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DEIXA A
POMBAGIRA Nas
encruzilhadas,
TRABALHAR!
caminhos e
descaminhos
de gênero
Florianópolis, 2019
© by Chaline de Souza
Revisão:
Patrícia Leonor Martins
Este livro foi produzido na Casa do Amor (sede da AMAR e da Fogo Editorial), situada na Praia
do Amor / Conde, Paraíba, Brasil; e na Ilha da Magia (Florianópolis, Santa Catarina, Brasil)
Formato: PDF
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader
Modo de acesso: <http://www.fogoeditorial.com.br>
Inclui referências e anexos
ISBN: 978-65-80478-24-8 (e-book)
Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610 de 19/02/1998. É proibida a re-
produção parcial ou integral desta obra, por quaisquer meios de difusão, inclusive pela inter-
net sem prévia autorização da Fogo Editorial.
FOGO EDITORIAL
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Co missão C i en t í f i c a I n t er n ac i o n al da F o g o E d i to r i a l
Claudia Touris – Universidad de Buenos Aires, Marie Hélène / Sam Bourcier – École des Hautes
Argentina Études en Sciences Sociales, França
Cristina Pompa – Universidade Federal de São Mari-Sol García Somoza – Universidad de Bue-
nos Aires, Argentina; Canthel/Université Paris
Paulo, Brasil / Universidade de Udine, Itália
Descartes, França
Dario Paulo Barrera Rivera – Universidade
Néstor da Costa – Universidad Católica del
Metodista de São Paulo, Brasil / Ecole d’Hautes
Uruguay, Uruguai
Etudes en Sciences Sociales, França
Oscar Calávia Sáez – Universidade Federal de
David Thurfjell – Södertörn University, Suécia Santa Catarina, Brasil / Universidad Complutense
de Madrid, Espanha
Donizetti Tuga Rodrigues – Universidade da
Beira Interior, Portugal Pablo Pozzi – Universidad de Buenos Aires,
Argentina
Einar Thomassen – European Association for the
Study of Religions (EASR), University of Bergen, Pablo Semán – Universidad Nacional de San
Noruega Martin, Argentina
Elias Bongmba – African Association for the Paulo Mendes Pinto – Universidade Lusófona,
Study of Religions (AASR), Rice University, EUA Portugal
Co missão C i en t í f i c a n ac i o n al da Fog o E d i to r i a l
AGRADECIMENTO
por tudo devemos ser gratos e temos que optar pelo que agradecer.
Agradeço à CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pes-
soal de Nível Superior) pela concessão da bolsa durante todo o pe-
ríodo de realização dessa pesquisa que foi em decorrência do mes-
trado em História feito na Universidade de Passo Fundo (UPF). Grata
sou à UPF, que me acolheu e me possibilitou bolsas de estudo desde
minha graduação, até o mestrado. Não só a ela, mas aos que lutaram
antes de mim para que houvessem políticas públicas de inserção de
classes menos favorecidas no campo universitário.
Já me sinto privilegiada por chegar onde nenhum familiar
chegou, me sinto honrada por trilhar um caminho que mostrará aos
meus que poderão segui-lo e que acreditar é preciso e nada é impos-
sível quando se tem fé e axé. Grata por saber que jamais andei só.
Transformar minha dissertação em livro já era um sonho, po-
rém que foi concretizado pela Fogo Editorial, que sem medir esfor-
ços me ajudou a legitimar essas análises em um livro, numa época
em que a luta pela educação, pela informação e pelo respeito não
deve cessar. E todo cuidado é pouco para que possamos nos manter.
Gratidão a minha família que sempre incentivou, do seu modo,
para que eu crescesse enquanto pessoa. Esse trabalho é um pouco
de vocês.
Agradeço a ajuda das professoras doutoras Marlise Mayer, Jac-
queline Ahlert, Gizele Zanotto e Vanda F. Serafim, por cada sugestão
e contribuição a esse trabalho.
E minha gratidão eterna ao povo-de-santo da Fraternidade Es-
trela da Manhã, ao Pai Bira do Maioral, por permitir minha pesquisas
em suas casas, por apoiar minha inserção no campo religioso de seu
rito e possibilitar que a tudo anotasse e descrevesse. Estendo a gra-
tidão à Mãe Tânia de Iansã (in memoriam) pela luta de construir junto
ao Pai Bira do Maioral esse grande espaço sagrado, sua participação
está presente na memória afetiva de todos os membros que a co-
nheceram. Gratidão à Ialorixá Michele Alam, que assumiu as funções
de mãe de santo do Templo de Xangô e Iansã. Todos os entrevista-
dos, minha admiração, pela luta, pela fé e dedicação a essa crença
afrorreligiosa, que como sabemos carrega, de quem não a conhece,
muito preconceito e resistência.
Gratidão às senhoras dessa pesquisa, que são fundamentais na
vida de seus cavalos e que me inspiraram com suas performances e
representações de ser mulher. Estudar essas mulheres, me fez ser
grata por adentrar num espaço de liberdade feminina e de inúmeras
possibilidades que perneiam uma fé que liberta preconceitos acerca
do feminino.
O estudo das religiões está crescendo muito nos últimos
resumo
anos, também como resposta ao aumento de vínculo afrorreligio-
so que se observa no cenário nacional e regional. Nesse sentido, o
estudo das religiões e religiosidades não pode ser negligenciado
pela História e pelas demais ciências sociais, tendo em vista que o
campo religioso é de fato muito relevante na vida cotidiana. Essa
pesquisa tem como problemática o estudo dos discursos sobre as
pombagiras, especialmente nos pontos-cantados, durante os ritos
religiosos da Quimbanda, delimitando aos entoados pela Fraterni-
dade Estrela da Manhã, que engloba o terreiro Reino de Xangô e
Iansã, casa do Maioral localizada na cidade de Pedro Osório/RS; o
Centro Fraternal Nossa Senhora Santana, na cidade de Nova Prata/
RS e o templo Guardiões do Mistério da Estrela, na cidade de Gua-
bijú/RS. Além do conteúdo específico dos pontos cantados, a aná-
lise atenta para a expressão oral dos pontos, ou seja, as formas do
dizer. Recorre-se, também, as fontes orais, buscando compreender
o modo que os adeptos do culto se referem às entidades femininas
cultuadas. No culto religioso afro-brasileiro presencia-se a exis-
tência de duas modalidades inequívocas de feminino, altamente
diferenciadas: uma Orixá; outra, Pombagira, ambas detentoras de
poder, força e número expressivo de adeptos que a elas recor-
rem. O estudo acerca dessa matriz afro-religiosa, que classifica-se
como tendo elementos do Candomblé, da Umbanda e da Quim-
banda; bem como das representações femininas desenvolvidas a
partir dos pontos cantados, torna-se relevante e justifica-se devi-
do a considerável contribuição desse grupo religioso, não só como
crença, mas também como doutrina e assistência aos que buscam
nesses terreiros ajuda, tanto para saúde, quanto para problemas
materiais e emocionais, e o que para nós pesquisadores configu-
ra um leque de possibilidades para entendermos esses espaços
enquanto produtores culturais e sociais. Desse modo, a pesquisa
versa acerca de compreender se a imagem das pombagiras reme-
teriam a padrões éticos, morais e conceituais em termo de nega-
ção e recusa de alguns atributos femininos nelas representados;
também se seriam essas entidades modelos a serem seguidos por
seus cavalos-de santo. Nessa exposição apresentaremos os resul-
tados relativos à análise das pombagiras como representação de
gênero no culto da Quimbanda.
ABSTRACT
response to the increase in religious ties we see on the national
and regional scene. In this sense, the field of religions and
religiosities can not be neglected by history and other social
sciences, considering that the religious field is indeed very relevant
in everyday life. This research has as problematic the study of the
speeches about the pombagiras, especially in the sung points,
during the religious rites of the Quimbanda, delimiting to those
intoned by the Fraternidade Estrela da Manhã, that includes the
terreiro Reino de Xango e Iansã – Casa do Maioral, located in the city
of Pedro Osório/ RS; the Centro Fraternal Nossa Senhora Santana in
the city of Nova Prata / RS and the Templo Guardiões do Mistério
da Estrela in the city of Guabijú / RS. Besides the specific content of
the sung points, the careful analysis for the oral expression of the
points, that is, the forms of saying. It is also used the oral sources,
trying to understand how the worshipers refer to the female
entities worshiped. In the afro-brazilian religious cult the presence
of two unequivocal modalities of feminine, highly differentiated:
an Orixá; another, Exu, both possessing power, strength and
expressive number of adepts who resort to them. The study about
this afro-religious matrix, which is classified as having elements
of Candomblé, Umbanda and Quimbanda; as well as the feminine
representations developed from the sung points, becomes relevant
and justified due to the considerable contribution of this religious
matrix, not only as a belief, but also as a doctrine and assistance
to those who seek in these terreiros helps both for health, and
for material and emotional problems. In this way, the research is
about understanding if the image of the pombagiras would refer
to ethical, moral and conceptual standards in terms of denial and
refusal of some feminine attributes represented in them; also if
these models are entities to be followed by their horses of saint.
In this exhibition we will present the results related to the analysis
of the pombagiras as representation of gender in the cult of
Quimbanda.
Sumário INTRODUÇÃO 17
Referências 111
Anexos 118
PREFÁCIO
LAROIÊ, POMBAGIRAS, SENHORAS QUE ABREM
TRABALHOS E CAMINHOS!
1
Até então, só havíamos publicado coletâneas de eventos (disponíveis gratuita-
mente em nosso sítio).
14 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
“gostaria de dar um conselho aos editores e àqueles que traba-
lham com livros: parem de atentar para as infames – sim, infa-
mes – listas de livros mais vendidos e (presume-se) mais lidos e,
ao contrário, tentem construir mentalmente uma lista dos livros
que exigem ser lidos. Só um mercado editorial baseado nesta
lista mental poderia fazer o livro sair da crise que – pelo que
ouço dizer e repetir – ele está atravessando”.
15 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
na academia ainda sofre certa resistência – de algum modo, parece
que parte da academia (inclusive uma parcela da comunidade de
historiadorxs) entende que tanto gênero como religião seriam “as-
suntos menores”, menos merecedores de serem analisados. Mas
são temas que merecem sim ser cada vez mais desbravados.
O trabalho de Chaline, além de trabalhar com afetos, sensibi-
lidades e emoções, e com as conexões entre religiões e diversida-
des, atua ainda em outro front de batalha, o da resistência (ou será
que no caso de religiões que creem na reencarnação, como a que
Chaline descreve, seria melhor chamar de re-existências?) contra o
sexismo, a intolerância e o racismo religioso.
Se avaliarmos que a obra foi produzida e lançada em 2019,
durante a vigência de um governo federal autocrático e teocrático,
cujo presidente vilipendia a laicidade do Estado e se demonstra
intolerante religioso, racista, elitista, misógino e xenófobo, a obra
de Chaline é ardente fôlego novo – e só podemos agradecê-la por
isso, bem como parabenizá-la.
“Fechando os trabalhos” deste prefácio, cabe encerrar com
a saudação: Laroiê, pombagira!, convidando: DEIXA A POMBAGIRA
TRABALHAR!
VOLTA AO SUMÁRIO
16 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
INTRODUÇÃO
Se eu dei carinho, pra quem não deu valor.
Se eu fiz feitiço, foi tudo por amor.
Eu vou fazer feitiço para aliviar minha dor1.
1
Ponto-cantado pela Fraternidade Estrela da Manhã, para chamada das pombagiras
nos ritos.
2
Quando nos referindo à Pombagira no singular e com a inicial maiúscula estare-
mos nos remetendo à entidade, de modo que pombagiras no plural referem-se a
todas manifestações. Assim também ocorre com Exú e exus.
18 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
chamado das entidades para “descerem” ao terreiro. Bem como,
esse trabalho mobiliza as memórias orais de adeptos ao culto.
Essa pesquisa é resultado da dissertação de mestrado em His-
tória, defendida em abril de 2019, na Universidade de Passo Fun-
do, sob orientação da prof.ª doutora Jacqueline Ahlert e com apoio
e primeiros incentivos do LEC (Laboratório do Estudo das Crenças),
da UPF, com coordenação da Prof.ª doutora Gizele Zanotto. Esse
trabalho tem como objetivo analisar o conteúdo acerca das pom-
bagiras nos pontos-cantados durantes os ritos religiosos de Quim-
banda, delimitando aos entoados pela Fraternidade Estrela da
Manhã, que engloba o terreiro Reino de Xangô e Iansã – Casa do
Maioral, localizada na cidade de Pedro Osório – RS, o Centro Fra-
ternal Nossa Senhora Santana, localizado na cidade de Nova Prata
– RS e o Templo Guardiões do Mistério da Estrela, este na cidade de
Guabijú – RS. Nosso olhar não estará voltado somente aos pontos-
-cantados e as entidades cultuadas por esses grupos, mas também
ao modo como é dito, os termos utilizados e a maneira que seus
adeptos se referem às pombagiras cultuadas em suas práticas e
representações.
Desde a segunda metade do século XX, os cultos com entrela-
çamentos sócio históricos entre Candomblé, Umbanda e Quimban-
da, são mobilizadores de adeptos e um importante vetor doutriná-
rio, assistencial e cultural no Brasil e, também, no Rio Grande do
Sul, espaço de nossa pesquisa, mesmo que haja as territorialidades
visíveis e invisíveis desse grupo religioso. Esses estudos vêm fo-
calizando padrões espaciais que refletem expressões materiais e
simbólicas da fé num espaço que ultrapassa os terreiros da FEM.
Considerando não só as pesquisas acadêmicas que tratam
dessas matrizes religiosas, como também a ausência na histo-
riografia sul-rio-grandense de análises acerca da Umbanda e da
Quimbanda, em comparação às áreas da Antropologia e da Socio-
logia. Busca-se assim, por meio desse trabalho, contribuir na cons-
trução de uma narrativa que vise à influência dessa matriz religiosa
e seus desdobramentos na região.
A Fraternidade Estrela da Manhã é uma organização afror-
religiosa brasileira, associada à Federação Afro Umbandista e
19 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Espiritualista do Rio Grande do Sul3. A FEM, enquanto uma institui-
ção filantrópica, está organizada desde o ano de 2005 em uma as-
sociação regulamentada por um estatuto e um regimento interno.
3
A Federação Afro-Umbandista Espiritualista do Rio Grande do Sul (FAUERS), com
sede na cidade de Canoas/RS. É uma instituição sem fins lucrativos, possui mais
de 3000 Terreiros filiados. Além de orientar seus associados sobre procedimentos
religiosos e auxiliá-los na regularização de suas atividades. Ver mais em: https://
fauers.com.br.
