP, a língua
portuguesa como elemento de poder simbólico foi imposta
inicialmente por estruturas de colonialismo, ou seja, pelas condições
institucionais específicas referidas por Saussure (1960, citado em
Bourdieu, 2008, p. 31), mencionadas anteriormente. Embora estas
estruturas tenham sido desintegradas, com o final do colonialismo
enquanto sistema, elas abriram espaço ao surgimento de relações de
colonialidade cultural, mais duradouras e de caráter simbólico,
perpetuando a dominação colonial (Quijano, 1992, 2009). No
entender de Quijano (2014): “la ‘cultura de los dominantes’ es
también ‘la cultura de los dominados’” (pp. 672- 673). Esta ideia é
reforçada por Vanessa Andreotti, quando evoca os estudos de Spivak
nos quais esta se refere à “violência epistémica do colonialismo”
(citado em Andreotti, 2014, p. 61), violência que afeta quer o
colonizador, quer o colonizado – o colonizador, não permitindo que
este se torne consciente da sua situação de dominação, e o
colonizado, criando neste o desejo de ser “civilizado” de forma a
participar do desenvolvimento que reconhece no colonizador 3 .
Santos (2009) expressa esta mesma ideia ao referir que “a
epistemologia ocidental dominante foi construída na base das
necessidades de dominação colonial e assenta na ideia de um
pensamento abissal” (p. 13), entre o que é científico, o que é
evoluído, enfim, o que é desenvolvido (“o lado de cá da linha”), e o
seu contrário, o que não é científico, o que é atrasado, o que não é
desenvolvido e tem de o ser (“o lado de lá da linha”). Este
pensamento, segundo o autor, “continua a vigorar hoje, muito para
além do fim do colonialismo político” (Santos, 2009, pp. 13-14).
25 A questão linguística não está imune a esta “violência epistémica” ou
a este “pensamento abissal”. Basta recordar “a proibição do uso de
línguas próprias em espaços públicos” (Santos, 2009, p. 29) no
período colonial ou o quão desprezado foi o crioulo “durante a longa
noite colonial” (Carlos Lopes, 1988, citado em Laranjeiro & Filipe,
2012). Embaló (2008) refere-se a esta situação, utilizando conceitos
que já nos são familiares:
a partir dos anos vinte do século XX ele [o kriol] começou a ser estigmatizado e a
sua utilização acabou por ser interdita pelas autoridades coloniais, o mesmo
acontecendo com as línguas das comunidades etnolinguísticas. O kriol passou a
ser visto como uma língua de “não civilizado” e aquele que falasse português era
considerado “civilizado” (Embaló, 2008, p. 103).
26 Após a independência, podemos verificar como a língua portuguesa é
incluída na “cultura dos dominados” e gera tensões no trabalho de
Paulo Freire e da sua equipa na Guiné-Bissau nos primeiros anos
após a independência (Freire, 1984, 2008), tendo consequências até à
atualidade, levando mesmo à evocação da memória de Amílcar
Cabral, sem a situar num tempo histórico, para legitimar as posições
tomadas (Morgado, Santos, & Silva, 2016). Após 1975, o crioulo
expandiu-se por todo o país e afirmou-se como língua de identidade
nacional, sendo, no entanto, sentidas, ainda na atualidade, as
implicações decorrentes da política linguística colonial, por exemplo,
na manutenção da língua portuguesa como única língua oficial.
27 Neste processo, e em vários momentos e com diferentes
intensidades, a CP desempenhou um papel importante (Mateus &
Pereira, 2005; Silva, 2016). Anteriormente, afirmou-se que a língua
era um instrumento utilizado na implementação de projetos da CP.
No entanto, pode concluir-se que esta é uma via de dois sentidos, ou
seja, que a CP é um veículo de promoção e afirmação da língua
portuguesa numa escala global, dado o seu objetivo estratégico “[…]
consolidar e reforçar a Comunidade de Países de Língua Oficial
Portuguesa (CPLP) e a sua afirmação no sistema internacional” (RCM
n.º 43/99, de 18 de maio, p. 2649).
28 Enquanto atores/instrumentos de reprodução do poder simbólico da
língua portuguesa no âmbito da CP, podem destacar-se: o Camões -
Instituto da Cooperação e da Língua, I.P. (Camões - ICL), organismo
coordenador da cooperação para o desenvolvimento, que possui
como uma das suas mais destacadas funções a promoção da língua
portuguesa (Decreto-Lei [DL] n.º 21/2012, de 30 de janeiro); a
comunicação social como “veículo privilegiado para defesa e
divulgação da língua portuguesa”, nomeadamente através de
acordos assinados entre Portugal e os PALOP para cooperação nesta
área, destacando-se os assinados com Angola e Moçambique (RCM n.º
43/99, de 18 de maio, p. 2639); e o Fundo da Língua Portuguesa,
criado em 2008, com a função de “promover a língua portuguesa
enquanto instrumento de prossecução dos objetivos do milénio” (DL
n.º 248/2008, de 31 de dezembro, p. 9211).

Considerações finais
29 A cooperação portuguesa centralizada, enquanto vertente
fundamental da política externa de Portugal, sempre deu um
especial destaque à língua portuguesa – por um lado, enquanto
instrumento de aplicação de projetos, nomeadamente na área da
educação; por outro lado, como língua a ser promovida no espaço
dos países de língua oficial portuguesa (RCM n.º 43/99, de 18 de maio;
RCM n.º 196/2005, de 22 de dezembro; RCM n.º 17/2014, de 7 de
março). Neste contexto, e como mostra esta reflexão, a língua,
enquanto estratégia de soft power da cooperação portuguesa
centralizada, e consequentemente do Estado português, cria um
enviesamento aos objetivos inerentes ao que é aceite como
cooperação para o desenvolvimento, surgindo como um sistema de
poder simbólico (Bourdieu, 2003, 2008, 2011) que perpetua relações
de colonialidade (Quijano, 1992, 2009, 2014) e de violência epistémica
(Spivak, citado em Andreotti, 2014, p. 61). A atual conjuntura da
cooperação portuguesa centralizada, com o Camões - ICL como
organismo que coordena e articula a política externa de Portugal nas
áreas da cooperação internacional, promoção da língua e cultura
portuguesas, reforça esta perspetiva.
30 Apesar de o presente artigo explorar a língua enquanto sistema de
poder simbólico, Bourdieu (2011) destaca também a arte e a religião,
aspetos que estão fora do alcance deste artigo, mas que requerem
investigação posterior. Neste sentido, seria interessante, numa
futura investigação, explorar estes dois aspetos, tendo em
consideração, no que respeita à religião, por exemplo, o papel que as
organizações nacionais de cariz social ou religioso desempenham no
âmbito de projetos/programas da cooperação portuguesa
centralizada.

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NOTAS
1. No presente artigo a sigla CP diz sempre respeito à estratégia de
cooperação promovida pela administração central de carácter
bilateral que ocorre quando “um país ajuda um outro diretamente
para realização de projetos ou de programas de desenvolvimento”
(Dubois, s.d). Por esta razão, as questões inerentes à Comunidade dos
Países de Língua Portuguesa (CPLP) como, por exemplo, o Instituto
Internacional da Língua Portuguesa (IILP), não são abordadas.
2. Que pode ser definido como “um movimento multicultural de
povos que falam uma mesma língua, o português” (Martins, 2015, p.
10).
3. A este propósito podemos recordar a letra da música “Apili” de
José Carlos Schwarz, na qual refere “Ma tugas ruma se kargu / pa e riba
se tera / Kombatentis entra prasa / Omi di Apili bai / i bai buska mindjer
nobu / ki sibi entra ki sibi sai” (“Mas os tugas arrumaram as malas /
para voltarem para a sua terra / Os combatentes entraram na cidade
/ O marido de Apili também foi / e procurou outra mulher / mais
fina e desembaraçada”).

RESUMOS
O artigo procura analisar e refletir sobre o papel da língua portuguesa enquanto sistema de
poder simbólico na Cooperação Portuguesa promovida pela Administração Central. A
análise centra-se no período de 1999 a 2019, tendo por referência os diferentes documentos
produzidos neste período. O presente artigo é, em parte, um exercício de autorreflexão,
uma vez que os autores se posicionam como “amigos críticos” e não observadores externos
da Cooperação Portuguesa. A reflexão realizada permite inferir que a língua, enquanto
estratégia de soft power do Estado português, cria um viés aos objetivos inerentes à
cooperação para o desenvolvimento, surgindo como um sistema de poder simbólico que
perpetua relações de colonialidade.

This article aims to analyse and reflect on the role of the Portuguese language as a symbolic
power system in the Portuguese Cooperation. This analysis is focused on the period
between 1999 and 2019, based on the different documents published in this period. This
article is in some extent a self-reflection, since the authors consider themselves as “critical
friends” and not external observers of the Portuguese Cooperation. The article argues that
the Portuguese language emerges as a symbolic power system that perpetuates coloniality
relationships stemming from the fact that it is a soft power strategy from the Portuguese
state, not a development objective.
ÍNDICE
Palavras-chave: cooperação portuguesa, poder simbólico, língua portuguesa,
colonialidade, cooperação para o desenvolvimento, política externa portuguesa
Keywords: Portuguese cooperation, symbolic power, Portuguese language, coloniality,
development cooperation, Portuguese foreign policy

AUTORES
BRUNA MARTINS

Faculdade de Letras da Universidade do Porto


Via Panorâmica Edgar Cardoso, s/n, 4150-564 Porto, Portugal
brunarsmartins1@gmail.com

RUI DA SILVA
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
Via Panorâmica Edgar Cardoso, s/n, 4150-564 Porto, Portugal
rdasilva.email@gmail.com

LA SALETE COELHO
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
Escola Superior de Educação do Instituto Politécnico de Viana do Castelo
Via Panorâmica Edgar Cardoso, s/n, 4150-564 Porto, Portugal
ceaup.lasaletecoelho@gmail.com
(Re)Edificação do Sistema
Educativo de Timor-Leste:
1
Evolução e desafios atuais
(Re)building the educational system of Timor-Leste: Evolution and current
challenges

Susete Albino

NOTA DO EDITOR
Recebido: 23 de abril de 2020
Aceite: 10 de junho de 2020

1 A República Democrática de Timor-Leste (RDTL) apresenta como


singularidades um período de administração transitória das Nações
Unidas (1999-2002) e a instância de edificar um Estado de raiz, na
decorrência da eclosão dos confrontos e da vaga de destruição
desencadeados pelas forças indonésias e por milícias armadas, após a
divulgação dos resultados da Consulta Popular, a 4 de setembro de
1999. De acordo com o relatório de 2002 do Programa das Nações
Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), em 1999 o Índice de
Desenvolvimento Humano (IDH) de Timor-Leste era de 0,395 e em
2001, de 0,421, despontando como um dos mais baixos da Ásia e um
dos piores do mundo. Já o rendimento per capita estimado para 1999
era de 337 USD, o que colocava o país no último lugar do ranking do
Produto Interno Bruto (PIB) de 162 países (PNUD, 2002).
2 Na esfera educativa, o cenário do pós-referendo era complexo e
desolador: cerca de metade da população não sabia ler nem escrever,
mais de dois terços das escolas tinham sido parcial ou totalmente
arrasados, todos os materiais didáticos removidos, apenas perto de
75% dos docentes do ensino básico tinha permanecido no território e
o número de professores do ensino secundário não atingia os 20%
(World Bank, 1999). Destarte, como sublinha o ex-ministro da
Educação, João Câncio Freitas:
falar do setor da educação de Timor-Leste é falar de um evento histórico em que
uma das mais jovens nações do mundo teve de reconstruir, a partir do zero, toda
a estrutura e todo o sistema de educação e de ensino. (Freitas, 2012, p. 7)
3 A maioria dos atores da cooperação internacional defende que a
educação fomenta a estabilidade a seguir a um conflito desta
dimensão. Sustenta, igualmente, que os baixos níveis de
escolarização representam um enorme constrangimento para a
evolução económica e social dos países. A este respeito, o PNUD
sublinha que a educação “é uma das componentes fundamentais do
desenvolvimento humano. A não ser que as pessoas tenham pelo
menos um mínimo de educação básica, muitas das outras escolhas
permanecem inacessíveis para elas” (PNUD, 2002, p. 50).
4 Este artigo observa a evolução do sistema educativo da RDTL e os
desafios que atualmente se colocam ao setor. Na presente abordagem
não é equacionado o ensino superior. As considerações explanadas
têm como suporte: (i) a Constituição da RDTL; os programas de
governo; planos estratégicos; a Lei de Bases da Educação e
normativos; e relatórios nacionais e dos parceiros do
desenvolvimento; (ii) dados estatísticos do Ministério da Educação,
da Direção-Geral de Estatística do Governo e dos Censos de 2004,
2010 e 2015; e (iii) as perceções de seis decisores políticos.
Evolução da educação e do sistema
educativo
5 Ao longo dos dois anos de administração das Nações Unidas, a
educação foi encarada como uma das áreas de intervenção a
priorizar, motivando a definição de um plano de ação que tinha
como desígnios: (i) a (re)construção das escolas; (ii) o
apetrechamento das salas de aula; (iii) a contratação e a formação de
voluntários para exercerem funções docentes; (iv) a reintrodução da
língua portuguesa (língua oficial, a par do tétum, e língua de
instrução); (v) a elaboração e a disseminação de materiais didáticos;
e (vi) a preparação do currículo para os primeiros seis anos de
escolaridade. Ainda que respondendo apenas a necessidades
imprescindíveis, as iniciativas empreendidas viabilizaram, em
outubro de 2000, o regresso à escola das crianças.
6 Após a restauração da independência, em 2002, os níveis de iliteracia
continuavam muito elevados (PNUD, 2002; World Bank, 2004) e o
cenário foi paulatinamente evoluindo (Figura 1). Simultaneamente, a
população passou de 741.530 habitantes em 2004 para 1.183.643 em
2015, o que reflete um acréscimo de 442.113 (Figura 2) e veio
intensificar os desafios políticos, económicos e sociais.
Figura 1: Evolução da iliteracia (2004-2015)
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados da Statistica de Timor Leste – DGE
Figura 2: Evolução da população (2004-2015)

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados da Statistica de Timor Leste – DGE

7 Em 2015, 50,6% dos timorenses tinha menos de 20 anos (Figura 3) e:


there were 717,553 persons of working age (15 years old and over) in 2015 in
Timor-Leste, of whom 402,664 were in the labour force, 383,331 as employed and
19,333 as unemployed persons. The labour force participation rate was 56,1
percent and the unemployment rate was 4,8 percent. (General Directorate of
Statistics, UNICEF, & UNFPA, 2017, p. ii)

Figura 3: Distribuição da população por faixas etárias (2015)

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados da Statistica de Timor Leste (Censos
2015).

8 A construção de um sistema educativo a partir do zero exigiu,


portanto, a planificação de reformas estruturais que garantissem a
edificação de um sistema sólido e estável. Procedeu-se, desde 2002,
entre outros: (i) ao desenvolvimento do primeiro currículo para o
ensino primário (do 1.º ao 6.º ano do ensino básico); (ii) à
reintrodução da língua portuguesa; (iii) ao investimento na formação
de professores; (iv) à expansão do acesso ao ensino; (v) à elaboração
de um quadro legislativo e normativo; (vi) à formulação e aprovação
da Lei de Bases da Educação (LBE); (vii) à delineação da Política
Nacional de Educação (2007-2012); (viii) à definição e aprovação do Plano
Estratégico Nacional da Educação 2011-2030; (ix) à reforma da gestão da
educação; e (x) ao desenvolvimento dos currículos para o pré-
escolar, para o Ensino Básico (EB), para o Ensino Secundário Geral
(ESG) e para o Ensino Secundário Técnico-Vocacional (ESTV). O Friso
1 espelha as políticas de educação de maior relevo empreendidas
após o colapso do sistema educativo.
Friso 1: Cronologia das políticas de educação (1999-2015)

Fonte: Elaborado pela autora

9 Ele permite verificar que: (i) o primeiro currículo surgiu três anos
após a independência, em 2005; (ii) a LBE foi promulgada em 2008,
com a Lei n.º 14/2008 de 29 de outubro; (iii) o Estatuto da carreira
dos educadores de infância e dos professores do ensino básico e
secundário foi aprovado em 2010, com o Decreto-Lei n.º 23/2010 de 9
de dezembro; (iv) o Plano curricular do ESTV foi publicado em 2010,
com a publicação do Decreto-Lei n.º 8/2010 de 15 de fevereiro ; (v) o
Plano curricular do 3.º ciclo do EB surgiu em 2011, com a Resolução
do Governo n.º 24/2011 de 10 de agosto; (vi) o Plano curricular do
ESG apareceu em 2011, com o Decreto-Lei n.º 47/2011 de 19 de
outubro; (vii) o Currículo nacional de base da educação pré-escolar
foi deferido em 2015, com o Decreto-Lei n.º 3/2015, de 14 de janeiro;
e (viii) o 2.º Currículo nacional de base do 1.º e 2.º ciclos do EB, com o
Decreto-Lei n.º 4/2015 de 14 de janeiro.
10 Cruzando as medidas com os programas de governo e com as
respetivas orgânicas 2 , retém-se que: (i) o II Governo procurou “dar
continuidade à melhoria das condições e da qualidade de ensino nas
escolas” (PN-RDTL, 2006, p. 1424); (ii) ao Ministério da Educação do
III Governo competiu, entre outros:
Propor a política e elaborar os projetos de regulamentação necessários às suas áreas de
tutela;
Assegurar a educação da infância, a alfabetização e o ensino;
Propor os curricula dos vários graus de ensino e regular os mecanismos de equiparação
de graus académicos (...) (Decreto-Lei n.º 4/2007, p. 1785).
11 (iii) o IV Governo, no seu Plano Governativo, elegeu a Educação como
um investimento no futuro e por isso destacou “áreas prioritárias de
intervenção, através da criação de um plano de ação orientado para a
reforma do sistema de ensino” (PCM-RDTL, 2007, p. 8). Para o efeito,
comprometeu-se, entre outros, a:
“criar infraestruturas e as condições necessárias para capacitar o pessoal docente e não
docente das escolas”;
reequacionar a “problemática da língua oficial de ensino e do ensino de outras línguas,
incluindo as línguas nacionais, o inglês e/ou o indonésio, como línguas de trabalho”;
realizar a “melhoria e o reforço do parque escolar”;
fortalecer a “política de maior retenção (diminuição do absentismo escolar) e
promoção 
no ensino básico, que deverá ser gratuito para todas as crianças”;
“criar as condições para uma melhor articulação entre o Ensino Secundário Geral, o
Ensino Técnico e a Formação Profissional” (PCM-RDTL, 2007, pp. 39-40).
12 E determinou: (i) a ratificação do plano Política Nacional de Educação
2007-12: Construir a nossa nação através de uma educação de qualidade
(PNE); (ii) o aumento do orçamento para o setor em 30%; e (iii) a
aprovação de uma nova Lei Orgânica do Ministério da Educação. O
Quadro 1 explicita a evolução do sistema educativo desde 2004 3 .
13 Quanto ao Plano Estratégico Nacional da Educação 2011-2030, este veio
reforçar que a educação e a formação fomentam a melhoria das
oportunidades do povo ao ajudá-lo a:
concretizar todo o seu potencial. São também vitais para o crescimento e
desenvolvimento económico de Timor-Leste. A nossa visão é de que todas as
crianças timorenses devem ir à escola e receber uma educação de qualidade que
lhes dê os conhecimentos e as qualificações que lhes permitam virem a ter vidas
saudáveis e produtivas, contribuindo de forma ativa para o desenvolvimento da
nação. (ME-RDTL, 2011, p. 18)

Quadro 1
A educação em números (2004-2017)
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados no Plano Estratégico
Nacional da Educação 2011-2030 do ME, para o período compreendido entre 2004 e
2010, e na página do Ministério de Educação (EMIS), para o período compreendido
entre 2011 e 2017.

14 Atendendo à importância conferida ao 1.º e 2.º ciclos do EB a seguir à


independência, observa-se o crescimento exponencial do número de
alunos, de escolas e de docentes. Após este período, consideram-se
relevantes os anos subsequentes: (i) à implementação do novo
currículo do ensino primário (1.º e 2.º ciclos do EB) e à publicação da
LBE; e (ii) à implementação dos currículos do ESTV, do 3.º Ciclo do
EB, do ESG e da educação pré-escolar.
15 Assim, verifica-se que, entre 2004/2005 e 2010, o número de alunos
passou de 147.207 para 230.562, que o número de professores
conheceu um aumento de mais de 45% e que foram construídas mais
225 escolas.
16 Com referência ao período que se estende de 2010 a 2017, no ensino
pré-escolar, retém-se, entre 2015 e 2017, um acréscimo de 2.849
alunos, de 76 escolas e de 43 docentes. Quanto ao 3.º ciclo do EB e ao
ES, o primeiro registou um crescimento de 24.589 alunos e o segundo
de 20.827. Já o número de docentes quase duplicou no 3.º ciclo do EB
(entre 2010 e 2015) e manteve-se praticamente idêntico no ES.
Relativamente às escolas, infere-se que o investimento ficou aquém
do necessário.
17 Na sequência do explanado, depreende-se a persistência de inúmeros
constrangimentos, sobretudo no ES. Aliás, a Figura 4, alusiva ao
número de alunos por turma, é disso ilustrativa. Enquanto se assiste
a um ligeiro decréscimo no 1.º e 2.º ciclos do EB, no 3.º ciclo do EB e
no ES estes são extremamente elevados. No ES, por exemplo, o
número de discentes por sala e por docente ronda os sessenta.
Figura 4: Número de alunos por turma (2011-2017)

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados estatísticos disponibilizados na


página do Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e
2017

18 A despeito dos sucessos alcançados, importa, por conseguinte,


atentar, por um lado, à diminuição do número de alunos no 1.º e 2.º
ciclos do EB desde 2013 e, por outro, à discrepância entre o número
de discentes que frequentam estes ciclos e os ciclos subsequentes.
19 Tomando como referência o ano de 2017, e tendo como suporte o
facto de o número de alunos do 1.º e 2.º ciclos do EB não ter
conhecido grandes variações, nota-se um decréscimo de 134.885
crianças no 3.º ciclo do EB e de 160.952 entre o 1.º e 2.º ciclos do EB e
o ES. O facto de o ES não ser obrigatório pode explicar a disparidade
constatada. Contudo, a mesma leitura não pode ser efetuada para o
3.º ciclo do EB.
20 Seguindo esta linha, interessa olhar para as diferenças entre as taxas
brutas 4 e reais 5 de matrículas; e para as taxas de retenção e de
abandono escolar. As Figuras 5, 6, e 7 6 consubstanciam os dados
expostos no Quadro 1.
21 De facto, percebe-se que: (i) muitas crianças que se encontram nas
faixas etárias correspondentes à frequência dos diferentes níveis de
ensino estão fora do sistema; (ii) as taxas de retenção são mais
elevadas no 1.º ciclo do EB; e (iii) as taxas de abandono escolar
conheceram um ligeiro decréscimo no 3.º ciclo do EB e no ES, mas
continuam praticamente inalteradas nos restantes.
Figura 5: Taxas de matrícula (2011-2017)

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados estatísticos disponibilizados na


página do Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e
2017
Figura 6: Taxas de retenção (2011-2016)
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados na página do
Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017
Figura 7: Taxas de abandono escolar (2011-2016)

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados na página do


Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017

22 Genericamente, os relatórios nacionais e internacionais apontam


como fatores para as tendências apresentadas: (i) a desvalorização da
educação por parte das famílias; (ii) a distância entre a casa e a
escola; (iii) a falta de meios de transporte; (iv) a obrigação de
trabalhar para apoiar a família; (v) doenças; (vi) as despesas
relacionadas com a frequência da escola; (vii) a ausência de acesso a
água potável e problemas de saneamento; (viii) a sobrelotação das
turmas; (ix) a elevada taxa de absentismo dos docentes; (x) a falta de
qualidade do ensino; (xi) os baixos níveis de proficiência na língua de
instrução por parte dos professores e dos alunos; e (xii) a
desmotivação (PNUD, 2009; ME-RDTL, 2011; ME-RDTL & UNESCO,
2015).
23 Por último, importa observar a evolução registada no que toca ao
número de docentes e às suas qualificações. O Relatório do
Desenvolvimento Humano de 2002 indica que, em 2002, o Ministério
da Educação empregava “cerca de 6400 professores em todos os
níveis de ensino” e que a maioria exercia no ensino primário. Esses,
durante o período da ocupação indonésia, “concluíram o nível
inferior do ensino secundário, tendo posteriormente prosseguido os
seus estudos em estabelecimentos do ensino secundário superior
especializados na formação de professores”. Assinala, igualmente,
que, no ano letivo 2000/2001, “somente 106 – 69 homens e 37
mulheres – dos 2091 professores do ensino secundário possuíam
alguma formação pedagógica” (PNUD, 2002, p. 56).
24 Em 2007, a PNE definiu a formação de professores como uma medida
de política prioritária, conferindo um papel central a: (i) a formação
inicial, “realizada pela Universidade Nacional de Timor Lorosa’e
(UNTL), em Díli, e pelo Instituto de Formação de Professores, em
Baucau (...)”; e (ii) a formação em serviço, através do “Curso de
Bacharelato para Professores e do Programa de Formação em
Exercício de Professores na Escola Primária em Timor-Leste, bem
como outros tipos de formação em serviço a serem realizados no
âmbito do Instituto Nacional de Formação Profissional e Contínua
(...)” (ME-RDTL, 2007, p. 19). A Figura 8 expressa os progressos
alcançados desde 2011 e reflete os resultados das políticas
implementadas.
25 Tendo por base os elementos do relatório de 2002 do PNUD,
constata-se que: o número de professores com qualificações
inferiores ao ES conheceu um decréscimo de quase 67%; o número de
docentes com o ES diminuiu cerca de 34% e o número de professores
licenciados teve um aumento superior a 50%. Nota-se, também, a
presença no sistema de 76 docentes com o grau académico de
mestre, em 2017.
26 Para o caso concreto da formação em serviço, reconhece-se que
foram desenhadas e concretizadas várias políticas para suprir as
lacunas científicas e pedagógicas dos docentes em exercício. Muitas
dessas medidas foram implementadas com o apoio do Brasil e de
Portugal. A título ilustrativo destacam-se os efeitos do protocolo de
cooperação bilateral celebrado entre Timor e Portugal, Projeto de
Formação Inicial e Contínua de Professores (PFICP), desenvolvido entre 1
de janeiro de 2012 e 31 de dezembro de 2014, que
conseguiu formar 6231 docentes de todos os níveis de ensino que se encontravam
no regime transitório da carreira docente, permitindo-lhes, através da formação
contínua, alcançar a obtenção das habilitações necessárias para ingressarem no
Regime Definitivo da Carreira Docente. (ME-RDTL & Camões, I.P., 2017, p. 12)

Figura 8: Qualificações dos docentes (2011-2017)

Fonte: Elaborado pela autora a partir dos dados disponibilizados na página do


Ministério de Educação (EMIS) para o período compreendido entre 2011 e 2017
Desafios do atual sistema educativo
27 Subordinado ao tema “A educação é o pilar da consolidação da
identidade nacional e do desenvolvimento da nação”, teve lugar em
Díli, entre 15 e 17 de maio de 2017, o 3.º Congresso Nacional da
Educação. A abertura do encontro contou com os discursos de
António da Conceição, no exercício das suas funções de ministro de
Estado, coordenador dos Assuntos Sociais e ministro da Educação, e
de Rui Maria de Araújo, primeiro-ministro do VI Governo
Constitucional. Destas intervenções, retêm-se a constatação do
ministro da Educação:
apesar de, durante os primeiros 15 anos após a restauração da nossa
independência, se terem registado vários progressos, é notório que a qualidade
dos serviços educativos não responde, de forma eficaz e eficiente, às
necessidades da nossa população. [...] O sistema educativo tem desvios
estruturais e de caráter organizacional que afetam a prestação de serviços
educativos de qualidade à população. (ME-RDTL, 2017, p. 20)
28 mas, sobretudo, as questões levantadas pelo então primeiro-
ministro:
A nossa política educacional está adequada às realidades de Timor-Leste neste século
XXI? Se não o que é que está desajustado, e como calibrá-lo em função dos desafios que
o país enfrenta?
Sabemos exatamente para onde caminhamos com a nossa Educação?
Qual é o resultado que se espera do nosso sistema educativo?
Qual é o perfil do timorense que se pretende formar neste século XXI?
Está o nosso sistema educativo a formar cidadãos aptos para o novo milénio, isto é,
cidadãos ou quadros que sejam capazes de inspirar confiança onde quer que estejam
colocados, cidadãos ou quadros capazes de aprenderem e desenvolverem as suas
potencialidades duma forma autónoma, cidadãos ou quadros capazes de serem
contribuidores ativos para o desenvolvimento socioeconómico do país, e acima de tudo,
cidadãos e quadros conscientes das suas responsabilidades para com o Estado e a
nação?
Será que o que queremos é começar tudo de novo ou melhorar o que pode ser
melhorado, corrigir o que pode ser corrigido e reforçar o que pode ser continuado?
Será possível, em 2020, ensinar em português em todas as escolas?
Como vamos ultrapassar a barreira da literacia e da numeracia nas nossas crianças?
Como vamos apurar as reais necessidades pedagógicas e académicas e desenhar o
modelo mais adequado de formação dos professores?
E que mecanismos podemos criar para que a administração e gestão escolar concorram
para implementar as políticas educativas e conseguirem melhores resultados dos
alunos? (ME-RDTL, 2017, pp. 29-31)

29 É da reflexão profunda, alargada, responsável e transparente em


torno destas interrogações, que, entende-se, poderão surgir os
princípios e as linhas estratégicas suscetíveis de corrigir os desvios
apontados e a delineação de políticas educacionais coerentes e
sustentáveis.
30 Retomando a análise do 3.º Congresso Nacional da Educação,
percebe-se que o evento reuniu representantes do Ministério, ex-
titulares da pasta da Educação, dirigentes políticos, agentes
educativos e grupos de interesse, com o propósito de efetuar “uma
reflexão crítica, profunda e realista” (ME-RDTL, 2017, p. 216) da
situação de seis áreas-chave: (1) o Currículo Nacional de Ensino; (2) a
Gestão e a Formação de Professores; (3) a Administração e a Inspeção
Escolar; (4) as Infraestruturas, os Equipamentos e os Recursos
Educativos; (5) a Gestão do Ensino Superior Público e Privado; e (6) a
Participação dos Pais, da Comunidade, do Setor Privado e dos demais
Parceiros.
31 Apontados como domínios prioritários de intervenção a médio
prazo, a estes subjaz a materialização da visão do Plano Estratégico
de Desenvolvimento 2011-2030, que institui que
todas as crianças timorenses devem ir à escola e receber uma educação de
qualidade que lhes dê os conhecimentos e as qualificações que lhes permitam
virem a ter vidas saudáveis e produtivas, contribuindo de forma ativa para o
desenvolvimento da nação. (RDTL, 2011, p. 18).
32 Relativamente às questões curriculares, foram identificados como
desafios: (i) assegurar a consistência e coerência dos conteúdos e das
metodologias dos diferentes níveis de ensino, “uma vez que o
desenvolvimento de cada um deles decorreu em momentos
distintos”; e (ii) reforçar o investimento na formação contínua dos
docentes e assegurar a distribuição “do número adequado de
manuais e materiais didáticos para todos os professores e alunos”
(ME-RDTL, 2017, p. 109).
33 No que concerne à Gestão e à Formação de Professores, foram
apontadas como problemáticas a capacidade limitada das
instituições responsáveis em responder às necessidades formativas
dos docentes (inicial e contínua) e “a eficiência na gestão do corpo
docente permanente e contratado” (ME-RDTL, 2017, p. 113).
34 Na área da Administração e da Inspeção Escolar foram destacadas a
falta de formação dos recursos humanos e a dificuldade dos mesmos
em responderem às carências existentes.
35 Já no âmbito das Infraestruturas, dos Equipamentos e dos Recursos
Educativos foi assinalada a escassez de materiais e de espaços para as
atividades laboratoriais, para a prática de exercício físico, para o
estudo (bibliotecas) e para o alojamento de professores e de alunos
que se encontram longe de casa (residências e dormitórios).
36 Com relação à Gestão do Ensino Superior Público e Privado, foi
indicado que os constrangimentos incidem na qualidade e na
relevância do ensino ministrado, “manifestamente insuficientes para
promover o emprego qualificado e responder às necessidades de
desenvolvimento do país” (ME-RDTL, 2017, p. 116).
37 No quadro da Participação dos Pais, da Comunidade, do Setor
Privado e dos demais Parceiros, registou-se “uma insuficiente
participação dos pais e encarregados de educação, quer no
acompanhamento dos seus educandos, quer no apoio à melhoria das
condições da aprendizagem” (ME-RDTL, 2017, p. 117).
38 Parte destes problemas sobressaiu na recolha das perceções dos
decisores políticos 7 relativamente aos desafios que atualmente se
colocam ao sistema educativo timorense e cuja leitura foi
concretizada recorrendo-se à análise de conteúdo 8 . Assim,
começou-se pela observação dos “significados”, ou seja, por um
estudo temático ou categorial 9 das respostas. Este foi desenvolvido
com recurso ao software informático MaxQda 10 e comportou duas
etapas: (i) a determinação de categorias 11 , a partir da identificação
dos temas abordados e do sentido a estes conferido, e o
desdobramento dessas categorias em subcategorias (qualitativa); e
(ii) a contabilização, sob a forma de frequência 12 , com que as
subcategorias surgem nos testemunhos (estatística de subcódigos em
que a unidade de análise foi a percentagem de segmentos
codificados), possibilitando o estabelecimento de algumas
correlações (quantitativa). Em seguida, foram criadas três categorias
(ação governativa, políticas públicas de educação e condicionalismos
da qualidade da educação) e catorze subcategorias, conforme
explanado no Quadro 2, e foi contabilizada a frequência com que
estas últimas apareceram nos enunciados dos protagonistas
(segmentos codificados) (Figuras 9, 10 e 11).
Quadro 2
Perceções dos decisores políticos: Desafios do sistema educativo atual – categorias
e subcategorias

Categorias Subcategorias

- Orçamento
Ação governativa - Atenção política
- Reconhecimento da importância da educação

Políticas públicas de educação - Merenda escolar


- Currículo
- Línguas de instrução
- Valorização da carreira docente
- Formação dos recursos humanos afetos à
educação
- Formação dos docentes
- Ajuste da oferta formativa ao mercado de
trabalho

- Formação científica e pedagógica dos docentes


Condicionalismos da qualidade da - Inconsistência das políticas
educação - Falta de materiais/infraestruturas
- Qualidade das infraestruturas

Fonte: Elaborado pela autora

39 De modo geral, a maioria dos atores reconheceu que o setor não tem
merecido, por parte dos governantes, nem orçamento:
A fatia para a Educação continua muito baixa se comparada com a do I Governo…
A Educação compreendia entre 16% e 20% do Orçamento do Estado. Atualmente,
se não me engano, ronda 3%… Se se diz que a Educação é uma prioridade, tem de
se meter dinheiro no Orçamento. (Ex-ministro da Educação, Armindo Maia, E1)
Se o Governo está a definir a Educação como uma prioridade nacional, tem de
apostar [nela] seriamente… (Ex-ministro da Educação, António da Conceição, E5)
40 nem atenção política:
O primeiro desafio é que, praticamente desde 2007, a Educação não tem merecido
o apoio que deveria ter por parte do Estado. (Ex-ministro da Educação, Armindo
Maia, E1)
Isto vai exigir, por parte do governo, uma análise… Uma análise profunda do
sistema de ensino até ao mercado de trabalho. Do meu ponto de vista… Senão,
daqui a nada… Nós estamos a tentar entrar na ASEAN e, se conseguirmos ser
membro da ASEAN, aí não sei onde vamos parar… Não sei onde vão parar os
nossos formados. (Ex-ministro da Educação, Armindo Maia, E1)
Eu penso que, como disse no início, nós, os timorenses, e isso especialmente na
Educação, temos de começar a fazer uma reflexão profunda e contextualizar a
Educação… (Ex-ministro da Educação, António da Conceição, E5)
41 nem o devido reconhecimento:
A Educação, quando falamos de Educação, falamos do desenvolvimento humano,
é crucial. Se não damos atenção suficiente ao desenvolvimento humano, sempre
podemos ter tudo… Podemos ter as melhores infraestruturas do mundo, as
melhores facilidades do mundo, mas, sem recursos humanos prontos para isso,
vamos ter de convidar outros para aqui… Voltamos à dependência. (Ex-ministro
da Educação, Armindo Maia, E1)
Timor-Leste é um país jovem e situado numa ilha, mas também uma nação pós-
conflito. [Como tal,] deve reconhecer a importância da Educação, da formação, da
ciência e da cultura, e nelas investir fortemente, não só para desenvolver um
Estado economicamente próspero e sustentável, como também uma nação
tolerante, justa e informada… Uma nação onde qualquer cidadão pode ter a
oportunidade de receber instrução e participar, de forma plena, no processo de
desenvolvimento do seu país. (Ex-ministro da Educação, João Câncio Freitas, E3)
A Educação é essencial e, por isso, é preciso apostar nela… (Ex-ministro da
Educação, António da Conceição, E5)

Figura 9: Perceções dos decisores políticos – ação governativa – estatística de


subcategorias

Fonte: Elaborado pela autora com recurso ao software MaxQda

42 No que respeita às políticas educativas, os decisores apontaram a


falta de coerência na política linguística como um entrave ao
desenvolvimento da qualidade da Educação, ao acesso ao
conhecimento e ao domínio efetivo das línguas oficiais:
Os nossos docentes… Eu não tenho muita experiência na universidade, mas, até
agora, ainda se usa a língua indonésia. Nas universidades privadas também…
Ainda continuam a ensinar com a língua indonésia. (Ex-vice-ministra da
Educação e ex-ministra da Educação, Rosária Corte-Real, E2)
Para além disso, a consolidação da língua portuguesa enquanto língua de
excelência e de conhecimento no sistema de ensino, conjuntamente com o
desenvolvimento da língua tétum, ambas símbolos da identidade nacional e
pilares de todo o setor formal do sistema de Educação e Ensino, constituem
grandes desafios. (Ex-ministro da Educação, João Câncio Freitas, E3)
Figura 10: Perceções dos decisores políticos – políticas educacionais – estatística de
subcategorias

Fonte: Elaborado pela autora com recurso ao software MaxQda

43 Referiram, igualmente, a pertinência de: (i) se repensar e reforçar a


formação contínua dos docentes em exercício e de se investir na
capacitação dos recursos humanos, recorrendo-se ao Fundo de
Desenvolvimento do Capital Humano, criado para esse efeito; (ii) se
valorizar a carreira docente, de modo a “motivar os professores para
o seu papel: educar e ensinar com profissionalismo e empenho” (Ex-
ministro da Educação, João Câncio Freitas, E3); (iii) “ter um currículo
correto, abrangente e coerente nos níveis todos” (Ex-vice-ministra
da Educação, Lurdes Bessa, E6); (iv) ajustar a oferta formativa às
necessidades do mercado de trabalho, para evitar que os jovens
frequentem cursos sem saídas profissionais; e (v) continuar com a
política da merenda escolar e assim combater os elevados índices de
malnutrição e melhorar a aprendizagem dos alunos nas escolas.
44 No que toca aos condicionalismos que afetam a atual qualidade da
educação, das respostas obtidas ressaltam: (i) a formação científica e
pedagógica como um obstáculo, apontando a necessidade de se
proceder à reciclagem dos docentes sem qualificações e à integração
no sistema dos jovens licenciados pela Faculdade de Educação e
Humanidades da UNTL que se encontram sem colocação; (ii) a
qualidade das infraestruturas; (iii) a falta de
materiais/infraestruturas; e (iv) a inconsistência das políticas
educativas empreendidas ao nível do ensino superior. A este
propósito, distingue-se a perspetiva do ex-titular da pasta da
Educação e ex-reitor da UNTL, Armindo Maia, para quem esta
inconsistência está a originar o aumento do desemprego qualificado:
Temos milhares de formados, licenciados de universidades públicas e privadas
para quem, depois da formação, é muito difícil encontrar trabalho. Eu não sei,
não tenho os números comigo… Não sei qual é a percentagem de formados que
encontra trabalho… Isto é preciso ver… Eu creio que [tem de haver] uma
responsabilidade social depois disso… Formam-se as pessoas para quê? Cursos
que se calhar não têm futuro. (E1)

Figura 11: Perceções dos decisores políticos – condicionalismos à qualidade da


educação – estatística de subcategorias

Fonte: Elaborado pela autora com recurso ao software MaxQda

45 Conclui-se, face ao exposto, que os decisores entrevistados detêm


não só dados precisos sobre a situação atual do setor, como também
uma visão realista sobre a mesma. Infere-se, igualmente, que muitos
dos problemas persistentes resultam da forma como os alicerces do
sistema foram desenvolvidos, do contexto, dos meios, da formação e
das competências dos recursos humanos, das fragilidades
institucionais e da ausência de uma política linguística clara.
46 Os desvios estruturais e de caráter organizacional, aliados aos
constrangimentos e desafios descritos requerem, presentemente, a
observação das recomendações que emanaram do 3.º Congresso
Nacional da Educação e que se pretende que sirvam de suporte ao
desenho das políticas educacionais e às intervenções no setor
(Quadro 3).
Quadro 3
Recomendações do 3.º Congresso Nacional da Educação

Áreas-chave Recomendações

1. Elaborar e aprovar uma política do uso das línguas oficiais em


cada um dos níveis do sistema de ensino.
2. Criar um Conselho Nacional da Educação para promover
consensos técnicos, científicos e pedagógicos (com pedagogos,
Currículo Nacional de académicos e peritos nacionais).
Ensino 3. Constituir uma Comissão Científica Especializada para avaliar a
adequação, a coerência e a consistência dos currículos nacionais.
4. Regular a distribuição e a atribuição dos materiais didáticos.
5. Desenvolver legislação para regular a avaliação das
aprendizagens dos alunos.

6. Clarificar o estatuto do INFORDEPE.


7. Estabelecer uma política de gestão da formação contínua de
professores.
8. Constituir uma equipa interdisciplinar para avaliar as
necessidades em termos de formação inicial e contínua de
Gestão e Formação de
professores.
Professores
9. Alinhar a formação inicial com os currículos.
10. Realizar um estudo para planear a expansão dos CAFE aos
postos administrativos.
11. Rever os parâmetros da avaliação de desempenho docente.
12. Implementar um concurso para a colocação de professores.

Administração e 13. Desenhar e implementar um programa padronizado de


Inspeção Escolar formação para os administradores e inspetores escolares.
14. Formalizar um padrão de administração e gestão escolar.
15. Aprovar um modelo de uniforme nacional para os alunos.
16. Definir mecanismos de controlo da assiduidade dos docentes e
medidas a tomar em caso de incumprimento.
17. Criar um Fundo Especial que garanta a continuidade dos
programas da merenda escolar.

18. Formalizar o padrão mínimo de infraestruturas e


equipamentos escolares de cada nível de ensino.
19. Realizar o diagnóstico das infraestruturas existentes e
Infraestruturas, elaborar um plano de intervenção com vista a melhorar o mapa
Equipamentos e escolar.
Recursos Educativos 20. Definir um modelo que permita a construção de residências e
dormitórios para os docentes e os alunos que se encontrem
deslocados.
21. Refletir sobre a oferta pública do Ensino Técnico-Vocacional.

