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Aquela Vez Em Que…

Por Shameika Ares

Acho que tinha nove anos. Talvez tivesse dez. Pouco me lembro da época, porque
tenho muito pouco para lembrar; para ser honesto, só de duas coisas realmente
recordo, primeiro que não foi um ano memorável, e segundo, que tive uma forte
diarreia. Começou durante a aula de Educação Física, estávamos sentados no campo
de futebol, escutando o professor explicar o próximo exercício que faríamos, qual seria
o exercício nem recordo, porque parei de escutar no momento que senti os primeiros
gases, tão repentinos que cobri a boca, como se isso fosse os impedir de soar alto e
alertar os meus colegas da festa no meu intestino grosso. Olhei para todos os lados,
procurando um rosto suspeito, alguém que pudesse ter escutado. Acabou sendo
minha sorte. Quando senti outro vindo, segurei logo, cerrando os dentes com força e
rezando que Deus não me abandonasse naquele momento. Comecei a pensar em
formas de me livrar da situação, cogitando de início despejar em segredo tudo ali, já
que estava no fundo, sozinho, e ninguém se espantaria de me ver coaxando , uma vez
que a maioria adoptava no momento a mesma posição; logo que terminasse
espalharia arreia, mas havia risco do cheiro. O jeito mais lógico de me livrar de tudo
seria correr para casa de banho, para si deve parecer uma conclusão simples, meu
amigo leitor, mas não é tão fácil como parece, haviam cerimónias para puder se dirigir
a casa de banho durante a aula de Educação Física. O meu professor da época era um
sujeito de óculos, baixinho e tão magro quanto um palito, claramente sem perfil para o
cargo. Era também mesquinho, se sentia tão menosprezado na sua profissão que fazia
questão de sempre nos provar que ele não era professor de educação física por ser
burro, eram só as circunstâncias; segundo ele, sempre foi muito inteligente na escola,
o trabalho de professor era só para lhe segurar até que conseguisse entrar na
Universidade. Para provar o quanto inteligente era vivia nos fazendo questões sempre
que pedíssemos nos retirar para casa de banho: "qual é a raiz de 64?" —8 professor—;
E quanto é 0 dividido por 100" — zero, professor." Errado, é infinito!"— na verdade
100 dividido por 0 é que é igual a infinito, professor— " afinal percebeu! estava a te
testar." Ele costumava ficar nessa por muito tempo, até que se sentisse satisfeito ao se
provar mais inteligente que nós. Por isso que alguns de nós tinham o hábito de errar as
questões de propósito, só para poder sair logo dali. Não tinha escolha, por isso levantei
a mão e pedi ir ao banheiro, o que fez o professor sorrir de forma malvada e me lançar
um olhar arrojado. "E então, com que temos aqui um corajoso!" Ele começou,
confiante; eu era carne fresca, nunca tinha antes requisitado o banheiro " Qual é a
capital dos Estado Unidos" Eu sabia que era Washington DC , mas propositadamente
respondi : Nova Iorque, professor" diante desta resposta o professor levou os dedos
para os óculos e os ajustou, depois riu ainda com o dedo nas lentes, gritando de
seguida: " Errado, é Washington!" Estava irritado, mas me segurei e perguntei se podia
então ir, mas ele balançou a cabeça e continuou com as questões, para algumas dava a
resposta certa, para outras errava de propósito , ao mesmo tempo que me esforçava
para segurar os gases que se tornavam cada vez mais recorrentes. Chegou certo ponto
que fiquei farto e me vi obrigado a fazer algo que nunca me imaginei fazendo. Mas
antes de te contar o que fiz me permita dizer que vivíamos numa época em que ainda
prevalecia o socialismo no nosso país, e como um país socialista não havia o que se
odiasse mais que um " imperialista capitalista", conforme eram chamados. Há-de de se
compreender a reacção da turma quando invés de responder a uma questão do
professor gritei: o pai do Cássio é capitalista!; Todos saltaram sobre o rapaz gordo que
se sentava a minha frente, até mesmo o professor, começaram a dar-lhe socos, a
morde-lo e chutar-lhe, como se as minhas palavras só confirmassem o que eles já
deduziam da gordura do rapaz. Aproveitei a comoção e corri para a casa de banho, não
sentia algum remorso, porque primeiro, o pai dele era mesmo um capitalista, pelo
menos é o que o meu pai dizia sobre ele, na época nosso vizinho. Acontece também
que o Cássio tinha o costume de, na sua posição de maior da turma, partilhar consigo
mesmo o meu lanche, só nesses momentos defendia ideais socialistas. Mas quando
cheguei a casa de banho, encontrei o zelador, o encarregado da limpeza, ele me olhou
afinando seus pequenos olhos e levantando o bigode, era um homem velho, talvez nos
seus quarenta, pequenino, da altura dos meninos mais velhos da escola, os que
estavam no último ano do ensino primário. Sempre lhe achei um sujeito esquisito,
