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Muiraquitã

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Universidade Federal do Acre - UFAC
Reitor Minoru Martins Kinpara
Vice-Reitora Margarida de Aquino Cunha
Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação Josimar Batista Ferreira
Pró-Reitor de Extensão e Cultura Enock da Silva Pessoa
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Antonio Gilson Gomes Mesquita

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Chaves, Manoel Domingos Filho, Eustáquio José Machado, Maria do
Socorro Craveiro de Albuquerque, Thatiana Lameira Maciel, Reginaldo
Assêncio Machado, Kleyton Góes Passos, Wendell Fiori de Faria, Vera
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Editora Afiliada

Feito deposito legal

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Muiraquitã
Revista de Letras e Humanidades
Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade
Universidade Federal do Acre
ISSN: 1807-1856

Muiraquitã, PPGLI-UFAC, v. 3, n. 1, Jan./Jun. 2014.

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Ficha catalográfica
M685u Muiraquitã – Revista de Letras e Humanidades. Rio Branco,
Acre/
Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade
UFAC/Centro de Educação, Letras e Artes. 2014.
Semestral a partir do volume 2.
Descrição baseada em: v. 3, n. 1 (jan./jun. 2014).
ISSN: 1807-1856
1. Universidade Federal do Acre. Centro de Educação, Letras e
Artes. Curso de Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade, 2.
Linguagem – Literatura, Humanidades, 3. Amazônia – Modernidade,
4. Oralidade – Identidade.

CDU 801.4 (811.2)


Conselho Editorial Muiraquitã
Lindinalva Messias do Nascimento Chaves Universidade Federal do Acre
Universidade Federal do Acre
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Abdelhak Razky Universidade Federal do Acre
Universidade Federal do Pará
Jossianna Arroyo-Martínez
Agenor Sarraf Pacheco Universidade do Texas, campus de Austin, EUA
Universidade Federal do Pará
Leopoldo Bernucci
Alexandre Melo de Sousa Universidade da Califórnia, campus de Davis, EUA
Universidade Federal do Acre
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Ana Pizarro Universidade Federal do Acre/Universidade Federal
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Universidade Federal do Rio Grande do Norte Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
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Universidade Federal do Acre Universidade Federal do Acre
Francisco Bento da Silva Nirlene Nepomuceno
Universidade Federal do Acre Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Francisco Foot Hardman Robert Lee Adams
Universidade de Campinas Universidade de Chicago, EUA
Gerson Rodrigues de Albuquerque
Projeto gráfico e diagramação: Marcelo Ishii
Arte final da capa: Raquel Ishii
Revisão técnica: Gerson Rodrigues de Albuquerque
Traduçao do inglês: Marcelo Messina, Teresa Di Somma.

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Sumário/Contents
Apresentação...............................................................................................7
Entre dos aguas: un relato mestizo de la frontera cauchera
en Colombia
Maria Mercedes Ortiz Rodriguez.......................................................................9
Raptos, defloramentos, violência e relações de poder na
Amazônia acreana (1904-1920)
Francisco Bento da Silva...................................................................................35
Representações literárias nos espaços amazônicos: leituras
de margem
Olga Maria Castrillon-Mendes.........................................................................51
Brasileiros por opção: algumas particularidades do processo
de emancipação política entre o Acre e o Rio Grande do Sul
José Sávio da Costa Maia.................................................................................67
Patrimônio histórico e poder: arte e política no ordenamento
espetacular da “acreanidade”
Ana Carla Clementino de Lima.......................................................................89
A questão fronteiriça como mito fundador do Acre e dos
acreanos
Maria de Jesus Morais...................................................................................113
Notas sobre a presença nordestina em Roraima
Carla Monteiro de Souza, Francisco Marcos Mendes Nogueira.......................131
Desde a Amazônia acreana: narrativas de trabalhadores
deslocados de Itaipu – leituras do “tempo presente”
Maria Cristina Lobregat...............................................................................153
Sob o signo de aquário: o patrimônio marajoara em tempos
de Belle Époque
Josiane Martins Melo, Agenor Sarraf Pacheco...............................................185

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Raízes e identidade de migrantes trabalhadores rurais do
Centro-Sul no Acre: uma análise a partir da linguagem
metafórica
Tânia Mara Rezende Machado......................................................................207

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Apresentação
O presente volume da Muiraquitã – Revista de Letras e Hu-
manidades – torna evidente os significativos percursos que temos trilhado no âmbito
do Curso de Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade em promissoras relações de
parcerias com intelectuais e instituições amazônicas e de outras regiões. Percursos esses
que articulam interesses e confluências de estudos e pesquisas, mas também proposições
políticas no sentido de intercambiar referenciais teóricos e categorias interpretativas volta-
das para a análise de dimensões fundantes dos pluriversos amazônicos e pan-amazônicos
que o olhar etnocêntrico e colonizador reduziu a uma abstrata unidade geográfica.
Não por acaso, frente ao conjunto de artigos recebidos, desde
o lançamento do volume anterior, nos impomos a tarefa de elaborar uma “flexão tática”
no sentido de abrigá-los na presente edição, com a intenção de deixar falar os desloca-
mentos e trânsitos de mulheres e homens nas – e em direção às – Amazônias. Nessas
falas/narrativas, linguagens, identidades, culturas ganham espaço nas interpretações dos
diferentes autores, empenhados em instigantes pesquisas e leituras.
Nessa direção, chamamos a atenção para aspectos que con-
sideramos centrais nos textos que seguem, à exemplo de “Entre dos aguas: un relato
mestizo de la frontera cauchera en Colombia”, de Maria Mercedes Ortiz Rodriguez, que
se preocupou em ouvir - e nos fazer ouvir - vozes mestiças daqueles que, produzindo uma
narrativa de fronteira, se diferenciaram das visões hegemônicas sobre o violento avanço
da “frente de expansão econômica” do caucho ou da “fronteira cauchera” para a Amazô-
nia colombiana. A impactante descrição e formas de interpretação da autora fazem ecoar
os níveis de violências físicas e simbólicas contra populações das áreas e territórios dos
rios Putumayo e Caquetá em fins de século XIX e inícios do XX.
Partindo de um amplo levantamento de documentos escritos,
mapeando “notícias de jornais”, acervos de processos judiciais e dialogando com obras
literárias, Francisco Bento da Silva, em “Raptos, defloramentos, violência e relações de
poder na Amazônia acreana (1904-1920)”, descortina outras faces das experiências e das
representações escritas acerca das violências vivenciadas por distintos grupos de mulheres
no processo de constituição da ordem colonizadora nas áreas dos rios Purus e Juruá e
seus afluentes. Também partindo do diálogo com representações literárias e invenções
de certas tradições, Olga Maria Castrillon-Mendes parte da instigante proposta acerca
da necessidade de “desafiar o cânone” ao colocar em cena o desafio de pensar, levar
em consideração ou dar a ver a produção literária dos escritores deixados na “margem”,
como é caso daqueles que teceram/desteceram ou tecem/destecem imaginários desde o
cotidiano matogrossense dos rios Guaporé e Paraguai, “ícones da paisagem fronteiriça”.
Grande parte dos textos que compõem este volume, a partir
de abordagens diferenciadas, desloca nossos olhares para específicas questões acerca do
tema da identidade, pontuando seus limites e toda a construção discursiva que, indepen-

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dente da forma como é apresentada, sempre lhe confere sentido. Nesse sentido, José
Sávio da Costa Maia, com “Brasileiros por opção: algumas particularidades do processo
de emancipação política entre o Acre e o Rio Grande do Sul”, procura visualizar os ele-
mentos que estruturam a construção da identidade do “acreano” e do “gaucho” funda-
das em narrativas geralmente ancoradas em interesses políticos e econômicos das elites
regionais. Carla Monteiro de Souza e Francisco Marcos Mendes Nogueira, com “Notas
sobre a presença nordestina em Roraima”, a partir da máxima “quem é filho do Norte
e neto do Nordeste”, do poeta cordelista Eliakim Rufino, produzem importante leitura
sobre os deslocamentos de trabalhadores do atual Nordeste brasileiro para a região do Rio
Branco, na Amazônia roraimense, pontuando o que classificam como “uma relação de
complementaridade e interação” entre as regiões Norte e Nordeste, dialogando com uma
literatura de cordel roraimense que trata de evidenciar os laços identitários e a nordestini-
zação da região. Maria Cristina Lobregat, com “Desde a Amazônia acreana: narrativas de
trabalhadores deslocados de Itaipu – leituras do ‘tempo presente’”, e Tânia Mara Rezen-
de Machado, com “Raízes e identidade de migrantes trabalhadores rurais do centro-sul
no Acre: uma análise a partir da linguagem metafórica”, desvendam questões candentes
presentes nos conflituosos processos de identificação ou auto-identificação identitária de
trabalhadores rurais das regiões Sul e Centro-Oeste deslocados para a Amazônia acreana.
Ainda girando em torno do tema identidade, articulando-o
com a questão do patrimônio histórico e as narrativas locais/regionais como parte da
narrativa da nação, os textos de Maria de Jesus Morais, “A questão fronteiriça como mito
fundador do Acre e dos acreanos”; Ana Carla Clementino de Lima, “Patrimônio histórico
e poder: arte e política no ordenamento espetacular da ‘acreanidade’”; e Josiane Martins
Melo e Agenor Sarraf Pacheco, “Sob o signo de Aquário: o patrimônio marajoara em
tempos de Belle Époque”, encerram outras dimensões na relação linguagem-identidade,
especialmente, por atentarem para a centralidade do documento/monumento nos pro-
cessos de luta pela memória e os seus significados para a produção de narrativas hegemô-
nicas nas Amazônias acreana e marajoara.
Amazônias, identidades, deslocamentos. Mais que um dossiê,
os artigos aqui reunidos constituem um modo de fazer, de palmilhar específicos territó-
rios, pensamentos, interpretações que concorrem no desmonte da invenção do não-lugar
Amazônia. Não porque apresentem teorias inovadoras ou modelos interpretativos únicos,
mas porque são anunciados desde diferentes lugares, cidades, florestas amazônicas e por
intérpretes que olham essas Amazônias desde seus interiores, como quem busca encon-
trar os caminhos que o amazonialismo ocultou com suas generalizações e reducionismos
a-históricos.
Gerson Rodrigues de Albuquerque
Editor

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Entre dos aguas: un relato mestizo de la frontera
cauchera en Colombia

Maria Mercedes Ortiz Rodriguez1


RESUMO: Dentre os aspectos relevantes contidos no presente artigo, destaca-se
a análise de uma certa modernidade colombiana que, desde meados do século XIX,
esteve centrada na produção gumífera e na “ocupação” de territórios que, a partir de
então, passaram a despertar interesse para o “desenvolvimento” da nação. A partir
desses interesses articulados aos mercados internacionais, produziu-se toda uma
literatura sobre as “selvas” e os “selvagens”, que habitavam os territórios amazônicos
atravessados pelos rios Putumayo e Caquetá. Relatos de viagens, misto de ciência
e ficção, a maior parte dessa produção literária reproduziu olhares colonialistas e
eurocêntricos sobre a região e suas gentes. O foco da análise, no entanto, está voltado
para a reduzida produção literária que permite apreender a presença de rostos e vozes
que articulam outros pontos de vista sobre o “avanço civilizador e modernizante”
para as fronteiras da borracha, na Amazônia colombiana.

PALAVRAS-CHAVE: Amazônia Colombiana. Literatura Mestiça. Fronteira da


Borracha. Modernidade. Civilização.

A partir de 1850, Colombia se vinculó al mercado


mundial como proveedora de quina primero y caucho después, lo cual
demandó la ocupación de las selvas amazónicas del suroriente del país,
surcadas por grandes ríos como el Caquetá y el Putumayo.2 Estas regiones
se consideraban territorios “salvajes” y de “salvajes” y habían carecido hasta
entonces de toda importancia para la nación; su ocupación se convirtió en una
gesta de conquista de territorios de grupos indígenas que habían conservado
hasta el momento una autonomía relativa como los uitoto, andoque, bora y
miraña.3

1
 Doutora em Literatura Latino-Americana e Espanhola, Professora da Escola de
Estudos Literários da Univalle, Santiago de Cali, Colômbia.
2
  Según Jorge Orlando Melo entre 1881/82-1882/83, la quina representó un 30.9%
del valor total de las exportaciones de Colombia. Historia económica de Colombia,
p.184.
3
  Según Pineda, la población de estos grupos ha sido estimada para principios del

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Algunos miembros de las elites económicas, políticas
y culturales de Colombia legitimaron esta conquista mediante discursos en los
que se combinaban las ideas dominantes de la época – la fe en el progreso,
el evolucionismo y el positivismo – con la reactivación de ideas e imágenes
coloniales. En ellos la selva se consideraba una fuente ilimitada de recursos
y sus habitantes indígenas una mano de obra resistente y necesaria para el
desarrollo de la economía extractiva. Estas ideas se superpusieron y mezclaron
con otras de origen colonial en las que los indios eran representados como
infieles, salvajes y caníbales; en conjunto apelaban con fuerza a imágenes
sedimentadas en el imaginario hegemónico y legitimaban un régimen de
colonialismo interno hacia los indígenas que posibilitaba el desarrollo de la
economía extractiva.4
Algunas de estas obras son: A través de la América
del Sur. Exploraciones de los Hermanos Reyes (1902) y Memorias (1986), escrito
hacia 1911, del empresario, explorador y ex presidente de Colombia Rafael
Reyes (1849-1921), el relato de viajes Memorándum de viaje (1905), de Joaquín
Rocha, un miembro de la élite bogotana de la época, y el ensayo Reducción de
salvajes (1907) del destacado político liberal Rafael Uribe Uribe.5 Estas obras
presentan semejanzas con las formas retóricas utilizadas por los viajeros
europeos, quienes habían escrito sus reportes a manera de diarios y diarios

siglo XX entre 50.000 y 100.000 personas (47).


4
 El concepto de colonialismo interno fue definido entre los años sesenta y setenta por
distintos teóricos latinoamericanos (Stavenhagen, 1964, González Casanova, 1970,
Bonfil, 1971), quienes siguieron luego trabajando el tema. La intelectual boliviana
Silvia Rivera Cusicanqui también utiliza este concepto en sus análisis. Rodolfo
Stavenhagen define el concepto de la siguiente manera en Ethnic Conflicts and the Nation-
State: “Las características étnicas (biológicas y culturales) de los grupos opositores se
tornaron emblemáticas en el funcionamiento y mantenimiento del sistema colonial de
dominación y explotación. Racismo, otras formas de discriminación y la categorización
cultural de la población contribuyeron a perpetuar y acentuar diferencias étnicas que
se convirtieron en marcadores de desigualdad y estratificación. Cuando tal situación
prevalece en el periodo poscolonial, es mencionada a veces como colonialismo
interno” (1996, p. 21) (mi traducción).
5
  He analizado los textos de Reyes en el artículo “Textual Forests: The Representation
of Landscape in Latin American Narratives” ( Tally Jr.,2011, p. 63-75).

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de viaje que no caían por completo fuera de la literatura. Había así una
complicidad entre los reportes científicos y la literatura, la cual facilitó que
los escritores latinoamericanos absorbieran estas narrativas (GONZÁLEZ
ECHEVARRÍA, 1998, p. 96). Sin embargo, estos autores colombianos no
replican los textos europeos, los asimilan en la medida en que les sirven a sus
propios intereses, y los reelaboran mediados por las dinámicas de la economía
extractiva y por las condiciones políticas, económicas, sociales y culturales de
Colombia en aquella época. La asimilación no es de ninguna manera gratuita.
Al duplicar la mirada colonialista y eurocéntrica de la mayoría de los viajeros
europeos sobre territorios y personas de su propio país, los convierten en
el “otro,” al que pueden observar, clasificar, dominar y explotar en base a
su supuesta superioridad de “civilizados.” La muy incipiente modernidad de
Colombia a principios del siglo XX, con un débil desarrollo de la ciencia y con
un fuerte legado colonial, incide en una reescritura de los textos europeos, la
cual da origen a unas obras locales específicas.6
Una voz mestiza
Son pocos los textos escritos que nos permiten oír
voces distintas de las de los miembros de las elites, que brinden otras visiones
sobre el avance de la frontera cauchera en la Amazonia colombiana. Uno de
ellos es el relato del mestizo Aquileo Tobar, hijo de un empleado de la Casa
Arana y de una indígena murui – un subgrupo uitoto – del Caquetá- Putumayo,
publicado como un apéndice bajo el título “ La conquista de la Huitocia”
en la obra La economía extractiva en la Amazonia Colombiana 1850-1930 (1990)
de Camilo Domínguez y Augusto Gómez. En este texto, Tobar subvierte
la retórica dominante que trata a los uitoto como “salvajes” y” caníbales”,

6
  Carlos Uribe Celis señala la fuerza que la tradición tenía en la Colombia de principios
del siglo XX, contra la cual se empezaban a dar procesos de cambio y que define así:
“Nuestra tradición – lo sabemos – era la de presidentes letrados, educación mística,
escolástica y verbalista que sustentaban – en gran parte por herencia española – el
lastre del leguleyismo y que tuvo su primera manifestación en la casuística de las Leyes
de Indias, tal como la desarrollaban los funcionarios de la Real Audiencia y quienes
con ella tenían que ver (76).

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presentándolos, por el contrario, cómo los poseedores de una cultura valiosa y
digna de respeto. Paradójicamente, sin embargo, describe las relaciones de los
caucheros colombianos con los uitoto como pacíficas y armoniosas, basadas
en el beneficio mutuo – al contrario de la mayoría de la evidencia histórica –
en la cual, al igual que en los relatos de Rocha, se muestra la terrible violencia
y la explotación ejercida por estos caucheros sobre los indígenas, aunque haya
habido algunas excepciones.
La versión de Tobar fue recogida por el antropólogo
Horacio Calle, quien, según Augusto Gómez, conoció a Tobar en 1971 en
Puerto Leguízamo, un puerto sobre el río Putumayo, cuando éste tenía unos
cincuenta y cinco años y trabajaba como piloto de remolcadores a lo largo del
río. Hablaba con fluidez el bue, uno de los dialectos del uitoto, y lo utilizaba
sin ninguna vergüenza públicamente. Vivía con una mujer indígena y había
escrito dos libros: una historia de las caucherías del bajo Putumayo y una
autobiografía que nunca fue publicada (DOMÍNGUEZ Y GÓMEZ, 1990,
p. 201).
Aquileo se presenta a sí mismo al inicio del relato
como un hombre nacido en El Encanto, una estación cauchera sobre el río
Caraparaná, por cuyas venas corre sangre indígena “que tiene rival con la
sangre del blanco por ser impura,” sin que quede claro cuál es su noción de
impureza. Se refiere a su padre como un desgraciado empleado de la Casa
Arana que ganaba un sueldo miserable y que fue conducido junto con su
familia a Iquitos, en el Perú, posiblemente por causa de las políticas de traslado
forzoso de población ejecutadas por la Casa Arana, la compañía cauchera del
peruano Julio César Arana.7 En este puerto peruano sobre el Amazonas, nos

7
  La Casa Arana, que se convirtió luego en la Peruvian Amazon Company, contaba
con capital inglés y fue la responsable del genocidio de los uitoto, andoque, bora
y otros indígenas de la selva del suroccidente colombiano, a quienes enganchó a la
fuerza como trabajadores en la extracción del caucho. Los caucheros torturaron y
masacraron a estos grupos, conduciéndoles casi a su extinción, crímenes que fueron
denunciados por el periodista peruano Benjamín Saldaña Roca en Iquitos en 1907 en
los periódicos La Felpa y La Sanción , por Sir Roger Casement, delegado del Foreign

12

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refiere Aquileo, aprendió a leer, siendo ya un hombre de 22 años (TOBAR,
1990, p. 202-203).
Un texto de frontera
Mediante un condensado preámbulo de escasamente
una página, Tobar sitúa su texto en relación tanto con la oralidad como con
la escritura, y explica los propósitos que lo animan. Pretende con él sacar a la
luz cosas escondidas, ya que “nada se hunde en el olvido por muy oculto que
sea”, en consonancia con la tradición – suponemos que la indígena – pero
también puede incluir la de los caucheros, la cual “no calla y en toda hora
va manifestando los hechos acontecidos en los tiempos pasados” (TOBAR,
1990, p. 203). Tobar va a consignar entonces por escrito esta tradición que
en su opinión no ha sido tratada apropiadamente en obras como La vorágine,
en la cual se hace “somera indicación de los hechos pero sin principio y fin
de las cosas. Ella se abre a narrar cosas acontecidas en el Brasil.” Su misión,
al escribir, es poner de presente el punto de vista de los indígenas, “para
adentrarnos al principio cual fue el punto móvil para los huitotos” (TOBAR,
1990, p. 203).8 Tobar le reclama entonces a La vorágine la omisión de la historia
de los uitoto, asumiéndola como una obra histórica y desconociendo su
carácter de ficción. Da sin embargo en el blanco, ya que la omisión de la
historia y la voz indígenas en la novela de Rivera no es casual y tiene relación
con la situación legal que tenían los llamados “salvajes” dentro de la nación
colombiana en aquella época y con los discursos que sobre ellos circulaban.
Este mestizo bilingüe, que navegaba entre dos culturas
y que había ganado acceso a la escritura, se convierte, al identificarse con
su lado indígena, en portavoz y cronista de los uitoto. Narra entonces un
fragmento muy significativo de su historia, el de las caucherías; tarea que era

Office británico, quien publicó un informe sobre la situación en 1912, conocido como
El libro azul del Putumayo y por el ingeniero norteamericano Walter Hardenburg , quien
escribió en 1909 reportajes en el periódico londinense The Truth y luego, en 1912, un
libro titulado The Putumayo, the Devil’s Paradise.
8
  En las citas respeto la ortografía empleada por Tobar, quien escribe huitoto con h.

13

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difícil que éstos asumieran por su desconocimiento de la escritura y porque
miles de ellos habían muerto a manos de los caucheros y los sobrevivientes
se habían dispersado.
Este texto se ubica así dentro de lo que Martin Lienhard
– siguiendo a Cornejo Polar – ha definido como literaturas alternativas en
las cuales se da una apropiación de las formas culturales europeas pero cuyos
referentes remiten a las sociedades marginadas de ascendencia prehispánica,
las cuales provienen del conflicto cultural creado por la conquista y la
subsiguiente situación colonial (LIENHARD, 1991, p. X).
Este relato sobre las caucherías fue producido
dentro de una nueva conquista y se puede denominar un texto de frontera,
engendrado por la pugna entre lenguas, sociedades y culturas marcadamente
diferentes que son las que le dan vida y lo hacen posible. Ignoramos, sin
embargo, todo lo referente al proceso de elaboración y escritura del
manuscrito de Tobar. No sabemos si recurrió sistemáticamente a la tradición
de otros indígenas y blancos o sí se basó en lo fundamental en su propia
experiencia y conocimiento y los de sus padres. Desconocemos asimismo la
época de su vida en que escribió el manuscrito y como llegó a conocerlo el
antropólogo Calle, etc., información que ayudaría a arrojar luz sobre un texto
difícil y desconcertante; desconcertante porque propone la utopía de unas
relaciones armoniosas entre blancos e indios que se aleja por completo de su
declaración inicial sobre el efecto que tuvo la civilización sobre los indígenas
que los prácticamente los aniquiló:
Escribir esta obra no es un acto de pasión ni de inquina,
sino una manifestación al mudo lector y a los amigos que
deseen conocer el comienzo de la entrada de la civilización
a las tribus indígenas; pero también entró la ruina y
exterminación de la raza. Por este tiempo muy pocos
son los que habitan su tierra, están dispersos por el mundo
como arenas que el viento levanta y posa en otros lugares
(TOBAR, 1990, p. 203) (Énfasis agregado).

Con estas frases poéticas se termina el breve


preámbulo y se da comienzo a la narración propiamente dicha con la

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descripción concisa de los inicios de la explotación del caucho, con el fin de
introducir al personaje de Crisóstomo Hernández en un tiempo y un lugar
específicos. En esta descripción se contrapone la naturaleza selvática con una
naturaleza conquistada ya por los colonos y caucheros. La primera estaba
dotada de tierras fértiles, “que estaban esperando un día del amanecer para
el progreso,” en las que reinaba la abundancia de animales salvajes, aunque
también las enfermedades, en la segunda se habían fundado fincas y se estaba
desarrollando la agricultura. Tobar muestra aquí la influencia del discurso
dominante basado en la idea de progreso ya que, al igual que el expresidente
Reyes en sus obras, piensa que las selvas son un potencial que debe ser
desarrollado para que produzca riqueza.
Un cauchero “transculturado”
Es en una de estas fincas en donde aparece ante el
lector un grupo de caucheros entre los que se halla el moreno – es decir,
afrodescendiente – Crisóstomo Hernández quien, bajo los efectos del alcohol
y al calor de una pelea, mata a uno de sus compañeros.9 Por no caer en
manos de la justicia, Hernández huye por el río Caguán abajo hasta llegar a
su desembocadura en el Caquetá. En esta fuga en la que entra en contacto
con los carijona primero y los uitoto después, grupos que Tobar supone que
no habían tenido ningún contacto previo con los blancos; el cauchero va
sufriendo un proceso creciente de “indianización.”10 Los indios que Tobar

9
  Tobar menciona indistintamente a Hernández como moreno o negro.
10
  En la actualidad el número de carijona, según el censo del 2005 de Colombia,
asciende a 425 personas, hablan una lengua que pertenece a la familia lingüística caribe
y unos están ubicados en La Pedrera( Amazonas) sobre el río Caquetá y otros en el
alto río Vaupés cerca de Miraflores ( González de Pérez, 2011, p. 72, 80). Los uitoto
ascienden a 6.444 personas, según este mismo censo, su lengua pertenece a la familia
lingüística uitoto. Su hábitat tradicional ha sido la región de los ríos Caraparaná e
Igaraparaná, pero en la actualidad viven también en las orillas del Caquetá medio,
por la hoya del Putumayo y cerca de Leticia. Hay algunos uitoto que habitan en Perú
debido al desplazamiento ocasionado por la Casa Arana (González de Pérez, 2011,
pp. 72, 117). Roberto Pineda estima para el año de 1900 el número de uitoto en
30.000 (2000, p. 48).

15

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describe como generosos y hospitalarios, lo van incorporando a su cultura,
le enseñan sus lenguas y costumbres, lo dejan participar en sus rituales y le
asignan mujeres como sus compañeras. Cabe aclarar aquí que Tobar relata que
el color de piel de Hernández resultó muy extraño e incluso aterrador para los
indígenas quienes nunca habían visto un afrodescendiente. Es un texto que
por lo tanto resulta útil también para analizar el contacto y las relaciones entre
amerindios y afros.
La estadía de Hernández entre los carijona resultó
corta ya que el cauchero se enamoró prontamente de una joven distinta de
la que el cacique le había dado por mujer. Los indígenas se molestaron, los
padres de la muchacha la reprendieron y el cauchero resolvió entonces huir
con ella. Los fugitivos navegaron a lo largo del río Caquetá por seis días,
viaje que Tobar describe poéticamente, ensalzando la belleza de la naturaleza
selvática, a la vez que señala sus peligros, hasta que encontraron un grupo de
uitoto.
El tiempo de convivencia de Hernández con los
uitoto es largo, el texto habla de cuatro años, y su proceso de cambio cultural
es por lo tanto fuerte. Tobar escribe que “en este ambiente y clima se humanó
Crisóstomo” – que significa, según el diccionario, hacer a uno humano, familiar
y amable – como si fuera un nuevo nacimiento. “El hombre se familiarizó
con los nativos y el cacique le dio a otra jovencita para su mujer.” Continuó
viviendo entonces con las dos, la carijona con la que había llegado, y la nueva,
dato revelador si se piensa que la poligamia era en general una prerrogativa
de los jefes entre estos indígenas. Este cambio se revela simbólicamente en la
apariencia exterior del cauchero: “la ropa de algodón o tela se acabó. Se hizo
de fibra de corteza de palo taparrabo, como los nativos”. El proceso no era,
sin embargo, fácil, Hernández había perdido el temor a los indígenas pero le
preocupaba estar “muy apartado de sus compañeros y del pueblo civilizado”
(TOBAR, 1990, p. 211).
El narrador recrea entonces el proceso de convivencia
de Hernández con los uitoto, que circuló seguramente entre indígenas y
también entre caucheros, según menciona Rocha, como un proceso de

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transculturación que subvierte los discursos dominantes sobre las relaciones
interculturales. Silvia Spitta define transculturación como el proceso complejo
de ajuste y recreación – cultural, literaria, lingüística y personal – que permite
configuraciones nuevas, vitales y viables que surgen del choque de culturas
y de la violencia de las apropiaciones coloniales y neocoloniales (SPITTA,
1995, p. 3). Se tiende a pensar que las sociedades que viven un proceso de
transculturación son las sociedades invadidas por los poderes coloniales o sus
sucesores, pero en este caso se trata de un cauchero, prófugo de la justicia,
quien en la frontera amazónica, en donde colonos y caucheros invaden
territorios indígenas, logra reconfigurar su vida gracias a los indígenas que
le prestan ayuda y de quienes adopta la lengua e importantes elementos
culturales.
Hernández se mueve así de la” civilización” a “la
barbarie” en el sentido contrario al estipulado por el discurso hegemónico
y se instala en la genealogía de personajes como Alvar Núñez Cabeza de
Vaca, Gonzalo Guerrero, capturado por los mayas, las cautivas de los malones
de los araucanos en Chile y Argentina, Manuel Córdova-Ríos, un cauchero
capturado por los amahuaca en la Amazonia a finales del XIX, y en el
siglo XX, Helena Varelo, capturada por los yanomami. Desde luego estos
personajes no llegaron por gusto a la convivencia con los indígenas, fueron
forzados a ella, y, sin embargo, el proceso de transculturación que viven al
interior de las mismas los convierte en figuras incomodas para los sistemas
dominantes que han intentado opacar siempre la realidad de Latinoamérica
como un continente signado por la transculturación y la heterogeneidad. No
sé hasta qué punto el hecho de que Hernández fuera un afro descendiente,
o sea parte de lo que se definía como la alteridad en la colonia y la república,
haya influido en su capacidad de adaptación a la cultura de los uitoto y en su
recepción por parte de estos.
Una recreación respetuosa
En el relato de Tobar sobre la convivencia de
Hernández con los uitoto se desmiente la imagen del salvaje caníbal, tan

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difundida en la Amazonia por los discursos dominantes y se recrean en
detalle elementos esenciales de esta cultura como los mitos y los bailes que
se presentan de manera respetuosa y positiva, aunque el autor nunca rompe
del todo con el paradigma de civilización/barbarie pues menciona con
frecuencia a lo largo del texto a los “blancos” como el pueblo civilizado, tal
como se lee en la cita anterior. Con el fin de relatar lo que supuestamente vio
y oyó Hernández, Tobar tiene que apelar a su propio conocimiento sobre las
tradiciones de los uitoto. Este conocimiento debía provenir de la tradición
oral indígena trasmitida por su madre y otros indígenas, de su infancia y de sus
experiencias ya de adulto con las culturas indígenas del Caquetá, a su regreso
de los años de exilio en Iquitos.
El mestizo nos ofrece en estas descripciones una
síntesis que condensa varios estratos temporales que cubren el mundo de
los uitoto antes, durante y después de las caucherías. En este sentido, Tobar
realiza una labor similar a la que llevó a cabo el Inca Garcilaso o los cronistas
mestizos mexicanos, constituir un legado cultural e histórico sobre el pueblo
uitoto, consignando la tradición en la escritura para luchar contra el olvido
y la muerte. Es recomponer el universo cultural después de la peor tragedia
de la historia de este pueblo, las caucherias que lo llevaron casi a su total
aniquilamiento. Sin embargo, esta versión está cargada de signos ambivalentes
y altamente problemáticos, cómo se evidencia en el caso del mito que cita
sobre el origen de los blancos. Este mito aparece en el texto cuando el cacique
uitoto tiene que explicar a su gente y a sí mismo la aparición de Hernández, un
negro, lo cual era algo completamente desconocido para ellos:
En la historia nuestra dice que en los confines del mundo
existen habitantes de color blanco como de color negro. De
esas gentes son venidos y han llegado ahora hasta nosotros
y por lo cual son idénticos a nosotros. No ven, su cara,
manos, piernas, nariz, ojos y boca, dientes y el caminar
es lo mismo que nosotros. Son nuestros hermanos de
otros mundos. Dios hizo muchas gentes al otro lado del
mar [(manayai) en Guitoto el mar}; por eso no hay que
aborrecerlo ni odiarlo, hay que servirle en todo lo posible.

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Tenemos que llevarlo a nuestras casas y cuidarlo bien.
Ninguno de ustedes será grosero con el blanco. Solo su
color es negro pero es de los blancos (DOMÍNGUEZ Y
GÓMEZ, 1990, p. 206-207).

Sí bien este mito muestra por un lado la fuerza cultural


y la capacidad intelectual de los uitoto en su búsqueda de explicaciones de lo
desconocido, en ese caso la existencia de un negro, por el otro evidencia la
influencia del cristianismo. Se enseña entonces a los indígenas, de acuerdo al
mandato del amor al prójimo, a recibir hospitalariamente a un desconocido que
abrirá las puertas para su futura y nada lejana destrucción. Desconocemos las
razones pragmáticas que llevaron a los indígenas a dar tan cordial bienvenida
a Hernández, Tobar no dice nada al respecto, pero en casos como el Córdova-
Ríos se sabe que los amahuaca perseguían que este los ayudara a obtener
armas de fuego para defenderse de los caucheros invasores y en el caso de
Helena Valero, los yanomami buscaban establecer una alianza con los colonos
que estaban entrando en su territorio mediante el matrimonio por rapto, cuál
era su costumbre.11
No es casual que la llegada del cauchero al poblado
uitoto coincida con la realización de un baile, ya que la descripción del mismo
constituye uno de los momentos privilegiados dentro del texto para presentar
la riqueza cultural de los indígenas, mostrándole al extraño quienes son y lo
que valen. Los uitoto celebraban varios bailes durante el año, éste era un baile
para la cosecha de un fruto, y el texto muestra muy acertadamente que estos
eventos constituían importantes dinámicas de reproducción social y cultural.
La complejidad del baile y las distintas etapas en que se desarrolla se describen
11
  El caso de Córdova-Ríos ha sido relatado por Bruce Lamb, quien entrevistó al
excauchero y curandero en Iquitos en los sesentas, en su libro The Wizard of the Upper
Amazon (1971). El poeta y escritor peruano César Calvo elaboró esta historia en su
obra Las tres mitades de Ino Moxo y otros brujos de la Amazonía (1981). Helena Valero
relató inicialmente su historia al antropólogo italiano Ettore Biocca, quien la grabó
entre 1962-63 y la publicó en 1965 bajo el título en italiano de Yanoàma. Dal racconto
di una donna rapita dagli indi. Helena publicó posteriormente en 1984 su propia versión
titulada Yo soy Napëyoma. Relato de una mujer raptada por los indios yanomami.

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prolijamente. Se muestran los diferentes mecanismos sociales y culturales
que se activan durante la celebración tanto al interior del grupo como con
otros grupos de fuera a los que se invita con el fin de reafirmar y consolidar
relaciones de alianza.12
Los preparativos para la fiesta demandaban tiempo,
trabajo y esfuerzos mancomunados. Los hombres preparaban la coca y el
ambil – extracto de tabaco cocido – que eran las “drogas” del conocimiento,
y las mujeres la chicha hecha de jugo de frutas con almidón de yuca. El
cacique enviaba emisarios con porciones de coca y ambil para entregar a los
caciques de otras unidades sociales como invitación a la fiesta. El día señalado
para la celebración se tocaba el maguare, el gran tambor de los uitoto cuyos
toques constituían un código de señales – ha sido llamado el telégrafo de la
selva – para avisar la hora precisa en que los invitados debían llegar. Estos
empezaban a llegar hacia las tres de la tarde, trayendo a su vez comida y ambil
para ofrendar al cacique, dueño del baile. Durante estas fiestas, los caciques
se sentaban juntos en una tribuna y se dedicaban a narrar y recapitular las
tradiciones del grupo que eran las que les permitían elaborar respuestas a las
situaciones que se iban viviendo, incluyendo las nuevas como la llegada de
los caucheros: “Los caciques no bailan. Toda la noche se dedican a revisar la
tradición, explicando todos los acontecimientos que han sucedido” (TOBAR,
1990, p. 210).
Estas tradiciones eran y son un rico y variado
conjunto de distintos conocimientos, que Tobar equipara con el conocimiento
occidental para destacar el valor de la cultura indígena. Contienen historias de
la creación del mundo, de los hombres, los animales y las plantas; religión; la
“ciencia de la curación de enfermedades” con un “científico curandero” que
conoce tanto plantas medicinales como rezos y conjuros; los conocimientos
de la brujería que es el poder de transformarse los hombres en animales y de

  De manera similar Pineda explica que la vida ritual entre los uitoto constituía
12

un componente básico de la actividad social, motivaba al trabajo y constituía un


mecanismo de intercambio económico y social (2000, p. 52).

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enfermar y matar a los demás; la astronomía y la aritmética (DOMÍNGUEZ
Y GÓMEZ, 1990, p. 209-210).
El tratamiento que hace Tobar de la religión de los
uitoto es particularmente interesante ya que plantea que éstos conocían por
tradición oral los cinco libros de Moisés o sea el Antiguo Testamento pero
ignoraban por el contrario el Nuevo. Testamento. Ésta es una manera de decir
que su religión ya contenía dentro de sí de manera latente algunas semillas
de la fe cristiana y que estaban preparados para asimilar la evangelización.
No eran por lo tanto tan infieles, ni tan paganos y salvajes como se creía,
estrategia similar de alguna manera a la utilizada por el Inca Garcilaso en sus
Comentarios reales, según ha explicado Margarita Zamora.
Por contraste, los elementos que definen culturalmente
a Hernández ante los uitoto en primera instancia – ya que no pueden hablar
con él por el mutuo desconocimiento de sus respectivas lenguas – son los
elementos visibles y materiales que éste lleva consigo. Pertenecen al reino de la
tecnología, y llaman poderosamente la atención de los indígenas: “el hacha de
hierro, la peinilla tan cortante y la escopeta no conocida por ellos” (TOBAR,
1990, p. 206). Estos elementos, a diferencia de la filosofía, la religión o la
aritmética, no tienen equivalente ninguno dentro de la cultura de los uitoto.
Estos no los poseen pero, sobre todo, no los saben producir y son claramente
objetos que confieren al blanco dominio y superioridad sobre los indígenas.
Las herramientas metálicas y las armas eran elementos poderosos y necesarios
que los uitoto y otros grupos de la región ya habían venido adquiriendo a
través de redes intertribales de comercio desde el siglo XVIII como explica
Pineda (2000, p. 53-54).
Estos elementos son los que posibilitan que Hernández
enganche a los uitoto en el trabajo del caucho. Éste, que ha descubierto la
riqueza de caucho de la cuenca del Caraparaná, les propone a los indios el
intercambio de mercancías por caucho, a lo cual éstos acceden entusiasmados.
Se pone así en marcha un primer negocio que abrirá en el futuro las puertas
de la región a la penetración de los caucheros. Este primer negocio se describe

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con un lujo de detalles que no aparece en la versión que Rocha, un miembro de
la élite bogotana, recogió de los caucheros y publicó en su libro Memorándum
de viaje (1905). Es bien probable, por lo tanto, que haya sido consignada en la
tradición oral indígena y que además Tobar la haya recreado con elementos de
su propia cosecha. Se puntualizan en esta descripción ciertos momentos que
adquieren un fuerte poder simbólico dentro de la totalidad de la narración, en
términos de la futura dominación blanca en la región.
La armonía imposible de la explotación cauchera
Después de tres meses los uitoto le entregan a
Crisóstomo el primer cargamento de caucho, quien lo mete en tres canoas
con remeros indígenas y empieza a remontar el Caquetá con la intención
de llegar a Florencia para venderlo. Pero en el camino se encuentra con su
antiguo patrón, Francisco Gutiérrez, quien le recibe el caucho dándole a
cambio mercancías entre las cuales se incluye aguardiente. Ya de regreso a la
comunidad uitoto donde viven, Hernández le entrega los fardos de mercancías
al cacique para que las distribuya pero éste no quiere hacerlo. Estas mercancías
no caen bajo el dominio de los conocimientos tradicionales que él maneja y
no sabe cómo manipularlas. Le encomienda entonces el reparto a Hernández,
diciéndole: “en este caso tú eres nuestro jefe” háganos el bien de abrir para
ver su contenido y tú serás él que mandas en el trabajo y yo mandaré mi gente
en lo que ordenes” (TOBAR, 1990, p. 214).
El binomio caucho-mercancías produce así un cambio
en las relaciones de poder tradicionales. Esta actitud se explica si pensamos
que el jefe de maloca o capitán como lo llamaban los blancos o cacique como
lo llama nuestro autor era un hombre, como explica Pineda, cuyo poder se
basaba en el control de la vida ritual. El jefe de maloca era quien conocía las
historias y mitos asociados a los rituales, y su eficacia para proteger a su gente
contra enfermedades, brujerías, calamidades etc. Permanecía sentado en el
mambeadero, mambeando coca y chupando tabaco. De esta forma trabajaba
con el pensamiento y la palabra en pro de sus subalternos trabajadores o
huérfanos (PINEDA, 2000, p. 51). Se le planteaba entonces el dilema de cómo
incorporar estas mercancías tanto al mito como al control de la vida ritual que

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era la que fundamentaba su autoridad como jefe. Con el tiempo se elaboraron
respuestas, como en el caso del mito del Hacha caníbal mencionado por el
mismo Pineda.13
Las noticias de los exitosos negocios de este grupo
uitoto con Hernández se propagaron rápidamente entre otras comunidades
de la región que, según Tobar, acudieron a ofrecerse voluntariamente a extraer
caucho. El relato presenta la expansión de la frontera cauchera por la selva
casi como lo hacen los cauces de agua que la surcan, como si fuera un proceso
natural. El negocio se amplia, llegan más blancos a trabajar con Hernández;
sus nombres se mencionan en el texto, así como las habilidades de lecto-
escritura y contabilidad de algunos de ellos, a diferencia del moreno que era
analfabeto como subraya Tobar. Según el texto, la seducción de las mercancías
con las cuales se “cautiva el ánimo de los indios” opera a la perfección, con
calma y sin violencia: “todos están muy tranquilos y contentos, tanto blancos
como indios” (TOBAR, 1990, p. 217).
En la medida en que el avance cauchero se intensifica,
Crisóstomo Hernández llega a dominar toda la región del río Caraparaná y
parte del río Putumayo y en este contexto el narrador no puede evitar hacer
una crítica a un proceso que pone en peligro su tan mentada armonía entre
13
  Los uitoto cuentan que en un tiempo primordial existía un gran árbol cargado con
diversas clases de frutas y productos de la chagra. Éste era efectivamente el “árbol
de la abundancia,” pero nadie podía tener acceso a sus frutos, porque carecía de los
medios para tumbarlo. Entonces, se narra en el mito, la gente oyó decir que en el
Oriente vivía una mujer Hacha, aunque ninguno quería acercársele porque ella poseía
una naturaleza caníbal. Después de diversas peripecias, Hacha corta el “árbol de la
yuca” constituyéndose simultáneamente en la red fluvial del Amazonas y la agricultura
regional. (Pineda, 2000, p. 49). El mito le otorga una importancia fundamental a esta
mujer -hacha, ser contradictorio que quita a la vez que da. Quita a los hombres los
esclavos que hay que pagar por ella – suponemos – y da nada menos que la red fluvial
y la agricultura. En realidad, estos grupos ya conocían la agricultura de la yuca brava
desde hacía por lo menos dos mil años pero al tener que derribar los árboles de la selva
con hachas de piedra para limpiar los terrenos para la siembra, el proceso resultaba
dispendioso y lento. Este mito, que es un claro resultado del contacto intercultural,
pone de presente la capacidad de los indígenas de reflexionar sobre las realidades
coloniales y de apropiárselas a través de sus propios sistemas de pensamiento.

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blancos e indios. Esta breve crítica junto con la que hace de la civilización
en el preámbulo, son los dos únicos momentos dentro del texto en que el
narrador cuestiona la labor “civilizadora,” lo cual permite caracterizarlo
como un narrador amordazado y sin libertad. La vida de las comunidades,
previa a la llegada de Crisóstomo Hernández, se describe de manera idílica
para insinuar el proceso de destrucción que éste y la explotación del caucho
trajeron consigo:
Siguieron el descubrimiento por esas selvas cundidas de
habitantes que vagaban por las selvas sólo con el objeto
de recolectar sus alimentos, del fruto de la selva. Lindas
doncellas reposaban a la sombra de los gigantes árboles,
niños rodaban por el suelo de hojarasca, ancianos y ancianas
concretados vigilando a sus nietos y nietas que jugueteaban
por el suelo, era la mansión verde del indio, no conocían la
fatiga del trabajo cruel, sólo trabajaban en sus desmontes
para cultivar sus granos de alimento y sus frutas; gentes
sanas, las enfermedades no prevalecían en ese tiempo; en
medio de ese ritmo Crisóstomo iba minando su expedición
en esa raza salvaje pero noble (TOBAR, 1990, p. 218).

Se contrastan en esta descripción un antes y un


después de la vida de los indígenas en la selva que se asimilan de cierta
manera a un paraíso y un infierno. Y en lo que al infierno respecta, hay dos
elementos que se le pueden atribuir claramente a los blancos, el cruel trabajo
y las enfermedades. La utilización del gerundio minando apunta así mismo
a señalar destrucción y, finalmente, se subraya que los indígenas son nobles
a pesar de su salvajismo y que tal vez no merecían haber corrido esa suerte.
En el párrafo inmediatamente siguiente se presenta,
por el contrario, a Hernández cómo alguien preocupado permanentemente
por el bienestar de los indios, el bondadoso intermediario .entre el mundo
de la selva y el de la civilización, entre los indios y los blancos. Se le asimila
en cierta forma a un jefe de maloca; él es el capitán que maneja los “rituales”
desconocidos de las mercancías y los negocios y que vela por el bien de los
uitoto. Nunca permitió una ofensa a los indios y a todos sus compañeros les
consiguió mujeres a través de los caciques (TOBAR, 1990, p. 218).

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Con estas uniones se empieza a gestar una nueva cultura
dentro de la cual creció el mismo Aquileo Tobar y el texto no logra ocultar el
racismo existente hacia los indios e indias y la situación de desigualdad en la
que se les colocaba al describir la mecánica de estos “arreglos matrimoniales:”
“a todos sus compañeros les hizo dar mujer pidiéndolo a los caciques y a
los padres de las jóvenes, y por gratitud el blanco que recibía una muchacha
le regalaba alguna prenda de vestir a los padres y la muchacha era orgullosa
mujer de un blanco” (TOBAR, 1990, p. 218). El proceso es una compraventa
vergonzosa en el que se supone que la joven uitoto ganaba por el mero hecho
de irse a vivir con un blanco, así fuera este un hombre rudo e ignorante, y
no sabemos hasta qué punto este proceso era voluntario. Se violaban aquí
por completo las reglas tradicionales en las que el novio tenía que demostrar
sus habilidades para cazar, pescar y tumbar selva para las chagras agrícolas,
trabajando medio año para su suegro como explica Steward (756), además
tenía también que dar regalos como una pila de leña o una bolsa grande de
coca.
El texto termina el relato de las “hazañas” de
Hernández, explicando como éste organizó la explotación del caucho en el
Caraparaná mediante estaciones que quedaron a cargo de “sus empleados
de letra y contabilidad” (TOBAR, 1990, p. 218). La visión de Tobar sobre
la conquista de la Huitocia difiere notablemente de la de Rocha quien la
presenta como un proyecto basado en el uso de la violencia. Responsabiliza
sin embargo a los indios de esta situación, ya que al no querer trabajar, por
ser unos “haraganes” forzaron a los blancos al uso de la fuerza. La imagen
del “bondadoso” jefe blanco no aparece tampoco en el relato de Rocha,
quien siempre se refiere a Hernández como un individuo cruel y sanguinario.
Ambas versiones coinciden en el proceso de transculturación vivido por
Hernández, que le permitió adquirir un dominio de la cultura de los uitoto
que desde luego aprovechó para organizar y manejar su negocio del caucho
con métodos que varían en los dos relatos. Cabe resalta aquí la mitificación
que Rocha hace en estos aspectos de Hernández a pesar de saber con claridad
la clase de individuo que este era:

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Es posible que el Crisóstomo Hernández que
presenta Tobar sea una condensación de distintas historias sobre distintos
blancos ya que existe información en otras fuentes sobre casos excepcionales
de algunos que trataban bien a los indios. Es posible también que algunos los
caucheros iniciaran su relación con los indios de manera amistosa mientras
los conocían y adquirían confianza en el terreno. Rocha no menciona que
Hernández haya vivido entre los carijona. Roberto Pineda Camacho, citando
a Abel Calderón, refiere que fue un señor Cuellar de origen pastuso quien
estableció los primeros contactos con los carijona. Cuellar se desposó con
una mujer de este grupo y les enseñó a extraer cera de castilla que comerciaba
con ellos a cambio de mercancías (CAMACHO, 2000, p. 57). El etnógrafo
alemán Konrad Theodor Preuss cuenta igualmente la historia de otro blanco,
Leonardo Cabrera, quien había vivido con los uitoto y adoptado su lengua
y sus costumbres, se había constituido en su protector y benefactor y había
tenido una hija con una mujer uitoto (PREUSS, 1994, p. 20-28). La cadena de
relatos orales sobre Crisóstomo y otros caucheros llegó hasta José Eustasio
Rivera por boca de Custodio Moreno, quien estuvo en 1905, como coronel
del ejército colombiano, en las selvas del Caquetá y el Putumayo, como explica
Neale-Silva, el biógrafo de Rivera. Custodio describía a Hernández como
“un mulato sanguinario y taciturno, prófugo de presidio, que estaba loco”
(NEALE-SILVA, 1960, p. 105).
Terminado el relato sobre Crisóstomo se abre paso
a un nuevo personaje en la narración de Tobar: Benjamín Larrañaga, otro
analfabeto, quien acompañó a Reyes en su primera incursión por las selvas
del Caquetá –Putumayo, y quien trabajó como cascarillero primero y cauchero
después, terminando finalmente vinculado a la casa Arana. Se le menciona en
el informe de Sir Roger Casement como un torturador y un feroz asesino de
indios y aparece en las páginas de La vorágine con estas mismas características.
Larrañaga incorporó nuevas áreas del Caquetá y nuevos grupos indígenas a
la explotación del caucho, aprovechando la labor pionera de Hernández y
la “buena fama” que éste había consolidado para los blancos según Tobar.

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Los indios que “también deseaban tener un blanco que les suministrará
artículos,” aceptan a Larrañaga, quien finalmente se funda en un lugar llamado
La Chorrera por sus grandes rápidos y que el escritor mestizo considera
erróneamente que es lo que se llama Pasto hoy en día.
El relato concluye en su párrafo final reiterando la
idílica convivencia entre blancos e indios, en la que, sin embargo, se pone de
presente la dominación de los primeros sobre los segundos:
Todo marchaba en armonía, los pocos blancos que había
eran los dioses de los indios. Cada hombre blanco tenía de
dos mujeres en adelante porque los padres de las jovencitas
daban sus hijas al blanco y era una dicha para el indio que
su hija fuera mujer del blanco. Sólo Benjamín no pudo
tener dos mujeres por el profundo respeto a su señora.
Así transcurrieron los años, los indios en perfecta calma
y bienestar, las enfermedades no prevalecían, las criaturas
no morían y en época de verano jóvenes y jovencitas en
grupos vagaban por la selva muy tranquilos disfrutando de
su inocencia, doncellas vestidas del verde de la selva y que
el único vestido era su piel color cobrizo le servía como
adorno en su talla de indio (TOBAR, 1990, p. 226).

La imagen de la selva edénica se asoma aquí con la


misma intensidad que en Memorias de Reyes, mas no es un paraíso virgen que
hay que conquistar y poblar para el progreso de la nación. Esta selva ya está
poblada por caucheros, indios y mestizos. Se ha gestado un nuevo mundo
en el que los indios han aceptado felizmente el dominio de los blancos, y les
han entregado a sus hijas para que les mejoren su raza inferior. Todo está
bien, todo funciona perfectamente en este paraíso de nuevas alianzas en las
que el escritor mestizo, producto de las mismas, a pesar de haber rescatado
con orgullo elementos de la cultura uitoto de su madre, cubre con un velo
la violencia del orden patriarcal que constituye la otra cara de su historia. El
texto revierte la historia hacia el origen del mundo cuando no había pecado
y reinaba la inocencia, nos lleva de nuevo al paraíso perdido de un mundo
idealizado que existía antes de las caucherias y que él equipara con el Edén.