22. Elaborar e aprovar uma Política de Gestão e Organização do


Ensino Superior.
23. Priorizar a oferta do Ensino Politécnico.
24. Analisar as atuais modalidades de formação contínua e pós-
graduada e o seu impacto na implementação do Estatuto da
Carreira Docente Universitária.
25. Garantir a utilização das línguas oficiais no ensino superior e
estudar a criação de um “ano zero” para o reforço das
competências linguísticas dos alunos.
Gestão do Ensino
26. Analisar os mecanismos de implementação do currículo
Superior Público e
padrão mínimo.
Privado
27. Introduzir um Fundo de Empréstimos para estudantes.
28. Constituir o Conselho dos Reitores.
29. Consolidar o papel da Agência Nacional para a Avaliação e
Acreditação Académica.
30. Considerar a aprovação de legislação específica (sistema de
graus académicos, regime de equivalências e de reconhecimento
de graus académicos, regime jurídico do ensino superior privado
e cooperativo).
31. Fortalecer o Instituto Nacional de Ciências e Tecnologia.

Participação dos Pais, 32. Desenvolver e implementar um instrumento legal para as


da Comunidade, do Associações de Pais.
Setor Privado e demais 33. Celebrar acordos entre escolas privadas e públicas.
Parceiros
34. Criar uma Comissão Técnica Especializada para avaliar a
possibilidade de introduzir propinas no ensino público (sobretudo
no ES).
35. Reforçar os contactos entre as escolas e as empresas.
36. Reforçar e consolidar a ACETL, com vista assegurar o
alinhamento das intervenções da CID com as prioridades do ME.
37. Garantir a coordenação nacional dos projetos de cooperação.

Fonte: Adaptado de ME-RDTL, 2017, pp. 204-209

47 Atendendo ao conteúdo das 37 recomendações, depreende-se que


estas refletem intenções claras e linhas de orientação política e
estratégica sólidas para as seis áreas-chave. Todavia, estas
recomendações apenas poderão ter um impacto real no sistema
educativo se forem mais do que um conjunto de boas intenções e
sirvam o objetivo ambicionado. Tudo isto sem perder de vista, como
sublinhou o ex-primeiro-ministro Rui Maria de Araújo, que
a educação é o centro “nevrálgico” do desenvolvimento da sociedade e que ela
tem um papel de suma importância na construção e formação da identidade do
indivíduo, na sua formação social e na formação dos seus conceitos e valores
sociais, morais e éticos. (ME-RDTL, 2017, p. 24)

Considerações finais
48 Até à independência, o sistema educativo de Timor-Leste era uma
réplica dos sistemas dos países que ocuparam o território, o que
explica o facto de a premência da sua reforma ter surgido ainda
durante a administração transitória. Após 20 de maio de 2002, esta
aspiração prevaleceu, procurando-se “aumentar a qualidade da
Educação e garantir a equidade de acesso de todos os timorenses aos
diversos níveis de ensino” (ME-RDTL, 2007, p. 11).
49 Da análise efetuada ao longo deste artigo, conclui-se que a
escolarização e a qualificação têm constituído um dos eixos da ação
governativa. No entanto, apesar dos progressos registados, múltiplos
e complexos continuam a ser os desafios que à esfera educativa se
colocam. Este artigo trouxe à luz alguns desses desafios,
nomeadamente: (i) o número elevado de crianças e jovens não
escolarizados; (ii) as elevadas taxas de abandono escolar; (iii) o
número insuficiente de docentes e o elevado rácio de alunos por
professor; (iv) as baixas qualificações dos docentes; (v) a carência de
infraestruturas; e (vi) o impacto limitado das medidas
implementadas.
50 Reconhece-se que os resultados na Educação exigem tempo, um
investimento contínuo e políticas coerentes. Estes, num contexto sui
generis como o da RDTL, adquirem proporções ainda mais
acentuadas, tendo em conta que mais de metade da população tem
menos de 20 anos e que o país necessita de recursos humanos
qualificados. Como sublinhou o ex-primeiro-ministro Rui Maria de
Araújo, “são os indivíduos, e é a sociedade, que vão construir uma
nação e permitir que ela se desenvolva e avance” (ME-RDTL, 2017, p.
24).
51 Urge, portanto, que os governos priorizem o investimento na
Educação e que as recomendações do 3.º Congresso Nacional da
Educação instituam as premissas à elaboração dos programas dos
próximos governos, dos orçamentos do Estado, dos planos
estratégicos e dos projetos de cooperação internacional para o
desenvolvimento.
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World Bank. (2004). Timor-Leste: Education since independence from reconstruction to sustainable
improvement. Autor.
NOTAS
1. Este artigo constitui um subcapítulo da tese de doutoramento da
autora: Albino, S. (2020), Políticas educativas, cooperação e
desenvolvimento em Timor-Leste (2002-2015). Tese de doutoramento não
publicada. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Nova de Lisboa (FCSH-UNL), Lisboa, Portugal.
2. O II Governo e o III Governo foram ambos de curta duração devido
à crise política que despoletou no país no início de agosto de 2006. Os
primeiros anos de mandato do IV Governo também ficaram
marcados por alguma instabilidade, em virtude da tentativa de golpe
de Estado que teve lugar a 11 de fevereiro de 2008.
3. Os dados agrupam as escolas públicas e privadas.
4. Relação percentual entre o número total de alunos matriculados
num ciclo de estudos (independentemente da idade), e a população
residente em idade normal de frequência desse ciclo.
5. Relação percentual entre o número de alunos matriculados num
determinado ciclo, em idade normal de frequência desse ciclo, e a
população residente dos mesmos níveis etários.
6. Os dados agrupam os alunos de todas as escolas públicas e
privadas.
7. Armindo Maia, ministro da Educação do I Governo Constitucional;
Rosária Corte-Real, vice-ministra da Educação para o Ensino
Primário e Secundário do I Governo Constitucional e ministra da
Educação e da Cultura do II e III governos; João Câncio Freitas,
ministro da Educação do IV Governo Constitucional; Dulce Soares,
vice-ministra da Educação Básica do V Governo Constitucional, vice-
ministra da Educação do VI Governo e ministra da Educação do VIII
Governo Constitucional; António da Conceição, ministro de Estado,
coordenador dos Assuntos Sociais e ministro da Educação do VI
Governo Constitucional; e Lurdes Bessa, vice-ministra da Educação e
da Cultura do VII Governo Constitucional.
8. A análise obedeceu às três etapas subjacentes à análise de
conteúdo propostas por Bardin (2015), a saber: (1) a pré-análise – que
compreendeu a seleção, a organização e a sistematização das ideias e
das perceções transmitidas pelos decisores; (2) a exploração do
material – que se traduziu na codificação dos dados brutos
constantes nas respostas, de modo a alcançar o núcleo da
compreensão do texto; e (3) o tratamento dos resultados obtidos e a
leitura dos mesmos – que passou pela submissão dos dados brutos a
operações estatísticas, “a fim de se tornarem significativos e válidos
e de evidenciarem as informações obtidas” (Vilelas, 2009, p. 337), e
que culminou com a realização de inferências e interpretações por
parte do investigador.
9. A literatura refere a possibilidade de se recorrer a várias técnicas
na análise de conteúdo. Estas “atuam no sentido de promover o
alcance e a compreensão dos significados manifestos e latentes no
material da comunicação” (Vilelas, 2009, p. 338) e compreendem: a
análise temática ou categorial, a análise da avaliação ou
representacional, a análise da expressão, a análise das relações e a
análise da enunciação.
10. O programa MaxQda permite a sistematização de dados
qualitativos e criar categorias analíticas temáticas. Possibilita ainda,
a contabilização daquelas que aparecem mais vezes mencionadas.
11. Hogenrad (1984), citado por Vala (1986), define uma categoria
como “um certo número de sinais da linguagem que representam
uma variável na teoria do analista. Neste sentido, uma categoria é
habitualmente composta por um termo-chave que indica a
significação central do conceito que se quer apreender, e de outros
indicadores que descrevem o campo semântico do conceito. [...] O
que importa ao analista são conceitos, e a passagem dos indicadores
aos conceitos é portanto uma operação de atribuição de sentido, cuja
validade importará controlar” (pp. 110-111).
12. “A análise de frequência permite inventariar as palavras ou
símbolos chave, os temas maiores, os temas ignorados, os principais
centros de interesse, etc.”. (Vala, 1986, p. 108)

RESUMOS
Timor-Leste, enquanto nação independente, nasceu num quadro marcado pelo reforço da
interação entre o local e o global e apresenta várias características peculiares: vivenciou um
período de administração transitória por parte da Organização das Nações Unidas,
necessitou de edificar um Estado e um sistema educativo de raiz e experienciou uma fase de
forte dependência externa. Este artigo tem como escopo observar a evolução do sistema
educativo do país e os desafios que atualmente se colocam ao setor. Na presente abordagem
não é equacionado o ensino superior. As considerações explicitadas têm como suporte: (i) a
Constituição da RDTL; os programas de governo; planos estratégicos; a Lei de Bases da
Educação e normativos; e relatórios nacionais e dos parceiros de desenvolvimento; (ii)
dados estatísticos do Ministério da Educação, da Direção-Geral de Estatística do Governo e
dos Censos de 2004, 2010 e 2015; e (iii) as perceções de seis decisores políticos.

Timor-Leste, as an independent nation, was born within a framework marked by the


reinforcement of the interaction between the local and the global and has several peculiar
characteristics: it experienced a period of transitional administration by the United
Nations, it needed to build from scratch a state and an educational system and experienced
a period of strong external dependence. This article aims to observe the evolution of the
country’s educational system and the challenges currently facing the sector. In this
approach, higher education is not considered. The explicit considerations are supported by
(i) the RDTL Constitution; government programs; strategic plans; the Basic Education Law
and regulations; and national and development partner reports; (ii) statistical data from the
Ministry of Education, the Directorate-General for Statistics of the Government and the
Census of 2004, 2010 and 2015; and (iii) the perceptions of six policy makers.
ÍNDICE
Keywords: education, educational system, educational policies
Palavras-chave: educação, sistema educativo, políticas educativas

AUTOR
SUSETE ALBINO

CHAM - Centro de Humanidades


Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
Universidade Nova de Lisboa
Avenida de Berna, 26-C / 1069-061 Lisboa, Portugal
susete.albino@gmail.com
Influências da Globalização e da
Cooperação na Educação e na
Formação de Professores em
Angola
Influences of globalization and cooperation on education and teacher
training in Angola

Sara Poças e Júlio Gonçalves dos Santos

NOTA DO EDITOR
Recebido: 09 de junho de 2020
Aceite: 06 de julho de 2020

1 Este artigo tem como objetivo discutir as influências da globalização


e da cooperação para o desenvolvimento na educação e na formação
de professores em Angola, em particular nas províncias de Benguela,
de Cabinda e do Cunene, e tem por base uma tese de doutoramento
sobre formação de professores em Angola e a influência dos
processos de cooperação para o desenvolvimento.
2 O conceito de globalização começou a ser mais utilizado apenas nas
últimas três décadas, quer na literatura académica, quer na
linguagem corrente (Giddens, 2005). Não sendo, de todo, um conceito
consensual, Santos (2001, p. 32) define globalização como “um
fenómeno multifacetado com dimensões económicas, sociais,
políticas, culturais, religiosas e jurídicas interligadas de modo
complexo”.
3 A globalização afeta sobremaneira os Estados-nação, levando-os a
ter agendas e objetivos similares. Obviamente que a globalização
também tem implicações no setor da educação, algumas das quais
serão discutidas neste artigo, aplicadas ao contexto angolano, como
a aceitação voluntária de políticas e de reformas educativas
importadas, que não são mais do que a imposição de agendas globais,
implementadas através de processos de cooperação realizados “de
cima para baixo”, que não se adequam à realidade do país, e que este
tem dificuldade em apropriar-se porque não são contextualizadas na
realidade nacional nem local (Dale, 1999, 2007). Assim, cria-se uma
tensão entre o global, o nacional e o local (Unterhalter, 2015) que
também se verifica na formação de professores, onde há uma grande
escassez de professores, o que potencia a aceitação dos critérios dos
doadores internacionais em vez da valorização da carreira docente
(Steiner-Khamsi, 2015).
4 É importante compreender que espaços de reflexão e de apropriação
foram criados por Angola, a partir das propostas externas, para
perceber como estas políticas foram implementadas e que
capacidade teve o Sistema de Educação para absorver as inovações
propostas. Assim, faz-se um enquadramento sobre globalização e
cooperação para o desenvolvimento em educação, entrando de
seguida na influência destas na formação de professores. É
apresentada a metodologia utilizada para a recolha e análise dos
dados, a caracterização das províncias em estudo, a caracterização
da formação de professores em Angola e a análise dos dados,
terminando com as considerações finais.
Globalização em educação
5 O conceito de globalização é muito utilizado, nos dias de hoje, nos
discursos sobre educação, embora nem sempre de uma forma
positiva (Charlot, 2007).
6 Como é natural, a educação também reflete os efeitos da
globalização, essencialmente do modelo neoliberal. Um dos efeitos
da globalização na educação é que os Estados seguem uma “agenda
global estruturada para a educação” (Dale, 2004, p. 426), tendo os
interesses económicos os seus efeitos sobre os sistemas educativos.
Há também uma tendência para a uniformização das ideias, das
estruturas e das políticas, sendo que “o desenvolvimento dos
sistemas educativos nacionais e as categorias curriculares se
explicam através de modelos universais de educação, de estado e de
sociedade, mais do que através de factores nacionais distintivos”
(Dale, 2004, p. 425), criando-se um “isomorfismo global das
categorias curriculares em todo o mundo” (Dale, 2004, p. 427). Para
esta perspetiva contribuem organizações como a OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico), o Banco Mundial,
o FMI (Fundo Monetário Internacional) e a OMC (Organização
Mundial do Comércio), entre outras, que assumem um papel
relevante na definição dos princípios, das normas, das regras e dos
procedimentos da cultura e da política mundial (Dale, 2004; Charlot,
2007).
7 Quando se fala de globalização e educação, é inevitável reconhecer o
papel dos organismos internacionais que influenciam as políticas
educativas nacionais, nomeadamente na produção e circulação de
ideias, investigações e agendas políticas (Bonal et al. , 2007).
8 Na área da educação, enquanto para os países ricos a entidade de
referência é a OCDE, centro do pensamento neoliberal e criada para
promover a economia de mercado, para os países mais pobres as
organizações mais importantes são o FMI e o Banco Mundial, que
foram pensadas para a reorganização da economia mundial (Charlot,
2007). Em África existem também a União Africana (UA) e a Nova
Parceria para o Desenvolvimento de África (NEPAD, sigla em inglês),
organizações que dizem promover a erradicação da pobreza e o
desenvolvimento económico em África.
9 Dale (2007) apresenta algumas dimensões de variabilidade entre os
efeitos externos nas políticas educativas nacionais, através da
comparação de mecanismos de mudança da influência externa na
política utilizados antes e durante a fase de globalização, e a
natureza e o resultado em relação à criação de uma política
educativa nacional a partir de um amplo leque de mecanismos de
transferência de políticas:
10 A primeira dimensão de variabilidade é o grau em que o país recetor
aceita as reformas voluntariamente, partindo do pressuposto de que
as reformas de influência externa se levam a cabo de forma
necessariamente “obrigatória” ou, pelo menos, que o país recetor as
aceita com relutância. Esta parece ser a tendência dos estudos sobre
as consequências da globalização sujeitos à “teoria da conspiração”.
Ainda assim, a imposição de uma política não é a única maneira em
que a globalização pode afetar a política educativa (Dale, 2007).
11 A segunda dimensão centra-se no caráter explícito do processo, que
novamente se utiliza para ressaltar a presunção aparente de que
muitas reformas se introduzem “nas costas” da nação recetora. No
entanto, se por um lado, a maior parte da influência externa pode ser
bastante explícita, como no caso do “empréstimo de políticas”, por
outro lado, há que destacar que o efeito externo pode ser implícito
sem ser suspeito; neste sentido, a imitação inconsciente é algo
bastante comum em muitas esferas da vida (Dale, 2007).
12 A terceira dimensão, o alcance da reforma por influência externa, é
extremamente importante. Enquanto, tradicionalmente, se
considerou que as reformas por influência externa eram pouco
sistemáticas e limitadas no seu alcance, não se pode assumir que o
“empréstimo de políticas” ou a “aprendizagem de políticas” tenham
necessariamente um alcance limitado, nem que os outros tipos de
efeitos se colam aos programas e à organização de políticas, ou que
incluem objetivos políticos. A chave está em verificar se os efeitos se
colam aos programas e à organização de políticas ou se também
incluem objetivos políticos. Tradicionalmente, só se consideravam os
primeiros se fossem suscetíveis à influência externa, apesar de os
objetivos e os valores estarem determinados exclusivamente a nível
interno (Dale, 2007).
13 A quarta dimensão afeta o ponto de viabilidade do mecanismo.
Normalmente, assume-se que a viabilidade de qualquer política se
julgará a nível nacional e de acordo com as normas e as expectativas
existentes neste nível. O argumento em defesa da globalização
política sugere que pode ser que este já não seja necessariamente o
caso, enquanto o argumento em defesa da variabilidade de formas de
globalização sugere que existe algo mais que uma simples mudança,
desde um ponto de viabilidade nacional a um ponto de viabilidade
global (Dale, 2007).
14 A quinta dimensão centra-se nos processos através dos quais se
introduz a influência externa. Também se pode esperar que isto
altere, pelo menos implicitamente, os processos de colaboração e de
cooperação que acompanhavam as formas tradicionais. Mesmo
assim, é importante reconhecer a diferença entre “empréstimo de
políticas” e “aprendizagem de políticas” como processos e meios
para introduzir ou implementar influências externas nos sistemas
educativos e o modo como se empregam, como modelos de
mecanismos para introduzir efeitos externos. Como tal, a sua
importância supera os processos que representam (Dale, 2007).
15 A sexta dimensão centra-se no problema central da origem da
reforma; novamente nos modelos de empréstimo e de aprendizagem
fica implícito que é o recetor, mais que a parte externa, que inicia a
reforma. A possibilidade de reformas originadas externamente
desafia esta opinião. Este pode ser um ponto adequado no qual se
descobre a questão da diferença entre globalização e “colonialismo”,
já que é bastante plausível sugerir que esta diferença é que aquilo
que, a seu tempo, ocorria só em países do Sul global ou países
colonizados, agora ocorre nos Estados mais poderosos, que antes
eram os iniciadores e os recetores das pressões externas nas suas
políticas nacionais. Resumindo, a diferença está em que a
globalização não é resultado da imposição de uma determinada
política por parte de um país a outro, possivelmente com o apoio de
uma ação militar bilateral, mas um efeito construído de forma muito
mais supranacional (Dale, 2007).
16 A sétima dimensão chama-se “dimensão do poder”, que se pode
exercer de três formas diferentes que variam segundo a sua
visibilidade e o seu caráter explícito: primeiro, o uso relativamente
explícito do poder superior, que se exercita através de fóruns de
tomada de decisão claramente definidos; segundo, a enfatização da
importância da competência para exercer o poder através da fixação
de uma agenda; terceiro, a capacidade para controlar as “regras do
jogo”, os processos a partir dos quais se define e exerce poder. Estas
formas de poder são cada vez menos “visíveis” e mais difíceis de
contrariar. O uso cada vez mais frequente de meios de poder menos
diretos é outra manifestação da natureza variável da relação entre os
Estados (Dale, 2007).
17 A oitava e última dimensão centra-se na forma como o efeito da
educação é mediado pela mudança introduzida externamente.
Normalmente, assume-se que estes efeitos são diretos, ou seja,
assume-se que as transferências políticas afetaram a área política
correspondente. Todavia, se nos limitarmos aos efeitos externos
supostamente relacionados com a educação, passaremos por alto
muitos dos efeitos mais significativos das influências supranacionais
sobre os sistemas educativos nacionais. Assim, quanto mais nos
limitarmos no nível das políticas públicas em educação, ou seja, em
políticas e práticas que tenham uma relevância clara e direta sobre a
política ou a prática educativa, maior será o risco de tornar óbvio o
nível em que se cria a agenda para estas políticas, a da política
educativa. Isto é cada vez mais importante quando o âmbito de
possíveis influências externas se estende geograficamente (Dale,
2007).
18 Dale (1999) sistematiza alguns mecanismos de políticas catalisadas
por organizações internacionais e outros atores externos que lhes
permitem enquadrar e influenciar políticas educacionais nacionais e
subnacionais. Nas últimas décadas, estes mecanismos globais de
influência adquiriram maior centralidade do que os mecanismos
tradicionais de influência bilateral, tais como “empréstimo de
políticas” e “aprendizagem de políticas” (Dale, 1999):
Imposição : atores externos obrigam alguns países a adotar políticas educativas
específicas (o exemplo clássico é a condicionalidade ao crédito do Banco Mundial, do
FMI e de outras agências de ajuda aos países devedores).
Harmonização: um conjunto de países concorda mutuamente sobre a implementação
de políticas comuns numa determinada área política (ex.: a configuração do Espaço
Europeu para o Ensino Superior, em que os governos dos países signatários se
comprometeram a reorganizar os sistemas de ensino superior dos seus países de
acordo com os princípios da Declaração de Bolonha).
Disseminação: os agentes externos usam a persuasão e o seu conhecimento técnico
para convencer os países sobre a implementação de certas políticas (ex.: através de
relatórios anuais, bases de dados de melhores práticas e assistência técnica).
Estandardização: a comunidade internacional define e promove a adesão a um
conjunto de princípios e padrões políticos que enquadram o comportamento dos países
(ex.: testes internacionais de desempenho, como o PISA (Programa Internacional de
Avaliação de Alunos, sigla em inglês), contribuem para a padronização do conteúdo
curricular a nível global).
Instalação da interdependência: ocorre quando os países concordam em alcançar
objetivos comuns para lidar com problemas que exigem cooperação internacional (ex.:
mudança climática, EPT - Educação Para Todos) (Dale, 1999; Verger et al ., 2017).

19 As políticas globais de educação em países do Sul global sofrem


influências globais de intensidade superior, pois estes países,
essencialmente os mais pobres, têm uma grande dependência de
ajuda externa em diferentes modalidades, como por exemplo, em
termos de financiamento, informação e de especialistas e há também
um grande espaço – material e ideológico – para os agentes externos
definirem as agendas e as prioridades educativas destes países
(Verger et al ., 2017).

Cooperação para o desenvolvimento em


educação
20 Unterhalter (2015) apresenta três perspetivas da educação para
olhar o global, o nacional e o local, que proporcionam diferentes
formas de compreender estas áreas de interesse da educação e do
desenvolvimento internacional. Estas três perspetivas e as relações
na ajuda à educação ilustram os diversos recursos conceptuais em
que a educação e o desenvolvimento internacional se baseiam e
também as maneiras pelas quais diferentes tipos de política e de
prática são discutidos dentro de enquadramentos específicos
(Unterhalter, 2015). Estas abordagens centram-se na cooperação
para o desenvolvimento, nas ligações entre políticas públicas e
empreendedores privados e nas relações de pobreza e de exclusão:
O global como um grupo de organizações transnacionais, que estão acima ou fora dos
Estados-nação, com uma forte influência internacional: de uma perspetiva, o global
pode ser pensado como um grupo de organizações, como por exemplo a estrutura da
Organização das Nações Unidas (ONU) e as relações da Educação Para Todos (EPT).
Nesta perspetiva, a cooperação para o desenvolvimento concretiza-se sob forma de
empréstimo ou sob forma de cooperação para o desenvolvimento, por poderosas
organizações globais que fazem exigências aos Estados-nação que recebem ajuda. A
educação, sendo uma área importante de políticas públicas, é principalmente
financiada por meio de contratos fiscais locais, mas também pode ser apoiada pela
filantropia e por privados que abrem escolas, distribuem materiais didáticos ou
financiam a comunicação social. Um objetivo comum em muitas ajudas, políticas
públicas e iniciativas privadas é trazer a todas as crianças carenciadas um mínimo de
participação educativa. Existe alguma dificuldade em definir o global como sendo
sempre externo e distinto do nacional ou do local: isto estabelece uma dicotomia
demasiado acentuada e implica também que o local seja sempre algo “paroquial”, a
olhar para dentro, respondendo às prioridades e políticas nacionais, recetor de
iniciativas globais de políticas educativas e pouco construtivo a nível global. Esta
perspetiva sugere uma compreensão estática dos níveis global e nacional. Esta
abordagem de imagem congelada é destacada no recurso ao uso de indicadores
numéricos ou noções específicas de medição para gerir e avaliar a evolução destas
relações globais e nacionais. Estes números são monitorizados e têm sido usados para
avaliar o sucesso da cooperação internacional em torno do desenvolvimento – o poder
dos números – que chegou, assim, a enquadrar poderosamente o que é definido como
global e nacional e o leque de áreas em que a cooperação para o desenvolvimento na
educação se desdobra.
O global como conjunto de atitudes e disposições socioculturais: estas caracterizam o
trabalho de pessoas, de organizações e de redes, localizadas global, nacional e
localmente, que desenvolvem um conjunto de ideias sobre políticas e práticas
educativas dentro dos Estados-nação. As ideias sobre governação transparente e
prestação de contas em relação à educação dentro de governos e organizações não
governamentais (ONG) refletem os pontos de vista de uma classe particular de
defensores desta abordagem, que pode ser localizada nacionalmente, por exemplo,
trabalhando num Departamento de Educação ou numa grande ONG com o objetivo de
introduzir comités de gestão escolar que supervisionem a subvenção da ajuda e/ou
captação de honorários do Governo. As ideias destes financiadores, do que foi descrito
como cultura mundial, podem entrar em conflito com os defensores de outras
abordagens sobre a governação escolar local, possivelmente uma associação de pais e
professores, que pode ser sensível às associações de redes locais. Por vezes, estas
associações são descritas como diferentes daquelas associadas à cooperação para o
desenvolvimento e “retrogradamente” ligadas a corrupção, tradição ou paroquialismo.
A noção de que o global está dentro do nacional e do local mostra como não há uma
versão simples do global ou do local na educação ou em qualquer outra área e que as
pessoas cruzam e misturam ideias de várias fontes. Assim, o dinheiro para a educação
circula através de canais da diáspora: enviado “para casa” por trabalhadores migrantes
para sustentar as matrículas escolares dos seus filhos ou equipar uma sala de aula na
sua aldeia ou apoiar uma associação escolar. As ideias sobre educação também circulam
com a melhoria das ligações. Os meios de comunicação ou colóquios internacionais
sugerem formas específicas de construir ou de organizar uma escola. Estas ideias
podem ser consideradas “globais”, mas podem ser apenas o resultado de diversas
discussões sobre esse tema, à medida que as pessoas cruzam o mundo, literalmente,
virtualmente e na sua imaginação. Nesta perspetiva, a pobreza ou a marginalização não
é um conjunto de relações estáticas, definidas apenas pelos rendimentos. Uma pessoa
pode ser classificada como pobre, ganhando pouco num país de alta renda, mas possuir
muitas redes significativas no país de baixa renda em que nasceu, assim como por
causa dos fundos que envia, possuir um estatuto considerável na sua comunidade.
O global como um conjunto de ideias éticas sobre direitos, capacidades e obrigações:
pensar sobre o que devemos uns aos outros, independentemente da nacionalidade e
das crenças particulares e como entender os direitos, o cosmopolitismo e as
abordagens a adotar para avaliar as iniciativas de educação globais, nacionais e locais.
Neste argumento, a cooperação para o desenvolvimento não corresponde apenas aos
montantes financeiros gastos com a ajuda, mas também à ética na avaliação dos gastos;
às relações inclusivas e à forma como os objetivos envolvem transformação ou mera
reprodução de estruturas de poder. Tanto o Estado como o setor privado precisam ser
rigorosamente escrutinados sobre como lidam, protegem e promovem os direitos e as
oportunidades. Aqui, a pobreza deve ser entendida como multidimensional e o
cruzamento de classe, raça, género, etnia e idade é avaliado para desenvolver relações
que sejam participativas, que tenham em consideração a complexidade do contexto e
que desafiem as injustiças (Unterhalter, 2015).
21 Assim, podem-se compreender algumas dinâmicas de convergência,
de transferência de políticas, assim como os mecanismos de
influência externa da globalização na educação.
22 Em 2015, foram definidos 17 Objetivos de Desenvolvimento
Sustentável (ODS), fixados numa cimeira da ONU (Organização das
Nações Unidas) que reuniu os líderes mundiais. Nesta cimeira foi
adotada uma agenda ambiciosa com vista à erradicação da pobreza e
ao desenvolvimento económico, social e ambiental, à escala global,
até 2030, conhecida como Agenda 2030 para o Desenvolvimento
Sustentável (CICL, 2017; UNRIC, 2016), sendo que um daqueles
objetivos (ODS 4) se refere explicitamente à educação. Dentro do ODS
4, a meta 4.10 é dedicada à formação de professores : “Até 2030,
aumentar substancialmente o contingente de professores
qualificados, inclusive por meio da cooperação internacional para a
formação de professores, nos países em desenvolvimento,
especialmente os países menos desenvolvidos e pequenos Estados
insulares em desenvolvimento”.

Globalização e cooperação na formação de


professores
23 Os discursos das diferentes organizações internacionais refletem
sobre a qualidade da educação e da formação inicial e contínua dos
professores como fundamentais para o sucesso do projeto EPT e,
consequentemente, para a qualidade da aprendizagem, pois os
professores são um dos fatores-chave da melhoria da qualidade da
educação (Yates, 2007; UNESCO, 2004).
24 Sobre as tendências globais na política de formação de professores,
Steiner-Khamsi (2015) afirma que há várias razões pelas quais a
formação de professores e a sua eficácia atraíram tanta atenção.
25 Primeiro, a escassez de professores qualificados é um fenómeno
global. Em 2008, o Grupo de Alto Nível da EPT estabelecia que seriam
necessários 18 milhões de professores para alcançar a educação
primária universal até 2015. Por exemplo, o sul e o oeste da Ásia
precisariam de mais 3,6 milhões de professores, e os países da África
subsariana precisariam de recrutar 145.000 novos professores,
anualmente, para aumentar o número de matrículas no ensino
primário até ao ano de 2015. Indiscutivelmente, a falta de
professores qualificados constitui uma das maiores barreiras à oferta
de educação primária obrigatória e gratuita em alguns países e à
expansão da escolaridade de dez para onze ou doze anos, em outros.
A escassez de professores nas escolas secundárias é especialmente
grave em disciplinas específicas (matemática, ciências, inglês). O
estudo de 2006 do PISA menciona explicitamente a escassez de
professores qualificados em disciplinas científicas e atribui os baixos
resultados dos alunos em ciências à falta de professores qualificados
na área. A prática de redistribuição de horas vagas para substituir
professores ou professores não qualificados, é a estratégia mais
comum usada na escola para lidar com a falta de professores
(Steiner-Khamsi, 2015).
26 Em segundo lugar, começando com a Iniciativa Fast Track da EPT
(2002) e continuando para além da agenda de desenvolvimento de
2015, os doadores internacionais e os governos que recebem ajuda
subscreveram critérios baseados no desempenho de eficácia da
ajuda. Atualmente, os benefícios para os destinatários finais estão no
centro das avaliações da eficácia da ajuda. Portanto, para as reformas
educativas, a questão é: como é que os alunos beneficiaram da
intervenção ou, mais restritivamente, como é que os resultados da
aprendizagem aumentaram como resultado da reforma ou do
projeto? Naturalmente, os testes de aproveitamento de alunos
internacionais do tipo IEA ( International Association for the Evaluation
of Educational Achievement ) e OCDE (Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Económico) são cada vez mais usados como
instrumentos de política para aprender lições, adotando as
“melhores práticas” ou para empréstimos seletivos de políticas. A
forte correlação assumida entre o ensino e os resultados dos alunos
levou a uma corrida global sobre como maximizar a eficácia do
professor. Num curto período de tempo, o ensino tornou-se uma das
profissões mais estudadas e mais regulamentadas, com altas
expectativas e ainda com uma série de questões não resolvidas
(Steiner-Khamsi, 2015).
27 A terceira razão pela qual os estudos sobre as políticas para
professores suscitaram expectativas tão elevadas está relacionada
com o financiamento: os salários constituem, de longe, a maior
rubrica em qualquer orçamento nacional para a educação. Em mais
da metade de todos os países do Sul global, a remuneração do pessoal
absorve 75% ou mais do orçamento nacional de educação, deixando
muito pouco espaço para outras rubricas importantes, como ofertas
de ensino/aprendizagem, manutenção de instalações, apoio
direcionado aos alunos com necessidades económicas e aos alunos
com necessidades educativas especiais e desenvolvimento
profissional do pessoal. A situação é ainda mais precária nos Estados
frágeis onde, além da dependência de salários de professores
financiados por doadores, existe uma série de outras questões como,
por exemplo, a falta de registo bancário e de sistema de distribuição.
Assim, é também por razões financeiras que a formação de
professores e a eficácia dos professores têm sido tratadas com
prioridade nos estudos de políticas (Steiner-Khamsi, 2015).
28 Em suma, os professores têm um impacto significativo na
aprendizagem dos alunos, mas o seu número não é suficiente, nem
são, em muitos países do Sul global, adequadamente pagos. É
importante atrair, desenvolver e reter professores. O que não está
suficientemente identificado, no entanto, são as vastas diferenças
nos sistemas educativos que respondem por desafios específicos do
sistema e, portanto, exigem soluções específicas em vez de
universais para o efetivo recrutamento, desenvolvimento e retenção
de professores (Steiner-Khamsi, 2015).
29 Assim, na África subsariana, a necessidade de melhorar a qualidade
dos professores é ainda mais evidente, havendo desafios
permanentes na formação destes (Moon & Wolfenden, 2012). A
formação de professores parece ser uma das partes mais
conservadoras de muitos sistemas educativos. Raramente é a fonte
da inovação curricular, da pedagogia teorizada ou das
reconceptualizações radicais do conhecimento profissional. Muitas
vezes fica atrás na educação, na adoção de novas práticas e padrões
de ensino e aprendizagem. Isto é revelador de que a vontade política
e a coragem burocrática são necessárias para a implementação de
mudanças reais destinadas a melhorar a eficiência e a eficácia (Lewin
& Stuart, 2003; Moon & Wolfenden, 2012).

Metodologia
30 Como já foi referido, este artigo foi realizado com base numa tese de
doutoramento, em que se optou por uma abordagem de natureza
qualitativa (interpretativa), de entre os paradigmas comummente
utilizados na investigação em educação (Bogdan & Biklen, 1996;
Cohen et al ., 2007), assumindo-se como um estudo multicaso (Amado
& Freire, 2013; Yin, 2001).
31 As escolas das três províncias onde a pesquisa se desenvolveu
(Benguela, Cabinda e Cunene) têm diferentes influências linguísticas,
culturais e formativas e diferentes experiências no que se refere a
projetos de cooperação. Também existem diferentes histórias de
participação, de formação e de influência, havendo uma forte
influência das orientações comuns emanadas pelo governo central
de Angola.
32 Realizaram-se entrevistas semiestruturadas a 28 professores de
ciências do ensino secundário 1 das três EFP das províncias em
estudo, a quatro diretores/subdiretores pedagógicos destas EFP, a
três membros das direções provinciais da educação (DPE) das
províncias em estudo e a dois membros do Ministério da Educação,
particularmente da direção do Instituto Nacional de Formação de
Quadros (INFQ) e do Instituto Nacional de Investigação e
Desenvolvimento da Educação (INIDE). Entrevistaram-se também
quatro Agentes da Cooperação (AC) e duas Coordenadoras Científico-
Pedagógicas (CCP) do programa Saber Mais (o programa de formação
de professores em Angola, da cooperação portuguesa), assim como
dois especialistas de educação angolanos, com particular ligação à
formação de professores.
33 Realizou-se análise das entrevistas, a fim de compreender quais os
projetos de cooperação internacional existentes e qual a sua
influência na educação e na formação de professores em Angola. Na
análise, foi tido em conta o modo como os discursos presentes nos
documentos enquadradores são apropriados pelos responsáveis e
têm impacto nos modos como se organiza a formação de professores
(Lopes et al ., 2004).
34 Os dados recolhidos integram um conjunto de conhecimentos,
ideologias e valores do contexto em estudo, pelo que se procedeu a
uma “análise em discurso” (Lopes et al. , 2004). A análise em discurso
corresponde, tecnicamente, à análise de conteúdo, mas toma os
textos como discursos. A análise de conteúdo foi de tipo
interpretativo, possibilitando a extração e a sistematização de
conhecimento que uma primeira leitura dos dados não permitiria
(Esteves, 2006).
35 Após uma leitura flutuante das entrevistas com os informantes-
chave referidos, foram definidas as categorias e subcategorias de
análise, a partir das quais foram tratados os dados.
36 É de referir que, neste estudo, foram consideradas questões de
ordem ética, essenciais aos processos de investigação em educação,
como referem diversos autores (Cohen et al., 2007; BERA, 2011;
Brydon, 2006): respeito pelas pessoas, pelo conhecimento, pelos
valores democráticos, pela justiça e equidade; pela qualidade da
investigação em educação; e pela liberdade académica (BERA, 2011).

Formação de professores em Angola


37 Relativamente à formação de professores, foi aprovado, em 2007, o
Plano Mestre de Formação de Professores (PMFP), um documento
que regula a formação de professores no país. Este plano foi
elaborado por uma equipa multidisciplinar constituída por técnicos
do Ministério da Educação de Angola e por técnicos do BIEF ( Bureau
d’Ingénierie en Éducation et en Formation ), no âmbito da cooperação
belga, que prestaram assistência técnica e metodológica, o que é
revelador da importância desta cooperação. O Plano foi
implementado entre 2008 e 2015, tendo como objetivo que o Estado
angolano pudesse atingir os Objetivos de Desenvolvimento do
Milénio (ODM) e cumprir as metas de Dakar (MED, s.d.), não se
conhecendo, ainda, a avaliação do mesmo.
38 Este documento aponta, também, para a mudança das metodologias
de ensino na formação inicial de professores, visando que o ensino se
descentre do professor e se centre no aluno (Roegiers, 2007). A
metodologia centra-se na Pedagogia da Integração baseada na
Abordagem Por Competências (APC), assumindo “novas propostas
pedagógicas e metodológicas que conduzem a aprendizagens
significativas e integradoras” (MED, s.d., p. 5), e num modelo de
formação de professores que permita o “domínio de competências
básicas indispensáveis ao ‘aprender a aprender’ ao longo da vida”
(MED, s.d., p. 5). Através da pedagogia de integração/APC, “o aluno
deve ser capaz de transferir as suas aprendizagens do contexto
escolar para um contexto do quotidiano” (Roegiers, s.d., p. 10).
39 Nas definições de competências apresentadas por Roegiers (2007) e
por Perrenoud (1999), apesar de estas serem polissémicas e
relativamente controversas, considera-se que a APC em contexto
escolar é, por um lado, o domínio do conhecimento científico
adaptado ao perfil ou nível de escolarização do aluno e visa, por
outro, a preparação do aluno para fazer uso desse conhecimento, nos
diversos contextos ou situações da vida, para solucionar
adequadamente os problemas com que se depara. Isto significa que o
enfoque nas competências não invalida que se aposte na realização
de um dos pressupostos incontornáveis do desenvolvimento das
competências, que é a obtenção dos objetivos cognitivos, ou seja, dos
conhecimentos que terão de ser mobilizados (Varela, 2012). O facto
de a APC ter a sua origem no mundo do trabalho e poder traduzir
lógicas inerentes à formação profissional tem causado alguma
controvérsia (Varela, 2012; Pires Ferreira, 2013).
40 Posteriormente, em 2011, foi aprovado o Estatuto do Subsistema de
Formação de Professores (Decreto Presidencial n.º 109/11, 2011), com
incidência na formação de professores da formação média normal.
Este estatuto estabelece as normas gerais da formação de professores
para a educação pré-escolar, para o ensino primário (1.ª à 6.ª classe) e
para o 1.º ciclo do ensino secundário (7.ª à 9.ª classe), nas
modalidades de formação inicial e formação contínua e de formação
à distância. No documento está contemplada a formação de
professores realizada em escolas do magistério primário e em escolas
de formação de professores, que são escolas do 2.º ciclo do ensino
secundário (10.ª à 12.ª/13.ª classes). As primeiras, magistério
primário, qualificam essencialmente para o exercício da função
docente na classe de iniciação e em todas as classes do ensino
primário. Por sua vez, as EFP qualificam para a docência em, pelo
menos, duas disciplinas do 1.º ciclo do ensino secundário.

Caracterização das províncias de Benguela,


Cabinda e Cunene
41 Como já foi referido, o estudo realizou-se em três províncias de
Angola: Benguela, Cabinda e Cunene, que serão caracterizadas de
seguida.

Benguela

42 A província de Benguela apresenta uma área total de cerca de 39.000


km 2 e ocupa cerca de 3,19% do território nacional. Segundo o Censo
2014, tem 2.231.385 habitantes (8,7% do total de habitantes de
Angola), sendo a terceira província mais populosa, com uma
densidade populacional de 70,2 habitantes/km 2 (INE, 2016).
43 Relativamente ao setor da educação, a Tabela 1 apresenta o número
de alunos e alunas que frequentavam o ensino primário, o 1º e o 2º
ciclo do ensino secundário e o ensino superior nesta província,
segundo o mesmo Censo 2014 (INE, 2016).
44 Tabela 1
Número de estudantes por género e por nível de ensino na província de
Benguela

Nível de ensino Masculino Feminino Total

ensino primário 165.569 139.379 304.948

1.º ciclo do ensino secundário 91.761 83.616 175.377


2.º ciclo do ensino secundário 62.253 55.434 117.687

ensino superior 9.333 7.556 16.889

45 Fonte: INE (2016)


46 Ao nível do 2.º ciclo do ensino secundário, para além das escolas
públicas do ensino geral, a província possui cinco escolas do ensino
médio técnico. Destas, uma é escola do magistério primário e outra é
escola de formação de professores (EFP), sendo que esta tem duas
escolas anexas, a EFP do Dombe Grande e a EFP do Cubal. Existem
ainda a EFP do Lobito e uma Escola de Formação de Professores do
Futuro da organização não governamental Ajuda de
Desenvolvimento de Povo para Povo (EFPF-ADPP), que forma
professores para o ensino primário para o meio rural.
47 A Universidade Katyavala Bwila (UKB), localizada na Região
Académica II, que inclui as províncias de Benguela e do Cuanza Sul,
integra o Instituto Superior de Ciências da Educação (ISCED) de
Benguela, que forma professores para o 2.º ciclo do ensino
secundário.

Cabinda

48 A província de Cabinda é um enclave e é a província mais a norte de


Angola. Apresenta uma área total de cerca de 7.000 km 2 , que ocupa
cerca de 0,6% do território nacional. Segundo o Censo 2014, a
província tem 716.076 habitantes (2,8% do total de habitantes de
Angola), encontrando-se em décimo segundo lugar relativamente à
população, com uma densidade populacional de 98,5 habitantes/km 2
(INE, 2016).
49 Relativamente ao setor da educação, e tendo por base o Censo 2014,
a Tabela 2 apresenta o número de alunos e alunas que frequentavam
o ensino primário, o 1º e o 2º ciclo do ensino secundário e o ensino
superior nesta província (INE, 2016).
Tabela 2
Número de estudantes por género e por nível de ensino na província de Cabinda

Nível de ensino Masculino Feminino Total

ensino primário 64.376 57.791 122.167

1.º ciclo do ensino secundário 47.611 38.835 86.446

2.º ciclo do ensino secundário 44.894 31.740 76.634

ensino superior 7.023 3.639 10.662

Fonte: INE (2016)

50 No nível de ensino médio, a província de Cabinda tem uma EFP onde


se formam professores para o ensino primário e 1.º ciclo do ensino
secundário (Neves, 2015), com uma escola anexa, no município de
Belize, e uma EFPF-ADPP.
51 Cabinda conta com uma instituição de ensino superior na área da
educação, o ISCED. O ISCED integra a estrutura orgânica da
Universidade Onze de Novembro (UON), que atua na Região
Académica III: Cabinda e Zaire (Neves, 2015).