20 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Se fizéssemos nesse trabalho uma macroabordagem, como
por exemplo, da Umbanda, do Candomblé ou da Quimbanda no
Brasil, teríamos certamente informações insuficientes se relacio-
nados com estudos mais específicos. Desse modo, a utilização de
uma especificação para essa pesquisa, tem como objetivo não ape-
nas buscar uma abordagem mais particularizada em suas singula-
ridades, mas obter e avaliar as relações que àquela se integram,
tendo em vista sua conexão com sistemas globais e nacionais, dos
quais foi recortada para o presente estudo.
Busca-se, por meio dessa narrativa, incutir não apenas as con-
cepções de Umbanda, Candomblé e Quimbanda, mas nos aportar-
mos em referenciais teóricos e em suas contribuições ao que se
referem a essas práticas religiosas. Desse modo, não nos atenta-
remos nessa pesquisa aos marcos fundantes da Umbanda ou do
Candomblé no Brasil. Seguindo a ideia de Barbosa (1998, p. 01), ao
se referir que a reconstrução afrorreligiosa no Brasil compreende
elementos muito importantes para serem decifrados.
Como cada terreiro é singular, e cada Pai ou Mãe de santo
possui características próprias de culto, a FEM possui singulari-
dades, tendo em vista o sincretismo entre Candomblé, Umbanda
e Quimbanda em seus ritos. Enquanto elementos do Candom-
blé, apresenta traços culturais mais próximos ao do imaginário
africano, os traços da Umbanda vêm imbuídos de características
mais “abrasileiradas”, e a Quimbanda, para Gomes (2016, p. 21),
fomenta o surgimento de um culto específico à “linha de Exus e
Pombagiras”. Segundo Leistner (2009), há uma contextualização
do afro-umbandismo praticado no Rio Grande do Sul, sendo que,
na maioria dos terreiros, ocorre o culto simultâneo de três formas
ritualísticas, realizadas em eventos específicos: o Batuque (cul-
to aos orixás), a Umbanda (culto aos caboclos e preto velhos) e a
Quimbanda (culto aos exus e pombagiras). Segundo Corrêa (2006),
a prática que comporta as três linhagens é designada como “Linha
Cruzada”, tendo aparecido no estado por volta da década de 1960.
No grupo religioso que objetivamos realizar a pesquisa, de acor-
do com seus postuladores, haveria em seu culto uma similaridade
de ritos em relação não propriamente ao Batuque, mas aos ritos
21 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
candomblecistas, umbandistas e com maior eventualidade ao cul-
to de Quimbanda.
A Umbanda seria, na concepção de Magnani (1991, p. 21-22),
o resultado de um duplo movimento: de um lado a apropriação de
elementos já existentes no seio de cultos, ritos e valores religio-
sos populares que constituíam a Macumba4 e o baixo-espiritismo5,
bem como o Candomblé; de outro lado a Umbanda submete a
esses elementos um processo de depuração, reinterpretando-os
dentro da lógica do Espiritismo. Seria, para esse autor, uma ação
“civilizatória” sobre rituais “bárbaros” e “atrasados”; representaria
uma tentativa de estruturação de práticas mágico-religiosas he-
terogêneas em que seus líderes reivindicam, para ela, um espaço
social legítimo e próprio, para incluir-se ao lado de outras religiões
institucionalizadas (MAGNANI, 1991, p. 29). Segundo Cristiane
Amaral de Barros (2006, p. 02) a umbanda “é uma religião moder-
na, múltipla, dinâmica em termos ritualística e conteúdos doutri-
nários, teria uma enorme facilidade de assimilação, adaptação e
reinterpretação”.
Acerca do Candomblé se têm inúmeros trabalhos referentes
à matriz religiosa, porém também são diversas as suas diferencia-
ções teóricas. Conforme descreve Bastide (1983), o Candomblé
seria uma “pequena África”, porém, para Ortiz (1990), o Candom-
blé passou por um processo de “embranquecimento” nas últimas
décadas. Para Prandi (2004, p. 52), numa pesquisa mais recente,
tratar-se-ia de uma religião dos Orixás africanos, tendo hoje em dia
se transformado e se tornado cada vez mais brasileira.
Segundo Reginaldo Prandi, foi do entrelaçamento dessas
práticas afro-brasileiras, nesse caso, Candomblé e Umbanda, que
4
Adotaremos o termo “macumba”, segundo com concepção de José Guilherme
Cantor Magnani, que para esse autor trata-se de um agregado fluido de elementos
do candomblé, cabula, tradições indígenas, catolicismo popular, espiritismo, práti-
cas mágicas, sem o suporte de uma mitologia ou doutrina. Ver mais em: MAGNANI,
José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo. Editora Ática. 1986, p. 21-22.
5
O termo “baixo-espiritismo” era uma nomenclatura dada pelo espiritismo karde-
cista, ao se referir aos cultos bantos dos antepassados e às entidades cultuadas na
macumba. Ver mais em: MAGNANI (1986, p. 24).
22 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
houve a condução para à linha da Quimbanda, ramificação do cul-
to umbandista, trazendo, em sua ritualística, elementos de ambas
as religiões, porém com evidência da Umbanda, pelo culto a exu e
pombagiras. Para o mesmo autor, por quase duas décadas as ses-
sões de Quimbanda eram praticamente secretas realizadas à por-
ta fechada e nas avançadas horas da noite (PRANDI, 2004, p. 86).
A Quimbanda seria como um departamento subterrâneo da Um-
banda, devido ao culto por espíritos julgados como mediadores do
mal ou da magia negra (PRANDI, 2004, p. 87).
Prandi e Souza (2005, p. 305) dissertam acerca da existência
de uma identificação generalizada, composta por personagens da
vida cotidiana brasileira, sendo nesse caso a Quimbanda, propria-
mente rotulada, representada como um “palco da realidade do
povo brasileiro”. Lisias Negrão (1996a, p. 22), anteriormente a Re-
ginaldo Prandi, considera a Quimbanda uma das predecessoras da
Umbanda, tendo práticas consideradas de “esquerda” sendo con-
tra “desafetos”, “caminhos fechados” na vida pessoal e profissio-
nal, “doenças”, prejuízos materiais, amarrações e de tudo que está
prejudicando as pessoas que buscam ajuda no terreiro.
Percebemos a necessidade do estudo da memória, levando
em consideração o fato de que muitos desses pontos não são es-
critos, mas incorporados de diversos outros terreiros e religiões
de matrizes africanas – incorporação realizada pelos terreiros que
delimitamos à pesquisa – apropriaram-se de muitos pontos que
permanecem em memórias e oralidades. Recorremos ao recurso
de entrevistas com os membros, objetivando compreender melhor
as relações, representações e compreensões dos membros com
as entidades femininas que cultuam e mantém vínculo, não só de
crença, mas de apropriação de suas características no dia a dia.
Conforme Tedesco, atualmente, a memória está no centro de um
grande debate teórico,
23 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Visou-se utilizar apenas o conceito de gênero, para que con-
seguíssemos ao longo dessa pesquisa externar as concepções de
“ser mulher” inseridas nos pontos-cantados. Porém, percebeu-se
que, embora fosse necessário leituras e utilização de teorias sobre
o conceito, seria mais pertinente utilizar também a ideia de repre-
sentações acerca das pombagiras, partindo do entendimento das
representações como exercício de poder a partir das análises de
Chartier (1990). O conceito de gênero, se tornou uma maneira de
indicar as construções sociais, uma criação inteiramente social das
ideias sobre os papéis próprios aos homens e às mulheres.
Após o processo de levantamento prévio do material selecio-
nado, partimos para a uma mobilização de categorias de análise
do conteúdo, usando como referencial teórico Maria Laura Franco
(2007), para a qual toda comunicação é composta por cinco ele-
mentos básicos: uma fonte ou emissão; um processo codificador
que resulta em uma mensagem e se utiliza de um canal de trans-
missão; um receptor, ou detector da mensagem, e seu respectivo
processo decodificador. Também se utilizou das teorias acerca da
Análise do Conteúdo de Bardin (1977), quando tratamos das entre-
vistas e da separação quantitativa dos temas.
Os pontos-cantados que analisamos, estão disponíveis em
uma apostila organizada pela Fraternidade Estrela da Manhã, sen-
do essa entregue em versão digital aos novos membros. Contudo,
cabe salientar que é recorrente a inserção de novos pontos, alte-
rando o número de acordo com o pedido dos adeptos e das pró-
prias entidades chamadas pelos pontos cantados.
Como já citado anteriormente, recorremos nessa pesquisa à
utilização da memória no campo da reflexão histórica e da mobili-
zação de uma metodologia de uma memória oral. Tendo em vista
que as religiões afro-brasileiras são de tradição oral e a análise da
oralidade nessa pesquisa trabalhada academicamente não entra
em concorrência com a tradição escrita. Além disso, é por meio
dela que o povo-de-santo passa seus fundamentos.
Nossa pesquisa será atrelada metodologicamente à análise
do conteúdo, no qual encontramos o Personage6, sendo nesse caso
6
Referindo-nos a pessoas particulares passíveis de serem classificadas de acordo
com diferentes indicadores: nível socioeconômico; sexo; etnia; educação; escolari-
dade; nacionalidade; religião, entre outros (FRANCO, 2007, p.44).
24 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
pessoas que vivenciam o cotidiano desses espaços religiosos. Dian-
te disso, privilegiaremos pessoas que tenham uma trajetória den-
tro da religião, pessoas que ocupam lugares de destaque no seio de
uma religião profundamente hierarquizada. Desse modo, utilizare-
mos do uso de fontes orais7, contudo, delimitamos algumas pessoas
que, nos terreiros da FEM, possuem graus na hierarquia8.
Utilizou-se fontes como fotos, atas, jornais para compor a
pesquisa. Porém, as imagens utilizadas ao longo do texto e ane-
xadas ao final, serão para ilustração, não havendo a análise nessa
primeira pesquisa.
O processo de compreensão e elaboração no tempo/espaço
de pesquisa foi construído dialeticamente, entre as relações de
poder, e a forma cultural e social de entender as pombagiras. Ba-
seamo-nos na análise comparativa das informações, na pesquisa
bibliográfica, documental, e dos dados colhidos em campo. Desse
modo, três capítulos foram organizados a fim de proporcionar ao/à
leitor/a uma visão panorâmica do tema escolhido.
O primeiro capítulo, intitulado O culto afrorreligioso no Brasil
e no estado do Rio Grande do Sul, terá um panorama do desenvolvi-
mento das religiões afro-brasileiras, sua organização e culto, bem
como os desdobramentos sócio-históricos que as levaram ao en-
trelaçamento entre Umbanda, Candomblé e Quimbanda na forma-
ção afro-sul-rio-grandense, fatores esses que contribuíram para a
constituição da Fraternidade Estrela da Manhã. Reconhecendo que
muito ainda há de ser pesquisado e problematizado.
No decorrer da pesquisa acresceu-se que a noção de repre-
sentação enquanto discursos tendem a impor autoridade e que
legitimam para indivíduos suas escolhas e condutas, tendo como
base a teoria de Chartier (1990). Aliado ao conceito de represen-
tação, optou-se por abordar os estudos contemporâneos da teoria
queer, conforme Butler (1999) e Louro (2001). Houve um receio ini-
cial de circunscrever o objeto de estudo nos limites dos conceitos
de gênero.
7
As entrevistas feitas e utilizadas para essa pesquisa tiveram aprovação do Comitê
de Ética e Pesquisa, bem como autorização dos entrevistados.
8
A FEM possui em seu estatuto a hierarquia, dividindo em graus de iniciação, tendo
10 graus hierárquicos.
25 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
O segundo capítulo, intitulado Mulheres, gênero e religiosida-
de afro-brasileira, apresentará interfaces teóricas de estudos acer-
ca do estudo de representação feminina, gênero, corpo e religiosi-
dade. Buscamos nesse capítulo o diálogo com pesquisas anteriores
a essa, sobre construções de gênero e como se pode analisar as
pombagiras a partir de teorias de gênero. Bem como mostrará es-
tudos que visaram a análise do corpo como um espaço de análise
da mulher nas religiões afro-brasileiras e na FEM. Nesse capítulo,
seguiremos a uma sequência explicativa do que acontece ao longo
do rito observado, externando a incorporação feminina dos exus
masculinos, sendo que tal assunto se torna pertinente para a aná-
lise ao longo do contato com o grupo. Dialogar sobre os exus antes
das figuras centrais dessa pesquisa, é seguir a sequência ritualista
adotada pelos terreiros estudados.
O terceiro capítulo, “Abre a roda deixa a pombagira trabalhar”
trataremos acerca do culto às pombagiras e seus desdobramentos
na organização da Quimbanda no Brasil, sobretudo no processo
sincrético desenvolvido ao logo do século XX. Além disso, nesse
capítulo abordaremos o estudo do culto como sendo uma prática
atrelada a uma concepção de templo cíclico e de como os sons e
pontos-cantados são fundamentais ao rito. Serão relatados também
os paradoxos que versam sobre a imagem das pombagiras, marca-
das por narrativas que as referenciam quanto as suas respectivas
sexualidades, marginalidades e a suas posições sociais no culto
afro-religioso e fora dele. Optamos por elucidar acerca das pomba-
giras nesse capítulo, deixando-as “para o final”, tal como ocorre na
ordem de “chamada” do terreiro, justo em razão delas serem evo-
cadas ao final, não por serem menos importantes, mas para “abri-
lhantarem” as giras e trabalharem. Também nesse capítulo faremos
a análise das representações que envolvem essas figuras míticas
das pombagiras, observando as relações entre os pontos-cantando
e fazendo a correlação entre as entrevistas dos adeptos e nossos
referenciais teóricos. Na FEM existe uma hierarquia entre as pom-
bagiras, nesse tópico se buscará explicar tais relações e as atrelar ao
culto ao Maioral, normalmente a última entidade que vem na gira e
não obrigatoriamente, para esse povo-de-santo é o senhor dos exus
e das pombagiras, o que todos nesse grupo religioso mostram servir
e tê-lo como maior entidade seguida e cultuada.
VOLTA AO SUMÁRIO
26 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
1. DA PRESENÇA AFRICANA
NO RIO GRANDE DO SUL
AO CULTO DE CANDOMBLÉ,
UMBANDA E QUIMBANDA
NA FRATERNIDADE
ESTRELA DA MANHÃ
Não podemos desvincular nosso objeto de pesquisa e a fra-
ternidade religiosa de suas memórias e permanências, sendo con-
sequências de circunstâncias históricas pretéritas. Assim, é neces-
sário que se apresente um panorama geral do processo histórico
para que possamos levantar questões e esclarecer outras, todas
referentes ao nosso objeto de trabalho específico – as pombagiras
– para que haja um aporte teórico por meio do qual analisaremos
a natureza de alguns elementos do culto afrorreligioso, bem como
de suas origens possíveis e características mais amplas.