aliás, todos nós o achávamos esquisito, algumas vezes o surpreendemos olhando para
nós em segredo durante o intervalo e nas aulas de Educação Física, sempre com
aqueles olhos finos e bigode na forma de um sorriso. Pedi entrar , mas o zelador
recusou, dizendo que estava a fazer limpeza. Nas minhas calças os puns já se faziam
ouvir. Em pânico implorei a ele, dizendo que não aguentava mais, precisava usar agora,
não vou sujar, posso até ajudar a limpar se permitir. O velho apertou mais os olhos,
então me senti arrepiar diante do olhar dele, depois olhou pelos lados, quando tornou
a olhar para mim sorriu, dizendo: tudo bem, pode usar. Agradeci logo e entrei. Passava
pela entrada quando o Zelador pegou o meu braço. Surpreso, levantei os olhos e
gaguejando perguntei o que era. E ele respondeu: não corra, o chão está escorregadio.
Ainda nervoso amainei e fiz um gesto para me mover, mas não sai do lugar, a mão dele
continuava segurando na minha. Engoli e pedi que ele me deixasse. Ele só riu. Mas
depois deixou a minha mão, pedindo desculpas. "Vá-vá, antes de sujar as fraldas" ele
continuava a rir. Segui em frente, abri a porta do primeiro cômodo, tranquei a porta e
me sentei no vaso sanitário. Retirava as calças quando vi pernas debaixo da porta " D-
desculpa, algum problema?" gaguejei. " Saia por um minuto" respondeu o velho, " mas
senhor" tentei, mas ele repetiu " só venha aqui menino". Recordo que minhas pernas
tremiam quando ajustei as calças e abri a porta para encontrar o velho na minha
frente, e nem me deixem falar do meu coração. De onde estava parado notei que a
porta estava fechada, era novo, mas o alerta soou na minha cabeça. Estava tão
concentrado na porta que não notei que o velho não estava parado no lugar de antes,
quando trouxe minha atenção para ele, já estava na sanita, dobrado, com aquela pose
egípcia, que se usa para o jogo de cruzar um bambu por baixo, com as pernas
esticadas, a barriga para o ar e os braços deitados para baixo. A cabeça estava no meio
do vaso. " venha garoto, agora pode fazer côco." Ele dizia, mantendo a pose " Se
estiver também a sentir xixi pode fazer na minha boca, se posicione do meio das
minhas pernas e despeje o seu líquido na minha boca. " Eu estava travado, congelado
no lugar, com olhos fixos no sujeito, não lembro o que passava na minha mente, talvez
porque não pensava em alguma coisa. " Rápido! Meus braços e pernas já estão a
tremer. É diarreia, não é? Depois de mijar traga esse rabinho para minha boca e cague
tudo. Só quero os nutrientes, não vou fazer nada consigo, não se preocupe." Não
aguentava mais, corri logo para porta, tentei abrir, mas ela não respondia, os gases se
soltavam no meio de tudo, fiquei daquele jeito, lutando contra a porta, até que senti
uma mão no ombro. " olhe só para esse cheiro!" Me afastei logo dele, ainda tremendo.
" Menino, quer sujar as calças? Pode ir, vá-vá, não precisa ter medo. " Balancei a
cabeça e tentei falar, mas nada saiu " Não precisa mais fazer na minha boca" ele disse,
sorrindo com o bigode. Eu respirava forte, nem me aguentava de pé. E tinha uma
nuvem na minha cabeça. Gaguejei que não sentia mais, que só queria voltar a aula.
Disse mais alguma coisa, mas não me escutava mais falar, só ouvia o som do meu
próprio coração. No fundo escutava o som de outras crianças rindo, sentia o cheiro de
xixi, fezes e detergente em todos os cantos, enquanto minha respiração falhava a cada
segundo. A antiguidade e ferrugem do banheiro só me deixava mais ansioso. O velho
olhava para mim com novos olhos, muito mais fechados, e de certa forma mais
assustadores, havia uma sombra sobre o rosto dele. Repetiu as palavras de antes, mas
também mantive as minhas. Houve um longo silêncio, no meio do qual ele me
perscrutava inteiro, conduzia os olhos dele sobre todo o meu corpo, até que pararam
no meu rosto, fitando-o ainda mais intensamente. E Então , falando mais devagar ele
disse apenas: Ok. E se virou para abrir a porta. Quando a luz de lá fora iluminou o
banheiro, me movimentei para sair, mas o velho bloqueou a saída, ficou me olhando
da porta. Foi quando soltei outro pum. E ele trouxe um sorriso para o rosto: " melhor
resolver isso" disse, se afastando da porta. Comecei me movendo moroso, contudo, ao
cruzar a porta aumentei logo o passo, sem que me apercebesse já corria, um pouco
mais distante me virei para olhar para casa de banho, na porta continuava o zelador,
olhando para mim. Não precisou dizer alguma coisa, soube logo o que o olhar no rosto
dele dizia: não podia contar nada a ninguém. No momento que ele soltou um sorriso ,
apertando a vista como um asiático, tirei os meus olhos dele e segui correndo, fui para
sala de aulas e peguei na minha pasta com o lar como o meu destino. Me esforçava