Cunene

52 A província do Cunene situa-se no sul de Angola e faz fronteira, a


norte, com a província da Huíla, a sul com a República da Namíbia, a
oeste com a província do Namibe e a leste com a província do
Cuando-Cubango. Apresenta uma área total de cerca de 87.000 km 2 ,
ocupando cerca de 7,0% do território nacional. Segundo o Censo
2014, a província do Cunene apresenta 990.087 habitantes (3,8% do
total de habitantes de Angola), encontrando-se em oitavo lugar
relativamente à população, com uma densidade populacional de 11,1
habitantes/km 2 (INE, 2016). É uma das regiões menos povoadas de
Angola.
53 Relativamente ao setor da educação, e segundo o Censo 2014, a
Tabela 3 apresenta o número de alunos e alunas que frequentavam o
ensino primário, o 1º e o 2º ciclo do ensino secundário e o ensino
superior nesta província (INE, 2016).
Tabela 3
Número de estudantes por género e por nível de ensino na província de Cunene

Nível de ensino Masculino Feminino Total

ensino primário 49.162 50.800 99.962

1.º ciclo do ensino secundário 28.179 32.137 60.316

2.º ciclo do ensino secundário 12.718 11.186 23.904

ensino superior 1.251 880 2.131

Fonte: INE (2016)

54 Na província existem três escolas que formam técnicos médios,


sendo que duas são de formação de professores: a Escola de
Formação de Professores (EFP) para o I ciclo do ensino secundário e a
Escola EFPF-ADPP, da ONG ADPP.
55 A oferta formativa de nível superior restringe-se a uma instituição
pública, a Escola Superior Politécnica de Ondjiva, um polo da
Universidade Mandume Ya Ndemufayo (UMN), que integra a Região
Académica VI e abrange as províncias da Huíla, Namibe, Cunene e
Cuando-Cubango. Tem sede na cidade do Lubango, província da
Huíla, e oferece cursos nas áreas das ciências, apoiados pela
cooperação cubana.

Análise dos dados


56 Faz-se, de seguida, uma análise dos dados, tendo em consideração os
aspetos referidos pelos entrevistados, relativamente aos projetos de
cooperação internacional, à adequação dos modelos implementados
por estes projetos e à influência dos países de fronteira e dos países
da CPLP, por se considerar que estes são os aspetos mais relevantes
para a compreensão da problemática deste artigo.

Os projetos de cooperação internacional

57 De forma a organizar a informação relativa aos projetos de


cooperação para o desenvolvimento, optou-se por dividi-los pelo
tipo de organização que representam, a nível de agências
internacionais, sob a forma de cooperação multilateral, a nível dos
países, sob a forma de cooperação bilateral, ou por organizações da
sociedade civil nacionais ou internacionais, onde se inserem ONG,
Igrejas e outras organizações internacionais. Na figura 1 apresenta-
se a sistematização de todos os projetos de cooperação internacional
referidos nas entrevistas realizadas, da forma de cooperação (coluna
1), das organizações/instituições/países (coluna 2) e tipo de
cooperação/atividades realizadas (coluna 3).
Figura 1: Síntese dos projetos de cooperação para o desenvolvimento referidos pelos
entrevistados
58 Na figura 2 apresenta-se o mapeamento dos programas e projetos de
cooperação internacional existentes em cada província, com base
nos discursos dos informantes-chave. De notar que alguns desses
programas e projetos são referidos a nível nacional, como é o caso
das agências de cooperação multilateral (BM, UE, UNESCO, UNICEF) e
da cooperação entre universidades ou instituições de ensino
superior.
Figura 2: Mapeamento dos projetos de cooperação para o desenvolvimento, com
base nos discursos dos entrevistados, das províncias de Benguela, Cabinda e Cunene
59 Da análise dos projetos de cooperação, salienta-se o seguinte:
Os programas e projetos de cooperação para o desenvolvimento são diversos e
dispersos, sendo muitos deles vagos e sem fundamentação contextual, para além da
que foi abordada pelos entrevistados, o que torna difícil fazer o seu enquadramento;
Verifica-se que a maior parte dos programas e projetos de educação descritos são de
formação contínua (Malawi, Quénia, Saber Mais, UE – União Europeia, BM – Banco
Mundial, UNICEF – United Nations International Children’s Emergency Fund (Fundo das
Nações Unidas para a Infância), ADRA – Acção para o Desenvolvimento Rural e
Ambiente - Angola);
Existem também alguns projetos de formação inicial (Saber Mais, ADPP, Igreja Católica);
Existem ainda cooperações direcionadas para o ensino superior, a maior parte delas
dentro da cooperação bilateral (Brasil, China, Cuba, Portugal), com a exceção da
cooperação do ISCE Odivelas (Instituto Superior de Ciências da Educação);
As cooperações apresentadas têm meios e financiamentos bem diferentes, não
comparáveis, e que não vão ser analisados no âmbito deste artigo;
As cooperações apresentadas têm políticas e ideologias que seriam interessantes de
analisar caso a caso; porém, para a maior parte delas não há condições para o fazer, por
falta de dados;
Os países de fronteira têm influência sobre as dinâmicas das províncias vizinhas, no
entanto estas dinâmicas não se verificam em termos de cooperação transfronteiriça
institucional, mas sim em termos de cooperação cultural natural entre povos irmãos;
A cooperação entre PALOP e CPLP é mais evidente na teoria do que na prática;
Os países de língua portuguesa são, em muitos casos, privilegiados para a cooperação,
devido à facilidade da língua;
Verifica-se a existência, em menor quantidade, de cooperação com países africanos;
Em termos de formação de professores, é evidente que os professores continuam a
estar interessados em formação contínua;
Apesar de ser sabido que existe no Ministério da Educação um Gabinete de Intercâmbio
Internacional que coordena os projetos de cooperação internacional, verifica-se que
existe alguma falta de coordenação e de articulação entre os vários projetos;
Torna-se complexo aferir a sustentabilidade dos projetos de cooperação para o
desenvolvimento apresentados devido à falta de dados da sua maior parte.

Influência das agendas das organizações internacionais

60 Relativamente às agendas das organizações internacionais, analisa-


se de seguida a sua influência na educação e na formação de
professores em Angola.
61 Em Angola, o Banco Mundial tem um projeto de apoio à educação,
em parceria com o MED, que contempla a implementação das ZIP a
nível nacional e o fortalecimento do sistema de avaliação,
influenciando assim a implementação das suas agendas.
62 A União Europeia (UE), através do PAEP (Projeto de Apoio ao Ensino
Primário), apoiou o ensino primário em Angola, com um projeto que
terminou no ano de 2012 e abrangeu uma série de atividades para
melhoria do serviço educativo a nível central, municipal e local, de
implementação da Reforma Educativa no ensino primário em várias
províncias de Angola (MED/UE, s.d.). Sobre este projeto, o subdiretor
pedagógico EFP Benguela referiu que o nivelamento dos professores
do ensino primário também foi apoiado pelo PAEP, com um pacote
de formação previamente elaborado, mas que, entretanto, este apoio
também acabou com o projeto.
63 A diretora-geral INFQ referiu que “a UNESCO, enquanto órgão da
ciência e da educação, procura reforçar as capacidades institucionais
de Angola e quase sempre disponibilizando peritos para auxiliar na
definição das nossas políticas”. Referiu também o projeto da UNESCO
“A menina e a ciência”, um projeto que trabalha as questões de
género e o ensino das ciências, a fim de incentivar as raparigas no
estudo das ciências.
64 A DPE Cunene referiu também o protocolo assinado entre o MED e a
UNESCO Buenos Aires para a formação em supervisão, através do
programa de revitalização da inspeção da educação, com um modelo
de formação de cima para baixo: formação de formadores nacionais,
que fazem a formação de formadores provinciais, que por sua vez
vão formar os inspetores provinciais e municipais.
65 A UNICEF foi também referida pela diretora-geral INFQ no âmbito
das questões da infância, nomeadamente no apoio ao ensino
primário universal, com apoio financeiro e político. A diretora-geral
INFQ referiu a importância de um documento do governo de Angola
sobre a proteção da criança, que foi elaborado tendo em
consideração os acordos de cooperação internacional, como a
Convenção dos Direitos da Criança e os ODM.
66 Verifica-se, assim, que estes projetos atuam em áreas essenciais de
influência das agendas e políticas educativas.

Adequação dos modelos de projetos de cooperação à


realidade do país

67 Considerou-se relevante analisar a perceção dos entrevistados


relativamente à adequação dos projetos de cooperação à realidade de
Angola.
68 Sobre a adequação dos modelos de projetos de cooperação à
realidade do país, a diretora-geral INFQ referiu que existem
organizações privilegiadas na cooperação, “sobretudo a UNESCO e a
UNICEF são os que mais trabalham porque acabam por fazer a
monitorização de toda a ação educativa em Angola”. Além destas,
referiu a relevância da cooperação com Portugal, sobretudo a nível
de algumas instituições com que já há uma ligação e um
conhecimento da realidade.
69 A DPE 2 Cunene explicou que nas formações ministradas através de
programas e projetos de cooperação, há a preocupação de
contextualizar, porém essa contextualização é feita a nível dos
órgãos centrais, e é um processo longo até chegar aos beneficiários
locais, inspetores e professores. Então a informação corre o risco de
ficar perdida na cadeia vertical, de cima para baixo. Quando
questionada sobre se considera que os modelos utilizados são
adequados à realidade do país, a DPE Cunene afirmou que sim, porém
considerando que nem todos os intervenientes se envolvem como
esperado na implementação. Também refere a falta de
monitorização na implementação: dá o exemplo da implementação
das ZIP (Zonas de Influência Pedagógica), em que as questões
políticas se sobrepõem às questões técnicas.
70 Sobre a contribuição da cooperação internacional para a melhoria
das políticas educativas em Angola, a DPE Cunene considera que há
esse contributo, embora ainda sem resultados pois considera que os
processos educativos demoram tempo, e reforça os problemas na
implementação.
71 O técnico ADRA referiu que as várias organizações que fizeram
formação de professores de há 6 anos até então têm em conta o
contexto. Reforçou o exemplo da ADPP (Ajuda de Desenvolvimento
de Povo para Povo) e da ADRA (Acção para o Desenvolvimento Rural
e Ambiente – Angola).
72 A grande maioria dos professores referiu como tema prioritário
para a formação contínua de professores as práticas laboratoriais,
sendo que alguns professores especificaram temas de biologia como
genética e microscopia e de química como química analítica, química
orgânica e química física. Foram também referidos como temas
importantes a APC e a formação pedagógica.
73 A CCP Cabinda referiu que não compreende porque é que quando
alguém faz uma formação fora da província depois, no regresso, não
partilha a informação, o conhecimento e a temática com os colegas.
74 Numa perspetiva mais geral, o especialista de educação UnIA 3
referiu que não é tratando tudo por igual na educação que se
trabalha para o desenvolvimento de um país e que as agendas
internacionais podem servir de referência, mas não deve ser a
própria agenda do país. Esta perspetiva corrobora as perspetivas de
educação e desenvolvimento internacional de Unterhalter (2015), de
uma dialogia entre a perspetiva do global como um grupo de
organizações transnacionais que estão acima dos Estados-nação, com
uma forte influência internacional, e o global como um conjunto de
ideias éticas sobre direitos, capacidades e obrigações.

Influência dos países de fronteira de Angola nos


processos de cooperação

75 Tendo em conta que duas das províncias em estudo (Cabinda e


Cunene) são províncias de fronteira, considerou-se pertinente
analisar a influência dos países vizinhos (Congo e Namíbia), que foi
referida explicitamente nas entrevistas por duas professoras da EFP
Ondjiva.
76 A influência dos Congos (República Democrática do Congo - RDC e
Congo Brazzaville) na formação dos professores foi referida por uma
professora que é natural da província de Cabinda, pois muitos
professores vão fazer as suas formações nestes países. Porém, esta
não referiu nenhuma cooperação institucional, mas apenas que
alguns professores estudaram na RDC. Relativamente à formação
nestes países, a professora referiu não ser igual à de Angola: “Não é
semelhante. Pelo que ele desenvolvia na sala de aula, nós
percebíamos que o Congo Democrático oferecia mais condições na
área de laboratórios do que em Cabinda. Ele falava mais em aulas
práticas do que aulas teóricas”.
77 A influência da fronteira com a Namíbia sob o ponto de vista
linguístico foi referida devido ao facto de que em ambos os lados da
fronteira, a língua de união é o cuanhama, as pessoas acabam por
falar a língua materna em vez do português, o que dificulta as
aprendizagens dos alunos, que têm uma grande dificuldade na língua
portuguesa. A professora referiu também um colega de biologia que
fez a formação de biologia na Namíbia, mas como não tem domínio
da língua portuguesa, está a lecionar inglês e não biologia.
78 O especialista de educação UnIA referiu que existem mais
referências comuns entre Angola e a Namíbia, Congos e África do Sul,
nomeadamente nas línguas maternas que se falam em ambos os
lados da fronteira e que a escola deve trabalhar de uma forma
“integracionista” e não “assimilacionista”.
79 Verifica-se, assim, que esta influência dos países vizinhos existe,
mas não é institucionalizada.
Cooperação a nível da CPLP (Comunidade dos Países de
Língua Oficial Portuguesa) e dos PALOP (Países
Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e sua influência
nas políticas educativas e na formação de professores
em Angola

80 Dado que Angola é um país de língua oficial portuguesa, um dos


entrevistados aflorou a influência da língua portuguesa na
cooperação, problematizando o conceito de “lusofonia”. O
especialista de educação UnIA questiona este conceito, reiterado no
contexto da CPLP, pois considera que a língua portuguesa não é de
Portugal ou dos portugueses, mas é de quem a fala.
81 Venâncio (2015, p. 445) tem uma perspetiva mais aberta,
considerando que “a lusofonia enquanto plataforma de
entendimento pode, assim, desempenhar um importante papel de
aproximação entre povos que usam e que, em termos identitários, se
reveem, pelo menos em parte, na língua portuguesa.” Na verdade,
lusofonia remete para uma alegada centralidade portuguesa, tendo
por base a língua, mas que se transpõe para questões políticas.
82 Já relativamente aos PALOP, o especialista de educação UnIA
considera que há uma identidade africana que é de todos, por terem
passado pelo mesmo processo de colonização e de terem as mesmas
origens Bantu, pelo menos de Angola e Moçambique e por terem
passado por situações de guerra. Porém, constata-se que a nível dos
PALOP esta cooperação não funciona.

Considerações finais
83 Os parâmetros definidos por e para Angola para a melhoria da
formação de professores são sobremaneira influenciados pelas
políticas de cooperação internacional já referidas, nomeadamente
pelas agências de cooperação internacional como a UNESCO. Este
aspeto é corroborado por Dale (2007) quando se refere à aceitação
voluntária das reformas de influência externa, com a transferência
de políticas que nem sempre são viáveis a nível nacional como o são
a nível global. Paxe (2014, p. 117) reforça esta ideia referindo que
“principalmente depois de 1991, acentuou-se a adopção na política
de educação em Angola dos modelos educativos ocidentais através de
programas e projetos propostos por UNESCO, União Europeia e CPLP
para […] visar a legitimidade internacional na nova ordem mundial”.
84 Sobre a importação de políticas, Paxe (2014) refere ainda que,
frequentemente, em Angola, são feitos processos de consulta, sendo
que a sua finalidade é que o governo reúna consensos sobre as
políticas internacionais que deve impor.
85 Relativamente à formação inicial, é indiscutível a importância da
ADPP na formação de professores para o ensino primário porque a
sua metodologia de ensino é apreciada pelos alunos porque já está
completamente apropriada pelos locais em que existe.
86 No que se refere à formação contínua, é de notar um bom conjunto
de projetos de cooperação na área da formação de professores,
designadamente nas práticas laboratoriais das ciências, aspeto que
evidencia a aposta do governo angolano a este nível. Muitas destas
iniciativas de cooperação são com países com os quais Angola tem
ideologias comuns (Paxe, 2014).
87 Torna-se evidente a influência do programa Saber Mais nas
províncias em estudo onde está a ser implementado, quer ao nível da
formação inicial, quer ao nível da formação contínua, tendo também
um papel importante na “apropriação” de algumas políticas de
implementação, nomeadamente na APC. Porém, esta apropriação
também pode ser considerada como uma forma de imposição,
questionando assim os princípios da cooperação para o
desenvolvimento apresentados por Dale (2007).
88 A falta de professores qualificados continua a ser um desafio para o
país, sendo este, segundo Steiner-Khamsi (2015) um fenómeno
global, que impede o investimento significativo na qualidade da
educação. Torna-se claro que esta falta de professores, face às reais
necessidades, fica a dever-se, em grande parte, à desvalorização da
profissão por falta de condições de trabalho e pela remuneração
salarial pouco convidativa (Christie et al. , 2010). A situação agrava-se
pelo facto de muitos estudantes que frequentam a formação inicial,
quer a nível do ensino médio, quer a nível do ensino superior, não
terem a intenção de se tornarem efetivamente professores, mas
apenas de terminar um ciclo de ensino e conseguir uma graduação
académica, como dão a entender vários dos entrevistados. A carreira
de professor também não estava regulamentada, pelo que só
recentemente há um sistema claro e transparente de progressão na
carreira, sendo necessário monitorizar a sua implementação.
89 Será assim importante que as políticas educativas do país comecem
a valorizar a profissão de professor, sob pena de continuar a não
haver professores formados suficientes e, consequentemente, não se
poder investir significativamente na qualidade da educação.
90 A outra grande questão é que as metas que são definidas
internacionalmente, como os ODS e a agenda EPT, podem ser
claramente desajustadas à realidade de muitos países,
nomeadamente a Angola, e impõem pressão e prazos que poucos
podem cumprir. Angola precisa, assim, de uma cooperação para o
desenvolvimento que parta das necessidades das pessoas e das
agendas nacionais e não de agendas internacionais estruturadas e
importadas que influenciem o seu sistema de educação.
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NOTAS
1. A escolha de professores de ciências do ensino secundário prende-
se com o âmbito do estudo de doutoramento que está na base deste
artigo, que tinha como um dos objetivos “contribuir para a reflexão
sobre a importância das práticas laboratoriais na formação de
professores de ciências, e sua relação com o desenvolvimento”.
2. Diretora Provincial de Educação em exercício.
3. Universidade Independente de Angola.

RESUMOS
Este artigo tem como objetivo discutir as influências da globalização e da cooperação para o
desenvolvimento na educação e na formação de professores em Angola, em particular nas
províncias de Benguela, de Cabinda e do Cunene. Utilizou-se uma metodologia de natureza
qualitativa e os resultados apresentados decorrem da análise documental e de entrevistas
semiestruturadas realizadas a vários atores nacionais e locais. Verifica-se assim que os
parâmetros definidos para a formação de professores em Angola são fortemente
influenciados pelos projetos de cooperação internacional nas suas conceções e práticas.
Sugere-se a necessidade de monitorização e recontextualização da formação de professores
em Angola, assim como a valorização da carreira de professor.

This article aims to discuss the influences of globalization and development cooperation on
education and teacher training in Angola, particularly in the provinces of Benguela,
Cabinda and Cunene. A qualitative methodology was used and the results stem from
document analysis and semi-structured interviews conducted with various national and
local actors. Thus, it appears that the parameters defined for teacher training in Angola are
strongly influenced by international cooperation projects in their conceptions and
practices. The need for monitoring and re-contextualization of teacher training in Angola,
as well as valuing the teaching career, are suggested.
ÍNDICE
Keywords: globalization, Angola, teacher training, development cooperation
Palavras-chave: globalização, Angola, formação de professores, cooperação para o
desenvolvimento

AUTORES
SARA POÇAS

Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação


da Universidade do Porto (FPCEUP)
Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE)
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP)
R. Alfredo Allen, 4200-135 Porto, Portugal
sarapocas@gmail.com

JÚLIO GONÇALVES DOS SANTOS


Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação
da Universidade do Porto (FPCEUP)
Centro de Investigação e Intervenção Educativas (CIIE)
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto (CEAUP)
R. Alfredo Allen, 4200-135 Porto, Portugal
jpedrosasantos@gmail.com
Impactos e Efeitos de Programas
de Cooperação para o
Desenvolvimento em Escolas:
Um olhar focado sobre o
programa de apoio ao sistema
educativo da Guiné-Bissau
Impacts and effects of development cooperation programs in schools:
A focused view on the educational aid programme PASEG

Rui da Silva e Joana Oliveira

NOTA DO EDITOR
Recebido: 01 de abril de 2020
Aceite: 07 de julho de 2020
1 A nível global há um conjunto de organizações ( e.g. Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económico, União Europeia,
Organização Internacional do Trabalho, UNESCO, UNICEF, Banco
Mundial) que promovem reformas educativas e um conjunto de
políticas educativas similares, marcando a existência de políticas
educativas globais (Robertson, 2012; Verger et al. , 2012), tornando a
mudança educacional sistemática um fenómeno global. Neste
âmbito, surgem projetos e programas, entre eles os de cooperação
para o desenvolvimento, que promovem um conjunto alargado de
iniciativas na área da Educação que vão desde o apoio ao orçamento
de Estado dos países, à formação de professores, ao pagamento dos
salários dos professores, à construção e apetrechamento de escolas, à
promoção de reformas educativas, entre outros.
2 Apesar de ser amplamente aceite, a nível internacional, que os
programas e projetos de Educação no âmbito da cooperação para o
desenvolvimento são os mais avaliados e que a avaliação no final de
cada ciclo de programa/projeto constitui uma prática habitual, esse
conhecimento não é, muitas vezes, colocado ao serviço da
comunidade científica e/ou não é utilizado por esta.
3 Tendo isto em consideração, o presente artigo explora o impacto e
efeitos do Programa de Apoio ao Sistema Educativo da Guiné-Bissau
(PASEG) - 2000 a 2011, nas escolas onde interveio, através de uma
análise em profundidade de quatro escolas.
4 O presente artigo encontra-se organizado em cinco partes. Na
primeira realizamos um breve enquadramento do PASEG e do
trabalho que realizou nas escolas em análise. Na segunda tecemos
algumas considerações sobre avaliação de impactos e efeitos de
projetos e programas em escolas. Na terceira expomos a abordagem
metodológica. Na quarta apresentamos e discutimos os dados. Na
última e quinta parte, intitulada considerações finais, identificamos
as principais conclusões.

O PASEG e o trabalho nas escolas


5 O Programa de Apoio ao Sistema Educativo da Guiné-Bissau (PASEG),
analisado no presente artigo, foi um programa de âmbito bilateral
que surgiu tendo por base uma decisão política para suprir a falta de
recursos humanos qualificados no sistema educativo guineense 1 .
6 Teve início no ano 2000 com 10 agentes da cooperação (AC) que
foram colocados em quatro liceus de Bissau e terminou no ano letivo
2011/2012 (Afonso et al ., 2008; IPAD, 2011). Ao longo dos seus 12 anos
de duração teve duas fases, a primeira teve a duração do ano letivo
2000/2001 ao 2008/2009 e a segunda fase do ano letivo 2009/2010 ao
2011/2012 (Santos et al ., 2012). A sua interrupção deveu-se ao golpe
de Estado do dia 12 de abril de 2012, o décimo desde a independência
em 1974, que interrompeu a segunda volta das eleições presidenciais
(Santos et al ., 2012; Sousa, 2012).
7 As áreas de conhecimento envolvidas na primeira fase foram a
língua portuguesa, a matemática, a física, a química, a biologia e a
filosofia, com predomínio da lecionação de aulas nas escolas do 3.º
ciclo do ensino básico e secundário 2 (Afonso et al ., 2008; IPAD,
2008). O Programa também trabalhou a educação de adultos. Na
segunda fase do PASEG, do ano letivo 2009/2010 ao ano letivo
2011/2012, foi abandonada a lecionação direta aos alunos e as áreas
de conhecimento envolvidas foram as seguintes: língua portuguesa,
matemática, física, química, biologia e educação para a cidadania. A
educação de adultos, a gestão e administração escolar, a educação de
infância e ensino pré-escolar, e o trabalho com os professores
generalistas do 1.º e 2.º ciclos do ensino básico foram áreas de
trabalho também incluídas. Na segunda fase do PASEG a intervenção
foi também alargada às escolas do 3.º ciclo do ensino básico e
secundário (liceus regionais) das regiões de Bafatá, Cacheu e Gabú,
para além da região de Bolama com atividades na Escola Normal
Amílcar Cabral (IPAD, 2011; Santos et al. , 2012).
8 O PASEG esteve em média nas escolas 5,53 anos, com valores
máximos e mínimos de 12 e 1, com 50% das escolas a situar-se no
intervalo entre os 2 e os 9 anos e a maioria no quartil 75. Do total de
escolas apoiadas pelo Programa (15), a maioria eram do 3.º ciclo do
ensino básico e secundário, situadas geograficamente em meio
urbano nos bairros da cidade de Bissau. Apenas 20% do total de
escolas apoiadas pelo Programa se situavam fora da capital do país. O
PASEG apoiou predominantemente escolas de construção definitiva
e/ou definitiva e precária (93,3%).
9 De seguida, realizaremos uma breve descrição das quatro escolas
analisadas no presente artigo.

Escola 1

10 A Escola 1 é uma escola pública de construção definitiva, que foi


criada em 1983. Situa-se na área urbana de uma das regiões da
Guiné-Bissau e contava com o apoio do PASEG desde 2010. Quando o
PASEG terminou (2012), esta escola tinha dois anos de apoio, por esta
razão, parece que muitos dos processos ainda estavam numa fase
inicial. No que concerne ao apoio à escola, de uma forma global,
podemos constatar que, para a maioria dos participantes no estudo,
o principal objetivo do PASEG era a formação de professores com
ênfase na língua portuguesa e na matemática.

Escola 2

11 A Escola 2 é uma escola pública de construção definitiva e barracas


3
que foi criada no ano 1999, situa-se num dos bairros mais
populosos de Bissau e contava com o apoio do PASEG desde 2005. De
uma forma global, no que concerne ao apoio à escola, podemos
constatar que, para a maioria dos participantes no estudo, o
principal objetivo do PASEG era a criação de Oficinas em Língua
Portuguesa (OfLP) 4 , para apoiar os alunos e os professores na
língua portuguesa e na informática, a lecionação de aulas e, mais
recentemente, a formação de professores.

Escola 3

12 A Escola 3 situa-se num bairro de Bissau e é uma escola pública de


construção definitiva e barracas criada em 1989 que contava com o
apoio do PASEG desde 2008. No geral, em relação ao apoio à escola,
podemos constatar que, para a maioria dos participantes no estudo,
a atuação do PASEG centrou-se na criação da OfLP, no apoio à
reabilitação da escola, na distribuição de materiais, na formação de
professores e no apoio à direção da escola.

Escola 4

13 A Escola 4 é uma escola pública de construção definitiva que foi


criada no ano 1958, e contava com o apoio do PASEG desde 2000. Em
geral, no que concerne ao apoio à escola, a maioria dos participantes
do estudo considera que o principal objetivo do PASEG era a criação
da OfLP para apoiar os alunos e os professores na língua portuguesa,
a lecionação de aulas, a formação de professores e o suporte ao
trabalho desenvolvido pela direção da escola.

Metodologia
14 O presente artigo seguiu uma abordagem metodológica qualitativa,
usando como técnicas de recolha de dados: entrevistas
semiestruturadas (4), grupos focais (17), análise documental,
observação não participante e notas de campo. A técnica de análise
de dados foi a análise de conteúdo.
15 Este estudo procura discutir os impactos e efeitos do PASEG em
quatro escolas públicas, por estas serem a unidade de intervenção
privilegiada deste programa. Participaram no estudo 26 alunos, 71
professores, 4 diretores de escola, de quatro das 15 escolas apoiadas
pelo Programa. A seleção das escolas teve em conta os seguintes
critérios: número de anos de presença do Programa, localização
geográfica e anos de escolaridade que disponibilizavam.
16 A análise documental incluiu 26 documentos selecionados após uma
análise exaustiva dos documentos disponíveis, que incluem
relatórios, boletins informativos e outros documentos produzidos no
âmbito do PASEG. A análise de conteúdo das entrevistas, dos grupos
focais e dos documentos seguiu um procedimento aberto, tendo as
categorias de análise emergido dos dados (Bardin, 2007).
17 As questões éticas da investigação seguiram os procedimentos
comummente utilizados na investigação em ciências sociais, tendo
sido usado o consentimento informado, a garantia de
confidencialidade, o anonimato e o direito à retirada incondicional
do processo de investigação em qualquer fase (BERA, 2011; Cohen et
al ., 2009; Robson, 2011).

Avaliação de impactos e efeitos de projetos e


programas em escolas
18 O ato de avaliar está presente em todos os contextos da atividade
humana, abrange diversas componentes (instituições, pessoas,
projetos, programas, grupos, entre outros) e não pode ser separado
da subjetividade. A avaliação pode ser caracterizada pela
continuidade e por ser “um processo em três etapas: a) recolha de
informações, que pode ser instrumentada ou não; b) análise da
informação e juízos sobre o resultado dessa análise e c) tomada de
decisões de acordo com a formulação do juízo de valor” (Simão, 2008,
p. 131). Logo, podemos considerar que o conceito de avaliação é
polissémico, plurirreferencial, omnipresente e “um termo complexo,
e também controverso, que deve ser estudado nas dimensões
científico-técnica e sociopolítica, porque avaliar envolve processos
técnicos, que se justificam teoricamente e prende-se com raízes
políticas que o determinam” (Pacheco, 1995, p. 128), vivendo o
conflito entre “o objectivo e o subjectivo, o quantitativo e o
qualitativo, o sumativo e o formativo” (Pacheco et al ., 2014, pp. 44-
45).
19 A avaliação de projetos e programas em Educação emergiu,
essencialmente, nos anos 60 e o principal foco foi informar quais os
benefícios do investimento público em Educação, essencialmente a
partir da prática (Nevo, 2007; Stevahn et al ., 2005).
20 Nos projetos de cooperação para o desenvolvimento a avaliação
assume um papel de destaque, essencialmente a avaliação de
impacto, pois os “ policymakers are not only interested in ‘evidence-based
policy’, but also wish to judge the effectiveness of specific interventions ”
(Befani et al ., 2015, p. 1). Com efeito, as várias agências e doadores
têm um número variado de guias de avaliação, sendo as orientações
do Comité de Apoio ao Desenvolvimento (CAD) da Organização para a
Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) as mais utilizadas,
tendo sido também com esta organização que ganharam importância
(Davies, 2013; Nagao, 2006; Ridde et al ., 2012; Stern, 2007). A
Cooperação Portuguesa não é exceção e tem um guião de avaliação e
um sítio na Internet com um conjunto acessível de documentos que
possibilitam a obtenção de informação sobre avaliação de
projetos/programas, relatórios e/ou sumários executivos de
relatórios de avaliação. Porém, quando Proença (2010, p. 154)
analisou a avaliação da cooperação descentralizada constatou a
“inexistência de uma cultura de avaliação na Cooperação
Portuguesa” por esta, muito possivelmente, estar associada a uma
obrigação burocrática e imposta externamente, como uma atividade
de fiscalização e de justificar a utilização do financiamento público,
“surgindo com uma conotação negativa”.
21 Nos países do Sul global e na avaliação em Educação no âmbito da
cooperação para o desenvolvimento, para além do papel
preponderante do CAD da OCDE, o Banco Mundial também assume
um papel importante, sendo estas organizações responsáveis pela
criação, difusão e implementação de agendas e da promoção de “
evaluation standards, guidelines and codes of ethics ” (Stern, 2007, p.
309). Estas avaliações são normalmente designadas de “ developmental
evaluation ” (Andersen, 2014; Feinstein & Beck, 2007; Picciotto, 2014).
Este tipo de avaliação “ is tasked to examine complex problems in diverse
and ever-changing operating environments ” (Picciotto, 2014, p. 6),
tendo essencialmente em consideração os critérios definidos pelo
CAD da OCDE – relevância, eficácia, eficiência, sustentabilidade e
impacto (Feinstein & Beck, 2007; Proença, 2010). Devido a uma
pressão crescente a nível internacional para perceber e medir o
impacto das intervenções no âmbito da cooperação para o
desenvolvimento, tem-se assistido a um foco cada vez maior na
avaliação de impacto e a um destaque renovado em “ measurement
and evaluation ” e ao favorecimento de determinados métodos de
avaliação, especialmente experimentais ou quase-experimentais
(Befani et al ., 2014). Logo, no topo da hierarquia, apesar das várias
críticas, estão os “ randomised controlled trials, followed respectively by
quasi-experiments, mixed methods and qualitative methods ”, sendo
reconhecida maior validade aos métodos quantitativos e à relação
causa-efeito (Befani et al ., 2014).
22 Contudo, o debate em torno do que é uma avaliação de impacto não
parece ser consensual, pois não parece existir acordo numa definição
(Rogers & Peersman, 2014; White, 2010).
23 Apesar da complexidade da escola como organização e da sua
classificação enquanto “instituições especiais” isto não significa que
não são avaliáveis (Azevedo, 2007). As escolas são avaliáveis, contudo
“avaliar por avaliar, ou ainda, avaliar para avaliar, corre sérios riscos
de deixar tudo na mesma, não justificando os custos envolvidos”
(Almeida, 2007, p. 239). Assim, “O ato de avaliar significa a
formulação de juízo de valor que, por sua vez, implica a atribuição de
um significado entre um referido (produto) e um referente (critério),
com vista à tomada de decisão, neste caso uma classificação”
(Pacheco et al ., 2014, p. 43). Pois, a avaliação é “ the pursuit of
knowledge about value […] is always a determination of merit and
shortcoming. Sometimes it is a lot more, but the essential function is the
determination of merit ” (Stake, 2004, pp. 16-17).
24 Independentemente do modelo adotado, a avaliação de impacto
produz efeitos e é a atribuição de efeitos de uma intervenção
(Pacheco et al ., 2014; Picciotto, 2014). Desta forma, a “análise do
impacto e dos efeitos de um processo de avaliação está sempre
referenciado a um modelo específico, sobretudo quando há diversas
perspetivas acerca do valor e do mérito de uma escola” (Pacheco et al
., 2014, p. 19). Nesta perspetiva, partindo do pressuposto que nos
processos de avaliação os efeitos resultam de um impacto, a
avaliação de escolas, enquanto atividade humana,
independentemente dos objetivos formulados, das decisões e da sua
formalização, pode ser analisada através de 10 tipos de efeitos –
discursivo, procedimental, parcial, estrutural, exógeno, endógeno,
positivo, negativo, pretendido e colateral (Pacheco et al ., 2014).
25 No quadro I encontram-se expostos os 10 tipos de efeitos referidos
anteriormente baseados na sistematização realizada por Pacheco et
al . (2014).
Quadro I
Tipologia de efeitos

Efeito Aceitação de palavras-chave que têm por base organismos transnacionais


discursivo e supranacionais cuja ação evidencia o efeito agenda-setting

Efeito Adoção de modelos de boas práticas tendo por base a racionalidade


procedimental técnica e observável pela regulação normativa

Relação que é estabelecida por um facto que ocorre de forma parcial, de


Efeito parcial
preferência mensurável

Efeito Está associado a uma mudança ampla e profunda, a outros efeitos


estrutural estruturais e é observável de forma indireta

Decidido fora de um contexto particular “com tendência para a


Efeito exógeno uniformização e estandardização das práticas numa lógica de mandato
mediante políticas de reforma”

Efeito Diz respeito a um contexto particular e deriva “de uma lógica de inovação
endógeno instituinte” e diz respeito às gramáticas particulares de cada instituição

Efeito positivo Dizem respeito ao grau de adequação e conformidade (positivo ou


negativo) relativamente ao “envolvimento dos sujeitos participantes no
Efeito processo e ao modo como valorizam tanto as intenções declaradas quanto
negativo as práticas implementadas, quer aos resultados atingidos”

Efeito
Diz respeito aos efeitos que se deseja obter
pretendido

Efeito
Diz respeito aos efeitos que se obtém, mas que não são desejados
colateral

Adaptado de Pacheco et al . (2014, pp. 26-28)


26 Para o presente artigo, a análise dos impactos e efeitos, ao contrário
do que é comummente utilizado nas avaliações de projetos e
programas de cooperação para o desenvolvimento, não segue as
orientações do CAD da OCDE (Davies, 2013; Nagao, 2006; Ridde et al .,
2012; Stern, 2007). Este aspeto está relacionado com a falta de
consenso sobre uma definição do que é uma avaliação de impacto
(Rogers & Peersman, 2014; White, 2010), das limitações que uma
abordagem como esta implica (Crossley, 2010; Crossley et al ., 2005;
Harley, 2005; Pérouse de Montclos, 2012; Picciotto, 2014; Proença,
2010) e de o nosso foco ser a avaliação de escolas pelas quais
podemos atribuir ao PASEG impactos e efeitos. Outro fator relaciona-
se com o facto de se tratar de investigação em avaliação, pois nem
todos os estudos de avaliação são de investigação em avaliação e
vice-versa. Assim, e partindo do pressuposto que nos processos de
avaliação os efeitos resultam de um impacto, analisámos as escolas,
por serem organizações complexas, tendo em consideração os 10
tipos de efeitos presentes no quadro I.