No Brasil há uma complexidade no que tange a herança cul-
tural africana, explicada pelo fato de que escravizados negros,
trazidos pelos colonizadores portugueses, pertenciam a distintos
grupos étnicos da África Ocidental, Oriental e Equatorial, durante
três séculos. Sabe-se que ao longo dos dois primeiros séculos da
história do Rio Grande do Sul os negros africanos e seus descen-
dentes participaram diretamente do desenvolvimento econômico
do estado. Para Beatriz Loner (1999, p.9), “praticamente não houve
profissão manual que não tivesse representantes dessa etnia em
seu desempenho, tanto no período imperial, quanto na República”.
O mesmo aconteceu, segundo Reginaldo Prandi (2001, p. 52), nas
demais capitanias e províncias do Brasil, onde as escravizadas e
os escravizados africanos foram sendo introduzidos num fluxo que
corresponde à própria história econômica brasileira.
Artur Ramos (1943, p. 436), disserta acerca da ideia de que
foram enviados para o Rio Grande do Sul, na condição de escravi-
zados, os bantos ocidentais, isto é, populações que habitavam uma
extensa região hoje compreendida pelo Congo, Angola, República
do Congo e Moçambique. Para Norton Corrêa (2006, p. 39), a ideia
vigente nesse período era a de que esses grupos étnicos eram con-
siderados mais fortes e resistentes, porém os classificavam pouco
capazes de executarem tarefas mais sofisticadas, destinando-lhes
as lides agrícolas.
28 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
mencionar apenas os que mais comumente aparecem entrem os
escravos rio-grandenses (CORRÊA, 2006, p. 39).
29 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
próprio regime escravocrata — foi de tal monta que em 1861 o
charque contribuía com 37,7% do total do que o RS exportava e
os couros com 37,2% do total, juntos somando 74,9% do total
da produção gaúcha para fora da Província (apud. Assumpção,
1990). A relação entre o trabalho forçado dos negros e o de-
senvolvimento das charqueadas era tal que na medida em que
se aproximava a Abolição também diminuiu o número de char-
queadas. Assim, referindo-se a Pelotas, Loner lembra que “de
um total de 34 charqueadas existentes em 1878 na cidade, elas
reduziram-se a apenas 21 às vésperas da Abolição e a 18, dois
anos depois”, ocasionando a diminuição do charque que servia
de alimento dos escravos do sudeste e desta forma acarretan-
do problemas no mercado de consumo deste produto (CORRÊA,
2006, p. 40).
30 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
descentes na história sul-rio-grandense como fecunda, mas ao
mesmo tempo ocultada por boa parte de uma historiografia que
aderiu à ideologia da democracia étnica de maneira geral, que rei-
tera o ideário de uma baixa participação de descentes de africanos
e da inexistência de conflitos étnicos.
Para Assumpção (2011, p. 139), a participação dos africanos
e de seus descentes é comprovada antes mesmo da fundação do
Rio Grande Lusitano, em 1737. Contrariamente ao processo da
construção da invisibilização étnica, a historiografia tem revisto
a inestimável contribuição, tanto indígena, quanto negra, para a
construção econômica do Rio Grande do Sul. Sendo que os afro-
descendentes, hoje, constituem parcela significativa dos seus ha-
bitantes (12,6%), dando importante contribuição sociocultural
(ORO, 2002, p. 10).
9
Candomblé que possui elementos ritualísticos da nação Angola, vinda para o Bra-
sil, no período da escravidão. O babalorixá Bira do Maioral, caracteriza em uma das
entrevistas a familiaridade dos rituais aos Orixás, com o Candomblé Angola. Desse
modo, a pesquisa versará sua narrativa acerca dessa matriz religiosa afro-brasileira.
31 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
região entre os anos de 1833 e 1859. Se assim o for, permanece a
dúvida acerca da estruturação do Batuque ter de processado pos-
teriormente ou paralelamente à estruturação do candomblé, uma
vez que o primeiro terreiro de candomblé teria surgido na Bahia
por volta de 1830 (JENSEN, 2001, p. 02).
Segundo a historiografia acerca do Candomblé, tal religião
afro-brasileira, tratar-se-ia de um núcleo religioso formado na Ba-
hia, no século XIX, a partir de tradições de povos africanos, em es-
pecífico os iorubás, ou nagôs com influências de costumes trazidos
por grupos aqui denominados jêjes, e residualmente por menores
grupos africanos. O Candomblé iorubá, ou jeje-nagô, como costu-
ma ser denominado, desde seu início agregou em seu culto aspec-
tos culturais originários de diferentes povos africanos, criando-se
no Brasil diferentes ritos, ou nações de Candomblé, predominando
em cada nação tradições de cidades ou regiões africanas, que aca-
baram lhe emprestando o nome, como: queto, ijexá, efã (PRANDI,
2004). Esse Candomblé emergente na Bahia, que proliferou por
todo o Brasil e, tem uma correlação em Pernambuco, onde é de-
nominado Xangô, sendo a nação egba sua principal manifestação,
e no Rio Grande do Sul, onde é chamado Batuque, com sua nação
oió-ijexá (PRANDI, 2004).
Além dos candomblés iorubás, existem também os de ori-
gem banto, especialmente os denominados Candomblés Angola
e Congo. O Candomblé Angola, no qual a Fraternidade Estrela da
Manhã baseia suas práticas e crenças, adota em sua formação o
culto aos orixás, que são divindades nagôs, tendo absorvido muito
das concepções e ritos de origem iorubá. Esse Candomblé Angola
também desempenhou um papel fundamental na constituição da
Umbanda, no início do século XX, não só no Rio de Janeiro (local do
primeiro centro), mas em todo país.
Atualmente, todas essas religiões e nações congregam adep-
tos que seguem ritos singulares, mas que se identificam entre si
e se correlacionam como pertencentes de uma mesma população
religiosa, compartilhando crenças, práticas rituais, pontos canta-
dos, e visões de mundo, incluindo concepções da vida e da morte
(PRANDI, 2004). Os meios de comunicação são significativos no
32 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
que tange a transmissão de saberes, além da oralidade que per-
meou a construção não só de memórias desses grupos afrorreligio-
so, como também na transmissão de saberes.
A FEM se forma a partir da crença nos orixás presentes no
Candomblé Angola, tendo como ponto central a congregação de
saberes oriundos da África em seus cultos aos orixás, em específi-
co dos orixás Oxalá, Oxóssi, Ogum, Xangô, Xapanã, Omulu, Yeman-
já, Oxum, Iansã, Nana Burukê,Cosme/Damião/Doun e Bará. Envol-
vendo incorporações e o sacrifícios de animais. O fenômeno da
incorporação10, neste caso, seria provocado pela própria divindade
servindo-se do cavalo-de-santo como instrumento para a ajuda aos
consulentes. De acordo com as crenças, a natureza representa uma
manifestação viva das suas divindades (LEO NETO; ALVES, 2010).
O Candomblé, a partir de Leo Neto e Alves (2010), constitui-se
em uma religião iniciática, de tradição oral, em que o conhecimen-
to, segundo Augrás (2009) é antes vivenciado do que verbaliza-
do. Os orixás são associados a elementos da natureza, fenôme-
nos meteorológicos como a chuva e o arco-íris, certas plantas e
animais, atividades econômicas a que se entregavam as negras
e os negros e determinadas cores, como o branco de Oxalá e o
vermelho de Xangô, porém na Fraternidade Estrela da Manhã há a
crença de que, para além do culto aos elementos da natureza, tais
Orixás teriam sido homens e mulheres que viveram em território
africano, pois para eles somente assim eles entenderiam os pro-
blemas dos seres humanos.
Reginaldo Prandi (2005) considera que o Candomblé serviu
como uma espécie de organização social, familiar e religiosa, pe-
rante as consequências geradas durante o período da escravidão
e mesmo no pós-abolição. Para Prandi, hoje em dia, o Candomblé
tem se tornado cada vez mais brasileiro, transformando-se em uma
religião para todos, adaptando-se aos demais credos religiosos.
Assim, a complexidade presente nos inúmeros candomblés, reme-
te-nos ao fato de que
10
Será utilizado o termo incorporação ao se tratar do também conhecido por “tran-
se mediúnico” “montaria”, “possessão” etc.
33 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
os candomblés, por exemplo, possuem uma organização tão
complexa, quanto às religiões institucionalizadas. O problema é
que alguns pesquisadores se utilizam de uma teoria ou metodo-
logia, sem levar em consideração o ambiente social e científico
no qual elas foram fabricadas. As perspectivas utilizadas para
pensar as instituições religiosas francesas em relação às feiti-
çarias, não podem servir como parâmetro fiel para se pensar as
religiões africanas na sociedade brasileira (SERAFIM; ANDRADE.
2009, p. 7).
34 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
desprestigiadas na sociedade mais ampla, transformam-se, no ri-
tual, não só figuras de prestígio, mas em deuses.
A fundação da Umbanda gera discussões entre pesquisadores
e intelectuais umbandistas, pelo fato da figura de Zélio Fernandino
de Moraes ser atrelada ao pioneirismo da Umbanda no Brasil na
cidade de Rio de Janeiro entre 1920 e 1930, contudo, para Gium-
belli (2006, p. 111), trata-se de uma construção tardia, pelo fato
desse discurso surgir a partir de 1960, mas com ênfase em 1975,
ano da morte de Zélio. É nesse sentido que Rohde (2009, p. 77-78)
se refere à importância de análises acerca da Umbanda, levando
em conta que há conclusões tiradas sobre um grupo relativamente
delimitável (o dito como Umbanda branca ou pura), tendo em vista,
que é um movimento amplo e que ainda necessita de abordagens
historiográficas, que não versem sobre essa lógica interpretativa
de tendência generalizada. O termo mito ou fundação, utilizado
primeiramente por Brown, em 1985, na obra a História da Umban-
da no Rio, e segue sendo utilizada por outros pesquisadores.
Desde o início de sua formação, a Umbanda possui um viés
doutrinário e de organização social, resultado da organização no
ano de 1941 do I Congresso Brasileiro de Espiritismo Umbandis-
ta, ocorrido no Rio de Janeiro. A partir da normatização, passa-se
a utilizar o termo “espírita”, designando-se como um “espiritismo
de umbanda”. Esse congresso marcou inicialmente a normatização
das práticas umbandistas, constando em sua documentação as ori-
gens ocidentais, os princípios kardecistas e a ascendência cristã
em detrimento das origens africanas (GIUMBELLI, 2006, p. 111-
112). Segundo o mesmo autor, a cultura africana era recusada e se
percebe o embranquecimento dos médiuns e auxiliares, passando
a ser um referencial das práticas umbandistas no congresso. Entre-
tanto, cabe salientar que o negro africano não é totalmente excluí-
do nessa Umbanda sistematizada do século XX, há ao menos uma
ligação, segundo as observações de Giumbelli (2006, p. 113), que
seria a caracterização dos pretos velhos, como sendo negros afri-
canos escravizados no Brasil que retornam às sessões de Umbanda
trazendo auxílio aos consulentes.
Para Gomes (2006), o movimento federativo a partir de 1960
e 1970 se encarregou de embranquecer, cristianizar e racionalizar
35 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
os cultos afro-brasileiros para a legitimação das práticas, objeti-
vando a proteção e reconhecimento do Estado, tanto quanto o res-
peito das demais religiões. Nesse mesmo contexto surge a Linha
Cruzada ou a Quimbanda.
A Quimbanda trata-se de uma expressão religiosa relativa-
mente nova, iniciada, a princípio, na década de 1960. Para Oro
(2002b), seria a expressão religiosa que mais tem crescido no Rio
Grande do Sul, sendo cultuada hoje, como supracitado, em cerca de
80% dos terreiros. Para Corrêa (2006, p. 61), as principais razões
para o crescimento da Linha Cruzada seriam os seguintes: os cus-
tos dos rituais são mais baratos do que os do Batuque ou do Can-
domblé; o aprendizado geral é mais simples e seus membros po-
dem reunir e somar a força mística do Batuque com a da Umbanda.
11
O termo Macumba, segundo Magnani (1986 p. 21-22), refere-se a um agrega-
do, fluido de elementos do Candomblé, Cabula, tradições indígenas, catolicismo
36 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
rioca. Negrão (1996b, p. 221) escreve que as práticas consideradas
de “esquerda” são contra problemas de relacionamentos, “cami-
nhos fechados”, doenças, e demais prejuízos tanto na vida pessoal
quanto na profissional. Prandi e Souza (2004, p. 305) afirmam que
existe na Quimbanda uma identificação generalizada e constituída
por personagens do cotidiano das brasileiras e brasileiros. Segun-
do Gomes (2016), embora exista a linha tênue entre o bem e o mal
na passagem da África para o Candomblé no Brasil, essa tenuidade
refere-se apenas a dimensões ritualísticas e a práticas religiosas e
não ao panteão propriamente dito.
Nesse sentido, percebemos o quão rico de análises é a reli-
giosidade afro-brasileira e como a FEM está imersa num contexto
sincrético ritualístico amplo. Gomes (2016, p. 33) se refere à am-
plitude afrorreligiosa como “aquilo que está misturado, traçado,
imbuído um no outro e se complementando gradativamente, for-
mando o universo dessas práticas multifacetadas desde suas ori-
gens e desenvolvimentos em território brasileiro”. Nesse sentido,
desenvolvemos a tabela a seguir (ver Tabela 01), para analisarmos
os ramos afrorreligiosos citados, para que possamos estabelecer
as inter-relações, e melhor explicarmos as relações ao longo de
nossa análise.
37 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Origem Manifestações Obrigações
Cantos em jêje e
Tem origem no
nagô. Incorporação
Rio Grande do
apenas dos orixás Sacrifícios de
Sul, na cidade de
donos de suas animais aos orixás
Batuque Rio Grande. Tem
cabeças, o cultuados.
predominância
cavalo-de-santo não
cultural dos povos
podendo saber que
jêjê e nagô
houve o transe.
Crença nos
Sem utilização do
Orixás, mas a há
sacrifício animal.
Tem origem no a incorporação
Umbanda Usa-se plantas,
Rio de Janeiro. de pretos-velhos,
alimentos,
caboclos, ciganos,
bebidas, tabacos.
exus e pombagiras.
Incorporação de exus
Sem uma região Sacrifício de
e pombagiras. Possui
Quimbanda específica de animais aos exus
traços culturais e
início. e pombagiras.
africanos e europeus.
38 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Babalorixá Ubirajara Cleber Garcia Vergara e pela Ialorixá Michele
da Silva Alan, que assumiu a função de mãe-de-santo da casa após
o falecimento de sua mãe, a Ialorixá Tânia de Iansã12, no ano de
2014, e, como presidente atual, a Ialorixá Alda Maria Farias. A his-
toriadora Tatiana Pastorini (2014), em suas análises aborda que Pe-
dro Osório é uma cidade pequena, com cerca de 7.811 habitantes e
está situada à margem direita do Rio Piratini, na parte sul do Estado
do Rio Grande do Sul; sua origem está ligada à distribuição de ses-
marias e à expansão ferroviária do Brasil, na segunda metade do
século XIX.