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¿Con qué sentido? ¿Un mensaje de salvación y redención? ¿Una fuga sin
límites del horro y el exterminio? ¿La posibilidad de otra historia, de otro
desenlace del encuentro intercultural si en vez de las reglas que rigen los
negocios en el mundo de los blancos se hubieran seguido las de intercambio
y alianza que rigen el mundo indígena? Esta última sería una crítica fecunda
a la realidad ya que muestra que habría sido posible, al menos culturalmente
hablando, otra dirección en la historia que nos libra de aceptar lo sucedido
como lo meramente inevitable.
El texto de Tobar realiza una gran labor de mediación
entre los mundos tan diversos social, cultural y lingüísticamente que entran
en contacto en esa frontera o zona de contacto que es la selva amazónica.
Ninguno de los otros textos que hemos analizado ofrece una descripción
tan detallada, consistente y rica en información sobre las culturas indígenas,
presentando elementos tan importantes como los rituales y los mitos. Su
origen y su conocimiento del bue – una variante dialectal del uitoto – y el
español le permitieron el acceso a una información que estaba vedada para
estos otros autores, aunque éstos tampoco tenían gran interés en la cultura de
unas gentes que veían como salvajes e inferiores. Su texto es representativo,
tanto como el mismo Tobar, de una tradición de frontera en la que se
entremezclan y entretejen las tradiciones culturales de invasores e invadidos.14
En ella aparecen distintas versiones sobre el encuentro entre indios y blancos
cuyas relaciones, creadas a partir de la extracción del caucho, son las que la
estructuran.
Esta tradición se alimentaba de una nueva cultura
que surgía del terror, la violencia y la convivencia, casi siempre impuesta,
14
  La vorágine también se alimenta de esas tradiciones de frontera, aunque privilegia la
voz de los caucheros y deja a los indios en el olvido en estrecha continuidad con los
textos de Reyes, Uribe Uribe y Rocha. El indio sigue siendo un salvaje en la novela,
aunque se omiten las insistentes menciones sobre el canibalismo, y un excluido de la
nación colombiana. Si se les reclama en uno o dos momentos como colombianos, ello
obedece a las necesidades tácticas del momento histórico especifico al igual que en el
texto de Uribe. La riqueza y complejidad cultural que nos presenta el texto de Tobar
es algo que no aparece ni someramente en la novela de Rivera.

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de trabajadores, peones y caucheros con mujeres indígenas; y en la cual
evidentemente se intentó suprimir lo indígena por “impuro”, por “inferior.”
Pero “nada se hunde en el olvido,” nos dice Tobar, y él con su palabra saca
a la luz elementos de esas culturas indígenas, oprimidas y suprimidas, en una
versión que a veces no deja de tener sus marcados tintes de idealización.
Asombrosamente no idealiza sólo a los indios, sino también a los caucheros,
esos hombres que Rocha ha caracterizado como bárbaros, violentos y
analfabetos, delincuentes y prófugos de la justicia muchos de ellos, como el
mismo Crisóstomo Hernández. Mediante esta idealización crea una inversión
de la conquista de la Huitocia, un horizonte utópico en el que se armonizan las
relaciones entre blancos e indios, tratando de suprimir la historia de etnocidio
y genocidio que los blancos introdujeron en la región del Caquetá.
Tobar se esfuerza, al igual que lo hizo el Inca Garcilaso,
por lograr la armonía entre los dos mundos que lo han constituido como
mestizo. Sin embargo, como señala Cornejo Polar, esta imagen de la armonía
que construye trabajosamente el discurso mestizo del Inca, aparece más
“como el doloroso e inútil remedio de una herida nunca curada que como la
expresión de un gozoso sincretismo de lo plural” (POLAR, 1993, p. 75). El
mestizaje, entendido como la mutilación de la totalidad de una cultura y sus
seres que la conquista hizo pedazos – y en nuestro caso la explotación del
caucho – y no como la armonía entre dos mundos a la que apuesta Garcilaso,
termina por reinstalarse en el discurso que lo ensalza en su condición
ambigua, equivoca y precaria, que convierte la unión no en armonía sino, por
el contrario, en convivencia traumática, dolorosa y difícil. Esta convivencia se
cuela por hendijas y fisuras en el texto de Tobar, a pesar de los esfuerzos de
este por diluirla: la superioridad tecnológica de los caucheros y el ansia de los
indígenas por sus mercancías, el desdén de los “blancos” hacia las mujeres
indígenas, a quienes compran por míseras baratijas, el trabajo al que someten
a los indígenas y la extinción a la que los conducen, como se expresa fugaz
pero significativamente en algunos pasajes del texto.
Los uitoto, sin embargo, al igual que los quechua,
lograron reconstituirse como pueblo, evidentemente no en las mismas
condiciones, e iniciaron un nuevo ciclo en su historia, en un contexto signado

29

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por la presencia de la misión capuchina. Las localidades indígenas adquirieron
un carácter multiétnico y se crearon también nuevos asentamientos ligados a
las misiones, centros de colonización etc. El gobierno colombiano compró
por el valor de 200.000 dólares los derechos de la Casa Arana en el Putumayo,
negociación que finalizo en 1964. Cabe resaltar que resulta asombroso que
se haya compensado a esa compañía que causó la muerte a 30.000 uitoto.
En 1988, el gobierno nacional ordenó la constitución del resguardo del
predio Putumayo en los territorios pagados a los sucesores de Arana, que fue
entregado a los nativos de la región por Virgilio Barco, el presidente de aquella
época. Así, el estado reconoció por primera vez el derecho de estos indígenas
amazónicos a sus tierras y selvas. En 1991, una nueva constitución declaró
a Colombia un país pluriétnico y multicultural y garantizó el derecho de los
pueblos indígenas a sus territorios, lenguas, culturas y autoridades (PINEDA,
2000, p. 227-228).
En la actualidad, al igual que numerosos pueblos
indígenas de Colombia, los uitoto enfrentan los problemas causados por
el narcotráfico y el conflicto armado, la minería y la extracción ilegal de
madera. Han luchado por resolver los dilemas de estos tiempos difíciles
mediante la creación de organizaciones y la persistencia, como explica Marco
Alejandro Tobón, en continuar su modo de vida y sus prácticas autónomas
de producción económica (TOBÓN, 2006, p. 173). Esta intrusión de grupos
armados en sus territorios no es por lo demás algo nuevo para ellos ya que
el recuerdo de la Casa Arana y de sus infames atropellos continua vivo en
la memoria de los ancianos quienes homologan a los caucheros del pasado
con los militares del presente y los conciben “como ‘gente armada’ cuya
presencia y control estropean las prácticas del trabajo, y por implicación, la
vida social local” (TOBÓN, 2006, p. 163) y si tuvieron la fuerza cultural para
reconstituirse después de la hecatombe cauchera, esperemos que la tengan
ahora para sobrevivir al conflicto actual.
In between the waters: a mestizo history of the
colombian rubber border

ABSTRACT: The aim of the article will be analysing the process of modernisation

30

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in Colombia which in mid-19th century arose from rubber production, subsequent to
the occupation of territories which became the source of the country’s development
ever since. Hence a “rain-forest literature” arose depicting the “savages” living the
Amazon area between the Putumayo and Caquetá rivers, consisting of travel journals
which, blending science and fiction, analysed the region and its people from a
colonialist and Euro-centric standpoint. The article will focus on the aforementioned
niche literature, which articulates viewpoints that diverge from the “civilising and
modernizing progress” in the Colombian Amazon.

KEYWORDS: Colombian Literature. Mestizo Literature. Rubber Border.


Modernization. Civilization.

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Data de recebimento: 19/7/2014


Data de aceite: 20/8/2014

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Raptos, defloramentos, violência e relações de
poder na Amazônia acreana (1904-1920)
Francisco Bento da Silva1
RESUMO: O presente trabalho traz uma abordagem sobre a questão da criminalida-
de no Acre Federal, principalmente envolvendo os chamados crimes contra a honra e
a moral. Utilizamos como fonte documental relatos de jornais, processos criminais e
obras literárias. Tais crimes, reais ou ficcionais, trazem a marca das relações de poder
envolvendo gênero, geralmente nos casos em que ocorriam disputas entre homens
pela mulher; vinganças onde a mulher é a vítima, devido suspeitas, fundadas ou não,
de traição; vinganças de parentes masculinos para defender a honra das mulheres do
núcleo familiar quando maculada, entre outras práticas correlatas de uma socieda-
de marcada pelos “rituais de masculinidade”, com vem afirmar McClintock (2010)
quando fala do contexto colonial e imperial. Portanto, estudar tais questões em áreas
de fronteiras, de enfrentamentos multifacetados entre gentes de oriundas de tantos
lugares, com interesses diversos e em entrechoques, nos permite revelar práticas e
identidades muitas vezes submersas nas narrativas tradicionais.

PALAVRAS CHAVE: Violência. Crime. Mulher. Acre. Identidade.

Introdução
Neste trabalho temos por objetivo analisar alguns ca-
sos de crimes classificados como atentados à honra, à moral e à honestidade
ocorridos no Território Federal do Acre entre os anos de 1904 e 1920. A
legislação criminal em vigor na época no Brasil, o Código Penal de 1890, em
seu preâmbulo intitulado “Dos crimes contra a segurança da honra e honesti-
dade das famílias e do ultraje público ao pudor”, tipificava sete tipos de crimes
nesta categorização: violência carnal (artigo 266), defloramento (artigo 267),
estupro (artigo 269), lenocínio (artigo 277), adultério (artigo 279), atentado ao
pudor (artigo 282) e rapto (artigo 270).
A violência carnal era algo que poderia ocorrer contra
1
  Doutor em História, Professor da Universidade Federal do Acre.

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pessoas de ambos os sexos, pois considerava crime atentar contra o pudor
de uma pessoa com uso de violências ou ameaças com a finalidade de saciar
“paixões lascivas ou por depravação moral”. Este crime era punido com pena
que variava de um a seis anos de prisão. Se a vítima fosse menor de idade a
pena também era a mesma, desde que houvesse apenas a chamada libidina-
gem (FARIA, 1913). O defloramento era um crime que incorria como vítima
a mulher de menor idade que fosse considerada ludibriada pela figura mascu-
lina com sedução, engano ou fraude. A punição para este tipo de crime variava
de um a quatro anos de prisão celular (FARIA, 1913). Já o estupro era sexo
forçado com qualquer mulher, fosse ou não virgem. Para este último caso,
o que variava na periculosidade do crime era se a mulher fosse considerada
“honesta”. O estupro contra mulher “honesta” (virgem ou não) tinha pena
que variava de um a seis anos. Já o mesmo crime cometido contra mulheres
consideradas “públicas ou prostitutas”, o réu era condenado de seis meses a
dois anos de prisão (FARIA, 1913). Isso demonstra uma forte carga moral
e machista que minorava o mesmo crime se cometido contra uma mulher
considerada “desonrada” ou prostituta, por exemplo. Com bem diz Anne
McClintock, a “erótica da conquista é também uma erótica da subjugação”
(MCCLINTOCK, 2010, p. 48).
Ao crime de lenocínio incorria quem excitasse, favo-
recesse ou facilitasse a “a prostituição de alguém para satisfazer desejos deso-
nestos ou paixões lascivas de outrem”. O adultério era outro crime no qual a
vítima na prática era exclusivamente a mulher, pois a infidelidade conjugal só
era punida quando realizada pela esposa, embora o Código Penal apontasse
para a dualidade de gênero no cometimento desse tipo de crime. A pena era
de prisão celular que variava de um a dois anos. “§ 1°) Em igual pena incorre-
rá: O marido que tiver concubina teúda e manteúda; A concubina; O co-réo
adultero” (FARIA, 1913). O atentado ao pudor era visto como ofensa aos
chamados bons costumes e o pudor com “exibições impudicas, atos ou ges-
tos obscenos” realizados em lugar público.
Mais complexo e cheio de nuances era o crime de rap-
to, também cometido exclusivamente pela figura masculina. Considerava-se
rapto tirar mulher “honesta” do seu lar doméstico para fins considerados libi-

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dinosos, não importando se solteira, casada ou viúva, fazendo uso de sedução,
violência ou emboscada mesmo que não se verificasse “a satisfação dos gozos
genésicos” A pena simples variava de um a quatro anos de reclusão. Os agra-
vantes da pena eram vários: se parente ou conhecido da vítima, se ocorresse
estupro, violência, entre outros (FARIA, 1913). E mesmo que a vítima do
rapto tivesse mais de 16 e menos de 21 anos e consentisse a prática, isso não
anulava a culpa criminal do raptor.
Porém, havia um atenuante que juntava os crimes de
rapto, estupro de defloramento em um só e dizia o seguinte:
Art. 276. Nos casos de defloramento, como nos de estupro
de mulher honesta, a sentença que condenar o criminoso
o obrigará a dotar a ofendida. Parágrafo único. Não
haverá logar imposição de pena si seguir- se o casamento a
aprazimento do representante legal da ofendida, ou do juiz
dos órfãos, nos casos em que lhe compete dar ou suprir o
consentimento, ou a aprazimento da ofendida, si for maior
(FARIA, 1913).

Na Amazônia acreana, existem inúmeros registros es-


critos e orais e de que em diversas situações, o rapto era uma ação combinada
entre as duas partes, vitima e réu, para forçarem a realização de uma união
formal quando os familiares da raptada se colocavam contra a relação amo-
rosa e conjugal dos pretendentes. Quando o rapto era realizado, os parentes
masculinos da mulher em muitos momentos eram encarregados de vingar
com sangue (caso não aceitassem a união) ou obrigar o raptor a casar com
a raptada, o que era mais frequente. Mas existem também relatos de crimes
passionais cometidos pelo homem que se sentia rejeitado nas suas investidas
amorosas com intuitos conjugais ou apenas de aventuras amorosas passagei-
ras.
Em sociedades fortemente pautadas nos princípios da
masculinidade, era motivo de chacota um homem ser rejeitado e não reagir
com “hombridade” (SILVA, 2013). Em sociedades onde o espaço público é
essencialmente masculino, tal como o exercício do poder político, da posse da

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terra e do dinheiro, “as mulheres são figuradas como propriedades pertencen-
tes ao homem” (MCCLINTOCK, 2010, p. 58).
A historiadora Christina Scheibe Wolff (1999), em
seu livro “Mulheres da floresta”, ao estudar a realidade do Alto Juruá no Acre,
entre os anos de 1890 e 1945, aponta que a violência era algo que atravessa
todas as relações sociais na sociedade dos seringais e que se manifestava de
múltiplas formas. Tinha vários significados e motivações: autoridade, cora-
gem, hierarquia, controle, resistência e revolta. Por isso, violência e poder
eram elementos frequentemente associados, algo entranhado nos costumes e
na cultura da sociedade local e essas práticas ditavam muitas vezes o senso de
justiça compartilhado pela maioria. Um a violência marcada indelevelmente
pelo signo da masculinidade, que estava presente tanto na mentalidade mas-
culina quanto na feminina (WOLFF, 1999, p. 195-241).
Esta autora entende que as regras de convivência nos
seringais amazônicos em muito eram herdadas das práticas sociais dos di-
tos sertões do nordeste, de onde vieram muitos migrantes para explorarem
o boom da borracha natural em terras amazônicas. Eram comportamentos
vinculados às questões de honra, que em grande medida estava associada à
proteção e domínio da figura feminina pelo homem. Nesse contexto, cer-
tas situações relacionadas à honra tinham que ser necessariamente resolvidas
com violência, sob a pena de desmoralização social da família ofendida ou em
particular daquele que não reagia da maneira que era socialmente esperada
(WOLFF, 1999, pp. 195-241).
Diante do exposto, este estudo pretende abordar tais
questões tendo como foco discutir aspectos relacionados aos costumes e va-
lores em conflito com a ordem legal então vigente no Acre do período ter-
ritorial, entre 1904 e 1920. As fontes primárias utilizadas foram os jornais A
Reforma, Folha do Acre, Alto Purus, O Município e O Cruzeiro do Sul, que
circularam nos quatro Departamentos do Território Federal do Acre: Alto
Acre (sede em Rio Branco); Alto Purus (Sena Madureira); Alto Juruá (Cru-
zeiro do Sul) e Alto Tarauacá (Tarauacá). Alem disso, fizemos uso de algumas

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das obras literárias mais conhecidas regionalmente que abordam aspectos
apontados como foco de análise.
Estupros e defloramentos nos jornais acreanos
Na cidade de Rio Branco (sede do Departamento do
Alto Acre) o jornal Folha do Acre, no ano de 1920, publicou uma pequena
nota cujo titulo era “Vão se cazar”. O teor dizia que o delegado de polícia
havia comunicado ao juiz da comarca ter remetido à promotoria pública o
inquérito policial sobre o defloramento de Maria Ferreira Xavier, cometido
por Luiz Baptista do Nascimento no seringal Belo Jardim, “sem mais forma-
lidades legais visto o offensor e a offendida desejarem cazar um com o outro”
(FOLHA DO ACRE, 20-03-20). Muitas vezes, o intercurso carnal e sua di-
vulgação era algo combinado entre réu e vítima para que a justiça obrigasse o
acusado a casar-se com a ofendida. Isso ocorria quando a família da mulher,
geralmente virgem, não aceitava o seu relacionamento com a pessoa escolhida
pelos pais ou responsáveis., como já dissemos. Uma forma de confrontar as
imposições e controle familiar era tornar-se “desonrada” perante a família e a
sociedade local, algo que se reparava com o casamento respaldado no Código
Penal em vigor à época e autorização da família da mulher dita ofendida. Mas
nem todos os casos, na verdade a grande maioria, se enquadravam no exem-
plo que acabamos de explicitar.
Como é o caso ocorrido em um período próximo ao
supracitado e que foi publicado no jornal tarauacaense (Departamento do
Alto Tarauacá) A Reforma, dando conta da diligência ao rio Muru conduzida
pelo delegado Leôncio Luís Rodrigues. Este delegado foi até ao Seringal Pa-
raízo para averiguar a denúncia do defloramento e estupro de duas menores
cometidos pelo próprio pai das vítimas, identificado pelo nome de Raimundo
Nonato. A informação sucinta do periódico esclarece que o acusado teria
fugido em direção ao Purus (não fica claro se foi para o rio ou Departamento
vizinho), levando uma das vitimas (A Reforma, 26-10-19). Temos aqui, além
das incursões nos crimes apontados, um caso de duplo incesto realizado pelo
genitor de duas meninas sob sua criação e proteção. O incesto não era tipi-

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ficado como crime no Código Penal de 1890 e nem a Constituição Federal
de 1891 tocava neste assunto. Portanto, o chamado tabu do incesto era algo
que se vinculava somente a impedimentos de ordem social, moral e religiosa.
Estudos como o de Christina Wolff (1999) demons-
tram que havia muitos casos de incestos, estupros e defloramentos na região
do Alto Juruá, que segundo ela se combinavam de diversas maneiras. Esta
era certamente uma realidade que poderia ser encontrada de forma seme-
lhante nos outros departamentos do Território Federal do Acre nas primei-
ras décadas do século XX. Os incestos eram casos que envolviam parentes
consangüíneos (irmãos, pais, tios, filhas e sobrinhas). Já os estupros podiam
envolver as mesmas pessoas anteriores e incluir vizinhos, amigos e estranhos
no crime de violência carnal forçada contra a mulher. Mas do ponto de vista
social e dos valores de masculinidade, a fronteira entre estupro e defloramen-
to era muito tênue. No caso de estupros causados por parentes, muitos dos
casos não vinham à tona por medo da vítima em denunciar, diz esta autora:
medo físico, psicológico. Além disso, a estrutura familiar de caráter patriarcal
predominante definia quem detinha o poder e como se constituíam os papéis
sociais de gênero.
Em Sena Madureira, sede do Departamento do Alto
Purus, o jornal O Alto Purus, em 1908, deu publicidade a um ofício da pre-
feitura local, do dia 24 de janeiro, onde o capitão José Negreiros de Falcão,
residente na localidade “Campo Ozório”, nas margens do rio Iaco, comu-
nicava ter prendido o indivíduo José Gomes por ter este cometido estupro
atacado de “suas faculdades mentaes” e pedia que a prefeitura providenciasse
uma passagem fluvial para que o acusado fosse deslocado até a cidade para
ser julgado (O ALTO PURUS, 08-03-08). Na linguagem atribuída ao militar,
já percebemos que há claramente uma atenuação do crime praticado pelo fato
do acusado estar “alterado” mentalmente. O já citado Código Penal, em seu
artigo 27, parágrafo 4º, lidava com dispositivos que serviam como atenuantes
para determinados crimes cujos agentes eram os homens: havia a alegada
“defesa da honra” masculina e a recorrente “privação de sentidos” como ele-

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mentos de minoração da possível pena ser aplicada ao reú.
Outro aspecto que merece destaque é que essas dis-
tâncias entre a sede do Departamento e localidades na floresta situadas, mui-
tas vezes, há dias de viagem dos órgãos público (justiça e polícia), faziam
com que o cumprimento dos mandados de prisões fossem extremamente
difíceis: fuga do acusado que se internava em locais mais distantes de onde
morava, falta de estrutura do Estado para fazer cumprir a lei (poucos policiais
e oficiais, recursos financeiros para passagens e alimentações, embarcações)
e até o fato de muitos crimes “contra a segurança da honra e honestidade da
famílias e do ultraje público ao pudor” fossem silenciados pelos medos e con-
venções sociais. Para este último aspecto, ou por descrença na justiça ou por
se preferir lavar a honra “com sangue”, resolvendo as pendengas existentes
no âmbito privado e não através do Estado e seu arcabouço legal muito defi-
ciente no Acre Federal dos primeiros anos do século XX.
Outro caso narrado com mais detalhes pelo mesmo
jornal, apareceu em 1911 (O ALTO PURUS, 11-09-11). Frederico Martins
foi denunciado pelo promotor público da cidade de ter deflorado Maria Be-
nedicta Serra, algo não foi aceito pelo juiz substituto J. Alves de Castro. Na
sua peroração o juiz afirma que mesmo o exame de corpo delito constatando
o rompimento do hímem da vítima, não tinha como caracterizar se isso foi
antes ou depois da menoridade dela.
Algo que tornava difícil precisar a ocorrência do cri-
me de defloramento, pois já havia se passado mais de seis meses segundo
atesta esta autoridade. Fica patente que as autoridades não apontam para vio-
lência carnal e nem estupro, pareciam consensuar que Maria Benedita teria
consentido a relação sexual e como não havia forma de precisar se isso teria
ocorrido antes ou depois de ter completado dezoito anos, o juiz na dúvida
beneficia Frederico Martins. O juiz substituto acusa ainda o promotor de ter
exorbitado em suas funções e anula todo o processo “por incompetência do
Ministério Público”.

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Mas este mesmo caso volta à tona novamente em al-
gumas edições depois d’O Alto Purus (O ALTO PURUS, 11-09-11), onde o
caso de defloramento é reaberto e tratado por um novo juiz chamado Daniel
Carneiro. Segundo o magistrado, a casa em que morava a menor Maria Serra
era frequentada por vários rapazes e após serem ouvidas todas as testemu-
nhas, inclusive a mãe da vítima, não havia provas irrefutáveis contra o acusado
Frederico Martins. E uma das testemunhas teria dito em juízo “não saber se
a ofendida fora sempre tida e havida como moça virgem”, afirmação que
contribuía para esvaziar a suspeição sobre o único acusado. E que “alem da
reunião de homens à noite na casa da menor, vivia esta desacompanhada pelo
mercado e outros lugares públicos trocando pilherias licenciosas com pessoas
do povo, achando-se desde algum tempo de casa aberta nesta cidade”.
A culpa acaba sendo atribuída à Maria Serra pelas
muitas “facilidades” que ela teria dado aos homens quando não se comportou
de acordo com o considerado adequado pelos valores morais hegemônicos
à época. Nesta direção, o estudo de Cristiana Schettini (2006) aponta que “o
status moral de mulheres era estabelecido através da noção de honra, associa-
da ao recato e a espaço privado, qualquer atuação delas no espaço público as
deixava vulneráveis a constantes julgamentos morais” (SCHETTINI, 2006,
p. 22). No caso tratado aqui, esses aspectos são inclusive corroborados pela
justiça.
É nesta direção que o juiz sustenta então que diante
“das facilidades de semelhante viver da menor, assediada por outros homens,
nenhuma razão de justiça pode aconselhar” à condenação do único réu apon-
tado no processo. O juiz usa o exame de conjunção carnal a favor da absolvi-
ção ao destacar mais uma vez que não era possível precisar se o defloramento
de Maria Serra era recente ou antigo. Com isto, “despronúncia” então o acu-
sado Frederico Martins que se livra de culpa no caso em questão.
O caso que passamos a tratar é o de rapto, ocorrido
no Departamento do Alto Purus em 1912 (O ALTO PURUS, 27-04-13). De
acordo com o periódico municipal, no dia 11 de abril foi prestada queixa
por Martha Maria da Conceição contra Francisco Nogueira de Queiroz, este

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mais conhecido pelo apelido de Piloto, que segundo a denunciante alguns dias
antes o acusado teria raptado sua filha de 13 anos chamada Edwiges Damas-
ceno. A mãe narra que Piloto raptou sua filha da colocação Salvação e desta
localidade fugiu para a cidade de Sena Madureira. Segundo o jornal, “foi feito
pela polícia o exame necessário, verificando-se que a menor achava-se de fato
desvirginada, pelo que foi efetuado o casamento por intermédio da polícia”.
Mas uma vez se evidencia que o rapto conjugado com a conjunção carnal era
um ato planejado em que os fugitivos jogavam com o aspecto legal a favor
principalmente do acusado e muitas vezes da própria vítima que colaborava e
incentivava o crime de rapto.
No entanto, devemos entender que a relação entre um
homem adulto e uma menor, como ocorria na maioria das vezes nestes casos,
não era pautada em experiências de vidas e estruturas psicológicas, sociais e
políticas igualitárias. Muitos menos os papéis sociais masculinos e femininos
se equivaliam na sociedade brasileira e acreana da virada do século XIX para
o XX.
Outro caso em Sena Madureira que também resulta
em casamento foi o defloramento da menor indígena identificada apenas por
Pirá, com “menos de 10 anos presumíveis” (O ALTO PURUS, 29-03-14). O
apelante é o próprio acusado, chamado de João da Cruz Correia, que recorre
à justiça solicitando casar-se com a menor “ofendida”. O juiz Alberto Diniz,
no dia 10 de janeiro de 1914, então concede a solicitação explicando que “não
há lugar a imposição da pena quando ao defloramento seguir-se o casamen-
to”. A idade era algo que as autoridades pareciam não levar muito em conta,
pois “considerando a ofendida ter menos de 10 anos não é obstáculo para a
realização do casamento, pois o decreto 181, de 1890, manda que se faça o
casamento, podendo o juiz determinar a separação de corpos até que a nu-
bente menor complete a idade legal”. Alguns dias depois, em 25 de fevereiro
o mesmo juiz dá seu despacho final ao mandar que “se ordene as providen-
cias necessárias a fim de se efetuar o casamento do apelante João da Cruz
Correia com a menor Pirá”. As violências físicas e psicológicas das mulheres
vitimadas por defloramentos ou estupros, pareciam aos olhos das autoridades

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e legislação da época, se resolverem com simples casamento assumido pela
parte masculina como reparo à honra feminina.
Contudo, a resolução legal do caso em tela toma um
rumo inusitado ao que foi decidido pelo juiz Alberto Diniz e frustra o intento
do acusado de defloramento, quando o novo juiz R. Araújo Jorge toma conta
do caso:
Tornando-se impossível o cumprimento do acordam por
ter um individuo, que se dizia encarregado da catequese
de índios no Acre, conduzido a menor para Manaus, foi
requerido originariamente o habeas corpus por estar o
paciente preso em virtude de sentença do juiz de direito e
não se ter realizado a reparação do dano por motivo de força
maior: desaparecimento da ofendida e seu consequente
falecimento em Manaus. (...). Se o crime não foi reparado,
existe ainda. Consequentemente, a sentença da primeira
instancia subsiste ainda, tais os termos do acordam.
Dele não consta a reforma da sentença, por ele não foi o
impetrante absolvido. Ao ser concedido o habeas corpus,
dar-se-a o absurdo de vermos um individuo, convencido
do crime de estupro e condenado por juiz competente,
em processo regular, ser posto em liberdade; o que não
pode deixar de ser lamentável e de consequências funestas
visto como os crimes contra o pudor e contra a honra da
mulher são justamente os que mais são acoçoroados pela
impunidade. Por todos esses motivos, neguei o habeas
corpus (O ALTO PURUS, 29-03-14).

Assim, ficamos sabendo que João da Cruz só não


consegue seu intento como acaba sendo preso após desaparecimento e poste-
rior falecimento da menina indígena que foi levada à Manaus por um aludido
catequizador de índios, o que acaba inviabilizando a possibilidade do casa-
mento. Seu advogado entra então com pedido de habeas corpus justificando
que o não cumprimento da suspensão da pena (dada pelo casamento) não
ocorreu por vontade de seu cliente. Contudo, tal pedido é negado pelo juiz
Araújo Jorge ao destacar que a morte da vítima não anulava o crime de estu-
pro praticado por João da Cruz. E realça ainda que tal atitude visava também

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punir o acusado por algo que geralmente não levava a maiores consequências
jurídicas e penais para aqueles que cometiam tais crimes.
O rapto e estupro de mulheres indígenas muito jovens
é algo bastante discutido no âmbito das ciências sociais que tratam da forma-
ção dos seringais na Amazônia conjugada com a expulsão e ocupação de ter-
ras habitadas por indígenas. No caso do Acre, temos os trabalhos de Marcelo
Iglésias, Mariana Pantoja e Terri do Vale Aquino (1977). São respectivamen-
te Os Kaxinawá de Felizardo: correrias, trabalho e civilização no Alto Juruá
(2010); Os Miltons: cem anos de história nos seringais (2008) e Kaxinawá:
de seringueiro “caboclo” a peão “acreano” (1977), que mostram as múltiplas
relações interétinicas forçadas, compulsórias e extremamente violentas en-
volvendo indígenas e os migrantes das frentes econômicas e expansionistas.
A Literatura e os crimes contra a honra e gênero: ficção como
expressão do real
A literatura regional, que alguns irão chamar de “lite-
ratura dos seringais”, vai tratar com frequência de aspectos sociais ligados às
questões de gênero, honra e sexualidade nos seringais amazônicos e acreanos
em narrativas situadas muito próximas ao recorte temporal adotado no pre-
sente artigo: ou seja, últimos anos do século XIX e anos iniciais do século
seguinte. Seus autores geralmente foram agentes públicos ou profissionais
liberais que viveram e transitaram nos ambientes que descreveram ou então
ouviram de segunda mão muito do irão colocar nas tramas de suas obras
literárias.
No livro Seringal, de Miguel Ferrante, publicado em
1972, temos um caso de estupro cometido pela personagem chamada Carli-
nhos, filho do prefeito e protegido do seringalista chamado coronel Fábio.
A vítima de nome Paula tem somente doze anos de idade e torna-se o amor
e alvo de compaixão de Toinho, afilhado do coronel Fábio. O dono seringal
e homem de poder do lugar, finda sendo assassinado pelo seu afilhado, que
busca ao longo da trama vingança pela morte de Paula que ele atribui ser
culpa do seu padrinho que fechou os olhos e nada fez para reparar o erro co-

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metido por Carlinhos. Vemos neste pequeno resumo explicitadas as relações
hierárquicas de poder baseadas no mandonismo e nas redes de proteções
de classe. Os subordinados, os fracos, em situações limites respondem com
violência e determinação nas suas vinganças contra os poderosos do lugar.
Na realidade dos seringais essas revoltas trágicas contra os patrões não eram
tão estranhas, como já foi demonstrado por Chistina Wolff (1999) ao chamar
essas práticas corriqueiras de “linguagens da violência”.
Em Alberto Rangel, autor de Inferno verde lançado
em 1908, a cabocla Maibi é uma das poucas mulheres existente na localidade
chamada seringal Soledade, onde se passa parte da trama do romance. Ela é
usada como moeda de troca pelo patrão de seu marido, tenente Marciano. O
seringueiro Sabino da Maibi é devedor de uma grande quantia no barracão,
quando se vê obrigado a ceder sua esposa no momento em que a sua dívida é
assumida por outro seringueiro chamado Sérgio, que tinha fama de trabalha-
dor e pessoa com saldo no barracão. Desgostoso com o “negócio” forçado e
com saudades da cabocla, Sabino mata Maibi e ela então se transfigura sim-
bolicamente na própria Amazônia: explorada, abusada, violentada e objeto de
desejo de homens aventureiros.
Em Coronel de barranco, romance situado na virada
do século XIX para o XX e escrito por Cláudio de Araújo Lima (publicado
na década de 1970), temos o dono do seringal Santa Fé chamado coronel
Cipriano, que mata a prostituta de nome Conchita com quem tivera uma re-
lação amorosa após tê-la encomendado junto a um regatão sírio para viver
no seu seringal. Acontece que após chegar no seringal, apesar da meia-idade,
Conchita se torna “grande atração do seringal Santa Fé. A senhora para uns,
o casquinho para outros, o bucho velho para muitos poucos (...) sobre quem
se concentravam os interesses eróticos daquela sociedade sem mulheres”
(LIMA, 2002, p. 256).
Ao despertar tantos interesses, Conchita acaba fugin-
do com o guarda-livros do barracão chamado Antoninho após uma viagem
de Cipriano para Manaus a negócios. Ao saber da fuga, torna-se questão de

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honra a vingança por parte de Cipriano por ter sido enganado por uma pros-
tituta. Este “acerto” ocorre algum tempo depois em Manaus quando ela é
encontrada. Coronel Cipriano representa a figura de poder por excelência nas
vastidões dos seringais, que dita as normas e resolve questões conflituosas em
terras e gentes sob seu domínio. Sua sede de vingança é mais centrada na trai-
ção de Conchita do que nos procedimentos de seu antigo empregado, que na
trama do livro não aparece sendo perseguido ou castigado. Raptos eram mais
tolerados do que a traição feminina no arcabouço dos valores não escritos da
sociedade dos seringais.
Há ainda a moça Rosinha prima do narrador Matias
Albuquerque, que se torna gerente e dono do seringal Santa Fé após a prisão
do coronel Cipriano pelo assassinato de Conchita. Rosinha foi o grande amor
de Matias quando jovem e vivia junto com seu tio Amâncio no seringal deste.
Sua prima ao chegar no seringal vinda de um convento, se confessa apaixo-
nada pelo jovem Matias e conta a ele ter sido assediada por um seringueiro
chamado Sandoval que queria se casar com ela. Em seguida ela fica grávida e
sem declarar quem é o pai do seu filho, acaba sendo assassinada durante uma
missa dominical quando a pequena igreja próxima ao barracão é invadida pelo
seringueiro enciumado, que após matar Rosinha a punhaladas se suicida.
Ao se confessar apaixonada por Matias Albuquerque,
temos a hipótese de Rosinha querer fazer um arranjo intrafamiliar para resol-
ver sua situação de futura mãe solteira, que logo seria descoberta e se tornaria
motivo de vergonha para todos os parentes. Como realça Wolff, os casamen-
tos endogâmicos tinham ainda como pressuposto, em certas situações, a ma-
nutenção do patrimônio familiar que ficaria preservado de fragmentação e
cobiça de elementos externos. Podemos ainda asseverar da resistência familiar
em permitir que a sobrinha do patrão casasse com um simples seringueiro,
que certamente sabia desta barreira quase intransponível e ao matá-la é como
se dissesse à todos: “se não for minha, não será de mais ninguém”.
Considerações finais
Neste breve artigo intentamos discutir alguns aspec-
tos relacionados com os chamados crimes contra a honra, crimes estes que

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conjugavam elementos de ordem legal e práticas culturais fortemente impreg-
nadas pelos valores patriarcais. O atual estado do Acre teve sua formação
marcada por migrantes de diversos quadrantes, que atraídos pela riqueza ex-
trativa da borracha natural foram ocupando terras e expandindo fronteiras
étnicas, territoriais, lingüísticas, culturais e políticas. Confrontos e interações
de múltiplas características foram se formatando no interior das florestas,
margens de rios e nos núcleos urbanos que irão se formar.
Práticas cotidianas e normas baseadas nos costumes
passam a ser regulados pelo poder legal que aos poucos e forma errática vai
se implantando com a chegada do Estado a partir de 1903 com a assinatura
do Tratado de Petrópolis celebrado entre Brasil e Bolívia, que cede a região
acreana definitivamente ao Brasil. A chegada da justiça e da ordem legal, bus-
ca regular modos de vidas e práticas bastante arraigadas nas formas de socia-
bilidades então preponderantes. Indicar as formas de bem viver, ordenamen-
tos, disciplinas e punições passam a ser prerrogativas do Estado.
Mas no interior das florestas, nos altos rios e seringais
a vida continuou ainda por muito tempo centrada nos costumes e valores
tradicionais. Centrada em relações hierarquizadas de poder, distinção dos pa-
peis de gêneros, aspetos raciais, status social e econômico. E que também
apareciam corriqueiramente em jornais locais quando divulgavam crimes de
raptos, assassinatos passionais, estupros, defloramentos e outros correlatos
envolvendo a chamada “honra”.
Abductions, deflorations, violence and power
relations in acrean amazon (1904-1920)
ABSTRACT: This work attempts at approaching the issue of criminality in the
Federal State of Acre, mainly in relation to the so-called crimes against honour and
morality. Newspaper reports, criminal trials and literary works are used as primary
sources. Regardless of whether they are fictional or real, these crimes bear the mark
of power relations between genders, typically in case of disputes between men for

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the same woman, or in vendettas by male parents to defend the injured honour of
women from their family, among other practices related to a society characterised by
“rituals of masculinity”, as claimed by McClintock (2010) when talking about colonial
and imperial contexts. Therefore, the analysis of these issues in border areas, which
are characterised by frequent encounters and clashes between people coming from
many places, with different interests and backgrounds, reveals practices and identities
often submerged beneath the surface of traditional narratives.

KEYWORDS: Violence. Crime. Woman. Acre. Identity

Referências
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de mestrado. PPGAS – UNB, 1977.
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LIMA, C. A. Coronel de Barranco. 2ª ed. Valer: Manaus, 2002.
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Tradução de Plínio Dentzien. Campinas: Edunicamp, 2010.
PANTOJA, M. C. Os Miltons: cem anos de história nos seringais. 2ª edição. Rio
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RANGEL, A. Inferno verde: scenas e scenários do Amazonas. São Paulo: Arrault,
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SCHETTINI, C. Que tenhas teu corpo: uma história social da prostituição no Rio de
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Acre (1904/1920), In: MUIRAQUITÃ, revista de Letras e Humanidades do Pro-
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WOLFF, C. S. Mulheres da floresta: uma história do Alto Juruá, Acre (1890-1945).
São Paulo: Hucitec, 1999.

Data de recebimento: 16/7/2014


Data de aceite: 19/8/2014

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Representações literárias nos espaços amazônicos:
leituras de margem1

Olga Maria Castrillon-Mendes2


RESUMO: O presente artigo encerra uma proposta de reflexão sobre o processo de
construção dialética de uma literatura que se estende por variados campos de repre-
sentações sociais em que a história e a memória projetam discursos que se re-atua-
lizam. Pesquisas têm demonstrado que, diferentemente das imagens estereotipadas
construídas através dos tempos, o Brasil mais interior e por isso menos conhecido,
possui uma vasta produção literária, muitas vezes de difícil acesso. Trata-se de um
acervo valioso que, além de necessitar de tratamento especializado, requer estudos
que o tornem aberto à diversidade de interpretações a fim de que, conhecendo-se o
processo sócio-histórico de formação das identidades que compuseram o mosaico
cultural amazônico, seja possível realizar uma re-visão da história cultural do conti-
nente.

PALAVRAS-CHAVE: Literaturas. Acervos Históricos. Amazônia. Pluralidade Cul-


tural. “Regiões Culturais”.

Neste artigo proponho socializar alguns pontos de


um trabalho inicial sobre a constituição dos discursos contraditórios que
construíram a ideia de Amazônia, principalmente, a Amazônia mato-gros-
sense, colocando-os como mais um esforço no sentido de reconhecer e dar
visibilidade à diversidade cultural brasileira. Esses discursos surgidos em meio
a conflitos sociais envolvem um universo cultural variado que se relaciona a
outras culturas do fragmentado universo latino-americano.
Pesquisas têm demonstrado que o Brasil mais interior
e, por isso, menos conhecido pelo que é considerado, hoje, o centro, possui
1
  Uma versão preliminar deste artigo, com o título “Narrativas em trânsito nos
espaços amazônicos: história e representações literárias” foi apresentada na forma
de comunicação em Simpósio Temática e publicada nos Anais do XXVII Simpósio
Nacional de História, Associação Nacional de História, ANPUH, realizado em Natal,
Rio Grande do Norte, no período de 22 a 26 de julho de 2013.
2
  Doutora em Teoria e História Literária, Professora da Universidade do Estado do
Mato Grosso.

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uma vasta produção literária e cultural, muitas vezes ainda de difícil acesso,
justamente pelo descaso histórico e pela ausência de atitudes mais ousadas
dos próprios agentes sociais dessas “regiões culturais”.3 Trata-se de um acer-
vo composto de cartas, diários de viagem e periódicos que, além de necessitar
de tratamento especializado, requer estudos que o torne aberto à diversidade
de interpretação, a fim de que, conhecendo o processo sócio-histórico de
formação das identidades que compuseram o mosaico cultural amazônico
mato-grossense, possam proporcionar a re-visão da história e da literatura
produzida nas regiões brasileiras e em todo o continente latino-americano.
Para isso, é necessário entender que o espaço geográ-
fico de localização dessas culturas faz parte de um complexo processo de
formação histórico-colonial repleto de conquistas, explorações científicas,
extrativismo, compondo o viés pelo qual poderão ser analisadas e melhor
compreendidas as produções culturais ditas “de margem”, no macrossistema
em que se insere, ou seja, no macrossistema latino-americano.
Desta forma, minha análise propõe compreender a
produção literária oriunda dos processos multiculturais em cujo interior se
assenta grande parte da complexidade e multiplicidade de discursos que con-
formaram as relações de poder na América Latina. Assim, é possível reconhe-
cer, a partir de Mato Grosso, o movimento de construção das identidades, das
fronteiras diversas, das territorialidades como função da história, da literatura
e de outras manifestações de linguagem na construção das nações e naciona-
lidades, temas que contribuem para o redimensionamento dos estudos atuais
sobre os sentidos do local/regional e universal/geral, com base enfática nas
noções de “literatura-mundo”.4 Nessa perspectiva, é possível se pensar no
material de análise, instituindo o lócus da interlocução pelas vias do diverso.
No dizer de Pierre Bourdieu, se se pensar cada espaço

3
  Expressão utilizada por Angel Rama (2001) para significar a diversidade do mapa
latino-americano.
4
  A noção de literatura-mundo foi verticalmente abordada no XIII Encontro de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, de 16 a 18 de abril de
2013, na FFLCH/USP. Ressalte-se a abordagem da Profª Drª Helena Carvalhão
Buescu, da Universidade de Lisboa sobre a perspectiva da abrangência interdisciplinar
das análises em detrimento dos paradigmas local/universal.

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de produção cultural como “campo”, evita-se o reducionismo, a “projeção
rebaixadora” de um espaço a outro (BOURDIEU, 1996, p. 226). Trata-se
de examinar a estruturação dos campos e as posições assumidas pelos sujei-
tos históricos na hierarquia estabelecida entre eles e os efeitos causados pela
dominação simbólica. Assim, por exemplo, são conferidos à literatura e ao
escritor, até meados do século XIX, os modelos de pensar e a forma de agir
intelectualmente.
O texto literário se constituía em normas de condu-
ta social, veiculando mensagens homogeneizadoras de cunho maniqueísta,
identificadas com a hierarquia política de nações como a França e a Alema-
nha. A partir do século XX abrem-se novos espaços e posições culturais com
base na compreensão das variadas visões de mundo, próprias a cada grupo
social a que os escritores pertenciam. Assim especificados, cada campo social
congregava os seus porta-vozes. Nas primeiras décadas do XX, os estudos
críticos de Ezra Pound5 sinalizavam para a função do artista como “antenas”
ligadas aos efeitos da criação, no caso, o poema (e não o poeta). Significa que
o conhecimento passa pelo exame cuidadoso dos fatos, por isso, o intelectual
começa a se colocar entre as palavras, na “dança do intelecto [...] que trabalha
no domínio específico das manifestações verbais” (POUND, 1990, p. 11). A
decantada mensagem do texto dá lugar para o labor da palavra que se torna
arma de luta que visa a transformação do leitor.
Ao analisar, portanto, uma forma literária, procura-se
não mais a linearidade passado/presente, mas a inter-relação que a situa no
que se pode chamar, com Benjamin Abdala Junior, movimento dialético da
espiral (ABDALA JÚNIOR, 2007, p. 13). Neste sentido, a figura de lingua-
gem evidencia não a circularidade positivista, a repetição de fórmulas estabe-
lecidas, mas a perspectiva da dialética da forma literária na sua historicidade.
Ou como diz ainda o crítico, a estrutura artística nos contraditórios e comple-

5
  Refiro-me, aqui, ao pragmático ABC da literatura. São Paulo: Cultrix, 1990. Augusto
de Campos antecipa no prefácio que é um manual para ser lido com prazer e proveito
por todos os que esmiúçam cuidadosamente os fatos, no caso, os fatos da língua.

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xos processos históricos controlados pelos diversos e contraditórios agentes
do poder. Essa dinâmica é um movimento incessante, e sempre crescente, que
retoma, interfere e projeta a diversidade das formas de modo a transformá
-la em objeto artístico num campo relativamente autônomo. As marcas dele
advindas são possíveis de administrarem, por um lado, as diferenças e, por
outro, a preservação da hegemonia.
Nesse sentido, articulam-se os textos produzidos à
historicidade (nem sempre demarcadora) da produção artística brasileira e à
práxis do intelectual. Busco, portanto, compreender as dinâmicas desse “po-
der simbólico” no conjunto da produção literária de Mato Grosso, apoiando
minhas reflexões nos estudos elaborados por Pierre Bourdieu (1996 e 2010).
Interessa-me, sobremaneira, aliar o conceito de poder simbólico ao de campo
literário e o consequente lócus de enunciação do intelectual de margem.
As relações de poder permitem que uma cultura se so-
breponha a outras, comprimindo-as de maneira a sufocar experiências sócio
-históricas e intervenções singulares que surjam de outros locais fora do eixo
hegemônico e, portanto, irradiadores de padrões de comportamento social.
Por esse viés, as ideias de Lucien Goldmann (1990) sobre o método estrutu-
ralista genético na história da literatura, têm contribuído para se repensar o
processo de interação entre o autor e o grupo social a que pertence. Longe de
querer discutir aqui a questão da autoria, interessa-nos a postura do escritor
perante o grupo que representa e que o transforma no elo entre a criação e
o sujeito leitor inserido num determinado grupo social. Desta forma, a obra
literária não é mais considerada pedagogia ou um reflexo da realidade, como
no realismo/naturalismo do século XIX, mas está na tensão literatura/so-
ciedade, dicotomia já estudada por Luckács e retomada por Goldmann que
introduz o conceito de historicização da forma, cujo sujeito social atua de
diferentes formas, tanto usando seus canais próprios de observação, quanto
reflexão e interação com o interior da sociedade que se expressa pelo termo
trans-individual. Ou seja, a busca das homologias, o estudo das estruturas
significativas (compreensão mais globalizante) que confere unidade à obra

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literária, tornando inteligível a sua gênese. Assim, cada obra é fruto insepa-
rável, não apenas da psicologia do autor, mas do fator social presente na sua
estrutura.
No Brasil, Antonio Candido empenha-se na com-
preensão da síntese desse universo sócio-cultural dado pelas “tendências
universalistas e particularistas” desde as primeiras manifestações literárias
(CANDIDO, 1997, p. 23). O “sistema simbólico” articulado autor/obra/pú-
blico de que trata tem validade histórica na construção nacional, ou como diz,
lembrando estudo de Julien Benda,6 uma história dos brasileiros no seu desejo
de ter uma literatura.
Acessando arquivos
Desde o século XVIII a fronteira oeste brasileira foi
foco de tensões, surgindo imagens que marcaram a já tão gasta (e ultrapas-
sada) ideia de sertão. Naquele momento, várias foram as investidas de reco-
nhecimento do interior brasileiro de forma a tornar conhecido o que era des-
conhecido dos próprios brasileiros. Podemos dizer que o projeto iluminista
que concebeu a idéia de Mato Grosso teve sua gênese no espírito renovador
de Pombal, cuja ação, no dizer de Antonio Candido, foi decisiva e benéfica
para o Brasil, favorecendo atitudes mentais evoluídas, que incrementariam o
desejo de saber e a adoção de novos pontos de vista na literatura e na ciência
(CANDIDO, 1997, p. 63). Ou seja, o pensamento letrado marcando a hege-
monia cultural.
Nesse período muitas são as produções narrativas de
viajantes e escritores que constituíram o que Candido chamou de “manifes-
tações literárias”. Formas estereotipadas que ganharam amplo poder de cir-
culação, cujos gestos e sonhos foram inseridos num imaginário “mais amplo,
mestiço e oriundo de nossa formação mestiça”, nos estudos de Benjamin
6
  Julien Benda (1867-1956) teorizou a independência política e neutralidade partidária
dos intelectuais. Ficou conhecido pela obra “La trahison des clercs”, traduzido como
“A traição dos intelectuais”. Para ele, trai os valores intelectuais o indivíduo que busca
interesses particulares em detrimento dos universais (clercs é o termo utilizado para
referenciar os homens letrados de sua época).