Discussão
27 A análise crítica e cruzada dos dados pretende aferir as perceções e
experiências dos docentes e diretores de escola em relação ao PASEG,
no que se refere às Escolas 1, 2, 3 e 4. A discussão articula, sempre
que possível, as perceções e experiências comuns a todas as escolas e
as específicas de cada uma.
28 De uma forma geral, é comum aos participantes a perceção e
experiência de que o PASEG centrava a sua atuação na criação de
Oficinas em Língua Portuguesa (OfLP), na formação de professores
com ênfase na língua portuguesa, na matemática, na biologia e nas
Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), em gestão e
administração escolar e na distribuição de materiais. Porém, na
Escola 2, 3 e 4 os respondentes acrescentam a lecionação de aulas aos
alunos e na Escola 3 o apoio à reabilitação da escola. Um aspeto
comum a todas as escolas é também a perceção de que a direção
esteve sempre envolvida em todos os processos desde o início da
intervenção, porém não se consegue aferir qual o grau de
participação.
Primeiramente começaram com as Oficinas. Iam à Oficina e também davam as
aulas, tinham uma turma e depois daquilo vinham para as Oficinas dar aos nossos
professores guineenses a língua portuguesa. (…) dentro da Oficina estava lá a
parte da informática e a biblioteca. (…) abrimos outro espaço especificamente só
para a informática e então puseram a internet e assim começaram a dar os cursos
de língua, de GAP e CAP (…) Nas bibliotecas os professores iam lá, tinham
formação e também davam aulas de informática aos professores. (…) quando
vinha um professor novo do PASEG tinha um horário, uma turma para lecionar,
quando termina tem que ter um outro tempo na Oficina a acompanhar a
formação dos docentes guineenses. Mais à frente deixaram de ter turmas.
[Entrevista, diretor de escola 2]
O PASEG criou a Oficina em Língua Portuguesa onde os alunos podem frequentar,
ler os livros e também havia formações de aperfeiçoamento da língua portuguesa
para os alunos e também havia formação para professores de português e
também de matemática. [ Focus group , alunos 2]
PASEG que é um programa de apoio na Guiné-Bissau que vinha melhorando a
qualidade do ensino ao nível do país através de superação pedagógica dos
professores (…) O objetivo era ajudar os professores, precisamente, na melhoria
das suas qualidades (…) No processo de ensino aprendizagem através de
superação pedagógica bem como também no uso de qualidade da língua
portuguesa. (…) Davam ações de formação para os professores de língua
portuguesa e matemática e a nível das áreas de pedagogia (…). [Entrevista,
diretor de escola 1]
O objetivo desse projeto é para melhorar as condições dentro da escola para
fornecer biblioteca, informática para formar os professores para integrar dentro
da língua portuguesa, eu penso que é isto. [ Focus group , alunos 1]
29 Desta forma, o PASEG favoreceu a fragmentação e a balcanização do
conhecimento escolar, por dar mais peso curricular a certas
disciplinas (Pacheco, 2009, 2011), indo de encontro à estandardização
das políticas formuladas pelas várias agências (Steiner-Khamsi, 2012)
e por definir agendas e prioridades (Verger et al ., 2012). Porém, o
foco na língua portuguesa é uma característica inerente à política
externa de Portugal, logo uma motivação política entre as várias
existentes, intrínsecas às razões para os países fornecerem Ajuda
Pública ao Desenvolvimento (Harber, 2014; Novelli, 2010, 2013).
30 Parece consensual que as OfLP possibilitaram o maior uso da língua
portuguesa e o empowerment de comunicar nesta língua, a
democratização do acesso à informática e a bibliografia às escolas
que possuíam OfLP e a outras escolas e/ou à comunidade.
31 Na voz dos participantes:
Eu espero que o senhor veja as vantagens sem nós exprimirmos as vantagens
porque a colocação da pronúncia da língua como está a funcionar dentro desta
sala. Isso é uma das vantagens (…) Mesmo o senhor Rui está a ver as vantagens
sem nós exprimirmos as vantagens. É por isso que, eu disse que, essa formação...
[Pergunta do investigador] Eu, também, não vos conhecia antes, não é? - Sim.
Mas, agora, o senhor está a conhecer porque o senhor está a ouvir a expressão de
cada um de nós e, através dessas formadoras, nós estamos a exprimir a língua
muitíssimo razoável. [ Focus group , formação de professores 1]
Eu, eu vou agradecer mais ao PASEG, porque com o PASEG eu já… até me fez falar
português, não 100% mas já falo português sem vergonha. Na minha vida isso é
muito importante para mim. [ Focus group , alunos 1]
O objetivo desse projeto é para melhorar as condições dentro da escola para
fornecer biblioteca, informática para formar os professores para integrar dentro
da língua portuguesa, eu penso que é isto. [ Focus group , alunos 1]
Incentivava os alunos a frequentar cursos de informática e também aquela
Oficina em Língua. [ Focus group , alunos 2]
32 A gestão das OfLP era realizada pelo professor dinamizador sozinho
e/ou pela direção da escola e contava com a participação ativa dos
colaboradores 5 , sendo considerada a formação disponibilizada
pelo programa importante para o desempenho das funções dos
vários intervenientes. As OfLP permitiram, também às escolas,
acesso a um mecanismo de reprodução dos documentos de apoio
para os alunos e professores e uma forma de gerar receitas, em
conjunto com os cursos de informática, como ilustra o seguinte
extrato:
Numa primeira fase era, por exemplo, mais para a informática, quando o PASEG
veio. Por exemplo recrutavam jovens na altura chamados colaboradores, eles
estavam na Oficina a organizar sobretudo a parte da leitura e também a parte de
informática, foi assim. (…) Então ajudavam a orientar a Oficina de leitura, por
exemplo, foi assim nessa fase. Depois começou-se a dar a formação aos
professores guineenses, criou-se GAP e também CAP, exatamente. [Entrevista,
diretor de escola 2]
33 Porém, consoante a escola, há aspetos que mudam devido à
diversidade de percursos e fases em que as OfLP foram criadas.
Assim, num olhar mais em profundidade verificamos que na:
34 Escola 1 - aos fatores apontados anteriormente, acresce o debate de
temas atuais, a elaboração e a reprodução de testes. O fim do PASEG
provocou o funcionamento irregular/residual da OfLP e a
interrupção dos cursos de informática.
35 Como ilustram os seguintes extratos:
Um universo de 30 professores de um total de 80 de todas as disciplinas. Sendo
que cobriu todos os professores de matemática e língua portuguesa do liceu e de
outras escolas do ensino básico e do 3.º ciclo. Até o setor de A e B beneficiaram
dessa formação. Não só os da cidade mas também de outros setores
administrativos beneficiaram dessa formação. [Entrevista, diretor de escola 1]
[OfLP] a sala está muito bem equipada com materiais a não funcionar. Com a ida
do PASEG tudo está fechado. [ Focus group , formação de professores 1]
O PASEG tinha funcionado quase 10 anos em Bissau mas cá na região pelo menos
dois anos já, e um ano, dois e foi-se embora. É bom que se houver outro projeto a
ser financiado pela Cooperação Portuguesa que pensem no interior do país
porque somos iguais e merecemos a mesma atenção. [ Focus group , OfLP 1]
36 Escola 2 - aos fatores apontados anteriormente acresce o acesso à
internet, a elaboração e a reprodução de testes, a capacitação dos
alunos em termos de gestão de espaços e o debate de temas atuais.
Nesta escola há também a perceção de que não foram adotadas
estratégias que permitissem às meninas um acesso e participação
sem as barreiras de género, continuando, de certa forma, a
perpetuar as características da sociedade guineense, onde à mulher é
destinado um papel subalterno nas questões académicas, ficando-lhe
reservado um papel relacionado com afazeres domésticos.
Verificámos que existia também uma tensão entre os colaboradores
e o programa por não receberem um apoio financeiro como
recebiam os professores, independentemente de reconhecerem a
importância da compensação não financeira (acesso à língua
portuguesa, informática, internet, entre outros) que recebiam por
estarem envolvidos na OfLP. Ao contrário das restantes escolas, a
direção, em vez de colocar um professor a dinamizar a OfLP, optou
por promover um dos colaboradores a este estatuto. Os respondentes
consideram também que o PASEG e a direção da escola descuraram a
formalização do trabalho dos colaboradores, mesmo sem
remuneração, pois julgam que seria uma mais-valia e uma prova do
trabalho desenvolvido que os poderia favorecer no seu futuro. É
também claro que os agentes da cooperação desempenharam
durante a primeira fase um papel preponderante na dinamização e
gestão da OfLP. O fim do Programa provocou o funcionamento
irregular/residual da OfLP e a interrupção dos cursos de informática,
porém as obras de reabilitação que ocorreram na escola também
parecem ter influência neste aspeto, pois no momento da recolha de
dados ainda era recente a mudança de instalações.
37 Como ilustram os extratos que se seguem:
Imagine uma escola que até hoje não tem nenhum computador na direção, todos
trabalham, o que nós fizemos é na Oficina. Por exemplo no momento de confeção
de provas, pautas, nós é que utilizamos esses computadores do projeto PASEG e aí
é que introduzimos provas, aí é que imprimimos, aí é que fizemos as fotocópias
de todo o espaço e a embalagem das provas. Então para nós essa é a vantagem da
Oficina, imagina que antes não tínhamos aquilo, nós íamos sair ou emprestar ou
pagar fora para fazer aquilo e não só, os livros que lá estão também. Claro que
temos livros, graças à quilo os alunos vão lá consultar e os professores também
vão lá para fazer a consulta. [Entrevista, diretor de escola 2]
Seja como for, nós pensamos que um dia ou outro o PASEG vai sair. (…) Tudo
aquilo que o PASEG fez no país é para ter continuidade. Por exemplo, nós vamos
ter novos professores, portanto, esses infelizmente não têm a possibilidade,
portanto de esses ensinamentos que nós aprendemos. Mas se estivermos cá nós
podemos ajudá-los, não é? Tendo em conta aquilo que… isso é que é
sustentabilidade, não é, de qualquer projeto. O projeto acaba mas tudo aquilo que
o projeto fez continua. Nós pensamos que esse é o objetivo do PASEG: ajudar os
professores para depois esses poderem transmitir os ensinamentos aos outros,
com o fim de melhorar o sistema educativo. Que era o objetivo principal da
assistência do PASEG no país. [ Focus group , formação de professores 2]
Não, eu não tive tempo para ver o PASEG. [Pergunta do investigador] Mas não
estava cá? Sim, mas fazia outras coisas em casa e não pude vir para a sala de
informática. [ Focus group , alunos 2]
38 Escola 3 - aos fatores apontados anteriormente acresce o acesso a
recursos pedagógicos para as aulas, à internet, a brinquedos, a um
espaço para os professores se reunirem, possibilitando o trabalho
colaborativo, e a criação de maior notoriedade para a escola, tendo
como consequência a atração de alunos. Constata-se ainda que a
OfLP tem como colaboradores ex-alunos da escola e/ou alunos de
outras escolas apoiadas pelo PASEG, uma grande capacidade de gerar
receitas, fator associado à sua localização, tendo como utilizadores
outros membros da comunidade, e a interrupção do PASEG não
parece ter provocado alterações ao seu funcionamento. Os agentes
da cooperação (AC) também desempenharam durante a primeira fase
do PASEG um papel preponderante na dinamização e gestão da OfLP:
Criou-se um hábito dentro do próprio recinto escolar para com os alunos. As
crianças passavam aqui horas e horas a consultar essas revistas e têm aqueles
brinquedos, aqueles que eles costumam fazer montagem. E começou-se a notar
que as crianças zelaram-se pela língua portuguesa, falam uns com os outros, quer
dizer, criaram uma motivação para com os outros. Até alguns reclamam que
querem vir para a escola 3 porque existe uma Oficina e você aprende com tanta
facilidade. Então novos hábitos e teve grande impacto no seio dos alunos, quer
para os professores. [ Focus group , formação em língua portuguesa 3]
Quero só dizer que eu fiquei satisfeito porque o PASEG teve grande projeto aqui.
Até a reabilitação daquela sala de informática. Construção, sim, da sala de
informática, ajudou-nos muito. Mesmo eu fui lá teclar um bocadinho, embora
não tenho conhecimento tão amplo ainda. Mas penso que vou aperfeiçoar. Fiquei
contente, o PASEG tem ponto positivo. Até quando eles foram eu fiquei triste,
fiquei triste porque ficámos sem formação e nos ajuda nas nossas salas de aula. [
Focus group , formação em língua portuguesa 3]
Da universidade, do INEP, a Escola Nacional de Saúde, temos a Faculdade de
Direito, vêm a este espaço para tirarem cópias, fazer impressões e para ir à
internet pesquisar e coisas… [ Focus group , OfLP 3]
39 Escola 4 - aos fatores apontados anteriormente acresce o trabalho
colaborativo e em equipa, o acesso à internet, o debate de temas
atuais, o apoio à criação de infraestruturas de suporte às práticas
laboratoriais na área das ciências e o apoio à direção da escola.
Verifica-se também que houve uma tensão entre os colaboradores e
o programa por não receberem um apoio financeiro como recebiam
os professores, independentemente de reconhecerem a importância
da compensação não financeira (acesso à língua portuguesa,
informática, internet, entre outros) que recebiam por estarem
envolvidos na OfLP. É também claro que os AC desempenharam
durante a primeira fase do PASEG um papel preponderante na
dinamização e gestão da OfLP e que a língua portuguesa é
percecionada como propriedade dos AC. O fim do PASEG provocou o
funcionamento irregular/residual da OfLP, principalmente da
componente de acesso a bibliografia e atividades de dinamização.
Fiquei com o grupo durante quatro anos. Depois, nos primeiros dois anos era
mais no sentido de nós sentarmos o coletivo e preparávamos a aula em conjunto.
Já nos dois últimos anos que eu tive foram mesmo vários conteúdos científicos,
pedagógicos também, eu no meu caso ajudou-me imenso. Muitas coisas eu já
conhecia mas tinha-me esquecido e foi um renovar e a maneira como trabalhar
com os alunos. E muitas vezes, como o colega também disse, há coisas que nós
temos ao nosso alcance (…) Com o PASEG também aprendi como utilizar o que
está ao nosso alcance. Porque o que não está, não está, mas o que estiver
podemos utilizar. Como eu fui formada na área de biologia e química, num ano
também trabalhei com química e foi o ano em que frequentei também o GAP de
química. Foi mesmo bonito, porque as aulas ficaram fascinantes, porque coisas
simples do dia a dia como a separação das misturas, coisas simples, simples do
dia a dia e nós fomos trabalhar na sala de aula. Quer dizer, desperta mais o
interesse dos alunos pela matéria. Eles ficam mais atentos e também terão maior
aproveitamento. Para mim o PASEG foi pena ter acabado como acabou, mas foi
muito bom para mim. [ Focus group , formação de professores 4]
40 Conforme analisamos em profundidade as perceções da 1.ª à 4.ª
escola em relação à dinamização e gestão das OfLP, deparamo-nos
com uma dependência discursiva e real nos AC e no programa, sendo
esta diretamente proporcional ao número de anos que o PASEG
esteve na escola. Assim, quanto mais anos permaneceu o PASEG na
escola, maior o grau de dependência, estando este facto relacionado
com as estratégias adotadas ao longo do tempo e uma perspetiva
assistencialista (Harber, 2014; Mesa, 2014; Shields, 2013) que vigorou
durante uma grande parte do PASEG.
41 Como ilustram os seguintes extratos das entrevistas:
Agora não está nada bom. Não sei, os materiais que tínhamos agora já não
existem… nós tínhamos, só a televisão é que estava. O computador que nos deram
como este que estava lá na biblioteca desapareceu. Os livros estão a desaparecer
cada dia, não temos dicionários… trouxeram muitos dicionários que puseram lá
no armário e este dicionário não sei onde é que… não tem. Não temos nem um
dicionário agora. Tínhamos materiais importantes para a pesquisa e agora não
existem, não sei. Este é um ponto negativo que agora a Oficina enfrenta. (…)
Agora estamos a trabalhar com dificuldade, não há nada, os livros quase
desapareceram, a maior parte dos melhores livros desapareceram na Oficina. Não
sei. Talvez agora como tenho a chave, a C tem a chave… não, o diretor também
tem outra chave, é a mesma coisa. Computador não há (…) O DVD desapareceu,
materiais que nós tínhamos lá, mesmo o furador. [ Focus group , Dinamizadores 4]
O PASEG para mim é um programa que devia continuar a trabalhar na Guiné
porque aquilo que estão a fazer dentro na escola é uma coisa muito importante
que não devia parar. (…) Porque quando eles estavam aqui todas as pessoas que
entram na oficina entram para falar a língua portuguesa. Mas não é agora, a
gente entra aqui e fala em crioulo. Imagina na escola é proibido falar crioulo mas
nós continuamos a sentir aquelas dificuldades em falar português. A Oficina é
língua portuguesa e não pode não estar a falar. [ Focus group , Dinamizadores 4]
Mesmo aquelas atividades, não sei se vamos tentar fazer aquelas atividades que o
PASEG fazia… fazia atividades com os alunos, danças, músicas, teatro. Tirava
alguns livros e dava prémios aos alunos. Muitas coisas, cadernos, canetas… o
PASEG fazia muita coisa. Então espero que esse projeto também venha fazer a
mesma coisa que o PASEG fez. [ Focus group , Dinamizadores 4]
42 Quando analisamos as perceções e experiências dos respondentes
sobre os Grupos de Acompanhamento Pedagógico (GAP) e os Cursos
de Aperfeiçoamento do Português (CAP) 6 , globalmente, a língua
portuguesa volta a ganhar destaque, embora surja a matemática, a
biologia, a física, a química e a filosofia. Fica claro pelos depoimentos
que, em relação à língua portuguesa, mesmo que não tenha havido
melhorias, provocou o empowerment dos professores para
comunicarem em português dentro e fora do recinto escolar.
43 Estas formações, e essencialmente os GAP, permitiram o acesso à
formação contínua sediada nas escolas, funcionaram como
mediadores curriculares que se estendem para além das escolas foco
de intervenção, principalmente às escolas privadas, colmatando a
ausência generalizada de manuais escolares e acesso ao programa
das disciplinas (Benavente & Varly, 2010). Esta permeabilidade entre
escolas públicas e privadas verifica-se devido à maioria dos
professores, principalmente em Bissau, acumular a docência entre
estes dois tipos de escolas, fruto dos baixos salários 7 .
Eu quando cheguei aqui quase só nos anos anteriores, nos últimos anos
anteriores é que participei numa reunião de coordenação. Ninguém fazia isso,
cada qual dava a matéria. Quantas vezes chegámos na prova de coordenação e
tivemos que mudar algumas perguntas numa das classes porque não têm essa
matéria. Um professor dava outro texto de outra escola. Mas na escola privada A
há pessoas do PASEG lá. Então orientavam, eu não diria que são eles é que deram
a matéria, porque essa matéria nesse primeiro ano, essa matéria, eu forneci
alguns livros para eles, veio até aqui quando estava na escola privada B. Veio
buscar porque nós é que dávamos aulas na escola privada C, ali é que
conhecemos. Depois eu dava aulas na escola privada A. Ele me contactou para
fazer o texto, porque tínhamos um texto que caducou há muito tempo que era da
escola B (…). Não é que o PASEG vai substituir alguma matéria, porque a matéria
é científica, é na área. Por exemplo no 11.º ano é na área científica. Aqui ainda
estamos no 12.º ano, os programas são variados porque não tem um, porque se
houver uma compilação, porque ele também está a trabalhar alguns. Se houver a
compilação então vai ser um texto único. Isso significa que o PASEG em toda a
forma não substitui totalmente, mas uma grande parte o PASEG fez. Como diz o
colega, o PASEG ajudou bastante o Governo, isto é, numa parte vem substituir
porque alguma parte o Governo não vai fazer. [ Focus group , formação de
professores 2]
44 A perceção dos professores aponta, também, que os GAP
contribuíram para a alteração da forma como planificavam, como
selecionavam e utilizavam as estratégias pedagógicas e didáticas,
melhorou os conhecimentos científicos e incentivou o trabalho
colaborativo entre os professores. Um ponto comum aos GAP na
segunda fase do PASEG é a orientação didático-pedagógica das
formações, a realização de supervisão pedagógica e a inclusão de
formadores locais.
45 O acordo existente entre o PASEG e o Ministério da Educação da
Guiné-Bissau permitiu a redução do horário letivo dos professores,
sendo um dos fatores que contribuíram para a sua maior
participação nas formações, aliada à vontade de melhorar as
competências científicas e pedagógicas. Da perceção e experiência
dos respondentes parece que os GAP, numa fase inicial, funcionaram
como as Comissões de Estudo 8 onde se realizava a planificação de
aulas modelo para ser implementadas, a troca de experiências entre
os professores e a mediação curricular dentro de cada escola e inter-
escolas. Progressivamente, transformou-se num modelo de formação
contínua sediada nas escolas, tendo na fase final do programa
incluído a supervisão pedagógica e com isto promovido uma maior
implementação dos temas tratados nas formações, aumentando a sua
influência no currículo real/apresentado.
46 O fim do PASEG provocou a interrupção de todas as atividades de
formação. Contudo, há aspetos que se alteram de escola para escola
devido à diversidade de percursos e às fases em que estas formações
tiveram início. De seguida, destacamos as particularidades de cada
escola.
47 Da perceção e experiência dos respondentes, parece ser comum a
todas as escolas que a distribuição de materiais ( e.g. livros, sebentas,
antologias de textos) é considerada como um aspeto relevante e
importante para os alunos e para o trabalho das escolas.
48 Quando conjugamos os GAP, os CAP, as OfLP com a produção e
distribuição de materiais, podemos concluir que o PASEG contribuiu
para a mediação curricular intra e inter-escolas apoiadas, parecendo
que poderá também ter contribuído para esta mediação em outras
escolas, pela partilha de documentos entre professores e pela
acumulação de funções por parte destes nas escolas privadas,
principalmente em Bissau. Logo, há uma teia complexa de relações
entre as escolas públicas e privadas que propagou os efeitos e
impactos do PASEG e vice-versa. Parece também que o programa
dava força anímica/elevava a moral dos professores.
49 Esta incidência do PASEG no contexto/nível de decisão curricular de
gestão e realização e as implicações que teve nas escolas, e
consequentemente nos professores, contraria o referido por Campos
e Furtado (2009) quando referem que as formações docentes na
Guiné-Bissau, até à publicação do seu relatório, tinham tido pouco
impacto na prática docente.
50 Por fim, parece que a continuação de algumas das iniciativas do
PASEG ( e.g. formação contínua de professores, acesso a materiais,
dinamização de atividades extraescolares, requalificação das escolas)
originou dependências, reais e discursivas que condicionam a
continuação de muitas das atividades, sendo algumas fruto de uma
perspetiva assistencialista (Harber, 2014; Mesa, 2014; Shields, 2013)
que vigorou durante uma grande parte do PASEG e outras devido à
fragilidade do país e do sistema educativo.
51 A intervenção do PASEG nas escolas pode ser considerada, de uma
forma global, como uma intervenção exterior às escolas que
promoveu a língua portuguesa, a formação de professores e dos
alunos.
52 O facto de o PASEG ter sido planeado anualmente durante ¾ da sua
vigência, e a criação de OfLP por vezes ocorrer sem uma orientação
estratégica definida e muito dependente de fatores individuais dos
agentes da cooperação, provocou impactos e efeitos diferentes.
Contudo, o fim do apoio do PASEG às escolas parece ter causado
efeitos de carácter discursivo e real, estando a dependência
discursiva mais presente na escola 4, cuja presença do PASEG se fazia
sentir há mais anos.
53 Ainda em relação a uma análise mais global das quatro escolas,
parece que as componentes da intervenção que se cingiram a um
impacto e efeitos de âmbito estritamente individual, como por
exemplo os CAP destinados aos alunos, parecem não ter provocado
impacto e efeitos nas escolas.
54 Quando comparámos as escolas entre si, verificámos que em relação
às atividades de formação (GAP, CAP e direção de escola) o número
de efeitos é maior na escola 1.
55 Assim, da análise dos dados pode-se constatar que a intervenção do
PASEG nas escolas pode ser considerada, de uma forma global, um
efeito exógeno que dissolveu a maioria dos possíveis efeitos
endógenos que ocorreram, essencialmente relacionados com os GAP.
56 Devido ao PASEG ter sido planeado anualmente, por vezes sem uma
orientação estratégica definida e muito dependente de fatores
individuais dos agentes da cooperação com a exceção dos últimos
três anos de vigência, originou impactos e efeitos diferentes em
algumas das componentes, principalmente nas OfLP e nos GAP.
Todavia, um aspeto comum a toda a intervenção, que originou
efeitos colaterais e negativos, foi o fim do apoio do PASEG às escolas.
Este aspeto parece ser de carácter discursivo e real, estando a
dependência discursiva mais presente na escola 4, cuja presença do
PASEG se fazia sentir há mais anos. O aspeto mais marcante, nesta
escola, é que sem o PASEG e os AC não é possível continuar muitas
das ações que os respondentes consideram importantes e decisivas
para melhorar a qualidade da escola. Este aspeto está associado à
diferente abordagem do PASEG ao longo do tempo, que inicialmente
partia de uma perspetiva essencialmente centrada nos AC e na língua
portuguesa como um fim em si mesmo – brankundadi 9 e
assistencialista – para uma fundamentalmente centrada nas escolas e
na língua portuguesa como uma estratégia – menos brankundadi e
menos assistencialista.
57 Porém, não podemos descurar que ao longo do tempo,
independentemente das perspetivas e orientações do PASEG, parece
que alguns dos AC baseavam a sua intervenção numa prática “em
que os que ajudam e os que são ajudados se ajudam
simultaneamente” não transformando o ato de ajudar “em
dominação do que ajuda sobre quem é ajudado” (Freire, 1984, p. 11).
58 Das diferentes combinações da tipologia de efeitos possíveis
presentes no quadro I, as mais comuns às quatro escolas no que
concerne às atividades de formação e OfLP são:
Efeito colateral e positivo - Empowerment no uso da língua portuguesa / Melhoria do
trabalho colaborativo entre os professores / Mediação curricular na escola;
Efeito exógeno - GAP/ CAP / OfLP / formação da direção / distribuição de materiais;
Efeito pretendido, positivo e estrutural - Acesso a materiais didáticos;
Efeito pretendido e positivo - Melhorar o uso da língua portuguesa / Modo de
planificação / Alterou as estratégias pedagógicas / Formação à direção da escola;
Efeito pretendido, parcial e positivo - Envolvimento da direção desde o início da
intervenção / Existência de formação contínua sediada na escola / Distribuição de
materiais aos professores (e.g. sebentas e antologias);
Efeito pretendido, estrutural e positivo - Maior uso da língua portuguesa / Acesso a
materiais bibliográficos / Formação do professor dinamizador;
Efeito colateral, estrutural e negativo - Fim do PASEG.

59 Ainda em relação a uma análise mais global das quatro escolas, as


componentes da intervenção que se cingiram a um efeito pretendido
e positivo de âmbito estritamente individual, como, por exemplo,
CAP destinados aos alunos e lecionação de aulas, não tiveram efeitos
nas escolas.
60 Quando comparamos as escolas entre si, verificamos que em relação
às atividades de formação (GAP, CAP e direção de escola) o número
de efeitos é maior na escola 1. Assim, parece que os efeitos da
intervenção são mais expressivos e sistémicos em escolas fora da
capital e de menor dimensão por, entre outros fatores, conseguirem
envolver todos os professores da escola. Ainda em relação aos GAP e
ao seu papel de mediadores curriculares, parece que esta função
ultrapassa as escolas foco de intervenção (chegava às escolas
privadas). Este facto acontece principalmente na escola 2, podendo
considerar-se este aspeto como um efeito positivo e colateral.
61 Relativamente às OfLP, os efeitos mais comuns a todas as escolas
são:
Efeito pretendido, estrutural e positivo - Maior uso da língua portuguesa / Acesso a
materiais bibliográficos / Formação do professor dinamizador;
Efeito pretendido, parcial e positivo - Distribuição de materiais aos professores (e.g.
sebentas e antologias).
62 Estes efeitos provocaram maior democratização do acesso ao
conhecimento por parte dos alunos, professores e comunidade
escolar, pois as OfLP possibilitaram o acesso a bibliografia sem
custos. Contudo, também originou efeitos negativos e colaterais,
uma vez que, principalmente na escola 2, verificámos que as meninas
participavam menos e/ou não participavam nas atividades devido
aos afazeres domésticos, não tendo sido possível encontrar
evidências de terem sido criadas estratégias para
ultrapassar/minorar este obstáculo à participação. Este aspeto está
de acordo com o referido por vários autores (Harber, 2014; Shields &
Paulson, 2014) que nem sempre a educação, mesmo quando é “uma
oportunidade oferecida, não um serviço prestado” (Pinar, 2007, p.
22), desempenha apenas um papel positivo, devendo ser adotadas
estratégias para eliminar ou minorar estes aspetos.
63 No que diz respeito à combinação de efeitos com maior número de
frequência por escola verificamos que na:
Escola 1 - predominam os efeitos colaterais e positivos / efeitos pretendidos e positivos;
Escolas 2, 3 e 4 - predominam os efeitos pretendidos e positivos / efeitos pretendidos,
estruturais e positivos.
64 Constatamos ainda que há algumas componentes do PASEG que
foram classificadas ao mesmo tempo como efeitos diferentes. Em
todas as escolas, o foco na língua portuguesa, na matemática, nas
ciências e nas TIC produziu ao mesmo tempo um efeito discursivo,
pretendido, positivo e parcial e um efeito discursivo, pretendido,
negativo e estrutural. Este facto acontece porque se centra em
aspetos relacionados com a língua portuguesa, a matemática e as
TIC, que deseja ser atingido, valorizado como um aspeto negativo e
tendo provocado mudanças amplas e profundas na escola. Porém, é
positivo e parcial por disponibilizar formação e esta ter acabado
quando terminou o PASEG, e negativo e estrutural porque se centrou
nestas áreas disciplinares e não abrangeu todas as escolas.
65 Em todas as escolas, com a exceção da escola 4, a distribuição de
materiais aos professores ( e.g. sebentas e antologias) provocou um
efeito pretendido, parcial e positivo porque não foram distribuídos
materiais aos alunos e não perdurou no tempo. Mas também um
efeito pretendido, estrutural e negativo porque se centrou em
algumas disciplinas e não abrangeu o ensino secundário.
66 Na escola 4, a gestão da OfLP pelos AC provocou ao mesmo tempo
um efeito pretendido e positivo e um efeito colateral, estrutural e
negativo devido à dependência que criou a presença dos AC na
dinamização da OfLP, que não se verificou nas restantes escolas (1, 2
e 3).
67 Na escola 3, a possibilidade de trabalho colaborativo provocou ao
mesmo tempo um efeito colateral e positivo e um efeito colateral,
estrutural e positivo devido à presença da OfLP. Isto acontece porque
possibilita um espaço para reuniões e potenciou o trabalho
colaborativo.
68 O acesso à informática, na escola 1, é um efeito parcial e nas
restantes estrutural porque, com o fim do PASEG, esta escola deixou
de ter condições para ter a sala de informática a funcionar, ao
contrário das restantes (2, 3 e 4).
69 Em face disto, concluímos que algumas das componentes da
intervenção do PASEG (OfLP, GAP, e CAP) necessitavam de se ter
apoiado desde o início em mecanismos endógenos e na gramática de
cada escola para, desta forma, tentar assegurar a continuação das
atividades que implementou que são consideradas pelos
participantes como necessárias para a melhoria da qualidade da
escola e da educação. Se estes aspetos tivessem ocorrido, parece que
se teria evitado que o fim do PASEG fosse um efeito colateral e
negativo. Porém, algumas das inovações introduzidas ( e.g. TIC,
formação contínua de professores sediada na escola, apoio à direção
de escola), devido à fragilidade do sistema educativo guineense,
muito dificilmente podem continuar sem algum tipo de apoio
externo.

Considerações finais
70 O presente artigo analisou os impactos e efeitos do Programa de
Apoio ao Sistema Educativo da Guiné-Bissau (PASEG) em quatro
escolas. Ao nível dos efeitos e impactos, e partindo do pressuposto
que nos processos de avaliação os efeitos resultam de um impacto, o
facto de o PASEG ter sido planeado anualmente originou impactos e
efeitos diferentes em algumas das componentes, principalmente nas
Oficinas em Língua Portuguesa (OfLP) e nos Grupos de
Acompanhamento Pedagógico (GAP). De uma forma global, o PASEG
pode ser considerado um efeito exógeno que dissolveu a maioria dos
possíveis efeitos endógenos que ocorreram, essencialmente
relacionados com os GAP.
71 Da combinação possível da tipologia de efeitos verificamos que os
seguintes são os mais comuns às quatro escolas:
Efeito colateral e positivo - Empowerment no uso da língua portuguesa / Melhoria do
trabalho colaborativo entre os professores / Mediação curricular na escola;
Efeito exógeno - GAP/ CAP / OfLP / Formação da direção / Distribuição de materiais;
Efeito pretendido, positivo e estrutural - Acesso a materiais didáticos;
Efeito pretendido e positivo - Melhorar o uso da língua portuguesa / Modo de
planificação / Alterou as estratégias pedagógicas / Formação à direção da escola;
Efeito pretendido, parcial e positivo - Envolvimento da direção desde o início da
intervenção / Existência de formação contínua sediada na escola / Distribuição de
materiais aos professores (e.g. sebentas e antologias);
Efeito pretendido, estrutural e positivo - Maior uso da língua portuguesa / Acesso a
materiais bibliográficos / Formação do professor dinamizador;
Efeito colateral, estrutural e negativo - Fim do PASEG.

72 Da análise aprofundada das quatro escolas, as componentes da


intervenção que se cingiram a um efeito pretendido e positivo, mas
de âmbito estritamente individual, como, por exemplo, os Cursos de
Aperfeiçoamento do Português (CAP) destinados aos alunos e a
lecionação de aulas, não tiveram efeitos e impacto nas escolas.
73 Da comparação entre escolas, verificamos que, em relação às
atividades de formação (GAP, CAP e direção de escola), o número de
efeitos é maior na escola 1. Assim, este aspeto sugere que os efeitos
da intervenção são mais expressivos e sistémicos em escolas fora da
capital e de menor dimensão onde todos os professores da escola são
envolvidos na formação. Assim, as estratégias para os grandes liceus
da capital devem ser diferentes das do interior do país. Um outro
aspeto a salientar que influenciou os efeitos do PASEG na escola 1 é a
lógica de intervenção seguida desde o início ter sido diferente, pois
só beneficiou de apoio na segunda fase do Programa onde a
estratégia seguida desde o início foi diferente.
74 Os dados recolhidos indicam também que a combinação de efeitos
com maior número de frequência por escola é a seguinte:
Escola 1 - predominam os efeitos colaterais e positivos / efeitos pretendidos e positivos;
Escolas 2, 3 e 4 - predominam os efeitos pretendidos e positivos / efeitos pretendidos,
estruturais e positivos.

75 Podemos também concluir que as OfLP, GAP e CAP necessitavam de


ter sido apoiados desde o início em mecanismos endógenos e na
gramática de cada escola, para, desta forma, tentar assegurar a
continuação das atividades e evitado que o fim do PASEG fosse um
efeito colateral e negativo. Porém, algumas das inovações
introduzidas ( e.g. TIC, formação contínua de professores sediada na
escola, apoio à direção de escola), devido à fragilidade do sistema
educativo guineense, muito dificilmente podem continuar sem
algum tipo de apoio externo. Este aspeto é crucial para futuras
intervenções na medida em que a sustentabilidade de algumas
inovações introduzidas nas escolas é diminuta sem apoio
permanente.
76 Os resultados sugerem que, para além dos fatores apontados
anteriormente, o PASEG fornecia força anímica/elevava a moral dos
professores para o desenvolvimento do seu trabalho, fator crucial no
cenário de fragilidade e instabilidade que vive o país.
77 Em face ao exposto, parece que a continuação de algumas das
iniciativas do PASEG ( e.g. formação contínua de professores, acesso a
materiais, dinamização de atividades extraescolares, requalificação
da escola) originou dependências reais e discursivas que
condicionam a continuação de muitas das atividades, sendo algumas
fruto de uma perspetiva fortemente assistencialista que vigorou
durante uma grande parte do PASEG, e outras devido à fragilidade do
país e do sistema educativo. Com efeito, há uma relação diretamente
proporcional entre o número de anos que o PASEG esteve nas escolas
e o grau de dependência destas no programa. Porém, este efeito não
pode estar desassociado das diferentes abordagens seguidas ao longo
do Programa. Há também evidências de que o PASEG teve efeitos
mais expressivos e sistémicos em escolas fora da capital e de menor
dimensão.
78 Na leitura de todos os resultados, não pode ser descurado o facto de
que a segunda fase do PASEG, para além de ter durado apenas três
anos, dois desses anos foram os mais estáveis dos últimos 20 anos no
setor da Educação.

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NOTAS
1. Para uma análise mais detalhada da Cooperação Portuguesa no
setor da Educação na Guiné-Bissau de 2000 a 2011 e do Programa de
Apoio ao Sistema Educativo da Guiné-Bissau ver, por exemplo,
Santos e Silva (2017) e Silva et al. (2017).
2. A terminologia utilizada para os níveis de ensino no presente
artigo segue as que estão em vigor após a aprovação da Lei de Bases
do Sistema Educativo em 2010.
3. Construção precária muitas vezes construída com esteiras de
fibras vegetais.
4. As OfLP podem ser consideradas centros de recursos que têm
como valências a disponibilização de materiais, essencialmente
livros, manuais escolares, dicionários e jornais, cursos/aulas de
várias temáticas, bem como promovem iniciativas de dinamização da
escola. Podem também estar equipadas com computadores que são
utilizados para cursos de informática, dactilografar textos,
digitalização de imagens, impressão, acesso à internet e máquina
fotocopiadora.
5. Alunos ou ex-alunos que, de forma voluntária, participam na
dinamização da OfLP.
6. Os GAP estavam relacionados com a formação de professores nas
diferentes áreas disciplinares e os CAP em formação no âmbito da
melhoria das competências linguísticas dos professores no que se
refere à língua portuguesa.
7. Para uma análise mais pormenorizada, ver Silva (2019).
8. Que são “um esquema de aperfeiçoamento descentralizado e que
funcionava como um grupo de entreajuda, animado por um
professor mais qualificado” (Monteiro, 2005, p. 88).
9. “usos e costumes dos brancos” (Scantamburlo, 1999, p. 91).

RESUMOS
O presente artigo procura analisar o impacto e efeitos do Programa de Apoio ao Sistema
Educativo da Guiné-Bissau (PASEG) promovido pela Cooperação Portuguesa nas escolas
onde interveio, através de uma análise em profundidade de quatro escolas. Neste estudo
qualitativo foram recolhidos dados de alunos, professores e diretores de escolas através de
entrevistas, grupos focais, notas de campo e análise documental. O artigo argumenta que o
programa pode ser considerado um efeito exógeno que dissolveu a maioria dos possíveis
efeitos endógenos que ocorreram, essencialmente relacionados com a formação contínua de
professores, bem como proporcionou força anímica/elevada moral dos professores. Conclui-
se também que há uma relação diretamente proporcional entre o número de anos que o
PASEG esteve nas escolas e o grau de dependência da comunidade escolar nas ações do
programa.

This article examines the impact and effects of the educational aid programme called PASEG
from the Portuguese official aid. It explores an in-depth analysis of four schools following a
qualitative approach. The data stems from interviews and focus groups with students,
teachers and school principals, and field notes and document analysis. The article argues
that PASEG can be considered an exogenous effect that dissolved most of the possible
endogenous effects, particularly related to the continuous professional development of
teachers and teacher’s moral. It also identifies that there is a directly proportional
relationship between the number of years that PASEG has been in schools and the degree of
dependence of the school on the actions of the programme.

ÍNDICE
Keywords: schools, Guinea-Bissau, impacts, effects, development cooperation, Portugal
Palavras-chave: escolas, Guiné-Bissau, impactos, efeitos, cooperação para o
desenvolvimento, Portugal

AUTORES
RUI DA SILVA

Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto


Via Panorâmica Edgar Cardoso, s/n, 4150-564 Porto, Portugal
rdasilva.email@gmail.com

JOANA OLIVEIRA
Escola Superior de Educação
Instituto Politécnico de Viana do Castelo
Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto
Via Panorâmica Edgar Cardoso, s/n, 4150-564 Porto, Portugal
joanaoliveira@ese.ipvc.pt
 
Perceções sobre o
Desenvolvimento Psicomotor
da Criança Moçambicana em
Idade Pré-escolar,
em Contexto Rural, com Enfoque
1
no Chibuto
Perceptions on psychomotor development of the Mozambican child in pre-
school age, in rural context, with a focus on Chibuto

Carla Marina Maia Ladeira

NOTA DO EDITOR
Recebido: 29 de maio de 2020
Aceite: 30 de junho de 2020
1 Moçambique é um país da África Austral, com 27.909.798 habitantes
(INE, 2017) e cuja maior cidade e capital do país é Maputo,
atualmente com cerca de 1.101.170 habitantes. No Chibuto, os dados
de 2007 apontavam para 192.927 habitantes (INE, 2007), sendo o
terceiro distrito mais populoso da província de Gaza, no sul do país,
seguido de Xai-Xai e Chókwè. Os grupos etários mais populosos eram
os da primeira e segunda infância, nomeadamente 17% da população
com idade compreendida entre zero-quatro anos e 15% com idade
compreendida entre cinco-nove anos. Em 2007, Chibuto era o
terceiro distrito da província (entre 12) com maior taxa de
mortalidade infantil.
2 A maior parte da população vive nas zonas rurais e em situação
precária, quer em termos de alimentação, quer em termos
habitacionais, de abastecimento de água e ambientais. Qualquer
alteração do meio ambiente, como inundações, secas, ciclones,
provoca consequências sérias na qualidade de vida das pessoas e
desorganiza-as em termos de sobrevivência. Outros indicadores
usados na medição da qualidade de vida da população, como o
abastecimento de água potável, habitação condigna e esgotos,
colocam o capital humano de Moçambique nos níveis mais baixos de
desenvolvimento. O Ministério da Educação e Desenvolvimento
Humano introduziu, em 2015, a Estratégia Nacional do
Desenvolvimento Integral da Criança em Idade Pré-escolar, a qual
abrangeu, numa primeira fase, 10.500 crianças dos zero aos cinco
anos de idade, também com o objetivo de influenciar melhorias no
ensino primário. Segundo Macave (2016), citado na Rede para o
Desenvolvimento na Primeira Infância (R-DPI), mais de 95% das
crianças moçambicanas não têm acesso à educação pré-escolar 2 .
3 Dados do projeto “Educadores em Movimento – Uma educação
itinerante para a primeira infância”, no Distrito do Chibuto, apontam
apenas duas “escolinhas” privadas com cerca de 100/150 crianças,
quando existem no Distrito mais de 38.000 crianças entre os 0 e os 4
anos (dados do Ministério da Administração Estatal, 2005, cit. em
AIDGLOBAL, 2019). Com este projeto, aumenta o número de crianças
com acesso a serviços de Educação de Infância.
4 Segundo o Plano Operacional 2015-2018 do Plano Estratégico da
Educação 2012-2019 os principais fatores, externos ao Ministério da
Educação, que interferem na escolarização das crianças são: pobreza;
subnutrição; insegurança alimentar; falta de roupa (uniforme,
calçado); necessidade de apoiar a família em trabalhos para
aumentar a renda familiar; fraco domínio da língua oficial do país
(Ministério da Educação de Moçambique, 2015, pp. 19-20). Estes
fatores configuram uma realidade complexa e multifatorial na
análise do desenvolvimento psicomotor das crianças.

Desenvolvimento psicomotor
5 São várias as abordagens e perspetivas sobre o desenvolvimento
humano, que o organizam em domínios. O presente estudo procura
compreender o desenvolvimento psicomotor da criança em idade
pré-escolar, o que remete para uma etapa de vida onde os domínios
se vêm como muito interligados, e daí considerarmos, doravante, o
desenvolvimento psicomotor em referência ao desenvolvimento
global da criança, na idade pré - escolar .
6 Nesta procura pelo conhecimento sobre o desenvolvimento
psicomotor da criança moçambicana em idade pré-escolar e vivendo
em meio rural estamos a focar um determinado contexto, numa
determinada fase de vida, de um grupo culturalmente particular de
seres humanos.
7 Cada vez mais, os investigadores enquadram a sua investigação
segundo perspetivas diferenciadas, de acordo com a cultura em que
emergem e, como tal, refletem uma influência nas questões que são
levantadas e na forma como são interpretados os dados recolhidos.
Deste modo, é importante enquadrar que as várias teorias usadas na
análise do desenvolvimento da criança derivam de cinco majo r
perspetivas teóricas, tais como: psicanalítica, aprendizagem,
cognitiva, etológica e contextual (Papalia et al ., 2001, p. 47).
8 Nesta pesquisa, é relevante apurar se as características do meio
ambiente influenciam o desenvolvimento psicomotor da criança,
estando a análise preferencialmente suportada nos fundamentos das
abordagens sociocontextuais, ecológicas ou bioecológicas e
sistémicas.
9 O Conselho Nacional de Educação (CNE) refere, no Relatório do estudo
- A educação das crianças dos 0 aos 12 anos, que Vygotsky se sustenta na
compreensão da relação dialética entre o biológico e o social, dando
importância ao contexto de vida da criança e às relações que ela
estabelece, nomeadamente o papel dos adultos ao incorporarem as
crianças nas suas culturas (CNE, 2009).
10 Além de Vygotsky, também Piaget deu um contributo fundamental
para o leque de conhecimentos que se consideram essenciais em
qualquer intervenção dirigida ao desenvolvimento e crescimento da
criança. Piaget, marcadamente construtivista, estabeleceu as etapas
do desenvolvimento, definindo quatro períodos essenciais e
sequenciais, a saber: período sensório-motor (0-2 anos); período pré-
operatório (2-6 anos); período das operações concretas (7-11 anos) e
período das operações formais (dos 12 anos em diante) (Gleitman,
2008, cit. em Almeida, 2010).
11 Um outro modelo teórico, o modelo transacional, considera que o
comportamento da criança resulta da interação entre fatores
biológicos e fatores sociais que se converte num “sistema regulador”,
a partir do qual se desenvolvem estratégias de intervenções eficazes,
que aumentam a possibilidade de as crianças alcançarem melhores
resultados (Tegethof, 2007, p. 39, cit. em Simões, 2018).
12 Segundo Nave, o Modelo Ecológico 3 de Bronfenbrenner vê a
criança em resultado de uma multiplicidade de influências
interrelacionadas entre si . Para ele, Bronfenbrenner defende que:
todas as características individuais não poderem ser interpretadas sem uma
perspetiva ecológica, ou seja, sem se estabelecer a relação entre as características
do ser humano, ativo, em desenvolvimento com os seus respetivos contextos,
entendidos como ambientes dinâmicos em constantes transformações. (Nave,
2010, p. 1)
13 Na perspetiva de Nave, a
pesquisa tradicional trabalha com variáveis do ambiente imediato (casa, sala de
aula, laboratório, etc.), mas, como o autor também refere, Bronfenbrenner
aponta para a necessidade de se olhar para além dos ambientes simples e para as
relações entre eles. Parte da hipótese de que o desenvolvimento da pessoa é
profundamente afetado por ocorrências em ambientes nos quais o indivíduo nem
sempre está presente. (Nave, 2010, p. 15)
14 Sameroff e Fiese (2000, cit. por Carvalho et al ., 2016, p. 57) referem
que é “fundamental prestar atenção aos fatores ecológicos em que as
crianças e as suas famílias estão inseridas” e numa lógica de observar
e compreender para intervir, o conhecimento sobre esses fatores
pode traduzir-se em ações que facilitem o desenvolvimento das
competências do indivíduo. Esta postura gnóstica configura-se como
uma postura biopsicoecológica e é fundamental para o desenho de
estudos sobre o desenvolvimento das crianças, em culturas tão ricas
e diversas como é o que acontece em Moçambique.
15 Nave (2010, p. 25), no seu estudo A criança, o meio e o perfil psicomotor ,
lembra que Pettersen et al . (1991) consideram que o
desenvolvimento não é um processo linear, e que qualquer alteração
numa ou mais variáveis dos sistemas nos quais o indivíduo interage
pode levar a uma nova organização, sendo importante estudar as
características do desenvolvimento motor, em referência às
diferentes situações ambientais às quais o indivíduo está exposto.
Isto é válido para o desenvolvimento motor como é válido para as
outras dimensões do desenvolvimento da criança.
16 Encontramos, ao nível da neurociência, da educação ou da psicologia
do desenvolvimento, referência a evidências de que os primeiros
anos de vida são um período crítico ao nível do desenvolvimento,
nomeadamente ao nível dos processos neurológicos. Há inclusive as
chamadas janelas de oportunidade, para desenvolver determinadas
competências. Após essas fases particulares a aprendizagem
acontece, mas não na sua máxima força. É o caso do grande potencial
de desenvolvimento das competências de consciência fonológica, que
se verifica até aos três anos de idade, ainda que alguns fonemas só
venham a ser produzidos aos quatro/cinco anos de idade. No
entanto, alguns neurocientistas têm, segundo Hall (2005, cit. em
Carvalho et al ., 2016, p. 41), questionado este conceito de um período
crítico rígido, salientando que “a correlação entre período crítico e
aprendizagem máxima está apenas comprovada para o sistema
sensorial”. Se o processo de neuromaturação que ocorre nos
primeiros anos é geneticamente regulado, mas também é
influenciado pelos fatores ambientais (intra e extrauterinos), então é
difícil universalizar a cronologia dos chamados períodos críticos do
desenvolvimento. Há, portanto, evidência de que ocorrem, no
entanto é importante reconhecer os riscos de generalização
interculturas, assim como reconhecer a importância de partir de
evidências locais para a compreensão do desenvolvimento
psicomotor de um determinado grupo de crianças.