O Reino de Iansã e Xangô – Casa do Maioral movimenta o pe-
queno município com seus eventos. Pastorini (2014, p. 74) disserta
acerca da Festa do Maioral, que é tradicionalmente realizada no
município, mas pouco citada entre os habitantes. Segundo Pastori-
ni (2014) o culto à
12
Ialorixá fundadora do Reino de Xangô e Iansã- Casa do Maioral, juntamente com
seu esposo Pai Bira do Maioral (Ubirajara Vergara). Teve papel fundamental na cons-
trução e organização da ritualista adotada. Faleceu em 2014, porém sua memória
está presente desde fotografias na entrada dos templos, como em um memorial
feito em sua homenagem no Reino de Xangô e Iansã- Casa do Maioral. Mãe Tânia
de Iansã está presente não só na memória afetiva dos membros, mas na sociedade
pedrosoriense, por ter defendido suas crenças afrorreligiosas e lutado juntamente
com seu esposo para que suas práticas fossem respeitadas. Sua importância é evi-
dente e merece destaque enquanto Mãe-de-santo, cavalo-de-santo e defensora da
religiosidade e ritualísticas de matriz africana.
39 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Com a criação de um templo na cidade de Guabiju no ano
de 2001, em que filhos de santo de Ubirajara Cleber Garcia
Vergara13 (Bira do Maioral), e Taniamar da Silva Alam (Tânia de Ian-
sã), decidem pela construção de uma ramificação da matriz religio-
sa, criando o Templo Guardiões do Mistério da Estrela. Tendo como
babalorixá (pai-de-santo) Anadir Rufatto e demais já frequentado-
res do culto, que residiam não somente na cidade de Guabiju, mas
em cidades sul-rio-grandenses próximas como: Nova Prata, Passo
Fundo, Marau, Veranópolis e Porto Alegre.
O município de Guabiju pertence ao Planalto Norte sul-rio-
-grandense. Segundo Dentogni (2010), o município de Guabijú
nasceu e se desenvolveu por meio da contribuição dos luso-bra-
sileiros, afrodescendentes, indígenas, caboclos e descendentes da
imigração europeia. O pequeno município está localizado na en-
costa superior nordeste no Alto Taquari, estando inserido na mi-
crorregião da bacia Antas Taquari. Para Detogni, a colonização des-
sas terras está fundamentada em duas características, “a presença
de luso-brasileiros que tomam posse efetiva das terras herdadas
de fazendeiros da Grande Lagoa Vermelha e os descendentes de
imigrantes italianos, que buscavam novas terras” (DETOGNI, 2010,
p. 07). Nesse sentido, por mais que haja etnicamente e cultural-
mente a presença de negros e indígenas na história do município
o que prevalece é a religião e a religiosidade católica, sendo nos
primeiros anos da formação no Templo Guardiões do Mistério da
Estrela, necessário para a utilização de inibidores de som para os
ritos religiosos serem realizados.
Com a ramificação da religiosidade desenvolvida na cidade
de Pedro Osório, para a cidade do Guabijú, decidiu-se, por meio
de uma conferência, a organização de um estatuto, que formava
a Fraternidade Estrela da Manhã, que englobaria esses dois tem-
plos. O estatuto visa um regimento interno que os legitima en-
quanto uma associação civil sem fins lucrativos, onde se busca a
13
Babalorixá, iniciado na cidade de Rio Grande, em 1991, é hoje o coordenador
espiritual da FEM.
40 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
“unificação dos templos religiosos associados e uma única lingua-
gem” (ESTATUDO, FEM, Art. 4º).
No ano de 2013, a Ialorixá Lídia Rufatto, anos após a formali-
zação da fraternidade, teve a autorização de fundar mais um tem-
plo, esse denominado, Centro Fraternal Nossa Senhora Santana, na
cidade de Nova Prata – RS. O território de Nova Prata inicialmente
integrava o município de Alfredo Chaves, hoje o município de Ve-
ranópolis. Na época em que Nova Prata ainda era distrito, possuía
um próspero comércio, com forte atividade agrícola, ao mesmo
tempo em que apresentava dinamicidade e desenvolvimento eco-
nômico. Os fatores econômicos, culturais e étnicos, que balizam
a criação do município estão presentes até os dias atuais, com a
presença marcante de descendentes europeus, como alemães, ita-
lianos e poloneses, que chegaram à região na segunda metade do
século XIX, além de lusos e afrodescendentes que se fixam nesse
território e formam o tecido étnico social desta cidade. Assim, ten-
do como base o trabalho, a religião, a família e a educação, além do
dinamismo econômico, contribuíram para a criação do município
no início da década de 1920 (XERRI, 2004).
O mapa a seguir localiza no estado do Rio Grande do Sul os
três municípios que possuem templos que englobam a Fraternida-
de Estrela da Manhã.
Cada casa de santo pertencente à FEM, seja em Pedro Osório,
Guabijú ou Nova Prata, possui certa autonomia, porém deve-se
ao sacerdote Ubirajara Cleber Garcia Vergara (Pai Bira do Maio-
ral) obediência e dependência ao que tange os rituais. Conforme
Gomes (2006, p. 73) ao se referir ao Batuque, disserta acerca da
falsa independência defendida por pesquisadores das religiões
afro-brasileiras, porém não diferente do Batuque, a Fraternidade
Estrela da Manhã com sua Umbanquimdomblé segue uma hierar-
quia centrada no líder geral, sendo legitimados pela comunidade
religiosa.
41 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Figura 1. Mapa do Rio Grande do Sul marcando os três
municípios que englobam a Fraternidade Estrela da Manhã.
Fonte: Vanin (2018).
42 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Devemos nesse trabalho compreender o conceito de lugar
simbólico, para entendermos a Fraternidade Estrela da Manhã
como nosso espaço de análise, porém que perpassa os templos.
Desse modo, não haveria apenas a divulgação da fé, mas a constru-
ção e manutenção do sagrado. Tendo em vista, que cada comuni-
dade religiosa se estabelece no mundo sagrado onde participa da
memória histórica no tempo e no espaço. Para Rosendahl (2014,
p. 205) a comunidade teria uma concepção de sagrado que reside
no mundo imaginalis, sendo que ele não está territorialmente li-
mitado por cercas, nem depende de localização geográfica. Assim,
o lugar sagrado pode ser erigido em qualquer ponto do espaço e
se observa que em qualquer lugar que um fiel destinar sua fé será
criado um círculo sagrado, em dois níveis, no físico e no imaginário.
Precisa-se compreender que o culto afrorreligioso se dá a par-
tir da junção de elementos entendidos como sagrados para seus
adeptos, tendo como principal instrumento a utilização de tambo-
res e cânticos, conhecidos como pontos-cantados, além de danças,
sendo com passos sincronizados, ou singulares de cada entidade
chamada ao terreiro. As representações dessas entidades por meio
de estatuetas, mesa com alimentos, bem como o uso das luzes e
velas, também compõem esse espaço religioso.
O tempo nessas festas organizadas pelos membros da Fra-
ternidade também é um elemento de análise, no entanto diversas
são as formas de entender as representações e o tempo em ritos
afrorreligiosos. No decorrer da história, várias são as elaborações
de concepções de tempo e muitas são as dificuldades de entender
a estrutura do tempo mágico-religioso.
Para Eliade (2008, p. 482) o tempo hierofônico abrange reali-
dades variadas, podendo designar o tempo no qual se coloca a ce-
lebração de um ritual e que é, por esse fato, um tempo sagrado, um
tempo essencialmente diferente da duração profana que o antece-
de. Pode também designar o tempo mítico, ora reavido por meio
de um ritual, ora realizado pela repetição simples de uma ação
promovida de um arquétipo mítico. Para Marcel Mauss, “as causas
religiosas que se passam no tempo são legítimas e logicamente
consideradas como se passassem na eternidade” (apud. ELIADE,
43 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
2008, p. 492). Na religião como na magia, para Eliade (2008,
p. 486) a periodicidade significa, sobretudo, a utilização indefinida
de um tempo mítico tornado presente.
Nos cultos de Quimbanda toda gira14 de Exu e Pombagira o rito
torna-se uma festa, para Eliade (2008) as festas passam-se num
tempo sagrado, uma prática na eternidade. O espaço sagrado para
o religioso tem um valor existencial, porque nada pode começar,
nada se pode fazer, sem uma orientação prévia e toda orientação
implica a aquisição de um ponto físico. O limiar é ao mesmo tempo
o limite, a baliza, e a fronteira que distinguem e opõem dois mun-
dos e, o lugar paradoxal onde esses dois mundos se comunicam,
onde se pode efetuar a passagem do mundo profano para o mundo
sagrado (ELIADE, 2008, p.485).
Ao compreendermos a incorporação das entidades, os movi-
mentos que decorrem após a incorporação, em conjunto ao som
dos tambores e pontos-cantados, a assim análise de Miriam Ra-
bello (2005) nos é válida, que, ao tratar do espaço por meio de
uma discussão do corpo e da percepção e do movimento, que não
é situar a análise em um terreno desprovido de cultura. Segundo
Rabello (2005), os lugares que habitamos estão carregados de sen-
tido e estruturas sociais e culturais estão sedimentados no nível
mais profundo da percepção. Encontramos a ideia de que a estabi-
lidade da vida social, assim como nosso senso de pertença e rela-
tivo ajustamento a ela, repousam sobre uma sintonia fina entre o
habitus e mundo, corpo e lugar (RABELLO, 2005).
14
Prática ritualista de incorporação das entidades, também se pode chamar de ses-
são mediúnica ou de xirês.
44 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
estrutura dos lugares – portanto nos modos pelos quais estamos
ordinariamente engajados nestes – podem fomentar novas sen-
sibilidades e abrir caminho para novas formas de entendimento
(RABELLO, 2005, p. 13).
45 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
as imagens, em meio a cigarros, charutos e bebidas, o espaço reli-
gioso, sagrado e ritualístico se entrelaça, tendo uma concepção de
tempo que vai além do tempo cronológico ou do desgaste físico de
seus cavalos de santo e consulentes. O tempo é determinado pelo
ritual, e “o homem religioso se esforça por manter-se o máximo de
tempo possível nesse universo sagrado” (ELIADE, 1973, p. 37), pois
o tempo, como o espaço, também não é, para o homem religioso,
nem homogêneo, nem contínuo. Conforme Eliade:
46 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Tais são as danças mágicas, a música contínua, os atabaques, a
fumaça, as bebidas, as luzes, as imagens. Todas essas práticas colo-
cam os cavalos-de-santo e seus consulentes num estado especial,
não apenas moral e psicologicamente, mas às vezes fisiologica-
mente distinto de seu estado normal, estado que é perfeitamente
realizado nos transes. Desse modo, de imediato reportamos nossa
análise de que destaca que o número e a dimensão desses fatos
provam que o rito mágico ocorre num meio e Tempo mágico dife-
renciado, meio que o conjunto das preparações da cerimônia tem
por objeto limitar e distinguir dos outros meios (LAROQUE, 2011).
47 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
de uma festa de Quimbanda. O ponto a seguir sempre é cantado
durante as festas, ao passo que a Ialorixá ou o Babalorixá percebe
que os tamboreiros precisam de energia para continuar tocando:
Bate tambor, bate pra mim, toca atabaque, que eu canto pra ti
O atabaque vem, o atabaque vai me levar. O atabaque é a força
da Quimbanda.
A pedidos do entrevistado será citado no texto o nome que ele utiliza no culto.
15
48 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
pombagiras, os pontos de pombagira retratam coisas ligadas
a amor, ou muito amor, ou muita falta de amor, muita tristeza
por causa disso. Geralmente eles retratam mais isso aí, mas tem
muitos pontos que no meu ver é fantasioso, é coisa forçada, por
exemplo pontos que cita que a pombagira era uma prostituta,
essas coisas, eu acho forçado demais. Tem gente que acredita
que foi assim. (DECRESCENZO, Marcelo, 2018)).
16
Termo utilizado para cumprimentar ou chamar a entidade, porém sem a intenção
de permanecer por muito tempo.
17
Termo utilizado para a desincorporação.
49 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Nesse sentido, podemos perceber que nossa análise não se
limita apenas ao ritual e em como essas pombagiras são entendi-
das, mas percebemos a importância de compreender enquanto o
corpo se torna um espaço de análise de gênero e de construções
históricas possíveis de pesquisa.
VOLTA AO SUMÁRIO
50 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
2. “ABRE A RODA,
DEIXA A POMBAGIRA
TRABALHAR”
A língua desse povo não tem osso
Deixa esse povo falar.
(Ponto cantado – Maria Padilha da Rua)
52 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
definir quem é incluindo e quem é excluído em cada processo.
A cultura em meio ao rito de Quimbanda acaba moldando identi-
dades, dando sentido à experiência e, conforme Woodward (2012,
p. 19), o processo de construção de identidade torna possível op-
tar, entre as várias identidades possíveis.
Por conseguinte, nota-se que a crença é outro conceito que
permeia a representação das pombagiras, pois não entendemos
a crença simplesmente como objeto do crer (um dogma, um pro-
grama), mas como o investimento dado pelas pessoas em uma
proposição, considerando-a verdadeira, correta; assim, tratar-se-á
da crença como uma modalidade de afirmação da identidade, e
não seu conteúdo – sendo esse foco da Teologia, não da História
(CERTEAU, 1998, p. 241).
Seja nos templos da FEM ou em outros terreiros afrorreligio-
sos que cultuam pombagiras, inúmeras são as histórias sobre essas
entidades, sendo que, para o grupo, são esses espíritos que atraem
números significativos de consulentes e cavalos-de-santo, para
as giras da Quimbanda. São entidades que na concepção dos fiéis
transcendem o sagrado e o profano, que bebem champanhe, fumam
cigarros ou charutos, dançam e riem, enquanto “trabalham abrindo
caminhos”, curando doenças, trazendo amores perdidos ou aconse-
lham seus consulentes a desistirem de amores não correspondidos.
São espíritos que, nas concepções de membros da FEM, são
evoluídos, nobres e hierarquizados. Tendo funções específicas ao
rito, estando presente nas giras, no entanto, para o povo-de-santo
essas perpassam ao espaço físico do terreiro e interferem no coti-
diano de quem as crê. As pombagiras, por meio dessas percepções,
estão simultaneamente sendo objetos de medo, respeito, fascínio,
sedução e repulsa. O que explicaria tais concepções, é que as nar-
rativas sobre elas incluem não apenas suas aparições, seus este-
reótipos, mas suas interferências e desejos, que segundo os relatos
independem dos desejos de seus cavalos, muitas vezes. Podemos
observar essa relação na fala da Ialorixá Magda Pereira para quem:
A Padilha pra mim foi a mulher que me abriu tudo na minha vida,
porque eu não aceitava a religião e ela me mostrou por “a” mais
“b”, infelizmente por eu ser teimosa, foi pela dor, que realmente
era o meu lugar e hoje em dia eu sou muito feliz (PEREIRA. 2017).