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Abdala Júnior (2002, p. 11).
Muitos dos investimentos na ocupação de terras lati-
no-americanas foram transformados em produto das experiências da viagem.
Aliados a outros escritos, elaborados por diferentes observadores sociais, for-
mam a diversidade étnica e cultural para a nossa constituição de povo, de raça
e de processos ideológicos. Tais práticas culturais exerceram importante papel
social na construção dos sujeitos amazônicos, prenunciando como o século
XIX recortou o mundo e como as imagens escritas e desenhadas, por olhares
outros, se mesclaram para construir novos processos de significação.
A memória construída por esses movimentos produz
um sentimento de identidade e de pertencimento de forte marca estrangeira,
gerando o desconforto do lugar de não origem, como tratado por Julia Kris-
teva. Tal sentimento possibilita a re-criação de paradigmas para os sistemas
de pensamento, fornecendo ao escritor a conquista e a tradução da terra, pelo
olhar (KRISTEVA, 1994). Dessa forma, cria o espaço de intersecção no pro-
cesso de construção/superposição das imagens, não como ponto fixo, mas
construção móvel que não diluem a perspectiva de outros olhares, ao contrá-
rio, a configuração deles fornece a abrangência cósmica de estar no mundo e
não fora (ou à margem) dele.
Nesse caminho, concebemos identidade como uma
manifestação individual e coletiva que unifica e faz com que os indivíduos se
reconheçam ao estabelecerem suas diferenças em relação a outros indivíduos
com base em atributos sociais e culturais comuns. Falando com Michael Pol-
lak é a relação entre memória e identidade social como um fenômeno que se
produz em referência aos outros, em referência aos critérios de aceitabilidade,
de admissibilidade, de credibilidade, e que se faz por meio da negociação di-
reta com os outros (POLLAK, 1992, p. 204).
Nessas relações multiculturais, as interpretações bus-
cam assinalar a lógica da colonização re-visitada. As consequências de tais
investidas resistem no ideário de modernidade e são enfrentadas nas perspec-
tivas teóricas e críticas para se compreender as políticas e culturas plurais dos

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continentes, como é o caso da América Latina. Pode-se dizer que as literaturas
e culturas produzidas nos variados espaços de significação estão imbricadas
no presente, constituindo a multiplicidade dos territórios de vivência humana
que permitem compreender o nosso comunitarismo cultural, na perspectiva
analisada por Abdala Júnior, como de interesse científico e artístico de modo
a afirmar o nosso rosto diferenciado. “Um rosto híbrido e complexo, tenso e
solidário capaz de se afastar das mesmices da estandardização dos produtos
culturais” (ABDALA JUNIOR, 2002).
Adotamos, nessa linha, a dinâmica da dialética social
que privilegia a operacionalização de conceitos como multiculturalismo, trans-
culturalismo, hibridismo e representação na construção de traços identitários
que reverberam os sentidos de territorialidade dos sujeitos, cuja base analítica
nos fornece elementos para pensar a comunicação artística identificada pelas
raízes que movem a história na busca de um conceito para Mato Grosso a
partir da sua produção literária. Não a tradição, nem tampouco o folclorismo
reducionista, mas a sua tradução, a consciência da atividade produtiva que
permite novas formas de pensar/compreender os sujeitos no espaço das pro-
duções culturais brasileiras em suas interrelações culturais.
Esse percurso de produção somente é possível a par-
tir da formação de um banco de dados significativos para a compreensão das
fronteiras locais, pois os arquivos se dão à diversidade dos gestos de leitura,
conduzindo a variadas interpretações. Isso se liga à formulações anteriores
sobre a produção crítico-literária de/em Mato Grosso que venho explorando
a partir de material bibliográfico e de publicação em periódicos depositado
nos acervos públicos e particulares. Pela via da diversidade de fontes está
sendo possível a re-visão do acervo e, consequentemente, dos conceitos es-
tabelecidos.
Discursos em conflito
No momento de calorosas discussões sobre velhas e
novas identidades, dois pontos se estabelecem como pauta nesta proposição.
O primeiro é não deixar de traduzir a tradição como foi dito; o outro é in-

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tensificar o processo de autoconhecimento dos espaços de produção cultural
através da invenção do arquivo literário na reconstituição da “memória de
uma cultura”, como propõe Ana Pizarro (2005) num contexto e numa visão
das regiões sobre si mesma e em relação a outros espaços e diversidade.
Essa configuração heteronímica pode ser explicada
na perspectiva do deslocamento do sujeito contemporâneo perante as trans-
formações estruturais advindas da “globalização” vistos, principalmente, por
Stuart Hall (2006) e no quadro analítico das dificuldades da sociedade por-
tuguesa no processo de transição paradigmática, posto pelo sociólogo Boa-
ventura Santos (2003). Ambos os estudiosos da chamada pós-modernidade
atingem modos de conhecer que se ligam à transformação dos modos de
organização das sociedades.
As diversidades constituem, portanto, motivo de revi-
são da sociedade brasileira em tal transição. Então, o lugar de Mato Grosso e
o conceito que tem adquirido no contexto sócio-cultural-brasileiro-amazôni-
co e na América Latina é, inicialmente, no período de ocupação (os viajantes
cronistas, naturalistas e missionários), o lugar da fantasia, portanto, o estigma
da imaginação/invenção. Como fala Sérgio Buarque de Holanda, o “paraíso”,
cuja visão encantou os viajantes (HOLANDA, 2000). Pela produção cultural
é possível rever as manifestações literárias que compõem o acervo bibliográ-
fico de modo a construir, num trabalho coletivo, uma historiografia literária
que constitua base para a compreensão dos sistemas literários das sociedades
analisadas. Trata-se, então, de uma revisão que não se pauta em manter as
relações de poder simbolicamente estabelecidas, mas de observar a relação
entre o que está posto historicamente e o material estético a ser observado. O
problema central é não perder de vista as singularidades específicas de cada
material analisado e a permanência (ou não) da forma.
Não mais os mitos relativos à barbárie, mas as diferen-
tes dimensões culturais que passa pela renovação do olhar, levando em conta
concepções de região em sua diversidade social e cultural, sem deixar de levar
em conta os problemas da modernização. No caso estudado, “as Amazônias”

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como uma unidade cultural complexa que se liga, pelas singularidades, a ou-
tras regiões do continente, levando em conta o plano do simbólico. Nesse
aspecto, é possível ressaltar algumas produções como Cobra Norato, de Raul
Bopp, com a escrita sobre as culturas da selva tropical e personagens “encan-
tadas” que se ligam a outras representações amazônicas como Matrinchã do
Teles Pires, de Luis Renato Souza, Trilogia cuiabana, de Silva Freire, Mado-
na dos páramos, de Ricardo Guilherme Dicke, os contundentes folhetins de
Márcio Souza Galvez, imperador do Acre e Mad Maria, todos voltados para
recuperação de uma perspectiva local que não se fecha, mas une combinação
das formas da tradição com a sofisticação dos sistemas modernos de comu-
nicação. Não mais culturas consideradas “bárbaras” ou “primitivas”, mas o
estrato interior visto por Angel Rama, como o mais profundo da literatura
latino-americana e que coloca por terra as velhas pretensões etnocentrista
(RAMA, 2001, p. 303).
É muito difícil acercar-se de conceito tão fluido (e
contraditório) quanto o de América Latina, principalmente quando se debru-
ça sobre a relação entre a produção cultural e a função do intelectual. Na vasta
produção de Rama é possível verificar três grandes sistemas literários latino
-americanos já constituídos: o mexicano, o brasileiro e o de Buenos Aires, o
que pode parecer reducionista demais para significar o mapa do continente.
No entanto, essa constatação permite pensar as formações de margem dentro
das diferenças existentes na língua e na tradição. E o que se vê é uma forte
tendência ao pensamento utópico frente ao processo de modernização cons-
truído coletivamente sem que, para isso, se perca a tradição. Como dissemos,
ela passa a ser traduzida, como acontece na narrativa de Ricardo Guilherme
Dicke que evoca o tempo mítico e os traços de poder pela posse de terras em
Mato Grosso, mas que pode ser representativo de qualquer conflito dessa na-
tureza em qualquer lugar do planeta. É a partir dessa constatação que o grupo
passa a dominar sua própria história e a contá-la à sua maneira, ou seja, há um
passado comum evocado que constrói a consciência da história das perdas e
dos silenciamentos vista por Rama como um “fazer de fronteira” em que o

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continente, assim como a literatura é “território da utopia” (RAMA, 2001, pp.
15-27).
Há, nessa abrangência de discursos, um elo com o
político e com as relações de poder, que traça limite, demarca estereótipos
e contribui para a compreensão da ideia de Brasil no contexto mais amplo,
nas interfaces da busca do seu sentido enquanto nação expressa através da
ciência e da literatura nativas, e o despertar para a fascinação pela paisagem
natural. Provoca, desta forma, a epopéia fascinante da construção de uma me-
mória americana pelas experiências transformadas em textos que constroem
imagens plurais da América, compreensíveis nos/pelos espaços descobertos,
nomeados, estabelecidos pelo maravilhoso-exótico que avizinham a história
do fantástico e a produção do imaginário de forte ascendência européia. Por-
tanto, uma historicidade marcada e reconhecidamente modelada por práticas
alienantes, embora nos encontremos hoje num outro momento da discussão
e, talvez, mais cristalizado pelas abalizadas discussões acadêmicas advindas,
principalmente, dos centros do poder intelectual.
Nessa perspectiva e buscando os aportes desta dis-
cussão, os conceitos confluem para uma produção literária brasileira de/em
de Mato Grosso, nas interfaces que carregam consigo as questões mais pre-
mentes entre regionalismos e identidades culturais, colocando em xeque a dis-
cussão de “margem” no processo de constituição da cultura brasileira. Delas
surgem noções de raça, de povo, de paisagem, de espaços de significação na
sobreposição, deslocamentos e entrelugares da diferença em que foram e são
negociadas as representações de poder - questões corroboradas pela lingua-
gem que, performativamente, cria condições de cristalização dos discursos.
Então, não é simplesmente rediscutir a tradição, mas reencená-la em outras
temporalidades culturais.
Portanto, recuperando a tese de Ana Pizarro para o
nosso foco discursivo, e forçando o plural, as Amazônias são “construções
discursivas” (PIZARRO, 2005, p. 61). Chega-se a ela(s) pelo peso dos discur-
sos míticos relativos à barbárie, impedindo uma abrangência de tipo cultural

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em que se integram diferentes dimensões sobre o espaço simbólico. Estamos,
portanto, criando sistemas literários dentro de um macrossistema latino-ame-
ricano.
Afetados por essa globalização somos todos mobili-
zados a mudar de postura. Fazemos parte de uma dinâmica plural de cons-
trução de identidades que, ao longo do processo de formação do povo, ca-
racterizou o “jeito de ser” brasileiro já desenvolvido na obra Macunaíma, de
1928, personagem-síntese do conhecido escritor brasileiro Mário de Andrade.
Desde então, imprime-se na literatura uma busca de sentidos circulantes em
que a relação com o outro está presente no processo de colonização, mas que
começou a fazer sentido no amálgama sócio-cultural que se estabeleceu a
partir da junção de variados elementos provenientes do processo histórico vi-
venciado pelo século XX. Hoje, a diversidade que constitui a cultura imprimiu
sentidos que representam uma “comunidade simbólica” pela qual se significa,
como fala Stuart Hall (2006, p. 48). Ou seja, participamos de uma “tradição”,
uma “continuidade literária”, cuja imagem Antonio Candido referencia como
a “transmissão da tocha entre corredores, algo entre os homens, o conjunto
de elementos transmitidos sem os quais, não há literatura como fenômeno
de civilização” (CANDIDO, 1997, p. 24). Dessa forma, o híbrido cultural
transmitido é seguidamente reinventado nas práticas e valores, sucumbindo
com a ideia do anacronismo de povo puro e original ou literatura “nossa”.
Então, não se trata apenas do diálogo entre culturas interiores e exteriores,
mas universos de tensões e contradições, vistos em ilhas de comunitarismos
como expressas nas pesquisas de Abdala Júnior.
Ao trabalhar com a produção literária nos países de
língua portuguesa, enfocando o processo discursivo engajado de uma litera-
tura dialética que não se fecha, mas está “em processo”, Abdala Júnior abarca
os múltiplos campos dos referentes sociológicos e históricos, projetando um
amplo debate de representações míticas e utópicas que se atualizam no/pelo
devir da escrita comprometida com a perspectiva coletiva nacional. Nesse
aspecto, é que se torna possível a tradução da tradição, como fazem os escri-

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tores que se afastam do seu lugar de origem, mas sem perder completamente
suas identidades. Elas têm culturas híbridas, estão traduzidas. O aparente re-
torno, como frisa o crítico, implica na “reconfiguração da forma” que se dá
através do papel consciente dos atores sociais, impedindo que ela se petrifi-
que. “Não se trata, pois, de visualizar, na volta da estrutura, o modelo cíclico
ou a sucessividade retilinear da representação do tempo, mas de situá-la na
dinâmica do movimento dialético da espiral, que retorna, interfere e projeta
essa forma” (ABDALA JUNIOR, 2007, p. 13).
No foco destas reflexões, o forte apelo à sociedade
mato-grossense não irá superar as identificações em curso e a mobilidade
dos conceitos, pelo contrário, fará jus a um processo de releitura do arquivo,
atentando para as relações de poder que instalam enunciados dominantes na
estrutura social.
Portanto, ao colocar em cena o espaço cultural do
Mato Grosso, evocamos uma operação constituída historicamente pela escri-
ta, ou seja, pela produção literária dos intelectuais que tornaram possível, cada
um ao seu modo, ou ao modo do grupo que representam, a reconstrução de
uma “realidade” social. Como Pierre Bourdieu ao refletir sobre as regras da
arte em um mundo submetido às próprias leis, tenho proposto não a celebra-
ção dos clássicos, nem o culto dos ancestrais, mas o espaço da liberdade fora
do santuário da história e da fetichização do que passamos a considerar “coisa
nossa”. Por ser tão próximo a nós, teimamos, muitas vezes em não reconhe-
cer (ou perceber) as regras.
Todo percurso aqui analisado nos leva à compreen-
são dos jogos simbólicos engendrados no campo intelectual num esforço de
salientar preconceitos sobre a noção de arte ou de texto literário. Mas ao
adentrar nos princípios da existência da arte como componente histórico e,
se possível, ainda com Bourdieu, “transhistórico”, tratando a obra como um
“signo intencional habitado e regulado por alguma coisa da qual ela também
é sintoma” (BOURDIEU, 1996, p. 156).

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Algumas considerações finais
A ideia de re-conhecer a produção literária local pode,
portanto, contribuir para a re-visão da própria historiografia literária brasilei-
ra, incluindo escritores, obras e conceitos não reconhecidos pela crítica, fato
resultante da escassez de trabalhos na área. O estudo do conjunto da pro-
dução de cada escritor local fará parte do complexo que implica uma forma
de autodescoberta e de descoberta do outro pelos quais se compreenderá o
jogo das relações de poder nas sociedades. Um jogo em que dois eixos se
tornam visíveis: as representações literárias e o papel da memória e das rela-
ções políticas na constituição de uma cultura (supra)nacional. No primeiro
eixo encontram-se os escritores brasileiros que produzem em Mato Grosso.
No outro são levados em consideração os elementos estéticos que fazem da
memória e da relação de poder, ingredientes básicos de permanência (ou não)
de uma cultura supranacional, numa interlocução de amplitude da experiência
de pensar estes saberes, materializados em discurso que se aproximam e se
distanciam pelo respectivo caráter poético-ficcional. Não a ideia geral que tem
confundido estudo pormenorizado, mas a perspectiva de acessar uma singular
parcela desse imenso espaço cultural.
Sem perder de vista essa ideia norteadora, que pres-
supõe a existência de uma produção literária ligada ao conjunto das mani-
festações nacionais, pensar as obras dos escritores de margem fez emergir
elementos da diversidade regional, os aspectos literários e extra-literários,
colocando-os em sintonia (ou confronto) com o tempo e a história. Não
um discurso hegemônico sobre o mesmo, mas o diferente e em relação ao
outro, a outras comunidades. E nada mais original do que pensar esse Brasil,
que se queria independente das influências externas, a partir de uma vivência
amalgamada no espaço interior da imensa geografia brasileira, cuja história é
exemplar importante para se pensar o movimento das conquistas, formador
de povoamento, vilas e fortificações que se presentificam, contemporanea-
mente, no processo de ocupação dos espaços, no norte do estado.7
7
  Cf. Regina Beatriz Guimarães Neto (2002), sobre as frentes sulistas de colonização
contemporâneas, na Amazônia, para o norte de Mato Grosso, uma experiência que
vai “da miséria à invenção do paraíso” em movimentos para lugares distantes que

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Geograficamente, a região “estranha”, “distante”,
“desconhecida”, repleta de “fatos lendários”, que povoaram o imaginário de
muitos viajantes e estudiosos, foi significativamente, foco e palco de discus-
sões das fronteiras definitivas do Brasil. Um caso de fronteiras do imaginário,
que acompanha o movimento da viagem e liga-se ao sentido do político e
das relações de poder que traçaram os limites da soberania portuguesa, pelos
balizamentos dos rios Guaporé e Paraguai, dois ícones da paisagem frontei-
riça. O rio Paraguai, pelo ciclo das águas que formam a bacia do pantanal
sul-matogrossense, local das mais pungentes experiências pessoais, que foram
responsáveis por grande parte do caráter da escrita de escritores do Romantis-
mo que viajaram pelo interior brasileiro, a exemplo de Alfredo d’Escragnolle
Taunay, o Visconde de Taunay.
Dessa forma, ao reencenar o passado memorialístico,
a tradição é reinventada. Não há, portanto, uma identidade original, mas em-
bate de identidades de fronteiras fixas e/ou móveis, estabelecendo situações
de reconstrução e intervenções nas condições políticas do presente.
Assim, pensa-se Mato Grosso, como o resto do Bra-
sil, a partir da mediação do “outro”, disseminando-se idéias estigmatizadas
alinhadas, principalmente, desde os debates sobre a inferioridade do Novo
Mundo postos pelos estudos de Antonello Gerbi sobre o continente america-
no e seus habitantes (GERBI, 1996).
Se o espaço de que estamos tratando fez parte de um
complexo muito mais abrangente, como se estaria, aqui, pensando a “mar-
gem”? Em relação a que(m)? Pois não se pode com isso, cair na redundância
de se estar criando outro centro e outras margens.
Este texto pode funcionar como mais um esforço da
vontade de vencer obstáculos que nos impedem de vislumbrar perspectivas
de participar de uma revolução cultural que pode ter início aqui e continuar
em outros setores da vida social, sucessivamente, como uma grande avalanche
de vontades em busca de um ideal consciente. Ou, na tese de Boaventura San-

guardam dimensões semelhantes aos de ontem.

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tos, reinventar o futuro como única saída para a exploração de novas possibi-
lidades e vontades humanas, um deslocamento que permita a “heterotopia”,
do centro para a margem.
Essa é a nossa proposta no encaminhamento destas
embrionárias discussões, esperando que o auto-conhecimento converta nos-
sas práticas sociais em potencialidades universalizantes.
NOTES ON LITERARY REPRESENTATIONS IN THE AMAZONIC
SPACES
ABSTRACT: The present work concludes a reflection on the process of dialectic
construction of a literature that encompasses various fields of social representations,
on which history and memory project self-renovating discourses. Research has
demonstrated that, despite the stereotyped images constructed throughout time, the
internal and therefore less known part of Brazil possesses a vast literary tradition,
which is often hard to access. That is a precious corpus of works which, far from
requiring a special treatment, needs to be explored in order to allow it to be opened
to the diversity of interpretations, in a way to facilitate the revision of the cultural
history of the continent by revealing the socio-historical process of formation of the
identities that compose the cultural mosaic of the Amazon.

KEYWORDS: Literatures. Historical Archives. Amazon. Cultural Diversity. “Cultural


Regions”.

Referências
ABDALA JUNIOR, B. Literatura história e política: literaturas de língua portuguesa
no século XX. SP: Ateliê Editorial, 2007.
ABDALA JUNIOR, B. Fronteiras múltiplas, identidades plurais: um ensaio sobre
mestiçagem e hibridismo cultural. São Paulo: Editora SENAC, 2002.
BOURDIEU, P. O poder simbólico. Trad. Fernando Tomaz. 13 ed. Rio de Janeiro;
Bertrand Brasil, 2010.
BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução:
Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos. 2 volumes.
São Paulo/Itatiaia, 1997.

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GERBI, A. O novo mundo: história de uma polêmica (1750-1900). Trad. Bernardo
Joffily. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
GOLDMANN, L. Sociologia do romance. 3 ed.São Paulo: Paz e Terra, 1990.
HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad. Tomaz Tadeu da Silva e
Guacira Lopes Louro. 11 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
HOLANDA, S. B. Visão do Paraíso: os motivos edênicos no descobrimento e colo-
nização do Brasil. São Paulo: Brasiliense/Publifolha, 2000.
KRISTEVA, J. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho Gomes.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
NETO, R. B. G. A lenda do ouro verde: política de colonização no Brasil contempo-
râneo. Cuiabá: UNICEN, 2002.
PIZARRO, A. Imaginário y discurso: La Amazonía. Revista de crítica literária Lati-
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POLLAK, M. Memória e identidade social. Rio de Janeiro. Estudos históricos, vol. 5,
n. 10, 1992, p. 200-12.
RAMA, A. Regiões, Culturas e Literaturas. In: AGUIAR, F. & VASCONCELOS, S.
(Orgs.). Angel Rama: literatura e cultura na América Latina. São Paulo: Edusp, 2001.
SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 9 ed.
São Paulo: Cortez, 2003.

Data de recebimento: 16/7/2014


Data de aceite: 27/8/2014

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Brasileiros por opção: algumas particularidades do
processo de emancipação política entre o Acre e o
Rio Grande do Sul
José Sávio da Costa Maia1
RESUMO: Apresenta-se reflexões teóricas sobre elementos identitários utilizados
por acreanos e gaúchos, percorrendo os recortes históricos e historiográficos que,
nos dois estados, buscam construir singularidades distintivas de seu caráter nacio-
nal. Às afirmações de brasilidade optativa que os caracterizam, fazem parte de um
discurso apropriado por setores dirigentes e outros segmentos sociais que, não raro,
projetam sentimentos ambíguos, variando entre a distinção positiva da acreanidade/
gauches, do ponto de vista interno, à conotação de “filhos enjeitados” da nação, si-
tuação que se expressa de forma mais aguda nas letras de seus hinos, especialmente
quando se destacam os atos valorosos de bravura nas suas lutas “independentistas”
contra os estrangeiros.

PALAVRAS-CHAVE: Identidade. Acreano. Gaúcho. Símbolo. Representação.

Considerações iniciais: brasileiros por opção


No contexto da História do Brasil, em que pesem os
lapsos temporais que separam a formação dos Estados do Rio Grande do Sul
(séc. XVII) e do Acre (séc. XIX), no que diz respeito à ocupação das terras
por populações não índias, os processos seguiram modelos parecidos, ou seja,
as terras não pertenciam a Portugal, no caso do primeiro, bem como não
pertenciam ao Brasil, no caso do segundo, mas foram paulatinamente sendo
ocupadas por segmentos de suas populações, seguindo a lógica da expansão
fronteiriça, a ambição por terras e a exploração de produtos que permitissem
a obtenção de lucros fáceis a partir de recursos naturais existentes.
Faz mister salientar que no caso do que hoje conhe-
cemos como Rio Grande do Sul houve orientação expressa dos governos de
Portugal para “ocupação” das terras, haja vista o interesse expansionista da
1
 Doutor em História, Professor da Universidade Federal do Acre.

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Coroa Portuguesa (SOUZA, 1995, p. 154). Já no caso do Acre, tanto o Impé-
rio, quanto à República figuram como equidistantes do processo, aparecendo
mesmo a República como reconhecedora da soberania boliviana sobre a re-
gião.2 Porém, as ideias de conquista, pioneirismo, aventureirismo, colonização,
enriquecimento e exploração, além do argumento do uti possidetis influíam nas
mentes e corações dos que, para além dos Impérios ou Nações, buscavam
oportunidades de “fazer-se na América”, ou seja, a realização de negócios
lucrativos.
Nos dois casos, por tratar-se de áreas fronteiriças,
houve mobilização de tropas armadas e combates contra povos de outras
nacionalidades, características que vão ao longo do tempo permitir a constru-
ção de traços peculiares ou diferenciadores dessas duas populações em rela-
ção aos outros estados da federação. Esse aspecto tornou comum aos líderes
políticos e/ou componentes das elites em cada estado, arguirem a existência
de elementos que compõem singularidades demarcatórias de identidades em
relação aos outros Estados que completam nosso quadro federativo.
As características fronteiriças, o “isolamento” geográ-
fico do que se considera o centro do país, a integração tardia e os tipos que
caracterizam as suas populações (o gaúcho e o seringueiro), sendo apresenta-
dos como diferenciados ou mesmo assimétricos com relação aos dos outros
estados, são recorrentes nos discursos de políticos e/ou elites locais nas rela-

2
 “Em 1895 foi nomeada uma comissão demarcatória encarregada de definir os limites
entre o Brasil e a Bolívia de acordo com o estabelecido no Tratado de Ayacucho,
de 1867. O chefe da delegação brasileira, o coronel Thaumaturgo de Azevedo, ao
constatar a latitude da nascente do Javari, ponto inicial da linha divisória entre os dois
países, percebeu que ficaria com a Bolívia uma região rica em látex, quase totalmente
ocupada por brasileiros. Thaumaturgo de Azevedo denunciou ao governo federal
o prejuízo daí decorrente, já que o Brasil perderia o alto Rio Acre, quase todo o
Iaco e o alto Purus. Infelizmente o ministro brasileiro não aceitou os argumentos do
coronel, que contrariado demitiu-se e denunciou o grave erro da diplomacia brasileira
na imprensa, dando origem a uma intensa polêmica que mobilizou a opinião pública
nacional”. In. Revista Galvez, publicada pela Sec. de Cultura do Gov. do Estado do
Acre – modelo on line. Pesquisa realizada em 14/7/2005.

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ções estabelecidas com a República.
Compreender esse complexo quadro de reações e re-
lações que fluxionam entre as categorias sociais distintas nesses dois espaços,
não constitui tarefa muito simples, haja vista que o “orgulho de ser gaúcho”
e o “orgulho de ser acreano”, apresentam raízes relativamente profundas,
adubadas por suas bandeiras, seus hinos e seus heróis, como representações
garantidoras de suas bravuras, de seus modos de agir, de pensar e de se com-
portar perante os valores que os consagraram como “optantes” pela nacio-
nalidade brasileira, ao mesmo tempo em que podem funcionar como repre-
sentação de inferioridade, desfavorecimento, ou mesmo de exclusão política,
econômica e social, perante o restante do País.
Verificar como essas características identitárias, que
na maioria das vezes, estão associadas a interesses político-econômico de
governantes e elites podem ser também apreendidas pelas camadas menos
favorecidas é a tarefa e o desafio aqui vicejados, embora saibamos que elas
também podem ser pistas para entender certa perenidade na defesa desses
símbolos pelos mais variados segmentos dessas elites locais.
Tentar-se-á, portanto, a partir de breve incursão na
formação desses dois Estados, nos seus tipos, símbolos e nas letras dos seus
hinos, buscar melhor posicionamento para comentar as peculiaridades desses
filhos “optantes” de nossa “Mãe gentil” e “Pátria Amada, Brasil”, trechos do
Hino Nacional, também cantados com fervor tanto na “República Farroupi-
lha” como no “Império de Galvez”.3

3
  Luiz Rodrigues Galvez de Arias era um jornalista espanhol, com praça em Belém – PA
que não tinha inicialmente nenhuma ligação com a questão do Acre. Sua inserção na
história se dá após publicação de artigos em jornais paraenses denunciando o acordo
que a Bolívia estava fazendo com os EUA onde este se comprometia a defendê-la em
caso de guerra com o Brasil. Mesmo que a diplomacia estadunidense tenha negado o
acordo, Galvez caiu nas graças dos seringalistas. Posteriormente, mostrou-se um hábil
aglutinador de forças e foi ungido a situação de líder dos seringalistas que lutavam
para expulsar as autoridades bolivianas da região. Governou o Estado Independente
do Acre por oito meses de 14 de julho de 1989 a março de 1900.

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Alguns antecedentes que contribuem para a construção das
particularidades do acreano
Até o início do século XX, o espaço geográfico que
hoje se conhece como Estado do Acre era território pertencente à Bolívia.
Desde 1870, no entanto, a maioria da população que ocupava a área já era
formada por brasileiros que exploravam as “drogas do sertão” e logo de-
pois, mais especificamente, os seringais para exploração do látex. No início
da ocupação a característica era o nomadismo, condicionado pela atividade
predatória de extração do látex e das outras espécies vegetais que interessa-
vam a economia colonial. Porém com a importância destacada do látex na
indústria europeia e depois estadunidense, houve a necessidade de ocupação
permanente, o que propiciou a formação de latifúndios (seringais), divididos
comumente por obstáculos naturais, como rios, igarapés ou alguma elevação
e sem medições precisas de fundo, já que era praticamente impossível realizá
-las nas condições hoje conhecidas.
A ganância dos brasileiros pela ocupação daquelas
áreas era estritamente comercial, já que os estudos dos franceses Charles Ma-
rie de la Condomine e François Fresnau, no final do século XVIII e, logo de-
pois a descoberta do processo de vulcanização por Thomas Hancock, na In-
glaterra e Charles Goodyear, nos Estados Unidos em 1844, tinham apontado
a borracha como material de grande importância para a indústria (SANTOS,
1980. p. 43 a 45). Com a crescente demanda do produto para exportação e os
impactos causados na balança comercial do Brasil, chegando a mais de qua-
renta por cento das exportações totais do País, os brasileiros que ocupavam a
região criaram na prática um território independente e exigiram sua anexação
ao Brasil.
Em 1899, os bolivianos começam a recolher imposto
e fundaram Puerto Alonso (atual Porto Acre) na tentativa de assegurar o do-
mínio da área. Os brasileiros que viviam na região se revoltaram, organizaram
milícias e deflagraram lutas contra os bolivianos. Os conflitos só terminam
com a assinatura do Tratado de Petrópolis, em 17/11/1903. Por esse tratado,

70

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o Brasil recebeu da Bolívia a posse definitiva da região em troca de áreas no
Mato Grosso, do pagamento de dois milhões de libras esterlinas e do com-
promisso de construir a estrada de ferro Madeira-Mamoré, que favoreceria o
acesso, os transporte e exportações bolivianas na sua área amazônica.
Integrado ao Brasil como território, o Acre foi subdi-
vidido em três departamentos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá, este último
desmembrado em 1912 para formar o Alto Tarauacá. Tendo sido unificado
em 1920, passou a eleger representantes para o Congresso Nacional a partir
de 1934. Em 15/06/1962, o presidente João Goulart sancionou a lei que ele-
vou o território à categoria de Estado (TOCANTINS, 1979).
Esses episódios apresentados de forma rápida des-
focam uma série de outras situações que foram se desenrolando ao longo
dos anos para criar a condição de filho optante da nação brasileira. A guer-
ra movida contra os bolivianos, que é denominada em nossa historiografia
como “Revolução Acreana” e que teria sido um movimento espontâneo dos
seringalistas e seringueiros contra as “intromissões” do governo boliviano,
encobre um jogo de interesses que vai além da simples apropriação territorial
e da isenção do governo brasileiro na disputa.
Os investimentos estrangeiros, principalmente ingle-
ses, belgas e estadunidenses, a proposta feita por grupos bolivianos e anglo-a-
mericanos para organização do Bolivian Sydicate, uma espécie de consórcio
que permitiria a presença estadunidense no território boliviano, inclusive com
mobilização de tropas daquele país para a região e o monopólio de comércio
e navegação nos rios da região, afetavam também os interesses geopolíticos
dos Estados-Nacionais envolvidos. A até então alegada ausência do Estado
brasileiro como participante ativo no processo não resiste a um olhar mais
acurado sobre a questão, pois se não havia a disposição em participar dos
eventos por parte do governo central enquanto Campos Sales era presidente,
o mesmo não se pode dizer dos governos do Amazonas e do Pará, sendo
que o primeiro chegou mesmo a contratar e enviar para a região duas forças
expedicionárias, com intuito de afastar os bolivianos (TOCANTINS, 1979).

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Considerando-se o conceito de Estado4 formulado
por Antônio Gramsci, onde ele identifica-o como sendo um “complexo de
atividades práticas e teóricas” constituído pelas esferas da sociedade política
mais a sociedade civil, é possível pensar as ações desenvolvidas naquele es-
paço como expressão de processos econômicos e sociais conflitivos, pactua-
dos politicamente e articulados ideologicamente no âmbito regional e mais,
entender a região como parte do sistema Estado-Nacional. A partir dessa
referência é possível entender as ações dos governos do Pará, do Amazonas,
dos seringalistas e mesmo dos próprios seringueiros, não só na preservação
de suas receitas geradas com o produto advindo do então território boliviano,
como também a dissimulação do interesse brasileiro no mesmo.
Outro aspecto diz respeito às classes dominantes
envolvidas diretamente no conflito, pois, primeiro criticavam a ausência do
Governo Central assumindo o comando das ações em sua defesa, ao mes-
mo tempo em que queriam manter certa autonomia decisória, já que a or-
dem estabelecida lhes favorecia. É nesse sentido que se formava um quadro
complexo, pois mesmo que houvesse interesses da parte dos revoltosos em
manter um caráter de autonomia no movimento, os fatos posteriores, como

4
  Nos “Cadernos do Cárcere” existem três interpretações diferentes sobre a relação
Estado/sociedade civil. A primeira resultaria de diferenciações observadas por
Gramsci entre as formações de sociedade do tipo “ocidental” e “oriental”, que
definiam ou condicionavam o tipo de relação dessa esfera com o Estado. Ou seja, nas
formações de tipo “ocidental”, a sociedade civil era considerada mais “estruturada”,
mais “sólida”, o que tornava o Estado “uma trincheira exterior da fortaleza da
sociedade civil”. Nas formações de tipo “oriental”, a sociedade civil era percebida
como pouco desenvolvida, “gelatinosa”, nesse caso, o Estado é tudo. Desse modo, sua
estratégia revolucionária estaria centrada, no primeiro caso numa “guerra de posição”
e, no segundo, numa guerra de movimento. Segundo Perry Anderson, na primeira
interpretação fica evidenciada, na percepção de Gramsci, a supremacia da sociedade
civil em relação ao Estado nas formações ocidentais. Na segunda interpretação, Perry
Anderson afirma que, ao contrário da primeira, a sociedade civil é apresentada como
contrapeso do Estado ou em equilíbrio com ele, e a hegemonia é distribuída entre o
Estado – ou a sociedade política – e a sociedade civil, sendo ela mesmo redefinida
como combinando coerção e consentimento. Na terceira estaria a noção de Estado
ampliado.

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a necessidade de controlar propriedades e conter as reivindicações das classes
subalternas, foram mostrando a necessidade de organização que ultrapassava
qualquer modelo espontâneo utilizado durante os conflitos e a ocupação an-
terior. Os próprios líderes dos “revoltosos” começavam a expressar posições
divergentes, o que levou a formação de alianças, traições e urdiduras que cul-
minaram no assassinato de vários deles, dentre os quais o próprio Plácido de
Castro, considerado o maior líder da guerra contra os bolivianos e que figura
hoje no panteão dos heróis brasileiros.
O ambiente formador do atual Estado do Acre, por-
tanto, apresenta traços plurais no que tangencia suas relações político-institu-
cionais. Como identificar a presença de uma sociedade civil interagindo com
o Estado, se as organizações que participaram das escaramuças tinham lide-
ranças que provinham de orientações militares e, mesmo que precariamente,
agiam como tal, convivendo com outros “exércitos” liderados por seringalis-
tas que mais se assemelhavam com os caudilhos rio-platenses?
É possível perceber que não havia uma separação Es-
tado/sociedade civil, que caracterizasse a “modernidade” nas relações estabe-
lecidas naquele espaço, nem no momento da ocupação e nem mesmo depois
da tomada do território. Nesse caso a entrada em cena da Diplomacia da
República opera pelo alto5 uma arquitetura modeladora para ordenar o caos
estabelecido.
Essa operação pelo alto realizada pela República, con-
figurada no Tratado de Petrópolis (1903) e o estabelecimento do Território
Federal do Acre, com nomeação de seus governantes (intendentes/prefeitos),
direto pelo Governo Central é que gerará um redirecionamento no pensar e
no agir das chamadas lideranças locais. O diálogo com o Poder Central passa
a ser mediado pela postura da recusa a ser comandado, pois o valor da con-
quista foi mérito dos “nobres” que empunharam armas. Inicia-se o processo

5
  “Pelo alto”, é uma expressão usada no sentido de que não houve ruptura
entre “atraso” e “moderno”, cabendo ao Estado a direção política do processo
(COUTINHO, 1988, p. 112-114).

73

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de construção dos arquétipos de valentes seringueiros, de defensores de seus
direitos e de suas propriedades, de homens bravos e destemidos que mesmo
sem o apoio desse Governo Central conseguiu derrotar um exército inimigo.
Como diz parte do Hino Acreano:
Possuímos um bem conquistado
Nobremente com armas na mão
Se o afrontarem, de cada soldado
Surgirá de repente um leão.6
A idealização do herói, do vencedor, do estrategista e
a disposição para lutar é, amplamente, reforçada neste outro verso:
Mas se audaz estrangeiro algum dia
Nossos brios de novo ofender
Lutaremos com a mesma energia
Sem recuar, sem cair, sem temer
E ergueremos, então, destas zonas
Um tal canto vibrante e viril
Que será como a voz do Amazonas
Ecoando por todo o Brasil.7
Em versos que falam de liberdade, de guerra, de san-
gue, de família, de heróis, há a expressão de um determinado modo de vida
que foi sendo construído (inventado), da forma autônoma, diferente, onde
a bandeira tem como destaque uma estrela vermelha, “tinta no sangue de
heróis” e ao cantar o triunfo diz que “O Brasil a exultar acompanha”, isto é,
não lutou, apenas acompanha os passos dos vitoriosos, indicando a ideia de
autonomia e a predisposição de se manter vigilante.
Não há como afirmar que essa disposição de luta, de
vigília, também é contra ou em relação ao Brasil, mas também não há como
negar que a condição de Território ao invés de um Estado da Federação, cau-
sou incômodo a muitos dos líderes da “Revolução Acreana”, que por duas

6
  O Hino Acreano tem letra do médico Francisco Mangabeira e música de Mozart
Donizetti, e foi composto em 05/10/1903, ou seja, bem no momento da “Revolução
Acreana”, talvez por isso conserve um caráter belicoso e apresenta orientações para
um tipo de “organização social”.
7
  Idem.

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vezes já haviam criado o Estado Independente do Acre: A primeira com o
jornalista espanhol Luiz Galvez em 1899 e a segunda com o militar gaúcho
José Plácido de Castro em 1903.
Outro fato notório nessas relações político-institucio-
nais é o que diz respeito aos seringueiros propriamente ditos. Eles participa-
ram ativamente das escaramuças, mas sempre em condição de recrutados e
liderados por seus patrões (seringalistas), que recebiam a patente de capitães e
estavam ligados aos superiores militares não possuidores de terras. O rotula-
do “Primeiro manifesto” contra a presença dos bolivianos na região foi assi-
nado por sessenta proprietários de seringais (seringalistas) e que no decorrer
das escaramuças esse número cresceu sem, contudo, haver números precisos
de quantos seringalistas se alistaram ao lado dos militares e/ou mercenários
enviados pelo governo do Amazonas para a contenda. Porém, os registros de
participação popular apontam para ações subalternas e no caso das mulheres,
que naquela época eram bem poucas na região, apenas uma ganhou destaque
de heroína por comandar uma patrulha, é o caso da esposa de um seringalista
morto em combate, que queria vingar a morte do marido (TOCANTINS,
1979).
Efetivamente, a adesão de seringueiros à causa re-
voltosa não se dava por simpatia aos patrões, muito pelo contrário, segun-
do Moreno, um dos méritos de Plácido de Castro, que não era seringalista,
foi exatamente o de pensar além do episódio da guerra em si (MORENO,
14/07/2005). Ele elaborou ideias para o pós-guerra, onde previa uma reor-
ganização da estrutura social e produtiva da região, prevendo inclusive a dis-
tribuição de terras entre os seringueiros. Esse fato contribuiu para a arregi-
mentação, mas também para dar início aos conflitos de interesses entre os
diversos níveis de proprietários que viam com preocupação a possibilidade de
perder suas propriedades e por consequência a mão-de-obra tão escassa nas
áreas de seringais.
O estrategista Plácido de Castro percebeu que a mobi-
lização de homens, não se daria por amor à Pátria ou ao Estado independente

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pretendido por alguns. A arregimentação de braços para manejar as espingar-
das e os rifles necessitava de outros atrativos e ele logo entendeu que a es-
trutura social montada pelos seringalistas não contribuía para o engajamento,
já que as impossibilidades de ascensão social estavam totalmente engessadas
pelos mecanismos da dívida e do aviamento. Assim como as promessas de
alforria para os negros na Guerra do Paraguai, as promessas de distribuição
de terras e libertação das dívidas funcionaram como incentivo para o fortale-
cimento das hostes placidianas.
Pode-se fixar, portanto, nesse contexto, duas variantes
que imprimem certa diferença do acreano com relação aos outros brasileiros.
Uma, o fato de ter ajudado a construir uma situação jurídica e geopolítica
diferente para aquela parte do território e, outra, a ação de muitos seringuei-
ros aspirando à desmontagem de uma ordem estabelecida que os mantinham
aprisionados às regras draconianas impostas pelos seringalistas.
Essas duas vertentes que compeliam para a guerra se-
ringalistas e seringueiros eram insolvíveis no jogo de interesses das disputas
estabelecidas pelo regime engendrado para a extração do látex e as relações
comerciais daí derivadas. Vencido o entrave boliviano, outra modelagem havia
de ser montada. Nesse sentido, o ordenamento político pensado pelas elites
dirigentes precisava ser adequado para a manutenção da ordem, iniciando
outro campo de disputas, agora pela apropriação do poder inserto pela incor-
poração ao Brasil.
O episódio da guerra movimenta agentes que na es-
trutura do aviamento estavam engessados, como é o caso dos seringueiros,
apresenta outros, como os militares que não estavam presentes anteriormente
e introduz os funcionários públicos, implicando a reordenação da compo-
sição do poder. Essa nova situação vai propiciar no decorrer das disputas a
reacomodação de forças e a elaboração de uma nova maneira de apresentar
o acreano como portador de valores que foram fusionados no curso do pro-
cesso emancipatório.
A autonomia, a liberdade, a “nobreza, a constância e

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o valor” como diz uma estrofe do Hino Acreano, são cotejadas como caracte-
rísticas inatas. Então, o acreano que é diferente, que ocupa espaços diferentes
tanto na estrutura econômica quanto na político-social, é apresentado como
homogêneo, pertencente e incluído pelo menos ideologicamente, nas formu-
lações dos que pleiteiam a cristalização de uma identidade imaginada.
A identidade passa, então, a ser usada como arma para
galgar espaços e posições na nova estrutura administrativa do, naquele mo-
mento, Território Federal. Os “vencedores” militares e seringalistas reivin-
dicando para si o direito de exercer o poder sobre os vencidos, ou seja, os
seringueiros (esqueçamos os bolivianos). Seriam os bolivianos os inimigos?
Os donos dos seringais passam a disputar a manutenção do poder com os
militares que queriam também ser proprietários e, principalmente com os no-
vos dirigentes políticos, enviados pelo poder central para preencher os cargos
criados pela nova estrutura política do ente jurídico Território Federal.
Desse modo, a ocupação do espaço territorial boli-
viano, a “Revolução Acreana”, e seu reordenamento jurídico com a incorpo-
ração ao Brasil produzem significativas modificações no ente político, sem
afetar diretamente a estrutura econômica, mas implicando maior divisão do
poder dos seringalistas que, até então, só interagiam de forma subordinada
com os financiadores e as casas aviadoras e exportadoras.
É nesse sentido que há o fortalecimento de uma ideia
de que os seringalistas e os seringueiros agiam de forma coordenada, os líde-
res dispostos a liderar e os subordinados dispostos a colaborar, inventando
a noção de que havia causas nobres que venciam preconceitos e uniam os
interesses diversos e conflitantes. Em suma, um povo que não podia ter seus
brios (seus interesses) ofendidos, pois a reação seria uníssona, já que são: “In-
vencíveis e grandes na guerra”.
Alguns elementos constitutivos das particularidades do gaúcho
Quando se estuda a História do Brasil, ou mesmo os
aspectos geográficos apresentam-se nos alguns tipos, figuras e cenários que

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representam as diversas regiões. As referências a tipos como o bandeirante, a
baiana, o seringueiro, o garimpeiro, o nordestino retirante, o sambista carioca,
o jeca tatu, o gaúcho, etc., são corriqueiras. Obviamente, com os meios de
comunicação atual as possibilidades de enxergar outras realidades ajudaram
a desatar alguns fios dessas teias que enredavam nossa composição social.
Porém, até poucos anos, no contexto de uma população que não viajava ou
viajava pouco, os livros e as revistas que privilegiavam a exaltação das dife-
renças, expandiam e homogeneizavam visões distantes da realidade de uma
região para as outras.
Para pessoas de outros Estados, um dos tipos bra-
sileiro mais distinto é o gaúcho. Sua forma de representação, composta por
seus trajes, seu cavalo, sua cuia de chimarrão, seu laço e seu bigode, são re-
conhecidos facilmente enquanto representante do Rio Grande do Sul. Esse
resultado que propõe “A redução de homens em tipos contribui para que
concepções generalizantes se estabeleçam como forma de conhecimento e
reconhecimento prévio servindo para encobrir determinadas situações so-
ciais”, conforme assinala Maciel em trabalho que estuda tipos característicos,
região e estereótipos regionais (MACIEL, 1995).
Assim a população do Estado do Rio Grande do Sul,
foi e é apresentada as outras regiões do país com essas características revela-
doras, ou portadoras de significados que expressavam e expressam de forma
generalizante “ideias que os habitantes dessa região tem, querem ter ou que-
rem que os outros tenham sobre eles mesmos” (MACIEL, 1995, p. 173). Mas,
quais são esses significados?
O processo de ocupação das terras do que hoje com-
põe o Estado do Rio Grande do Sul, embora conhecidas desde o século XVI,
só ganhou relevo no final do século XVII, desencadeando uma forma de ex-
pansão fronteiriça onde a violência, as intempéries, à distância, o isolamento,
as perdas materiais e humanas acompanhavam os empreendedores. No dizer
de Ruben Oliven:
Apesar da diversidade interna do estado (a ponto de
um autor falar em “doze Rio Grandes), a tradição e a

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historiografia regional tendem a representar seu habitante
através de um único tipo social: o gaúcho, o cavaleiro e
peão de estância da região sudoeste do Rio Grande do Sul.
Embora brasileiro, ele seria muito distinto de outros tipos
sociais do país, guardando às vezes mais proximidade com
seu homônimo da Argentina e do Uruguai. Na construção
social da identidade do gaúcho brasileiro há referência
constante a elementos que evocam um passado glorioso
no qual se forjou sua figura, cuja existência seria marcada
pela vida em campos, a presença do cavalo, a fronteira
cisplatina, a virilidade e a bravura do homem ao enfrentar
o inimigo ou as forças da natureza, a lealdade, a honra, etc.
(OLIVEN, 1992, p. 49/50).

Porém, para chegar ao perfil senso-comum atual,


a figura do gaúcho como asseverou Oliven (1992, p. 50), “sofreu um lon-
go processo de elaboração cultural”, ou seja, não é um resultado natural de
moldagem tipológica. No caso do gaúcho, também precisamos estudar as
variáveis econômicas, sócio-políticas e culturais para entender a que projeto
de organização pensada para esse espaço, servia melhor seu perfil, pois a
ressemantização do termo que foi acontecendo ao longo do tempo também
obedeceu a esses imperativos.
O longo processo de guerras, passando pela Cisplati-
na, Farroupilha e, do Paraguai, além dos conflitos com indígenas, não podem
ser descartados na configuração do homem valente, que precisava estar pron-
to para a ação, aspecto que é reforçado pela lida com gado xucro e da própria
paisagem. Érico Veríssimo, num trecho em que responde a uma escritora
nordestina que creditava espanholismos aos gaúchos (Apud OLIVEN 1992,
48), assim descreve seu modo de ver o gaúcho:
Somos uma fronteira. No século XVIII, quando soldados
de Portugal e Espanha disputavam a posse definitiva deste
imenso deserto, tivemos de fazer a nossa opção: ficar com
os portugueses ou com os castelhanos. Pagamos um pesado
tributo de sofrimento e sangue para continuar desse lado da
fronteira meridional do Brasil. Como pode você acusar-nos
de espanholismos? Fomos desde os tempos coloniais até

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o fim do século um território cronicamente conflagrado.
Em setenta e sete anos tivemos doze conflitos armados,
contadas as revoluções. Vivíamos permanentemente
em pé de guerra. Nossas mulheres raramente despiam o
luto. Pense nas duras atividades da vida campeira – alçar,
domar e marcar potros, conduzir tropas, sair da faina diária
quebrando a geada nas madrugadas de inverno – e você
compreenderá porque a virilidade passou a ser a qualidade
mais exigida e apreciada do gaúcho. Esse tipo de vida é
responsável pela tendência algo impetuosas que ficaram no
inconsciente coletivo deste povo, e explica a nossa rudeza,
a nossa às vezes desconcertante franqueza, o nosso hábito
de falar alto, como quem grita ordens, dando não raro
aos outros a impressão de que vivemos num permanente
estado de cavalaria. A verdade, porém, é que nenhum
dos heróis autênticos do Rio Grande que conheci jamais
proseou, jamais se gabou de qualquer ato de bravura seu.
Os meus coestaduanos que, depois da vitória da Revolução
de 1930, se tocaram para o Rio, fantasiados, e amarraram
seus cavalos no obelisco da Avenida Rio Branco – esses
não eram gaúchos legítimos, mas paródias de opereta
(OLIVEN, 1992, p. 48).

Note-se que mesmo Érico Veríssimo, com toda a sua


capacidade intelectual, aguçado senso crítico e capacidade de capturar de-
talhes, como demonstrada em toda sua extensa obra e considerando que o
fragmento acima é um resumo da sua apreensão do gaúcho, vemos que ele
apresenta apenas a sublimação de certo tipo que mantém as características da
homogeneidade e do perfil voluntarioso, másculo, altivo, mas não consegue
expressar a diversidade dos agentes que interagiram nos processos de guerras
e “revoluções” vividas pelos rio-grandenses ao longo do século XVIII e XIX,
os negros, os índios e as mulheres praticamente não aparecem na composição
do tipo que ganha o direito de representar o Estado, embora saibamos que
em sua obra mais geral ele reconhece, destaca, prioriza até, a diversidade.
Outro fragmento, este da obra de José de Alencar, ci-
tado por Pesavento, mostra a ligação natureza-homem numa forma extensiva
daquela, neste:

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Nenhum ente, porém, inspira mais energicamente a alma
pampa do que o homem, o gaúcho. De cada ser que povoa
o deserto, toma ele o melhor: tem a velocidade da ema
ou da corsa, os brios do corcel e a veemência do touro.
O coração, fê-lo a natureza franco e descortinado como
a vasta coxilha, a mesma pujança. A esse turbilhão do
sentimento era indispensável uma amplitude de coração,
imensa como a savana (PESAVENTO, 1995, p. 221).

Outros fatores que chamam a atenção para o caso do


perfil do gaúcho são suas bases e perenidade. Oliven (1992, p. 51) destaca que
desde relatos de viajantes estrangeiros, como Saint-Hilaire e Arsène Isabelle,
passando por escritores nacionais, como José de Alencar e pensadores como
Oliveira Vianna, o destaque para o tipo gaúcho é significativo.
Além do gaúcho bravo, ágil, etc., há certa idealização
do gaúcho politizado, com forte tez democrática, possuidor de uma conduta
moral inatacável, regida por princípios éticos inabaláveis, onde o dono da
estância sorve um chimarrão na mesma cuia com o peão, comanda tropas,
trabalha na vaquejada também montado como aquele e que abraça, no dizer
de Simões Lopes Neto, uma característica de trabalho prazeroso, composto
por um fazer natural, a lida campeira:
Tudo era aberto; as estâncias pegavam uma nas outras sem
cercas nem tapumes; as divisas de cada uma estava escrita
nos papéis das sesmarias; e lá um que outro estancieiro é
que metia marcos de pedras nas linhas e isso mesmo quando
aparecia algum piloto que fosse entendido do ofício e viesse
bem apadrinhado (LOPES NETO, 1996. p. 49).

Ou seja, era um conjunto que se mantinha porque ha-


via uma aceitação coletiva: “Tudo era aberto”. Contudo, essa visão já carrega
um modelo de idealização. A apresentação de um homem que tinha o céu
como seu teto, e seu rumo era traçado pelo destino, só pode ser aplicado a
parcelas reduzidas daquela população e a períodos também distintos, o que
torna intrigante a perenidade, a permanência da figura do homem a cavalo e a
mistificação que o acompanha, pois há que se notar a incongruência do estilo

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de vida solitário do vaqueano com a forma de vida sedentária das estâncias,
pois já vai bem distante o tempo das vaquejadas nas campanhas do período
inicial da ocupação da região.
Outro aspecto idealizado é a abertura que se dizia ha-
ver da terra. Uma idealização que fatalmente contrastaria com a realidade das
cercas, dos títulos, das próprias patentes militares adquiridas nas várias guer-
ras em que estiveram envolvidos esses agentes, que resultavam na maioria das
vezes, na apropriação de um botim. Essa hierarquização social não permite
uma aceitação tranquila da igualdade professada. Isto é, homens de negócios,
estancieiros, militares, comerciantes, charqueadores, peões todos reunidos
numa convivência pacífica, é praticamente inimaginável em qualquer tempo,
pois está patente que onde as disputas comandam as ações e as relações de
comércio, produção, administração e distribuição, tanto do poder como dos
bens de uso e consumo se caracterizam pela competição, nem sempre há ética
e respeito de valores morais, que tenham fluxo contínuo e inverso entre as
hierarquias estabelecidas.
Porém, mais chamativa é a noção de cordialidade,
honra e virtuosidade do gaúcho, como na letra do Hino do Rio Grande do
Sul:
Mas não basta ser livre
ser forte, aguerrido e bravo
o povo que não tem virtude,
acaba por ser escravo.
A quem se dirige o clamor à virtude? Será uma men-
sagem aos grandes estancieiros para que tratem os negros, índios e mulheres
como iguais, que respeitem os limites e propriedades dos outros? Ou será
uma exortação à vigília contra o Império brasileiro, no sentido de manter
a autonomia dos estancieiros, comerciantes, charqueadores, coureiros, etc.,
alertando para a manutenção do ordenamento tradicional, que vinha dando
certo para esses setores?
Não se tem notícia no Rio Grande do Sul, de mo-

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vimentos estritamente de negros e índios organizando manifestos prós ou
contra Império ou República, discutindo emancipação política e autonomia
na forma de um Estado independente, República rio-grandense, ou qualquer
configuração similar onde estivesse intuída uma ampla frente compondo to-
das as categorias que interagiam no espaço da campanha. Participaram, mas
de forma subalterna, liderados e, podemos até dizer, vigiados. Os movimentos
de negros e índios sempre tiveram outra direção, distanciar-se dos “brancos”.
Esse papel coube, fundamentalmente, aos grandes
proprietários e membros da elite local. E mais, sua construção obedecia a ele-
mentos de manutenção e ampliação de negócios e distribuição e manutenção
de poder, numa relação criativa e pseudo-inclusiva, onde a partir de dentro
se projetava a imagem idealizada de um destino comum. Segundo Pesavento
(1995, p.118):
Concentrando em si os atributos positivos da região e
do seu povo – coragem, caráter indômito, defensor da
fronteira -, a imagem identitária é trabalhada no sentido
de homogeneizar a sociedade. A visualização é a de um
homem simples do pampa, mas seu fim manifesto é a
socializar-se para todos os habitantes do Sul, oferecendo
uma imagem gratificante e com alto poder coesivo. Não
se falam em diferenças sociais dentro do Rio Grande – tal
como no nordeste -, pois as reais oposições a vencer estão
fora da região. Expurga-se o conflito, criando o “inimigo
externo” (PESAVENTO, 1995, p. 118).