A criança moçambicana: desenvolvimento


psicomotor na dicotomia rural/urbano
17 Para compreender o desenvolvimento particular da criança
moçambicana e perceber se existe alguma diferença no seu
desenvolvimento por influência do meio onde vive (rural/urbano),
parece ser necessária uma aprofundada abordagem bioecológica.
Esta é uma preocupação que encontra acolhimento no projeto
“Educadores em Movimento – Uma educação itinerante para a
primeira infância” 4 , o qual pretende que os “serviços de Educação
de Infância Itinerante (EII) sejam geridos por e integrados em cinco
comunidades, de forma sustentável, e que as próprias comunidades
tenham as competências necessárias para o desenvolvimento
integral da criança em idade pré-escolar” (AIDGLOBAL 5 ).
18 Segundo o Banco Mundial, as pesquisas têm demonstrado que:
as capacidades cognitivas são fortemente afetadas, tanto pela qualidade do
ambiente, pela quantidade de estimulação precoce e pelas oportunidades de
aprendizagem a que as crianças estão expostas, quanto pela genética, com as
influências genéticas sendo responsáveis por cerca de metade da variação na
capacidade cognitiva (Fernald et al ., 2009). (Banco Mundial, 2011, p. 17)
19 Os fatores de risco ambiental, como a desnutrição, maus-tratos, má
saúde ou ambientes pouco estimulantes “têm demonstrado ter um
impacto negativo no desenvolvimento das crianças (Irwin et al .,
2007, cit. em Banco Mundial, 2011, p. 17).
20 As investigações da neurociência estão a confirmar evidências que a
ciência social e a experiência comum têm apresentado, afirmando
que “as relações afetuosas, estáveis, seguras, estimulantes e
gratificantes com a família e com as pessoas que cuidam das
crianças, nos primeiros meses e anos de vida, são cruciais para quase
todos os aspetos do desenvolvimento da criança”; que a interação
íntima entre pais e filhos é tão importante para o desenvolvimento
intelectual como é para o desenvolvimento emocional; que “esforços
meramente didáticos – destinados a desenvolver as capacidades
cognitivas da criança – podem prejudicar o que procuram promover,
se as necessidades emocionais forem negligenciadas” e ainda que o
stress em excesso ou prolongado, em conjunto com a ausência de um
adulto familiar e de confiança que ajude a baixar esses níveis de
stress , “perturbam literalmente a arquitetura cerebral” da criança
(UNICEF, 2008, p. 6).
21 No relatório Como investir na primeira infância – Um guia para a
discussão de políticas e a preparação de projetos de desenvolvimento da
primeira infância, é afirmado que fatores de risco para o
desenvolvimento tendem a verificar-se mais em
famílias carentes com pais menos escolarizados, em parte devido a falhas de
informação (por exemplo, a falta de conhecimento dos pais sobre como auxiliar
no crescimento e desenvolvimento das crianças) e em parte por causa de
restrições pelo lado da oferta (por exemplo: a distribuição desigual de recursos e
serviços para a infância). (Banco Mundial, 2011, pp. 17-18)
22 Quer a falta de informação ou dificuldade no acesso à informação,
mas também a fraca distribuição da rede de serviços para a infância
em Moçambique, principalmente no meio rural, são aspetos
relevantes no estudo da criança moçambicana.
23 Estes e outros fatores de risco, segundo Cowan et al . (1996, cit. em
Poletto & Koller, 2008, p. 408), relacionam-se com eventos
particulares na vida das crianças e aumentam a probabilidade de
estas apresentarem problemas físicos, sociais ou emocionais.
24 Outro aspeto importante que é tratado no estudo Contextos ecológicos:
Promotores de resiliência, fatores de risco e de proteção (Poletto & Koller,
2008), baseado na teoria bioecológica do desenvolvimento humano
de Bronfrenbrenner, é que qualquer análise destes fenómenos exige
também a identificação dos fatores de proteção, os quais
desencadeiam processos de resiliência. Estes processos de resiliência
são de suma importância, pois através deles, “diferentes fatos
interagem entre si e alteram a trajetória da pessoa, produzindo uma
experiência de cuidado, fortalecimento ou anteparo ao risco”
(Poletto & Koller, 2008, p. 408). Neste estudo os autores defendem
que “uma análise ecológica do evento, dos processos, do momento
histórico e da pessoa é indispensável” (p. 408).

A pesquisa
25 O objetivo desta pesquisa foi compreender qual o estado do
conhecimento sobre o desenvolvimento psicomotor da criança
moçambicana, em idade pré-escolar 6 , que vive em meio rural e em
particular no Chibuto.
26 Tratou-se de um estudo de natureza bibliográfica que recorreu ao
procedimento metodológico de revisão narrativa através de livros,
dissertações, teses, artigos científicos e alguns testemunhos de
pessoas locais, que poderiam dar contributos para uma compreensão
da complexa realidade do objeto de estudo.
27 A pesquisa recorreu a bases de dados como o CAPES, Portal BVS-
Biblioteca Virtual em Saúde, SCIELO, LILACS, Researchgate, Repository.utl,
Repositorium, tandfonline.com, onlinelibrary.wiley, srcd.onlinelibrary.wiley,
open-science-repository e PsycInfo . Os descritores da pesquisa foram
procurados em português e em inglês: criança ( child );
desenvolvimento infantil ( child development ); desenvolvimento
psicomotor ( psychomotor development ); Moçambique ( Mozambique );
África ( Africa ); infância ( childhood ); fatores que influenciam o
desenvolvimento ( factors that influence the development ); disparidades
entre meio rural e urbano ( disparities between rural and urban ); idade
pré-escolar ( preschool ).
28 Foram selecionados 41 estudos, dos quais apenas 23 se relacionavam
parcialmente com o tema a ser tratado e 17 apresentavam uma
relação direta com os vetores principais desta revisão. Os restantes
24 estudos relacionavam-se com campos de conteúdo mais
periféricos, como por exemplo intervenção precoce na Europa ou
com a realidade de crianças na América Latina. Foram também
considerados estudos principais, aqueles que retrataram realidades
semelhantes em países africanos da África subsariana.
29 A escolha dos estudos obedeceu a critérios de inclusão tais como:
estudos publicados com critério científico; estudos publicados nas
bases de dados consultadas e disponíveis gratuitamente. E critérios
de exclusão: estudos com acesso protegido ou pago e estudos que não
estivessem relacionados com alguma instituição com idoneidade e
reconhecimento público. O tratamento dos dados seguiu, através da
técnica de análise de conteúdo, várias etapas, desde a pré-análise,
passando pela exploração do material recolhido já com um sistema
de categorias de conteúdo identificadas. Por fim foi realizado o
tratamento dos resultados com a análise reflexiva e crítica sobre o
material previamente trabalhado (Bardin, 2006, cit. em Mozzato &
Grzybovski, 2011).
30 Apenas dois estudos, Preschool and child development under extreme
poverty – Evidence from a randomized experiment in rural Mozambique
(Martinez et al ., 2012) e Primeira infância em Moçambique, constatações
e desafios (Ladeira, 2010) abordavam, em parte, o desenvolvimento
psicomotor da criança moçambicana, em idade pré-escolar e na
província de Gaza. Em relação ao Chibuto não foram encontradas
publicações sobre o desenvolvimento da criança, apenas dados
estatísticos, sociodemográficos do distrito.
31 No relatório do Banco Mundial Análise de pobreza e impacto social –
Admissão e retenção no ensino primário – O impacto das propinas escolares
, realizado em 2005, podemos ler que em Moçambique, regra geral, as
famílias nas zonas rurais valorizam as crianças como parte da mão
de obra, principalmente na época das colheitas, o que interfere
negativamente com o seu percurso escolar, estando inclusive
relacionado com as elevadas taxas de reprovação e desistência do
ensino. O estudo chega mesmo a avançar que “As crianças com maior
idade, um fenómeno comum nas escolas rurais, ao invés de
completarem a escola primária, optam por desistir para procurarem
trabalho na Cidade de Maputo ou nas minas na África do Sul” (Banco
Mundial, 2005, p. 14).
32 No relatório Pobreza infantil e disparidades em Moçambique 2010 consta
que “persistem as desigualdades rural/urbano, pois as crianças das
áreas urbanas têm quatro vezes mais probabilidade de completar a
escola primária do que as crianças das áreas rurais (30% contra 7% )
” ( UNICEF , 2011, p. 115). Compreendemos, a partir daqui, que estas
assimetrias caracterizam, a vários níveis, realidades diferenciadas
entre as crianças moçambicanas que vivem na Maputo urbana e
aquelas que vivem no Chibuto rural.
33 Podemos ainda acrescentar que uma distinção entre o
desenvolvimento de crianças que vivem em zonas rurais e urbanas
poderá depender de vários fatores, muito inerentes às oportunidades
específicas de cada tipo de contexto. Uma delas, a maior
probabilidade de frequentarem contextos educativos antes do ensino
primário pode, segundo algumas constatações recolhidas, facilitar o
seu desempenho académico. No entanto, essas distinções poderão
não se destacar ainda na idade pré-escolar, mas mais tardiamente, ao
longo do percurso académico.
34 Os espaços urbanos em Moçambique sofreram um grande aumento
populacional após a independência nacional. Neste momento, são
espaços com excesso populacional e falta de infraestruturas e
serviços. Uma significativa parte da população envolve-se em
atividades de economia informal como forma de sobrevivência
(Araújo, 2003).
35 É, no entanto, relevante referir que há uma tendência, nas grandes
cidades e nos países mais desenvolvidos, para diminuir o grau de
independência ou de autonomia de mobilidade das crianças e jovens
(Pellegrini & Smith,1998). O mesmo se verifica nas grandes cidades
africanas. Esta redução da mobilidade e autonomia e consequente
aumento do sedentarismo tem condicionado alterações na forma
como as crianças vivenciam a atividade física, a aventura e o jogo na
primeira infância. O aumento do tráfego automóvel, a violência e
insegurança nos espaços urbanos têm influenciado mudanças numa
cultura de rua que era fundamental no processo de desenvolvimento
da criança, nomeadamente ao nível do jogo espontâneo e informal,
que é influenciador nas aquisições motoras, percetivas e sociais das
crianças.
36 As crianças que vivem na parte mais central da cidade de Maputo,
onde há frequentemente habitações verticais e elevado número de
viaturas em circulação, acabam por estar mais condicionadas na
exploração livre de espaços mais amplos e exteriores. O número de
horas de exposição passiva a aparelhos eletrónicos (sejam eles TV,
computadores, videojogos, smartphones ...) parece gerar uma
circunstância distintiva face às crianças que vivem em meio rural,
que não têm acesso a estes recursos, e por conseguinte, deverá ser
considerado na análise do desenvolvimento psicomotor destas
crianças.
37 O espaço físico, as suas características e as possibilidades de
mobilidade que permitem, serão relevantes para o desenvolvimento.
Morato colocou “ ênfase sobre o papel da motricidade no
desenvolvimento da capacidade de representação espacial da
criança” , que constitui um “alicerce fundamental da construção
cognitiva que a criança vai revelar ser capaz de realizar” (como
citado em Almeida, 2005, p. 22).
38 Um outro estudo de Machado et al . (2002) atribuiu as diferenças de
resultados nas performances motoras entre rapazes e raparigas às
características culturais do ambiente. Ou seja, pressupõe que essa
diferença se relaciona com o facto de “aparentemente os meninos
serem mais incentivados a brincadeiras ativas e receberem mais
estímulos com bolas, bastões e outros objetos utilizados em
movimentos de manipulação” (Neto et al ., 2004, p. 138).
39 Prista et al . referem, no seu estudo Atividade física em Moçambique ,
que numa amostra de 1421 rapazes e 1611 raparigas, estudada em
2012, na cidade de Maputo, foi possível perceber que se verifica uma
diminuição das atividades domésticas, jogos ativos e deslocações
ativas, à medida que as crianças crescem. Os autores acrescentam
ainda que o decréscimo abrupto da atividade física nas crianças e
jovens das cidades é real e estendeu-se a todas as camadas sociais
(Prista et al ., 2016, p. 63). As crianças moçambicanas que vivem no
meio rural, e em particular no distrito de Chibuto, onde as suas
ocupações diárias incluem sempre deslocações em áreas grandes e
abertas, como sejam o campo, o rio, o mercado, a escola, a
machamba, têm esta oportunidade ambiental para estimular o
desenvolvimento das suas habilidades motoras. Comparativamente
com as crianças ocidentais, as crianças moçambicanas que vivem no
meio rural parecem estar em vantagem, na exposição a um ambiente
físico facilitador da experimentação livre em espaços abertos, como
o campo e os seus caminhos. No entanto, de acordo com as
características contextuais locais, é importante lembrar que “a
desnutrição exerce um importante papel na ocorrência de déficits nas
diversas etapas do desenvolvimento infantil” (Fraga & Varela, 2012,
p. 59).
40 No Chibuto, segundo relatos de habitantes locais 7 , as crianças
ocupam o seu dia com a ida à escola, pastagem, vender sacos de
plástico e ovos cozidos, ir à machamba (terreno de cultivo para
produção familiar), caçar, pescar, brincar, cortar caniço e realizar
trabalhos domésticos. No grupo etário dos 4 aos 6 anos é mais
frequente as crianças participarem nos afazeres de casa, serem
responsáveis pela sua higiene pessoal e brincarem ao longo do seu
dia.
41 As mamãs do Chibuto, auscultadas no âmbito do projeto
“Educadores em Movimento – Uma educação itinerante para a
primeira infância” (2019), enumeraram como principais brincadeiras
das crianças, em particular na idade pré-escolar, as seguintes: neca
8
; jogar à bola; estufa 9 , pião; mathocozana 10 ; ntuxa 11 ; mudzobo
12
; esconde-esconde e toca 13 . Saltar à corda, jogar às escondidas,
“toca” e brincar com brinquedos construídos pelas próprias crianças,
são os jogos que, além da dança e música, Mwamwenda enumera nas
ocupações das crianças africanas (2009, p. 382). Estas brincadeiras
são essencialmente jogos de regras e jogos coletivos que contribuem
para o seu desenvolvimento social, afetivo e moral. São jogos que
facilitam o desenvolvimento de competências cognitivas, tais como a
atenção, a concentração, mas também habilidades motoras.
42 No estudo A review of the literature: Early childhood care and education
(ECCE) personnel in low- and middle-income countries (UNESCO, 2015)
realizou-se uma revisão da literatura focada em 15 países, a saber:
República Dominicana, Egito, Gana, Quénia, Macedônia do Norte,
Malásia, Moldávia, Marrocos, Moçambique, Namíbia, Omã, Filipinas,
Togo, Trindade e Tobago e Vietnam. Os autores recorreram a vários
bancos de dados académicos e literatura publicada, privilegiando
estudos publicados entre 2000 e 2015, relacionados com os recursos
humanos, políticas, tendências e problemas relacionados com
Cuidados e Educação na Primeira Infância. Concluíram que há dados
limitados sobre a temática, atribuindo a situação a dificuldades de os
governos recolherem e divulgarem dados relacionados com o ensino
pré-primário e com o facto de a maioria dos estudos disponíveis se
basearem em informações estruturais e não de processo. Os autores
acrescentam ainda que existem poucos estudos experimentais na
área dos Cuidados e Educação na Primeira Infância, nomeadamente
estudos que permitam fornecer informações essenciais para
desenhar as estratégias nacionais para a primeira infância,
informações que possibilitem definir o tipo de formação a
disponibilizar para os recursos humanos, mas também que perfil de
profissionais se pretende para a área da primeira infância, entre
outras questões (UNESCO, 2015). Também Bidwell e Watine, no
relatório Exploring early education programs in peri-urban settings in
Africa, referem que embora existam evidências sobre o impacto das
intervenções na primeira infância, decorrentes de pesquisas
realizadas nos Estados Unidos e América Latina, existem poucos
estudos longitudinais e evidências limitadas sobre modelos com bom
custo-benefício ou retornos educacionais dessas intervenções
(Bidwell & Watine, 2014, p. 7).
43 É importante referir que há um estudo nuclear que foca uma ação
desenvolvida ao nível de uma intervenção precoce na primeira
infância, em meio rural, na Província de Gaza, desenvolvido pela Save
the Children , com início em 2008. Nessa altura, esta organização não
governamental implementou, em comunidades rurais de Gaza,
centros de base comunitária com um modelo de intervenção pré-
escolar que abrangeu 67 classes em 30 comunidades (Banco Mundial,
2011, p. 3). Esta intervenção implicou, inclusive, uma avaliação que
caracterizava o desenvolvimento das crianças, nomeadamente ao
nível do desenvolvimento cognitivo, motricidade, linguagem e
comunicação, competências socioemocionais e saúde. O impacto
desta intervenção foi aferido dois anos após o seu início e permitiu
concluir que as crianças que frequentaram este programa
apresentaram melhores resultad os no seu desempenho no ensino
primário, quando comparadas com as do grupo de controlo.
Especificamente, este estudo revelou evidências de melhorias no
desenvolvimento das crianças em vários domínios, tais como:
cognitivo, resolução de problemas, competências de motricidade
fina, comportamento e competências socioemocionais. O estudo
acrescenta, no entanto, que não foram apuradas evidências de
melhores desempenhos ao nível do desenvolvimento da linguagem e
comunicação, continuando a representar áreas onde as crianças
apresentavam grandes dificuldades.
44 Em relação a este estudo, importa dizer que, apesar de mencionar
que usou escalas de avaliação do desenvolvimento adaptadas ao
contexto, tal não parece ser fidedigno, uma vez que o que aconteceu
foi o uso do Teste de Vocabulário por Imagens Peabody (TVIP), na versão
adaptada para populações de falantes de espanhol em contextos de
baixa renda da América Latina (Martinez et al ., 2012, p. 23). Nestas
circunstâncias, os resultados deste estudo terão de merecer a devida
ressalva. Não poderão ser totalmente assumidos como um retrato da
realidade. Não esquecer, nomeadamente, o risco da interferência das
questões linguísticas nos resultados de estudos/avaliações, quando
não são devidamente consideradas.
45 A reforçar esta reflexão, encontramos o estudo de Beatrice
Matafwali e Robert Serpell, Design and validation of assessment tests for
young children in Zambia (2014), onde, mais uma vez, se reconhece que
há pouca documentação sistemática sobre instrumentos de avaliação
do desenvolvimento infantil culturalmente apropriados para a
população africana. O estudo de Bietenbeck et al . (2017) Preschool
attendance, school progression, and cognitive skills in East Africa afirma
que na África subsariana a maioria das crianças que se matriculam
na escola têm um desempenho escolar baixo, e que uma das razões
que o podem justificar é a falta de preparação das crianças à entrada
no ensino primário. O mesmo estudo procura compreender os
ganhos de uma intervenção pré-escolar ao nível de impacto no
percurso escolar e conclui que há algumas evidências de impacto dos
programas pré-escolares, face aos resultados de aprendizagem das
crianças no ensino primário. Estes benefícios parecem resultar do
facto de as crianças desenvolverem habilidades cognitivas e
comportamentais, no pré-escolar, que as irão ajudar nas
aprendizagens seguintes. Este estudo baseou-se em dados de
experiências realizadas em larga escala na Tanzânia e no Quénia,
demonstrando existirem benefícios a longo prazo para as crianças
que frequentam programas pré-escolares.
46 Encontram-se, na literatura, várias referências a programas pré-
escolares como promissoras medidas para contrariar estas
dificuldades das crianças e o insucesso escolar subsequente (Baez
Ramirez et al ., 2018); no entanto, Bietenbeck (2017) afirma que não
há suficientes evidências empíricas e rigorosas sobre o impacto
desses programas.
47 Seguindo esta reflexão, o autor do estudo Promoting children’s
sustainable access to early schooling in Africa (Ngwaru, 2014) analisa as
práticas que se observam em diversas comunidades africanas,
nomeadamente alguns programas de estimulação pré-escolar,
desenvolvidos com base em linhas conceptuais ocidentais. As
comunidades rurais dispõem, endogenamente, de diversos
conhecimentos e práticas relevantes na promoção do
desenvolvimento e aprendizagem das crianças. No entanto, a
importação de modelos ocidentais, segundo o autor, distancia as
comunidades das suas tradições e gera barreiras relacionadas com a
pouca participação dos pais na transição casa-escola. Estas
dificuldades, em conjunto com a falta de incentivo aos professores e
falta de recursos materiais, dificultam o sucesso das crianças no
ensino primário. O autor conclui que capacitar os pais a utilizarem
recursos e conhecimentos locais, envolvendo-se de forma mais
participativa na educação das suas crianças e ainda o reforço na
capacitação dos educadores e o aumento de recursos materiais irá
promover impactos mais significativos no percurso de aprendizagem
das crianças. Estas conclusões estão em linha com os princípios-
chave da intervenção precoce na infância, que, segundo a Associação
Nacional de Intervenção Precoce de Portugal (ANIP), adaptação do
modelo integrado de intervenção precoce de Dunst (2000), deve
desenvolver-se com práticas centradas na família, nomeadamente
através de: promover oportunidades de aprendizagem à criança;
apoio aos pais e maximizar os recursos existentes na comunidade
(Carvalho et al ., 2016, p. 76).

Considerações finais
48 Particularmente em Moçambique, são parcos os estudos sobre o
desenvolvimento da criança. As publicações encontradas retratam,
essencialmente, a criança nas suas dimensões de vulnerabilidade ou
uma perspetiva sociológica do estudo da infância. Os estudos que
existem apresentam fragilidades metodológicas identificadas,
nomeadamente no que diz respeito à importação de instrumentos
dos países ocidentais ou à falta de sistematicidade na recolha e
tratamento de dados.
49 O governo moçambicano está empenhado em melhorar o
desenvolvimento integral da criança em idade pré-escolar e várias
organizações, como a UNICEF ou o Banco Mundial, corroboram a
necessidade de planos de ação integrados, em resposta às
necessidades das crianças africanas.
50 No projeto da AIDGLOBAL, “Educadores em movimento – Uma
educação itinerante para a primeira infância”, os serviços de
Educação na Infância Itinerante são geridos por um Comité
Comunitário que para além de acompanhar o próprio serviço à
comunidade implementa estratégias para a sustentabilidade da
participação das “Educadoras em Movimento”. Esta é já uma
abordagem que devolve à comunidade o papel participativo que lhe é
devido e que os estudos parecem reforçar como sendo um processo
imprescindível para o sucesso das abordagens de educação de
infância.
51 O documento Cuidados de criação para o desenvolvimento na primeira
infância – Plano de vinculação dos objetivos de sobreviver e prosperar para
transformar a saúde e o potencial humano (UNICEF & OMS, 2018) aponta
vários aspetos importantes a considerar na análise do presente e das
perspetivas futuras sobre o desenvolvimento da primeira infância e
da criança em idade pré-escolar em Moçambique. Destaca-se, neste
documento, a importância dada aos cuidados de criação, que dizem
respeito às condições que propiciam saúde, nutrição, proteção e
segurança da criança, cuidados responsivos/empáticos e
oportunidades de aprendizagem precoce. Para que os cuidadores
consigam providenciar estes cuidados de criação é necessário que
tenham
segurança económica e social, participar de redes sociais de apoio, ter autonomia
para tomar decisões de acordo com o princípio do melhor interesse da criança e
estar convencidos do importante papel que desempenham na vida das crianças
sob seus cuidados. (UNICEF & OMS, 2018, pp. 11-12)
52 Evidencia-se, portanto, a necessidade de abordagens integradas à
primeira infância, valorizando soluções endógenas e o profundo
conhecimento da cultura local.
53 Os elementos distintivos entre a realidade rural e urbana carecem,
também, de um estudo mais aprofundado e são arriscados os
paralelismos com outras latitudes, uma vez que o espaço urbano
moçambicano é em si mesmo heterogéneo e, dentro da grande
cidade de Maputo, há diversas ruralidades.
54 A presente pesquisa bibliográfica revelou a enorme complexidade da
problemática do desenvolvimento da criança em idade pré-escolar
em África e em particular em Moçambique. Há um conjunto de
influências, desde internacionais a nacionais, familiares e
comunitárias, culturais e biológicas a considerar. No entanto, um
contributo importante para melhor conhecer a criança do Chibuto
parte, necessariamente, da recolha de dados empíricos específicos
sobre o modo de vida dessas crianças e suas famílias, através de
estudos mais aprofundados e com validade reconhecida pela
comunidade científica local. Nomeadamente porque, apesar de
existirem algumas evidências de impacto positivo, a longo prazo, no
desenvolvimento das crianças que frequentam programas pré-
escolares (Marcus et al ., 2013), Bientenbeck (2017) afirma que não
são evidências empíricas suficientes para comprovar essa correlação.
55 Os estudos consultados são importantes, mas também o são as
representações e crenças dos principais atores envolvidos na
educação dessas crianças, tal como afirmam Akkari et al . (2012, pp.
123-124), em relação à primeira infância na África subsariana.
56 Parece, portanto, ser importante perceber quais os modelos
pedagógicos mais pertinentes para um determinado contexto, depois
de o conhecer bem e compreender a influência das suas
características no desenvolvimento da criança; valorizar a
importância da cultura no desenvolvimento da criança e das
dinâmicas de cuidados e de educação das mesmas; conhecer,
valorizar a maximizar o papel das famílias e das comunidades na
educação das suas crianças e não esquecer a importância de
programas de ação integrados, nomeadamente que incluam a saúde
e a nutrição.
57 Esta revisão facilita o levantamento de parâmetros a observar num
estudo mais aprofundado sobre o desenvolvimento destas crianças,
nomeadamente a identificação dos fatores de risco para o
desenvolvimento, a identificação dos fatores que influenciam o
desenvolvimento, a identificação das etapas de desenvolvimento,
aquisições e competências que as crianças apresentem, de modo a
compreender se haverão diferenças estatisticamente relevantes.
Estes são dados de suma importância para permitir um
conhecimento mais real da população moçambicana e dispor de
informação que permita: identificar mais rapidamente sinais de
alerta no desenvolvimento da criança moçambicana; alimentar o
desenho de programas e políticas na área da criança; agir sobre
determinadas condições do meio ambiente, priorizando uma escolha
de acordo com o impacto que representam, ao nível do
desenvolvimento da criança.
58 Um estudo dessa natureza representará, só por si, uma ferramenta
de valor inestimável para a melhoria da qualidade das respostas na
área da criança, em Moçambique.

BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
1. Este artigo consiste numa síntese do trabalho de pesquisa
bibliográfica alargada, realizado pela autora no âmbito do projeto
“Educadores em movimento – Uma educação itinerante para a
primeira infância”, implementado no Chibuto, Moçambique,
promovido pela AIDGLOBAL.
2. http://www.rededpi.org.mz/index.php/pt/membros/julio-novo
3. O Modelo Ecológico de Bronfenbrenner considera os seguintes
níveis interligados de influência ambiental: microssistema;
mesossistema; exossistema; macrossistema e cronossistema.
4. Trata-se de um projeto promovido pela AIDGLOBAL, em consórcio
constituído por esta e pelo Centro Vocacional e Residencial do
Chibuto (CVRC), Serviço Distrital da Juventude, Educação e
Tecnologia do Chibuto (SDJET) e Serviço Distrital de Saúde, Mulher e
Ação Social (SDSMAS), em Moçambique e pelo Instituto Politécnico
de Leiria (IPL) e o Centro de Estudos Internacionais do Instituto
Universitário de Lisboa (CEI-IUL), em Portugal.
5. https://aidglobal.org/?project=educadores-em-movimento
6. A idade pré-escolar em Moçambique corresponde à idade entre os
zero e os cinco anos (Ministério da Educação de Moçambique, 2012).
7. Recolha de informação no âmbito da implementação do projeto
“Educadores em Movimento – Uma Educação Itinerante para a
Primeira Infância”.
8. Semelhante ao jogo da macaca.
9. Semelhante ao jogo do mata.
10. Jogo de origem africana muito popular em Moçambique, jogado
com pedrinhas e um buraco no chão.
11. Jogo de tabuleiro muito popular em Moçambique.
12. Semelhante ao jogo do berlinde.
13. Semelhante ao jogo da apanhada.
RESUMOS
Embora tenha ocorrido um foco maior no conhecimento sobre a criança e a infância, a
partir da década de 50 do século passado, foi possível perceber que prevalecem as
investigações e publicações baseadas no estudo de populações dos países industrializados.
Há, em várias fontes, um reconhecimento da necessidade de maior investimento, pela
comunidade científica, no estudo das populações africanas, e moçambicana em particular.
As crianças, em Moçambique, representam 52% da população (menos de 18 anos). Dessas
crianças, 48% vive em situação de pobreza absoluta; o acesso a serviços de aprendizagem
precoce de qualidade (três-cinco anos) é de apenas cinco por cento (UNICEF, 2014) e os
estudos sobre o desenvolvimento da criança são escassos.

Although there was a greater focus on knowledge about children and childhood, from the
50s of the last century, it was possible to realize that there is much more research and
publications based on the study of populations in industrialized countries. There is, in
several sources, a recognition of the need for greater investment, by the scientific
community, in the study of African and Mozambican populations in particular. Children in
Mozambique represent 52% of the population (under 18). Of these children, 48% live in
absolute poverty; access to quality early learning services (three-five years) is only five
percent (UNICEF, 2014) and there are few studies on child development.

ÍNDICE
Keywords: Mozambican child, psychomotor development, Chibuto, factors that influence
the development, disparities between rural and urban, preschool age
Palavras-chave: criança moçambicana, desenvolvimento psicomotor, Chibuto, fatores que
influenciam o desenvolvimento, disparidades entre meio rural e urbano, idade pré-escolar

AUTOR
CARLA MARINA MAIA LADEIRA

AIDGLOBAL – Ação e Integração


para o Desenvolvimento Global
Rua de Moscavide, 4.71, 1998-011 Lisboa
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A Universidade nos PALOP: Que
Espelho Mirar?
Uma discussão tomando como
exemplo a disciplina
1
Economia Regional e Urbana
The university in PALOP: Which model to follow? An argument taking
Regional and Urban Economics as example

Cassio Rolim

NOTA DO EDITOR
Recebido: 28 de maio de 2020
Aceite: 29 de junho de 2020

1 Há um certo consenso entre as teorias econômicas contemporâneas


de que o desenvolvimento de um país ou de uma região repousa na
capacitação educacional e nas habilidades que seus habitantes
possuem para gerar inovações. Nesse contexto o provisionamento de
educação é o grande desafio. Esse desafio é ainda maior quando o
país ou a região é pobre em recursos financeiros e humanos. Cada
centavo terá que ser muito bem aproveitado e ter um grande retorno
social. O ensino universitário nessas circunstâncias tem um papel
predominante porque formará as gerações que irão trabalhar para a
transformação do país.
2 Em países como os Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa
(PALOP), com elevados níveis de carência em tudo, a questão que se
coloca é como as suas universidades cumprirão esse papel. Qual o
tipo de universidade será mais adequado para esses países? Que
esperar dos egressos dessas universidades? Que tipo de ensino lhes
será fornecido para que eles correspondam às expectativas que os
países têm sobre eles? A “universidade necessária”, no sentido que
Darcy Ribeiro (1969) atribuía ao termo, é sempre um projeto utópico
que necessita de um grande esforço para tornar-se realidade. É
sempre um projeto de construção de uma universidade adequada às
necessidades específicas de uma comunidade. Ainda que o resultado
dessa construção não corresponda necessariamente a essa utopia ou
ainda que os seus construtores sonhem essa utopia com perspectivas
diferentes, o ponto de partida é sempre a discussão de um projeto.
3 Darcy Ribeiro tinha em mente o contexto da época, que opunha
países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Entre eles,
particularmente, o Brasil. Essa universidade utópica deveria ser
aquela que conseguisse desempenhar as funções necessárias para
que o país caminhasse para o desenvolvimento.
Tais funções, como foi dito, são herdar e cultivar, fielmente, os padrões
internacionais da ciência e da pesquisa, apropriando-se do patrimônio do saber
humano; capacitar-se para aplicar tal saber ao conhecimento da sociedade
nacional e à superação de seus problemas; crescer, conforme um plano, para
formar seus próprios quadros docentes e de pesquisa e para preparar uma força
de trabalho nacional da grandeza e do grau de qualificação indispensável ao
progresso autônomo do país; atuar como o motor da transformação que permita
à sociedade nacional integrar-se à civilização emergente. (Ribeiro, 1969, pp. 171-
172)
4 Não é difícil trazer para os dias de hoje essa perspectiva de guia para
as universidades. É possível reencontrá-la de maneira mais ampla e
elaborada (Kempton et al., 2014) para um contexto diferente,
argumentos que lembram os apresentados por Darcy Ribeiro
(Chatterton & Goddard, 2000; Mamdani, 2019). Por sua vez, o Banco
Mundial também chama a atenção para as três grandes tarefas do
ensino superior para contribuir na construção de sociedades
democráticas de conhecimento:
Supporting innovation by generating new knowledge, accessing global stores of knowledge, and
adapting knowledge to local use.
Contributing to human capital formation by training a qualified and adaptable labor force,
including high-level scientists, professionals, technicians, basic and secondary education
teachers, and future government, civil service, and business leaders.
Providing the foundation for democracy, nation building, and social cohesion. (World Bank,
2002, p. 24)
5 Este trabalho é uma proposta de discussão dessas questões tomando
como exemplo o que poderia ser uma disciplina de Economia
Regional e Urbana ministrada em um curso de graduação em
Economia e Gestão. Considera-se o caso, idealizado, de uma
Instituição de Ensino Superior (IES) 2 típica de um país dos PALOP
tendo em conta o que elas têm em comum, não obstante as grandes
diferenças existentes entre esses países. Quando necessário será
utilizado como ilustração um dos casos mais dramáticos – a Guiné-
Bissau. O trabalho está focado na quase impossibilidade e na
discutível utilidade para o país em formar pessoas com o mesmo
perfil de um acadêmico saído das universidades ditas de padrão
internacional. O primeiro problema a ser considerado será a
definição do perfil esperado para esse formando; em segundo lugar
será o que deverá ser oferecido a ele dentro do amplo leque de
conhecimento acumulado pela ciência regional; finalmente, como
isso será ensinado, quais as técnicas e metodologias mais adequadas.
Nunca é demais esclarecer que os argumentos aqui apresentados se
somam àqueles que defendem uma universidade baseada na
produção de conhecimento em que o saber universal seja utilizado
para a solução dos problemas mais prementes das comunidades
locais (Castells, 1993; Chatterton & Goddard, 2000).
6 O artigo contém mais três seções. Na primeira é feita uma discussão
inicial sobre o ensino superior em África, particularmente nos
PALOP. Na segunda é colocada a questão de qual poderia ser um
modelo adequado de universidade para um país dos PALOP, usando o
exemplo da disciplina Economia Regional. Uma das propostas é a
adoção da metodologia de ensino baseada na solução de problemas
PBL (Problem Based Learning). Na terceira seção é apresentada uma
proposta de estruturação de uma disciplina de Economia Regional e
Urbana com flexibilidade suficiente para a utilização da PBL. Conclui
o artigo uma seção com as considerações finais.

3
Ensino superior em África
O quadro geral

7 O acesso ao ensino superior vem aumentando em todo o mundo.


Entre 1985 e 2003 a taxa bruta de matrícula no ensino superior (TBE)
passou de 9% para 22,3%. Entre 2003 e 2016 ela passou de 22,8% para
38%. Infelizmente essa expansão foi muito desigual. A África
subsaariana, ainda que tenha ampliado em muito os valores desse
indicador − entre 2003 e 2018 passou de 5,6% para 9,4% − teve nesse
período uma média de apenas 7,8%. A situação é ainda pior nos
PALOP. Com a exceção de Cabo Verde, todos estão abaixo da média
do bloco. Apenas no final do período, São Tomé e Príncipe (2015) e
Angola (2016), esta última ligeiramente, conseguem superar a média.
Vide tabelas 1 e 2.
Tabela 1
Tabela 2
Ensino Superior - Dados comparativos PALOP

8 Vários motivos têm sido apontados como responsáveis por esses


baixos níveis de matrículas. Um deles é a ênfase colocada até
recentemente na expansão do ensino primário em detrimento do
secundário e terciário pelas instituições internacionais, em especial
o Banco Mundial. Esse fato é apontado por vários autores e as razões
para essa não priorização estariam no debate relativo ao pequeno
retorno do investimento em educação superior na África subsaariana
(Bloom et al., 2005, 2006; Holtland & Boeren, 2006).
9 Esse debate parece ter sido superado. Bloom et al. (2005, 2006, 2014)
mostram que se o aumento de um ano na escolaridade média em
África eleva o PIB em 0,24% por ano, o aumento em um ano na
educação superior traz uma elevação do PIB em 0,63% por ano. O
próprio Banco Mundial parece ter reconhecido isso, a julgar pelo
aumento do volume de empréstimos para a educação secundária e
terciária e pelos documentos que recentemente tem patrocinado
(Ng’ethe et al., 2008; World Bank, 2009, 2014).
10 Apesar desses avanços na percepção do problema, a educação
superior nos países da África subsaariana enfrenta grandes desafios.
Entre eles estão a redução do gasto por estudante (que fez decair a
qualidade do ensino), a divisão dos encargos financeiros (ensino
público e privado), a garantia da qualidade do ensino (além dos
problemas já existentes com as universidades públicas adicionam-se
os riscos com a grande expansão das privadas), a ampliação do
acesso para as classes menos privilegiadas, a conexão do produto das
universidades com o setor produtivo, as dificuldades de manter os
quadros (frente à competição com o setor privado, consultorias para
instituições públicas e privadas e universidades estrangeiras)
(Holtland & Boeren, 2006). Também se destaca o baixo nível de
matrículas, vários tipos de discriminação: de gênero, de etnias, de
localização (urbano x rural), etc. A grande expansão do setor
privado, em decorrência da redução dos investimentos públicos,
geralmente oferece cursos de baixa qualidade, voltados para
atendimento imediato do mercado. Na maioria das vezes esses cursos
são na área comercial e de negócios, informática e turismo e
hotelaria e quase todos centrados no ensino ao nível da graduação
(Teferra, 2007).
11 Além dessas constatações também é apontado que, apesar dos
avanços recentes, a maioria das instituições de ensino superior em
África não consegue graduar profissionais em quantidade e
qualidade suficiente. Além disso, esses graduados não têm
apresentado o nível de conhecimento necessário para apoiar o
desenvolvimento da região nas próximas décadas (World Bank,
2009). Entre as razões para essas deficiências está a grande
desconexão entre os currículos escolares e as demandas de
qualificações necessárias para o desenvolvimento nacional. Isso leva
a um desperdício adicional de recursos na medida em que contribui
para o alto desemprego de egressos do ensino superior 4 . A chamada
“terceira missão” parece não ter sido ainda assumida pelas
instituições de ensino superior africanas (Bloom et al., 2014, p. 49).
12 Por outro lado, nas universidades públicas, censura e perseguição de
natureza política a professores e alunos não é propriamente algo que
inexista. O ambiente está muito longe de propiciar condições
favoráveis de liberdade para criar e produzir conhecimento e formar
cidadanias. Há, no entanto, quem veja sinais de avanço nesse quadro
(Teferra, 2007). Em especial a partir dos primeiros anos do século
XXI, inicialmente como uma reação ao documento do Banco Mundial
(2002) já mencionado, várias agências de desenvolvimento dos países
desenvolvidos e consórcios de fundações estrangeiras financiaram
vários eventos e mesmo projetos de expansão do ensino superior.
Surgiram instituições pesquisando sobre ensino superior, como a
Association of African Universities (Gana), o Council for the Development of
Social Science Research in Africa (CODESRIA, Senegal), a Organization for
Social Science Research in East and Central Africa (OSSREA, Etiopia), o
Center for the Study of Higher Education (University of the Western
Cape, África do Sul) bem como várias publicações tais como o Journal
of Higher Education in Africa e os textos publicados pela Partnership for
Higher Education in Africa (Teferra, 2007).
13 Também muito importante foi o surgimento em 2007 do projeto
Higher Education Research and Advocacy Network in Africa (HERANA),
apoiado por vários países, entre eles a Noruega, e coordenado pelo
Centre for Higher Education Transformation (CHET), uma organização
não governamental baseada na África do Sul. Foi criada uma parceria
entre oito universidades 5 e nos dez anos de sua execução
importantes trabalhos foram publicados (Cloete & Schalkwyk, 2018).
Um dos pontos de partida do projeto foi a construção de sistemas de
informações sobre o ensino superior que permitiram investigações
posteriores com maior evidência empírica sobre vários temas. Em
2015, com a conclusão da segunda fase do projeto, foi publicado um
importante livro (Cloete et al., 2015) com o conhecimento acumulado
dessas pesquisas até àquela altura. Um dos argumentos centrais do
livro era a necessidade da existência de um grupo de universidades
baseadas e/ou direcionadas para a pesquisa. Elas teriam como
compromisso a produção e disseminação de conhecimento em
determinadas áreas e para isso estariam equipadas com a
infraestrutura necessária para o ensino e pesquisa ao mais alto nível
acadêmico possível. Entre as oito universidades do projeto HERANA,
apenas a Universidade da Cidade do Cabo, em função da alta
produtividade em pesquisa e ensino bem como a produção de
conhecimento para o desenvolvimento, cumpriria essas funções
razoavelmente. Para atingir essa situação ideal teriam que ser
equacionados problemas relativos à governança do sistema
educacional, à estrutura acadêmica das universidades, ao
financiamento e à ajuda dos doadores internacionais bem como às
reformas direcionadas a apoiar a ênfase em pesquisa (Cloete et al.,
2015, p. 261).
14 Em uma análise após a conclusão do projeto, Cloete e Schalkwyk
(2018) apontam cinco grandes lições aprendidas com o projeto. Em
primeiro lugar, a não existência de uma visão clara do papel a ser
desempenhado pela universidade, em especial a sua importância
para o desenvolvimento, era mais uma figura de retórica do que
propriamente um reconhecimento de fato. Em segundo lugar, os
governos deram pouco apoio para concretizar as transformações
necessárias nas universidades e a maioria delas permaneceu como
instituições de ensino de graduação. A terceira lição foi que apesar
dos esforços para transformar a coleta e análise de dados e,
consequentemente, direcionar a administração universitária com o
suporte da evidência estatística, os resultados ficaram muito aquém
do esperado. A práxis dos doadores internacionais, mais voltada a
financiar uma agenda própria de projetos do que aqueles necessários
à estratégia de transformação das universidades, foi a quarta lição
obtida. Finalmente, o descolamento entre as universidades e os
objetivos do desenvolvimento em decorrência de um consenso
nacional sobre as suas missões, que é ao mesmo tempo uma lição e
um desafio.
The challenge for higher education systems is to develop universities that will be
strong and dynamic enough to withstand the tensions inherent in their
contradictory functions, while at the same time being able to respond to what
they see as their specific mission at any given moment in the history of the
system. (Cloete & Schalkwyk, 2018)
15 A expectativa de transformar as universidades africanas tornando-as
mais direcionadas à pesquisa e à produção de conhecimento também
orientou a criação da African Research Universities Alliance (ARUA).
Trata-se da construção de uma rede de 16 universidades 6 tendo
como objetivo comum ampliar a quantidade e qualidade das
pesquisas feitas em África por pesquisadores africanos. Para isso
propõem-se a colaborar e trabalhar em parcerias objetivando
aumentar a massa crítica de produção de conhecimento. A agenda
estratégica para isso baseia-se em quatro pontos: colaboração em
pesquisa, treinamento e apoio para doutoramento, capacity building
para gerenciamento de pesquisa e o que denominam research
advocacy. Este último é uma analogia do advocacy planning (Davidoff,
1965), estratégia que organizações mais frágeis, convivendo em um
ambiente política e financeiramente mais poderoso, utilizam para
negociar seus objetivos. Neste caso trata-se de manter uma
estratégia de permanente valorização da pesquisa e dos
pesquisadores para a produção de conhecimentos necessários ao
desenvolvimento.
16 Por outro lado, no que se refere à colaboração em pesquisa,
estabeleceram dois grandes temas de pesquisa: mudança climática e
pobreza e desigualdade. O primeiro subdividido em cinco: segurança
alimentar, energia, abastecimento de água, desenvolvimento de
materiais e nanotecnologia, doenças crônicas. O segundo, por sua
vez, subdividido em seis: desemprego e desenvolvimento de
habilidades, noções de identidade, boa governança, urbanização e
habitabilidade, migração e mobilidade, sociedades pós-conflito
(ARUA, n.d.).
17 A rede pretende ajudar-se mutuamente para incrementar a
quantidade e qualidade de pesquisas. Para isso conta com seis
universidades do país com o melhor ensino superior na região, a
África do Sul. Por outro lado, são quase 7 todas universidades do
universo anglófono da África subsaariana e, consequentemente, os
vínculos e a busca de recursos externos estão orientados,
principalmente, à Inglaterra e aos Estados Unidos da América.
18 Se por um lado há sinais de importantes avanços no universo
académico africano, o esforço para ampliar o papel de universidades
voltadas à pesquisa e produção do conhecimento é um deles, por
outro, permanecem uma série de restrições que se manifestam no
dia a dia daqueles encarregados de conduzirem essas
transformações. A instabilidade, a sobrecarga de tarefas didáticas e
de pesquisa, a dependência do financiamento externo, a
inexperiência e o número reduzido de mentores académicos, os
entraves burocráticos administrativos por que passam os jovens
acadêmicos não são problemas menores (Beaudry et al., 2018). Por
sua vez, o equacionamento e superação desses entraves é algo que
cabe fundamentalmente às próprias universidades.
19 O quadro geral dos desafios e problemas enfrentados pelo ensino
superior em África não difere substancialmente daquele encontrado
em outras partes do mundo em desenvolvimento. O problema, no
entanto, é a magnitude e a urgência que eles colocam para o
atendimento das necessidades de desenvolvimento do continente. O
enfrentamento concreto desses problemas certamente terá que ser
condicionado pelas especificidades de cada país. Porém, mais que
isso, dentro de cada país terá que ser otimizado para as regiões em
que essas instituições estiverem localizadas.