53 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Vânia Cardoso (2012, p. 181), refere-se às biografias míticas,
enquanto consequência de inúmeros caminhos do imaginário, des-
de uma nobre da corte espanhola, que se torna “mulher da vida”,
até mulheres que compartilham as ruas com outros malandros.
Sendo assim, para Cardoso, as poderosas pombagiras têm em co-
mum que todas ocupam posições limiares.
O poder sobrenatural atribuído a pombagiras está, para Cardo-
so (2012, p. 182), vinculado à inversão enunciada por sua margina-
lidade, sendo elas pensadas como o “outro” do feminino. Conforme
os argumentos de Scott (1992) (apud. CARDOSO, 2012, p. 182), mu-
lher, feminino e gênero são conceitos cuja significação é articulada
por meio de processos históricos, culturas de diferenciação, que por
sua vez criam e naturalizam diferenças. No entanto, essas figuras
possuem singularidades e vários são os processos que articulam es-
sas relações, identificações e poderes atribuídos a elas.
Durante as pesquisas na FEM, pode-se organizar uma tabela
com as pombagiras presentes no culto de Quimbanda.
Quadro 2. Pombagiras
Pombagiras Morada
Cigana do pandeiro Encruzilhada
Cigana da calunga Cemitério
Rainha das 7 encruzilhadas Encruzilhada
Rosa Caveira Cemitério
Sete Caveiras Cemitério
Das Sete encruzilhadas Encruzilhada
Menina Encruzilhada
Maria Mulambo Cemitério/ Lixo
Cigana da Praia Praia
Sete Rosas Encruzilhada
Sete Saias Encruzilhada
Do Cruzeiro Calunga
Da Praia Praia
Maria Quitéria Cemitério
Dama da Noite Encruzilhada
Padilhinha Encruzilhada
Menina do Sobrado Encruzilhada
Mundano Encruzilhada
Alteza Encruzilhada perto de flores
Fonte: Elaborada pela autora a partir da análise de campo.
54 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Quadro 3. Maria Padilha
Marias Padilhas Morada
Maria Padilha das Almas Cemitério
Maria Padilha da Rua Encruzilhada
Maria Padilha da Figueira Mata/ Figueira
Maria Padilha da Calunga Cemitério
Maria Padilha Rainha dos Sete Cruzeiros Encruzilhada
Maria Padilha das Sete Encruzilhadas Encruzilhada
Maria Padilha da Calunga Grande Praia
Maria Padilha do Cemitério Cemitério
Maria Padilha dos Sete Véus Cemitério
Maria Padilha do Osso Cemitério
Maria Padilha das Rosas Encruzilhada
Fonte: Elaborada pela autora a partir da análise de campo.
Tudo tem seu par, a noite tem o dia, o fogo tem a água, a terra
tem o ar. E as Pombagiras, as Padilhas, elas são esse complemen-
to. Os exus eles são muito sérios, elas também são, mas os exus
são soldados, eles não são muito de brinquedo, eu digo, gosto
de pensar e digo sempre, que na língua deles não tem talvez, é
um sim e um não, os exus são muito ríspidos. E elas vem trazer
aquele encanto que precisa, tudo tem sempre aquele outro par.
Elas vêm trazer esse encantamento, essa alegria, essa suavidade,
a beleza do universo feminino, que nos ajuda bastante. Eu pen-
so, eu tô pensando aqui, numa situação que eu tenha entrado
em atrito com alguma delas nessa caminhada, nenhum, nenhum,
sempre pronto a servi-las e elas também (MONTEIRO, 2018).
55 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Nessa ritualística, podemos perceber as sucessões de perfor-
mances presentes nas festas de Quimbanda. “A vida em sociedade
é uma constância de performances”, (CONTINS; et.al. 2015, p. 09);
estas seriam, para os mesmos autores, comportamentos restau-
rados, festividades, danças, sonoridades, que compõem ambien-
tes distintos de reafirmação identitária e de sociabilidade (Idem.
p. 11). Desse modo,
56 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
2.1 “Mas cuidado amigo, ela é bonita, ela é
mulher”
57 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Dizem que a mulher de cabaré
A mulher de cabaré
Não é fiel a ninguém
Mas digam quem é que quer
Trocar carinhos com a mulher de Lúcifer
(Ponto Cantado – Maria Padilha da Rua)
58 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Quando era pequenina
Foi barrada na entrada
Na porta de um cabaré
Menina volta pra casa
Aqui não entra criança
Aqui só entra mulher
Diz aleluia
Diz aleluia
Ela deixou de ser criança
Agora é mulher da rua
(Ponto-cantado para pombagiras da rua em geral)
59 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
uma alienação às experiências de dominação, a perda do senso de
desejo de autonomia, como culminância de processos que jogam
com as dúvidas sobre a realidade do seu ser, percepções e valores.
Desse modo, a sexualidade nas esferas do imaginário, da crença e
no rito analisado, são manifestações do desejo influenciadas pelas
representações de gênero envoltas nesses espíritos femininos. Elas
podem para os partícipes do culto e além dele, redefinir relações so-
ciais e integrações psicológicas desses consulentes e cavalos, trans-
cendendo noções de gênero, possibilitando experiências pessoais e
a normalização do prazer, não sendo esse perverso ou profano.
Nota-se assim, que ao nos remetermos a sexualidade, no es-
paço da FEM, não se reinstaura a fronteira entre o bem e o mal,
sendo isso uma restauração inequívoca de regras sociais. Em que
não cabe a “domesticação” do feminino e da sexualidade, quando
falamos de pombagiras. Mesmo que suas imagens se correlacio-
nem com prostitutas, por ocuparem o espaço da rua, essas concep-
ções, são em parte advindas, do que Cardoso (2012, p. 196) aborda,
ao relacionar à História do Brasil e o crescente números de pros-
titutas nas ruas na virada do século XIX e XX, principalmente nos
centros urbanos. Tais preocupações contemporâneas, que versam
sobre preconceitos, estão aglutinadas com a busca de moralizar,
feminilidades, valores de família, saúde pública e controles legais
sobre o corpo da mulher (CARDOSO, 2012, p. 196). Cardoso em seu
texto busca desestabilizar uma suposta univocidade do feminino,
mesmo dentro da esfera da prostituição.
Percebemos ao longo do contato com os membros da FEM, o
fato de que tais concepções de vulgaridades e promiscuidades não
são aceitas. Segundo a Ialorixá Alda Maria Farias:
Se alguém disser pra mim, eu vou falar da minha né, que a Ra-
inha é vulgar, vai me perder pro resto da vida. Ela não é vulgar,
elas têm essa coisa de sedução porque elas são sedutoras, elas
conquistam através da sedução, por que é fácil de entender isso,
quando se vê uma pessoa que tem um corpo né, que tem no teu
corpo uma pombagira, tu vai ter outra agilidade, tu vai ter outros
movimentos, tu vai ter outro estilo, do que eu entendesse? Pela
minha própria idade, pelo meu corpo que eu sou obesa. E ela
chega e eu não sou obesa, está me entendendo? (FARIAS, 2017).
60 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Desse modo, para essa análise, cabe entendermos, que tais
preconceitos envoltos as figuras das pombagiras, está relacionado
com o que Foucault (1997) considera como discursos que classifi-
cam práticas da sexualidade, para o autor a sexualidade se torna
um dispositivo de poder, que normaliza, cria regras sociais e deter-
mina o que é proibido ou não.
Observa-se que Pai Bira do Maioral, refere-se como sendo er-
rônea a visão de promiscuidade e prostituição que envolvem as
entidades pombagiras, e muitas vezes consequência de discursos
dos próprios afrorreligiosos.
61 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
pontos-cantados, entrevistas e das performances, possibilitou-nos
compreender que muito se é feito para agradar essas entidades,
tanto para pedir quanto para agradecer. Nesse sentido, no próximo
tópico, buscar-se-á entender seus trabalhos e desdobramentos.
62 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Sete marafos e uma saia de cetim
E como tudo isso não bastasse
Ela ganhou uma coroa de Atotô
Atotô meu pai, Atotô meu senhor
Maria Malumbo mereceu o que ganhou
(Ponto-cantado Maria Mulambo)
63 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
temos que nos reportar à construção social envolta na sexualidade
feminina. Quando enfatizamos o desenvolvimento de multiplici-
dades de possibilidades de vivência de sexualidade localizadas
fora de padrões heteronormativos. As pombagiras estão em meio
a essa diversidade e perpassam moldes de feminilidade impostos
patriarcalmente.
A cultura ocidental continua sendo muito ambígua em relação
à sexualidade, na qual mulheres que expressam seus desejos são
consideradas profanas e não dignas de respeito. O que acontece
nesse culto às pombagiras, ver nela uma interface a essas culturas,
sendo que se observa que o contrário acontece na FEM, onde essas
mulheres revelam em seus médiuns uma experiência de domina-
ção, o desejo de autonomia.
Os trabalhos para amor e sexo, bem como para demais maze-
las da sociedade em geral que faz com que consulentes procurem
os serviços das pombagiras, podem ser classificamos muitas vezes
pelo local e onde elas vêm, por suas moradas espirituais, seja ruas,
encruzilhadas, cemitérios, praias, lixões. Conforme a Ialorixá Adria-
na Santarosa, e suas narrativas sobre as pombagiras, ela revela o
fato de que todas podem trabalhar para tudo: “Se tu quer que ela
trabalhe para o amor, ela vai trabalhar, se tu quer que ela trabalhe
para o dinheiro, qualquer uma delas, qualquer uma tem essa ca-
pacidade, apenas assim, tem alguns pontos que a entidade, você
utiliza ela mais para essa questão” (SANTAROSA, 2018).
A Ialorixá Adriana, narra sobre a pombagira Cigana da Calunga
e suas principais atribuições, ao que pese trabalhos e pedidos: “Ela
é muito para o dinheiro, o cigano gosta muito do amor, mas eu sinto
que ela é para resolver mais situações financeiras, ela gosta muito
da moeda” (SANTAROSA, 2018).
Assim, podemos observar que os trabalhos, desenvolvidos
pelas pombagiras, são evidentemente decorrentes do poder vin-
culado a elas. Porém, não são apenas trabalhos feitos, para o amor
ou dinheiro, como relata a Ialorixá Janeth Vergara, referindo-se a
sua pombagira Isaura:
64 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
também ajudo muitas pessoas. Mas no restante, como relacio-
namento, não gosto de fazer casamento e namoro, amor não
(VERGARA, 2018).
65 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
2.3 “O seu feitiço não é de brincadeira”
Ô ciganinha, ciganinha
Da sandália de pau, ela trabalha para o bem
Faz o bem e faz o mal (Ponto-cantado Pombagira Cigana)
66 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Eu vou comprar uma maçã
Para a cigana trabalhar
Um feitiço eu vou fazer
Para um amor ela me dar
(Ponto-cantado para Pombagira Cigana)
[...] o bom seguidor das religiões dos orixás deve fazer todo o
possível para que seus desejos se realizem, pois, é através da
realização humana que os deuses ficam mais fortes, e podem as-
sim mais nos ajudar. Esse empenho em ser feliz não pode se en-
fraquecer diante de nenhuma barreira, mesmo que a felicidade
implique o infortúnio do outro. De outro lado, o código de mora-
lidade dessas religiões, se é que é possível usar aqui a idéia de
moralidade, estabelece uma relação de lealdade e de reciproci-
dade entre o fiel e suas entidades divinas ou espirituais, nunca
entre os homens como comunidade solidária. (2004, p. 16).
18
A filha-de-santo Andreelen Quiroga Gil, do Pai Bira do Maioral e da atual Mãe de
Santo Michele Alan, mesmo que não seja pronta, tem um papel de destaque hierár-
quico devido ser cavalo da Maria Padilha das Almas no Reino de Xangô e Iansã- Casa
do Maioral. A escolha por sua entrevista foi devido a importância da sua pombagira
nos terreiros que englobam a F.E.M, sendo que nos três os cavalos dessa entidade,
cuidam de uma casa (sala fora dos templos) para essa entidade.
67 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Almas, vou dar uma caveira”, não, em mim ela nasceu diferente,
ela gosta de ganhar uma rosa, ela gosta de ganhar um perfume,
ela gosta de ganhar um charuto (GIL, 2018).
[...] o que mais me marcou nessa minha missão com ela foi uma
mulher que e atendi, estava grávida e quando a filha nasceu, foi
dois dias antes de eu fazer minha obrigação pra ela, a filha nas-
ceu lá em Santa Catarina, de Araranguá o casal, eles compraram
uma pulseira, colocaram no pulso da menina, deixaram 24 horas
e me mandaram pelo sedex, que a partir daquele momento esta-
vam entregando a filha deles pra ela, porque ela que tinha dado
a fertilidade pra essa mulher engravidar, então a filha deles tava
entregue. Pra mim foi o momento mais emocionante de toda mi-
nha missão pra ela, uma entidade que geralmente é vista para o
mal, hoje ela embala uma criança (GIL, 2018).
68 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Podemos entender que houve com essa análise, a partir das
relações entre cavalos e pombagiras, uma desconstrução do femi-
nino, considerando as mulheres enquanto o “outro”, mas que no
rito são aceitas, com todas suas características. Louro relata que
69 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
FEM, observa-se sujeitos cavalos – aqueles que escapam da norma
ao incorporarem entidades consideradas por eles, enquanto repre-
sentações e definidoras de identidades.
As pombagiras e seus poderes sobrenaturais são, dessa forma,
uma inversão enunciada por sua marginalidade, porém, que resulta
em sendo o “outro” do feminino, conforme Cardoso (2012, p. 192).
Esse “outro” do feminino é aceito pelos cavalos e consulentes da
FEM, e é ligado diretamente na construção de identidades femini-
nas, tornam-se o que Capone (2004, p. 110) classifica, isto é, que
as pombagiras são a dramatização do poder sexual feminino junta-
mente com o poder feiticeiro escondido em cada mulher.
19
Oferendas utilizando animais, como dois pés (galinhas) ou quatro pés (cabritas),
juntamente com bandejas de alimentos e objetos próprios de cada pombagira.