A aceitação dessa sociedade idealizada por amplas


parcelas dos diversos estratos sociais é o fenômeno intrigante no estudo das
representações tipológicas apresentadas. Os detentores do poder econômico
se fazem também portadores do poder político, engendrando uma arquitetura
social que permite os outros segmentos sociais se verem incluídos nesse pro-
cesso. Como o negro, os remanescentes indígenas e os segmentos urbanos e
de outros setores sociais apreendem os mecanismos de representação e popu-
larizam os modelos disponibilizados. Esse é um caminho que ainda necessita
de melhores aportes teóricos para ser desvelado. Qual seria o tipo de troca, de

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compensação para a assimilação ter essa característica tão bem fundamentada
e tão perene?
Considerações finais: Acre, Rio Grande do Sul e a ideologia que
os aproxima
Como foi dito anteriormente, os movimentos cons-
titutivos dos estados do Acre e do Rio Grande do Sul, se deram em espa-
ços temporais distintos e com características que também preservam boas
diferenças. Mas, no conjunto é possível identificar-se algumas aproximações,
principalmente no que diz respeito à formação de suas elites governantes,
nos dois casos baseadas em grandes proprietários (estancieiros - seringalistas),
militares, comerciantes e altos funcionários públicos, cristalizando configura-
ções internas de poder de mando e orientando seus relacionamentos com a
República.
Nos dois casos houve a aplicação de um conjugado de
valores que tiveram e mantém um grau de aceitação interno e externo de lon-
ga duração que regulam seus relacionamentos de aceitação ou rejeição de po-
líticas advindas do governo central. Tratam e são tratados de forma diferen-
ciada com a República, estabelecendo variações, ambiguidades, contradições,
oposições e colaboração que oscilam entre práticas benéficas e/ou maléficas
para os interlocutores, comumente expressando uma visão maniqueísta nesse
relacionamento.
O fato dos dois estados terem participado de forma
marcante de guerras contra outros países e de terem convivido com gover-
nos independentes, tendo para isso contado com milícias próprias, facilitou o
surgimento de (principalmente no caso do Rio Grande do Sul, onde se desen-
volveram algumas guerras mais prolongadas e um estado independente mais
duradouro) uma forte acepção rebelde, autonomista (independentista?) e às
vezes separatista, que em menor grau, mas também perceptível, existiu em
alguns setores das elites dominantes no Acre, hoje, praticamente inexistente.
Outro aspecto que une os dois estados diz respeito ao

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tratamento destinado às questões econômicas. Setores governantes do estado
do Acre, por exemplo, reclamam de já ter sido responsável por percentual
elevado das exportações brasileiras no início do século XX e nunca ter sido
ressarcido, ou seja, nunca ter recebido investimentos por parte da União que
reconhecesse sua contribuição naquele período, portanto, elaboram com cer-
ta facilidade o discurso do filho “enjeitado”, o filho que optou, que lutou
para ser brasileiro, mas persiste sendo olhado de soslaio, como bastardo, pela
Pátria-mãe.
Essa característica de optante não reconhecido tam-
bém é observável no Rio Grande do Sul, com a agravante de que aqui perdura
um movimento separatista que argui com certa ressonância fatores relaciona-
dos à contribuição atual do estado ao PIB brasileiro, também sem a devolução
em benefícios e subsídios à população e aos produtores, com o argumento de
que, se administrassem aqui suas riquezas o estado seria mais bem aquinhoa-
do, pois, pelas características democráticas e atributos de bons administrado-
res que possuem, os recursos seriam mais bem aproveitados.
As articulações dos discursos que permitem a inter-
locução com a República são orientados por questões que tem como funda-
mento a economia e o acesso ao poder político, contudo, não se descuidam
de alguns fatores sociais para garantir a adesão das demais categorias que
compõem o todo. Com efeito, essas elites elaboraram e difundiram comple-
xos conceitos ideológicos, que ressaltam a unidade federativa e a singularidade
como fenômenos abrangentes e objetos da ação de todos para concretizá-los.
Sabe-se, no entanto, que só a força de um milagre
monumental poderia fazer as relações de dominação e subordinação estru-
tural entre Estados e os setores ditos civis, tomarem formas diferentes das
que assumiram ao longo do seu desenvolvimento histórico, isto é, o Estado
colocado a serviço de determinada ordem social estabelecida, favorecendo
aos setores que dominam suas estruturas. Portanto, seria absurdo até mesmo
sugerir que das determinações internas estruturais, praticamente inalteráveis,
desse sistema pudessem surgir e se solidificar relações que não fossem desi-

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guais, ou seja, a ideologia usada pelas elites dominantes nos dois estados para
regular seu relacionamento com a República, longe de ser inclusiva, é por sua
natureza profundamente assimétrica, chega mesmo a ser iníqua, mas também,
reconhecidamente eficiente para o seu desígnio, pois domina a partir de um
“consenso”, ao invés da imposição cruel com mecanismos de força física
(usada apenas em ocasiões especiais).
Mesmo sabendo que essa modalidade de dominação
invisível ou não visível, também carrega seu grau de crueldade por seus efei-
tos perversos e que não deixa de exercer violência psicológica, ela parece e
aparece nas suas formas possíveis de percepção e apreensão, como sendo
menos maléfica do que a violência visível ou até mesmo a disfarça quando,
por exemplo, a polícia comandada pelo Estado executa uma ação de despejo
ou reintegração de posse de uma área ou propriedade privada em nome do di-
reito e, principalmente, da manutenção da ordem. Ordem que foi constituída
“teoricamente” por todos e para todos, portanto, legítima e legal.
Essa fascinante representação da estrutura do disposi-
tivo legal também opera no nível das relações Estados – União. Porém, nesse
campo os contendores são mais sofisticados e o mero discurso raramente
convence ou emociona os interlocutores, então surge à necessidade de re-
montar as bases de apoio para lhes dar substância. Nesse caso a recorrência, o
apelo a um passado heroico, o orgulho de ser isto ou aquilo, ou a convocação
de um passado histórico de lutas, unidade, diferenças com relação aos outros,
etc., torna-se necessário para fortalecer as reivindicações locais e renovar a
convicção de todos, seja na comemoração de uma vitória, seja na resignação
de uma demanda não atendida.
Nessa movimentação de mentes, corações e, princi-
palmente, de braços produtivos revitalizam-se as arquiteturas sociais projeta-
das e executadas pelo cume da pirâmide social, mas sempre articulando sua
ressonância na base, como meio de manutenção de um projeto que é pereni-
zado, renovado e sem sombra de dúvidas, bem cimentado pela ideologia de
que o interesse social comanda todos os processos. Os vencedores convidam

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os vencidos para participar da festa da vitória, ainda que seja no final para
limpar o salão.
O Acre e o Rio Grande do Sul, portanto, tão distan-
tes geograficamente, se aproximaram ao longo do tempo pela articulação de
um discurso que desde sua invenção nos processos de suas formações como
unidades federativas, vêm conduzindo sua linha de relacionamento com a
União. A condição de filho optante ou enjeitado, além de forte coesão interna,
permite olhar e ser olhado de forma diferenciada nas suas relações, tanto de
dentro para fora como de fora para dentro no contexto republicano.
Por fim, faz-se mister apontar que outras unidades
federativas e até mesmo regiões, também se valem ou tentam se valer de ele-
mentos valorativos, de condicionamentos que os fazem diferentes, tais como
o “orgulho de ser nordestino”, ou a exaltação da economia paulistana, o cará-
ter revolucionário do pernambucano, etc., peculiaridades que são também po-
tencializadas para regular relacionamentos políticos-institucionais no âmbito
interno e da União, mas que nunca atingiram o nível das feições e coesão que
marcam gaúchos e acreanos.
Brazilian by option: some peculiarities in the
process of political emancipation between acre
and rio grande do sul

ABSTRACT: Presents theoretical reflections on elements identitary used per Acre


and gauchos, retracing the historicals scrapbooks and historiographys, in two states,
are looking to build distinctive peculiarities of its national character. The statements of
Brazilianness optative that characterize them, are part of a discourse appropriate for
sectors leaders and other social segments that, not infrequently, projecting ambiguous
feelings, ranging from the distinction of positive acreanidade/gauches, from the
point of the connotation of “children risk” of the nation, which is expressed in a
more acute in letters of his hymns, especially when highlighting the mighty acts of
bravery in their struggles “independence” against foreigners.

KEY WORDS: Identity. Acreano. Gaucho. Symbol. Representation.

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Data de recebimento: 20/8/2014


Data de aceite: 29/9/2014

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Patrimônio histórico e poder: arte e política no
ordenamento espetacular da “acreanidade”1
Ana Carla Clementino de Lima2
RESUMO: O presente artigo tem como foco a análise do processo de transfor-
mação do Palácio “Rio Branco”, sede do governo do estado do Acre, em museu
histórico e, portanto, uma espécie de lugar da memória da sociedade e da população
da Amazônia acreana. Projetado em fins da década de 1920, o palácio “Rio Branco”
também serviu como residência oficial do governador até meados dos anos 1970,
quando passou a funcionar somente como sede administrativa do executivo acreano.
Para os objetivos presentes neste artigo, no entanto, o que interessa é discutir que,
após a sua “revitalização”, em 2002, a funcionalidade do prédio foi alterada, passan-
do a ser constituir como museu, com temáticas selecionadas e rigorosa orientação
de guias, previamente instruídos para “relatar os fatos históricos” que o “museu do
palácio” passara a abrigar, como forma de difusão da cristalizada história oficial desse
estado amazônico.

PALAVRAS-CHAVE: Memória. História. Museu. Palácio Rio Branco. Amazônia


Acreana.

O Palácio Rio Branco faz parte de um complexo de


edifícios que compõem o “centro histórico” da cidade de Rio Branco, ao
lado dos prédios da Assembléia Legislativa, Palácio da Justiça, Palácio das
Secretarias, Memorial dos Autonomistas, Praça dos Povos da Floresta, Praça
dos Seringueiros e Catedral Nossa Senhora de Nazaré. Como ação da política
estadual de patrimônio histórico, o Palácio Rio Branco foi o primeiro monu-
mento a ser tombado pelo governo do Acre, na condição de bem patrimonial.

1
  Texto originalmente apresentado como parte da Dissertação de Mestrado “Palácio
Rio Branco: linguagens de uma arquitetura de poder no Acre”, defendida no ano de
2011, junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras: Linguagem e Identidade, da
Universidade Federal do Acre.
2
  Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, servidora pública, Secretaria de Saúde
do Estado do Acre.

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A primeira medida, nessa direção, ocorreu com a publicação do Decreto3 de
tombamento em 1999. Porém, sua inscrição no Livro de Tombo Histórico
somente ocorreu em 16 de março de 2006. Atualmente, esse monumento
encontra-se inserido na Zona de Preservação Histórico-Cultural (ZPHC), do
Plano Diretor (PD) do Município de Rio Branco,4 elaborado pela Prefeitura
Municipal de Rio Branco (PMRB), em 2006.
Projetado pelo arquiteto alemão Alberto O. Massler,
na década de 1920, o Palácio Rio Branco exerce papel representativo diante de
todos os outros edifícios, por sua imponente arquitetura, importância funcio-
nal e simbólica. No projeto original, o palácio e estava pensado para funcionar
da seguinte forma: no pavimento térreo teriam os gabinetes e as seções da
chefatura de polícia, das diretorias de obras, instrução e da saúde, o arquivo, a
pagadoria e o corpo da guarda; no pavimento superior funcionaria o gabinete
do governador, a sala de audiências, o salão de honra, a biblioteca, o gabinete
do secretário geral, as salas de diretorias de contabilidade e do interior, e a sala
dos oficiais de gabinete e assistente militar (CARNEIRO, 1929, p. 76).
Após ter sido abandonado por sucessivos governos,
passando por um período de degradação em sua estrutura física, o prédio
do Palácio Rio Branco passou por um processo de “restauração” que durou,
aproximadamente, três anos. O projeto de “revitalização” do edifício ficou
sob a responsabilidade do arquiteto e especialista em restauração de monu-
mentos e sítios históricos, Jorge Mardine Sobrinho, contratado pelo governo
para trabalhar com dedicação exclusiva na reforma do Palácio.
Reinaugurado no dia 15 de junho de 2002, em come-
moração cívica ao 40º aniversário do Estado do Acre, o Palácio Rio Branco
foi apresentado à sociedade com uma nova concepção de espaço, em sua
estrutura interna, caracterizado pela encenação de objetos, símbolos e ima-
3
  Decreto n. 680 de 11 de maio de 1999. O governo do Estado decreta o tombamento
do imóvel para o Patrimônio Histórico do estado e deixa a cargo do Departamento
de Patrimônio Histórico da Fundação Elias Mansour a inscrição no livro de tombo.
4
  O Plano Diretor do Município de Rio Branco foi aprovado através da Lei 1.611/2006,
objetivando estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o
uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos
cidadãos, bem como, do equilíbrio ambiental.

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gens usados para representar a ideia de “cultura” e “identidade” regional ho-
mogênea, resultado da fusão de diferentes grupos humanos. A solenidade
de reinauguração fez parte, também, da vasta programação de celebração do
centenário do mito da “Revolução Acreana”. Programação essa que teve iní-
cio na cidade de Xapuri e término na esplanada do Palácio, com o hasteamen-
to das bandeiras do Brasil e do Acre. A cerimônia aconteceu ao som do hino
acreano, tocado pela Banda da Polícia Militar.
O visitante que se dirigir ao prédio do palácio, de de-
parará com sua Placa de Inauguração, na qual se lê: “O governo do Estado
sente uma grande alegria ao recuperar este símbolo do Acre e da acreanidade
que é o Palácio Rio Branco (ACRE, 2002)”. Esse enunciado indica quais os
significados atribuídos pelo governo à “revitalização” do edifício, que estão
sintetizados em torno da ideia de representar simbolicamente a “recupe-
ração” do estado do Acre e da “acreanidade”. Essa representação foi uma
produção intencional do governador. Não por acaso, em depoimento a Ana
Paula Bousquet Viana, o então governador acreano afirmou ter feito cursos
preparatórios de planejamentos em gestão, fazendo questão de destacar que
“uma coisa que o gestor tem de bom a fazer é que quando está tudo por ser
feito é mexer naquilo que representa símbolo” (VIANA, 2011, p. 83).
No processo de diálogo com o depoimento do enge-
nheiro responsável pela “revitalização” do prédio, foi possível compreender
que, a partir de 2002, o Palácio-monumento, em seu térreo, passou a servir
de palco para a “encenação” de uma “história regional”. Essa concepção de
espaço museal foi pensada como componente do projeto de revitalização,
como destaca Mardine Sobrinho, ao enfatizar que “foi feliz também a decisão
do governador, ao deixar também uma parte de museu de história que é a
parte térrea. A parte de cima continua sendo um prédio de uso público, com
o fim de servir ao governo do Estado, como sede do governo” (MARDINE
SOBRINHO, 2011).
Devidamente projetado, o prédio palaciano foi trans-
formado em um museu, composto por seis salas temáticas, porém, continuou
servindo como espaço de solenidades oficiais:

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Aquilo era o Palácio que servia pra administração do
governo, a sede da administração do governo e também
residência. Então, a parte da residência ficou Museu, a
gente deixou a parte do térreo todo como museu e a parte
de cima continua sendo, pelo menos continuava sendo
utilizada como atos oficiais do governo do Estado pra
fazer uma chancela, uma reunião, assinar um documento,
toda parte de cima foi reservada para os atos do governo
(MARDINE SOBRINHO, 2011).

O ritual de exposição e de visitação do prédio, insti-


tuído oficialmente como Museu Palácio Rio Branco, no ano de 2008,5 com
o ordenamento e o direcionamento do olhar do visitante, o transformou em
um texto a “ser lido”, compreendido, internalizado sob as condições, as luzes
e cores do presente, fazendo com que “fatos” do passado ganhassem novos
significados, constituindo-se como pedra de sustentação ao “acreanismo” do
“Governo da Floresta”.
A distribuição espacial e funcional do Palácio Rio
Branco foi projetada dentro de uma dimensão estética e ritual que selecionou
“conteúdos” para “orientar” os visitantes através de um itinerário “histórico”
com o devido acompanhamento de guias que os conduzem a contemplar os
suportes que pretendem representar a “memória coletiva” dos “acreanos”.
Não se pode deixar de ressaltar, no entanto, que essa tem sido a tônica do
trabalho dos museus, em escala mais geral, posto que, em no interior desses
espaços se estabelece
um trabalho de sedução do público, que busca conduzi-
lo a conclusões, apresentando-lhe um discurso elaborado
pela instituição. Este pode ser lido por meio da disposição
dos itens materiais, com relação às informações que o
observador traz até aos objetos selecionados para figurar o
evento, construindo dessa forma um discurso que deve se
transformar em memória histórica (CERVEIRA & SILVA,
2009, p. 4).

Incorporando as reflexões de Cerveira & Silva, res-


saltamos que o surgimento do “museu do palácio”, em meio ao processo de
  Decreto nº 3.083 de 13 de junho de 2008, institui oficialmente sua criação.
5

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construção discursiva da “acreanidade” e do “novo Acre”, conferiu ao Palácio
Rio Branco uma maior força simbólica. Os altos investimentos do Estado em
suas instalações, com a contratação de profissionais de reconhecido prestígio
em escala nacional colocam isso em evidência. O cenário expositivo, para se
ter uma ideia, ficou sob a responsabilidade da arquiteta e cenógrafa Bia Lessa,
que transformou o prédio em sede de cerimonial, palco-vitrine de um sistema
ritualizado de ação social e, acima de tudo, política.
Ao entrar no prédio palaciano, o impacto é imediato.
O luxo e o requinte são as marcas mais visíveis de ostentação do poder e ri-
queza de um Estado que, paradoxalmente, é um dos mais pobres e carentes
da federação brasileira. Os lustres são de cristais e o mármore é importado da
Grécia. O material usado na restauração - processo que resgata os elementos
construtivos da obra física – foi escolhido com a mesma perspectiva de sua
construção:
Como é um material muito bom, durável e refletia a
expectativa que a gente tinha de fazer o melhor, porque
era essa expectativa; era o Palácio do povo acreano, e não
pode ser uma casinha de sapê. Tinha que ter essa referência
porque quando ele foi feito, foi feito com o melhor material.
Então, a gente tinha que resgatar essa história (MARDINE
SOBRINHO, 2011).

Pela interpretação que Mardine desenvolve, ao re-


lembrar o processo de “revitalização” do palácio, o que se apreende é que a
“reprodução” material do edifício procurou “resgatar” e “refletir” a mesma
compreensão e objetivos que estavam presentes em sua construção, na déca-
da de 1920: ser luxuoso e mostrar a materialidade representativa do discurso
do que é ser “moderno”. Esta é uma das contradições mais frequentes no
ideal de “modernização” do “novo Acre”, ao qual a maior parte dos críticos
do “Governo da Floresta” preferiu não dar atenção. O tempo evolutivo e
linear foi rompido, posto que, se em Hugo Carneiro, a construção do Palácio
Rio Branco era sinônimo de “modernidade” e de “modernização”, de que
maneira, passados oitenta anos, “restaurar” ou “revitalizar” certo monumen-
to poderia ser sinônimo de “modernizar”?

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A materialidade do Palácio Rio Branco, sua constru-
ção nos anos 1920 e sua “restauração” ou “revitalização” nos anos 2000, sob
o mesmo invólucro do discurso da “modernidade”, denunciam que o tempo
histórico, o tempo secular dos homens não obedece a nenhuma sequência
linear e que, no dizer de Benjamin, a idéia de “progresso da humanidade na
história é inseparável da idéia de sua marcha no interior de um tempo vazio e
homogêneo” e a crítica da ideia de progresso e, nesse caso, de evolução histó-
rica a partir de um dado acontecimento do passado, implica obrigatoriamente
em “crítica da idéia dessa marcha” (BENJAMIN, 1993, p. 229).
A questão central é que na “revitalização” desse edifí-
cio não estava, necessariamente, em discussão a “restauração” de sua estrutu-
ra física, porém, de sua representação simbólica. Isso implica em dizer que na
busca de legitimidade para a ordem política do “novo Acre” os “modernos”
do presente lançaram seu “salto de tigre em direção ao passado” (BENJA-
MIN, 1993, p. 230), mas, não para (re)apresentá-lo como ele “de fato foi”, e
sim como construção de um “agora” em que teciam suas estratégias de poder.
A empatia dos governantes acreanos, auto-rotulados
de “Governo da Floresta” era com as elites e os poderosos do passado e não
com os “oprimidos”, os “seringueiros”, os “indígenas” que dizem represen-
tar. Talvez, essa seja a única ligação perene no continuum da história. Isso
pode ajudar na compreensão de todo esse esforço para consagrar o Palácio
Rio Branco, como monumento e patrimônio “legítimo” de “todos os acrea-
nos”.
O esforço no sentido de “normalizar” a construção
discursiva está na etnografia física e simbólica do palácio. Na primeira Sala,
denominada “Do seringal ao Palácio”, encontram-se objetos e utensílios usa-
dos pelos seringueiros na coleta do látex e produção da borracha, bem como,
fotos que idealizam os “tempos áureos” da produção gumífera. Constam ain-
da imagens da primeira sede do governo, toda em madeira, seguida de outras
referentes ao processo de construção do Palácio, todo em alvenaria e concre-
to, símbolo da “modernidade” na década de 1920 e, principalmente, década

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de 1940, momento em que o governo de Guiomard dos Santos, o concluiu e
re-inaugurou.
Na segunda sala, as paredes são cobertas por imagens
do prédio deteriorado, lembranças dos anos de “desgoverno” e “abandono”,
levando o visitante-leitor a comparar o antes e o depois da “revitalização”. As
vitrines são ornamentadas com material de construção: pregos, britas e areia.
Dentre os objetos expostos nessa sala, o destaque está na imagem de Dom
Pedro I, busto doado pelo governo federal aos Estados membros da federa-
ção, em 1973, por ocasião da Comemoração do Sesquicentenário da Indepen-
dência do Brasil. Naquele contexto dos “anos de chumbo”, governava o país,
o General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974), considerado o mais duro e
repressivo do período de ditadura militar.
Na terceira sala, “História e Povoamento”, encon-
tram-se imagens de sítios arqueológicos, sobrepostos nas paredes por tecidos
transparentes, possibilitando a visualização das urnas e dos “vasos caretas”
que estão por trás dessas imagens. Acoplada a esta seção encontra-se a sala
denominada “Povoamento Indígena”, contendo adornos, plumas, instrumen-
tos musicais, armas, vestimentas, cestas e fotografias de diferentes grupos
indígenas do Acre. No entanto, na exposição, os referenciais da cultura mate-
rial indígena são expostos sem apresentar as diferenças intrínsecas a cada um
desses grupos étnicos.
Logo em seguida, encontra-se a sala denominada
“Uma Terra de Muitos Povos”. Nesta, as paredes são cobertas por imagens
de migrantes, e conta com a disposição de fones de ouvido que possibilitam
a escuta de narrativas, previamente selecionadas, de migrantes árabes e “nor-
destinos”.
Na sala seguinte, “Em defesa da Floresta”, há uma
variedade de manchetes de jornais, nacionais e internacionais, estampados em
uma parede, com “notícias” sobre as lutas dos movimentos sociais, enfati-
zando como principal agente, o líder sindical Chico Mendes. Em outras duas

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paredes há uma imagem de José Plácido de Castro, em combate contra os bo-
livianos, pela posse das terras acreanas; e uma imagem do sindicalista Wilson
Pinheiro, ao lado de homens armados. Nessa seção há um forte apelo para as
representações dos discursos de luta pelas terras acreanas. Numa parte da sala
foi colocado um banner, com o seguinte texto: “O povo acreano, formado
por tantas e diferentes raças, construiu sua singular identidade a partir das
diversas lutas que teve que travar ao longo do tempo pela conquista dos seus
direitos mais essenciais”. A partir dessa “fantasia histórica” articula-se a ver-
são da história que compõe o discurso da “acreanidade”, mas, o destaque da
exposição é para as idealizadas imagens de Plácido de Castro e Chico Mendes.
Na última sala, consta uma exposição sobre o Tratado
de Petrópolis, enfatizando a atuação do diplomata Barão do Rio Branco, na
resolução da questão das terras acreanas, disputadas com a Bolívia. Em vitri-
nes encontram-se o sabre pertencente a Plácido de Castro e a bandeira do Es-
tado Independente do Acre, produzida em 1899, por Luiz Galvez. Chama a
atenção, nessa sala, que a mensagem transmitida passa por uma série de recur-
sos visuais, nos quais a linguagem museográfica cria representações para dar
a ideia da comunidade imaginada, possuidora de origem e heróis, apagando a
memória de outros sujeitos e outras histórias conflitantes ou distintas do que
é apresentado como “acontecimentos” fundadores de uma unidade social.
No Palácio Rio Branco, os objetos e temas apresenta-
dos congregam o esforço em construir uma memória histórica, cujo arranjo
expositivo não está fora do âmbito político e ideológico de apelo regionalista,
visando provocar sentimentos de orgulho, civismo e pertencimento que, em
certa medida, a linguagem museográfica parece alcançar, como se observa na
leitura de Emilania Cabral:
Contemplar aquela Bandeira, me fez pensar em quando
ela foi costurada, quem a costurou, o que estava sentindo
ao fazer isso, a emoção que sentiam aqueles que estavam
presentes no seu hasteamento, os ideais que aquela
bandeira representava, os sentimentos daquelas pessoas
que sobrevivem através desta bandeira. Ao menos para
mim, muito mais que um valor histórico, há em tais objetos

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um valor espiritual, uma forma de conservar vivas a pessoas
e fatos aos quais ela representa, nos dando a possibilidade
de tecer uma nova história sobre tais fatos e pessoas
(CABRAL, 2009, p. 2 ).

A autora desse relato demonstra a incrível capacidade


que os símbolos possuem em seduzir o púbico, ao ponto de vislumbrar uma
imagem que só existe no campo da imaginação de um passado não vivido
pelo espectador, mas incorporado mentalmente, pela eficácia que a linguagem
museográfica tem ao transmitir crenças e valores.
A exposição alusiva ao Tratado de Petrópolis é um
desses recursos discursivos que servem para transmitir mensagens de coesão
grupal por meio de um amálgama de elementos cívicos evocados por apelos
emocionais. Os visitantes são assediados por recursos simbólicos que con-
ferem benefícios “espirituais” para compreender ou assimilar os consensos
que a simulação de um social múltiplo produz. Na seleção dos conteúdos
daquilo que deve ser mostrado e exibido como possibilidade única de uma
história passada, a funcionalidade museográfica possui uma interpretação que
foi montada por um grupo de “especialistas” que delimita, classifica e ordena
os temas, as imagens, os sons, as cores. Nas exposições do palácio, o visitante
de assimilar as representações dos temas escolhidos e apresentados em di-
versas linguagens, como “verdadeira cultura” regional. O problema, não se
deve esquecer, é que as “representações culturais, desde os relatos populares
até os museus, nunca apresentam fatos, nem cotidianos nem transcendentais;
são sempre re-apresentações, teatro, simulacro” (CANCLINI, 2008, p. 201).
O que interessa é perceber as técnicas utilizadas como
convenções imagético-discursivas incitando questões positivas, gloriosas, har-
mônicas e singulares, servindo como propaganda para atender a finalidades
políticas que compõem a retórica de invenção de uma “identidade acreana”
que, muitos incorporam, porque suas subjetividades estão impregnadas de
datas e fatos históricos que foram “naturalizados” e içados a condição de
verdade objetiva e inquestionável.
É necessário destacar que uma ação cultural, realmen-

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te, democrática não se reduz à ação e decisão de especialistas, pois, se a me-
mória social constitui objeto de trabalho, é com a sociedade que temos que
dialogar, retirando das mãos dos “especialistas” e cenógrafos o poder de dar
a última palavra sobre o que é importante preservar (CUNHA, 1992, p.11).
Em entrevista ao jornal Página 20, na ocasião em que
o Palácio participou de um concurso, promovido pela Revista Caras, para ser
reconhecido como uma das Sete Maravilhas Nacionais, a coordenadora Mirla
Cristina Aranha fez a seguinte declaração: “desde a inauguração do Palácio
Rio Branco, 256.880 visitantes já passaram por aqui. É um lugar bonito e re-
quintado, além de atraente pela sua história. Não há um dia sequer que o palá-
cio não seja visitado” (http://pagina20.uol.com.br/14112007/especial.htm).
Pesquisando no livro de registro de visitantes, no pe-
ríodo que compreende o mês de março de 2005 a dezembro de 2008, foi pos-
sível constatar, em primeiro lugar, que a maioria dos visitantes são acreanos
e estão identificados como estudantes; em segundo lugar, estão os visitantes
de outros estados, identificados como profissionais das diversas áreas. Esses
dados corroboram com a informação a seguir de Renata Brasileiro, publicada
no artigo “As sete maravilhas brasileiras” que:
Moradores de Rio Branco, portanto, são os que menos
conhecem o palácio por dentro, segundo a coordenadora.
A arquitetura cheia de pompa por fora pode ser um
motivo inibidor para que isso aconteça. Da capital acreana,
os maiores grupos de visitantes estão ligados à classe
estudantil. Geralmente seus integrantes visitam o espaço
acompanhados de um professor de História (PÁGINA 20,
14/11/2007).

Avaliando esses dados podemos concluir que o Palá-


cio Rio Branco, enquanto patrimônio histórico acreano, não tem uma relação
de proximidade com a maioria da população que deveria apreendê-lo como
objeto de pertencimento. Embora tenha um número relevante de visitação, a
maioria dos acreanos são estudantes da rede estadual acompanhados por um
professor. Isto quer dizer que se dirigem ao local como parte de suas obri-

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gações escolares e não movidos por um sentimento de pertencimento aquele
“lugar de memória”. Em outras palavras, o que ali está representado, não é a
memória social dos diferentes grupos humanos que vivem no Acre.
Em relação aos ambientes, a lógica de acesso desvela
as contradições do discurso de unidade das relações sociais, dentro do próprio
monumento histórico, pois, esse símbolo da “identidade acreana” define os
lugares sociais dentro do próprio edifício. No primeiro piso, o acesso é per-
mitido a todos os visitantes; no segundo, os visitantes têm acesso à visitação
aos salões “nobres”. O acesso é proporcionado por duas escadas, revestidas
de tapetes vermelhos, peça ornamental utilizada nos palácios que remonta o
cerimonial indicativo de riqueza e poder, usados para impressionar os súditos
dos reis. Além do Salão Nobre, onde o governo recebe “pessoas ilustres”, nos
eventos oficiais, existem as salas reservadas para o governador e o vice-go-
vernador. Entre a porta de entrada dessas salas os visitantes se deparam com
balizadores que fazem separação entre o espaço público, permitido a todos, e
o espaço dos que detém o poder de mando no estado, traduzindo o lugar de
posição das classes sociais.
Então, nessa parte residencial ficou uma parte mais pra
museu, e a parte de uso, que era o Salão Nobre e os outros
salões, e o gabinete do governador ficou intacto, inclusive,
o gabinete hoje que é o que o governador despacha pra
alguns eventos era o mesmo local do gabinete de todos
os outros governadores, quer dizer, a gente manteve essa
identidade (MARDINE SOBRINHO, 2011.).

A identidade destacada por Mardine não é a dos


acreanos, a identidade que ele se refere é a do poder executivo que permanece
atuando em sua “casa”. Na opinião de Jorge Viana, o “significado dessa obra
traduz a recuperação da nossa história. Eu estou proporcionando, acompa-
nhando e vivendo esse momento” (PÁGINA 20, 13/06/2002). A fala é de
quem auto-reconhece suas qualidades e créditos e, por conseguinte, espera
pelo reconhecimento de todos.

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A ritualização de uma versão do passado é movida
pelo impulso não de lutar contra o esquecimento das memórias, que os su-
portes incitam em representar, mas de lutar por um significado no presente,
onde o apelo ao passado vem à cena numa interpretação enaltecida tanto pelo
discurso do governante e seus escribas, que procuram inventar uma “tradi-
ção”, quanto pelo significado celebrativo do prédio do palácio reinaugurado.
No diálogo com essa “invenção”, compartilho das
observações de Canclini, ao pontuar que, em relação ao patrimônio,
existe como força política na medida em que é teatralizado:
em comemorações para renovar a solidariedade afetiva,
nos monumentos e museus (...) sendo essa teatralização o
esforço para simular que há uma origem, uma substância
fundadora, em relação à qual deveríamos atuar hoje
(CANCLINI, 2008, p. 162).

A busca da rememoração de um passado é feita para


ser assimilada positivamente em relação com o presente. Nesse sentido, o
Palácio-Museu apresenta em sua composição museográfica todo um suporte
simbólico, estratégias de persuasão para se pensar em uma história harmôni-
ca, gloriosa, de modo que fica relegada ao esquecimento toda a dinâmica dos
conflitos sociais dos processos históricos e da própria história de construção
desse monumento. A tendência de se buscar uma unidade ocorre porque a
harmonia social impede a percepção de outras alternativas, inclusive, de se
questionar a legitimidade da dominação. Manter vínculos coletivos é uma es-
tratégia que opera com lembranças, memórias, mas, também, com o esque-
cimento.
A importância do monumento histórico se dá por
sua essência e papel memorial. Os monumentos históricos são importantes
portadores de mensagens e são usados pelos atores sociais para produzir sig-
nificados. Em Choay, o monumento, no sentido original, “denota o poder, a
grandeza, a beleza: cabe-lhe, explicitamente, afirmar os grandes desígnios pú-
blicos, promover estilos, falar à sensibilidade estética” (CHOAY, 2006, p.19).

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Para Canclini “os monumentos são quase sempre as obras com que o po-
der político consagra as pessoas e os acontecimentos fundadores do Estado”
(CANCLINI, 2008, p. 302). Também discutindo questões desse porte, Le
Goff, ressalta que
a palavra monumentum remete para a raiz indo-européia
men, que exprime uma das funções essenciais do espírito
(mens), a memória (memini). O verbo monere significa
“fazer recordar” (...) Atendendo às suas origens filosóficas,
o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado,
perpetuar a recordação (LE GOFF, 1985, p.95).

O patrimônio nessa condição é usado como uma ima-


gem congelada do passado, para atestar que há uma herança. Sendo assim, si-
tuado em um lugar público, o Palácio-Monumento, aberto à dinâmica urbana
da cidade nos estimula a ler outras histórias enquanto parte de uma “cultura
memorial”, pois no que se refere aos discursos do passado “é mais impor-
tante entender do que lembrar, embora para entender também seja preciso
lembrar” (SONTAG, apud SARLO, 2007, p. 22).
Procurando não os pontos de junção, mas de disjun-
ção, no dizer de Thompson, com a intenção de articular a dinâmica simbólica
do Palácio Rio Branco nos inspiramos nas discussões de Rodrigo Vidal Rojas,
sobre a diversidade de papeis e de funções atribuídas, implícita ou explicita-
mente, ao território, em diferentes experiências de ordenamento urbano, na
cidade de Santiago do Chile. Para ele, “entender a lógica do ordenamento ur-
bano contribui para a compreensão da dinâmica da mudança social” (ROJAS,
1981, p. 190).
É preciso destacar que o Palácio Rio Branco foi proje-
tado e erguido em um contexto histórico que nada tem a ver com o da inven-
ção da “acreanidade”. A “história” do Palácio teve início no segundo aniver-
sário de governo de Hugo Ribeiro Carneiro, em 15 de junho de 1929, quando
aquele engenheiro, que governava o Território Federal do Acre, lançou em ato
solene a pedra fundamental da obra que substituiria a antiga sede do governo.

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Parcialmente acabado, o palácio seria inaugurado em
15 de junho de 1930. Dezoito anos depois, no governo de José Guiomard
dos Santos, a construção do mesmo seria concluída. O Acre território de fins
dos anos 1940 vivia uma “febre modernizadora”, marcada por uma série de
construções em alvenaria, numa perspectiva de reformas urbano-paisagísticas
das principais cidades.
Dentre as obras construídas, naquele momento, des-
tacam-se: um conjunto residencial para funcionários públicos, internatos para
escola normal, um hotel, maternidade e clínica de mulheres “Bárbara Helio-
dora”, diversas escolas e um aeroporto. A retórica que embasava a materiali-
zação dessas obras fazia ressoar os apelos de uma “modernidade” represen-
tada na “superação do infortúnio de uma imagem que precisava erradicar as
barracas da paisagem urbana”. Realimentando o ideal civilizatório, sob uma
prospecção cosmopolita, ergueram-se cenários para esconder a “cidade flo-
resta”, exigindo que se colocassem abaixo as antigas construções em madeira
e palha. Essas “primitivas construções” seriam substituídas por “modernas”
obras em alvenaria, condizentes com os novos valores em voga. Tal pers-
pectiva calou fundo no imaginário de muitos que, a exemplo de Maria José
Bezerra, chegaram a acreditar que o Acre vivia uma fase de “luzes na selva”.
Nessa fase, predominou a vontade de Guiomard Santos, que, articulando
imaginação e ação
dialeticamente através da formulação e materialização de
um projeto de mudança, com base na concepção instituída
do Acre como selva, como um espaço que necessitava
ser dominado e exorcizado dos seus demônios, de suas
mazelas para que o progresso vencesse as trevas do atraso
(BEZERRA, 2002, p. 15).

Na aparente crítica de Bezerra, o discurso de “pro-


gresso” para região rejeitava a floresta com o programa de modernização
de Guiomard operando em mudanças econômicas, sociais e culturais (BE-
ZERRA, 2002, p. 16). Isso representava o rompimento com a paisagem e

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costumes tradicionais da região vistos como atrasados e incompatíveis com a
“modernidade”. Essa incompatibilidade entre o “tradicional” e o “moderno”,
também estava presente nos discursos do governador Hugo Carneiro, como
pode ser destacado em seu “Relatório de Governo”, apresentado ao Ministro
Augusto de Vianna do Castello.
A conclusão das obras do Palácio Rio Branco, ocor-
rida na década de 1940, estava integrada ao discurso de “modernização” da
cidade. O amplo espaço aberto à frente do prédio com a praça, o obelisco
e a fonte luminosa jorrando jatos d’água multicor, intencionava promover
um espaço de sociabilidade ligado ao urbanismo. Embora, concebendo um
ambiente de relação mais próxima entre a população e o poder executivo,
por meio da criação de um espaço para passeios, atraindo a população para
a frente do Palácio, a conformação arquitetônica gerada, com um ambiente
amplo na frente do edifício e a abertura de escadas nas laterais do prédio, têm
a intenção de direcionar a população para se colocar naquele local e, assim,
visualizar o prédio a partir de um ângulo que lhe confere mais suntuosidade.
A monumentalidade conferia maior legitimidade à “casa do governo”.
Quando a renascença faz o renascimento dos elementos
gregos ela inclui mais uma questão importante, o quê que
é? O urbanismo, que fica na frente do prédio. A questão
dos elementos da arquitetura grega, ela não tinha essa
preocupação com o urbano, a parte aberta. A renascença,
você vê a capela de São Pedro no Vaticano, tem a Basílica de
São Pedro. Você tem a basílica no fundo e tem na entrada
da Basílica uma grande praça que tem uma coluna em volta
pra formar um elemento de transição e de perspectiva pra
visualizar aquela grandeza. Então nada podia atrapalhar!
De fato, quando a arquitetura eclética aqui no Brasil retoma
esses elementos, aquele espaço aberto tipo o obelisco, a
fonte, as escadas e aquela conformação do espaço grande
na frente é para a população se colocar e visualizar o
elemento com uma certa perspectiva pra ficar ainda maior
(MARDINE SOBRINHO, 2011).

Retornado ao depoimento de um dos “construtores”


do “novo palácio”, depreendemos que a construção de obras impactantes é

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sempre carregada de subjetividades e intenções, fundamentalmente, porque a
linguagem arquitetônica se constituiu como importante forma de impor sen-
tidos, reordenar os espaços urbanos, criar formas, percepções e sentimentos
e, ainda, exercer o poder disciplinar sobre os habitantes da cidade.
Avaliado na época de sua construção, em “mil e qui-
nhentos contos de réis” (O ACRE, 15/06/1930, p.3), a construção do Palácio
Rio Branco foi realizada pelos esforços de soldados que pertenciam à Força
Publica do Território do Acre (F.P.T.A.), sob o direção inicial do Comandante
da Força Policial, Major Djalma Dias Ribeiro e, posteriormente, do Sr. 1º Te-
nente Manoel Barbosa de Araújo (Jornal o Acre, 8 de dezembro de 1935, p.
3). Por ocasião da cerimônia inaugural do prédio, o governador, Hugo Ribeiro
Carneiro, declarou inaugurado o novo Palácio do Governo do Território, sob
a denominação de Palácio Rio Branco, em homenagem a José Maria da Silva
Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco. Porém, o reconhecimento oficial
da sede do governo do Acre com o nome de “Palácio Rio Branco”, somente
ocorreu em setembro de 1943, na comemoração da “Semana da Pátria”, du-
rante o governo do Coronel Silvestre Coelho, através do Decreto n. 192 (O
ACRE, 12/09/1943, p. 1).
Ao observador desatento ou por demais envolvido no
clima de emoções com a exposição do Palácio-Museu, em processo de inven-
ção da “acreanidade”, todos esses processos históricos passam despercebi-
dos. A dinâmica própria das práticas sociais em diferentes tempos históricos
não aponta para a ideia de continuidade, mas, evidenciam o descontínuo da
história (BENJAMIN, 2003).
Se acrescentarmos ao processo inicial de “fundação”
do palácio, sob a égide do governo de Hugo Carneiro, todos os processos
anteriores, da fase das prefeituras departamentais, a ruptura, como marca ca-
racterística da história se acentua sobremaneira. Porém, não se pode esquecer
que aquele “modernoso” prédio em alvenaria foi construído no mesmo local
em que estava instalada a antiga sede – em madeira – do Departamento do

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Alto Acre.6 Sede essa, construída na margem esquerda do rio Acre, na quadra
central (área mais alta) do arruamento diante do porto de Penápolis,7 para
que ficasse visível desde a margem desse porto. Visibilidade essa que, para
o Prefeito Departamental, Gabino Besouro, deveria se dar, também, desde
o outro lado do rio, lugar onde foi instalada a primeira sede provisória do
Departamento em 1904, pelo prefeito departamental, Raphael Augusto da
Cunha Mattos, na margem direita do mesmo rio, numa povoação com pouco
mais de 200 habitantes, chamada “Volta da Empreza”.
Tal configuração territorial direcionava o local de
existência da “futura cidade”, uma estratégia de organização da base territo-
rial urbana, início de uma projeção que intencionava fazer separação entre o
“urbano” e o “rural”. A questão do território e todos os conflitos culturais
a ela subjacentes, já estava colocada desde o início da formação da cidade.
Para Rojas, todo processo de mudança social e todo esforço para controlar
essa mudança sempre possui uma projeção no tempo e uma base territorial,
posto que:
o território é um espaço construído por um ator individual
ou coletivo em função de certos objetivos e a partir de
uma representação do espaço terrestre (...) a representação
coletiva do território não é a soma de representações
individuais, nem tampouco a expressão de uma
unanimidade, mas o resultado de uma seleção-exclusão
de interesses dominantes ou majoritários a partir de uma
diversidade de interesses (ROJAS, 1981, p. 184-185).

Essa reflexão ganha relevância, quando e discute o


papel do patrimônio histórico, no reordenamento de espaços, principalmen-
te, quando está em jogo a luta pela memória, que é uma luta de poder (LE
GOFF, 1985). No processo de pesquisa, para investigar o período histórico

6
  Esse Departamento surgiu após a anexação do Território do Acre ao Brasil, quando
o Território foi dividido em Departamentos: Alto Acre, Alto Purus e Alto Juruá.
7
  Penápolis foi o nome escolhido pelo Prefeito Departamental do Alto Acre, Gabino
Besouro (1908), em homenagem ao Presidente da República Afonso Pena.

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da construção das representações simbólicas em torno do Palácio Rio Bran-
co, mantive intenso diálogo e problematização com o Relatório de Governo
de Hugo Carneiro. Apresentado em então Ministro da Justiça e Negócios
Interiores, Augusto de Vianna do Castello, esse relatório dava conta de um
período compreendido entre os anos 1928 a 1929.
Os documentos não surgem espontaneamente e nem
destituídos de significados. Sua existência ou inexistência derivam de ações
humanas de produção ou exclusão. Isso significa que são baseados em va-
lores, interesses, concepções de classes e instituições: “o documento não é
qualquer coisa que fica por conta do passado, é um produto da sociedade
que o fabricou segundo as relações de forças que aí detinham o poder” (LE
GOFF, 1985, p. 102).
Nessa direção, compreendendo que o documento não
tem pleno significado sozinho, constituindo-se como uma fonte de interpreta-
ção com suas linguagens e sentidos históricos, destacamos que o governador
do Acre tinha a intenção de produzir um documento capaz de resenhar “os
atos de sua gestão” (CARNEIRO, 1929, p.15). Metodicamente elaborado, na
modalidade de uma linguagem escrita, para que a voz do narrador predomine,
o relatório descreve a visão que Hugo Carneiro tinha do território acreano,
sua população e seu governo. As expressões que irradiam de suas páginas dão
sempre a ideia de ser o Acre um lugar isolado, insalubre, com uma população
de maus hábitos, atrasado, desprovido do mais elementar material de constru-
ção, onde “tudo era preciso improvisar” (CARNEIRO, 1929, p. 68).
O cenário, composto por uma arquitetura predomi-
nante da época, feita em sua maioria de madeira com cobertura de telha de
barro ou palha era, para Hugo Carneiro, uma “visão desconsoladora”, um
“montão de ruínas” (CARNEIRO, 1929, p. 67). Para ele, a situação do “velho
barracão de madeira”, como se referia à antiga sede do governo, espelhava, ao
vivo, a situação material de todo o Território. Situação essa marcada pela visão
de alguém que a tudo traduzia como “velhos” e “desalentadores” “barracões
de madeira” ou um

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desconfortável pardieiro (...) símbolo, terrivelmente
expressivo, da desordem em que se alastrava pela
administração toda. Ninguém, ao de longe, poderia fazer
a idéia exacta do descalabro em que definhava a opulenta
terra acreana, fallida, a principiar pela propria instalação de
sua casa de governo (CARNEIRO, 1929, p. 56-67).

Nesse recorte da narrativa do relatório, a sede admi-


nistrativa do governo aparece como representação material de todo Território
acreano, completamente, desqualificada e refletindo uma cultura regional vis-
ta como atrasada. A partir dessa visão desqualificadora das práticas culturais
e dos modos de viver na Amazônia, Hugo Carneiro produziu uma narrativa
do “progresso” e da “modernização” da região. Nessa narrativa, colocava-se
como o responsável pelo melhoramento material de todo um mundo em que
“o problema principal” era “hygienico”:
Sempre entendi constituir principal dever do administrador
no Brasil, e muito especialmente no Acre, devido ao seu
clima tropical, dispensar a maior attenção aos problemas
attinentes ao saneamento do solo e, de certo modo, à
eugenia da raça (CARNEIRO, 1929, p. 52).

Com a justificativa de que a salubridade do ambiente


propiciaria o desenvolvimento físico e moral da população, Hugo Carneiro,
pôs em ação todo um aparato repressivo para impor uma lógica “civilizató-
ria”, como se estivesse prestando assistência necessária ao “agricultor pobre”,
ao “seringueiro pauperrimo” e “ao proletariado desprotegido” (CARNEIRO,
1929, p. 53).
Os termos “melhoramento” e “saneamento” saíram
dos relatórios técnicos para o discurso oficial. Com base no discurso de or-
dem pública do saber técnico e científico, impôs restrições visando dificultar
a construção de casas em madeira consideradas sinônimo de “atraso”, bem
como normas de “hygiene” e “assepsia” por meio de um instrumento jurídico
chamado Código de Posturas para intervir legalmente no cotidiano dos habi-
tantes. De acordo com Bezerra,

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esse documento extenso, detalhado e composto por 319
artigos regulava toda a vida econômica, social, política e
cultural da cidade de Rio Branco. Autoritário e coercitivo
impunha multas e prisões aos que ousassem não cumpri-lo
(BEZERRA, 2002, p. 31).

A ação intervencionista de Hugo Carneiro foi mais


além, criou sob o ideal de assepsia a Diretoria de Higiene8. Dirigida pelo Dr.
Amaro Theodoro Junior, com o auxilio da polícia essa Diretoria fiscalizava
todas as habitações particulares e coletivas, incluindo, o Leprosário, casario
construído em lugar distante e conveniente para o isolamento dos “indese-
jáveis” (CARNEIRO, 1929, p.53). Dessa forma, o espaço público era fisca-
lizado, a vigilância do poder estatal interferia, legislava, proibia e reprimia os
costumes contrários ao estabelecimento da ordem “civilizatória”, para uma
outra concepção de sociedade que não tinha o “tradicional” como referência
do “progresso” e da modernidade.
Sob essa ótica, Hugo Carneiro deu início a um projeto
de intervenção urbana na capital do Território, local “onde apenas existiam
duas modestas e inacabadas construcções em alvenaria”, com o intuito de
fazer de Rio Branco a cidade-modelo para todo o Território (CARNEIRO,
1929, p.68). Com a retórica de transformar o Acre em “um Acre redivivo, res-
surgindo das ruínas do seu passado” iniciou a construção de prédios públicos
em alvenaria para espelhar a imagem de um futuro desejável (CARNEIRO,
1929, p. 75). Para isso, construiu o Mercado Público, o Quartel da Força Poli-
cial, o prédio da primeira agência do Banco do Brasil e, indubitavelmente, um
novo Palácio do governo. Para Hugo Carneiro, as construções eram avaliadas
positivamente, como descreve no trecho de seu relatório:
se formos avaliar o ingente sacrifício que essas obras
exigem e nos têm custado, pela carência de artífices, pela

8
  A Diretoria de Higiene foi a responsável pela organização sanitária, assistência
publica, serviço medico-legal, serviço demographo-sanitário, serviço sanitário fluvial,
assistência medico-escolar, assistência dentário-escolar, fiscalização do meretrício e
consumo de medicamentos. Relatório de Hugo Carneiro. p. 58

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distancia formidável que nos isola, pelas difficudades do
transporte, pelo preço exaggerado da mão de obra e do
material; pela escassez de meios, pela falta de tudo; é muito,
si considerarmos que, às custas de economias às vezes
dolorosas, estamos a construir um Acre definitivo, um Acre
em alvenaria... (CARNEIRO, 1929, p. 75).

Em conformidade com Souza “esta postura pode ser


entendida como uma recusa em conviver com símbolos que representavam o
espaço da floresta, tendo em vista que as casas construídas em madeira cons-
tituíam-se no principal padrão arquitetônico dos seringais” (SOUZA, 2001, p.
49). Numa localidade em que a maioria das casas era de madeira, a presença e
a complexidade arquitetônica do novo Palácio do governo era algo impactan-
te e desproporcional para a realidade da região na época.
O prédio com arquitetura grandiosa e com aspecto de
um templo sagrado transmitia a mensagem de sofisticação do ecletismo, mo-
vimento historicista que se remetia à antiguidade para dizer: nós não somos
simples. Era uma imagem fantasmagórica, para fazer uso das palavras Fran-
cisco Foot Hardman, erguendo-se em meio à terra devassada: o que importa-
va era a chegada da “modernidade”. Essa construção, portanto, materializava
o discurso do que significava ser “moderno”, representado no edifício cons-
truído em alvenaria, contrapondo-se aos “barracões” de madeira. Nesse caso,
a apropriação-transformação do espaço não é fruto da
representação cultural coletiva desse espaço, mas sim o
resultado de uma representação elaborada por alguns
membros influentes da coletividade. Deste ponto de vista,
o território aparece como uma desculturação e como
desnaturalização (ou redução) da complexidade social
(ROJAS, 1981. p. 191).

A concepção de cidade e a linguagem arquitetônica


implantada não apresentavam vínculo com o estilo predominante na região,
antes, era um rompimento, uma mudança. Toda essa gama de experiências e
mesmo de tensões pelo poder foi silenciada no processo de “revitalização”

109

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material e simbólica do Palácio Rio Branco, como mecanismo de construção
e afirmação da “identidade cultural acreana” e do ideal de “acreanidade” do
“Governo da Floresta”.
Chama atenção, no entanto, que a restauração do edi-
fício em 2002, trouxe a renovação dos elementos arquitetônicos que compu-
nham sua ambiência no governo de Guiomar Santos, formando um conjunto
arquitetônico que silenciava Hugo Carneiro e rendia claras homenagens ao
autor do Projeto de Lei do Acre Estado. No processo de revitalização foi
instalada uma colunata de palmeiras imperiais para causar a impressão de uma
maior grandiosidade ao prédio do palácio e aos elementos em seu entorno.
Pela lógica desse “urbanismo modernizador” Guiomard Santos e Jorge Viana
se encontravam na formulação de uma “acreanidade” repleta de “glória” e
apego ao poder.
Na estrutura visual do prédio do palácio, sempre este-
ve em evidência a monumentalidade. Durante a “revitalização”, os acréscimos
para destacá-la foram intencionalmente executados para diminuir a escala do
humano diante de sua grandiosidade, provocando ante o olhar uma sensação
de impotência e reverência ao monumental e, principalmente, ao que repre-
senta. Para além do imediato prazer visual, a imagem gera um sentimento de
temor e respeito. Tal intervenção nos leva a considerar que
toda prática política se traduz numa produção territorial (...)
Assim, territorializar o espaço terrestre significa apropriar-
se dele concreta ou abstratamente, transformá-lo em
função de um sistema cultural e de objetivos bem precisos
(ROJAS, 1981, p. 184-185).