O quadro geral nos PALOP

20 Como já foi dito, o panorama do ensino superior nos PALOP


enquadra-se na situação geral da África, porém com maiores
dificuldades e com indicadores abaixo da média do continente. O
caso de Cabo Verde é a exceção pois os principais indicadores estão
muito acima da média da África subsaariana. Vide tabelas 1 e 2.
21 Entre 2003 e 2018, a taxa bruta de matrícula no ensino superior em
Cabo Verde passou de 4,7% para 24%, índice muito acima da África
subsaariana e dos PALOP. Também foi o país com maior índice de
paridade de gênero no ensino superior (IPA) 8 . Aliás, já em 2003, a
taxa era superior a 1 e no final do período estava em 1,45, indicando
que no ensino superior havia mais mulheres que rapazes. Da mesma
forma, a participação dos gastos com ensino superior no PIB sempre
foi superior à dos outros PALOP e da própria África subsaariana.
Apenas em 2013 foi ultrapassado por Moçambique nesse item. A
primeira universidade, Uni-Piaget, foi criada em 2001. Atualmente
existem nove universidades, sendo apenas uma pública, a
Universidade de Cabo Verde, criada em 2008 (Teixeira & Videira,
2015). No entanto essa única universidade pública encontra-se
distante de onde está concentrada a população (Rego, Lucas, Ramos,
Carvalho, & Baltazar, 2015).
22 Nos dois países mais populosos, Moçambique e Angola, os
indicadores são tradicionalmente baixos, porém nos últimos anos
vêm apresentando sinais de significativas melhoras. Os dados mais
recentes que permitem comparação são os do Banco Mundial na
tabela 2. Note-se os baixos níveis das taxas brutas de matrícula e dos
índices de paridade de gênero. Entre 2003 e 2016 a população em
idade de cursar a universidade cresceu cerca de 3% ao ano em ambos
os países, porém o crescimento do número de universitários superou
em muito essa taxa em ambos, especialmente em Moçambique,
19,92%, enquanto em Angola foi de 13,54% (Vide tabela 3). Apesar
dessa grande expansão as taxas brutas de matrícula no superior e os
índices de paridade de gênero permanecem baixos em ambos os
países. Atualmente em Moçambique existem 23 IES, das quais 11
públicas (República de Moçambique, Ministério da Educação, 2014) e
em Angola 73, das quais 28 públicas (Governo da República de
Angola, 2015).
Tabela 3
Taxa média de crescimento 2003-2016 (*)

  TBE PE.TER
Cabo Verde 14,32% 1,53%

Angola 13,54% 3,95%

Moçambique 19,92% 3,14%

(*) Período variável de acordo com a disponibilidade de dados; TBE = Total de alunos matriculados no ensino
superior; PE.TER = População na idade oficial para o ensino superior.

Fonte: Cálculo do autor a partir da tabela 2

23 O caso particular da Guiné-Bissau parece ser ainda mais grave. O país


tem cerca de 1,5 milhão de habitantes e é um dos mais pobres do
mundo. Além disso tem sido vítima de constante instabilidade
política. Há uma ausência muito grande de informações sobre o seu
sistema educacional, particularmente sobre o ensino terciário 9 . A
primeira universidade do país, Colinas de Boé (Langa, 2013, p. 52), foi
criada em 2003 por um grupo de empresários e intelectuais, apoiados
pelo programa InfoDev (Agyeman, 2007) do Banco Mundial,
objetivando essencialmente a formação de quadros para a
administração do país. Em 2004 10 foi criada a Universidade Amílcar
Cabral, como universidade pública, porém em parceria com a
Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia (ULHT) de
Lisboa. Em 2008 essa parceria foi desfeita, a universidade desativada
e cursos e alunos foram transferidos para a então criada
Universidade Lusófona da Guiné-Bissau (Sucuma, 2016). A
Universidade Amílcar Cabral, após essa desativação, voltou a
funcionar em 2014, mantendo-se como a única universidade pública
do país. Em 2019 existiam cinco universidades, apenas uma pública,
em funcionamento no país 11 . No entanto a instabilidade política e a
ausência de regulamentação eficaz levaram a um ensino com
qualificação muito baixa (Langa, 2013, pp. 55-56).
24 De uma maneira geral, os objetivos para o ensino superior
perseguidos pelos governos dos PALOP não diferem
significativamente de objetivos universais presentes na maioria dos
discursos dos dirigentes em todo o mundo. São eles, formar capital
humano qualificado; contribuição para o desenvolvimento;
integração com a comunidade; formação da cidadania; etc. (Rego et
al., 2015, p. 31). Em quase todos esses países, além da restrição de
recursos, e aparente falta de efetiva priorização, as IES enfrentam
grandes desafios como: fortalecimento institucional através de um
quadro legal para o ensino superior; garantia da qualidade da
aprendizagem; equidade social e de gênero; promoção de gestão
democrática e transparente. Produzir papers para journals
internacionais de primeira linha não parece estar entre as
prioridades.

Qual é a universidade necessária para um


PALOP?
25 Como se viu na seção anterior, a expectativa geral sobre os
graduandos do ensino superior nos PALOP é que atendam às
necessidades da economia e da sociedade. Essa expectativa, no
entanto, é cada vez mais universalmente generalizada. Porém, será
que os alunos oriundos das mais prestigiadas universidades do
mundo conseguem atendê-las? A julgar pelos resultados de uma
vasta literatura, a resposta é não 12 . Se isso é verdade, não estará
sendo colocada uma carga muito grande sobre os ombros da
juventude africana?
26 Inicialmente é importante ter-se em conta que mesmo para um país
que seja considerado um dos mais pobres do mundo, que ainda tenha
grandes desafios para superar o analfabetismo e implantar o ensino
básico, investir em universidades e em pesquisa não é um luxo. Pelo
contrário, esses investimentos são fundamentais para a superação
desses desafios básicos. Ainda que se tenha um país vivendo
essencialmente da exploração da castanha de caju e da pesca, as
inovações necessárias para o setor e outras necessidades sociais tais
como a luta contra a pobreza, as catástrofes naturais, etc., terão que
vir daqueles que detenham maior conhecimento (Bloom et al., 2014;
Salmi, 2003).
27 Por outro lado, que conhecimento é esse e como deve ser
transmitido? Em todas as áreas a quantidade de conhecimentos
disponíveis cresce a um ritmo alucinante, só comparável à rapidez
com que muitos deles ficam obsoletos. O cenário para a universidade
do futuro prevê diplomas com validade de apenas cinco anos e
currículos de curso sendo reformulados a cada três anos (Salmi,
2003). Em um cenário como esse em que, no mundo inteiro, as
universidades estão fazendo grandes esforços para se readaptar à
nova situação é difícil encontrar um modelo a ser seguido. O modelo
de universidade em que um país dos PALOP poderá se espelhar
certamente não será o de Harvard, Oxford, Cambridge ou a
Universidade de Paris. Mesmo porque até essas universidades estão
se reestruturando e não são as mesmas do passado. O modelo a ser
seguido em África é uma questão em aberto.
28 No entanto, considerando que os profissionais oriundos de uma
universidade africana deverão continuar sendo em número menor
do que o necessário e que, além de tudo, as suas opções de curso
serão restritas em função das dificuldades dos países, eles terão que
se desdobrar em suas atividades quando saírem da universidade.
Certamente serão obrigados a realizar tarefas para as quais não
foram preparados. Assim sendo, um médico certamente terá que
discutir questões como seca e praga em culturas de cacau, algodão
e/ou café. Um engenheiro provavelmente terá que discutir questões
relativas à saúde pública e redução da pobreza. Um economista
deverá ter que enfrentar questões esdrúxulas como, por exemplo,
consertar o gerador de energia da comunidade ainda que não tenha
tido formação específica para isso. Como essas pessoas
desenvolverão conhecimentos para atender essas questões se nem
mesmo nas suas especialidades elas dominarão todo o campo de
conhecimento?
29 Não há ensino universitário que dê conta de tudo isso e muito menos
o dos PALOP será capaz de fazê-lo. A única chance para esses
profissionais cumprirem o que se espera deles é que mais do que
conhecimentos básicos em suas especialidades, aprendam a resolver
problemas.
30 Assim sendo, já se tem uma pista sobre a universidade necessária
para um PALOP: ela deverá formar pessoas capazes de resolver
problemas concretos. Quaisquer problemas concretos que venham a
enfrentar ao longo da vida. No entanto isto ainda não esclarece por
que Harvard ou Cambridge não podem ser as referências para um
país pertencente aos PALOP. Afinal elas não poderiam ser referências
universais?
31 Existem vários tipos de universidades. Algumas estão mais voltadas
para o mundo acadêmico, outras mais voltadas para o atendimento
das questões imediatas da sociedade, existem aquelas mais
direcionadas às atividades de ensino e aquelas mais voltadas às
atividades de pesquisa (Wedgwood, 2006). Na realidade qualquer
universidade é uma combinação linear dessas quatro características.
32 A expectativa que, provavelmente, o governo de um país dos PALOP
tem para a sua universidade é que ela seja mais voltada às demandas
imediatas da sociedade e tenha uma grande ênfase nas atividades de
ensino, bem como produza conhecimentos através de pesquisa
aplicada. Sendo assim, provavelmente, o espelho a se mirar serão
outras universidades não tão conhecidas, porém mais adequadas a
serem tomadas como exemplo. São, entre outras, universidades
como Aalborg, na Dinamarca, Twente na Holanda, Turku na
Finlândia ou Rovira i Virgili, na Espanha. Essas universidades têm em
comum o fato de serem relativamente pequenas, estar em estreito
contato com as necessidades das suas comunidades, em especial com
as demandas do setor produtivo, e praticar metodologias de ensino
direcionadas à solução de problemas incentivando a criatividade e o
empreendedorismo entre seus alunos, além de pautar sua agenda de
pesquisa pelos problemas concretos da comunidade.
33 Uma das características importantes dessas universidades é a
utilização de metodologias de ensino baseadas na solução de
problemas. Essas metodologias, conhecidas como Aprendizagem
Baseada em Problemas (PBL) 13 consistem, na realidade, na
utilização de problemas para iniciar, direcionar e motivar a
aprendizagem de conceitos, teorias e desenvolvimento de
habilidades e atitudes no contexto da sala de aula (Ribeiro, 2008).
Figura 1: Princípios de PBL – Universidade de Aalborg

Fonte: Kjaersdam & Enemark (1994)


34 O método consiste basicamente na estruturação de um
curso/disciplina a partir de um problema (ou projeto) concreto, por
exemplo, a elaboração de uma estratégia de desenvolvimento para a
região de Gabu, na Guiné-Bissau, ou em Nampula, Moçambique. A
partir desse problema, os trabalhos são organizados de forma a
buscar a sua solução; isso direciona a literatura a ser pesquisada, as
aulas e os trabalhos em grupo. Por outro lado, as soluções são
buscadas nos manuais sobre o tema, nas pesquisas de campo
necessárias e nos experimentos necessários. Uma vez encontrada a
solução, a etapa que se sucede é a da elaboração de um relatório
pelos grupos de estudantes e o registro do conhecimento adquirido
(Kolmos et al., 2004). A figura 1 ilustra o que foi dito.
35 A sua implementação implica em uma grande reformulação em
relação às metodologias tradicionais de ensino, no entanto os
resultados são muito positivos e tem sido apontada como a
metodologia que mais indivíduos empreendedores consegue formar.
Esse empreendedorismo não depende de os alunos terem tomado
cursos específicos sobre essa matéria, mas sim do maior potencial
criativo e inovador que adquirem ao longo da formação.
36 Não há espaço nas dimensões deste texto para aprofundamento do
assunto, no entanto a figura 2 ilustra as principais diferenças de
atitudes de professores e alunos quando consideradas metodologias
tradicionais de ensino e a metodologia PBL. Para as situações
concretas de uma universidade nova como as de um PALOP essa
metodologia parece ser a mais promissora. A sua implementação
também é assunto de uma vasta literatura e tende a ser mais fácil em
universidades novas ainda não sequestradas por tradições e ritos
acadêmicos imobilizadores. O leitor interessado encontrará uma
ótima introdução a esses assuntos em Moesby (2008).
Figura 2: Principais diferenças entre os papéis dos alunos e docentes na sala de aula
convencional e no PBL

Metodologia Convencional Metodologia PBL

Docente assume o papel de Papel do docente é de facilitador, orientador, co-


especialista ou autoridade formal. aprendiz, mentor ou consultor profissional.

Docentes trabalham em equipes que incluem outros


Docentes trabalham isoladamente.
membros da escola.

Docentes transmitem informações Alunos responsabilizam-se pela aprendizagem e


aos alunos. criam parcerias entre colegas e professores.

Docentes concebem cursos baseados em problemas


com fraca estruturação, delegam autoridade com
responsabilidade aos alunos e selecionam conceitos
Docentes organizam os conteúdos
que facilitam a transferência de conhecimentos
na forma de palestras, com base no
pelos alunos.
contexto da disciplina.
Docentes aumentam a motivação dos alunos pela
colocação de problemas do mundo real e pela
compreensão das dificuldades dos alunos.

Estrutura escolar é flexível e oferece apoio aos


docentes.
Docentes trabalham
individualmente nas disciplinas. Docentes são encorajados a mudar o panorama
institucional e avaliativo mediante novos
instrumentos de avaliação e revisão por pares.

Docentes valorizam os conhecimentos prévios dos


Alunos são vistos como tábula rasa
alunos, buscam encorajar a iniciativa dos alunos e
ou receptores passivos de
delegam autoridade com responsabilidade aos
informação.
alunos.

Alunos interagem com o corpo docente de modo a


Alunos trabalham isoladamente. fornecer feedback imediato sobre o curso, com a
finalidade de melhorá-lo continuamente.

Alunos absorvem, transcrevem, Docentes concebem cursos baseados em problemas


memorizam e repetem informações com fraca estruturação que preveem um papel para
para realizar tarefas de conteúdo o aluno na aprendizagem.
específico, tais como questionários
e exames.

Aprendizagem é individualista e Aprendizagem ocorre em um ambiente de apoio e


competitiva. colaboração.

Docentes desencorajam a “resposta correta” única e


Alunos buscam a “resposta correta” ajudam os alunos a delinearem questões,
para obter sucesso em uma prova. equacionarem problemas, explorarem alternativas e
tomarem decisões eficazes.

Alunos identificam, analisam e resolvem problemas


Desempenho avaliado com relação
utilizando conhecimentos de cursos e experiências
a tarefas de conteúdo específico.
anteriores, em vez de simplesmente relembrá-los.

Avaliação de desempenho escolar é


Alunos avaliam suas próprias contribuições, além de
somativa, e o instrutor é o único
outros membros e do grupo com um todo.
avaliador.

Alunos trabalham em grupos para resolver


problemas.
Alunos adquirem e aplicam conhecimento em
Aula fundamentada em
contextos variados.
comunicação unilateral; informação
é transmitida a um grupo de alunos. Alunos encontram seus próprios recursos e
informações, orientados pelos docentes.
Alunos buscam conhecimentos e habilidades
relevantes à sua futura prática profissional.

Fonte: Extraído de Ribeiro (2008), segundo Samford University (n.d.)

Como estruturar um curso de Economia


Regional e Urbana para um PALOP?
O perfil do profissional a ser formado
37 Grande parte dos estudantes do ensino superior dos PALOP estão
matriculados em cursos de Economia e Gestão e em Direito 14 .
Segundo o Banco Mundial eles representaram entre 30% e 35% das
matrículas ao longo dos últimos anos. No último ano que se tem
registro comparável, eles representavam 37% em Moçambique e 32%
em Cabo Verde. O último registro para Angola (2015) foi 30% (Vide
figura 3). Nas 32 novas IES criadas em Moçambique a partir de 2003,
em 23 delas haviam cursos na área de Economia e Gestão e em
Direito, sendo essa a área preferencial das IES privadas (Langa, 2013,
pp. 76-77). Os dados mais recentes de Moçambique mostram que em
2017, 43% dos alunos matriculados, 45% dos graduados e 42% dos
ingressantes do total das IES pertenciam à grande área Ciências
Sociais, Negócios e Direito. Considerando apenas as IES privadas,
esses percentuais chegavam a quase 60% (República de Moçambique
- Ministério de Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Técnico
Profissional, s.d.).
Figura 3: Matrículas em Economia e Gestão e Direito - Angola, Cabo Verde e
Moçambique - 2004-2018

Fonte: World Bank: EdStats-Education Statistics - All Indicators (21/04/2020)


38 Em um país com as características dos PALOP é difícil justificar a
formação de um especialista. Um jovem formado na área de
Economia e Gestão, assim como o formado na área de Direito, deverá
ter os conhecimentos gerais de economia, administração e
contabilidade. Dada a pobreza de recursos humanos do país ele
deverá ser capaz de resolver a maioria dos problemas dessas três
áreas. Ao longo da sua atividade ele terá que ser capaz de receber
uma missão do Fundo Monetário Internacional bem como sugerir
orientações para a orçamentação de uma província e/ou fazer a
contabilidade da cooperativa local de microempresas.
39 Por outro lado, em um país com peculiaridades regionais acentuadas
como são os PALOP, esse jovem profissional também deverá estar
atento às implicações dessas peculiaridades. Dessa forma, a temática
tratada em Economia Regional e Urbana deveria ser obrigatória para
todos os estudantes de Economia e Gestão. Compreender os
determinantes das disparidades regionais lhes será tão importante
como entender a dinâmica macroeconômica.

As questões centrais da disciplina Economia Regional e


Urbana

40 Tendo em conta que não é possível saber tudo e/ou ver tudo em um
curso de graduação, qual deverá ser o conteúdo desse curso? Tome-
se como exemplo a disciplina Macroeconomia. O jovem profissional
deve saber a essência do funcionamento de uma economia de
mercado e as relações entre o lado real e o lado monetário da
economia. Deverá conhecer os vínculos entre gastos públicos e
inflação, câmbio e juros. Para isso, evidentemente, deverá conhecer
muito bem os procedimentos da contabilidade macroeconômica.
Esses são os conhecimentos básicos para que ele possa participar de
uma conversa sobre a macroeconomia do seu país. Seria importante
que ele conhecesse os debates macroeconômicos conhecidos como a
Controvérsia de Cambridge? Certamente sim, no entanto, esse
conhecimento teria pouca utilidade para as questões objetivas com
as quais ele lidaria no seu cotidiano.
41 De maneira análoga, o mesmo problema existe com as disciplinas de
Economia Regional e Urbana. Que conteúdo elas deveriam ter em um
contexto como o de um PALOP? A resposta a essa questão não é fácil,
no entanto é possível fazer um esboço do que poderia ser uma
disciplina de Economia Regional e Urbana com 60 horas-aula.
42 Na análise regional as grandes questões partem dos conceitos de:
espaço econômico e de sua subdivisão, a região econômica;
crescimento, desenvolvimento e integração regional;
como a região funciona internamente e como se insere no resto do mundo (os diversos
espaços econômicos).

43 Uma das grandes mensagens desses conceitos é que os espaços


econômicos não seguem necessariamente as divisões político-
administrativas. Além disso, a constituição desses espaços é um
fenômeno complexo em que além das questões de ordem natural
(solo, relevo, clima, etc.) também estão presentes questões de ordem
social (etnia, religião, mercados, etc.) e político-administrativas
(governo, moeda, leis, regulamentos, etc.) e que, por isso mesmo,
eles modificam-se ao longo do tempo.
44 A subdivisão do espaço econômico constituindo as regiões
econômicas acaba tornando-se um problema mais complexo ainda. A
perspectiva que parece ser mais promissora é trabalhar um conceito
de região em que ela passe a ser vista como a resultante de um
processo de construção onde uma determinada sociedade,
interagindo com o meio natural, constrói um particular subsistema
social. Somente aqueles espaços geográficos que consigam também
ser espaços sociais poderão ser considerados regiões. Nesse processo
de construção da região (Boisier, 1992), certos elementos vão sendo
estabelecidos formando um microcosmo, que a diferencia dos demais
territórios e também do nível agregado nacional, onde regras
comuns de relacionamento passam a ser aceitas, estabelecem-se
instituições diferenciadoras, sob as quais são constituídas as
organizações locais.
45 Região nesse sentido passa a constituir-se numa
matriz de grupos sociais cujo nexo de articulação seja dado pela consciência
coletiva de pertencer a um território comum que, formando parte de um
território nacional, possui suficientes especificações (recursos, cultura,
paisagem, etnia, etc.) para diferenciar-se em tudo, e cujos interesses fracionais
ou de classe estejam subordinados estruturalmente a um interesse coletivo
regional, expresso em reais projetos políticos, tanto de caráter permanente como
transitório. (Boisier, 1989, p. 595)
46 Por outro lado, os conceitos de crescimento, desenvolvimento e
integração regional tem como mensagem que o crescimento e o
desenvolvimento de uma região estarão sempre ligados às respostas
que a região apresenta em decorrência da atuação de forças externas
a ela. Essas forças podem ser a demanda sobre um produto da região,
a possibilidade de produzir um novo produto para atender a uma
demanda externa, a implantação de uma grande obra na região a
partir de investimentos externos à região (públicos ou privados), etc.
O crescimento e o desenvolvimento de uma região estarão sempre
ligados ao momento em que ela consegue, de alguma forma,
integrar-se a espaços econômicos maiores do que ela.
47 A argumentação acima não é contraditória com as correntes do
chamado “desenvolvimento autóctone” ou “desenvolvimento de
baixo para cima”. Os autores dessa corrente privilegiam o papel das
forças locais no desenvolvimento regional. No entanto eles não
negam que os grandes impulsos vêm de fora da região, cabendo a ela
arregimentar e aprimorar os seus recursos internos para melhor
aproveitar esses momentos. A possibilidade de uma região crescer
independente dos estímulos externos é quase tão irreal como a
possibilidade de alguém voar puxando os próprios cabelos.
48 Esses conceitos permitem a análise de duas questões essenciais para
a análise regional: como a região funciona internamente e como ela
se relaciona com o resto do mundo. Assim sendo, um estudante
guineense, por exemplo, deveria conhecer como funciona a
economia de Gabu 15 . O que ela produz (castanha de caju), como ela
produz, para quem vende, como é feita a comercialização interna,
que tipo de pessoa está envolvida na produção (como empresário e
como trabalhador), as condições naturais favoráveis/desfavoráveis à
produção, as instituições de apoio, etc. Por outro lado, entender
como, através dessa produção, Gabu relaciona-se com o resto do
mundo. Para obter essa resposta, o estudante deverá conhecer quem
demanda esse produto, os concorrentes internacionais, os canais de
comercialização, o financiamento da comercialização, etc.
49 Esses são os conceitos essenciais que um aluno de Economia Regional
e Urbana deve dominar. No entanto para que isso seja possível há a
necessidade de alguns conhecimentos complementares e o curso
poderá ser estruturado em blocos temáticos, como será visto a
seguir.

16
Os blocos temáticos

50 Para enfrentar as questões concretas do desenvolvimento regional,


um economista deveria receber uma formação que contemplasse
cinco grandes conjuntos de questões. Um conjunto onde estão
agrupadas as questões relativas à base teórica; um outro com os
instrumentos quantitativos; outro relativo aos parâmetros
institucionais; e outro denominado, ad hoc, a capacidade de
organização social da região. O quinto conjunto é o das estratégias e
análises concretas. Como se verá, essa distinção é meramente
didática; evidentemente, os elementos que compõem esses conjuntos
são interligados (Vide figura 4).
51 O conjunto teórico engloba, além das questões relativas ao
“rastreamento” dentro da teoria econômica, aquelas relativas aos
conceitos básicos da análise regional, como espaço econômico e
região; crescimento/desenvolvimento regional; teoria da localização;
urbanização; reestruturação produtiva; mundialização.
52 O conceito básico da análise regional – espaço e região – é uma
discussão sempre difícil, à qual os economistas menos atentos ao
rigor da profissão procuram fugir. Ela é equivalente à discussão de
preço e valor. De fato, é possível reduzir o conceito de região a uma
parte de um todo e analisá-la como se fosse um pequeno país. Se por
um lado essa prática facilita o trabalho, há que se considerar que os
resultados dessas análises são sempre pobres e acabam ocultando
fenômenos essenciais para a compreensão da dinâmica regional. Por
mais trabalhosa que ela seja e mesmo correndo-se o risco de
afugentar alguns alunos com a sua aridez, não há como evitá-la.
Pode-se discutir o momento ou os momentos em que ela será
apresentada, ou ainda o nível de profundidade que ela deverá
merecer, porém, esquecê-la é impossível. No entanto, o enfoque mais
promissor para a sua discussão é o apresentado anteriormente neste
texto.
53 Na parte relativa ao crescimento/desenvolvimento regional, espera-
se que os alunos terminem por conhecer as principais teorias sobre
esse ponto, como a teoria da base de exportações e a macroeconomia
regional, a teoria neoclássica, da polarização, Myrdal e o seu texto
básico de 1957 sobre desigualdades regionais (Myrdal, 1957),
sistemas regionais de inovação, etc. Daqui podem ser derivados
alguns elementos quantitativos como os indicadores de disparidades
e a contabilidade regional e, também, algumas das implicações em
termos de políticas regionais e mecanismos de compensação para as
regiões desfavorecidas.
54 A parte da teoria da localização é das mais difíceis. A localização das
atividades econômicas está relacionada a custos de transporte,
custos do trabalho e a economias de aglomeração. A importância dos
custos de transporte é cada vez menor na explicação da localização
em países desenvolvidos e emergentes. Por esse motivo as
universidades desses países colocam mais ênfase nas economias de
aglomeração como fator explicativo da localização das atividades
econômicas. No entanto esse não é o caso de um país típico dos
PALOP. No contexto desses países os custos de transporte importam
e muito!
55 A questão da urbanização é essencial no curso. O título do curso –
Economia Regional e Urbana – já é um indicativo de que as regiões
são definidas pelas suas cidades e pelas relações existentes entre
elas, ou seja, pela sua rede urbana. Dessa forma a questão urbana
passa a ter uma conotação predominantemente macroeconômica e
indissociável da regional. É nessa perspectiva que o conceito de
economias de aglomeração é importante para os PALOP 17 . Porém,
no contexto dos PALOP, o ponto de partida é o próprio conceito do
que é urbano. Além desse, os principais pontos a serem discutidos
englobam as relações da urbanização com o desenvolvimento
econômico, a ampliação dos mercados, a vinculação com a
localização das atividades terciárias, os sistemas urbanos, as
economias de aglomeração e os processos de metropolização, as
implicações para a localização das atividades econômicas.
56 O segundo conjunto de questões é relativo aos instrumentos
quantitativos utilizados na análise regional. A ordenação a seguir
reflete uma preferência pessoal quanto ao uso desses instrumentos.
Começaria pelos indicadores clássicos, a contabilidade regional,
depois a estatística descritiva e a não-paramétrica, a análise insumo-
produto e finalmente, os modelos econométricos. Os indicadores
clássicos, como quociente de localização, coeficientes de associação
geográfica, de localização, de reestruturação, etc., têm a vantagem
de serem de fácil construção e também de serem amplamente
utilizados na literatura, o que facilita as comparações. Merece uma
atenção especial a análise shift-share. Existem softwares em que uma
vez introduzidos os dados básicos de emprego ou renda das regiões,
todos esses indicadores são calculados. A metodologia básica é a
avaliação do grau de semelhança entre duas distribuições, uma
referindo-se ao universo de comparação, geralmente o país, e outra à
região.
57 A contabilidade regional, por sua vez, é o grande desafio para os
institutos geradores de estatísticas de todo o mundo. A questão
essencial aqui é que existe uma metodologia padrão, recomendada
pelas Nações Unidas, para o cálculo das contas nacionais, mas não
existe nada com desenvolvimento equivalente para o nível regional.
Uma das principais dificuldades está na separação entre o que é
produzido e o que é apropriado na região. Assim sendo, o
conhecimento detalhado da metodologia utilizada para esse cálculo é
essencial para as interpretações dos dados. Embora isso seja
verdadeiro para qualquer conjunto estatístico, no caso das contas
regionais é crucial.
58 Muitas vezes, no entanto, a simples utilização de medidas da
estatística descritiva, como média e variância, permitem uma
primeira aproximação do quadro a ser analisado. Por outro lado, a
estatística não-paramétrica oferece um arsenal de medidas e testes,
estranhamente desprezados pelos economistas, que permitem, com
um número reduzido de informações, a realização de trabalhos
impossíveis com os métodos paramétricos. A análise de séries de
tempo reduzidas é um deles. Por sua vez existe uma vasta literatura
sobre a utilização das matrizes de insumo-produto na análise
regional. Realmente os resultados obtidos podem ser muito ricos,
desde que os parâmetros das matrizes regionais sejam confiáveis.
Acontece que na grande maioria dos países, e o Brasil é um deles, os
sistemas de informações estatísticas não permitem a construção de
matrizes regionais precisas. Uma vez obtida uma matriz de insumo-
produto é possível a construção de modelos de equilíbrio geral
computável. Eles encontram-se na fronteira do conhecimento. No
entanto, para um país como um PALOP eles, concretamente, seriam
utilizados por um grupo muito restrito.
59 Não há dúvida que os modelos econométricos podem ser poderosos
instrumentos para a interpretação regional. No entanto eles são cada
vez mais sofisticados para as realidades paupérrimas em
informações que prevalecem na maioria das análises concretas. Por
exemplo, os modelos que envolvem séries de tempo utilizam
atualmente técnicas que demandam no mínimo 40 ou 50
observações. Ao nível regional são raras as séries que atendem esse
requisito. Mesmo quando são utilizados os modelos de dados em
painel, as restrições permanecem. A inconsistência dos dados, as
hipóteses heroicas que eles necessitam e os resultados muitas vezes
banais a que eles chegam, desencorajam a sua utilização.
60 De qualquer forma é importante o conhecimento desses recursos, a
questão novamente trata-se da escolha do nível de detalhamento em
que eles serão utilizados. Talvez a questão importante aqui seja
desenvolver no economista regional uma sensibilidade crítica para a
escolha do instrumental quantitativo disponível. Isso sem falar no
fato de que cada vez mais a complementação qualitativa das
informações é importante. O desenvolvimento desta sensibilidade
talvez seja a tarefa mais importante do curso uma vez que muito
provavelmente os alunos terão que eles mesmos gerar seus dados
através de pesquisas de campo.
61 O conjunto dos parâmetros institucionais, na realidade vai tratar
fundamentalmente das regras de funcionamento das instituições
dentro das quais se desenrola o processo regional. É o que se pode
chamar do estudo das regras do jogo. A temática central é o Estado. A
sua natureza, o nível de intervenção, a sua eficiência. A sua
organização nos diversos níveis territoriais, as instituições e suas
delimitações no território, os fluxos financeiros entre os diversos
níveis de governo, o grau de liberdade e autonomia das diferentes
unidades administrativas, etc. Apesar das periódicas retomadas dos
argumentos antiestatais, dificilmente se encontrará estratégias
factíveis de desenvolvimento regional onde o Estado e em particular
o Estado nacional não desempenhe papel importante.
62 O conjunto da capacidade de organização social da região é aquele
em que os economistas mais necessitam buscar auxílio nas outras
ciências sociais. Os elementos estudados aqui são cada vez mais
importantes para explicar por que muitas vezes uma região dotada
de grandes trunfos econômicos é superada por outra aparentemente
menos qualificada. Servem também para apontar os elementos
necessários para aumentar o grau de eficácia e eficiência das
estratégias regionais. A literatura sobre essas questões começa a se
avolumar. Um dos trabalhos que melhor sintetiza esse quadro é o de
Boisier (1989). Segundo ele, essa capacidade vai depender de fatores
como a qualidade e identificação com a região da classe política
local, a qualidade da tecnocracia local, o tipo de empresários que a
região possui, os canais de participação dos demais segmentos
sociais.
63 Questões como regionalismo, identidade territorial, etc., começam
também a tomar corpo na literatura, muitas vezes mescladas com
questões da reestruturação produtiva e da mundialização. Embora
ainda não estejam bem estruturadas, apontam para um campo
promissor onde a maior aproximação com as demais ciências sociais
será importante.
64 Esses conjuntos evidentemente são entrelaçados. Todos eles levam
ao quinto conjunto, que será denominado Estratégias de
Desenvolvimento Regional e Análises de Casos Concretos. Uma ideia
possível é analisar, a partir do conhecimento oriundo dos demais
conjuntos, algumas experiências concretas de estratégias, bem ou
malsucedidas, procurando ver quais os fatores que estiveram
presentes.
65 Porém o mais revolucionário, e que provavelmente formaria
melhores profissionais para o enfrentamento dos problemas de um
PALOP, seria centrar o curso nesse bloco e utilizar os demais para
trazer o conhecimento necessário para ele. Dito de outra forma,
centrar o curso, por exemplo, na solução de um problema concreto:
montar uma estratégia de desenvolvimento para a região de Gabu,
na Guiné-Bissau ou em Huambo, Angola. A partir desse problema ir
buscar nos demais blocos os elementos necessários para o
encaminhamento da sua solução. Esta metodologia é a que foi
referida na seção anterior como PBL.
Figura 4: Blocos temáticos
Considerações finais
66 Ao longo deste texto foram discutidas questões sobre a universidade
necessária aos PALOP, tendo como exemplo a estruturação possível
de uma disciplina de Economia Regional e Urbana.
67 Foi mostrado que o ensino superior em África ainda atinge um
número muito restrito da população, particularmente nos PALOP.
Além disso, foi visto que a recente expansão das universidades, em
grande parte devido ao ensino privado, trouxe também uma queda
na qualidade de ensino.
68 De uma maneira geral os governantes reagem negativamente a essa
situação e em vários dos PALOP estão em andamento estratégias
para o desenvolvimento do ensino superior que atribuem às
universidades o papel de contribuir com as necessidades da
economia e da comunidade. De fato, cada vez mais esse é o papel que
é cobrado das universidades em todo o mundo. Para um país dos
PALOP ele é ainda mais importante dadas as suas grandes carências
de recursos financeiros e humanos. Cada centavo alocado ao ensino
superior terá que ser muito bem aproveitado. Além disso será
impossível enfrentar o desafio da redução da pobreza e da
estruturação para o desenvolvimento de um país sem profissionais
com conhecimento universitário.
69 Por outro lado, tendo-se em conta que mesmo que as metas
quantitativas previstas nos planos sejam atendidas, o número desses
profissionais ainda será reduzido e eles estarão expostos a situações
novas para as quais não foram treinados. O grau elevado de
obsolescência dos conhecimentos, que é um problema universal,
torna-se ainda mais grave para um país pobre com profissionais
formados em meio a grandes restrições.
70 Assim sendo, o essencial para esses profissionais – que serão os
construtores do futuro do país – será a aquisição de uma grande
capacidade de lidar com problemas novos através de metodologias
de ensino que privilegiem esse enfoque, como é o caso da PBL
(Problem Based Learning).
71 O grande desafio para os PALOP é descobrir em quais espelhos mirar
para construir, com as grandes restrições de recursos que os
caracterizam, essa universidade que consiga desempenhar as
funções necessárias para o seu desenvolvimento. Relembrando Darcy
Ribeiro:
Tais funções, como foi dito, são herdar e cultivar, fielmente, os padrões
internacionais da ciência e da pesquisa, apropriando-se do patrimônio do saber
humano; capacitar-se para aplicar tal saber ao conhecimento da sociedade
nacional e à superação de seus problemas; crescer, conforme um plano, para
formar seus próprios quadros docentes e de pesquisa e para preparar uma força
de trabalho nacional da grandeza e do grau de qualificação indispensável ao
progresso autônomo do país; atuar como o motor da transformação que permita
à sociedade nacional integrar-se à civilização emergente. (Ribeiro, 1969, pp. 171-
172)
72 Esse debate, em que este texto é uma modesta contribuição, continua
em aberto.
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role-regional-centers-excellence

NOTAS
1. Este artigo está escrito na variante brasileira da língua portuguesa
e segue o Acordo Ortográfico em vigor. Versões deste texto foram
apresentadas em seminários realizados em Lisboa e Marraquexe. O
autor agradece as sugestões de dois pareceristas anônimos da
revista.
2. Ao longo do texto os termos “instituição de ensino superior” e
“universidade” serão usados como sinônimos.
3. Parte desta seção foi tratada em Rolim e Serra (2010).
4. As pesquisas junto aos empregadores dizem que os formandos são
fracos na solução de problemas, visão empresarial, uso de
informática, trabalho em equipe e comunicação (World Bank, 2009,
p. 44).
5. Botswana, BW; Cape Town, ZA; Dar-es-Salam, TZ; Eduardo
Mondlane, MZ; Ghana, GH; Mauritius, MU; Makerere, UG; Nairobi,
KE.
6. University of: Lagos, NG; Ibadan, NG; Obafemi Awolowo University
lle-Ife, NG; Ghana, GH; Dar es Salaam, TZ; Nairobi, KE; Cape Town, ZA;
Witwatersrand, ZA; Rwanda, RW; Cheikh Anta Diop, SN; Makerere,
UG; Stellenbosch, ZA; Pretoria, ZA; Rhodes University, ZA; Kwa-Zulu
Natal, ZA; Addis Ababa, ET.
7. A Universidade Cheikh Anta Diop, no Senegal, é a única
francófona.
8. Nº de mulheres/nº de homens matriculados no ensino superior.
9. Um histórico das tentativas de estabelecer ensino superior no país
pode ser visto em Langa (2013, pp. 45-60).
10. Na realidade foi criada em 1999 mas só abriu as portas em 2004.
11. Não foi possível encontrar um documento oficial com essa
relação, no entanto há uma confirmação indireta da sua existência
através de eventos registrados no site do Instituto Camões (Instituto
Camões, 2019) e no da Plataforma 9 (Plataforma9, 2019). Além dessas,
também se intitula universidade o BIMANTECS ( Bissau International
Management and Technology School ).
12. A literatura é vasta. Uma introdução pode ser vista em Goddard e
Vallance (2013) e Lundvall (2008).
13. A sigla em inglês PBL ( Problem Based Learning ) será utilizada ao
longo do texto por ser a mais utilizada na literatura.
14. Business and Law .
15. Gabu é a segunda cidade da Guiné-Bissau, próximo de 40 mil
habitantes, e capital da província do mesmo nome que abriga cerca
de 200 mil habitantes. Está cerca de 260 km a leste da capital do país,
Bissau.
16. Esta parte do texto segue de perto Rolim (1998).
17. O texto de Myrdal (1957) é básico para o aprofundamento desse
ponto.

RESUMOS
Este trabalho irá discutir algumas questões relativas ao que seria uma “universidade
necessária” para um país dos PALOP, tomando como exemplo o que poderia ser uma
disciplina de Economia Regional e Urbana ministrada em um curso de Economia. O trabalho
está focado na quase impossibilidade, e na discutível utilidade para o país, em formar
pessoas com o mesmo perfil de um acadêmico saído das universidades ditas de padrão
internacional. O primeiro problema a ser discutido será a definição do perfil esperado para
esses formandos; em segundo lugar será o que deverá ser oferecido a eles dentro do amplo
leque de conhecimento acumulado pela ciência regional; finalmente, como isso será
ensinado, quais as técnicas e metodologias mais adequadas. O texto enfatiza a necessidade
da adoção de metodologias de ensino baseadas na solução de problemas como a PBL
(Problem Based Learning).

This paper will discuss some issues related to what would be the “necessary university” for
a country of the PALOP (Portuguese-speaking African countries) taking as example a
Regional and Urban Economics course taught in an undergraduate programme in
Economics. The main argument is that it is almost impossible and useless for the
universities of these countries to train people with the same profile of an academic out of
the so-called world-class universities. Because of this, the PALOP would look for alternative
models. The first issue discussed is the definition of the profile expected for the graduates;
secondly is what should be offered to them among the options from regional science;
finally, what are the most appropriate methodologies and techniques for learning this
subject. The text emphasizes the need for adopting teaching methodologies based on
solution of problems such as the PBL (Problem Based Learning).

ÍNDICE
Palavras-chave: instituições de ensino superior, ensino superior na África, PALOP,
economia regional e urbana, PBL, universidade necessária
Keywords: higher education institutions, higher education in Africa, PALOP, urban and
regional economics, PBL, necessary university

AUTOR
CASSIO ROLIM

Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Econômico


Universidade Federal do Paraná - PPGDE – UFPR
Av. Prof. Lothario Messner 632 – Jardim Botânico
Cep 80210-170 Curitiba - PR Brasil
cassio.rolim@gmail.com
“Em Moçambique... Epa, porra! Os
Filhos dos Dirigentes Tinham uma
Escola!” – Memórias de três
gerações e suas narrativas
1
escolares em África subsariana
“In Mozambique… Damn it! The children of the leaders had a school!” –
Memories of three generations and their school narratives in sub-Saharan
Africa

Xénia de Carvalho

NOTA DO EDITOR
Recebido: 23 de outubro de 2019
Aceite: 01 de julho de 2020
1 Eu sou excessivamente crítico ao nosso regime, à maneira como tratou a
educação, sobretudo para as pessoas da minha idade para cá. Por exemplo, a
primeira crítica que eu tenho é que, e eu tenho que ser crítico porque eu
tinha passado dificuldades … eu quando estudava na [escola secundária],
epa, porra! os filhos dos dirigentes tinham uma escola! … Havia uma escola
dos filhos dos dirigentes [separada das outras] … O nosso regime funcionou
muito numa tentativa de tentar criar uma elite pré-fabricada ao seu jeito,
estás a ver? Quer dizer, que as pessoas que não pertencem aqui [a este
grupo], por muito que eles se esforcem, nunca vão entrar … Na época de
Samora, já existia estas escolas especiais. (Excerto da história de vida de um
participante da 1ª geração/socialismo)
2 Atualmente, e partindo da perspetiva crítica de Henry Giroux,
ancorado em Paulo Freire, a sociologia da educação pretende
questionar o significado do ensino e aprendizagem olhando para o
seu papel na construção da emancipação dos atores sociais (Giroux,
1981, 1997). Cruzando uma abordagem crítica à educação, com base
em metodologias próprias da antropologia (O’Neill, 2009; Geertz,
1973), que privilegiam o contexto e o indivíduo interpretado por si
próprio e em diálogo com o pesquisador, pretendemos contribuir
com uma visão do terreno, trazendo as narrativas de 18
moçambicanos sobre o significado da educação na atualidade. As 18
narrativas descrevem o percurso de três gerações na África
subsariana, resultado da herança colonial portuguesa, do legado
socialista com a independência de Moçambique em 1975, seguido da
instituição do regime democrático em 1990, estando atualmente
integrado na lógica neoliberal, que se enquadra na ideia de
modernidade líquida (Bauman, 2000) que caracteriza o mundo atual.
3 Nesse sentido, as narrativas biográficas escolares das três gerações
de moçambicanos após a independência, passando pelo período do
socialismo até ao neoliberalismo atual, levam-nos a questionar o que
se ensina e como se ensina no espaço da instituição-escola. As vozes
das três gerações recriam a história da escola ao longo de quatro
décadas em Moçambique, dialogando com o período político, a
aprendizagem e as críticas desenvolvidas face ao curriculum escolar,
revelando o curriculum “escondido”, onde se aborda o que não é
declarado publicamente, levando-nos ao entendimento da escola
como um lugar de poder, transmissão de cultura e construção da
realidade (Wilcox, 1982). Este lugar é descrito pelos participantes
como sendo (re)produtor de desigualdades sociais (Bourdieu &
Passeron, 1990; Bernstein, 1967, 1973; Coleman et al ., 1966),
sublinhando Maputo como o lugar por excelência de consolidação de
uma elite socioeconómica fechada e com acesso privilegiado a todos
os níveis de ensino (Mario e t al ., 2003, pp. 30-31).