70 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Bem, existe a linha incorporativa e a linha da materialização, nos
geralmente quando trabalhamos com exu e pombagiras, normal,
nós trabalhamos em determinadas linhas, nós trabalhamos em
focos de 7 linhas, Maria Padilha também trabalha junto com as
outras pombagiras nessa linha. Quando vai adentrar outra linha
é quando tu faz um cruzamento na linha dele (Maioral), tu fez
o cruzamento que é uma preparação toda que tu tem, intelec-
tual, física e com as tuas obrigações, quando tu passa a fazer tu
adentra as outras linhas dele (Maioral), então quando pula pra li-
nha dele só essas Marias Padilhas fazem, como se diz, fazem um
firmamento, um firmamento diferente, não é que elas tenham
mais conhecimento que as outras nessa linha, mas elas acessam
outras linhas de energia, a outra magia, que elas conseguem fa-
zer um sustentáculo, pra que esse reinado (VERGARA, 2017).
20
Obrigação feita com cabrito para o Maioral, posteriormente uma outra feita com
uma cabrita para o cavalo de Maria Padilha.
21
No plural pelo fato de existir várias.
22
Escolhermos essa ordem do texto para falar dessa figura que é considerada o
chefe espiritual dos terreiros da FEM, não implica ao fato de não se achar importan-
te, mas a ordem segue a ritualística envolta no culto da FEM, em que ele é chamado
por último nas festas.
71 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Prandi (1996, p. 06) sobre a literatura existente sobre os exus
e pombagiras, afirma que “a entidade suprema da “esquerda”
é o Diabo Maioral, ou Exu Sombra, que só incorpora raramente”.
Porém, na concepção do Pai Bira do Maioral, essa entidade seria
23
Pode ser feito tanto encostando a cabeça ao chão, ou ajoelhando-se.
24
Local do terreiro que foi preparado com obrigações (oferendas com animais e
bandejas com alimentos e objetos) para a entidade, seria para os fiéis um local que
tem a energia dessa entidade.
72 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
e esses não o revelam. Maioral de Quimbanda é tido como o dono
do Reino de Xangô e Iansã – Casa do Maioral, de Pedro Osório-RS,
mesmo que os Orixás correspondentes ao Pai Bira do Maioral (filho
de Xangô) e a Mãe Tânia de Iansã (fundadores) sejam fundamen-
tais, o templo é tido para os membros como do Maioral. Outro pon-
to a ser tratado, é que o Exu Tranca-Rua das Almas é o Exu guardião
do terreiro, a confiança do Maioral, e é o exu que prepara as obriga-
ções feitas no terreiro, ao longo dos 27 anos de fundação.
Cabe salientar, que análises sobre o Maioral são incipientes,
mas que tal figura espiritual é de suma importância para entender-
mos os ritos de Quimbanda da FEM. As pombagiras Marias Padilha,
nesse espaço de análise estão diretamente ligadas a ele, tanto em
obrigações feitas por mulheres (constam somente mulheres até
então) quanto em suas funções espirituais, ou atribuições dessas
mulheres enquanto cavalos dessas pombagiras cruzadas25, em to-
das esferas da crença. Perpassando suas funções ao espaço do rito,
mas levando no dia-a-dia as características de suas guardiãs. É co-
mum que cavalos de Maria Padilha, tenham outra pombagira para
trabalhar na linha26 de pombagira, e depois desincorporam-nas e
incorporam sua Maria Padilha.
Algumas das médiuns possuem só Maria Padilha, como é o
caso da Ialorixá Magda da Silva Pereira, filha-de-santo do Pai Bira
do Maioral e da Mãe Tania de Iansã, está há mais de vinte anos no
rito, em sua narrativa a gratidão a Maria Padilha do Cemitério é evi-
dente. A Ialorixá se refere a sua pombagira como uma mãe,
25
Como normalmente são chamadas pelos membros, como sendo Padilhas Cruza-
das, as mulheres com essas obrigações de cabrito e cabrita.
26
Como são chamadas as divisões do rito, e as entidades chamadas. Por exemplo:
linha de Exus, vem somente exus masculinos (normalmente).
73 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
ser uma mulher vaidosa, porque a gente tem que atrair coisas
boas. É como diz o Maioral e o Pai Bira, tu tem que sempre estar
mostrando para as pessoas que está bem, mesmo que no teu in-
timo você não esteja, ninguém precisa saber. Ela pra mim nesse
sentido, me ajuda muito (PEREIRA, 2018).
74 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
mas as vezes ela vem muito para trabalhar e segurar a sessão
que está sendo naquele dia, segurar pra que haja uma energia
boa, pra poder acontecer a festa pra questão das pessoas que
são de fora que vem fazer a visita, né (SANTAROSA, 2018).
75 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Assim, observa-se o fato de que para essas Ialorixás, as suas
Marias Padilha, possuem uma performance mais séria, em deter-
minados momentos do rito, porém não significa que não apareçam
dançantes ou sorridentes.
76 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
[...] eu acho que ela é linda, porque a minha fisionomia muda, eu
sinto, podem pessoas não enxergar, mas eu sinto. Sinto a fisio-
nomia de uma mulher linda, é assim fisionomia leve e um olhar
profundo. Mas assim, é uma felicidade, ela tem uma energia fora
do sério. Mas é muito diferente da primeira linha, pra segunda.
A primeira é uma energia levezinha, na segunda tu já sente mais
carne (LACKMAN, 2018).
77 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Figura 4. Marias Padilha na Festa do Maioral
na Centro Fraternal Nossa Senhora Santana
Fonte: arquivo pessoal da autora.
78 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
As questões de representações, sobre como e porque alguns
significados são eleitos em detrimentos de outros, nos faz per-
ceber que há nesse culto às pombagiras, práticas que produzem
sentidos que envolvem relações de poder, incluindo o poder para
definir qual entidade mais se identifica, nesse caso pombagira, e
como ela, suas narrativas orais e vivências do cavalo, irão moldar
identidades ao dar sentido às experiências no terreiro e fora dele,
que tornam possível optar, entre várias identidades que as pomba-
giras possibilitam. Crer é fazer, para Certeau (1998, p. 241). Assim,
a Ialorixá Michele Alam, refere-se à incorporação dessas entidades
como sendo “uma honra e uma responsabilidade muito grande de
receber essas entidades, esses espíritos de luz, que nos ajudam
aqui na terra, nos orientam, onde a gente se apega, nas horas difí-
ceis, nas horas boas, são entidades que estão sempre a nossa fren-
te” (ALAM, 2018).
Essas mulheres com suas capas brilhantes, com seus charutos,
vestidos estonteantes, com suas taças cheias e sua seriedade ou
sorrisos, terminam as festas de Quimbanda, nos terreiros das FEM,
são as últimas a desincorporar e levam, segundo a crença, para
suas moradas todos sofrimentos de seus cavalos e consulentes.
Não desaparecem depois da desincorporação, pois continuam na
fé e na gratidão de quem as conhece no terreiro, de quem passa
na encruzilhada, na praia, no cemitério ou na mata. Continuaram
vivas, mesmo que em espírito, para quem se inspira diariamente
nessas mulheres transgressoras de um passado que se mantém
vivo no presente.
VOLTA AO SUMÁRIO
79 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
3. Mulheres, gênero
e religiosidade
afro-brasileira
Da mesma forma que estamos tratando de tradições afrorre-
ligiosas que se recriaram e reelaboraram seus sentidos e signifi-
cados a partir da escravização, de repreensões e do interior das
senzalas, também estamos nos propondo a falar de mulheres, his-
toricamente silenciadas, coadjuvantes e invisibilizadas. Religiões
afro-brasileiras e mulheres que configuram os “outros” de uma his-
tória branca, cristã e patriarcal.
Como nessa pesquisa estamos nos referindo às pombagiras
como representação de gênero, precisamos analisar como as mu-
lheres ao longo da história foram representadas e dadas a se iden-
tificarem. Desse modo, ao referir-se às mulheres e suas relações
com o poder Michelle Perrot (1988, p. 167), traz a ideia de que as
relações das mulheres com o poder se inscreve primeiramente no
jogo de palavras, em que “Poder”, como muitos outros, é um termo
polissêmico, que no singular tem uma conotação política e desig-
na basicamente a figura central, cardeal do Estado, que comumen-
te se supõe masculina. No plural, ele se estilhaça em fragmentos
múltiplos, equivalente a “influências” difusas e periféricas, em que
as mulheres têm sua grande parcela. Desse modo, se as mulheres
não têm poder, elas teriam ao longo da história poderes, fato esse
que nos remete ao Ocidente contemporâneo, quando as mulheres
investem esforços no privado, no familiar e mesmo no social, na
sociedade civil (PERROT, 1988, p. 168).
Como Katrib e Elísio (2018) colocam a mulher, de um modo
geral numa historiografia tradicional, como coadjuvante na investi-
gação, sob vários aspectos. Conforme os autores, a partir de Perrot
(2005), as mulheres estão inseridas num espaço privado, num con-
finamento privilegiado à causa pública, como na política, guerra,
etc., silenciando e dando invisibilidade ao papel e atuação delas
nos diversos cenários da vida social. Da mesma forma que a pre-
sença das mulheres enquanto protagonistas é recente, e elas nos
estudos das religiões afro-brasileiras é ainda mais (KATRIB; MA-
CHADO, PUGA 2018, p. 121).
Busca-se construir uma narrativa acerca da mulher enquanto
detentora de poder e de poderes, na esfera religiosa, porém que
ultrapassam espaços físicos de culto e permanecem no imaginário
81 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
do povo de santo. Nesse sentido, também nos é válido contrapor
discursos, para que entendamos não só as representações das
pombagiras no panteão afrorreligioso, mas os fatores culturais, a
partir de uma visão judaico-cristã que constroem a imagem das
pombagiras enquanto diabólicas e propagadoras do mal.
3.1 “Quem é do axé diz que é?”: das repreensões aos censos
É importante sinalizar que as reconexões e desconexões de
gênero e religião são desfeitas e refeitas a partir de determinados
discursos, sendo eles religiosos, sexuais, generificados, e, também,
a partir das próprias subjetividades e desejos das pessoas. Nesse
sentido, existe, para Maranhão (2015, p. 171), uma rede de tensões
e negociações que apresentam interpelações, regimes de valida-
ção do crer, falhas, sucessos enunciativos e a mistura entre agência
da pessoa e agência da agência religiosa, remetendo à identidade
sob sutura de Hall (2000).
Entendemos como Certeau (1988) que a crença, não como o
objeto do crer (um dogma, um programa), porém como investimen-
to das pessoas em uma proposição, o ato de enunciá-la conside-
rando-a verdadeira, correta, legítima, isto é, trataremos da crença
como uma modalidade de afirmação de identidade e não seu con-
teúdo. Pretende-se, no entanto, romper fronteiras relacionadas
aos dogmas cristãos. Tendo em vista as imagens analisadas nessa
pesquisa enquanto representações do que, para muitos, beira a
profanidade.
A magia fascina os brancos, pois esteve associada a feitiços, a
curas das doenças do corpo e da alma e tem o culto relacionado ao
exótico e ao erótico (MACHADO, 2014, p. 110). Mesmo fascinando
a muitos, isso não foi motivo para que parassem as perseguições
da Igreja Católica ou da polícia. Machado (2014, p. 111) conclui
que nas últimas décadas do século XIX e no pós-abolição, quando
as religiões de matriz africana se organizavam no espaço urbano,
o enfrentamento foi até maior, inclusive pela eugenia, teoria em
voga no Brasil durante as primeiras décadas do século XX.
82 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Desde a colonização, a Igreja Católica foi a detentora do maior
capital religioso e legitimava seu status reproduzindo facilmente
a ideologia dominante e ditando regras do jogo de poder (ORTIZ,
1999). A partir disso, deve-se mencionar a histórica realidade de
repreensões sobre as práticas afro-religiosas, não só no Rio Grande
do Sul, mas em todo Brasil.
Norton Corrêa (2006) esclarece que a realidade coerciti-
va às religiões de matriz africana partiu de diferentes instâncias,
principalmente, proeminentes de figuras ligadas ao catolicismo
hegemônico. Desde a inquisição instalada no Brasil Colônia, con-
forme Brown (1985), é possível perceber processos sistemáticos
repressivos às práticas religiosas de matriz africana. O mesmo
acontece após a instituição do regime republicano, quando a Igre-
ja Católica, mesmo separada do Estado, manteve-se em condições
hegemônicas. Tais coerções se mantiveram com base na influência
clerical sobre o poder público e no domínio da população em geral
(LEISTNER, 2017, p. 324).
Na década de 1920, com o apogeu umbandista no Brasil,
iniciou-se uma verdadeira campanha contra as religiosidades ne-
gras, essa promovida por setores do catolicismo (LEINSTER, 2014,
p. 324). Houve, em 1952, a chamada Campanha Nacional contra a
Heresia Espírita, lançada pela Conferência Nacional de Bispos do
Brasil (CNBB), em combate à expansão das práticas afrorreligiosas
no Brasil. Leistner (2014, p. 324), desde Corrêa (1998), nos mostra
a partir do discurso da CNBB que
83 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
aspectos demoníacos de algumas entidades do panteão afrorreli-
gioso. Kloppenburg cita em seus textos interpretações a partir de
referenciais umbandistas, que solidificaram historicamente o cará-
ter demoníacos dos exus e das pombagiras.
Este tipo de discurso permaneceu no imaginário popular bra-
sileiro, e atualmente é reforçado por alguns segmentos neopente-
costais. Conforme Nogueira (2012) um dos mais significativos des-
tes é o da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), que combate
não só as religiões afro-brasileiras, como todo um conjunto de reli-
giões e seitas mediúnicas, orientais, mágicas e esotéricas. Nogueira
(2012), analisando a obra de Edir Macedo (2004), intitulada Orixás,
Caboclos e Guias – deuses ou demônios, o bispo fundador da IURD,
“revelaria” a “verdade” por detrás de “seitas como vodu, macumba,
quimbanda, candomblé e umbanda, [nas quais] os demônios são
adorados”, e que também no “espiritismo mais sofisticado (karde-
cista), eles se manifestam mentindo, afirmando serem espíritos de
pessoas que já morreram” (MACEDO, 2004, p. 14, apud. NOGUEIRA,
2012, p. 5). Exu no discurso propagado pela IURD aparece como
um demônio divinizado e adorado por seus fiéis nos rituais da
Quimbanda, outra forma de culto dentro da Umbanda. Para Mace-
do (2004, p. 15) na Quimbanda, os deuses (demônios) são os exus,
adorados e servidos no intuito de alcançar alguma vantagem sobre
um inimigo ou alguma coisa imoral, como conquistar a mulher ou
marido de alguém, obter favores por meios ilícitos etc.
Conforme Nogueira (2012, p. 08), o discurso de Edir Macedo
dá continuidade a séculos e séculos de perseguição e demoniza-
ção por parte dos segmentos religiosos cristãos às diversas formas
de religiosidades afro-brasileiras, especialmente à Umbanda, e
perpetua a imagem demoníaca dos orixás e guias afro-brasileiros,
especialmente da figura do exu e da pombagira.