para não pensar muito no zelador, a experiência na casa de banho só apareceu na
minha mente mais uma vez, ao cruzar a porta da escola, imaginava se não era uma
punição por ter dito aquilo sobre o Cássio. Mas logo ignorei o pensamento. Minha
atenção fora roubada por um homem pedalando uma bicicleta, com uma mulher
grávida se contorcendo enquanto lhe segurava pelo peito. Gritei pedindo que parasse,
e o homem não hesitou, fazendo uma paragem digna de um atleta, lançando poeira
por todos os lados. Quando me aproximei deles o homem contou que levava a esposa
para o hospital, que ela estava em trabalho de parto. Levei os meus olhos para ela ,
notando o quanto transpirava e gemia, respirando de forma descontrolada. Cogitei em
lhes abandonar logo, sentia vergonha em lhes incomodar mais. Mas um peido forte
soou, sequestrando todo o ambiente. Até a mulher pareceu se esquecer de sua dor,
trazendo a mão antes no útero para o nariz. O homem levantou os olhos para me
encarar, surpreso, seus olhos totalmente arregalados. " É o que estou a pensar?" Ele
perguntou. Não precisei de muito para perceber o teor de sua questão, embaraçado
anui, tentando sorrir " Começou a alguns minutos, não sei se aguento muito mais,
pensava em caminhar para casa. Mas...Nem tenho coragem de ir pegar o chapa
porque se acontecer ali..." expliquei, e o homem concordou com a cabeça " Não diga
mais nada" ele disse , soltando uma lágrima. Depois me olhou sério, tentei dizer que só
podia continuar e rezar conseguir chegar a salvo à casa " Por favor, não diga mais
nada" ele me interrompeu " Tome a bicicleta, vou carregar a minha esposa até o
hospital" eu estava espantado " Sr., eu ..." Voltei a ser interrompido, " não diga nada,
aceite logo, sei como é, já passei pelo mesmo, nunca superei, ainda tenho lembranças
daquela explosão no meio da rua, por vezes até acordo com um grito no meio da
noite, e quando toco nas minhas calças, elas estão lá, perfumando o quarto inteiro. É
embaraçoso, garanto, acredite, não queres isso para sua vida." Ele disse, abaixando as
calças, para me mostrar uma fralda. Não consegui me segurar diante dessa revelação,
soltei um choro. Só levantei as mãos do rosto quando senti uma mão na cabeça e
encontrei os olhos ternos da esposa do homem " aceite, menino, é o melhor para si.
Aguento até o hospital, o meu marido é rápido a pé." Enxugue as lágrimas e agradeci,
tomando a bicicleta. Parti com a visão do homem carregando pelas costas a mulher
grávida, prometendo a mim mesmo que o sacrifício dos dois não seria em vão. Pedalei
na máxima velocidade, cada vez que o meu rabo se levantava ao pedalar, peidorreava,
peidorreava tão forte que as pessoas na rua já ouviam o som dos meus peidos. Mesmo
com os olhares deles e suas risadas mantive minha determinação. Pelo casal. Eu dizia a
mim mesmo. Pelo casal. Mais só existe determinação até certo ponto neste mundo,
não importa o quanto se queira algo, se esteja esforçando para conseguir algo, nem
sempre tudo corre conforme esperando, é necessário sorte por vezes, e isso é o que
eu não tinha naquele dia. Há quinze minutos da minha casa as contrações na bunda se
tornaram fortes, tive até que parar, com a impressão de que se continuasse a pedalar,
acabaria por defecar no primeiro momento. Olhei pelos lados, procurando um espaço
isolado, mas estava no meio da rua e era uma tarde agitada, não havia como me
esconder. Não tinha outra forma, tinha de pedir ajuda. Saltei da bicicleta , e com ela
em mão entrei na primeira casa que meus olhos acharam. " Socorro! socorro!..."
Gritava quando saiu uma senhora, que correu até mim. " o que foi, o que foi menino,
está machucado, alguém está a..." Lágrimas já deixavam meus olhos " Por favor,
senhora, a casa de banho." A senhora olhou para mim confusa, mas a confusão não
durou muito, porque do nada soltei um dos fortes. Ela ficou vermelha. " Filho, fique
calmo, vai ficar tudo bem. Devagar " ela disse tomando meu braço, "devagar, por aqui,
um dois três, isso mesmo, me siga, um dois três, estamos quase lá. Se correr vai piorar
as coisas. Vamos querido, não desista." Ela me orientava pelo quintal até que paramos
numa porta fechada, a porta da casa de banho. Tentou abrir, mas ela estava trancada.
Assim a senhora saiu correndo, dizendo que voltava logo. Permaneci ali, cruzando as
pernas. Havia parado de respirar, seguranso não só as coisas nas minhas calças, mas
também a minha respiração. Mas não esperei por muito tempo porque logo apareceu
a senhora com as chaves, se apressou para porta e depois se virou para mim, agora
com ela aberta. Sorrindo agradeci, dando o primeiro passo para dentro daquele
paraíso, mas bastou esse primeiro passo para que explodisse nas calças.

" Senhora," eu falei num soluço " Posso usar o seu chuveiro?."

FIM

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