O termo “Palácio” é sugestivo para se pensar no sig-


nificado que a obra pode traduzir. Na antiguidade palácio era um edifício
suntuoso destinado à habitação da corte real, lembra, portanto, a grandeza
dos reis, soberania, poder e domínio. O termo é indicativo de tudo o que esse
Palácio-monumento pode expressar em sua historicidade, ou seja, o poder.
A preocupação em consagrar um monumento como

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patrimônio de todos os acreanos apagou marcas importantes da experiência
social. No entanto, acompanhando as significativas reflexões de Maria Célia
Paoli, acreditamos que pensar numa produção cultural que incida sobre a
questão da cidadania é “fazer com que experiências silenciadas, suprimidas ou
privatizadas da população se reencontrem com a dimensão histórica” (PAO-
LI, 1992, p.27). Esse encontro, somente poderá ocorrer, no caso do Acre,
quando formos capazes de romper com sacralização que envolve, discursiva-
mente, os signos e semióforos fundadores da “acreanidade” que transforma
as vidas e as trajetórias de milhares de sujeitos em coisas ou objetos reificados
pela visão oficial de uma história regional.
Historic heritage and power: art and politics in the
spectacular construction of the “acreanidade”

ABSTRACT: This article focusses on the analysis of the transformation of the “Rio
Branco” Palace – where the Government of the State of Acre is based – into a history
museum, and, therefore, into a sort of place for the memory of the community of
Acrean Amazon. Planned at the end of the 1920s, the “Rio Branco” Palace also
functioned as the official residence of the Governor until the mid-1970s, when it
began to function only as administrative head office of the Acrean Government. For
the purposes of this paper, what is important is discussing the function change of the
building, after its 2002 “revitalisation”, which turned into a museum, characterised
by selected topics and rigorously coordinated by guides, who, in turn, are previously
instructed to “relate to historical facts” that the “Palace Museum” started to represent,
as a form of diffusion for a crystallised history of this Amazonian state.
KEYWORDS: Memory. History. Museum. Rio Branco Palace. Acrean Amazon.

Referências
BEZERRA, M. J. A invenção da cidade: a modernização de Rio Branco na gestão de
Guiomard dos Santos. 2002. Dissertação (Mestrado em História do Brasil), Centro de
Filosofia e Ciências Humanas, Universidade de Pernambuco, Recife.
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183-215.

Data de recebimento: 17/8/2014


Data de aceite: 19/9/2014

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A questão fronteiriça como mito fundador do
Acre e dos acreanos
Maria de Jesus Morais1
RESUMO: Com o presente artigo tem-se o objetivo de articular discussões em tor-
no da invenção de uma certa “acreanidade” como parte do projeto de poder do gru-
po político que tem gerenciado a máquina pública do estado do Acre, desde o ano de
1999, em torno do autodenominado “governo da floresta”. A partir das formulações
de Orlandi (2006), Chauí (2007) e Albuquerque J. (2003), o foco da análise parte do
mito fundador do “Acre” e do “acreano”, a “Revolução Acreana, que articulada ao
movimento autonomista que reivindicava a passagem do Acre território federal a
Acre estado e pelos processos históricos de luta pela terra, protagonizadas por tra-
balhadores seringueiros e indígenas, constituem o pano de fundo de uma memória
histórica que, amalgamada pelo discurso oficial, é utilizada para legitimar os interesses
daqueles que mantêm empatia com a “história dos vencedores”.

PALAVRAS-CHAVE: Acreanidade. Mito Fundador. Revolução Acreana. Governo


da Floresta. Discurso.

A acreanidade, termo que define a identidade do


acreano, é uma construção do grupo político “Governo da Floresta” que rein-
venta os eventos históricos que dão sustentação a essa construção identitária.
A acreanidade possui como “mito fundador” a Revolução Acreana que funda
o Acre como unidade territorial e, o acreano, o protagonista da Revolução.
Isto significa dizer que a questão da incorporação do Acre ao Brasil é o evento
histórico que sustenta este discurso identitário.
O discurso construtivo da acreanidade é ancorado na
ocupação territorial dos altos rios da Amazônia Sul-Ocidental onde é desta-
cado o papel que tiveram os brasileiros na bacia do Rio Acre na definição da
fronteira política entre Brasil, Bolívia e Peru.
A questão fronteiriça, como ressaltado em Raffestin
1
 Doutora em Geografia, Professora da Universidade Federal do Acre.

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(1993), deve ser compreendida a partir de sua historicidade, uma vez que o
sentido de fronteira muda ao longo do tempo. E essa mudança é detrimento
das modificações sociopolíticas e socioeconômicas. Os limites e fronteiras
refletem o poder daqueles que moldam, influenciam ou controlam atividades
(SACK, 1986).
A fronteira política em tela foi definida no início do
século XX, após 04 anos de conflitos e tensões entre os “brasileiros do Acre”
e o governo boliviano, no contexto econômico da produção da borracha na-
tural. Naquele momento a chegada dos nordestinos aos altos rios, que hoje
formam o Acre, deslocou a fronteira política definida pelo Tratado de Aya-
cucho de 1867, alargando o território de soberania brasileira. Foi através da
extração do látex e a conseqüente migração que levou a mudanças na fron-
teira política entre os três países. O Tratado de Petrópolis, de 1903, definiu
a fronteira com a Bolívia e o Tratado do Rio de Janeiro, de 1909, definiu a
fronteira com o Peru. Esses tratados fronteiriços tinha o sentido de definir o
território de atuação dos Estados-nação. Naquele momento a Amazônia era
a maior produtora de borracha natural e a área que foi incorporada ao Brasil
e que hoje corresponde ao Estado do Acre estava sendo explorada por brasi-
leiros (MORAIS, 2008).
A questão fronteiriça entre Bolívia e Brasil ou a
“Guerra del Acre” é iniciada quando a demanda por borracha crescia no mer-
cado internacional, atraindo levas de migrantes nordestinos para os seringais
que passaram a ocupar, nos “territórios incontestavelmente bolivianos” pelo
Tratado de Ayacucho (1867). Naquele momento o governo boliviano tenta
tomar posse das terras ao sul da linha-limite Madeira-Javari, nos primeiros
dias do ano de 1899 instalando um posto aduaneiro nas margens do Rio Acre
em seringal de brasileiro.
A deposição do Cônsul boliviano em terras ocupadas
por brasileiros do Rio Acre foi a “Primeira insurreição” dos brasileiros. No
manifesto de 1° de maio de 1899, assinado por cinquenta pessoas (a maio-
ria seringalistas) reivindicava-se a saída da representação boliviana (CARVA-

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LHO, 2002[1904]).
A “Segunda insurreição”, denominada de “Repúbli-
ca de Galvez”, também ocorreu em 1899, quando o espanhol Luiz Galvez
Rodrigues Arias proclama o Estado Independente do Acre. Essa insurreição
foi contra o acordo EUA-Bolívia, o qual estabelecia que os EUA questionaria
junto ao Brasil o pleno reconhecimento dos direitos da Bolívia aos territórios
do Acre e Purus e, ainda, se comprometia a fornecer numerário e material
bélico em caso de guerra entre os dois países. A República de Galvez fracas-
sa dado os desentendimentos com os governadores dos Estados do Pará e
Amazonas, pela falta de apoio do governo brasileiro aos “seringueiros revo-
lucionários” e pela oposição da Bolívia. Luiz Galvez é destituído do posto e
deportado pela marinha brasileira oito meses depois, e o território em questão
foi restituído à Bolívia.
A “Expedição dos Poetas” foi à terceira tentativa de
expulsar os bolivianos do Acre. Mas a inexperiência militar dos revoltosos e
sua falta de organização, fizeram com que essa expedição fosse rapidamente
derrotada pelas forças bolivianas.
A quarta insurreição, que é a fase sangrenta da Re-
volução Acreana, corresponde à fase da luta armada liderada por Plácido de
Castro. Na construção do mito fundador do Acre, o termo Revolução Acrea-
na2 é sempre mais enfático no que se refere à batalha comandada por Plácido
de Castro, isto é, de 06 de agosto de 1902 a 24 de janeiro de 1903. Essas duas
datas correspondem, respectivamente à conquista de Mariscal Sucre (hoje
Xapuri) e a conquista de Puerto Alonso (hoje Porto Acre), que estavam em
posse dos bolivianos. Contudo, os conflitos e tensões fronteiriços entre serin-
gueiros (nordestinos) e bolivianos e peruanos iniciaram bem antes, em 1899,
e terminara muito depois com a assinatura do Tratado do Rio de Janeiro, em
1909, com o Peru.
A Batalha comandada por Plácido de Castro inicia-se,

2
  O termo “Revolução” é uma força de expressão, que atende mais ao senso comum e
à tradição local que a sua significação conceitual de uma ruptura radical na sociedade.

115

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portanto com a tomada de Marsical Xucre e termina com a tomada de Puerto
Alonso. Após o primeiro combate do exército de seringueiros segue a Revo-
lução até culminar com a batalha de janeiro de 1903.
O combate de Porto Acre ocorreu de 15 a 24 de
janeiro de 1903. E é considerada a batalha mais importante da Revolução
Acreana, ou seja, aquela que caracteriza a vitória territorial dos brasileiros do
Acre sobre os bolivianos. Sendo sempre ressaltada a “força do exército de
seringueiros comandados por Plácido de Castro e outros seringalistas”, e o
coroamento de “uma sangrenta e penosa campanha militar que resultou em
aproximadamente 500 mortos (5% de toda a população do vale do Acre na
época)” (NEVES, 26-01-2003).
O quartel-general boliviano era “protegido por linhas
de trincheiras e alambrados e a passagem pelo Rio Acre era impedida por uma
grossa corrente de ferro e um canhão”. Plácido de Castro, que tinha captura-
do o navio boliviano “Rio Afluá”, renomeara como navio “Independência”,
encheu-o de borracha e baixava o Rio Acre com o objetivo de vender a borra-
cha para o sustento das tropas e a compra de munição. Plácido de Castro, ao
avistar o empecilho no Rio Acre, encarregou os soldados de limar a corrente,
enquanto se preparava para passar a barreira, tendo o navio sob seu coman-
do direto. Depois de “três dias de muitas mortes, os acreanos conseguiram
romper a corrente que bloqueava o rio e passar com o vapor Independência”
(NEVES, 26-01-2003).
Diante dos combates e das negociações para instala-
ção do Bolivian Syndicate, o governo brasileiro toma precauções, temendo
uma retomada dos conflitos, uma vez que o exército boliviano comandado
pelo Presidente da República Manuel Pando se encontrava a caminho do Acre
(vindo pelos Andes), e o exército de Plácido de Castro se mantinha mobili-
zado. Naquela ocasião, o Barão de Rio Branco ordena a ocupação militar da
área revoltosa e convida a Bolívia a abrir negociações. O Tratado de Petró-
polis foi assinado em novembro de 1903 e pôs fim aos conflitos fronteiriços
dos brasileiros do Acre com a Bolívia. Terminada a questão com a Bolívia foi

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assinado em 1909 o Tratado do Rio de Janeiro (entre Brasil e Peru), que selou
as fronteiras internacionais do Acre.
A Revolução Acreana é, portanto o evento histórico
que “transforma” os brasileiros do Acre em acreanos. O acreano, enquanto
povo, foi inventado a partir deste evento; antes não existiam acreanos nos
altos rios e sim cearenses, maranhenses, pernambucanos, rio grandenses –
ligados ao extrativismo da borracha – e, árabes, portugueses, sírios, libaneses,
turcos – ligados ao comércio de mercadorias; todos viviam nos rios Acre,
Purus, Xapuri, Iaco, Caeté e tantos outros. Esse povo só passou a ser deno-
minado de acreano após a criação do Território Federal do Acre, em 1904.
Antes desta data, o acreano (ex-nordestino, ex-cearense, o banido pela seca,
o renegado) surgiu na relação com o chão (com o Acre, o rio) e, também, na
relação com o outro (o boliviano).
O mito fundador
O mito fundador é o evento inaugural de uma narra-
tiva que “impõe um vínculo interno com o passado, como um momento ori-
ginal” (CHAUÍ, 2006: 09). No Acre, o mito fundador é a Revolução Acreana,
construído em torno da discussão da conquista do território que pertencia
de fato aos bolivianos e peruanos e que fora ocupado e conquistado por
nordestinos na passagem do século XIX para o XX. O sucesso desse mito
fundador diz respeito ao fato do hoje território do Acre ter sido conquistado
com esforços e recursos próprios, ou seja, o exército de seringueiros venceu
os militares bolivianos e peruanos, sem a aquiescência do Governo brasileiro.
Assim, no final da Revolução, os brasileiros do Acre conquistaram o direito
de se autodenominarem acreanos (MORAIS, 2008).
O mito fundador é uma “invenção” também do pre-
sente, como ressalta Albuquerque Júnior (2007: 26), pois a invenção do “acon-
tecimento histórico se dá no presente, mesmo quando se analisa as várias
camadas de discursos que o constituíram ao longo do tempo”. É o presente
que interroga o passado e o conecta com a nossa vida, ancorado nos signos
atribuídos ao passado. O termo invenção remete a uma “temporalização dos

117

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eventos, dos objetos e dos sujeitos”, que pode ser tanto a “busca de um dado
momento de fundação ou de origem”, quanto o momento da “fabricação” ou
“institucionalização de algo” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007).
Para Chauí, a fundação se refere a “um momento pas-
sado imaginário, tido como instante originário que se mantém vivo e presen-
te no curso do tempo”; isso significa dizer que: “a fundação visa algo tido
como perene”, que “sustenta o curso temporal e lhe dá sentido”. O momento
fundante é permanentemente alimentado e atualizado. A força do mito do
Acre permanece na memória coletiva, sendo de forma constante, enaltecido
e reafirmado a fim de exaltar um patriotismo da incorporação do Acre ao
território brasileiro. Essa característica do evento fundador é um dos objeti-
vos do mito, o que “impõe um vínculo interno com o passado como origem,
isto é, com um passado que não cessa nunca, que se conserva perenemente
presente e, por isso mesmo, não permite o trabalho da diferença temporal e
da compreensão do presente como tal” (CHAUÍ, 2006: 09).
O mito fundador, conforme ressalta Portelli (2006),
não é:
necessariamente uma história falsa ou inventada; é, isso
sim, uma história que se torna significativa na medida em
que amplia o significado de um acontecimento individual,
... transportando-o na formalização simbólica e narrativa
das auto-representações partilhadas por uma cultura
(PORTELLI, 2006: 120-121).

A acreanidade, propalada com o “Governo da Flo-


resta”, possui como “mito fundador” a Revolução Acreana que funda o Acre
como unidade territorial e, o acreano, o protagonista da Revolução. Antes da
Revolução Acreana não havia acreanos, mas tão-somente brasileiros do Rio
Acre. E foi durante essa “luta que surgiu nossa identidade como povo”. E
“não podemos nunca nos esquecer que a primeira geração de acreanos não
foi constituída por pessoas que aqui nasceram, mas por pessoas que pelo Acre
deram suas vidas” (CALIXTO, 2003: 06).
A Revolução Acreana, como mito fundador do Acre,

118

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exerce uma forte coesão no imaginário coletivo. Os autonomistas, em dife-
rentes momentos, também acionaram a Revolução como justificativa em suas
reivindicações políticas com significados diferentes dos seringueiros, como se
pode perceber a partir de extratos do manifesto dos autonomistas do Juruá
de 1909:3
Conquistamos para a Nação, (o) ao índio pela nossa
tenacidade e (o) ao estrangeiro pela efusão do nosso sangue
esta terra magnífica e desconhecida; fomos os primeiros
portadores da civilização ao ponto mais ocidental do Brasil
e nesta cruzada poderosa continuamos a lidar; é justo, é
lógico, que no convívio da federação brasileira tenhamos o
nosso lugar (MESQUITA JÚNIOR4, 2004: 34-35).

Já os seringueiros, principalmente nas décadas de 1970


e 1980, justificavam que eram descendentes dos “veteranos do Acre”, que
prestaram serviços à Pátria ao lutarem em prol da incorporação do Acre ao
Brasil e acionavam esse fato a fim de reivindicar a permanência nos seringais.
A Revolução Acreana fornece, por conseguinte, as re-
ferências identitárias do Acre, tanto as geográficas quanto as históricas; elege
também os personagens qualificados pelos atributos de força, audácia, per-
severança e honestidade acionado pelo discurso identitário da acreanidade.
Em termos de personagens, Plácido de Castro e Luiz Galvez são os símbolos
que consubstanciam a legitimidade política e a coroação do poder de luta dos
brasileiros do Acre. Com Plácido de Castro é ressaltado o papel de libertador
do Acre, aquele que organizou um exército de seringueiros e ganhou a guerra.
E com Luiz Galvez é ressaltado o “discurso fundador” do Acre, o “Manifesto
da Junta Revolucionária”, de 1899.
O discurso fundador, segundo Orlandi, é aquela fala
“que transfigura o sem sentido em sentido” (ORLANDI, 2003[1993], p. 08);

3
  Este manifesto foi publicado no livro comemorativo do centenário de “Cruzeiro do
Sul”, por iniciativa do gabinete do senador Geraldo Mesquita Júnior.
4
  O Manifesto dos Autonomistas foi publicado no livro Cruzeiro do Sul, organizado
pelo senador Geraldo de Mesquita Júnior.

119

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são aqueles discursos “que vão nos inventando um passado inequívoco” que
vão nos “empurrando um futuro pela frente e que nos dá a sensação de estar-
mos dentro de uma história, de um mundo conhecido”, e com isso contribui
para a produção de um sentimento de pertencimento. O discurso fundador
é enunciado que ecoa e produz “efeitos de nossa história em nosso dia-a-dia,
em nossa reconstrução cotidiana, de nossos laços sociais, em nossa identidade
histórica” (ORLANDI, 2003[1993], p. 12).
O Discurso Fundador pode ser tanto aquele que
transforma o sem-sentido em sentido, quanto aquele que funda um sentido.
O sentido, ao ser re-significado, se torna fundador de uma nova ordem a par-
tir do discurso fundante. O mesmo pode ser fundado em qualquer época e
traz em si sua relação com vários outros, que contribuem igualmente para re-
significar (ORLANDI, [1990]2008). Nessa perspectiva o discurso fundador
é, portanto, o que “instala as condições de formação” de outros, filiando-se à
“sua própria possibilidade, instituindo em seu conjunto um complexo de for-
mações discursivas”, um sítio de significância que “configura um processo de
identificação para uma cultura, uma raça, uma nacionalidade” (ORLANDI,
2003[1993], p. 24).
No caso do Manifesto da Junta Revolucionária, este
diz respeito à indignação dos brasileiros do Acre contra a posse da Bolívia e
contra a decisão do governo brasileiro de considerar as terras reivindicadas
pelos “revolucionários do Acre” em território incontestavelmente boliviano.
O sucesso do discurso fundador foi realçar o papel que tiveram os “acreanos”
no encaminhamento da Revolução. A pátria abandonava-os e os revolucioná-
rios criaram outra; com essa frase têm-se a gênese do discurso fundador do
Acre, o qual inaugura também o discurso do abandono político do governo
federal em relação ao Acre (MORAIS, 2008).
No caso do Manifesto da Junta Revolucionária, este
diz respeito à indignação dos brasileiros do Acre contra a posse da Bolívia e
contra a decisão do governo brasileiro de considerar as terras reivindicadas
pelos “revolucionários do Acre” em território incontestavelmente boliviano.

120

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Eis o que narra o discurso fundador acreano:
O Governo do Brasil não respondeu aos nossos patrióticos
alarmes; a Pátria, a nossa estremecida mãe personificada
em grupo de valentes e caritativos irmãos respondeu
sem precisar de nosso apelo: a 1° de maio5, data que
conservaremos gravada em nossos corações. Ilustres e
denodados irmãos nos surpreenderam com a patriótica
intimação que dirigiram em nome do povo brasileiro às
autoridades bolivianas que, faltas de força e de prestígio,
nos abandonaram com a mesma facilidade com que nos
conquistaram. Sabemos da situação em que ficamos
depois do abandono em que nos deixaram as autoridades
brasileiras e isso vem demonstrar que os habitantes do
Acre não pertencem à livre e grande pátria brasileira. É
justo, pois, que cidadãos livres não se conformem com o
estigma de parias criado pelo governo de sua pátria – nem
podem de forma alguma continuar sendo escravos de uma
outra nação: a Bolívia. Impôs-se a independência destes
territórios, que elejam seu governo entre os cidadãos que
trabalharam o seu solo e exploraram suas riquezas; é, pois,
chegado o momento de proclamar nossos indiscutíveis
direitos de cidadãos livres. Cidadãos – escutai a proclama
que ao povo dos territórios do Acre, Purus e Iaco dirige
à Junta Revolucionária, manifestai vossa ilustre opinião a
que sempre respeitamos; se não aceitais a independência
continuaremos a sofrer as humilhações que nos impõe
uma nação estrangeira; se, pelo contrário, aceitardes a
independência, constituiremos o Estado Independente
do Acre, valoroso, forte e digno, pelo patriotismo de
seus filhos, poderoso pelas suas riquezas inesgotáveis que
ousados estrangeiros nos querem usurpar (TOCANTINS,
2001, p. 327-328).

O sucesso desse discurso fundador foi realçar o pa-


pel que tiveram os “acreanos” no encaminhamento da Revolução. A pátria
abandonava-os e os revolucionários criaram outra; com essa frase têm-se a
gênese do discurso fundador do Acre, o qual inaugura também o discurso do

5
  Data do início da primeira insurreição acreana, quando um grupo de seringalistas
deportou o chefe da aduana de Puerto Alonso.

121

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abandono político do governo federal em relação ao Acre. Para Toinho Alves,
a Revolução foi feita para “promover, ao mesmo tempo e contraditoriamente,
a independência e o pertencimento a uma pátria”. Ela mobilizou os que não
“tinham nada para lutar ao lado daqueles que os dominavam. E, assim, um
exército de seringueiros famintos e dispersos venceu a guerra” (CARVALHO,
2002[1904], p. 07).
Os conflitos entre acreanos e bolivianos, nessa pers-
pectiva, são investidos de uma aura de “epopéia” e “revolução”; os que parti-
ciparam são considerados heróis, bravos, destemidos, invencíveis, grandes na
guerra. Após o término dos conflitos, surge toda uma literatura exaltando os
feitos de José Plácido de Castro. Isso contribuiu para a afirmação identitária
pautada no patriotismo e heroísmo.
Os conflitos entre acreanos e bolivianos, nessa pers-
pectiva, são investidos de uma aura de “epopéia” e “revolução”; os que par-
ticiparam são considerados heróis, bravos, destemidos, invencíveis, grandes
na guerra. Após o término dos conflitos, surge toda uma literatura exaltando
os feitos de José Plácido de Castro. Isso contribuiu para a afirmação identi-
tária pautada no patriotismo e heroísmo. Elucidativa dessa questão é o Hino
Acreano, o hino da conquista, poema que foi escrito durante a guerra del
Acre, que narra a história da incorporação do Acre e da invenção do povo
acreano.
O Poema da Conquista
O poema da conquista foi escrito pelo baiano Fran-
cisco Mangabeira em 1903. O médico Francisco Mangabeira nasceu em fe-
vereiro de 1879, na casa onde havia falecido Castro Alves, adoeceu no Acre
e morreu em 1904 voltando para a Bahia. A sua vida é reverenciada no Acre
como de um herói, este antes de vir para o Acre já tinha estado em Canudos.
Este fez parte da “primeira turma de acadêmicos, que offereceram seus ser-
viços gratuitos ao governo e seguiram para o campo da luta crudelíssima”
(SILVEIRA, 2002, p. 50). Da luta sertaneja de Canudos, Mangabeira escreveu

122

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alguns poemas e foi atraído para a Amazônia em busca de emprego. Francisco
Mangabeira chegou ao Acre em 1903, onde exerceu as funções de médico
e de correspondente no Diário de Notícias. O contexto em que escreveu o
poema da conquista é assim descrito:
Seringal Capatará, outubro de 1903. Na propriedade
de Plácido de Castro que serviu como quartel-general
das forças revolucionárias, os últimos embates com os
bolivianos ainda eram uma marca recente na vida dos
homens ali alojados. Espalhados em suas barracas e
envoltos às imagens dos companheiros perdidos na luta,
os soldados da revolução viviam entre a alegria de um
novo tempo e os rumores de que os bolivianos avançavam
novamente para o Acre, dispostos a retomar a luta pelo
território (SILVEIRA, 2002, p. 07).

Na década de 1920 o então prefeito departamental,


Epaminondas Jacome, oficializou o poema como hino acreano, vejamos
trecho do despacho: “que seja adotado nas escolas públicas deste departa-
mento o Hino Acreano” e recomendava que os professores providenciassem
para “que os respectivos alunos o exercitem nas mesmas escolas, prestando
dest’arte, uma justa homenagem ao seu autor e aos demais denodados patrí-
cios que se sacrificaram pela causa do Acre” (SILVEIRA, 2002, p. 27).
O poema da conquista oficializado hino acreano foi
escrito “sob o impacto das batalhas em 1903” pelo poeta que “assistia os
feridos das lutas no seringal Capatará”, sede do comando revolucionário de
Plácido de Castro (SILVA, 1996, p. 90). Vejamos a letra do hino acreano:
Que este sol a brilhar soberano
Sobre as matas que o vêem com amor
Encha o peito de cada acreano
De nobreza, constância e valor...
Invencíveis e grandes na guerra,
Imitemos o exemplo sem par
Do amplo rio que briga com a terra
Vence-a e entra brigando com o mar
Fulge um astro na nossa bandeira

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Que foi tinto no sangue de heróis
Adoremos na estrela altaneira
O mais belo e o melhor dos faróis
Triunfantes da luta voltando
Temos n’alma os encantos do céu
E na fronte serena, radiante,
Imortal e sagrado troféu
O Brasil a exultar acompanha
Nossos passos, portanto é subir
Que da glória a divina montanha
Tem no cimo o arrebol do porvir
Possuímos um bem conquistado
Nobremente com armas na mão
Se o afrontarem, de cada soldado
Surgirá de repente um leão
Liberdade é o querido tesouro
Que depois do lutar nos seduz
Tal o rio que rola, o sol de ouro
Lança um manto sublime de luz
Vamos ter como prêmio da guerra
Um consolo que as penas desfaz
Vendo as flores do amor sobre a terra
E no céu o arco-íris da paz
As esposas e mães carinhosas
A esperarem nos lares fiéis
Atapetam a porta de rosas
E cantando entretecem lauréis
Mas se audaz estrangeiro algum dia
Nossos brios de novo ofender
Lutaremos com a mesma energia
Sem recuar, sem cair, sem temer
E ergueremos, então, destas zonas
Um tal canto vibrante e viril
Que será como a voz do Amazonas
Ecoando por todo o Brasil
O poema consagra o heroísmo acreano na conquista
do seu território, marca e apresenta o nascimento do Acre e dos acreanos e,
ao lado da bandeira criada por Luiz Galvez consagra os símbolos cívicos do

124

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Estado. Na bandeira, sobressai a importância do sentido alegórico da estrela
vermelha, em associação à luta dos acreanos que derramaram o sangue para
defender a soberania do “seu solo”. Essa alusão é re-significada e retomada
desde a campanha para o governo estadual no pleito eleitoral de 1990, pelo
grupo político, formado principalmente pelo PT, que se constituiria mais tar-
de (1999) no Governo da Floresta.
Outra obra que traz considerações sobre o sentido
da Revolução Acreana como ato patriótico foram os escritos de Euclides da
Cunha. Euclides da Cunha foi enviado pelo Ministério das Relações Exterio-
res à Amazônia na condição de chefe, pelo Brasil, da Comissão Mista Brasi-
leiro-Peruano de Reconhecimento do Alto Purus (1904-1905),6 com vistas a
fixar os limites entre o Brasil (Acre) e Peru.
Euclides da Cunha, em À Margem da História
(1999[1909]), também salienta a coragem e o patriotismo dos seringueiros
nordestinos, os quais, mesmo vivendo em condições subumanas, prisionei-
ros do sistema de aviamento e da hostilidade da floresta, foram exemplos de
brasilidade. Para ele o sertanejo é o conquistador, um herdeiro e continuador
dos sertanistas, dos entradistas, com a diferença de fixar-se na terra, ocupar
e domar o território sob as mais adversas condições. Na Amazônia, o Brasil
sertanejo ganha outro sujeito, o seringueiro, o “desbravador das fronteiras”.
Os seringueiros, para Euclides da Cunha, são os homens que se fizeram mais
fortes que a terra, para dominá-la, e a esses homens coube a tarefa “heróica”
de povoar e ampliar as fronteiras territoriais do Brasil, com a incorporação do
Acre ao território nacional.

6
  Das informações da viagem de Euclides da Cunha ao Rio Purus foram produzidas
as seguintes obras: em 1905 Euclides da Cunha entregou ao Barão do Rio Branco
o Relatório de Reconhecimento; em 1906 as Notas Complementares. Em 1907 publicou
Contrastes e Confrontos, livro com matérias jornalísticas publicadas em 1904 e publicou
também o livro Peru versus Bolívia. Em 1909 foi publicado o livro póstumo À Margem
da História, título escolhido por Euclides da Cunha para o seu segundo livro vingador.
E das informações do Relatório e das Notas Complementares juntamente com as
cartas que escreveu durante a missão, resultou o livro Um Paraíso Perdido, publicado
em 1976.

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Segundo a narrativa euclidiana, o migrante nordesti-
no foi exortado para a Amazônia, este era um expatriado dentro da pátria.
Os migrantes foram embarcados nos navios por preocuparem os poderes
públicos quanto aos estragos que poderiam provocar nas cidades, e, nunca fo-
ram acompanhados por médicos ou agentes oficiais. Os banidos, disse Cunha
(2000: 150), “levavam a missão dolorosíssima e única de desaparecerem”. Po-
rém não desapareceram; ao chegarem aos altos rios, estes locais, que eram
vagas expressões geográficas, “em menos de trinta anos, cem mil sertanejos,
ou cem mil ressuscitados, apareciam inesperadamente e repatriavam-se de um
modo original e heróico, dilatando a pátria até aos terrenos novos que tinham
desvendado” (CUNHA, 2000, p. 150-151).
A questão do patriotismo e brasilidade teve no pro-
fessor Craveiro Costa, com o livro “A Conquista do Deserto Ocidental”, um
grande alimentador dessa idéia de patriotismo, de um ímpeto de brasilidade
e de orgulho nacional: a empreitada dos brasileiros do Acre. Craveiro Costa
viveu no Território Federal do Acre, no Departamento do Alto Juruá, na
década de 1910; foi Diretor da Instrução Pública do Vale do Juruá e Diretor
do Grupo Escolar Barão do Rio Branco; foi também autonomista do Juruá
(movimento que criticava a situação de Território Federal para o Acre) e par-
ticipou dos levantes de 1909 e 1918. O livro foi publicado pela primeira vez
em 1924, com o titulo O Fim da Epopéia. Os argumentos utilizados pelo
autor, nesta obra, têm um caráter inconformado com a criação do Território
Federal do Acre e com o assassinato de Plácido de Castro, questão essa que
tem alimentado, ainda hoje, o discurso identitário do Acre. E continua sendo
leitura obrigatória no que se refere à insatisfação dos acreanos com a situação
de Território Federal. Prova disso é o fato deste livro ter sido reeditado várias
vezes no Acre, em 1940, em 1978, em 1998, em 2003 e em 2005.
Outro autor que contribuiu com o ideal patriótico do
acreano foi Abguar Bastos (1931, p. 47), romancista das décadas de 1920 e
1930. O mesmo destaca o caráter territorializador do nordestino no Acre.
Nos trechos abaixo, o autor faz uma representação poética da conquista do

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território, da chegada do migrante, do cearense:
O cearense e o Acre eram dois destinos ainda sem
comunicação com a vida: o primeiro à procura duma
terra que o recebesse, o segundo em busca de um povo
que o tomasse. Ambos soturnos, ásperos, trágicos. Ambos
libertando das costas um deserto agressivo. Um carregado
de filhos. Outro carregado de rios (BASTOS, 1927, p. 13).

E continua:
A terra não tinha amor ao seu dono (no caso o boliviano).
Com as suas florestas desgrenhadas e as suas sombras
lascivas, preferia entregar-se ao estrangeiro que vinha do
Brasil com o cheiro do mar nas carnes rijas. Cada vez
chegava mais gente do Ceará. A terra ali estava inacessível
e áspera. Os rios passavam velozes procurando o seu leito.
Os cearenses também. E a terra parecia mais mansa. Pouco
a pouco o boliviano foi sentindo o desamor das plagas
adúlteras. Cada vez mais a sua taciturna indiferença tornava
o vale alheio aos seus carinhos. Pelas veias impetuosas
duma gigantesca potamografia as águas arremessavam os
índios para o ocidente. O boliviano parecia estrangeiro. O
cearense parecia o dono da casa (BASTOS, 1931, p. 47).

O historiador e jurista José Moreira Brandão Castelo


Branco, morador do Vale do Juruá no período de 1909 a 1934, foi responsável
por grande produção de registros sobre a história do Acre, os quais foram
publicados na Revista do IHGB do Rio de Janeiro. O jurista Castelo Branco
(1961) ressaltava que, apesar das dificuldades, como a:
distância, o estranho sistema de trabalho e a falta de
assistência, o ‘brabo’ venceu essa derradeira etapa, fazendo
emergir de um meio inteiramente selvagem, no ‘ultimo
oeste’ brasileiro, um extenso e opulento território devido
à intensidade de sua produção industrial e ao movimento
comercial daí sobrevindo (CASTELO BRANCO, 1961, p.
151-152).

Esses são alguns exemplos de obras, anteriores ao Go-

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verno da Floresta, que ressaltam o caráter patriótico da Revolução Acreana,
realizada pelo “exército de seringueiros”, sob comando de Plácido de Castro.
The border as funding myth of acre and of the
acreans

ABSTRACT: This article aims at investigating the invention of the idea of


“Acreanidade” as part of the agenda of the local political leadership since 1999, self-
proclaimed as the “Rainforest Government”. Taking Orlandi (2006), Chauí (2007) e
Albuquerque J. (2003) as starting points, the analysis will focus on the funding myths
of “Acre”, and of the “Acreans” and the “Acrean Revolution”, which, articulated in
the autonomist movement that claimed the passage of the Acre from federal territory
to state, and in the historical process of fights for the land, conducted by rubber
tappers and indigenous people, created the scaffolding for a historical identity which,
assimilated by the official discourse, is used to legitimate the interests of those who
share an empathy with the “history written by the victors”.

KEYWORDS: Acreanidade. Funding Myth. Acre Revolution. Rainforest


Government. Discourse.

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bunal de Justiça do Estado do Acre, 2002.

Data de recebimento: 16/07/2014


Data de aceite: 21/8/2014

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Notas sobre a presença nordestina em Roraima 1

Carla Monteiro de Souza2


Francisco Marcos Mendes Nogueira3
RESUMO: A Amazônia Brasileira é um lugar de migrantes, de muitos e diferentes
que buscam na região o sonho mítico do paraíso e da terra das riquezas sem fim.
Assim como em outras áreas amazônicas, os migrantes que chegam à Roraima são
motivados por circunstâncias diversas, marcadas por conjunturas sócio econômicas
que historicamente aproximam as regiões Nordeste e Norte. O movimento constante
de entrada de nordestinos na Amazônia e em Roraima enseja trocas culturais e en-
gendra modos de viver e de significar a experiência migratória e de inserção, que se
manifestam em variadas práticas e se nos apresentam sob as mais diversas formas de
expressão. Este trabalho pontua discussão a presença nordestina em Roraima, a par-
tir de algumas aproximações possíveis: Nordeste/Nordestes, Nordeste/Amazônia,
Nordeste/Roraima. Neste sentido, apresenta uma leitura do cordel “Roraima terra
bendita” (2009), da autoria de Otaniel Mendes de Souza, um maranhense radicado
em Roraima desde 1982.

PALAVRAS-CHAVE: Roraima. Amazônia. Literatura de Cordel. Migrantes. Nor-


deste.

O poeta roraimense Eliakim Rufino em uma de suas


composições afirma que “quem é filho do Norte é neto do Nordeste”. Em
versos inspirados, o autor apresenta uma série de metáforas e referências
identitárias que dão sentido a esta enfática afirmação: Sou chuva na floresta/
Sou mandacaru do agreste; Sou farinha de caboclo/Eu sou cabra da peste.
De forma poética e alegre, o autor entrecruza as várias origens e um destino,
que entrecruzam os vários Nordeste e o Norte, e que nos remete ao cotidia-
1
  Originalmente publicado nos Anais do XXVII Simpósio Nacional de História,
Associação Nacional de História, ANPUH, realizado em Natal, Rio Grande do
Norte, no período de 22 a 26 de julho de 2013.
2
 Doutora em História, Professora da Universidade Federal de Roraima.
3

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Fronteiras da
Universidade Federal de Roraima.

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no roraimense e à composição da sociedade local, historicamente marcada
pela presença do migrante, pelos múltiplos de encontros/desencontros, pela
pluralidade de influências na sua constituição, na qual a presença nordestina
sobressai.
A beleza da canção e o fato de estar muito bem refe-
renciada na sociedade roraimense são elementos que apontam para a impor-
tância da presença nordestina no estado, algo que parece ser algo unânime
e, em certas visões, beira a naturalização. Isso nos inquieta e nos impeliu a
provocar esta discussão. Este trabalho, portanto, tem como objetivo suscitar
essa discussão, através da apresentação de alguns aspectos sobre a presença
de migrantes nordestinos em Roraima e algumas reflexões sobre a questão.
A histórica da presença migrante em Roraima
Roraima é o estado brasileiro localizado mais ao norte
e que possui uma extensa fronteira internacional, com a República Bolivaria-
na da Venezuela e a República Cooperativista da Guiana. Nesta tríplice fron-
teira confinam três línguas nacionais, português, espanhol e inglês, e várias lín-
guas indígenas. A área do atual estado foi município do Amazonas até 1943,
quando passou a ser Território Federal do Rio Branco (em 1962 passou a se
chamar TF de Roraima), sendo transformado em estado em 1988 (BARROS,
1995; OLIVEIRA, 2003; SANTOS, 2004; SOUZA, 2001).
Localizado em uma região que ainda hoje mantém
parcas ligações com o restante do país, Roraima tem a menor população do
Brasil, concentrada na capital, Boa Vista. Nos 15 municípios existentes na
atualidade convive uma população formada por não índios, migrantes e seus
descentes, e indígenas de várias etnias. O seu perfil socioeconômico aponta
para uma economia baseada no serviço público e no setor de serviços, bem
como em atividades rurais, como a pecuária, as lavouras de produtos alimen-
tícios e a produção de subsistência (http://www.seplan.rr.gov.br). Neste con-
texto, historicamente o poder público e as iniciativas e ações governamentais
exercem um forte papel, inclusive no que diz respeito ao povoamento e às
migrações, características estas compartilhadas com os demais estados ama-

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zônicos.
Quanto ao povoamento da região, desde o período
colonial o governo metropolitano se preocupou com a carência de população
não indígena nesta porção de suas possessões amazônicas. A instalação do
Forte de São Joaquim e das Fazendas Reais de São Marcos, São José e São
Bento, no final do século XVIII e início do XIX, inauguram estas ações que
visavam incrementar o povoamento da região. Nos séculos XIX e XX, nota-
damente, nos dois períodos de auge da extração de látex – Ciclo da Borracha
(1870-1920) e a Batalha da Borracha (meados da década de 1940) – observa-
se um incremento das migrações para a Amazônia, atingindo timidamente
Roraima. Ainda que não se observe a ocorrência da extração intensiva de
borracha na região do Rio Branco, esta recebeu migrantes por tabela, fruto
dos deslocamentos dentro da própria região decorrentes da decadência desta
atividade (MAGALHÃES, 2008).
A leitura dos cronistas e viajantes que percorreram
a região amazônica desde o período colonial, bem como estudos e dados
mais recentes (como, por exemplo, os estudos do IPEA, do CEDEPLAR e
do IBGE), demonstram que as migrações inter-regionais bem como as intra
Amazônias são historicamente constantes. Pesquisas anteriores nos permi-
tem afirmar que o migrante que chega a Roraima, em muitos casos, é o que
denominamos migrante por etapas, isto é, percorre e vive em outras áreas,
inclusive da própria Região Norte antes de se estabelecer no estado (SOUZA,
2001; 2006). Assim, não é raro encontrar nordestinos que experenciaram a
vida em outras frentes de expansão amazônicas antes de fixarem residência
em Roraima.
Por outro lado, a análise sobre o povoamento da re-
gião realizada em uma perspectiva multidisciplinar nos permite afirmar que
existe uma relação de complementaridade e interação entre a Região Nordeste
e a Norte, que permitiriam definir formalmente uma situação de “expulsão”
para a primeira e de “atração” para a segunda. Como dito acima, conjunturas
socioeconômicas em diversos períodos carrearam para a Amazônia trabalha-

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dores oriundos de várias partes do Nordeste. São exemplos disso os períodos
de auge da exploração da borracha, a abertura de estradas nas décadas de
1950 e 1960, a política de ocupação pautada no “Integrar para não Entregar”
do Regime Militar ou, mais recentemente, as ações balizadas pelo conceito de
desenvolvimento sustentável.
O estudo do povoamento da Amazônia e de Roraima,
em especial, na sua dimensão estrutural e conjuntural, permitem afirmar que
existe uma espécie de “corredor de acesso” entre as duas regiões. Verifica-se
que estas rotas de passagem são condicionadas em grande parte pela expan-
são dos meios de transporte e de comunicação e pela quantidade e qualida-
de dos estímulos engendrados pela dinâmica econômica e geopolítica que
historicamente visam ocupar o “vazio” amazônico, que findam por criar as
chamadas condições de atração de nordestinos.
Fazendo uma projeção por meio da historiografia, os
estudos sobre várias épocas mostram que os nordestinos há muito povoam
a Amazônia e estão em Roraima desde os primórdios de sua ocupação. Nes-
te caminho, nos deteremos na migração que liga o Nordeste à Roraima na
atualidade, traçando um painel que permita dimensionar a sua abrangência e
importância na sociedade local.
Nas últimas quatro décadas, segundo dados do IBGE
(Censos Demográficos de 1980, 1991, 2000, 2010), boa parte dos migrantes
que chegam à Roraima são provenientes da própria Região Norte (Pará e
Amazonas) e, principalmente, do Nordeste, destacando-se os maranhenses.
Quanto ao primeiro dado, podemos observar que muitos destes que proce-
dem do Pará ou do Amazonas, por exemplo, ou são naturais de um estado
nordestino que migram por etapas ou são descendentes de migrantes nordes-
tinos já nascidos nestes lugares. Quanto aos provenientes do Maranhão, estes
estão espalhados por toda a Amazônia, fato que pode ser explicado por sua
realidade socioeconômica excludente, podendo ser arrolada também como
facilitadora da migração a proximidade geográfica com o Pará e o fato de
parte do território do Maranhão integrar a Amazônia Legal.

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O cotejo dos dados demográficos de Roraima de-
monstra que a entrada de migrantes é contínua e é um elemento definidor do
crescimento populacional do estado. No geral, os migrantes que vieram para
Roraima nas últimas quatro décadas podem ser caracterizados como popu-
lações provenientes de áreas do interior, onde os padrões de vida tendem a
ser baixos devido a fatores como a concentração fundiária, economia frágil e
instável, mercado de trabalho acanhado etc. Por outro lado, é possível identifi-
car no antigo território federal (e atual estado) nas últimas décadas alguns ele-
mentos de estímulo ao aumento populacional, tais como garimpo, facilidade
de acesso à terra, no âmbito rural e urbano, montagem de uma novo estrutura
político administrativa com a passagem a estado, abertura de estradas.
Argumentamos, neste sentido, que o ato de migrar
implica a interação de três planos: um fundamentado nas relações sociais,
estruturalmente vinculado à fatores socioeconômicos e políticos; outro re-
lacionado ao plano conjuntural, relacionado às políticas, programas e ações
concebidas e implementadas; e outro referenciado no individual, que, em
última instância, determina a decisão de migrar. Nesta seara, as migrações
não podem ser tomadas como processos determinados exclusivamente pelos
fatores que chamamos de estruturais, os quais nos levam a considerar que
os migrantes, premidos por situações adversas em seu lugar de origem ou
imbuídos de sonhos e ilusões, agiriam de forma um tanto “inconsciente”, o
que fundamenta a noção de “expulsão” (SOUZA, 2005).
Por sua complexidade intrínseca, acreditamos que na
análise das migrações devemos considerar que a decisão pelo deslocamento
envolve a ponderação de prós e contras, bem como a intensa ação das redes
de contato e de informação, notadamente frente ao alargamento dos meios
comunicação verificado nas últimas décadas. Neste contexto, o que um paren-
te ou amigo migrado conta, atua como um liame, um fio que liga a situação
vivida e a pretendida, bem como as flutuações conjunturais, como a ocorrên-
cia de garimpos ou a implantação de projetos e programas de colonização por
exemplo. Nas entrevistas que realizamos com migrantes em vários projetos,

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verificamos que sonho e realidade por vezes se confundem, principalmente
frente àquelas situações limite que tornam a vida insustentável, o que nos leva
a considerar e valorizar as questões subjetivas, afetivas e psicológicas.
Assim, acreditamos que as especificidades de cada re-
gião conformam aos fluxos migratórios que dela saem e nela entram. Algumas
historicamente se destacam por ter uma cultura migratória de saída, como o
Nordeste, ou de recepção, como a Amazônia (SOUZA, 2004). Pensando nes-
te movimento historicamente constante de sair (do Nordeste) e de chegar (no
Norte), e voltando nosso olhar para Roraima, acreditamos que as migrações
recentes para a região se inserem no que José de Souza Martins chama de
expansão da “fronteira do humano”. Como explica o autor, para entender o
recente alargamento da fronteira amazônica, entendida como frente de ex-
pansão, é preciso levar em conta que “faixas” se mesclam e se interpenetram,
colocando em contato populações cujas diversidades e antagonismos incluem
o desencontro dos tempos históricos em que vivem. Na ocupação da Ama-
zônia, e de Roraima em especial, além das redefinições espaciais, ocorreram e
ocorrem encontros/desencontros de indivíduos e grupos dotados de tempo-
ralidades distintas e diferenciadas bagagens culturais, e é isso que desejamos
pontuar.
Os Nordestes na Amazônia
Historicamente os deslocamentos dos nordestinos e
a sua decantada necessidade e capacidade de migrar, independentemente do
estado de origem, são tradicionalmente associados ao fenômeno da seca, seus
complicadores ecológicos e econômicos. Argumentos relacionados à defa-
sagem socioeconômica dos estados nordestinos e à predominância de prá-
ticas políticas tidas como retrógradas, paternalistas e clientelistas completam
o quadro que em comparação como o Sudeste e Sul, ainda hoje atribuem ao
Nordeste o rótulo de região atrasada e subdesenvolvida, lugar de mão de obra
barata e desqualificada pronta para migrar. Estes argumentos tornam-se cada
vez mais anacrônicos, principalmente quando analisamos dados demográfi-

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cos e censitários que apontam para o incremento da migração de retorno e
para os novos perfis e tendências migratórias.
No entanto, mesmos que as coisas estejam mudando,
no bojo da relação centro-periferia os discursos e as práticas regionalistas
instituíram uma “verdade” sobre as regiões, que permanece baseada em cer-
tos padrões, características, estereótipos, epítetos e símbolos que, se por um
lado, baseiam-se em argumentos e aspecto factíveis, por outro, desfiguram-
nas. Este processo de formulação e instituição das regiões está introjetado
sobremaneira na sociedade brasileira, no plano coletivo, social e, também,
individual. Construída historicamente, a ideia que nomeia e define cada região
brasileira acaba por ser naturalizada, ainda que se operem mudanças socioe-
conômicas, políticas e culturais visíveis em todos os cantos do país.
A comparação entre a parte Norte e a Sul do Brasil –
nomenclatura genérica que vigorava antes da atual divisão por regiões – é fun-
damental na compreensão da construção da ideia do Nordeste como região.
Seus contornos remontam ao final do século XIX e início do XX, momento
em que a ciência passa a ocupar lugar de destaque na explicação dos fenôme-
nos naturais e dos processos sociais. No Brasil, a construção das ideias regio-
nalistas foi fundamentada no discurso sobre o imperativo da modernização
para romper a herança colonial e promover o progresso, e pelas disputas entre
as elites políticas locais, polarizada entre republicanos e federalistas.
Um arcabouço teórico, ideológico e político ganha
corpo a partir dos estudos e das obras de Nina Rodrigues, Oliveira Vianna,
Lourenço Filho, Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, dentre outros. Trata-
vam do tema, explicitando-o por meio de dados e argumentos, fundamen-
tando práticas, ações e discursos, dando forma à polarização entre o Norte
e o Sul que dividia o país em duas partes bem distintas. Durval Muniz, em
seu trabalho clássico intitulado “A invenção do Nordeste”, explica que es-
tes novos discursos e práticas regionalistas que predominavam na década de
1920, quando o Nordeste foi instituído como região, primavam por apontar a
“diferença acentuada na vida material e social” entre o Nordeste e o Sudeste/

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Sul, concluindo que se forjou uma ideia de que o Norte era o “outro” do Sul
(ALBUQUERQUE Jr., 1999, p.43).
Segundo o autor, a influência da raça e do clima era
um elemento marcante neste discurso, que se baseava no geral na relação de
causalidade entre natureza e cultura. Neste aspecto, o clima quente, as secas
periódicas e a forte presença de negros e mestiços determinariam fraquezas
inatas: uma compleição física franzina e uma inferioridade psicológica, a pre-
disposição aos vícios, à subserviência, ao fanatismo e á crendice, a indolência
e a falta de iniciativa no trabalho. O meio e a seca eram a principal justificativa
para quase tudo no Nordeste, inclusive para a propensão para migrar imputa-
da ao homem nordestino (ALBUQUERQUE Jr., 1999, p. 38-39).
Esta lógica define muitas explicações sobre os altos
índices de emigração do Nordeste, dando-lhe a consistência necessária, para
que se popularize também no senso comum. A seca sempre esteve no centro
destas explicações, somada à concentração fundiária, à acentuada desigualda-
de social e ao abandono por parte do poder público. Segundo Rogério Haes-
baert, estes elementos também fundamentam as explicações do porque histo-
ricamente o migrante nordestino procura os grandes centros ou as frentes de
expansão agrícola, como a Amazônia. O mito da “região-problema”, segundo
ele, fundamenta as explicações sobre o “fenômeno migratório”, tornando-se
importante referencial identificador dos nordestinos, “como se todos os nor-
destinos vivessem hoje, da mesma forma, as consequências da seca, ou como
se todos fossem ou tivessem sido um dia ‘sertanejos’, ‘cabras da peste’”. O
migrante nordestino, portanto, acaba por ser estereotipado na figura do ‘re-
tirante’ miserável da seca (HAESBAERT, 1997). No entanto, como referido
acima, por mais evidentes que sejam os fatores estruturais que justifiquem
uma migração, esta sempre dependerá em boa parte de um conjunto com-
plexo de elementos – de que haja uma relação de complementaridade entre o
lugar de origem e o lugar de destino – e da escolha pessoal entre partir e ficar.
A migração de nordestinos para a Amazônia ganha
a característica de fluxo na época do primeiro boom da borracha e a par-

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tir daí vem se mantendo, fortemente influenciada pelos surtos econômicos
característicos da região e pela ação do Estado. As possibilidades de povoa-
mento e ocupação de Região Norte historicamente são associadas aos pro-
blemas estruturais do Nordeste. Esta construção, que vigorou ao longo do
século XX e ainda tem eco na atualidade, pode ser sintetizada na máxima
do presidente militar, Emílio Garrastazu Médici: “levar os homens sem terra
do Nordeste para as terras sem homens da Amazônia” (OLIVEIRA, 1991).
Além de povoar o “vazio” amazônico, interessava também aos planejadores
e governantes da época inverter o vetor desta migração da Região Sudeste
para a Norte, observando-se que os elementos citados acima permaneciam
presentes e válidos.
Este discurso instituído acerca do Nordeste foi fun-
damental na composição e na sedimentação de uma imagem extremamente
negativa para a região. Este discurso e esta imagem da região se difundiram,
impregnando o imaginário coletivo nacional até os dias de hoje. No dizer
de Albuquerque Jr., “o ‘Norte’ é o exemplo do que o ‘Sul’ não deveria ser”,
sendo o oposto da imagem elaborada do Sul civilizado. As práticas e os dis-
cursos regionalizantes que se cruzam, sejam políticos, econômicos ou cultu-
rais, sedimentam a ideia de a Região Nordeste que deixa de ser a área seca do
“Norte”, para se tornar-se uma identidade, uma parte do nacional, definida e
delimitada racial, econômica, social, política e culturalmente (ALBUQUER-
QUE Jr., 1999). Longe de uma perspectiva determinista e simplificadora e
buscando recurso no binômio identidade/alteridade, a imagem de superiori-
dade do “Sul” implicaria na inferioridade do “Norte”, que naturalmente ficará
sempre para trás.
Os Nordestes e Roraima
Em Roraima, os nordestinos sempre desempenharam
papel fundamental na configuração da sociedade local. Destaca-se, entretanto,
que ainda há poucos estudos que fazem distinção entre as migrações prove-
nientes dos vários estado do Nordeste. Nos estudos sobre a questão preva-
lece o uso da categoria englobante “nordestinos” e, aqui, mesmo sabendo

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dos sérios riscos das generalizações, também falar-se-á em presença e cultura
nordestina.
Para isso, tomamos como referência o estudo mais re-
cente de Albuquerque Jr. que, se referindo à ideia da existência de um folclore
nordestino e de uma cultura nordestina, afirma que os mesmos se tornam
“uma verdade inquestionável, um fato do qual ninguém escapa”, a partir de
vários fatos ocorridos entre os anos 1920-30, nos quais há “uma verdadeira
genealogia de atitudes, práticas, ditos, escritos que vão” dando forma ao fol-
clore e a cultura do Nordeste (ALBUQUERQUE Jr., 2013, p. 116). Ainda
sobre isso, a discussão apresentada pelo geógrafo Rogério Haesbaert sobre
a construção de uma “identidade nordestina”, baseia-se no que define como
“transposição geográfica”, explicando que a identidade nordestina construída
a partir de imagens do sertão semiárido, transforma o “sertanejo” em “nor-
destino”. Neste sentido, o sertanejo habitante do semiárido e da caatinga pas-
sa a definir a população daquela região do Brasil, ao ser alçado a condição de
elemento central na construção simbólica do “ser” nordestino, ainda na vira-
da do século XIX para o XX. Por outro lado, a “descoberta” da seca e a sua
“institucionalização” – com a criação do Departamento Nacional de Obras
contra a Seca (DNOCS) e depois da SUDENE, a definição do “Polígono das
Secas” – junto à divulgação do flagelo vivido por sua população, servirão para
projetar o semi-árido como principal elemento caracterizador da identidade
nordestina (HAESBAERT, 1997, p. 72-84).
Segundo o autor, esta identidade tem um caráter ex-
tremamente ambíguo, já que “está presente muito mais no discurso da elite
política e da burguesia regional”, expandindo-se para fora da região e confi-
gurando a “mentalidade” dos que convivem com “migrante nordestino”, do
que entre a maioria da população local, que se identifica muito mais com seu
estado de nascimento (HAESBAERT, 1997, p. 72-84). Esta identidade nor-
destina homogeneizadora e englobante, portanto, não dá conta das múltiplas
referências culturais e identitárias vivenciadas e ressignificadas cotidianamen-
te pelos sujeitos que vivem na região e pelos que migram.