A partir desse pressuposto, podemos perceber que as enti-
dades analisadas nessa pesquisa como representações de mulhe-
res, estiveram e se mantém enquanto figuras caracterizadas como
profanas e pecaminosas, num imaginário brasileiro que permane-
ce envolto aos dogmas cristãos. Tendo em vista que segundo os
84 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
dados de 2010 o Brasil continua sendo a nação mais católica do
mundo; mesmo que tenha havido uma redução de 1,7 milhões de
fiéis e havendo o encolhimento de 12,2% nos últimos anos.
Em escala nacional, o Brasil no censo de 2010, apresenta o
número de 588.797 indivíduos que se autodeclararam candom-
blecistas ou de outras religiões afro-brasileiras. Sendo que no Rio
Grande do Sul, concentram-se 29,70% de todos os sujeitos auto-
declarados afrorreligiosos.
85 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Quadro 5. A religiosidade em Guabiju, Nova Prata e Pedro Osório
segundo o Censo do IBGE (2010)
Autodeclaração religiosa de
Pedro Osório Nova Prata Guabiju
acordo com o IBGE
Católica 3.593 19.535 1.559
Evangélicos 1.556 2.488 39
Espírita 560 294 0
Total 5.709 22.317 1.598
Fonte: IBGE. Censo 2010. Disponível em: <www.ibge.gov.br>. Acesso em 20 fev. 2019.
86 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
número total de membros, não estando presentes na soma total de
declarados enquanto católicos, evangélicos ou espíritas.
Por mais que as tabelas encontradas no site do IBGE, não mos-
trarem a religiosidade afro-brasileira nas três cidades que a Frater-
nidade Estrela da Manhã está englobada, precisamos salientar que
no Rio Grande do Sul estão os maiores percentuais de municípios
com seguidores das religiões africanas, sendo que todos estão lo-
calizados na metade sul e no litoral, regiões de charqueadas onde
houve maior exploração da escravidão e onde estão diversos qui-
lombos em processo de reconhecimento.
Todavia, mesmo que esteja envolta culturalmente a ideia
de um Rio Grande do Sul branco, o estado se caracteriza como o
restante do país, como uma sociedade multiétnica e pluricultural,
construída a partir de encontro de civilizações, como diria Basti-
de (1959). Um estado que se constituiu a partir dos nativos indí-
genas, num território que veio a ser ocupado por portugueses e
espanhóis, logo aos africanos escravizados e posteriormente aos
imigrantes europeus, em maior número aos alemães e italianos.
Conforme nos acrescenta Ari Oro (2008, p. 17):
87 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
3.2 Mulheres e Religião como tema de pesquisa
Embora as pesquisas acerca das mulheres e de religiões e re-
ligiosidades estejam crescendo no âmbito historiográfico, pesqui-
sas que constroem contrapontos entre religião e análise de gênero
ainda são insipientes, levando em conta como as crenças moldam
identidades, culturas e representações de gênero em todo o mundo.
Sabe-se que as condições femininas sempre estiveram li-
gadas diretamente ao estrato social e sua posição na sociedade,
assim as mulheres, do período colonial no Brasil, poderiam exer-
cer os papeis de mulher casada, amancebada, viúva, solteira, frei-
ra, recolhida ou prostituta (BANDINI, 2005, p. 83). Nesse sentido,
para Bandini (2005), as diferenças sexuais enquanto construções
sociais, culturais e históricas, incluem relações de poder, que não
estão presentes somente no masculino, mas numa teia de proces-
sos históricos.
Se para os gregos antigos a Ilíada e Odisseia foram mais do
que um compêndio de narrativas mitológicas, livros de fundamen-
tação ético-moral, o equivalente poderíamos dizer da Bíblia cris-
tã para o Ocidente. Seus preceitos morais pairam no imaginário
social do Ocidente, mesmo entre grupos ou indivíduos que não
compartilham de religiões cristãs. Danièle Hervieu- Léger (2005,
p. 93), considerando o catolicismo e sua configuração de memória,
aponta à possibilidade de que o capital de memória que constitui
o catolicismo, sendo uma das “grandes religiões”, pode continuar
a construir tradição na sociedade moderna. Desse modo, percebe-
mos que tal instituição religiosa fundou historicamente sua legiti-
midade, por meio da uniformização atomização que ainda caracte-
rizam a sociedade moderna e é basilar para a formação identitária
das mulheres no ocidente
Referir-se às mulheres no Ocidente é nos remetermos às repre-
sentações delas a partir do Gênesis, que apresenta a potência sedu-
tora da conhecida e sempre lembrada Eva. Perrot (2005, p. 168), ao
tratar de mulheres e poder, se reporta à imagem recorrente da “mu-
lher como origem do mal e da infelicidade, potência noturna, força
das sombras, rainha da noite, posta ao homem diurno da ordem e
88 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
da razão lúcida”. A busca de uma salvação e triunfo para os homens
consistia em exorcizar a ameaça que a mulher representava. Na so-
ciedade francesa do século XIX, predominava a imagem de um po-
der conjuntivo, porém oculto perante as ações masculinas. Imagens
que permaneceram no século XX. Para Perrot “as mulheres, além
disso, não são exclusivamente forças do mal, são também potência
civilizadora, outro tema muito antigo” (1988, p. 168).
Simone Beauvoir (1967), em suas análises, considera a mu-
lher como o outro definido a partir da alteridade masculina. Beau-
voir contribui expressivamente no que se refere às diferenças e
hierarquias entre os sexos, apropriando-se do debate da biologia
e o transportando para o campo histórico. Para Méndez (2008,
p. 34), “através do estudo da sociedade, que a filósofa vai desvendar
o modo como as mulheres foram historicamente sendo conec-
tadas a uma imagem de fragilidade e subserviência.”. Beauvoir
(1967), portanto, desnaturaliza em suas obras as relações ho-
mem-mulher, demonstrando que mesmo havendo diferenças bio-
lógicas, a valorização desigual dessas diferenças são resultado de
criações humanas.
Em estudo de vertente sociológica, Bandini (2005) concebe
a religião como espaço portador de uma convenção social especí-
fica, cujo controle sobre o cotidiano de seus fiéis ocorre também
por meio da regulação dos corpos. Na observação, Bandini buscou
identificar as diferentes desigualdades, identidades, poderes e
experiências na interrelação com o gênero masculino, a partir de
instâncias religiosas, em específico a Igreja Católica. A autora des-
taca que no caso do Brasil Colônia, os comportamentos femininos
caracterizavam-se como “virtuosos” e resultantes de um padrão
moral imposto pela ação conjunta entre a Igreja Católica, o Esta-
do e o patriarcado. Para a autora, tanto o Estado, quanto a Igreja
se apresentavam como instâncias regulamentadoras, arbitrárias e
delimitadoras de poderes.
Complementarmente, citar a mulher, segundo as visões de
Kardec e da decodificação do hoje Espiritismo Kardecista, nos é vá-
lido pelo fato de ser uma das religiões que mais crescem no Brasil
de acordo com os censos. Desse modo, temos outros locutores de
89 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
discursos que permeiam a construção de valores éticos e morais
de muitos brasileiros. No Espiritismo Kardecista já consolidado,
podemos observar o apego às concepções conservadoras, não di-
ferentemente de um catolicismo que pregava a submissão da es-
posa ao marido, contrário ao trabalho feminino fora do lar e que
proibia a dissolução do casamento, criticando duramente muitas
das modificações que estavam ocorrendo na sociedade.
Fazem-se aparentes, por meio de análises da imprensa espí-
rita, explicitadas a partir de palavras que revelam a dimensão do
sacrifício e comprometimento do papel de mulher, ou seja, da mu-
lher em relação ao marido enquanto esposa, dedicada e do lar e,
em relação aos filhos e enquanto mãe, protetora e educadora. As
intenções implícitas nesse discurso religioso espírita revelam-se e
não se desprendem do imaginário social, na qual o gênero femini-
no, indiferente do ambiente e do papel social que fosse detentor,
deveria se prostrar ao masculino. Assim, há a noção de que o femi-
nino deveria carregar o fardo da abnegação e do desprendimento
de sua própria individualidade (SOUZA, 2016, p. 60).
Enquanto nas religiões de matriz africana, percebe-se a dife-
rença quando nos deparamos com uma cultura em que a mulher
ocupa um espaço, até então observado nas outras religiosidades,
tomado pelo masculino. Teresinha Bernardo (2005) ao pesquisar
sobre o Candomblé e o poder feminino, destaca que alguns fatores
são incisivos para que a mulher viesse a ocupar a ápice da hierar-
quia religiosa, fatores esses, que são elencados desde o trajeto da
África para o Brasil. Bernardo (2005, p. 16) relata que:
90 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
quando nos defrontamos com religiões em que o feminino ocu-
pa lugares de ápice hierárquico, surpreendemo-nos (BERNARDO,
2005). Por termos no Brasil a ação conjunta do Estado, da Igreja e
do patriarcado desde a concepção da colônia, a questão do femi-
nino no poder causa estranhamento, até mesmo nos dias atuais.
Porém, esse estranhamento se intensifica quando imaginamos
que fora em meio aos séculos XVIII e XIX, que mulheres negras se
tornaram sacerdotisas centrais em templos na Bahia, denominada
essa expressão religiosa de Candomblé (BERNARDO, 2005, p. 1).
No que tange a religiosidade afro-brasileiras temos a pesqui-
sa de Landres (1940), apontando as relações de gênero transgres-
soras nos cultos afro-religiosos da Bahia.
Peter Fry, nos anos finais de 1970, é um dos primeiros a tra-
tar de sexo e homossexualidade nos cultos afro-brasileiros, relacio-
nando esses aspectos com o fenômeno da liminaridade. Em seus
estudos, o antropólogo analisa os terreiros de Belém, destacando,
principalmente, a presença marcante de determinadas figuras limi-
nares nas casas de santo, as chamadas “bichas”, e enfatizando a sua
importância como líderes desses locais (apud. LAGE, 2007, p. 65).
Assim, sabe-se que a presença das mulheres como líderes sa-
cerdotais nas religiões afro-brasileiras é algo que instiga pesquisa-
dores. Desse modo,
91 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
sujeitos que desenvolvem seus conhecimentos, há nessas relações
a perpetuação de atividades que modulam os corpos. No enquan-
to, visa-se no próximo tópico abordado, um diálogo entre o teórico
e o campo de estudo, buscando analisar como as práticas religiosas
foram e são ressignificadas a partir das concepções de gênero.
92 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
de si. Butler (2015) acredita que há a necessidade de aceitação de
uma larga variedade de posições sobre gênero, sendo que para a
autora alguns querem ser livres de gênero, mas outros querem ser
livres para viver o gênero que é crucial para quem elas são.
Por mais que a construção do gênero vá muito além da de-
signação de papéis e da construção de características, esses atos
também são capazes de construir corpos. O que Michel Foucault
(1996) exemplifica como “corpos dóceis” – entendimento desen-
volvido a partir de análises em/de instituições sociais em o autor
buscou entender como o poder se manifestava em esferas subje-
tivas, chamando-as de “sociedade disciplinada”. Embora Foucault
não tenha atentado especificamente para corpos femininos e mas-
culinos, é interessante pensarmos como tais teorias da disciplina
dos corpos se aplicam a inscrição do gênero no corpo e na nossa
pesquisa sobre as pombagiras.
Analisarmos as pombagiras, entidades do panteão afrorreli-
gioso brasileiro como uma performance de atos representativos de
gênero, nos permite romper com outras categorias, como a de cor-
po, sexo e sexualidade, o que nos ocasiona a ressignificação dessas
compreensões, a partir da ideia de que a pombagira rompe com
estruturas já preestabelecidas. O fato de haver a crença na incor-
poração dessas mulheres direciona a pesquisa para a compreensão
do corpo enquanto performance de gênero. Nesse sentido, Butler
(2015, p. 27) nos referência acerca da compreensão de corpo, sen-
do que para a autora,
93 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
seu gênero; e emerge então a questão: em que medida pode o
corpo vir a existir na(s) marca(s) do gênero e por meio delas?
Como conceber novamente o corpo, não mais como um meio ou
instrumento passivo à espera da capacidade vivificadora de uma
vontade caracteristicamente imaterial?
94 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
A gira de pombagira está ligada aos sons dos tambores, às gar-
galhadas estridentes, às taças cheias, à fumaça de seus cigarros ou
charutos e aos vestidos exuberantes27. Tentar entendê-las, enquan-
to representações das questões de gênero, implica em questionar
a categorização de entidades que parecem ser transcendentes a
divisões impostas e construídas socialmente.
Pretende-se, de início, buscar na ritualística observada, nas
narrativas transcritas e nos referenciais teóricos, como poderia se
dar a construção de imagens e de sentimentos, que possibilitam no
culto à abertura de um corpo criativo que se articula com a memó-
ria e a expressividade.
27
Considerando que algumas médiuns relatam o uso de roupas mais simples, afir-
mando que suas entidades não requerem vestidos estonteantes.
95 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Partindo assim, do pressuposto de que os espaços religiosos
pesquisados que englobam a FEM podem ser considerados como
locais de transgressão e podem nos oferecer importantes informa-
ções, que permitem a leitura sobre a mulher e suas resistências no
espaço afro-religioso. Todavia, a incorporação da pombagira, en-
quanto um contramodelo de mulher construído, mostra-nos que
os papéis impostos socialmente se emoldam e abrem brechas que
possibilitam transformações.
A incorporação e as relações de gênero são citadas, mesmo
que brevemente por Landres (1940) ao elaborar especificidades
do que considerava uma prática transgressora a partir de suas
observações em terreiros da Bahia (1940 apud. LAGE, 2007). Já
Birman (2005), nesse mesmo sentido, fez a seguinte colocação “o
seu relato etnográfico entrelaça relações de gênero, digamos pou-
co usuais, com práticas de possessão e de poder que não se guia-
vam pela ortodoxia religiosa reconhecida pelos estudiosos desses
cultos” (2005 apud. LAGE, 2007, p. 64).
Fry, em finais de 1970, foi pioneiro ao tratar de sexo e homos-
sexualidade nos cultos afro-brasileiros, relacionando esses aspec-
tos com a liminaridade como fenômeno. Esse antropólogo analisou
os terreiros de Belém, em destaque a presença dos homossexuais
como líderes desses locais de culto. Fry (1970) conclui nessa pes-
quisa que o lugar proeminente ocupado por esses homossexuais
nos terreiros analisados estaria ligado a dois motivos em evidência:
sendo o primeiro o fato da homossexualidade masculina e dos cul-
tos de possessão serem definidos como comportamentos desviantes
em contraponto aos valores dominantes da sociedade conservadora
(FRY, 1977). O segundo se refere diretamente as ideias de Douglas
(1976) e Turner (1974), autores que frisam o fato de que os seres
definidos pela sociedade como sujos e perigosos levam frequente-
mente vantagem positiva no que tange sua “poluição” ser vinculada
à poderes mágicos (1976 apud, LAGE, 2007, p. 64).