Descrição do contexto etnográfico


4 Este estudo apresenta a experiência etnográfica desenvolvida em
Maputo entre 2011 e 2013, com recolha de histórias de vida ao longo
de três gerações, enquadradas em três períodos ideológicos e
políticos do Moçambique contemporâneo, simbolizados por cada
presidente do país desde 1975 até à atualidade (Carvalho, 2016):
socialismo simbolizado por Samora Machel (1975-1986), democracia
simbolizada por Joaquim Chissano (1986-2005) e neoliberalismo
simbolizado por Armando Guebuza (2005-presente), tendo em conta
que o último período continua a caracterizar o país, com o atual
presidente, Filipe Nyusi. À medida que as histórias de vida foram
recolhidas, e aquando da análise e enquadramento teórico para
interpretação do material recolhido no terreno, a questão da ligação
entre uma figura pública ou um self público com o qual os
participantes interagem nas suas narrativas para a construção das
suas identidades, ao nível da educação formal e informal, tornou-se
uma das marcas que permitiu organizar as três gerações, cruzando o
campo da biografia e da história .
5 Assim sendo, levou-se em conta que a figura de um self público,
negociado e reapropriado por cada participante geracional, alvo de
crítica constante, representa simbolicamente cada geração (Goffman,
1956). Nesse sentido, os períodos ideológicos e políticos do
Moçambique contemporâneo são simbolicamente representados por
cada líder do país (i.e. Presidente), presente na vida quotidiana das
três gerações de moçambicanos através da performance dramatizada
que caracteriza as interações entre indivíduo e sociedade. Segundo
Goffman (1956), as interações sociais são o resultado de uma
identidade situada por referência a um self determinado e
reconhecido publicamente por todos, sublinhando que este processo
nem sempre é consciente e é alvo de manipulação de forma a situar a
identidade onde mais convém a cada ator social e seu grupo, sendo o
self público manipulado conforme as necessidades identitárias. Langa
(2013, p. 61) argumenta que Moçambique é uma “república
presidencial”, em que o presidente do país é em simultâneo o chefe
de Estado e o dirigente máximo do governo. A identificação de cada
geração com o self público permite uma “segurança psicológica” (
Bloom, 1990, p. 25) ao narrador, que internaliza a mesma identidade,
legitimando a sua narrativa em oposição ou em sintonia com cada
presidente que dominou o período escolar em que se formaram.
Saliente-se que o self público evocado pelos participantes diz respeito
a uma minoria da população moçambicana que completou todo o
ciclo do ensino escolar, representando uma elite geograficamente
localizada no sul do país, e alvo desta investigação.
6 A visão geracional ancorada no self público representado
simbolicamente por cada presidente de Moçambique surgiu nas
narrativas dos participantes, indo ao encontro do que argumenta
Abrams (1982) de que os indivíduos e os tempos sociais se relacionam
num dado período histórico, agregados em torno de um sentimento
de comunidade, em que partilham experiências políticas relevantes
para a construção da sua experiência e identidade. Esta construção é
um processo dinâmico e plástico, circunstancial e em permanente
reconstrução aquando da narração das suas biografias (Hall, 1998,
2000; Bruner, 1996, 2004). Em suma, optou-se por organizar as
narrativas dos 18 participantes em três períodos ideológicos, em que
o regime político se diferencia claramente nos dois primeiros (i.e.,
socialismo e democracia), introduzindo-se também como período
ideológico e de cariz político o neoliberalismo, representado por
Armando Guebuza, reflexo de uma política económica que “produz
consumidores” e não “cidadãos” (Chomsky, 1999). Importa referir
que o sistema democrático é formalmente implementado em 1990
com a revisão da Constituição. Contudo, dada a morte inesperada de
Samora Machel, em outubro de 1986, Chissano sucede na
presidência, abrindo caminho a acordos com o FMI e o Banco
Mundial em 1987. Em 1989, após o V Congresso da Frelimo,
Moçambique substitui o socialismo pela democracia como sistema
político e subsequente sistema económico liberal (Morier-Genoud,
2008). Com a substituição de Chissano por Guebuza, e tendo em conta
o percurso biográfico e profissional de Armando Guebuza, conhecido
pela alcunha de “Gue-Business” (Lloyd, 2008, p. 444), o sistema
económico liberal passa a ser caracterizado abertamente por uma
linha neoliberal que se pauta pela utilidade e ligação ao capitalismo
financeiro. Embora já haja práticas neoliberais no período de
Chissano, os participantes associam Guebuza ao neoliberalismo como
sinónimo de desregulamentação do mercado, onde os interesses
pessoais se sobrepõem ao interesse público – o Estado passa a ser um
“negócio” para quem está no poder político, segundo as três
gerações.
7 Levando isso em conta, o neoliberalismo democrático, como o
definiu Chomsky (1999), é o adversário da “democracia
participativa”, criando um mercado global que gere e se sobrepõe
aos interesses políticos nacionais, conforme narrado pelos
participantes: “os médicos [em Moçambique] querem aumento do
salário, mas o Estado não pode aumentar sem o consentimento dos
doadores, sobretudo aqueles que dão dinheiro” (excerto da história
de vida de um participante da 1ª geração/socialismo). Além disso,
para compreender os três momentos olhou-se também para a
herança colonial e os efeitos da Guerra Civil (1976-1992) após a
independência de Moçambique, que se caracterizam por padrões
migratórios para o sul do país devido à guerra, em que cerca de 58%
das escolas foram destruídas em todo o país à exceção da cidade de
Maputo (Berg, Maia & Burger, 2017, p. 1), uma rede escolar que já no
tempo colonial privilegiava também o sul do país, conforme se
detalha abaixo (Geffray, 1990; Macamo, 2006; Morier-Genoud, 2008;
Florêncio, 2002).

Histórias de vida e caracterização dos


participantes
8 O trabalho de campo etnográfico, pesquisa bibliográfica e
documental, bem como a recolha das histórias de vidas efetuada,
revelam o percurso de uma elite em Moçambique, traçando a
história de moçambicanos que estudaram desde o ensino primário
até à conclusão da universidade em Moçambique e em países como
Cuba, ex-RDA, ex-URSS, Hungria, Suécia, Portugal e Brasil. Nesse
sentido, falamos de cerca de cem mil moçambicanos,
aproximadamente 0,42% da população do país (BTI, 2014; Langa,
2013), localizados geograficamente em Maputo, mas com origem
familiar noutras províncias do país.
9 Nesse âmbito, Maputo revelou-se o espaço privilegiado para a
recolha de histórias de vida das três gerações, dado que se define
como um espaço geográfico privilegiado no que concerne ao acesso à
educação, refletindo a herança colonial e a tendência dos padrões de
migração do meio rural para o meio urbano, acrescido do forte
impacto que teve a Guerra Civil (1976-1992) no êxodo para a capital
do país, onde a guerra não se fez sentir (Geffray, 1990; Mario et al. ,
2003; Nordstrom, 1997). Importa salientar que, contrariamente ao
período da Luta Armada de Libertação Nacional (1964-1974), em que
os guerrilheiros da Frelimo dominavam a sociedade, com particular
enfoque para os que tiveram acesso à educação colonial e/ou à
educação dada pela Missão suíça (Cruz e Silva, 1998), “hoje em
Moçambique a nova classe social artífice das decisões do país forma-
se sobretudo na universidade” (Gasperini, 1989, p. 76). Refira-se que
Gasperini (1989) reporta uma intenção do Estado socialista de acesso
de todos à universidade, sendo que atualmente a maioria dos
membros da elite dominante não possui ainda formação
universitária, como é o caso, por exemplo, dos generais Makonde.
Reflexo disso é também o facto de o atual presidente do país, Filipe
Nyusi, ser o primeiro presidente licenciado de Moçambique.
10 Após análise documental e bibliográfica, assim como fruto de
conversas informais junto de interlocutores privilegiados entre 2011
e 2013, complementado com trabalho de campo etnográfico, optou-
se por recolher 18 histórias de vida de moçambicanos, em 2013,
repartidas entre as três gerações e por género: 6 narrativas por cada
geração, 3 homens e 3 mulheres em cada geração. Sublinhe-se que o
acesso à educação formal é diferenciado também em função do
género: 70% das raparigas em Moçambique abandona a escola aos 13
anos devido a casamentos precoces, pobreza e desvalorização da
escola pelos pais e professores quando se trata da educação formal
das filhas, fruto dos sistemas de reprodução social tradicionais
(Loforte, 2007). Esta desigualdade é também fruto da herança das
políticas coloniais de educação formal que reduziram as mulheres ao
espaço doméstico, sublinhando o seu papel reprodutivo (Sheldon,
1998, 1999, 2002).
11 A recolha de histórias de vida segue-se a um período de trabalho de
campo etnográfico, com observação participante, ao longo de dois
anos em Maputo. Neste contexto, as histórias de vida apresentam-se
como o método de recolha qualitativo que interliga a biografia e a
história em cada geração, partindo da posição epistemológica
construtivista defendida por Bruner (1996), com enfoque na teoria
da narrativa entendida como um “modo de pensamento” e, em
simultâneo, uma “expressão da visão do mundo”. As narrativas
geracionais incluem a descrição do percurso de vida individual
inserido num contexto histórico específico, que introduz elementos
sociais, económicos e políticos relevantes para cada indivíduo
(Goodson, 1992, 2006; Stephens, 2000). A “singularidade” de cada
história individual é dependente do seu significado histórico e do seu
alcance como parte de circunstâncias coletivas e movimentos
históricos, que lhe conferem significado (Andrews, Squire, &
Tamboukou, 2008; Geertz, 1973; Goodson, 2006; Horsdal, 2012). O
quotidiano narrado pelos 18 participantes situa-se no contexto
formal construído no espaço do sistema escolar, tendo em conta que
os atores sociais estão conscientes quer do período histórico em que
se inserem, quer das políticas educativas desenvolvidas em cada
período político e ideológico (O’Neill, 2003).
12 Em termos de descrição socioantropológica, os 18 participantes
caracterizam-se pelo seguinte (Quadro I):
Quadro I
Descrição socioantropológica das três gerações

Ano de Origem Familiar Pertença Étnica


Gerações
Nascimento (Províncias) (autodefinição)
1ª Geração Nasceram 50% Oriundos de Maputo, Definiram-se como Assimilado
(Socialismo, entre 1957 sendo os restantes de , Zulu, Changana e Bitonga
1975-1986) e 1966 Inhambane (Sul), Zambézia (Sul), Sena e Nyungwe
(Centro) e Tete (Centro) (Centro)

50% Oriundos de Maputo, Definiram-se como Macua


2ª Geração Nasceram
sendo os restantes de (Norte), Tsua (Centro), Ndau
(Democracia, entre 1974
Inhambane (Sul) e Sofala (Centro), Chuabo e Sena
1986-2005) e 1980
(Centro) (Centro) e Bitonga (Sul)

3ª Geração Nasceram Definiram-se como


Maioria oriunda de Maputo,
(Neoliberalismo, entre 1982 um da Zambézia (Centro)
moçambicanos, exceto um
2005-presente) e 1987 (Changana – Sul)

Fonte: Elaborado pela autora

13 Nas histórias de vida, os participantes ligam o período de


nascimento com o impacto da independência do país e suas
consequências, bem como com a sua origem familiar e do grupo
étnico, para descreverem quem são e como são.
Nasci… [na Província de Sofala] … Aquele bairro, que quando chove, enche de
água! Nós culpávamos o meu pai às vezes: porque é que na altura das
nacionalizações não foi também ocupar um dos prédios, né? [Referência ao
período socialista/Samora Machel] … Eu sou Ndau, o meu pai e a minha mãe,
todos são Ndau… Onde nós crescemos tinha vizinhos Senas e Ndau, mas nesse
processo, apesar de tudo, sempre tivemos um bom relacionamento com os nossos
vizinhos, mas em casa sempre nos ensinavam quais eram as diferenças entre os
Senas e os Ndau. E havia sempre aquela coisa, aquela ideia que dava a entender
que os Sena não eram muito higiénicos… Mas tirando isso, os Sena eram
melhores, não é? Quer dizer, comparados com os Chuabos… Esses mesmo
[Chuabos] é que tinham aqueles qualificativos: Chuabos comem cobra… E os
Senas, havia uma coisa que também se dizia: que eles comiam ratos. Nós, os
Ndau, comíamos rato, mas não era aquele rato pequeno, era aquele grande!... Do
nosso ponto de vista, nós éramos os melhores! (Excerto da história de vida de um
participante da 2ª geração/democracia)
14 Nas narrativas biográficas escolares, as três gerações refletem a
ligação entre a língua, a religião e o processo de escolarização, que
caracteriza uma minoria de moçambicanos com acesso ao ensino
superior e em meio urbano, população-alvo desta investigação.
Quadro II
Descrição socioantropológica das três gerações

Religião Habilitações
Gerações Língua Materna Profissões
(autodefinição) académicas

Português (50% dos 2 com


Católicos não
participantes, doutoramento; Docentes nos
praticantes e, em
1ª Geração mulheres);
simultâneo, 2 com diversos
(Socialismo, Changana, Ronga,
praticantes da mestrado; níveis de
1975-1986) Bitonga e Nyungwe
religião tradicional 2 com ensino
para os restantes
africana (RTA) licenciatura
50% (homens)

À exceção de
Católicos não
um
Português (50% dos praticantes/
participante,
participantes, praticantes da 4 com
2ª Geração que trabalha
mulheres); Tsua, RTA; havendo mestrado;
(Democracia, no sector
Bitonga e Ndau também 1 2 com
1986-2005) privado, são
para os restantes participante licenciatura todos
50% (homens) islâmico e 1
docentes
evangélico
universitários

Católicos 3 trabalham
(mulheres no sector
Português com 4 com
possuem forte privado;
3ª Geração incorporação de licenciatura;
ancoragem em 2 são
(Neoliberalismo, expressões das valores morais); 2 em processo
estudantes
2005-presente) línguas nacionais e havendo também 1 de conclusão
do inglês universitários
evangélico e 1 da licenciatura
e 1 docente
islâmico universitário

Fonte: Elaborado pela autora

15 A ligação que se estabelece entre as profissões, a religião e o


processo de escolarização está diretamente ligado à origem familiar,
étnica e social.
A figura marcante é o meu pai… apesar de ser uma pessoa muito rude, uma
pessoa muito ríspida, sem preparação em termos sociais, era uma pessoa que
queria que os filhos estudassem. Para ele, o valor estava na educação… Mas a
minha mãe fazia a outra parte da educação… a parte da educação informal… era
tradicional… A minha mãe antes tinha sido professora primária… Sim, eu sou do
sul, e ele em casa sempre falou português, mas um português muito mal falado,
com muitos erros, porque ele foi o filho mais velho, teve acesso àquela educação
até à 4ª classe [no tempo colonial], mas o convívio era com pessoas do campo,
porque o meu pai cresceu [na Província de] Gaza… Eu, a única coisa que aprendi
como indivíduo, foi a tal diferença entre ser da cidade ou do campo, o
comportamento entre pessoas da cidade e do campo… deu-me para ver que havia
dois mundos e que havia a forma de educar que era completamente diferente na
cidade e no campo. O respeito e a submissão exagerada, porque no campo, eles
estão demasiado submissos… Sim, porque quando vou a Nampula… é que eu, de
facto, convivo com outro grupo étnico… Eu estou num espaço diferente… A
começar pelas histórias…. Muitas histórias ligadas ao curandeirismo,
superstição… Noto que lá o feiticeiro, o curandeiro, a superstição é muito
presente!... Eu já tinha notado isso em Cabo Delgado e Niassa… Eu sou brusca, sou
rude, não sou doce… A forma de eu rir, a forma de eu dizer algumas intervenções,
os meus alunos é que me chamavam a atenção “a professora é tipicamente
MaChangana…” [risos]. (Excerto da história de vida de uma participante da 1ª
geração/socialismo)
16 Nas histórias de vida das três gerações, as experiências do período
político partilhadas pelos participantes estão interligadas com a
forma de ensino e aprendizagem que caracteriza cada geração: a
escola no período socialista (1975-1986), democrático (1986-2005) e
neoliberal (2005-presente) e seu impacto na criação de autonomia ou
emancipação dos atores sociais.

Biografias escolares das três gerações: a


escola socialista, democrata e neoliberal
17 O sistema escolar é reflexo do momento político e ideológico que o
enforma, estando a noção de cultura e escolarização interligadas
com a ideologia e o poder em cada momento particular (Giroux,
1981). Conforme argumenta Giroux (1981, p. 27), a cultura serve
como elemento de mediação entre a sociedade e as suas instituições,
como a instituição-escola, levando em conta que a cultura é situada e
construída pela forma como o poder é exercido em cada sociedade
num dado momento, concluindo que a cultura é plurifacetada,
fazendo sentido falar em culturas que são o reflexo de um dado
momento ideológico e de exercício do poder. Assim sendo, a escola
reproduz nas suas práticas, o momento político e as vivências
partilhadas por cada geração.
18 Nesse sentido, a 1ª geração/socialismo tem como referência países
como Cuba, ex-RDA, ex-URSS, Hungria (países socialistas) e Brasil e
Portugal, havendo uma ligação entre cada país e a área de
especialização ou estudo necessária para o desenvolvimento de
Moçambique.
É a consequência direta do comunismo: uns iam para a RDA, uns iam para a
Hungria, muito poucos, e é engraçado que o grupo da Hungria era pequeno mas é
o grupo dos técnicos… Enquanto tem muita gente da RDA que ficou
desempregada, os que iam para lá [Hungria] eram pessoas altamente capacitadas,
técnicos capacitados e iam para um nível muito alto e vieram com altas
qualificações… É um pouco como os cubanos. Os cubanos também são técnicos
altamente qualificados para a medicina, para a estatística, para a música… Os
russos também… da Rússia, da Ucrânia. (Excerto da história de vida de uma
participante da 2ª geração/democracia)
19 Contudo, a 1ª geração sublinha a ligação entre pertença política
hegemónica (i.e. partido político dominante, Frelimo) e posição na
estrutura social de Moçambique. Esta pertença é também uma
herança dos tempos coloniais, descrita nas narrativas da 1ª geração e
por autores como Cruz e Silva (1998, p. 398), sublinhando que
Moçambique, enquanto território ultramarino, foi marcado “por
uma estrutura social discriminatória e uma política indígena
desenhada para reforçar ... a reprodução da autoridade colonial”.
Sumich (2007) argumenta também que o Moçambique pós-colonial
continua a guiar-se por padrões de desigualdade como nos tempos
coloniais, salientando que quem tem acesso ao poder no país teve
acesso à educação formal no tempo colonial.
Não, não, eu não estudei nas missões, eu estudei na escola oficial [no tempo
colonial] … Então o que é que eu notava? Na escola oficial, naquela altura, nós
usávamos bata branca, era uma turma pequena, filhos de elite, enfermeiros,
gente da cantina … filho de administrador … Tu tinhas negros, mulatos e tinhas
brancos, mas um sistema separado … Então estávamos numa sala onde tinha 1ª,
2ª, 3ª até 4ª, tudo junto … a professora estava ali … éramos poucos, acho que
menos de 50 … o resto das pessoas estudavam em salas maiores, sentavam, não
me lembro se sentavam no chão, mas sentavam naqueles bancos de troncos … O
sistema preparava a gente para pertencer à elite. (Excerto da história de vida de
um participante da 1ª geração/socialismo)
20 Em simultâneo, nesta geração surgem como forte marca identitária
os processos de resistência ao discurso ideológico dominante. O que
o regime dizia, ao afirmar a construção do “homem novo”, sem ter
em conta questões de género, religião ou etnia (Cruz e Silva, 1998;
Sumich, 2007), não era necessariamente a experiência pela qual os
participantes da 1ª geração passavam e com isso construíam a sua
identidade política e social múltipla e dinâmica.
Em 1977 eu acabo selecionado para ir a Cuba… Nós fomos selecionados, por cada
província eram 200 miúdos, que chegou a ser um grupo de 1200 pessoas…
[Quando chegam a Cuba] Os gajos distribuíram as roupas e aí houve um dos
grandes contrastes da nossa vida. Primeiro, foi um gajo nunca tinha recebido
tanta roupa para usar! Uns dois pares de calças, dois pares de camisas, uma
gravata, um casaco, depois roupa de ginástica, sapatos… Um gajo nunca tinha
tido isso! … E depois… a alimentação. Tu acordavas de manhã, tinhas o
matabicho, ias para a escola; depois tinhas lanche, segunda refeição; depois ias
outra vez à escola; depois tinhas almoço; depois à tarde também tinhas um
lanche e depois tinhas o jantar. Então, cinco refeições! Nunca tinha passado na
cabeça de ninguém, de nós, uma coisa dessas! … E outra coisa… [Em Cuba] era já
trabalho de segunda a sexta. Se tu tens aulas à tarde, então tu das 8 às 11h30
estás no campo… Trabalhar a sério aquilo ali! … E isso começou a não funcionar
bem na cabeça do pessoal… A ideia de reivindicar começou… Mas também me
pareceu que os cubanos, ou não sei se é o governo moçambicano, não estavam
muito claros sobre o que iam mandar os alunos lá estudar… A experiência de
Cuba assim, [foi] pensada no joelho… Aquilo foi para lançar como cobaias os
filhos dos pobres, porque nenhum filho de dirigente foi posto naquela prova.
(Excerto da história de vida de um participante da 1ª geração/socialismo)
21 A 1ª geração olha de forma crítica e encontra a distinção (Bourdieu,
1979), a reprodução social da estrutura de classes, embora neste
contexto parta não apenas daquilo que é a herança familiar e seu
legado de capital cultural, mas também da pertença política. Os
filhos dos pobres iam estudar para Cuba, os filhos da elite para a
Hungria, por exemplo.
22 Quanto à 2ª geração/democracia já não há estudantes em países
socialistas, mas sim a possibilidade de continuar os estudos em
países europeus, incluindo Portugal, Noruega e Suécia. Os
participantes da 2ª geração identificam-se com a mudança do
período ideológico e político do socialismo para a democracia,
quando Joaquim Chissano assume a presidência do país, embora a
dimensão do registo escondido/não público (Scott, 1985) seja muito
marcante e continue a existir uma forte crítica face à identificação
política e consequente posicionamento na estrutura social. Esta
geração fez percursos escolares para países europeus em que
existiam regimes políticos democráticos ou que se estavam a
consolidar à data, trazendo por isso como recurso identitário uma
forte crítica ao que foi o período de Chissano/democracia aquando
do regresso ao país.
23 Nesse sentido, a 2ª geração apresenta narrativas marcadas por uma
forte crítica ao Estado e à sua tentativa de condicionar o futuro dos
participantes. Esta geração refere que o período do socialismo
permitiu um maior acesso à educação para todos, sendo que com a
instituição do regime democrático, acrescido do fim da Guerra Civil,
passou a existir a possibilidade de escolha de estudar em escolas
privadas, contudo uma escolha marcada pelo facto de que só estuda
quem tem capacidade financeira. Em termos de discurso escondido
há uma constante referência à desigualdade social e às diferenças
regionais entre o norte sem acesso e o sul com acesso privilegiado à
educação e a (in)capacidade de construir um futuro determinado
pela pertença política.
Eu nasci depois da independência … Eu sou um fracasso … [como] frelimista … Eu
tinha 16 anos … quando há os Acordos de Paz [em 1992] … e continuo a estudar
na escola secundária e depois vim à universidade onde também venho a
encontrar professores que muitos deles tinham ido estudar ao Brasil e não
tinham voltado tão socialistas assim … isso foi … uma coisa que me marcou: a
questionar, a não alinhar sempre com as coisas do regime, eles também insistiam
nisso, nas aulas … [aqui] não [podes] tomar partido em relação a coisas que tu
sabes, né? É preciso estar calado infelizmente …. Aqui tu tens todos os dias
convite para ter cartão [da Frelimo] … Eu não quero fazer parte… Mas todos os
dias é uma pressão enorme. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª
geração/democracia)
24 A ideia de que a pertença política determina o curso da vida, em que
ter o “cartão vermelho” (da Frelimo) determina o acesso à
universidade pública e posterior integração e progressão na função
pública, é marcante na descrição da instituição-escola liberalizada,
do período democrático, conforme salientado também por outro
participante quando descreve a sua ida para a universidade em
Maputo:
Entro para a universidade… A universidade é uma coisa boa, mas no meu curso só
tínhamos entrado duas pessoas da Beira, tudo o resto não eram da Beira. Estamos
em 93, a ideia da Renamo, de quem vem da Beira é da Renamo está presente.
Qualquer contestação que fizéssemos … e na sala havia muita gente da Frelimo...
No lar [de estudantes] estava melhor, havia muita mistura, havia muita gente que
vinha do centro e norte… Sentia no princípio que as pessoas nos viam com
reserva… Há de facto esse momento de choque, em que a gente se tem de afirmar
pela qualidade … aquelas desconfianças iniciais depois passam, viu-se que não
tinham razão de ser e a vida continua. (Excerto da história de vida de um
participante da 2ª geração/democracia)
25 No que diz respeito à 3ª geração, as descrições de estudos formais
fora de Moçambique são praticamente inexistentes, estando
correlacionadas com o viver em tempos de incerteza, numa
modernidade líquida, em que o individualismo domina as relações
sociais, estando em constante mutação, numa sociedade que é
sublinhada pela ideia de consumo e num tempo presente estendido,
como que suspenso, num estado de espera caracterizado por altos
índices de desemprego (Bauman, 2000; Groes-Green, 2010; Honwana,
2013, 2014; Nowotny, 1994).
26 A 3ª geração sublinha nos seus discursos públicos o facto de que
quem tem capacidade económica pode estudar até à universidade,
mas em simultâneo tendo uma consciência clara de que não será a
escola que lhes dará oportunidades profissionais ou lhes permitirá
criar um futuro sem incertezas.
Os grandes problemas políticos que nós temos resolvem-se com a escola. Se as
pessoas começarem a ir à universidade, à escola, tiverem acesso à escola, hão de
ser mais esclarecidas, hão de poder criticar mais, hão de poder exigir mais e hão
de começar a participar mais nas soluções. O que está a acontecer neste momento
é que tu tens um punhado de pessoas que participam nas soluções. Os outros
todos não fazem nada, ok? … Ainda muita gente não tem acesso à educação …
Existe uma classe que tem acesso à educação, ok? … Eu vou dar o exemplo do que
está a acontecer agora, que é o mercado de emprego, que é como está. Nós
estamos a ir para uma altura, uma fase em que só ser licenciado como tal já não é
suficiente, ok? Então, existe uma cultura de nepotismo que está a ser criada. Que
é o quê? Eu para ter emprego ali, eu tenho de conhecer alguém… Já te dás ao luxo
de chegar lá e ter alguém lá dentro que te facilita a entrada. Que te diz: “Olha,
paga-me tanto. Eu te dou a vaga”. Então isto acontece… É utopia dizer que isso
não existe. Existe e está a acontecer. (Excerto da história de vida de um
participante da 3ª geração/neoliberalismo)
27 A nível do discurso escondido, esta geração refere a corrupção e a
recusa em aceitar as novas tendências na educação – a aposta no
ensino técnico-profissional – por considerar ser este um ensino que
reflete o período colonial. Nesse sentido, esta geração menciona que
esta nova tendência na educação formal pretende transformar a
escola numa espécie de fábrica de produção de trabalhadores
manuais, diminuindo a sua importância como instituição de
conhecimento. Hoje em dia, a escola conduz os atores sociais, através
da utilização de uma linguagem comercial, de privatização e
desregulamentação, a uma autonomia definida por uma lógica de
mercado orientada para o individualismo, para a competição e para
o consumo, levando à procura de um “conhecimento rentável”
(Giroux, 2002). É nesse sentido que a geração do neoliberalismo, a 3ª
geração, em que se assiste de forma mais marcada a esta lógica de
escola-mercado, descreve com nostalgia o período socialista,
expressando o desejo de regressar a esses tempos, caracterizados por
um estilo autoritário de ensino, referindo inclusivamente a
necessidade de reintrodução do treino militar na instituição-escola.
28 A geração neoliberal, ao mesmo tempo que descreve uma escola
orientada para o fornecimento de mão de obra para o mercado de
trabalho, possui um discurso crítico face ao momento ideológico em
que se insere, que lhe advém dos recursos informais de
aprendizagem. Giroux (2002) refere que o recurso à memória é uma
ferramenta de resistência a uma mercantilização do ensino,
invocando outras formas de construção do conhecimento, como
narrado pelas três gerações de moçambicanos ao referirem que é na
esfera informal (i.e. família, comunidade e religião) que aprendem a
ser críticos e autónomos, transpondo para as suas práticas em meio
escolar o conhecimento adquirido na esfera informal.

Biografias escolares partilhadas: a


autonomia, as gerações e a escola
29 Uma ideia transversal às narrativas biográficas das três gerações é o
sentido crítico do que é a realidade escolar em Moçambique, em que
há um sistema autoritário de ensino com o qual não se identificam e
que caracteriza a escola desde os tempos coloniais até à atualidade.
Como narra um dos participantes, aquando da reflexão sobre o que
transmitiria aos seus filhos:
Eu acho que coisas materiais eu não deixaria… Algo que eu fui aprendendo é não
me apegar a coisas materiais… porque quando nos apegamos demais, facilmente
caímos em frustração… Uma das coisas que poderia partilhar com ele [o filho] é a
questão [de] como lidar com as coisas no dia a dia. Foi o que o meu pai me
ensinou… Até certo ponto a universidade tentou formatar-nos…Tens de fazer
assim como eu estou a dizer [os professores] … senão ficas de fora! Essa coisa de
impor… não resulta! (Excerto da história de vida de um participante da 3ª
geração/neoliberalismo)
30 Embora a 3ª geração sinta nostalgia face ao período escolar do
período socialista, associa-o ao facto de o Estado, à data, indicar
caminhos com saída profissional, diminuindo desta forma a
incerteza do futuro, atualmente pautado por altos índices de
desemprego. Contudo, embora a escola seja descrita nos três
momentos como seguindo um modelo autoritário, há a consciência
de que o sistema de ensino é deficitário, porque Moçambique é um
país com um desenvolvimento económico e social desigual.
Não tenho dúvidas que se democratizou muito [a escola] … a maior parte das
pessoas tiveram mais acesso… No tempo colonial não havia… ensinavam o que
queriam para reproduzir a presença deles aqui, a ideologia deles… Mas hoje não,
há muito mais esforço para fazer chegar a escola onde estão as pessoas… O Estado
faz muito esforço… Não posso deixar de assinalar esse esforço, o país é
vastíssimo! … É verdade que há corrupção… Ora, em termos de qualidade, que é
outro debate, nesta altura é difícil garantir qualidade em todo o país e acredito
que um dia vamos chegar lá. Mas os professores que temos vivem em condições
que não é possível dar um ensino de qualidade aos miúdos, porque eles não
vivem bem: estão frustrados com o salário que recebem e vivem em condições
tristes, muito pobres e não é possível eles acordarem bem-dispostos para darem
aulas. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
31 A tónica dominante nas biografias escolares das três gerações coloca
também a ênfase no papel da educação informal, conforme
mencionado anteriormente, onde atores sociais como a família, a
religião e a comunidade são uma referência central na constituição
de um sentido crítico e criação de autonomia pessoal. A escola é um
instrumento social de integração na modernidade, mas o que lhes
permite a construção de uma autonomia reflexiva e crítica é o espaço
social informal, o contacto com os seus pares no meio familiar, na
comunidade e com recurso à religião. A educação informal é
entendida como o processo de aprendizagem que ocorre “dentro do
contexto” cultural e/ou étnico de cada participante, em que interage
com os seus pares desde a infância até à idade adulta (Strauss, 1984),
incorporando desta forma os valores, as normas e as práticas rituais
e tarefas do quotidiano partilhadas pelo grupo. Assim sendo, a
educação informal está relacionada com a noção de capital cultural
de Bourdieu e Passeron (1990), em que cada participante possui a
herança cultural específica da sua região ou grupo étnico,
transmitido pela família e comunidade em que se inserem,
conhecimento que incorpora a definição de identidade pessoal e
familiar, encontrando-se presente no registo não público ou
escondido (Scott, 1985) aquando da entrada na escola ou sistema de
educação formal.
[Experiência educativa mais importante para ti] Eu sou produto de uma
combinação aqui: dessa forte educação religiosa, do lado da minha mãe. Porque
de facto há uma série de valores e ela buzinava tanto … minha mãe não bebia,
não fumava … mesmo até nós crescermos, não queria que nós bebêssemos. Há
esse lado forte da igreja … A educação que eu tenho, digamos, é esse lado da
igreja… Nós [raparigas] tínhamos que ir à machamba, tínhamos que aprender a
cozinhar e a minha mãe estava ali, aprender a cozinhar, havia escala: cozinhar,
rachar lenha, ir à machamba… Essa rigidez, essa forte educação religiosa. E havia
um outro lado: a minha mãe não gostava muito de curandeirismo, ela era muito
agarrada à igreja, a igreja Protestante… Preferia que nós fôssemos aos profetas…
como aqueles que costumam estar na praia… aqueles ma-Ziones, preferia que nós
fôssemos ali, mas curandeiro como tal, não. Esse é o lado da minha mãe. O outro
lado é a disciplina, que nós tínhamos do lado do meu pai. O meu pai trabalhava
numa empresa privada, onde havia uma disciplina, aquela disciplina própria de
uma empresa privada e próspera como a X, com os portugueses. (Excerto da
história de vida de um participante da 2ª geração/democracia)
32 Face à descrição do percurso escolar, inserido na história de vida de
cada participante, uma das questões que se salienta é: qual o
significado da escola ou quando é que a escola se torna significativa
para os participantes? Para responder a isso, olhamos para a noção
de autonomia ou emancipação de Freire (1996). O autor defende que
a autonomia está relacionada com a capacidade de decisão e
liberdade que cada indivíduo possui num dado momento social e
num determinado contexto político. Nesse sentido, Freire (1996)
alega que a instituição-escola deve dotar os seus estudantes de
autonomia, dando-lhes a faculdade de escolha, recorrendo a
pedagogias que permitam a capacidade de criar as suas próprias
representações do mundo, estratégias que os empoderem na criação
de soluções para a resolução dos seus problemas, e a consciência de
que cada um é um elemento que contribui para o contexto social e
histórico em que vive, podendo intervir de forma ativa na mudança
ou continuidade do regime em que se insere. Giroux (1997)
acrescenta que a escola é hoje olhada como uma instituição que deve
ser significativa, criando atores sociais com capacidade crítica e
emancipadora, na linha de Freire, apelando a uma pedagogia crítica
que empodere os estudantes a tornarem-se atores sociais
autónomos.
33 As três gerações reforçam a importância de construir o
conhecimento em contexto escolar de forma crítica, em que cada
estudante deve ser responsável pelas decisões que toma, sendo os
professores mediadores desse processo de construção. Nesse sentido,
as três gerações apontam críticas à instituição-escola, mencionando
que a escola distingue, separa e marca diferenças muito mais do que
a sociedade. É também salientado que Moçambique é um país
caracterizado por uma forte mobilidade migratória que se reflete na
forma como o contexto informal impacta na escola como instituição,
acrescentando saberes e estratégias de aprendizagem fruto das
experiências vivenciadas pelos participantes. A mobilidade
migratória, que faz parte da construção da história de Moçambique,
foi reforçada com o advento da Guerra Civil e criou uma capacidade
de autonomia fora do contexto escolar que se reflete nas estratégias
identitárias de aprendizagem e aplicação do conhecimento para a
criação de atores sociais empoderados.
Tu tens moçambicanos de todas as origens possíveis e imaginárias … Isso faz
parte de ser-se moçambicano … Tu apanhas gente da aldeia não sei o quê que tem
experiência, que viveu no Zimbábue, depois foi para o Malawi e depois não sei
para onde … tipos que estiveram na Tunísia, tipos que estiveram na Argélia, nos
Estados Unidos, na Alemanha, os Madjermanes, que vieram das aldeias, e falam
perfeitamente alemão … e depois tens um gajo que fala italiano … Há muito
pouco moçambicano que nunca saiu do sítio, tu não tens quase ninguém, tu
quando vais ver as histórias pessoais dos moçambicanos, todos eles, e lá está,
aqueles que são mais considerados nas aldeias são esses. E por causa da guerra
nós fomos obrigados a movermo-nos muito, e assim que a guerra parou, ainda
nem se tinha reabilitado as estradas, a primeira coisa que os moçambicanos
começaram a fazer é viajar; durante a guerra os moçambicanos enfrentavam
tudo para viajarem e ir ter com familiares; o ir visitar o familiar é muito
importante, portanto esta mobilidade é característica do moçambicano. Nós
somos muito mais abertos do que as pessoas imaginam. (Excerto da história de
vida de uma participante da 2ª geração/democracia)
34 Do socialismo ao neoliberalismo, a escola em Moçambique é descrita
pelos participantes, complementada pela pesquisa bibliográfica e
documental, da seguinte forma:
Quadro III
A escola socialista, democrática e neoliberal

Fonte: Elaborado pela autora

35 Olhando para as últimas quatro décadas do ensino formal em


Moçambique, a escola como instituição é descrita como um espaço
reservado à manutenção e reprodução do conhecimento das elites.
No entanto, o fenómeno da “geração do 8 de março” de 1977,
durante o período socialista, teve um forte impacto na inversão das
taxas de iliteracia no país, sendo um fenómeno único nas políticas
públicas de educação globais e referenciado pelas três gerações.
Então eu estive aqui no colégio Pio XII, que era o Centro 8 de Março [em 1977], e
ficámos lá durante um ano internados… Foi uma experiência única, para mim, eu
nunca tinha saído de casa. De repente estou num internato, estou numa camarata
com oito pessoas, tendo que conviver com pessoas diferentes, foi um pouco
difícil… Havia dois blocos: o bloco masculino e o bloco feminino… E depois lá no 8
de Março, nós tínhamos de ter a disciplina militar. Tínhamos que vestir a farda
militar e tínhamos… treinos militares… Ali no 8 de Março tínhamos vários
grupos: tínhamos o grupo do professorado, no qual eu estava integrada;
tínhamos o grupo dos propedêuticos, que depois saíam para engenharias, para
matemática, para outros ramos; tínhamos o grupo dos pilotos, da força aérea; e o
dos políticos também… A organização tinha muito a ver com a militar. Nós
tínhamos pelotões, o nosso era o grupo B, o outro era o C … Eu acho que o 8 de
Março, a importância foi aprender a trabalhar em equipa, conhecer pessoas
diferentes e sobretudo a solidariedade… ajudar-nos uns aos outros… o aprender a
disciplinar a nossa vida, eu acho que isso foi fundamental … aí é que aprendi a
disciplinar o meu tempo… o curso foi intensivo, começou no dia 7 de março,
depois disso fomos logo às aulas. Começou em março, acabou em dezembro. Em
fevereiro de 1978 comecei a dar aulas… tinha 17 [anos]. (Excerto da história de
vida de uma participante da 1ª geração/socialismo).
36 A suspensão dos dois últimos anos do ensino secundário entre 1977
e 1980, permitindo desta forma aos alunos tornarem-se professores
para colmatar a ausência de docentes no país, contribuiu também
para a redução da taxa de iliteracia de 90% em 1970 para 48% em
2008 (AfriMap & OSISA, 2012). Contudo, o facto de a escola veicular a
transmissão do conhecimento usando a língua da elite do período
colonial, a língua oficial de Moçambique após a independência – o
português – vem reforçar a ideia de que a escola é reprodutora de
desigualdades sociais. Conforme argumenta Arendt (1961), a língua
em que se aprende é determinante para a consolidação do Estado
como instituição hegemónica que se projeta no desenho curricular
do ensino formal. Além disso, o “capital linguístico” que cada
estudante possui reflete também o habitus de classe (Bourdieu, 1979;
Bourdieu & Passeron, 1990), reforçando a ideia de que a educação
formal não tem vindo a contribuir na atualidade para os processos de
mobilidade social (Harber, 2014). Bourdieu (1964) sublinha que a
origem social dos pais tende a tornar a escola uma instituição que
reproduz as elites, indo ao encontro do que diz Harber (2014) sobre a
pouca mobilidade social que a instituição tem vindo a proporcionar
aos estudantes oriundos das diversas classes sociais.
37 Embora os processos de democratização, direitos humanos e
desenvolvimento no acesso à educação formal se tenham vindo a
generalizar com o fim da II Guerra Mundial (Schofer & Mayer, 2005),
a globalização enquanto fenómeno homogeneizador tende cada vez
mais a diminuir o acesso a uma educação para além das necessidades
impostas pelo mercado de trabalho, em que a língua é um meio de
distinção social. De acordo com as narrativas das três gerações,
quanto mais nos afastamos da província de Maputo, onde há um
acesso privilegiado ao ensino formal, mais se encontram falantes
cuja língua materna é uma das 23 línguas nacionais de Moçambique
(Firmino, 2005).
A questão do português é de facto uma questão muito séria, no sentido de que só
falávamos português na escola. Em casa continuávamos a falar em ndau [região
centro de Moçambique]. E na escola havia outra questão na altura: era proibido
ser apanhado a falar [outra língua] … Então na escola estávamos todos a falar
português, fazer esforço para falar português e depois quando íamos para casa, aí
continuava o ndau. (Excerto da história de vida de um participante da 2ª
geração/democracia)
38 Porém, na 3ª geração, há uma interiorização de que escola é
sinónimo de desenvolvimento, acesso ao trabalho, combate à
incerteza dos tempos modernos. Então falar português torna-se
sinónimo de estatuto social, de pertença social, para além da
pertença política.
Eu cresci a falar português… Os meus pais, a minha mãe principalmente era
educadora! Dizia: “Essa coisa de changana aqui, não funciona agora. Entra nesta
linha do português, vocês devem aprender português, português!”. Só que o meu
pai era de uma outra vertente … E o meu pai, o que fazia? Atirava-nos, por
exemplo, para alguns vizinhos, eu tenho alguns vizinhos que, epa!, para brincar
com eles é preciso falar changana… Se você não falar changana, “é branco aquele
gajo ali!”. (Excerto da história de vida de um participante da 3ª
geração/neoliberalismo)

Conclusões
39 As narrativas escolares das três gerações de moçambicanos possuem
dois traços partilhados: a crítica ao sistema de ensino mercantilizado
e a existência de um estilo de ensino autoritário, em que o professor
é a figura dominante em contexto escolar. Os participantes
descrevem o espaço informal como sendo o espaço privilegiado de
aprendizagem, embora refiram que a escola é fundamental para
igualizar, globalizar e modernizar o país.
40 Com a 1ª geração/socialismo, a escola como instituição é descrita
como um instrumento do Estado que responde às necessidades do
país recém-independente. É o Estado que determina o que cada um
deve estudar de forma a colmatar as falhas existentes no
Moçambique pós-colonial. Em simultâneo, com o desenvolvimento
da política pública de educação que resultou na “geração do 8 de
março” de 1977, a escola socialista empoderou estudantes ao torná-
los professores, criando-lhes uma capacidade de autonomia e
emancipação que se reflete na 2ª geração, a da democracia, e que é
ensinada pela geração anterior, a socialista.
41 A 2ª geração/democracia já enfrenta as consequências das políticas
de ajustamento estrutural do FMI, com a intervenção da comunidade
internacional e consequente criação de níveis de corrupção dentro
do aparelho do Estado (Bowen, 1991; Hanlon, 2004). Nesta geração, a
escola continua a ser um espaço para as elites urbanas e do sul do
país, embora se assista à criação de instituições de ensino superior
privado.
42 A 3ª geração/neoliberalismo descreve a escola como um
instrumento necessário para a integração no mercado de trabalho,
perdendo as suas características de espaço de aprendizagem,
recorrendo a memórias dos tempos do socialismo em que a escola
promovia a autonomia e, em simultâneo, providenciava um futuro
sem incertezas.
43 Em simultâneo, e conforme argumenta Giroux (2004, p. 797), a
escola pública está “sob ataque” porque possui o potencial de tornar-
se uma “esfera pública democrática”, seguindo uma pedagogia
crítica, fornecendo aos estudantes, enquanto atores sociais,
“capacidades, conhecimento e valores necessários” para que se
tornem “cidadãos críticos”. O autor sublinha que é na escola pública
que os atores sociais encontram um espaço para criar uma
consciência crítica, através do diálogo, de que o poder ou o regime
político em que se inserem pode ser responsabilizado pelas políticas
públicas que desenvolve. A escola pública deve “desconstruir e
substituir” o discurso dominante de comercialização que domina o
panorama escolar atual, criando “modelos” que reproduzam a
globalização e as implicações de uma democracia global e neoliberal
(Giroux, 2004, p. 806). Contudo, e conforme salienta Harber (2014), é
necessário levar em conta que o sistema de educação formal em
contextos pós-coloniais é ainda caracterizado pela herança colonial,
privilegiando a (re)produção e formação de elites, estando por vezes
desadequado face às realidades regionais e seus sistemas de
conhecimento locais.
44 Nesse sentido, as três gerações reforçam nas suas narrativas
biográficas o papel da educação informal, através da família,
comunidade e religião, como essencial na construção de uma
emancipação e capacidade de autonomia face à instituição-escola
que continua igual ao que era desde os tempos coloniais – um espaço
que não promove a mobilidade social, privilegiando as elites ligadas
em particular ao partido político que continua a liderar o país desde
a independência (i.e. Frelimo).