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Contudo, não se pode negligenciar que o Nordeste e o
“nordestino” são construções bastante sólidas e que se perpetuam por meio
de uma série de mecanismos de divulgação e de atualização. O nordestino
popularizado pelas mídias de massa tem um sotaque padronizado, apresenta
uma série de comportamentos e certas características marcantes, uma espécie
de sertanejo standartizado, um tipo que passa a ser associado a certas coisas
muito peculiares. As manifestações culturais e identitárias nordestinas seguem
algumas rotas e se constituem por meio de formas socialmente consolidadas
dentro e fora daquela região, que se tornam marcas, rótulos, diacríticos reco-
nhecidos da forma de ser e viver dos naturais do grande e diverso Nordeste.
A migração nordestina foi e é responsável por grande
parte das mudanças espaciais e sociais ocorridas em Roraima, inclusive as
mais recentes. Segundo Vale, “como bom migrante que é, desbravador de
fronteiras”, o nordestino foi responsável pela produção do espaço de grandes
áreas do Brasil (2001), no extremo norte do país não foi diferente.
Em Roraima, além de sua histórica participação nas
lides pecuárias, a presença do migrante nordestino moldou, sobremaneira, a
sociedade regional. As paisagens naturais e culturais estão impregnadas por
elementos culturais de origem nordestina, esta tomada como categoria englo-
bante. Está nos hábitos alimentares, nas devoções e festividades, no linguajar,
nos usos e costumes, sendo que muitos nordestinos dizem se sentir em casa
em Roraima. Pode-se afirmar que a população nativa, notadamente os de ori-
gem indígena, absorveu e incorporou as influências nordestinas. Da mesma
forma, os sinais de sua prevalência estão por toda parte, fato que lhes confere
certa notoriedade em relação aos outros grupos migrantes.
A representatividade dos nordestinos e seus descen-
dentes na sociedade regional podem ser avaliadas através de dados demográfi-
cos históricos e atuais. Além de contar com a vantagem numérica, os naturais
do Nordeste compuseram o que pode ser denominado “grupo pioneiro” da
ocupação não índia. Junto aos militares, desbravaram o lavrado e a floresta,
seguindo um padrão semelhante ao de outras áreas amazônicas. São com o

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Nordeste que, até os dias de hoje, se estabelecem expressivas redes de contato
e interação, tanto no que toca à vinda de novos migrantes, quanto na resigni-
ficação de elementos culturais há muito estabelecidos.
Segundo Aimberê Freitas – escritor e político natural
de Roraima, um “filho da terra” – devido à histórica entrada de nordesti-
nos em Roraima “este estado está se nordestinando”. Guardando as devidas
proporções, já que baseia sua afirmação na observação informal de quem
sempre viveu em Roraima, Freitas argumenta que o sotaque característico do
Nordeste está “presente nas repartições públicas, nas salas de aula, através
dos professores, nas conversas do dia-a-dia, enfim, em todos os lugares”.
Destaca a sua importância no comércio da capital quando diz: “A avenida
Jaime Brasil poderá muito bem trocar de nome, passando-se a ser chamada de
Avenida Ceará, tantos são os cearenses que fazem dessa importante artéria de
Boa Vista, um logradouro comercial, por excelência …”. Informa que “dos
15 primeiros governadores de Roraima, 60% foram nordestinos” e que junto
com eles vieram conterrâneos a fim de ocupar cargos públicos e tentar a vida
na região. Reafirma que a influência nordestina no estado é marcante, quan-
do vaticina que existem “basicamente dois tipos de descendentes, os filhos
dos nordestinos e os filhos dos nativos”, todos, porém, carregam a “herança
sócio-cultural familiar, de acordo com a origem” (FREITAS, 1998, p. 124).
Seguindo esse caminho, mas sem correr o risco de
fazer afirmações peremptórias, verifica-se que as marcas da cultura nordes-
tina estão por todos os lados, ressaltando que é possível observar também
diferenciações entre os vários grupos migrantes nordestinos. Não obstante,
um grupo deve ser destacado, os maranhenses. Estes formam o maior con-
tingente migratório específico nas últimas décadas e, em tempos recentes,
sua chegada é associada aos expedientes políticos relacionados à transforma-
ção de Roraima em estado e para o aumento do número de habitantes e de
eleitores, prática imputada à corrente política do ex-governador Ottomar de
Souza Pinto. Os bairros Pintolândia I, II, III e IV, criados no início dos anos
de 1990, e então localizados na periferia de Boa Vista, como o nome indica,

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foram construídos pelo político para abrigar as levas de migrantes que chega-
vam à capital, sendo tradicionais redutos maranhenses na cidade.
Além disso, o maranhenses estão presentes por todas
as áreas rurais do estado, sendo notória a sua presença nos municípios loca-
lizados na área sudeste do estado, as margens da rodovia Perimetral Norte
(BR-210), em outras áreas de assentamento. Freitas chama a atenção para o
fato de que na feira do produtor rural de Boa Vista (que centraliza a venda
do produtor ao consumidor) é “o lugar onde se encontram em maior número
os maranhenses” (FREITAS, 1998, p. 124). Dados demográficos permitem
constatar que os maranhenses sempre migraram para a Amazônia e para Ro-
raima, contudo, nas últimas quatro décadas estes números cresceram sobre-
maneira. Em um projeto de pesquisa coordenado por nós entre os anos de
2005-2006 em três bairros da capital, constatamos que mais da metade dos
migrantes pesquisados eram naturais do Maranhão (SOUZA; SILVA, 2006,
p. 47)
Isto talvez explique o fato observável com facilidade
na sociedade boavistense: várias situações de discriminação dos maranhenses,
considerados como inferiores entre os próprios nordestinos e pelos demais
grupos migrantes. A eles são imputadas características “negativas”, como bai-
xa escolaridade e baixo nível técnico profissional, pouca politização, falta de
recursos, avidez por benefícios que, observados sem o filtro do preconceito,
são inerentes a muitos migrantes.
A longevidade da presença nordestina em Roraima
pode, de certa forma, explicar a essa prática estigmatizante. Muitos dos ro-
raimenses de nascimento, e que fazem parte das famílias tradicionais e da
elite econômica local, são descendentes de antigos migrantes nordestinos em
segunda, terceira, quarta geração. Pode-se observar, então, uma certa diferen-
ciação entre os migrantes mais recentes e os mais antigos, que arrogam a si o
pioneirismo no “desbravamento” e na construção da sociedade local usados
para legitimar suas opiniões, práticas e lugares de poder.

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Por outro lado, outro aspecto colocado por Barros
serve também para explicar as diferenciações entre os vários grupos migran-
tes em Roraima. Este argumenta que “a fronteira não é o repouso das velhas
áreas costeiras de povoamento”, fato que transforma o estranhamento ine-
rente à fronteira em pretexto para definir situações de superioridade ética e
política. O chamado “‘metropolitanismo’ configura uma relação discrimina-
tória que dá forma o conceito centro-periferia” (BARROS, 1995). Este racio-
cínio bipolarizado que opõe antigos/pioneiros e novos migrantes está histori-
camente enraizado na sociedade brasileira como um todo, constituindo-se em
muitos casos em uma ideologia que justifica a dominação, a sobreposição de
poderes e de status, a exclusão e a discriminação. É perfeitamente pertinente
observar a presença desta lógica e destas práticas na sociedade roraimense,
ainda que tão ricamente diversificada.
Essa lógica pode ser também observada nas relações
entre índios e não-índios. Historicamente, a conquista do espaço regional pela
sociedade não-índia envolve uma variedade de agentes, processos e estratégias
que, divergindo ou convergindo dependendo das conjunturas, produziu uma
nova territorialidade, que inclusive definiu uma fronteira geográfica nacional
no extremo norte. Observando a questão historicamente vemos que se para
a garantia da posse da região e para a demarcação desta fronteira a presença
de grande número de indígenas foi a “solução”, hoje, se constituem em um
grande “problema” (FARAGE, 1991; SANTILLI, 1994).
Em nível do senso comum, essas questões que opõem
os indígenas à sociedade envolvente, e que englobam o cultural, o social, o
político e o econômico, no geral vem eivadas de preconceitos. Na sociedade
roraimense, o indígena ocupa a base da pirâmide social, e a ele são atribuídas
conhecidas características negativas: são preguiçosos, indolentes, amigos da
rede e do álcool, são manipuláveis, subservientes e pouco afeitos à autoridade,
não primam pelo asseio e pela aparência pessoal, sendo considerados “feios”.
Deve-se levar em conta, também, que este discurso acerca da inferioridade
dos indígenas não é privativo de Roraima, mas tem raízes históricas e está

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disseminado em todo o Brasil.
Na contramão da exclusão e do preconceito, nos dias
de hoje os povos indígenas de Roraima lutam pelos seus direitos e estão or-
ganizados em várias entidades. Todas elas buscam reconhecimento e a estru-
turação e a instauração de práticas e ações que promovam a reconstrução de
elementos da cultura ancestral, tais como a língua. Outro aspecto importante
é a luta pela posse da terra com autonomia, fato que mexe com questões es-
pinhosas que afetam tanto o setor público quanto o privado, como vimos no
recente processo de demarcação em área contínua da Terra Indígena Raposa
Serra do Sol. Em Roraima grandes querelas e embates políticos ocorrem em
torno da questão da luta dos povos indígenas pelos seus direitos; da mesma
forma, os indígenas se constituem, hoje, na parcela mais solidamente organi-
zada do movimento social no estado.
Pensando os contatos entre indígenas e migrantes na
atualidade, Barros observou que nos contatos entre índios e colonos nos nú-
cleos de colonização, o migrante nordestino, que estava na base da pirâmide
social no seu lugar de origem, encontra em Roraima alguém que socialmente
está “abaixo” dele, o índio, visto que o colono, ainda que pobre, identifica-se
como o “branco”, o colonizador, ou seja, historicamente aquele que impõe a
cultura (BARROS, 1995). Para o migrante nordestino que chega a Roraima,
independente de seu local de origem ou situação sócio-econômica e do de-
senrolar do seu processo de colocação, um aspecto já está claramente dado, a
definição da inferioridade dos indígenas.
Como foi visto acima, seja para os maranhenses ou
para os indígenas, estes não são epítetos novos, são apenas repetições e adap-
tações de um discurso que, nos processos de interação, de encontro/desen-
contro, visa demarcar superioridades e inferioridades, lugares de poder, terri-
torialidades. Veremos que no dia a dia do migrante essas relações complexas
se expressam de formas variadas e criativas, como forma de reinventar a vida
e reinventar-se como pessoa.

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O cordel “Roraima: terra bendita”
A fim de pontuar esta discussão, apresentamos uma
breve leitura do cordel “Roraima, Terra Bendita”, de Otaniel Mendes de Sou-
za (2009). O autor, que, no ano de 2008, também publicou o livreto de cordel
“Vida de Cutião”, é natural de São José das Curicas, zona rural do município
de Vitorino Freire, no Maranhão, e vive na vila Central, município de Cantá,
Roraima.
Em entrevista concedida à Nogueira, em abril de
2011, Otaniel explica que já andou por vários lugares: sua primeira passa-
gem por Roraima se deu em 1970, onde ficou até 1978, quando por uma
desilusão amorosa migrou para Rondônia, retornando apenas em 1982. Sua
primeira migração foi aos três anos de idade, quando a família migrou para
Pindaré-Mirim, para trabalhar na produção de tiquira, uma aguardente feita
de mandioca, motivada pela expansão das fazendas que engoliu os pequenos
produtores, sufocou a produção e estrangulou o mercado de trabalho na sua
região natal. A partir dai recorda a sua trajetória e, luz da lembrança dos des-
locamentos empreendidos, afirma que “o nordestino vive buscando melhorar
de vida, e a vida dele é buscar”. Segundo Nogueira, para o cordelista, “entre
as idas e vindas, Roraima se constituiu na terra bendita, o lugar dos sonhos e
da segurança” (NOGUEIRA, 2011, p. 54-55)
O livreto Roraima: terra bendita parece se inscrever em
outra fase da vida do autor, ao contrário do anterior, no qual cantou as agruras
e desilusões dos assentados em Roraima. Maior em número de páginas – este
tem 29, o anterior, tem 10 páginas – o texto revela um homem solto ao escre-
ver e otimista para falar sobre a realidade vivida em Roraima. O próprio título
anuncia o tom de exaltação do texto, um tanto laudatório e ufanista, em uma
edição bem cuidada, que conta com agradecimentos, apresentação, dedicatória
e prefácio e, ainda, com a chancela do SESC/RR e da XIX Feira de Livros do
SESC, Federação das Indústria de Roraima-FIERR, dentre outros patrocínios.
Nos dois primeiros conjuntos de versos inicia se referindo ao Brasil e ao Norte:
“No norte do Brasil / Encontramos coisas sem fins (sic) / Saindo Rio Bran-

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co Acre / Chegando a Tocantins / Passando pelo Pará / Encontramos o Boi
Bumbá / Nas terras de Parintins” (SOUZA, 2009, p. 5).
A partir daí se dedica a cantar Roraima, partindo da
fronteira norte – na qual o estado confina com a Venezuela – passeando
por muitas áreas do estado. Enumera os lugares emprestando-lhes caracte-
rísticas: “Encontramos Pacaraima/Com seus bonitos lavrados”; É também
no Jundiá/Que existe barreira”; “Rorainópolis: uma cidade/De crescimento
constante”; É São João da Baliza/Lá tem muito produtor; “Caroebe é muito
bom/É a terra da banana”. Sem fazer distinções político-administrativas, en-
tre cidades, vilarejos ou simples povoados, imprime nos lugares por onde seus
versos passam marcas identificadoras. Cada lugar anotado pelo poeta ganha
um adjetivo elogioso quase sempre.
Não obstante, o texto é pontuado por versos que po-
dem ser traduzidos como comentários afinados com a conjuntura regional da
época em que o texto foi produzido e, também, com as parcerias estabelecidas
pelo autor: “Tem muita gente estrangeira / De olho em nossa riqueza / Com
muito ouro e diamante / E nós vivendo na pobreza / Se não prestar atenção
/ Vamos acabar na mão / Da burguesia inglesa (SOUZA, 2009, p. 13).
Este e cinco conjuntos de versos que o seguem tratam
do mesmo tema: a cobiça estrangeira pela Amazônia e por Roraima em espe-
cial. É bom lembrar que este foi um período de intensa polarização política e
ideológica em Roraima, em função da demarcação em área contínua da Terra
Indígena Raposa Serra Sol, cujo processo redundou na retirada de todos os
não índios da área, e mexeu sobremaneira com os interesses dos grandes
fazendeiros de arroz que lá atuavam, fato que mobilizou a elite política e
econômica local contra esta demarcação. Um dos eixos principais do discurso
que fundamentava este movimento era aquele que alertava para a existência
de poderosos interesses internacionais por trás da demarcação. Esse discurso
teve uma repercussão muito grande na sociedade local, notadamente entre
aqueles que viviam da terra, grandes e pequenos. E foi repetido à exaustão pe-
los meios de comunicação e em todos os espaços onde se abordava o assunto,

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partidários de ambas as posições levavam a cabo discussões acaloradas e Seu
Otaniel entra neste circuito: “Tem muitas ONGs estrangeiras / Com grande
área de terra / Pra tomar nossa Amazônia / Eles fazem até guerra / Mas nós
vamos expulsar / E não deixar mais entrar / Este papo se encerra” (SOUZA,
2009, p. 13). De maneira explicita os versos de Seu Otaniel repercutem este
momento e o autor, como tantos outros, toma posição: “Depois que apareceu
/ Estrangeiro interessado / Que índio tem que viver / Em território isolado
/ Daí começou a crise / Assim que os índios dizem / O estrangeiro culpado”
(SOUZA, 2009, p. 26).
Neste sentido, Guillen se refere ao poeta de cordel
como “um grande narrador da vida cotidiana nordestina”, alguém que toma
posição sobre o que narra (GUILLEN, 2002), ele é um comentador que utili-
za as palavras com habilidade. A forma como o cordel é composto nos leva a
encará-lo como um texto espontâneo, tributário da oralidade rimada, embora,
por excelência, fundamente-se na arguta observação social, na crítica, obser-
vando-se o engajamento radical às temáticas postas à sociedade no calor da
hora.
Observa-se, no entanto, que a espontaneidade e a agi-
lidade do cordel não implicam a ausência de objetivos bem definidos a serem
veiculados. As temáticas se vinculam aos seus autores e àquilo que o cerca,
este é o mote para compor os versos, falar do local e do cotidiano. Pontua o
seu “passeio” pelos lugares roraimenses, enumerando também as suas gentes:
“Gente do Brasil inteiro / Pode prestar atenção / Tem gente do Paraná / E
também do Maranhão / Tem paulista e capixaba / Sulista que não se acaba
Grande miscigenação” (SOUZA, 2009, p. 7). Fala da diversidade de gentes,
ou seja, dos muitos migrantes: “Tem gente de toda parte / Deste Brasil de
meu deus / Maranhense e cearense / Descendente de europeu / De gente
que mora ali / Estou dizendo para ti / Tem gente até dos zezéus” (SOUZA,
2009, p. 11). Gentes diversas como ele, Otaniel, vindas de muitos lugares e
que ocupam e fazem de Roraima o seu lugar.
Neste “passeio” que faz por Roraima, o autor o faz

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com familiaridade e benevolência, e falando também sobre o que mexe com
a sociedade. Como vimos acima, a mensagem é que cada canto de Roraima
oferece algo que pode ser apreciado, que merece ser destacado e enaltecido,
um lugar tão valioso e especial que é alvo de cobiça e de disputas. O conjunto
destas partes forma Roraima, a terra bendita concebida pelo autor e que enca-
beça o título. Isto nos leva a ressaltar novamente que mudanças se operaram
na vida de Otaniel e na forma como ele se coloca em Roraima. Se no primeiro
livreto é possível observar um homem encerrado em uma realidade restrita –
aquela do campo e do lote – comandada por um ciclo natural do amanhecer
ao anoitecer, dos dias e das semanas, contada com laivos de amargura e certo
desencantamento, no segundo, vemos um homem livre, que “sobrevoa” um
espaço amplo, que se apropria da área estadual, que conta o que vê de forma
dinâmica e otimista.
Muda a temática, o que não é novidade para a litera-
tura de cordel, dinâmica e pautada em temas do cotidiano e próximos dos
autores; muda também a forma de escrever e de abordar lugar que foi ado-
tado pelo autor. Fica patente houve uma mudança na relação do autor com
Roraima, ou melhor, na maneira como Otaniel vê Roraima e se vê neste lugar
onde vive: “Roraima é terra boa / Assim está na escrita / Todos que chegam
aqui / É claro que acredita / E logo que vem chegando / Chega pulando e
gritando / Roraima terra bendita” (SOUZA, 2009, p. 27). Isto nos leva a pen-
sar no que diz Haesbaert, que os espaços expressam muito mais do que a sua
manifestação concreta, pois neles há “territórios (enquanto espaços concreta
e/ou simbolicamente dominados/apropriados) de um caráter particular, es-
pecial, cuja significação extrapola em muito seus limites físicos e sua utilização
material (HAESBAERT, 2002, p. 149).
Seu Otaniel, como é conhecido, se apropria do espaço
onde vive e faz uma leitura simbólica dele por meio da poesia de cordel, ao
ver-se e ao se colocar como migrante nordestino, como maranhense e como
roraimense: “Eu sou feliz não importa / Aquilo que alguém pense / Quem
me conhece sabe / Que eu sou maranhense / Eu só quero ser feliz / Até bri-

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go com que diz / Que eu não sou roraimense” (SOUZA, 2009, p. 27). Neste
texto a mensagem que nos passa é de integração, de inserção, pacificado se
levarmos em consideração o livreto anterior.
Assim, como argumenta Silva, na leitura que faz das
ideias de Stuart Hall, na contemporaneidade, as identidades são “multipla-
mente construídas ao longo dos discursos, práticas e posições que podem se
cruzar ou ser antagônicos”. Exposta a uma historicização radical, a identidade
estaria “constantemente em processo de mudança e transformação” (SILVA,
2000, p. 108). E os processos migratórios ensejam transformações naquilo
que se é, na maneira como o indivíduo se vê e se coloca no mundo; define
também as formas empregadas para explicar e compreender a sua trajetória,
ou seja, o quê o migrante fala e como fala.
O autor lança mão de uma forma socialmente reco-
nhecida para falar de si e do mundo que o cerca. A bagagem cultural migrante
do autor ancorada em Roraima torna este lugar de adoção um “espaço de
referência identitária” (HAESBAERT, 2002, p. 149) para o cordel, ele mes-
mo manifestação legítima e legitimada da cultura popular brasileira e de uma
nordestinidade instituída. Esta, somada ao talento e a habilidade de Otaniel
com as palavras e as rimas, imprime no autor uma identidade nordestina, mas
também maranhense e roraimense, sem prejuízos ou aparentes hierarquiza-
ções ou, ainda incômodas fraturas. Ele é e pronto!
Seguindo este raciocínio, considera-se que muito há
para dizer sobre Roraima e seu processo de ocupação humana, mas certo é
que este ainda está em franco desenrolar, tanto no que toca à ocupação do seu
espaço físico, quanto à configuração de suas espacialidades e territorialida-
des, principalmente constatada a importância histórica das migrações. Neste
aspecto, ainda que se considere a afirmação de Freitas de que Roraima é um
estado “nordestinado” polêmica e excessivamente peremptória e generalista,
a presença nordestina em Roraima é um importante elemento mediador das
trocas culturais e da construção identitária do lugar e das gentes roraimenses.

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Notes on the north-eastern brazilian presence in
Roraima
ABSTRACT: The Brazilian Amazon is a place of migrants, of the many and
diverse people who pursue, in the region, the dream of an earthly heaven and of
a land with endless treasures. Similarly to other Amazon areas, the migrants that
arrive in Roraima are motivated by various circumstances, influenced in turn by
socio-economic conjunctures that have historically approximated the North-East
and the North of Brazil. The constant influx of nordestinos in the Amazon and in
Roraima produces cultural exchanges and generates modes of existence and specific
representations of the experience of the migration and the integration, manifested in
various practices and presented in various forms of cultural production. This work
discusses the North-Eastern Brazilian presence in Roraima, in light of some possible
approximations: North-East/North-Easts, North-East/Roraima. More specifically,
this work presents an analysis of the cordel “Roraima terra bendita” (2009), by
Otaniel Mendes da Souza, an author from the state of Maranhão, who is based in
Roraima since 1982.

KEYWORDS: Roraima. Amazon. Cordel Literature. Migrants. North-East.

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de de Ciências e Tecnologias, Universidade Estadual Paulista, Presidente Prudente,
2007.

Data de recebimento: 10/7/2014


Data de aceite: 20/8/2014

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Desde a Amazônia acreana: narrativas de
trabalhadores deslocados de Itaipu – leituras do
“tempo presente” 1
Maria Cristina Lobregat2
RESUMO: Este artigo trata da trajetória que envolve homens e mulheres deslocados
para a Amazônia acreana após a expropriação de terras em municípios atingidos pelo
Lago de Itaipu, em fins da década de 1970. O contexto é o da construção da Usina
Hidrelétrica de Itaipu chegando até o momento final com a alagação de propriedades
rurais, as desapropriações e deslocamentos das famílias que ali residiam. A aborda-
gem gira em torno do propósito de pensar as práticas culturais e o deslocamento dos
trabalhadores no tempo e espaço, a partir de suas narrativas orais. Além dos depoi-
mentos, foram utilizados jornais da época de idealização da construção da usina, com
reportagens que procuravam “registrar” o momento conflituoso com os agricultores
que seriam expropriados, bem como as propagandas oficiais sobre a “colonização
dirigida” para a região amazônica.

PALAVRAS-CHAVE: Itaipu. Amazônia acreana. Narrativas Orais. Modernização.


Trabalhadores Rurais.

Em “A invenção do cotidiano: artes de fazer”, Michel


de Certeau teoriza sobre a escrita como prática moderna e inicia colocando
três elementos básicos para que ela aconteça: a página em branco, o texto e a
produção de sentido como um ato de transformação. Neste estudo, ao utilizar
a metáfora da fabricação de sentidos ao produzir um texto com a finalidade
de transformar ou conservar opiniões, percebemos que a escrita que encon-
tramos nos jornais representam aqueles instrumentos discutidos por Certeau
e são, portanto, repleto de intenções e representações. O que procuramos
é situar em um tempo as causas e consequências da construção da Usina de
1
  Originalmente apresentado como parte do segundo capítulo da Dissertação de
Mestrado “‘Pedra que canta’, lembranças que latejam: vozes de deslocados de Itaipu
para a Amazônia Acreana”, defendida do ano de 2013, junto ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Linguagem e Identidade da UFAC, nível de mestrado.
2
  Mestre em Letras: Linguagem e Identidade, Professora do Instituto Federal do Acre

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Itaipu através de fontes historiográficas e de jornais, e, simultaneamente, co-
locaremos na mesma discussão as narrativas orais de deslocados. Seguindo as
pistas deixadas pelos jornais, publicações e narrativas orais, compreendemos
as representações feitas sobre a realidade e o desconforto causado pelo des-
locamento, ou, como ele pode levar à necessidade e à capacidade de produzir
um novo espaço a partir de estratégias individuais e/ou coletivas.
Nessa direção, sentimos a necessidade de analisar os
depoimentos daqueles “migrantes” ou “deslocados” que chegaram ao Acre
há três décadas, numa viagem que ultrapassa o tamanho gigantesco do Lago
de Itaipu. Nesse caso, para ir além é preciso voltar ao começo, ou seja, a um
ponto inicial, como forma não de buscar explicações de causa e efeito, mas
de compreender os momentos de ruptura com determinados modos de vida
ou práticas culturais desses sujeitos e seu consequente deslocamento para as
“terras prometidas” dos “confins da Amazônia”, para lançarmos mão de uma
terminologia cunhada por Craveiro Costa (1998).
Encaramos a situação das famílias entrevistadas além
de uma “clássica” migração, e incorporamos a ideia de mudança forçada e
a impossibilidade de retorno. O deslocamento, quando pensado como uma
forma de assentamento dirigido e pós-alagamento de Itaipu, quando não há
o desejo de sair do local de origem, vai além do conceito de migração, pois
esta palavra não é capaz de dar sentido completo à experiência de ser expulso
do espaço construído. A migração nesse contexto passa a ser uma variante
do deslocamento e representa uma das formas de violência contra o homem
inserido na sociedade marcada pela modernização.
As pessoas “deslocadas” não queriam, por vontade
própria, abandonar as terras onde viviam, mas uma situação além de suas
vontades as obrigou a sair o que criou um processo díspar daquilo que con-
venciona a migração clássica. O migrante, embora também movido por for-
ças exteriores, é ele quem decide mudar, ele deixa sua terra de origem por
motivos próprios, enquanto o trabalhador rural tratado nesta pesquisa foi
obrigado a deixar sua terra por forças externas a sua vontade. Pessoas atingi-

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das por barragens não possuem a opção de ficar, há um controle muito mais
forte que as move, que as desloca forçadamente, um possível “exílio” que
separa o homem de sua terra natal. Após o alagamento do espaço construído
e praticado pelas famílias, o retorno torna-se uma impossibilidade e assim os
sujeitos passarão a reconstruir a possibilidade de pertencimento em outro
espaço encontrado.
Edward Said discute o exílio colocando-o de forma
que ultrapassa a noção comum de afastamento. Em seu ensaio “Reflexões
sobre o exílio”, o tema é abordado abrindo diversos aspectos capazes de
quebrar conceitos sobre o exílio e alterar a visão que podemos ter da rela-
ção entre o homem e o espaço na era da modernidade. A discussão de Said
sobre o tema exílio apresenta vários eixos que são representados pelos ter-
mos como deslocamentos, imigração, diáspora e refúgio, pois eles ligam-se à
quebra de pertencimento e o sentido de exílio revela-se como “uma fratura
incurável entre um ser humano e um lugar natal, entre o eu e seu verdadeiro
lar” (SAID, 2003, p. 46), e tal ruptura pode acontecer de maneira involuntá-
ria como é o caso dos deslocados vindos do Paraná, impedidos de voltar ao
lugar de origem, pois este não mais existe após o alagamento. Said ressalta
ainda que “embora seja verdade que toda pessoa impedida de voltar para casa
é um exilado, é possível fazer algumas distinções entre exilados, refugiados,
expatriados e emigrados” (SAID, 2003, p. 54). Nessa direção, incluímos os
“deslocados” pelo impedimento que a situação de alagamento da represa os
empurrou para outro espaço.
O deslocado envolvido neste estudo é o homem “fora
do lugar” (SAID, 2004), é aquele que está ou esteve em movimento, em busca
do aconchego de um lar. Esse sujeito possui na sua trajetória de vida a sensa-
ção de perda e ruptura refletidas pelo afastamento do espaço de origem onde
já havia construído sua vida e cultura, a viagem sem volta foi determinante no
contexto dos deslocados. Ao perder o espaço praticado, um novo sentimento
se estabeleceu gerando a busca pelo lar e pela casa algo que, simbolicamente,
o afastaria da sensação de abandono e rompimento.

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O deslocamento de que trata esta pesquisa vai além
do movimento nos espaços geográficos, pois não representa unicamente o
estado físico, de espaço ou de tempo (GONZÁLEZ, 2010). Ele assume tam-
bém algo que o identifique como um estado de sentimento de distanciamento
enlaçado com perdas, com sentimento de ausência, o sentimento do “não
lugar” presente pelas diferenças encontradas. Nesse sentido reforçamos o
uso do termo “deslocado”, caracterizador dos trabalhadores rurais do Sul,
homens que tais quais os “exilados” de Said também não possuem formas
reais de retorno, portanto, encontram-se em eterno estranhamento por senti-
rem-se “fora do lugar”. Nesse sentido, ao tratarmos da construção de Itaipu
e a consequente desapropriação dos espaços praticados no Sul pelas famílias
paranaenses, caímos nas discussões envolvendo a violência da modernidade
nas formas de tratar o homem gerando situações de deslocamento, migração,
expatriação e exílio.
O termo “deslocado” sugere e marca a visão de ho-
mem nos processos gerados pelas imposições sociais sofridas na sociedade
preocupada com a modernização, pois para significarmos esse homem dentro
de uma perspectiva dos estudos culturais, torna-se difícil não ver todas as
situações geradas como “deslocamentos”. Assim, acreditamos nas relações
culturais, nas trocas e na situação multicultural, exatamente, por vermos um
homem que está em constante deslocamento, em constante busca pelo seu
lugar. Diante disso, colocamos os trabalhadores vindos do Paraná na mesma
situação de violência. São homens e mulheres que devido ao anseio de mo-
dernização do país foram levados a situações de deslocamento e de posterior
construção de novos significados durante as trocas e permanências culturais
no espaço que tiveram de construir nos projetos de assentamentos na Ama-
zônia acreana.
Para conhecer os deslocados seguimos no “encalço”
das famílias vindas do Paraná na década de 1980. Percorremos os acervos
documentais, perscrutando manchetes e notícias de jornais na expectativa de
mapear as localidades para onde os atingidos pelas barragens da hidrelétrica,
localizada no oeste do Estado do Paraná, foram “enviados”. O contexto e

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os condicionantes histórico-temporais desses deslocamentos também foram
colocados no foco desse levantamento nas fontes de pesquisa. Nessa mesma
direção, passamos a realizar contatos com diferentes pessoas que poderiam
nos fazer chegar aos trabalhadores rurais que foram deslocados para a Ama-
zônia acreana, tendo como preocupação inicial mapear os locais e os contex-
tos históricos de seus deslocamentos para esta região.
Encontramos famílias que vieram de diferentes mu-
nicípios alagados pela hidrelétrica. Algumas delas viviam em Santa Helena e
São Miguel do Iguaçu, outras moravam em uma área de litígio entre Brasil e
Paraguai, como também no Arquipélago de Ilha Grande, próximo aos Saltos
de Guairá. Com isso, conseguimos apreender diferentes situações de desloca-
mentos, cada família passou por um tipo de abordagem pelas colonizadoras
cadastradas ao INCRA, vivenciando formas diferentes de enfrentamento das
situações ao deixarem as terras onde viviam. As reações de cada pessoa em
relação à situação nova que se apresentava são significativas para identificar
as diversas possibilidades experimentadas e que estão na memória como algo
vivo e importante para a reordenação do modo de ver e sentir o vivido. O des-
locado ao se separar das raízes da terra de origem cria uma relação entre ele
o “outro”, sempre trafegando pelo ameaçador território do “não-pertencer”,
algo que o faz querer ser alguém pertencente a algum lugar.
Os entrevistados trabalhavam no cultivo da terra pro-
duzindo arroz, feijão, mandioca entre outros, além da criação de pequenos
animais para o consumo familiar. A relação dessas pessoas com o campo se
caracterizava por uma vivência intensa com o trabalho. A área que ocupavam
representava a fonte de sustento, além de garantir no cotidiano o convívio
social com grupos semelhantes. Perder a terra em que viviam e trabalhavam
significava uma ruptura com tudo aquilo que os identificava enquanto sujeitos
sociais.
Nesse envolvimento do homem com a terra enten-
de-se que “o fazer” está ligado com “o ser” e com “o ter”. Nas específicas
condições em que vive, a força do trabalho liga esse sujeito a outros desejos
que se personificam, tomam corpo dentro de relações que são marcadas pelas
experiências e pelas relações sociais com os grupos. Para que esse sujeito seja

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reconhecido, ele necessita do seu trabalho, nesse momento “o fazer” o leva
para “o ser”. Sendo assim, compreendemos que a experiência do desloca-
mento vivido pelas famílias entrevistadas faz parte do entendimento que elas
têm de vender a força de trabalho e sobreviver, e, as remetem à sujeição da
“condição humana” (ARENDT, 2010), uma necessidade em que o viver se
impõe, é o pertencer ao mundo. Nesse mesmo caminho julgamos o trabalho
como algo da essência humana por ser uma atividade antiga e glorificada na
era moderna possibilitando a formação de uma sociedade de trabalhadores,
algo que nos remete aos deslocados que também passam por essa situação.
Se os trabalhadores sem trabalho é algo ruim, trabalhadores rurais sem terra
também o é, o que justifica a decisão de homens e mulheres submeterem-se
ao deslocamento imposto por saberem que as terras onde viviam e trabalha-
vam seriam alagadas pela usina.
Transitando entre fontes documentais escritas e orais,
bem como percorrendo as linhas traçados por autores que analisam a questão
agrária no Brasil, percebemos o quanto o INCRA transformou um “proble-
ma” de terras em um “negócio” de terras ao favorecer empresas de coloniza-
ção que influenciavam famílias de posseiros submeterem-se ao deslocamento
para a Amazônia acreana. As famílias aceitavam a promessa de terras pro-
dutivas no Norte do país e contribuíam para ocultar a problemática questão
agrária no Brasil durante a ditadura militar.
O jornal Gazeta do Acre, em novembro de 1981, es-
tamparia a notícia que o Projeto de Assentamento Dirigido Pedro Peixoto, era
um dos locais onde famílias deslocadas estavam sendo assentadas, numa ação
desenvolvida pelo INCRA local, reforçando a política de expansão agrícola
na região.
Sob a presidência do vice-governador do Estado, José
Fernandes do Rego, a Comissão Consultiva de Política
Agrícola estará se reunindo [...] para analisar os resultados
obtidos pelos projetos de colonização [...]. Estes projetos
estão sendo desenvolvidos pela Delegacia Regional do
INCRA. Segundo o Decreto assinado pelo Governador
Joaquim Macedo, cabe agora à Comissão Consultiva de

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Política Agrícola sugerir medidas para agilizar a execução
desses projetos pelo Plano de Ação do Governo (GAZETA
DO ACRE, 19/11/1981).

Acompanhando a pena e a empolgação presentes na


reportagem da Gazeta do Acre, é possível antevermos que a lógica dos assen-
tamentos de trabalhadores em áreas às mais adversas, era uma artimanha do
governo federal, seguida à risca pelo governo do Acre, que tinha pressa em
“agilizar” sua execução. Poucos anos mais tarde, essa “agilidade” e o espírito
de aquiescência no deslocamento de famílias provenientes do sul e de outras
partes do país para “ocupar” a região, ganhariam novos destaques na impren-
sa local, evidenciando as consequências não previstas no “Plano de Ação” da
gestão Joaquim Macedo/José Fernandes do Rego.
O texto aponta características específicas de notícia,
privilegia a descrição de ações que seriam concretizadas pela Comissão Con-
sultiva, explicitamente é assumido o tom de propaganda das ações do go-
verno da época ressaltando o propósito desenvolvimentista e de expansão
agrícola na região amazônica.
As pessoas envolvidas nos assentamentos desapare-
cem do processo e da reportagem, contrariamente ao que é fixado e eviden-
ciado, ou seja, o propósito do governo em intensificar os projetos de ex-
pansão agrícola. Esse caminho seguido no texto banaliza tanto as mudanças
ocorridas no espaço quanto as relações sociais dos assentados, pois o pen-
samento que objetivava a expansão agrícola é o que está mais aparente no
discurso da época.
Os deslocados, anteriormente, eram em muitos casos,
arrendatários ou posseiros no Sul. Com a ameaça da alagação do espaço onde
viviam, viram-se levados a se deslocarem para o meio urbano ou participar
dos projetos de assentamentos desenvolvidos na Amazônia acreana, o que, a
princípio, representava uma solução, sendo que não havia forma de garantir
a permanência nas terras devido à alagação. Embora haja a decisão de mudar

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por situações exteriores às suas decisões individuais, a aceitação do distancia-
mento não se deu de forma simples ou singular, algo evidente nas narrativas
orais que seguem.
A família de Dona Olívia veio para o Acre após a in-
tervenção de uma colonizadora no Oeste do Paraná encarregada pelo deslo-
camento dos colonos atingidos pela barragem. Hoje, com 56 anos, aparenta
ser uma mulher com traços de sofrimento marcados no rosto. Ao chegarmos
a sua casa, na cidade de Sena Madureira, esta apresentava uma feição muito
comum às pessoas do Paraná, o seu tom de voz e seu jeito de falar, ainda res-
gatavam os traços do lugar de onde veio. Ela estava feliz pela visita e naquele
momento queria saber sobre a importância de sua história, isso por achar
que suas experiências eram tão individuais que não ecoavam dentro de um
contexto maior. Sentada em uma cadeira, na cozinha de sua casa, um lenço
vermelho desbotado amarrado na cabeça, usava uma saia sem estampa, com
um tímido godê e na altura da canela, como também uma blusa solta e desbo-
tada pela ação do tempo, assim Dona Olívia começou sua narrativa traçando
todos os detalhes que a memória lhe possibilitou.
Relatou que ela e seu marido moravam com os filhos
no Paraná, próximos a Foz do Iguaçu, local que ela denomina como “área da
Itaipu” onde sofreria a alagação pela represa. Arrendavam terras para traba-
lhar e sobreviver economicamente, entretanto o que conseguiam era insufi-
ciente para tratar dos filhos, então trabalhavam por dia em outras proprieda-
des. A família não possuía a terra o que ocasionava a migração onde houvesse
trabalho no campo e segundo ela, a vida sempre foi um ir e vir em busca
de trabalho. Chegar ao Acre foi além de uma escolha, também uma saída
para a situação social na qual viviam. A promessa de ganhar uma propriedade
fez com que essa família se deslocasse, ela só possuía a força de trabalho e
apropriar-se da terra, ser o dono, significava ascensão social, como também
plantar e colher sem ter de vender a força de trabalho para o patrão. Era o
processo de emancipação econômica da família através das promessas dos
dirigentes de Itaipu.

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Eles conversaram com as pessoas toda, aí eles disseram: “o
único jeito que nóis tem que levá voceis é pro Acre” nóis
falemo assim: pra onde levá nóis tem que ir, porque, com
criança pequena, né? Sem sabe pra onde tem que ir”. Só que
pra Araputi num tinha mais vaga...Nóis quiria ir pra lá , mas
não tinha mais vaga.O jeito que tem é...ou então ir aqui pro
Acre, ou Bahia ou pro Paraguai. Nóis preferiu aqui no Acre.
Aí viemo, marcô o dia, aí nóis viemo. Viemo em três ônibus,
em quatorze família. E três caminhão com um pouco de
mudança, né, cada família...Três ônibus com 14 família e
3 caminhão. Só que nóis viemo tudo de graça. Só que nóis
também não tinha dinheiro, porque nóis plantemo só um
pedacinho de milho que foi o Lindào e meu minino mais
velho que fez, enquanto nóis trabalhava por dia. E o home,
ficô de pagá nóis no fim do ano e ele não pagô porque ele
logrô o patrão dele. Porque ele era arrendatário do patrão
e nóis era dele, né? Aí ele ficou devendo pro patrão e veio
embora pra Rondônia, né? E nóis ficamo na mão, aí só
vendimo aquele pedacinho, aquele pouquinho de milho, e,
ainda o fazendeiro veio e ainda pegô a metade. Mais a roça
nós num tinha pegado do fazendeiro, mas do empreiteiro
dele , né? Aí ele foi, vendeu o milho pra nós e ainda tirô a
renda dele. Aí fiquemo lá, comendo, bebendo,sem trabalhá
e sem arrumá serviço. O vizinho andô um meis e num achô
serviço. Aí eles mando nóis pra cá. Aí viemo com 3 ônibus,
remédio, comida, leite pras criança, tudo. E os 3 caminhão
vinha pra trás, só com um pouquinho, o resto larguemo lá
na casa, mandaram fogo (FERREIRA, 2012).

Dona Olívia, cuja família passou pela experiência do


deslocamento, iniciou sua narrativa tentando colocar uma ordem cronológica
nos “acontecimentos” de sua trajetória, entretanto, na proporção em que, no
momento da entrevista, todos de sua família estavam presentes, passaram
a produzir lembranças e representações das experiências vivenciadas. Nesse
significativo processo, muitas vezes, um lembrava algo que o outro esquecia,
num verdadeiro “atropelamento” de vozes.
Nas lembranças da família de Seu Toninho e Dona
Olívia percebemos o que eles experimentaram quando foram deslocados.
Cada pessoa da família expressava sua maneira de sentir e ver o ocorrido,

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entretanto, o sofrimento durante a viagem e a fixação no novo território se
deu de forma coletiva. Na época em que desocuparam as terras no Sul por
causa do Lago de Itaipu o mais importante no rumo político do governo es-
tava em enviar as pessoas sem posse de terras para a região amazônica, o que
resolveria parte do problema da alagação e ainda contribuiria para o projeto
dissimulado de reforma agrária da ditadura militar. Dois processos acontece-
ram de forma simultânea, um era resolver o problema de uma parte da popu-
lação brasileira que era “sem terra”, arrendatária e que necessitava sobreviver
através do trabalho no campo, como é o caso da família de Dona Olívia; o
segundo era um objetivo do governo militar em assentar trabalhadores rurais
na Amazônia caracterizando a reserva de trabalho e expansão agrícola, ações
ressaltadas de forma velada nos discursos expansionistas.
Os projetos de assentamento na Amazônia já estavam
sendo discutidos pelos tecnocratas. A década de 1980 já apresentava a ideia
amadurecida pelo governo da época, como podemos apreender a partir da
interpretação que os redatores de Gazeta do Acre faziam sobre a “migração”
para a região.
Mesmo com investimentos nos planos de colonização, o
território, até na década de 1960, dependia exclusivamente
do extrativismo vegetal, ainda à margem do processo de
desenvolvimento do país, isolado das demais regiões e
desarticulado do restante do sistema nacional. Quando
essa iniciativa foi tomada pelo governo, Rondônia foi
beneficiado com uma infra-estrutura básica de transportes,
tornando acessíveis aos grandes centros os recursos naturais
existentes no território. A partir daí, rápidas transformações
se verificaram: A abertura da BR-364 permitiu grande
migração proveniente do Centro-Sul incentivada pela
existência de terras da União e sua distribuição pelo
INCRA aos colonos dispostos a adquiri-las e fixar-se na
região (GAZETA DO ACRE, 29/01/1981).

A ideia de “progresso”, na opinião do redator da ma-


téria, nos leva a perceber uma clara recusa em reconhecer a importância das

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práticas culturais presentes no interior da floresta, em especial, o extrativismo
que é tratado como “à margem do processo de desenvolvimento do país”.
Daí por diante, somos remetidos às cristalizadas noções de “isolamento geo-
gráfico” e da necessidade de exploração dos chamados “recursos naturais”
da região.
Matérias como esta representam a visão singular so-
bre as questões migratórias para a Amazônia, ressalta o desenvolvimento sem
observar as formas como os deslocados se relacionariam com a terra, pois
traziam consigo outras formas de produção e outra relação com a flores-
ta. Para esses trabalhadores rurais recém-chegados, derrubar as matas era o
primeiro passo para iniciar a produção, era um ato despreocupado e natural
como há muito havia sido feito em outras regiões do país. Esse trabalhador
rural, de certa forma, representa a vontade de desbravar, isso pela tradição mi-
gratória que o povo do Sul carrega em suas experiências históricas. Derrubar
a mata fazia parte do trabalho árduo, limpar o espaço para o plantio já era uma
estratégia conhecida pelos sulistas, nesse aspecto, eles não se sentiam jogados
a própria sorte. Tinham como referência experiências anteriores de ocupação
na região de onde vieram. Mesmo depois de três décadas permanece o senti-
mento de querer plantar e colher, fazer roçado, expandir a propriedade, isso
é visto na fala de outro migrante morador no Ramal 16 e conhecido como
Cebolinha: “Agora tá difícil é o negócio de agora pra frente que a gente num
pode mais fazê roça, nada mais, que os cara num deixa mais roçá, né?”.
Florindo Reis, entrevistado em Sena Madureira, dis-
corre sobre o deslocamento de sua família para o norte e marca em sua fala
tanto a falta de terra no sul, como a abundância de terras no Acre onde não
havia limites para o desmatamento.
Num tinha terra, não. Se prantava um amendoim, era
dividido. Se tinha de a meia, era de a meia, se fosse setenta
por cento [pausa] Era desse jeito. Mas nóis num tinha terra
lá, não. Porque a terra era muito caro naquela época. Era
muito caro. Nóis era sem terra, era tudo assim, se nóis fazia
um plantio de mio, um plantio de arroz, que o arroz lá só

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dava se fosse no banhadão, na terra mais baixa, se fosse
no alto num dava de jeito nenhum. Aí era tudo 30%, né?
Num é que nem aqui, né? A gente comprô uma terra, pegô
uma terrona. Aquele nosso ali que nóis pegô 43 alqueire,
43 alqueire de terra e disse: “isso aqui é dóceis”. Aí fomo
tratá o tanto que qué. Aí a gente podia derrubá o tanto que
queria, naquele tempo podia derrubá o tanto que quisesse.
Se quisesse derrubá tudinho de uma veiz, podia derrubá.
Agora num pode mais. Num pode mais (REIS, 2012).