Assim, uma das teorias de gênero nos deu aporte para enten-
dermos as representações das pombagiras, a teoria queer28. Gua-
28
Safatle (2015, p.178) explica que a palavra queer, cujo sentido original era bi-
zarro, excêntrico, estranho, passou a designar depreciativamente os homossexuais
96 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
cira Lopes Louro disserta que o queer é o sujeito da sexualidade
desviante que não deseja ser integrado, nem tolerado;
a partir do século XIX. Nos anos 1980, porém, a palavra foi reivindicada pelos gru-
pos LGBT num processo de ressignificação em que se tornou valorativa. Com essa
transformação de sentido, o termo começou a ser usado no sintagma “teoria queer”,
inicialmente pela feminista italiana Teresa de Lauretis. Ver mais em SAFATLE, 2015.
97 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
provocações à luxúria que levavam o homem a transgredir, devido
às características primordiais contidas no feminino, como exem-
plos, a arte da sedução e do desejo pecaminoso (COSTA, 2015,
p. 78). Dessa forma
98 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Cruz (2007, p. 297), mulheres de sexualidade desenfreada, cujo li-
bido continua até o pós-morte. Desse modo, percebe-se o quão a
sexualidade feminina é transgressa nesse culto.
Mesmo com o avanço de conquistas referentes à sexualidade
da mulher, ainda hoje há uma insistência em considerar suja, mal-
dosa, obscena, indecente e irresponsável as mulheres que possuem
atividades ligadas à sexualidade ou negam as coibições ocidentais
judaico-cristãs de conduta sexual. Para as meninas, a construção
da feminilidade está, em grande medida, diretamente vinculada à
negação de seu corpo e de sua sexualidade. Percebemos que tais
construções se dão de forma diferente em meio ao culto e à dou-
trina da Fraternidade Estrela da Manhã.
A Pombagira, enquanto mulher, transgressora, é tão impor-
tante quanto à figura do Exu no meio religioso analisado. Num
ocidente envolto por normas patriarcais e por delimitações de
moralidade, possivelmente, teria sua imagem ligada a algo diabó-
lico e às esferas da promiscuidade, porém no culto da FEM, essas
mulheres ultrapassam o bem e o mal, a moral e o imoral, e são tão
importantes quanto as demais entidades cultuadas. Sendo para
Sousa, o Exu um
99 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
acerca das crenças afro-brasileiras (SERAFIM; GONZAGA, 2014,
p. 10). Para Serafim e Gonzaga:
100 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Igreja, esse proceder era/é visto como prática demoníaca e ligado
ao pecado original. Para Del Priore (2007), todo comportamento
extravagante e sensualizado, orgásticos por partes das mulheres,
era entendido pelo clero como influência demoníaca, e condena-
dos pela Igreja e pelo Santo Ofício.
101 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Figura 8. Ialorixá Tânia de Iansã Figura 9. Ialorixá Tânia de Iansã
(in memória) incorporada Ogum. (in memória) incorporada Ogum.
Fonte: Acervo pessoal de Fonte: Acervo pessoal de
Miriam Lackman. Miriam Lackman.
102 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
[...] a mulher primeiro, mesmo que ela tenha de frente sua Pom-
bagira, primeiro ela tem que se desenvolver bem com o seu Exu,
que é seu guardião, para depois ter a formatura completa da sua
Pombagira. Assim como o homem que tem seu exu de frente, ele
se tiver esse espírito mulher, e eu tenho aqui, inclusive tenho um
senhor que já é avô , um exemplo o Thomas, 60 anos de idade
ele trabalha nesses 27 anos na casa aqui quase comigo, trabalha
com a Maria Quitéria, não deixa de ser homem, ele é um homem
hétero, pai de família , avô e trabalha também muito bem com
o seu Exu. Quer dizer, não existe diferença, como tem mulheres
que trabalham muito bem, inclusive tem exus de frente e são
heteros também. São mulheres extremamente femininas que
eu conheço, que convivem comigo todos esses anos, então não
existe. Na verdade, o espírito é nobre e nós somos um templo
carnal, nós somos o templo que da voz e estado físico pra ele e
da essa energia, nós somos o condutor de energia, seriamos a li-
gação dele entre o astral, o espírito, o espiritual e o ser humano.
Então nós somos esse veículo, por isso nos chamamos cavalos,
que é o que, que nós carregamos esses espíritos. Então não exis-
te nenhum preconceito (VERGARA, 02 out. 2017).
Eu acho que ele não precisa fazer o ser aspecto, ele pode ter sua
forma física feminina quando da pombagira, mas ele não preci-
sa graduar, se enfeitar pra isto. Assim como a mulher também
não precisa, ela tem seu aspecto físico de exu homem, mas ela
não precisa colocar um bigode, não precisa, né? Colocar um cha-
péu, no meu pensamento. Respeito quem o faça, mas eu acho
que tem que ser normal, não tenho problema nenhum, tenho
isto aqui na casa. Não deixam de ser homem por trabalhar com
pombagira, nem deixam de ser mulher por trabalhar com o exu
(VERGARA, 02 out. 2017).
103 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
bordôs. As feições das mulheres, muitas vezes, já maquiadas para
as pombagiras que virão no decorrer da festa mudam com ar de
rispidez e seriedade, muitas prendem os cabelos.
104 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Nas festas de exu que acontecem nos três terreiros da FEM,
normalmente as mulheres usam ternos pretos com camisa branca
para receber seu Exu. Após a desincorporação dos exus as mulheres
têm a permissão para se trocarem de roupa assim que chamadas as
pombagiras. Após a troca de entidade e roupa encontram-se mu-
lheres de um outro tempo, com vestidos estonteantes, cabelos sol-
tos e joias brilhantes, mas é possível nos depararmos com aquelas
que se vestem com capas pretas e emitem grunhidos. Os homens
quando incorporam pombagiras permanecem com suas vestimen-
tas, porém entregam seus corpos aos trejeitos de sua Exu mulher.
105 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
este Exu feminino. É um exu de forte atuação dentro da minha
casa. O nosso seguimento tem por costume iniciar a gira na linha
de Exu sempre pelo Exu masculino, inclusive as médiuns do sexo
feminino para dar a firmeza aos trabalhos, e na segunda parte da
gira, quem é médium de Pombagira, faz a troca para o seu Exu
mulher, e tanto Exu homem como mulher trabalham junto na
mesma egrêgora energética. A linha de Exu é a mais executada
dentro da minha casa (RUFATTO, 2018a).
VOLTA AO SUMÁRIO
106 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Considerações
finais
Como vimos no desenvolvimento desse trabalho, a presen-
ça das pombagiras é evidente e merece destaque no que tange
às pesquisas acerca das religiões de matriz africana e suas repre-
sentações e (des)construções sociais. Da mesma forma que esses
exus femininos da Quimbanda estão presentes no senso comum,
envolvendo discursos de repulsa e medo, por outro lado, na fé de
seus cavalos, do povo-de-santo e de seus consulentes, elas repre-
sentam fascínios, poderes e o sagrado feminino.
Inúmeros são os discursos sobre as pombagiras, enquan-
to imagens do feminino, que advém de contextos mundiais e si-
tuações contemporâneas. A questão, não ficou em perguntarmos
quais imagens seriam mais verdadeiras ou mais próximas da reali-
dade, e quais distorcem, mas sim compreender que discursos, se-
jam nas narrativas orais, nos pontos-cantados ou escritos, foram e
são igualmente representações; que não apenas representam mu-
lheres e homens, mas os moldam para além do espaço ritualístico.
Os discursos, performances e concepções de gênero, teriam nesse
culto a intenção de engendrar comportamentos do feminino, aos
cavalos caberia dar significado e sentido ao que é atribuído a elas
e suas pombagiras.
Mesmo que muitas das narrativas míticas das histórias que
versam sobre a vida desses espíritos femininos incluam suas
funções, trabalhos, e silêncios29, podemos observar nessa pesquisa
que as pombagiras são de extrema importância para a construção
de identidade do culto de Quimbanda dos terreiros da FEM. São
elas para o povo-de-santo, mulheres transgressoras, que moldam
e (re)constroem relações sociais e “femininos”. São entidades que
participam efetivamente na ótica de seus fiéis na naturalização da
sexualidade, dos desejos e do poder.
As pombagiras construiriam para o rito uma ambivalência de
identidades e representações, que refletem memórias coletivas e
29
Enquanto os não ditos sobre funções no terreiro ou suas histórias, que nas en-
trevistas não foram externados, mas que está na oralidade do terreiro, porém não
foram ditos para a pesquisa.
108 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
individuais, a partir da oralidade do grupo após experiências dos
cavalos.
Observou-se que, para a crença e na oralidade dos membros
da FEM, cada pombagira “nasce” para seu cavalo, diferentemente do
que para outro cavalo da mesma pombagira, pois cada cavalo tem
autonomia de direcionar os poderes e feitos de suas pombagiras.
Nos espaços limiares que ocupam as pombagiras, as noções
de gênero são dadas a partir do rito e para além dele, os cavalos
entrevistados expressam que as pombagiras fazem delas diferen-
tes mulheres e elas também moldam suas guardiãs de acordo com
suas concepções ritualísticas e identitárias. A crença nesses exus
mulheres constrói representações de ser mulher, sejam elas liga-
das à beleza, à maternidade, à sexualidade ou ao medo aliado aos
receios e prazeres dos poderes, feitiços e magias.
As pombagiras são queer, porque fazem com que haja uma
nova concepção e (re)construções do ser mulher, de ser o que qui-
ser, e não precisar explicar à sociedade patriarcal, do porquê de
seus desejos, mas que instiga na crença de quem as acompanha, a
inspiração de desconstruções, de discursos heteronormativos, de
corpo, raça, classe, religiosidade e gênero.
O corpo tornar-se-ia, nesse espaço de análise, um instrumen-
to, não só da crença na incorporação de espíritos, mas num “objeto”
de performances e da liberdade de ser o que quiser, independente
de sexo ou orientação sexual. Assim, mesmo sendo um exu mu-
lher se fará presente em corpos do sexo masculino, esses homens
estarão bebendo champanhe, fumando cigarros e dançando. Elas
ultrapassam divisões impostas biologicamente ou culturalmente,
quando fazem parte da crença do povo-de-santo e consulentes.
Essas entidades femininas da Quimbanda escapam de en-
quadramentos. Contrapõe-se à normatividade e são a partir dos
experimentos de sujeitos ‘diferentes’, e não propõem a unificação
de suas funções. Cada cavalo preza por seu fortalecimento, sua li-
berdade de culto e, se necessário for, prescreve ações corretivas
para aqueles que os hostilizam. Na Quimbanda, elas são rainhas,
são mães, guardiãs, são detentoras das magias e o que quiserem
ser e o que o cavalo quiser fazer dela.
109 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Elas, como no ponto-cantado, estariam “Entre sedas e corti-
nas, entre perfumes e flores, a rosa vermelha abria para se tornar
um dia a senhora dos amores”. Ou seja, num espaço de muito luxo,
oferendas, pedidos, fé, mas também no dia a dia de seus cavalos,
quando esses fazem dessas entidades suas prioridades e buscam
nelas a ajuda para serem felizes independente de preconceitos, in-
tolerância ou rótulos.
A escolha de numerosas imagens desses exus mulheres deno-
ta a preocupação muito evidente com a definição dos papeis femi-
ninos. É difícil sabermos como cada cavalo interpreta, vivencia ou
experimenta no seu cotidiano, essas imagens que denotam esses
espíritos de mulheres cultuadas na FEM. Ademais, não podemos
saber se todas são exemplos de ser mulher para o povo-de-santo.
Entretanto, esses discursos de plurais papéis femininos esbarram
com vivências culturais que trazem desde muito tempo outros mo-
delos sexuais, que resultam na intolerância e preconceitos que en-
volvem a Quimbanda, o Exú e a Pombagira, por meio de discursos
conservadores ainda difíceis de transformar.
Assim, percebem-se as inúmeras possibilidades de pesquisa
que versem sobre essa temática, bem como o aprofundamento das
questões elencadas nesse trabalho para futuras pesquisas e ques-
tionamentos que surgiram durante a metodologia aplicada e análi-
ses de campo. O povo-de-santo e suas ritualísticas são um leque de
indagações, de fascínio e desejo de querer entender como práticas
religiosas, ainda condenadas por uma grande parcela da popula-
ção, conseguem se manter, ampliar seus ritos e estar tão vivas no
imaginário e na memória afetiva e coletiva dos brasileiros.
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110 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
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117 DE I X A A P O M B AG I R A T R AB AL H AR !
Anexos
PARECER CONSUBSTANCIADO DO CEP
DADOS DO PROJETO DE PESQUISA
CAAE: 70399617.5.0000.5342
DADOS DO PARECER
Número do Parecer: 2.301.057
Apresentação do Projeto:
A pesquisa, “Da alcova ao palácio seu sussurro era lei”: representação
feminina das pombagiras nos pontos cantados na Fraternidade Estrela
da Manhã, tem por objetivo analisar os conteúdos acerca da mulher nos
pontos cantados durantes os ritos religiosos da umbanda. Será uma pes-
quisa que, fazendo o uso de um robusto referencial teórico, visa colher
relatos orais dos participantes, tendo como foco a entidade pombagi-
ras, considerada o Exu feminino. Objetiva-se, também, contribuir com
o melhor entendimento dessa matriz religiosa no mundo acadêmico e
cultural. O tamanho da amostra será de 50 participantes.
Objetivo da Pesquisa:
Analisar os conteúdos que constituem as representações do papel e iden-
tidade das pombagiras nos pontos cantados de umbanda.
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Comentários e Considerações sobre a Pesquisa:
Trata-se de uma pesquisa que buscará gravar entrevistas com integran-
tes da Fraternidade buscando entender como os adeptos compreen-
dem as entidades femininas cultuadas, as pombagiras. A pesquisadora
promoverá 1 (um) encontro com os entrevistados (um total de 50 par-
ticipantes) visando compreender melhor os ritos promovidos por esta
matriz religiosa.
Recomendações:
Após o término da pesquisa, o CEP UPF solicita: a) A devolução dos resul-
tados do estudo aos sujeitos da pesquisa ou a instituição que forneceu
os dados; b) Enviar o relatório final da pesquisa, pela plataforma, utili-
zando a opção, no final da página, “Enviar Notificação” + relatório final.
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Considerações Finais a critério do CEP:
______________________________
Assinado por:
Felipe Cittolin Abal
(Coordenador)
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