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Devemos ser
poliglotas na nossa
língua, afirma
Bechara, 94,
gramático da ABL
Para professor, educação deve capacitar alunos a compreender o
português em todas as variantes e valorizar norma-padrão
Thaís Nicoleti de Camargo
Foi consultora de língua portuguesa da Folha, onde mantém um blog que leva seu nome. Leciona,
como professora convidada, no curso de mestrado profissional em direito da FGV-SP. Autora de
"Redação Linha a Linha" (Publifolha, 2004)
[RESUMO] Evanildo Bechara, 94, referência no estudo da língua portuguesa,
rememora a influência do professor Said Ali na formação de sua visão ampla
da gramática, defende que o ensino da língua deve reconhecer as variantes
(regionais e de estrato social), mas tomar por base a norma-padrão, e, diante
das novas questões que animam o debate nas redes sociais, faz questão de
lembrar que "língua é uso" —e as mudanças ocorrem naturalmente, de acordo
com as necessidades do conjunto dos falantes.
Aos 94, Evanildo Bechara, um dos maiores gramáticos brasileiros, referência
no estudo da língua portuguesa não só no Brasil como em vários outros
países, acaba de doar ao Real Gabinete Português de Leitura sua biblioteca de mais 20
mil volumes, um acervo de obras de filologia, linguística e temas afins, do qual
fazem parte livros publicados na Suécia, na Dinamarca, na Finlândia e na
Noruega.
A escolha do destinatário não foi difícil: a instituição, a quem o mestre é
profundamente grato, é parte de uma história intelectual que começou no
início da década de 1940, quando ele, ainda adolescente, já recebia a ajuda dos
bibliotecários em suas pesquisas.
O gramático Evanildo Bechara no pátio da ABL, onde fica a estátua de
Machado de Assis - Thaís Nicoleti de Camargo - 30.jun.22/Folhapress
Com 80 anos de dedicação à língua portuguesa, Bechara, embora aposentado
das aulas, continua na ativa como presidente da Comissão de Lexicologia e
Lexicografia da ABL (Academia Brasileira de Letras) e vem trabalhando na
reedição de alguns de seus mais importantes livros.
A "Moderna Gramática Portuguesa" chega, revista e ampliada, à sua 39ª
edição, ao lado da "Gramática Escolar da Língua Portuguesa" e da "Gramática
Fácil", todas já lançadas pela Nova Fronteira, responsável também pela série
"Uma Vida entre Palavras", da qual foram publicados dois volumes até agora.
Antes de começar o bate-papo, na sede da ABL, no Rio de Janeiro, gentil e
animado, Bechara adoça com vontade o cafezinho, atribuindo seu gosto pelo
açúcar à origem pernambucana. Ele chegou à cidade com 12 anos para morar
com um tio-avô e é desse momento que partem as suas lembranças.
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Depois de um novo exame de admissão, ingressou no Ginásio Levergé. "Era
um colégio simples, modesto, no Méier", recorda-se com saudade. Foi ali que
conheceu o professor que lhe despertaria o desejo de estudar a língua
portuguesa: Odeval Machado, que lecionava não só português como
matemática, história e geografia, coisa comum naquele tempo.
Odeval Machado recomendava aos alunos a leitura da obra de Eduardo Carlos
Pereira, autor da "Gramática Expositiva: Curso Superior" e da versão
"Elementar", obras que tiveram mais de cem edições na primeira metade do
século 20. "Então eu li a gramática de Eduardo Carlos Pereira de cabo a rabo,
de fio a pavio!"
As aulas do professor, no entanto, é que marcariam a lembrança do futuro
gramático: "Ele chamava a atenção para a importância de saber traduzir o que
você pensa em um texto escrito. Por isso, ele fazia muito conosco
interpretação. A gente lia um texto e procurava dizer o que esse texto nos
transmitia".
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O escritor angolano Pepetela, 79, em São Paulo, durante entrevista à Folha Karime
Xavier - 16.out.19/FolhapressMAIS
Bechara, no entanto, reforça que o trabalho na escola deve tomar por base a
língua-padrão. "No Brasil, o ensino da língua portuguesa é um ensino muito
feito para o dia a dia. A pessoa não estuda a língua para ser um escritor
exemplar, capaz de transmitir os seus pensamentos de modo claro e elegante".
Aproveita para dizer que "elegância", no caso, é saber "aproveitar todos os
recursos que a língua põe à sua disposição".
Confrontado com a ideia de que o ensino da língua-padrão no Brasil
deveria abandonar o cânone lusitano e reconhecer a existência de uma "língua
brasileira", o professor não hesita: "Eu acho que isso é empobrecer a riqueza da
língua, porque nunca o indivíduo é um falante em um só sistema linguístico;
ele, à medida que vai alargando seus conhecimentos, vai vendo a língua por
outros prismas, [conhecendo] outros recursos que a língua põe à sua
disposição. A língua é sempre a língua portuguesa, a língua portuguesa dentro
de um padrão lusitano, de um padrão brasileiro, de um padrão africano. A
nossa norma-padrão é a língua da gramática portuguesa, que é comum. Agora,
esse padrão comum apresenta variantes regionais, variantes culturais etc. Há
duas coisas diferentes: a língua como ciência e a língua como uso. A língua
como ciência é o grande esteio da língua-padrão".
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Esse mesmo riso foi sua opinião sobre a ideia de "escurecer a questão", em vez de
"esclarecer", para contribuir na luta antirracista. O professor constata que
"muita gente resolve dar opinião em coisas que conhece menos".
Os exemplos colhidos nos manuais de linguagem neutra causam ainda mais
estranhamento ("todes", "cares amigues" etc.), sensação que se acentuou
diante de um suposto plural de "professor" na forma "professories".
O único comentário foi uma interjeição, que, depois de um breve instante de
silêncio, deu lugar a uma constatação, vinda de alguém que conhece a fundo a
longa estrada arenosa da língua portuguesa e se vê diante de um cisco: "Isso é
um momento. Pode ser que amanhã isso mude. Como a concepção mudou
para o que hoje estamos vendo, amanhã pode mudar".
Sobre o argumento, tantas vezes brandido, de que a língua muda, o professor
afirma: "Ela muda, mas não se altera a regra gramatical. Um grupo que
resolve pensar diferentemente a língua, mas não a domina, não é capaz de
desbancar uma regra que pertence à língua e a outras línguas que se
sistematizam da mesma maneira".
Bechara não vê, portanto, a existência de uma língua brasileira, tampouco
concorda que se deva estabelecer como norma-padrão o pronome átono no
início de frase ("me traga um copo de água") ou o pronome do caso reto na
posição de sujeito do infinitivo ("deixe ele entrar"). Para ele, esses registros
não constituem norma-padrão.
Tampouco endossa a ideia de que a regência nominal seja objeto de escolha
do falante, como querem alguns: "A língua é uso, não é escolha", diz,
respondendo sinteticamente, talvez sem o perceber, a todas as outras questões.
Afinal, o uso, que se define coletivamente pelo conjunto de falantes, é que
decide o que funciona e o que não funciona, o que fica e o que não fica, o que
simplifica e o que complica.