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UFCD 6655 A literatura do nosso tempo

Sofia Franky Carvalho


2022

Formando: _______________________________________________ Data: ____/ ____/ ____

ANDO A LER UM DICIONÁRIO


[José Eduardo Agualusa]

Há poucos dias, na Feira do Livro de Lisboa, um homem parou diante de mim, e depois de me
cumprimentar apresentou-me o filho, um menino dos seus onze anos: "Este é o António. Diga-
lhe alguma coisa que o faça ler. Lá em casa todos nós temos a paixão pelos livros, há livros em
toda parte, mas ele não se interessa por nenhum. O que fazer?"

Tentei, um tanto assustado, fugir ao desafio. Dei uma resposta qualquer, evasiva, mas depois
que eles se foram embora pus-me a pensar naquilo. Como foi que eu próprio descobri a
literatura? Devia ter a idade do António quando encontrei na biblioteca dos meus pais uma
belíssima enciclopédia ilustrada, do início do século vinte, em dois volumes. Procurava-se a
palavra "aves", por exemplo, e havia uma ou duas páginas com preciosas estampas coloridas
de aves de todo o mundo. Tinha, além disso, imensas mulheres nuas — um deslumbramento!
Lembro-me em particular da famosa tela de Rubens, "O Julgamento de Paris", talvez o
primeiro concurso de misses de que há notícia. Paris, Príncipe de Tróia, tem de decidir quem é
a mais bela: Hera, Atena ou Afrodite. São três mocetonas bem nutridas, três deusas clássicas,
de rijas e luminosas carnes brancas. A bem dizer foi por causa das mulheres que eu me
apaixonei pelos livros. Descobri que por detrás daquelas imagens, por detrás de cada mulher,
mais ou menos despida, havia um enredo, e passei a interessar-me por essas histórias.

Nunca mais deixei de ler. Leio de tudo um pouco, romances, ensaios, poesia, e, é claro,
continuo a interessar-me por enciclopédias e dicionários. Gosto particularmente de ler
dicionários. A minha última paixão, em matéria de dicionários, chama-se Houaiss. Esperei por
ele uns bons seis anos. Sempre que ia a uma bienal do livro, no Rio de Janeiro ou em São
Paulo, perguntava pelo Houaiss. "Sai para o ano", respondiam-me imperturbáveis os
responsáveis pelo projeto, e, para manterem aceso o meu interesse, agitavam factos e
números: mais de 228 mil verbetes, extensos grupos de sinónimos e antónimos,
levantamentos de homónimos, parónimos, coletivos, informações de gramática e uso, bem
como da origem de cada palavra; é o primeiro dicionário a registar a data em que a palavra
entrou na língua, etc. e tal. Finalmente, há alguns meses, o embaixador do Brasil em Berlim,
Roberto Abdenur, ofereceu-me um exemplar (três quilos e seiscentos gramas em papel
bíblia!), e pude assim confirmar a justeza da publicidade. Mais recentemente pedi a uma
amiga que me enviasse, de São Paulo, a versão eletrónica do Houaiss. Não me desiludiu.

Conheci o António Houaiss há muitos anos, numa ocasião em que veio a Lisboa defender o

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Acordo Ortográfico. Fiquei imediatamente seduzido pelo esplendor do seu português, o rigor,
a riqueza, o entusiasmo com que aquele frágil velhinho carioca, filho de imigrantes libaneses,
falava a nossa língua. Ouvir o António Houaiss discursar era uma alegria para a alma. Lembro-
me de Natália Correia (a falta que ela faz a Portugal!), aos gritos, numa das salas da Assembleia
da República:

"Ajoelhem-se! Ajoelhem-se diante da erudição deste homem! Aprendam como se fala a nossa
língua!"

O dicionário em que António Houaiss trabalhou durante tantos anos, e que acabou por ser
concluído, com o apoio de uma vasta equipa de especialistas, brasileiros, portugueses e
africanos, já após a morte do seu mentor, é o melhor monumento à memória do grande
lexicógrafo. Por incrível que pareça, porém, não vi na Feira do Livro nenhum exemplar à venda
— e refiro-me à edição brasileira, da Editora Objetiva, porque (ó escândalo!) não existe ainda
uma versão portuguesa.

O velho Houaiss teria sabido, certamente, o que dizer ao outro António, de onze anos, de
forma a cativá-lo para a literatura. O que quer que ele dissesse parecia ser sempre novo. As
palavras saíam-lhe dos lábios vigorosas e polidas, a brilhar, como se tivessem sido estreadas
naquele mesmo instante. Suspeito que o pequeno António iria à procura dos livros, depois de
ouvir António Houaiss, apenas no afã de descobrir neles, uma outra vez, a luz da nossa língua.

( extraído do site https://culturadetravesseiro.blogspot.com/2009/01/cronica-conto-jos-


agualusa-na-ntegra.html , disponível em 01 de fevereiro, 2022)

1. Identifica e transcreve do texto exemplos de metáfora, comparação e enumeração.


2. Explica, com base na tua leitura, o título do texto.
3. Explica o motivo de tanto interesse pelo dicionário de Houaiss por parte do narrador.
4. Identifica o género literário do texto que leste.
5. Explica a expressão “Ó escândalo!”.
6. Segundo o autor, “o velho Houaiss teria sabido, certamente, o que dizer ao outro
António”. Explica o motivo desta afirmação.
7. Explica o sentido da seguinte frase: “As palavras saíam-lhe vigorosas e polidas, a
brilhar, como se tivessem sido estreadas naquele momento”.

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