A narrativa oral de Florindo aparenta demonstrar o


sentimento de rejeição ao Sul quando comenta a situação de arrendatário à
qual a família estava submetida. A preferência de Florindo pela nova reali-
dade demonstra, de maneira implícita, os conflitos e angústias atribuídos à
realidade deixada representando a exploração do trabalhador rural. Os trinta
anos passados e que separou os dois lugares não foi suficiente para aniquilar
algumas angústias experimentadas no Sul como a falta de terra para plantar.
Ainda é preservado na fala de Florindo o sentimento ao vender o trabalho por
ser arrendatário e deixar setenta por cento do trabalho com o patrão, o que
justifica um dos motivos que os impulsionaram para o deslocamento.
A fala de Florindo também marca a possibilidade de
ver o que representava derrubar árvores para plantar produtos da agricultura,
sendo que a relação do sulista com a floresta difere da relação do acreano, pois
cada um teve uma vivência e consequentemente as práticas de sobrevivência
distinguem-se. O trabalhador do Sul tinha marcado em suas experiências o
desmatamento e o tratamento necessário da terra para começar a produzir,
como é verificado na fala de Florindo: “Aí fomo tratá o tanto que qué”, a
abundância de terra representa a prosperidade encontrada no novo espaço.
A maneira de ocupação, exploração e organização do
espaço trazida pelo trabalhador rural do Sul, distancia-se da forma adotada
pelo trabalhador rural acreano. No Acre o extrativismo foi a prática usada
por aqueles que estavam no interior da floresta, já o sulista chegou com novas
práticas de ocupação que se baseavam na agricultura, necessitando de pro-

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duzir e de escoar a produção, nesse sentido há uma recorrente insatisfação
quanto aos ramais que usavam para se locomoverem e transportarem seus
produtos.
Para pensar os deslocados sulistas recém-chegados ao
Acre e suas práticas e resistências é necessário resgatar, através da historio-
grafia, os motivos que os impulsionaram para uma mudança de território.
Com isso caímos em datas, causas e consequências da construção da Usina
Hidrelétrica Itaipu Binacional, que representou a forte tendência desenvol-
vimentista do governo militar e que, de certa forma, também foi motivo de
“desocupação de 1.350 quilômetros quadrados” (GERMANI, 2003, p.184)
de terras produtivas entre o Estado do Paraná e o Paraguai.
O pensamento que embasava as ações da ditadura
militar não previa as mudanças que seriam impostas às pessoas que necessi-
tariam de deslocamento. As experiências e práticas sociais construídas pelas
famílias ao longo do tempo na região oeste do Paraná nada significavam para
aqueles que almejavam a construção da usina. Itaipu representava a ideia do
novo, a ideia da “modernidade”.
Nesse caso, o capital fica concentrado no domínio de
poucos, o que muda o panorama do campo, portanto, “fazendas se transfor-
mam em ‘fábricas agrícolas’ e os camponeses que não abandonam o cam-
po se transformam em proletários campesinos” (BERMAN, 1989, p.90). Os
sulistas deslocados dessa narrativa passaram por essa experiência ressaltada
por Berman, fato que os levaram a procurar uma saída dentro do contexto
capitalista de modernidade.
Sendo Itaipu uma representação do projeto de moder-
nidade idealizado pelo governo militar, procuramos dialogar com o processo
histórico de sua construção, que teve início muito antes da década de 1970. O
seu primeiro suspiro, sua primeira célula de vida estava no Governo de Jus-
celino Kubitschek com a ideia de “progresso e desenvolvimento” para o país.
Assim, segundo Germani (2003), surgiu discussões sobre o aproveitamento
do potencial hidrelétrico do rio Paraná e os primeiros estudos geográficos na

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região, sempre lembrando que os debates não aconteciam com a participação
dos trabalhadores rurais que seriam futuramente atingidos, nem se pensava
nas dificuldades que seriam encontradas, menos ainda nos problemas que o
lago poderia causar às pessoas que ocupavam as terras e que delas viviam.
Mas o modelo de desenvolvimento não poderia parar
e dando prosseguimento ao projeto do Governo JK, havia a necessidade de
estabelecer acordos com os países vizinhos: Argentina e Paraguai. Isso se
dava por conta do conflito histórico na região da Bacia do Prata, pois esta foi
palco de diversas tensões na história. Desde a colonização, já havia o interesse
de Portugal e Espanha pela região devido a sua localização.
Para tratar com um olhar econômico, recorremos a
Gallo (2005) que traça as questões surgidas diante das relações internacionais
ocorridas entre o Brasil e os países vizinhos. Assim, vimos que havia a impor-
tância econômica da Bacia do Prata, por participar de uma grande parte do
PIB (Produto Interno Bruto) dos cinco países e qualquer alteração na nave-
gação dos rios que formam a bacia poderia também afetar economicamente
os envolvidos.
Visitamos as questões econômicas e políticas que se
relacionavam com os países da Bacia do Prata. Além do potencial de navega-
ção e econômico, a bacia também apresentava o hidrelétrico, que é de “60 a
70 kw e seus principais rios e afluentes proporcionam 15 mil quilômetros de
vias navegáveis constituindo a única saída natural para o mar para a Bolívia e o
Paraguai, pelo Oceano Atlântico” (GALLO, 2005, p.64). A Argentina depen-
dia das águas do rio Paraná no plano hidro energético e no desenvolvimento
industrial. Já o Paraguai estava mais bem situado, o que lhe proporcionou
um poder maior de negociação, ele dividia fronteiras tanto com a Argentina,
quanto com o Brasil através das águas do rio Paraná. Sua localização geográ-
fica possibilitava fazer acordos com ambos os países.
A partir das questões econômicas, devido à localiza-
ção geográfica dos países platinos, surgiam também os primeiros conflitos
gerados pela vontade de cada país em fazer o aproveitamento do potencial hi-

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drelétrico e, simultaneamente, a exploração do econômico. A escolha do local
para a construção da barragem colocava em risco o projeto Corpus3, que seria
localizado a 250 quilômetros abaixo de Itaipu. Com o represamento do Rio
Paraná, a navegabilidade no trecho argentino seria comprometida, além de
impossibilitar o projeto Corpus (JORNAL DA REPÚBLICA, 10/10/1979).
Diante do cenário de conflitos, o maior obstáculo foi
promovido pela Argentina, pois as concepções desenvolvimentistas e geopo-
líticas dos militares do Brasil e da Argentina viam a importância da geração
de energia para a industrialização dos dois países que estavam interessados
no desenvolvimento nacional e na “modernização”. Era necessário pensar na
ampliação da capacidade energética do país para abrir o mercado da indus-
trialização e sustentar o modelo econômico desenvolvimentista, a construção
de Itaipu afetaria a exploração energética dos rios. Foi a partir dos confrontos
entre os dois países que as chancelarias conseguiram chegar ao acordo que
estabelecia o represamento de Corpus a 105 metros do nível do mar, o que
não afetaria ou “afogaria” Itaipu e em contrapartida também faria alteração
no seu projeto inicial para que a Argentina desse prosseguimento ao projeto
Corpus (O ESTADO DE SÃO PAULO, 21/08/1979).
Com os acordos consagrados podia-se colocar em
prática o projeto hidroenergético de 1961, esboçado pelo Engenheiro militar
Pedro Henrique Rupp, ainda no governo do Presidente Janio Quadros. Tal
projeto previa uma usina antes da fronteira com o Paraguai, e no Governo de
João Goulart (1961-1964) o Ministério das Minas e Energia incumbiu outro
engenheiro, Otávio Marcondez Ferraz, que já havia dirigido a construção da
Usina Paulo Afonso, de aprofundar os estudos feitos no Governo anterior
por Rupp. Com isso foi retomada a ideia anterior de construir uma usina,
exclusivamente, brasileira. Tal fato nada agradou ao governo e ao povo pa-
raguaio, gerando manifestações nas ruas de Assunção, “protestos contra o
governo brasileiro e seu desejo expansionista” (MAZZAROLO, 2003, p. 21)
e ainda impossibilitava desenvolver o projeto Corpus.
3
  Trata-se de um projeto de construção, discutido em 1978, de uma usina hidrelétrica
entre Argentina e Paraguai que exploraria a capacidade energética do Rio Paraná.

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O potencial energético do Rio Paraná representava
para o Brasil e a Argentina acesso ao “desenvolvimento” e a “aceleração”
econômica, mas não eram previstos os problemas sociais e os conflitos com
os desapropriados e atingidos por barragens. O Brasil argumentava que seu
desejo era de soberania e, no anseio de realizar o sonho de “desenvolvimen-
to”, encontrou outro obstáculo: o Paraguai. O governo brasileiro não respei-
tava o acordo feito em 1872, assinado e denominado como Tratado de Limites,
“que definiu como pertencente aos dois países, em condomínio, o trecho do
rio Paraná que banha ambos” (MAZAROLLO, 2003, p. 21). Essa faixa de
terra em conflito era mais conhecida como “faixinha” (GERMANI, 2003) e,
em 1965, foi ocupada pelo Brasil, causando protestos no país vizinho:
O General Golberi Couto e Silva, chefe do Serviço Nacional
de Informação do Brasil, que se encontra desde anteontem
em Assunção, é enviado pessoal do presidente Humberto
Castelo Branco, para considerar o problema suscitado
por motivos de ocupação dos Saltos de Guaira por tropas
do Brasil, o que está provocando uma crescente onda de
protestos no Paraguai (ÚLTIMA HORA, 28/11/1965).

As relações entre o Brasil e o Paraguai ficaram melin-


dradas gerando uma crise entre ambos, estabelecida através de protestos vin-
dos dos universitários e jovens militantes do Partido Colorado que invadiram
e depredaram a sede da Missão Cultural e Comercial do Brasil em Assunção,
que, após atear fogo e queimarem algumas bandeiras brasileiras “saíram em
passeata pelas ruas evocando a Guerra da Tríplice Aliança e acusando o Brasil
de ‘sanguinário, aproveitador dos fracos’” (MAZAROLLO, 2003, p.23).
O Governo Paraguaio via as notas que o Brasil pu-
blicava sobre o conflito e não aceitava o posicionamento de domínio do ter-
ritório pelos militares que estavam na zona conflituosa, como também a so-
ciedade paraguaia cobrava um posicionamento do então Presidente Alfredo
Stroessner. Os jornais paraguaios criticavam a atitude do Brasil e, naquela
época, manifestavam o desejo de retirada da Embaixada do Brasil, como tam-
bém da Missão Militar Brasileira.

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Em 16 de fevereiro de 1966, o jornal “Última Hora”,
transcreveu a matéria do diário paraguaio La Libertad. É importante nesse
momento observar na nota do jornal as implicações do momento no qual foi
escrita. O Brasil vivia a ditadura militar, o jornal necessitava da voz do outro
para mostrar a indignação do governo paraguaio.
Exército Brasileiro que com brutal arrogância assentou seus
quartéis em território paraguaio, tantas vezes santificado
pelo sangue nacional é a evidência de que tudo contorna um
plano geralmente manejado pelo Itamarati para despojar
o Paraguai dos seus legítimos direitos na zona dos Saltos,
exigimos que pelo menos, nossa justa indignação tenha
outras manifestações mais adequadas que a emissão de
notas que permanecem nos arquivos brasileiros, em que os
dirigentes do Itamarati os lancem com desprezo (ÚLTIMA
HORA, 16/2/1966).

O Paraguai via como imprudente e provocadora a


permanência do Brasil na área de litígio com isso a situação se agravava, sig-
nificativamente. O desejo brasileiro de explorar o potencial energético do Rio
Paraná seria ameaçado e mais ainda, fazê-lo sozinho já era uma dificuldade
estabelecida. Mesmo assim, o governo da ditadura brasileira, insistia em usar
argumentos que “desfiguravam a realidade”. Os editores do “Última Hora”
teciam suas leituras e representações sobre o conflito, pontuando que, duran-
te alguns meses de desentendimento entre os dois países, o Brasil apresentaria
uma nota pública, a partir da qual procurava esclarecer seu posicionamento à
ocupação repentina do território em condomínio.
O conflito pela “Faixinha” ganhou tamanha repercus-
são que o Departamento de Estado norte-americano fez uma intervenção,
propondo um encontro entre os chanceleres do Brasil e do Paraguai em prol
de um acordo apaziguador. Tal “encontro” ocorreu em 22 de junho de 1966,
dando origem a um documento denominado “Ata do Iguaçu”, que instituiu
uma Comissão Mista de Limites e Caracterização da Fronteira Brasil-Paraguai,
incumbida de levantar as possibilidades de exploração energética do Salto de

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Sete Quedas até a foz do Rio Iguaçu. Após os acordos estabelecidos e selados,
o momento era propício para iniciar o grande projeto de construção da usina.
Inquietos e atentos aos conflitos, acordos e protoco-
los na fronteira sul do país, os trabalhadores rurais da região acompanhavam
seus desdobramentos. Das encenações e “rugidos” das casernas do Brasil e
do Paraguai, uma série de impactos se abateria sobre os homens e mulheres
daquela área de fronteira, deslocando-os para outras localidades, como pon-
tuou Dona Elza, mulher de 65 anos, trabalhadora rural, natural do estado do
Espírito Santo, que morou na faixa de litígio, próxima aos Saltos de Guairá e
depois no Paraguai.
Ah sim, eu conheci muito lá! As pessoa que moravam na
faixinha, né? Lá dava o nome faixinha que era na beira
do rio Paraná. Então, tinha muita gente do meu esposo
que morava lá. Tinha tio, primo, tinha muita gente. Muita
gente mesmo, lá! Eu tava contando pros minino [aponta
para os filhos e netos]. Aí quando foi nesse tempo, a Itaipu
indenizou eles. Só que aqui eu num conheço ninguém deles
aqui. Eu conheço em Rolim de Moura, em Rolim de Moura
tem bastante deles ainda. Tem parente dele ainda que mora
ali, que foi desapropriado. Foi assim: O governo pagô. O
governo indenizô e eles sairo. Uns foram pro Maranhão,
compraro terra no Maranhão, outros comprô no Mato
Grosso, outros comprô na Rondônia. Mas foi muita gente
que saiu. Eu morava na faixa do rio, o nome era faixinha.
Eu morei lá também. Só que depois eu saí de lá, eu vim
pro Rio Bonito, que é Paraná, me lembro que lá também
é Paraná, depois que eu fui mais pra frente, depois que eu
voltei pro Paraguai (DIAS, 2012).

Dona Elza desnuda a forma como as pessoas eram


tratadas, em um momento no qual o aspecto financeiro gerado pelas indeni-
zações era a única preocupação dos dirigentes de Itaipu. O governo pagava
e as pessoas saiam, mesmo que a contra gosto. O trabalhador rural deixava
sua casa, suas plantas, sua história e era deslocado, separado de suas raízes e
de seu passado que ficaria submerso, embora vivo nas lembranças. A resis-

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tência desse trabalhador não estaria no campo argumentativo, no campo das
palavras, mas na sua resistência interior de deixar de pertencer ao seu lugar de
origem, que não mais existiria após o alagamento.
A desocupação era uma obrigação, uma ordem em
nome do “desenvolvimento” do país. A mobilidade dessas pessoas, especi-
ficamente, apresenta-se diferente das correntes migratórias dos sulistas gaú-
chos nos estados do Mato Grosso e Rondônia, a partir da década de 1970.
No modelo econômico de expansão das fronteiras agrícolas, o produtor rural
deslocado se encaixava perfeitamente nos objetivos da ideia de reforma agrá-
ria do governo militar, portanto, além de ser resolvido o problema da expro-
priação de terras devido ao alagamento de Itaipu, eles também serviriam para
ocupar os espaços geográficos que, no discurso do governo, eram espaços
vazios.
As famílias atingidas pela barragem de Itaipu carac-
terizavam-se como “pessoas simples” (GERMANI, 2003), sem muita esco-
larização e, outrora, vindos dos estados de Santa Catarina e Rio Grande do
Sul, descendentes de alemães e italianos em busca de um espaço para plantar
e colher. Participaram da história da colonização da região Oeste do Paraná,
fizeram benfeitorias nas terras e cotidianamente trocavam experiências com
os demais. A realidade desses trabalhadores baseava-se na harmonia entre os
vizinhos e as trocas de favores e cooperação que se transformavam em expe-
riências e vivências coletivas.
A ideia de inundação de grandes espaços não era con-
cebida pelos agricultores, o imaginário deles impossibilitava ver cidades, vilas
e muitas fazendas submersas pelo reservatório da usina. A representação de
espaço para eles era materializada apenas através de uma distância segura das
águas do Rio Paraná para não sofrerem enchentes. Eles possuíam uma linha
imaginária entre a água que subia em épocas de chuvas e a propriedade, sendo
uma enorme dificuldade entender que seriam tomados pelas águas do lago.
Além disso, essas pessoas não compreendiam o pro-

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cesso que estavam vivenciando, não sabiam como exigir seus direitos à terra
e negociar com os dirigentes de Itaipu, não refletiam sobre as consequências
que sofreriam com a desapropriação e deslocamento. Mas havia ainda outro
grupo que não era formado nem por proprietários, nem por posseiros, mas
por arrendatários, como é o caso de algumas famílias que foram deslocadas
para a Amazônia e que colaboraram para esta pesquisa contando suas his-
tórias e experiências vividas durante e após a alagação. Essas famílias sem
posse de terra fazem parte do grupo de deslocados que foram enviados para
a Amazônia acreana em busca de oportunidade. No imaginário formulado a
partir das experiências anteriores que possuíam no Sul, ganhar terra para tra-
balhar acompanhava os anseios antigos ligados às condições que vivenciavam
enquanto famílias de sem terra. Chegando aos assentamentos, as dificuldades
foram aparecendo com a falta de ramais e condições de trabalho. Nos rela-
tos, mencionaram a falta de estradas nos PADs, onde foram assentados pelo
INCRA, o que dificultava o escoamento da produção. Esse trabalhador rural
vinha de outra realidade, de outra região e esbarrou nas dificuldades do clima,
especialmente, os períodos de chuvas, que, além de ser diferente daquilo que
conheciam, dificultava a retirada do que produziam.
Cebolinha, filho de uma família que chegou em 1982,
foi entrevistado no município de Sena Madureira e chegamos até ele por indi-
cação de um funcionário do INCRA que não autorizou a gravação de entre-
vista. O funcionário do INCRA de Sena Madureira, mostrou um documento
antigo que estava guardado desde a época do assentamento no PAD Boa
Esperança. Dentre as famílias que vieram, estava o nome do pai de Cebolinha
que mora, no momento, em Acrelândia, mas Cebolinha é proprietário de uma
colônia no Ramal 16,4 ele desloca-se até a cidade para vender o queijo que
produz. Coincidentemente, em um dos dias dedicados às entrevistas em sena
Madureira, foi possível encontrá-lo.
Ao procurá-lo, a primeira referência era a casa de ami-
4
  Ramal 16 é o nome de uma estrada que dá acesso às colônias que fazem parte do
PAD Boa Esperança no município de Sena Madureira, Acre.

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gos, mas ele não estava lá. Deram-nos como indicação a casa do sogro, local
onde, provavelmente, ele passaria. Não foi muito difícil identificar a pessoa
procurada. Ele estava sentado na varanda de uma casa de madeira, em cuja
frente havia uma rua com uma pavimentação típica da região. Nada delimi-
tava a casa do espaço da rua onde trafegavam pedestres e carros. Ao longe,
as características físicas coincidiam com as mencionadas pelo funcionário do
INCRA. Seu cabelo é liso, espetado e loiro, os olhos claros, azuis e o nariz
afinado. A pele judiada, queimada e manchada pela ação do tempo e do sol,
insinuando marcas de experiência de vida na colônia.
Ele se mostrou propenso para participar da pesquisa,
mas sentia-se constrangido, sempre olhava para um lugar inexistente, como
alguém que busca em algum ponto as lembranças adormecidas no universo
da memória. Pouco falou do passado. Ressaltou que veio muito cedo para
o Acre, afirmava não se lembrar de detalhes da viagem, pois era criança na
época.
Afirmou que seu pai não era proprietário das ter-
ras no Paraná, fato que possibilitou delimitar o grupo de deslocados. Assim
percebemos na quinta entrevista que as famílias com as quais mantínhamos
contatos não eram os donos da terra onde viviam no Paraná. A família de
Cebolinha deslocou-se para a Amazônia em busca de prosperidade através da
posse de terra. Buscávamos detalhes da viagem, queríamos “resgatar” os “fa-
tos acontecidos”: as indenizações de Itaipu, as negociações e as práticas que
os envolviam no espaço onde viviam. O entrevistado não revelou com deta-
lhes as experiências vividas, falou muito mais da sua vida no tempo presente.
Para ele, sua realidade presente se sobrepõe às lembranças, contou pouco da
infância no Acre e pouco da viagem e praticamente nada do que viveu em
sua terra natal, apesar de situar geograficamente a região onde nasceu e onde
viveu até os oito anos.
É perceptível o sentimento de ruptura com o espaço,
a separação umbilical e a situação de obrigação em vir. A família de Cebolinha
seguiu o rumo que os dirigentes de Itaipu indicaram, não houve uma vontade

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espontânea, uma decisão voluntária para mudar. Portanto, por motivos e cir-
cunstâncias, muitas famílias como a de Cebolinha deixaram seus espaços com
significados construídos e foram arrancados, deslocados, trazendo apenas na
memória a lembrança de experiências vividas no Paraná.
Veio não, veio não! Só veio eu mais minha ...[não concluiu
a palavra que possibilita ser família] O pessoal de lá, os
outro ficaro tudo lá, as parentada nossa ficaro tudo lá,
só viemo nóis por causa da coisa da Itaipu. Foi feita a, o
negócio da barrage, né? Aí nois saimo de lá tarde, como,
não sei como faço dizê, fumo indenizado, né? Eles fizero
uma comunicação pras parte, né? Saimo de lá pra cá por
causa disso, num tinha onde [pausa novamente] Aí foi onde
eles dero um rumo pra nóis vim foi pra cá. Porque se nóis
quisesse vim pro Acre, porque tinha terra, tinha terra, né?
(TELLÓ, 2012).

É possível verificar nessa fala, como também nas ou-


tras entrevistas, um aspecto relevante que descortina características semelhan-
tes entre as famílias assentadas no Acre: não eram proprietários de terras
paranaenses. Com a alagação das áreas onde viviam, foram obrigados a re-
construir um novo caminho, motivo que impulsionou o deslocamento para
uma região que não conheciam e não imaginavam com clareza as diferenças
que encontrariam em diversos aspectos.
Nas narrativas orais são ressaltadas as dificuldades
tanto das estradas entre sul e norte, como também aquelas entre a colônia e a
cidade. O programa de expansão agrícola para a região amazônica estimulava
o assentamento das famílias nos PADs, mas nem todas as estradas de aces-
so estavam abertas, o que, segundo os relatos prejudicava o escoamento de
produção e o trânsito que as famílias necessitavam entre o campo e a cidade.
Na fala de Cebolinha fica marcada a falta de estradas o que representa o des-
conforto que sentiam.
Aqui naquela época era muito ruim, né? Agora, miorô
mais, mais né? Num tinha asfalto, num tinha nada, agora tá
cada veis mais milhor. Vige naquela época era muito ruim,
vige, nóis pra vim na cidade aqui era uma luta, né? Agora

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tá miorando mais, né? Cada veis mais...Em vista do que
era, né? Aquela veis, pra Manoel Urbano mesmo num tinha
asfalto, num tinha pra Rio Branco, e, agora tem, tem tudo
(TELLÓ, 2012).

Ao refletir sobre as condições estruturais dos assen-


tamentos descritas nas narrativas, encontramos a recorrente referência feita
aos ramais, que simbolizam as maiores dificuldades enfrentadas logo na che-
gada. Tanto na entrevista feita com Cebolinha, como em outras, o tempo de
inverno amazônico e as condições dos ramais foram os maiores desafios no
novo espaço. Entretanto, essas pessoas tiveram de encontrar caminhos para o
enfrentamento e adaptação à nova situação apresentada. Cebolinha, em outra
situação da entrevista destaca que “só difícil é só o ramal, só o Ramal 16, ir
lá que é difícil , né? As veis a lama dá no meio da perna , lá no inverno, mais
a gente, gente vai e vence, é só no inverno mesmo aí melhora de novo, é as-
sim”. Após trinta anos morando no mesmo assentamento, as dificuldades de
locomoção tornaram-se rotineiras durante o tempo chuvoso, hoje Cebolinha
sabe que com o verão o “ir” e “vir” deixa de ser um obstáculo.
Refletindo sobre o “fazer-se sujeito do jeito do lugar
chegado”, Jones Dari Goettert observou que a produção de representações
sobre os espaços se dá pelas experiências que acontecem nas relações sociais,
sendo que “a representação sobre os lugares do passado e do presente se dá,
em especial, sobre a vida neles transcorrida” (GOETTERT, 2008, p.169).
Essa percepção nos levou a ter outro olhar para as narrativas/relatos de es-
paço que mencionam a questão da falta de ramais e outras vias de acesso e
escoamento de produtos.
Na fala de Cebolinha é possível verificar vários signifi-
cados que manifestam os sentimentos e as dificuldades vividas não só por ele,
mas também por outras famílias de deslocados. Embora haja sinais de cansa-
ço e fastio de anos enfrentando o mesmo problema, apresenta também uma
força além do que o corpo possibilita, uma batalha que tem como objetivo
garantir não apenas uma colônia para trabalhar, mas também de sentir o seu
pertencimento ao lugar. Uma luta cotidiana que aproxima, fixa e enraíza esse

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trabalhador rural ao espaço, que o faz se identificar através de suas vivências
e labutas.
Quando nas entrevistas a situação precária dos ramais
e estradas torna-se recorrente, há sempre uma comparação entre presente e
passado como na fala “Agora tá miorando mais, né? Cada veis mais”. Esse
aspecto representa a aceitação das melhorias das estradas se contrapondo ao
sentimento de desaprovação pelas condições piores quando chegaram aos
ramais. Todo esse resgate torna-se possível porque a memória possibilita, e,
ao mesmo tempo as lembranças vão tomando significados a partir do que
há no presente para ser observado. Cada fala, que menciona as melhorias
dos ramais, representa também que aquele deslocado que chegou em 1982
sente-se parte do espaço onde está hoje, ele faz e fez parte do processo de
pertencimento, sente-se como testemunha de um passado e isso o faz sentir-
se da terra.
De certa forma lembrar produz outro significado pela
ação que o tempo presente desempenha. As experiências do vivido conferem
outro significado à memória, transformam-na e, ao mesmo tempo, dão o tom
de alívio por terem superado as dificuldades que o deslocamento proporcio-
nou. Ao ouvir as falas dos entrevistados e seus enfrentamentos para adapta-
ção ao novo contexto sócio-histórico e geográfico que passaram a vivenciar,
foi possível perceber que há em suas histórias a experiência do “fazer-se”, no
sentido thompsoniano, após o rompimento físico e emocional com o lugar
de origem.
Cada experiência narrada tem seu significado singu-
lar. Embora as pessoas tenham participado de experiências muito parecidas,
ou que tenham vindo por situações e razões semelhantes, as narrativas se
diferem. As experiências vividas depois de chegaram à Amazônia acreana,
ao mesmo tempo em que se aproximam, também se distanciam em alguns
aspectos, pois cada deslocado assimilou para si os processos mais significati-
vos e, no momento da narração, são esses processos que vem à tona em suas
narrativas.

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Dona Elza, matriarca da família, deixou claro em seus
traços e dizeres, a força que teve de ter para superar as questões adversas que
o momento exigia. Seu marido era doente, ela precisava tomar decisões para
garantir o sustento da família. Para Dona Elza a situação dos ramais durante o
inverno dificultava sua locomoção quando um filho adoecia ou quando tinha
de buscar remédios para o marido, mas em suas lembranças a maior dificulda-
de foi a doença do marido aliada à situação dos ramais.
O mais difícil aqui que eu encontrei, primeiro foi a doença
do meu esposo, depois os ramal pra andá. Num tinha
asfalto. Eu, muitas vez eu vinha de lá de pé, lá da colonha
até aqui. Era vinte quilômetros, vinte quilômetros, lá da
colonha até a BR, agora é 3, é 23km. Eu vinha buscá as
coisa dele doente, né? Ele doente. Teve uma veis que eu
vim cum ele, ela era cumprida , mas era magrinha. Ela num
era gorda assim, agora que ela casô, arrumô um casamento
ficô assim. Mas quando era pequena, ela adoeceu com uma
febre e eu com medo de malária, né? Porque pra lá dava
muita malaria e eu cum medo. Aí vinhemo, vinhemo e
chegô na estrada arrumava um carro , daí um pouquinho
atolava. Deixava aquele carro, aí pegava essa minina botava
em cima do carro, descia essa menina do carro, Eu tirava
essa menina e punhava no chão, e assim foi. Cheguei aqui.
Cheguei aqui e fumo na SUCAM. A SUCAM ainda era lá
em cima e agora nem sei onde que é a SUCAM. Aí levei ela
lá, aí fez a lâmina e num deu malária. Aí levei no hospital,
consultaro, passaro um remédio, ela deu uma melhorada. Aí
falei “vamo embora Vera”. E o pai dela doente lá. Minina,
aí foi difícil mesmo! ! Peguemo uma carona cum caminhão,
aí cheguemo no caminho cabô a gasolina, ali na fazenda
Brasil. Foram atrás de uma gasolina por lá, a gente andô
mais um pedacinho. Aí andando a pé e essa menina com
uma canseira, cansada, eu fazia que num tava vendo que
ela tava ruim, pra vê se ela andava. Andei um pedaço bom
assim, ela vinha atrás de mim. Aí o outro cara que vinha
com nóis disse – Dona sua menina tá passando mal! – Aí eu
falei que não é porque ela tá cansada. Peguei água no meio
da estrada assim naquela vala, eu pensei será que faz mal
dá essa água pra ela? Água bem clarinha, mas uma fundura
assim, ó! Poção onde os carro passava, aí lavei o copo que

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ia levando, eu tinha emprestado pra eles botá gasolina no
carro. Aí eu peguei lavei aquele copo bem lavadinho e banei
aquela água, tirei a água e dei pra ela bebê. Ela bebeu e nóis
fomo, quando nóis fomo e chegô no ramal, aí é mais difícil!
Duente, subi aquela ladeira num era fácil! Mas aí foi, eu
pensava assim sozinha: eu vô andá na frente que ela vendo
eu andá ela anima e anda, né? Aí eu andava, se caí eu volto
e pego. Carrego até eu guentá, né? Aí fomo, quando nois
chego lá essa bichinha amanheceu no outro dia com os pé
dessa grossura de andá, doente e andá! (DIAS, 2012).

A distância entre a colônia e a cidade é intensificada


por Dona Elza, ela faz uma caracterização colocando em evidência o percur-
so de vários quilômetros andados, que se multiplicavam durante o tempo de
inverno amazônico, o que representa a dificuldade pela qual passava. A doen-
ça do marido e a suspeita de malária da filha fundem-se com os obstáculos
que significavam as estradas sem estrutura. Elencando os níveis de dificulda-
des, ela categoriza o que vinha primeiro, ou seja, o ramal sem condições de
tráfego, que não se sobrepunha diante da possibilidade de perda do marido
ou da filha. Em sua reflexão, tais obstáculos fundiam-se.
Ouvindo Dona Elza narrar sua experiência, contando
todos os detalhes, enumerando as dificuldades e as possibilidades de enfrenta-
mento da situação, fica perceptível que a realidade necessitava de táticas para
ultrapassar as dificuldades, diante das adversidades ela conseguia superar os
obstáculos que na narrativa parecem intransponíveis. A localização da colônia
de Dona Elza a empurrava em dificuldades de locomoção durante o período
de chuva, mesmo assim, essa senhora que hoje fica na cidade no período de
inverno amazônico, fala da colônia com saudosismo “Aí então, né? A gente
vai ficando velho, né? Aí num tem mais jeito, tem que ficá aqui só com a
saudade!”, isso demonstra o sentimento de pertencimento que ela tem com a
colônia, a vida no meio rural faz falta para o seu cotidiano, a situação do ramal
não rompe os laços que ela tem com o apego à colônia. Um novo desloca-
mento se instala na vida de Dona Elza.
Sempre procurando formas e alternativas para sair

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das situações adversas e manter o sustento e união da família, essa trabalha-
dora conseguiu um fomento para a construção da casa na colônia, entretanto,
o recurso veio muito depois, após dois anos, quando ela já havia improvisado
a construção de uma casa de madeira. Ela não usou o dinheiro para reformar
ou construir uma nova casa, porém foi buscar uma de suas filhas que havia
ficado no Estado de Rondônia e que estava há dois anos sem dar notícias.
Aí vim pra cá, aí quando passo, daí dois ano, nóis tava nessa
casinha, aí saiu o dinheiro da casa. Eu pensei: Ah! Eu já fiz
essa casinha, tá bom demais! Ai falei Adilson, nisso a mãe
do Adriano escreveu uma carta pra mim, fazia dois ano que
eu num sabia noticia dela. Ela escreveu uma carta. Aí eu
falei: olha eu vô pegá esse dinheiro, sabe o que eu vou fazê,
eu vou procurá a Zinha. Se eu achá bem , se eu num acha
eu volto. Aí falei com esse filho meu que mora lá. Ele falou:
mãe é bom pra senhora ir mesmo, o bom é que a senhora
passeia, a senhora distrai um pouco, outro a senhora vê ela
(DIAS 2012).

O procedimento de Dona Elza configurou-se em for-


ma de enfrentamento da situação precária, era necessário criar alternativas
que garantissem a união da família. Com essa opção, Dona Elza mostrou-
se definida e decidida, tomando a iniciativa de usar um recurso do governo
para resolver seus problemas familiares. Em uma visão simplista é possível
contestá-la pela decisão, entretanto, há uma coerência na atitude devido à
situação que se apresentava no momento. Para essa senhora, cuidar da família
transcendia as leis impostas pelos créditos ofertados através de incentivos da
política agrícola.
Outra situação relatada por Dona Elza menciona um
financiamento que ela conseguiu para plantar pupunha, em suas palavras foi
possível ver a determinação que a movia, pois a terra representava a pros-
peridade, quando a vizinha a indagou dizendo “Dona Elza, a senhora tem
coragem de pegar um financiamento de 12 mil reais?”, a resposta foi clara
e demonstrou o quanto ela acreditava no seu trabalho afirmando “eu tenho,
porque eu tenho a terra, eles tão me dando, e, com fé em Deus eu vô pagá!”

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Segundo os relatos de Dona Elza quando o dinheiro
chegou, ela resolveu comprar bezerros e vacas, o que possibilitou o paga-
mento da dívida, entretanto, o recurso era destinado ao plantio de pupunha.
Ela conta que em uma reunião com outros produtores, era a única que estava
conseguindo pagar as dívidas apesar de não seguir exatamente as regras esta-
belecidas pelo sistema de financiamento. Depois, por uma política do gover-
no, conseguiu pagar menos da metade do que devia. Hoje ela possui pouco
gado, todos estão pagos e ela se sente tranquila, tem a colônia e uma casa na
cidade de Sena Madureira.
O significado da colônia para Dona Elza é de prospe-
ridade, embora ela seja aposentada. Ainda mantém a terra que seu filho cuida,
mas seu desejo é de ficar permanentemente por lá, entretanto, com a idade
avançada, a viuvez e as dificuldades de locomoção, é mais coerente ficar no
meio urbano durante o inverno amazônico.
Até hoje quando eu vou pra lá parece que ele tem que
chegá! [refere-se ao marido] Toda tarde parece que ele vem!
Foi duro! Aqui num foi tanto, a casinha num foi tanto que
eu dormia sozinha! Mas lá, até hoje é difícil. Mas num vim
pra cá por causa disso aí. Eu num vim pra cá por causa que
ele morreu não, eu vim pra cá por causa da estrada. Igual
eu tava contando pra voceis. Mas parece assim, quando vai
dando uma tarde lá, parece que ele vinha do roçado, né? E
aí tô aí! Quando eles fala pra mim casá, eu tenho vontade
de dá uma peia ne quem falá! (DIAS, 2012).

Dona Elza também vê os ramais encontrados nos


assentamentos logo que chegou como um dos obstáculos que ela teve de
transpor, e, hoje se sente empurrada para o meio urbano, pois não possui a
mesma disposição física para se locomover durante o inverno. Surge uma re-
lação plural de Dona Elza que permanece como deslocada, entre o meio rural
e urbano, ela continuamente se depara com o sentimento de pertencimento e
não pertencimento.
No caso de Dona Olívia, outra deslocada que também

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se mostra como alicerce da família, as experiências com a colônia são apresen-
tadas de forma diferente. A família se dedicou à agricultura, não fez financia-
mento para comprar gado, ela diz: “Meu marido nunca fez financiamento, ele
tinha muito medo de não conseguir pagá.” A família tentou por quase trinta
anos viver do plantio, mas as dificuldades de locomoção por causa do ramal, a
exaustão causada pelo cansaço físico acumulado durante todos esses anos, os
levaram a decidir pela venda da terra para vizinhos fazendeiros.
Hoje Dona Olívia e seu Toninho moram na cidade de
Sena Madureira, vivendo em uma casa simples, mas não pagam aluguel. Os
dois são aposentados, o que garante uma vida regrada, mas certa. Uma das
filhas e seus dois netos moram na mesma casa, além do filho caçula do casal.
Dona Olívia consegue circular na política de assistência social do governo,
com o “benefício” de uma “Bolsa Família”. “Benefício” esse que também
está conseguindo que a filha. A família considera que morar na cidade só
trouxe prosperidade, pois a vida na colônia era muito difícil. A locomoção
nos ramais, em tempo de chuva, era um obstáculo que o avançar da idade e a
perda de força física tornavam difíceis de superar.
O deslocamento para a cidade das duas entrevistadas
se deu por fatores semelhantes, representa a busca pelo melhor espaço para
viver na velhice, entretanto, o significado que a colônia possui para cada uma
se dá de forma diferente. Dona Elza mostra amor pelo meio rural e sente
saudades, mas pela idade e solidão da viuvez acha mais sensato seguir os
conselhos dos filhos e morar no meio urbano. Dona Olívia não sente vonta-
de de voltar para a colônia, segundo ela na cidade as coisas são mais fáceis e
confortáveis, ressalta nessa decisão de viver no meio urbano, a questão de não
ter mais idade para enfrentar a lama nos ramais. Nesse caso cada experiência
mostra-se singular e o desfecho no tempo presente liga-se a tais vivências que
cada uma das entrevistadas passou.
As pressões econômicas definiram o “ir” e “vir” das
famílias atingidas pela alagação, direcionaram o caminho a seguir, e, continua-
ram definindo também no novo espaço que encontraram. As decisões to-
madas para praticar o espaço que encontraram são vistas a partir da narrativa

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oral, e com as análises há além de um olhar que apenas registra, pois o diálogo
com relatos orais ajuda a tecer uma rede de significações que pode transcender
o econômico e agrupar questões subjetivas As histórias de vida possibilitam
enxergar as relações individuais e coletivas no sentido assumir uma posição
política e encerrar no texto ora apresentado as várias representações daquilo
que os diferentes sujeitos dessas histórias fazem diante do vivido.
Encerramos com Guimarães Rosa (2006) para quem
“de cada vivimento que eu real tive, de alegria forte ou pesar, cada vez daquela
hoje vejo que eu era diferente pessoa”. As pessoas que passaram pela expe-
riência do deslocamento para a Amazônia acreana além de terem muito para
contar envolvendo alegrias, tristezas, desafios e lutas, passaram também por
transformações. As experiências às quais foram submetidas às levaram a uma
visão de passado com outros significados, o que é possível ser visto quando
nos debruçamos sobre suas formas de interpretar e significar suas trajetórias
a partir de narrativas orais no tempo presente.
From acrean amazon: narratives of the displaced
workers from itaipu – readings from the “present
time”

ABSTRACT: This article is about the journey of men and women displaced into
Acrean Amazon after the land expropriation occurred in the municipalities around
Lake Itaipu, at the end of the 1970s. The context is that of the construction of the
Itaipu Hydroelectric Dam, which lead to the inundation and confiscation of rural
properties and the deportation of the residents. This work proposes an approach
centred on the perception of cultural practices and displacements as rooted in time
and space through oral narratives. In addition to direct testimonies, this work used
as evidence newspapers from the time, which often idealised the construction of the
dam and attempted to “record” the conflicts with the people who were expropriated,
alongside with the official propaganda on the “state-directed colonisation” of the
Amazon region.
KEYWORDS: Itaipu. Acrean Amazon. Oral Narratives. Modernisation. Rural
Workers.

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TELLÓ, C. A. Entrevista realizada em 16/02/2012
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Data de recebimento: 11/8/2014


Data de aceite: 25/9/2014

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Sob o signo de aquário: o patrimônio marajoara em
tempos de Belle Époque

Josiane Martins Melo1


Agenor Sarraf Pacheco2
RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar representações de patrimônios
culturais da Amazônia Marajoara no período do boom da economia da borracha (1870
a 1912), especialmente, no que tange às edificações e mudanças nos espaços urbanos
de municípios do Marajó dos Campos e do Marajó das Florestas. A questão proble-
matizadora central procurou entender que patrimônios públicos foram produzidos
no famoso período gomífero da Amazônia em cidades marajoaras. Para alcançar o
entendimento dessa questão, a pesquisa procurou dialogar com dois grupos de mate-
riais: a) estudiosos da temática da econômica da borracha, do patrimônio, da memória
e da identidade; b) narrativas de cronistas, viajantes e jornalistas que registraram in-
formações sobre o cotidiano urbano marajoara, com destaque para edificações, usos,
sociabilidades e tensões, nas últimas décadas do século XIX e duas primeiras do
século XX.

PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio. Belle Époque. Amazônia Marajoara.

Primeiras Palavras
Este estudo tem como objetivo principal investigar
representações que envolvem noções de patrimônio na Amazônia Marajoara
no período de 1870-1920, o qual cobre o chamado tempo da Belle Époque na
Amazônia. Concomitante a isso, pretende verificar produções e recepções
de sentidos atribuídos ao patrimônio na região marajoara, no que tange às
edificações e mudanças nos espaços urbanos de municípios do Marajó dos
Campos e do Marajó das Florestas.
Dada a importância desse período bellepoqueano
para a Amazônia, as questões que nortearam a investigação foram: a) Quais
1
  Bacharelado em Museologia, Universidade Federal do Pará.
2
  Doutor em História Social, Professor da Universidade Federal do Pará.

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percepções sobre patrimônio emergem de documentos escritos acerca de
municípios marajoaras? b) Que patrimônios públicos foram produzidos no
famoso período gomífero em cidades marajoaras? e c) Quais alterações sofre-
ram espaços urbanos marajoaras em função das altas cifras de toneladas de
goma elástica que saíram da região, especialmente do Marajó das Florestas?
Com o intuito de mapear tais questões, este trabalho mostra como podemos
operar diante das relações de poder, negociações e resistências dentro das
questões patrimoniais.
Para responder as questões trabalhou-se na perspec-
tiva metodológica da cartografia, conforme vem sendo apreendida por Pa-
checo (2013, p. 04) que a entende como um campo “não-linear, processual,
dinâmico, rizomático, múltiplo”. Para se estudar realidades histórico-sociais
e socioculturais na esteira de uma “cartografia de memórias”, é necessário
apreender “a construção de conhecimentos sem dualidades, valorizando suas
intersecções e interculturalidades.”
Com base na perspectiva interdisciplinar que estabe-
lece diálogo entre museologia, história e antropologia, a investigação centrou
esforços no mapeamento, leitura e interpretação de escritores clássicos que
descreveram episódios da história da Amazônia, desde o período colonial,
narrativas de viajantes e, especialmente, o Jornal do Pará de 1870 a 1878 para
captar a dinâmica geo-histórica do arquipélago de Marajó e construções urba-
nas em tempos de Belle Époque. A base teórico-historiográfica assenta-se em
autores que discutem em suas pesquisas categorias como patrimônio, memó-
ria, identidade e representação, com destaque para escritos de Maria Cecília de
Londres Fonseca, Michael Pollak, Françoise Choay e Roger Chartier.
No levantamento sobre o estado da arte em torno da
Belle Époque, visitaram-se obras de alguns autores que discutem a economia
da borracha na Amazônia. Assim, em A borracha na Amazônia: expansão e de-
cadência (1850-1920), Barbara Weinstein (1996) revelou dados importantes da
produção da borracha nos principais municípios no Pará, dentre eles, Afuá,
Breves, Gurupá e Melgaço, todos localizados em parte do território mara-
joara que Pacheco (2006) denomina de Marajó das Florestas. Nas estatísticas

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organizadas pela pesquisadora, verifica-se uma grande produção da borracha
nestes municípios, como Breves, que se destaca como o maior produtor entre
1900 a 1906 com os valores de 1.203.398 a 1.547.374 quilos. Por isso, pergun-
ta-se: onde a riqueza gerada por essa extração e exportação foi aplicada? Ela
ajudou a construir novas arquiteturas urbanas? Junto à procura desse entendi-
mento, busca-se saber o que ganha caráter de patrimônio na lógica da gestão
pública local e dos moradores.
O período da chamada Belle Époque na Amazônia é
visto pela ótica de uma memória construída pelo fator de modernização e
ideário de progresso pelo qual passaram algumas cidades da região Amazô-
nica, como Belém e Manaus. Chama-se atenção para a escrita, os grandes
feitos e ao grande processo de urbanização devido o período da Belle Épo-
que evidenciar riqueza e prosperidade econômica, social, funcional, política
e cultural. Essa perspectiva histórica de progresso, riqueza e modernização
da Amazônia (em Belém) é analisada na obra Belém: riquezas produzindo a Belle
Époque, de Maria de Nazaré Sarges. Também se pode ver em Memórias do
“Velho Intendente” Antônio Lemos (1969-1973), como Maria de Nazaré Sarges
irá reconstituir o processo de construção da imagem de Antônio Lemos na
cidade de Belém, sem perder de vista o “outro lado” da Belle Époque, o lado
dos sujeitos silenciados. Mas, o período da chamada Belle Époque na Amazônia
não aconteceu apenas em Belém ou Manaus, reverberou-se, de maneiras dife-
rentes, em outras partes da Amazônia e do mundo. Em A ilusão do Fausto de
Edinea Mascarenhas Dias, uma abordagem crítica sobre a representação do
fausto da Belle Époque, a autora trabalhou as contradições no cotidiano da ci-
dade e procurou desmitificar a imagem construída em torno de uma Manaus
da prosperidade eterna da bela época. Em Migrantes Cearenses no Pará: faces da
sobrevivência (1889-1916), Franciane Gama Lacerda mostra experiências sociais
dos cearenses em terras paraenses. Visibilizando outras vozes, a autora mostra
como se processa a migração de homens e mulheres cearenses para o Pará no
período da borracha e as dificuldades sofridas pelos migrantes.
A partir de artigos publicados na Revista Estudos
Amazônicos do Programa de Pós-Graduação em História Social da Amazô-

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nia encontramos: Tomas T. Orum em As mulheres das portas abertas: judias no
submundo da Belle Époque amazônica, 1890-1920, que discute acerca das “mulhe-
res que viviam de portas abertas” na condição de prostitutas europeias atraí-
das pela “prosperidade amazônica” no período da Belle Époque na Amazônia,
no jogo entre as cidades de Belém e Manaus; Felipe Tavares Moraes em O
campo educacional e o campo político no primeiro governo de Lauro Sodré (1891-1897),
que mostra a atuação de Lauro Sodré em relação aos ideais republicanos; Ipo-
jucan Dias Campos, no texto Imprensa, divórcio e casamento civil em Belém (1890-
1900), o qual observa, através de periódicos do século XIX, as relações sobre
o casamento civil e divórcio no cenário bellepoqueano de Belém.
Com base nesse breve retrato de escrita da história
sobre o período da Belle Époque, nota-se convergência entre as realidades urba-
nas de Belém e Manaus. Sabe-se que o período da Belle Époque na Amazônia
construiu uma memória da modernização, higienização e ideário de progres-
so. Aldrin Moura Figueiredo, duvidando dessas mudanças culturais totais, em
A Cidade dos Encantados, mostra quão contraditória era essa representação,
uma vez que não somente a cidade de Belém seguia embrenhada em antigas
tradições, como a arte de curar corpos e espíritos com saberes da medici-
na tradicional sob a orientação e trabalhos de incorporação de pajés, mas
também os próprios agentes da modernização e construção do patrimônio
bellepoquiano vez ou outra eram surpreendidos recorrendo às orientações
daqueles guias da floresta que habitavam a Petit Francesa da Amazônia.
Com isso, não se pretende negar as reais mudanças
provocadas na Belém antes de 1870 a 1920, como o processo de urbaniza-
ção intenso no centro da cidade. Igualmente, não se duvida de uma vida de
riqueza e prosperidade econômica, social, funcional, política e cultural, espe-
cialmente para elites da borracha. Pensando o caráter e importância de patri-
mônios edificados em cidades amazônicas, a escolha desses espaços “monu-
mentalizados”, como Belém, traz à tona a escrita de um passado presente em
evidências históricas na construção de prédios, igrejas, coretos, praças, assim
como produção de documentos/monumentos (LE GOFF, 1990).

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O presente estudo é resultado do cruzamento entre
documentos escritos acerca da história, cotidiano e patrimônio marajoara
com aportes teóricos dos Estudos Culturais e História Cultural. O uso das
fontes empíricas orienta-se por uma perspectiva crítica, adotando-se “nor-
mas e valores com quais critica textos, produções e condições que promovam
opressão e dominação” (KELLNER, 2001, p. 125). Usa-se também o do-
cumento enquanto algo negociado entre seu conteúdo e o seu pesquisador.
Jean Meyriat dirá que “o documento não é um dado, mas o produto de uma
vontade, aquela de informar ou se informar, a segunda menos sendo sempre
necessário” (ORTEGA; LARA, 2010). De acordo com a Escola dos Annales
também se pode encontrar novas concordâncias sobre a ideia de documento:
“O historiador não é mais um homem capaz de construir um Império. Nem
usa mais o paraíso de uma história global. Ele chega a circular em torno das
racionalizações conquistadas. Ele trabalha nas margens” (CERTEAU apud
LUCA, 2005, p. 112).
Durante toda a pesquisa foram analisados relatórios
do Museu Paraense Emílio Goeldi, relatórios de viajantes em expedição cien-
tífica pela Amazônia no período imperial e republicano e principalmente ma-
térias do Jornal do Pará, de 1870 a 1878. A análise dos dados levantados não
adotou a concepção dual de verdadeiro x falso, mas tentou escavar os sentidos
que os documentos produziam ao noticiarem uma temática em determinado
tempo e espaço. Se os documentos podem também ser lidos enquanto espaço
de ficção, é preciso saber que “ficção não se opõe à verdade: designa as figuras
que modelamos, para darmos conta da complexidade e vastidão infinitas do
mundo” (MENESES, 2000, p. 31). Portanto, a pesquisa documental enquan-
to produtora de investigação e síntese das ciências, “propõe-se a produzir
novos conhecimentos, criar novas formas de compreender os fenômenos e
de conhecer a forma como estes têm sido desenvolvidos” (SÁ-SILVA; AL-
MEIDA; GUIDANI, 2009, p. 14).
No que tange ao pensamento dos principais intelec-
tuais que ajudaram a apreender aspectos da realidade patrimonial em estu-
do, dialogou-se com Maria Cecília Londres Fonseca (2009). A autora, acom-

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panhando a trajetória de construção do patrimônio histórico e artístico no
Brasil, demonstrou em sua pesquisa como a trajetória da política federal de
preservação do patrimônio aconteceu no Brasil e como a ideia de patrimônio
histórico e artístico nacional está vinculada a ideia de uma configuração de
identidade brasileira.
Nesse mesmo sentido, mas analisando a realidade pa-
trimonial da Europa ocidental desde o século XVIII, Françoise Choay (2006)
discute o a constituição da ideia de patrimônio ocidental, seus valores, seu
culto e também demonstra a tradição de pensar o patrimônio e a memória
ocidentais. Outros intelectuais brasileiros se debruçaram sobre o patrimônio
nacional. Gilberto Velho (2006) dialoga sobre a dinâmica e os conflitos por
quais passam o patrimônio cultural afro-brasileiro, Ricardo Pacheco (2010)
mostrará a importância de dispor sobre o patrimônio enquanto dispositivos
de educação (não tradicional) da memória. Os estudos do patrimônio convi-
dam ao diálogo com a temática da identidade e da memória e suas formas de
esquecimento e silêncio.
Michael Pollak (1989) partindo de uma perspectiva
construtivista na análise de memórias subterrâneas ressalta sua importância
na compreensão da história de minorias excluídas e marginalizadas pela histó-
ria oficial. Para o conceito de identidade cultural, Stuart Hall (2006) partindo
de uma análise sobre a identidade cultural na modernidade tardia irá avaliar
a chamada “crise de identidade” na pós-modernidade. Donizete Rodrigues
(2012) também colocará questões da identidade cultural em seu trabalho e,
com a perspectiva antropológica, discutirá o que é memória social, patrimô-
nio cultural e identidade e a relação entre os mesmos.
Outros estudiosos da memória e história como Jac-
ques Le Goff (2003), que historiciza sua presença no campo das ciências hu-
manas. Helenice Rodrigues da Silva (2002) apresenta uma análise dos meca-
nismos das apropriações dos tempos históricos, os processos de construção
e de transmissão de uma memória social e a relação entre memória e história
por via das comemorações nacionais. O trabalho de Helenice dialoga com o

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patrimônio como representação de uma memória coletiva da nação em torno
de uma legitimidade. (também abordado por Maria Cecília Londres Fonseca).
Já Paolo Rossi (2010), semelhante a outros intelectuais da memória, aponta a
indissociabilidade entre lembrar e esquecer. Sobre representação, Roger Char-
tier propõe uma reflexão acerca dos sentidos da apropriação que diferentes
grupos sociais fazem das práticas sociais.
Patrimônio e Memória
Dentro da dinâmica cultural e memorial das noções
de patrimônio dentro e fora do Brasil, o patrimônio é hoje, também, fruto de
um legado de perspectiva nacionalista moderna. A noção moderna de patri-
mônio surge no século XVIII caracterizada, de acordo com Fonseca (2009, p.
58), “pelo conjunto de bens de valor cultural que passaram a ser propriedade
da nação, ou seja, do conjunto de todos os cidadãos.” Ela é fruto do atributo
do valor de nacionalidade dado pela intervenção do Estado e “intelectuais de
cultura”. Nesse sentido, aquilo que se chama de patrimônio nacional pode ser
conferido enquanto uma construção simbólica e seletiva do Estado na esco-
lha de bens que representem a história da nação. De acordo com Fonseca
(2009, p. 58) existiram alguns fatores que fizeram o patrimônio se erguer en-
quanto propriedade da nação no século XVIII. São eles: atos de vandalismo,
ideias iluministas e derrubada do poder do clero e da Igreja que não poderiam
mais administrar seus bens. Assim a
noção de patrimônio é, portanto, datada, produzida, assim
como a ideia de nação, no final do século XVIII, durante a
revolução francesa, e foi procedida, na civilização ocidental,
pela autonomização das noções de arte e de história. O
histórico e o artístico assumem, nesse caso, uma dimensão
instrumental, e passam a ser utilizados na construção de
uma representação de nação (FONSECA, 2009, p. 37).