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NOTAS
1. A autora gostaria de agradecer a leitura crítica e respetivos
comentários feitos pelos reviewers, incorporados no texto. Os
agradecimentos estendem-se também à leitura crítica do texto
inicial feita pelo Professor Fernando Florêncio, cujos contributos
foram incluídos.
RESUMOS
Neste artigo argumenta-se que a escola, em contexto pós-colonial, é um espaço (re)produtor
de desigualdades sociais, definindo-se como uma instituição transmissora de cultura, um
lugar de poder e local de construção da realidade de uma elite que se tem vindo a consolidar
desde o período colonial até à atualidade, seguindo um modelo que retrata o ensino na
Europa Ocidental. Olhando para as últimas quatro décadas de ensino em Moçambique,
enquadradas em três períodos ideológicos e políticos que caracterizam o país, recorrendo à
etnografia e recolha de histórias de vida ao longo de três gerações, pretende-se contribuir
para o entendimento da aprendizagem e como ela é feita na instituição-escola, percebendo
a sua contribuição na construção da emancipação dos atores sociais.

In this article it is argued that school, in a post-colonial context, is a space that (re)produces
social inequalities. School is an institution that reproduces culture, a place of power in
which reality is socially constructed by an elite that has been growing since colonial times
until nowadays. School, in post-colonial settings, follows a Western European model and
system of education. Looking at the last four decades of education in Mozambique, framed
in three specific ideological and political periods, using ethnography and collection of life
histories over three generations, this article aims to contribute for an understanding of
learning in school as an institution, and how it contributes for the emancipation of social
actors.

ÍNDICE
Keywords: critical pedagogy, generation, ethnography, life stories, narrative, Mozambique
Palavras-chave: pedagogia crítica, geração, etnografia, histórias de vida, narrativa,
Moçambique

AUTOR
XÉNIA DE CARVALHO

Centro em Rede de Investigação em Antropologia (CRIA) / Instituto Universitário de Lisboa


(ISCTE-IUL)
Av. das Forças Armadas, 1649-026 Lisboa, Portugal
xeniacarvalho@gmail.com
Entrevista
Diálogo com Alberto da Costa e
Silva: A participação africana na
agricultura brasileira e outros
movimentos e contribuições
transatlânticas 1
Dialogue with Alberto da Costa e Silva: African participation in Brazilian
agriculture and other transatlantic movements and contributions

Flávia Alves Santos, Ana Louise Carvalho Fiuza e Carlos Ernesto Schaefer

NOTA DO EDITOR
Recebido: 29 de junho de 2020
Aceite: 10 de agosto de 2020

1 Alberto Vasconcellos da Costa e Silva (ACS), filho do poeta piauiense


Antônio Francisco da Costa e Silva, seguiu o mesmo ofício do pai,
além de estabelecer um sólido percurso como historiador e
africanista. Seu percurso profissional e acadêmico passa por
experiências como a de diplomata em Lisboa, Caracas, Washington,
Roma e Madrid, e embaixador na Nigéria, Benim, Portugal, Colômbia
e Paraguai. Publicou diversas obras como poeta, ensaísta, ou
historiador, se consagrando como um dos grandes africanistas do
Brasil. É membro da Academia Brasileira de Letras, do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, foi condecorado em Portugal,
Espanha, Itália, dentre outros países, e foi-lhe atribuído o título de
Doctor Honoris Causa em universidades como Obafemi Awolowo da
Nigéria, Universidade Federal Fluminense e Universidade Federal da
Bahia, ambas no Brasil. Como escritor recebeu o Prêmio Juca Pato em
2003, e o Prêmio Camões em 2014 pelo conjunto de sua obra.
Apaixonado e interessado pela África desde sua juventude, se
dedicou ao estudo da história e cultura deste continente lançando
uma grandiosa trilogia, ainda por concluir. No quadro desta
entrevista, os dois volumes desta trilogia nos interessaram
particularmente como embasamento para a conversa empreendida.
2 O primeiro livro desta coleção, A Enxada e a Lança: A África antes dos
Portugueses (1996), trata da África subsaariana antes do contato com
os europeus, explorando com riqueza de detalhes e informações as
peculiaridades sociais, econômicas e políticas próprias deste
continente. A Manilha e o Libambo. A África e a Escravidão, de 1500 a 1700
(2002) dá continuidade sequencial, abordando o período inicial da
diáspora após intenso contato dos povos negros com os portugueses
e outros europeus, enfatizando as relações sociais, econômicas e
comerciais que passaram a moldar a história da África.
3 Pensando neste entrelaçamento e nas novas possibilidades e
contextos sociais advindos da diáspora africana, realizou-se, no ano
de 2018, a entrevista abaixo descrita. Interessados pelas ideias e
conhecimentos de Alberto da Costa e Silva acerca das técnicas e
práticas africanas expressadas no Brasil através da mão de obra
escrava, buscamos explorar tais aspectos na agricultura brasileira.
Através da abordagem da agricultura como ponto central, foi
possível perpassar outras questões como aquelas culturais,
econômicas, ou sociais, revelando um universo de intersecção a
partir das misturas ocorridas no Brasil.
4 Alberto nos recebeu em sua casa para esta entrevista, em um
ambiente que retrata e revela partes de suas experiências e paixões.
Livros, quadros, esculturas e móveis formam uma harmoniosa e
curiosa composição da sala onde fomos recebidos, e tanto a
decoração quanto o início de sua fala já apontavam para um assunto
que acabou por se revelar em toda a conversa: a mistura brasileira e
a participação africana na formaç ão do Brasil. O africanista inicia
nos contando sobre a região de origem de sua família, o Piauí, e
relata brevemente:
A minha família foi fundada por um senhor francês que veio com dois
portugueses e um alemão, a mando de D. Maria I, em busca das famosas minas de
prata, que eles nunca encontraram. Nunca encontraram, mas se encantou com a
terra e ficou lá, nunca saíram. Na serra de Ibiapaba, fronteira com o Piauí, onde
você tem maçã, pera, uva, ameixa, tem todos os frutos europeus temperados,
porque na serra faz frio, e tem um microclima inteiramente diferente do resto do
estado, e do resto da região.
5 Segue abaixo a sequência do diálogo, grandemente conduzido por
ele, apesar das tentativas de interrupção, por ele contornadas a fim
de seguir seu raciocínio e dividir conosco um pouco de seu amplo
conhecimento sobre as participações africanas no Brasil.
Sobre o modo de se fazer agricultura no Brasil, esta prática poderia ser muito mais
africana do que indígena ou portuguesa, ao contrário do que podemos muitas vezes
pensar. Até porque foi o braço africano que cultivou. Em Moçambique e Angola
percebi a semelhança que existe na maneira como se lavra a terra lá, a forma como se
usa os instrumentos, a enxada de cabo curto, a roça limpa, diferente de uma roça tupi,
o trato da terra e o ciclo da cultura são muito parecidos também na roça brasileira e
na africana. E o africano não é de fazer um rodízio cultural tão forte quanto o índio,
que tem uma pressão de uso contínuo da terra muito maior. Qual a opinião do senhor
sobre essa ideia?
Eu acho primeiro o seguinte: não há uma África. O que se vê em
Moçambique é inteiramente diferente do que poderia ser visto no
Senegal. O que se vê no Senegal é diferente do que se vê em Angola.
Não há uma regra para dizer “há uma agricultura africana”. Não há
agricultura africana como não há agricultura portuguesa.
Agricultura da Beira, agricultura do Alentejo... Tem tradições
diferentes e formas de cultivo diferentes, até a forma de colher, de
aproveitar a colheita. Essa tendência que nós temos para o
generalismo, de dizer sobre a influência tupi, mas que influência
tupi? Qual delas? Durante anos eu estudei história do Brasil dizendo
que os índios mal sabiam agricultar. Os índios tinham até indústria!
Se você for ver uma casa de farinha de mandioca, era uma pequena
indústria.
E sobre a participação das mulheres nesta agricultura?
As mulheres é um outro capítulo. É sobre como os homens
conseguiam fazer com que as mulheres trabalhassem para eles. E
como eles inventaram ocupações que não t ê m nada a ver com
trabalho: política, esporte, tudo isso o homem faz. Remar, carregar
peso, lançar dardos, transformou em esporte. Agora, a mulher, não
transformou nada em esporte. Não há olimpíada de trocar fralda,
de fazer mingau, não há nada disso. As mulheres trabalham, e na
África inteira você vai ver. Só vai ver os homens descansando e as
mulheres trabalhando. Além do fato de a agricultura estar nas mãos
femininas na África, está também em mãos femininas no Brasil,
onde não há arado. Principalmente quando você tem arado puxado
pelo boi, o cavalo é que faz a força. O homem está atrás do arado.
Sempre que for de enxada, tem uma mulher.
Na África isto é muito típico, não é?
Na África, no Brasil, na Irlanda, na Inglaterra, na Austrália.
Determinados modelos vieram para o Brasil, outros não vieram. Por
exemplo, é possível que até haja por aí e eu não saiba, eu não sou
especialista na matéria. Mas um africano da África Ocidental ele
não planta um só vegetal num tanto de terra. Ele planta três,
quatro, cinco vegetais ao mesmo tempo, que se um falhar, o outro
dá certo. E é um procedimento que não se faz no Brasil, nem o índio
fazia, nem o branco. Eu não conheço no Brasil lugar onde tenha
essa mistura.
O senhor considera essa policultura algo tipicamente africano?
Não sei se é tipicamente africana. Eu sei que na África Ocidental se
pratica muito. Agora, há determinadas formas de cultivar que você
viu em Moçambique que já são herança portuguesa. O que acontece
é o seguinte: esses processos andam mais depressa do que a gente.
Quando os portugueses chegaram ao Brasil e depois começaram a
fazer viagens do Brasil para a África, levaram a mandioca para lá,
isso deve ter se dado por 1510, 1520, 1530. Em 1600 já havia
mandioca no Ganja. A mandioca andou mais depressa no continente
africano que o homem, que a presença do homem. A farinha da
mandioca, que é um processo complicado. E na Nigéria diziam “isso
aqui é como nós fazemos farinha, não como vocês fazem farinha. É
como os índios fazem farinha no Brasil e veio para cá”. Então isso
andou muito depressa, esses processos andam mais depressa que o
homem, quando eles são bons. O que acontece é o seguinte, e é uma
história incrível. Não somos só nós que somos inteligentes, os
outros também são. Todos são inteligentes. Tem determinados
processos que você pode dizer que são africanos, outros não. O que
não quer dizer que a África não tenha influenciado a agricultura
brasileira, pois influenciou, e muito. Determinadas condições e
determinadas áreas da África são diferentes. Por exemplo, a rotação
de culturas, umas comunidades africanas possuem, outras não.
Aproveitamento de restos da cozinha é comum em determinadas
aldeias africanas, usar o resto de comida para fazer adubo, como se
fazia no Brasil quando eu era pequeno. Não sei se ainda se faz.
Já o índio costumava queimar todos os restos culturais dele, como o lixo doméstico.
O europeu também queimava muito. E o africano também
queimava. Porque a terra era mais carente, o solo africano era mais
difícil em determinados locais, quase todos são pouco profundos. Se
você submete a agricultura a uma cultura de arado, a terra vai
embora, o solo vai embora numa velocidade enorme.
O senhor falou rapidamente do tema da rotação de culturas. Na Europa, a partir do
século XI , começa haver um desenvolvimento lento. E na África, no século XV , como
era a rotação de culturas?
A gente não sabe em que medida os portugueses, holandeses e
ingleses, franceses, que andavam pela costa da África prestavam
atenção, no séc. XV ou XVI , na agricultura africana. Provavelmente
muito pouco! O navegador português não era marinheiro de
origem, era agricultor. Então quando eles viam uma planta
diferente, eles traziam. Usavam vasilhas de barro, regavam todo dia
e viajavam da Índia até Portugal. Eles prestavam muita atenção nos
vegetais que estavam sendo cultivados. Eles estavam mais
interessados em saber como era o quiabo, como era o maxixe, como
era o jiló. Mesmo porque eles não tinham como observar muitas
coisas. Porque eles estavam quase sempre como hóspedes, e
hóspedes não podem manifestar excessiva curiosidade, que já vira
espião. Você tem determinados aspectos de agricultura que são
distintos de um lugar para outro. Por exemplo, na Nigéria e no
atual Benim, a maior parte dos espaços dedicados a determinada
cultura, ou a muitas culturas, não é uma área delimitada e
quadrada como no Brasil ou em Portugal. É redonda. Porque eles
fazem com muito mais facilidade uma roda, um círculo, do que
fazem um quadrado. Tradicionalmente eles desenvolveram mais a
linha curva, do que a linha quadrada. E tem uma coisa
extraordinária. Você v ê um jardineiro ficar no centro, pegar uma
vareta e fazer assim (movimento de círculo), redondo, e ficar uma
curva perfeita, não tem defeito. Quando você manda ele fazer um
ângulo reto, é uma desgraça, só fica reto depois de um grande
esforço. Determinados lugares da África tinham uma agricultura
muito avançada, muito adiantada. Por exemplo, na África Oriental,
você tinha determinadas áreas que conheciam perfeitamente a
agricultura de socalco. Agricultura de socalco que você vai
encontrar no norte de Portugal, em regiões montanhosas, onde
você ser capaz de, na encosta de uma montanha, criar uma espécie
de varanda, onde é possível cultivar em terraços. Isso é muito
comum em determinadas sociedades africanas.
Como na Etiópia e no Sudão?
Toda aquela área da África Oriental, onde tem montanhas, você tem
terraços. Este tipo de cultivo era diferente de tudo aquilo a que os
europeus estavam acostumados. Você aproveita muito das várias
colheitas por ano, aproveitando do cultivo de diferentes vegetais.
Foi um problema com os europeus na fase colonial, quando tiveram
o experimento com os africanos para que plantassem roça de cacau.
E o africano não compreendia aquilo. Embora tivessem recebido o
cacau da América, o europeu queria ter só cacau como monocultura
em determinados espaços.
E a maneira africana era sempre a policultura, misturar.
Misturar... isso não passou para o Brasil. Não passou para o Brasil
como não passou a polirritmia africana. A música brasileira veio da
África, a música do carnaval é toda baseada no compasso, não é
isso? A África não conhece o compasso. A África é polirrítmica. A
música brasileira tem muito da música africana, mas sem estender
à portuguesa. Umas coisas vieram, outras não. Os africanos não
eram bobos, eles eram inteligentes, eram pessoas humanas. Nós
tendemos a acompanhar o pensamento do escravizador, pensando
que ele era um imbecil, que o africano escravizado era um tonto,
não tinha consciência social. Tudo isso é mentira. Eles tinham
consciência própria do que estavam fazendo. Quando eles podiam,
conservavam, e conservavam o que podiam. Quando não podiam ou
não lhes interessava, não conservavam. Então você tem fenômenos
assim, você tem o curupira. O que é o curupira? O sujeito que
protege a floresta, que tem os pés voltados para trás... isso é uma
figura da África Ocidental. Ele conservou e mudou de veste. Então
muita coisa se conservou, e muita coisa não.
E sobre os alimentos? Sobre essa troca de espécies vegetais entre os continentes? A
manga já estava frutificando na Bahia acho que em 1530, não é isso?
Mais sério que isso, já havia coqueiro! Coqueiro não é brasileiro. E
você tem coqueiros desde o Amazonas, pelo litoral, até o Rio
Grande do Sul, está tudo cheio de coqueiros. O coqueiro veio do
sudeste da Ásia, da Oceania. Entra pela Índia, vai pelo Egito, vai
descer até a costa atlântica, e entra no Brasil. Antes de terminar o
século XVI o coqueiro já havia deslocado a palmeira. A banana.
Você tem muitos tipos de banana. A banana veio da Índia, e vai
mudando de tipo na África. Chega no Brasil ela topa com a pacova,
que era brasileira, que chamamos hoje em dia de banana da terra,
que é aquela banana dura, que você frita. Você tem uns 50 tipos de
banana. Algumas vieram para o Brasil, outras não passaram pela
África, outras ficaram no Egito, outras na Índia. É uma história
muito complexa, porque foi ficando pelos pedaços. A história dos
nossos vegetais é uma das mais fascinantes que existe. A história de
como o quiabo se impôs no Brasil, de como a batata, uma cultura
que só se via entre os índios altiplanos da América do Sul, se
transformou no prato nacional da Europa. Virou batata frita, batata
inglesa. Quando você vai ao mercado na Colômbia, e isso vale ainda
mais para o Peru e para o Equador, oeste da Colômbia, o berço da
batata. Voc ê vai ao mercado, você encontra dez, onze tipos de
batata inglesa, como você nunca viu antes no Brasil, porque nós
selecio namos aqueles tipos que nos agradavam mais.
A mandioca concorreu no Brasil com a batata, não é?
A mandioca tem uma vantagem, que nos ajuda a aproximar o
seguinte: os portugueses chamavam a mandioca “farinha de
guerra”. Porque você podia levar num alforje, amarrado na cintura,
o seu alimento, sem precisar cozinhar, sem precisar fazer nada.
Depois tinha outro aspecto, que você podia plantar mandioca e
deixá-la plantada e só colher quando você quiser. Quando
necessário você corta a raiz. Então foi o produto da mandioca que
deslocou o milhete e o sorgo. Estes ainda existem muito na África,
mas foram deslocados como prato principal pela mandioca e pelo
milho. O amendoim. O amendoim africano é o mais gostoso do
mundo, muito melhor que o brasileiro. Mas veio do Brasil, o que vai
acontecer é que eles escolheram as melhores espécies. Abacaxi.
Nunca comi um abacaxi amargo, azedo, na Nigéria. Ele é doce.
Foram os descendentes de escravos que voltaram para a Nigéria,
levaram o abacaxi chamado Rosa. É aquele bem escurinho, que é
rosado.
E sobre os instrumentos utilizados na agricultura? Quais importações, adaptações ou
invenções o senhor poderia relatar?
A enxada de cabo curto, por exemplo, é africana. Onde chegou a
enxada de cabo longo, ela deslocou a de cabo curto. Era comum na
minha infância as pessoas varrerem a frente das casas com uma
vassoura de cabo curto, como faziam na África, e como fazem nos
quilombos no Brasil. Eu tenho a impressão que já no início do
século XX nós já usamos no Brasil enxada de cabo curto.
A respeito dos quilombos, percebi em algumas comunidades em Minas Gerais (Brasil)
que eles mantinham o que parece um enxó, que é uma enxada de cabo muito curto,
que a mulher usava no trato das roças mais próximas da casa. É uma enxadinha mas
o ferro dela parece um enxó, e ele é arredondado.
Sabe por que é de ferro? Os fornos africanos faziam o trabalho de
fundição a altíssimas temperaturas, mas eram fornos pequenos, só
podiam fazer objetos pequenos. Então quando as mulheres
andavam com uma enxada pequenininha, como a que você disse,
era porque era mais barato. Uma coisa curiosa é que geralmente o
africano não mora onde ele planta. Ele mora na aldeia e tem a roça
longe. A roça dele, que ele herdou, ou a roça coletiva do grupo, com
propriedade da terra grupal, que é uma coisa bem portuguesa.
Porque nós estamos lidando com duas coisas: uma agricultura que
tem possibilidade de ser usada em grandes espaços, como a
africana; e uma agricultura de pequenos espaços, que é a
portuguesa, assim como a pecuária. Há uma diferença muito grande
entre o campino português, que lida com o gado num espaço muito
pequeno, e o africano que lida com espaços muito grandes e trouxe
esse espaço grande para o Brasil. A pecuária tradicional brasileira
expandiu. Ela é extensiva.
Coisa que não existia em Portugal.
Não. E a identificação do proprietário do gado era feita da mesma
maneira que na África. Na África quando um grupo segue com seu
gado para um determinado lugar, quem toma conta do gado fica
com um determinado número de bezerros, como no Brasil. E como
é a marca? Corte na orelha. No Brasil é também corte na orelha.
Sobre a repressão cultural dos escravos, o senhor considera traços ou características
que conseguiram permanecer em quilombolas ou na agricultura?
Isso é uma matéria que é muito discutida e na realidade há duas
grandes correntes de estudiosos da história da África, e dos negros
nas Américas. Os que acreditam nas marcas que ficaram e os que
acreditam na criolização total do negro. Vamos começar pelo mais
fácil. Segundo os que falam da criolização, um africano escravizado
chega no Brasil, se mistura com os outros e cria uma cultura
própria. Mas muitos africanos permaneceram livres nas Américas, e
não houve uma criolização total, houve uma criolização parcial.
Durante muito tempo, acreditou-se e escrevia-se dizendo que os
negros chegavam aqui misturados, que os brancos procuravam
misturar os africanos de tal forma que não permanecessem traços
marcados, para que não falassem a mesma língua. Isso tudo é
ficção. A maioria dos casos é assim: o navio negreiro saía do Brasil
com sua carga de tabaco, aguardente, espingardas, pólvora, tecidos
da Índia. Chegavam no porto africano e podiam encontrar cinco
escravos, mas podiam chegar depois de uma guerra e encontrar 200
escravos. Se ele encontrasse 200 escravos, ele embarcava 200
escravos, então vinham todos juntos. Chegando no Brasil, essas
pessoas eram vendidas para as grandes fazendas. Os que iam para
casas particulares iam sozinhos, mas os que iam para a fazenda, iam
cinco, seis juntos.
O senhor quer dizer que não havia essa divisão proposital de separá-los?
Podiam até querer fazer mas não conseguiam. E tinha mais: esses
africanos escravizados muitas vezes eram da mesma região, não
eram do mesmo grupo, e falavam as várias línguas entre si. Há um
romance do Coelho Neto que pouca gente conhece, mas que é um
dos melhores romances sobre escravidão, chama-se Rei Negro .
Coelho Neto deve ter conversado com muita gente, com muito
africano. Porque ele trouxe um retrato que é exatamente isso. Os
reis eram libertados pelos seus co-regionais. Eles chegavam no
Brasil, eram identificados como aristocratas, o seu grupo fazia uma
vaquinha e compravam sua liberdade, e ele era alforriado logo. É a
história do Chico Rei, da Casa das Minas no Maranhão, são muitas
histórias. E muitas mais para contar...
Tem relatos de quilombolas que foram atacados nos séculos XVII e XVIII e todos os
bandeirantes que eram encarregados disso, capitães do mato, relatam que tinham
portugueses fugidos, e índios, todos misturados.
Você tem os quilombolas que se mantiveram africanos, e os que se
aportuguesaram. Por que? Porque era mais fácil. Era muita gente
diferente junta. Fugitivos de diferentes grupos. Quando eram do
mesmo grupo, eles mantinham as tradições, ou inventavam outra
língua. Porque você dá nome às coisas novas que você vê. Eram uma
mistura de tudo. A cerâmica encontrada em Palmares é toda
indígena. O ser humano ele absorve tudo, ele escolhe. Nós estamos
aqui conversando, de repente eu quero dizer uma coisa, mas não
quero falar a todos. Eu vou ao seu ouvido e cochicho. Ao cochichar
estou usando uma palavra africana. É uma palavra quimbunda que
se transformou em verbo português. Porque também transforma as
coisas. Porque eu estava zangado, outra palavra africana. Em
Portugal você não zanga, você fica eniado. Assim como fomos
incorporando todas essas palavras africanas, e eu não estou
mencionando palavras que dizem respeito a deuses ou objetos,
estou mencionando palavras que são abstratas. Dizem respeito a
conceitos semi-abstratos. Os africanos no Brasil fizeram a mesma
coisa. Eles se aportuguesaram, ou melhor, se abrasileiraram. Isso é
muito visível quando você vai para a África Ocidental, vai para
Gana, vai para o Benim, vai para o sul da Nigéria.
Então o que o senhor está descrevendo, de certa forma, é um movimento de
aculturação.
São vários movimentos de aculturação. As senhoras na África nos
séculos XVI , XVII , usavam roupas que não eram as mesmas das
outras. Elas queriam se diferenciar das outras. Elas queriam ser
diferentes. Então moravam numa casa com janela, com reboco,
pintada de branco, para dizer: eu sou diferente.
E se pensarmos de forma específica na agricultura, esse movimento de aculturação
se desenhou dessa forma? Ou o negro na alimentação ele deixa marcas mais fortes
em termos de tecnologia que de alimentação?
Tem uma coisa que chama azeite de dendê, pimenta, uso do
camarão seco misturado com camarão fresco, e vai por aí. Eu não
sou um especialista em cozinha. Mas a minha mulher se fosse viva,
se estivesse aqui, daria numerosíssimos exemplos. Ia pegar um livro
de cozinha nigeriana e ia mostrar. Ia mostrar por exemplo o vatapá.
O vatapá nigeriano, vou chamar de efó, porque efó em geral, a
pasta, eles fazem de inhame. A minha mãe fazia de amendoim,
pasta de amendoim. Tem gente que faz com massa de milho, fubá.
Ao lado do prato principal, que era aquela massa, o camarão seco, o
camarão fresco, o peixe. E no nigeriano havia uma série de
potinhos. Cada potinho um tempero de pimenta diferente. Então, o
vatapá brasileiro demora dois dias para ser feito. O vatapá
nigeriano demora uma semana. Então você tem essas diferenças
que marcaram a cozinha. Se passou no Brasil algo muito curioso. A
sala de jantar, do chefe, do patrão, do dono, do senhor, influenciou
a cozinha, e a cozinha influenciou a casa com a sala do patrão.
Primeiro o africano começou a comer doce, que ele não comia na
África, e o patrão a comer quiabo, e pimenta. Foram trocando.
Misturou-se tomate e azeitona, inhame, dendê. Fizeram todas as
misturas possíveis. A comida baiana é 80% africana e 20%
portuguesa. Durante anos dizia-se que feijoada era comida africana.
Feijoada veio do norte de Portugal, é a favada. Só que lá eles fazem
com feijão branco. O que o mineiro chama de Romeu e Julieta,
invenção mineira, goiabada com queijo, veio também de Portugal.
Só que lá é queijo da serra com marmelada. Mas é a mesma coisa!
Só mudaram o ingrediente aqui porque não tinha marmelo, aí
fizeram com goiaba. E não havia o queijo da serra, o queijo forte,
fizeram com o queijo de Minas. As coisas são complicadas, e nesse
capítulo da alimentação, em última análise da agricultura, mais
complicadas ainda.
Mas o quiabo, a pimenta, esse espaço para uma policultura que caracterizou a
agricultura africana, em meio à monocultura brasileira, o africano conseguiu penetrar?
Porque o africano tinha roça. Na maioria das fazendas era dado um
pequeno trato de terra para o africano plantar sua comida. E ele
plantava a sua comida. E nas cidades havia essa coisa curiosíssima,
todo mundo hoje em dia vive em apartamento, inclusive eu. Eu
morei muitos anos em casa. Você tinha ao lado da cozinha,
separado da casa, mas dentro do mesmo terreno, espaços fechados,
onde você tratava a horta. Toda casa tinha sua horta. Era na horta
que plantavam pimenta, o tomate. E você vai misturar o alho com
os ingredientes africanos. Tudo misturou de uma maneira
impressionante. Veja como isso é complicado. É mais complicado
ainda num regime onde se tinha o mundo dividido em dois: homem
livre e homem escravo. Complicado! O homem escravo teve de
influenciar o homem livre, e influenciou através da babá, da ama. E
não se esqueça que ama é uma palavra indiana, veio da Índia.
Impossível no Brasil separar o que é africano do que é português.
Geralmente quando vai separar faz bobagem.
O senhor falou da mineração, da influência na enxadinha, a influência do negro na
mineração no Brasil. No Museu de Artes e Ofícios de Belo Horizonte 2 tem algumas
coisas da influência africana, mas muito pouco. O senhor pode dizer algo a este
respeito, ou relatos de uma possível influência?
A influência foi total. Temos o seguinte: o português não tinha ouro
em Portugal, ou tinha muito pouco. Eles não dominavam as técnicas
de abertura de poços e corredores subterrâneos, não sabiam batear
os rios. Alguns sabiam, alguns poucos, mas não vieram para o
Brasil. E depois que se encontrou o ouro, geralmente vinham para
ser comerciantes de ouro, contrabandistas de ouro, capatazes.
Quem conhecia ouro era o africano. Antes da descoberta do ouro
nas Américas, todo o ouro, quase todo o ouro, que se usava para
fazer moedas na Europa e nos países árabes, era proveniente da
África. Da região ocidental, da região de Bouré, do Gana, da África
Oriental da região de Sofala, planalto central de Zimbábue. Era o
ouro africano que atravessa o Saara e o Mar Vermelho e o Índico,
produzido por africanos que sabiam produzir. O português não
sabia. Praticamente todas as técnicas foram introduzidas por
africanos. E no fabrico de joias, aí é diferente. A maioria das joias
brasileiras são de prata. Porque a prata era um metal muito mais
valioso, muito mais raro que o ouro. Hoje a gente vê de maneira
diferente. Mas se você olhar as formas, em Salvador (Bahia) num
museu sensacional, onde tem um dos grandes colecionadores de
joias, a maioria delas tem desenhos africanos. Desenhos
semelhantes aos dos axantes, etc. Mas era o casamento de duas
tradições. Porque a tradição do ourives português é muito antiga. E
o português fazia joias há muitos anos, e joias muito bonitas. Então
houve casamento das técnicas de fazer joias africanas e
portuguesas, que deu a joia brasileira, a tradicional, que é diferente
da portuguesa e da africana. Você vai a um antiquário em Portugal,
olha para uma joia e você vê que ela é brasileira, e não portuguesa.
E como você vê? Pela disposição dos desenhos.
A gente está pensando em termos da influência do negro nas técnicas agrícolas
brasileiras. Mas será, a partir da conversa com o senhor, tenho me perguntado... será
que o melhor termo é influência ou presença?
Participação.
Porque o senhor está trazendo um depoimento muito forte em termos de hibridismo
cultural, às vezes um aculturamento, em termos de busca por ascensão social,
diferenciação. Mas ao mesmo tempo, a presença, a participação. Então talvez, a partir
do relato do senhor, a gente pense mais em termos de uma participação, de uma
presença, do que de uma influência?
Não é bem influência porque essa coisa de que o negro influenciou
a vida brasileira está equivocada. O negro foi copart í cipe na
formação do Brasil. Folclore, tradições, histórias tradicionais,
determinadas técnicas, determinadas áreas até muito antigas, o
negro está presente. Está presente como fundador, como
cofundador, como copart í cipe, e não apenas como influência.
Influência é pouco. Era uma coparticipação. E quanto à sua fala,
ninguém quer ser minoria. Você só quer ser minoria qualificada.
Você só aceita ser minoria quando você se qualifica.
Quando a gente vê a agricultura brasileira, tenho a impressão que a nossa agricultura
é quase que uma contradição, ela é meio nômade. O caipira paulista, mineiro, é
alguém que não pôde ficar muito fixo na terra porque só em 1850 com a lei de terras é
que o Brasil vai conhecer uma certa progressão em termos de possibilidade de se
fixar na terra. Porque antes tudo era de Portugal, e Portugal impedia muito as livres
iniciativas. E eu acho que de certa forma isso foi um fator que inibiu muito a nossa
tecnologia, o nosso avanço tecnológico. Pelo menos quando a gente olha para a
Europa, e vê que eles foram se transformando de servos em camponeses, eles foram
se fixando em terras de que foram conseguindo ter o uso. O senhor concorda com
isso? O que acha da relação que os africanos tiveram com a terra na África e no
Brasil?
São relações diferentes. Costuma-se dizer que dividimos os povos
africanos em coletores agrícolas e pastores. O pastor cria o gado
geralmente livre, anda atrás do gado, muda de local de pastagem
conforme as circunstâncias, mas também planta. Ele faz seus
roçados para ir e na volta ter comida. Então ele é agricultor, e é
coletor. Recolhe cera de abelha, mel de abelha, recolhe raízes,
frutas. O agricultor dedica-se basicamente à agricultura, ao uso da
terra, mas também tem vaca, carneiro, cabra, tem também seus
animais para comer. O que planta menos ou cuida menos dos
animais é o coletor. Mas mesmo assim há povos coletores que já
tem uma vaca, um boi, uma cabra, um carneiro. De maneira que
nem todo agricultor africano é móvel. Como nem todo agricultor
brasileiro é nômade, tem muito agricultor brasileiro preso à terra.
Na Europa na realidade o servo estava preso à terra. Não se vendia
o servo. Vendia-se a terra com o servo dentro. Mesmo que estar
preso a um local. É por isso que muitos emigraram. Porque a
emigração não foi apenas econômica, foi também política. Foi
muita gente que veio da Itália para o Brasil, que não se conformou
com a unificação. Agora, a lei de 1850 temos que discutir muito
sobre ela. Porque foi uma lei altamente reafirmada. Porque ela deu
terra para quem não precisava, ela criou óbice, a disfunção maior
da propriedade rural. Ela foi toda o contrário da lei de terra dos
americanos. Os americanos eram: vá para o oeste, a terra que você
encontrar e cercar é sua. Para o Brasil, tudo tinha dono, embora
não tivesse nenhuma anotação em lugar nenhum. Você não podia
diretamente ocupar espaço de terra porque era tudo do governo, e
ele tinha o poder de doar. Deu para os imigrantes, mas não deu
para os ex-escravos. Na realidade, não havia falta de mão de obra
no Brasil, mão de obra aqui era o ex-escravo. Mas não se quis
aproveitar o ex-escravo porque se pensou o que iria fazer do
italiano, do alemão, do português, do espanhol. Um semiescravo...
não conseguiram fazer. Agora as técnicas entre eles até final do
século XIX , até metade do século XX , eram semelhantes. A
diferença é apenas tipo, o africano não usava o arado. Fazia tudo à
mão. Como no Brasil, a maior parte das fazendas agrícolas não
usavam arado. Hoje tem coisas extraordinárias no Brasil que a
gente nem sabe.
Chegando a um momento final de síntese, a grande desconstrução a partir desses
conhecimentos que o senhor nos passou é que viemos procurando uma influência do
conhecimento dos negros no Brasil e o que o senhor coloca é “não separe o negro do
português”, pois pode haver uma questão de origem mas não de percurso. O senhor
concorda com isso?
A gente acaba tendo que separar para conhecer melhor. Mas é
preciso ter a noção de que em geral eles se apresentam juntos, com
predomínio de um ou de outro, de uma cultura ou da outra. Mas
tem que estudar separadamente. Porque caso contrário você faz o
que tem sido feito até hoje, que é desvalorizar toda uma
contribuição em benefício da outra.
Muitas coisas que o senhor comentou hoje nos remetem a uma percepção
semelhante à de Câmara Cascudo 3 quanto às misturas na alimentação brasileira.
Mas quanto à paisagem, podemos pensar, por exemplo, no mestre português Orlando
Ribeiro 4 . O senhor o conheceu?
Pessoalmente não. Tenho os livros dele. Mas não cheguei a
conhecer.
Ele fala num dado momento que a vinda dele para o Brasil nos anos 50, na época em
que veio a convite de acadêmicos, ele percebeu uma paisagem agrícola que tinha uma
matriz parecida com a que ele tinha visto na África.
E é a mesma. Se você andar de automóvel na estrada que vai de
Gana à Nigéria, é como se você estivesse viajando numa estrada
nordestina. Mesmas plantas, mesmas casas, tudo a mesma coisa. Na
verdade tudo muito parecido, muito semelhante, e ao mesmo
tempo diferente. Porque é parecido, mas tem diferenças. O Brasil é
parecido, a paisagem parece a mesma.
Encerrando, quando o senhor morou na Nigéria, o senhor se identificava com aquilo?
Eu gostava muito, mas eu sabia que era diferente, porque é
diferente. Para começar desembarcava uma porção de brasileiros,
todos eram descendentes de reis, e segundo, todos queriam
encontrar candomblé. O candomblé era uma coisa que, naquela
época, agora mudou um pouco, era visto com certa desconfiança. As
pessoas faziam muito escondido. Como era no Brasil em 1946. Mas
isso também eu sofri em Portugal. Quando as pessoas chegavam em
Portugal todo mundo queria ser descendente de visconde, de
marquês. Como o africano, o descendente de escravo, nunca diz que
os antepassados foram capturados. Foi sempre traição de um tio,
avô, cunhado... Então nenhum é descendente de capturado em
guerra ou luta armada. O pessoal que sai de Portugal nunca sai de lá
por necessidades econômicas. Saem sempre porque foi chamado
por um tio, por um avô, por um cunhado, pela mãe. Motivos
distintos para sair. São as coisas que a gente lida no dia a dia.
6 *
7 Encerrando nosso diálogo, ACS retoma nossa questão central a
respeito da contribuição do africano na agricultura brasileira se
questionando:
Qual seria a contribuição pura do africano para a agricultura e pecuária
brasileira? Será que tem alguma contribuição que é só dele? Que não é também
portuguesa? Porque para cultivar o maxixe não é preciso de técnica africana, não
é isso? Pode usar a técnica europeia. Para cultivar ameixa não precisa de técnica
europeia, pode usar as técnicas africanas.
8 A presença da forte mistura e da coparticipação de diferentes povos
na formação brasileira não permitiram conclusões a respeito da
pureza de contribuições, nem africanas, nem portuguesas, pois são
aspectos que se apresentam juntos, como colocado pelo entrevistado.
Porém, deste diálogo pudemos apreender a ainda presente
necessidade de se considerar o grande arsenal de conhecimentos e
práticas que formaram a sociedade brasileira, a fim de não subjugar
ou desvalorizar injustamente uma contribuição em benefício da
outra.

NOTAS
1. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) -
Código de Financiamento 001.
2. Museu localizado em Belo Horizonte, Minas Gerais/Brasil, onde se
encontra um acervo com peças dos séculos XVIII ao XX,
representativo das atividades profissionais que deram origem à
indústria de transformação em Minas Gerais. Contempla setores de
atividades tradicionais tais como mineração, lapidação, ourivesaria,
alimentício e tecelagem.
3. Historiador e antropólogo brasileiro que se dedicou ao estudo da
cultura brasileira. Sobre a alimentação brasileira e suas influências
indígena, portuguesa, e africana, desde a fabricação dos utensílios
culinários até o modo de se alimentar, ver História da Alimentação no
Brasil (2011).
4. Referência ao renomado geógrafo português e à visita que realiza
ao Brasil na década de 1950 na ocasião do XVIII Congresso
Internacional de Geografia, a partir do qual conhece diversas regiões
brasileiras.

RESUMOS
A entrevista realizada em 2018 com o historiador e africanista brasileiro Alberto da Costa e
Silva objetivou explorar os desdobramentos da diáspora africana e suas influências na
agricultura brasileira. A partir deste tema foram abordadas questões sobre a alimentação,
adaptação de instrumentos agrícolas, escravidão, e mineração, na África, em Portugal e no
Brasil. Costa e Silva relaciona as particularidades dos africanos reconhecendo-os como
copartícipes na formação da sociedade brasileira. Em suas falas, o historiador relata modos
de vida, costumes e conhecimentos típicos, e como estes comportamentos se misturaram
formando um novo com marcas tanto portuguesas, quanto indígenas ou africanas, apesar de
muitas vezes uma contribuição ser desvalorizada em benefício de outra.

The interview conducted in 2018 with the Brazilian historian and Africanist Alberto da
Costa e Silva aimed at exploring the ramifications of the African diaspora and its influences
on Brazilian agriculture. From this theme, he addressed the topics of food diet, adaptation
of agricultural tools, slavery, and mining in Africa, Portugal and Brazil. Costa e Silva listed
the peculiarities of the Africans, recognizing them as co-participants in the formation of the
Brazilian society. In his speeches the researcher reported upon the typical ways of life, the
customs and the knowledge, and how all these behaviours, mixed together, would form a
new one with marks of Portuguese, indigenous and African origin, despite often devaluing
one’s contribution to the benefit of the other.

ÍNDICE
Keywords: diaspora, knowledge, African practices, society, historian
Palavras-chave: diáspora, conhecimento, práticas africanas, sociedade, historiador
AUTORES
FLÁVIA ALVES SANTOS
Universidade Federal de Viçosa
Avenida Purdue, s/n°, Campus Universitário
Edifício Edson Potsch Magalhães
CEP 36570-000 - Viçosa, Minas Gerais, Brasil
as.flavia@yahoo.fr

ANA LOUISE CARVALHO FIUZA


Universidade Federal de Viçosa
Avenida Purdue, s/n°, Campus Universitário
Edifício Edson Potsch Magalhães
CEP 36570-000 - Viçosa, Minas Gerais, Brasil
louisefiuza@ufv.br

CARLOS ERNESTO SCHAEFER

Universidade Federal de Viçosa


Av. Peter Henry Rolfs, s/n°, Departamento de Solos, Campus Universitário
CEP 36570-000 - Viçosa, Minas Gerais, Brasil
carlos.schaefer@ufv.br

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