Para que as políticas de preservação se façam cumprir,


serão impostos valores ao patrimônio e esses ditarão quais e porque deverão
ser preservados. O atributo do valor nacional será o propulsor e em seguida
surgem valores como o cognitivo, econômico, artístico, histórico, de novida-

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de, de uso, entre outros. Mas, os valores principais que irão motivar as políti-
cas de preservação são os valores históricos e artísticos.
Fonseca (2009, p. 65) aponta que as ideias concebidas
para história e para a arte no renascimento eram somáticas, mas a noção de
história, diferentemente da arte, não exigia a existência de um cânone históri-
co, ela seguia a afirmação de um valor específico de cada período. Poder-se-ia
dizer que o valor histórico possui um ponto de vista que motivaria as coisas a
terem seus valores a seus respectivos tempos e não referenciados apenas em
fator de tempos antigos canonizados.
Em análise das concepções fundamentais da noção
de patrimônio no Brasil, mais precisamente a partir da década de 20, grande
parte das cidades do período colonial, seus prédios, praças e tudo que venha
a ser declarado vestígio do passado perante aos valores históricos e artísticos,
irão ser objeto das políticas preservacionistas do Estado. É com a criação do
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) em 1936,
juntamente com os intelectuais modernistas, que irão se instituir as imagens
referentes à constituição do patrimônio. Dentro do programa de trabalho do
SPHAN existia um padrão quando se tratava da questão do tombamento,
pois a prioridade dava-se seguindo a ideia de que “a civilização estava nos paí-
ses desenvolvidos da Europa e da América do Norte, e que a única maneira de
o Brasil civilizar-se era imitar esses modelos” (FONSECA, 2009, 107).
É somente no século XX, com a ampliação da noção
de patrimônio, que começarão a ser introduzidos novos personagens patri-
moniais esquecidos pela história factual. Também, é em 1945 que se começa
a pensar, nas ex-colônias, o patrimônio como apropriação da noção europeia
(FONSECA, 2005), portanto, esse trabalho também pode ser considerado
um exercício crítico sobre patrimônios esquecidos no vigente século XXI.
Neste artigo, insiste-se na ideia de que o patrimônio
histórico, além ser um bem destinado à coletividade, é um evento que mon-
ta e remonta memórias e expressões de identidades. De acordo com Pollak
(1992, p. 202), o patrimônio é um lugar de memória, e, no caso do Estado,

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este irá enquadrá-lo a uma memória para que a nação possa “manter a coesão
interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum, em
que se inclui o território, eis as duas funções essenciais da memória comum.
Isso significa fornecer um quadro de referência e de pontos de referência”
(POLLAK, 1989, p. 09).
Dentro da ideia de memória enquadrada e pelo imagi-
nário que se cria, Stuart Hall (2003) observa que a relação identidade e nação,
enquanto representação partilhada, sempre é mantida com base em represen-
tações de acontecimentos gloriosos, primordial para uma fundação histórica e
um povo unificado, pois “não importa quão diferentes seus membros possam
ser em termos de classe, gênero ou raça, uma cultura nacional busca unificá
-los numa identidade cultural, para representá-los todos como pertencendo à
mesma e grande família nacional” (HALL, 1992, p. 50).
É diante desse caráter de unificação da nação que Hall
sustenta a comunidade nacional como algo imaginado, pois a maioria das na-
ções se constitui de misturas culturais, raciais, de gêneros e classes. Portanto,
o patrimônio nacional pode também ser lido sob uma perspectiva imaginada,
pois querendo representar uma identidade nacional, põe-se a representar uma
nação que não existe enquanto uma única identidade cultural, e sim enquanto
várias identificações culturais. Logo, a escolha de patrimônios que represen-
tem uma memória nacional universal irá coexistir com conflitos de gênero,
de raça, econômicos, sociais e culturais, pois as memórias, além de se cons-
tituírem enquanto lembrança, também são reais em fator de esquecimentos.
Logo, ao selecionar patrimônios em fator de outros, coloca-se em cheque o
caráter da memória e a sua função de lembrar e esquecer: ao selecionar um,
esquece-se do outro. Lembrar e esquecer são ações biológicas, sociais e cultu-
rais que nos dão a capacidade de saber quem somos e pontuar nossas atitudes
no dia-a-dia.
A partir da prática de lembrar o esquecido da história
do patrimônio amazônico que se apresenta o fenômeno do patrimônio mara-
joara bellepoqueano, pois, “se não se deve esquecer é também e, sobretudo,

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em razão da necessidade de se honrar as vítimas da violência histórica” (SIL-
VA, 2002, p. 437).
Em busca dos sentidos da memória, “ideia imperativa
de um ‘dever de memória’ e de uma “divida” em relação às vítimas da história,
[...]” (RICOEUR apud SILVA, 2002, p. 436) é que será analisado o Marajó
na conjuntura de grande produtor gomífero, esquecido em sua relevância pa-
trimonial. Em detrimento da nova maneira de escrever a história, coloca-se
a importância ética no trato da produção da escrita, pois o “apagar” não tem
a ver só com a possibilidade de rever a transitoriedade [...]. Apagar também
tem a ver com esconder, ocultar, despistar, confundir os vestígios, afastar da
verdade, destruir a verdade (ROSSI, p. 32).
Assim, parte-se da necessidade de estudar o patrimô-
nio pela ótica do Estado, mas também, perceber no discurso oficial, as apro-
priações e usos do patrimônio que não necessariamente seguem a lógica da
elite ou dos representantes do poder. O importante é perceber que mesmo
através desses discursos oficiais podemos entender as ressonâncias e apro-
priações que tomam o patrimônio em vários setores da sociedade. Vale-se do
conceito de apropriação enquanto um critério que move o fenômeno da (re)
presentação e que “visa a uma história social dos usos e das interpretações, re-
feridas a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas específicas
que as produzem” (CHARTIER, 1991, p, 180).
Dentro de uma descontinuidade histórica do patrimô-
nio, pretende-se mostrar como outras comunidades, Marajó dos Campos e
Marajó das Florestas na Belle Époque, concebem uma leitura ao patrimônio,
pois, é muito importante pensar o patrimônio sob uma ótica que vá além de
uma ordem de pensamento universal, mas entendê-la na circulação de senti-
dos, significados atribuídos e as suas apreensões sociais nos discursos. Para
isso, torna-se importante pensarmos que “a leitura não é somente uma ope-
ração abstrata de intelecção: é por em jogo o corpo, é inscrição num espaço,
relação consigo e com o outro” (CHARTIER, 1991, p. 181).
É importante salientar a sintonização e (des)sintoni-
zação das ideias de patrimônio, memória e identidade. Quando um discur-

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so oficial nomeia certo monumento como patrimônio nacional e todos o
“reconhecem” enquanto tal, existe uma certa sintonia, então, o patrimônio
revela uma memória passada e fomenta uma identidade presente. Neste caso,
o patrimônio pode ser entendido enquanto um “conjunto de símbolos sacra-
lizados, no sentido religioso e ideológico, que um grupo, normalmente a elite,
política, científica, econômica e religiosa, decide preservar como património
coletivo” (RODRIGUES, 2012, p. 04).
Mas quando esse mesmo discurso permeia uma so-
ciedade que não reconhece o valor do patrimônio tal como foi plantado, as
imagens sobre o patrimônio tornam-se (des)sintonizadas da memória e con-
sequentemente da identidade desenhada, fazendo surgir o lado conflituoso
das relações com o patrimônio. Entende-se este conflito, a partir de Stuart
Hall, quando não há uma correspondência entre o momento da produção e o
da recepção das mensagens, o conflito se faz presente.
Enquanto produto cultural, o patrimônio “é uma pro-
dução. Tem sua matéria-prima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. De-
pende de um conhecimento da tradição enquanto ‘o mesmo em mutação’ e
de um conjunto efetivo de genealogias” (HALL, 2003, p. 44). As posições de
representações dependem de como o indivíduo irá motivar seu olhar diante
da dinâmica memorial e identitária que tomam os patrimônios, pois, “os in-
divíduos são ao mesmo tempo herdeiros de disposição e capazes de inventar,
de produzir novas formas de ação” (MAIGRET, 2010, p. 229). O importante
é fazer entender que, independentemente de toda ideologia aplicada ao patri-
mônio, as formas em que se dão as apropriações são diversas.
O Patrimônio Bellepoqueano dos Marajós
O patrimônio marajoara no período da Belle Époque irá
ser analisado diante da cultura marajoara descrita pelos documentos. Portan-
to, foi preciso entender como era a vida na região nesse período, quais trans-
formações ocorreram na dinâmica social dos municípios e seu patrimônio e
como a região de campos e florestas e seus municípios vivenciaram os chama-
dos tempos da economia da borracha na Amazônia. Toma-se como análise o

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conceito de cultura enquanto “o próprio material de nossas vidas diárias, as
pedras fundadoras de nossas compreensões mais corriqueiras” (PAUL WIL-
LIS, 1977, p. 185 apud NELSON, 2005, p. 14).
Tenta-se imbricar a noção de cultura, um dos ca-
minhos a serem tratados na pesquisa, aos patrimônios e suas instâncias no
imaginário. É preciso saber delimitar que, quando se fala de imaginário, es-
tá-se propondo modos diferentes de se operar com a cultura e reconstituir
a realidade. Assim, quando se discute patrimônio bellepoqueano marajoara,
procura-se evidenciar, dentro do discurso oficial e popular, quando é possível
rastrear, uma configuração de patrimônio referente a um imaginário próprio
do tempo e espaço marajoara. Por imaginário entende-se um “conjunto de
representações que exorbitam do limite colocado pelas constatações da expe-
riência e pelos encadeamentos dedutivos que estas autoriza” (PATLAGEAN,
1978, p. 391-392).
Antes de 1870, Bates, em uma das suas viagens ao in-
terior da Amazônia, descreve Gurupá enquanto “uma área pedregosa isolada,
pois o resto da região é baixo e sujeito a inundações na época das chuvas”
(BATES, 1973, p. 36). Os naturalistas e viajantes que percorreram rios e loca-
lidades amazônicas no século XIX, a exemplo de Bates, procuravam registrar
diferentes aspectos da vida na região como as questões sociais, ambientais e
econômicas. Vê-se na escrita de Emilio A. Goeldi em Maravilhas da Natureza
na Ilha do Marajó o relato sobre a grande ocupação econômica da borracha
no Marajó das Florestas: “na metade sudoeste, em que predomina a floresta
virgem, tipicamente amazônica, expande-se, sob o signo do Aquário, a colheita
da borracha” (GOELDI, 1899, p. 371, grifou nosso). É sempre importan-
te colocar o quanto a borracha foi para esses municípios um dos maiores
convergentes econômicos da época, como já foi dito anteriormente, Breves
exportou cerca de 1.547.374 quilos de do produto em 1900 (WEINSTEIN,
1993, p. 323). A borracha era um dos produtos substanciais da economia ma-
rajoara, juntamente com a atividade pecuária e agrícola.
Produtos exportados no Marajó dos campos e das
florestas em 1875.

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Região Produtos exportados
Melgaço Borracha, castanhas, couros de veado e madeira
Portel Borracha e farinha
Gurupá Borracha, cacau, salsa e castanha
Chaves Borracha e gado
Breves Borracha, tijolos, louças, telhas e andiroba
Curralinho Borracha e cacau
Cachoeira Borracha e gado
Monsarás Gado e farinha
Soure Gado
Fonte: CENTUR, O Jornal do Pará, N. 78, p. 01
Frente à notável quantidade de produtos exportados
da Amazônia, vê-se que o Marajó foi um lugar de grande importância no
quadro econômico da Belle Époque, pois a maioria dos seus municípios fun-
cionavam enquanto produtores e exportadores da borracha, especialmente
no Marajó das Florestas. Assim, em termos econômicos, os Marajós eram
grandes produtores de gado pelos campos e um grande produtor de borracha
pelas florestas:
A mais rica e importante indústria da ilha de Marajó é a
criação do gado vaccum, para o que há campos vastissimos
que ocupam um pouco mais da metade da superfície da
ilha. Na contra-costa há uma boa olaria em que se fabrica
telhas, tijolos e louças vermelhas. No município de Muaná,
cultiva-se ainda o cacáo e, como no baixo Arary, há boas
plantações de canna e um bom número de engenhos em
que se fabrica aguardente e uma quantidade de assucar.
Com estas excepções, o gado nos campos e a borracha nas
mattas são as únicas producções da ilha (O JORNAL DO
PARÁ, 1876, n.º 26, p. 01).

Pensando o Arquipélago de Marajó enquanto um


grande produtor e exportador de borracha, como toda essa economia irá
responder às demandas sociais dos espaços urbanos marajoaras? Também,
como é possível entender a dinâmica do patrimônio perante a um lugar onde,
no inverno, muitos dos seus municípios são alagados, formando vastas ilhas?

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É importante ter em mente as condições ambientais com a qual os marajoaras
são obrigados a enfrentar e a sua relação frente às condições culturais viven-
ciadas na região. Sabe-se que os Marajós são cercados por rios que no inverno
tomam os campos, alagando-os. Dentro dessa característica ambiental, o inte-
ressante é pensar que o mesmo rio que gera a borracha, alaga as construções
dos municípios. Pode-se entender essa dinâmica em Chaves:
os ventos são com effeitos muito rijos, agitando muito as
aguas do rio e tornando perigoso o movimento de cargas
e passageiros. Póde-se dizer que a villa tem mais de uma
vez mudado de lugar, recuando para o campo; o antigo
quartel ocupava outr’ora mais ou menos o lugar em que
hoje fundea o vapor da companhia do Amazonas, e aquelle
em que existiu a antiga igreja matriz é hoje o limite inferior
da praia na maior baixa-mar, cerca de 240 metros da villa
actual; e muitas casas modernas estão sendo olvidas e
desmoronadas a medida q o terreno alto em que foram
construídas se vae desfazendo em cada anno pelo efeito
do embate das ondas (O JORNAL DO PARÁ, 1876, nº
26, p. 01).

Diante dessa dinâmica ambiental dos rios, o modo


como as populações marajoaras vão operar culturalmente poderá ser anali-
sado a partir, também, da relação com as dinâmicas ambientais. A dinâmi-
ca do patrimônio no Marajó está pautada, também, na relação de homens e
mulheres com o regime das águas (PACHECO, 2009). Vendo a cultura, en-
quanto “processo social fundamental que modela ‘modos de vida’ específicos
e distintos” (WILLIAMS, 1979, p. 23), pode-se perceber que as condições
patrimoniais dentro do Marajó vão estar relacionadas a uma dinâmica cultural
diferenciada. Um exemplo emerge da observação registrada em uma das ma-
térias d’O Jornal do Pará a respeito da relação do ensino escolar e do trabalho
da borracha:
O estado do ensino no interior da provincia nada tem de
lisongeiro; a matricula dos alumnos é, quase sempre, uma
ficção official e a relação da frequencia as vezes não o é menos.
“O mal tem sua origem principal nos habitos, costumes e

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frequentemente nas necessidades ou falta de recursos da
maioria dos habitantes, mormente dos que nunca tiveram
instrucção alguma. “Lá para fins de Janeiro os paes
começam a regressar à povoação trazendo consigo os filhos
que muitos fazem logo matricular na escóla. O professor
ou professora faz a inscripção no livro de matricula, abrem-
se as aulas e os discipulos as frequentam 3,4 ou 5 mezes.
“No fim d’este periodo, os paes que, na forma habitual, tem
de preparar-se para a safra da borracha, vem pedir dispensa
dos filhos e filhas, estas para ajudarem a fazer a farinha, e
aquelles para lhes ajudarem a ajuntar caroços de urucury,
necessarios para a defumação da borracha (O JORNAL
DO PARÁ, 1876, nº 31, p. 01-02).

Atravessada por uma concepção de progresso, instru-


ção letrada pautada no modelo de educação francesa, o cotidiano escolar da
região no século XIX deixa ver precários índices de frequência escolar pelas
dificuldades que os trabalhadores rurais tinham de ficar durante um ano em
uma única área da região. Os modos de vida nos Marajós fundem vida social,
ambiental e econômica.
De acordo com O Jornal do Pará, outra indústria que
ascende no Marajó, concomitante à criação do gado, é o roubo dos mesmos.
Os fazendeiros são os que mais furtam o gado no Marajó, seja pelo costume,
para criar, comer, e até para variar de alimento. Assim, o roubo do gado no
Marajó deixa de ser apenas um fator econômico, pois, “é um habito que tem
passado inalteravelmente de tataravós a tataranetos, de geração a geração, e
que tido a sancção de mais de um seculo. Em outros termos: o furto de
gado em Marajó é um costume e um costume tradicional” (O JORNAL DO
PARÁ, 1876, N.º 38, p. 01, 17, Quinta-Feira).
Os tempos da Belle Époque na região, de acordo com o
jornal, mostram-se vivos perante as práticas dos seus moradores. Entende-se
que exista uma certa atenção a esses roubos como sendo de domínio cultural.
A dinâmica do roubo é marcada pela memória dos marajoaras. Infere-se que,
além do seu valor econômico, existe uma carga simbólica e mesmo afetiva no

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ato do roubo do gado.
Sobre as condições de vida no Marajó, encontra-se
como estava a situação urbana e as edificações dos municípios mais citados
pelo O Jornal do Pará: Melgaço, Portel, Gurupá, Chaves, Breves, Curralinho,
Muaná, Cachoeira, Monsarás e Soure.
O município de Melgaço, registrado pelo O Jornal do
Pará, possuía um igreja matriz, uma cadeia, uma escola primaria para homens
e com o estado sanitário em níveis péssimos de qualidade. O município de
Portel possuía uma igreja matriz, a casa das sessões municipais e cadeia, três
escolas, duas públicas e uma particular e o estado sanitário está em nível de-
plorável, mas já esteve ótimo em 1868. Em Gurupá
o governo colonial fortificou Mario-Cay um forte em
ruinas, possui um porto por onde fazem os transportes
com os vapores da Companhia do Amazonas, os edifícios
públicos são a Igreja matriz, a casa da câmara, cinco escolas
públicas, o estado sanitário satisfatório e muros derrocados
da antiga fortaleza. Em Chaves existem duas igrejas
matrizes, uma nova em construção e a antiga que já está
em ruínas, uma cadeia e uma casa da câmara, três escolas
públicas e o estado sanitário não sofreu alteração, quase
sempre muito satisfatório. Em Breves, mostra-se presente
uma igreja matriz, a casa da câmara e também fabrica-se
uns vasos pintados de cores vivas, que são muito estimados
dos curiosos por considera-los como parte como producto
da industria indigena (O JORNAL DO PARÁ, 1875, n. 75,
p. 1).

Além desses bens patrimoniais urbanos, Breves pos-


suía um porto, duas escolas primárias, estado sanitário com níveis melhorados
e precisando de uma cadeia que neste período ocupava um casebre em ruinas.
Curralinho possuía uma excelente igreja matriz, duas escolas de ensino pri-
mário, um porto e com o estado sanitário quase satisfatório. No município de
Muaná, existia uma igreja matriz, uma casa municipal, um quartel que servia
de cadeia e 82 casas habitadas, cinco casas de comércio, duas padarias, três al-
faiates e dois sapateiros e duas escolas de ensino primário. Porém, a localidade

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pede a construcção d’uma estacada para impedir o
desmoronamento das casas situadas a beira do rio, o
concerto do cemiterio e reparos urgentes do quartel na
parte que serve de cadêa, em ruinas, e outras medidas que a
camara julga necessarias o para cuja execução não tem ella
rendas suficientes (idem).

Monsarás possuía uma igreja matriz, três escolas de


ensino primário e sem nenhum desgaste no sistema sanitário de saúde. Por
último, Soure possuía seis escolas e uma escola noturna, a casa da fazenda
nacional São Lourenço, uma igreja matriz que tem sua sacristia servindo de
cadeia e quartel da guarda.
Entre as principais representações do patrimônio bel-
lepoqueano marajoara não se encontra o patrimônio legitimado pelo valor de
nacionalidade ou outros valores constituintes, mas pode-se entender que hoje
esses marcadores constituem os indícios de patrimônios situados no início da
Belle Époque na Amazônia marajoara. Esse trabalho também se constitui para
evidenciar que o patrimônio marajoara não prescinde apenas das famosas
urnas e cerâmicas marajoaras, mas que outros patrimônios podem ressonar
vozes diante do estado mais democrático (a partir dos anos de 1870) que se
encontram as questões patrimoniais hoje no Brasil e no mundo.
Considerações Finais
O planejamento para a escrita deste ensaio procurou
situar a importância de se estudar o patrimônio marajoara no período da Belle
Époque, principalmente pelo fato da alta participação dos municípios mara-
joaras na época do boom do ciclo da borracha na Amazônia. Com base em
teóricos do patrimônio e da memória, procurou-se entender, mesmo nesses
primeiros anos do período da exploração da borracha, como ficou estrutura-
da a vida dos marajoaras desse período e quais as ressonâncias que se conse-
guiu captar em relação à memória e ao patrimônio no Marajó dos Campos e
Marajó das Florestas.
Somado a isto, foi na empiria do O jornal do Pará e

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com os registros dos viajantes e cronistas que, de acordo com estudiosos no
tratamento de documento escrito, explorou-se uma metodologia de análise
crítica diante de representações e práticas oficiais de patrimônio marajoara
em tempos de Belle Époque.
Um aspecto importante no interpretar das letras do O
jornal do Pará e dos relatos dos viajantes e naturalistas foi a grande evidência
do olhar ante a dinâmica dos rios, da agricultura e da pecuária. Tudo o que foi
falado, na maioria das vezes, possui análises em relação ao ambiente, ora o rio,
outrora o gado. Assim, optou-se por situar o patrimônio diante das dinâmicas
ambientais, econômicas, geográficas dos Marajós. Diante desse aspecto, é im-
portante entender que o patrimônio na região marajoara existe em relevância
a um local onde as dinâmicas naturais permeiam o cotidiano de todos, ou
melhor, onde as dinâmicas naturais e culturais não funcionam enquanto ope-
rações separadas. Logo, o patrimônio marajoara em tempos de Belle Époque
se propõe a um trabalho onde procura mostrar também que o cultural e o
natural vivem em constantes diálogos.
Under the sign of aquarius: the marajoara heritage
in the belle epoque

ABSTRACT: The purpose of this article is analysing the representation of the


cultural heritage of Marajoara Amazon in the period of the Rubber Boom (1870-
1912), especially with regards to the constructions and the displacements in urban
spaces of the municipalities of Marajó dos Campos and Marajó das Florestas. The
main problem was trying to understand what public inheritance in Marajoara cities
originated in the famous Rubber Boom in the Amazon. To understand this issue, our
research embarked in a dialogue with two types of sources: a) scholars specialised in
the study of the Rubber Boom, of the heritage, of memory and identity; b) reports
by chroniclers, travellers and journalists who collected information on Majoara urban
life, with an attention to buildings, habits, coexistences and tensions, between the last
decades of 19th century and the first two decades of the 20th century.

KEYWORDS: Heritage. Belle Epoque. Marajoara Amazon.

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Data de recebimento: 16/7/2014


Data de aceite: 17/8/2014

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Raízes e identidade de migrantes trabalhadores
rurais do Centro-Sul no Acre: uma análise a partir
da linguagem metafórica

Tânia Mara Rezende Machado1


RESUMO: A linguagem é um dos principais símbolos de uma cultura. Sem lingua-
gem não há possibilidade de definição de identidades, de território de pertencimento,
de análise das relações de trabalho, de processos de desenraizamentos, enraizamen-
tos, reenraizamentos de um povo e principalmente, do estabelecimento de comunica-
ção entre povos. Embora hoje exista um encurtamento de fronteiras pela ampliação
das formas de comunicação advindas da globalização, esse encurtamento ocorre de
modo distinto a depender da classe social a que as pessoas pertencem. Com este ar-
tigo têm-se o objetivo de analisar as raízes e identidades de migrantes trabalhadores
rurais do centro-sul no Acre, evidenciadas por meio de metáforas, reforçando assim,
o valor literário e linguístico destas para a preservação da memória e identidade. O
estudo enquadra-se nos estudos culturais tal como pensados por Williams (1979) e
Thompson (1998).

Palavras-chave: Migrantes. Trabalhadores Rurais. Identidades. Linguagem.

Considerações iniciais
Eu sou como Apui, não tem vento que me leve, nem chuva
que me derrube. Minhas raiz vai longe por esse chão afora.
(Miguel Alves Rodrigues)

A linguagem é um dos principais símbolos de uma


cultura. Sem linguagem não há possibilidade de definição de identidades, de
território de pertencimento, de análise das relações de trabalho, de proces-
sos de desenraizamentos, enraizamentos, reenraizamentos, e, principalmente,
do estabelecimento de comunicação entre povos. Neste sentido, a linguagem
apresenta-se como componente imprescindível às análises que se pretendam

1
  Doutora em Educação, Professora da Universidade Federal do Acre.

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ser de natureza cultural. Contudo, na contramão desses estudos, os discursos
sobre os processos migratórios de globalização tendem a advogar o encurta-
mento de fronteiras propiciado pela ampliação das formas de comunicação
advindas das múltiplas linguagens que emergem de tal processo. Porém, é
bom refletir a respeito do alcance social desse encurtamento de fronteiras.
Para alunos oriundos das classes dominantes é provável que as fronteiras se-
jam encurtadas, pois estes têm acesso à internet, bons filmes, livros, músicas,
jornais, documentários, fotografias, diálogos em família, que se pautam nos
códigos formais da língua materna e, em alguns casos, em uma segunda lín-
gua. Já para os alunos das classes menos favorecidas, sobra-lhes a linguagem
das águas, dos rios, das secas e enchentes catastróficas, das luas e principal-
mente, de uma oralidade carregada de metáforas e cacófatos.
Nessa direção, procurando dialogar com essas ques-
tões, partimos da noção de cultura a partir da compreensão de Thompson
que a define como um
termo emaranhado, que ao reunir tantas atividades e
atributos em um só feixe pode na verdade confundir ou
ocultar distinções que precisam ser feitas. Será necessário
desfazer o feixe e examinar com mais cuidado os seus
componentes (THOMPSON, 1998, p.22).

Para “desfazer este feixe e examinar com mais cuida-


do seus componentes”, neste estudo trazemos para análise as raízes e identi-
dade de migrantes trabalhadores rurais do centro-sul no Acre, evidenciadas
por meio do uso de metáforas presentes em seus depoimentos e falas, inter-
pretadas teoricamente com base em Santos (1999) e Nascimento (1985).
Quanto às justificativas para o uso da linguagem me-
taforizada tomada de empréstimo de trabalhadores rurais sujeitos dessa pes-
quisa, explica-se pelo fato de que, em seus cotidianos, involuntariamente, ten-
dem a dispor de metáforas ou comparações para se comunicar.
O uso de metáforas compreende “espaço de liberda-
de ao subverter as regras da língua para inscrever sua subjetividade criativa”
(ZANOTTO, 1985, p. 132). Isto implica em dizer que elas são produzidas em

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contextos situados e guardam consigo as marcas culturais de seus criadores.
Nesse sentido, torna-se difícil definir o que seja metáfora, posto que sua de-
finição depende, em grande parte, da diversidade de pontos de vista teóricos
existentes nesse domínio, bem como da complexidade do fenômeno em si. A
depender da tradição cultural, da época e do teórico em que a metáfora é utili-
zada pode mudar seus limites, sua forma e seu sentido. Cumpre-nos ressaltar,
no entanto, que, neste estudo, as metáforas analisadas correspondem às ex-
pressões comunicativas de trabalhadores rurais que vivem em Projetos de As-
sentamento Dirigidos, do Instituto Nacional de Reforma Agrária - INCRA.
Compete-nos também, explicitar que Daniel Fran-
cisco dos Santos, que escreveu sobre garimpeiros em Rondônia, e Heloisa
Winter Nascimento cuja dissertação de mestrado teve como título “Rumo da
terra: rumo da liberdade. Um estudo dos migrantes rurais do sul no estado do
Acre”, defendida em 1985, foram nossos primeiros interlocutores para tratar
de desenraizamento, enraizamento, reenraizamento de migrantes.
Nos escritos desses autores, que não trabalham sozi-
nhos ou sem bases empíricas, evidencia-se uma lógica de que migrar é sinô-
nimo de perda de identidades, contudo, se analisarmos as falas e os escritos
de alguns migrantes, observaremos que os mesmos não são pessoas desenrai-
zadas, mas, sujeitos portadores de culturas plurais e, portanto, de identidades
constituídas nas mais diversas dimensões de seus modos de viver, que por ve-
zes se conformam, por vezes resistem e, em diversos momentos, suas formas
de resistência e conformismo se camuflam.
O diálogo metafórico travado com os sujeitos da pesquisa
Nesta parte do texto trazemos um diálogo metafórico
travado com alguns sujeitos da pesquisa. Trata-se de vozes de homens e mu-
lheres ávidos por exporem suas ideias sobre raízes e identidades, ainda que
desconheçam formalmente esses conceitos.
Nossa primeira interlocutora foi a senhora Inês S.
Espindola, residente no Projeto Humaitá, na Amazônia acreana, que ao ser

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questionada sobre como se sentiu por ocasião de sua chegada ao Acre diz:
“Nois era cumu assim uma laranjera que rancaru do chão. As raiz quebraro
tudo e então custa a ela pegá de novo. Mais nóis tá pelejano. Se aumeno meu
pai tivesse vindo mais eu” (ESPINDOLA, 2000).
A partir da narrativa da depoente, é possível afirmar
que, por um tempo que não é permanente, o migrante se sente como se esti-
vesse perdido suas raízes. O que não significa dizer que isso seja algo natural,
que vá passar com o tempo, que ele abandonará os vínculos com suas origens.
Quando uma raiz quebra, outras surgem, galhos brotam, folhas nascem, mas
o tronco, “a árvore”, a espécie permanece, manifestando suas práticas e mo-
dos de ser.
Em sua fala, a expressão “se aumeno meu pai tivesse
vindo mais eu”, significa que as raízes não foram esquecidas, pois estavam
fazendo falta, causando saudades. O manejo florestal pelo qual somente é
retirada uma árvore se esta tiver filhas e netas da mesma espécie que a subs-
titua no futuro não funciona de forma semelhante aos laços familiares de
migrantes. É bastante recorrente nas falas desses migrantes o desejo de estar
próximo aos familiares, propiciando seus deslocamentos para o Acre. Ocorre
também, de quando possível, retornarem ao local de origem para rever paren-
tes ou para levar os filhos para conhecer o lugar de onde partiram. Vejamos
o depoimento do senhor Hélio Tessinari, migrante do Espírito Santo, descre-
vendo o momento de reencontro com as raízes.
Aí dessa última veiz que eu fui, levei o filho moço, sabe? O
Ronaldo. Cheguei lá eu falei: vô te levá no lugar onde você
nasceu. Milagre! Tinha... pur sinal tinha até uma festinha lá
nesse lugar, um dia de dumingo. Aí no meio da festinha, eu
via qui ele saía prum cantu, olhava aquelas pedras qui iam
lá no alto, in cima, aí ele disse: “Papai, mais eu nasci aqui?”
Eu disse: “nasceu. Tú voltaria pra cá? Ele disse: “nem
se mi desse isso tudo duma vez”. Não, mais é isquisito
mesmo. Parece aquelas pedras de um lado assim, parece qui
juntaru mais. Purquê aqui a gente, vive assim nesse mundo
ispaçoso assim. Lá, cê olha prum lado, cê vai cem metro

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isbarra numa pedra qui vai lá in cima, vai isbarra quase, vai
isbarrara quase na flô do céu (TESSINARI, 2000).
Ainda que o lugar de origem possa parecer estranho
e não propicie o desejo de voltar a residir nele, a preocupação com o retorno
às raízes, ainda que periodicamente está presente nas famílias migradas para
o Acre.
Querer unificar identidades, tempos e espaços tem
sido o desejo de muitos. Embora tenhamos a compreensão da importância de
estudos que tratem das questões regionais, a história acreana, veiculada por
meio das múltiplas linguagens, sejam elas musicais, poéticas, religiosas, literá-
rias e outras, trazem embutidas valores por vezes estereotipados que podem
funcionar como elementos de sedimentação de representações. Especialmen-
te a história produzida durante os denominados anos de governo da Frente
Popular do Acre.
Nessa direção, recorremos à fala de outro migrante,
citado por Eloísa Winter, referindo-se ao padrão de vida que estava levando
aqui e o que tinha no sul: “Fazê o que? Pra todo lado que corre o urubú é
preto. Intão não tem jeito, tem que ficá” (NASCIMENTO, 1985, p. 144). A
partir dessas considerações, chamamos a atenção para uma reflexão que está
presente ao longo de todo este estudo, qual seja: a quem interessa unificar
identidades? Será que a expressão metaforiada de que “urubu é preto em todo
lugar” não merece uma melhor análise? Urubu pode até ser preto em todo
lugar, mas não em todo tempo. Quando é novo, é branco!
Deixando as metáforas de lado por um momento e
acompanhando a linguagem expressa em algumas cartas escritas por migran-
tes trabalhadores rurais provenientes de Brasilândia, no estado do Paraná e
Amambaí, no estado do Mato Grosso do Sul, vejamos onde estão seus cora-
ções, suas raízes. A carta abaixo, escrita por José Padilha da Silva, professor e
trabalhador rural migrante de Brasilândia, expressa um pouco do seu viver no
Acre e as saudades que sente dos familiares e da terra de onde partiu.
Sena Madureira-Acre, 30/07/2001.

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Saudações.
Meu querido primo, Fabiano, estou te escrevendo para dar-
te as minhas notícias, desejando que esta vai te encontrar
gozando perfeita saúde.
Primo faz 29 anos que estou morando aqui no Estado do
Acre mas ainda não me esqueci de você e nem dos meus
amigos que ai deixei. Primo quando nós chegamos aqui nós
fomos trabalhar em uma fazenda somente após estes anos é
que meu pai ganhou um lote de terra em um assentamento
do INCRA denominado Projeto Boa Esperança, a partir
daí muitas coisas tivemos que aprender com os acreanos.
Aprendemos a cortar seringa, aprendemos a quebrar
castanha com tersado, aprendemos a amansar bois para
transportes, aprendemos a chamar fumo de tabaco e em
fim quase todas as coisas aqui são diferentes das nossas aí.
Mas apesar das dificuldades aqui é um lugar bom para viver.
Primo, hoje eu sou casado com uma acreana, tenho um
lote de terra, sou professor rural, estou fazendo o Pró
-Formação e tudo que tenho consegui no Acre, mas não me
esqueci de minha terra natal. Fabiano, sinto muita saudade
da escola que eu estudei, daquele lindo plantio de trigo
próximo da escola, daquele plantio de algodão; há! Primo
que saudade de Brasilândia onde meu pai fazia compras. Sei
que com o auxílio de Deus um dia irei visitá-los. Primo vou
me despedindo com muita saudade, aguardando uma carta
sua. Um forte abraço de seu primo e amigo José Padilha
da Silva.
Primo me escreva por este endereço:
Sena Madureira-Acre. CEP 69.940-000.

Nessa carta, José Padilha da Silva faz uma retrospec-


tiva do seu viver no Acre, fala dos anos em que seu pai trabalhou para fazen-
deiro e da conquista da terra própria. Conta das dificuldades enfrentadas e das
aprendizagens quer teve junto ao povo acreano. Informa que casou e que está
estudando. Em suas palavras fica nítida sua satisfação com o viver no Acre
quando diz “tudo que tenho consegui no Acre”. Contudo, sente saudades do
primo e da cidade de Brasilândia. Relembra ainda, dos plantios de trigo e de

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algodão que havia próximo à escola onde estudara. Mostrando que não é um
desenraizado, mas que apenas criou novas raízes no Acre. É, portanto, um
reenraizado.
As cartas seguintes foram escritas pela migrante Eva
dos Santos Cardoso, escritas em tempos diferentes. Uma em 1976 e outra
em 2000, para a irmã Neuza que reside em Amambaí. Lendo as duas cartas
é possível perceber que mesmo tendo transcorrido vinte e quatro anos entre
a escrita de uma e da outra, a saudade é um elemento presente que somente
sente quem tem raiz.

Sena Madureira, 02 de fevereiro de 1976.


Querida irmã Neuza,
To te escreveno cum muita tristeza prá contá que a tia
Ana morreu. O médico já tinha falado que quando desse
derrame dinovo ela murria. A mãe tá sofreno por causa que
a tia Ana era a única irmã que ela tinha viva.
Neuza eu vo mora na cidade mais dona Maria. Se de certo
eu vo estudá. Aqui perto tem escola mais a professora só
ensina até a quarta série eu já to com 16 ano e tenho que
faze o ginázio.
As criança da Maria, da Julinha e do tio Nano estuda nessa
escola.
O pai ta com uma roça boa de milho já penduano. Logo
nos vamo faze pamonha.
Escreve pra nós Neuza, põe nos cuidado do seu Valdemar
Silvino que nós recebe.
O pai mais a mãe só fala em voceis. Eles que que voceis
vem pra cá.
Outro dia eu escrevo mais.
Um abraço cheio de saudade da irmã Eva dos Santos.

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Rio Branco, 20 de agosto de 2000.
Querida irmã Neuza,
Estamos todos com saúde, graças a Deus. Estou mandando
foto do aniversário da Paulinha para você ver como ela está
bonita e os meninos estão moços. Paulinha e Everson já
estão no 2° grau.
Neuza, eu sinto muita saudade de você. Agora somos só
nos duas. Já perdemos nossos pais, Maria, Tunico e o Zé
sumiu.
Se você não pode vir aqui, me escreva, dá notícias.
O pessoal do tio Nano está bem. Virgulino já tem uma
colônia dele mesmo. Os meninos mais novos dele estão
casados, falta só o Izaias.
Todos aqui de casa mandam lembranças.
Um abraço da mana.
Eva dos Santos Cardoso.

O conteúdo das cartas coloca em cheque a ideia de


que o migrante é um desenraizado, pois em todas elas está expresso um senti-
mento que somente sobrevive quando se tem raiz. Trata-se da saudade.
Constituição identitária relativas às experiências de uso do solo
Outras marcas de constituição identitária presentes
nesse estudo estão relacionadas ao trabalho agrícola e evidenciam alterna-
tivas criadas e recriadas por trabalhadores rurais migrantes do centro-sul e
acreanos, relativas às experiências de uso do solo que resultaram em muitos
ensinamentos e aprendizagens, mas também em muitos conflitos culturais,
muitas vezes travados no puro desconhecimento da história e das tradições de
cada povo. Outras vezes, travados no conhecimento, brotado da experiência.
Vejamos, por exemplo, a posição do senhor Vivalde
Machado, ex-carreiro no estado de Minas Gerais. “Ah! Meu modo de vive é
muito diferente do desse povo. Cumigu, num vai no angu, vai na minhoca.
Desde que eu cheguei aqui eu to observano o jeito desse povo e eu, só pela

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cantiga do carro eu sei o peso que vem dentro” (MACHADO, 2001).
Achamos por bem desmembrar a fala do senhor Vi-
valde para melhor analisá-la. Na primeira parte, quando o mesmo nos diz:
“Meu modo de vive é muito diferente do desse povo”, este nos remete a pen-
sar sobre que modos de vida seriam estes tão diferentes dos modos de vida
do povo acreano. Na sequência, o depoente nos diz que essa diferença se dá
porque com ele se “num vai no angu, vai na minhoca”, o que significa dizer
que se uma alternativa socioeconômica, política ou religiosa não der certo,
outra será criada.
Outro aspecto que merece ser analisado é a forma
precavida, sempre com “o pé atrás”, que o migrante olha o viver do povo
acreano e vice-versa. Este diz que desde que chegou ao Acre observa o jeito
de viver dos acreanos e usa uma expressão metaforizada, baseada em suas
experiências enquanto carreiro no estado de Minas Gerais, a partir da qual,
a depender do peso da carga que o carro de boi transportava, este fazia um
ruído que de longe se podia ouvir para dizer que só pela conversa, pelo com-
portamento do povo acreano ele já sabe como vivem. Nessa direção, observa-
se que o migrante se julga mais esperto, mais empreendedor, o que ao com-
partilhar experiências com o povo acreano o faz mudar, propiciando novas
aprendizagens e compreensão dos modos de vida.
Outro migrante entrevistado, o senhor Claudionor
dos Santos, trabalhador rural migrante do Paraná, confirma esta assertiva ao
relatar como reagiu à sugestão de um colono acreano para que o mesmo não
trabalhasse de peão para fazendeiros, alegando que estes pensavam ser possí-
vel viver apenas do berro do boi, e que este deveria aprender a caçar, pescar
e fazer farinha, podendo inclusive usar a sua casa de farinha: “Olha rapaz: se
não dá prá vivê do berro do boi, mas também num vamo vivê do isturro da
onça, nem do grito do sapo. Nóis tem que prantá, nós tem que coiê e nóis
tem que escoá nossos produto, senão nois num veve, uai” (SANTOS, 1999).
As sugestões e a solidariedade do colono acreano, ao
oferecer as instalações e os utensílios de sua rústica fábrica de farinha, naquela

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oportunidade, soou-lhe como um insulto, pois na estrutura social de trabalho
a que estava vinculado, ou seja, a agricultura, não existia a atividade de “fari-
nheiro”. Porém, o mesmo entrevistado, trinta anos depois, ao ser interpelado
sobre os rumos que os filhos estavam tomando, assim descreve a situação de
um deles:
O Valdivino tá casado, tem uma arquera de filho; tudo
minino. Mora lá no Iaco, no Posto Serraria. Ele tem uma
colonha muito boa. Uma invernadona que é uma beleza; tem
um comecinho de criação de gado. Ele é muito trabaiadô.
Agora mesmo, há poucos dias eu tive vindo lá da colonha
do Zé (outro filho) e ele disse que o Valdivino vendeu umas
cento e cinqüenta saca de farinha lá prá comperativa. Fez
um contrato lá como a comperativa e ta trabalhando bem
ele (SANTOS, 1999).

Conclui-se que produzir farinha também se tornou


uma atividade rentável e passível de incorporação em seus modos de traba-
lho, sem que o desempenho de tal atividade tornasse seu filho mais ou menos
trabalhador. No entanto, isto não aconteceu por acaso, de uma hora para a
outra, ou passivamente. Foi resultado do compartilhar de experiências e de
rompimento com posturas preconceituosas.
Em entrevista realizada com o migrante do Espírito
Santo, senhor Hélio Tessinari, morador da Vila Capixaba, no estado do Acre,
perguntamos-lhe se o mesmo concordava com alguns de seus conterrâneos,
que acreano era preguiçoso pelo fato de não ser muito dado à agricultura? E
este assim se pronunciou:
Não, eu não concordo qui ele seja priguiçoso. Eu num
concordo que dentro da agricultura ele não foi acustumado
e ele não tem esse... Ele não pode fazê aquilo que ele num
sabi. Agora manda o cara que chamo ele de priguiçoso, joga
ele numa istrada di seringa meia-noiti. Vê se ele vai, purque
no ivivemu aqui muitas veiz, a gente é caipira, bate dentro
duma cidade grande... Mas rapaz, quem mora lá dentru
cunhece na hora, o ali, caipira, e tal. Cada um é rei dentru
do seu mundo (TESSINARI, 2000).

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Ignorar que “cada um é rei dentro do seu mundo”
seria algo bastante ingênuo. Contudo, não atentar para as diferentes formas
de “reinado”, ou seja, para as diversas manifestações de modos de pensar e
agir explicitadas por migrantes trabalhadores rurais já não é ingenuidade, mas
má fé. Afirmar que o migrante é sempre um desenraizado é um tanto quanto
censurável, tendo em vista que desenraizados não têm saudades, não protes-
tam, rendem-se. Supõe-se que morre, culturalmente falando. E esta não foi a
situação ocorrida. Migrantes, trabalhadores rurais trouxeram bens materiais e
hábitos nunca abandonados.
O Sr. Césio, engenheiro do INCRA, por ocasião da
criação dos Projetos de Assentamentos Dirigidos (PAD’s), descreve a situação
em que esses trabalhadores foram recebidos e o que traziam. Segundo ele, al-
guns traziam vinhos, acolchoados, fogão econômico, máquina de lavar roupa,
ferramentas de trabalho tais como: traçador, máquina de moer carne e uma
série de outros bens que explicitam seus desejos de continuarem a manter
seus modos de vida.
O dizer de um migrante paranaense morador do PAD
Pedro Peixoto, identificado por V., 55 anos, entrevistado por Nascimento,
deixa transparecer bem a insatisfação com o viver em um outro lugar. Este, ao
comparar e avaliar seu padrão alimentar no Acre e no Paraná diz:
Bão, mais agora em vista que nois chegô, nois ta tudo,
tamo de parabéns, graças a Deus. Mas quem ta no Paraná
fique quieto no Paraná, que eu falei: “mais vale eu catano
soja, quando a ceifa cota a soja, do que eu possuí duas, três
colonha aqui.” (...) Porque quando eu tava lá, meus fio cumia
pão. Minha muié fazia pão, tinha bolacha, tinha trigo, tinha
tudo. (...) Meu irmão quando veio troxe doze lata de banha
de porco frita e carne. Nóis impatô tempo fritano, inlatano
i inlatano aquela fartura. Quando nóis chego, a fartura que
nóis vimo foi aquela. Acabô aquela ali, é... Nunca mais
cumi margarina, nunca cumi pão. Eu tenho criança que
falo óia, aqueles mais velhinho que alembra do pão, mas o
mais piqueno falo: “Óia nóis agora temo que cume o pão
da terra”. Pão da terra é a macaxera, meus fio considera

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que é o pão da terra. I é mesmo (NASCIMENTO, 1985.
pp. 142 e 143).

O migrante paranaense expressa seu descontenta-


mento através da lembrança da fartura na alimentação. Recente-se do fato dos
filhos mais novos não terem acesso a uma alimentação como a de outrora.
Por outro lado, pode-se dizer que, neste caso, não houve um desenraizamento
e sim um “reenraizamento” (NEVES, 1997, p. 21), pois um pão, o de trigo, foi
substituído por um outro, “o pão da terra”, a macaxeira. Contudo, percebe-se
que o pão de trigo era mais desejado que o “pão da terra”, deixando antever a
dimensão desse “reinraizamento”, que não pode ser visto como um processo
“natural”, mas envolto em alta complexidade.
Considerações finais
Pensamos que é necessário que se avalie a natureza
das identidades atribuídas ao trabalhador rural. Se é urgente e necessário estu-
dos sobre a “originalidade” das possíveis identidades de trabalhadores rurais
migrantes do centro-sul no Acre, é também tão urgente e importante que se
reflita sobre os lugares destinados a estes e a constituição de seus modos de
vida em determinados ambientes, atentando-se para elementos que devem ser
vistos como de contradição, diversidade e complementaridade como forma
de procurar compreender as articulações e inter-relações existentes.
A defesa do desenraizamento do migrante é ingênua
ou se não ingênua, de má fé. Representa uma tentativa de despolitizá-lo para
depois repolitizá-lo através de enquadramentos, modelações, educações e do-
mesticações. Estabelecendo uma identidade fixa para os migrantes, não aten-
tando para a diversidade cultural dos mesmos. Querer apassivar o migrante,
atribuindo-lhe papéis de porta-vozes nos mais diversos setores, sindicatos,
escolas, universidades e partidos, por meio das mais variadas linguagens, es-
crita, televisiva, oral, musical e por meio das mais sutis propostas pedagógicas
tem sido um intento constante que tem que ser repelido sob pena de estar-
mos contribuindo com a reprodução e manutenção de uma história distorcida
sobre migrantes do centro-sul no Acre e suas identidades. De igual modo, é

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preciso reconhecermos que as metáforas utilizadas pelos trabalhadores rurais,
sujeitos dessa pesquisa, desempenharam uma função comunicativa importan-
te não apenas no enriquecimento de suas linguagens, mas, no fornecimento
de importantes elementos para a análise dos processos identitários desses su-
jeitos na região acreana.
Backgrounds and identities of the immigrant rural
workers from central and southern brazil into
acre: an analysis of the metaphorical language

ABSTRACT: Language is one of the main symbols of a culture. Without language


it is impossible to define identities and motherlands, to analyse working relationships,
processes of integration and segregation of a people, and, mainly, communication
between different populations. Despite the current tendency towards the overcoming
of national borders, due to the increased communications brought about by
globalisation, this overcoming occurs in different ways, depending on social class.
The rich have access to the internet, to good movies, books, songs, newspapers,
documentaries, photographs, in dialogues regulated by codes based in the native
language and, in some cases, in a second language. All that is left to the poor is the
language of waters, rivers, of the kenês, and an oral tradition charged with metaphors
and puns. This article is an extended version of my master’s dissertation and aims at
analysing the backgrounds and identities of rural workers migrated into Acre from
Central and Southern Brazil. These backgrounds and identities are in turn revealed
by metaphors, in a way to reinforce the literary and linguistic value of those for
the preservation of memory and identity. This work is based on cultural studies as
described by Raymond Williams (1979) and Thompson (1998).

KEYWORDS: Immigrant. Rural Workers. Backgrounds and Identities. Metaphorical


Language.

Referências
COSTA, C. A. Mineiro, 74 anos, ex-trabalhador rural, entrevista cedida à autora, rua
José de Araújo, 61, Bairro Chico Mendes. Rio Branco Acre 2000.
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MACHADO, Vivalde, ex-trabalhador rural, entrevista cedida à autora, Sena Madurei-
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NASCIMENTO, H. W. “Rumo da terra: rumo da liberdade. Um estudo dos migran-
tes rurais do Sul no Estado do Acre”. Dissertação de Mestrado ,1985.
RODRIGUES, M. A. Riograndense do sul, trabalhador rural, entrevista cedida à au-
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SILVA, J. P. Paranaense, 38 anos, trabalhador rural e professor rural, entrevista cedida
à autora, Colônia Santo Antonio, Ramal do Xiburema, Projeto Boa esperança-Sena
Madureira Acre. 2001
SOUZA, E. C. Filha de trabalhador rural migrante, entrevista cedida à autora, Rio
Branco, Acre, 2000.
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xaba-Acre. 2000.
THOMPSON, E. P. Costumes em comum: estudos sobre a cultura popular tradicio-
nal. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Introdução: costume e cultura: p. 13-24.
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Zahar, 1979.
ZANOTTO, M O texto na construção do significado metafórico. In: Cadernos PU-
C-SP. São Paulo: EDUC 22, 1985.

Data de recebimento: 14/9/2014


Data de aceite: 19/10/2014

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Normas para submissão de propostas para publicação
1 – Serão aceitos artigos, entrevistas ou resenhas em português, inglês, espanhol,
francês, italiano e alemão.
2 – Os artigos deverão ter de 15 (quinze) a 25 (vinte e cinco) páginas; as entrevistas,
no máximo, 15 (quinze) páginas; e as resenhas, no máximo, 10 (dez) páginas, obser-
vando-se a seguinte configuração: fonte Times New Roman 12, espaço entre linhas
1/5, parágrafo com recuo de 1,0 cm, margens esquerda e superior de 3,0 cm e direita
e inferior de 2,0 cm, sem numeração de páginas.
3 – Os artigos deverão ter a seguinte estrutura:
3.1 – Elementos pré-textuais:
a) Título e subtítulo: na primeira linha, centralizados, negrito, em caixa alta.
b) Nome do(s) autor(es) logo abaixo do título, à esquerda, sem negrito, seguido da
referência à filiação institucional.
c) Resumo: três linhas abaixo do nome do autor. Colocar a palavra resumo em caixa
alta, corpo 10, seguida de dois pontos. Redigir o texto em parágrafo único, espaço
simples, justificado, com, no mínimo, 100 (cem) e, no máximo, 150 (cento e cin-
quenta) palavras, dando preferência ao uso de terceira pessoa do singular e voz ativa.
Fonte: Times New Roman, corpo 10, para todo o resumo.
d) Palavras-chave: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do resumo.
Colocar o termo Palavras-chave, em caixa alta, primeira letra em maiúscula. Fonte:
Times New Roman, corpo 10. Cada palavra-chave com primeira letra maiúscula e o
restante em caixa baixa, separadas por ponto.
3.2 – Elementos textuais:
a) Fonte: Times New Roman, corpo 12 e alinhamento justificado ao longo de todo
o texto.
b) Espaçamento: 1/5 entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do texto (tabelas,
ilustrações, citações em destaque, entre outros).
c) Citações: no corpo do texto, serão de até 3 (três) linhas, entre aspas duplas. Acima
de 3 (três) linhas devem ser destacadas fora do corpo do texto, em fonte Times New
Roman, corpo 10, espaço simples, com recuo de 4cm à esquerda. Todas as referências

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das citações ou menções a outros textos (tanto as incluídas no corpo do texto, como
as que devem aparecer em destaque) deverão ser indicadas após a citação com as
seguintes informações, entre parênteses: sobrenome do autor em caixa alta, vírgula,
ano da publicação, abreviatura de página e o número desta. Evitar a utilização de idem
ou ibidem e Cf. Quando for utilizado o apud, colocar as mesmas informações solicita-
das anteriormente para o autor do texto de onde a citação foi retirada.
d) Notas explicativas: se necessárias, devem vir em rodapé. Fonte: Times New Ro-
man, corpo 10. Alinhamento justificado, mantendo espaço simples dentro da nota e
entre as notas.
e) Títulos e subtítulos das seções: sem recuo, em negrito, sem numeração e em fonte
Times New Roman 12.
f) Elementos ilustrativos: tabelas, figuras, fotos, entre outras, devem ser inseri-
das no texto, logo após serem citadas, contendo a devida explicação na parte infe-
rior das mesmas, numeradas sequencialmente. Serão referidas, no corpo do texto, de
forma abreviada.
3.3 – Elementos pós-textuais:
a) Colocados logo após o término do artigo.
b) Título em inglês. Recomenda-se, para este item e os dois sub-seguintes, procurar
revisão por um especialista em língua inglesa.
c) Abstract: Colocar a palavra abstract em caixa alta, corpo 10, seguida de dois pontos.
Redigir o texto em inglês, em parágrafo único, espaço simples, justificado, com, no
mínimo, 100 (cem) e, no máximo, 150 (cento e cinquenta) palavras, dando preferência
ao uso de terceira pessoa do singular e voz ativa. Fonte: Times New Roman, corpo
10, para todo o resumo.
d) Keywords: em número de 3 (três) a 5 (cinco), duas linhas abaixo do Abstract, em in-
glês. Fonte: Times New Roman, corpo 10. Cada Keyword com primeira letra maiúscula
e o restante em caixa baixa, separadas por ponto.
e) Referências: sempre ao final dos textos e seguir as normas atualizadas da ABNT.

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SOBRE O LIVRO
formato: 16x21 cm
tipologia: Garamond 11/15
papel miolo: pólen 90g/m²
papel capa: cartão supremo 250g/m²
impressão: F&F gráfica editora

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